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COERÊNCIA: DE QUE DEPENDE, COMO SE ESTABELECE

4.1. Considerações gerais

Por tudo o que já dissemos até agora, fica mais do que evidenciado que a
coerência se estabelece na dependência de uma multiplicidade de fatores, o que
inclusive levou a uma abordagem multidisciplinar dessa mesma coerência. Uma vez que
ela passou a ser vista como um princípio de interpretabilidade do texto, tudo o que afeta
(auxilia, possibilita ou dificulta, impede) essa interpretação do texto tem a ver com o
estabelecimento da coerência.
Os estudos sobre coerência, abstraídas as questões de ênfase e explicitude dos
fatores abordados, são quase unânimes em postular que o estabelecimento da coerência
depende: a) de elementos linguísticos (seu conhecimento e uso), bem como,
evidentemente, da sua organização em uma cadeia lingüística e como e onde cada
elemento se encaixa nesta cadeia, isto é, do contexto lingüístico; b) do conhecimento de
mundo (largamente explorado pela semântica cognitiva e/ou procedural), bem como o
grau em que esse conhecimento é partilhado pelo(s) produtor(es) e receptor(es) do texto,
o que se reflete na estrutura informacional do texto, entendida como a distribuição da
informação nova e dada nos enunciados e no texto, em função de fatores diversos; c) de
fatores pragmáticos e interacionais, tais como o contexto situacional, os interlocutores
em si, suas crenças e intenções comunicativas, a função comunicativa do texto.
Evidentemente, cada um destes fatores se relaciona com outros fatores. Assim, o
conhecimento de mundo terá a ver, na interpretação, com a construção de um mundo
textual e sua adequação aos modelos de mundo do produtor e receptor do texto. Essa
construção do mundo textual vai depender largamente das inferências que o
interpretador faz ou fazer. Em nível semântico, tal conhecimento de mundo terá a ver
com o estabelecimento de uma unidade / continuidade de sentido, um sentido único para
o todo. Ligada ainda ao conhecimento de mundo, temos a questão da informatividade,
que diz respeito à previsibilidade / imprevisibilidade da informação dentro do mundo
textual.
O contexto situacional se relaciona tanto com o nível semântico e o
conhecimento de mundo, como, por exemplo, na identificação de referentes
deiticamente indicados, quanto com o nível pragmático, quando, por exemplo, só se
pode identificar que ato de fala é executado por um enunciado por saber

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situacionalmente que temos um padrão falando com o empregado numa fábrica.
Retornaremos a estas questões no item sobre situacionalidade.
Pragmeticamente, princípios conversacionais, como os de Grice (1975), podem
afetar o estabelecimento da coerência. Grice estabelece, como postulado básico que rege
a comunicação humana, o Princípio da Cooperação (“Faça sua contribuição
conversacional tal como é requerida no momento em que ocorre pelo propósito ou
direção do intercâmbio em que está engajado”) do qual decorrem quatro máximas: a)
Máxima da Quantidade (“Faça que sua contribuição seja tão informativa quanto for
requerido para o propósito corrente da conversação; não a faça mais informativa do que
o requerido”); b) Máxima da Qualidade (“Não diga o que acredita ser falso; não diga
senão aquilo para o que você possa fornecer evidência adequada”); c) Máxima da
Relação (“Seja relevante”, pertinente);d) Máxima do Modo (”Seja claro”).
Charolles e Franck apresentam o princípio da cooperação como básico no
processo de interpretação que leva ao estabelecimento da coerência: os usuários sempre
se assumem mutuamente como cooperativos e, portanto, crêem que a sequência
lingüística a ser interpretada foi produzida para ser um texto coerente, quer os sinais de
coerência se manifestem diretamente na superfície lingüística ou não. Isto se explica por
meio dos princípios de textualidade que abordamos em 4.8., a saber, a intencionalidade
e aceitabilidade. Charolles (1987) enfatiza que a coerência é estreitamente dependente
do interpretador que recebe o texto e busca interpretá-lo, usando seus conhecimentos
lingüísticos, de mundo, etc.
Nos textos conversacionais orais, elementos paralinguísticos também atuam no
estabelecimento da coerência: olhar, movimentos do corpo (Goodwin, 1981), expressão
facial, posturas corporais, interação corporal (proximidade, toques etc.), gestos (dêiticos
ou não) podem dar o sentido ou modificar totalmente o sentido do que se enuncia,
afetando, pois, a coerência. Van Dijk (1981) apresenta a seguinte lista: movimentos
dêiticos, outros gestos, expressão facial, movimentos do corpo e interação corporal,
como afetando a identificação de atos de fala realizados através dos enunciados.
Sabemos que, em muitos casos, tais elementos afetam o enunciado também no que
respeita a seu sentido não-pragmático, proporcional. Outros elementos que afetam o
cálculo do sentido e, portanto, a coerência, apenas no oral, são a entonação e fatores
prosódicos em geral, como velocidade e ritmo de fala. Diferenças da coerência no oral e
no escrito ainda são apresentadas nas seções 2.4.. 4.2. e 4.7.

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A coerência depende também da observação de certas convenções sociais de
como se devem realizar certos atos de fala. Assim, por exemplo, a fala do doente mental
são se preocupa com o significado social das ligações que faz e, por isso, soa incoerente.
Charolles (1978) propõe quatro meta-regras de coerência: repetição, progressão,
não-contradição e relação. Segundo a meta-regra de repetição, um texto, para ser
coerente, deve conter, em seu desenvolvimento linear, elementos de recorrência estrita.
A meta-regra de progressão diz para que, um texto seja coerente, é preciso haver no seu
desenvolvimento uma contribuição semântica constantemente renovada. O que se
depreende dessas duas regras é que, em todo texto deve haver retomadas de elementos
já enunciados e, ao mesmo tempo, acréscimo de informação. São estas idas e vindas que
permitem contribuir textualmente a coerência. As retomadas são feitas, em grande parte,
por meio dos mecanismos de coesão referencial e, na progressão, exercem papel
importante os mecanismos de coesão seqüencial (cf. Koch, 1989). Isto é, a coerência
manifesta-se parcialmente no texto através dos mecanismos coesivos. Segundo a meta-
regra de não contradição, para o texto ser coerente, “é preciso que no seu
desenvolvimento não se introduza nenhum elemento semântico que contradiga um
conteúdo posto ou pressuposto por uma ocorrência anterior, ou deduzível desta por
inferência”. Já pela meta-regra de relação o texto será coerente se “os fatos que se
denotam no mundo representado estejam relacionados”. Posteriormente, Charolles
(1979) propõe o acréscimo a Van Dijk.
Poder-se-ia acrescentar uma meta-regra de “super-estrutura”, que teria a ver com
estrutura de cada tipo de texto: descritivo, narrativo dissertativo etc. isto corrobora o que
propusemos em 2.4. e reiteramos na seção sobre intertextualidade quanto à relação entre
tipos de texto e coerência. Para Charolles (1978), as meta-regras tratam da constituição
da cadeia de representações semânticas e suas relações de conexidade que constituem o
texto. As meta-regras estabelecem “um certo número de condições que um texto deve
satisfazer para ser reconhecido como bem formado por um dado receptor numa dada
situação”, ora, a introdução do receptor e da situação traz à tona a questão da
interlocução e deixa claro que tais meta-regras estão sujeitas a aspectos da situação de
comunicação e não são, por si, suficientes para explicar as condições que um texto deve
atender para ser bem formado.
Antes de passarmos ao comentário, de forma mais particularizada, da relação da
coerência com os fatores aqui levantados, gostaríamos ainda de registrar as colocações
de Franck (1980) sobre sequências fortemente e fracamente coerentes.

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Franck (1980) propões a inclusão, na análise da conversação, da noção de
relevância da teoria dos atos de fala, afirmando que a fala de um interlocutor é coerente
com a fala do antecessor, no sentido mais amplo do termo, quando ela retém um aspecto
significativo, ainda que secundário, da fala anterior. Só em continuações optimais, as
pressuposições e a estrutura temática dos enunciados anteriores são totalmente
assumidas e suas preferências de continuação atendidas. Para Franck, neste caso, temos
uma contribuição (fala) anterior. No outro caso, em que o aspecto significativo essencial
do segundo turno se orienta para um aspecto não essencial do segundo turno se orienta
para um aspecto não essencial do primeiro, ou vice-versa, temos uma fala fracamente
coerente. Franck dá o seguinte exemplo:
(11) (1) A – O Sr. Deseja falar com meu marido?
O interpelado pode prosseguir com uma das seguintes falas:
(2) B – Sim, por favor, se não for incomodá-lo, prezada senhora.
(3) B – Por quê? A senhora é esposa de Welle Müller?
(4) B – Não fale assim tão cheia de si, eu a conheço de
antigamente, Lisa.
(5) B – PST, não fale alto. Ninguém deve nos ouvir.
Para Franck, (2) é fortemente coerente com (1), e (3) a (5) são fracamente
coerentes. Franck afirma que falas fracamente coerentes podem perturbar a evolução
harmônica de uma conversação ou irritar o parceiro, ofendendo-o. Isto ocorre porque o
receptor considera que o outro não coopera adequadamente, desviando o rumo da
conversação.
Para nós, quando a coerência é forte, estabelece-se facilmente a relação entre as
falas, ocorrendo o oposto no caso da coerência fraca.
Nas seções seguintes, buscaremos explicitar como cada tipo de fator e / ou cada
fator em particular concorre para o estabelecimento da coerência.

REFERÊNCIA BILBLIOGRÁFICA

KOCH, Ingedore Grunfeld Villaça. Texto e coerência / Ingedore Grunfeld Villaça


Koch, Luiz Carlos Travaglia. São Paulo: Cortez, 1989.

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