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2 (inclusa)
PRAGMÁTICA
para o ensino superior
Tommaso Raso
3.1. A dêixis
A origem do termo dêixis remete a uma palavra grega que significa “indicar, apontar”. A
dêixis codifica as relações entre língua e contexto em alguns dos seus principais
componentes: quem fala, com quem, em que posição no espaço e no tempo. Mais à frente
veremos que há também outros tipos de dêixis. Com as expressões dêiticas apontamos
para algo que está fora do discurso, ou seja, fora do contexto linguístico, o cotexto. Em
além da dêixis pessoal nos, encontramos a dêixis espacial aqui. Essas expressões podem
ser decodificadas plenamente, ou seja, pode-se atribuir a elas um referente, somente se
sabemos quem está falando, para quem, onde e quando. Isso significa que podemos
atribuir um significado a essas expressões somente se temos acesso à situação
extralinguística em que o discurso acontece.
A importância da dêixis se nota especialmente quando ela falta: é difícil por exemplo
interpretar um bilhete na porta de uma sala em que se encontrar
(3) Volto daqui a cinco minutos.
Um bilhete assim não oferece os elementos para se saber quem é o autor, quando o
escreveu ou a partir de quando devemos contar o tempo. Em geral, a falta de parâmetros
de orientação espaço-temporal, mesmo não verbais, gera muitos problemas (como ocorre
com os prisioneiros mantidos no escuro, sem a possibilidade de perceber o ritmo natural
do tempo e a alternância entre dia e noite). Os dêiticos, como todos os signos linguísticos,
são arbitrários, mas não são raros os casos de iconicidade, devidos à forte ligação entre
sistema dêitico, principalmente o sistema espacial, e a estrutura corporal.
A variação da codificação da dêixis não tem a ver somente com a forma linguística, mas
também com a escolha dos parâmetros pertinentes, dependendo da situação e da cultura.
A dêixis se configura em volta de um centro, que corresponde ao eu, ao aqui e ao agora
(ego, hic et nunc). Para orientar-se com as expressões dêiticas, os falantes utilizam um
sistema de coordenadas, o campo dêitico, com um centro dêitico, chamado origo, que
funciona como ponto de referência. Nas interações face a face, o falante coincide com o
centro dêitico, ou seja, com a origo. A situação canônica da interação verbal dialógica é,
portanto, egocêntrica, no sentido que o falante se coloca como o centro dêitico, e
correlaciona as coordenadas dêiticas ao próprio ponto de vista. Naturalmente, na
dimensão dialógica esse centro varia com o variar dos turnos entre o eu e o tu. Quando
fala o falante A, o centro dêitico está no falante A, mas quando o turno passa para o falante
B, também o centro dêitico passa para ele: é assim que o eu e o tu, o aqui e o aí, entre
outras expressões, mudam com o mudar do turno e da origo. Em cada língua/cultura os
parâmetros dêiticos são codificados com base em categorizações diferentes, mas sempre
seguindo esses mesmos princípios.
Como meios dêiticos se usam vários traços gramaticais: os demonstrativos (é com essa
palavra que os latinos traduziram o termo deiktikós do grego), os pronomes pessoais, os
possessivos, os advérbios de tempo e lugar, os morfemas de pessoa, o tempo verbal e
outros elementos do léxico (lexemas que incorporam traços dêiticos, como as duplas vir
e ir ou trazer e levar).
Vejamos agora tipos diferentes de dêixis. Uma primeira distinção a ser feita é entre dêixis
pessoal, espacial e temporal.
A dêixis pessoal é codificada naquelas expressões linguísticas que fazem sentido somente
se sabendo quem as profere, para quem está se dirigindo ou a quem está se referindo: eu
só faz sentido sabendo-se quem está falando; tu (ou você) sabendo-se para quem o falante
está se dirigindo; ele ou ela se sabemos a quem está se referindo quem está falando (mas
veremos que ele e seus correspondentes feminino e plural podem ser usados foricamente
também, ou seja, com referência a elementos do discurso e não da situação). Podemos
então dizer que eu significa “o falante”, tu “o interlocutor” e ele alguém que pode ser
definido só negativamente, como quem não é nem o falante nem o interlocutor, e que
portanto, para ser corretamente identificado, às vezes precisa-se de um gesto de ostensão
(o ato de apontar).
No plural, nós se define como eu mais alguém, não como o plural de eu (nós não significa
muitos “eus”). Esse alguém pode incluir ou não o(s) destinatário(s) da comunicação.
proferido por uma pessoa que, junto com outra, está fora da porta de um local e se dirige
a alguém que está dentro, tem valor exclusivo, ou seja, não inclui o interlocutor; ao
contrário
proferido por alguém que está se dirigindo à pessoa com quem quer falar depois de uma
semana, é inclusivo com relação ao interlocutor. Há várias línguas que possuem pronomes
diferentes para esses dois significados, como chúng ta (inclusivo) e chúng tôi (exclusivo)
em vietnamita, ou como ñande (inclusivo) e ore (esclusivo) em guarani.
normalmente estamos nos referindo a um grupo, por exemplo o time de futebol com o
qual nos identificamos, mas que a rigor não nos inclui pessoalmente. Com
estamos nos referindo ao gênero humano como um todo, o que não inclui diretamente a
nossa participação no evento de viver nas cavernas.
É importante notar que os pronomes de primeira e segunda pessoa, tanto singular quanto
plural, são de natureza diferente daqueles de terceira pessoa. Somente o pronome de
terceira pessoa pode substituir um nome ou um SN (e nesse sentido é um verdadeiro pro-
nome). É possível dizer (8), (9) ou (10), mas não (11):
em um contexto em que, por exemplo, o falante está se dirigindo a Luís e está apontando
para outra pessoa.
Em (12), o referente de ele deve ser recuperado na situação. Em (13), o referente de ele
deve ser recuperado no próprio discurso.
A dêixis pessoal, pelo menos nas línguas em que há uma rica morfologia verbal (e que
por isso não precisam expressar sintaticamente o sujeito), pode ser expressa através das
desinências verbais. Por exemplo, em português podemos dizer (14), mas em inglês
precisamos dizer (15), sendo que (16) é agramatical:
Precisamos distinguir entre uma referência espacial com relação a um ponto fixo, e
portanto, fórica, como em
São exemplos de dêixis espacial expressões como aqui, aí, ali, esse, aquele, nesse lugar,
em frente, atrás, à direita, etc. Os sistemas de codificação da dêixis podem mudar de
língua para língua: o italiano e o inglês, por exemplo, possuem um sistema dêitico
bipartido (perto ou longe do falante – qui/lí ou here/there), enquanto o português
apresenta um sistema tripartido (perto do falante, perto do interlocutor, longe dos dois –
aqui/aí/ali ou lá). Há línguas em que o sistema pode ser muito complexo: no sistema do
húngaro, por exemplo, temos formas para indicar o dentro, o fora com contato, o fora sem
contato, o fora de lado, etc.
O contexto pode mudar o tipo de significado espacial de algumas expressões: aqui pode
ter uma extensão física diferente se usado para se referir ao lugar onde um cirurgião
precisa cortar, ao lugar onde se deve colocar um livro, à cidade onde está acontecendo
um determinado evento ou ao país onde foi aplicada uma determinada norma. Portanto
aqui significa “um lugar coincidente com o lugar do falante, ou próximo ao falante, ou
que inclui o espaço do falante”, mas pode referir-se a áreas de extensão muito variável.
Isso vale também para outras expressões de dêixis espacial.
se referem ao mesmo tempo, o passado. O que muda é o aspecto verbal e não o tempo
verbal. Enquanto no primeiro caso a ação de jogar futebol é vista como algo concluído,
no segundo é vista durante o seu acontecer ou, como em
como uma ação repetida. Os vários tipos de presentes (eu jogo futebol, eu estou jogando
futebol), de passado (eu joguei/jogava/estava jogando) e de futuro (eu jogarei/vou
jogar/estarei jogando) não indicam, portanto, tempos diferentes, mas qualidades
diferentes de apresentação da ação ou do evento sem que se mude o valor puramente
temporal de presente, passado ou futuro. É possível dizer
O aspecto tem a ver, portanto, com a maneira com que a ação é apresentada, e não com o
tempo em que o evento acontece. A primeira grande distinção é entre os aspectos
perfectivos e imperfectivos (perfectum em latim significa “concluído”). As formas com
aspecto perfectivo apresentam a ação como concluída, incluindo a visualização do
instante final. O aspecto imperfectivo apresenta a ação sem a inclusão desse instante,
como algo que está (ou estava ou estará) em curso, ou como algo repetido no tempo.
Dentro do aspecto imperfectivo podemos incluir o aspecto habitual (jogava futebol todas
as sextas) e o aspecto progressivo (eu estou/estava/estarei jogando futebol). Várias outras
subdivisões são possíveis.
usamos uma perífrase em que o verbo acabar não tem um valor lexical próprio, como ao
contrário acontece em
mas serve para dar um valor aspectual específico ao verbo chegar. Acaba de chegar
significa chegou pouquíssimo tempo atrás. Essa paráfrase mostra que o significado
lexical de acabar não está presente em (27) e que acabar funciona como um auxiliar que
atribui o valor aspectual ao verbo chegar. Nós usamos diversos recursos do léxico para
atribuir valor aspectual: por exemplo, advérbios, como em
em italiano vira
(32) Studio molto da tre mesi (literalmente: eu estudo muito há três meses).
Analogamente o italiano não possui a perífrase de acabou de chegar, mas pode expressar
o mesmo valor através de um advérbio: è appena arrivato. Voltaremos à relação entre
tempo verbal e dêixis na seção 3.3. Agora passaremos a outros tipos de dêixis.
Além das dêixis pessoal, temporal e espacial, existem outros tipos de dêixis. Quando
usamos uma forma para nos referir a nós mesmos, ao nosso interlocutor ou a uma ou mais
pessoas diferentes tanto de nós mesmos quanto do nosso interlocutor, podemos escolher
várias formas: para nos referir ao interlocutor, podemos usar o tu ou o você, mas podemos
também usar o senhor, o professor, vossa excelência, etc. Do ponto de vista pessoal essa
escolha não muda o fato de que estamos sempre nos referindo ao interlocutor, mas muda
o valor social dessa referência. Com tu ou você expressamos intimidade ou relação de
igualdade ou superioridade social (por razões de idade ou status social), enquanto, com o
senhor, expressamos respeito ou distância, e vossa excelência é reservada a certos cargos
institucionais, assim como outras expressões de tratamento.
As possibilidades sociais da dêixis são muitas e há uma variabilidade muito grande nas
línguas, exatamente porque elas refletem as exigências de culturas que podem ser muito
diferentes. O inglês não possui a diferença expressa em português por tu e o senhor. O
português do Brasil tem essa oposição, mas ela é usada socialmente de maneira diferente
de como é usada a mesma oposição em Portugal ou de como é usada a oposição tu/lei no
italiano ou aquela tu/vous no francês ou du/Sie do alemão. As diferenças se tornam muito
maiores entre línguas de culturas mais distantes. Há línguas que possuem uma riqueza
enorme de formas para identificar interlocutores ou terceiras pessoas com base em muitos
parâmetros culturalmente relevantes.
(33) Comunica-se que o prazo para o pagamento é o último dia útil do mês
o uso do impessoal indica o autor do enunciado e a vontade que esse autor não apareça
diretamente, por motivos que podem variar, seja porque se quer esconder um responsável,
seja porque se quer dizer que o autor deve ser individualizado em uma instituição. De
fato, as variações contextuais que codificam as relações podem influenciar muito a dêixis
social: uma mãe que, se dirigindo ao filho criança, diga
(35) Você acha que está cumprindo todas as regras e de repente chega uma multa!
o advérbio aqui não indica o local físico em que realmente estamos, mas como ele é
representado no mapa, por analogia. Outro exemplo é quando, tocando o nosso braço
direito, pronunciamos
Nesse caso, provavelmente, não queremos dizer que ele machucou o nosso braço, mas o
braço dele, correspondente àquele que nós estamos tocando.
A dêixis analógica é muito explorada nos mapas que encontramos nos parques ou nos
museus, onde a expressão você está aqui remete por analogia a um ponto do parque ou
do museu ou de outra estrutura.
3.1.6. Dêixis e ostensão
A dêixis é ligada à ostensão, ou seja, ao fato de apontar fisicamente para uma pessoa ou
um lugar gestualmente. Como quando proferimos Ele! apontando para uma pessoa, ou
Ali!, apontando para um lugar. Algumas expressões dêiticas precisam da ostensão para
fazer sentido, outras, como eu, não precisam. Como já dissemos, algumas expressões são
inerentemente dêiticas: elas não podem ser usadas com função diferente. É o caso de eu,
que pode significar somente o falante, e cujo significado, portanto, depende sempre da
identificação do falante na situação, um elemento que está na situação extralinguística,
fora do discurso. O mesmo vale para os usos mais comuns de expressões como aqui, aí,
um ano atrás etc. Outras expressões, dependendo do caso, podem ser usadas tanto com
valor dêitico (com relação à situação extralinguística) quanto com função fórica, (com
relação ao discurso). A dêixis ostensiva tem um papel importante na aquisição da
linguagem. O gesto do apontamento surge muito cedo e é muito explorado pelas crianças.
3.1.7. Algumas considerações sobre a dêixis e como dar conta dela no código
A dêixis tem um peso importante nesse debate, já que ela faz automaticamente referência
a algo que pode ser recuperado somente através do contexto extralinguístico. Para
sustentar a posição de acordo com a qual nós precisamos primeiro processar a proposição
segundo os mecanismos do código, é necessário submeter os processos dêiticos a regras
que entrem na composição do próprio código. Ou seja, é necessário que haja uma regra
que, a partir de um elemento dêitico, permita a interpretação daquele elemento com base
em princípios gerais, que não devam lidar cada vez com informações que só estão
presentes no contexto específico, já que este varia constantemente. Se para interpretar um
elemento dêitico é necessário recorrer primeiro a informações fora do código sem que
seja possível identificar uma regra convencionalizada para fazer isso, a posição
semanticista clássica se mostra não adequada para dar conta do processamento cognitivo
de um enunciado que contém um dêitico.
Em alguns casos parece fácil construir regras que permitam guiar a interpretação dos
elementos dêiticos independentemente do contexto específico. Por exemplo, parece fácil
elaborar uma regra que diz que eu coincide sempre com o falante, independentemente do
contexto no qual é usado. Mas os dêiticos não parecem se comportar todos da mesma
maneira. Por exemplo, como vimos, o dêitico aqui pode se referir a lugares de extensão
muito variável, e não parece possível estabelecer uma regra codificável que permita guiar
se com aqui eu devo entender um ponto muito específico ou uma região que possui uma
extensão mais ou menos ampla. Muitos dêiticos precisam ser decodificados já levando
em conta a intencionalidade do falante, algo que não pode ser codificado com base em
regras. Um enunciado como (38) não permite a interpretação do dêitico hoje como um
espaço de 24 horas dentro do qual o falante profere o enunciado:
(38) Hoje não se faz mais o pão de queijo como se fazia há um tempo.
O mesmo pode-se dizer para expressões como os demonstrativos esse ou aquele. Não
parece possível construir uma regra que permita identificar o referente de um
demonstrativo (entre os vários possíveis) sem acessar elementos de natureza
extralinguística como a intencionalidade do falante.
As línguas possuem várias classes de expressões indexicais que devem ser interpretadas
com base em relações de tipo fórico. As expressões fóricas são decodificáveis
procurando-se a referência dentro do discurso. Elas se dividem em anafóricas, que
remetem a um momento anterior do discurso, e catafóricas, que remetem a um momento
posterior do discurso. A diferença pode ser exemplificada com dois usos diferentes do
demonstrativo esse:
Em (39), para se saber qual esporte é indicado por esse, é preciso olhar para o cotexto
anterior; em (40), para se saber qual é o motivo da viagem indicado com esse, é preciso
olhar para o cotexto que segue.
Como a anáfora é muito mais frequente do que a catáfora, com o termo anáfora
indicaremos todas as expressões fóricas, a não ser que seja especificado de maneira
diferente.
os dois pronomes o e ele são anafóricos, porque se referem a Carlos que havia sido
nomeado logo antes no discurso. Também os descritores podem instaurar relações
anafóricas, como em
(42) Pelé aceitou a proposta. Assim o campeão brasileiro foi jogar nos EUA.
(43) – Você tem encontrado com João?
– Nada. O malandro não aparece mais.
Nesse caso, isso produz uma ambiguidade: se refere à morte das pessoas ou ao fato de
elas terem sido encontradas?
(48) Carlos ligou para Maria porque ele achava que ela pudesse ajudá-lo.
Nesse exemplo, ele, lo e Carlos se referem à mesma entidade e, portanto, ele e lo são
anafóricos de Carlos; analogamente ela é anafórico de Maria.
(49) Geralmente os alunos que estudam tiram notas melhores do que aqueles
que não estudam.
(50) Meu café está frio. Pode, por favor, trazer um quente?
Nesses casos, aqueles não se refere às mesmas entidades às quais se refere os alunos que
estudam, e um não se refere ao mesmo café do antecedente. Portanto, a anáfora não é co-
referente, mas co-significativa. Desfruta-se o significado das expressões alunos e café,
que é retomado anaforicamente mesmo fazendo referência a outras entidades.
Em (50) a anáfora lo não se refere nem à mesma entidade nem a seu significado, mas ao
significante (anáfora co-significante). Analogamente, quando ouvimos uma palavra da
qual não sabemos o significado, podemos perguntar: O que isso quer dizer? ou Como se
escreve isso? Nesse caso, com isso retomamos a palavra como forma linguística, ou seja,
como significante, e perguntamos qual significado está associado a ela ou qual é a sua
transposição ortográfica.
(51) O restaurante era agradável: o salão era amplo, o jardim bem cuidado e o buffet
muito variado.
A relação entre dedo e mão é uma relação semântica entre parte e todo, assim como aquela
entre motor e carro. Em (52) o dedo se refere à mão, instaurando com mão uma relação
de meronímia: se trata do dedo da mão à qual se fez referência antes. O mesmo acontece
entre motor e carro em (53).
(54) Comprei um capote e duas blusas de frio: se quiser posso emprestá-las pra você
viajar pra Europa no inverno
o interlocutor entende que somente as blusas poderão ser emprestadas; isso é evidente
porque o feminino plural pode referir-se a blusas, mas não a capote nem a blusas e capote
ao mesmo tempo. A interpretação é aqui guiada por razões morfológicas. Em outros
casos, é o significado intensional que guia a compreensão:
(55) O meu vizinho tem um cachorro insuportável: o bicho late a noite inteira.
Para interpretar esse exemplo é necessário saber que cachorro é hipônimo de bicho. São
hipônimas as palavras cujo significado intensional está incluído no significado intensional
de outra palavra, ou seja, o hipônimo possui todos os traços semânticos de seu hiperônimo
e pelo menos um a mais. Por exemplo, cachorro é hipônimo de mamífero, assim como
mamífero é hipônimo de bicho. Naturalmente, pela propriedade transitiva, cachorro é
hipônimo também de bicho. A palavra que tem um significado intensional com menos
traços é chamada de hiperônimo: bicho, portanto, é hiperônimo de mamífero e de
cachorro. Observe-se que um hiperônimo possui um significado intensional com menos
traços, mas um significado extensional que inclui mais indivíduos.
Em
(56) – Quem você gostaria mais de ter conhecido, o Maradona ou o Frank Sinatra?
– Eu não sou muito interessado em futebol e, portanto, preferiria ter encontrado
o cantor
(57) Ontem falei com o João e com o Paulo. Seu amigo estava muito animado.
Sem saber qual dos dois indivíduos é amigo do interlocutor, não podemos saber se seu
amigo se refere a João ou a Paulo. Em (56) e (57), nem a morfologia nem a semântica
são suficientes para assegurar a referência, que precisa de elementos ligados a aspectos
do conhecimento extralinguístico (saber que Frank Sinatra era um cantor e saber quem,
entre as duas possibilidades, é amigo do interlocutor).
Observe-se agora os dois exemplos (58) e (59). Em cada um deles temos dois enunciados,
sendo que o primeiro não muda e que no segundo temos o mesmo elemento anafórico ele.
(58) O empresário pediu ao motorista para levá-lo ao lugar da reunião. Ele evitou as
ruas mais transitadas.
(59) O empresário pediu ao motorista para levá-lo ao lugar da reunião. Ele aproveitou
do tempo para refletir sobre o assunto que ia tratar.
(60) O empresário pediu ao motorista para levá-lo ao lugar da reunião. Ele evitou as
ruas mais transitadas dando melhores indicações.
Nesse caso, ele, provavelmente não se refere mais ao motorista, mas ao empresário.
(61) O empresário pediu ao motorista para levá-lo ao lugar da reunião. Ele aproveitou
do tempo para refletir sobre o assunto que ia tratar com o chefe durante a volta.
Nesse caso, ele, provavelmente não se refere mais ao empresário, mas ao motorista. Os
exemplos (60)-(61) mostram como a atribuição de um antecedente a um elemento
anafórico é fruto frequentemente de um raciocínio de natureza probabilística, que pode
mudar com a aquisição de novas informações (ou seja, de novas premissas).
Também as formas verbais (entendendo as formas verbais como tense) podem ter valor
anafórico ou dêitico. Em português há algumas formas que são inerentemente anafóricas,
além de várias formas que podem funcionar tanto anaforicamente quanto deiticamente.
Em
(64) Quando você entrou eu percebi imediatamente que você nos daria a notícia
entrou é dêitico, enquanto os outros dois verbos são anafóricos, ou seja, a referência
temporal deles não é o momento da enunciação mas é, respectivamente, o momento em
que você entrou e o momento em eu percebi. De fato, entrou é interpretável somente
como antes do momento da enunciação, enquanto percebi deve ser interpretado como em
contemporaneidade com entrou, e daria como posterior a percebi. Não existe, neste
discurso, uma indicação temporal à qual o tempo de entrou esteja ancorada. Nós sabemos
somente que você entrou aconteceu antes do momento da enunciação. Isso significa que,
sem conhecer o momento da enunciação, não podemos ancorar entrou. Ao contrário, a
própria forma entrou funciona como ancoragem temporal para as formas que seguem.
Elas se medem em relação a um tempo que está no discurso (o tempo de entrou) e não ao
momento da enunciação. São, portanto, usos anafóricos. No caso de daria, sabemos que
acontece depois de percebi, ou seja, é anafórico diretamente de percebi, que, por sua vez,
é anafórico de entrou.
Observe-se que o mesmo significante possui significados muito diferentes em (64) e (65).
No segundo caso, daria possui um valor modal e forma o que é chamado de apódose de
um período hipotético (veja-se 5.2.10). De fato, em (65), que é um período hipotético, a
primeira parte constitui a apódose, que informa sobre o que o aconteceria sob efeito de
uma determinada condição, enquanto a segunda parte (sintaticamente subordinada)
constitui a prótase, que apresenta a condição para a apódose.
Em
a forma tinha jogado se refere a algum momento anterior a um momento que precisa ser
ancorado no discurso (seja explícita ou implicitamente). Por exemplo, como acontece no
diálogo em
Neste caso, tinha jogado se refere a um momento anterior a ontem, e não a um momento
anterior à enunciação. As formas verbais que têm valor inerentemente anafórico são o
mais-que-perfeito, que expressa anterioridade com respeito ao passado, o futuro anterior
(eu terei jogado), que expressa anterioridade com respeito ao futuro, e o futuro do
pretérito (eu jogaria), quando expressa posterioridade com respeito ao passado, como em
3.4. Logodêixis
Alguns autores distinguem, entre os vários tipos de dêixis, uma dêixis textual ou
logodêixis. Esse caso se verifica quando fazemos referência a um texto ou discurso não
para nos referir anaforicamente a um elemento que está mencionado neles, mas para nos
referir a um ponto físico deles, seja esse ponto entendido em termos espaciais ou
temporais. Se eu disser, por exemplo, na primeira página explico o que é a Pragmática,
na primeira página faz referência a um lugar físico do livro que contém o texto (e,
metonimicamente, podemos interpretar página do livro como página do texto), não faz
referência a um elemento linguístico. De fato a referência é ao texto como um espaço
físico e não como discurso. Assim se eu disser na aula passada ou no começo da aula
(estou me referindo às aulas que dou aos meus interlocutores), eu me refiro ao texto aula,
mas deiticamente, como um ponto temporal de algo que pode ser ancorado somente à
enunciação em curso. Um outro exemplo: podemos achar em um livro formas como como
foi dito no primeiro capítulo, ou como será dito na página 153. Nestes casos, o autor está
fazendo referência a algo que pode ser interpretado somente a partir do espaço físico do
livro em questão em uma dada situação. Um caso interessante é
Esta e aquela podem ser interpretadas tanto foricamente, pois fazem referência a dois
elementos anteriormente mencionados no discurso, quanto deiticamente, pois fazem
referência a um elemento fisicamente mais perto ou mais longe no texto, entendendo o
texto como algo que ocupa um espaço físico. Podemos dizer que essa referência tende a
ser de natureza espacial na escrita e de natureza temporal na fala.
Antes de terminar este capítulo sobre dêixis e anáfora com uma parte dedicada ao discurso
direto e indireto, é útil dizer algumas palavras sobre certos lexemas plenos, o seja,
lexemas que apresentam um significado intensional mais rico, e que se distinguem apenas
pela parte do significado que remete a seu componente dêitico.
É interessante notar que as línguas não codificam essas relações do mesmo jeito. Em
português, por exemplo, se duas pessoas se encontram na rua, é correto que uma delas
profira (72a) e não (72b):
Observemos agora o que acontece com a dupla em (71). Enquanto o português adota a
diferença de direção entre levar e trazer, o italiano usa um verbo só, deixando ao contexto
a responsabilidade de codificar a direção. Portanto os dois enunciados em (71) se
traduzem com o mesmo enunciado em italiano:
O inglês possui a dupla take/bring, mas, novamente, seu uso não pode ser completamente
sobreposto ao uso do português.
Esses exemplos, assim como a diferente codificação da dêixis espacial (que, como vimos,
pode ser bipartida ou diferentemente multi-partida) ou da dêixis social, que muda de
cultura para cultura e em algumas pode ser muito complexa, mostram como cada
língua/cultura organiza a própria codificação dos elementos que cumprem funções com
relação ao contexto situacional e social e só podem ser decodificados graças ao acesso à
situação extralinguística.
Observe-se, por fim, expressões como local, estrangeiro, importar e exportar, e diversas
outras. São todas expressões cujo significado depende de aspectos de dêixis espacial. Por
exemplo, proferir em Minas o enunciado O pão de queijo é um produto local não possui
o mesmo valor de verdade do que proferir o mesmo enunciado na Dinamarca.
Analogamente dizer Tommaso é estrangeiro é verdadeiro se proferido em vários lugares,
mas não na Itália.
(75) Falante: Ontem passei por aqui pra visitar um amigo, e, enquanto a gente estava
tomando uma cerveja, ele me falou: “desde o ano passado, em que você
começou a tomar cerveja, você engordou demais”.
Em (75) temos muitos indexicais (em itálico). Comecemos pelas expressões não verbais,
deixando os verbos para depois. Ontem e desde o ano passado são dêiticos temporais;
aqui é um dêitico espacial; me, a gente e você são dêiticos pessoais, mas nesta categoria
podemos incluir também o morfe de pessoa em passei, pois ele funciona como os
pronomes-sujeito dos outros verbos.
Quanto às formas verbais (passei, estava tomando, falou, começou, engordou), todas
estão no passado. Elas se referem ao mesmo tempo, codificado com precisão através do
dêitico ontem como o dia anterior à enunciação? Naturalmente não. Os primeiros (passei,
estava tomando, falou) se referem realmente a ontem com o qual estabelecem uma relação
anafórica direta ou indiretamente: falou se refere ao momento em que acontece estava
tomando, ou seja, é anafórico de estava tomando, que por sua vez se refere a ontem. Mas
começou e engordou não se referem nem direta nem indiretamente a ontem; começou se
refere a desde o ano passado, enquanto engordou expressa posterioridade com relação a
começou.
No caso do discurso direto (ou discurso reportado), temos uma mudança de centro dêitico
dentro da fala da mesma pessoa. Isso porque o falante, teatralizando o discurso, insere
nele um pedaço que não deve ser entendido como interpretável com base nos parâmetros
da situação de enunciação, ou seja, com base no ego, hic et nunc; mas com base nos
parâmetros de uma situação de enunciação diferente e citada agora em forma direta e
teatral, ou seja, a fala de outra pessoa e/ou em outro tempo e/ou em outro espaço.
Na escrita, nós marcamos através dos dois pontos e das aspas essa passagem de um centro
dêitico ancorado na enunciação para um centro dêitico ancorado numa situação diferente
e reportada. A oralidade possui outras estratégias para o discurso reportado, que é
prosodicamente estilizado de maneira a sinalizar a mudança do centro dêitico (veja-se o
site@ ao ponto 1 para um aprofundamento e para alguns exemplos).
Note-se que em (75) não são somente os verbos que adquirem um outro centro dêitico:
você nesse caso não se refere ao interlocutor, mas ao próprio falante, assim como o ano
passado não se mede a partir do momento da enunciação mas a partir de ontem. Mudando
isso tudo para o discurso indireto, teríamos
(76) Falante: Ontem passei por aqui pra visitar um amigo, e, enquanto a gente estava
tomando uma cerveja, ele me falou que desde o ano anterior, quando eu
tinha começado a tomar cerveja, eu havia engordado demais”.
(77) Falante: Um ano atrás o meu amigo Carlos me ligou da Alemanha e, claramente
alegre, me falou: “finalmente hoje um colega me ligou e me disse que eu
fui convidado para ir a uma festa amanhã. Neste país não é como aí; é
muito difícil fazer amigos e se inserir entre os jovens daqui. Espero que
daqui pra frente a minha vida fique menos solitária”.
(77) é bem mais complexo do que (75). Temos o nível do discurso do falante, o nível do
discurso de Carlos e o nível do discurso de um colega que já é reportado por Carlos, ou
seja, que está dentro do discurso de Carlos, mas de forma indireta.
(78) Falante: Um ano atrás o meu amigo Carlos me ligou da Alemanha e, claramente
alegre, me falou que finalmente naquele dia um colega havia ligado pra
ele e havia lhe dito que ele havia sido convidado para ir a uma festa no dia
seguinte. Disse que naquele país não é como aqui e que é muito difícil
fazer amigos e se inserir entre os jovens dali. Disse que esperava que dali
pra frente a sua vida ficaria menos solitária”.
Nesse caso podemos notar o que acontece passando de dois centros dêiticos para um único
centro dêitico:
Examinemos agora o que acontece nas formas verbais, comparando quando o centro
dêitico é duplo (discurso reportado) e quando é único e, portanto, o que era referido ao
segundo falante (Carlos) em forma direta pelo primeiro se torna referido diretamente ao
primeiro falante que reporta. Se no primeiro caso o reportador cria um novo centro
dêitico, no segundo ele adequa anaforicamente as palavras do segundo falante ao seu
próprio centro dêitico.
Observe-se como é preciso adequar a pessoa verbal, mas principalmente a forma que
expressa anterioridade ou posterioridade, utilizando frequentemente formas
inerentemente anafóricas como o mais-que-perfeito e o futuro do pretérito.
Por fim, observe-se que por duas vezes no discurso indireto o falante repete disse que.
Isso se deve ao fato de que, quando um enunciado acaba e se abre um novo enunciado, é
necessário deixar claro que o conteúdo que se segue continua sendo atribuído ao segundo
falante. Em caso contrário, ele poderia ser atribuído ao primeiro e gerar dúvida na
interpretação.