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PRAGMÁTICA
para o ensino superior
Tommaso Raso
Contudo, a escolha de uma determinada expressão referencial para nos referir a uma dada
entidade em um determinado momento do discurso é ligada também a outros fatores,
entre os quais à sinalização da acessibilidade do referente, ou seja, a uma diferente
avaliação de se e como o referente está presente no common ground. Dependendo dessa
avaliação, nós precisamos escolher estratégias diferentes para fazer referência a uma
entidade.
4.1. A acessibilidade
Se podemos fazer referência a algo com sucesso sem ter que instaurá-lo no discurso como
um referente novo, isso significa que o referente é acessível, ou seja, que ele pode ser de
alguma maneira recuperado na mente do interlocutor. Um referente pode ser acessível em
vários graus e através de vários meios.
Em 2.2.1 vimos que um descritor pode ter diferentes leituras: genérica, específica e não
específica. Os meios gramaticais para sinalizar leitura e acessibilidade se sobrepõem
entre si e com aqueles que sinalizam outras funções. Portanto não é possível fornecer um
conjunto de regras formais que possa ser aplicado mecanicamente. O estudo dos meios
que determinam nas línguas a relação entre referência, leitura e acessibilidade é chamado
definitude.
O que se deve fazer para estabelecer o tipo de leitura e de acessibilidade é recuperar as
instruções fornecidas pelo falante e combiná-las com os elementos fornecidos pelo
contexto discursivo e pela situação. Os meios gramaticais que indicam leitura e
acessibilidade podem variar muito de língua para língua. Por exemplo, em português
podemos dizer
Por fim, em italiano, seria agramatical dizer (2b) e deveria se usar (2c)
Para nos referir a uma classe, em italiano precisamos do artigo (e, pelo menos neste caso,
do plural), enquanto em português e em inglês não, apesar das duas línguas mostrarem a
diferença no número. Isso, como outros elementos, interfere na sinalização da
acessibilidade cognitiva dos referentes.
Com (3a) estaríamos sinalizando que agora o rei é identificável como o mesmo rei de (3).
Observe-se que dizer que um referente é identificável não significa que conhecemos
algum detalhe sobre ele. Significa apenas que ele pode ser identificado como o mesmo
referente mencionado anteriormente (ou, como veremos, que ele é recuperável através de
um processo inferencial de outra natureza, a partir da situação ou de conhecimentos
compartilhados). Isso quer dizer que o referente o rei é agora tratado como dado, algo
que o ouvinte pode recuperar na memória ou na atenção (para aprofundamentos sobre o
conceito de atenção e de memória e como se relacionam entre si, veja-se o cap. 9). Se
continuássemos com
induziríamos o destinatário a pensar que o rei de (3) e o rei de (3b) não constituem o
mesmo referente, mas dois reis diferentes. Mas tanto em (3a) quanto em (3b) estamos
instaurando um outro referente, que certamente é novo: um país muito grande. Esse
referente é sinalizado como um elemento novo e não identificável.
As noções de referente novo e referente dado não devem ser tomadas como noções
absolutas. Se no caso de um referente totalmente novo podemos dizer que ele claramente
não é acessível, há contudo diferentes graus de acessibilidade para os referentes que não
são totalmente novos. De fato, grande parte dos referentes em um discurso pode ter sido
mencionada anteriormente (ou ser acessível de outra maneira), mas não ocupar um
mesmo status cognitivo. Podemos dizer que os referentes que não são novos podem ser
mais ou menos dados.
(4) O governo resolveu tomar uma posição oficial em relação ao escândalo da Lava
Jato. A oposição critica.
Um frame é como uma cena típica de algum evento ou de alguma situação, em uma
determinada cultura. Por exemplo, o frame “mergulho” automaticamente instaura
referentes como máscara, roupa de mergulho, nadadeiras, cilindro, etc. No caso de um
mergulho noturno, a lanterna é automaticamente instaurada. No frame “restaurante” são
automaticamente instaurados referentes como garçom, talheres, comida, cardápio, etc.
Uma vez instaurado o frame “restaurante”, esses e outros referentes podem ser tratados
como identificáveis. Por exemplo é possível dizer
Isso significa que não é preciso dizer primeiro No restaurante havia um garçom, já que o
referente garçom é automaticamente instaurado pelo frame “restaurante”. O mesmo
acontece pelos referentes bolo ou presentes no frame “festa de aniversário” ou pelos
referentes juiz, bola, time ou público no frame “jogo de futebol”. Os frames são fruto da
nossa experiência; portanto, eles mudam, pelo menos parcialmente, dependendo da
cultura ou dependendo dos conhecimentos individuais. É frequente que crianças, que
naturalmente possuem pouca experiência de mundo, criem frames que depois são
revisados com a aquisição de novas informações, ou seja, adquirindo novas premissas
para tirar conclusões sobre a estrutura do frame. Quando era criança, a filha de uma colega
de faculdade costumava ir todo domingo a um restaurante onde havia cavalos. A primeira
vez em que ela foi levada a outro restaurante, logo perguntou onde ficavam os cavalos. A
experiência dela havia construído o frame “restaurante” como “lugar onde se come e há
cavalos”!
Voltando ao exemplo (6), observemos o que acontece com o referente apontado com o
pronome ele (que nesse caso funciona como dêitico, ou seja, aponta para algo fora do
discurso, como apresentado no cap. 3). O referente de ele é situacionalmente ativo porque
presente fisicamente no contexto e apontado com o sinal com a cabeça. Não precisa ser
instaurado discursivamente, porque é instaurado pela própria situação; e não precisa ser
indicado com um sintagma nominal, pois o movimento da cabeça imediatamente leva a
atenção para a pessoa em questão.
Imaginemos agora que estejamos passeando por uma trilha com um amigo e, de repente,
depois de uma curva, aparece uma cachoeira. Podemos tranquilamente exclamar
(8) É linda!
Portanto vimos que um referente pode ser instaurado linguisticamente, como no caso de
rei em (3), pode ser instaurado por frame, como no caso de lanterna em (6) ou até
situacionalmente, como no caso de ele, também em (6), e da cachoeira em (8).
Dependendo da saliência que o referente assume para a nossa atenção, ele pode ser tratado
apenas como identificável (é o caso da lanterna) ou até como ativo (é o caso de ele e da
cachoeira).
Um dos motivos disso é a possível competição entre os referentes. No caso de (6) não
poderíamos dizer
porque haveria muitos referentes possíveis (além da lanterna) para um pronome feminino
singular. Deveríamos dizer algo como
Isso quer dizer que deveríamos primeiro tornar a lanterna um referente que esteja dentro
da atenção do ouvinte e somente depois poderíamos nos referir a ela com um pronome.
Tanto a lanterna quanto o garçom, nas duas situações, são apenas identificáveis, mas não
chegam a ser ativos. E no caso de (8) as coisas poderiam mudar se, durante o passeio,
depois da curva, víssemos uma cachoeira e uma mulher bonita tomando banho. Os dois
referentes entrariam em competição e (8) se tornaria ambíguo.
Em (12) não precisamos de nada para retomar Carlos. O símbolo Ø se refere ao que
chamamos de anáfora zero (que pode ser usada para qualquer pessoa verbal). Neste caso
não existe nenhuma competição entre referentes ativos. Em (13) não podemos usar a
anáfora zero porque há competição entre dois referentes ambos ativos, mas a competição
pode ser resolvida usando-se o pronome masculino. Em (14) nem isso é possível, mas
seria possível resolver a competição com outro elemento linguístico:
(15) Carlos e Mário são muito simpáticos. O primeiro até me convidou pro
aniversário dele.
Neste caso não podemos utilizar a mesma estratégia de (16), porque os três são
escritores. Precisamos utilizar uma estratégia mais complexa e mais pesada linguística
e cognitivamente: um SN complexo, que permite alcançar informações mais precisas.
Naturalmente, nada nos impediria de repetir o nome próprio.
Em geral, parece que há uma forte e progressiva correlação entre facilidade de acesso
ao referente (a acessibilidade mais imediata é o caso em que há ativação sem
competição) e menor necessidade de colocar material linguístico para a sua retomada.
Ao contrário, há uma forte correlação entre dificuldade de acessar o referente e
complexidade morfolexical. Se há ativação sem competição, podemos até usar o morfe
zero, ou seja, podemos deixar a retomada anafórica como óbvia; se há ativação com
competição, podemos ter diferentes graus de competição, e, quanto maior ela for, mais
complexa se torna a retomada: pronomes (nem sempre todos), nomes e descritores até
muito complexos. Maior material linguístico implica maior custo cognitivo, tanto para
o falante quanto para o ouvinte. Isso mostra que a acessibilidade é algo que deve ser
visto de forma gradiente.
Mas ao mesmo tempo é importante observar que os aspectos que decidem como tornar
um referente acessível não podem ser explicados somente com mecanismos sintático-
semânticos. O peso do contexto para que um referente seja julgado mais ou menos
facilmente acessível é enorme: em cada situação, dependendo da pessoa ou do assunto,
há uma série de informações compartilhadas (o common ground) que possuem um
poder decisivo em estabelecer o que é mais ou menos acessível.
(18) Ontem fui jogar futebol com um amigo meu. Ele marcou dois gols, mas
o time adversário ganhou assim mesmo.
a) como um texto escrito, em que não sabemos quem é o eu falante nem o momento e a
situação de enunciação, a não ser que ela seja explicitada em algum outro lugar do texto.
Sem isso, não temos acesso imediato aos elementos situacionais, o que, ao contrário,
acontece automaticamente quando estamos falando com alguém pessoalmente. É
importante lembrar que a modalidade natural da linguagem é a fala e que a escrita é uma
tecnologia, mesmo se antiga e hoje facilmente disponível (veja-se o aprofundamento ao
ponto 3 do cap. 8 no site@).
b) como um texto falado em uma situação à qual temos acesso direto.
Vamos analisar o texto na versão (b). Portanto estamos na frente do falante, nos mesmos
momento e lugar da sua fala, ou seja, compartilhamos a dêixis com ele.
Analisaremos as expressões referenciais ontem, futebol, um amigo meu, ele, dois gols, o
time adversário.
O nome futebol é tratado como identificável com base nos conhecimentos de mundo. É
necessário saber que existe um tipo de jogo chamado futebol para acessar a esse referente.
E o falante está assumindo que essa informação faz parte do CG.
O pronome ele. Um indexical não fornece quase nada de significado intensional. Nesse
caso fornece simplesmente o significado de masculino singular. Isso significa que ele
pode fazer referência somente a algo ativo, ou seja, algo que esteja presente na atenção
dos interlocutores. No caso específico, algo que foi mencionado há pouco tempo e que
não entre em competição com outro referente masculino singular. O referente que ele
retoma é um amigo meu. Um referente ativo é automaticamente identificável. Se algo está
presente na nossa atenção não podemos dizer que não é identificável: a ativação é algo a
mais que a identificabilidade, e obviamente a inclui. A identificabilidade é entendida
como a capacidade de identificar com certeza qual é o referente apontado; neste caso
sabemos que o referente é identificável como o mesmo referente designado antes com o
descritor um amigo meu. O fato de um amigo meu não ser identificável não compromete
a identificabilidade de ele, pois se trata de um referente identificável enquanto o mesmo
mencionado antes (não um outro amigo, mas o mesmo). Não seria correto entender que,
como ele retoma um descritor que designa um referente não identificável, herda a não
identificabilidade. Como já dito, a identificabilidade não consiste em conhecer as
características específicas dos referentes, mas em saber se a expressão identifica um
referente que pode ser individualizado na nossa mente; neste caso, o identificamos como
o mesmo referente apontado pela expressão um amigo meu. Não sabemos ainda nada
sobre o referente de um amigo meu, mas sabemos que ele identifica o mesmo referente.
Além disso, ele está presente na nossa atenção e portanto está ativo, ou seja, tem um
estatuto de acessibilidade mais forte do que a simples identificabilidade.
O descritor dois gols é identificável pelo frame “futebol”. Este frame instaura
automaticamente, entre vários outros, o referente gol, nesse caso modificado por um
quantificador. O mesmo acontece com o descritor seguinte.