Você está na página 1de 10

Leitura obrigatória: Capítulo 4 completo

PRAGMÁTICA
para o ensino superior

Tommaso Raso

4. Status cognitivo dos referentes

As línguas dispõem de vários instrumentos para designar um referente: podemos nos


referir à mesma pessoa usando, por exemplo, o nome Francisco, a expressão um amigo
meu ou um cara com quem eu jogo futebol ou ele, entre outras possibilidades. Por essa
mesma razão, como vimos, podemos considerar conotativo, do ponto de vista pragmático,
qualquer descritor, já que, dependendo da nossa intenção comunicativa, podemos
escolher muitas opções diferentes para nos referir a algo, e cada uma dessas opções coloca
em evidência alguns aspectos da nossa relação com o referente, enquanto deixa de lado
outros: ou seja, cada decisão expressa um ponto de vista do falante em detrimento de
outro.

Contudo, a escolha de uma determinada expressão referencial para nos referir a uma dada
entidade em um determinado momento do discurso é ligada também a outros fatores,
entre os quais à sinalização da acessibilidade do referente, ou seja, a uma diferente
avaliação de se e como o referente está presente no common ground. Dependendo dessa
avaliação, nós precisamos escolher estratégias diferentes para fazer referência a uma
entidade.

4.1. A acessibilidade

Se podemos fazer referência a algo com sucesso sem ter que instaurá-lo no discurso como
um referente novo, isso significa que o referente é acessível, ou seja, que ele pode ser de
alguma maneira recuperado na mente do interlocutor. Um referente pode ser acessível em
vários graus e através de vários meios.

Em 2.2.1 vimos que um descritor pode ter diferentes leituras: genérica, específica e não
específica. Os meios gramaticais para sinalizar leitura e acessibilidade se sobrepõem
entre si e com aqueles que sinalizam outras funções. Portanto não é possível fornecer um
conjunto de regras formais que possa ser aplicado mecanicamente. O estudo dos meios
que determinam nas línguas a relação entre referência, leitura e acessibilidade é chamado
definitude.
O que se deve fazer para estabelecer o tipo de leitura e de acessibilidade é recuperar as
instruções fornecidas pelo falante e combiná-las com os elementos fornecidos pelo
contexto discursivo e pela situação. Os meios gramaticais que indicam leitura e
acessibilidade podem variar muito de língua para língua. Por exemplo, em português
podemos dizer

(1) Eu gosto de cachorro.

Ao não colocar nenhum artigo ou determinante na frente da expressão singular cachorro,


se sinaliza que se gosta da classe dos cachorros. Em inglês é possível não colocar o artigo,
mas a expressão cachorro deve estar no plural:

(2a) I like dogs.

Por fim, em italiano, seria agramatical dizer (2b) e deveria se usar (2c)

(2b) *Mi piacciono cani / *Mi piace cane.


(2c) Mi piacciono i cani.

Para nos referir a uma classe, em italiano precisamos do artigo (e, pelo menos neste caso,
do plural), enquanto em português e em inglês não, apesar das duas línguas mostrarem a
diferença no número. Isso, como outros elementos, interfere na sinalização da
acessibilidade cognitiva dos referentes.

O grau de acessibilidade de um referente depende de quanto ele é identificável pelos


falantes e de quanto está presente à atenção dos falantes em um determinado momento
do discurso ou em uma determinada situação. O grau de acessibilidade se julga com base
na instrução que o falante fornece ao interlocutor. Isso quer dizer que é o falante que,
utilizando de maneira apropriada certos meios gramaticais, dá ao interlocutor instruções
como: você tem como recuperar o indivíduo ou a classe a que estou fazendo referência,
ou, ao contrário, você não tem como recuperar o indivíduo ou a classe a que estou fazendo
referência, ou não importa, nesse momento, que você os recupere. Com base nas
instruções fornecidas pelo falante, o ouvinte, com maior ou menor sucesso, busca na
própria mente um referente apropriado ou entende que não pode ou não precisa fazer esse
esforço. O esforço de busca do ouvinte é, em princípio, desencadeado pelas instruções
recebidas pelo falante.

Se o falante começa uma estória com

(3) Uma vez encontrei um rei.

o ouvinte recebe a instrução de que o rei em questão é um referente cognitivamente novo,


que está sendo instaurado pela primeira vez no discurso. Ele não pode portanto ser
recuperado na mente do ouvinte, ou, de todo modo, o falante está sinalizando que o
ouvinte não pode ou não precisa procurar um referente conhecido. Seria diferente se a
estória começasse com

(4) Uma vez encontrei o rei.


Nesse caso, o falante estaria fornecendo ao ouvinte a instrução de que ele faça o esforço
de identificar, na própria memória, a qual rei específico o falante está se referindo.
Portanto é o falante que indica ao ouvinte se ele tem condição de (ou se precisa) identificar
o referente. Em (4), o falante sinaliza ao ouvinte que o referente é identificável e o induz
a fazer um esforço, utilizando meios que podem ser diferentes, tanto de natureza
discursiva (mesmo rei já mencionado) quanto de natureza contextual (dadas as
circunstâncias, pode ser possível recuperar um determinado rei por motivos ligados ao
common ground ou à situação). Naturalmente o resultado do esforço do ouvinte pode não
dar frutos (e o ouvinte, se quiser, pode perguntar: peraí, que rei é esse?). Mas o que
importa aqui é que ele se sente induzido pelo falante a procurar na própria mente um
determinado rei.

Imaginemos que (3) continue

(3) Uma vez encontrei um rei.


(3a) O rei governava um país muito grande.

Com (3a) estaríamos sinalizando que agora o rei é identificável como o mesmo rei de (3).
Observe-se que dizer que um referente é identificável não significa que conhecemos
algum detalhe sobre ele. Significa apenas que ele pode ser identificado como o mesmo
referente mencionado anteriormente (ou, como veremos, que ele é recuperável através de
um processo inferencial de outra natureza, a partir da situação ou de conhecimentos
compartilhados). Isso quer dizer que o referente o rei é agora tratado como dado, algo
que o ouvinte pode recuperar na memória ou na atenção (para aprofundamentos sobre o
conceito de atenção e de memória e como se relacionam entre si, veja-se o cap. 9). Se
continuássemos com

(3) Uma vez encontrei um rei.


(3b) Um rei governava um país muito grande.

induziríamos o destinatário a pensar que o rei de (3) e o rei de (3b) não constituem o
mesmo referente, mas dois reis diferentes. Mas tanto em (3a) quanto em (3b) estamos
instaurando um outro referente, que certamente é novo: um país muito grande. Esse
referente é sinalizado como um elemento novo e não identificável.

O artigo indefinido é portanto um instrumento importante para sinalizar a novidade e a


não identificabilidade de um referente. O artigo definido é um dos instrumentos
frequentemente usados para sinalizar o fato de que o referente ou já foi dado
discursivamente, ou é, de alguma maneira diferente, recuperável pelo ouvinte, ou seja,
está de alguma maneira presente no CG e é portanto identificável pelo ouvinte. Mas isso
não significa que esses instrumentos sempre sinalizem isso, nem que sejam os únicos para
sinalizar o status cognitivo de um referente na nossa mente. Diferentes determinantes,
entre outros recursos, são usados com frequência.

As noções de referente novo e referente dado não devem ser tomadas como noções
absolutas. Se no caso de um referente totalmente novo podemos dizer que ele claramente
não é acessível, há contudo diferentes graus de acessibilidade para os referentes que não
são totalmente novos. De fato, grande parte dos referentes em um discurso pode ter sido
mencionada anteriormente (ou ser acessível de outra maneira), mas não ocupar um
mesmo status cognitivo. Podemos dizer que os referentes que não são novos podem ser
mais ou menos dados.

Uma distinção clara é entre referentes simplesmente identificáveis e referentes que


chamamos ativos. Uma das maneiras com as quais podemos explicar a diferença entre
referentes identificáveis, mas não ativos, e referentes ativos é dizer que os primeiros estão
presentes na memória, enquanto os segundos, além de estarem presentes na memória,
estão presentes na atenção do ouvinte. A atenção dura muito menos do que a memória;
portanto um determinado referente pode ficar ativo por um tempo e depois decair a
referente simplesmente identificável. Mas não se trata somente de uma questão de tempo.
Como normalmente em um discurso temos vários referentes em jogo ao mesmo tempo,
eles de alguma maneira estão em competição uns com os outros para obter a atenção do
ouvinte. Essa competição, como veremos, pode ser mais ou menos forte, dependendo de
vários fatores de natureza morfossintática e semântico-pragmática.

Em geral, quanto menor a acessibilidade de um referente, mais preciso e semanticamente


“pesado” deve ser o meio para recuperá-lo. Como veremos melhor na próxima seção,
além da oportunidade de escolher o artigo indefinido para referentes novos ou
determinantes para referentes identificáveis (o, este, aquele), será necessário retomar um
referente menos facilmente identificável com um sintagma nominal mais ou menos
complexo, mas será possível utilizar pronomes (ou até mesmo nada, o que é chamado de
anáfora zero e que podemos indicar com o símbolo Ø) quando o referente é ativo.

4.2. Os meios para codificar o grau de acessibilidade

O grau de acessibilidade de um referente depende dos vários conhecimentos disponíveis


aos falantes em um dado contexto, como o conjunto de conhecimentos compartilhados
(ou os conhecimentos que se supõem compartilhados), seja por experiência de mundo,
seja pela situação específica, ou pela capacidade que certos elementos linguísticos têm de
apontar a um referente. Analisemos (4) como se fosse uma notícia oferecida por um jornal
brasileiro.

(4) O governo resolveu tomar uma posição oficial em relação ao escândalo da Lava
Jato. A oposição critica.

Aqui se supõe que os destinatários da mensagem saibam que existem um governo (e de


qual país) e uma oposição, e que saibam o que é o escândalo da Lava Jato. Essas
informações são tratadas como identificáveis. Tratadas assim, essas informações
inevitavelmente selecionam um grupo de destinatários. Esses enunciados podem ser
decodificados facilmente por um público mediamente informado de destinatários
brasileiros. Mas, mesmo se traduzidos, dificilmente seriam decodificados por um público
estrangeiro, que precisaria de que uma parte das informações fosse tratada como não
identificável. Seria necessário especificar que se trata do governo brasileiro e seria
necessário instaurar o referente escândalo da Lava Jato, por exemplo com uma
formulação do tipo de

(5) O governo brasileiro resolveu tomar uma posição oficial em relação a um


novo escândalo chamado escândalo da Lava Jato.

Um outro aspecto extremamente importante para avaliar a identificabilidade de um


referente é a situação extralinguística concreta em que ele aparece. Imaginemos que o
diálogo (6) seja proferido no contexto de um mergulho noturno.

(6) A: Alguém pode me emprestar a lanterna?


B: Ele! (Apontando com a cabeça para a pessoa ao lado)

Nesse caso, o referente lanterna é instaurado situacionalmente por causa do frame


“mergulho”, no qual todos os participantes da situação se encaixam, já que é normal que
um mergulho noturno preveja que se leve lanterna.

Um frame é como uma cena típica de algum evento ou de alguma situação, em uma
determinada cultura. Por exemplo, o frame “mergulho” automaticamente instaura
referentes como máscara, roupa de mergulho, nadadeiras, cilindro, etc. No caso de um
mergulho noturno, a lanterna é automaticamente instaurada. No frame “restaurante” são
automaticamente instaurados referentes como garçom, talheres, comida, cardápio, etc.
Uma vez instaurado o frame “restaurante”, esses e outros referentes podem ser tratados
como identificáveis. Por exemplo é possível dizer

(7) Ontem fui a um restaurante. O garçom era muito simpático.

Isso significa que não é preciso dizer primeiro No restaurante havia um garçom, já que o
referente garçom é automaticamente instaurado pelo frame “restaurante”. O mesmo
acontece pelos referentes bolo ou presentes no frame “festa de aniversário” ou pelos
referentes juiz, bola, time ou público no frame “jogo de futebol”. Os frames são fruto da
nossa experiência; portanto, eles mudam, pelo menos parcialmente, dependendo da
cultura ou dependendo dos conhecimentos individuais. É frequente que crianças, que
naturalmente possuem pouca experiência de mundo, criem frames que depois são
revisados com a aquisição de novas informações, ou seja, adquirindo novas premissas
para tirar conclusões sobre a estrutura do frame. Quando era criança, a filha de uma colega
de faculdade costumava ir todo domingo a um restaurante onde havia cavalos. A primeira
vez em que ela foi levada a outro restaurante, logo perguntou onde ficavam os cavalos. A
experiência dela havia construído o frame “restaurante” como “lugar onde se come e há
cavalos”!

Voltando ao exemplo (6), observemos o que acontece com o referente apontado com o
pronome ele (que nesse caso funciona como dêitico, ou seja, aponta para algo fora do
discurso, como apresentado no cap. 3). O referente de ele é situacionalmente ativo porque
presente fisicamente no contexto e apontado com o sinal com a cabeça. Não precisa ser
instaurado discursivamente, porque é instaurado pela própria situação; e não precisa ser
indicado com um sintagma nominal, pois o movimento da cabeça imediatamente leva a
atenção para a pessoa em questão.

Imaginemos agora que estejamos passeando por uma trilha com um amigo e, de repente,
depois de uma curva, aparece uma cachoeira. Podemos tranquilamente exclamar

(8) É linda!

O amigo imediatamente entenderá que estamos nos referindo à cachoeira, mesmo se


nenhum elemento linguístico, nem mesmo um pronome, aponta para ela. O fato é que a
saliência situacional da cachoeira é tão forte que a torna imediatamente ativa, ou seja,
presente na nossa atenção.

Portanto vimos que um referente pode ser instaurado linguisticamente, como no caso de
rei em (3), pode ser instaurado por frame, como no caso de lanterna em (6) ou até
situacionalmente, como no caso de ele, também em (6), e da cachoeira em (8).
Dependendo da saliência que o referente assume para a nossa atenção, ele pode ser tratado
apenas como identificável (é o caso da lanterna) ou até como ativo (é o caso de ele e da
cachoeira).

Um dos motivos disso é a possível competição entre os referentes. No caso de (6) não
poderíamos dizer

(9) Alguém pode me emprestá-la?

porque haveria muitos referentes possíveis (além da lanterna) para um pronome feminino
singular. Deveríamos dizer algo como

(10) Esqueci de trazer a lanterna. Alguém pode me emprestá-la?

Isso quer dizer que deveríamos primeiro tornar a lanterna um referente que esteja dentro
da atenção do ouvinte e somente depois poderíamos nos referir a ela com um pronome.

Analogamente, no caso de (7), querendo nos referir ao garçom do restaurante, não


poderíamos dizer

(11) Ontem fui a um restaurante. Ele era muito simpático.

Tanto a lanterna quanto o garçom, nas duas situações, são apenas identificáveis, mas não
chegam a ser ativos. E no caso de (8) as coisas poderiam mudar se, durante o passeio,
depois da curva, víssemos uma cachoeira e uma mulher bonita tomando banho. Os dois
referentes entrariam em competição e (8) se tornaria ambíguo.

Às vezes a competição pode ser resolvida com elementos linguísticos.


(12) Carlos é um ótimo menino. Ø Nunca desobedece aos pais.
(13) Carlos e Maria são muito simpáticos. Ele até me convidou pro aniversário
dele.
(14) Carlos e Mário são muito simpáticos. *Ele até me convidou pro
aniversário dele.

Em (12) não precisamos de nada para retomar Carlos. O símbolo Ø se refere ao que
chamamos de anáfora zero (que pode ser usada para qualquer pessoa verbal). Neste caso
não existe nenhuma competição entre referentes ativos. Em (13) não podemos usar a
anáfora zero porque há competição entre dois referentes ambos ativos, mas a competição
pode ser resolvida usando-se o pronome masculino. Em (14) nem isso é possível, mas
seria possível resolver a competição com outro elemento linguístico:

(15) Carlos e Mário são muito simpáticos. O primeiro até me convidou pro
aniversário dele.

Às vezes devemos utilizar descritores para resolver a competição

(16) Searle e Machado de Assis são as minhas leituras prediletas. Mas o


filósofo requer muito mais esforços.

Em (17) as coisas são ainda mais complexas:

(17) Machado de Assis, Shakespeare, Goethe, Stendhal e Tolstoy são minhas


leituras prediletas. Mas o autor de Dom Casmurro é insuperável.

Neste caso não podemos utilizar a mesma estratégia de (16), porque os três são
escritores. Precisamos utilizar uma estratégia mais complexa e mais pesada linguística
e cognitivamente: um SN complexo, que permite alcançar informações mais precisas.
Naturalmente, nada nos impediria de repetir o nome próprio.

4.3. Como entender este capítulo mais a fundo

Em geral, parece que há uma forte e progressiva correlação entre facilidade de acesso
ao referente (a acessibilidade mais imediata é o caso em que há ativação sem
competição) e menor necessidade de colocar material linguístico para a sua retomada.
Ao contrário, há uma forte correlação entre dificuldade de acessar o referente e
complexidade morfolexical. Se há ativação sem competição, podemos até usar o morfe
zero, ou seja, podemos deixar a retomada anafórica como óbvia; se há ativação com
competição, podemos ter diferentes graus de competição, e, quanto maior ela for, mais
complexa se torna a retomada: pronomes (nem sempre todos), nomes e descritores até
muito complexos. Maior material linguístico implica maior custo cognitivo, tanto para
o falante quanto para o ouvinte. Isso mostra que a acessibilidade é algo que deve ser
visto de forma gradiente.
Mas ao mesmo tempo é importante observar que os aspectos que decidem como tornar
um referente acessível não podem ser explicados somente com mecanismos sintático-
semânticos. O peso do contexto para que um referente seja julgado mais ou menos
facilmente acessível é enorme: em cada situação, dependendo da pessoa ou do assunto,
há uma série de informações compartilhadas (o common ground) que possuem um
poder decisivo em estabelecer o que é mais ou menos acessível.

Para entender os mecanismos que tornam um referente mais ou menos acessível


cognitivamente, é necessário colocar esta seção do livro em ligação com outras. Todas
elas de alguma maneira contribuem para responder mais em detalhe a essa pergunta.
Contudo, existem visões diferentes e caminhos de pesquisa diferentes que não
necessariamente se excluem. A diferença está principalmente em duas escolas de
pensamento: uma escola de base mais semântica e mais lógica e uma escola de cultura
mais quantitativa, empírica e experimental, mais atenta a um componente da linguagem
que é menos central (mas não ausente) em teorias mais formalistas: a prosódia (que será
tratada no cap. 7).

A variabilidade morfossintática das línguas para sinalizar identificabilidade e ativação


é alta; como já dissemos não é fácil encontrar uma marca morfológica que dê um
estatuto específico para a acessibilidade, sem ter ao mesmo tempo outras funções (entre
as quais a leitura que deve ser dada a um descritor, se genérica, específica ou não
específica). Certamente os mecanismos de acessibilidade (em seus diferentes graus) e
de instauração de referentes novos são marcados de alguma forma prosodicamente. De
fato, o conjunto de conceitos deste capítulo, se colocado em relação com os conceitos
do cap. 5 sobre as pressuposições, é importante para se entender, especialmente dentro
de uma visão de base semântico-lógica, como dar conta dos mecanismos contextuais
para explicar a organização e a transmissão da informação, a partir da forma linguística.
No cap. 6 serão oferecidos outros caminhos possíveis para explicar alguns dos
mecanismos da acessibilidade.

4.4 Uma análise do status cognitivo dos referentes em um pequeno texto

(18) Ontem fui jogar futebol com um amigo meu. Ele marcou dois gols, mas
o time adversário ganhou assim mesmo.

Este texto pode ser considerado de duas maneiras:

a) como um texto escrito, em que não sabemos quem é o eu falante nem o momento e a
situação de enunciação, a não ser que ela seja explicitada em algum outro lugar do texto.
Sem isso, não temos acesso imediato aos elementos situacionais, o que, ao contrário,
acontece automaticamente quando estamos falando com alguém pessoalmente. É
importante lembrar que a modalidade natural da linguagem é a fala e que a escrita é uma
tecnologia, mesmo se antiga e hoje facilmente disponível (veja-se o aprofundamento ao
ponto 3 do cap. 8 no site@).
b) como um texto falado em uma situação à qual temos acesso direto.

Vamos analisar o texto na versão (b). Portanto estamos na frente do falante, nos mesmos
momento e lugar da sua fala, ou seja, compartilhamos a dêixis com ele.

Analisaremos as expressões referenciais ontem, futebol, um amigo meu, ele, dois gols, o
time adversário.

O dêitico ontem é identificável pela situação (estamos presentes e sabemos quando a


interação acontece), o que automaticamente instaura todas as coordenadas temporais. Se
temos acesso à situação, ontem faz referência ao dia anterior. Se não temos acesso à
situação, falta o elemento básico que torne acessível o referente da expressão. Ou esse
elemento é fornecido discursivamente (através de uma descrição, por exemplo
fornecendo uma data com relação à qual interpretar a expressão ontem) ou a
acessibilidade é comprometida. Isso nos diz que os dêiticos são automaticamente
interpretáveis na fala em contexto natural, mas não são interpretáveis (sem se tornarem
anáforas de informações instauradas discursivamente) na escrita ou na fala gravada.
Tecnologias como a escrita ou a gravação possuem a grande vantagem de permitir que as
informações sobrevivam no tempo e sejam transportáveis no espaço. Isso não é possível
na fala em contexto natural, que desaparece no mesmo instante em que se manifesta e não
pode alcançar distâncias grandes. Contudo, as vantagens das tecnologias têm um impacto
decisivo sobre a dêixis. Hoje há tecnologias (como Skype e as plataformas de
videoconferência) que permitem o uso da dêixis, mas não exatamente da mesma maneira
que na interação face-a-face.

O nome futebol é tratado como identificável com base nos conhecimentos de mundo. É
necessário saber que existe um tipo de jogo chamado futebol para acessar a esse referente.
E o falante está assumindo que essa informação faz parte do CG.

O descritor indefinido um amigo meu. Trata-se de uma leitura específica. É um amigo


específico, não um qualquer, nem a classe inteira dos amigos meus. Mas, apesar de ser
específico, o referente não é identificável. Observem que aqui o artigo indefinido não
impede que a leitura seja específica, mas sinaliza que o referente não é identificável.
Sabemos que é um referente individual, mas não podemos identificar, entre os possíveis
referentes (os possíveis amigos do falante), qual referente é. A instrução que o falante dá
é: "você não pode ou não precisa identificar o referente, mas sabe que se trata de um
amigo meu específico".

O pronome ele. Um indexical não fornece quase nada de significado intensional. Nesse
caso fornece simplesmente o significado de masculino singular. Isso significa que ele
pode fazer referência somente a algo ativo, ou seja, algo que esteja presente na atenção
dos interlocutores. No caso específico, algo que foi mencionado há pouco tempo e que
não entre em competição com outro referente masculino singular. O referente que ele
retoma é um amigo meu. Um referente ativo é automaticamente identificável. Se algo está
presente na nossa atenção não podemos dizer que não é identificável: a ativação é algo a
mais que a identificabilidade, e obviamente a inclui. A identificabilidade é entendida
como a capacidade de identificar com certeza qual é o referente apontado; neste caso
sabemos que o referente é identificável como o mesmo referente designado antes com o
descritor um amigo meu. O fato de um amigo meu não ser identificável não compromete
a identificabilidade de ele, pois se trata de um referente identificável enquanto o mesmo
mencionado antes (não um outro amigo, mas o mesmo). Não seria correto entender que,
como ele retoma um descritor que designa um referente não identificável, herda a não
identificabilidade. Como já dito, a identificabilidade não consiste em conhecer as
características específicas dos referentes, mas em saber se a expressão identifica um
referente que pode ser individualizado na nossa mente; neste caso, o identificamos como
o mesmo referente apontado pela expressão um amigo meu. Não sabemos ainda nada
sobre o referente de um amigo meu, mas sabemos que ele identifica o mesmo referente.
Além disso, ele está presente na nossa atenção e portanto está ativo, ou seja, tem um
estatuto de acessibilidade mais forte do que a simples identificabilidade.

O descritor dois gols é identificável pelo frame “futebol”. Este frame instaura
automaticamente, entre vários outros, o referente gol, nesse caso modificado por um
quantificador. O mesmo acontece com o descritor seguinte.

O time adversário é apresentado de modo a dar para o interlocutor a instrução seguinte:


"você pode identificar o referente", apesar de o referente não ter aparentemente sido
instaurado antes. Isso advém do fato de que o frame "futebol" instaura automaticamente
uma série de referentes (quadra, gol, juiz, etc.), entre os quais o referente time adversário.
Portanto o referente deve ser considerado como já instaurado (via frame) e pode assim
ser retomado como identificável (o time adversário daquele jogo). Mas não podemos dizer
que o referente está ativo, porque ele não estava presente na atenção.

Você também pode gostar