por Bruno Bettelheim (A psicanálise dos contos de fadas. 16a ed. Trad. De Arlene Caetano. São Paulo: Paz e Terra, 2002. p. 64-9
A mente de uma criancinha contém um conjunto de impressões, com freqüência
mal ordenadas e apenas parcialmente integradas, que se expande rapidamente: alguns aspectos da realidade vistos corretamente, mas muito mais elementos completamente dominados pela fantasia. A fantasia preenche as enormes lacunas na compreensão de uma criança que são devidas à imaturidade de seu pensamento e à sua falta de informação pertinente. Outras distorções são conseqüência de pressões internas que levam a falsas interpretações das percepções infantis. A criança normal começa a fantasiar a partir de algum segmento de realidade mais ou menos corretamente observado, que lhe pode provocar ansiedades ou necessidades tais que ela seja carregada de roldão por elas. As coisas com freqüência se tornam tão misturadas na sua mente que ela não é capaz, em absoluto, de classificá-las. Mas alguma ordenação é necessária para a criança voltar à realidade sem ser enfraquecida ou derrotada, mas fortificada por esta excursão nas suas fantasias. Os contos de fadas, procedendo do mesmo modo que a mente infantil, ajuda a criança mostrando como uma clareza superior pode emergir (e realmente o faz) de toda esta fantasia. Estes contos, como a criança na sua própria imaginação, começam de um modo completamente realista: uma mãe dizendo à sua filha para ir sozinha visitar a avó (Chapeuzinho Vermelho); os problemas que um casal pobre está tendo para alimentar suas crianças (João e Maria); um pescador que não consegue pegar nenhum peixe na sua rede (O pescador e o gênio). Quer dizer, a estória começa com uma situação real, mas um tanto problemática. Uma criança defrontada com problemas e situações cotidianas que lhe causam perplexidade é estimulada, no seu aprendizado, a compreender o 'como' e o 'por que' de tais situações, e a buscar soluções. Mas como sua racionalidade até então exerce pouco controle sobre o inconsciente, a imaginação escapa, junto com ele, sob a pressão de suas emoções e conflitos não resolvidos. A habilidade da criança em raciocinar, que apenas surgiu, logo é dominada pelas ansiedades, esperanças, medos, desejos, amores e ódios - que se entrelaçam com qualquer coisa que ela comece a pensar. O conto de fadas, embora possa começar com o estado psicológico mental da criança - tal como sentimentos de rejeição quando comparada aos irmãos, como em Cinderela - nunca se inicia com sua realidade física. Nenhuma criança tem que se sentar entre as cinzas, como Cinderela, ou é deliberadamente abandonada numa densa floresta, como João e Maria, já que uma semelhança física seria muito amedrontadora para a criança, e "tocaria muito de perto para poder confortar", quando confortar é um dos propósitos dos contos de fadas. A criança que está familiarizada com os contos de fadas compreende que estes lhe falam na linguagem de símbolos e não a da realidade cotidiana. O conto de fadas transmite desde o início, através da trama, e no seu final a idéia de que a narrativa trata não de fatos tangíveis ou lugares reais. Quanto à própria criança, os acontecimentos reais tornam-se importantes pelo significado simbólico que ela lhes atribui, ou que neles encontra. "Era uma vez", "Num certo país", "Há mil anos atrás", "Numa época em que os animais ainda falavam", "Era uma vez, num velho castelo no meio de uma floresta densa e grande" - estes inícios sugerem que o que se segue não pertence ao aqui e agora que nós conhecemos. Esta indefinição deliberada do início dos contos simboliza que estamos deixando o mundo concreto da realidade comum. Os velhos castelos, cavernas escuras, quartos trancados onde a pessoa é proibida de entrar, florestas impenetráveis, tudo sugere que alguma coisa normalmente escondida será revelada, enquanto o "Há muito tempo atrás" implica que vamos tomar conhecimento de fatos mais longínquos. Os Irmãos Grimm não poderiam ter começado sua coleção de contos de fadas com uma frase mais expressiva do que a que introduz a primeira estória, "O Rei Sapo". Começa assim: "Nos velhos tempos, onde desejar ainda ajudava, vivia um rei cujas filhas eram todas lindas, mas a caçula era tão bonita que o próprio sol, que já viu muita coisa, ficava deslumbrado sempre que brilhava em seu rosto". Este início localiza a estória num tempo de contos de fadas específico, o período longínquo quando todos nós acreditávamos que nossos desejos podiam, senão mover montanhas, mudar nossos destinos; e quando, em nossa visão animista do mundo, o sol reparava na gente e reagia às situações. A beleza extraterrena da criança, a efetividade do desejo e o assombro do sol significam a absoluta singularidade deste evento. São as coordenadas que colocam a estória não no tempo ou no lugar da realidade externa, mas num estado da mente - o de ser jovem de espírito. Situando-se aí, o conto pode cultivar este espírito melhor do que qualquer outra forma de literatura. Logo ocorrem situações que mostram a suspensão da lógica e da causalidade normais, como é válido para nossos processos inconscientes, onde ocorrem os fatos mais antigos, únicos e surpreendentes. O conteúdo do inconsciente é, ao mesmo tempo, o mais oculto e o mais familiar, o mais obscuro e o mais limitador; cria a ansiedade mais atroz ou a maior esperança. Não está limitado por um tempo, localização, ou seqüência lógica de eventos específicos, como definido por nossa racionalidade. Sem nos darmos conta, o inconsciente nos leva de volta aos tempos mais remotos de nossas vidas. Os lugares mais estranhos, mais antigos, mais distantes, e ao mesmo tempo mais familiares de que fala um conto de fadas, sugerem uma viagem ao interior de nossa mente, nos domínios da inconsciência e do inconsciente. O conto de fadas, a partir de seu começo mundano e simples, arremessa-se em situações fantásticas. Mas por maiores que sejam os desvios - à diferença da mente não instruída da criança, ou de um sonho - o processo da estória não se perde. Tendo levado a criança numa viagem a um mundo fabuloso, no final o conto devolve a criança à realidade, da forma mais reasseguradora possível. Isto lhe ensina o que mais necessita saber neste estágio de desenvolvimento: que não é prejudicial permitir que a fantasia nos domine um pouco, desde que não permaneçamos presos a ela permanentemente. No final da estória o herói retorna à realidade - uma realidade feliz, mas destituída de mágica. Assim como despertamos renovados de nossos sonhos, mais aptos a enfrentar as tarefas da realidade, da mesma forma o conto de fadas termina com a volta do herói ou com sua devolução ao mundo real, muito mais capaz de dominar a vida. Investigações recentes sobre o sonho mostram que uma pessoa impedida de sonhar, mesmo que não seja privada de dormir, fica prejudicada na habilidade de lidar com a realidade; torna-se perturbada emocionalmente porque não é capaz de elaborar nos sonhos os problemas inconscientes que a bloqueiam. Talvez algum dia sejamos capazes de demonstrar o mesmo fato experimentalmente em relação aos contos de fadas: que as crianças vão mal de vida quando são privadas do que as estórias podem-lhes oferecer, dado que os contos ajudam-na a elaborar, na fantasia, as pressões inconscientes. Se os sonhos das crianças fossem tão complexos como os dos adultos normais e inteligentes, onde o conteúdo latente é muito elaborado, então a necessidade dos contos não seria tão grande. Por outro lado, se o adulto não fosse exposto aos contos de fadas quando criança, seus sonhos poderiam ser menos ricos em conteúdo e significado, e assim não o serviriam tão bem em restaurar sua habilidade de dominar a vida. A criança, tão mais insegura do que o adulto, precisa assegurarse de que sua necessidade de engajar-se em fantasias, ou sua incapacidade em deixar de fazê-lo, não é uma deficiência. Quando os pais narram contos de fadas para o filho, dão uma importante demonstração de que consideram as experiências internas da criança, enquanto personificadas nos contos, dignas de valor, legítimas, e de algum modo até mesmo "reais". Isto faz com que a criança sinta que suas experiências internas foram aceitas pelos pais como reais e importantes, e que ela - implicitamente - é real e importante. Tal criança se sentirá mais tarde na vida como Chesterton, que escreveu: "Minha primeira e última filosofia, em que creio com certeza inquebrantável, foi aprendida no berço... As coisas em que mais acreditava naquela época, as coisas em que mais acredito agora, são os ditos contos de fadas". A filosofia que Chesterton e qualquer criança pode obter dos contos de fadas é a de "que a vida é um prazer e uma espécie de privilégio excêntrico". É uma visão da vida diferente da que as estórias do tipo "realista" transmitem, mas capacita uma pessoa a manter-se intrépida diante das dificuldades da vida. No capítulo da Ortodoxia de Chesterton, de onde vêm estas citações, intitulado "A ética da Terra dos Elfos", ele sublinha a moralidade inerente aos contos de fadas: "Há a lição cavalheiresca de 'João, o Matador de Gigantes', de que os gigantes devem ser mortos porque são gigantescos. É um importante motim contra o orgulho enquanto tal... A lição de 'Cinderela' que é a mesma do Maginificat - exaltam humiles (exaltação dos humildes). Há a grande lição de "A Bela e a Fera", de que uma coisa deve ser amada antes de ser digna de amor... Estou interessado num determinado modo de olhar a vida. que se criou em mim através dos contos de fadas". Quando diz que os contos de fadas são "coisas inteiramente razoáveis", Chesterton está falando deles enquanto experiências, enquanto espelhos de experiências internas, e não da realidade; e é assim que a criança os entende. Depois da idade de aproximadamente cinco anos - a idade onde os contos de fadas tornam-se verdadeiramente significativos - nenhuma criança normal considera estas estórias tão verdadeiras quanto a realidade externa. A menininha deseja imaginar que é uma princesa vivendo num castelo e tece fantasias elaboradas de que o é, mas quando a mãe a chama para jantar, sabe que não o é. Ao mesmo tempo que um bosque num parque pode ser às vezes vivenciado como uma profunda e escura floresta cheia de segredos ocultos, a criança sabe o que ele realmente é, exatamente como uma menininha sabe que sua boneca não é realmente seu neném, por mais que a chame assim e a trate como tal. As estórias mais próximas da realidade, que começam na sala de visitas ou jardim de uma criança, e não na choupana de um pobre lenhador perto de uma grande floresta, e que têm pessoas muito parecidas com os pais da criança, e não lenhadores famintos ou reis e rainhas, mas que misturam estes elementos realistas com devaneios fantásticos e do tipo satisfação de desejos tendem a confundir a criança quanto ao que é real e o que não é. Estas estórias não conseguem harmonizar-se com a realidade interna da criança, por mais fiéis que sejam à realidade externa; alargam a defasagem entre a experiência interna e externa da criança. Também separam-na de seus pais, porque a criança é levada a sentir que ela e eles vivem em mundos espirituais diferentes; por mais próximo que habitem no espaço "real", do ponto de vista emocional parecem viver temporariamente em continentes diferentes. Isto produz uma discontinuidade entre as gerações, dolorosa tanto para os pais como para a criança. Se uma criança ouve apenas estórias realistas (o que significa falsas para partes importantes de sua realidade interna), então pode concluir que muito da sua realidade interna é inaceitável para seus pais. Muitas crianças se alheiam assim de sua vida interna, e isto as esvazia. Em conseqüência, pode mais adiante, como adolescente, não mais sob o jugo emocional de seus pais, vir a odiar o mundo racional e escapar inteiramente para um mundo de fantasia, como que para compensar o que perdeu na infância. E isto numa idade mais adulta, numa ocasião em que tal implicaria um severo rompimento com a realidade, com todas as conseqüências perigosas que traria para o indivíduo e a sociedade. Ora, menos grave, a pessoa pode manter este encapsulamento de seu eu interior por toda a vida, e nunca se sentir plenamente satisfeita no mundo porque, alienada dos processos inconscientes, não pode usá-los para enriquecer sua vida real. A vida não é então nem um "prazer" nem "uma espécie de privilégio excêntrico". Com esta separação, o que quer que aconteça na realidade não consegue oferecer uma satisfação apropriada para necessidades inconscientes. O resultado é que a pessoa sempre sente a vida como incompleta. Quando uma criança não está dominada por seus processos mentais internos e está bem cuidada em todos os aspectos importantes, então é capaz de conduzir sua vida de modo apropriado à idade. Durante esses períodos, pode resolver os problemas que surgem. Mas observando criancinhas num playground, por exemplo, vemos como são limitados estes períodos. Se as pressões internas da criança predominam - o que acontece com freqüência - o único caminho pelo qual ela pode esperar obter algum controle sobre elas é a externalização. Ordenar as várias facetas da sua experiência externa é uma tarefa árdua para a criança; e a menos que consiga ajuda, isto se torna impossível, uma vez que a experiência externa se mistura com as internas. Por sua própria conta, a criança ainda não é capaz de ordenar e dar sentido a seus processos internos. Os contos de fadas oferecem figuras nas quais a criança pode externalizar o que se passa na sua mente, de modo controlável. Os contos de fadas mostram à criança de que modo ela pode personificar seus desejos destrutivos numa figura, obter satisfações desejadas de outra, identificar-se com uma terceira, ter ligações ideais com uma quarta, e daí para diante, como requeiram suas necessidades momentâneas. Quando todos os pensamentos mágicos da criança estão personificados num bom conto de fadas - seus desejos destrutivos, numa bruxa malvada; seus medos, num lobo voraz; as exigências de sua consciência, num homem sábio encontrado numa aventura; suas raivas ciumentas, em algum animal que bica os olhos de seus arquirivais - então a criança pode finalmente começar a ordenar essas tendências contraditórias. Isto começado, a criança ficará cada vez menos engolfada pelo caos não manejável.
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