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Biblioteca Melanie Klein

10. A PERSONIFICAÇÃO NO JOGO DOS MENINOS (1929)

Num trabalho anterior ("Princípios psicológicos da análise infantil") relatei alguns dos
mecanismos fundamentais que encontrei na análise de meninos. Assinalei que o conteúdo
especificou de seus jogos, que se repete constantemente ou recorre às formas mais variadas, é
idêntico ao núcleo das fantasias masturbatórias, e que é uma das principais funções do jogo
infantil proporcionar uma descarga destas fantasias. Discuti depois a considerável analogia que
existe entre os meios de representação usados no jogo e nos sonhos, e na importância da
realização de desejos em ambas as formas da atividade mental. Também chamei o atendimento
para um mecanismo importante nos jogos em que o menino inventa e atribui
diferentes "personagens". O objeto do presente trabalho é discutir este mecanismo em maior
detalhe, e também ilustrar com exemplos de diferentes tipos de doença a relação entre os
"personagens" ou personificações introduzidas pelos meninos no jogo e os elementos de
realização de desejos.

Até o presente minha experiência é que os meninos esquizofrênicos não são capazes
de praticar jogos no verdadeiro sentido da palavra. Executam certas ações monótonas e é um
trabalho laborioso penetrar através delas para o inconsciente. Em caso de ter sucesso
encontramos que a realização de desejo associada a essas ações é proeminente a negação da
realidade e uma inibição da fantasia. Nestes casos extremos não se conseguem as
personificações. Minha pequena paciente Erna, de 6 anos de idade, apresentava ao começo do
tratamento uma grave neurose obsessiva que mascarava uma paranóia que foi revelada depois
de considerável quantidade de análise. Erna em seu jogo me fazia representar à filha enquanto
ela para de mãe ou mestra. Eu então tinha que padecer fantásticas torturas e humilhações. Se no
jogo alguém me tratava bondosamente, geralmente resultava que esta bondade era só fingida.
Os impulsos paranóicos se manifestavam em que eu era constantemente espionada, meus
pensamentos eram adivinhados e o pai ou a professora se aliavam com a mãe na contramão
minha. De fato estava constantemente rodeada de perseguidores. Eu mesma no papel da menina
tinha que espionar e torturar continuamente aos outros. Freqüentemente Erna mesma
representava o papel de menina. Então em general seu jogo terminava escapando ela às
persecuções (nestas ocasiões a "menina era boa") fazendo-se rica e poderosa, transformada em
rainha e vingança cruelmente de seus perseguidores. Depois que se esgotava seu sadismo nestas
fantasias aparentemente isenta de inibições (isto sucedeu depois de um tempo de análise), vinha
a reação em forma de profunda depressão, ansiedade e esgotamento corporal. Então seu jogo
refletia a incapacidade de suportar essa tremenda opressão, manifestando-se numa série de
sintomas graves 1. Nas fantasias desta menina todos os papéis utilizados entravam numa
fórmula duas partes principais, o superego perseguidor e o isso ou eu, segundo o caso,
ameaçados, mas de jeito nenhum menos cruéis.

Nestes jogos a realização de desejos radicava principalmente no esforço de Erna para


identificar-se com a parte mais forte, para dominar assim seu medo à perseguição. O eu
fortemente pressionado tratava de influir ou enganar ao superego para impedir seu triunfo sobre
o isso. O eu tratava de pôr ao isso muito sádico ao serviço do superego e combinar a ambos na
luta contra um inimigo comum. Isto requeria o amplo uso de mecanismos de projeção e
deslocamento. Quando Erna representava o papel de mãe cruel, a menina má era o inimigo.
Quando ela mesma era a menina perseguida, mas que se transformava rapidamente em
poderosa, o inimigo estava representado por pais malvados. Em cada caso existia um motivo
que o eu tratava de fazer plausível ante o superego, para entregar-se a um sadismo sem
restrições. Em função deste "bloco" o superego devia tomar medidas contra o inimigo como se
fora contra o isso. Não obstante o isso continuava procurando secretamente sua gratificação
predominantemente sádica dirigida contra os objetos primários. Com essas satisfações
narcisistas conseguidas pelo eu em suas vitórias sobre os inimigos tanto internos como externos,
também apaziguava ao superego e assim era de considerável valor para a diminuição da
angústia. Esta aliança entre as duas forças pode, em casos menos extremos, ser de relativo
sucesso: pode passar inadvertida para o mundo externo ou não conduzir a uma doença, mas no
caso de Erna se derrubou completamente por causa do excessivo sadismo, tanto do isso como
do superego. Portanto o eu se associava com o superego e tratava, castigando ao isso, de extrair
certa gratificação, mas isto, a sua vez, convertia-se inevitavelmente num fracasso
Apresentavam-se repetidamente intensas reações de angústia e arrependimento que mostravam
que nenhuma de as contraditórias realizações de desejos podia manter-se em pé por muito
tempo.

1 Espero publicar cedo um livro no que se encontrará um relato mais detalhado deste
caso. O exemplo seguinte mostra como dificuldades análogas às de Erna foram manejadas em
formas diferentes em certos aspectos. Jorge, de seis anos de idade, trazia-me durante meses uma
série de fantasias nas que ele, como líder poderoso de uma banda de caçadores selvagens de
animais ferozes, lutava, conquistava e matava cruelmente a seus inimigos, que a sua vez tinham
animais ferozes para defender-se. Os animais eram então devorados. A luta nunca terminava
porque sempre apareciam novos inimigos. No curso da análise deste menino se revelaram, não
só impulsos neuróticos, senão também impulsos marcadamente paranóicos. Jorge se sentia
sempre conscientemente 2 rodeado e ameaçado (por magos, bruxas e soldados), mas, ao invés
de Erna, tratava de defender-se deles com o auxílio de figuras que lhe ajudavam, ainda que
fosse por certo seres muito fantásticos. Sua realização de desejos na fantasia era, até certo
ponto, análoga à do jogo de Erna. No caso de Jorge também o eu tratava de afastar a ansiedade,
identificando-se com o partido mais forte, através de fantasias de ser poderoso. Também Jorge
tratava de converter o inimigo num inimigo "mau", para apaziguar ao superego. No entanto,
nele o sadismo não era um fator tão abrumador como em Erna e assim o sadismo primário
subjacente a sua angústia ficava menos astutamente dissimulado. Seu eu se identificava mais
integralmente com o isso e estava menos disposto a fazer concessões ao superego. Mantinha
afastada a angústia por uma marcada exclusão da realidade 3. A realização de desejos
predominava claramente sobre o reconhecimento da realidade; uma tendência que é, para Freud,
um dos critérios de psicoses. O fato de que nas fantasias de Jorge alguns papéis eram
representados por figuras protetoras, distinguia esse tipo de personificações das do jogo de Erna.
Em seus jogos se representavam três partes principais: a do isso e as do superego em seus
aspectos persecutórios e protetores. O jogo de um menino com uma grave neurose obsessiva
pode exemplificar-se com o jogo de minha pequena paciente Rita, de dois anos e nove meses.
Depois de um cerimonial tipicamente obsessivo, arrumava sua boneca para dormir e punha um
elefante junto à cama da boneca. O elefante devia impedir que "a menina" se levantasse, porque
se não esta se introduziria a escondida no dormitório dos pais para fazer-lhes dano ou tirar-lhes
algo. O elefante (imago do pai) exercia o papel de uma figura que impede. Na mente de Rita,
seu pai por introversão, tinha exercido este papel "do que impede" desde que ela, entre os
quinze meses e até os dois anos, tinha desejado usurpar o lugar de sua mãe com ele, roubar o
menino com que a mãe estava gestante e magoar e castrar a ambos os pais. A reação de raiva e
ansiedade que se produzia quando "a menina" era castigada no jogo, mostra que na mente de
Rita atuavam ambos os papéis: o da autoridade que infligia o castigo e o do menino que o
recebia. A única realização de desejos aparente neste jogo residia em que o elefante conseguia
por um tempo impedir que "a menina" se levantasse. Fala só dois personagens principais: o da
boneca que representava o isso, e o do elefante que representava o superego. A realização de
desejos consistia na derrota do isso pelo superego. E este cumprimento de desejo e a
adjudicação da ação a duas "personagens" são interdependentes, já que este jogo representa a
luta entre o superego e o isso que nas neuroses graves domina quase integralmente os processos
mentais. Nos jogos de Erna também vimos estas mesmas personificações consistentes na
influência de um superego dominador e a ausência de imagos protetoras.

2 Como muitos meninos, mantinha o conteúdo de suas ansiedades em segredo para os que o
odiavam. Não obstante se advertia seu efeito.

3 Ao desenvolver-se Jorge, este apartamento da realidade se fazia cada vez mais marcado.
Estava completamente atrasado por suas fantasias.

Mas enquanto no jogo de Erna a realização de desejos residia na aliança com o


superego, e no de Jorge principalmente no desafio do isso ao superego (por meio do isolamento
da realidade), em Rita consistia na derrota do eu pelo superego. É pelo trabalho analítico fato
previamente que foi possível esta supremacia mal mantida do superego. A excessiva severidade
do superego impedia ao princípio toda fantasia e não foi até que o superego se fez menos severo
do que Rita começou a fazer fantasias em jogos como o acima descrito. Em comparação com a
etapa anterior na qual o jogo estava completamente inibido, isto foi um progresso, porque agora
o superego não ameaçava meramente de maneira terrível e sem sentido, senão que tratava de
impedir com ameaças as ações proibidas.

O fracasso da relação entre o superego e o isso deu lugar a essa supressão forçada dos
instintos que consome toda a energia do sujeito e é característica de graves neuroses obsessivas
em adultos 4 . Consideremos agora um jogo que se originou numa fase menos séria de neurose
obsessiva.

Mais adiante na análise de Rita (quando tinha três anos de idade), um "jogo de viajar"
que se desenvolveu através de quase toda analise tomou a seguinte forma. Rita e seu urso (que
então representava o pênis) iam ao trem a ver a uma mulher boa que ia entretê-los e fazer-lhes
presentes. Ao princípio desta parte da análise este final feliz geralmente era estragado. Rita
queria conduzir o trem ela mesma e desfazer-se do motorista. O, no entanto, ou recusava ir-se
ou voltava e a ameaçava. Algumas vezes era uma mulher a que impedia a viagem, ou quando
chegavam ao final deste não encontravam uma mulher boa, senão uma má. A diferença entre a
realização de desejos neste jogo (por perturbado que esteja) e os exemplos antes mencionados é
evidente. Neste jogo a gratificação libidinal é positiva e o sadismo não joga uma parte tão
preeminente como nos exemplos anteriores. Os "personagens", como no caso de Jorge,
consistem em três papéis principais: o do isso ou eu, o de uma figura que ajuda e o de uma
figura que ameaça ou frustra. As figuras que ajudam são em general de tipo extremamente
fantástico, como se vê no exemplo de Jorge na análise de um garoto de quatro anos e médio
aparecia uma "mamãe -fada" que costumava vir de noite e trazer coisas ricas para comer, as que
compartilhava com o menino. A comida representava o pênis do pai que lhe roubou em segredo.
Em outras análises a "mamãe-fada" costumava curar com uma varinha mágica as feridas
infligidas ao menino por seus pais cruéis, então ele e ela juntos matavam cruelmente a estes pais
severos.

4 Rita sofria de uma neurose obsessiva inusitada a sua idade. Caracterizava-se por um
complicado cerimonial ao deitar-se e outros sintomas obsessivos graves. Minha experiência é
que quando meninos pequenos sofrem deste tipo de doenças, que levam o selo da neurose
obsessiva tal como a vemos em adultos, é muito grave. Por outro lado creio que impulsos
obsessivos isolados é um fenômeno comum no quadro geral da neurose nos meninos.

Cheguei a convencer-me de que a atuação de tais imagos com características boas e


más é um mecanismo geral tanto em adultos, como em meninos 5 . Estas figuras representam
estágios intermédios entre o superego terrivelmente ameaçador que está totalmente separado da
realidade e as identificações que se aproximam à realidade. Essas figuras intermédias, cuja
gradual evolução para os pais protetores (que também estão mais cerca da realidade) pode ser
constantemente observada no jogo analítico, parecem-me muito instrutivas para nosso
conhecimento da formação do superego. É minha experiência que no princípio do conflito
edípico e no começo de sua formação, o superego é de caráter tirânico, formado sobre o
esquema dos estágios pré-genitais então predominantes. A influência do genital já começou a
fazer-se sentir, mas ao princípio é dificilmente perceptível. A evolução ulterior do superego para
a genitalidade depende em última instância de se as fixações orais predominantes tomaram a
forma de succionar ou de morder. A primazia da fase genital em relação tanto com a
sexualidade como com o superego requer uma fixação suficientemente forte ao estagio oral de
sucção. Quanto mais progride o desenvolvimento do superego e da libido dos níveis pré-genitais
para o nível genital, tanto mais se aproximam às figuras dos pais reais as identificações

5 Temos um exemplo disto na fantástica crença de um deus que permitiria a perpetuação de


atrocidades (como na recente guerra) para destruir ao inimigo e a seu país.

fantásticas de gratificação de desejos (cujo origem é a imagem de uma mãe que provê
gratificação oral.)6 As imagos adotadas nestas fases temporãs do desenvolvimento do eu levam
o selo dos impulsos instintivos pré-genitais ainda que estejam estruturadas em realidade sobre a
base dos objetos edípicos reais. Estes níveis temporões são responsáveis das imagos fantásticas
que devoram, cortam e dominam nas quais vemos uma mistura de vários impulsos pré-genitais.
Seguindo a evolução da libido estas imagos são introduzidas sob a influência de pontos de
fixação libidinal. Mas o superego em sua totalidade está fato de várias identificações adotadas
nos diferentes níveis de desenvolvimento cujo selo leva. Quando começa o período de latência,
termina o desenvolvimento tanto do superego corno da libido 7.

Já durante o processo de sua construção o eu emprega suas tendências de sínteses


tratando de formar uma totalidade destas identificações parciais; quanto mais externas e
contrastantes as imagos tanto menos brilhante será a síntese e tanto mais difícil será mantê-las.

A influência excessivamente forte exercida por esses tipos extremos de imagos, a


intensidade da necessidade de figuras bondosas opostas às ameaçadoras, a rapidez com a qual os
aliados podem transformar-se em inimigos (que também é a razão pela qual a realização de
desejos no jogo se quebra tão freqüentemente), tudo isso indica que o processo de sintetizar as
identificações falhou. Este fracasso se manifesta na ambivalência, a tendência à ansiedade, a
falta de estabilidade com que esta pode ser derrubada, e a defeituosa relação para a realidade
característica dos meninos neuróticos 8. A necessidade de uma síntese de superego surge da
dificuldade experimentada pelo sujeito em chegar a um acordo com o superego formado de
imagos destas naturezas opostas 9. Quando começa o período de latência se incrementam as
exigências da realidade, o eu faz ainda maiores esforços para obter uma síntese do superego,
para que sobre esta base se chegue a um equilíbrio entre o superego, o isso e a realidade.

6 Em dois de meus trabalhos anteriores cheguei à conclusão de que em ambos sexos o


afastamento da mãe como objeto oral de amor resulta de frustrações orais infligidas por ela, e
que a mãe frustrante persiste na vida mental do menino como mãe temida. Quisesse referir-me
aqui a Rado (1928), que retrocedem à mesma fonte a dissociação da imago materna em mãe boa
e mãe má, e baseia em isso seus pontos de vista sobre a gênese da melancolia.

7 Fenichel, em sua referência a minha contribuição ao problema da formação do superego


(1928, pág. 596), não tem razão ao supor que eu sustento que o desenvolvimento do superego
termina no segundo ou terceiro ano de vida. Em meus escritos, sugeri que a formação do
superego e o desenvolvimento da libido terminam simultaneamente.

8 Quanto mais progride a análise tanta menos poderosa é a influência das figuras ameaçadoras,
e tanto mais duradoura e fortemente aparecem no jogo figuras de realização de desejos, ao
mesmo tempo há um incremento proporcional de desejo de jogar e final satisfatório. Diminui o
pessimismo e aumenta o otimismo.

9 Os meninos têm geralmente uma grande variedade de figuras paternas, desde a aterrorizadora
"mamãe -gigante", "mamãe-terminante", à generosa "mamãe -fada". Também encontrei uma
"mamãe -média" ou uma "mamãe -três -quartos", o que representa um compromisso entre os
outros exemplos extremos.

Cheguei à conclusão de que esta dissociação do superego em suas identificações


primárias introduzidas nos diferentes estágios do desenvolvimento é um mecanismo análogo à
projeção com a que está estreitamente conectado. Creio que estes mecanismos (dissociação e
projeção) são um fator principal na tendência à personificação no jogo. Por meio deles a síntese
do superego, que só pode ser mantida com maior ou menor esforço, pode ser abandonada pelo
momento e, ademais, diminui a tensão de ter que manter a trégua entre o superego como um
tudo e o isso. O conflito intra-psíquico se faz assim menos violento e pode ser deslocado para o
mundo externo. O prazer assim obtido se incrementa quando o eu descobre que este
deslocamento para o mundo externo lhe proporciona diversas provas reais de que os processos
psíquicos, com sua catexia de ansiedade e culpa, podem ter um resultado favorável e pode
reduzir-se a ansiedade.

Mencionei já que o jogo revela a atitude do menino para a realidade. Quero aclarar
agora como a atitude para a realidade está aparentada com os fatores de realização de desejos e
personificação, que usamos até aqui como critério da situação mental.

Na análise de Erna, foi impossível durante muito tempo estabelecer uma relação com a
realidade. Parecia não existir uma ponte sobre o abismo que separava a mãe real, carinhosa e
amante, e as monstruosas perseguições e humilhações que "ela" infligia à menina no jogo. Mas
quando a análise chegou ao ponto em que os impulsos paranóicos se fizeram mais
proeminentes, apareceu um maior número de detalhes que refletiram à mãe real em forma
grotescamente distorcida.

Ao mesmo tempo se revelou a atitude da menina para a realidade, que tinha estado por
certo muito distorcida. Com uma capacidade notavelmente aguda de observação, Erna captava
os detalhes das ações e motivos dos que a rodeavam, mas de uma maneira irreal os incluía em
seu sistema de ser perseguida e espionada. Por exemplo, cria que as relações sexuais entre seus
pais (que imaginava realizarem-se invariavelmente quando os pais estavam sós) e todas as
mostras de afeto mútuo eram principalmente promovidas pelo desejo de sua mãe de causar-lhe
ciúmes a ela (Erna).

Ela supunha os mesmos motivos em todos os prazeres de sua mãe, e em realidade no


goze de qualquer, especialmente de mulheres. Usavam bonitos vestidos para causar-lhe
desgostos, etc. Mas era consciente de que tinha algo raro nessas idéias e tomava grandes
precauções para mantê-las secretas.

No jogo de Jorge o isolamento da realidade era como já disse considerável. Também o


jogo de Rita, na primeira parte da análise, quando as imagos ameaçantes e punitivas eram
predominantes, mostrava mal uma relação com a realidade. Consideremos agora esta relação na
segunda parte da análise de Rita. Podemos considerar como típica de meninos neuróticos
inclusive bastante maiores do que Rita. No jogo deste período apareceu, em contraste com a
atitude de meninos paranóicos, a tendência a reconhecer a realidade só na medida em que se
relacionava com as frustrações que tinha sofrido e das que nunca se tinha recuperado.

O jogo de meninos normais mostra um equilíbrio melhor entre a fantasia e a realidade.


Resumirei agora as diferentes atitudes para a realidade no jogo de meninos que sofrem diversos
tipos de doença.

Nas parafrenias existe uma grande repressão da fantasia e afastamento da realidade.


Em meninos paranóicos cuja relação com a realidade está subordinada às vívidas elaborações da
fantasia, o equilíbrio entre ambas se inclina para o lado da irrealidade.

As experiências representadas pelos meninos neuróticos em seus jogos estão


obsessivamente coloridas por sua necessidade de castigo e seu medo a um resultado desgraçado.
Em mudança os meninos normais são mais capazes de manejar a realidade de maneira melhor.
Seu jogo mostra que têm maior poder de influir e viver a realidade.

10 Tal progresso se acompanhava sempre de considerável incremento da capacidade de


sublimação. As fantasias, liberadas do sentimento de culpa, podiam agora ser sublimadas mais
de acordo com a realidade. Posso dizer aqui que os resultados de análises de meninos
ultrapassam muito que a analise pode fazer em adultos, no sentido do incremento da capacidade
de sublimação. Ainda em meninos muito pequenos vemos constantemente que quando
desaparece o sentimento de culpa, surgem novas sublimações e se reforçam as já existentes,
fantasias.

Ademais, quando não podem alterar a situação real, são mais capazes de suportá-la,
porque sua fantasia mais livre lhes proporciona um refúgio, e também porque a maior descarga
que possuem para suas fantasias masturbatórias em forma ego -sintonia (jogo e outras
sublimações) dá-lhes maiores oportunidades de gratificação. Examinemos agora as relações
entre a atitude para a realidade e os processos de personificação e realização de desejos.

No jogo de meninos normais estes processos testemunham uma maior e mais


duradoura influência das identificações originadas no nível genital. Na medida em que as
imagos se aproximam aos objetos reais, faz-se mais marcada uma boa relação com a realidade
(característica de pessoas normais).

As doenças (psicoses e neuroses obsessivas graves) que se caracterizam por uma


relação perturbada ou deslocada para a realidade, são também aquelas nas que a realização de
desejos é negativa e se representam no jogo personagens sumamente cruéis. Tratei de
demonstrar com estes fatos que aqui predomina um superego que está nas primeiras etapas de
sua formação, e extraio esta conclusão: a primazia de um superego terrível que foi introduzido
nos estágios mais temporões do desenvolvimento do id, é um fator básico no transtorno
psicótico. Neste trabalho discuti a importante função do mecanismo de personificação no jogo
dos meninos. Tenho que assinalar agora o significado deste mecanismo na vida mental dos
adultos. Cheguei à conclusão de que é a base de um fenômeno de grande e universal
significado, essencial também para o trabalho analítico, tanto em meninos como em adultos, a
saber, da transferência.

Se a fantasia de um menino é suficientemente livre, adjudicariam ao analista, durante


seu jogo na análise, os papéis mais variados e contraditórios. Por exemplo, me fará representar o
papel do isso, porque nesta forma projetada, suas fantasias podem ter uma descarga sem inspirar
tanta ansiedade.

Assim o menino Gerald, para o que representei à "mamãe-fada" que lhe trazia o pênis
de seu pai, fazia-me representar repetidamente o papel de um menino que se introduzia durante
a noite na jaula de uma "mamãe-leoa", atacava-a, roubava-lhe seus cachorros, matava-os e se os
comia. Depois ele mesmo era a leoa que me descobria e me matava de maneira muito cruel. Os
papéis alternavam de acordo com a situação analítica e o monto de angústia latente. Num
período posterior, por exemplo, o menino mesmo representava o papel de "homem malvado"
que penetrava na jaula do leão, e me fazia representar à cruel leoa. Mas nesta ocasião os leões
eram rapidamente substituídos por uma protetora "mãe-fada" cujo papel também tinha eu que
representar. Nesse então o menino já era capaz de representar ele mesmo ao isso (o que indicava
um progresso em sua relação com a realidade) porque sua ansiedade tinha diminuído até certo
ponto, como estava demonstrado pela aparição da "mãe-fada".

Vemos então que o debilitamento do conflito ou seu deslocamento ao mundo externo,


por meio de mecanismos de dissociação e projeção, é um dos principais incentivos para a
transferência e uma força propulsora no trabalho analítico. Uma maior atividade da fantasia e
uma mais abundante e positiva capacidade para a personificação são ademais o pré-requisito
para uma maior capacidade de transferência
O paranóico possui, é verdade, uma rica vida de fantasias, mas o fato de que na
estrutura de seu superego predominem as identificações cruéis e ansiogenas, é a causa de que os
personagens que inventa sejam predominantemente negativos e susceptíveis só de reduzir-se a
impulsos rígidos de perseguidor e perseguido. Na esquizofrenia, segundo crio, falha a
capacidade para a personificação e a transferência, entre outras razões, pelo funcionamento
defeituoso dos mecanismos de projeção, isto interfere com a capacidade para estabelecer ou
manter a relação com a realidade e o mundo externo.

Da conclusão de que a transferência está baseada sobre o mecanismo de representação


de personagens, extraí uma sugestão para a técnica. Já mencionei a mudança tão freqüentemente
rápida do inimigo ao amigo, da mãe má à boa. Em tais jogos, que implicam a personificação
esta mudança se observa constantemente depois da libertação de ansiedades como conseqüência
das interpretações Mas, como o analista assume os papéis hostis requeridos para a situação do
jogo e os submete assim à análise, produz-se um constante progresso na passagem das imagos
que inspiram ansiedade para as identificações mais benévolas de maior aproximação à
realidade. Em outras palavras: um dos fins principais da análise -a modificação gradual da
severidade do superego- se consegue tomando o analista os papéis que na situação analítica lhe
atribuem. Esta afirmação expressa meramente o que sabemos: é uma necessidade na análise de
adultos, a saber, que o analista seja simplesmente um meio em relação com o qual se podem
ativar as diferentes imagos e reviver as fantasias para poder ser analisadas. Quando em seu jogo
o menino lhe atribui diretamente certo papel, a tarefa do analista de meninos é clara. Por
suposto que assumirá ou pelo menos dará a impressão de simular, os papéis que lhe são
atribuídos 11, porque de não ser assim interromperá o progresso do trabalho analítico. Mas só
em certas fases da análise de meninos, e também não bem mais freqüentemente, tanto em
meninos como em adultos, temos que inferir da situação analítica e do material, os detalhes do
papel hostil que nos é atribuído, e que o paciente indica através da transferência negativa.

11 Quando os meninos me pedem que represente papéis que são demasiado difíceis ou
desagradáveis, acedo a seus desejos dizendo que estou "simulando que o faço".
Invariavelmente, chegamos à personificação nesta forma manifesta.

Agora bem, o que é verdadeiro da personificação em sua forma manifesta o encontrei


também indispensável nas formas mais encobertas e escuras das personificações subjacentes na
transferência O analista que deseja penetrar até as mais temporãs e angustiantes imagos, ou seja,
chegar às raízes da severidade do superego, não deve ter nenhuma preferência por um papel
particular; deve aceitar o que surja da situação analítica.

Como conclusão, desejo dizer algumas palavras sobre a terapia. Neste trabalho tratei
de mostrar que a angústia mais intensa procede do superego introduzido num estagio muito
temporão do desenvolvimento do eu, e que a supremacia deste superego temporão não é um
fator fundamental na gênese da psicose. Minha experiência me convenceu de que com a ajuda
da técnica do jogo é possível analisar em meninos pequenos e maiores as fases temporãs da
formação do superego. A análise destes estratos diminui a angústia mais intensa e abrumadora e
abre assim o caminho para o desenvolvimento das imagos bondosas originadas no estagio oral
de sucção e daí para conseguir a primazia genital na sexualidade e na formação do superego.
Desta maneira podemos entrever uma boa perspectiva para o diagnóstico 12 e cura de psicose
na infância.
12 São em casos extremos que as psicoses infantis têm as características da psicose em
adultos. Nos casos menos extremos, geralmente só uma análise penetrante e de considerável
duração pode revelar a psicose.

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