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Num trabalho anterior ("Princípios psicológicos da análise infantil") relatei alguns dos
mecanismos fundamentais que encontrei na análise de meninos. Assinalei que o conteúdo
especificou de seus jogos, que se repete constantemente ou recorre às formas mais variadas, é
idêntico ao núcleo das fantasias masturbatórias, e que é uma das principais funções do jogo
infantil proporcionar uma descarga destas fantasias. Discuti depois a considerável analogia que
existe entre os meios de representação usados no jogo e nos sonhos, e na importância da
realização de desejos em ambas as formas da atividade mental. Também chamei o atendimento
para um mecanismo importante nos jogos em que o menino inventa e atribui
diferentes "personagens". O objeto do presente trabalho é discutir este mecanismo em maior
detalhe, e também ilustrar com exemplos de diferentes tipos de doença a relação entre os
"personagens" ou personificações introduzidas pelos meninos no jogo e os elementos de
realização de desejos.
Até o presente minha experiência é que os meninos esquizofrênicos não são capazes
de praticar jogos no verdadeiro sentido da palavra. Executam certas ações monótonas e é um
trabalho laborioso penetrar através delas para o inconsciente. Em caso de ter sucesso
encontramos que a realização de desejo associada a essas ações é proeminente a negação da
realidade e uma inibição da fantasia. Nestes casos extremos não se conseguem as
personificações. Minha pequena paciente Erna, de 6 anos de idade, apresentava ao começo do
tratamento uma grave neurose obsessiva que mascarava uma paranóia que foi revelada depois
de considerável quantidade de análise. Erna em seu jogo me fazia representar à filha enquanto
ela para de mãe ou mestra. Eu então tinha que padecer fantásticas torturas e humilhações. Se no
jogo alguém me tratava bondosamente, geralmente resultava que esta bondade era só fingida.
Os impulsos paranóicos se manifestavam em que eu era constantemente espionada, meus
pensamentos eram adivinhados e o pai ou a professora se aliavam com a mãe na contramão
minha. De fato estava constantemente rodeada de perseguidores. Eu mesma no papel da menina
tinha que espionar e torturar continuamente aos outros. Freqüentemente Erna mesma
representava o papel de menina. Então em general seu jogo terminava escapando ela às
persecuções (nestas ocasiões a "menina era boa") fazendo-se rica e poderosa, transformada em
rainha e vingança cruelmente de seus perseguidores. Depois que se esgotava seu sadismo nestas
fantasias aparentemente isenta de inibições (isto sucedeu depois de um tempo de análise), vinha
a reação em forma de profunda depressão, ansiedade e esgotamento corporal. Então seu jogo
refletia a incapacidade de suportar essa tremenda opressão, manifestando-se numa série de
sintomas graves 1. Nas fantasias desta menina todos os papéis utilizados entravam numa
fórmula duas partes principais, o superego perseguidor e o isso ou eu, segundo o caso,
ameaçados, mas de jeito nenhum menos cruéis.
1 Espero publicar cedo um livro no que se encontrará um relato mais detalhado deste
caso. O exemplo seguinte mostra como dificuldades análogas às de Erna foram manejadas em
formas diferentes em certos aspectos. Jorge, de seis anos de idade, trazia-me durante meses uma
série de fantasias nas que ele, como líder poderoso de uma banda de caçadores selvagens de
animais ferozes, lutava, conquistava e matava cruelmente a seus inimigos, que a sua vez tinham
animais ferozes para defender-se. Os animais eram então devorados. A luta nunca terminava
porque sempre apareciam novos inimigos. No curso da análise deste menino se revelaram, não
só impulsos neuróticos, senão também impulsos marcadamente paranóicos. Jorge se sentia
sempre conscientemente 2 rodeado e ameaçado (por magos, bruxas e soldados), mas, ao invés
de Erna, tratava de defender-se deles com o auxílio de figuras que lhe ajudavam, ainda que
fosse por certo seres muito fantásticos. Sua realização de desejos na fantasia era, até certo
ponto, análoga à do jogo de Erna. No caso de Jorge também o eu tratava de afastar a ansiedade,
identificando-se com o partido mais forte, através de fantasias de ser poderoso. Também Jorge
tratava de converter o inimigo num inimigo "mau", para apaziguar ao superego. No entanto,
nele o sadismo não era um fator tão abrumador como em Erna e assim o sadismo primário
subjacente a sua angústia ficava menos astutamente dissimulado. Seu eu se identificava mais
integralmente com o isso e estava menos disposto a fazer concessões ao superego. Mantinha
afastada a angústia por uma marcada exclusão da realidade 3. A realização de desejos
predominava claramente sobre o reconhecimento da realidade; uma tendência que é, para Freud,
um dos critérios de psicoses. O fato de que nas fantasias de Jorge alguns papéis eram
representados por figuras protetoras, distinguia esse tipo de personificações das do jogo de Erna.
Em seus jogos se representavam três partes principais: a do isso e as do superego em seus
aspectos persecutórios e protetores. O jogo de um menino com uma grave neurose obsessiva
pode exemplificar-se com o jogo de minha pequena paciente Rita, de dois anos e nove meses.
Depois de um cerimonial tipicamente obsessivo, arrumava sua boneca para dormir e punha um
elefante junto à cama da boneca. O elefante devia impedir que "a menina" se levantasse, porque
se não esta se introduziria a escondida no dormitório dos pais para fazer-lhes dano ou tirar-lhes
algo. O elefante (imago do pai) exercia o papel de uma figura que impede. Na mente de Rita,
seu pai por introversão, tinha exercido este papel "do que impede" desde que ela, entre os
quinze meses e até os dois anos, tinha desejado usurpar o lugar de sua mãe com ele, roubar o
menino com que a mãe estava gestante e magoar e castrar a ambos os pais. A reação de raiva e
ansiedade que se produzia quando "a menina" era castigada no jogo, mostra que na mente de
Rita atuavam ambos os papéis: o da autoridade que infligia o castigo e o do menino que o
recebia. A única realização de desejos aparente neste jogo residia em que o elefante conseguia
por um tempo impedir que "a menina" se levantasse. Fala só dois personagens principais: o da
boneca que representava o isso, e o do elefante que representava o superego. A realização de
desejos consistia na derrota do isso pelo superego. E este cumprimento de desejo e a
adjudicação da ação a duas "personagens" são interdependentes, já que este jogo representa a
luta entre o superego e o isso que nas neuroses graves domina quase integralmente os processos
mentais. Nos jogos de Erna também vimos estas mesmas personificações consistentes na
influência de um superego dominador e a ausência de imagos protetoras.
2 Como muitos meninos, mantinha o conteúdo de suas ansiedades em segredo para os que o
odiavam. Não obstante se advertia seu efeito.
3 Ao desenvolver-se Jorge, este apartamento da realidade se fazia cada vez mais marcado.
Estava completamente atrasado por suas fantasias.
O fracasso da relação entre o superego e o isso deu lugar a essa supressão forçada dos
instintos que consome toda a energia do sujeito e é característica de graves neuroses obsessivas
em adultos 4 . Consideremos agora um jogo que se originou numa fase menos séria de neurose
obsessiva.
Mais adiante na análise de Rita (quando tinha três anos de idade), um "jogo de viajar"
que se desenvolveu através de quase toda analise tomou a seguinte forma. Rita e seu urso (que
então representava o pênis) iam ao trem a ver a uma mulher boa que ia entretê-los e fazer-lhes
presentes. Ao princípio desta parte da análise este final feliz geralmente era estragado. Rita
queria conduzir o trem ela mesma e desfazer-se do motorista. O, no entanto, ou recusava ir-se
ou voltava e a ameaçava. Algumas vezes era uma mulher a que impedia a viagem, ou quando
chegavam ao final deste não encontravam uma mulher boa, senão uma má. A diferença entre a
realização de desejos neste jogo (por perturbado que esteja) e os exemplos antes mencionados é
evidente. Neste jogo a gratificação libidinal é positiva e o sadismo não joga uma parte tão
preeminente como nos exemplos anteriores. Os "personagens", como no caso de Jorge,
consistem em três papéis principais: o do isso ou eu, o de uma figura que ajuda e o de uma
figura que ameaça ou frustra. As figuras que ajudam são em general de tipo extremamente
fantástico, como se vê no exemplo de Jorge na análise de um garoto de quatro anos e médio
aparecia uma "mamãe -fada" que costumava vir de noite e trazer coisas ricas para comer, as que
compartilhava com o menino. A comida representava o pênis do pai que lhe roubou em segredo.
Em outras análises a "mamãe-fada" costumava curar com uma varinha mágica as feridas
infligidas ao menino por seus pais cruéis, então ele e ela juntos matavam cruelmente a estes pais
severos.
4 Rita sofria de uma neurose obsessiva inusitada a sua idade. Caracterizava-se por um
complicado cerimonial ao deitar-se e outros sintomas obsessivos graves. Minha experiência é
que quando meninos pequenos sofrem deste tipo de doenças, que levam o selo da neurose
obsessiva tal como a vemos em adultos, é muito grave. Por outro lado creio que impulsos
obsessivos isolados é um fenômeno comum no quadro geral da neurose nos meninos.
fantásticas de gratificação de desejos (cujo origem é a imagem de uma mãe que provê
gratificação oral.)6 As imagos adotadas nestas fases temporãs do desenvolvimento do eu levam
o selo dos impulsos instintivos pré-genitais ainda que estejam estruturadas em realidade sobre a
base dos objetos edípicos reais. Estes níveis temporões são responsáveis das imagos fantásticas
que devoram, cortam e dominam nas quais vemos uma mistura de vários impulsos pré-genitais.
Seguindo a evolução da libido estas imagos são introduzidas sob a influência de pontos de
fixação libidinal. Mas o superego em sua totalidade está fato de várias identificações adotadas
nos diferentes níveis de desenvolvimento cujo selo leva. Quando começa o período de latência,
termina o desenvolvimento tanto do superego corno da libido 7.
8 Quanto mais progride a análise tanta menos poderosa é a influência das figuras ameaçadoras,
e tanto mais duradoura e fortemente aparecem no jogo figuras de realização de desejos, ao
mesmo tempo há um incremento proporcional de desejo de jogar e final satisfatório. Diminui o
pessimismo e aumenta o otimismo.
9 Os meninos têm geralmente uma grande variedade de figuras paternas, desde a aterrorizadora
"mamãe -gigante", "mamãe-terminante", à generosa "mamãe -fada". Também encontrei uma
"mamãe -média" ou uma "mamãe -três -quartos", o que representa um compromisso entre os
outros exemplos extremos.
Mencionei já que o jogo revela a atitude do menino para a realidade. Quero aclarar
agora como a atitude para a realidade está aparentada com os fatores de realização de desejos e
personificação, que usamos até aqui como critério da situação mental.
Na análise de Erna, foi impossível durante muito tempo estabelecer uma relação com a
realidade. Parecia não existir uma ponte sobre o abismo que separava a mãe real, carinhosa e
amante, e as monstruosas perseguições e humilhações que "ela" infligia à menina no jogo. Mas
quando a análise chegou ao ponto em que os impulsos paranóicos se fizeram mais
proeminentes, apareceu um maior número de detalhes que refletiram à mãe real em forma
grotescamente distorcida.
Ao mesmo tempo se revelou a atitude da menina para a realidade, que tinha estado por
certo muito distorcida. Com uma capacidade notavelmente aguda de observação, Erna captava
os detalhes das ações e motivos dos que a rodeavam, mas de uma maneira irreal os incluía em
seu sistema de ser perseguida e espionada. Por exemplo, cria que as relações sexuais entre seus
pais (que imaginava realizarem-se invariavelmente quando os pais estavam sós) e todas as
mostras de afeto mútuo eram principalmente promovidas pelo desejo de sua mãe de causar-lhe
ciúmes a ela (Erna).
Ademais, quando não podem alterar a situação real, são mais capazes de suportá-la,
porque sua fantasia mais livre lhes proporciona um refúgio, e também porque a maior descarga
que possuem para suas fantasias masturbatórias em forma ego -sintonia (jogo e outras
sublimações) dá-lhes maiores oportunidades de gratificação. Examinemos agora as relações
entre a atitude para a realidade e os processos de personificação e realização de desejos.
Assim o menino Gerald, para o que representei à "mamãe-fada" que lhe trazia o pênis
de seu pai, fazia-me representar repetidamente o papel de um menino que se introduzia durante
a noite na jaula de uma "mamãe-leoa", atacava-a, roubava-lhe seus cachorros, matava-os e se os
comia. Depois ele mesmo era a leoa que me descobria e me matava de maneira muito cruel. Os
papéis alternavam de acordo com a situação analítica e o monto de angústia latente. Num
período posterior, por exemplo, o menino mesmo representava o papel de "homem malvado"
que penetrava na jaula do leão, e me fazia representar à cruel leoa. Mas nesta ocasião os leões
eram rapidamente substituídos por uma protetora "mãe-fada" cujo papel também tinha eu que
representar. Nesse então o menino já era capaz de representar ele mesmo ao isso (o que indicava
um progresso em sua relação com a realidade) porque sua ansiedade tinha diminuído até certo
ponto, como estava demonstrado pela aparição da "mãe-fada".
11 Quando os meninos me pedem que represente papéis que são demasiado difíceis ou
desagradáveis, acedo a seus desejos dizendo que estou "simulando que o faço".
Invariavelmente, chegamos à personificação nesta forma manifesta.
Como conclusão, desejo dizer algumas palavras sobre a terapia. Neste trabalho tratei
de mostrar que a angústia mais intensa procede do superego introduzido num estagio muito
temporão do desenvolvimento do eu, e que a supremacia deste superego temporão não é um
fator fundamental na gênese da psicose. Minha experiência me convenceu de que com a ajuda
da técnica do jogo é possível analisar em meninos pequenos e maiores as fases temporãs da
formação do superego. A análise destes estratos diminui a angústia mais intensa e abrumadora e
abre assim o caminho para o desenvolvimento das imagos bondosas originadas no estagio oral
de sucção e daí para conseguir a primazia genital na sexualidade e na formação do superego.
Desta maneira podemos entrever uma boa perspectiva para o diagnóstico 12 e cura de psicose
na infância.
12 São em casos extremos que as psicoses infantis têm as características da psicose em
adultos. Nos casos menos extremos, geralmente só uma análise penetrante e de considerável
duração pode revelar a psicose.