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ESTUDOS DE ,

I OLOGIA ARQUETIPICA
James Hillman
Tradução de: Dr. Pedro Rotis e Silva
Revisão técnica: Roberto Gambini

achiamé
COLEÇÃO PSICOLOGIA ARQUEnrICA
Dirigida por:
Léon e Jette Bonaventure, Roberto e Fátima Gambini (França)
Maria Elei Spaeeaquerehe (Brasil)

NAII'. livro o Autor, por vários anos Diretor de Es-


IU(lIOI do Instituto C. G. Jung - Zurique, apresenta
01 ção de ensaios provocativos e esclarece-
obre temas tão controversos como Traição,
I , Separação, a Criança Interior, Mastur-
lêm de outros estudos teóricos sobre os
fundamentos da Psicologia Arquetípica.

Direitos desta edição.reservados a


Edições Achiamé Ltda.
Rua da Lapa, 180 - Grupos 1205/6

Copynght '1J
Rio de J~neir~ 20021 ~ Brasil
J ames Hillman

É vedada a reprodução total


ou parcial desta obra.

Capa: Carlos Alberto Torres

Composto na Compositora Helvética


Impresso na Ed. Vozes Ltda:
I' )1{ :)UEJAMESHILLMAN? 9

I) I'A INTRODUTÓRIA 11

.TEMAS

Um comentário sobre estórias 15


- Abandonando a criança 19
Pothos: A nostalgia do Puer Aeternus 65
Traição 79
- O Cisma como posições discordantes 99
Três tipos de fracasso e análise 115
U1.u.;""" Modelo arquetípico da inibição da masturbação 123
Psicologia da Parapsicologia 145

TEORIAS

Por que Psicologia "Arquetípica"? 161


Plotino, Ficino e Vico como precursores da Psicologia Ar-
Ipi 'Q 169
Teoria Arquetípica: C. G.Jung 193
Problemas metodológicos na pesquisa de sonhos 221
QlJEJAMESHILLMAN?

A Psicologia Arquettpica representa hoje, talvez, a mais avan-


11 , ionseqüente dentre todas as alternativas de desenvolvimento do
11 urnento junguiano.
N stes ensaios Hillman aborda temas controvertidos como a
II '" O, o cisma, a criança abandonada, a masturbação, a parapsi-
010 I etc., de uma perspectiva que tem como compromisso único a
111111 tidade na leitura integral das imagens arquetípicas neles contidas
111 por eles suscitadas, sem negação, omissão ou abrandamento dos
li spectos mais perturbadores. Simplesmente como as imagens se
111 ntam, em sua inteireza. Com isso aproximamo-nos de uma
IIIIV visão ética, uma "imagética" que não "tollit peccata mundi",
11\ 11I porque sua intenção é praticamente o oposto disso, mas que
I 1111 ra o que era considerado, por uma visão parcial e repressora,
1111I0 miséria humana, ao quadro geral da economia psíquica. Não
'111 o quadro passe a ficar totalmente luminoso, o que seria igualmen-
I I ilh : as trevas continuam trevas, mas não são mais definidas
IUiR negativamente como ausência de luz. O que se busca é o sen-
I hlll a legitimidade - de fatos psíquicos a partir do reconhecimento
I \I existência. Daí por diante os julgamentos de valor tornam-se
I I' rbldos, apenas importando a conexão orgânica, revelada pelo
111 10. entre as partes que compõem a imagem. As jmageD5 semp~
I v ram ai, são ar uetí icas. Nos_sospr:econceitos e condi.cionamcJ)-
• I I urais con enaram ou proscreveramal u .. tos,
1111I I \lido a sua el ur -as. Mas.éomo elas sã,9
111tlplcas ressurgem e rea resentam-se tidianamente na ro-
I' i ótlC hem como em_sonhos e fantasias de in-
I vIL11IS considerados normais.
orno psiquiatra, trabalhando diariamente com psícóticos e seu
1I111IHlu d imagens à primeira vista bizarras, pude verificar, seguindo
as indicações de Hillman, como o material classificado, às vezes um
tanto apressadamente, como patológico, pode conter formulações
imagísticas de grande criatividade, freqüentemente trazendo em seu
interior a solução do conflito moral que aprisiona aquelas mentes. As
imagens do inconsciente promovem a conciliação da oposição entre as
exigências internas do indivíduo e as restrições externas da moral con-
vencional, fornecendo um contexto moral mais abrangente, um es-
paço estratégico onde o psicótico consegue manobrar e, proviso-
riamente, sobreviver. Quando nos aproxi ndo fe-
chado com uma atitude OSlÍlV ens buscando NOTA INTRODUTÓRIA
en e- un ão curadora, não cortand . tico a os-
Sl ilidade de viver a nível simbóli o _ão do seu conflito. as
nces e que não se instale definitivamen(e na situaç Ô pS1Ctíca são'
mui o malores. lver essas ima ens ce ser u .. 1
~áção a energia psíqJlica Dec.;essária para asyperaç _9
ào-cmIThto. As "remissões" apenas quimicamente induzi das , su-
-pnmindõessas vivências, são muito menos estáveis e sujeitas a re-
cidivas, pois nesses casos, é claro, não se chegou realmente a elaborar
o conflito. .
Mas este raciocínio não é aplicável somente à situação psicótica:
em nossa vida diária são freqüentes as intervenções das imagens in-
conscientes em sonhos e fantasias; são manifestações da função com-
pensadora do inconsciente. Este não cessa de produzir símbolos, é a
sua linguagem natural. Cabe a nós aprofundar a leitura desses sím- Estes ensaios foram aparecendo em diferentes lugares, tad di-
bolos, sem recuar diante da crueza e mesmo brutalidade de certas f rentes épocas e idiomas. Ao fim de c~da ~ aparece u;a ~ot~s e~
imagens, e também sem apelar para o recurso demasiado fácil da t ro de um quadro contando sua históna .. AF.S~: e gu ue-
patologização, James Hillman ensina-nos como. IITraição" "Três Tipos de Fracasso e Anáhse, Mo.delo ~~ .
ti ico da ItrlbiçãO da Masturbação" - já terem sido pubhcados rver-
Pedro Ratis e Silva ~ vezes foram incluídos no presente volume pelo fat? ~e não serem
São Paulo, dezembro de 1978. de acess~ fácil. O ensaio so~re Pesquisa de So.nho~, ongm~~en!~~:
üemão, tem aqui sua primeira pub~lcação e~ mgles. ~ ~~ .0 le
Plotino Ficino e Vico só tinha sido pubhcado e~ I~ Iano aqu~
bre ; Pothos do Puer Eternus era uma confer.encla em ~ances, í
ublicada agora pela primeira vez. Em termos gerais não altere.I a for-
~na destes trabalhos, daí as )iiscrepâncias entre ~les, no est1!o das
1\ tas, na bibliografia e às vezes até mesmo na gr~fIa de d~erml~ad~s
t rmos Os trabalhos sobre Masturbação, A Criança, ~ . esquisa e
, nhos assaram por ampla revisão, em algu~s trechos !n extenso, es-
~~cialm~nte para esta edição. Te~ho uma divida de gr:~~ão para com
Lyn Cowan, por sua ajuda maravllhosa em todo o tra o.
1.H.
Zuriqu~, 1975
TEMAS
UM COMENTÁRIO SOBRE ESTÓRIAS

Do ponto de vista da Psicologia Profunda, entendo, como


p I ólogo, que as pessoas que já têm um bom contato com estórias en-
rnutram-se em melhores condições. e têm melhor prognóstico do que
rquelas que ainda precisam de uma iniciação nesse campo. Uma afir-
mução assim é muito ampla, por isso gostaria de subdividi-Ia e exa-
mlná-Ia em seus vários aspectos. Mas sem diminuir seu inegável alcan-
, :. conhecer estórias é psicologicamente terapêutico fier ;. É bom
a a alma.
As pessoas que na infância tiveram contato com estórias - re-
IIr -me aqui a estórias contadas ou lidas (pois a leitura tem um aspec-
III ral, mesmo quando alguém lê para si mesmo) e não às assistidas
11I uma tela - situam-se numa posição de reconhecimento básico e de
I miliaridade com a realidade das mesmas. É um dado que vem com a
v da, com a fala, a comunicação, e não mais tarde com os estudos e a
IIt ratura. Ocorrendo cedo na vida, é algo que abre lima perspectiva
para a própria vida. Pode-se integrar a vida como uma estória porque
Ias existem no substrato mental (inconsciente) como moldes para ar-.
t ular acontecimentos sob a forma de ex eriênci s" . . As
t rias são meios para nos colocarmos no interior de acontecimentos
, ue de outra forma não teriam sentido psicológico nenhum. (O dis-
curso econômico, o científico e o histórico' são modalidades de es-
tórias que freqüentemente fracassam na tentativa de dar à alma aquele
ntido imaginativo que ela busca para compreensão de sua vida
p. icológica).
U...ma essoa· u na infância absorveu estórias e as estruturou
li ntro de si usualmente conse ue estabelecer um relacionamento
11\ lhor com o material atologizado das ima ens obscenas r
)\I cruéis que aparecem espontaneamente em sonhos e fantasias ...Os
d ptos de escolas psicológicas de orientação racionalista ou asso-

15
ciacionista, que consideram a razão superior e oposta à imaginação,
argumentam que se não metêssemos na cabeça, em idade tão pre-
cocemente impressionável, estórias tão horríveis, nos anos posteriores
teríamos menos patologia e mais racionalidade.,A,prática me fez ver
,que gua~to mais experimentado e afinado for o lado imaginativõjiâ
rsonahdade menos amea ador será o irrac' nor a nec s-
sidade de re ressão e conse üentem cm _
tolo ia real nos acontecimentos concre iária. Em outra~
palavras, a qualid_ad~jBll~.áli&.a=à,as-imageBs_etemas_ atoló icos en-
~ontram ltÓ.riaso lugar a queJêm direitq, de modo que tais
Imagens e, temas tornam-se menos passíveis de serem interpretados
naturalisticamente, com literalismo clínico, como sinais de doença.
--";>Nas estórias essas imagens encontram seu legítimo lugar. Fazem parte
dos mitos, lendas e contos de fada, em que surge toda sorte de figuras
bizarras e comportamentos distorcidos, exatamente como nos sonhos.
Enfim, "A Maior História que já se Contou", como há quem aprecie Isto nos leva à questão do conteúdo. Que estórias precisam ser
c~amar a história da Paixão, está cheia de imagens horripilantes, des- untadas? Neste ponto minha indicação é a clássica, optando pelas
cntas com detalhes grandemente patologizados. ntigas, tradicionais, que fazem parte de nossa cultura: mi~os gregos,
romanos celtas e nórdicos; a Bíblia; lendas e relatos folclóncos. E que
Para .~m~ pessoa lidar com sua própria estória de caso. yale maiL I nham um míriimo do moderno marketing (atualização, adaptação,
estar familIarIzado com estórias do que ter informação clínica. Tam- dlção ete.), isto é, com interferência mínima do racional~~m? con-
bém as histórias de casos são formas de ficção, compostas por mi- I mporâneo, este agente do grande estreitamento de consciencia que
lhares de mãos, em milhares de clínicas e consultórios, guardadas em. mesmas estórias tentarão ampliar. Estes conjuntos de narrativas .
arquivos e raramente publicadas. Esta forma de ficção chamada "his- o os fundamentos de nossa cultura ocidental e atuam em nossa
tória de caso" segue o gênero do realismo social; acredita em fatos e' p lque mesmo sem termos ancestrais celtas, nórdicos ou gregos, in-
eventos e toma com excessivo literalismo todos os episódios relatados. I pendendo de nossa vontade. Podemos considerá-Ias como distor-
~a análise profunda. o analista e o analisando reescrevem uma nova ~ , favoráveis a' uma posição pró-ari~na, masculina, o,:"guerre.ira; .
. i n a "fic ão" no trabalho colaborativo d 111 S se não percebermos que essas estónas refletem os motívos báSICOS
análise. Esta ficção colaborativa.gue estrutura todos os eventos ll, psique ocidental, continuaremos sempre in~ufic~enteme~te in~or-'
traumáticos e caóticos de uma vida em uma nova estória. faz parte dq I I dos a respeito dos temas centrais de nosso dinamismo psicológico.
processo de cura. sendo mesmo. talvez. sua essência. Jung dizia que Q§ Nossa psicologia do ego ainda .faz eco ao tema e às !?ot.ivaçõ~s do
pacientes precisam de "ficções curativas':, mas essa postura é pro- Ia rói da mesma forma que muíto do que chamamos psicologia do
I blemática para nós, a não ser que já sintamos uma atração especial I lI1i~ino" reflete no presente padrões de deusas e ninfas da mitologia
pelas estórias.
r ga. Essas estórias básicas canalizam a fantasia. Os platônicos há
A terapia junguiana. pelo menos como a pratico, conduz a uma Ulltantetempo e Jung mais recentemente chamaram a atencão para o
concepção da fantasia como força dominante da vida. Aprende-se em v Ilar terapêutico dos grandes ~itos por ser~m capaz~s de ordenar os
terapia que a fantasia é a atividade que continuamente situa a Ilesso~ , Cios caóticos e fra mentárIos da fantasia. O conjunto de relatos
no contexto ora de uma, ora de outra estória. Ouando examinamos" ) , ICOSe clássicos mais importantes orienta a fantasia para padrões
essas fantaSias descobrimos ue refletem os randes temas im essoais I c lógicos organizados e profundamente revitalizantes; essas es-
a humanidade. tais como representados nas tragédias clássicas, nos . tórlas apresentam a forma arquetípica da experiência vital.
poemas épicos, contos folclóricos, lendas e mitos. Encaramos a fan-' Acredito que as crianças precisam menos do que os adultos s~re~
tasia como uma tentativa da própria psique de re-mitologizar a cons- nnvencidas da importância das estórias. Ser adulto passou a sigrn-
< 2iência; tentamos estimular essa atividade encorajando a familiari- I ur ser adulterado pelas explicações racionalistas e evitar as infan-
~ção com mitos e narrativás do folclore. O cultivo da ahna faz-se ao , lklndes dos contos de fadas. Tentei mostrar em detalhes como crian-
16
17
ças e adultos foram colocados em oposição: infância implicaria em ABANDONANDO A CRIANÇA
~
deslumbramento, imaginação e espontaneidade criativa, ao passo que
a idade adulta na perda dessas perspectivas (Cf. "Abandonando a \
Criança" mais adiante). AC.hOentão que a primeira coisa a fazer é re- '.

estoriar o adulto - o professor, os pais, os avós - a fim de restaurar \


" a imaginação num plano primário na consciência de cada um de nós, Tudo que começa em nós com a clareza de um começo é uma
~ { independente de idade. loucura da vida. .
Cheguei a essa conclusão partindo de um ponto de vista psico-
lógico, em parte porque desejava libertar as estórias de uma asso-
ciação estreita demais com a educação e a literatura - como se se
tratasse de algo ensinado, algo que se estuda. Meu interesse por es-
tórias é um interesse por algo vivido e experimentado, algo que for-
nece à alma um meio de encontrar-se a si mesma na vida.

SUBJETIVIDADE

A posição do psicólogo em congressos como este apresenta di-,


Em "Literatura Infantil: A Grande Excluída", Ilculdades especiais. Gostaria de começar por mencioná-Ias - talvez
vol. Hl (Ed. Francelia Butler e Bennett Brock- vomo expediente retórico para ganhar a simpatia dos senhores, talvez
man). Seminário do J ournal of M odern Language -orno prelúdio subjetivo adequado a qualquer afirmação psicológica,
Association sobre literatura infantil, Storrs, Con- tulvez para dar uma idéia da natureza da psicologia e do meu tema, a
-rlança. Enquanto colegas que usam esta tribuna encontram dificul-
necticut, 1974, pp. 9-11. iludes em tornar seus conhecimentos específicos compreensíveis a
lodos, o psicólogo começa pelo outro lado. Começamos com o geral,
com aquilo que partilhamos todos, a alma humana, esperando tornar
tc evento comum especificamente relevantiPãra cada indivíduo.
I) ste modo, será menos uma questão de ter algo de novo a relatar e
muis um retorno. à questão tão familiar de tornar subjetivo o objetivo.
A psicoterapia, devido a essa diferença de perspectiva, tem tam-
h m objetivos diferentes dos de outras disciplinas. (Uso os termos
psicoterapia e psicologia como intercambiáveis, pois uma psicologia
que não seja profunda inevitavelmente será superficial e desfocada; e
lima psicologia profunda inevitavelmente será uma psicoterapia
devido aos seus efeitos sobre os fundamentos inconscientes da psi-
IUC). ~omo o material da psicoterapia é sem dúvida um "material
I ubjetivo" - a alma ~ nosso "campo tem obrigacões para com ela,
MUC é a fonte de suas idéias. Procura estar sempre em contato com este
muterial subjetivo, mas não da forma meramente empírica, que segue
10 bom método científico e guarda um respeito total pelos fatos. Melhor
) klizcndo, a psicologia tem de pagar à alma sua dívida de idéias, ali-
~" ntá-la, ser-lhe de valia, e não usar a psique apenas para fazer
11' Icologia. A psicologia profunda pode usar a alma como seu objeto
(
mpirico, mas este é, ao mesmo tempo, uma.zJsoa, um sujeito. O en-

18 / 19
foque da psicologia profunda/o objetivo de suas idéias psicológicas I I ndência da pessoa do psicólogo. As outras disciplinas têm sob
será o de atingir algo subjetivÇ.,jPois a alma está no interior de cada I rvação uma área mais ou menos objetiva, sendo mais ou menos
um de nós. O campo só se altera' quando o material subjetivo se altera. 1'" \vel observar-se uma progressão histórica na resolução de seus
111 "Pois", como escreveu Freud, "uma psicanálise não é uma inves- 1" iblemas. Andaria a psicologia pelos mesmos caminhos e com as
r
tigação científica imparcial, mas uma medida terapêutica. Sua essên- 11I mas pretensões? Temos ou poderíamos ter um conhecimento
cia não é provar nada, mas somente alterar alguma coisa" ("Análise til lor da psique hoje em dia? Teria o efeito da psicologia profunda
de uma fobia num menino de 5 anos" [1909], CP III, pág. 246*)~ I ultado que a minha alma ou a alma dos senhores tornou-se mais
psicologia profunda começa e continua como uma terapia cuja essên- nusciente, mais capaz de amar, mais harmoniosa do que as almas das
cia e afetar a alma humana. I' s as que viveram um século antes de Freud ou 2 séculos antes de
Rousseau, Pinel e Herbart? Com isso estou levantando não tanto a
IJII stão kantiana do progresso ético, como a questão psicológica do
I I, ionamento entre psicologia, psicólogo e psique. Em que outra
111 ciplina são esses três elementos tão mútua e inerentemente neces-
rios para o avanço de qualquer um deles? A psique requer uma
I' I' logia adequada para refletir-se a si mesma, assim como a psi-
01 gia depende da psique do psicólogo, que por seu turno exem- o)
pllflca sua psicologia. Quanto mais fielmente o psicólogo refletir seu
I tulerial subjetivo - a psique - tanto mais esta irá incorporar-se ao-
Esse tipo de conferência deverá encontrar o estilo adequado a
610 o, como JUQg disse tantas vezes, e se transformará sempre,
seus propósitos, um estilo ainda não elaborado onde a subjetividade
é predominante, e em que o discurso de um sujeito para outro não está
determinado pelos velhos métodos de induzir mudanças, por exemplo \\~
a pregação, a confissão pessoal, o debate polêmico; 120rquealteração ~
/
I omo a música e a pintura, numa afirmação subjetiva.
-
Isto ~ desconfortável e embaraçoso, mas é bom que possa ser as- ~
11\, pohfo embaraço serve de corretivo para uma psicologia preten-
.

psicológica si nifica afetar rofundamente a sub' .. s- lisa. iA sutileza e a profundidade da psique - como já dizia Herá- o

telação de uma realidade simbólica e emoci. 1. Com a referência ~ Ilha - ultrapassarão de muito qualquer psicologia amarrada às li-
( á constelação o "material subjetivo" não tenciono provar nada, mitações subjetivas. Apesar do embara o melhor é trazer à luz a sub-
nem demonstrar ou explicar, ou sequer informar. Também a maneira Iividade da psicologia do que escondê-Ia sob a fantasia de ob' e ';
"\ como se deve proceder está ainda por ser descoberta, pois estamos v li de que tanto tem m ecclOnado nossa disci lina: Assim, não
r acostumados a um tipo de conferência de modelo linear, que expõe v 1I110S preten er que o analista seja objetivo J (Freud por trás do divã,
evidências, chega a algum lugar com uma conclusão, terminando lung munido de um saber amplificador) nem vamos alimentar noções
~numa tese. Hoje, porém, vamos divagar sobre um tema e não resolver 11 uma psique objetiva, de um nível objetivo de sonhos ou de um sig-
~ um problema; esperamos podcrâelxar que nosso metodo nos guíe 11 fi ado objetivo para eventos passíveis de serem investigados ímpar-
através de uma série de reflexões sobre um mesmo tema, como se fos- rlmente pelo psicólogo comprometido com um trabalho acadêmico
sem uma seqüência de aquarelas, evocando percepções, perspectivas, 1111 científico calcado sobre material objetivo: casos, sonhos, sín- ~
enfatizando o discurso metafórico, pretendendo dar sugestões e dromes, associações,IÉsse material não existe independente das pes-.),.
provocar aberturas, tendo como objetivo não uma conclusão, não es- ,,/tiS e da psique do investigadoryt) assim chamado material objetivo é
gotar o assunto, mas deixá-Io ainda mais em aberto. 11 ubstrato mais subjetivo da vida: refere-se àquilo que as pessoas
\ I mbrarn, como são suas fantasias, seus amores. É o relato das ferida; \
Com isso a psicologia ganha mais uma diferença em relação às íos desacertos da vida: escrutínio de segredos e confissão dos fiéis. /
demais disciplinas representadas aqui neste congresso: a sua enorme I
xatamente aqui começa o nosso tema: abandonando a criança.
Intensa subjetividade da psicologia, o desconfortável embaraço
1111 sentimos com sua inadequação quando a comparamos com as dis-
·0 leitor encontrará a chave para as abreviaturas usadas pelo Autor nas notas ao
final de cada artigo. Os títulos das várias obras aparecem aqui em português, apesar de I pllna que são suas irmãs mais velhas; sua inflação extraordina-
não terem, em sua grande maioria, sido traduzidas. (N. dos Eds.). I 1111 nte colossal a despeito do contínuo renascimento de seus pro-

20 21
(\4,J~
G blemas, sem amadurecimento nem progresso, tudo tendo de ser re-
. feito cada vez que alguém se inicia em psicologia - tudo isso reflete o
rquétipo da criança. Acondicionar a._"sjco12sia Ao'lmmodelo ob-
jetivo, considerá-Ia (bem como as suas atribuições) positivisticamente
-cõillõ um progresso, ver a força da psicologia e não suas fraquezas
\I I
1111I11
• nvicção de que a tarefa da terapia era a análise da infância: ~
afirmação de 1919étípica: - -

"Rigorosamente considerado ... o trabalho analítico só merece


ser reconhecido como genuína psicanálise quando teve êxito na
(inclusive sua pretensão e suas fantasias de onipotência de querer remoção da amnésia que impede ao adulto o conhecimento da
compreender tudo e todos) - isto banir a criança.
é
própria infância desde o seu início (isto é, aproximadamente des-
de o segundo ao quinto ano de vida)... A ênfase aqui colocada na
OQUEÉA CRIANÇA? importância da experiência mais precoce não implica nenhuma
subestimação de influências mais tardias. Impressões mais tar-
o que é essa "criança" - é certamente a primeira questão. Seja o dias, porém, falam alto pela boca do paciente, enquanto que é o
que for que digamos sobre crianças e sobre infância nunca será única e médico que tem de elevar sua voz a serviço das reivindicações da
exclusivamente sobre crianças e sobre infância. Basta apenas consul- infância". ("Uma. Criança ;Está ISendo i Espancada", CP lI,
tar uma história da arte pictórica para perceber o quanto as imagens
pág.177).
de crianças são estranhas, principalmente se compararmos as distor-
ções impostas a este tema com a exatidão na pintura de paisagens,
A que infância se refere Freud? Freud nunca analisou criança\
retratos e cenas de vida de adultos, na mesma época. Basta pesquisar
I I N, fato para o qual chamei a atenção aqui há.2 ano~. ~le~n~o ,
a história da vida em família, a história da educação e da economia, unuli u crianças/A "infância" retomada pelo a ll§1a.s~fancIa
para podermos nos dar conta de que os termos criança e infância, as- I 111' O próprio Freud se mau ' o neste ponto, por o e-
sim como são usados no presente, são uma invenção tardia (Ariês, 1(11 no, jovem e concreto ser huma~o que chama~os "criança"
Parte I). Que estranho reino é esse chamado "infância"? Que es- 11' ircce na obra de Freud como uma cnança rousseaumana ou mesmo
tamos a fazer quando fundamos um mundo à parte, com quartos de
crianças, brinquedos de crianças, roupas de crianças, livros de crian-
I" 11 -platônica, e constitui "uma coisa psicologicamente diferente de
1111I idulto ... " (NIL, pág. 190). ("A infância tem seus próprios modos
ças, música, linguagem, babás, médicos - mantendo as crianças tão 11 v r, pensar ,e sentir; nada é mais estúp.ido que tentar substitu!r nos-;
segregadas da vida real de homens e mulheres adultos? Fica logo claro 11 modos": Rousseau, Emite, 11). A diferença está na maneira es-
que é uma re ião da si ue chamada "infânc' " ' er- 11 '1 \1 da criança lembrar: " ... uma crianç~ lança ~~ão.de... experiên-t
sonificada ela crian a ue a encarna aos olhos dos adultos. É in- filogenética quando lhe falta sua própna expenencI~. P~eenche asr
.teressante notar como a razão de ser disso é semelhante à dos ma- I .unas de sua realidade individual com realidade pré-histórica. Subs-
nicômios de séculos atrás ou de hoje, quando o louco era considerado 111111 corrências de sua própria vida por ocorrências das vidas de seus
uma criança, sob tutela do Estado, ou sob o olhar paternal do médico, III~' strais. Concordo inteiramente com Jung no reconhecimento dessa
ue cuidava de seus "filhos", os loucos, como cuidava da sua família. til I 111 a filogenética ... " ("Da História de Uma Neurose Infantil"
É de novo aquela confusão tremenda de criança com louco, de infân-
cia com loucura ("Loucura é infância" - Foucault, 1965, pág. 252). I'H H, CP III, pág. 577-578). ( /
A criança real não o era de fato pois suas experiências nada mais
A confusão que se faz entre criança e infância reais e criança e in- I 111I que confabulações d~ ~corrênci~s "pré.-hi~tó~icas", isto é, não
ância da fantasia dificulta a percepção clara daquelas e já se tornou I 11I1) rais, míticas, arquetípicas. ASSIm, a infância em Freud está
clássica na história da psicologia profunda. Os senhores devem se I I I ida parcialmente a um estado de reminiscência, semelhante à ,
lembrar que no começo Freud acreditava que as recordações repri- mrmoria platônica ou agostiniana, um reino imaginário que se en-
midas que causavam as neuroses eram emoções esquecidas e cenas dis- " a de dar à criança real "maneiras próprias de ver, pensar e sen-

(
torcidas da infância real. Mais tarde abandonou esta criança, por en-
tender que o fator fantasia colocara na infância eventos que realmente
nunca tinham acontecido; eram obras de uma criança da fantasia e
não ocorrências reais da vida da pessoa. Viu-se então obrigado a fazer
111" (Rousseau). Esse reino, esse modo imaginário de existir - a se
II litar na psicologia popular e na psicologia profunda - ainda.está
\"" ser identificado no primitivo.' no. se.lva~e~, no louco,. no ~rtIsta,
1111 nlo e no passado arqueológico. A infância pessoal vai-se juntan-
l!
distinção entre criança de fato e criança da fantasia, eventos de uma ,lu lnf ncia dos povos (Cf. CP III, pág. 470: o último parágrafo da
infância exterior e os de uma infância interior. No entanto, manteve 1\ rlll\S de Freud sobre o caso Schreber). .J

22 23
Mas a criança e a infância não são reais. São apenas termos que 11 1\ I i-se ao leito de morte, quando este chamava as crianças de volta
usamos para designar uma modalidade de existência, de percepção e " o paraíso. Percebemos melhor a visão de Freud quando a co-
I I

de emoção, que insistimos ainda hoje em dizer que pertencem a crian- 111 em contraposição com a de Dickens; no entanto em ambos a
11I S
ças reais; e coerentes com isso construímos para elas um mundo con- ~ I1 nça de fato e a criança como imagem ainda não estão bem se-
forme nossa necessidade de situar essa fantasia~~de. ~ I' luas.
I
t. Não sabemos o que as crianças são em si, isto t "não-adulterada~Z ensaio de Jung "A Psicologia do Arquétipo da Criança"; de
por nossas necessidades de possuírmos encarn~o reino una- 1II 0, significou um grande avanço para este tema; a criança real é
ginário, personificações de "começos" (isto é, de "primitividade", 1 h mdonada e com ela a fantasia do empiricismo, ou seja, a noção de
"criação") e do arquétipo da criança. Ficaremos sem saber o que as ~ 1111 a percepção deste fator específico no interior de nossa subjeti-
crianças são até 9~e possamos co~preen~er melhor e~.9ue consiste o 1/ I rde resultaria da observação empírica da infância real. Jung es-
t abalho ue a cnan a da fantasia, a crIan a ar uetl Ica realiza no
II vc:
nterior da psique subjetiva.
. Os senhores devem estar lembrados da imagem chocante por seus
"Não seria ocioso assinalar que opreconceito leigo sempre tende a
atnbutos que Freud construiu para a criança e para a fantasia de in-
identificar o motivo da criança com a experiência concreta da
fância: criança não tem superego (consciência) como o adulto; tam-
"criança", como se a criança realfosse a causa e apré-condição da
existência do motivo da criança. A realidade psicológica porém é
bém não tem associações livres como o adulto mas tão-somente re-
que a idéia empírica da "criança" representa apenas o meio ... pelo
miniscências. que não passam de confabulações. Os pais e os pro-
qual se expressa um fato psíquico que não pode serformulado com
blemas da cnança são realidades exteriores, e não interiores como nos
maior exatidão. Por isso também é que enfatizamos que a idéia
adultos; sendo assim, a criança não tem vida psíquica simbolicamente
mitológica da criança não é uma cópia da criança empírica, não é
transferida (NIL, pág. 190). Como está tudo isso tão próximo do es-
tado mental classificado como "loucura", ou do estado mental do ar-
-e este é oponto - uma criança humana. " (CW9,I,pág. 161).
tista e do a~sim chamado primitivo: esta ausência de consciência pes-
soal, essa mistura de comportamento e ritual, de memória e mito! Que grau de precisão é legítimo esperar de nossos estudos sobre a
Mais chocante porém que os atributos enunciados por Freud são I I1 Inça humana se passamos tanto tempo sem nos dar conta o sufi-
os que podemos inferir de suas idéias. Antes de mais nada a primazia I1 nre da presença d criança arquetípica em nossa subjetividade,
que Freud deu à criança: aqueles anos iniciais, aquele estilo de pen- rlctando nossa visão?/Vamos então deixar um pouco de lado a criança
I infância e passar àquilo que Jung chamou "motivo da criança" e
samento e aquele sentimento imaginal da existência que chamamos
li ispectos da criança na psique coletiva''!
"infância" seriam as coisas mais importantes de nossas vidas. Em
se~u~do l.ugar o corpo que Freud deu à criança: com desejos sexuais, Agora começamos perguntando em que consiste o motivo da
paixoes, Impulsos homicidas; a criança seria capaz de temer sacri- I I1 inca, que consegue induzir e projetar tão vividamente essas fan-
ficar, rejeitar, odiar, sentir saudade; seria composta de zonas eró- t isias? Jung responde:
genas, estaria pré-ocupada com fezes e genitais; por tudo isso me-
receria o título de perversa polimorfa. Em terceiro lugar a patologia "A 'criança: é tudo aquilo que é abandonado e enjeitado, e ao
que Freud deu à criança: a patologia de nossas repressões e fixações mesmo tempo possui poder divino; o começo insignificante e
infantis por trás de nossos distúrbios psíquicos (CP lI, pág. 188); ela duvidoso e ofim triunfal. A "eterna criança" presente no homem
era a causa de nosso sofrimento. é uma experiência indescritivel, é uma incongruência, uma excep-
cionalidade, e uma prerrogativa divina; é um fator imponderável
~ão de fato chocantes esses atributos se os compararmos com os
da cnança de Dickens, pois Dorrit e Neli, Oliver e David muito pouco
que determina a importância decisiva ou a desimportância de uma
possuem de paixões e de corpo; e de sexualidade então absolutamente personalidade". (CW9,I, § 300).
nada, principalmente em comparação com o pequeno Hans Anna e
outras crianças da literatura psicanalítica. Mesmo quando ;pesar de J ung elabora as seguintes características gerais e especiais da
tudo a perversidade surgia na obra de Dickens ela provinha dos adul- I.:liunça: futuridade, invenci6Ilidade herÓica e alVlna, hermafrodltls-
tos, da industrialização, da educação e da sociedade; a patologia res- 11IO, omeço e fim, e o motivo do abandono, do qual extraí meu tema.

24 25
Poderíamos tO,mar essas reflexões de Jung, de 1940, como extensões
'ida é negligenciada, eSQUecida, chora. passa por perigos 0\1
de obras anteno~es, e~ que relacionava o motivo da criança com o
. sidades, e coisas semelhantes, A criança afirma sua presença
pensa,mento arCaICOmítico e com o arquétipo da mãe (CW 5,passim) e
I s os son os; mesmo abandonada podemos ouvi-Ia, escutar seu
tambem com a bem-aventurança do paraíso (CW6 §§422 442) F d
"h ia d ' , , ,reu luunado.
ja avia eS,cnto em s~~~inguagem e em seu estilo alguns dos aspectos
que lung, discute. A I~eIa da criança criativa aparece na equação de ·ncontramo-Ia, em sonhos modernos, cercada de perigos: inun-
Freud: cnança = pênis e a criança rejeitada em sua equação criança d,u;('\c , animais, trafego; ou deixada na mala de um carro (Q motivo
fezes, :'F~zes", ':criança" e "pênis" formam assim uma ~nidade, ", "arca"), num carrinho de criança ou de supermercado (o motivo
um concelto,lllconscIente (sit venia verbo) - a saber, o conceito de um " "cesta"); raptores, ladrões, familiares incompetentes; doenças, in-
pe,qu;~o objeto, que pode vir a ser destacado do próprio corpo ("Da "I dez, infecções misteriosas, deficiência mental e lesões cerebrais (a
História de Uma Neurose Infantil" - 1918, CP llI, pág. 562), .1 ruça idiota); ou uma catástrofe menos específica: guerra, enchente,
Gosta:i~ de ~crescentar mais duas características, estas tiradas de
I,,' ndio, Às vezes a pessoa acorda à noite com a sensação de ter
'111 vldo uma criança chorar.
nossa tra~I?aO oCIdent~l. :"- primeira, especi 'eam te cristã e a segun-
?a, ,espe~Iflcamente clássica. Na tradição ristã égasse) a idéia de m geral a reação de quem sonha com o motivo do abandono é
cnança ,ere;se também ,a tudo que é simples, ingênuo, pobre, 1" oc paçao agu a, responsa Ilaade com cul a: "Não devia ter
comY·ffi - o o fao - da s?cIeda~e ~ ~a psique; como na linguagem , xa o acontecer; evo azer alguma coisa para proteger a criança;
dos I§vangelhos, em ~ue criança significa o marginal, a pré-condição 1111 um mau pai", Se no sonho aparece um recém-nascido, achamos
da sãlvaçãõ, tendo Sido mais tarde colocada em associação com os 1111 temos de pensar nessa "criança" o tempo todo, alimentá-Ia a
sent~~ento~ d? coração em oposição aos conceitos do intelecto, Na I Ida três horas com toda dedicação, carregá-Ia nas costas como um

Itradição clássica a cnança aparece em configurações


~a,scuhna, ,representadas especificamente
da psicologia
por Zeus, Hermes e Dio-
rusio, suas Im~ge,ns,_mitemas e cultos, Convém observar que aí se faz
sempre uma dlst~~ça? clara entre o motivo da criança, o da mãe-e-
" h' índio. Nossa tendência é tomar a crianca como uma licão de..
(

Mas é apenas sobre ~quanto


,I! alterar alguma coisa ~~I
agente que recai a obrigação
e de corrigir alguma coisa (Jung),
filho e o ~o herói-criança, que tem importância psicológica marca-
damente diferente, / uhrigação esta imposta pelo sentimento de culpa. No entanto quem
«inha não é apenas responsável pela criança, ele próprio é também a
. ~osso tema segue Jung literalmente quando este fala: "O motivo I I In a, Conseqüentemente, os sentimentos de culpa, preocupação e Af _
da cnança representa algo que não somente existiu num passado 1 P nsabilidade, por mais moralmente virtuosos que sejam e em par-~
remoto c?mo existe agora", Não apenas uma relíquia mas um sistema I úteis para a correção de eventual negligência, podem estar neu-
que func,lOna, n~ ~res~nte, c,om o propósito de compensar ou corrigir, " ilizando outras emoções, tais como terror, perda, desamparo. Às
~e maneira significativa, a Inevitável unilateralidade e as extravagãn- VI'1. ·s, quanto maior nossa preocupação com a criança, menor o con-
eras da mente consciente". (CW 9, I, § 276). Se, de acordo com Freud I 110 desta conosco. Por isso, quando nossa atitude diante de um
a essência do método psicanalítico é alterar alguma coisa, e se a crian- unho privilegia a posição do ego responsável, reagindo ao sonho com
ça, de ,a~ordo com Jung, é o fator psicoló ico de c e ão, então é IlIlpa e com uma maneira rígida de encarar as coisas, com treinos para
n~cessano que em nossas re exões esta tarde seja trazida de volta a melhorar o desempenho, com mudanças de atitude, tomando os
c:lança que abandonam,os enquanto falávamos a seu respeito. Aí en- IIl1h s como lições de moral endereçadas ao ego eticamente respon-
~a~ ? tema geral podera vir a ser enfocado especificamente na sub- IV 1, estamos reforçando este ego. Com isso acentuamos a clivagem
Jet~vldade pnvada de cada um e poderá agir para alterar a unilate- pui filh i o ego se torna o pai responsável, o que nos leva para mais ,
ralidade da consciência em relação à criança, 111II~c ainda das emoções da criança. . ~ ~

o ABANDONO NOS SONHOS Para a inte ra ão de um sonho é crucial a ex eriênci em ~


todas as suas parteJ - e estam os falando não de interpretação,
111 I~ de integração, isto é, de integridade em relação ao sonho, de per- I~W:
• O primeiro lugar em que encontraremos a crianca abandonaDa..é
111 I" 'cer com ele e nele, de aproximação amistosa de todos os seus ~'\
nos sonhos em que nós mesmos, um filho nosso ou uma crianca' des- !t.", -ntos, participação em sua história inteira, A Gestalt-terapia ten-
26
ta ressaltar isto quando postula que quem sonha se reconhece em Ilnll ~, Em casa não somos somente a mãe que abraca e o p-aLgu
cada uma das partes: no pai descuidado, mas também nos cães da- 1IIIIIIIIda, somos também a criancinha. Rejeitada em todos os outros
nados, na enchente do rio, na infecção misteriosa e na criança en- 111 IICS, em casa ela é aceita.
jeitada. Tão importante quanto fazer a criança parar de chorar, tão
~~'I importante quanto odiar indistintamente o que é infantil é sair da ses-
são de análise cônscio da necessidade de tomar mais cuidado com os
Esta realidade, que alguns psicoterapeutas den~~inam "a crian-
" utcrior do passado", e outros "a interação neurótica no casamen-
\ elementos novos e tenros, que precisam de ajuda para crescer. 111", é tão importante nas fantasias que se desenrolam num casame~to
11111110 os vários padrões de conjunção desc?tos por Jung. O q~e im-
Assim como um ego responsável e uma interpretação podem
1'1dl' as aspirações de conju~ção são .~s v~olentas dema~das mces-
reforçar o pai às expensas do filho, também a amplificação pode não
11111, I da criança, cujos desejos de uma~ sao de. or.dem dIfere~~e do
lograr alcançar a criança que está abandonada. Uma amplificação do
1IIIIIérnio matrimonial (CW 14 e 16, passimi e cuja Imagem de con-
motivo da criança no rio, perdida na floresta ou com uma tarefa
I 1It1 "e "continente" (CW 17, § 331c e seguintes) é toda ~m função
superior às suas forças, em termos de contos de fadas, mitos e rituais
d eu negligenciamento ansioso. Para qu~ outro lugar a cnança pode
de iniciação, pode acrescentar nuances precisas ao tema - mas a
,,'/ b ta casa também é a sua casa, e mais Importantes que ~ ma:Id~ e
técnica matizante da amplificação para revelação do sentido objetivo
mulher são para ela o pai e a mãe, cuidados, proteção, onipotência,
pode também obliterar a realidade subjetiva da negligência. Muitas
"11 tlizações.
vezes a amplificação nos afasta da miséria ao colocf!.-lª- em_um..njycl
muito genérico •. A amplificação proporciona uma extensão da percep- A procriação e a educação das crianças t~m sido ~onside~adas

,
ç- . e sária de muitos fatos concretos; extensão que poderia ser 1111110 um dos propósitos do casamento. Mas existe tambe~ ~ cr~ança
(contra-lndlcada formalmente para o tema em discussão pois encon- ujucripica, constelada pelo casamento, que com .su~ :xI~enCIa de
tramos mais facilmente a criança procurada se nos aproximarmos I 11 dados poderia arruinar um casamento real pel~ I!l~IstencI~ no e.n-

(r
mais da miséria subjetiva e registrarmos seu lugar com precisão. IIhl de padrões arquetípicos "pré"-maritais (não-iniciados, infantis,
Tanto a responsabítídade moral como a amplificação são rné- 111'l'stuosos). É nesse ponto que surgem as verdadeiras batalhas entre a
I I Inça real e a criança psiquica dos pais, decisiva para se saber qual
" todos insuficientes para dar conta deste motivo. Enquanto atividades
(; de pessoas maduras e razoáveis, elas nos distanciam ainda mais da dll duas será abandonada. ,O divórcio surge então como ameaca nã!?
criança. ll'lIas para a criança real m~s também para a crianca ªbandQnact~
ti pais, que havia achado abngo no casamentQ.

o ABANDONO NO CASAMENTO
abandono se concentra no casamento, já que não há outro
o casamento evoca inevitavelmente a crian a e III~ilr para ele, transformando o casamento no palco princ.ipal da
forma, cada ninho, cada conjunto de hábitos oferece um santuário à 11pl .sentação do arquétipo da criança (e n~o da conjunctios ...1::l!l-.
criança abandonada. Muitas vezes um casamento precoce representa \' IIncnto encontramos as idealizacões da cnanca: casamento como
obvIamente uma tentativa de encontrar um berço para a criança que 1II ômega da vida, hermafroditismo
! vivido como lOCO .unhão de
não é mais aceita na casa paterna. O modelo pode ser mantido por I Iflt'l. , 'uturidade" vivida como lanifica ão de es era .as
muito mais tempo, com marido e mulher num acordo tácito, cuidando 1Il1"11ose vu nera I I a e e ensiva. As tentativas do casal de conter a
I I IIIÇ~(e não um ao outro). produz um padrão familiar que se ~lterna
tão desveladamente da criança que estava abandonada nas respectivas
casas paternas, que terminam por não conseguir ter a criança real que 1111 I . crnocionalismo presente e ausente .• com o c~samento p,etn~cad.o
lhes seria adequada. 1111lima norma social. Perdida no meio das oscllaçõ7s est.a a Imagl~
1111\' o, cujo veículo de expressão pode. s:r. a crianç~. ~ imaginação flUI
~star em casa, voltar para casa, tomar o rumo de casa, são. 1111ti .sabafos afetivos ou então se solidifica em hábitos e em projetos
emoções que semerem a necessi a es m antis. Indicam uma situação '1111I 'rminam por encerrar a cri~mç,~: Uma legítim~ '.'te~~pia do ca-
de abandono. Transformam a casa real com suas paredes e telhado 1111 '1110" deveria basear-se não na mteracão neurotl~a ~o casal e
numa fantasia de livro ilustrado, com paredes e telhado psíquicos on- 1111111 criança como fator central do casamento, e n~ una ma ão da
de alojamos nossa vulnerabilidade e onde podemos ser expostos, com nl, , IS o e, no cu IVO a SI ue Ima mal ou se a na r
segurança, à fragmentação polimorfa perversa de nossas necessi- 11111 isnca VIVI a por_nossas crianç:!s.

29
BA TlZ;!tNDO A CRIANÇA

,Em geral, nossa tendência é achar que existe alguma coisa fun-
damentalmente errada na criança; e daí localizamos as falhas nela
própria. E a sociedade acha que é necessário fazer alguma coisa pari
sanar essas falhas. Não aceitamos as crianças como são: achamos que
devemos arrancá-Ias da infância. Cuidamos de sua iniciação, edu-
cação, circuncisão, Imunização e batismo..,:..E se i ea izamos roman-
ticamente a criança - e idealização é sempre sinal de distanciamento
- chamando-a de um speculum naturae, por outro lado não con-
fiamos inteiramente nessa natureza. Mesmo a criança chamada Im-
manuel (Isaías, 7:14-16) teve antes de provar manteiga e mel para en-
tão poder discernir entre o bem e o mal. A criança per se nos deixa
desconfortáveis, ambivalentes; as tendências reunidas no arquétipo da .
criança nos deixam ansiosos. É um arquetlpo que, por evocar aqUi o
ue .á era COnsl era o- assa o ou a U1o ue não recon- ec_emos,
~ente é associado ao primitivo, ao louco, ao místico.

Se examinarmos as controvérsias suscitadas pelo batismo das


crianças entre os antigos ficaremos admirados com o teor do conteúdo
psicológico que agitava aquelas excelentes mentes patrísticas. A ener- IU.'GRESSÃO, REPRESSÃO
gia que então dispenderam com a criança é comparável à que dispen- O batismo
tinha duas funcões para as guais temos designacões,
demos com a infância na psicologia moderna. De início, porém, eles . imnedi ão i\ra exercer a rel)fes-
(Tertuliano, Cipriano) não insistiram tanto no batismo precoce, sendo
que Gregório Nanziazeno preferia que antes do batismo a criança
"':~~~~~~ :n~~s~e~~~~n~~a~~s ~~~~~~a dea crian a
se dá através de
riências.
contasse já com um certo grau de desenvolvimento mental, aí por vol-
O que a psicologia profunda veio a chamar de regressão n~da
ta dos 3 anos de idade. Já Agostinho era inflexível: nascendo com o
., e um retorno à criança. Assim sendo, podemos ínvestigar
pecado original, o homem trouxe o pecado para o mundo - era o que
11I \~~ ~ ~undo a noção psicológica de maturidade, que teIl1:a regressão
Agostinho deduzia de seu próprio passado pagão. Só o batismo
li' \I t ti da e a idéia psicológica de desenvolvimento, que
poderia purificar a crian a. Sabiamente, Agostinho escreveu sobre a , umo con rapar 1 , -' do sombrio ine-
necessida e aa sa vação da criança: "Os que preconizam a imitação hllplica em abandono da criança. A_Legressao e o ~odelo dêdê'S'en-
nto
das crianças devem amar não sua ignorância mas sua inocência". v àvel dos estilo~ lineares de pensa d . ?u:~~~~ntramovimento,
í o
, (Enar. in Ps. XLIV, 1). Mas que inocência? "É a fraqueza das faculJ volvimento estara sempre contamma o, pe o _
"llIvismo A regressão costuma ser vista nao como u~
retorno à [~~ ,
~
dades da criança que é inocente, não a alma". (Conf. 1,7, 11). Como'
isto soa freudiano! A criança não é capaz de desempenho devido a
I ,\idade' irnaginal possível pelas semelhanças, segUlnd~ a rota e
I1 içada pelos neopl~tônicos (Proclus, Plotino), mas como v~ ,ta a ~n;~
suas faculdades ainda muito novas, essas perversidades existentes no
interior da alma. A alma carrega dentro de si não a enas o pecado em tuação pior. A psicologia apresenta a "vol~a" c?mo uma que a ,
gsd.aLmaS-ta 'm os ecados es ecíficos das tendências pré-cristãs e ~ 1111111 contramarcha ~ padrões , a~ter~o~~sm~ :f:r:~~~~~s~a~~~11~~~s:
.não-sristãs.de.um.na 'smo oliteísta, que Freua maiSfãf'ãeCleS~ r são tornam-se mcompa t iveis. .' f
;1l1 der a respeitabilidade ao nos afastar das COisas VIVaspara nos azer
cobriria e batiz ria como" olimorficamente perverso", e que Jung
"àind ' descreveria com reenslvamen e como sendo os ar- "VI Itar" às "origens".
quétipos. O batismo salvaria a alma da m anCla, Isto e, esse mund'o No presente a regressão só é tolerável, teoricam.ente, quando [se
.de1iTIa eXs e formas arquetíplcas, deuses e deusas, que consubstan- ", !TI termos de "regressão a serviço do ego" (E. Kris, psychoana y-
ciam cultos e práticas não-cnstas,
J
31
30
t~c Explorations in
cipalmente
Arf,
compensatória,
1952). Mesmo em Jung a regressão
é um reculer pour mieux sauter.
é prin- II 111
1
ções fortes, a fantasia de novidade absoluta em que se pode
que se quiser do que se quiser, a paixão repentina, a doença in~e-
I 11
Em Maslow, Erikson, Piaget,Gesell, assim como na psicologia I • depressão aguda. A criança é evocada também quando somos
do ego freudiana, se o desenvolvimento não se dá estágio após estágio, 11 do em situações em que a imaginação é solicitada e para as quais
de acordo com certas rotas bem pesquisadas, diz-se que se adquiriu no sentimos preparados: a resposta é então petulância, teimosia,
uma fixação na "infância" e que se exibe comportamento regressivo e I quação, lágrimas. .
que se tem atitudes pueris e infantis. A cada passo que se dá para
Mas a condição regressiva que ninguém deseja, pode, na psi-
diante, "realidade" adentro, a sombra' ameaçadora da criança se faz
II I pia, ser aceita e até estimulada. A situação psicoterápica fornece
presente - hedonistica ou mística, isto dependendo de como encarar-
111I11 ue um céu aberto ara uem está num sc "; é um Ju~
mos a reversão à primordialidade. Procuramos agradar a essa criançai
I {)que se escondia,ge)ndesejável de desamad9, de feio, pode ser.
co~ sentimental.is~os, co~ .superstições, ~om expressões de gosto) I do, e onde há lugar para im~n_sas ~s~raM.as .. Todas essas ocor-
duvidoso, com férias permissivas, com regahas, e com psicoterapia-
I I " sentimentais receberam as correspondentes denominações
q~e deve sua existência e ganha sua vida com o apelo regressivo da
cnança. I' uológicas: desejos infantis, fantasias autodestrutivas, pretensões de
1111 Pllt ncia, impulsos arcaicql. Mas o ridículo desses nomes não deve
. Nosso modelo de maturidade tende a fazer atraente a regressão. I I I que esqueçamos - e todos nós somos terapeutas da psique, já ,
A distância, idealizamos o estado angelical da infância e sua cria ti- 111 lisa devoção não pode pertencer a uma profissão só - que estas Lf..-\
vidade. A criança abandonada é colocada na arcádia, entregue ao , "",lIrt1es patológicas infantis sempre contêm futuridad,t O caminho 1 .
~ar, embalada, balançada suavemente ao nível da água, em meio a I 1que conduz através de uma condição assim tão indesejável, feia e ~
Juncos e caniços, alimentada por ninfas que se deleitam com seus 11 urdamente expectante é a própria condição em si. A patologia é
c~prichos, .ou deixada com pastores, guardiães velhos e gentis, que I m a futuridade, A rce o está con . .J) movimentá
dao boas-vindas ao pueril, ao regredido. Nesse ponto, claro, começa 1111I 'Q a partir dela.
de novo um contramovimento; constei a-se o herói; o grande salto Poderemos encontrar a crian a no interior da atolo i se
para a frente da criança abandonada, a drenagem do lago de Zuyder, l zcs de identificar um determin do i
com a qual Freud comparou o trabalho psicanalítico (NIL, pág. 106). . . '. ba donado, Para algumas é "socorro, por
A criança constitui sem dúvida ª
mai.QL.ll.Ql:ção dos cODteÚc!os vor me ajudem!"; outras dizem: "aceitem-me do jeito que sou,
11 m-rne integralmente, sem julgamentos, sem perguntas"; ou
reprimidos. daí ser a reyolucão contemporânea em fayor do oprimido
- O negro, o pobre, a mulher, o natural, o subdesenvolvido _ ~ " 'Item-me, mas não esperem que eu faça alguma coisa por mim".
revolução da criança, inevitavelmente. As suas formulações são 11 li outra forma: "Dê-me apoio", ou "não vá embora, não me
imaturas, com um toque patético; o comportamento, regredido, e a I nunca!". Ou simplesmente o conteúdo abandonado se expressa
ambição invencível e vulnerável ao mesmo tempo. Também o her- 1'11I: •• Ame-me". Ou podemos ouvir: "Oriente-me, diga-me o que
rnafr oditisrno do arquétipo tem seu papel na revolução, assim como a I 111 r c como". Ou "leve-me, guarde-me". Ou o grito das profun- ./
estranha mistura de começo e fim: esperança, mas sob forma de des- 1 II~: "Deixe-me só, inteiramente só; apenas me deixe em paz". ,/
truição apocalíptica. Nosso tema chega assim às relações entre a .m geral é na condição receptiva de bebê que se dá expressão ao
psicologia e a época contemporânea em duelo com a criança; isto IlplI básico- de choro, situação essa em que o sujeito é um objeto, um
sugere que seria benéfico refletirmos sobre as propostas de.Marcuse , " 11" nas mãos dos outros, incapaz de ação, embora enuncie de forma
Laing e Brown quanto à revolução do oprimido, à luz da psicologia umovedora que tem conhecimento de sua própria subjetividade, e
arquetípica, isto é, como expressões do culto da criança. 11" sabe como deseja ser manuseado. S a subjetiv·d.ade es.tá_no_
I huro, por meio do qual organiza sua existência. Desse modo, po-
EVOCANDO A CRIANÇA " mos identificar também no choro os apelos que a pessoa faz ao seu
111 11 transformando os circunstantes em auxiliares, amantes, com-
-I>- Conhecemos bem as situações em que a criança abandonada é I •
I' IIh -iros fiéis, prontos para pajear, prestar favores, onentar, aceitar

chamada de volta. O retorno a lugares, sons e odores familiares; todo 111 10 .cgarnente, sem jamais partir, ou o reverso disso tudo, de quem a
abaissement du niveau mental, as circunstâncias inusitadas que COllS- I ~)U foge em contínua rejeição. O choro básico dá indicacões a res-

33
peito da incapacidade da Qessoa em lidar com suas próprias neces- UC orias e as reflexões a ue induzem. É como se para mudar
~idades, ajudar-se a sí mesma ou deixar"se asi meSlIla em paz. . mos de conservar a imutabilidade - o que também implica em
I mudança pelo que é e não vinculada à idéia de desenvolvimen-
~ É importante neste..pont~sistir AIUBa eeisa: esse SRafe Rãs tem I ndência evolutiva é tornar-se "uma maneira de renunciar ao
~ cura. Está sempre presente, pois dá voz à criança abandonadª, e, li " (T. S. Eliot); querer mudar é querer descartar alguma coisa.
corilo se trata de uma necessidade ar uetíQicél, deve estar rnpre I I d o uma percepção psicológica refinada para distinguir-se, em
.·-~r.Es~n~Sábemos muito bem que há certas coisas que nunca apren- 111 1\ natureza, o que é mutável do que é imutável, para compreender a
demos, que nos obrigam a recusar e voltar a chorar. A criança aban- I ho intimamente conectados; para nã5) procurar crescimento e es=......
donada fica escondida na solidão dessas cavernas, desses lugares I li de onde não podem ser encontrados e para não presumir que a

~
.
inacessíveis onde nos sentimos oprimidos, temerosos, incapazes de
aprender, de amar, obrigados a reprimir ou a aceitar. O fato de re-1
/' gressarmos a esses lugares reafirma algo de fundamental a respeito da
natureza humana: durante a vida tendemos sempre a voltar a um es-
tado patológico irremediável, mesmo quando antes ou depois de en-
trarmos em contato com a criança, que é imutável, aparentemente
I 111 I nça descarte a.estabilidade ou gue esta..s..ejasempre mvu nerave .

I'OI.TA DA CRIANÇA

1111"
S' a criança não é reprimida pela amnésia do "segundo
~
ao quinto
como escreveu Freud, sua tendência é voltar. Inútil tentar
- //0 .
L
I

muitas mudanças ocorram. ) h "ti ná-Ia; a mão do- assassino tremerá; acorrem pastores, pes-
dores, amas; a criança adquire a condição de enjeitada e nisso está
Chegamos nesse ponto à relação psicológica entre o que a filo-
11 I vitória.
~ sofia chama de ser e devir, ou mudança e imutabilidade, o diferente e
o mesmo, e o que a psicologia por um lado chama de crescimento e volta da criança não se dá apenas nos fragmentos relembrados
~or outro de psicopatia: aquilo que por definição não pode ser rever-1 111 nela: t e..emerge o Inconsciente volta jovem. Tudo en-
tido ou alterado, mas que permanece sempre pela vida afora mais ou II num estado de loucura juvenil pois às portas dos jãfdins e dos
menos como uma constante lacuna no caráter. Ou usando a lin- 111I s da mente não é somente um censor, uma espada de fogo ou
I b ro que estão postados: ali também se encontra uma criancinha,
guagem adequada a nosso tema: a eterna vulnerabilidade da criança
abandonada e sua futuridade em desenvolvimento. \ 11 upada em imprimir em tudo o que atravessa aqueles umbrais a
11I ia de sua infância.
Em face desse dilema terminamos em geral por optar por um dos
lados e passamos a nos sentir diferentes, mudando, evoluindo, até ser- o
domínio do inconsciente é o domínio da infância, como disse
mos despedaçados de novo pela recorrência esmagadora do choro ud; não da infância concreta ou da infância da raça humana, mas
básico, que por sua vez conduz à convicção de se estar desespera- lima condição governada pelo arquétipo da criança. _Es e arqué-
damente bloqueado, paralisado, exatamente como sempre se esteve. Ilpll, coma.disse Jun u é o arauto, a prefiguração de toda mudança
'Também a história da psicoterapia registra avanços e recuos ao sabor 1" icorre profundamente dentro de "nós, Tudo readquire extrema'
,!IV ll(ude,e-que-vale-dizerqueToâa conexão com o inconsciente, para
deste aparente dilema. De tempos em tempos uma teoria degenerativa
I idcquada tem de conter em si um certo componente de inade-
(herança, constituição, ou uma idéia de predestinação) declara que
caráter é destino e que nada podemos fazer senão executar nossos I" I~' . Pois nessa condição é pouco o que podemos fazer - depeno.
\
movimentos segundo padrões pré-determinados. Outras vezes, como ,I ."ns desta criança, de seus caprichos, da atmosfera especial que ela
ocorre agora na América do Norte com a psicologia desenvolvimentis- I I, de nossas fraquezas, da maneira como ela toca nosso eros, trans-
ta humanista, a categoria do crescimento por transformação pretende 111111I indo-nos em pedófilos, amantes de criancinhas. '
cobrir todos os eventos psíquicos. . b mais: tudo o mais que foi reprimido agora vai voltar, impreg-
1\ do do estilo infantil - tanto os conteúdos pessoais esquecidos
Nem uma posição nem outra é a adequada. A criança abando-
nada, à maneira da criança metafórica do Sofista (249d) de Platão, 1111I0 s primordialmente desconhecidos. Tudo o que havia sido ex-
1'111 I) da vida diária e condenado ao ostracismo - arte, loucura,
que quando chamada a escolher opta por "ambas", é a um só tempo
aquela que nunca cresce, mantendo-se tão permanente quanto a I' , desespero, visões - retoma com a revolução, nas cores fortes
psicopatia ou a futuridade que brota da própria vulnerabilidade. O "" nf'antilidade: aquela infantilidade que de vez em quando nos digo.
complexo e as lacunas ficam; o que muda são nossas relações com es- 11I1I1I1l~ reconhecer em indivíduos criativos.

34 3S
o elemento infantil que retoma como sombra pessoal merece 111I dus do não-real)
separada de uma categoria tão indefinida
melhor tratamento do que apenas o dispensado pela escola freudiana. 111 11 o inconsciente. Nessa hipótese, ficaríamos em condições
_Jung preconizou para o tratamento da infantilidade, da psico ato- I rvoráveis para proceder à libertação da "infância" como
togia, a nível arquetlpico, o metoâo âe "continuar sonhando o mito" I , imaginal de perceber e sentir, de sua identificação com a in-
.•(CW 9, I, § 2, 1), el]{ar ar sua natureza ros ectíva. o se r ai, que normalmente detém menos liberdade e alegria, menos
ermite ue o racesso de correção passe às mãos da crian a ela li' I e mágica, e menos amoralidade do que lhe atribui nosso sen-
. lt n amente assa a exercer uma de suas fun õe a[g_QeÜ~a 1111 ntullsmo. Nosso culto da infância é uma contrafacção sentimental
futuridade. O material reprimido que retoma aponta para uma~i- um« sincera homenagem ao imagina/o Se a infância pudesse ser
reção: para frente; sua volta integra o tratamento bíblico da psico- li 1111 d por seu verdadeiro nome - o reino da reminiscência ar-
111'Itl ·u - não precisaríamos penetrar no inconsciente para encon-
patologia: " ... e uma criancinha o guiará" (Isaías, 11:6).
Sendo assim, quem dá as indicações para o futuro é o que estava
"I \I mito. Confundimos psicologicamente
II " 11 -onscíente" com a "volta" da reminiscência.
a emergência de dados
reprimido: a criança, junto com tudo o que traz consigo. O caminho
para frente é com toda certeza o caminho para trás. Só que é muito psicologia tem considerado a cria9ça reprimida como uma
. difícil perceber discriminadamente as emoções que acompanham a axiomática da estrutura psíquica/ A psicologia presume que
I I 101'9
criança, principalmente porque não é somente a criança que volta. 'I I IImido é menos desenvolvido do que o repressor, que a consciên-
, topograficamente, historicamente e moralmente superior ao in-
Junto com era vem o pai recentemente descoberto, uma figura I . nte, este caracterizado por impulsos primitivos, amorais e in-
masculina forte, voluntariosa, argumentativa e sagaz, mas de uma
violência cujos ataques cegos fundem-se em dolorosos acessos de ira,
I li' IA noção que mantemos de consciência necessita inerentemente
I" ,,,,,,(',<;500 da criança. Isto constela nosso medo básico: a volta da
tornando-se
aborrecimento.
indistinguível sua taciturna melancolia de um discreto
Criança e figura protetora estão juntas mas lutam por
","1 I; de inferioridade representada pela criança, e com ela a volta
II I 11da reminiscência arquetípica. Assim como a concebemos na
se separarem: alternam-se gestos e expressões faciais, pede-se ajuda til I lude, a fantasia é a atividade mais ameaçadora da alma humana,
mas se resiste à mesma, choram-se lágrimas amargas porém relutan- "I 1\ tradição racionalista ocidental colocou esta atividade no plano
tes, travadas, engolidas até o extravazamento num cataclismo de 111111 10 icamente inferior, no reino primitivo e amoral da infância
soluços. li" I tu. (Cf. Bundy, 1927).

Por vezes a menina volta como moleca de rua, suja, ou como ssim, uma restauração do mítico, do imaginal e do arquetípico
caipirinha estouvada, simplória, meio masculina, calejada pela longa 111I1'1 ., num colapso, numa queda no reino infantil da criança. Nossa
negligência e pela tutela do animus, quase uma menina-lobo, toda , I Iosa consciência eg0'T,ntrada nada teme mais do que exatamente
desajeitada, a dizer "deixe-me em paz" e mesmo assim voltando. 11\ '(11 pso desta ordem!.? pior insulto é ser chamado de "pueril",
'li' uull" ou "imaturo 'I Por isso tomamos toda sorte de medidas
Em relação ao menino o padrão é similar: não é fácil separá-lo
das amas-de-leite, das ninfas e das irmãs que lhe prestaram socorro I' I I 110. defendermos a nós próprios contra a criança - e contra a
durante o período de repressão. A delicadeza, a vaidade, o espírito I 11111 Ia arquetípica. E pretendemos que essas defesas caracterizem
reivindicador que traz consigo, sua passividade e vulnerabilidade, suas "I" Il forte, maduro e desenvolvido.
...--------
exigências egoístas de pajeamento, tudo isso se parece muito com o que II"lbora a consciência do ego possua defesas, ou mesmo que seja
em psicologia é chamado de estados de anima. I 111 srna essas defesas, a criança é a própria indefensabilidade. Sua
I I deira natureza é feita de rejeição, vulnerabilidade, abandono.
Implícita na volta da criança está a infância. Infância de dois
li principal defesa é a inocência. Sem muros protetores, perdida na
tipos: a real com suas recordações e a imaginária com suas reminis-
cências. Decidimos chamar este fator mnéstico, com suas duas mo- ti,,, 111 u boiando nas águas nUIJl frágil cestinho, prefere ser pro-
dalidades de memórias, de "inconsciente" pessoal e coletivo. Acon- III por sua própria desproteçã«- Seu estilo de defesa, sua paranóia,
tece que este termo "o inconsciente" só aumenta a dificuldade de dis- I uncência: "Não sei" "nem imagino", "não entendo nada",
cernir os fatos com clareza, pois traz à cena toda a complexidade da IlIIpl ismente aconteceu'~ O mundo é uma casualidade sistemática,
vida psíquica. Talvez fosse mais útil deixar a criança (como fator I I VII; tudo se liga pifr impressionante sincronicidade; tudo re-
reminiscente que faz a pessoa voltar às subestruturas primordialmente Ii 111 I o criança, aponta para ela, mantendo-a viva e em posição de

36 37
/(í
importância central, mesmo quando ela não faz nada, não quer nada,
não sabe de nada. I houve }quem observasse uma certa similaridade de metáfora
u e!lte~ de Aristóteles, a mônada de Leibnitz e o Self de
A criança traz consigo o lado sombrio que mais tememos e pri- 1111I , \:újãTmagem primária é a criança. Enteléquia, mônada e Self
mordialmente reprimimos: a reminiscência fantástica chamada In 'Idem na fantasia de independência: a enteléquia auto-substancial
loucura. É o medo de que ela assuma o controle que comanda nossa ti" urso de sua atualização e a mônada fechada sobre si mesma são
profunda amnésia. Daí esquecermos uma verdade psicológica eviden- I tl IIS recapituladas no Self junguiano, cuja individuação procede a
. te:a ansiedade desvela a sombra mais profunda. A psicologia moder- II r das tensões dos opostos, como uma árvore. Jung compara a
na não percebe a presença da criança na sombra, prefere concentrar I1 1I~1l com a árvore (CW15,§122):..I'Se descrevermos a mandala
sua atenção nos aspectos agressivos e de ofensa moral contidos no 1111111 um corte transversal do Self, pogeremos dizer que a árvore é um
J lado sombrio. É que agressividade pode ser algo valioso e ofensa I 1111 do mesmo, é o desenho do Self como processo de crescimen-
moral pode ter seu apelo; não são coisas tão amedrontadoras e ver- I"" ({'W, 13 § 304).;
gonhosas como a criança. O interesse junguiano na figura do diabo e
no lado sombrio da imagem de Deus encobriu nossa ansiedade, pos- ~ um símbolo muito apreciado em psicologia profunda
sibilitando que negligenciássemos o lado sombrio do Bambino, o t rsta lembrar o teste da árvore, a análise de imagens de árvores em
outro infans noster, que foi a primeira sombra que emergiu das an- 1IIIIIII't\S e desenhos de pacientes e as tentativas de captar a perso-
siedades da análise clássica. O poder dominador que contamina o 11 11 lude do pintor a partir das árvores que aparecem em suas obras. A
imaginal com o impulsivo é uma criança monstruosa que durante I IIf presta-se bem à nossa noção de desenvolvimento da perso-
séculos ficou abandonada. 11 I dude e surge de fato espontaneamente como metáfora da imper-
I I v I expansão a partir da semente até o organismo completo, con-
Assim, quando se ergue o grito de "l'imagination ou pouvoir!" I 11I10 em sua estrutura sua história, com os registros dos anos secos e
(rebelião na Sorbonne, em 1968) não deveríamos ficar atônitos pelo 111 'huvosos, das florações e das doenças; a mesma metáfora sugere
fato de um monstro ter sido posto em liberdade, de a revolução ter-se 111I11 raízes ancestrais, movimento vertical entre o céu e a terra,
transformado em puerilidade absurda, obscena, escatológica, poli- Ihlls, frutos na estação apropriada, poda. São metáforas essenciais
morficamente perversa. Reivindicar a entrega do poder à imaginação I' 111 situarmos nossas vidas e alimentarmos a sensação de que além de
é reivindicá-Ia para a criança, porque a consciência ocidental em suas 11I111I Iguma coisa carrega minha vida num processo natural: minha ár-
extravagâncias unilaterais de vontade e racionalidade às custas da 111 da vida, única e exclusivamente minha.
memória, deixou o mundus imaginalis relegado para as crianças. -----'
i~também tarefa da psicologia impedir que o inconsciente se torne
A FANTASIA DE INDEPENDÊNCIA 1II oneiro de suas próprias imagens favoritas, para tanto cuidando de
trar outros sentidos adicionais para estas metáforas. Cabe à psi-
"Criança" , escreve Jung em seu ensaio sobre este arquétipo, 1110 Ia trazer a reflexão arquetípica para o interior de seus próprios sis-
"quer dizer: aquilo que evolui para a independência". Com esta frase I 11I 1 • idéias e imagens, de modo a poder, em contraste com outras dis-
Jung capta toda a extensão do problema, de vez que a criança não vol- 11'1 lUIS, aplicar-se a si mesma, detectando as sombras contidas no bojo
ta só regressivamente, carregando a pessoa para o reino imaginal da ,I 11 IS afirmações.
infância; ela também está presente no esforço infantil para obter in- uanto à árvore, seu estilo de independência pode dominar de tal
dependência.pung chamou a atenção e Neumann elaborou a questão "11111 nossa atenç~e chegamos a esquecer que estamos sendo
do abandonado como pré-condição para a independência e para a in- 11t' tidos por elá~somos árvores, mas homens; não vegetais,
vencibilidade da criança-que-se-torna-herói. / 111I mimais: não plantados e enraizados, mas a h lantes; não so-
"Criança quer dizer: aquilo que evolui para a independência", 111 111' cíclicos em nossos ritmos, mas multifásico~, com muitos
diz Jung, e continua: ",Isto ela não pode fazer sem afastar-se de suas 1'1 m ssos tendo lugar simultaneamente, em ntmos iferentes e com
.origens; por isso o abandono é uma condição necessária, não apenas dlll It ntcs propósitos, e não necessariamente seguindo uma enteléquia
um sintoma concomitante" (CW 9, I, § 287). A criança é abandonada 111111I1. e por um lado a fantasia da árvore estabelece uma indepen-
para revelar sua independência. Ao lado dos sentimentos de isolamen- I IH lu do Self em relação ao ego, ao mesmo tempo estabelece a in-
lO e rejeição ergue-se uma fantasia de independência. I I' ndência do Self em relação a outros Selves. A fantasia enfatiza a
1''''(/('00, de modo que esquecemos que separação independente e
38
39
I pOS de emoções que se revelam e se evocam mutuamente. Em-
!ndiv~duação não são sinônimos e nem sequer estão necessariamente
interligadas. iriança possa ser abandonada, ela nunca se apresenta sozinha,
I 11 o representa um Self solitário e sim uma condição psíquica de
A fantasia de independência surge de novo na obra de Jung "Sete I'" lida. vendo-se sempre rodeada por animais, babás ou pais
Sermões aos Mortos" (1916), quando o narrador fala no Sermão IV 1IIIIvIlR que lhe dispensam cuidados. Pode crescer, como diz Jung,
de dois diabos-deuses: O-Que-Arde e O-Que-Cresc~. O primeiro é I" I independência, sendo assim latentemente heróica, como a ár-
Eros e o segundo a Arvore da Vida; o primeiro "promove a união dos li' , lima singularidade pré-determinada na semente; é porém essen-
pares, o segundo preenche o espaço com formas corporais crescendo I 111I nte dependente. Na árvore o fato decisivo é que ela é enraizada
com 'aume~~o vagaroso e constante' ". "Em sua condição divina", diz 11I 11 destino e cresce a partir dele mima progressão ininterrupta,
o narrador, colocam vida e amor em oposição" . 11I J gressão possível. Já a criança é regressão, nada pode fazer
, 11\ ; precisa ser protegida, saciada, guardada.
Vida e .amor situam-se em oposição quando é a árvore que re-
presenta a Vida (CW 13, § 459), crescendo sozinha; seu habitat, como Por isso é que quando nos demoramos na fantasia de indepen-
e~creveu J ung (C?W 13, § 406) é uma montanha ou uma ilha, ou cresce I 11 . 1\ secretamente estamos cultivando uma fantasia de dependência
diretamente da agua do mar, ou sobre uma rocha, ou ir rompe de uma 1" pr jet~ a independência como objetivo para o qual estaríamos
parte do corpo humano, cabeça ou barriga (CW 12, figs. 131, 135). ululndolAlém disso, quando nutrimos a fantasia de independência,
Desenh?s ~e árv<:>resfeitos por pacientes mostram o mesmo tipo de in- I p ndência se nos assemelha algo incomensurável, um oposto con-
dependência das Imagens alquímicas descritas por Jung. " dltório que deve ser deixado de lado; com isto, a criança é sempre
h IIl1 nada, o que vem a constelar um Ardente cada vez mais forte e
Evidentemente o crescimento silencioso e constante da árvore, 111I1 U pendência compulsiva de Ero~Talvez devamos, para poder
r~p~esen.tando. ~ ~ersonalidade em individuação (CW 13, § 350), in- Ir deste círculo, abandonar a árvore da independência com nosso
dividualizada ja tn nuce dada a sua particular "natureza" robusta 11111 I I de Self, e examinar outras metáforas possíveis da dependê
m~morável, única, é um processo de independência. A ãrvore é ~ I Por exemplo, poderíamos imaginar a independência como am-
criança, nela o abandono se transformou em semente separada. 111 \ °
das áreas de dependência, um aumento da sensibilidade às
11 I sidades de ajuda do outro, um reconhecer-se numa floresta de
Note-se que esta árvore não participa de uma comunidade ve-
IlIIlIp nheiros em participação simbiótica, com troca e fertilização
getal, não faz parte de um arvoredo, aléia, pomar ou floresta. Não é
possível. da árvore deduzir a floresta, e exceto em casos de árvores
'"1 Ida, onde vida e amor não são necessariamente opostos.
como FIi~mon e Baucis, unidas por seu "amor vegetal" e por inter-
venção rniraculosa, a árvore em sua independência apresenta um cres- , -1NTASIA DO CRESCIMENTO
cimento em cUJo. contexto vid~ e amor são opostos. É talvez possível
~av?r.ecer o crescimento numa Ilha ou numa montanha, produzindo-se () único conceito capaz de unir no presente todas as diferentes es-
IlldlVlduaç~~.a partir de cabeças ou barrigas, ou diretamente a partir ,,11 sicoterá icas é o da fantasia de crescimento. Carl Rogers
do ~a.r psicóide de nossa emocíonalidade por concentração do fator "I" ., as seguintes frases num capítulo em que descreve o que um
subjetivo; nesse caso, porém, isto se dará às expensas do outro diabo- 0'
I I irapeuta acha de uma vida considerada satisfatória: " ... uma
deus Eros, que se transforma no Ardente, febril por estabelecer con- . nte abertura para a experiência", "crescente confiança em seu
tato .com o que está isolado e com o que deve ser isolado pela ver- " rulsmo", "um processo mais integral de funcionamento", "maior
da~elra metáfora, a interdependência de conexão inerente à sua fan- 111111 111 vital". Erik Erikson, em um capítulo chamado "Crescimento
tasia. I 'S da Personalidade Sadia" descreve a saúde psíquica numa lin-
,....---: 11 111 similar - "um crescente sentido de unidade interior, com
. Criança e árvore associam-se em mitologemas onde aparecem 1111I 11'0 da capacidade de julgamento e da capacidade de fazer bem
~untas: a cnança na árvore, nascida de uma árvore, escondida numa I ulsns ... ". .
arvore, morta por uma árvore; o material mítico é colocado na árvore
conferindo-.lhe com ist? um significado maternal. Mas também po~ Kuren Horney, em seu recente e importante livro Neurose e Cres-
demos considerar os dois elementos como um par de opostos radicais: ,'m ,,10 Humano (Londres, 1951), fala do trabalho psicoterápico
independência solitária e dependência simbiótica - duas fantasias, I '"0 .apaz de dar às "forças construtivas do verdadeiro self uma

40 41
chance de crescer" (pág. 348). A autenticidade da vida psíquica re-
pousaria numa "moral de evolução", uma convicção de que "há for- I 1" sozinha não é adequada à complexidade de nossas alma~.
I pl 'U
ças revolucionárias construtivas inerentes ao homem, que o compelem I 11Ido mais a infantilidade
não pode se manter às custas da fantasia
a realizar suas potencialidades" (pág. 15). I ,dmento, pois esta abandona a criança às voltas com uma
11II Iuborada noção deste mesmo crescimento.
Mas estes são apenas 3 exemplos selecionados. A fantasia de cres-
( 'r cscimento,
como evolução e desenvolvimento, ou como qual-
cimento: tudo o que agora é, pode vir a ser outra coisa, por um
111 • '"11dos termos tão prenhes de signific,ado com os quais op,e~a a
processo "natural" de transformação pelo crescimento, segundo o
I liIIloRla - inconsciente, alma, Self.- e uma pala~r.a simbólica,
desenvolvimento "natural" de padrões 'inatos básicos. A persona-
1111I unalrnente carregada, mais evocatíva do que descritiva, em geral
lidade não é concebida em pecado original mas em saúde e integridade
II I x rtativa do que particularmente precisa. Confundimos a
a priori. Apenas temos de nos conformar com o plano fundamental de
1 til Ia geral movimento com uma de suas variedades, o crescimen-
nosso ser individual e crescer a partir dele. Doença, perversão, in-
sanidade, maldade - são excrescências, fenômenos secundários,
lacunas ou fixações acontecidas no decorrer do processo de cresci-)
tllI .
t tal forma que todos os movimentos e alterações são conside-
provas do crescimento. Chamamos de "crescimento. " o que e'
11 111 le o; até os sofrimentos e perdas aceitamos como parte inte-
mento, este sim primário. O realismo cauteloso que Jung mantinha,
, 1111.' do processo de crescimento. Somos aconselhados, ou melhor
procurando reconhecer "0 lado sombrio em todos os fatos da vida
111 IId ,espera-se de nós que não paremos nunca de crescer, seja em
humana, inclusive no fenômeno da totalidade, e também o pessimis-
111 llrccão for. Pois qualquer que seja, conduz diretamente a um
mo de Freud, refletido em sua hipótese de thanatos, ambos .foram I IItI .
soterrados pela avalanche do entusiasmo terapêutico - nada mais que
a recrudescência duma esperança messiânica que já não encontra I' rcebemos a converg~de numerosos conceitos nessa idéia
lugar na religião. A psicologia não percebe que suas construções e in- I " f 11 .a de cresciment~escimento em tamanho,~xpan-
terpretações se transformaram em expressões dogmáticas de uma fan- 11) ) e olução na fOJ~ e na função (ou diferenciaçãoj; 3) ogres-
tasia, não sendo capaz, por isso mesmo, de nessas condições refletir a u mora (ou melhora~ conjunção de parte~...( síntes'e); 5 etapas
psique real, nutrir esperanças, acompanhar o crescimento, seja na- li' li .cssão temporal (ou amadurecimento) 6) utogeraç o negen-
tural, seja total. u plvu (ou espontaneidade). Estes dois últim . precisam ~e uma ex-
1'11 ,~ o adicional: de acordo com a fantasia de crescimento, o
Surpreendentemente, a psicologia volta-se para a criança na es- 1" III sso de maturação acontece de maneira racional e espontânea -
perança de entender o adulto, ora censurando o adulto por não se
" 11 casual - por uma virtude essencial da criança. Esta virtude é o
conservar suficientemente criança, ora por guardar ainda muitos ves- r .imento, sua atividade se manifesta no ato mesmo de crescer, faz
tígios da criança na idade adulta. O pensamento da psicoterapia e da
I " do "instinto" da criança, de sua "natureza criadora", de seu
psicotogia da personalidade foi tomado pelo arquétipo da criança e "11I. reão" e não de sua "cabeça", ou intelecto, que é posterior e ad-
pela fantasia de seu crescimento. O pensamento psicológico é deli-
beradamente infantil. Alimenta a fantasia de expansão criativa, am-
""Ir ld ,e não tão profundo.
pliação, engrandecimento, tão essencial para o temperamento român- E es conceitos que se imbricam fazem parte daquilo que G.eorges
tico, segundo Georges Poulet. É difícil conciliar essa fantasia com o 1111 I em seu ensaio crítico magistral, descreveu sob a denominação
sentimento de declínio de nossa civilização, com o estreitamento de ti li' ulto da Infância", título que significa nada menos qu.e vene-
perspectiva que a especialização produz, com as impressões de li- I ~ o do arquétipo da criança em nossa moderna cultu~a ?cl~e~tal.
mitação e decadência. A fantasia de crescimento que a psicologia en- I 111 disso, cabe acrescentar, a~s seis aspectos que tent.el dlscn,";1mar
tretém parece um curioso remanescente do fascínio que o desenvol- 111 IlInlasia de crescimento a idéia im lícita de ue cres I .
vimento provocava na típica mentalidade colonial do início do século Parar de crescer seria ficar fixado blQQueadO nemÓíJCO
XX: quanto maior, melhor. .•••..oIIIMIIMç.l4·o.ll.n
••.
ta~ que a idéia de decadência, integrante de model~s me~os
111 IIUOS de crescimento, aparentemente é esquecida pela pSlcolo~la.
/ /' Não é à-toa que às vezes lamentamos o que fizemos com a psi- (I que aparece aqui como simplificação minha apenas reflete as sim-
/ / cologia; às vezes não conseguimos tolerar uma explicação psicológica 11 1I 'ações das teorias psicológicas.
de tão simplista, ingênua e otimista. Em certos momentos percebemos
a criança falando em nosso discurso psicológico, mas essa perspectiva Mas se a idéia de crescimento fosse desvinculada da criança, a
lruplificação seria bem menor. A psicologia poderia adotar uma
42
43
análise mais sofisticada do crescimento, em termos de~ tJ l nte a tudo isso encon~mos o fator "natureza", o deter-
.l.or~a, nos te~mos apresentados por L. L. White e Adolf Portmann I 11" I' ge o crescimentqz'Colocando esta fantasia em termos
aqui ,nas reuniões de Eranos. .De forma que seria possível pensar o I I 111 lu arquetlpica teríamos: o arquét.ipo da criança enquanto
resclmento não tanto como aumento e esenvo vlmen o mear e mal "'1,~IIIICllltll, • O da sua mãe, a nature~, dominam a mais importante
<como alterações ~m pa roes e slgni]iCãllõ"'eimaginação, A precisãõ _'u•••• ·'1 v I psicológica do ser humay. A idéia de natureza só acres-
de contorno ,das Imagens corresponde aos aspectos vazios, não for- I I' I tio à imprecisão, por ser uma idéia demasiado rica, variada
mados da 'psique, As lacunas e vazios (inc.reatum) da psique são os t llcu, a ponto de se poder discriminar mais de sessenta co-
seus negativos - na morfologia goetheana muitas das áreas vazias em ".tll.~,nC'~ di f .rcntes em seu bojo. Seria necessária talvez uma série de
padrões específicos determinam as características específicas das for- I 11 i IS, ou mesmo várias, dedicada apenas a esse tema tão com-
ma~ emergentes. O significado psicológico tem origem nesses "ne- 111 ibrange a saúde, a natureza e o crescimento; para minha
ga~lvo~".' nessas áreas sem sentido de nosso sofrimento. O significado , I nho apenas a tarefa de fazer algumas considerações sobre a
psicológico tem a v7r ~o~ 'psicopatologia; encontramos significado ""11 •• ,111 11 ida à criança.
quando a absurda e insignificante insensatez de nossos complexos as-
sume fO,rmas alteradas. As mudanças ocorrem nas formas. O conceito'
, IN('A ESTÁTICA
de totah~ade iria então implicar não tanto em integração das partes \
n~m~ ~llldade, como na ingênua fantasia do crescimento, e mais na
( discriminação de padrões e na sua mutabilidade. .
, ~ Devemos esc1~recer que não censuramos a Biologia pela metáfora
mgenu~ do crescimento. As origens desta são anteriores ao seu
~pareCIr~e~,to, ~a Biologia. Conceitos do tipo "infância da raça",
e~oluçao : , a ontogenía repete a filogenia" indicam que esta fan-
t~sla a~quetlplc,a ja estava presente na formação das idéias básicas da
BIOlogia, da Lingüística e ,da Antropologia do século XIX (grande
parte d? ~~aba~ho de p~sqUlsa dos padrões arquetípicos na formação
des~as idéias ainda esta por fazer), Em psicologia lança-se mão com
~Ulta desenv,oltura da linguagem naturalista para a descrição de
Imagens relativas ao crescimento. Froebel, falando da educação, ar-
gumenta com o despertar das flores, com a tendência dos patos de se
umgirern 'para a água e das galinhas em ciscar em determinados lu-
gares. Enkson tem uma concepção de crescimento psicológico ba-
~~ado em, ~o~;los de "crescimento do organismo" a partir de um
plano básico . Gesell compara o crescimento da mente com o das
plantas; Koffka deu ao seu principal trabalho em psicologia da Gestalt
(o qu~ vem dar ênfase maior ao conceito de totalidade) o título de "O
~res,cI~e~to da Mente". Piaget acha que se pode dar melhor conta da
I~t:h~encla se usarmos uma metáfora do desenvolvimento: a inte-
ligência obedeceria às leis inerentes da maturação, produzindo pro-
gressl~amente ,e~tados mais estáveis de adaptação; o curso se dá
atr~ves de estagíos cada vez menores que duram períodos cada vez
malO,~es, c~da estágio e período lançando os fundamentos dos seguin-
tes. A .genese e Simplesmente uma transição de uma estrutura a
out~a, nada mais; essa transição, porém, leva sempre de uma estrutura
'mais fraca' para outra 'mais forte', .. " (Piaget Estruturalismo pá g
141). " .

44 4S
não possuímos imagens correspondentes de uma Atenas-menina, de 1111111 I 'li permanecem sempre como qu~stões abertas. OS,a P..riori
uma Afrodite-menina, de uma Hera ou de uma Oemeter-menina. I I, 11, linguagem, da religião e da s~cIedade não são faceI~, de
mas não apenas por estarem enterr~~os no passado -
1111 1(1',
Se nos ativermos a essa idéia da criança que não cresce, chega-
remos a que seu abandono e sua necessidade de resgate são estados 11 orr é que nesses domínios .é ~~e o espínto hu~ano se ma-
III

contínuos, necessidades estáticas que não evoluem para a independên- l/ I , mpregnando-os com seus ,m~sten?s. ~ .são os enigmasdo es-
11111 1111111 mo que suscitam a dUVIda.filosófica - e a ansiedade
cia, que não evoluem mesmo de maneira alguma, mas que integram,
como contingências, a personalidade amadurecida e plena. . I 1111" l I. O problema não fica resolvido quando supomos ser pos-
11 montar às origens desses fenômenos procura~do as f(:m~es;Isto
Picasso diz a esse respeito: "Mudança não quer dizer desenvol- 111 111 I inda mais a ansiedade. A fantasia de origens obJetIva~ ~s-
vimento". "Quando ouço pessoas falarem sobre o desenvolvimento I I 1111 a fonte última é o fator subjetivo, o enigma do espmto
do artista, para mim é como se estivessem vendo o artista colocado I 1111,
entre dois espelhos opostos a refletirem indefinidamente sua imagem,
considerando as imagens de um espelho como seu passado, as do pr xiso que se esteja numa fantasia d: crescim~nto ou de
outro como seu futuro, enquanto o próprio artista, por suposição, es- o para se adotar a perspectiva reducion.Ista, cammh~ndo do
11111\
taria no presente. Não se dão conta que todas as imagens são as mes- 111 para o passado edo complexo para o simples. Convem lem-
mas, só que em níveis diferentes". "Fico espantado de ver como as I nnnbém que esse processo mental de reduclO~llsmopar~ce tornar-

pessoas usam mal a palavra desenvolvimento; eu não me deselll::9lvo, lu v z menos exigente, à medida em que vai se apr~xlman~o de
eu sou". ----- ~ 11 IIhl tlvo: a explicação em termos de origens. A fantasia de ~ngens
111 muito a simplicidade do arquétipo da criança, em, q~e SImples
~nalmente, sobre o abandono, diz Picasso: "Nada pode ser IIIII! I único - dar-se por satisfeito com uma resposta un~caou c~m
( cri?dQ sem .solid~o. Fabriquei para .mim mesmo uma solidão que nin- 11111 lunte única para múltiplas complexidades; e em que SImples sig-
m ode Imagm ".t a uções mmhas). '_ 111111 , também louco - a loucura da mente débil e do pensamento
c ,111
AFANTASIADASORIGENS I ~ ~ ~
ducionismo satisfaz-se muito facilmente. O fato de conten-
() I

A criança reprimida tem um butro caminho de volta nas fantasias I com explicações ingênuas para proble~as com~le~os - por
. relativas às origens, fantasias essas que parecem afetar particularmen- mnlo sua pouco sofisticad~ noção de c~usah~ade -I~dl.ca que u~
e aqueles cuja autodisciplina exide uma purgação da subjetividade em I 11 ubjetivo está influenciando a raclOnahdad~ objetiva d~ hl
favor de uma racionalidade obj9'tiva. A tradição científica preocupa- I . Não deveríamos deixar passar sem comenta~os ~~a a.tItude
~ e muito com o "começo", c1! Ursprungsgeschichte, Urtext e Ur- II() ica tão estranha. A sofistica~ão e !llesmo a inteligência das
wort, com Quellenjorschung. Buscam-se origens nas raízes, em "I acadêmicas vão se retraindo a medida em que abandonam a
elementos, em fontes. A fantasia das origens ocorre na Psicologia, de 111111 idade imediata e presente de um problema na busc~ d~ s.uas
forma elaborada, na "horda primitiva" imaginada por Freud, e na I 11 remotas. Sua fantasia revela como, em sua busca de pnncipros .•
cena primitiva do "trauma do nascimento" de Rank - para men- 11 1\ rm sendo guiados pelo arquétipo da criança. P~ece que a
cionar apenas as imagens mais óbvias. Mas a insistência da psiquiatria 1111 em que se movem o con eci o para.o desconhecl?o v~~ per-
contemporânea em afirmar que- os distúrbios neuróticos decorrem " '11 o discernimento, suas evidências vão ~Ica~d.orarefeitas, J~ não
fundamentalmente da privação de cuidados maternos nos primeiros I , bem ahipótesecomoverdadeiramente~lpotetIca: umasuposl~ão,
anos (Bowlby), apesar do caráter objetivo das pesquisas empreendidas 'I -onjectura sobre o desconhecido que Jaz por tras do conhecido,
em apoio dessa teoria e da linguagem pouco imaginativa com que são I dão conta que se moveram de um nível de discussão para outro,
apresentadas, termina sendo tambémuma fantasia de origens, envol-- , ,,',,' I fantasia desempenha um papel mais decisivo. E assim se to~nam
vendo bebês, seios, modelos maternos etc .. 1111I1111 criança descrita em Platão (Rep., 3780), qg.e "não pode dIscer-
11 11 qu é alegórico do que é literal" .
É uma dificuldade com que se esbarra sempre que se lida com as
profundezas da natureza humana - como o fazem as disciplinas es- pesquisa cessa quando se formula uma fantasia de u',ll "co-
peculativas acadêmicas (Geisteswissenschajten) - porque essas 11I ~II" dentro de uma hipótese de origens, quando uma alegoria pode

46
í~< Qr'?l~ ~~.
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47

~ ~:1~.
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ser apresentada como uma realidade literal. Quando o fator dorninan- O fator lúcido é desconsiderado, como se a imaginação
111 IIltI
te de um "começo" preside a pesquisa, a origem que se procura na I1 merecer o statusde fator criativo atribuído às artes, às
verdad~ é o »rqué~ipo ~a ~riança, e a motivação do ~ra~alho ~ a crian- I 1111 I cadêmicas, ao trabalho. As propostas mais recentes de
ça perdidazêob a influência deste arquetipo a pesquisa e em SI mesma, I 11 Illt xemplificam bem a questão. Sua teoria do jogo, fruto de
psicologicamente, uma alegoria: a busca de uma infância imaginária, 11111011 udo devotamento à Psiquiatria Infantil, amplia-se em
da humanidade, da linguagem, da neurose supostamente encravada 111 I 'psi ologia da criatividade ~ cujo substrato arquetípico é a
em uma condição anterior, de povos primitivos, mitos, escavações ar-
queológicas,estruturas mentais subconscientes, radicais silábicos. I 11 II

()uf'oque exagerado da criatividade da criança deixa na penurn-


Estas origens são imaginárias, o que nos autoriza a afirmar que se u outros aspectos: a destrutividade e agressividade da sombra,
encontram na imaginação, daí decorrendo que as origens de toda 1I l pnc o do ego, a recorrência periódica da mãe, o humor ins-
questão humana profunda, formulada com toda erudição, dentro dos 1 tllI mlrna, as limitações e a inevitável ruína causadas pelo senex
limites de uma disciplina acadêmica, encontram-se no mundus 11 tod s aspectos integrantes da descrição psicológica da cria-
imaginalis. É o que dá o substrato arquetípico ou causa formalis à I ti , . mponentes essenciais de qualquer obra.
matéria que está sendo pesquisada. Nestas condições a investigação só
se detém quando logra obter uma reconstrução fantasticamente exten- , N 1'A, IA DA FUTURIDADE
sa do "começo" " da pré-história do indivíduo ou de uma disciplina.
.SÚ se aQlaca a excitação arquetípica da es uisa quando se atinge o I' I.te ainda uma quinta fantasia relativa à criança. É uma fan-
imaginal; então a ansiedade se esgota. A criança, digamos assIIn, I
'111 também toma conta de nós sorrateiramente quando banimos
·cnegolfem-casa. ;/ II II~" da consciência. 'f da rian a fala também em 1m:,
~'UU&CIII1 I oló ica e um com onente essenc·aLdesta_tele.olo ia é a
A FANTASIA DA CRIA TI VIDA DE II"hllld .
l 111I bjetivo, do ponto de vista psicológico, é uma causa final, no
o tema geral destas conferências, criatividade, tem a ver também, 111111 ristotélico de "aquilo em razão do que". Dado que uma
em parte, com as fantasias que se constelam em torno do arquétipo da
I I nul integra sempre todo e qualquer complexo como um de seus
criança. Existem muitos conceitos de criatividade; já os examinamos e
1111 rspectos fundamentais, temos que também a criança nunca es-
agrupamos em uma conferência anterior ("Sobre a Criatividade
I ntc; sentimo-Ia em nossas esperanças. O abandono só ocorre ao.
.Psicológica" , Eranos Jahrbuch 35, 1966) de modo que é suficiente o movimento em dire ão a fantasias de objetivos. de es-

(
agora apenas mencionar a relevância deste tema.
Na literatura psicológica, um dos conceitos de criativid~de - en-
.......
, , ".IS literalizadas. Todo com lexo rojeta uma teleologia sobre si
11I: • mo irá evoluir ,~q.Jl~rQp'ósito tem compo.de ser resolvido
quanto originalidade, imaginação, eros, novidade, jogo, esponta- i .

1 neidade, ingenuidade - expressa a criança. George Boas reuniu um


bom número de citações, principalmente de críticos e de pintores, nas
quais a visão criativa e a visão da criança são identificadas. Quando
I mbérn a psicoterapia tem um telos e fala de metas numa lin-
11I que pretende proveniente "empiricamente" da psique. As-
I" se fala de síntese da personalidade, individuação, conjunção
identi ficamos o criativo com esta série de conotações suas, nossa pers-
1" 10S, Self. Possui também um conjunto de imagens elaboradas
pectiva passa a se apoiar no arquétipo da crl' nça. C0nseqüentemente,) 1 I ,mandala, árvore, criança - por sua vez igualmente resultan-
quando falamos no inconsciente como "inconsciente criativo",
I "uchados clínicos". Já as imagens espontâneas referentes à
deixamos implícito que o estamos entenden o em sua feição infantil e
111 ti; ,e sua literalização em objetivos - essas são tratadas à
que nossas simplificações de seus processos são infantis. O culto da
I • orno coisa diferente. E o telos inerente ao interior do complexo
criança Qersiste na reverência com ue nos a roximam s de uer, li lido do lado de fora, no fim da linha. E assim transferimos o
manifestação de criatividade, na admiração' ue temos elo "
1 um componente interno para uma imagem externa e pas-
mem criativo" e elo ''1m UlsOCríãiivo". I considerá-lo literalmente, colocando a futuridade no futuro.
Não é de estranhar que pesquisas psicológicas do fator criati- 'o tão ingênuo quanto tomar a causa eficiente de modo literal e
vidade cheguem freqüentemente a conclusões melancólicas; principal- II~ Ia no passado.

48 49
Predi ões sobre o futuro de um com lexo e redu ão a seu a~: 11I11lu importantes a dizer à psique, e que as mulheres do culto
sado são dua~lantasias já ~Q!"esentes no interior do mesmo. Causa "I u n o se transformavam em mães e sim em amas. À maneira
eficiente e causa final são movimentos no interior de toda comple- '"1111- Igreja, representada assim em tantos afrescos, acolhen-
xidade psíquica; dão validade à questão frente a cada problema que , 1111I11 ongregação sob seu ondulante manto azul, a Grande Mãe
surge: "de onde vem e ara onde xai?", refletindo um mito genea- I 11I11111panteão de outras formas femininas que atuam no drama
lógico e um mito escatológico. Psicologicamente, porém, passado e II
futuro funcionam agora ~O que orna necessário considerar os ob-
ãma fi uram se aradamente no motivo da crian a. São
jetivos como dínamismcê atuais, operando dentro de um complexo.
,I ntas também nos mitos. Da mesma forma Qodemos djstin-
Dele separar o telos corre e a separar caminho de meta. Inva-
II()~ a maneira de reagir à_voltfLd~Lcr'ançaJlbandQDada -
lidamos o movimento de um complexo falando literalmente de seus
(' afetos repentinos, fragilidade e saudade, demandas nar-
objetivos; isto faz abortar seu impulso teleológico, priva-o de sua
I unentações, disposição lúdica, fantasias de conquista, de
criança. ./
1 Ihllldade e de singularidade - se a criança é recebida Ia mãe ou
' / Pensar a totalidade e a individuação do Self em termos d meta 11It.
leva à suspeita de que provavelmente esses processos não estao em 111ude da mãe se caracteriza por considerar tudo uma questão
( curso~uanto mais os descrevemos literalmente, mais presos ficamos nu morte; fica-se obcecado pela preocupação de como as
na fafítasia de fururidade; quem fala é a criança, mesmo quando fica o e desenrolar, o que já aconteceu e o que virá ainda. A mãe
dificil reconhecê-Ia, abandonada que foi, numa linguagem de grande , isas "grandes", exagera, entusiasma, infunde o poder de
palavra, de sabedoria, de coisas últimas e supremas. morte em cada detalhe; isto porque a relação mãe-filho é pes-
I " \) pessoal no sentido particular e de parentesco, mas arque
SER MÃE E SER AMA nnrnte pessoal, no sentido de que o destino da criança se dá .
111ti lima m~~ pesso~ue r~cebe ent~o a denominação genérie
Quando a criança volta, por mímese, e nós retomamos à sua con- I I 1\. arqüetípo Oa mãe da ao destInO a ilusão personalístic
dição, assumindo atitudes e experimentando emoções infantis, o I \I que tá-ligade-a ela adqtríreu irresis ive Impor aneia pes-
problema de "como lidar com el~ volta também. I, 1111na verdade é genérica e inteiramente impessoal: o desejo e o
. Nesse ponto percebemos uma diferença essencial entre ser mãe e li••1111I 'Iação mãe-filho, tão intimamente pessoais, transformam-se
ser ama. As psicologias freudiana e junguiana, em suas descobertas I IIlI zas suprapessoais, da mesma forma que as experiências de
iniciais, estavam ambas dominadas pelos arquétipos dos pais, es- I 10, renovação, continuidade e mistério mãe-filho, que pa-
pecialmente pelo arquétipo da mãe, ao ponto de se interpretar o com- I 1 I o fatidicamente pessoais, tornam-se eventos impessoais,
portamento e as imagens a partir de uma perspectiva materna: a mãe I
edipiana, a mãe positiva e negativa, a mãe castradora e devoradora, o ) 'r cimento que eia estimula é total e apaixonado, mortalmen-
conflito com a mãe e a regressão incestuosa} Freqüentemente se iden- I ucrante; é sempre uma mater dolorosa, sempre tudo em exces-
tificava o inconsciente com o "reino das Mães']. Figuras femininas e I 11I1lade e apoio, preocupação com a fragilidade ou interesse na
objetos passivos, receptivos, tornavam-se, indiscriminadamente, sím- ~ u, e~s exageros fazem da criança um rebelde e um herói, prin-
bolos maternos, por obra dessa hermenêutica de um único arquétipo. I I stituta, porque sua paixão confere às nossas pobres e des-
Tudo era a mãe! Montanhas, árvores, oceanos, animais, o corpo e os ndições uma importância arquetípica.
ciclos temporais, receptáculos e conti~e ,tes, sabedoria e amor, ci-
dades e campos, as feiticeiras e a morte muitas.outras coisas mais I 11l10Sacitação de Jung em seu ensaio sobre o arquétipo da
perderam a especificidade neste perío da Psrcologia de tanta de- I W 9, I, § 172) lembra: "Mãe é o amor-de-mãe, minha experiên-
) voção à Grande Mãe e ao seu filho, o Herói.' ung nos levou um passo 1/1/'/1 segredo". Embora a experiência da mãe seja arquetípica,
\ !\lI vcl como a Natureza", "cruel como o destino", ainda assim
adiante ao elaborar outras formas femimnas arque típicas , como a
anima; em outras conferências aqui já tentei prosseguir no caminho " 11 l' agudamente pessoal, a ponto de, como Jung observa,
de Jung, ao lembrar que seios e leite não são exclusividades maternais, I "I I moscolocaressa imensa carga de responsabilidade, de sig-
que outras figuras divinas ao lado de Maria, Demeter e Cibele têm 111, de deveres, de céu e de inferno, nas costas do frágil e falível

51
ser humano ... que foi nossa mãe" (ibid.). "Esta figura da mãe pessoal , I.to é, a presença da ama pode despertar em nós o sentimento de
surge com tamanha importância nas psicologias personalísticas que,
como sabemos, elas nunca vão além disso ... " (§159). Em outras
I s sido feridos e abandonados. Ao que tudo indica, ser apenas tO.
u ser apenas ama não é o suficiente. A crian a recisa d s d
palavras, é o próprio arquétipo da mãe o responsável pela psicologia I sma forma ue cada um de nós reéisa ter uma forma e
personalista e pela colocação da carga arquetípica sobre figuras pes- . onar-se com o destino ao lado de uma for.mal.m.oess.Qal.
soais, relações pessoais e soluções pessoais. E pelo fato de se tomar
sempre a;i próprio, aos problemas e ao destino como "coisas suas", reio ue odemos ver a "hi ocondria" as lamenta ões e s
pessoais{ Por isso o complexo maternal, em seus exageros para mais como
os narcis.istas de .aiuda~ umllnstelação peculiar medjªd~
ou para menos, carrega, junto com sua tendência para o impessoal, lma inário' não_lanto um c.QmpLexo.maternale sim tentativas de ..
fascínio e força pessoais! o ,lelar a ama. Os acessos desesperados de Picasso de manhã na
m ,incapaz de desenhar, incapaz de pintar; os vidros de pílulas e os
Nesse ponto pisamos o terreno do domínio comum da mãe e da tes de pozinhos de Stravinsky, espalhados pelas mesas e estantes
ama se bem que, como Jung notou, o termo complexo materno, por I I à mão; Coleridge inválido: 'o o o")mago de Carlyle, ele e a esposa,
ter sido emprestado da psicopatologia, tenha sempre uma conotação I fazendo a ama do outro alternadamente; Voltaire "morrendo"
de ferimento e doença, evocando muito mais a figura da enfermeira, I nte 40 anos; Michelangelo e Dürer a se lamentarem; Elisabeth
uma enfermeira de crianças, ama. Maria fez os dois papéis, parece rr t Browning definhando em um divã; Emily Dickinson confinada
(Jesus não tinha ama junto de si quando era deixado só). o que di- I eu quarto; Charlotte Bronté e George Eliot com enxaquecas e es-
ficulta para nossa consciência ocidental fazer a distinção entre as duas 11I gos "revirados"; Seott Fitzgerald encontrando-se com Heming-
atitudes psicológicas; mas é necessário fazê-Ia. A ama não tem co- y para falarem sobre saúde; Proust em seu leito; Rossini em seu
nexão pessoal com a criança, não lhe pertence, nem sua hístáría .rem I 11o; Darwin em seu leito ... eis a criança e a ama, uma combinação
prosseguimento nela; a vida e a morte da criança não são suas; seu lnda não bem estudada pela Psicologia em suas tentativas de chegar
amor por ela não é incesto nem tabu. Não podemos dizer que a ama .onstelações da criatividade e da genialidade, de entender a psi-
seja uma mãe adotiva, uma substituta ou segunda' 'mãe" , justamente 1I ia da hipocondria e da neurastenia, e de analisar as lutas in-
porque a constelação não é pessoal. Tampouco é lícito reduzir essas t, I miliares pela designação de quem vai ficar doente e quem vai
diferenças arquetípicas a noções psicodinâmicas de seio "bom" e seio \111 r de quem.
"mau", que em última instância transformam a ama em mãe.
A psicoterapia assimilou todos os fenômenos da ama ao ar-
A ama é uma figura independente, com uma maneira ró ria e 111 tipo da mãe, oconfundindo fragilidade com doença (primeiro mis-
es ecíflca oe se Igar a uestão ao .aoªndJlDo_ J;m primeiro lugar. 111 lido ama-seca com enfermeira, depois ambas com a mãe). Na ten-
feridas abandono e re'ei ão vê d enc nt' ~ i . s' , t v heróica de nos libertarmos do com lexo mater ....Ynl.tamQ::J1.Qs_
na ama de cuidar, reparar, proteger, sem outras intenções ..a.nãs é vocadamente contra nossa fraqueza e doença. Tudo depende do
atender às necessid~des co~s. Seusatos não.contêl1lop.Lok~~es~d~ I 10 da ama a quem se é entregue, para que um conteúdo infantil
destino, nem fantaSias sobre o ue aconteceu e o g~oJ)tecer-ªl_Ela IIh a se transformar num Herói, num Dionísio ou num Zeus, ou
toda cuidados e não espera nada.
~-- -
rm neça como uma área de percepção patologizada e de devaneios
I r ntis, No entanto é preciso primeiro distinguir bem entre mãe e
Jt.. l Assumir a atitude psicológica da ama seria permitir à crian~a.per.

rI
'I j ó então seremos capazes de perceber a ação individual desta úl-
--fly,manecet em seu abandono (a ama aparece quando faltam os pais>,:,Ao

L
alimentar a criança em sua fraqueza, a ama alimenta a fraqueza. Já a
atitude psicológica da mãe semp.re espera alguma coisa: crescimento,
destino pessoal emerge.nte, qUah.d.ades especiais . .os cUldado,s m~ter'l
nais e a esperança
~ão
~ _
fundem-se e fluem como'" se fossem uma COI •
ocorre com .a ama, ue tem de aceitar. aocnan .a co o
11.

R1ANÇA MORTA

A criança morta é um motivo tangencial ao nosso tema; mas é


d
ível estudá-Io isoladamente. É um motivo que aparece em sonhos
~mPlica
em ferimentos e vulnerabilidade como condi ões révi "
v zes como uma criança que não chegou a nascer, que nunca veio

1
Palaconstelar a ama ou_~nJÇ!~~p.J~~~.so~ante~qoue ~aja.neglig.ên. undo; a criança morta também perturba nossas vidas de muitas \
_ cia e abandono. Sendo assim, a situação Inversa também pode ocor,
: medo da morte de uma criança, superproteção da criança e o
52
1111I ponto de vista ?a vida para, conduzida pela criança morta,
I I val~r sc:us próp.nos termos, como condição especificamente
'1" 'li, Isto e, a condição em que nada mais existe senão a psique.

I mbora seja um tema adocicadamente sentimentalizado _ basta

( I 1!Ir por um ?e~ses ~emitérios vitorianos e atentar para sua esta-


111 111 de angelicais cr~anças mortas, emissários do além - o con-
I I tio PSlqUl~Oconcretizado no mármore é, apesar de tudo, válido.
I 1\ l~essa Imagem funde Eros e Tanatos, conjunção que, apesar de
111 ndida pelo neoplatonismo (Wind, 1967) foi conceitu.almente rom-
11, pelo racio~a~is~o de Freud/A criança morta pode reintegrar o
11 o intelecto dividiu e colocou em oposição.y

INI' NTILIDADE - PUERILIDADE

() r~torn~ da criança coloca-nos face à face a um profundo dilema


I rugma merente a todo arquétipo, seus aspectos supostamente
11 mau.s, suas partes assimiláveis e não assimiláveis, conforme o
Id I? de mtegração que tenhamos escolhido. No caso do ar uéti o
.rtança, os ólos o ostos são inf n 'li
A mãe quer ver a criança sempre ativa, fazendo coisas, amando Idade arecer crian a). A primeira condição deseja amadu-
r, Ivrar-se das preocupações mfantls, emergir da infância e de sua
- Demeter com Perséfone e Demofoon é um bom exemplo disto. A
morte da criança traz à tona seus limites. A crianca tem um destino à nr nCla. _ outra a meJa tornar-se criança, pois só nesta condição
.narte do seu, o que demonstra que a criança é um elemento destacável nça o remo os ceus, com a cnança con uzm o a SI ue e sen-
da mãe. Se mantivermos a perspectiva da mãe apenas lamentaremos a nu m=-a ma orno superar as duas tendências contraditórias:
rur a m ancia e tornar-se criança?
perda da criança, sem nos darmos conta de tudo o mais que esse tema
arquetípico poderá estar indicando. A mes~a polaridade. está presente já em Platão, pois a criança do
no não e a mesma cnança do Lysis, da República e das Leis O
!'orque a criança morta é.a criança que ~ertF!l':~! ~~: e~efere- II ,aparecem também em Paulo (I Cor. 14:20), que -apela pa~a :
se nao somente a morte da vida mas tambem fii.YL- ,-or!e (Cf.
lidade ?O coração mas não deseja a infantilidade da mente. Ou
Riklin, 1970). Com a morte significando não o fim como térmmo da
11I0 Agostmho co~ocou a questão: "A infância é-nos proposta como
vida mas fim como propósito da vida, como passagem para a existên-
"' modelo de h~mIldade que deveríamos imitar, mas é proposta tam-
cia invisível e apenas psíquica de Hades, que se localiza numa região
11I ',mo um tipo ,d~loucura a ser evitada" (Enar. in Ps. XL VI, 2).
"mais abaixo" e "mais além" da vida, e cujo tempo é "depois" da I rucão do arql!etIpo aparece também naquilo que Philippe Ariês
vida, livre das contingências do visível, do agir, do fazer e do amar. A , 111 de "os d,O.IS conceitos da infância": de um lado o carinho
criança abortada significa então a vida que se aborta em trihuto a;Q{ I r mte da família, de outro "a disciplina racional da sociedade da
Hades. J o da peda~o~ia._A divisão finalmente aparece hoje na teori~ da
A criança morta ode ser também a ima em do sico om122, ~~lção,. na .dlstmçao que propõe entre intelectos "suaves" e "for-
con uzmdo a alma a reflexões sobre o arquétipo da criança inserido o os pr!m~lros conformando-se à orientação de Rousseau, Froebel

numa configuração t~tal da psique. Tem a força indutora das lápides Românticos com sua característica visão da "puerilidade"; os
funerárias clássicas/Nesse papel a criança morta possibilita a inte- IIl1do~"obedecendo a um padrão mais clássico, mais medieval ven-
riorização da futuridade e da fantasia de crescimento, e a reversão do 111 cnança um adulto em miniatura, com uma infantilidade plás-
sentido da independência, que passa a significar independência em o 111 ?e~áv.elcomo a cera, e que requer elaboração por uma for-
relação aos valores da vi~ A própria morte deixa de ser considerada o disciplinada.

S4 SS
Jung sugere que se ponha fim à ambivalência inerente ao padrão
por memória curta e estupidez. que compõem igualmente a
quetipico escolhendo-se.um termo do par de opostos, o que tornaria " . ".
possível recapturar a infância, mas sem sua infantilidade. A solução
pro os1a é criar uma nova uerilidade através do sacrificio da infan- M 11; que outra coisa, as descobertas que Freud fez sobre a crian-
tilidade. Reconquista-se a inocência, o sentido lúcido e espontaneidade r .isam ser recolocadas em função da idéia do renascimento, tão
. quando se a re m o a 19norancla, o Jogo e o esregramento. In- I' ntativa do arquétipo da criança. A ressurreição do homem
genuidade e inocência não transformam o santo ou o sábio em loucos. , 11 c todo o seu corpo, incluindo suas partes fracas, carregadas de
Parece uma alternativa muito correta esta que sugeri baseado em Jung tio e de luxúria (Rom. 6:12-13). Neste corpo - que Freud redes-
(CW, § 742), pois no homem renascido da individuação que cabimento, lu c reafirmou - não podemos nos esquivar da criança. É nele,
têm a petulância e a incapacidade infantis.as fraquezas, as ansiedades e I do que em qualquer outrç lugar, que nos sentimos vitimas da in-
os desejos mágicos, tão subjetivos e tão não-condicionados por ex- I I ou em conflito com ela!, tratamo-lo como um inimigo, como um
periência prévia? Que outra coisa pode ser a consciência senão o se- or que deve ser disciplinado ou indulgentemente mimadojK1as se
parar-se de tudo o que é infantil? riunça - mesmo a criança freudiana - é, pelo menos em parte, um
I Ir Imaginário ativado pela memória, então as emoções corpóreas
É difícil no entanto manter separadas a criança de sua infanti-
s. ociamos à criança devem referir-se, pelo menos parcialmente, a
lidade. Seria sequer possível a separação? Seria possível escolher um .orpo imaginário. Nesse caso até nossas perversões polimorfas e
dos pólos? A criança não é exatamente esse com Iexo de op_ostos cujo
nostalgia da infância podem funcionar como via de acesso à
'impacto psiquico deriva precisamente da tensão entre seus lados ndição pueril da ressurreição, operando-se o renascimento a partir
"bom" e "mau", estático e mutante? Abstraia-se infantilidade da
xualidade infantil, da disciplina da perversão. É só até onde
criança e o que resta é não um anjo (e os anjos no fundo também são
ti mos chegar na distinção entre pueril e infantil.
demônios poderosos e terríveis) e sim uma imagem idealizada daquilo
que imaginamos deveríamos ser, a inocência gerada na repressão, • lícito, porém, atribuir tanta coisa a este arquétipo, a ponto dele
,criança abandonada que, de uma forma ou de outra, irá retomar. onificar não somente o corpo e o modo concreto da experiência
Quando destacamos e isolamos os elementos patológicos, seja por I mas também quase tudo que é nossa subjetividade? A criança
sacrificio ou como tributo escatológico, não estamos contribuindo nem I mesmo de veicular nossos prazeres corporais e nossa memória
um pouco para o progresso da psicologia ou da psique enredada em I ginária, nossa totalidade e nossa liberação criativa, nosso senso
seus complexos. do e nosso Eros, nosso passado e nosso futuro? Se entregamos à
nça esses componentes todos da existência, então claro está que
s áreas da experiência tornar-se-ão infantis, Eras encher-se-á de
jos infantis; o corpo, de lamúrias infantis; a revolução será vista
mo encenação infantil; a imaginação, como fantasia infantil e o
II o como uma atividade inferior. E nunca aceitaremos esses dados
1111I0 eles são, acharemos sempre que precisam ser "desenvolvidos";
1111, sa fantasia, por meio da imaginação ativa e da arteterapia; nossos
I pOS, nosso Eras, nossa alegria, e a revolução também, por um
IlIlcCSSO de ampliação da consciência, com "amadurecimento" e per-
de "primitividade".
A própria infância não tem de estar necessariamente sob a juris-
~ o da criança. Infância é apenas uma palavra que empregamos
ra designar certas formas de experiência e de percepção, formas
11I ginárias que abandonamos a cada momento, em nome de um
mport~ento mais adulto, isto é, mais conceitual e mais regido pela
IIlad~f'0 dilema do infantil e do pueril fica resolvido quando se
lxa de considerar a infância como repositório do que hª de mais
ioso na vida humanyNão precisamos de frescor, ingenuidade e

57
11I valor ao intelecto - apenas fazer contato, relacionar-se,
simplicidade para nos tornarmos crianças, não precisamos idealizar o
111 Ir, encontrar, - pois a criança representa o coração bom e 11
jogo para chegar ao reino imagináriQ. Já não temosque acreditar que
111 . E esta criança é o anti-intelectual primário que sabe, sem
a inocência seja pré-requisito da renovação, nem que a unidade se im-
11 I r, coisas que ocultas aos sábios, mas reveladas aos pequeninos
ponha à totalidade. Restaurar a sombra infantil como parte integrante
10:21-22).
do ideal da ~uerili~ade possibilitaria à ,an~ústia-,: à fragil~d~de rein-
tegrarem-se a totahdade, e o retorno dasdistorções patológicas e da minamos também, indiretamente, a maneira como o motivo
( árdua tarefa da concretização ao reino do imaginário. 11111 ico constela-se em nossas subjetividades individuais. A relação
psique e mito ocorre segundo duas orientações: os mitemas
ASSUMINDO A CRIANÇA a mas só i' .
.nl!~S, Uma destas encenações, a que contém o modelo heróico
o abandono da criança é um tema mitológico e como tal re- unsciência, alude sempre à criança, por força de suas origens.L
presenta uma realidade psicológica permanente e não algo que deva 11 .Ivel desempenhar as tarefas do ego - confrontar-se, lutar,
ser tratado ou dramatizado. Como então lidar com ela? Deveria ser ~ Ir em ireção à claridade e ao conhecimento - sem o retorno da
obedecido o padrão mitológico do tema; a psicologia profunda, , . t. conceito de ego, tão impregnado de mitemas heróicos,
porém, na sua pretensão de "alterar alguma coisa" (Freud) deixa o m se baseia e tem como pré-condição a criança abandonada
problema à discrição do sujeito. As soluções que apresentamos não ~,1,§281-84; Neumann, pág. 45). A criança volta escondida den-
são simples, e as reflexões precedentes acrescentaram complicações a II botas do herói para neutralizar sua concepção ingenuamente
um tema que em si não é complícadç/Thornas Mann escreveu que só o I I da realidade.
exaustivo é realmente i~te7ssante; em psicologia, só o complicado é
Mlls não é sempre que a criança tem de retomar como herói.
realmente representativ'l
11 • Ia nem precisa voltar, se não tiver sido nem reprimida nem
O padrão que vimos expondo mostra um círculo vicioso: aban- ndonada, A consciência dionisíac'! guarda consigo a crjanca como
donoda criança a fim de se alcançar a maturidade. e então abandono ccto ermanente de sua estrutura ar uetí ica: no mais antigo
.à criança quando ela retoma. Ou reprimimos ou mimamos esta face t v I dionisíaco de primavera, em homenagem ao deus do vinho
da nossa subjetividade. Num ou noutro caso, a criança mostra-se in- I, o segundo dia era dedicado à criança; crianças pequenas to-
tolerável.. no primeiro não podemos suportá-Ia de jeito nenhum, no III parte no festival e seus copos traziam gravações em que eram
segundo cedemos a ela por completo. Seguimos o padrão contido na ntadas com brinquedos e coroas.
própria palavra "abandono", alternando entre os significados opos-
()s mitos, por serem verdadeiros, estão continuamente aconte-
tos de "perda" e de "entrega": Livramo-nos de uma condicão afas-
tando-a de nós. ou nos libertamos permitindo aproximarmo-nos 11; todos os dias, em nossas ações e atitudes, abandonamos a
I II~ I. Tudo aquilo a que negamos paternidade, tudo o que repu-
dela.
I IlII!S, as coisas a que recusamos linhagem histórica, transformam-
Uma das maneiras de nos abandonarmos à criança é darmo-nos a 11I outros tantos órfãos. O órfão não tem história; tudo fica no
fantasias, chamadas idéias, através das quais a criança captura nossa I 11'0 vindouro, é futuridade total. A história é que outorga uma
consciência de forma sublimada. É um axioma psicológico que quanto h 1\1 aos eventos psíquicos, fornecendo-lhes raízes de raça, cul-
maior for a distância a nos separar da criança repgt:nida, mais fácil tradição. Quando negamos o aspecto histórico aos nossos com-
para ela será tomar posse de nós (CW 9, I, §277jf. Quanto mais in- I! • isto é, o modo como a história nos alcança através dos com-
suportáveis acharmos os emocionalismos infantis em nossa subje- " - pois é por eles que minha raça, meus ancestrais e minha cul-
tividade, mais facilmente nos tornaremos presa de simplificações histórica me afetam mais intimamente - estamos gerando ór-
pueris em nossas idéias, apesar destas pretenderem refletir objetivi- rbandonamos nossos complexos ao poder do arquétipo da
dade, maturidade e senso de responsabilidade e não envolvimento II~ t. 12daí eles vão para o orfanato - terreno fértil onde medram
emociona!l6uando isso acontece, a criança impregna nossa formação kopatias renegadas.
teórica de conceitos ingênuos sobre psique e terapia, crescimento e
corno psicólogo que devo refugar o ataque que se faz à história,
totalidade, revolução e liberdade, amor e genialidade. Aderimos então
'1\1 duas frentes: o dos místicos de uma religião que iria abrir
a movimentos filosófico-sentimentais que em sua exaltação emocional

59
58
caminho para o renascimento espiritual resguardando o histórico, e o Iv a tendência de voltar-se para O Oriente, como um caminho
dos arautos da mudança política, que recomeçaria tudo do zero, con- fora da história ocidental. A r6 ria sicolo' assa a ser vista
siderando o passado um mero "balde de cinzas" (Carl Sandburg). Os co mais uma' 'viagem" , ~raças à influência da criança.
cultos do imediatismo, da relevância, da transcendência e da revo-
Mas a psicologia de Jung é toda uma reflexão da psique histórica
lução - seja em termos de abertura intelectual ou de liberação social
( um programa para sua transcendência, A concepção junguiana
_ são expressões novas do culto da criança (é só ler Marcuse!), que
uma totalidade polivalente complexa,· prenhe de inumeráveis pos-
negam as raízes históricas dos complexos, deixando-os órfãos, sem
11 li des e individualmente distinta, é preciosa demais, fértil demais
nad.a alrá~ de~si. A ~is~ória então; como o foi para. Édil?o, nasce de um
transformar-se em apenas uma fantasia delirante de onipotên-
vazloJ A ilusão JJe Edipo a respeito de sua história foi o fundamento
I lirigida para a conquista de uma sólida independência através de
a sua tragédial
ngênuo crescimento eIÚ direção à unidade - Situação em que tor-
Pode parecer estranho que um psicólogo americano, ao falar a elf e tornar-se Deus são idéias confluentes e inflacionantes.
intelectuais europeus, esteja a privilegiar a história, uma vez que para
a Europa, como disse Joyce, "a história é um pesadelo do qual ti certo que a psicologia pode ser mais crítica e menos pueril em
procuro despertar". E mais: só em parte é possível separar a reali- uso de "totalidade" e "Self"; é certo que pode abandonar, em
t orias, as fantasias de crescimento, criatividade, independência e
dade psicológica da realidade histórica. O tempo todo nossa subje-
íurldade, permitindo deste modo que alterações sejam vistas sim-
tividade enreda-se em nossa história ocidental, tornando impossível
Icnte como altera ões n- ssagem..paJ:a-um-es--
ue des ertemos dela a não ser· ue a reconhe amos em nossos com-
novo ou como um desenvolvimento e sim como modalidad
plexos. A psicoterapia, ao conceber-se aplicada à tarefa de alterar e
nte matizadas' mesmo a ausência de alter
corrigir as "extravagâncias unilaterais da consciência" (Jung), faz-se
Ito de vista, ser encarada menos de ressivamente. Com isto a in-
também uma tentativa de rever a história e sua ação nos complexos.
v uação poderá destacar-se do conceito de desenvolvimento, vindo
Mudança na psique significa mudança na história, e é isso que II tir com mais precisão as realidades da experiência. Não é essa
torna tão difícil a mudança psíquica: ela significa movimentohis- I mente a função de Psicologia, refletir a psique como ela é e não
tórico. Aliás, nada se move em nós mesmos ou no mundo se a história n s estruturá-Ia em um sistema hermenêutico ou inculcar através
não for levada em conta. Uma revolução que hesite em arrastar con- I r pia um dogma psicológico?
sigo a história é uma revolução que não vai mudar nada; a psique per-
Refletir a psique tal corno é foia preocupação do presente ens-aio.
manecerá intocada, o que equivale a uma nova repressão.
lu de "ensaio" - uma tentativa de articular e com isso constelar
O arquétipo da criança, devido às suas tendências a-históricas e nlvel de subjetividade arquetípica que é a criança. No entanto,
pré-históricas, ao transferir à consciência seu modelo característico corresponderrnos a esse tema, nossa tentativa tem, inevitavel-
tenta nos desligar das história, produzindo uma geração de crianças nt , de falhar. Nossa inadequação reflete seu desamparo. Assim
abandonadas, com percepção apenas de começos e fins, movidas por I devemos esperar que o que a psique diz por intermédio da palavra
uma esperança onipotente e por um terror escatológico. O domlnio 1111 ncia" possa ser traduzido na linguagem madura e intelectual da
obsessivo deste arquétipo apresenta ainda um outro aspecto, a inter- 1\ lu e do academicismo. A Psicologia, parece-me, laborou muito
venção do seu pólo oposto, o dos pais: um opressivo senso de pater- IJlU neste engano. Nosso ensaio aproxima-se muito mais daquelas
nidade, de responsabilidade universal - a inflação paternal compen- h de T. S. Eliot (East Coker, V) "toda tentativa/ é um começo
satória. I Imente novo e uma nova forma de fracasso ... E assim toda (a)ven-
I é um começo novo e uma incursão no inarticulado ... " Desta
A história dá sentido ao que é autêntico, limita o possível. Se não
I I, o fracasso e a (a)ventura implicam-se mutuamente. Ambos
contássemos com este sentido histórico, tOdo.dado teria de ser con-
( , I parte de nossa retomada da criança a partir de uma ativação da
siderado absolutamente novo e potencialmente ilimitado. Se per-
Ilação em torno da infância arquetipica.
demos essa perspectiva todos os pretensos caminhos de salvação
projetam-se à nossa frente - deixando nossa subjetividade às voltas presença dominante do arquétipo da criança em nosso pen-
com o dilema de "como ser" em confronto com as necessidades da al- 1110PSicoló~~halém de enfraquecer o intelecto, privou o adulto
ma, perdida em meio a uma profusão de programas de liberação, in- I Imaginaçj sta atividade "inferior" foi relegada à infância,

60 61
ao lado do irreal, do auto-erótico e do primitivo. É preciso que o
I urdon, The Philosophy of Primary Education, Londres, (Routledge), 1968,
adulto retome à infância para reencontrar a imaginação - conceden- li, 111, "Growth".
do-se o irreal, o auto-erótico e o primitivo - porque a infância até
I 1Inurt, Stérilités mystérieuses et naissances maléfiques dans l'antiquité c/assique,
agora só significou perda do poder de imaginar, amnésia como me- 11 IIC,1938.
mória perdida, abandono da capacidade de reminiscência no sentido
I II()!, "East Coker ", V e "The Dry Salvages", 11, in Four Quartets, Londres
neoplatônico. Com o que "adulto" e "maduro" vieram a significar (11th r), 1944.
existência desmitologizada, sendo que os -mitemas subjacentes retor- 11 I'rlckson, Childhood and Society, Nova York (Norton), 1950.
nam e possuem o adulto nas formas simplistas e sentimentais que já
comentamos. Podemos condensar esse processo psicológico na fór- 11 I rlckson, "Growth and Crises of the Healthy Personality" in Identity and lhe

'li'1
li/I' 'ycle, Nova York (lnternat. Univ. Press), 1959.
mula: quanto menos a criança é assumida como vulnerabilidade
11 I.rlckson, "Human Stregth and the Cycle of Generations" in Insight and Res-
,em?cion~1 e r~alidade imaginal, mais à mercê dela ficam nossas fan- 1',II/.I'obiliIY,Nova York (Norton), 1964.
tasias racionalizadas. 11111mult, Madness and Civilization (trad. R. Howard de Histoire de Ia Folie, Paris:
1'1011,1961), Nova York, (Pantheon), 1965.
Seria referível um sicolo ia ue n.ão insistisse tanto na distin-
ção entre adulto e criança - e conseqüentemente nos padrões de 11 IId, ollected Papers, Volumes 11e Ill, Londres (Hogarth), 1924, 1925. (CP).

abandono que estivemos a esboçar - uma psicologia menos aban- 11 IId, New Introductory Lectures on Psycho-Analysis (trad. Sprott), Londres,
(l lngnrth), 1933 (1957). (NIL).
donada à criança, às suas agruras e ao seu romantismo. V_ma si-
cologia descritiva do homem, suficientemente abrangent~Pé!T~cont~ I ll, F. L. e L. B. Ames, Youth - The Years from Ten to Sixteen, Londres (H.
IlIlInilton),1956.
'0 componen e a criança eterna, com ~çurável fraqueza e Sl!éL
'necessidade de CUida os e ara permitir a expressão da criança, não I 'UII'~, The Nursery Years, Londres (Routledge), 1932/68, Capo IV, "The Norms of
Il"vclopment" .
através de des~nvolvime~to ou de aband91!0, mas sim or assumi-Ia.
I1 lung, Collected Works, Volumes 9, I (2~ ed. 1968), 12 (2~ ed. 1968), 13 (1967),
Nessas con ições nossa experiência subjetiva se traduziria numa I undres (Routledge). (CW).
psicologia não somente mais exata como também m.ais sofisticada-
I W. Laistner, Christianity and Pagan Culture in the Later Roman Empire, Ithaca
mente clássica em sua descrição do homem: com a criança dentro de (I urnell) , 1951, págs. 31 e segs.
si, com a vergonha do infantil estampada no semblante, com s.ua I "linche e J. B. Pontalis, "Fantasme originaire, fantasmes des origines, origine du
psicopatologia imutável- não transcendida, não alterada - com In- 1,I//I{Jsme",Les Temps Modernes (Paris) 215/19, 1964, págs. 1833-68.
quebrantáveis esperanças e com a vulnerabilidade das mes~as, supor- I III~~C, Jésus et l'enfant - "Enfants ", "petits" et "simples" dans Ia tradition sy-
tando seu abandono com dignidade e encontrando sua liberdade na uuntique, Paris (Gabalda), 1969.
imaginação finalmente resgatada da amnésia infantil. ""'IISe, An Essay on Liberation, Boston (Beacon), 1969.
N umann, The Origins and History of Consciousness, Londres (Routledge), 1954,
"tlll·45,
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l'ancien régiine, Paris: Plon, 1960), Nova York (Knopf) e Londres (Cape), 1962. I'h ", ,Worle des Malers (ed. J. Haase), Zurique (Sanssouci), 1970. (Infelizmente
11 (/ consegui localizar os trechos originais mencionados).
G. Bachelard, "Reveries toward Childhood", Capítulo Três de sua The Poetics of
Reverie(trad. D. Russell), Boston(Beacon),1971. 1'11111'1, The Metamorphosis of lhe Circle (trad. C. Dawson e E. Coleman, Paris:
1'11111,
1961), Baltimore (Johns Hopk ins), 1966, Capo VI, "Romanticism".
G. Boas, The Cult of Childhood, Londres (Warburg Inst.), 1966.
1\ K dford, "The Literary Motif of the Exposed Child (cf. Exodus lI, 1-10)",
J. Bowlby, Child Care and lhe Growth of Love, Harmondsworth (Penguin), 1965, NII/IIen, XIV/3, 1967, págs. 209-228.
Parte I.
I~III, "The Crisis of Middle Life", Spring 1970, Nova York, (Spring Publications),
M. W. Bundy, "The Theory of Imagination in Classical and Mediaeval Thought", IV/O.
Univ, Illinois Stud. Lang XII, Urbana, 1927. 11 1\, On Becoming a Person, Boston, 1961, Capo 9.
P. Collins, Dickens and Education, Londres (Mac Millan), 1963, Capo VIII, "The I .ln, Incest and Human Love, Nova York (The Third Press), 1974 (traduzido
Rights ofChildhood", 1""11 português por Roberto Gambini e publicado nesta Coleção com o título de
''''/'\10 e Amor Humano - N, dos Eds.)
62
63
H. Stoffer, Die Bedeutung der Kindlichkeil in der modernen Welt, MUnchenlBasel "() /'IIOS: A NOSTALGIA DOPUER AETERNUS
(Reinhardt), 1964.
L. L. Whyte, (ed.), Aspects of Form, Bloomington (Indiana Univ. Press), 1961.
L. L. Whyte, Accent on Form, Londres (Routledge), 1955.
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••Amor' as a God of Death".
D. W. Winnicott, Playing and Reality, Londres (Tavistock), 1971.

De Os Estágios da ,~jda Progresso Criativo:


Anuário Eranos 40 ~ 1971 ed. AdolfPortmann
e RudolfRitsema), L~. . J. Brill, 1973, págs.
358-406. Conferência proferida a 25 de agosto de I Ia manhã nossas divagações nos conduzem a uma incursão
hllllínio psicológico da nostalgia.
1971 no Congresso Eranos, Ascona.
No entanto, antes de nos pormos a caminho, devemos fazer uma
1111\ o entre a experiência mais importante e profunda da nostalgia
11111 I nostalgia arquetípica, que pode ela própria ser uma "nostalgia
'1111 tipo" - e todas as recentes manifestações de nostalgia: a
o pelos anos 30 e 40 nos filmes, os anseios por uma sexualidade
111 ica ou por uma natureza pura, não poluída, a nostalgia da
o c m a terra que o honesto camponês possui, ou nostalgia que
I, na preferência por roupas ciganas e por antiguidades. Isto é
tvutporalização da nostalgia em uma autre fois (outra vez), ou
cularização e comercialização de valores nostálgicos. Assim é a
I liI que interessa à Sociologia, enquanto que nossa atenção vol-
I' 11 ti a nostalgia arquetípica.
I p ro que possamos chegar a uma terceira perspectiva desse
" I nôrneno: uma perspectiva que não seja nem o dernier cri de
uuulisrno comercial nem o premier cri da terapia do grito primor-
I1I mov), o grito pela mãe e pelas dores do passado em nossas al-
I IlIIIS um cri imaginaire, um grito pelas imagens, o C.R.I. de
IIIhl ry. *
1'111 liseguir nesta direção, evitando as explicações tanto pessoais
111 ociais, devemo-nos ater a um princípio fundamental sobre o
li' pxicologia arquetípica se baseia - o princípio da epistrophe ou
I 11. Epistrophé é uma idéia neoplatônica: sua melhor elaboração
1111 i-se nos Elementos de Teologia de ProcIus, especialmente a

111 11 de palavras com o Centre de Recherches sur I'lmaginaire do Centro


I 11 rio de Savoie, Charnbêry, França (Nota dos Eds.).
proposição 29. Em resumo, esta idéia considera que todo fenômeno
tem um modelo arguetípico para Q gual voltar. reverter. retomar.
Todos os acontecimentos que se passam no domínio da alma isto é
,
todos os eventos e comportamentos psicológicos. têm uma simila-
ridade. uma correspondência, uma .semelha~ça ,c~m um padrão ar.-
quetípico. Nossas vidas seguem as. figuras mlto~ogIC~s: aglI~?s. pen-
samos, sentimos, apenas na medida em que ISSO e perl!l.ltldo por
padrões estabelecidos no mundo das imagens .. Nossa~s Vidas PSICO-
lógicas mimetizam os mitos. Como Proclus nota, ~enomenos secun-
dários (nossas experiências pessoais) podem reverter a um contexto
primário ou primordial, onde têm ressonância.e a~ qual pe~tencem. _A
-~jie-~tarefa da psicologia arquetípica, e da sua terapIa, e descobnr o padrao Não será essa linha de raciocínio, insisto, que iremos desenvolver.
.Jlrquetípico das formas de comportamento. Pressupõe-se sempre g~e E um dos nossos principais desvios da escola junguiana clássica dá-se
"alguma coisa se encaixa em algum lugar": todas as ~formas .da PSI- ju tamerite aqui. Pois colocar toda a fenomenologia espiritual do
copatologia têm seu substrato mítico e pertencem ou tem guarIda nos I ma do puer aeternus em conexão com o arquétipo da mãe é um
mitos. Além disso, a Rsico atologia é em si um meio de reverter ao laterialismo sicoló ico: uma osi ão ue considera o es írito como
lTIítõ, um meio de ser-se afetado Reio mito e de entrar-se no mitp. ·Ou, êndice da matéria materna. Segundo nossa perspectiva arquetípic~,'
- como disse Jung: "Os deuses tornaram-se doenças" (CW 13,§54), de pSICOogia o puer aeternus - mãos e pés feridos, sangrando, altos
modo que, hoje em dia, quando quisermos encontrar os deuses é para v os e verticalidade, esteticismo e amoralidade, o relacionamento
nossas patologias que devemos olhar. Jl culiar com mulheres do tipo Artemis ou Amazonas, a intempo-
Os eventos psicopatológicos particulares que prendem nossa r lidade sem envelhecimento, a tendência ao fracasso, à destruição e
atenção esta manhã são os da inquietação e da divagação, .da ausên- o colapso (Ia chute) - todos esses dados pertencem a uma série de
cia do lar, da nostalgia; o sofrimento causado pela nostalgia, que ao liguras míticas de jovens semideuses humanos ou de jovens divinos e
mesmo tempo é uma motivação para a investigação e a pesquisa. /I o podem ser imaginados apenas através da linguagem psicologística
do complexo materno. E preferível. como estamos fazendo,~
Nosso método foi em parte descrito por Henry Corbin ao es- rar esses dados referentes ao uer como ertencente ' _
crever sobre o ta'wil, que diz significar: "reconduire, ramener une 110 o Ia do es Írito. Se não nos dermos conta deste fato, da maneira
chose à son origine et principe, a son archetype". Como diz adiante: orno ele se manifesta hoje em dia em homens e mulheres jovens, e nas
"Em ta'wil deve-se levar as formas sensíveis de volta para as formas 11 uras do puer aeternus de nossos sonhos e fantasias, estaremos per-
imaginativas, e daí alçar-se para significados ainda mais elevados; Indo asepifanias do arquétipo do espírito, julgando-as como coisas
proceder na direção oposta (levar as formas imaginativas de volta "muito juvenis", fracas demais, doentias ou feridas, ou ainda não
para as formas sensíveis das quais se originaram) é destruir as vir- rescidas. Assim a perspectiva do arquétipo da mãe bloqueia as pos-
tualidades da imaginação". Para nós, o trabalho principal da tera ia Ihilidades do espírito quando este emerge em nossas vidas. Por isso é
mais do ue a análise do inconsciente consiste Q - IIIC devemos ser especialmente cautelosos ao consignar o caminhar
ploração, e vivificação da imaginação e nos insights daí derivados._ I runte e a nostalgia ao arquétipo da mãe.

No entanto, prossigamos com a posição clássica. Norman O.


ruwn elabora o mesmo ponto de vista a partir da perspectiva
Partindo agora diretamente para nosso tema, deparamos com a r udiana: "Os heróis andarilhos são heróis fálicos ... Todo passeio,
seguinte descrição, feita por Jung, da fenomenologia da divagação e d I caminhada, dá-se a partir da mãe, para a mãe e na mãe; não nos
do anseio: "Os heróis em geral são andarilho~ (Gilgamesh, Dio~ísio, I v I a parte alguma. O movimento ocorre no espaço; e o espaço, como
Hércules, Mitra etc.) e o caminhar errante é um símbolo do anselO->...ºª I1 Platão no Timeu, é um receptáculo ... como se fosse uma mãe".".
busca incessante que nunca encontra seu objeto. da nostalgia da m~ spaço eventualmente transforma-se nos genitais femininos, na
I nncavidade aberta", ou noturna, da mãe, que foi como Hegel
'que se perdeu". (CW 5, §299). O objetivo secreto da caminhada. dizia
h 1Il U a imaginação. Essa posição sustenta que, em última análise, o
66
67
anseio é pela mãe, e a caminhada começa quando a mãe é perdida ou . Palhas aplica-se também a unia espécie de flor que nasce
interdita por tabus, por exemplo Orestes e Alcmeão que mataram suas ulturas (delfim azul ou espora), a um asfódelo branco ou flor
mães, após o que caminharam errantes, incapazes de voltar às suas Ih nte ao jacinto, e também a uma planta trepadeira que nunca
terras natais. E Apoio, que após matar Piton, sofreu nove anos no stá sempre procurando novos pontos a que se agarrar. Já um
exílio. lhos Patriarcas da Igreja, Gregório Nanziazeno, descrevia
I ,,' como uma força de luta nas plantas. É o "amor vegetal", uma
Se adotarmos essa posição clássica, então teremos de considerar nulllralis sobre a qual Andrew Marvell escreveu, ou "a força que
as viagens dos marinheiros, dos andarilhos, dos aventurei~os~ não do rastilho verde vai empurrando as flores, vai empurrando a
como um comportamento no estilo de Hermes, como uma missao es- ••, de Dylan Thomas.
piritual oculta, nem como uma atividade' de busca espiritual, mas
como um prolongado coito com a mãe; um movimento duplo, de melhor ilustração do pothos na antiguidade foi dada por
unir-se com a mãe e de fugir dela. As possibilidades arquetípicas ndre, o Grande. Diz-se que ele próprio inventou a frase: "to-
politeístas do caminhar errante são reduzidas a um único significad<? por pothos" para referir-se a seu indescritível anse' o or aI o
A ansiedade inquieta da psicologia do puer é transformada em jJSI- ncontrava além, um anseio ue o trans ortou para além de
copatologia da relação incestuosa mãe-filho. s fronteiras numa conquista horizontal de espaço fazendo dele
.--.--- ---"- ·~ri . ,- .;;~
m o o veraaaelfo 'liomem do eSp'aco" dos tempos antigos.
Vamos começar de novo. Podemos aceitar a primeira parte da v Alexandre sentar-se num barranco sobre um rio ou diante de
proposta junguiana de considerar o camir:har errante como símbo~o I nda e olhar para o horizonte distante, para ser atingido pelo
do anseio, mas a segunda parte devemos deixar em suspenso. O anseio , tA\' C sentir necessidade de seguir adiante. O espaço e a distância
{ nostálgico pode não ter nada a ver com incesto.
I IS imagens visuais que deflagravam o seu anseio. (Não posso, no
Reiniciamos seguindo a trilha de Ulisses. Este é um andarilho nto, deter-me nas outras características do puer aelernus de
primordial - e detesta isso. Sentado na beira do mar, na ~lha, ?n~e ndre, o Grande: morte precoce, pai divino mítico, pés feridos,
mora Calipso, o olhar desconsolado, enche-se de nostalgia. Nao I' cão etc.).
existe nada pior para o mortal do que caminhar errant~". Uliss~s ~~- I nhos não era a nas um conceito era também um sentimento;
seia por voltar à casa. E há outros que anseiam por Uhsses: Anticléia I mbém uma [?ersonificação divina, uma figura real. como por
(Lv. 11, 202), Telêmaco (Lv. 4, 596), Eumeu (Lv. 14, 144). Eles de- 110 a que Skopas (395-350 a.Ci) esculpiu, e que tem sido descrita
finham, suspiram, envelhecem e consomem-se em profundo pothos, "um corpo de menino precocemente amadurecido". Já se as-
ou saudade, de Ulisses, o andarilho amado que está ausente. I ssa fi ura a Dionísio, a A 010 Atis Hi ólito e ao Hermes
egundo Plínio, as figuras principais do culto na Samotrácia
• I Ulisses não anseia por sua mãe mas por seu lar e pela ilha onde
frotide e Pothos. /
nasceu. Calipso e Ogígia, afinal, poderiam preencher todas as neces-
sidades libidinais incestuosas e renegadas que um marinheiro errante minemos por um momento essa relação Afrodite-Pothos~
pudesse um dia imaginar! Mas Ulisses ainda sofre e ,anseia por seu la.r, I passarmos à Samotrácia. Há três aspectos ou pessoas de Eros
pela enorme cama redonda onde dormia com Penelope. A n,?stal~la li classicamente diferenciados: himeros ou desejo físjco pelo
nasce de uma separação das duas metades, de uma falta de conJUncao. 1 mente presente, a ser .alcan ado ainda no calor do
-J!i' O caminhar errante conduziu-nos à questão de Eros. 'TOS ou amor corres on Ido; e palhas. o anseio pelo jnatin-

o
A"palavra grega para este sentimento erótico es?e,cífico de desejo,
inacessível, incom reensível a uela idealiza ão ue é con -
c todo amor e que está sempre fora de alcance. Se himeros é
li material e físico de Eros se anteros é a mu'
rc aciomiis,-pothos é a parte espiritual do amor. Nesse caso
.

nostálgico é pOlhos. Platão d~ a su~ definição em Cra~llo_(420 a) como , 1)0 ena referir-se ao componente espiritual do 'amor ou ao
um desejo ansioso por um obJeto distant~. Suas as~oclaçoes, nas o~ra~ ~;'1.",~IUI\ nte erótico do espírito. Ao vermos pothos repr. esentado na /
clássicas, são como os anseios _ou UJ]Q_ue.nao ode ser obtIdo: I um vaso (século V, Museu Britânico) conduzindo a car-
saudade de um I o perdido ou um ente guerido(o guar a or e por- " de Afrodite, compreendemos como olho p.ude..s.tiLa foLC.a
, cos, o filho ou a mãe suspirando por Ulisses)"saudade do descanso e lora que im ulsionª-º--desej~p.M.a_adian1e, como a parte do

68 69
.amsr que nunca é satisfeita pelo amor concreto e pela possessão con- th( \', tornando-se a sua encarnação e uma demonstração do seu ,
~reta do objeto, É o fator da fantasia que conduz a carruagem para r. A Samotrácia era consagrada aos dióscuros por causa dos
muito além das proximidades, como os arrebatamentos que tomavam gios e para a proteção dos marinheiros. Era, em outras palavras,
conta de Alexandre e como o desejo de Ulisses por seu "lar". orto seguro para os viajantes; se alguém pudesse entrar, de algu-
orma, em relação com pothos, haveria proteção contra o "nau-
Nessas circunstâncias, pothos é a romântica flor azul do amor, o".
que idealiza e dirige nosso vagar; ou como os românticos colocam a
questão.. somos definidos não pelo Que somos mdazemos mas pm I xaminemos alguns outros fenômenos relevantes conjecturados
nossa Sehnsucht*: dize-me pelo que anseias e dir-te-ei quem ~s. Somos autoridades em estudos clássicos e por arqueólogos a respeito da
aquilo que procuramos obter, a image~ idealizada que djrjge nosso utrácia, dos dióscuros e dos mistérios dos cabiros, a fim de enten-
caminhar. Pothos, como um fator mais amplo de Eros, conduz o mo um pouco melhor a viagem errante em sua relação com a nos-
marinheiro errante à procura do que não pode ser alcançado e que I 11, e o pothos em sua relação com o arquétipo do puer aeternus.
deve ser impossível. É a fonte do "amor impossível", produzindo o 111 mo tempo, porém, não esqueçamos o quanto a erudição pode
complexo de Tristão, que recusa o himeros e o anteros a fim de ~anter peculativa e fantasiosa nessa área. Como escreveu Farnell a res-
a transcendência de pothos. Este lado de Eros torna possível viver no !lu dos dióscuros: "O estudo dessas personalidades gêmeas do culto
mundo como se estivéssemos presentes à cena de uma impossível ação nta problemas desconcertantes mais talvez do que qualquer
mítica mitologiiando a vida. Este componente de Eros é o fator, ou I o capítulo da religião grega" .
fi ura'divina resente no interior de tod s s a\'ent i . lim primeiro lugar, temos o surpreendente mistério dos Pode-
I ou Megalo Theoi. Os cabiros eram chamados de Os poderosos
leia ão arece, envolvia uma atividade ritual relacionada com
r de I uras masculinas desi uais talvez um aralelo masculino
a mãe-filha de Elêusis. Quem era este par de deuses? Talvez

a
Ir de irmãos: Prometeu-Hefestos? Talvez os gêmeos dióscuros?
11m, como Kerényi parece acreditar, uma imagem de um deus
, barba, acompanhado de um pais ou figura mais jovem de me-
l: Pothos, talvez?
Chegamos a uma outra ilha - e nossa topologia grega ~ uma
topologia de ilhas, de marinheiros e viandantes, de nostalgia por ~taca, O par de figuras masculinas desiguais é um dos temas arquetí-
e pelos ventos e deuses dos ventos que sopram afastando os navI~s d.e que propiciam especulações extraordinárias. Foram imaginados
seus cursos uma topologia que é semelhante à da aventura da indi- ItI S ndo mortal e imortal, ou divino e humano, ou velho e jovem,
viduação através das águas do inconsciente - Samotrácia (Sarno- '"1 .iado e não-iniciado, ou cultural e natural. Esse par desigual
thraki). O culto dos cabiros na Samotrácia era talvez o mais importante I ~" até nas cartas recentemente publicadas de Freud e Jung,
após os de Elêusis, dentre todos os mistérios iniciatórios m~n.do ?O lull Freud (Carta 274 F) considera que o tema refere-se a recor-
antigo. Uma série de rituais tinha lugar aí. Os atos e o conteudo ml~lco primordiais: o irmão mortal do par de dióscuros é, na carta de
são ainda menos entendidos do que os de Elêusis. Temos apenas conjec- IId. nada menos que a placenta, de breve aparição por ocasião do
turas, lançadas por Bengt Hemberg, Karl Lehmann e Karl Keré?yi. 111I nto, o companheiro gêmeo com quem cada ser humano vem
Dizem as lendas que os heróis viajantes faziam uma parada nessa Ilha iundo.
para a iniciação: Jasão e os argonautas, Hércules, Ulisses. ~rometeu-
também um andarilho - está associado ao culto dos cabiros; e taI?-
bém, indiretamente, Alexandre, pois as lendas contam que seus .pals:
Felipe e Olimpia, apaixonaram-se lá,.na oca~ião em que .se submetiam a
iniciação - é como se Alexandre tivesse SIdo concebido na terra de

• Termo alemão que corresponde à nossa "saudade" (N. dos Eds.).

70
imaginaram que essa estátua seria de Homero; outros, de Aristóteles. I ológicos comparáveis. O gue os textos não nos dizem. temos de ser
Da mesma forma que Tirésias foi o mestre de Ulisses, Aristóteles as- II,CS de reconstruir com o contexto da ex eriênci r ,. Ao
sumia o papel de velho mestre do pais Alexandre. Kerényi acredita que do mito e do arquétipo o tempo não importa. A Samotrá;i-;I
a figura masculina do velho era central para todo o mistério e que essa nh m uma ilha eterna da psique imaginadora, da geografia psi-
figura mais velha seria Dionisio-Hades. Tudo isso foi dito sobre as I gica.
figuras masculinas desiguais e sobre quem eles poderiam ter sido: um
Por isso, neste ponto da nossa discussão, devemos voltar ao as-
velho e um menino, senex e puer.
10 psicológico, até mesmo psicopatológico, do arquétipo. Da mes-
Em segundo lugar, existe um aspecto erótico e fálico do mundo forma que iluminamos a psicologia com a mitologia, podemos
dos cabiros. Na Samotrácia um Hermes fálico era identificado como d nciar a mitologia por meio da psicopatologia. O movimento
Pothos; os próprios cabiros eram figuras fálicas, como é bem co- uplo que se processa entre a mitologia e a patologia é a base de nosso
nhecido a partir das pinturas de vasos. Além do mais, Plínio diz que a hulho arquetípico. Da mesma forma que os mitos colocam nossas
escultura de Skopas representando Pothos na companhia de Afrodite tologias em um campo mais abrangente e em um contexto mais
eram as principais figuras do culto na Samotrácia. Existe também a if'undo, diferentes das reduções personalistas e literais, as pato-
associação posterior de Príapo (filho de Afrodite) com viajantes, hrs são os meios através dos quais os mitos penetram em nossas
marinheiros e pescadores. Ainda Afrodite, sob a forma de Helena, I IS e tornam-se corpóreos. A partir daí já não são mais estórias num
tem uma relação especial com os gêmeos dióscuros. livro de figuras; a história se desenrola em nossas vidas e nós somos as
s ilustrações.
Este conjunto de temas eróticos e fálicos parece conferir profun-
didade mitológica à opinião de Jung e de Norman Brown, que con-
sideram a viagem errante como uma atividade fálica renegada, na
procura nostálgica da mãe. Pothos poderia então ser a figura da an-
siedade infantil de voltar para casa e pôr-se a salvo no porto seguro
de Afrodite. Afrodite seria a imagem daquilo pelo que o puer dentro
nós anseia, a conjunção Helena-Páris arranjada por Afrodite, o ros-
to que mobiliza milhares de navios diariamente em nossas fantasias
eróticas. Kerényi interpreta os mistérios dos cabiros de forma pare- O arquétipo particular que nos interessa aqui é o do puer aeter-
cida: de acordo com a sua fantasia a força fálica primordial ou re- E~ta figura aparece desde o início nas obras de Jung (1912) e at-
negada seria domesticada por mulheres-pássaros e colocada a serviço uns dos seus detalhes foram elaborados desde então por membros da
da geração civilizada. .ola de Zurique, especialmente por Marie-Louise von Franz. O ter-
A imaginação erudita não consegue penetrar mais nada além des- o provém de epítetos latinos de figuras heróicas e divinas. Algumas
sas duas fantasias principais da Samotrácia (que resumi e condensei): mas míticas têm traços típicos do puer: Átis, Adônis, Hipólito,
uma sobre as figuras masculinas desiguais e o mundo inferior, a outra lcrofonte, Ícaro, Jasão. Mas esses aspectos do puer aparecem tam-
11I em Hórus, Dionísio, Hermes e Jesus. Os estudiosos da literatura
sobre a iniciação e Afrodite. O segredo do mistério ainda não foi des-
velado. Ir n talvez encontrar o puer em St. Exupéry, Shelley, Rimbaud, Rous-
u: Hotspur, de Shakespeare, é um exemplo; Herman Melville tem
I )menos cinco destes magníficos marinheiros errantes.
bm nossas vidas patológicas o puer aeternus aparece como uma
Se sabemos tão pouco a respeito do lugar ocupado por Pothos específica de adolescência prolongada, chegando às vezes até
IInu
nos mistérios dos cabiros, talvez nossa ignorância se deva a uma uarenta anos - e às vezes terminando com uma morte violenta.
deficiência psicológica e não apenas a lacunas historiográficas. As es- puer seria a figura a respeito da qual Sartre observa: "La jeunesse?
cavações arqueológicas não nos podem ajudar se nosso conhecimento I t une maladie bourgeoise" - não, não se trata de um reflexo
psicológico não pode penetrar com a mesma profundidade. Às vezes 111, mas de seu contexto arquetípico, um reflexo arquetípico: une
podemos refinar esse conhecimento através da reflexão sobre eventos ukutie archetypique, como o são todas as patologias.

72 73
No capítulo. I, esbocei algum s características ssa figura. thos, então os sinais de palhas dentro de nós mesmos - a vontade
Vamos recapitular: vulnerabilidade (hlpocon fi, erimentos nas I lgica de partir, a ansiedade erótica, o impulso urgente para a
mãos e nos pés, nos pulmões, sangramehtos); ascensionismo (verti- 11 ressão - possuem uma qualidade hermética. Estes sentimentos
calidade); inclinação pelo fogo e pela água (Icaro); esteticismo (a I ncem a Hermes, o guia das almas. Esses movimentos referem-se
geração da flor, Jacinto, Narciso); intemporalidade (incapacidade de lacionamento entre a alma e o espaço, oferecendo possibilidades
situar-se no tempo ou de crescer e envelhecer, ou um curioso gosto I .ologia do espaço diferentes das do materialismo cartesiano. Era
pelas antiguidades); autodestrutividade (desejo de fracassar, de cair, spaço, recordamos, que deflagrava o pothos de Alexandre; e
de perecer num cataclismo); amoralidade e supermoralidade; ~. thos é o equivalente emocional da experiência do espaço como
. telação parental exagerada (a incapacidade da figura divina de viver n meno espiritual, tal como descrito no Timeu de Platão: a con-
em uma situação humana sem divinizar ou demonizar os pais con- o existencial informe, incompreensível, que é a base de todo o
cretos). Finalmente, para nossos propósitos aqui, o puer a~l~~~ vir, o espaço e o anti-espaço onde todo ser humano é um puer an-
aquela estrutura da consciência e padrão de comportamentÕ j]~~ rilho, ao sabor dos objetivos dos nossos anseios.
recusa e combate o senex,- o tempo, o trabalho, a ordem, os limites,
o aprendizado, a }~ória, a continuidade, a sobrevivência e a du-
rabilidade - e qutl.&é compelido por um falicismo a investigar, bus-
(~)
car, viajar, caçar, pesquisar, transgredir todos os limites. É um es- A iniciasão gue imaginamos ter lugar na Samotrácia leva a cons-
pírito incansável que não tem "lar" na terra, está sempre vindo de al- ~ia do uer a um conhecimento de sua natur .
___ ,/.;..U. É esta natureza dupla q~e imaginamos estar na origem do seu
gum lugar ou indo para algum lugar, em trânsito. Seu eros é dirigido
pelo anseio; os psicólogos condenam esse espírito como sendo isolado, othos. do seu anseio nostálgico e do seu caminhar em busca da mãe
auto-erótico, donjuanesco e até mesmo psicopático. rdida ou ausente. O par dos Poderosos, os Dióscuros e todos os
mais pares apontam diretamente para uma estrutura dupla da cons-
São esses dois últimos traços - o falicismo erótico e a divisãQ I ncia. Não precisamos qualificar a duplicidade como este ou aquele
puer-senex - que são particularmente enfocadOA !jacado5 em , de opostos - velho-jovem, mortal-imortal, masculino-feminino.
conjunto, na Samotrácia. Aí encontramos a concatenação dos temas N 111 precisamos elaborar uma grande filosofia, um princípio de
do puer: viajantes, marujos e aventureiros, velhos e meninos, o belo I/('X, de binarismo (Lévi-Strauss) como a forma fundamental de
corpo jovem de menino da estátua de Skopas representando Pothos; o I id s os mitos. Nem é necessário concentrar nosso foco apenas sobre
falicismo .. par como prova da existência do aspecto espiritual em todo anseio
, tico e do aspecto erótico em todas as demandas espirituais.
Soltemos nossa imaginação: Os Poderosos faziam talvez a iní.
ciação do viajante na origem e no significado arquetípico de sua jn- Estas elaborações precisas do par tendem a literalizar de forma
•.•quietude, revelavam-lhe o telas, aquele "a troco de que" que nos Ir demais restrita a idéia fundamental: a consciência do puer é uma
orienta. Talvez o culto fosse uma encenacão mítica fejta para ensjnar . onsciência dú lice e no conhecimento desta duplicidade da intfivi-
O pothos a ter conhecimento de si mesmo. dando um sentido ritual à / /I{I/idadeconsiste precisamente a..tnisissoo. Diferente do de Elêusis, o
orientação psicopatológica da libido renegada que eventualmente leva \I to da Samotrácia destinava-se a indivíduos. Ia-se sozinho a ele. Era
ao "naufrágio" (o scheitern de Jaspers) a menos que alguma transfor- I ua homens livres e para escravos, para os gregos e para os bárbaros,
mação do conhecimento traga luz à nossa cegueira. Tirésias cego e ra o homem e para a mulher. Tinha a ver, pois, com a transformação
Homero cego proporcionam insight, conduzindo o menino dentro do consciência em relação à individualidade de cada um, ao espírito an-
homem em uma jornada pelos infernos, pela realidade psíquica, le- Iical ou demoníaco pessoal e ao destino individual com ele relacio-
vando a uma consciência das profundidades que subjazem às andan- do. A iniciacão transmite um conhecimento de que a individualidade
ças ao sabor do vento na superfície. O par masculino desigual ensina- O é essencialmente unidade mas duplicidade, e ue nosso ser é me-
nos que na Samotrácia opuer e o senex estão juntos, assim como n~ fiCO, sem re em OlS níveis ao mesmo tem o. Só esta verdade
pessoa de Ulisses. O espírito jovem encontra a sua contraparte pre- upla, gloria duplex, pode oferecer proteção contra o naufrágio en-
cavida, que lhe ensina a arte da sobrevivência""; homens barbados en- nando-nos a não soçobrar entre as imensas rochas monolíticas das
.contram de novo o pathos de Eros. o coracão redesperta. Pode içar as tlidades literais. Elêusis ensinava algo muito parecido: A Mãe e a
velas novamente, prosseguir viagem. Se lá Hermes identifica-se com Ilha são sempre a mesma. Onde quer que se esteja, há sempre um

74 75
"outro" em quem nossa existência se reflete, e devido a quem somos () resolve a tensão nem aplaca os anseios; mas fornece um contexto
sempre "mais", "diferentes" e "além" do que se é aqui-e-agora. quctipico ,
Assim ficamos, ao final, com outra origem para a nostalgia, que
A presença da alteridade em nossas vidas é sentida como autodes-
li é nem a mãe nem Eros. A única resposta que é tão ilimitada quan-
conhecimento, auto-alienação. Sou sempre um pouco estranho para
ausência de limites do 12,0thossão as próprias imagens. Nossas
mim mesmo e nunca posso conhecer-me a mim próprio exceto através
minhadas e nossos anseios têm or alvo a ró ria fi ur im . , .
?a des~ob~rta do outro que fantasio estar em algum outro lugar - por
ISSOsaio a procura dele ou dela. Isto é sentido em minha vida como ueti -ica ue insti a o anseio o uer aeternus em
. o como Pothos. Nosso desejo é pela imagem que inicia o desejo; é
ambivalência, insatisfação, inquietação. A divisão de si mesmo ou o
111111 epistrophé, um desejo que reconduziria o desejo à sua origem no
eu dividido da moderna psiquiatria é a condição primária e não um
r [uétipo. E esse arquétipo do puer aeternus é, como Henry Corbin o
resultado, um engano ou um acidente. A divisão de si mesmo não é al-
I se tantas vezes, a figura do anjo, a reflexão imaginária total de nós
guma coisa que deva ser emendada ou curada, mas algo que deve
I smos - uma imagem que nos faz pensar que somos metáforas
refletir-~e num arquétipo que inicia a consciência no significado da
I . Não foi a placenta, como sugeriu Freud, que perdemos ao nas-
patologia. O par desigual e assimétrico da Samotrácia estabelece que
ne~hum indivíduo pode ser íntegro e unívoco, uno em si mesmo e em r, mas a semelhança gêmea insinuada por Corbin, nosso senso de
união com os deuses. A inici<!Çãonão faz de nós seres integrais; antes uplicidade. Não a libido renegada que Jung afirmou procurava vol-
I r para a casa da mãe - a não ser que esta casa seja o útero como
faz-nos sabedores de estarmos sem re em sizí io* com o
11 táfora (o Receptáculo do Timeu), para o lugar onde nossa du-
'sempre em uma ança, sempre o reflexo de um outro invisível. Seja;
o.utro o senex para o puer, o homem para a mulher, a mãe para o pllcidade original estaria, imagina-se, "originalmente" situada e con-
t lu. Em última análise, pois, nosso pothos refere-se a nossa natureza
filho, a morte para a vida - não importa a forma em que o outro seja
11 clical, e nossos anseios e viagens errantes pelo mar são os efeitos,

Ci~0~~~~É:~~~f;::~~I:~lr~;~:~~~;~
;f:!i~~A~~~~i~I~~:~::
Jf
111nossas vidas pessoais, das imagens transpessoais que nos solicitam,
lUIS impelem e nos forçam a imitar os destinos míticos.

""?".
ne.m ~ mas.a po.thos. Ou melhor, o outro é uma imagem .só
tInglvel atraves da Imagmação.
HI 'I"ERÉNCIAS
--Y>í Além do mais a integridade, ou a unilateralidade da unidade da
c c 1. Jung, Collected Works, 5.
7 pe~s?nalidade é a condição anterior à iniciação. O objetivo não é a
unicidade; esta é uma pré-condição. Jung considerava a "unilate- NllIlllan O. Brown, Love's Body, New York, 1966, pág. 50.
ralidade" como a definição mais ampla de neurose, isto é, pathos sem II nry Corbin, A vicennee/ te récit visionnaire, Paris, 1954.
(o,!~s. A iniciação pelos Poderosos (Megalo Theoii é feita por dois I [rury Corbin, L 'Imagination créatrice dans /e Soufisme d'lbn A rabi, Paris, 1958.
iniciadores. E estes são assimétricos! A poderosa imagem da neces- 1111 Kerényi, "The Mysteries of lhe Kabiroi" (in Eranos Jahrbuch 1944), trad. R.
sária ~uplici~ade e assimetria esclarece-nos a respeito das compulsões Manheirn in The Mysteries. Bollingen Series, New York, 1955.
da unilateralidade (condição não-iniciada da mente literalista) e sobre 1111 Kerényi, Prometheus, New York (Pantheon), 1963.
o significado de nossa eterna sensação de desequilíbrio. Os Poderosos li Kcrényi, "Das Theta von Samothrake" in Geist und Werk: Zum 75. Geburtstag
são uma epifania da desigualdade ontológica que fornece uma Daniel Brody, Zurique, 1958.
imagemarquetípica para as desarmonias que experimentamos como ri Kcrényi, SymbolaeOsloenses31, 1955, págs. 141-152 ..
anseios. O homem metafórico, diferente do homem literal que se
1111 Kerényi, "Theos und Mythos" em Griechische Grundbegriffe, Zurique, 1964.
agarra a certezas, está sempre em alto mar, sempre em trânsito entre
dois lugares, sempre em dois lugares ao mesmo tempo. O mistério de V I!hrenberg, "Pothos" in Alexander lhe Great: The Main Problems (ed. G. T.
,riffith), Cambridge, 1966.
Samotrácia, como foi imaginariamente reconstruído por nós na alma,
I' uly- Wissowa, Pothos, 1953.

11. Roscher, l.exikon (1909/1965), "Pothos".


• Termo astrológico que significa conjunção ou oposição de um planeta com o Sol
(N. dos Eds.). I hhl 'li e Scott, A Greek-English Lexicon (1968), "Pothos":

76 77
Bengt Hemberg, Die Kabiren, Uppsala, 1950.
TRAIÇÃO
Karl Lehmann, Samothrace, Bollingen Serie, New York , 1958.
L. R. Farnell, Greek Hero Cults and ldeas 01 Immortatity, Oxford, 1921.
W. B. Stanford, The Ulisses Theme, Oxford, 1968, capo 14, "The Wanderer".
M. - L. von Franz, The Problem 01 lhe Puer Aeternus, Zurique/ New York (Spring
Publications), 1970. .
J. Hi.llman, "Senex and Puer: An Aspect of the Historical and Psychological Present"
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J. Hillm~n, ."On Senex Consciousness", Spring 1970, Zurique/ New York (Spring
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J. Hillman, "The Great Mother, her Son, her Hero, and the Puer", in Fathers and
Mothers, Zurique/ New York (Spring Publications), 1973 (traduzido para o por-
tuguês nesta Coleção - Eds.).

t~ corrente entre os judeus uma história, uma dessas anedotas


muns de judeus, que diz o seguinte: um pai estava ensinando seu
Conferência aqui publicada pela primeira vez' lho a ser menos medroso, a ter mais coragem, fazendo-o pular de
originalmente proferida em francês, no Centre 11I' escadaria. Colocou o menino no segundo degrau e disse: "Pule
Universitaire de Savoie (Chambéry, France). En- " 'u seguro você". E o menino pulou. O pai então colocou o
contro anual do Centre de Recherche sur 1111 no terceiro degrau, dizendo: "Pule que eu seguro você".
I sar de estar com medo, o menino confiou no pai, fez o que ele
d'Imaginaire (C. R. 1.),18 de maio de 1974.
I miou e pulou em seus braços. Daí então o pai colocou-o no degrau
uinte, depois no seguinte, cada vez dizendo: "Pule que eu seguro
•• ", e todas as vezes o menino pulou e o pai segurou. E assim foram
1\ 1\1. Aí então o garoto pulou de um degrau bem alto, da mesma for-
I que antes; mas desta vez o pai recuou e o menino foi direto com a
I no chão. Quando conseguiu levantar-se, machucado e chorando,
fl i falou: "Isto vai lhe ensinar: nunca confie num judeu, mesmo
\I le seja seu pai".
ssa história - com todo seu questionável anti-semitismo -
" re outras conotações mais, principalmente porque muito pro-
l! lmente foi inventada pelos próprios judeus. Acredito que tenha
I lima coisa referente ao nosso tema - traição. Por exemplo: por que
deveria ensinar um menino a não confiar? E a não confiar num
udcu? E a não confiar em seu próprio pai? Que significa ser traído
I 10 próprio pai, ou por alguém muito chegado? Que significa para
1111I pai, para um homem, trair alguém que confia nele? Qual a fi-
I lldade da traição na vida psicológica? Estas são as questões que
I 11 mtarnos.

~ .
Devemos tentar começar por algum lugar. PrefIro neste caso
..
IIIneçar "no começo", como a Bíblia, mesmo que, como psicólogo,

78 79
possa estar invadindo o terreno da teologia. Apesar de ser psicólogo, c uran a - a fraqueza e a sombra, o desamparo nu de Adão, o #

não desejo no entanto começar como os psicólogos em geral come- s primitivo dos homens em nosso interior mesmo. Nele, de alguma
çam, com aquela outra teologia, aquele outro jardim do Éden: a IU"' ira ficamos entregues à nossa natureza mais simples, que contém
criança e sua mãe. & mC;lhor e a menor porção de nós mesmos, o passado de milhões de
uando, pela tarde, Adão saía a assear com Deus confian a e s e as idéias germinais do futuro.
deslea a e não surgiam como temas de suas conversas. A imagem do A necessidade de segurança, em que o mundo primordial da pes-
. Jardim do paraiso com estádio inicial da condi cão humana aPresenta pode emergir, onde é possível expressar-se sem ser destruído .
$lquilo que poderíamos chamar de "confianca primordial", ou como Ica e eVI ente na ana ise. Essa necessidade de segurança pode
chamou Santayana, "fé animal"; uma certeza fundamental- a des- ur carencia de cuidados maternos, mas a partir do padrão pater-
peito da angústia, do medo, da dúvida - de que 6 chão encontra-se de que estamos falando, a necessidade é de uma aproximação a
ali mesmo, embaixo dos pés, e que não vai sumir quando dermos o US, como a que Adão, Abraão, Moisés e os patriarcas conheceram.
próximo passo, de que amanhã o sol vai nascer outra vez, de que o céu
não vai cair sobre nossas cabeças e de que Deus de fato fez o mundo
para o homem. Esta situação de "confiança primordial", apresentada
como a imagem arquetípica do Eden, repete-se nas vidas individuais,
de filhos e pais. Assim como Adão. com fé animal. no comeco confia
em Deus, da mesma forma o menino no começo confia em seu pai.
Em ambos, Deus e Pai, encontra-se a imagem paternal: confiável, 'fir-
me, estável, justa, aquela Rocha Eterna cuja palavra firma a afiança.
Essa imagem paterna pode ser expressa também pelo conceito do
Logos, pelo poder imutável e pela sacralidade da palavra masculina.
Mas já não estamos mais naquele Jardim. Eva colocou um ponto
final naquela dignidade nua, Desde a expulsão, a Bíblia registra uma
história de traições de todo tipo: Caim' e Abel, Jacó e Esaú, Labão,
José vendido por seus irmãos e seu pai enganado, as promessas não
cumpridas do Faraó, a adoração do bezerro pelas costas de Moisés,
Saul, Sansão, Jó, a ira de Deus e a quase anulação da criação - mais
e mais, culminando no mito central da nossa cultura: a traicão de
Jesus,
_Embora não estejamos mais naquele Jardim, podemos a ele
retomar cada vez que nos colocamos numa situação de relacionamen-
to profundo, por exemplo, o amor, a amizade, a análise, em que se
reconstitui a situação de confiança primordial. Uma outra forma
, diferente de designá-Ia é chamá-Ia de lemenos, o vaso analítico, a sim-
biose mãe-filho. Aqui se tem de novo a segurança do Éden. Mas essa
.x-
~
segura~ça - ou, pelo menos o tipo de temen~s a que estou me referin-
do - e masculIna, dada pelo Logos, atraves de uma promessa um
E não apenas compreender: espera ser com reendido totalmen-
como se to a a omsciencia e Deus se 'concentrasse nele. Esse •
nhecimento perfeito, este sentimento de estar sendo totaln1e'iite ~
,pacto, uma palavra. Não se trata de uma confiança primordial envol- lll1 reendido, confirmado, reconhecido, abençoado elo ue se é
vendo seios, alimento e calor epidérmico; é similar, mas diferente e Datente a SI mesmo e con eCldo a Deus, por Deus e em Deus. repete-se
acredito ser importante assumir que não temos de recorrer sempre à
lida vez que ocorre uma situação de confiança primordial. quandQ a
mãe para nossos modelos de tudo quanto é básico na vida humana. ,soa sente que apenas o melhor amigo, a es osa o analista real-
,Nesta segurança, baseada não na carne mas no verbo, a confiança nte a enten e com etamente. Se não o fazem, se não captam
primordial é restabelecida e assim o mundo primordial pode emergir ito ou deixam de reconhecer a essência da essoa (que deve sempre

80 81
revelar-se na vida e não ocultar-se e fechar-se em si mesma), i~
considerado alta traição.
Poderia parecer, pelo relato bíblico, que Deus reconheceu não ser
Ele um amparo suficiente para o homem, que seria necessário encon-
trar para o homem' algo mais que o próprio Deus. Eva tinha de ser
criada, chamada à vida, extraída do próprio homem, o que conduziu à
quebra da confiança primordial pela traição. Era o fim do Éden; a
vida começava. .
Essa interpretar o conto implica que a situação de
confianç não é_viáve para toda a vida. Deus e a criação não bas-
tavam pa . preciso Eva, o que vale dizer, a traição era
necessária. Poderia parecer que a única forma de sair desse Paraíso
era sendo traindo e expulso, como se o vaso que contém a fé não
pudesse de forma alguma ser alterado a não ser com uma traição.
<:hegamos, a uma-verdade essencial sobre a fé e a traição; elas se con-
ten: uma a outra. Não se pode ter confiança sem a possibilidade da
,traição. E a m.ulher que~ trai seu marido e o marido quem engana sua
mulher; parceiros e amigos mentem, a amante usa seu amor para ob-
ter P?der, o analista desvenda os segredos de seu paciente. o pai deixa
seu fll~o cair: Não ~e mantêm as promessas, quebra-se a palavra dada.
a confiança vira traição.
~ Somos atraiçoados nas mesmas situações de relacionamento
profundo em que a confiança primordial é possível. Só podemos ser
realmente traídos quando realmente confiamos: em irmãos, amantes,
esposas, maridos; não em inimigos, não em estranhos. Quanto maior o
amo~ e a lealdade, o envolvimento e o compromisso, maior a traição. A
confiança contém em si a semente da traição; a serpente estava no
Paraíso desde o começo, da mesma forma que Eva já se encontrava pré-
formada na estrutura que envolvia o coração de Adão. A confiança e a
possibilidade de traí-Ia vieram ao mundo no mesmo momento ..Onde
quer. g~~ exista confianç~ em uma união o risco de traição torna-se~
pOSSibilIdade real. E a tralirão, como uma possibilidade com que se deve
sempre contar, é parte integrante da confiança, da mesma forma que a
dúvida integra uma fé viva. ~
~ Se t~marmos essa narrativa como modelo de progresso na vidr 4-
esde "o co de tudo", então pode-se esperar que a confian a
rlmor I deva ser brada se se Ulser ue ha' a ro resso n r-
lacionamentos; e, aIS que isso, que nunca haverá amadurecimento Voltemos porém antes à nossa história e a nossas questões. O pai
pa~a essa confi~n5a primordial. A crise sobrevirá, uma quebra carac- pertou a consciência, jogou o menino para fora do jardim; brutal-
tenzada or traI ao ue de acordo com a lenda é o sine ua non ara nte, com sofrimento. Fez a iniciação de seu filho. Esta iniciação em
a expulsão do den para o mundo "real" da consciência e responsa- ma nova consciência da realidade ocorre através da traição, ~.
bilidade humanas. missão do pai, pela promessa quebrada. O pai intenclOna!merue

82 83
afasta-se do compromisso essencial do ego de manter sua palavra, de
não dar falso testemunho e não mentir para seu filho, de ser respon-
sável e digno de confiança, aconteça o que acontecer. Abandona sua
posição deliberadamente, permitindo manifestar-se o lado sombrio
nele e através dele. De forma que é uma traição com moral. Pois nossa.
história é uma fábula moral, como o são' todas as boas histórias dos
judeus. ão e uma fâbalã eXlstenclalista descrevendo um acte grqtuit;
nemuma lenda Zen que leva a um esclarecimento libertador. E um
sermão, uma lição, uma parte importante da vida. O pai demonstra
existir em sua própria pessoa a possibilidade de traição, mesmo numa
situação de máxima confiança. Revela sua própria deslealdade, posta-
se diante do filho em sua nua humanidade, revelando uma verdade a
respeito da paternidade e da humanidade: eu, um pai, um homem,
~não mereço confiança. O homem é traicoeiro. A palavra não é mais
Acho que há pontos em comum entre nossa anedota banal de
'1fforte que a vida.
ud us e esse grande símbolo. O primeiro ato da traição de Judas já era
E diz também: "Não confie nunca num judeu" de modo que a nhecido antecipadamente. Sabedor disto, Jesus podia aceitar sub-
lição diz mais coisas ainda. Torna implícito que sua paternidade segue I I ler-se a esse tipo de sacrifício para a glorificação de Deus. Ojmpac-
o padrão de paternidade de Javé, que uma iniciação judaica significa lu assim não deve ter sido tão devastador, para Jesus, mas Judas
igualmente uma iniciação ao conhecimento da natureza de Deus, este rbou se enforcando. Também a negação de Pedro foi conhecida
Senhor tão pouco digno de confiança que precisa ser continuamente r viamente, e da mesma forma Pedro é que acabou chorando amar-
louvado com salmos e orações como sendo paciente, confiável, justo, e mente. Durante a última semana a confiança de Jesus estava de-
propiciado com epítetos de estabilidade - por ser tão arbitrário, usitada no Senhor. "Homem da aflição", sim, mas sua confiança
emocional e imprevisível. O pai di~, :m resu~o, e~ traí você da m~-5 rlmordial não se abalara. Como o garoto na escadaria, Jesus podia
ma forma como são todos na tralçao da VIda CrIada por Deus. A ntar com seu Pai - e até mesmo pedir-lhe o perdão para seus car-
iníciação do garoto na vida é a imclação à tragédia adulta. " cos - até o último instante era um só com o Pai, até aquele

o .
A experiência da traição é, para algumas pessoas, tão humilhante
quanto a do ciúme e a do fracasso. Para Gabriel Marcel, traição é a
iomento da verdade em que foi traído, negado e abandonado
IIS seguidores, entregue nas mãos de seus inimigos, perdida a con-
nça em Deus, atrelado a circunstâncias irreversíveis; nesse momen-
, sentindo na sua carne humana a realidade da traição e a brutali-
de de Javé e de sua criação, bradou o salmo 22, aquela longa la-
por

essência da maldade (1). Para Jean Genet, segundo Sartre, traição é a 11I ntação em torno da confiança em Deus-Pai:
maldade maior, como "a maldade que causa mal a si mesma" (2).
Meu Deus, meu Deus, por que me abandonastes?
Quando as experiências adquirem esse aspecto, assumimos um con-
Por que deixastes de me socorrer e vos
texto arquetípico, algo humano demais. Admitimos que provavel-
afastastes de minhas súplicas? Oh, meu Deus,
mente encontraremos um mito fundamental e um padrão de compor-
clamo por vós de dia e vós não me ouvis;
tamentocom que a experiência possa ser amplificada. Creio que esse
e à noite ... E no entanto sois justo ...
contexto arquetípico é a traição de Jesus, o que pode nos dar maior
Nossos pais confiaram em vós. Confiaram
compreensão da experiência do ponto de vista do traído.
e vós os salvastes ... Confiaram em vós
Estou hesitando em falar da traição de Jesus. São tantas as e não foram confundidos ... Vós sois
ilações que se podem fazer. Mas é nisso justamente que consiste o aquele que me tirastes do berço: fizestes-me
valor de um símbolo vivo: pode-se extrair dele um fluxo contínuo de confiar quando ainda estava no seio da
significados. E é como um psicólogo em busca de significados psi- minha mãe. Estou diante de vós desde o
cologlcoSque outra vez atravesso as fronteiras teológicas. meu nascimento: Vós sois meu Deus desde o

84 85
ventre da minha mãe. Não vos afasteis de ulino. Depois que Eva nasceu do fIanco adormecido de Adão, o
mim. pois o tormento está próximo. pois I tornou-se possível; depois que o fIanco de Jesus, traído e mori-
não há ninguém para me socorrer ...
r
Ido, foi perfurado, o amort0({j}se POSSi\,
E eis que surgem as imagens de uma brutalização por forças bes-
tiais:
O momento crítico da "grande traição", quando se é crucificado
Estou cercado pelos touros. fortes touros I própria fé, é um momento perigosíssimo daquilo que Frances
que me sitiam. Mostram-me suas imensas I k . chamaria "escolh •." (4). Ao levantar-se do chão o garoto, a
fauces como se fofsem leões ... os cães I 1 O pode encaminhar-se para qualquer direção; sua ressurreição
me rodearam. Estou preso no meio de· J I cndente na balança. Pode mostrar-se incapaz de perdoar e assim
malfeitores.furam-meas mãos e os pés... . . . t 1\1 r uma fixação no trauma, tornar-se vmgatlvo, ressentido, cego a
ompreensão e a asta o o amor. u po e vo tar-se para a
Esta passagem extraordinária afirma que a conflanca pnmordlal o que en arei escrever no res ante destas minhas considera-

U
,está depositada no poder paterno, que ~~pe~idode r~s~at~não é pedido
de proteção materna, mas que a expenencla da tralçao mtegra o nus-
tério masculino.'
impossível deixar de notar o acúmulo de simbolismo da anima
É
constelado junto com o tema da traição. À medida que o drama da
traição vai-se desenrolando e intensificando, o feminino vai-se tor-
nando mais e mais evidente. Resumidamente posso referir-me ao
lavapés na última ceia e ao mandamento do amor; ao beijo e às
moedas de prata, à agonia no Getsêmani - um horto, à noite, o suor
salgado porejando como gotas de sangue; à orelha ferida, à imagem
das mulheres estéreis no caminho do Gólgota; à advertência do sonho
da mulher de Pilatos, à degradação e ao sofrimento, à esponja de
vinagre e fel, à nudez e à fragilidade., à escuridão da nona hora e ao
grande número de Marias - e referir-me de modo especial à ~erida no
flanco no instante irremediável da morte, lembrando a maneira como
Eva foi arrancada do fIanco de Adão. E finalmente ao encontro do
Cristo ressuscitado, vestido de branco, por mulheres.. r
'I. Poderia parecer que a mensagem de amor, a ~issãO de E.ros_de ~,
Jesus, ganha sua força final só quando ocorre a traição e a crucifixão.
Pois no momento em que Deus o abandona, Jesus se torna realmente
hnmano, sofrendo a tragédia humana, com seu fIanco ferido e per-
furado de onde corre sangue e água, a fonte não represada da vida, ssses perigos, desvios errôneos se bem que naturais, continuam
do sentimento, da emoção. (O simbolismo do sangue foi extensiva- I mecanismo de defesa da negação, Se uma pessoa é traída em um
mente amplificado no trabalho de Emma Jung e M.- L. von Franz '!onamento, sente-se tentada a negar o valor da outra peSSQa:ª-
sobre o Graal) (3). A marca do puer, a condição de segurança des- instantaneamente, a sombra do outro, uma vasta couraca de
temerosa do pregador miraculoso , terminou. O Deus puer morre rios viciosos ue é claro sim lesmente não estavam resentes
quando se perde a confiança primordial, e nasce o homem. E o h.~ ainda existia a confian a ri r'. Esses aspectos hedion-
mem só nasce quando nele nas e inino. Deus e homem, pai e d outro subitamente revelados são todos compensações, uma
--m. o, nao são mais uma so pessoa. É uma mudança radical no cosmos ntlodromia, de idealizações prévias. O choque da revelação súbita

86 87
indica o quanto era grosseira a inconsciência prévia da anima. Pois 10 da traição, principalmente na transformação do puer aeternus.
~ devemos admitir que sempre que há um lamento amargo por uma IUU analistas não elaboramos a sua significatividade no desenvol-
traição, é porque existiu um contexto de confiança primordial, de in- m IItO da vida sentimental; como um dado final em si, de onde fênix
( c~mscier:te i~ocência infantil, em que. se reprimiu a ambivalência, Eva I uma poderia renascer. ,Assim, a pessoa traída jura nunca mais subir
ainda nao tinha entrado em cena, ainda não fora reconhecida como I I\tO na escada. Vai fiCar rudada no chão, no mesmo nível do cão
parte da situação, estava reprimida. .,,1.\', cínico. Essa postura cínica, como dispensa o trabalho de
hora ão de um significado positivo da traição, forma um círculo
Quero dizer com isto que os aspectos emocionais do envolvimen- '0, o cão perseguindo a própria cauda. O cimsmo, esse zombar
to, especialmente os julgamentos de valor, essa corrente contínua de 11 I r6prio destino, é uma traição dos próprios ideais, uma traição das
avaliações que flui no interior de toda conexão - não eram admi- s elevadas ambições pessoais encerradas no arquétipo do puer.
tidos. Antes da traição o relacionamento negava o componente da uundo este entra em colapso, tudo que tem a ver com ele é rejeitado.
anima. Um' envolvimento que é inconsciente da anima ou é. preci- que leva ao quarto e, acredito, maior perigo: à auto traição .
uamente uma projeção, como num caso amoroso, ou precipuamente
uma repressão, como na muitíssimo masculina amizade de idéias e de A fraição de si mesmo é talvez o que mais realmente nos angustia.
"trabalho em comum". Nessas circunstâncias a anima só pode
U lima das maneiras disto acontecer é como conseqüência de alguém
chamar a atenção sobre si criando problemas. A inconsciência gros- ler traído. Na situação de confiança, na ligação amorosa, ou com
seira da anima consiste em considerar a parte emocional de um re- 1111I amigo, um parente, um parceiro, um analista, alguma coisa sem-
lacionamento como um dado de certeza, com fé animal, uma confian- r fica em aberto. Alguma coisa que tinha estado lá dentro vem para
mil' 'Nunca contei isto antes em toda a minha vida". Uma confis-
ça primordial de que não há problemas, de que é suficiente o que se
diz, o que se crê, o que se "tem em mente", de que as coisas cami- o, um poema, uma carta de amor, uma invenção ou esquema fan-
I stico, um segredo, um sonho de terror infantil- algo que contém os
nham, ça va t out seul. Se a pessoa falha ao tentar honestamente trazer
para o interior de um relacionamento a esperança, a necessidade de dores mais profundos da pessoa. No instante da traição, essas pe-
11 nas pérolas, tão delicadas e sensíveis, transformam-se em nada
crescer junto e com reciprocidade - o que se constela como possi-
tu i que pó, grãos de areia. A carta de amor torna-se um amon-
bilidade última em qualquer relacionamento íntimo - aí então se
tuudo de asneiras sentimentais, e o poema, o terror, o sonho, a am-
. muda de rumo e se nega por completo as esperanças e as expectativas.
II~ o, tudo fica reduzido ao ridículo, exposto à zombaria grosseira,
Mas a passagem súbita do estado de inconsciência grosseira para tratado em linguagem grossa como merde, uma bosta. Reverte-se o
( u~ ~sta?o ~e consciência também_ gr?sseira integra to~o momento de processo alquímico: o ouro volta a ser excremento, a pérola lançada
fe e e ate evidente, De modo que nao e esse o pengo maior. IlS porcos. Porque os porcos não são os outros, de quem se deve es-
under os valores sagrados, e sim as explicações materialistas gros-
Mais perigoso é o cinismo. Decepção amorosa, desapontamento iras, as reduções às simplicidades obtusas do instinto sexual e da
com uma causa olítica com uma or aniza ão com um ami um 11 Ireguidão , que devora tudo indiscriminadamente; a própria insis-
superior ou um analista, conduz a uma mudança de atitude na pessoa I ncia obstinada em achar que o melhor era realmente o pior, o refugo
traída, que não só passa a negar o valor daquela pessoa particular e do onde se arrojam os mais preciosos valores.
relacionamento, como também todo amor passa a ser considerado
Falsidade; as causas são para os Ingênuos; as organizações, Arma- É uma experiência estranha perceber alguém traindo a si mesmo,
dilhas; as hierarquias, Mal e a análise nada menos que prostituição, voltando-se contra as próprias experiências ao atribuir-lhes os valores
11 -gativos da sombra e ao agir contrariamente às próprias intenções e
lavagem cerebral e fraude. Seja inteligente, fique alerta. Apanhe o
outro antes que ele o apanhe. Melhor SOZinho. Tudo bem comigo,' lxtema de valores. No colapso de uma amizade, de uma parceira, de
11111 casamento, de uma ligação amorosa, de repente o que há de pior e
José - o verniz para esconder as cicatrizes de uma confiança perdida.
Com os restos desfeitos de idealismo improvisa-se a filosofia agressiva li mais sujo vem à tona e a pessoa se surpreende agindo da mesma
do cinismo. maneira cega e sórdida que atribui ao outro, e justificando as próprias
~. es com um sistema de valores que não é seu. A pessoa é realmente
É bem possível que encontremos este cinismo - especialmente ualda, entregue ao inimigo interior. E os porcos avançam e despe-
entre os jovens - por não ter sido dada atenção suficiente ao signi- daçam.

88 89
o distanciamento de si mesmo após a traição é em grande parte
para se proteger. Não se quer ser ferido de novo, e já que a ferida
... -ntc. A distorção
~.....,;;.;;.;
r
paranóide dos assuntos humanos é algo muito
Quando um analista (ou marido, amante, discípulo ou amigo)
11.

resultou justamente da revelação daquilo que se é, começa-se a evitar 111 I preencher os requisitos de um relacionamento paranóide, for-
viver de novo experiências assim. De modo que se evita, trai-se a si 11<.\0 garantias de lealdade, exconjurando a traição, certamente es-
mesmo, deixando-se de viver uma etapa da vida (um divorciado de r ifastando-se do amor. Pois como já vimos e tornaremos a Vll.
meia-idade sem ninguém para amar) ou a própria sexualidade (não 111\11 • traição procedem de um mesmo lado: o esquerdO . /'
quero mais saber de homens e vou passar a ser tão cruel quanto eles)

ª
ou o próprio tipo psicológico (meu sentimento, minha intuição ou
fosse lá o que fosse, estava errado), ou a própria vocação (a psico-
terapia é mesmo um negócio sujo). Porque foi justamente pela con- Jcstaria agora de encerrar a questão do que significa a traição
fiança nesses marcos fundamentais da própria natureza que se foi r o filho, o traído, a fim de voltar-me para a outra das nossas
I
atraiçoado. Assim, recusamos ser o que somos, começamos a ludi- I tões iniciais: Que pode a traição significar para o pai? O que sig-
briar a nós mesmos com desculpas e evasivas, transformando-se a '0 para Deus deixar Seu filho morrer na cr\lz é algo que não nos \
auto traição em nada menos que a definição de Jung para neurose I dito. O que significou para Abraão levar seu filho para o sacrifício,
como uneigentlich leiden, sofrimento inautêntico. Deixa-se de viver a ihérn isso não nos foi dito. Mas eles fizeram essas coisas. Eram
experiência pessoal de sofrimento para, por mauvaise foi, por falta de zes de trair, da mesma forma que Jacó, o patriarca, que adquiriu o
coragem de ser, trair-se a si mesmo. 11 status traindo o irmão. Será que a capacidade de trair é inerente à
tcrnidade? Vamos examinar melhor esta questão.
Isto é, em última análise, suponho, um problema religioso, e mais
parecemos J udas ou Pedro ao trair o essencial, a exigência essencial de O pai naquela história não mostra apenas sua imperfeição hu-
que se assuma e se carregue o próprio sofrimento e de que se seja o que , na, quer dizer, não é que apenas não segura o filho. Não é apenas
se é não importa quanto isso possa doer. I queza e erro. Conscientemente ele resolveu deixá-Io cair e causar-
Ih dor e humilhação. Mostra como é brutal. A mesma brutalidade
r&
"\
Ao lado da vingança, negação, cinismo e autotraição, existe ain-
da um outro perigo, um outro desvio negativo, que chamaremos de
paranóide. É, mais uma vez, uma medida de proteção contra novas
traições, por meio da elaboração de um relacionamento perfeito.
li aparece no tratamento que Jesus recebe desde a captura até a
ru .ifixão, e nos preparativos feitos por Abraão. O que acontece com
Ú e com Jó é nada menos que brutalidade. A brutalidade aparece
novo na pele de animal que Jacó veste para trair Esaú, e nas gran-
Relacionamentos desse tipo exigem um juramento de fidelidade, não
bestas que Deus revela a Jó como justificativas de seus tormentos.
toleram riscos à segurança. "Você não deve me trair jamais" - é o
mesma forma, nas imagens do Salmo 22, como vimos acima.
lema. A trai ão deve ser exorcizada por votos de confian a decla-
ra ões de fidelidade eterna rovas de e lca ao, uras secretas. Não
pode haver nem um arranhão; a traição tem e ser excluída. -
Mas se a traição está contida no interior da confiança, como a
semente antinôrnica encerrada nela, então essa exigência paranóide de
um relacionamento sem possibilidade de traição não pode na verdade
estar baseada na confiança. É mais uma convenção arquitetada para
excluir' riscos. Como tal tem a ver menos com o amor do que com o
poder. É~um recuo para um relacionamento baseado no logos, im-
'posto pela palavra e não sustentado pelo amor.
É imI]ossível restabelecer-se a confiança primordial depois gue se
, deixou o Eden. Agora se sabe que as promessas mantêm-se apenas até,
certo ponto. A vida é que toma a seu cargo os Juramentos curo rin- Naquela nossa história o pai explica. Nossa história é mais que
do-os ou guebran o-os. ~ os novos re aCIOnamentos após a experiên- 111 10 uma lição e a própria ação é educativa enquanto iniciação, ao
cia da traição têm de começar por algum outro ponto totalmente ~ que nas lendas arquetípicas e em muitas situações da vida diária.

90 91
o traidor não explica a traição ao traído, pois a traição procede do 11lt'llte, cuja sabedoria está também próxima da traição da natureza.
lado autônomo, esquerdo. inconscient~. Apesar das explicações, nos- !tI me leva aperguntar se a integração da anima não pode mostrar-se
sa história ainda exibe brutalidade. O uso consciente da brutalidade maneira distinta da usual - vitalidade, relacionamento, amor,
poderia parecer um traço comum das figuras paternas. O pai injusto I" inação, sutileza e assim por diante - ou seja, assemelhando-se à
reflete a injustiça da vida. Quando se mostra inacessível ao grito de 11I reza: menos confiável, como água que corre pelo caminho que
socorro e às necessidades do outro, ou admite que sua promessa é r r cer menor resistência, mudando as respostas com o vento, falan-
falível, está reconhecendo que o poder a vra o e ser n- lima linguagem dúbia - ambigüidade consciente, mais que am-
lido Rel s or as a VI a. ste con ecimento das suas limitações mas- vulência inconsciente. Supostamente, o sábio ou mestre, a fim de ser
culinas e esta insensibilidade implicam em um alto grau de diferen- I xicopompo que guia as almas através da confusão da criação, onde
ciação do lado fraco, esquerdo. Diferenciação do lado esquerdo I te uma falha em cada pedra e os caminhos não são diretos, exibe
poderia significar a capacidade de suportar tensão sem ação, de pros- tm , sagacidade hermética e uma frieza que é tão impessoal quanto a
seguir no erro sem tentar corrigir as coisas, deixando os fatos deter- ópria natureza. (5).
minarem os princípios. Significa também que a pessoa deve, em al-
guma medida, superar este desconfortável sentimento de culpa que
impede a realização plenamente consciente de atos necessários, ainda
que brutais. (Com brutalidade consciente não me refiro nem à bru-
talidade deliberadamente perversa destinada a arruinar o outro, nem à
brutalidade sentimental, tal como às vezes a encontramos na litera-
tura, nos filmes e nos códigos dos soldados).
A culpa incômoda e a pusilanimidade conferem aos atos um
caráter ambíguo ~ o que não é tarefa muito adequada para a anima.
Mas a aspereza do pai não dá margem a ambigüidade alguma. Não é
que ele seja cruel de um lado e compassivo de outro. Não é que ele Sei por experiência que toda coerção - seja ela sugestão, insi-
traia e em seguida levante o filho do chão dizendo' 'pobre garota, isto nuação, ou qualquer outro método de persuasão - no final das
me feriu mais que a você". contas acaba sendo apenas um obstáculo para a mais elevada I:'
decisiva experiência de todas, que é estar sozinho com o próprio
Na análise, como em todas as situações de confiança. somos às,

~I
vezes levados a situações em que alguma coisa ocorre que requer uma
SeIr, ou com o que quer que se chame a objetividade da psique. O
paciente deve ficar sozinho se for para encontrar aquilo que o
ação conscientemente brutal, uma traição da confiança do outro.
sustém quando não pode mais suportar a si mesmo. Só essa ex-
Quebramos uma promessa, omitimo-nos quando nossa presença seria
periência pode lhe dar uma base indestrutível.
necessária, atraiçoamos o outro, alienamos uma afeição, traímos um
segredo. Não damos explicações de nossas ações, não aliviamos o
outro de sua cruz, nem sequer o erguemos do chão ao pé-da-escada.
~ão brutalidades - e nós as fazemos com mais ou menos consciência.
(v)
E temos de permiti-Ias e assumi-Ias, caso contrário a anima faz nossos O que então é digno de confiança no bom pai ou no psicopompo?
atos inconsistentes, indiferentes e cruéis. 0111 relação a isso, qual a diferença entre o mago da magia branca e o
lu magia negra? O que separa o sábio do selvagem? Não poderíamos,
Essa insensibilidade aponta para uma integração da brutalidade, II1Ivés daquilo que venho apresentando, justificar toda brutalidade e
com isso aproximando o indivíduo da natureza - que não dá ex- ti lição que um homem possa cometer como um sinal de sua "inte-
plicações de si mesma. As explicações têm de ser arrancadas dela. Essa rução da anima", como um sinal de sua chegada à "plena pater-
disposição para ser um traidor aproxima-nos da condição primitiva nidade' '?
em que somos não tanto os protegidos de um Deus supostamente
moral e de um Demônio imoral, e sim de uma natureza amoral. E as- Não sei como responder a essa questão a não ser referindo-me às
sim somos reconduzidos ao nosso tema da integração da anima, que mesmas histórias já mencionadas. Em todas elas encontramos duas
tem na insensibilidade e nos lábios selados semelhança com Eva e a nlsas: o tema do amor e/ou do sentido da necessidade. A interpre-

92 93
tação cristã diz que Deus abandonou Jesus na cruz porque amou tanto d , porque o perdão não provém do ego. Não posso perdoar di- ,
o mundo que deu Seu próprio Filho pela sua redenção. Sua traição era I mente, posso apenas pedir, ou rezar, para que esses pecados sejam
necessária, perfazia o seu destino. Abraão amava tanto a Deus que se doados. Desejar que o perdão venha e esperar por ele talvez seja
preparou para imolar Isaac em oferenda. A traição de Esaú por Jacob o o que se pode fazer.
era uma necessidade já anunciada no momento do nascimento. O pai
naquela nossa história deve ter amado tanto seu filho que podia arris-
carquebrar-Ihe os ossos, desfazer sua confiança e denegrir a própria
imagem aos olhos do filho.
Esse contexto mais amplo de necessidade ou amor leva-me a
a~reditar que a traição -' voltar atrás de uma promessa. recusa;
ajuda, revelar um segredo, enganar no amor - é uma experiência por
demais trágica para ser justificada em termos pessoais de mecanismos
e motivações psicológicas. Não basta psicologia pessoal; análises e ex-
plicações não resolvem. Deve-se procurar o contexto maior do amor e
do destino. Mas quem pode ter certeza da presença do amor? E quem
pode dizer que a tralçao fÓl uma necessidade, fól o desuno. fOi um
chamamento do Sel(?
De certo, uma parte do amor é necessidade; é igualmente interes-
se, envolvimento, identificações - mas talvez uma maneira ainda
mais certa de se dizer se a pessoa está mais próxima do selvagem ou
do sábio é examinando o oposto do amor: o poder. Se a traicão é per-
petrada principalmente para obter-se vantagem pessoal (sair de uma
.situação difícil, ferir ou usar, salvar a própria pele, aplacar um desejo A sabedoria, como Sofia, é de novo uma contribuição feminina à
.ou satisfazer uma necessidade, defender os próprios interesses) entãp masculinidade, e poderia fornecer o contexto mais amplo que a von-
pode-se estar seguro de que o predomínio não é tanto do amor e sim e não pode providenciar por si mesma. Gostaria de considerar aqui
da brutalidade, do poder. 'abedoria como a união do amor com a necessi a
O contexto mais amplo do amor e da necessidade é dado pelos ar- te rota o fluxo livre do
quétipos míticos. Quando se coloca o evento sob esta perspectiva, o ,tino reconciliando-nos com um acontecimento.
padrão pode tornar-se outra vez significante. O ato mesmo de tentar
Da mesma forma que a confian a contém em si a sem
~ ompreendê-Io nesse contexto mais amplo é terapêutico. Infelizmente 11 lic o. a traição contem em si a semente do perdão. Esta poderia ser
o evento pode não revelar seu significado por muito, muito tempo,
I sposta à última de nossas questões iniciais: "Que posição ocupa a

r
1
enquanto jaz sob o selo do absurdo ou apodrece no ressentimento.
Mas a luta para colocá-Io dentro do contexto mais amplo, as lides com
interpretação e integração, esse é o caminho para fazer andar. Parece-
II leão na vida psicológica em gemi?" Nem a confiança nem o perdão
em ser corretamente ima inados sem a tr . -o..A traicão é o lado
1I1lbriode ambos, a ambos dando sentido, tornando ambos possí-
me que apenas isto pode conduzir através dos estágios da diferen- \. a vez ISSO nos explique um pouco por que a traição é um tema
ciação da anima, há tanto já delineado, e mesmo levar a um passo
(l forte em nossas religiões. É talvez a passagem humana para as ex-
adiante; na direção do mais elevado dos sentimentos religiosos: o per- I iências religiosas tão elevadas do perdão e da reconciliação com es-
dão.
labirinto silencioso, a criação.
Devemos deixar bem claro que perdão não é assunto fácil. Se o
ego errou, o ego não pode perdoar, só porque "deveria", sem con- Mas o perdão é tão difícil que provavelmente necessita da ajuda
sideração pelo contexto mais amplo de amor e destino. O ego con- ",ií.Joo[lW..a.J~~~.' Quero dizer com isto que a falta. se não for lembrada
segue manter-se vital devido a seu amor-próprio, seu orgulho e sua I ambas as partes - e lembrar como falta - recai inteiramente
_ ~,.l.I.!.w.I.Q. O contexto mais amplo no interior do qual ocorreu a
•••.••
honra. Mesmo quando se quer perdoar, vê-se que simplesmente não se

94 9S
tragédia poderia parecer reclamar sentimentos aralelos de No entanto é preciso verificar bem se essa reparação não é apenas
parte. m os encontram-se ainda em uma relacão, agora rQffi.O ipaziguar a mente ou só circunstancial. Não deve ela reconhecer
traidor e traído. Se só o traído percebe o crime, enquanto o outro o iutra pessoa? Creio que este ponto não pode ser exagerado pois
contorna com racionalizações, então a traição prossegue - e até mes- 11I s em um mundo humano, mesmo quando somos as vítimas de
mo aumentada. Esta ilusão com respeito ao que realmente aconteceu 11\ ' cósmicos, como a tragédia, a traição, o destino. Traição pode
é,para o traído, a mais aberta de todas as chagas. O perdão vem com t rar um contexto mais amplo e ser um tema cósmico, mas é sem-
mais dificuldade; os ressentimentos crescem porque o traidor não está no interior de relacionamentos individuais, através de outra pes-
carregando sua culpa e o ato não é honestamente consciente. Jung dis- muito próxima, de uma intimamente imediata, que estas coisas
se que o sentido de nossos pecados é que nós os carreguemos, o que uingern. Se os outros são instrumentos dos deuses para nos trazer
significa não lançá-Ios sobre os ombros de outrem, esperando que este dias, são também o caminho pelo qual a nossa expiação chega
os carregue para nós. Para carregar os próprios pecados é preciso deuses. As condições se transformam no interior do mesmo tipo
primeiro reconhecê-los e reconhecer sua brutalidade. ltuação pessoal em que ocorreram. É suficiente oferecer reparação
Psicologicamente, carregar um pecado significa simplesmente nas aos deuses? Dá-se com isso por encerrada a questão? A tra-
reconhecê-Io, lembrar-se dele. Todas as emoções ligadas à experiência o não conjuga a sabedoria à humildade? A expiação, como o
da traição em ambas as partes - remorso e arrependimento no rendimento, não precisa ser expressis verbis, mas é provavelmente
traidor, ressentimento e rancor no traído - insistem no mesmo' on- I. efetiva se ocorre em alguma forma de contato com o outro, com
to: a em rança. ressentImento, em especial, é uma aflição emo- conhecimento integral do outro. E, afinal, o que é esse reco-
cional da mem-orla que o esquecimento não pode jamais reprimir iimento pleno do outro senão o amor?
completament~. Sendo assim, não é melhor lembrar de u
que oscilar entre o esqu cimento e .
o d
stas emoções
poderiam parecer ter como o jetivo evitar que uma experiência se dis-
f)
solvesse no inconsciente. São o sal que preserva o evento da decom-
posição. Amargamente, forçam-nos a manter a fé ao lado do pecado.
Em outras palavras, o paradoxo da traição é a lidelidade que ambos,
traidor e traído, guardam, após o evento, ao seu amargo r.
E essa fidelidade é guardada da mesma forma pelo traidor. Por-
que se sou incapaz de admitir que traí alguém, ou se tento esquecê-lo,
permaneço enclausurado numa brutalidade inconsciente. Nesse caso
. perde-se o contexto mais amplo do amor e o contexto mais amplo do
destino, da minha ação e de todo o evento. Não somente continuo en-
ganando o outro, como me engano a mim mesmo, pois cortei a pos-
sibilidade de me auto perdoar. Não posso tornar-me mais sábio nem
tenho nada com que reconciliar.
Por essas razões creio que o perdão de um requer a reparação do
outro. A expiação consiste na adoção do comportamento silencioso
do pai, conforme o descrevemos anteriormente. O pai carrega sua cul-
pa e seu sofrimento. Embora tenha perfeita noção do seu ato, não dá
explicações dele ao outro, o que implica em expiá-Io, isto é, em auto-
relacionar-se. Reparação implica também numa submissão à traição
como tal, à sua realidade fatal transpessoal. Ao curvar-me à vergonha
da minha incapacidade de manter a palavra, sou forçado a admitir
humildemente tanto a minha fraqueza pessoal como a realidade de
poderes impessoais.

96 97
NOTAS () CISMA COMO POSiÇÕES DISCORDANTES
1. Being and Having (ed. Fontana), Londres, 1965, pág. 47.
2. Saint Genet: Actor and Martyr, (ed. Mentor), New York, 1964, pág. 191.
3. The Grail Legend, New Y<irk, 1971.
4. The lnner World ofChoice, New York, 1963.
5. "OCéu ea Terra não são humanos
Pois encaram todas as coisas como cães
O sábio não é humano
Pois encara todas as pessoas corno cães" .
- Tao-Te King, n? 5.

Do Grêmio de Psicologia Pastoral: conferência Os senhores deverão lembrar, como eu, dos tempos de escola,
n. o 128, 1964, 1966, 1971, Londres, e também [uelas passagens docemente tristes ao fim de O Mercador de Ve-
Spring 1965, págs. 57-76. ,CI (v. 1), quando Lorenzo e Jessica trocam citações de amores
Conferência proferida em 2 de outubro de 1964, IIJI'os encontrados nos Clássicos. Diz Lorenzo:
em Londres.
"Numa noite como aquela,
Dido, um ramo de salgueiro na mão,
postou-se sobre o mar selvagem
e sussurrou ao seu amor
que voltasse a Cartago ",

"A despedida na praia", diz Gaston Bachelard, "é ao mesmo


mpo a mais dolorosa e a mais literária das despedidas". É uma
gern perene - que pode ser encontrada também no inicio de' A
ulher do Tenente Francês, de John Fowles, a heroína perambulando
I ncolicamente numa encosta sobre o mar - porque se trata de
experiência também perene. Entre nós dois estende-se agora o
IlOO, abismos de sal, frio e escuridão. Apesar de hoje em dia ser fácil
ruzá-lo, por telefone ou avião, mesmo assim são agora dois mundos
n vez de um só, continentes distanciados, como se cada um fosse uma
Ih ,isolado.
Assim é partir; não se trata porém de cisma, que é um tipo es-
'111 de artida talvez a ior: a se ara ão. Feia palavra esta, algo
devemos evitar: se arar ou se arar-se exclUir coisas e essoas.
na si nifica ferida, corte de machado foice, ru tura. Conseqüen-
11\ nte, não é boa coisa para a integração, pois dificilmente pode ser
nslderado como fator totalizador, que favoreça o crescimento, a
1111 se e os demais fatores com que operamos. De modo que cisma é
1\ daqueles fenômenos que requerem uma reavaliação a fim de se ter
, I idéia sobre o que são de fato e o que deles merece ser reabilitado;

98 99
é outro daqueles fenômenos que precisam ser resgatados pela discus- divisão ocorre não é em si, do ponto de vista psicológico, a
são psicológica, que é diferente da discussão moral - e vamos obser. da ruptura. Como psicólogos não nos deixamos enganar pelo '
var bem esta distinção. O moralista pergunta o que podemos faze! r Iclativo dos argumentos que querem mostrar de que lado está a
com a disposição para o cisma, enquanto que o psicólogo pergunta) li' e de que lado está o desvio, o mal; nem nos deixamos enganar
reflexivamente: qual o seu lugar na vida psíquica. qual a sua neces- torça ou pela fraqueza dos indivíduos, por seus méritos, por suas
sidade? onalidades. Nosso interesse volta-se, como psicólogos, para o
mcno em si - o cisma - para a sua carga extraordinária de
REFLEXÕES I o e para a qualidade específica dessa paixão, tão dilacerante e
Intclectual. Manifestações assim exageradas - como Freud e seu
Quando pensamos em cisma - especialmente aqueles com in- \110 com o anel de sinete que todos eles usam - as trovejantes mal-
teresse teológico - em nossas mentes ressoam os grandes cismas da s megalomaníacas, os anátemas, as torturas dos herejes, as jus-
cristandade. O primeiro pensamento que nos ocorre a respeito do cis- I II1;Oesdoutrinais detalhistas, as vinganças arquitetadas, o erro
ma é em termos de religião, e foi assim que esta palavra entrou para o h lu: a intensidade desses elementos indica que algo mais está em
uso corrente. "Esquizóide" e "esquizofrenia" são termos cognatos o, além do mero choque de personalidades e do embate de idéias.
muito posteriores e muito menos expressivos. A palavra cisma tem um
significado que não se afasta muito da noção que dela tem o senso Na tentativa de posicionar o cisma: e os afetos que suscita, de- /
comum, genérico. Podemos lançar mão da imagem, tão apreciada I )$ evitar a rubrica crescimento. De fato seria cômodo colocá-Io aí:"
pelos conferencistas britânicos, do "homem comum" de "senso .ímento é um conceito tão eneroso, tão cálido abarca tudo como
comum" que acha que cisma tema ver com separações doutrinais; e ura ,como fazendo arte do desenvolvimento da ersonali-
"elo menos desta vez o "homem comum" acertou em cheio. Pois se ssim é que a Psicologia deveria apreciar este novo esquema
prosseguirmos nossa discussão da necessidade psicológica, viremos a I .eitual da Grande Mãe e Seu Filho, que vê toda mudança psíquica
reconhecer que de fato a metáfora e o esquema teológicos são psi- 11I0 desenvolvimento e todo processo como um sinal de crescimento.
cologicamente fundamentais. , filosofia nos transforma a todos em crianças outra vez, e embora
11 esta uma condição supostamente adequada para cristãos e para
Mas examinemos antes um pouco das emoções. Os senhores 11I nticos, a filosofia ou fantasia do crescimento torna a psicologia
foram informados de que o título desta conferência é "Relacionar-sei I imalmente materialista e infantil. Crescimento é mesmo um pon-
Partir" e desde logo fiquei sabendo que o tópico que me cabia era o I vista apropriado e uma metáfora necessária para crianças; mas
mais pesado: a partida - radical e unívoca, irrevogável, a mais pe- ,1\ adulto, crescimento significa engrandecimento, sobrecarga,
nosa e a mais literária, isto é, apaixonadamente intelectual; uma I rpopulação, assassinato em massa, câncer, escalada, prolife-
posição à beira-mar; as "lúgubres e desertas praias do mundo" (Mat-
ç o. De modo que crescimento transformou-se na metapsicologia
thew Arnold); sem possibilidade de gritar por socorro; excomunhão. I undecida de cidadãos adiposos em uma cultura decadente, Ora,
A partida cismática é cheia de rancor e amar ura: odeio você e a sua [amos francos e lembremos que nós aqui nesta sala não estamos
pOSIção,seus pensamentos e sobretudo sua cegueira. O que nos separa I scendo como plantas ou como crianças, mas, como disse Buda, es-
agora não é uma determina ão su erior nem a necessi . '1110 decaindo, e nossos cérebros, como uma floresta decídua de
ma ; as trevas recaem so re voce pois não partilha mais a minha visão lulas descamativas, correspondem, no processo psíquico, a um es-
e não pode enxergar aonde errou. Ao afastar-se de minha posição in- " itamento de horizontes e a uma redução de possibilidades, mesmo
troduziu em mim a dúvida, Zweifel, o demônio. Não é de admirar que uando mudamos; o império de Saturno expande-se na psique a cada
certa tradição sustente que todas as divisões são obra do diabo e que o I\ que passa, trazendo limitações constrangedoras em muitos sen-
veneno diabólico penetra na religião principalmente através do cisma Il los, inclusive os sintomas inevitáveis e os sinais irreversíveis da
e da heresia.
udência física e psicológica. O cisma provoca alterações sim, mas
Um cisma pode referir-se a questões tais como a unicidade ou a 11 ra ão não é necessariamente crescimento, Ignorar as limitações e
trindade de Deus, protestantismo ou papismo, Cristo-Homem ou . Ir no crescimento (à maneira de Teilhard de Chardin, por exem-
Cristo-Deus, comunismo em um só país oucomunismo internacional, o) pàra falar de expansão da consciência, de crescimento em direção
épocas e tipos de batismo, teorias da libido, da arte, cosmologia, Indíviduação, de desenvolvimento para maior síntese da totalidade
educação, economia ... seja qual for o conteúdo, o substrato sobre o , enganarmo-nos a nos mesmos co ocando fat s ue têm a ver

100 101
com a alma de homens e mulheres amadurecidos, e com suas mortç~
em confronto com uma base arguetípica inadequada de crescimento
de vida. .

Assim, entender o cisma como !1m processo bjolÓgjco - O es-


quizocarpo, rompendo-se para libertar as sementes, o solo rachando
para relva brotar, as células' dividindo-se para o surgimento de uma
geração nova na verdade colocaria as einocÕes desagregadoras do
cisma contra um ano de fundo otimisticamente inade_ llacto. A
ran e ãe, que privilegia as metáforas biológicas, encarando as
coisas como "apenas naturais", o que vale dizer, "',confortáveis",
remove a aflição, suaviza o corte da faca, docemente nos persuade que
- o ódio é apenas uma reflexão de um processo necessariamente impes-
soal da natureza sobre o nível pessoal. Assim, os psicólogos do cres-
cimento nos enganam quando dizem: as coisas devem se dividir a fim
de crescer, as dores que se sente são dores de parto, a destruição é na
verdade criação disfarçada. Não olhem tanto para a divisão, dizem
eles, mas para o que está sendo produzido com a divisão - a criança
sem história, sem passado, sem nenhum interesse por aquilo que se
dividiu a fim de que ela nascesse. Em frente, para a frente e para o alto.

Semelhante ao es uema ilusório do crescimento e i u


inadequa o e o eSquema a separação. stamos acostumados - de
modo especial na Inglaterra, devido à influência de John Bowlby,
Melanie Klein e dos junguianos menores - com a idéia psicodinâmica
de que inicialmente os seres humanos encontram-se num estado de
fusão com a mãe, com o inconsciente coletivo, ou com o Self, pos-
teriormente ocorrendo a separação; o ser humano separa-se daquilo a
que estava pres~. Fusão inicial seguida de separação a fim de se en-
contrar identidade e individualidade. O cisma seria então uma ten-
tativa radical de identidade individual através das emoções da partida
e da separação. Devemos abandonar o território original, seja ele a
mãe e o seio reais ou a mãe e o seio internos, simbólicos, ou o dragão,
a escuridão, o inconsciente coletivo, ou o Self. O cisma é considerac!.o
como se fosse um está io necessário do desenvolvi me
processo e individuação. Começamos já a perceber que o cisma pode se apresentar de
<

cordo com diferentes visões: visto do interior do cosmos da Grande


Detenhamo-nos um pouco nessa última idéia; raciocinemos e sin- c é uma necessidade biológica, uma alternativa de crescimento. No
tamos o que essa fantasia de individualidade significa - pois não im- tanto, se é uma questão precipuamente doutrinal, intelectual, então
plica em ser a individualidade, em suas origens, uma condição de vez o cisma pouco tenha a ver com metáforas maternais, botânicas
separação, isolamento, ruptura? Não tende também a caracterizar o vegetais, e devemos sair em busca de outras representações para o
ego em seu desenvolvimento como esquizóide, como se sua força em nte da ruptura, por exemplo o Herói com a adaga, ou o Grande
parte dependesse de seu isolamento, e como se o seu principio de Inimigo divisionista, ou ainda Dionísio mutilado, o dividido/indiviso,
realidade fosse o da competição isolada, cada um por si, responsável mo era chamado. Um fenômeno - no caso, o cisma - terá, numa
por si mesmo, uma visão hobbesiana de tudo contra tudo, de indepen- icologia arquetípica, várias perspectivas míticas possíveis.

102 103
Voltando à questão inicial - corno se posiciona o cisma na vida
psicológica, qual a sua necessidade -'- podemos notar uma simila-
ridade entre as várias metáforas do cisma, sejam elas vegetativas,
psiquiátricas, obstétricas ou mesmo geológicas (nestas a palavra cog-
nata xisto refere-se a um cristal de pedra que se rompe facilmente em
camadas), O denomipador comum dessas metáforas é q ",nidade que s~
transforma em multielicidadej a divisão forma dois, uma díade, uma
polaridade ou um campo policêntrico. Da mesma forma podem ser
'·vlstas as diVisões doutrinais: a posição única, monoteista, unitária,
decompõe-se em várias. Um outro Deus nasceu, o Deus da Multi-
plicidade.
Assim a recusa de Henrique VIII de submeter-se à lei de Roma,
lmbolo da unidade, tinha de levar a Uma reação cismática do Papa
"schisma patimus, non fecimus"; preferiam os ingleses dizer).
pesar de haver motivações econômicas e políticas para as ações de
nrique VIII, seu "caso" forneceu um paradigma notório par~ a mis-
ra de psicologia pessoal da anima com cisma doutrinário. A dou-
Ina unificada da Igreja não podia acomodar todas as exigências da
lrna de Henrique VIII. Nem tampouco Ana Bolena o conseguiu: não
tornou uma amante para o trono, mas do trono. Alguma coisa
, Ilha de ceder, tinha de haver uma ruptura. Henrique VIII não cedeu,
modo que o que cedeu foi a unidade do casamento e a unidade da
I reja. A causa efficiens, o ímpeto imediato que colocou Henrique
111 em seu perigoso caminho teológico foi sua paixão por Ana
olena.

Os principais escritos da Igreja primitiva sobre O cisma são os de


Cipriano e, posteriormente, os de Agostinho. Cada um deles escreveu
sobre o fenômeno em tratados intitulados "Sobre a Unidade da
Igreja" (de Ecclesiae unitate). A idéia do cisma só fazia sentido quan-
do colocada numa perspectiva de unidade prévia. Nas palavras de
Agostinho (contra epist, Parmeniani, l I, 8) os cismáticos são aqueles
que "separam-se a si mesmos da Unidade". Enquanto a heresia tem a
ver com enslnamentos sacrílegos, "sois cismáticos devido à vossa
sacrílega separação" tEphes. v. 27, itálico meu).
De modo que no cristianismo a palavra cisma adquiriu um valor
que não era o habitual entre os primeiros filósofos gregos, cuja psi-
cologia politeísta permitia-lhes talvez encará-Io com um fato da vida
natural, por ex. em Platão (Fédon, 97 A, IOJC) como bifurcações de Por isso quando eu ou os senhores nos envolvemos em tais con-
caminhos, e em Aristóteles (História dos Animais, 4, 7, 8) como a fen- litos dolorosos da idéia e somos então julgados, por colegas bem
da de um casco. ,o cisma não é uma ameaca nem uma aDoru;a1idade visados, em termos da anima: ele está sujeito aos humores da anima;
quando as estradas se dividem 011 <mando os cascos apresepta~ lia anima domina todo o seti pensamento; é por causa das mulheres
-
feA

104
I li o "outro" e só depois que o outro produziu seu efeito nele ou
I é que o triângulo se forma. Até então a conjunção matrimonial /I

cionou como mandala protetora ou transformadora, mantendo


os os demais ao largo, estabelecendo uma série de hábitos, um sis-
a ilusório ou transformativo dentro do qual a força do amor
deria ser contida. O terceiro elemento liberta o amor dessa estrutura
lquica. Quebra-se a mandala. Por algum tempo parece que todos
ram loucos e buscam também loucamente novos sistemas e jus-
\cativas capazes de conter a energia. Para construir novas defesas,
uvas estruturas, lançamo-nos ao estudo teórico do amor, usamos
velas e filmes como modelos, pomos toda a culpa no complexo de
Inheiro, falamos com amigos, analistas, ministros religiosos, ape-
I mos até para a Bíblia.
O triângulo necessariamente liberta um exército de demônios,
ois rompe a unidade da estrutura psíquica e os pares de opostos que
equilibram e se compensam. O "outro" representa "todos os
utros", relembrando-nos da natureza da psique potencialmente dis-
ociável em múltiplos.
A psicologia tem dito muitas coisas a respeito da individuação
processada isoladamente - o um que caminha para o Um - e a res-
I" ito da individuação na díade (ou quatérnio) - relacionamento,
No conflito de Henrique VIII o foco foi centrado no divórcio e res, conjunção - mas o triângulo é situado ao lado dos demônios:
di~órcio é. realmente uma das formas pelas quais o cisma nos atinge Imensa quantidade de energia psicológica encerrada na raiva, no
hoje em dia como experiência vívida e ameaçadora. Onde havia um iúme, na ansiedade, nas ilusões. Deveríamos reexaminar todos os
só, unido em matrimônio, preso pelo anel de ouro com exclusão de r lacionamentos triangulares - casal e criança, casal e amante, casal e
t~d?s .os demais (desprezados, abandonados), ha~erá divisão pelo nalista, mãe-filha-genro etc. - usando um modelo que faça mais
divórcio. O casamento sofre uma divisão, e um casamento com di- ustiça às paixões desencadeadas. Por que a mãe e pai comportam-se
visão, como uma Igreja com divisão, é uma impossibilidade. A visão 'um tanta desenvoltura até o momento em que o filho entra no quar-
monogama do casamento corresponde a uma visão monoteísta de 10, ou por que um paciente em análise precisa gastar tanta energia,
Deus; por isso não surpreende que boa parte dos escritos teológicos luntasiando sobre a esposa do analista ou sobre o paciente anterior? A
que tanto insistem na unidade refiram-se ao tema do casamento O metáfora original de Freud (Êdipo) era triangular. E ficou sendo a
divó,rcio na vida humana alude à possibilidade de cisma em Deus. 'As única metáfora de que a psicologia dispunha para questões de extraor-
me~afor~s do Velho Testamento para o politeísmo são metáforas de dinária importância. Alguma coisa que é arquetípica está ocorrendo e
poligamia e de promiscuidade. tem um efeito intensamente dissociador sobre uma unidade previa-
O matrimônio -:- .mes~o quando secular, feito por juiz de paz - mente dada, embora pareça aumentar o fluxo de energia entre as
tem um fundo teológico. E formulado também dentro de uma lei e partes. Já não é passível a unidade com uma visão unitária, se bem
afiançado por palavras, e psicologicamente inerente a esta forrnu- que exista uma união com intensa diferenciação possibilitada pelos
lação ~~contra-se o ?ivórcio. Pois, se minha tese é correta, quanto ufetos assim chamados negativos.
n:'als rigidamente se Insistir na unidade, mais se constel ará a diver- A questão levantada pelo cisma do divórcio exige que a reflexão
~ sidade. O "outro" repudiado deve inevitavelmente aparecer: é a volta
{ ncarninhe-se por novos rumos. O triângulo oferece um desses rumos,
do que fora reprimido.
mas também ele precisa de uma perspectiva liberta de nossos modelos
~ situação que ocorre então é chamada de triângulo, mas o triân- nteriores de unidades, modelos que não deixam espaço suficiente
gulo e postenor ao evento. Primeiro a unidade do casamento cons- para a compreensão de multiplicidades polivalentes.

106 107
ndària Dido com a eflgie impressa nas moedas cartaginesas, ter-
Voltando a Dido e Enéias, e dessa vez refiro-me à obra de Vir-
I a image~ arquetípica da anima perturbadora, inspiradora da
gílio, encontramos um episódio - realmente arrasador e literário -
diretamente relacionado com o nosso tema. Os senhores devem lem- ra,
brar-se que Dido era a rainha de Cartago, que se apaixonou por Deste modo, quando as pessoas apaixonam-se, não são apenas os
Enéias. Enéias porém era filho de Vênus, e era atormentado e per- Ihus os lábios e os corações que se encontram, mas também as
seguido por Juno. O conflito em Enéias e entre ele e Dido, começa no ,Iogias. Vamos ao encontro não apenas do amor mas de uma id~ia
céu como um conflito entre Juno e Vênus. O amor de Dido vai cres- imor. Juno e ·Vênus representam duas formas de amor e tambem
cendo enquanto Enéias e seus soldados, batidos na guerra, fatigados I s filosofias do amor derivadas de diferentes. persp~~tivas arque-
da viagem, descansam em Cartago. Vênus teme que ele possa não ser ti 'as discordantes - em parte porque, a propósito, Enêias não deu.a
bem recebido aí, ou que se distraia e perca de vista seu objetivo, a o pleno reconhecimento (Lv, III, li, 430). Colocamos numa SI-
Itália, e a fundação de Roma. Juno entretanto está bem contente com ção um fator subjetivo "vindo dos céus", isto é, carre~amos
o desenrolar dos acontecimentos - a paixão de Dido, obra de Vênus nosco uma perspectiva regi da arquetipicamente por um dominante
para garantir para Enéias um porto seguro. prapessoal, que plasma nossas idéias de acordo com o logos de deter-
Inado theos. Carregamos conosco uma teologia. -
Juno pretende tirar proveito político disso, dizendo a Vênus: "A
que nos leva nossa rivalidade? Não seria muito melhor, através de um Na teologia Clássica (que chamamos. mitologia), um.a das divin-
casamento, selar uma paz duradoura? Você já conseguiu realizar os des que mais causam perturbações, do típo que hoje designamos por
desígnios de seu coração. Bem, então unamos duas nações e reinemos " nima", é Afrodite (Vênus). É responsável, a seu modo, p~r numero-
sobre elas com igual autoridade". Agindo em conformidade com isso, lS cismas. Devido a ela Páris faz uma escolha que contrana a Atenas
providencia para que, durante uma tempestade, os amantes encon- I Hera, uma escolha entre perspectivas arquetípicas, que resulta nes-
trem-se numa caverna onde Juno os unirá em matrimônio dura- relato épico de separações, que é /liada, em que se funda.me~ta
douro. "Vênus", diz Virgílio, "não colocou nenhuma objeção à 1 nto de nossa cultura. É também Afrodite quem atormenta Hipólito
sugestão de Juno, embora tenha sorrido da sua ingenuidade". (por meio de Fedra), afastando-o de seus companheiros e de sua bu~ca
unilateral de Artemis; atormenta também as mulheres de Lemnos, 10-
Tudo acontece conforme Juno planejara. Os amantes encontram- IIlgindo-lhes um mau cheiro, separando-as de seus homens e trans-
se na caverna, cada um trazendo dentro de si as posições de sua deusa. formando-as em amazonas. Em cada um desses casos, Afrodite insiste
"Dido não dava importância alguma às aparências ou à reputação: o m receber sua quota de atenção humana de que uma deusa é me-
amor que incubara dentro de si mesma, deixava, a partir de então, de r cedora. Helena, encarnação humana de Afrodite, é um instrumento
ser um amor secreto; Casamento foi o nome que lhe deu, cunhando o lue mobiliza milhares de navios, e, atravé~ dos afetos q.ll:econstela -
termo para encobrir o seu pecado". Os senhores sabem como tudo . mo as indisposições provocadas pela anima (como dinam os PSICÓ-
termina, como vem recontado em O Mercador de Veneza: Enéias logos se tivessem Henrique Tudor em análise) entre Roma e Inglater.ra
nunca encarou o seu amor e união com Dido como casamento, pois prepara-se um cisma, forçando uma cisão entre os deuses. Afrodite
era filho de Vênus, e Júpiter e Mercúrio relembravam-lhe o seu des- c: Ares (Vê nus e Marte) são amantes secretos, isto é, confundem-~e, .de
tino, de modo que o que diz para Dido quando se separam é: "São modo que a doçura do amor e o amargor da guerra não são tão distin-
suas ordens: vi o deus, claro como o dia, com meus próprios olhos, tos quanto se supõe.
entrando na cidade, e meus ouvidos ouviram atentamente as palavras
Quando Jung escreve que a anima e o velho. sábio têm uma
que proferiu, Chega de censuras, então - elas apenas nos torturam a
relação íntima, por vezes indiscernível, refere-se àquilo que podemos
nós ambos. A vontade de Deus, não a minha, diz 'Itália'." (Passagens
entrever em curso nas disputas teológicas. Estas começam com ri-
citadas do Livro IV da Eneida de Virgílio, tradução de C. Day Lewis,
validades e alterações da anima, com intrigas, ressentimentos, insul-
Londres [Hogarth Press], 1961). Dido, tendo tido a visão de outra cena,
lOS, vinganças. (O cisma donatista, tão importante no século IV,
preparada por um Deus diferente, enfurece-se, com toda a razão,
começou em parte devido às intrigas de Lucila, uma mulher emg-
desespera-se, amaldiçoa, e finalmente se mata. "Escolhemos nossos
mática historicamente obscura, amiga dos bispos rebeldes). Pro-
destinos quando escolhemos nossos deuses" (Virgílio). Este cisma, tão
blema; de vaidade pessoal e desejo transformam-se finalmente em
literário, tão dilacerante e tão à beira-mar, representa todo o complexo
posições doutrinárias a respeito da natureza do homem, de Deus, e do
de ódio e rivalidade entre Roma e Cartago, entre Europa e África. A
109
108
universo, pelas quais homens matam e morrem. Mas as idéias estão m s mo-
presentes no início, do mesmo modo que as paixões no final. mente ., ríamos anho uma excomunhão or nos se-
comunhão com a multi licidade das formas. Assim é ue
. Na busca de uma afirmação fundamental a respeito das intenções a v ri de e itomisada ela romiscuidade de
da anima ao promover tais perturbações, recorremos aos temos em I d ue
que Jung a descreveu (ao lado do animus): ontos ~. A e ser reconheci! s divisões
trinárias a que nos referimos como cisma. A possibil~dade do eis-
Eles são literalmente o pai e a mãe de todas as complicações desas- muito remota em um universo policêntrico. As bngas entre os
trosas do destino, e há muito que são reconhecidos como tais por 11 s não são cisma. Mas em todo sistema cuja ênfase recai sobre a
todo o mundo. Juntosformam um divino par ... a anima assume os Id de, como a Igreja com seu credo único e seu Deus único (apesar
traços de Afrodite, de Helena (Selene), Perséfone e Hécate. Am- que em três pessoas), o cisma é inevitável, co~o se o rnonolito,
bos são poderes inconscientes, «deuses" na verdade, como o mun- trus, sobre o qual está edificada, fosse potencialmente um xisto
do antigo tão acertadamente os concebeu. Chamá-tos por esses Ilógico.
nomes é dar-lhes uma posição central na escala de valores que sem- Quando falo em "forçar uma cisão entre os deuses" refiro-me a
pre foi sua, seja isso conscientemente reconhecido ou não ... talha humana. Inslstmdo na clarIdade das linhas de ..
(CW9, /l, §41).
ro ne a e as efmi ões romovemos divis s. Em um certo
ntido assumimos a disputa dos deuses com nossa unilateralidade,
Na mesma obra (Aion, §427), Jung correlaciona anima/animus
u enobrecemos chamando-a de opção e de livre-arbítrio. Quand.o
com politeísmo e Self com monoteísmo (cf. Spring 1971, para uma dis-
I lstirnos na encenação concreta e literal do mito que nos for mais
cussão deste tema: "Psicologia: Monoteísta ou Politeísta").
11m então ao escolher um padrão para nossos desempenhos, tor-
Em outras palavras, o conflito trazido pelaanima tem como subs- " 1Il~-nos ~nilaterais. Tornamo-nos. psicologicamente monoteístas.
.trato a multiplicidade da asiau«. Multiplicidade é um dado abs~- lu opção unilateral pode ocorrer até mesmo numa religião politeis-
lutamente básico na descri ão ue J n da s· ue. A estrut da I I quando é então chamada de henoteísmo.
pSique e policêntrica. um campo que abriga muitas luzes, centelhas,
Há uma diferença entre religião monoteísta e psicologia mo-
olhos; sua energia se dissemina por constelações, como um céu es-
lista. A primeira ê uma crença e a segunda uma atitude. Podem~s
trelado. Jung não toma essa descrição como ponto de partida, apesar
r uma sem a outra. O judaísmo, por exemplo, parece ser mais
de às vezes se ocupar da pluralidade (CW 34, § 105, 156); mas seu
ionoteista na religião do que na psicologia. No judaísmo D~us não é
temperamento introvertido, suponho, preferia a tendência monística
finido e a Torá pode ter 600.000 faces, uma para ~ada J~deu no
(CW 6, §536). Como a anima é a mediadora entre a personalidade in-
llio. O conteúdo da crença é deixado em suspenso, nao codlfic~~o,
dividual e seu contexto coletivo, arquetípico, torna-se a representante
da mulilpl:cldade, que nos cinde promovendo divisões com iss , ndo a psique livre para a fantasia. Os volumes de com~ntan~s
em ran o quao comp exa e a tota I a e: Judaicos trazem fantasias intermináveis. De mod~ algum .sao her~-
I 'as. Embora a religião continue sendo .monotelsta, a. a~l~ude PSI-
ológica que lhe é inerente exibe toda a vanedade da ~~ltl~hcJdade. O
'I~ma é raro (exceção feita ao maior de todos eles, o cnstianísmo).
Com monoteísmo psicológico estou me referindo à atitude literal
III relação a eventos psíquicos que tend.e _a excluir s.eu jogo especu-
I tivo, mítico, suas 600.000 faces. Uma visao predomina, tenta est~n-
I r seu sistema para formar uma "unidade"; a unidade converte, JO-
I gra e engole a multiplicidade. Como Dido, vemos apenas a cons-
I (ação no interior da qual estamos, a postura q.ue ao m~s",?o tempo
1I0S faz ver e que nos cega. E~ contraste.jg atl~ud~ pohtelsta r~co-
IIhcce desde o início a olivalêncla da estrutura SI Ulca. ~s fronteIras
ma e mi as, e modo a permanecerem abertas para o fluxo e a

110 111
interconexão entre os arquétipos e as imagens. "O fato é que os ar- ,
. quetIpos não estão isolados um do outro no inconsdente_ mas se en-
~ contram num ~stado d.e_~onlaminação_, da mais completa; mÚtua ín-
?-' 'terpenetração e interfusão". (C.G.Jung, "Arquétipos do Inconsciente,
Coletivo", [Trad. S. Dell]., A Integração da Personalidade, Londres,
1940, pág. 91). Não se pode dizer que esta atividade ou esta imagem
pertença sempre a este ou à uele Deus ois os deuses não s- tão
. c aramente e 101 os. Não podemos estar muito certos se se trata d~
um "humor de anima" ou de um "atague de animus". Não se ode
mesmo estar certo de ue o amor e o ódio este·am se arados or ue
Marte e Venus se entrelaçam. A imaginação mais especula do que fiJS.a..
em conceitos; as linhas demarcatórias se dissolvem. Os deuses im-
phcam-se uns aos outros. Por isso encontramos tanta dITiculdade com
a religião grega: os deuses misturam-se uns aos outros, não se manten-
do em esferas distintas como gostaria nossa consciência literal e
monoteísta. Queremos que opostos irreconciliáveis, que requerem
funções transcendentes, graça e mágica sincronística, unam-se em sín-
tese. Forçamos a cisão entre os deuses.
Os deuses são levados à cisão devido às fortes resistências do ego.
Estas criam entre os deuses uma terra-de-ninguém demarcada por
nossos diagnósticos psiquiátricos. Adotar uma posição entre os deuses
e no meio dos deuses, quando eles se interpenetram e se fundem, é
ficar num "estado fronteiriço", cujas possibilidades são negadas pela
insistência do ego heróico em posições bem definidas.

CONCLUSÃO

O significado psicológico da estrutura policêntrica da psique, e


sua reflexão no politeísmo pagão, vão talvez mais além do que somos
capazes de imaginar. Se existem posições realmente discordantes em
relação a um único e mesmo evento, e se essas posições são deter-
minadas por diferentes perspectivas arquetípicas, temos de nos recon-
ciliar a nós mesmos com diferenças mais profundas e com separações Apesar das posições poderem ser incompatíveis, elas não deter-
ainda mais desagregadoras do que as de sexo, idade, nacionalidade, inam a animosidade do cisma. Podemos, afinal, ficar juntos no
cultura, classe, atitude e tipo psicológico - todas essas são dados I l, da mesma forma que podemos ficar separados no amor. Em
sociais, históricos ou biológicos, mas não são vindos do céu. Tanto I a psicologia coloca o ódio na partida e o amor na união, mas isso
quanto o homem foi criado à imagem de Deus, nós fomos criados à ) seria fácil demais? É fácil me afastar de você no ódio e ficar com
imagem 'desta ou daquela face de Deus, ou à imagem deste ou daquele , no amor. Mas o reverso dessas antinomias é aquela arte psico-
Deus, e nossa criação não é um acontecimento histórico único mas um lca que chamamos de "consciência". É uma consciência que habita
evento metafórico contínuo que oferece possibilidades de interpre- nueiras, que se posta à beira-mar.
tação e de encenação.
Já que fomos criados à imagem divina. nossas imagens são tam-
bém divinas. Em nossa imaginação refletimos as diferentes divindades
do reino das imagens. ,Em nossa subjetividade somos governados por

112
TRÊS TIPOS DE FRACASSO E ANÁLISE

Para mim, a quem foi dado o conhecimento da multiplicidade e da


diversidade dos deuses, está bem. Mas ai de v6s, que substituis es-
tes incompatíveis muitos por um único deus. Pois assim fazendo
tornai-vos merecedores do tormento que nasce do não entendi-
mento e mutilais a criatura cuja natureza e finalidade é a diver-
sidade. Como podeis ser fiéis à vossa natureza se tentais transfor- FRACASS@NALlSE
mar o múltiplo no uno? O que fazeis com os deuses é feito igual-
mente convosco. V6s vos tornais iguais, aleijando a natureza ... O insuç.esso no tratamento, analítico de certos tipos de caso é fato
A multiplicidade dos deuses corresponde à multiplicidade do 11I conhecido de todos nós. E particularmente difícil obter-se "boa
homem. posta terapêutica" de pessoas cujos "problemas" envolvem
uncssexualidade, alcoolismo ou depressões crônicas. Podem-se
r scentar a estes as obsessões paranóides, as assim chamadas
uroses de caráter graves, e os indivíduos diagnosticados como
. opatas. U.ma. quantidade assim tão grande e variada de casos que,
Do Grêmio de Psicologia Pastoral: Conferência 1'1 Imente indicados como eletivos para análise, redundaram em
n. o 162, Londres, 1972. Palestra proferida em 24 . ssos, faz-nos crer necessária uma reavaliação da análise à luz
de setembro de 1971 na Conferência Anual do ses mesmos insucessos.
Grêmio, em Oxford.
'eConhecemos também casos em que a análise malogra pela jnter-
,nl ncia de um tumor maligno ou interromne-se oor suicídio ou
~mde ser abandonada ou transferida devido à emerzência no analis-
, d~ uma re.ação contratransferencial que constela fantasias por
ema.ls descabIdas, tr~nsbordamentoLatetivos ou lacunas psicopa-
I IIÓaicas. Fracassos menores t::llVP7 nOleeOlr desaoercebidos

nl lises que têm como sUQorodutos estremecimentos no interio; da


unília, perda de adaotacão extrovertida romoimento de amizades'. ~~

É possível examinar as inúmeras variantes de fracasso na análise


bmetendo-as à reflexão clínica não somente nossa mas também de
urros analistas, com a finalidade de se corrigirem os fracassos
r sentes e minimizar os futuros. Este modelo de reflexão clínica é
nção do padrão empírico e moral dominante de nossa cultura:
r ndizado através do erro, ensaio e erro, aprender fazendo - se
o tem êxito da primeira vez, tente, tente de novo - em que o
iodelo perseguido é o de um constante aperfeiçoamento, capaz de

114
l1S
nos pôr a salvo de enganos, erros e fracassos, na trajetória rumo à
competência.
Numa metáfora assim, fracasso e sucesso comparecem como.dois
termos de uma antinomia, o que nos leva à propensão de avaliaro A literatura mostra que assim como existem estudos sobre o in-
fracasso normativamente, quer dizer, como uma privação do sucesso, \I' SilO na análise de certos casos, também existem estudos sobre o
O fracasso fica situado no pólo oposto ao do tratamento bem suce- r • ISSO da análise como um todo. As reflexões de Freud sobre a
dido' sucesso corresponde ao mínimo de falhas. O êxito de uma I nálise Terminável ou Interminável" são o locus c/assicus desse tipo
, imista de consideração.
análise estaria na dependência dela ser bem sucedida na remoção
\
daquelas formações que representam áreas d~ fracasso do c~so - erá que a análise chega ao fim, em termos de tempo ou de es-
como as prevalentes formações de homossexualidade, do alcoolismo e
t mento dos elementos analisáveis? Será que a transferência é um dia
do pensamento delirante - passando o fracasso a si~nificar a su~ per- olvida e a individuação alcançada? Mesmo se não chega a curar, será
manência a despeito do desenvolvimento da personalidade e do discer- 11 a análise proporciona ampliação da consciência, aprofundamento
nimento ganho com a análise. personaíídade, maior capacidade de amor, adaptação melhor sen-
Apesar de tão simplista, essa esquematização de fraca~so e s~~es- o para a vida? Trazendo a questão para mais perto de nós mesmos
so tem dado ensejo a sofisticadas discussões no terreno psicanalítico. mando-nos como paradigrnas do processo de que participamos há
A análise existencial descarta co~pletam~nt: os critérios normativos nlo~,an~s, que efeito tem tido a análise sobre nossa adaptação, nossa
de sucesso e fracasso. Já a terapia behaviorista, por seu turno, con- nsciencía, nosso amor?
sidera o fracasso apenas nos termos dos critérios normativos do fun-
-cionamento positivo, desacreditando a análise como método de cres- Pondo as coisas em outros termos, onde estão as estatísticas dos
os e dos resultados em cada grupo de casos capazes de conferir
cimento da personalidade e de ampliação da consciência se não houver
!idade às afirmações feitas? E como formular sequer essas estatís- .
evidência positiva de eliminação do sintoma e alívio da tensão.
, • S se hOJe se contesta os critérios de classificação nosológica para
Conforme definirmos a análise, estaremos igualmente definindo. nossos casos? "Paranóico" é um termo válido como referente real?

!
seu sucesso e seu fracasso: uma análise que visa ampliar o âmbito da ue aconteceu com os "maníacos" e "histéricos" de algum tempo
éonsciência, que tem como objetivo a individuação, não pode ser con- Ir ? Como podemos avaliar o sucesso ou fracasso de um tratamento
siderada um fracasso se não cura sintomas, e vice-versa, uma análise não temos critérios consensualmente aceitos a respeito do que es-
que se propõe a remover uma fobia paralisante não pode se~ consi- t IlIO~ tratando, se nã? estabelecemos o que seja saúde e doença
derada como mal sucedida se não interpretar os sonhos do paciente ou lquica de modo a onentar o sentido geral do conceito de "trata-
se não integrar a fobia num complexo de dados significativos. I 1 lHo"?

É claro ue este modelo sim les e normativo de s cess (saúde


ótima, ordem psíquica, integridade) não leva em conta ue sucesso
IDe todo lado partem críticas indicando que a análise em geral
fracasso podem ser concebidos não como pólos QPQsJps de.um con-,
rr Icass~)U/Os émpiricistas exigem evidências públicas de resultados;
I clínicos querem provas de que houve melhora com tratamento
"muum, mas como uma identidadeJ onde toda análise é fracasso e
nulitíco; críticos sociais verberam a análise como instrumento do es-
sucesso ao mesmo tem o, cada elemento da análise ~ certo e.é e,rrad.o.
tublishment para perpetuar nosso conceito de doença, de individualis-
e con uçao e esonentação, crescimento construtivo e
, lU exclusivo e de privilégios profissionais, coonestando um sistema
es ru Iva - o que slgm Ica Imp Icltamente ue ara uma análise te
pitalista burguês. Teólogos e filósofos têm uma percepção mais
eXI o e a precisa racassar.
rofunda do fracasso da análise, considerando inadequada sua crítica
ucacional e suspeito seu método terapêutico, que mais se assemelha
&FRACASS lavagem cerebral ou à iniciação numa seita religiosa, do que ao de
A inexorabili ade do primeiro tipo de fracaso abre uma perspec- IIlHl ciência empírica de exploração da personalidade, como proclama
tiva maior, que permite extrapolar a questão dos fracassos específico 10 Ela falha porque suas premissas diferem de suas intenções pú-
na análise para o fracasso da análise em geral. Algum tipo de fracass bllcas. Por fim, os historiadores (das idéias, dos movimentos sociais e
ocorre sempre na análise, e isto nos leva' a perguntar se não existiria Medicina) situam a análise dentro do panorama geral do século XX
uno uma resposta ao fracasso específico da civilização neste século..e
116
1,17
consideram que o que era correto para o homem do começo deste sé- , com premissas e conceitos ressaltados diferentemente conforme
culo, já não é suficiente para nós hoje. a, o local e a pessoa que os pratica.
I '

# Essas reflexões de ordem histórica sobre o fracasso da análise U.ma reflexão arq~et.íp!ca ,sobre o fracasso na e da análise dei-
fazem-nos recordar a origem da análise no fracasso, isto é, seu I" mtoc~da es~a definição, Isto é, não tentaríamos aperfeiçoar a
A

aparecimento como método destinado a aplicar-se àqueles tipos par- "se em mstancIa~ especificas nem redefini-la (atualizá-Ia) no geral,
ticulares de casos que não puderam ser compreendidos, ou sequer m de transfor~a-Ia numa resposta mais adequada às doenças da
ouvidos, pelo sistema oficial vigente, por exemplo os histéricos de I uc con.temporanea. Eu preferiria sugerir e isto será meu ar-
Freud e Breuer e os esquizofrênicos de Jung e Bleuler. Estes eram os 1 nto fmal -=- ~ ue a~análisç _~d_e permanecer inalterada até na-
fracassados médica e socialmente; a psicoterapia foi inventada como 5 aspectos ~~ que se percebe histórica e chmcamente falha..-por-
resposta' específica para esses fracassos específicos. A origem da a e ar uetf .lca,!,~nte alha; vincula-se ao racasso na a ão
análise nos desajustados, nos descontentes neuróticos peculiares de 11 ante dos dlclOnanos: fraqueza, deficiência, ausência de vit na,
'nossa civilização - que até o seu surglmento não se haviam posi- I.ncla, decepção, f~ou mcompletu~e. , .J
cionado sigmficatlVamente - nos fracassados, por assim dizer, per-
{ mite que se abra uma terceira perspectiva para o enfoque da relação Poder-se-ia encarar o fracasso como um~to~o fun-
éntre a análise e o fracasso.
~.en~al, bastando para tanto ~onsiderar-~e a ida humana. O exis-
O- FRACASSO COMO ANÁLISE
ialismo ch~m.a essa categoria de Scheiter , ou consciência que
c do naufrágio. A alquimia a considerou sob as rubricas de dis-
utio, mortificatio, putrefactio. O budismo fala de decadência
OS méritos da análise clássica são tão óbvios - pelo menos é o
que penso, e acho que todos nós concordamos - que apesar das nente; D. H. Lawrence de uma "nau da morte".
críticas que lhe são dirigidas (no primeiro caso, de que a análise
fracassa em muitos casos específicos, no segundo caso, de que a
análise como tal é um fracasso), não creio ser necessário que nos
demoremos mais tempo em seu exame. Um panegírico ou mesmo
uma apologia não têm muito cabimento aqui; ao invés disso, convém
mais observar os defeitos dos méritos. Tomemos a reflexão clínica e
histórica sobre o fracasso da análise e prossigamos um passo adiante
em direção a uma reflexão arquetípica.
. Entendo por ~nálise clássic~o desenrolar de um tratamento em
uma atmosfera de simpatia e confiança de uma pessoa em relação a
outra, mediante remuneração; esse tratamento, que pode ser con-
cebido como educativo (em vários sentidos) ou terapêutico (ernyários
sentidos), procede principalmente através da exploração interpretativa
do comportamento habitual em função de eventos mentais tradicional-
mente chamados de fantasias, sentimentos, recordações, sonhos e
idéias, fazendo-se a exploração de acordo com um éonjunto coerente de .Qu~ndo. a análise segue o modelo de pensamento da filosofia
métodos, conceitos e pressupostos, derivados principalmente de Freud dica do seculo XIX, sua .consciência heróica é determinada pela
e Jung, .com o enfoque direcionado de preferência sobre material não nde Mãe Natureza, e assim tenderá a definir a vida como o fez
elaborado antecipadamente e efetivamente carregado, tendo como ob- lchat, como "a soma de forças opostas à morte" e a considerar o in-
jetivos a melhora (subjetiva e/ou objetivamente determinada) do nsciente - como o fizeram Schopenhauer, von Har Carus e
analisando e o término do tratamento. Esta conceituação fornece I~ Bergson - como uma força vital orgânica que se expando como
suficiente espaço para acomodar muitas versões do que se entende por se Fr.eud, sem contestação. Creio que ainda somps os a ver o
melhora - desde alívio de sintomas até individuação e revelação mís- 'onsclent~ segundo esse modelo do séc~lo XIX,lcomo vontade ge-
tica. Acolhe igualmente as numerosas variantes dos métodos de Freud e dora de VIda, latente na alma, que evolui com o tempo e que, se inter-
tado corretamente, pode nos livrar do fracasso. i
118
Se a análise considerasse sua orjgemJllstÓrjca (concebida COillQ
mo atividade que se desenvolve invisivelmente no reino de Hades
uma resposta para o .fracasso) também c.oJDQ seo~t<;l . base-ªJgue-
tQ?lca, sua perspectiva se alteraria. vinculando-se ma~s a Taoatos., ca~o
fi lindo os literalismos da vida nas metáforas da morte. Aí entã~
~m que poderíamos inverter a afirmação de Bichat. E do ponto de ylS- der íamos perceber a individuação, a singularidade da personalidade
ividual - como a caracterizou Unamuno no sentido trágico da
ta da morte que a análise explora o fracasso, tendo sido criada como
da, que tem sua própria alegria, sua comédia particular. f
Instrumento e1etlvo da psique na exploração do fracasso como soma
de forças que se opõem à vida, isto é, para indagar de Tanatos e de Quando estou desesperado não quero ouvir falar em renascimen-
seus dominantes arquetí icos correlatos onde a vida está blo I; quando-sinto que estou envelhecendo e ficando decrépito, quando
'gerrotada l)hda e fracassada .lvilização à minha volta entra em colapso devido a seu supercres-
Imento - que é também superassassinato - esta palavra "cresci-
Esta abordagem investiga (analisa) o fracasso não tanto paLa
nto" não é sequer suportável; quando me sinto desintegrar em
refazer o crescimento interrompido e sim para reconduzir os equí-
ha complexidade, não posso tolerar o simplismo defensivo das
vocos, erros e fraquezas ao âmbito do fracasso (se~ o ~eu "psicQPo~-
ndalas nem o sentimentalismo de individuação como unidade e
po"), levando-o às últimas, conseqüências, ou sel.a, a sua meta PSl-
lidade. Há uma fantasia de oposição por trás dessas fórmulas: a
quica final, a morte. Com ISSO, todo engano da Vida. toda fraq)!eza.
ntegração poderá compensar a desintegração. Onde fica então a cura
, todo erro na e da análise, em vez de serem corrigidos e.deplorados. ou
Ia semelhança, o tratamento do semelhante pelo semelhante'? O qu
distorcidos com racionalizações, ou transformados e mtegrados, tor-
nam-se vias de acesso ao fracasso, aberturas por onde se inicia a rever- impo~ta é o contexto correto do fracasso da vida; quero conhecer
. sao de todos os valores. MaiS do que um bloqueio a Eros e ao fluir da m precísão .esses deuses cujo tributo e glória são a derrota, a deca-
ncia e a desmtegração e que por isso mesmo podem fornecer a estas
vida, podemos considerar os fracassos como sendo constelados,
ultimas um contexto arquetípico e até mesmo uma conexão erótica
pretendidos e até mesmo finalmente causados pelo mundo subter-
pois são fatores dominantes que refletem a psique como experiênci~
râneo, que deseja que a vida apresente falhas a fim de que outras
freta (e não como dote da vida, em sua conceituação aristotélica), na
atitudes, regidas por outros princípios arquetípicos, sejam reco-
r alidade de seu único objetivo conhecido, que é também o seu estilo e
nhecidas. sua substância, a morte.
Os deuses que consideraríamos os dominantes da análiseAse~iam
então aqueles, em especial, que governam o ~~e os :om:'lntJcos
chamaram de "lado noturno da alma". A anal:se denvana suas
atitudes da ueles dominantes ar uetí icos êrsonificados elos deuses
Trabalho apresentado em Londres no 5. o Con-
que têm um relacionamento especial com o m~n, o mvisível!" su ~er-
raneo e noturno da morte, do terror e da tr.a edla: Had:s . Satur~o
gresso Internacional de Psicologia Analítica,
Persé one DlOníslo (Senhor das Almas e ongem da tragedla) e pnn- setembro de 1971, e publicado nos anais desse
CÍpalffient~ 'os FilhOs da i<ló~te, descnt?s po: Hesloªo !1'eogoma): . Congresso sob o título geral Fracasso e Sucesso na
ruína velhice morte assassinato, destmo, sma, engano, sono, so- Análise, edição de G. Adler (Nova York: Put-
nhos: dlsputa~, resse~tJmentos miséria vi Estas personifi-
nam's, 1974),e in The Journal of Analytical Psy-
.cações e Hesíodo comparecem na análise como seus componentes,
quando a colocamos num contexto positivista - com sua ênfase em chology 17/1,1972, págs.I-6.
deuses e heróis superiores, visíveis à luz apolínea, deuses e deusas da
cidade, do campo e da ação - como uma prática tt;rapêutica, uma
profissão de ajuda. Assim é que tendemos a pens~r.at: ~esmo o amor
à maneira concreta de Afrodite, esquecendo a sutil mtlmldade d~
e Tanato), que chegou a ser considerada uma Identidade pelo neo-
platonismo renascentista.
Seria mais justo para com os fracassos da e na aná~ise. s: a co~-
siderássemos como um processo no fracasso, e mesmo a individuação
(
120
121
MODELO ARQUETÍPICO DA INIBIÇÃO
ASTURBAÇÃO

Em Lausanne, ao longo deste lago onde nos encontramos para


11 so Congresso, um médico suíço, criador do termo Nervenkran-
h";1 ou maladie des nerfs, Samuel Auguste André David Tissot,
Ilofessor de medicina em Lausanne e Pavia, membro das Reais
I .icdades de Londres, Paris, Milão e Estocolmo, publicou no ano de
17~8, trigésimo da sua vida, uma obra em latim, que na versão fran-
I' feita por ele mesmo em 1764 recebeu o nome de L 'Onanisme:
11.\'Serlation sur les maladies produites par Ia masturbation. Em poucos
IIOS esta obra apareceu em todas as línguas importantes da Europa; em
un século mais de 30 edições vieram à luz.
Tissot era um escritor versado em quase todas as especialidades
medicina, sendo que na segunda metade do século XVIII seu nome
lquiriu reputação internacional. Era reconhecido como um dos mais
mosos médicos do seu tempo. Sua palavra tinha o peso da auto-
idade junto às famílias - um Dr , Spock do século XVIII - e seu
llvr sobre masturbação tornou-se a obra padrão sobre este assunto.
I sde sua publicação tem sido de importância fundamental para as
tltudes ocidentais e por isso mesmo ainda hoje tem influência con-
ldcrável em nosso trabalho psicoterápico .

.{9
Antes de nos voltarmos para os argumentos de Tissot contra a
utsturbacão, e para o modelo teórico de sua fisiologia, sobre o qual
I 'S argumentos se baseiam, vamos rever brevemente a ponto de vista
moderno e contemporâneo a respeito da "questão da masturbação".
A tradicão católica e judaica tradicionalmente condena com rigor
masturba ão. Raramente, no entanto, ela é mencionada nos textos

123
de medicina, de ars amatoria ou de educação da sociedade ocidental até •• MlllII6o..l••••••.w.I""-' De
manejra geral a conferência adotou uma posição
o século XVIII, isto é, a época.deiTissot. Evidências antropolÓgicas . _ - . A hipótese inicial de Freud,
colhidas em outras sociedades "não-civ' 'z das" u s- ue a masturbação, assim como o coitus reservatus e interruptus,
tur ação é uma das práticas sexuais menos 9~nidas. Em geral se5on- causa da neurose de ansiedade e da neurose neurastênica, por for-
sidera assunto privado, ou da conta da famlha, e não uma guestao do r uma descarga insuficiente, não encontrou apoio (Reich, 1951).
clã ou da socjedade. Em nossa sociedade, porém, em parte devido a das as reflexões de Freud sobre a masturbação foram coligidas por
influência de Tissot, a masturbacão se transformou não só em pecado.. [a, 1974, págs. 520-38): A tendência do simpósio de 1912 foi
contra a. religiªo e crime contra a sociedade,. como ta'!!bé'"!' P~~Q!:: Itar a masturbação como atividade largamente praticada na infân-
adolescência, sendo por conseguinte normal. Isto levou à co-
ser consIderada uma doen . e
dicina. Para Kant, o auto-abuso era pior que o suicídio; Voltaire e ção de Stekel de que, em síntese, "a neurose é conseqüência de
"'R"ousseau a condenavam; Goethe e Lavater, em sua correspondência, tinência e não resultado de hábito" (Stekel, 1951), isto é, o distúr-
aludiam a uma masturbação espiritual. na sexualidade não é a masturbação mais sim os sentimentos de
lpa advindos da proibição da masturbação em conexão com o com-
No início do século XIX, a "loucura masturbatória" fez seu in- I o de Edipo e a formação do superego. De modo que o inimigo não
gresso na Psiquiatria (Hare, 1962). Eminentes alienistas - Benjamin masturbação - é a proibição e a culpa desnecessária.
Rush nos Estados Unidos, Esquirol na França, Ellis e Yellowlees na Na Anthropophyteia (1910, 1911, 1912) de K~auss, uma enci-
Inglaterra, Flemming e Griesinger na Alemanha - consideraram a pédia de esoterismo antropológico, podemos encontrar verbetes
masturbação como uma causa de distúrbio mental. Para alívio da re "Onanismo como remédio", para fazer parar uma diarréia nos
"epilepsia causada pela masturbação" (Duffy, 1963), praticava-se a rlodos quentes do ano, para livrar uma pessoa de enfermidades, ou
clitoridectomia, principalmente na Inglaterra e Estados Unidos. Dis- 11I0 ato sacrificial religioso (masturbação sagrada) - tais "evidên-
positivos fantásticos, feitos de metal, similares aos cintos de castidade s" emprestavam apoio adicional à orientação psicanalítica inau-
medievais, eram aplicados a fim de impedir o ato. Por volta de 1900, ruda basicamente por Stekel.
em um reformatório de meninos no Kansas, praticou-se a castração
para evitar a masturbação (Hawke). Uma das "desqualificações Desde 1912 - e a despeito de certas observações expressas no
gerais" de um candidato à Academia Naval dos Estados Unidos undo simpósio psicanalítico sobre Onanie, em 1928 - o pêndulo
(1940) era a masturbação, considerada enfermidade moral. O Manual oscilado cada vez maislonge de Tissot, tendendo para a aprovação
do Escoteiro (antes da intervenção pessoal de Kinsey), do qual foram strita da masturbação, a ponto de uma recente Conferência da
tiradas cerca de dez milhões de cópias nos Estados Unidos, advertia sa Branca sobre Higiene Mental ter-se chegando ao consenso de
contra a masturbação. O tratado de Urologia de Campbell, ainda na se deveria lutar com bandeiras desfraldadas em favor da mastur-
edição de 1959, recomendava restrições mecânicas para preveni-Ia. Em- ç o dos adolescentes (Reich, 1951). Os dois relatórios de Kinsey
bora Taylor (1933) tivesse contestado empiricamente a idéia da conser- I 48, 1953) reabilitaram estatisticamente, de uma vez por todas, a
vação do sêmen, demonstrando com um grupo de casos que era possível , sturbação. Demonstrou-se que até mesmo a noção de que a mas-
obter performances atléticas superiores imediatamente após a mastur- turbação poderia ser excessiva era uma noção absurda, pois o impulso
bação, a noção de que esta era perigosa e poderia levar à loucura con- ual não responde quando saciado. O único espantalho que restou
tinuou resistindo em nossas atitudes culturais. I moralismo antiquado e folclórico - causa da culpa, da má cons-
I ncia - rastreável até Tissot.
A pri~ção contra as atitudes repressivas e proibitórias
ocorreu em~ um ano revolucionário para a psicologia, tam- No entanto, apesar de toda essa aprovação à masturbação, uma
bém em muitas outras áreas (Hillmann, 1972, págs. 164-165). Nesse tranha desaprovação teimava em permanecer. Era uma desapro-
ano os psicanalistas realizaram seu primeiro simpósio sobre a Onanie, ção dissimulada, deslocada. Por exemplo, condenava-se a mastur-
tendo sido o trabalho principal redigido por Victor Tausk. Peia
cão "excessiva"; ou dizia-se que "fantasias masturbatórias" le-
vam a um "retraimento esquizóide, introvertido" e distante da
primeira vez se fazia uma tentativa séria de entender a masturhacão e
'vida real e do amor"; ou ainda que apesar da masturbação ser nor-
de colocá-Ia num contexto mais am do de des . .
sexua. s part!cIPantes do simpÓsio notaram e consideraram dois. I na adolescência, não é comportamento "amadurecido" e nas
fatos psicolÓgicos de primeira importância ligados à masturbacão: ulheres impede o "orgasmo vaginal".

124 125
No entanto, os relatórios Kinseyconstataram uma alta freqüên Ia dos quatro humores. Esse "espírito vital" ou "animal" foi
cia da masturbação por toda a vida adulta e entre adultos aptos a S \ ipre ambiguamente psicofisico, por vezes descrito como fluido
valerem de outras formas de atividade sexual: "Muitos adultos, qu \ ncreto, às vezes como fluxo imaterial (Hillmann, 1960, págs. 75-7).
em nenhum outro sentido podem ser considerados como imaturos,
praticam a masturbação e não opõem nenhuma resistência em re O modelo hidrodinâmico da circulação remonta à aurora do pen-
conhecer este fato" . O dado surpreendente de que a atividade mastur- mente na China e prenuncia a descoberta da circulação do sangue
batória precede, ocorre paralelamente e sucede à atividade heteros- () nheim, 1957). Expressões similares são o "impulso circular"
sexual na vida humana; o fato dela ocorrerdesde a infância até idades rlousis) no Timaeus de Platão (79-80), prana na psicofisiologia
bem avançadas e de ser - pelo menos entre os americanos, que pos- ndu, o conceito de respiração em Avicena, cuja essência é o elemen-
suem estatísticas fidedignas - a forma mais freqüente de atividad úmido, mesmo quando se trata de uma substância luminosa, como
sexual depois da relação heterossexual, tudo isso levanta questões fun- "luz" que circula em O Segrego da Flor de Ouro (Jung e Wilhelm,
damentais. A masturbação não pode mais ser considerada uma forma 9). O conceito freudiano de libido, com seu represamento pela
substitutiva de comportamento, e sim uma atividade sexual sui ge- ressão e canalização através do ego, com sua vinculação especial ao
neris. (Assim é que a atividade persiste mesmo entre homens castrado tinto sexual - ou mesmo a fluidos sexuais - é uma reafirmação
por "perseverarem na masturbação" [Bremer, 1959, págs. 86-88]. Por derna do mesmo modelo hidrodinâmico arquetípico da psiq ue.
exemplo, onze "esquizofrênicos" do sexo masculino, castrados entr
as idades de 23 e 49 anos, continuavam a masturbar-se, mesmo com De particular importância aqui é a teoria encéfalo-mieJogenética
pênis flácido). Como psicólogos temos o dever de compreender ofato ) sêmen, sustentada por Hipócrates, por Platão e por muitas outras
real da masturbação de adultos que os relatórios Kinsey apontam e até uras de peso que influenciam Tissot. Essa teoria postulava a exis-
mesmo enfatizam, sem porém explicar. I ncia de uma linha direta anatõmica desde o cérebro, passando pela

€!)
Voltemos agora a Tissot. Em seu ponto de vista, a masturbação
11I dula, até os testículos

li é mais importante
(Lesky, 1950). Podem-se encontrar idéias
hnilares em desenhos anatõmicos tibetanos na ioga Kundalini e, o
para nossas idéias ocidentais, nas primitivas
ias gregas de "substrato vital", conforme explanação de Onians
era catastroficamente perniciosa. Atribuiu-lhe um séquito de ma/adies (1954). Esse substrato vital, chamado aion, era um fluido ou líquido
\1C corria por todas as partes do corpo, mas era especialmente as-
des nerfs= tabes dorsalis, vista fraca, acne, tísica, epilepsia, diminuição
das aptidões intelectuais, distúrbios sexuais e genitais e todo um es- iciado aos líquidos sexuais, encefálico, fluido espinal, água dos
"lOS, dos joelhos, dos rins etc ..
pectro de sintomas hipocondríacos e histéricos, onde se encontra uma
primeira descrição da .síndrome neurastênica. O principal argumento
de Tissot contra a masturbação era de que a perda do sêmen era fi-
siologicamente prejudicial. Os conceitos de Tissot versando sobre a
"perda do sêmen" foram confirmados por um outro médico, de
Montpellier, em três volumes de relatos de casos (Lallemand, 1836·
42).
O modelo fisiológico gue Tissot propõe e sobre o qual baseia seu
argumento ê um modelo tão largamente djfundjdo e recorrente que
podemos. com justa razão. chamá-I o de arauetípico. Este modelo
psicofisiológico aparece remotamente e já bastante forte em Hi-
pócrates, que Tissot admira e cita extensamente. No modelo de Hi-
pócrates, o sistema nervoso é um conjunto de tubos bem finos ou
canalículos, através dos quais circulam os somata hormonta ou corps
excitant (Bucher, 1958). Esta essência circulante é um fluido psico-
fisico vital, que nos séculos subseqüentes veio a ser descrito de muita
formas e foi chamado por muitos nomes. Galeno incorporou-o à sua

126
em um fluxo harmonioso, moderado, rítmico, bem de acordo com as to de seu conhecimento de que a masturbação é prática quase
idéias gregas de alma como harmonia, de fibras da alma como acor- Iversal e a despeito do fato de que nenhum deles podia-se dizer iI
des. A paixão superestimula o fluxo, forçando-o por passagens er- judicado fisicamente por ela. É espantoso como são poucas as pes-
radas e levando a uma excitação genital permanente e a preocupações s que se questionam por que uma perda de sêmen na masturbação
sexuais obsessivas, isto é, a "mau hábito". dena ser danosa, enquanto uma perda de sêmen no coito não teria
nhum efeito mórbido; ninguém captou a implicação de que se a
E mais, o sêmen perdido na masturbação de forma alguma era sturbação fosse danosa, o éasamento, pelos mesmos motivos
reabastecivel, Tissot afirmava que numa relação sexual havia entre as deria ser encarado como suicídio". Mais uma vez o modelo ar:
duas pessoas uma torrente fluindo, uma troca através dos poros, uma tí!lico mostra-se mais forte do que os fatos e do que a razão, tanto
transmissão do hálito vital que restauraria o vigor. A masturbação, Tissot como nesses criminosos sexuais.
por ser solitária, não possibilita inalação, intercâmbio ou reabaste-
cimento. Um argumento persuasivo em apoio à nossa posição consiste no
to de que estes homens, encarcerados por sodomia, hornossexualis-
o, estup~o, incesto, abuso de crianças e outros "crimes sexuais"
ue em sua maioria relutamgrandemente em admitir culpa em relação
, . próprios crimes, no que se refere à masturbação, no entanto, ex-
nmentarn preocupações, ansiedade e sentimentos de culpa. Isto
quer, claro, uma discussão mais aprofundada, de vez que o me-
msmo de negação (págs. 804-7) pode funcionar mais efetivamente
relação à infração criminal. Mas a conclusão principal continua
ndo: a masturbação é seguida de culpa e ansiedade - "a ansiedade
ordinariamente concomitante à masturbação (em geral cessando
uand.o a masturbação cessa)" (pág. 5(0) - mesmo naquelas pessoas
ue liberam completamente a sexualidade, em violação de leis
oibitórias e de tabus inibi dores (incesto).

Autores que escreveram sobre a masturbação, desde os teólogos


tólicos (von Gagern, 1955) até D. H. Lawrence, deram especial des-
que a uma culpa fundamental. O pecado de Onan (Gen. 38:9) que
Após esta redescoberta do modelo arquetípico no pensamento de plicitamente nada tem a ver com a masturbação, foi, apesar de
Tissot, podemos voltar ao problema da culpa e da inibição da mastur- udo, considerado pela psique como culpa masturbatória. É dificil
bação. ligir dados antropológicos sobre a masturbação porque o ato é
Uma das rinci ais conclusões do sim ósio sicanalítico sobre o raticado em segredo, é culturalmente desaprovado e altamente ri-
Onanismo, em 1912, como já mencionei, foi a de que, fundamental- Icularizado. Evidentemente o homem se sente desconfortável no que
'mente, à masturbação ligava-se um sentimento de culpa. Este sen- iz respeito à masturbação. Também nossas atitudes supostamente es-
timento de culpa revelou-se irresolvível, irredutível. Fenichel (1945) I recidas expressam culpa; assim é que usualmente a atitude da li-
escreveu - "Na adolescência e nos. períodos posteriores da vida, ratura psicológica considera a masturbação ou como comportamento
freqüentemente não apenas medo e sentimentos de culpa ligam-se ain- bstitutivo ou regressivo, autêntico apenas nas circunstâncias exte-
da à masturbação: há mesmo uma particular resistência por parte dos uantes defaule de mieux ou não-onania (prisioneiros, marinheiros) ou
pacientes ao esclarecimento da natureza inofensiva da masturbação. É Inculada a regressão terapêutica a níveis mais juvenis.
como se tivessem algum interesse inconsciente em acreditar que a mas- Qual a origem desse desconforto e dessa desaprovação, dessa cul-
turbação é uma coisa terrível". - am 10 es ectro n n iência? Podemos colocá-Ia toda na
Em seu extenso relato sobre criminosos sexuais (Gebhard et 01., oibição imposta pelos pais enquanto representantes da cultura? A
1965), os pesquisadores de Kinsey notam (pág. 503): "Uma parte subs- sturbação ter-se-ia associado a uma autoridade restritiva intro-
tancial dos homens que entrevistamos expressou preocupação, a des- tada, de modo que os dois - impulso e proibição - fazem-se sem-

128 129
pre acompanhar e se sucedem? Ou a masturbação teria, como pari 'li m perda de sêmen, já é menos mobilizadora de sentimentos de
próprio impulso, um inibidor sui generis? Proibição ou inibição? I' Ipa. ~
parte a resposta vai depender de como encaramos a psique. Se
O dado antropológico de que à masturbação corresponde a
sumimos que a si ue se orienta ara um sistema relativament
nor de todas as punições às atividades sexuais, faz supor a existên-
cha o e m lVlduac.ãq. cujo modelo fundamental é o do Self COI!
de uma auto-inibição natural que necessita só de um pequeno
. fluido circulante da vida psíquica dentro da pessoa. então teremos uu,
forço de proibição externa. Se houvesse um perigo maior para a
admitir tambémgue esse sistema é autocontrolado. autodirigido,
iedade ou para a espécie, como alguns quiseram interpretar o
.consciência é a experiência da funcão do spiritus reetor dQ sjsteml
tivo da punição divina a Onan, a masturbação enfrentaria um
7tuto-regulatório. Culpa na consciência significa inibição dessa [UI
púdio universal ainda maior que o incesto.
ção: a inibição da fun ão é sentida como cul a na con 'ê ci
1m lção é auto-imposta pela atividade auto-reguladora da DsirJjJ,e.
I' A atitude em relação à masturbação feminina fornece um ar-
sa posição aparece já em uma discussão de Eugen Bleuler solu umento adicional em favor da hipótese da inibição. Mesmo depois da
Onanie-Hemmung (Inibição da Masturbação) (1913). Nela Bleul 1 coberta do ovu m em 1827, o que negava a teoria galênica e me-
reconhecia a importância extraordinária da masturbação na viII vai de que a mulher possuía sêmen (Gerlach, 1937-38) e punha fim
sexual do indivíduo, bem como sua vinculação a vergonha, culpa, uma controvérsia a respeito do papel da mulher na reprodução, a
sua tendência ao secreto. O próprio Freud, em uma nota escrita 111 sturbação feminina continuou a ser condenada com o mesmo rigor
1938 (Nagera, 1974, pág. 438), levou a coisa tão longe que sugeriu qu condenação à masturbação masculina. O mal seria ig?almente
a base de toda"inibição na esfera do intelecto e da atividade laboratl rande as conseqüências igualmente desastrosas e. as medidas pre-
se liga à inibição da masturbação infantil. O que está implícito '111 nizadas para a prevenção eram igualmente drásticas. Q da,do fisio-
Bleuler e Freud é que masturbação e inibição encontram-se fund I ItSRiconão tem efeito nenhum sobre a idéia arquelÍp,ica. ~~ mastur- .
mentalmente conectadas e que a inibição, em seu mais amplo sentido, -&' ão feminina não lIdamos com a perda de um flUido vital real Qg,
deriva da masturbação. Não podemos ter uma sem ter a outra. men fisico, mas com o senti o arquetipico a o a este escoamento
d flUido a parttr do modeJo de fluxo CIrcuJante da psique.
Jung (1958) diz da consciência: " ... 0 fenômeno da consciência
não coincide com o código moral mas é anterior a ele, transcende seu Admitindo que a inibição, que a consciência experimenta como
conteúdos ... ". Só é possível sentir culpa proveniente da formaç ti .ulpa ansiosa, é sui generis e não uma proibição cultl!ra~mente deter-
chamada superego - a proibição da masturbação vinda do exterior minada, temos que sua origem talvez possa ser atribuida a fatores
se a psique já detém a possibilidade fundamental de "sentir culpa" , biológicos. Em outras palavras, surgiria a culpa por ser a masturbaçã.o
de ver sentido nos códigos morais enquanto integrantes do seu sistem ontrária à "lei natural" (por recusar a procriação), fazendo-se ouvir
de auto-regulação. A proibição introjetada só é efetiva porque faz ecu voz da preservação através do Self? Podemos identificar ness~ c~n-
a uma inibição auto-reguladora prévia. E o levantamento da proibiç \I epção a velha idéia de que a mastur?aç~o é uma ~erversão do .mstm-
- como quando Freud fala de "retorno terapêutico da masturbaçãc" to. A atividade masturbatória dos arurnais, em particular do~ pn,matas
- não remove a angústia fundamental, permanecendo - e aqui COII em seus habitats naturais - mostra que a masturbaçao e uma
cordam os psicanalistas - a problemática da masturbação, somenl tividade que ocorre regularmente, sem inibiçã~ (por ex., o p,?rc.o-
que deslocada para as questões em que aparece como "excessiva", spinho também se masturba - Wendt, 1965, pago 297): ~la nao in-
"compulsiva" ou "fixada infantilmente". terfere na procriação, correndo paralelamente a ela: A inibição, nessa
nalogia com os animais, teria de encontrar sua on~em ?outro lugar
A hipótese de uma inibição da masturbação é sustentada POl que não na "perversão instintiva" ou na "culpa hiologicamente ge-
achados clínicos. Um paciente adolescente do Burghõlzli, esquizo rada". Biologicamente a masturbação é "natural". Já não é possível
frênico e masturbado r compulsório, contou-me certa vez que gostar! I upor como fundamento da inibição uma função biológica nem tam-
de virar a masturbação ao contrário, a fim de que ela subisse para SUl pouco proibições culturais introjetadas. /
cabeça e lhe fizesse bem. (Esse foi o ponto de partida de uma pesquis I
que resultou neste trabalho. Os casos discutidos no simpósio sob, Espero que, pelo menos por enquanto, a dif~r~nça ,entre,.
Onanie, em 1928, mencionavam ansiedade ligada a perda de sêmen. A "proibição" e "inibição" tenha ficado bem cla~a. A mrO!bl~ã? 7 um~
masturbação praticada por criancinhas, sem orgasmo, sem ejaculaç (I
..
ordem negativa, uma restrição baseada na autoridade. Uma inibição e

130 131
uma ação que visa bloquear, restringir, reprimir, impedir. A proibição
requer autoridade; se examinarmos historicamente as discussoes em
torno da mastur6ação verificaremos que esta autoridade estende-s "
desde Deus que castigou Onan até as figuras parentais proibidoras
presentes na formação do superego segundo a formulação de Freud.
Uma inibição, por outro lado, pode ser concebida como inata, part
de uma função em si mesma, uma repressã0 interna. fator de egui.
TIEirionecessário para a auto-regulacão.
A proibição é "antimasturbação"; opõe-se a ela. A inibi~ão
refreia a masturbaçao, é uma complicacão dela Sobretudo a inibi ãO
pode ser concebida como "parte da função rYwsturbatória fm sj mes-
m"ã", à maneira de uma partie inférieure e supérieure de uma mesma,
funçao - para usar a linguagem de Janet aproveitada por Jung na.
descrIção do arquetípico. A masturbação e sua inibição são aspectos
da mesma atividade. A parte inferior é o impulso para o ato, a parte
'supenor consiste de, fantasias e de um spiritus rector da consciência1-
A proibição imposta pela autoridade externa reforça a inibição'-

1
a parte superior, às expensas da parte inferior - e força uma divisão
que volta o instinto contra si mesmo. Temos então, nessas circunstân-
cias, o conhecido padrão de masturbação compulsiva que se alterna
com restrições rigidas do superego, culpa mórbida e fantasias "óticas,
mal colocadas. A regressão terapêutica à masturbação significa mais
I
do que supunha Freud (descarga de energias do id canalizadas pelo
ego, quando este está livre das restrições insuportáveis do superego). I(
A regressão terapêutica à masturbação significa a reunião dos dois
pólos do espectro instintivo. Significa igualmente a volta da inibição
num despertar da vida da fantasia e de um senso de autonomia, de
consciência de orientação própria e inata, e não uma moralidade im-
posta pelo superego.

Resumindo brevemente:, nosso exame da culpa masturbatória


levou-nos a admitir a existência de uma inibicão masturbatória. Não
foi possível reduzir essa inibição nem a fontes culturais nem a fontes o trabalho pioneiro de Spitz sobre o jogo genital de bebês tam-
biológicas. Aproximamo-nos mais de uma concepção de Freud:
bém aponta para uma relação entre a inibição .da masturbação : a ~n-
" ... alguma coisa na natureza do próprio instinto sexual é desfavorável troversão. Diz ele: "Constatei que o jogo gemtal (ou a sua ausência)
à obtenção de gratificação absoluta" (1912, pág. 214). Este fator na infância é um indicador da natureza das relações objetivas da
inibidor é de origem totalmente psicológica, sendo componente
criança" (Spitz, 1962). Crianças com boas relações. objetivas. com as
inerente da atividade masturbatória. O modelo de nossa teoria. no en- mães e suas substitutas se masturbam; as que são pnvadas ou Isoladas
tanto, tem curso diferente do de Freud, pois admitimos como fun- masturbam-se menos ou não se masturbam. A atividade masturba-
ãamenfo aa IlllblÇão a Idéia arquetípica do Self como circulacão da
tória de crianças está diretamente correlacionada com o relaciona-
pSique dentro de um sistema continente, ou seja, autocontencão da.. mento social instintivo. Em crianças isso não constitui, como estamos
" pSique.
costumados a pensar, comportamento compensatório auto-erótico
132 133
ativado pelo isolamento. Se aceitarmos o ponto de vista, como tem uma imagem inatural que é ao mesmo tempo negativa e criativa.
IIIll
sido proposto, de que todos os bebês (não-autistas, "normais") são monstro Golem, da lenda judaica, é produto de esperma que não
extrovertidos, isto é, orientados para o objeto, então a atividade mas- 1\ trou em mulher; o monstro Erictônio é resultado do sêmen que
turbatória não inibida das crianças pertence à extroversãtL - .>.. lu dentro de Gaia (em lugar de Atenas); Pan, que é tido como inven-
lu da masturbação, é ele próprio um monstro de pés-de-cabra.
A partie supérieure, a inibição, desenvolve-se ontogeneticamente,
mais tarde. Talvez pudesse parecer que a inibição, reforçada pelos Hefestos, como sugeriu Murray SÚ:in (1973), é o deus da libido
conflitos edipianos, iria aumentar com o .amadurecimento e o desen- Introvertida, uma estrutura da consciência que é, ao mesmo tempo,
volvimento da subjetividade, dá introspecção, da introversão, da con ( -antra naturam e ligada intimamente à natureza; Hefestos ativa a
tenção psicológica. Acho que posso me arriscar a afirmar que a ini- rodução do simbolismo individual, forjando a natureza em imagens.
bição se vê mais reforçada aí por volta da puberdade do que ao tempo as é precisamente esta produção de simbolismo individual e de cons-
dos conflitos edipianos da primeira infância. Atendo-nos ao noss I ncia que recebe a oposição das religiões ortodoxas. E são essas as
modelo fluido da alma, o surgimento de secreções genitais seria IIC mais se manifestam na questão da supressão da masturbação. Por
fator determinante. Esta é a experiência física que faz a conexão com emplo, o Kitzur Schulchan Aruch (§ 151), um livro judeu de leis, que
o modelo arquetípico da substância da alma como um fluido, com isso supõe tenham sido coligidas originalmente pelo Rabino Caro, com-
i~tensificando a inibição, seus conflitos e fantasias. ra explicitamente a masturbação com o assassinato (daí a jus-
Ilficação da punição de Onan). Outro exemplo é a posição adotada
As palavras que usamos quando nos referimos à masturbação - Ia Igreja Católica Romana sob Inocêncio III no 4? Concílio de
auto-erotismo, vício solitário, vício secreto, auto-satisfação, auto- I atrão (1215). Foi nesse importantíssimo Conclave que a Igreja es-
estimulação, auto-abuso - chamam a atenção para a subjetividade tnbeleceu medidas vigorosas de repressão às fantasias individualistas
do ato - a "tendência ao segredo" mencionada por Bleuler. Por ser a (Averróis, os albigenses); instituiu a Inquisição e uma nova cruzada;
única atividade sexual levada a cabo sozinha, foi-lhe atribuído um 'C.Igmatizou a respeito das atividades dos anjos e definiu os demônios
valor negativo para a cultura social e biológica. Por ser inútil para a omo espíritos que se tornaram maus por decisão própria e por seus
espécie e para a sociedade, ou seja para a cultura externa, durante próprios atos; e reconfirmou enfaticamente o celibato sacerdotal,
muito tempo a masturbação ficou sendo associada ao suicídio. Pode, dando novo alento ao controle de todas as atividades sexuais, in-
no entanto, justamente por ser a única atividade sexual que o indi- 'lusive a masturbação.
víduo leva a cabo sozinho, ter um outro sentido: ser um impulso
----=- sexual dirigido para a cultura interna ou psicológica. Sua conexão
com a descoberta do fogo e seu papel nos mitos da criação mostram
A "monstruosidade" da masturbação e o medo de "excessos"
stão relacionados com a desproporção de uma fantasia que ultrapas- .
sua importância psicológica (Cf. Jung, CW 5, par. 142; CW 9, lI, par.' ~li a natureza. "E sabido que o comportamento sexual assumido em
207; Bachelard, 1938). É interessante mencionar aqui que, entre os evaneios oó em fantasias em muitos casos ultrapassa amplamente o
Mohave, a masturbação freqüente na infância é sinal de reconheci- comportamento que o indivíduo adota ou deseja adotar na vida real.
mento de um provável Shaman (Cf. Devereux, 1936). Isto vale especialmente em relação aos homens ... " (Duvall e Duvall,
1961). Os exageros da fantasia também podem estar presentes nas ad-
Apesar dos argumentos que apresentamos, mostrando que a vcrtências contra a masturbação, tais como as que se encontram em
masturbação é "natural" (ocorrendo durante toda a vida humana e Tissot. A origem psicológica das imagens horripilantes do menino
entre animais), ao mesmo tempo ela é um opus contra naturam. O as- idiota babando na roupa e da menina consumida e devassa, como
pecto contra naturam é representado pelos concomitantes inibitórios ram apresentadas nos livros médicos para famílias do século X~X,
do segredo, da culpa e da fantasia. Daí seu significado shamanístico. dos conselhos religiosos ou das exposições itinerantes de anomalias,
E daí o denegrimento da masturbação por parte daqueles que susten- ncontra-se no aspecto contra naturam do arquétipo, que coloca fi
tam posições naturalísticas e literais no que se refere à sexualidade; is- mesma idéia nas imagens de Pan e de Hefestos.
to é, de que sua finalidade é a procriação biológica ou o relaciona-
mento social. Em outras palavras, existe alguma coisa profundamente
nraizada na velha idéia de que "a masturbação leva à loucura". Ny-
O aspecto contra naturam da masturbação é expresso por várias des (1950) interpretou esse temor à loucura como o medo de se perder
fantasias míticas que colocam o ato em conexão com um monstro, o contato com a realidade e uma substituição desta pelas fantasias

134 135
mágicas de onipotência. A masturbação, como acontecimento táctil no a vida do corpo imortal": (Maspero, 1937), recomenda-se aabs-
intensamente vivido, corno que dá substância (experiência física con- tlnência. No entanto a cópula é tanto natural como necessária. Por is-
creta) às fantasias de onipotência, "aumentando O' caráter alucina- o se desenvolveram técnicas para a introversão ou "translação" do
tório da experiência" (pág. 306). Na verdade a masturbação torna men por meio da supressão da ejaculação (coitus reservatus), com
possível a experiência da realidade absoluta de fantasia, ultrapassan- lsso forçando-O', como na fantasia daquele paciente do Burghõlzli,
do, excedendo e contradizendo a "natureza". uravés de minúsculos tubos '(de Tissot) e fazendo-o refluir para o
.érebro. O sábio tem relações sexuais com qualquer número de
'I
mulheres, de preferência adolescentes, devido às "exalações vitais"
destas, sem excitação violenta, a fim de nutrir seu espírito vital sem
De maneira geral. achamos Q)!e a capacjdade de conter a exci- perdas do precioso sêmem, e sem movimentos violentos. Estas pres-
tação e desenvolver a introversão sãO' tarefas mais da maturidade do crições coincidem notavelmente com os principais argumentos de Tis-
, que da juventude. E possível entender agora, talvez, porque a mastur- SOl. Ackerman desenvolve ainda mais essas idéias taoistas sob forma
bação é tolerada - e em algumas sociedades até mesmo estimulada - de instruções ocultistas para a masturbação e de uma mística da ex-
para a juventude, mas quase universalmente condenada para adultos. .itação, tumescência e retenção do sêmen para dispersão interna do
As razões contra a masturbação de adultos - que seria fisio- fluido vital. Podemos encontrar formas primitivas desta prática
I xótica na luta dos adolescentes contra a masturbação ao se permi-
logicamente prejudicial, teologicamente má, biologicamente amea-
adora, sociologicamente criminosa - podem todas ser consideradas tirem estirnulação genital sem ejaculação.

f
. alsas. A condenação da masturbação de adultos, sob a acusação de A atitude ocidental em relação à sexualidade é marcadamente ex-
ser juvenil e regressiva, expressa a idéia psicológica de que o desenvol- trovertida. Já não valorizamos plenamente nem a masturbação, nem a
vimento da personalidade requer tapas (calor interior) e de que é introversão. Subestimá-Ias é o corolário de uma subestimação mais
"juvenil" ser incapaz de conter a excitação necessária para esse desen- ampla da vida psíquica per se, a não ser em suas manifestações de-
-volvimento. claradas numa cultura biológica ou social, isto é, quando se apresen-
tam sob formas extrovertidas. PO'r isso a literatura sobre a mastur-
A contenção da excitação sexual, inclusive a retenção do sêmen,
com finalidade de desenvolvimento psicológico, é ponto fundamental bação ainda se encontra nas obras devotadas à infância e adolescên-
no misticismo sexual (Études Carmélitaines, 1953; Evola, 1968). As cia, corno se ela desaparecesse da vida psicológica após a maturidade.
crenças sexuais chinesas, especialmente as taoístas, desenvolveram ex- Por isso, cegos à evidência antropológica e psicológica da inibição,
tensivamente estas práticas. Maspero descreveu com grande auto- dmitimos sempre a proibição como necessária ~ e as proibições, por
ridade essas práticas no Journal Asiatique (1937), e Gulik (1961) fez lerem origem na autoridade externa, são também extrovertidas.
delas uma ampla exposição, principalmente das relacionadas à ioga Além disso, nossos preconceitos naturalistas e extrovertidos
tântrica e à alquimia. Estas idéias místicas de autonutrição através da Iiminaram inteiramente a masturbação como dado significativo para
sexualidade foram reduzidas, à maneira freudiana, a uma "orali- 11 alma e para a experiência religiosa. (Não há menção ao "onanismo"
dade" (Weakland, 1956) - uma abordagem que não leva em conta o m nenhuma das seguintes obras básicas relacionadas com religião: O
modelo arquetípico do "fluxo." auto-regulador que estamos tentando Ramo de Ouro de Frazer, a Enciclopédia de Ciências Sociais de Selig-
expor aqui. man, o Dicionário da Bíblia de Hasting ou sua Enciclopédia de Re-
llgião e Ética ter. Jeffreys, 1951]). Mas se, cO'mo disse o filósofo
Sumarizando brevemente as idéias orientais: o corpo imortal não Whitehead, "religião é aquilo que a pessoa faz com a sua própria
surge espontaneamente nem é outorgado pelos deuses. A salvação olidão", nesse caso a masturbação pode ter implicações profundas,
resulta da ação humana que cria seu próprio corpo imortal. Esse é o que transcendem a mera psicoterapia da função sexual. Será a própria
fundamento de todos O'Sexercícios fisicos, da ética, da dietética, da al- Individuação onipotente que se revelará no mundo de fantasia da
quimia etc .. O trabalho principal nisso tudo consiste em nutrir O'es- masturbação e na ansiedade secreta e introspectiva que acompanha o
pirito vital, O'que se consegue principalmente prendendo O'fôlego, isto to, obrigando o indivíduo a reconhecer a intervenção de Deus no
é, fazendo a introversão da força da vida e o desenvolvimento da ten- "sintoma", a presença da alma no corpo, o ritual no sexual, Encon-
são psíquica. O ponto mais importante do opus contra naturam é O tramos, nos problemas inerentes à masturbação, as raízes do lado in-
dominio do instinto sexual. Porque "um único coito diminui em um overtido do instinto religioso: isolamento e solidão, vergonha, sen-
136 137
ti~e~to de pecado, ativação da fantasia individual, possibilidades Dois sonhos ilustram a importância da masturbação para a in-
magicas do corpo. Nossa resistência individual à confissão da mastur- troversão e para o desenvolvimento da tensão psíquica. Um homem de
bação e ao reco~he.cimento das fantasias masturbatórias, fazem parte, rca de 40 anos tinha experiências sexuais com mulheres desde a
portanto, dos ruveis profundos do instinto religioso. Estes sentimen- dolescência. Ao tempo em que teve o sonho havia projetado seus
tos e fantasias secretas compõem padrões de nossa individuação. t lentos criativos em uma artista, sua amante. Com isso havia deixado
Até mesmo as mais recentes idéias "liberais" a respeito da mas- d lado seu próprio talento artístico, que era considerável. Sonhou que
turbação, que tiveram origem em Stekel, são extrovertidas, pois im- uma mulher idosa o ensinava a masturbar-se em uma taça de prata. O
põem a proibição em nome de uma expressão extrovertida da psicos- anho, em minha interpretação, significava que ele deveria investir um
sexualidade. Em geral também surgem preconceitos extrovertidos pouco de energia sexual em sua própria anima, a fim de contê-Ia e não
quando se discutem masturbação e carícias. A excitação que não leva xteriorizá-la por completo no relacionamento.
à descarga é tida como prática doentia e - como Freud dizia em seus Outro homem, com quase 40 anos, em luta com sua homosse-
primeiros escritos a respeito do coitus reservatus - fonte de neurose. ualidade bastante ativa - em dúvida se de noite fica em casa e se
Gostaria de deixar em aberto a discussão sobre se esse preconceito ex- masturba ou se vai para a rua - sonha que está em poder de um
trovertido, apoiado pelas religiões ocidentais, não teve ele próprio um homossexual mais velho, brutal e rígido. Masturbando esse homem,
efeito insalubre sobre a cultura do eros e a intensificação do tapas. diminui-lhe o poder e ganha a liberdade. Este sonho foi compreendido
I:
da seguinte forma: a resposta para seus impulsos sexuais deveria agora
Hoje em dia os psicanalistas parecem concordar com Spitz que
ser a masturbação, caso contrário permaneceria sob a dominação de
masturbação e inibição estão mutuamente vinculadas. Spitz (1962) es-
sua empedernida sombra. Em ambos os casos, masturbação significa
creve: "Do ponto de vista de nossa civilização, as conseqüências da
frustração da sexualidade extrovertida orientada para o objeto, frus-
masturbação sem restrição provavelmente são tão indesejáveis quanto
tração essa que beneficia o fator subjetivo. Em ambos os casos a mas-
as da restrição sem masturbação. Ambas levam à esterilidade, seja ela
turbação foi menosprezada como um sucedâneo infantil. A partir dos
mental ou reprodutora". Infelizmente este argumento baseia-se no
sonhos a masturbação adquiria um sentido para a vida interior e a
velho modelo que contrapõe a um impulso instintivo irrefreável uma
inibição podia ser reconhecida como função da própria atividade, vin-
proibição restritiva. Spitz e todos os demais autores consultados não
culada às fantasias e à ansiedade.
percebem o alcance da inibição, da auto-regulação do instinto pela
fantasia e pela consciência, que o modelo de Tissot possibilita. A ex- O modelo arquetípico de Tissot, estabelecendo uma conexão en-
pressão instintiva em um nível superior ou em um nível inferior vai tre os líquidos sexuais e o fluxo da energia psíquica, mostra-nos o que
depender da canalização da tensão psíquica ~ ela será aliviada de a masturbação pode realmente significar para a psique. É exatamente
imediato ou contida e cultivada segundo o padrão ditado pela cons- o que o termo diz: auto-estimulação; estímulo para a circulação da
telação psicológica do momento. psique, que tem início, basicamente, com a constelação de um pólo da
libido oposto à cabeça. Com isso energia sexual é fornecida à in-
É essa constelação que determina a experiência da masturbação. Iroversão. A inibição, ao impedir a descarga direta de uma excitação
Se é o puer o elemento constelado, a masturbação adquire conotações intensificada, prolonga a circulação, ou rotação, da psique. Podemos
de liberdade e onipotência; sob uma constelação heróica os dominan- agora penetrar o mistério da masturbação do adulto como auxílio de
tes são a inibição e o controle; já sob a dionisíaca a maior importância uma nova luz. Podemos vê-Ia como um aspecto da introversão do
vai para o relaxamento e o desperdício. Boa parte dos preconceitos adulto, como uma tentativa primitiva de autocentrar-se e auto-
contra a masturbação, inclusive sua associação com a neurastenia, regular-se - e mais ainda, até mesmo como um aspecto da imagi-
proposta por Freud, devem-se à postura do ego heróico que se opõe ao nação ativa em seu nível fundamental.
despertar de Dionísio. Embora a constelacão arguetípjca determine a
experiência, a ambivalência fundamental entre compulsão e inibição SUMÁRIO
não é evitada; ela apenas assume diferentes formas aQ Qrientar-se
segundo dlferentes padrões míticos. Assim, o valor psicológico crucial Este trabalho examina os argumentos de Tissot contra a mastur-
da masturbação está precisamente na experiência da ambivalência. da bação e o modelo teórico de fisiologia subjacente a esses argumentos.
_tensão psíquica, que reflete a auto-inibi ão. mesmo do ue areçe O autor faz uma breve revisão da moderna "questão da masturba-
natura , Slmp es e agra avel. ção" e mostra as associações entre masturbação, pecado, crime e
138
139
doença. Para Tissot, perda de sêmen era perda de substância da alma:
sem reposição possível. Parece haver uma verdade psicológica arcaica , Ackerman, "Erotic symbolism in ~hinese Ii~erature", Manuscrito não publicado,
por trás dos argumentos de circulação de fluidos especiais no interior lnstitute for Sex Research, University of Indiana.
de um circuito autocontinente ter raízes numa imagem arquetípica. , Bachelard, Psychanalyse du feu, Paris (Gallimard), 1938.
Este sentido redes coberto do modelo de Tissot leva a uma indispen-
Bleuler, "Der
Sexualwiderstand", Jahrbuch für rsycnoanatvuscne und Psycho-
sável revisão do problema da culpa e da inibição masturbatória. Os , pathologischeForschungen, viI (1913), págs. 442-452.
sentimentos insuperáveis de culpa associados à masturbação foram
, Boenheim, Von Huang-ti bis Harvey, Jena (Fischer), 1957.
reconhecidos pelos psicanalistas em 1912, e desde então por muitos
outros mais. Embora a literatura das profissões que lidam com a J, Bremer, Asexuattzation: A Follow-up Study of244 Cases, Oslo, Noruega (Oslo Univ.
questão tenda a encarar a masturbação ou como um sucedâneo ou Press), 1959.
como um comportamento regressivo, há evidência colateral, a partir J, S. Brown, "A Comparative Study of Deviations from Sexual Mores", Amer. Sociol.
de observações clínicas e a partir de outras disciplinas, que isto de for- Rev,
ma alguma é tudo. Uma inibição masturbatória sui generis, anterior H. W. Bucher , Tissot und sein Traité des Nerfs, Zurique (Juris), 1958.
às proibições, tanto cultural como biologicamente motivadas, é aqui '''Sexual Life ofthe Mohave Indians", Dissertation, University of Califor-
· D evereux,
postulada. Essa postulação está de acordo com .a posição de Jung nia, 1936.
quando este afirma ser a consciência anterior ao código moral, não J, Duffy, "Masturbation and c1itoridectomy", 1.A.M.A. 186 (1963), pág. 246.
necessariamente idêntica a ele e transcendente ao mesmo; está de · M. Duvall e S. M. Duvall, Sex Ways in Fact and Faith, (Cap. 1~, por W. B. Pomeroy),
acordo, igualmente, com os achados psicanalíticos. O autor usa os New York (Association Press), 1961.
conceitos de Janet de partie inférieure e supérieure de uma mesma J. Evola, Métaphysique du sexe, Paris (Payot), 1968.
função, a fim de deixar patente a diferença entre proibição e inibição. . Fenichel, The Psychoanalytic Theory of Neurosis, New York (Norton), 1945, págs.
Sempre que a proibição reforça a inibição, o instinto se divide e se volta 75 e segs.
contra si mesmo. Essa divisão, no decurso de um tratamento analítico,
· F·IS h er,. J Gross ,. J Zuch , "Cycle of penile erection synchronous with dreaming
pode ter propósitos terapêuticos ("a volta do reprimido"), mas a (REM) sleep", Arch. Gen. Psychiat. 12, págs. 29-45.
inibição original também volta, expressa sob formas tais como a fan- S. Freud, (1896), "Heredity and the Aetiology of the Neuroses", Co/leeted Papers(CP)
tasia do despertar de uma nova vida, um senso de autonomia e de cons- I, Londres (Hogarth), 1924.
ciência, O autor examina o significado e o propósito da inibição mas-
S, Freud, (1912), "The Most Prevalent Form of Degradation in Erotic Life", Collected
turbatória presente na rnasturbação do adulto, fazendo referência à
Papers (CP) IV, Londres (Hogarth), 1925.
concepção de Layard a respeito da função positiva do tabu do incesto.
F. von Gagern, The Problem of Onanism (with theological appendix), Cork (Mercier

I
Pretende que esta inibição favoreça a imaginação e a consciência; ela Press), 1955. Trad. M. Booth, Die Zeit der Geseh/echtliehen Reife, Frankfurt a/M
aumentaria a tensão intrapsíquica e por meio desta o desenvolvimento (Knecht).
introvertido seria intensificado. Spitz discute a relação entre inibição
P. Gebhard, J. H. Gagnon, W. B. Pomeroy, C. V. Christenson, Sex Offenders, New
masturbatória e introversão e acha que a atividade masturbatória de
York (Harper and Row), 1965.
criancinhas está diretamente vinculada a uma relação objetiva satis-
W G 1 h "Das Problem des 'weiblichen Samens' in der antiken und mittelalterli-
fatória, não sendo um comportamento auto-erótico compensado r . c~~:\,iedizin", Sudhoffs Archiv f. Ges. d. Med. u. d. Naturwiss. 30 (1937-38)
ativado pelo isolamento. É evidente que a inibição desenvolve-se on- págs.I77-193.
togeneticamente mais tarde. O autor arrisca-se a pôr em julgamento a
E. H. Hare, "Masturbatory insanity: The history of an idea", J. ment. Sei. 108 (1962),
afirmação de que a inibição é reforçada mais intensamente por ocasião
págs.2-5.
da puberdade do que ao tempo do conflito edipiano da primeira infân-
cia. Esta afirmação está de acordo com o modelo de alma fluida de Tis- G. C. Hawke, "Castratiofi and sex crimes", Archives of Institute for Sex Research,
sot. A rnasturbação, do ponto de vista da preservação da espécie e da University of Indiana.

cultura, tem sido há muito associada ao suicídio. Mas pode ser con- 1. Hillmann, Emotion, Londres (Routledge & Kegan Paul), 1960.
siderada, por outro lado, como o impulso sexual necessário para a J. HilIman, "An Essay on Pari" in Pan and the Nightmare (with W. H. Roscher), New
realização do opus contra naturam da cultura interna ou psicológica York e Zurique (Spring Publications), 1972. . .
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140 141
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142
143
PSICOLOGIA DA PÁRAPSICOLOGIA

REFLEXÃO PSICOLÓGICA

Como é do conhecimento dos senhores, sou um psicólogo. Os


psicólogos já há bastante tempo têm demonstrado interesse por seus
primos "para": a primitiva denominação de sua disciplina - "pes-
quisa psíquica" - envolve a psique desde os primeiros tempos.
William James, William McDougall, C. A. Mace, Cyrill Burt, Gard-
ner Murphy, assim como Freud e Jung, são representantes da psi-
cologia cujo trabalho no campo parapsicológico é bem conhecido.
Ampliar a lista só tornaria as omissões mais evidentes.
A despeito do permanente interesse da psicologia por pesquisa
psíquica e da eminência de seus representantes, suas contribuições são,
basicamente, de apenas dois tipos: operacionais e críticas. A psico-
logia sugeriu métodos e forneceu explicações para ocorrências de
diversos tipos e refletiu criticamente sobre vários aspectos da para-
psicologia relacionados com a psique, tal como esta é estudada pela
psicologia. Existe, no entanto, uma abordagem que a psicologia, pelo
menos que eu saiba, ainda não fez. É por esse caminho que nos aven-
turamos hoje.
Tenho a impressão que a psicologia poderia fazer uma contri-
buição de maior profundidade se adotasse, para a abordagem desse
campo, a perspectiva da psicologia profunda. Devo imediatamente
acrescentar que não estou pensando em mais uma teoria baseada num
"si-mesmo* subliminal", numa mente inconsciente, complexo au-
tônorno, superalma, energia psíquica etc .. Nem pretendo lançar outro
modelo para eventos de Percepção Extra-Sensorial utilizando-me do

·0 termo "si-mesmo" é tradução de self, que assim aparece nos capítulos preceden-
tes (N. dos Eds.).

145
aparelho conceitual da psicologia profunda. Tampouco iniciarei a nossos sonhos. criam a dissociação e os conflitos internos. inventam
análise de um fator parapsicológico, ou da correlação entre este e no~sos problemas. .
tipos de personalidade e demais temas da abordagem "psícologisti- ,Um complexo pode ser visto por dois lados: um é o lado dos
ca". Não cabe aqui ficar insistindo na aplicação do aparelho con- ro~lemas, o outro o das fantasias. Quando vivemos o lado proble-
ceitual da psicologia profunda a outros eventos que não os da psi- mático do complexo ele se transforma numa armadilha, uma preo-
coterapia nem ficar reafirmando que nosso instrumental é tão válido e cupação, um conflito de complexidades que exige uma solução. Ele se
útil que pode ser empregado em outras áreas. int~omete em nossa vida, infecciona e domina a psique. acumul~
Pelo contrário, há razões para crer,. como Ian Stevenson sugeriu, soclações, tem fome de aten ão ersevera contra a nossa vontade.
que a parapsicologia pode ser de utilidade para dar conta de fenô- ão atores astante conhecidos da psicologia descritiva e das argu-
menos que ocorrem na terapia. Estou me referindo à transferência e rnentações que. se baseiam em provas obtidas por meio das experiên-
11, também à possibilidade de os complexos serem responsáveis por even- cias com associações. Por outro lado o com lexo é também fantasi .
tos mediúnicos; por outro lado, esses eventos talvez possam ajudar na aparece em nossos sonhos como temas e personagens, alimenta es-
investigação de um fator ancestral nos complexos. Os pontos que eranças, Ilusoes, depressôes, ro e ões. Elabora histõri s e constrój
oferecem maior resistência a mudanças não seriam talvez resíduos de mitos, CQ oca-nos em toda sorte de a éis, tornando a vida excitante e
outras vidas? irrea '. stas fantaSias constituem uma série de motivos condutores
regurãdos; em última instânCia, por pa rões arguet1Qlcos asicos.
Gostaria de dar início a uma série de reflexões, não tanto sobre os
diferentes fenômenos parapsicológicos, mas sobre a parapsicologia Referimo-nos usualmente aos dois lados do complexo como o
em si. Seria muito bom que estudássemos a psicologia dessa disciplina "real" e o "irreal"; os problemas seriam "reais", "árduos", "pe-
e não apenas a psicologia dos médiuns, dos dotados, dos pesquisa- sados", "difíceis" enquanto que as fantasias seriam nada mais que
dores, e assim por diante. fantasias, meras tolices, tênues e insubstanciais.

A psicologia profunda aplicou seu método ao estudo da alqui- Os p~oblemas exigem homens fortes para atacá-Ios, demandam
mia, do mito, dos dogmas religiosos e do ritual, da teoria científica, força de pensamento e fIrmeza de mtelecto. A parapsicologia, como
do comportamento primitivo, das cosmologias, das idéias psiquiá- qualquer disciplina respeitável, séria, está cheia de problemas "es-
tricas - sempre buscando as fantasias arquetípicas aí contidas e ex- pinhosos" e complicados. Na raiz etimológicada palavra problema
pressas. Toda disciplina trabalha com certos modelos de pensamento estão presentes idéias de obstàculo, barreira, bloqueio, há li a ões
. que poderíamos chamar de metáforas ori inais; também a ara si- sugestivas com arma ura e escu o. a go que so ressai e incomoda .
co ogla poSSUi as suas. e o propósito desta conferência fosse re- essa perspectiva os ro emas existein ara serem su erados resoi-
examinar as críticas e afirmações já feitas a respeito da pesquisa psí- os vencI os e dissolvidos ara ue nos livremos deles. Aparecem
quica, poderia talvez ser de utilidade refletir sobre a motivação psíquica nos domínios da matemática, da lógica, do xadrez, da física bem
da disciplina - não sobre seus problemas, mas sobre suas fantasias, como da guerra e da logística. Fazem parte das fantasias da vontade e
sobre o seu sonho. . do pensamento, e da nossa habitual noção do ego como um lutador,
um resolvedor de roblemas. E bem provável que tais fantasias,
tomadas concreta e não psicologicamente, tornadas extremamente
PROBLEMAS E FANTASIAS "reais", convertam-se em problemas. As fantasias obstinadas que se
.impõem e nos aborrecem - como os complexos tendem a fazer -
. Fiz distinção entre não estar interessado nos problemas da pes- transformam-se em roblemas a solucionar. Neste sentido podt!IDos
quisa psíquica e estar interessado em suas fantasias. Vamos deixar isso , i ma f n ia r' fie u -
mais claro. A vida psíquica é de uma grande complexidade. Podemos formando-se em um objeto, ou objeção. com que o egp terá de lidar.
imaginar essa complexidade como um conjunto de complexos. Segun- Um problema seria uma fantasia, que o complexo fez receber mais
do Jung, esses complexos podem ser considerados a origem de toda a energia. mais atenção. mais crédito. amor e força de vontade. O com- .
vida psíquica, seus fundamentos nucleares. Cada um de nós é uma mul- Ele~o acredita em seu problema e o leva a sério. Em geral acreditamuL
tiplicidade de vozes falando a partir de uma mü1tiplicidade de almas. ...mals em pr<;>blemas do que em fantasias. Para a terapia psicológica que
Jung chamava esses complexos de "o pessoalzinho" . pies povoam os estou sugenndo para nossa disciplina - a parapsicologia - ser efetiva,

146
o primeiro passo seria considerar nossos problemas como determi- Análoga à fantasia do trabalho é a da vontade. Os eventos de
nados estágios de fantasias, reconhecer a fantasia no interior dos , E. S: em geral não são apenas extra-sensoriais mas também extra-
problemas naquilo que sobressai à nossa atenção. V ntade. Parece que, de forma geral, não somos capazes de fazê-los
, I
Fantasias não são menos válidas, reais ou sérias do que os pro- contecer. Se o pudéssemos, eles ficariam sob nosso controle e seriam
blemas; não queremos dizer que, ao fundir os problemas às fantasias, redizíveis. A fantasia da vontade é bem forte; integra o núcleo da
procurando' seu sentido arguetípico - e em vez de resolvê-Ios, di.ssplvê- déia de personalidade. Quando Lodge morre, deixando um pacote
los -, os constantes problemas da parapsicologia não sejam reais. 'ujo conteúdo só ele conhece, é com a vontade post-mortem que vai
'Sugiro, no entanto, ue eles ossam ser abordados mais sicologi- I ntar comunicar-se com o mundo dos vivos; T. E. Wood tenta o mes-
. 'camente, não apenas como problemas ob'stinadamente duradouros, mo quando pretende comunicar após a morte a chave de um código
mas também como fantasias recorrentes inerentes à disciplina e com- que ele mesmo imprimiu quando ainda em vida. Não examinaremos
ponentes dos complexos que integram a disciplina - e
por isso mesmo m que medida a identificação da personalidade
nativos-cognitivos
com aspectos co-
daquilo que chamamos ego afeta as fantasias da
essenciaIS à eXIstênCIa da dlsclphna ..Em outras palavras, os problemas
da parapsicologia referem-se a fantasias, que por seu turno refletem o parapsicologia na maior parte de seus problemas, e passaremos de
~dominante arquetíplco báSICO,que dirige e governa a nossa disciplina. Imediato às outras fantasias. É difícil, porém, conciliar a fantasia do
poder da vontade sobre eventos paranormais com a pletora de eventos
parentemente tão espontâneos, isto é, repetitivos, automáticos, não-
AS FANTASIAS DA PARAPSICOLOGIA dirigidos.

Ao nos voltarmos agora para estes problemas, e encarando-os Uma fantasia de vontade está presente em ex erimentos da mente.
como fantasias, podemos· descobrir certos motivos arquetípicos obre a natureza, por exem o na tentativa e influenciar o .
atuando na parapsicologia, motivos estes que, até serem reconhecidos to e en as e o crescimento de plantas através da sicocinesia:.M:,
como tais, podem ser responsabilizados pela permanente insatisfação I e-se que não s a vonta e e o pensamento são capazes de provocar
com os resultados obtidos no que diz respeito à resolução de pro- • acontecimentos, como também que o substrato mental concentrado e
blemas. O e o atuante e combatente tem na reso u - o a i l'zado através do o erador é capaz de realizar um trabalho e
uma de suas fantasias favoritas - às vezes sua raison d'être - ~ movimentar a matéria. Em linguagem psicana itica, ISto po ena ser
modo que hei um grande investimento feito na defesa desses pro- Chamado de uma fantasia de onipotência; em psiquiatria, uma fan-
tasia de-reistica ou delirante; em antropologia, pensamento mágico ou
,blemas
. como legítimos, reais difíceis merece pré-lógico. Mas não vamos insistir nesses termos que desvalorizam a
erOlCO.
fantasia. Tais expressões negativas, como fantasia de onipotência e
--....- Por isso gostaria de particularizar em primeiro lugar a fantasia do pensamento mágico, são produtos do ponto de vista racionalista do
trabalho. Muitas e muitas vezes os ensaios de pesquisa psíquica ter- século passado, quando a psicanálise, a psiquiatria e a antropologia
minam por uma exortação a mais trabalho. Precisamos de amostras começavam a criar seus termos, recheando-os com preconceitos do
r maiores, de mais expenmentos em laboratórios, de mais pessoal século XIX. Não precisamos mais dessa linguagem para descrever as
treinado, mais pesquisadores de campo, mais estudos de seguimento e fantasias. Embora tenhamos sido nós que a inventamos, a idéia de que
por períodos maiores de tempo, mais positividade. Pesquisadores da a mente influi na natureza permanece como uma idéia primordial que
percepção extra-sensorial no campo, mourejando no trabalho, dão a parapsicologia parece ter interesse em confirmar. Infelizmente essa
imagens sugestivas de uma fantasia camponesa. Sub-repticiamente se pretensão se utiliza de experimentos causais, concretos, que apri-
introduz a esperança de que "mais trabalho" possa dar conta de evel}- sionam a fantasia no arcabouço concretista dos problemas de psi-
tos espontâneos e alegres, efêmeros, estranhos e fantásticos regis- cocinesia. No entanto, essa disciplina expressa uma fantasia muito an-
trados como anedotas e casos, de modo a poder ordená-Ios em uma tiga e divulgada, e importante para a psique. Ela nos ocorre de vez
disciplina, torná-Ios conformes a uma lei, habituais e regulares, pas- em quando de forma bem espontânea; por exemplo, quando vejo al-
~~eis de serem expostos em uma demonstracão pública, e assim tor- guém em pé dentro de um barco, penso que essa pessoa vai cair na
narem-se respeitáveis dentro de um certo universo ético dito racional e água e aí acontece exatamente isso - é neste momento que experi-
científico. Assim o riso cairá nas malhas do siso, o espontâneo será mento o sentimento-fantasia de que foi o meu pensamento que causou
captado pelo sistemático. aquela queda. A psiquiatria pode chamar isso de idéia delirante,

148
149
apesar de evidentemente existir alguma necessidade da alma de con· Identificamos um outro padrão dominante nos escritos de nossos
ceber as coisas assim, interpondo uma relação direta entre os proces legas. Podemos reconhecê-lo numa tendência a valorizar as posi-
sos do pensamento e os eventos externos. Já se fizeram muitas ten mais altas: os seres do espaço exterior encontram-se acima de
tativas de conceituar essa relação: causalidade, correspondência, ; com suas inteligências superiores são condescendentes com os
coincidência, mágica, casualidade, sincronicidade. As teorias resul- I rráqueos. Nas experiências extracorpóreas, aprendemos que as pes-
tantes dessas tentativas são as fantasias imperiosas de que há uma Ias quando desencarnam vão para o alto; olham para baixo enquan-
relação direta entre os dois eventos, sobrepassando os limites do mun- I ) flutuam. Por que será que não vão para o mundo inferior, também
do material sensível. A parapsicologia acolhe e mantém essa fantasia, m lugar tradicional de fantasmas e espíritos? Elas parecem ser mais da
e com esse reconhecimento serve à realidade psíquica. luz que da sombra. Nas aparições não estão freqüentemente de bran-
'0, são leves e em geral se encontram um pouco acima do chão? Têm
Passaremos à consideração de uma outra série de fatos qu patos e pés? Os observadores nunca reparam em seus sapatos e pés?
~ poderiam ser chamados de expressões de uma fantasia de intimidade, 1m certas tradições algumas almas são chamadas ctônicas; quando
Os casos muitas vezes parecem provir de uma esfera íntima, que toca morrem submergem, encontrando os demônios ancestrais abaixo da
as profundezas emocionais: um ser amado que morre ou está em t rra. Não obstante, nossa fantasia tende a apresentar uma tendência
perigo, um filho perdido, visões do próprio corpo agonizante, apa- ra as alturas, em direção a um locus evocativo do Céu.
rições em situações de crise. O clarividente é chamado a intervir em
um problema íntimo de desespero e aflição. Muito freqüentement Esta "tendência para cima" às vezes é impossível de separar de
tais eventos têm a ver com a morte e com o amor - eventos que mais urna "tendência para diante" na literatura correspondente. Burt
profundamente tocam a alma, A esfera íntima dos valores pessoais - r fere-se a uma doutrina de "evolução espiritual póstuma". A ati-
aquilo qJ!e chamaIP.95 de alma anima psique dá lugar às mais po- vidade do espírito humano continuaria a evoluir após a morte através
derosas fantasias. Lá encontramos idéias de independência total da al- de sucessivos estágios. O espírito separado do corpo pode ter vislum-
ma, e a convicção de sua indestrutibilidade e de sua realidade substan- bres do que será a sua existênciapost-mortem quando ocasionalmente
cial. Esta fantasia é concretizada por representações visuais da subs- o admitidos no mundo dos espíritos enquanto ainda nesta vida.
tância da alma, de sua invencibilidade perante a morte, de sua liber- •'weden borg e os místicos iranianos mencionados por Corbin teriam
dade em relação às contingências de tempo e espaço e às contingências tado em comunicação com poderes superiores, recebendo instruções
todas de forma geral. A parapsicologia confirma este sentido primor- detalhadas a respeito dos sucessivos estágios, progredindo tanto na
dial da alma, seja ele sentimentalista ou científico, e admite inteira- t ndência para cima como na tendência para diante. Encontramos por
mente o caráter sagrado da realidade interior. toda parte essa fantasia de évolution e seu fascínio é testemunhado
pelo grau de entusiasmo em torno das idéias de Teilhard de Chardin.
Gabriel Marcel elevou a fantasia da interioridade a uma impor- O conhecimento do outro mundo é um conhecimento de um mundo
tância suprema, considerando o amor como princípio fundamental o mesmo tempo superior e melhor. Evidências do contrário, tais como
em suas idéias parapsicológicas. Afirmou que nenhuma teoria nesse I banalidades registradas por médiuns em suas comunicações com os
campo pode vir a ser adequada se não se basear numa teoria do amor. spíritos dos que já se foram, ou as lembranças de incidentes menores
William James asseverava que aqueles que passavam por experiências 'orno os relatos nos casos de Stevenson para provar a reencarnação,
religiosas, mantinham depois "uma disposição pacífica e, em relação não comprometem a força desta fantasia. Ao invés disso, a idéia de
aos outros, uma preponderância de afeição amorosa". Frederic Myers um mundo melhor, além e acima, é reforçada em visões de leito-de-
cita a fala de Diotima no Banquete de Platão a respeito de Eros, c morte, em que se empreende a travessia, sem medo, para uma con-
define amor como uma espécie de telepatia generalizada, ou simpatia, dição melhor.
isenta de separações e divisões. A causa da separação é a organização
da consciência no espaço, no tempo e na causalidade, dividindo tudo A psicologia profunda já falou de um "instinto de imortalida-
em porções descontínuas. Podemos ver nisso uma fantasia de que a de". Não que a parapsicologia, em bloco, aceite imediatamente esse
parapsicologia é uma maneira de partilhar o amor, o Eros cosmo- tipo de fantasia, mas boa parte dela o faz. A comunicação com os
gônico, e o fim de uma existência isolada e limitada. A tradição crista mortos tem-se constituído na parte maior da pesquisa psíquica desde
responsabiliza o diabo por todas as divisões; igualmente cristão é seus inícios e as tentativas de provar a sobrevivência após a morte de
tema da superação do mal pelo amor. urna ou outra forma continuam a gastar nossas energias na para-

150 151
psicologia. Nessa disciplina o "instinto de imortalidade" não é su- história necessidade tão urgente de uma resposta à questão -
blimado, como os psicanalistas dizem, em um objetivo cultural (es- "Qual o lugar do homem no cosmo?" ... é ele um ser imaterial ,
crever um livro, esculpir uma estátua) nem é transferido para a família que, quando abandona "este podre in vólucro de corrupção" con-
(ter descendentes), mas é tomado em seu sentido imediato, como um tinua a viver, sentir e partilhar, de posse de uma consciência mais
problema. Procura-se a prova direta da sobrevivência da persona- livre e mais bela?
lidade humana, seu componente imortal.
... De todas aspesquisas empreendidas pelo homem, acredito que a
Chegamos agora ao que parece ser a fantasia maior, aquela que, parapsicologia é a que mais provavelmente pode dar resposta às
talvez, está subjacente em todas as demais. Gostaria de apresentar questões ... da busca dafelicidade e da imortalidade da alma" (2).
duas passagens da décima conferência Frederic W. H. Myers: uma de
J. B. Rhine e outra de S. G. Soal. Para mim é discutível se a refutação do materialismo como
hipótese para interpretação de dados, pode ser conseguida com os
" ... a devastadora influência de uma visão fisicalista do homem dados da parapsicologia, ou com quaisquer outros dados, sejam quais
afetou nossas instituições sociais mais que a religião ... chamo a forem, de vez que o materialismo, como modelo téorico - não como
ate~ção para o fato de que o materialismo parece ser o princípio idéia monolítica mas como expressão complexa e sutil de uma fantasia
mais fundámental da filosofia atual do comunismo russo. O sis- arquetípica referente à primazia do símbolo da "matéria" - mostra-
tema sovié.tico está tentando construir u,ma sociedade apoiada se altamente viável, flexível e resistente. No entanto, esta fantasia an-
nu~a teoria do homem. como matéria. E especialmente signifi- Iim.atéria é talvez a mais persistente e arraigada em nosso campo.
cativo, penso, que a sociedade ocidental, com todos os seus vários VeJ~-~ na "tendência para cima", na transcendência das categorias da
ataques ao sistema comunista, não tenha investido seriamente matena (tempo, espaço, causalidade), no "instinto de imortalidade",
contra essa premissa básica. Não é verdade que, até que lance mão na luz, nos brancos espíritos sem pés, na redenção pelo amor.
dos achados da parapsicologia, ela terá pouco com o que atacar a Em um trabalho conciso e fundamental, apresentado em Harvard
filosofia materialista oficial da URSS? em 1936, Jung falou de três modalidades básicas que determinam o
Se possuimos - e é claro que há muito há concluímos que pos- comportamento humano em qualquer campo, seja ele qual for. Uma
sutmos - umr: refutação científica ao materialismo, capaz de dessas modalidades primárias é o funcionamento da psique de modo
suportar a mats severa crítica, com que justificativa poderíamos consciente e inconsciente; uma segunda modalidade é a orientação in-
ficar alhe~os. às necessidades de nosso tempo de posse desses trovertida e extrovertida da energia psíquica.
achados vitais e r~leva~tes? .. O mundo enfrenta hoje aquilo que "A terceira modalidade aponta, falando metaforicamente, para
pode ser a.s~a mator cnse, em boa parte porque não combatemos, cima e para baixo, porque tem a ver com espírito e matéria. É ver-
social e clvl~amen~e, a ameaça ao nosso sistema de valores, que dade que a matéria em geral é assunto da Física, mas é também
c~escea partir da violenta dominação imposta à vida moderna pela uma categoria psíquica, como o demonstra claramente a história
filosofia materialista. da religião e da filosofia. E exatamente da mesma maneira que a
... Se. ~s~apretensão é exagerada [pela importância da pesquisa matéria está na iminência de ser concebida, em última análise,
mediúnicai ... então devo ter entendido mal a natureza de nossa apenas como uma hipótese de trabalho da Física, assim também o
disciplina e seu significado "(1). espírito ... está sempre necessitando de reinterpretação. A assim
chamada realidade da matéria é atestada primariamente por nos-
Na introdução a esse trabalho de Rhine, Soal escreve: sas percepções sensoriais, enquanto a crença na existência do es-
pírito é sustentada pela experiência psíquica: [norma! meu/o Psi-
"Hoje um materialismo devastador alastra-se como uma praga cologicamente, nada podemos afirmar de mais definitivo em
sobre grande parte ~~ globo. Concentrando-se, como faz, apenas relação a uma ou outra ... senão a presença de certos conteúdos
nos aspectos sensoriais [normal meul da existência humana, com conscientes, alguns dos quais trazem a marca de uma origem
u~a completa negação ,de todos os valores espirituais, este material e outros de uma origem espiritual ... A partir da existência
slst~ma d~pensam;nto Ira, se não for impedido, terminar por des- dessas duas categorias, sistemas de valores éticos, estéticos, in-
truir aquilo que ha de melhor na vida humana ... Nunca houve na telectuais, sociais e religiosos, surgem e aofinal determinam como'

152 153
devem ser utilizados os fatores dinâmicos na psique. Talvez não nas emoções e que sua natureza é espontânea, livre e voltada para o
seja exagerado dizer que os problemas mais cruciais do indivíduo e Ito. Ele se anuncia em categorias transcendentes. Tem-se também afir-
da sociedade dependem da maneira como funciona a psique em mado que seus efeitos destacam o indivíduo, colocam-no além e acima
relação ao espírito e à matéria"(3). da entropia, da inércia e da gravidade - o impulso para baixo. Se é
sim, duvido que algum método possa jamais apreendê-Io inteira-
CONCLUSÕES mente, organizá-Io ou simplificá-Ia com uma explicação. Talvez,
como já foi notado por alguém, citando William James, o Criador
A polaridade "para cima-para baixo", nos termos em que foi não queira que o compreendamos. Talvez a parapsicologia não se
conceituada na oposição matéria-espírito, parece ser um esquema refira àquilo que ainda nos é desconhecido mas àquilo Que jamais.
básico de orientação para a psique. Tentativas de chegar a um teoria J?oderemos saber por ser inacessível ao conhecimento. Eventos es-
de campo unificada são tentativas de unir essas polaridades. Mesmo s pirituais tradicionalmente dão testemunho de casos espontâneos e in-
a matéria é redefinida de modo a tornar-se mais espiritual, ou o es- dividuais ou de certos fenômenos de massa. (Penso que "espontâneo"
pírito é redefinido como sendo uma propriedade da matéria, a tensã faz parte das características do espírito e "casual" é seu adjetivo
psíquica do impulso para cima e para baixo permanece como fator análogo no domínio da matéria). Como Sir Alister Hardy gostaria de
subjacente de nossas formulações. provar com seu novo projeto de pesquisa, este fator espontâneo pode
reorientar, e revitalizar uma vida que perdeu seu espírito; pode in-
troduzir e recolocar em questão a unilateralidade de métodos e hi-
póteses 'apenas materiais; pode até abrir as portas da fé em símbolos'
associados ao espírito.
A parapsicologia, devido a essa fantasia de espírito, liga-se
inevitavelmente a questões de fé e de ceticismo, que são representadas,
por exemplo, nas imagens do "cordeiro" e do "bode" de crentes e
céticos. O arquétipo do espírito evoca questões de fé. Por isso até esta
minha peroração sugere um pouco uma afirmação de fé - coisa que
não é. Ela é uma tentativa de refletir a constelação que, acredito, detém
a parapsicologia.
Além do mais, as disputas metodológicas e as que se referem fi
demonstrabilidade - aplicar ou não os métodos materiais sensoriai É discutível se nossa disciplina poderá jamais "resolver pro-
e de mensuração a eventos mediúnicos, e nesse caso como extrapolar blemas" enquanto não levar em conta, de maneira cabal, o poder da
dos métodos aplicados à matéria para as teorias do espírito - estas e fantasia arquetípica do espírito. Uma das características do espírito
outras polêmicas contêm a energia do impulso para cima-para baixo. tem sido designada como "criatividade"; o espírito cria problemas.
A proclividade para cima pode também ser a causa dos inúmeros Talvez uma das tarefas da pesquisa parapsicológica poderia ser a in-
tópicos acumulados na bagagem parapsicológica: rabdomancia c vestigação da natureza desta fantasia que cria esses enigmas e di-
transe, experiências místicas e religiosas, psicocinesia com dados, as- lemas, peculiares à pesquisa parapsicológica. Talvez nossos problemas
sombrações, reencarnação, glossolalia, hipnose etc .. Todos, de uma sejam diferentes dos da ciência por que são determinados por outro
forma ou de outra, refletem ou derivam sua energia de uma fantasia tipo defantasia.
do espírito.
Uma dificuldade maior que vamos encontrar em todo exame da
Por isso acredito que a parapsicologia está engajada em uma idéia de espírito como fundamento da nossa disciplina é que a no-
atividade do espmto. E mais, penso que o espírito é irredutível a qual- ção de espírito é sempre influenciada pela cultura no interior da
quer outro componente, e é uma modalidade básica da natureza qual aparece. A parapsicologia padece não apenas de formulações da
humana e talvez de toda a natureza. O que é o "espírito" e com matéria feitas em termos da ciência e do materialismo do século XIX;
defini-Io, está muito além dos limites dêSte trabalho, ou de qualquer padece até mais das réplicas a este materialismo formuladas no interior
trabalho. Na verdade, parte de sua essência é exatamente est1Ír da comunidade detentora cultural do espírito: a cristandade do século
"além". Descrições clássicas do espírito sustentam que ele transparec XIX. Pudemos notar isto no exame de nossas fantasias de vontade, de

154 155
trabalho, de amor, de imortalidade e de ressurreição (' 'tendência paru
cima"). São Paulo bem poderia ter sido um membro fundador dn De: Um Século de Pesquisa Psíquica: Afirmações
Sociedade de Pesquisa Psíquica! Também a missão inspirada da e Dúvidas que Permanecem (editado por AlIan
parapsicologia tem essa implicação, pois missão e divulgação da
palavra são atividades clássicas do espírito - não necessariamente Angoff e Betty Shapin). Anais de uma conferên-
segundo o modelo da fantasia do Protestantismo. cia internacional em Le Piol, St. Paul de Vence,
França, 2 a 4 de setembro de 1970, New York
Quando nos voltamos para os problemas da Percepção Extra-
Sensorial, se formulamos perguntas do tipo "como isso é possível?", (Parapsychology Foundation), 1971, págs. 176-
ou "qual é a causa disso?", a tendência é ficarmos no domínio dos 187.
problemas. As questões: "Você acredita?" e "você juraria?" já
denotam algum efeito da fantasia do espírito. Poderíamos talvez fazer
outras perguntas: "por que isso aconteceu e por que a mim?" e "o
que significa isso?", "qual é o conteúdo informativo disso?" Po-
demos deslocar nosso foco do prático e técnico "como?" para o fi-
losófico "por que?"
A dúvida filosófica questiona a necessidade dos eventos; os fi-
lósofos já disseram, alguma vez, que nada acontece antes que baJa
razão suficiente e necessária ara ue ·al uma coisa a . Até os
ses gregos cumpnam uma lei, não a do espaço, tempo e causali-
dade, mas a da necessidade. Nessa fantasia pré-cristã os dominantes
do espírito (os deuses) respeitam a necessidade. 1).0 nível dos fenô·
menos humanos, não importa quanto os eventos parapsicológicos
possam ser involuntários, irracionais, duvidosos e intensamente pes-
soais, eles obedecem ainda a uma lei: a da necessidade. São neces-
sários. Nossa tarefa, então, poderia ser formular perguntas em termos
. do espírito: se são necessários, então o que significam? Outra tarefa
que poderíamos assumir seria não tanto descobrir "como eles acon-
tecem e sim toma-Ios como mensa ens com ai o necessário a no~
comUnicar, sob uma forma i ualmente essán tanto ue o~u.a
orma não poderiam ocorrer. Creio qu Jung, c m seu conceito de
smcronlcldade, tinha em mente o império . pio da necessidade.

NOTAS

I. J. B. Rhine, Telepathy and Human Personality; introdução de S. G. Soa\. Décima


Conferência comemorativa de Frederic W. H. Myers (Londres: Society for Psychical
Research, 1950), págs. 36-37.
2. lbid., págs. 7-8.
3. C. G. Jung, The Structure and Dynamics 01 the Psyche, Collected Works, VIII,
§ 251.

156
TEORIAS
POR QUE "PSICOLOGIA ARQUETÍPICA"?

UM POSFÁ CIO EDITORIAL PARA SPRING /970

A psicologia que se vem fazendo representar nesta revista nos úl-


timos trinta anos tem sido designada em geral por três termos: jun-
guiana, analítica e complexa. O subtítulo de Spring 1970 introduz um
quarto termo: arquetípica. As diferenças entre esses termos, muito
provavelmente, contêm mais do que sutilezas de interpretação: são
contrastes que vale a pena caracterizar.
O epônimo junguiano é mais do que um adjetivo comum; evoca
ligação emocional a um homem, uma história, um corpo de pensa-
mento e, especialmente, a uma experiência. Dentre os que se dizem
"junguianos", alguns tiveram experiência pessoal com Jung e quase
todos com a análise junguiana. Mas como" Jung" continua a desem-
penhar um papel numinoso nas idéias, sonhos e fantasias dos jun-
guianos, o termo difunde energia psíquica como símbol~íntimo,
mobilizando convicções vitais e sentimentos de 1~~O termo
aproxima-se daquilo que Grinnell discute, noutro ponto deste volume
iSpring 1970), como sendo "fé psicológica" e "personalidade".
"Jung" surge no horizonte individual como uma experiência
única para cada pessoa; daí ser esta designação intensamente sub-
jetiva. _ü~ue LQ~al uém um junguiano? "Ser um junguiano"
definiria realmente um modo de ser, Isto e, uma maneira de existir e
acordo com certas convicções (mesmo se não formuladas) e práticas
(mesmo se não codificadas)? Ou o que faz de nós junguianos é a as-
ociação numa comunidade de interesses - devido a qualificações
profissionais - ou o estabelecimento, traçando-se uma árvore ge-
nealógica analítica, de uma linhagem psicológica que remonta até
Jung? Este último aspecto suscita outras questões, de vez que muitos
que encaram a "posição junguiana" com simpatia e de alguma forma

161
participam dela, nunca foram analisados. Além do mais, rigoros I pmca talvez seja responsável pela inclinação da "psicologia com- ,
mente falando, "junguiano " deriva de um nome de família, sendo plexa" em direção aos modelos das ciências naturais e suas fantasias
portanto propriedade de uma família concretamente existente e não d . de objetividade. A experiência de associações é a parte da obra de
uma família de adeptos. Jung que melhor se presta a mensurações e a demonstrações públicas.
Independente de terapia, é um método objetivo que qualquer um pode
A paiavra "junguiana" cria, como todo símbolo, uma atmosfer , usar /úma teoria da psique construída sobre ela pode pretender va-
emocional, significando muitas coisas para um número muito grand lidade geral sem que seja necessário documentá-Ia com material de
de pessoas. Mas justamente devido às emoções que mobiliza, constei, casos analiticógs-Conjuntos de dados obtidos a partir de indivíduos e
também uma libido de parentesco, com as conseqüentes paixões d' seus materiais psíquicos têm mais a ver com o desenvolvimento da
sentimento familiar - "transferência" ou "rivalidade entre irmãos" psicologia em geral, do que com o da psique de um caso específico em
- como às vezes são chamadas - arrastando consigo Eros e Eris"', análise. Mas quando a teoria segue modelos científicos, não há como
tudo ao mesmo tempo. A hostilidade exogâmica 'existente entre 11 escapar dos correspondentes métodos e técnicas: estatística, ques-
comunidade junguiana com suas idéias de um lado, e os "não- tionários, mensurações, aparelhos para o estudo de sonhos, tipologia,
junguianos" do outro, demonstra isso, da mesma forma que a hos- aspectos psicossomáticos e farmacológicos, e sincronicidade. Aí então
tilidade reinante no seio da própria comunidade junguiana. Est o paciente pode passar a ser encarado como material ernpirico e a
número (Spring 1970) contém reflexões de Whitmont e Guggenbühl clínica transforma-se em laboratório a serviço da pesquisa objetiva
sobre agressão e destruição em situações mais ou menos idêntica. das leis gerais do comportamento complexo . .A..psicologja complexa
àquelas há pouco mencionadas. Não é uma mera troca de termos qu mantem esperanças de poder vir a estabelecer as...hip.ó.teses..deJuR-g-4e
conseguirá encaminhar a resolução da agressividade e da destrutividad ~ma oIÚ~Jiva_~ÇQ!!LP..m.e.tr.aç_ãomais am(lla...no...mun.do..acadêmico_e __
liberadas por junguianos contra junguianos em nome da psicologia . ientífico, de modo a ultrapassar os limites do território junguiano e
junguiana, e sim a reflexão sobre essa designação familiar e suas im- da análise~

I
plicações é que poderá remediar aquelas. Questões complicadas como.
Poder-se-ia ain
essas é que nos levaram a usar o termo Junguiana** quando nos te-
teona e aborada nã do modelos científicos mas a
ferimos à essoa concreta de C. G. Jung e pensamento íun uiano c
nucleo arqlletípico dos complexos.. Neste caso estanamos mais ~nvo~-
. !llt tr di ão ue difici mente o eria ser descrita de outra
vidos com o pensamento simbólico, de tal forma que a teOrIa PSI-
, .. ~
cológica poderia aproximar-se mais das preocupações de Jung com o
metafislco e o ImagInárIO, e aproxImar-se maIS também da alma. No
Em 1935 T. Wolff(l) deixou bem clara a diferença existente entre
entanto a designação tem uma grande desvantagem: evoca a for-
os termos "complexo" e "analítico", aplicados à psicologia:
mulação inicial de Jung sobre o complexo como um "distúrbio" da
"Jung tem usado o termo "psicologia complexa" principalmente consciência. Apesar de tudo que escreveu posteriormente exaltando-
quando se refere à área total de sua psicologia, particularmente lhe '0 valor em toda a economia psíquica, a palavra retém conotações
quando o ponto de vista é teórico. Já a expressão "psicologia patológicas: complexo de poder, complexo de Édipo, complexo
{ analítica" descreve apropriadamente a prática do análise psico- materno.
. lógica".
Em 1896, Freud (2) pela primeira vez reunia as duas palavras,
A psicologia complexa, como o nome indica, baseia-se nos com-
psique e análise, cunhando seu novo termo "psicanalítico", a fim de
plexos para formular sua teoria. Tal embasamento é empírico porGliê
descrever um novo método terapêutico. Em 1912 Jung fez o seguinte
as expenências de associação, por meio das quais se atingem os com-
comentário a propósito dessa nomenclatura:
plexos, consistem primordialmente de mensurações. Esta origem em-

* DeusadaDiscórdia(N.doT.).
"A psicologia que ele fFreudJ inventou poderia ser c~amad.a
•• Esse é o título de uma das sessões do anuário Spring onde são pubLicados escritos "psicologia analítica". Bleuler sugeriu o nome "psicologia
inéditos de Jung ou estudos relativos à sua pessoa e seu tempo; equivale a "coleção d profunda" afim de indicar que a psico.logiafr~udiana lidava com
coisas ligadas a Jung" (N. dos Eds.). as regiões mais profundas, com o intenor da psique. Freud conten-

162 163
tou-se com o termo «psicanálise" para designar seu método de in- que a amplificação deve ser adstrita aos casos reais, senão transforma-
vestigação' '(3). se em fantasia especulativa. Para os analistas o problema da psique 11
"localiza-se" na alma do indivíduo e na sua situação enquanto ca~."'*·
Eem~
As expressões: junguiana, analítica e complexa nunca foram es-
«... prefiro chamar minha abordagem de «psicologia analítica", colhas felizes nem adequadas à Psicologia que tentavam designar.
entendo por isso algo assim como um conceito geral que engloba Parece necessário adotar llIUa-palayra Q.ue reflita a abordagem
tanto a psicanálise e a psicologia individual [Alfred Adler] como - cteristica de Jung, tanto em relação à teoria e ao que de fato tem
outras orientações no campo da «psicologia dos complexos" (4). lu ar na uática corno em re açao a VI a e
sicolQ' je de.:'arq~ ~ca e 01-
Nos parágrafos seguintes Jung diz que "a.lli!litica" é a ~ vimento hisiÓricQ. De certo modo os termos iniciais foram superados
ue usa ara todas as difere tes . si ó icas de "resolver o pelo conceito de arquétipo, que Jung ainda não tinha elaborado ao
Qrobh:ma da psique". Fi~~~: ~~o refere-se à prática dã tempo em que deu nome à sua psicologia. O arquétipo é o mais on-
terapia en uanto bu a d çõespara PfübÍemas, e a anàhse en- tologicamente fundamental dos concei~i -- : e n com a
quanto ampliação do âmbito da consciência, Quando é a expressão vantagem da_maior ~recisão, além de se o de . r-
"analítica" que define nosso campo, isto significa que estamos lidan- c~almente indefinível e aberto . .os ar uéti .
do principalmente com o que se convencionou chamar de "intelecto situa a VI a i entes o erativos da idéia ue un tinh e
prático". Disso decorrem várias conseqüências. ~. O próprio Self inclui-se, conceitualmente, entre os arquéti--
poso Essa designação reflete um aprofundamento teórico na parte
A psicologia analítica. tendo em primeiro plano os aspectos
final da obra de Jung, uma tentativa de solucionar problemas em um
práticos.....natmalmente está interessada na terapia e nos muitos
nível além dos modelos científicos e da terapia no sentido usual, pois
roble _ exercício rofissional. Da mesma forma, busca
os problemas da alma já não são problemas no sentido usual. Em vez
também melhores métodos para a resolução de problemas. E os ca-
disso, vão-se buscar as fantasias arquetípicas existentes no interior dos
minhos a seguir serão eminentemente práticos; as técnicas terapêu-
ticas, os grupos e as clínicas estimulam fantasias de novos rumos para
"modelos", da "objetividade", dos "problemas". Já em 1912 Jung
1
*
dispôs a análise num esquema arquetípico, libertando com isso o ar-
"resolver o problema da psique". Além de haver também um enfoque
quetípico do confinamento ao analítico. A análise pode ser um jus-.
obsessivamente concentrado sobre a própria análise, de modo especial
trumento ara a com reensão dos ar .. - ode dar conta)i
sobre a transferência. Assim, pois, a psicologia analítica naturalmente
alinha seus interesses junto aos da psicologia pastoral e da "cura da
inteiramente. deles. É..dan~o prioridaGe ao arquetípiço sobre o analítico <"f
~ alma" - formas outras de resolver problemas. ue ro jciamos-fU2iliIlle..uma-opoFt-u-R-ià-atle-G-e..&aiLpara fora dos con-
~ sultório . O próprio consultório com isso ganha uma perspectiva ar-
HQje, afastando-se do uso que Freud inicialmente deu ao termo, quetípica. Afinal, também a análise é uma dramatização de uma fan-
a análise representa mais do que um método. Constituímos também tasia arquetípica. -
uma pro issao, uma mentalida e que analisa (pessoas, seus "mate-
riais", seus "relacionamentos") e temos uma grande participação
num sistema: analistas, analisandos e um inconsciente a ser trazido à
As melhores reQ!esentações dos arquétipos estão contidas nos_
IE}tos, segun~~ afjrü1ã IlIng.(!i). ~as o mit? pr?vem de um domínio
l1ao pode le Itlmamente ser consld an . ~-
9Uu
consciência. O que, por definição, é uma hipótese, reificou-se numa ue I t bi.Ol".da.n:tesma forma que o mítico, transcende a ~
hipóstase cheia de problemas "reais", "difíceis" e "duros" a serem n u é O mes . e ue nem tudo ue está na si ue
analisados. Se é verdade que o inconsciente precisa da análise, não é IJ~Lb.e~e.ú~~ Devido à própria natureza da psique, uma psicologi
menos verdade que a psicologia analítica precisa do inconsciente. ", genuinamente profunda tem de descer mais abaixo dos limites da
.Em.psicologi alítica o analista é o sicólo o consistindo nos- psique ou ultrapassá-los. O que, felizmente oferece uma saída para o
sa psicologia de insights obtidos na anàlíse - o que ten e a imitar impasse do psicologismo, que tem impedido a colaboração daqueles
nosso Fiorizonte. A idéia da amplificação pode demonstrar o que estou cuja perspectiva, derivada também dos arquétipos, não permite
querendo dizer: ocorre sempre no contexto da terapia, mesmo quando porém localizá-los no interior da psique. Mas nãu plet:isdiii9S ençarar
a psicologia analítica se expande por áreas mais amplas. Sentimos os arquétipos como estruturas exclusivamente psíquicas; a psique3-.
•..•
164
~
apenas um aspecto onde eles se manifestam. Considero igualmente um do termo "psicologia complexa", como sendo diverso daquele em-
pSlcologlsmo a tendência a atribuir coisas em demasia ao humano e a pregado por Jung ou Toni Wolff. Conforme a citação de Wolff
psíquico, sobrecarregando nossas vidas com um presunçoso senso de apresentada acima, Jung usava o termo para referir-se à área total da
responsabilidade por questões que não são nossas, mas arquetípicas psicologia profunda como um campo teórico de problemas complexos
- isto é, históricas, míticas, psicóides - ou instintivas, no sentido em que requeriam métodos complexos. Chamou-o complexo por ser um
que é usado supra tSpring /970) por Robert Stein. campo complicado; sua intenção era estudar os fenômenos com-
Torna-se necessária uma visão arquetípica para se poder com- plexos, distinguindo-os dos simples, parciais, elementares. Além do
preender essa abordagem, o que não é fácil de obter se o enfoque mais, como Giegerich me faz recordar, referindo-se ao mesmo artigo
recai sobre pessoas e casos. É uma visão cujo treino requer apre- de T. Wolff que citei acima, é com um "método complexo" que se
ciação profunda da história e da biografia, das artes das idéias e da deve ir ao encontro da complexidade da psique (6).
cultura. Neste caso, a amplificação torna-se um modo válido de fazer Infelizmente, como tantas vezes ocorre na história do pensamen-
psicologia, necessária e suficiente em si mesma. A amplificação pode to, dos movimentos e das palavras, a intenção original acabou toman-
-Se.. m ~étodo d~ ç~ltiy<>:da alma.,....n~n;tedida 7m q!le descob.re cultur~ do sentido diametralmente oposto, de modo que o significado que dou
, @r~ no I~t~nor da ro na SI ue tra . ~nd -. A elucidaçãô ar- à expressão "psicologia complexa" provém da maneira mais usual em
~ quenpica de problemas pode ser, indiretamente, uma grande aqui- que é empregada atualmente. Hoje em dia encontramos as comple-
i'~ sição pa a a psique e para seu tratamento. xidades fracionadas em eventos simples, passíveis de manipulação por
~, .'~
métodos quantitativos e mecânicos - experimentos de associações,
, ~ ,v' '~ persI?ectiva mítica P?de nos ajudar a contornar um outro tipo
(ot de psicologismo: a humamzação dos deuses, que se acompanha de testes tipológicos,
daqueles justamente
pesquisa fisiológica de sonhos - como prática
que .mais se referem à obra de Jung como
.\ uma tremenda valorização da psique pessoal em sua existência con-
creta - confrontações, reações, experiência direta. Uma psicologia "psicologia complexa". Isto não é teoria mas empiricismo, no sentido
dita aquetípica pretende ser mais que apenas um humanismo secular; em que C. A. Mayer intitula seu trabalho Die Empirie des Unbewuss-
afinal, envolvimento é fundamental para toda psicologia, para toda ten, primeiro volume do seu projetado Lehrbuch der Komplexen Psy-
existência humana, fato que dispensa maiores comentários. Nunca o chologie, limitando assim explicitamente o campo mu!tifacetado de
problema da psique foi resolvido, seja na época clássica ou entre os Jung, que exige uma grande variedade de métodos, a uma literali-
~ovos primitivos, através de relações pessoais e "hum~?izadoras", e zação: o método das ciências naturais.
{
sim pelo o 'ligando-os a dominantes impessoais. ~. Tal designação não pode mais ser empregada com o sentido
Os dominantes, por trás da aparência imediata, é que permitem e original que lhe deu Jung (e Toni Wolff), devido às implicações da
det~rminam as nossas histórias de caso pessoais a partir de suas his- palavra "complexo" em inglês (que não é o equivalente do alemão
tórias de caso arquetípicos, que são os mitos, as lendas dos deuses, komplexe, complicado) e também devido aos eventos históricos sub-
suas fantasias e sonhos, seus sofrimentos e patologias. A pluralidade.. seqüentes que deram à "psicologia complexa" um colorido tal que
de formas arquetípicas reflete um nível pagão de coisas e o Que po- agora ajmxergamos à luz da fantasia do empiricismo.
deria ~o de uma psicologia poljteísll!. Ela é responsável por
muIi~eS de consclenCla estilos de ex'stê era e formas de
NOTAS
"cultivo da alma" ,\com isso libertando i - do estereóti o
. e..um e o a c rÍÜn 6 e um e ..A perspectiva arquetípica de apreen- 1. T. Wolff, "Einführung in die Grundlagen der Komplexen Psychologie" in Die Ku/-
der a experiência vita , ao re etir essa pluridade e liberdade de estilos turelle Bedeutung der Komplexen Psychologie, Berlin, Ed. Psychologischer Club,
no interior do mito, vai aos poucos se intensificando. É nesse espírito Zürich, 1935,pág. 7, tradução minha.
que Spring espera prosseguir, 2. S. Freud, "Heredity and the Aetiology of the Neurosis", Collected Papers I, Lon-
dres, 1953, pág. 148.
PÓS-POSFÀCIO 3. C. G. Jung, "New Paths in Psychology", Collected Works, 7, 2~ ed., § 410.
4. C. G. Jung, CW 16, 2~ ed., § \15.
Gerhard Adler (Londres) e Wolfgang Giegerich (Stuttgart), em 5. C. G. Jung, CW 8, 325; 9, I, § 260.
comunicações escritas separadas, chamaram a atenção para meu uso 6. T. Wolff, op. cit., pág. 20.

166
167
x- PLOTINO, FlCINO E VICO - PRECURSORES DA
ICOLOGIA ARQUETÍPICA "

Jung conta, à pagina 158 da edição americana de Memórias,


Sonhos, Reflexões (1), a história do sonho que teve durante a viagem
com Freud, em 1909, aos Estados Unidos. Era "o sonho dos dois
crânios", que prenunciava sua separação de Freud. O sonho apresen-
tava Jung em "sua casa", uma casa de dois andares. O andar supe-
rior, onde o ego de Jung primeiramente se encontra no sonho, está
decorado com belas pinturas antigas, num estilo rococó. Descendo ao
rés-do-chão ele encontra uma mistura de Renascimento e Idade
Média; mais abaixo há um porão romano e mais abaixo ainda, num
outro porão profundo e escuro, encontram-se restos arqueológicos
primitivos, e os dois crânios. Para Jung (pág. 161), o sonho

" ... obviamente designava os fundamentos da história da cultura


- uma história de sucessivas camadas de consciência... Um
diagrama estrutural da psique humana; o sonho postulava algo de
natureza inteiramente impessoaL.. e tornou-se para mim uma
imagem-guia... minha primeira suspeita de um a priori coletivo
sob a psique pessoal ... como formas instintivas, isto é, como ar-
quétipos. "

Jung continua (pág. 162), dizendo que o sonho da casa em 1909


"renovou meu velho interesse pela arqueologia". (Em seus tempos de
estudante, o primeiro amor de Jung foi a arqueologia; a psiquiatria
vinha em segundo lugar, faute de mieux). A partir de então volta aos
livros de escavações e de mitos. E diz:

"No meio dessas leituras, deparei com o Symbolik und Mytho-


logie der alten Võlker, de Friedrich Creuzer - eafebredesse livro
se apossou de mim! Li como um louco e trabalhei com ardente in-
teresse, varando montanhas de material mitológico, passando em

169
seguida aos autores gnósticos e terminando numa total confusão ... 2!:~o;: '::., cômputo geralteve uma participaçãomuito im-}
Era como se eu estivesse num hospício e começasse a tratar e portante no desenvolvimento dos estudos mitológicos" (4).
analisar centauros, ninfas, deuses e deusas do livro de Creuzer
como sefossem todos meus pacientes". ]:QQ.a.s.-aJ; imagens, todas as esculturas, todas as lendas seriam
simbnlas a serem pesq)!isailos...em-seu . . 'cados ocultos. Para
Foi então que lhe veio às mãos a publicação das fantasias de Miss ~zer a Qesquisa do mito e da religião só acabava quando se che::-
Miller, editadas por Flournoy (2), ponto de partida para sua extraor- gava não a uma origem histórica, a uma explicação causal, ou a uma
dinária obra Wandlungen und Symbole der Libido, cuja primeira parte ]iiSiificação naturalista mas ao significado simbólic.o..O requisito par
apareceu em 1911 (CW 5). Esse livro inaugurou uma orientação do chegar ao si nificado simbólico era o ue a -
pensamento e da cultura que recebe agora o nome de JungUIana. Antes menêutico, a capacidade e imaginar mitologicamente, arte similat...à
. desse trabalho Jung Já havia feito contnbUIções que ostentavam sua ~ (5). A implicação neoplatôrnca numa imagem em exa~e c?~S-
marca original, mas somente com essa obra é que a própria psico 'a tituía para ele o nível mais profundo que a percepção sírnbólica
aos poucos toma uma nova direção - ou, como espero mostrar .etom poderia atingir. Creuzer era um neoplatônic~ (6).
( uma antiga direção. Acredito que o tema dos' 'dois crânios" n es-
gota apenas na questão imediata da separação de Freud, mas dá ensejo Acredito mesmo que a resposta de Jung a seu sonho de 1909
a uma reflexão posterior e mais profunda em "Os Dois Tipos de Pen apoiou-se na descoberta que fez, no mesmo ano, em Creuz:r: porque
samento", capítulo com que se inicia e se define toda a argumentaçã a resposta de Jung é neoplatônica. Com isso pretendo dizer que a
de Symbole und Wandlungen, com uma referência logo na abertura d uestão que declaradamente separou Freud e Jun~ em 1911-~913 ~oia
capítulo, ao método simbólico de interpretação. . psicologia do incesto. Deveria este ser tomado literal ou Simbolica-
mente? Jung adotou a posição neoplatônica tradicional contrária ao

I
O sonho de Jung com a casa mencionada acima pode conter a positivismo literal de Freud. "Comumente o in~esto tem um aspecto
fonte onde se originaram os fatos que resultaram na teoria dos ar- altamente religioso, e por essa razão o tema do incesto tem uma par-
quétipos, mas a origem histórica dessa psicologia acha-se em parte na ticipação decisiva em quase todas as cosmogon~as e em um n~mero
obra de Friedrich Creuzer (3). Foi esse autor quem inflamou a ima- muito grande de mitos. Mas Freud aderiu a uma interpretação literal e
ginação de Jung e cujo livro foi lido "com ardente interesse". Que não conseguiu captar o significado espiritual do incesto como um sim- .
livro é esse? Quem foi Creuzer? O que há em sua obra de tão incen- bolo." (MDR, pág. 162 da edição inglesa). As obras neoplatÔnicas - .
diário? E como veio a adequar-se, ao nível das informações escritas, à como as dos autores que nos propomos examinar - pretendem revelar,
concepção dos arquétipos inscrita no sonho da casa? o espírito simbólico os n turai . Fazem uma leitura
Creu ~ sceu em 1771 e morreu 87 extraordinários anos depois, o incesto como símbolo". A mais conhecida dessas dissertações é
e Heidelberg, em 1858 - nascimento quase contemporâneo ao de Uma Apologia das Fábulas de Homero, de Proclus (com tradução in-
Beet orte dois anos após o nascimento de Freud. Foi aluno glesa de Thomas Taylor).
de Schiller, ligado ao movimento romântico de Heidelberg, propulsor
de um dos mais famosos períodos de romantismo e paixões suicidas Além disso, creio que a separação entre Freud e Jung signific,?u /
(em Caroline von Gunderode), fundador da historiografia grega - e, para este a libertação de sua própria alma da inte.rpretação per~onahs-
o que é da maior importância para nós, editor dos textos neopla- ta e literal que Freud deu ao seu "porão", u,ma hbert~ç~o equivalente p
tônicos de Proclus e Olimpiodoro (FrankfurtS- ) e de Pio tino ao movimento para fora da Caverna na metafora platônica. C~tar as.
verdadesarquetípicas que estão or trá I

"..
(Oxford, 1835); baseado nesse neoplatonismo, Creuzei elaborou a.en-
tão nova abordagem simbólica do mito e da r . .omparada. Seu e pessoa e um passo essencial da psicologia dos platônicos. No
trabalho "neoplatonismo, a caverna de Platão é o reino da physis, a perspectiva
da realidade natural, onde o incesto é sexual, literal e pessoal, onde os

f
.foi uma tentativa de dar uma base científica à interpretação dois crânios no porão referem-se a conteúdos pessoais concr~tos e à~~
neoplatônica da mitologia grega. Apesar de logo afastado por suas emoções. Reinterpretando o seu sonho do porão, Jung livrou-se
jilologistas responsáveis, foi saudado com entusiasmo por fito- do confinamento na caverna dos hermeneutas fisicistas que, no
. safas comoSche/ling, teve influência permanente no gênio errático neoplatonismo, são os inimigos que cegam o olho psicológico. .

170
~ o maior dos neonlatônico, [oLPlotino, que viveu e ensinou em essas paixões e experiências?" E após elaborar questões corolárias e

0]+
sua cl~ade, Rom~ (onde suas Enéadasforam escritas) desde o ano de possíveis respostas, prossegue dizendo (I, 1, 2): "A primeira pergunta
244 ate sua morte,en:t Puteoli, em 2?O. Mas não quero agora especular obriga-nos a considerar, logo de início, a natureza da alma". Eviden-
sobr~ o hlstoflca entre Plotmo e Jung via Creuzer 7 .. Não es- temente, é um livro de psicologia que temos à nossa frente. Lê-Io

=
tou~ aq.U1tentando fazer um exercício histórico de busca de raízes e in- não, porém, é menos importante que lembrar que j2ara aprender nsi-
flue~c~ U~a abordagem histórica não seria uma abordagem ar- EQlugia-nãe-temos..de.le1:...lhlros de psjcologia mas sim ler livros psico-
quetípíca e n~o faria Justiça ao método e 1\ obra a-histórica de nossos logicamente (9).
~ ~ .
Plotmo, Creuzer e Jung. m tampouco preiêlliiõ-ãven-
t .' ~ rao ro~ano" do sonho deJung, na esperança de des- Procuremos agora expor as linhas gerais de meia dúzia dees- -
cobrir re~lqUla~ d~ Plotmo em sua cripta - é preciso ter cuidado com truturas s do pensamento de Plotino ue apresentam analo íâs'
ess,e ~orao, principalmente nós que viemos lá de cima dos Alpes;.....o-. =com..O:Lp.QIlt.o undamen ais a psicologia ar u pica. ara apresen-
. Jun como, b:mos nunca esteve em Rom Qtlen:Jpu'Fém' tar esses temas estruturais resumidamente sou forçado a ser abstrato e
sugenr, e com bastan te aSGr<€I'ue-a" - El- "e-v+' mteresse de n peço desculpas desde já pela aridez dessa demonstração anatômica.
~é e an~o ele quanto Çreuzer G9m.pi}rtjIJjaram um mes.
..:no espmto e uma atitude psicológica semelhante, uma atitude ar-
1-;1 O homem pode agir inconscientemente. Pode haver simul-
tan~nte consciência em um nível da alma e inconsciência em outro.
quêfIplca, que a i.adlção chama de neoplatônic,: _./
----".-- _
....•.. ,----_ __ _-
•.. _-_._ __ _ - _-_._ -_ - -
...•._ .. _._-_ .. .•. ..
A psique tem lembranças das quais é inconsciente (IV, 4, 4). Tanto
existem ações e hábitos inconscientes como recordações inconscientes
.São poucas as referências de Jung a Plotino. Plotino não parece
(10). Como Plotino tem sido chamado de "o descobridor do incons-
ter sido uma das f~n~es diretas ou favoritas de Jung, e pelo menos dois
ciente", a psique universal única que postula tem sido comparada ao
volumes d,a ?bra básica sobre Plotino estão ainda na biblioteca de Jung
inc~'sciente coletivo de Jung (11). .
com as pagm~s por cor.t~r (8V~~de então a similar entre Jung _)
protestante, T?edlco empl~l~ta, imrmgo ~a m,etafísica e defensor dos as- 2 A consciência é móvel e múltipla (12). A consciência não pode
pect?s sOT?bnos e do feminino - e Plotino, que entrou para a história ser .ribuída a apenas um centro ou atividade subjetiva, ou seja,
da ~llosofla como o maior adversário da matéria porque sua preocu .. unicamente ao ego. A descrição da psique deve ser feita em termos de
paçao era com o mundo do espírito transcendente?./' uma multiplicidade, "pois o homem é múltiplo" (I, I, 9). Jung pro-
põe uma multiplicidade de consciência semelhante, com sua idéia de
. U~ momento .' porém: não vamos nos iludir com a história da dissociabilidade da psique em muitos complexos, cada um com seu
~llo~ofla no que diz respeito a Pio tino (deixando de lado a possível brilho próprio, seu lampejo ou centelha (CW 8, § 388). Para Plotino a
Ilus~o ?~Jung .com :eu empiricisrno médico às custas da meta física). consciência pode associar-se a uma ou mais dessas partes. O "nós"
A história da fll?sofl~, ,a~nal de contas, não é escrita por psicólogos, (ou o que chamamos o "ego") adquire sua identidade, seu ser, a partir
de modo que fica dificil apelar para uma p spec I '. sicológica do nível de atividade em que atua. Q...::nós" movimenta-se pelo in-
quando se trata de filósofos. Uma abordagem fi sófica Plotinoe terior da alma à man . a....do...ego...o,J+Í.i:.i.cO
.AO sonho da casa de Jung,
cert~~ente encontrará nele aquela filosofia (espiritual, metafísica, passando a consciência a exis . nível, ora noutro.
teol~glca) que .Ju~g detestava. Além disso, os editores dos textos de
Plotino na maiona eram teólogos cristãos, como Cilento na Itália Tanto para PIQ.tin..ocomo para Jung, a alma não é o egoj a ver-
:'-rn~)U e Henry, que são jesuítas, o padre francês Trouilla:d e o deã~ dadeira' consciência refere-se ao conhecimento que a alma tem de si
inglês W. ~. Inge. Percebe-se aí toda uma tendência inerente de pôr em mesma como um reflexo da si .. s I e não a . m
r~levo ou Interpretar os aspectos mais inspirados, exaltados ou coin- con ecimento de si próprio como subktiyidade de um ego isolado, O
cidentes com a do~trina cristã em sua obra. Mas a ~icologia pode, "QUê"Chamamos hoje de "consciência do ego", o nível cotidiano das
voltar-se Dara Plotmo e deter-se em sua preocupação maior com ª ii[. ações habituais no domínio da physis, ou a percepção natural sensível,
ma, questão ue , . ug~~azia também na mente de Iung: que apreende o mundo por seu valor aparente, é para Plotino o ~
qual a natureza da realidade PSlqUlCq? ir-0
lado disso, Plotino debate mais baixo da atividade, e representa um tipo de inconsciência Q1Y.
o~t~a~ questões pSicológicas tais como a\ira,)o d~stinol a felicidade, o Plotino demonstra como quase toda a psicologia moderna põe a
S~ICldl~, bem como aquela com que inicia as Enéa-dÍs, sua obrá má- psique às avessas. Uma psicologia que busca o desenvolvimento e for-
xima: Prazer e dor, coragem e medo, desejo e aversão, onde têm lugar talecimento do e o só o e " 'etivos ro-

172
173
~ duzindo não "rpa a~oliacão da ~onsciência mas uma comçjênc.ijl Apresentarei agora, brevemente, diversas citações condensadas
rI?:no,r. Como nao existe, para Plotino, "um fulcro fixo de autocons- de Jung, que explicitam o que quero dizer ao confrontá-Ias com as
ciencia como centro de n?sso mundo e de nossas atividades" (14), nós idéias de Plotino a respeito das imagens e da imaginação como base da
nos tran~f?rmamos precisamente na atividade que dese~nhamos, consciência. "Todo processo psíquico é uma imagem e um "imagi-
na memona ~ue retemos; o homem é múltiplo, é ProteuQ)l), fluindo nar"; de outra forma não poderia haver consciência ... " (CW 11, §
em todas a~Le"ç.Ôe como a.alm um,.v.eI=sal,carregaAao em PQte~i 889). "A existência psíquica é a única categoria da existência de que
todas as COIsas. 0_ de Ca acidade de se defrontar com temos conhecimento direto, uma vez que nada pode ser conhecido se
"realid _ . .~ . -" ' "ao nível da h sis im licaem não assumir antes uma imagem psíquica ... Na medida em que o mun-
uma submersao da consciencia em um domínio que, por definição, não do não assume a forma de uma imagem psíquica, ele é virtualmente
pode ser consclente(1õ). -
y não-existente". (CW 11, § 769). Quando Jung define "imagem" (CW
6, § 743), ressalta a noção de sua independência em relação à percep-
ção de objetos externos. Em vez disso, menciona a "imagem de fan-
tasia" ("um conceito derivado do uso poético") que surge interna-
mente, inconscientemente, como expressão condensada da psique
como um todo (24). À maneira da ima ina ão de Plotino, a ima em de
Jun espelha a condi ão da alma, reflete seu esta o e consciê .
. Diferente a imaginação de Plotino, as Ima ens e un s
~au:.iulos mais elevados processos da alma (pensamento
é ideação) (25). 1) jmagem da fantasia, ao dar sentjdo ª processos na-
turai's apenas inconscientes - (tanto em Plotino (26) como em Jung, a
natureza não é, em si, consciente) - torna a consciência possível,
como conhec'mento es li ado e lí!dWes..e..como Ia livre dis-
ponível.. Em resumo, a atividade e~$encial da psique, que caracteriza
suY.Jidadeira natureza, é a contirl'i'ta . - . ns da fanta-
SIa flfJJ. stas Imagens pnmor IalS da fantasia são os arquétiposJ28).

-(4)-..EI.o~ino tem IImamaneira especial de dizer as coisas que a b

um só tem o r fere - e ' ~ indivíduos mas também à m.gu.e


como anima mundi, a psique coletiva que transcende seu ortador in-
dividual ~29~7Atgl1'ém comuma v· o ans ote ica ou cartesiana pergun-
tãf:'Se::ã, ao ler Plotino, se ele fala de processos em pessoas ou de
processos na psique em geral. Estaria ele falando de psicologia ou de
. A psicologia da consciência de o mo é assim lIma verdadeira metapsicologia? Platão fazia psicologia assim, mas não Aristóteles,
fJS/~O/O~ta, e não uma fisiologia disfarçada, em que a consciência este começava sempre como um biólogo empiricista, lidando com
d~nva de processos cerebrais. Esta é a abordagem característica tarn- casos individuais e alocando a psique em corpos particulares. Quase
~.em d.e Jung. ~e Jung nunca fez questão de separar a psique da fi- toda a psicologia moderna segue essa abordagem aristotélica. Mas não
siologia, tarI?bem .nu~ca defendeu a sua conexão, tentando sempre a psicologia de Plotino. Nem a de Jung. Jung tenta sustentar sua con-
m~nt~r a pSlcologI~ livre de modelos organicistas (21). Há imagens cepção da impessoalidade e da universalidade dos processos psíquicos
psrquicas da fantasia (arquetípicas ou primordiais) formando a base básicos atravésda alusão a um substrato inferior, reunindo, à maneira
da consciência (22) ..Plo~ino e Jung são concordes em declararem-se a de Aristóteles, evidências empíricas encontradas em almas alienadas e
ravo~ de _uma base. I?telra~ente psíqUIca da consciência, a cargo da em culturas exóticas. Plotino não faz nenhuma tentativa nesse estilo.
unagmacaQ., que Ficino mais tarde chamaria de fantasia ou ido/um. (Não busca substrato algum; para ele, não é aí que se deve buscar sus-
Apegando-se a esses princípios - do poder independente da imagi- tentação). Dessa forma Jung fala como um plotiniano quando explica
nação - Jung separou sua psicologia das de Freud e Adler (23). a concepção de Sendivogius (uma concepção que, acho, era também

1.74
175
sua): "A alma funciona no corpo, embora tenha boa parte de' suas Por isso Jung sempre se refere a essas especulações psicológicas
funções fora do corpo ... (e) imagina muitas coisas, extremamente imaginativas em termos de hipóteses, "como se", fantasias, que
profundas, fora do corpo, como o faz Deus" (30). chamou de "mitologizações". Também Plotino recorre a mitos para
explicitar insights (V, 8, 13 - Kronos; V, 8, 10 - Zeus, Apolo, as
Quando a psicologia arquetípica discute o processo de imagi-
musas; IlI, 5, 5 - Eros, Poros, Penia; VI, 9,9 - Afrodite; 1,1,12-
nação no mito, ao mesmo tempo descreve as operações precisas que

~1
Hércules).
têm lugar numa psique individual, sem embargo dos acréscimos e
matizações da vida pessoal. A psicologia arquetípica não precisa de J . O que .1ung fez de diferente de Plotino e de todos os neoplatô-
uma coletânea de material de casos para demonstrar os dinamismos . mcos antenores consta da passagem de sua biografia que mencionei
psíquicos, dado que os mitos revelam a psicologia da alma do mundo no início. Jung aproximou-se do depósito da imaginação com seus
e por conseguinte também a da alma individual. A abordagem aris- .seres mitológicos, como se fosse um hospício imaginári~, tratando
totélica é que se preocuparia em fornecer exemplos de casos. A força seus moradores como pacientes. A mitologia tornou-se psicologia
da abordagem aristotélica reside no poder de organização e. não no para ele - ou melhor, tornou-se psicopatologia. Desse modo, Jung
poder de imaginação e de interpretação, que é platônico e pode ser en- levou o neoplatonismo a galgar um degrau fundamental a mais. Ao
contrado em platônicos do porte de Creuzer, Thomas Taylor, Vico- associar as imagens dos mitos e o modo de percepção simbólica do
e também Jung. neoplatonismo à psiquiatria, conseguiu reunir os deuses às doenças
~ Como era de se esperar, há uma certa semelhança nos estilos (CWI3, §54) e assim pôde estruturar uma base arquetípica para a
de Watino e de Jung. O que já foi dito do neoplatonismo - "uma terapia do nosso sofrimento psíquico.
mistura estranha de pensamento e mistério, devoção, magia e absur-
do" (31) - encontra eco, quase que com as mesmas palavras, nos Passemos agora ao segundo dos nossos três autores oriundos do
ataques a Jung. Plotino e Jung compartilham uma concepção .2!i:: Mediterrâneo. Marsilio)E@ii§ tem recebido consideração ainda
ginal, baseada na metáfora fundamental da alma d do ue t menor e tem sido menos estudado que Plotino. Em inglês existe pouca
ue é ItO e uma a lfmaçao a alma e pela alma e, ao mesmo tem ,9, coisa de sua obra, e muito pouco a seu respeito (33). Os cursos univer-
uma afirmação a respeito dela. A a ma e tanto o sujeito quanto o ob- sitários ao norte dos Alpes que tratam da história do pensamento
jeto de seu interesse. Além disso, encontramos no neoplatonismo a ocidental em geral passam da filosofia do fim da Antiguidade (estóicos
idéia de que a alma está sempre se auto-estruturando, de que psico- e epicuristas) para Descartes e Bacon, omitindo o pensamento me-
logizar é uma operação perpétua. Como diz Dodds: "Em cada um dieval (supostamente tido como teologia católica e não como filo-
de nós, ele (Plotino) crê, existe um "homem interior eternamente en- sofia) e o do Renascimento (suposto diletantismo retórico e não fi-
gajado na noesis (IV, 8, 8; V, 1, 12)" (32). Ficino considerou esse losofia). Nem a teologia nem a retórica puderam ser adequadamente
"raciocínio perpétuo" como a verdadeira atividade da psique. Esta avaliadas em sua importância até o aparecimento da psicologia
reflete incessanteme re sua própria natureza, porque sua na- profunda, que as revisitou dentro de um outro espírito. Assim sendo,
tureza essencial é a eflexão or isso a atividade psicológica essencial, Ficino pode ser considerado um escritor psicológico, uma espécie de
que não pode se comp etar enquanto a psique estiver viva, deve ser a psicólogo profundo. Quando seu pai, médico dos Médici, levou pela
verdadeira causa formal das análises intermináveis, sejam quais forem primeira 'vez o menino Marsilio à corte, Cósimo comentou que o des-
as idéias que possamos ter a respeito de terapia, transferência e in . tino de Ficino era curar as almas dos homens, assim como o do pai
viduação. \ era tratar de seus corpos (34). E, como disse Panofsky, o movimento de
idéias por ele iniciado teve um "impacto que pode ser comparado, em
.Ã-pr-ópriél}')sicglogia, portanto. não pode chegar a uma conclusão
escala e intensidade, apenas com o da psicanálise hoje" (35). Mas nãoé
.final, nem a um sistema definitivo. não pode nem sequer fazer uma
somente a força que pode ser comparada com a da psicanálise. O con-
afirmação da qual esteja absolutamente se ura. Cada interpretação de
teúdo das idéias de Ficino também merece essa comparação.
son o, ca a ei pSICOogica, cada insight, ao mesmo tempo que é res-
posta é também uma nova questão. E todo psicologizar subjetivo "Ficino, que tomou de empréstimo da tradição neoplatônica
reflete os processos arquetípicos do mundus imaginalis, de modo que muitos elementos do seu esquema, modificou-a conscientemente na
quanto mais imaginativo - em imagens reais - for esse psicolo- questão crucial da posição central da alma humana" (36). Ficino es-
gizar, mais fundamental se torna e mais fielmente reflete ele a psique. creve:

176 177
i= (a alma) é o maior de todos os milagres da natureza. Todas as
coisas abaixo de Deus são sempre um único ser, mas a alma é toda
as coisas juntas ... Por isso pode corretame~te ser ch~mada de cen-
Ficino e Jung, ao invés de considerarem separadamente a teologia
de um lado e a ciência natural de outro, ou o cristianismo de um lado e
o paganismo platônico de outro, procuravam interpretar toda afir-
tro da natureza, meio-termo de todas as COIsas,conjunto do mun- mação, qualquer que fosse seu compartimento de origem, em termos
do, face de tudo, reunião e articulação do universo(37). de seu significado para a alma, a "união e articulação do universo".
\ "A ciência fundamental" do Renascimento, de acordo com uma
autoridade no assunto, era o "conhecimento da alma" (43). O neo-
Colocando a alma no centro, a filosofia de Ficino to na-se uma
platonismo de Ficino era exatamente isso. (E se é assim, então por
filgsà1ia psjcõl()gic!l, recon ecendo ele que a filosofi seia na ex-
que, mas por que mesmo, pergunto aos senhores, meus colegas ita-
periência psicoló ic o .~
lianos, que têm no sangue de sua psique o Renascimento - do qual
mo Tflca a. .
toda a Europa vive até hoje - por que buscam em nós, lá no Norte, a
Uma educação verdadeira é, portanto, uma educação psicoló- psicologia, o marxismo e o existencialismo, Adorno e Marcuse, Freud
gica. Os métodos tradicionais do ensino da filosofia - lógica, me- e até mesmo Jung - para não falar de Mao e dos gurus indianos -
tologia empirica, metafísica teológica - requerem igualmente uma todos estes substitutos secundários, quando um psicólogo extraor-
contra-educação da alma. Esta ocorre através da "Introspecção da ex- dinário encontra-se sepultado na própria terra dos senhores?).
periência interior que nos revela a existência independente do fun-
cionamento psíquico straído ou separado do corpo" (38). Deve!Jl.Q.S Mas voltemos a Ficino. Quais eram as fantasias místicas desse es
entender por c J a no ão neo latônica de um ver tranho homem, que tocava hinos órficos em seu alaúde, que estudava
magia e compunha canções astrológicas, esse corcunda, gago, poli-
mun o não-psicológico, encerrado na caverna de uma i ia
ticamente um tímido, amante mal-amado, tradutor melancólico de
naturahsta,l era e materiahs~ ~
Platão, Plotino, Prado, Hesíodo e dos livros Herméticos, ele próprio
A .contra-educação (40) de Ficino é pois uma psicanálise,que ensina autor de obras extremamente populares e influentes ("Comentário
a colocar a realidade psíquica em primeiro lugar e a considerar todos sobre o Symposium") e também escandalosamente perigosas (Liberde
os eventos em termos de seu significado e seu valor para a aI p • A Vila) para seu tempo? Nesse ponto nada mais podemos fazer senão
posição que defende, de que a mente tem sua morada na alma 4 ,é mencionar um determinado detalhe de sua imensa obra. Trata-se
semelhante à e ung defendendo o esse in anim ). A porém de um detalhe que talvez seja o que tornou sua obra possível, e
re'atraããeõo ser umano é a realidade do ser psíquico, e esta é a única que estabe~e ou vez uma conexão com Jung. Esse ponto focal é a
realidade que podemos apreender diretamente, que se apresenta de for- sua idéia dl~antasi
ma imediata. Tudo que se conhece é via alma que se faz conhecido; isto
Ficino c be
é, transmitido através de imagens psíquicas, que são nossa realidade
rimeira é a me
primeira (CW 11, §76QL
ginação ou fantasia or meio do qual cada um de nós está li ado
O efeito do esse in anima (ser-na-alma) é o colapso da compar- estmo; a terceira é o cor o no ~lco ~ 110l de.nÓs está li:.
timentalização, que trata a psique como se fosse apenas uma depen- gado à natureza. Examinemos, na segunda e na terceira, a relação entre
dência do homem e a psicologia nela baseada apenas uma dependência fantaslae corpo. Há uma correspondência notável com a idéia de J ung
do mundo acadêmico. Assim, a visão psicológica que permeia o ver- da relação entre imagem arquetípica e instinto (44). Em ambos os
dadeiro universalismo, tal como a de Ficino e Jung, sempre ameaça o autores, a fantasia detém a capacidade da psique de dominar e dirigir o
academicismo universitário, cujo universo é departamentalizado. Mas curso compulsivo da natureza - do "corpo", na linguagem de Ficino,
como a alma está em toda parte, o pensamento ficiniano, e o de toda do "instinto" na de Jung. As-imagens da antasi são,,.per-t-aftto, o meio
psicanálise profunda, infiltra-se através das barreiras acadêmicas en- de se sobrepor..o destino à-natureza Sern.a.fantasi o teríamos o
tre "departamentos" e "faculdades". Por isso também o academicis- jnenor.senso do destino e seríamos é!Qenas o natura (45). Mas através
mo antipsicológico ataca Ficino (assim como a Jung) tanto pelo lado da fantasia a alma é capaz de colocar o corpo, o instinto, a natureza, a
da ortodoxia católica (Etienne Gilson), como pelo da científica (George serviço de um destino individual (46). Nosso destino revela-se na fan-
Sarton e Lynn Thorndike), considerando sua obra "retórica", "sem tasia, ou como diria Jung: nas imagens de nossa psique encontramo
valor com filosofia", meras "fantasias místicas" (42). nosso mito. .

178 179
De Florença passamos a Nápoles, do século quinze para. o sécul?. Mas Vico é um precursor da psicologia arquetípica não apenas
dezoito, de Ficino a Vico, sem que se parta o fio do platomsmo. FI- devido ao seu humanismo em geral ou aos paralelos que o aproximam
cino foi o tradutor de Platão e Plotino; Vico foi leitor dessas tra~~- de Jung em pensamento e linguagem. Ele merece a atenção dos Que s~
ções de Ficino - assim como Jung leu Sinésio na tradução de Fiei- interessam por- Jung PJ'incipalmente devido à sua elaboração do pen-
no (47). Vico lembrava Ficino com reverência, l~mentando eI? ~ua '-"iiiii.en_to~. Para ele esse tipo e pensamento era pnmano,
autobiografia que os estudos sérios de seu tempo tivessem substituído da mesma forma que Jung considerava primário o pensamento da
tão radicalmente o estilo de Marsilio Ficino e o interesse em Platão e fantasia (56). Vico elabora com mais precisão e conseqüência, em sua
Plotino pela perspectiva estreita de René Descartes (48). doutrina dos caracteres poéticos, a ênfase dada por Ficino à fantasia .
• Tentarei expor a idéia mestra de Vico, pedindo aos senhores que man-
Podemos identificar, ao lado do fio do platonismo, um outro ~ tenham em mente, enquanto isso, a noção junguiana de arquétipo.
tipQ~io de certa importân~ia para .a psicologia;. refir.o-~e à ~ ~) tl~
~gização. ssim como Plotino sofna de males ~m~estmals croru- Seguindo a moda do Renascimento (Petrarca e suas cartas a
cos (i!I:~)-e-Ficino de melancolia, Vico fraturou ~ ~ramo numa queda eminentes figuras mortas da Antiguidade; Maquiavel e suas conversas
quando criança, o que o afastou da escola por v~nos anos; ~ tam~em imaginárias com vultos do passado durante o jantar), também Vico
como Ficino Vico se considerava um melancóhco (50). Alem diSSO, \ . tinha seus quatro "grandes autores" (Platão, Tácito, Grotius, Ba-
mais uma vez, não é nem um pouco comum considerar Vico um con), seu culto pessoal de ancestrais e também ele personificava. A es-
psicólogo (51). Es.\ies três filósofos na verdade são ou n~o são.pensa- trutura inteira da psicologia junguiana apóia-se deliberada e expli-

-' dores psicológicos? Ou não seria mais provável que a psicologia é que
não seria realmente psicológica até o aparecimento de Jung, que lan-
çou a ponte para essas fontes isoladas e não reconhecidas e também a
citamente em conceitos personificados
"o pessoalzinho"
- os complexos vistos como
(57), a sombra, a anima, o velho sábio, para não
mencionar as substâncias e processos personificados da alquimia.

J{ maneira correta de explorá-Ias. É através de Jung que os redesco-


brimos como psicólogos.
Em sua Nova Ciência (SN, §§ 205-209.)...vi"g apr.esenta asoect.o.s
típicos da mente humana &omo universali fantastici (§ 381), ou
imagens universais, tais como as encontradas nos mitos. Seriam-
Vico tem sido considerado o progenitor de inúmeros ramos do
caracteres poéticos; não meras invenções de um artista criativo como
pensamento moderno: matemática,. ling~ís~ica, soci~l~gia. Foi com~ Homero; pois o verdadeiro Homero é um estado de espírito, um modo
parado a Hegel, ao marxismo, ao existencialismo , a, L~vI.-Strauss, e fOI
de perceber o mundo nos universais de Deus e do Herói, cada um deles
tido como inspirador de Coleridge e de Joyce (52). E fácil perceber seu
sendo um tipo ou conceito de classe e também uma declaração de fé
significado geral como fundador do método h~maní~tico (53), do ~n-
metafísica, uma fábula verdadeira (vera narra/ia) (§ 401). "Aquiles
tipositivismo e do anticartesianismo, da psicologia c?mpr~enslva
contém a idéia de valor comum a todos os homens fortes, ou Ulisses
desenvolvida mais tarde por Dilthey, Cassirer e Jaspers. E aqui, neste
uma idéia da prudência comum a todos os homens sábios" (§ 403).
sentido genérico, que Vico é precursor da aborda~em junguiana. São
também fáceis de perceber pequenos pontos particulares de contato, Além do mais, Vico é o primeiro nos tempos modernos e no con-
como por exemplo: Vico usaos termos anima e animus(54); ~ico,como texto do pensamento do século dezoito a considerar as doze divin-
Jung, admite a origem autóctone dos mitos ,que sur em". en- dades do Olimpo (SN, § 317) como estruturas básicas, cada uma com
n e sem I usão de uma fonte a outr )' entre povos mtelramente significado histórico, sociológico, teológico e, acrescentaria eu,
n AS dos outros" (SN, § 144), e_que esses fatos fun- psicológico (58). Isso foi um empreendimento de muita coragem para
damentais tais como expressos pelo senso com ' . um piedoso professor de uma universidade católica no reino de
Nápoles, num momento em que seus próprios amigos tinham sido
condenados pela Inquisição papal (59) Tal empreendimento reporta-se,
de um lado, à imaginação politeísta identificável na abordagem
neoplatônica da psique (60), e, de outro, prenuncia o pensamento jun-
guiano em que deuses e demônios são efetivamente estruturas fun-
damentais, pois são psiquicamente anteriores às mentes que acreditam
projetá-Ios. Para Jung os deuses não eram projeções. Jung diz:

180

{
k~1~~YJf»~
-r~
. y
-
" ... em vez de derivar essas figuras de nossas condições psíquicas, estas CONCLUSÃO
é que devemos derivar daquelas figuras" (61).
Mantendo a atençãe voltada para três italianos (consideremos
Essas pessoas míticas são s realidades metafisicas, Plotino como tal por rdoÇãb), procuro desenvolver um tema que cons-
às gUalS a re_ª.t (li e s formar-se. uan o ta dos próprios sonhQult/Jung. Os senhores devem estar lembrados
Torquato Tasso imagina o personagem poético Gofredo como u~ que Jung teve três experiências das mais vívidas e peculiares em conexão
"verdadeiro senhor da guerra", "todos os senhores da guerra que nao com a Itália - as visões parapsicológicas em Ravena (MDR, págs. 284 e .
se conformarem inteiramente a Gofredo não são verdadeiros senhores segs.); o sonho em Arona, que interrompeu bruscamente um giro de
da guerra." (SN, §205). (62). bicicleta em torno do Lago Maggiore e que o fez voltar às pressas para
Zurique (MDR, pág. 30l:!) e a vertigem na estação ferroviária de Zu-
A doutrina de Vico dos personagens poéticos fornece ,s~gestões rique, quando comprava um bilhete para Roma, que nunca logrou
ara- um modo arquetí ico de ra' em oetlco, um visitar, uma "omissão" que por muito tempo "desejou reparar";
erói ou um eus ou deusa torna-se a estrutura básica por meio ãã Pompéia, diz, já era quase demais para ele, e a respeito de Roma sua
,.Q.llil _ laclonaol.O.s os ey.entQ mos como. se c. f~rmam aos seu autobiografia comenta:
ti os universais u a uétipos. do.mundusJmagznalzs (63);. ~ perso
nagem poético poderia ser o que chamamos imagem arquetipica, com
a qual os eventos da minha história de caso, ou da dos senhor~~, ... Roma, o coração ainda ardente e fumegante de onde brotaram
podem ser comparados, complementados em suas lacunas e retifi- todas as culturas antigas ... Ali a antiguidade clássica ainda viva em
todo o seu esplendor em crueldade. Sempre fiquei admirado de ver
cados. ~
gente que conseguia ir a Roma como sefossem por exemplo a Paris
Esse tipo de teoria arquetípica avança através de "semelhanças". ou a Londres. Certamente que Roma ... pode ser apreciada es-
No pensamento neoplatônico, especialmente o elaborado por P~o- .teticamente: mas se o espírito que aí habita a cada passo lhe afeta
clus (64), os eventos podem ser reconhecidos pelo que real e e~sencJaI- nas profundezas do seu ser ...
mente são, e assim serem "redimidos" por esse reconhecimento,
"revertendo" às suas verdadeiras causas nas idéias divinas. Estas idéias Jung sentia-se afetado dessa maneira, pois, além das três inu-
divinas tornam-se, em Vico, os universali fantastici ou personagens sitadas experiências relacionadas com a Itália, quatro sonhos cruciais,
poéticos e, em Jung, os arquétipos. registrados em sua biografia, têm lugar numa Itália onírica ou trazem
temas italianos. (MDR, pág. 159 [porão romano); pág. 164, pág. 171,
O método chamado volta ou reversão (epistrophé) do neopla-
pág. 202). Estou certo de que os senhores os conhecem bem, no entan-
tonismo é comparável ao que Vico denomina "ricorsi". Ri~orsi não
to talvez nunca se tenham detido em seu componente italiano}:2§!u
consiste apenas da idéia de que a história é recorrente e recapitula-se a
naquilo que poderia ser chamado o "complexo italiano" de Jun ~.
si própria em ciclos. Psicologicamente, ricorsi é um método,(~5) par
entender fatos presentes em termos de seus pers~nagens poeticos, ~ Usando essa expressão não estou me referindo à Itália apenas
seu substrato arquetípico. Ricorsi é uma perspectiva, como a reversao como a região inferior, a terra comp~n atória do inconsciente para~ os r,
neoplatônica, para enxergar os fatos históricos presentes em termos de transalpinos e portanto protestantes. enso muito mais no complexo U~
mitos e os mitos em termos de fatos históricos presen tes. psíquico, geográfica e historicarnen e específico, que se encontra im-
plícito na imagem "Itália" e que Jung pressentia nos significados e O'\l~''i
O processo de retificação e de reversão numa terapia arquetí ca emoções liberados pela imagem "Romy-. Investigar essa "Itália' , ~
significa aproximar a fantasia e o comportamento individual ~ uma lorando seu pensamento, sua cultura e suas imagens, ajudaria a
figura ou processo arquetipico, um mito .na linguagem d: VICO, c .preencheraquela omissão, aquela lacuna na perspectiva do prõjffiõ
reconhecer todo comportamento e fantasia como expressao meta- , un - ~tan.to_na.Jia..p_s.~gj-aiuoguiamf= :-noque se-refere-à-v+
fórica. É pois o entendimento que a pessoa tem que é retificado pela "Itália" (69). Por isso, para ex -- o
ir-o cam õ -·sicolo lã 'W1--
imagem com que o comportamento e a fantasia são comparado~ ~:Uma das linhas de p.e.s.q~~sárias seria . esti a ão do
_personageIl~.J!~tiÇQ QIu.e.ç.e.. os meios de ~ompr .. m or- componente "Ttarrano" a partir do eÍemento italiano (70)
tamento humano a fantasia e a sico atolo Ia em sua maIs a a es-
calã.No espelho dessas imagens reconhecemos a nós mesmos (66).
sistema e da escola de Creuzer, e um pequeno relato de sua vida e obras é fornecido
por O. Gruppe, "Geschichte der klassischen Mythologie und Religionsgeschichte",
I. C. G. Jung (com Aniela Jaffé), Memories, Dreams, Reflections, New York (Pan- suplemento 4 em W. H. Roscher, Ausführliches Lexikon der griechischen und rõ-
theon, 1961. (MDR); (Traduzido para o português, sob o título de Memórias, mischen Mythologie, vol. 7,1921, págs. 126-37.
Sonhos, Reflexões, por Dora Ferreira da Silva (N. dos Eds.j).
5. Gruppe, "Geschicte", pág. 131, citando a biografia de Creuzer.
2. Jung (MDR, pág. 163) diz que as fantasias de Miss Miller "agiram como um cata-
lisador sobre as idéias armazenadas e ainda em desordem no meu interior. Gradual- 6. Quando uso o termo "neoplatonismo", não ignoro os estudos recentes que esta-
mente, meu livro foi tomando forma a partir delas e a partir do conhecimento de beleceram numerosas variedades no curso dos séculos e nos ensinamentos de várias
mitos que adquiri. .. " Evidentemente, Wandlungen und Symbole der Libido reflete figuras significativas. Mas para os propósitos do presente trabalho o termo neo-
a confluência de duas fontes principais, a patologia de Miss Miller e a mitologia de platonismo é usado no sentido tradicional, referindo-se ao pensamento filosófico e
Friedrich Creuzer. Creuzer é mencionado em CW 5, §§ 354-55. Há uma referência às atitudes psicológicas relacionadas à alma da maneira como foram desenvolvidas
adicional a Creuzer na primeira publicação de Wandlungen und Symbole(Jahrbuch principalmente por Plotino, Porfirio, Iâmblico e Proclo. É nesse sentido que
f psychoanal. u. psychopath. Forschungen 111,1, 1911, pág. 146) em relação a Creuzer era um neoplatônico, pelo que mais tarde sua obra recebeu ampla desa-
práticas sexuais no Egito (registradas por Heródoto). Esse parágrafo com a referên- provação, por exemplo de Kerényi (Die Erôffnung, pág. XIV). A reabilitação de
cia a Creuzer não ocorre na edição revista (CW 5), onde, segundo a edição de 1911, Creuzer por mitologistas posteriores deve-se principalmente às suas etimologias
deveria vir imediatamente após o § 34 e antes da citação de Ferrero. simbólicas e aos seus vôos interpretativos, que pouca simpatia receberam do li-
teralismo da tradição erudita racional clássica. Muito do que foi criticado em
3. A edição de Creuzer existente na biblioteca de Jung é: Symbolik und Mythologie
Creuzer - seu uso de etimologia falsa, sua descoberta de similaridades universais
der alten Vôlker besonders der Griechen (chamada também de "Handbuch alter
em contextos religiosos diferentes, sua busca de significados ocultos, seu interesse
Theomythen"), 4 vols., Leipzig und Darmstadt (Karl Wilhelm Leske), 1810. Há
pelas religiões grega e gnóstica, a subjetividade de sua visão, sua inclinação pelo
muitas passagens marcadas nas margens, inclusive a referida por Jung em CW 5,
panteísmo - encontra-se de novo nas críticas lançadas a Jung.
§§ 354-55. !\Io entanto, não possuímos evidências conclusivas de que as marcas
sejam de Jung, pois a edição de sua propriedade havia sido adquirida em segunda 7. Não há a menor dúvida quanto à conexão histórica, uma vez que a edição de
mão, de modo que os traços a lápis poderiam ter sido feitas por donos anteriores. Plotino de Creuzer foi publicada em 1835, enquanto que sua Symbolik havia sido
Embora esta primeira edição de Creuzer não fosse tão "neoplatônica" quanto as impressa 25 anos antes - não que ele não pudesse já ter sofrido influência de
edições revistas posteriormente, é a partir da abordagem aí exposta que Jung neoplatônicos muito tempo antes de ter ele próprio editado os textos originais.
parece ter encontrado sua própria abordagem simbólica. Jung considerava suas
leituras de Creuzer e de mitologia como equivalentes a psicologia, pois escreve
8. Os dois volumes com as páginas ainda por cortar são: Th. Whittaker, The Neo-
Platonists, with Supplement on lhe Commentaries of Proclus, Cambridge (Univ.
(MDR, pág. 288), " ... adquiri, através de meus estudos efetuados entre 1910 e 1912,
uma certa compreensão da psicologia da antiguidade clássica". Em uma carta a Press), 1918; trad. SL Mackenna de "On the Nature ofthe Soul" (Enéadas IV), de
Plotino, Londres e Boston (Mediei Society), 1924. Dentre as referências esparsas a
Freud (159J, 8 de novembro de 1909, in The Freud/Jung Letters, ed. Wm.
Plotino e ao neoplatonismo encontradas nos índices das Collected Works de Jung,
McGuire, Princeton [Princeion Univ. Press], 1974), Jung diz: "Uma das razões
três particularmente impressionam-se como altamente relevantes para o pensamen-
por que deixei de escrever por tanto tempo é que estava imerso todas as noites na
to junguiano como um todo: CW 5, § 198; quando Jung faz uso do pensamento de
história dos símbolos, isto é, na mitologia e na arqueologia ... Agora estou lendo os
Plotino para "liberar energia psíquica das amarras de uma definição por demais
quatro volumes do velho Creuzer, onde há um imenso volume de material. Todo o
estreita" (§ 199); CW 12, § 113, onde Jung compara o desenvolvimento psíquico
meu gosto por arqueologia (enterrado por anos) readquiriu sua antiga vitalidade.
autônomo em uma série de sonhos com a posição sustentada pelo neoplatonismo
Ricas filões abrem-se em favor de uma base filogenética da teoria das neuroses".
de que tais reminiscências históricas e de desenvolvimento no interior da alma eram
Como Jung repetidamente afirmou em suas últimas obras, duas são as principais
de fato possíveis e até normais; CW 14, § 761, em que Jung refere-se às Enéadas
maneiras de se adquirir conhecimento do inconsciente coletivo: pelo estudo de
IV, 9, I, dizendo: "Menciono Plotino como uma das primeiras testemunhas da
casos individuais e pelo estudo dos mitos, ou seja, a psique pessoal e a psique como
idéia do unus mundus": A seguir Jung toma seu habitual viés "empírico" dizendo:
alma do mundo, cujos padrões estão figurados nos mitos. (O platonismonunca fez
"A 'unidade da alma' apóia-se empiricamente sobre a estrutura psíquica básica
uma separação precisa entre as nossas almas pessoais e a alma em geral, da mesma
comum a todas as almas, que, apesar de não ser nem visível nem tangível como a
forma que a psicologia arquetipica não pode separar o inconsciente pessoal e o
estrutura anatômica, não obstante é igualmente evidente". Cf. CW 8, § 927 sobre
coletivo, pois no interior de todo complexo, fantasia ou imagem da psique pessoal
Plotino, em relação à sincronicidade.
jaz um poder arquetípico). Neste sentido mitologia é psicologia e a investigação de
mitos à Ia Creuzer é de fato uma investigação dos padrões arquetípicos no com- 9. E. R. Dodds (comentários em Sources de Plotin, Entretiens V da Fondation Hardt,
. portamento psicológico. Geneva - Vandoeuvres, 1960, pág. 384) é um dos que leram Plotino psicologi-
camente: "Tenho às vezes a impressão de que a mais importante contribuição que
4. A. Momigliano, "Friedrich
Creuzer and Greek Histor iography", Journal Warburg Plotino fez ao pensamento europeu não está em sua grandiosa construção das Três
and Courtauld Institutes, 9, 1946, pág. 152. Momigliano (pág. 153) refere-se à Hipóstases ... e sim naquelas contribuições mais modestas à psicologia ... creio que
moderna retomada do interesse pela Symbolik de Creuzer em relação com o ele era um observador psicológico extremamente arguto". Dodds fornece vários
moderno interesse pelo simbolismo e pelo método simbólico. K. Kerényi inseriu ex-
exemplos e estabelece paralelos entre Plotino e a moderna psicologia profunda.
certos de Creuzer em sua Die Erõffnung des Zugangs zum Mythos, Darmstadt
(Wissenschaftliche Buchgesellschaft), 1967; uma completa e elegante revisão do 10. Sobre a atuação inconsciente, cf. E. W. Warren, "Consciousness in Plotinus",
Phronesis 9, 1964, pág. 95; sobre a memória inconsciente, cf. H. J. Blurnenthal,
184
185
faz funcionar as células corticais. Há quem identifique "vida" com psique: Mas
Plotinus' Psychology, The Hague (Nijgoff), 1971, págs. 95-7 e E. W. Warren,
apenas uma insignificante minoria encara o fenômeno psíquico como uma cate-
"Mernory in Plotinus", Classical Quarterly 15,1965, págs. 255-56. goria de existência per se e tira as necessárias conclusões". lbid. pág. 284.
11. Cf H. R. Schwyzer, "'Bewusst' und 'Unbewusst' bei Plotin", Sources de Plotin,
22. CW 6, §§ 78-84,743.
págs. 342-78. Na discussão que vem a seguir (págs. 379, 390) Plotino é chamado de
"descobridor do inconsciente" e a sua noção é comparada à de Jung. P. Merlan, 23. CW 6, § 93.
Monopsychism, Mysticism, Metaconsciousness, The Hague (Nijhoff), 1963, pág. 24. CW 6, § 745.
55, estabelece tambêrn paralelos entre Jung e Plotino no que se refere ao inconsciente
coletivo. .25. lbid., § 750. Para Plotino, o pensamento, especialmente dianoia ou razão discur-
siva, não depende da imaginação.
12. Sobre a mobilidade do inconsciente e as mudanças do "nós", ver B1umenthal, Psy-
chology ; págs. 109-12, 140; sobre a multiplicidade da consciência, Warren , "cons- 26. "Para Plotino a natureza é inconsciente-de-si-mesma; nunca pode ser consciente".
ciousness", passim. Warren, "Consciousness", pág. 94.

13. arren, "Consciousness", págs. 86-8; também E. R. Dodds" Tradition and Per- @ "... a imagem primordial expressa o poder criador único e incondicionado
psique" (CW6, §748). "Essa atividade autônoma da psique, que não pode ser ex-
da
~ sonal Achievement in the Philosophy of Plotinus, in The Ancient Concept of
Progress and Other Essays, Oxford (Clarendon), 1973, pág. 135, que diz: "Ele plicada nem como ação reflexa a estímulos sensoriais nem como órgão efetuador
aparentemente foi o primeiro a fazer a distinção vital entre a personalidade total de idéias externas, é, como todo processo vital, um contínuo ato de criação. A
(psyche) e a consciência do ego (emeis) ... toda a sua psicologia dependa da distin- psique cria realidade todos os dias. A única expressão que posso usar para essa
ção entre Psyche e ego". Cf. Jung, CW 5, § 335, onde a consciência simbólica é atividade é fantasia". (CW 6, §78).
colocada em contraste com a sensopercepção empírica, literal. Essa passagem de 28. CW 6, §747.
Jung é neoplatônica na distinção que aí estabelece.
29. F. R. Jevons, "Dequantitation in Plotinus's cosmology", Phronesis 9, 1964, pág.
14. W. R. Inge, The Philosophy of Plotinus, vol. 1, Londres/New York -(Longmans, 70: "Plotinus em geral seguiu a tradição socrática de ver a alma como sendo a sede
Green), 1929, pág. 248. da personalidade humana. É por certo verdade que pensou menos em almas in-
Que o homem é múltiplo e que a alma de cada indivíduo é também a alma universal dividuais pertencentes a corpos particulares do que em uma alma dividida entre os
e assim "Nós somos potencialmente todas as coisas" (Inge, Philosophy, pág. 248), corpos vivos (I, I, 8); as duas estão longe de se encontrarem separadas, de forma
é o pensamento neoplatônico expresso através da figura de Proteu, a imagem que bem definida, em uma filosofia na qual 'todas as coisas estão unidas para sempre' "
era a mais comumente empregada durante o Renascimento para apresentar a (IV, 8,6).
natureza do homem. Proteu, como Mercúrio, mostra a psique sempre a fluir, nun- Jung refere-se a Sendivogius em uma carta a Kerényi(12. VII. 1951) BII, pág. 225;
ca fixa em uma posição ou imagem, e o ego de Proteu realmente reflete todas as em outra carta a Rudin (12. V. 1950), BII, pág. 188, Jung afirma: " ... der Mensch
formas da imaginação. Assim, deveríamos reconsiderar todos os clichês sobre a in- nach meiner Auffassung in der Psyche (nicht in seiner Psyche) eingeschlossen sei".
flação do ego do homem do Renascimento. Seu "ego forte" era inteiramente Diz também: " ... freqüentemente parece aconselhável falar não tanto de minha
diferente do que foi concebido segundo a orientação Nórdica e Protestante. Cf. A. anima ou de meu animus e sim da anima e do animus"(CW 16, § 469). O fatodeque
B. Giamatti, "Proteus Unbound: Some Versions of the Sea God in the Renaissan- a alma individual separou-se da alma do mundo, a ponto de nos concebermos per-
ce", em P. Demetz, T. Greene, L. Nelson (eds.), The Discipline ofCriticism, Ne sonalisticamente e não mitologicamente, Jung atribui ao desenvolvimento da fi-
Haven (YaleUniv. Press), 1968, págs. 437-75. losofia ocidental (cartesiana) (CW 11, § 759). Creio porém que esta separação é
uma perspectiva arquetípica exibida já bem antes da moderna consciência carte-
16. Warren, "Consciousness", pág. 84; Inge, Philosophy, pág. 247.
siana, como por exemplo em Aristóteles. Para um outro alquimista, como Sen-
17. Warren, "Imagination in Plotinus", Classical Quarterly 16, 1966, pág. 277. divogius (para não falar de Paracelso), a quem Jung refere-se em relação à unidade
18. Cf. Warren, "Imagination", pág. 284; e Blumenthal, Psychology, pág. 88-9. da alma individual e da alma do mundo, ver sua discussão de Richard White, CW
14, §§ 91-4.

(oj warren, "Imagination", pág. 280.


20 ..• As imagens do pensamento são necessárias para a sua apreensão consciente pelo
ser humano". lbid., pág. 281. "Se a atividade de espelho da imaginação de alguma
31. T. R. Glover, Conflict of Religions in the Early Roman Empire, Boston (Beacon),
1960, capo 3.

forma é perturbada, então não há imagens, mas há pensamento sem imagem". 32. Dodds, "Tradition ... ", pág. 136.
lbid., pág. 284. 33. O único escritor em inglês que se dedicou eruditamente a Ficino é P. O. Kristeller:
21. CW 8, § 368: "É extremamente dificil, senão impossível, pensar em uma função The Philosophy of Marsilio Ficino, New York (Columbia), 1943, (reimpressão
psíquica independente de seu órgão, embora na realidade experimentemos o Gloucester, Mass: Peter Smith, 1964); vários trabalhos em seu Studies in Renaissan-
processo psíquico separado de sua relação com o substrato orgânico. Para o ce Thought and Letters, Roma, 1956/1969; RenaissanceThought(vol.1, NewYork,
psicólogo, entretanto, é a totalidade dessas experiências que constitui o objeto da 1961, vol. 2, New York, 1965). Partes da Theologia Platonica de Ficino foram
investigação, e por essa razão deve evitar usar terminologia emprestada do anato- traduzidas por Charles Trinkaus em sua ln Our lmageand Likeness, vol. 2, Chicago
mista". CW 11, § 789: "Alguns incluem os instintos no reino psíquico, outros os ex- (Univ. Chicago Press), 1970. Também em inglês, S. R. Jayne, "Comentários de
cluem. A vasta maioria considera a psique como sendo o resultado de processos Marsilio Ficino ao Symposium de Platão" (Texto, tradução e introdução), Colurn-
bioquímicos nas células do cérebro. Alguns poucos conjecturam que é a psique que bia, Mo. (Univ, Missouri Studies), 1944.

186 187
34. Jayne, "Comentário ao Symposium de Platão", pág. 16, de Giov, Corsi, Marsilii "resposta" ou "guia", representa uma perda da perspectiva da alma. A alma não se
vira (edit. O. Galetti), Florença, 1847. volta para a natureza, mas, em sua perplexidade, para imagens. ,
35. E. Panofsky, "Artist, Scientist, Genius: Notes on the 'Renaissance Dâmrnerung' ",. Q" ...a Theologia
natureza do corpo está inteiramente sujeita a~s movim.entos da alma". (:ici-
111:/ no, Platonica, XIII, 1.) Por ISSO, intelectuais de almas sensiveis
in Renaissance: Six Essays, W. K., Ferguson et ai., New York (Harper Torch-
book), 1962, pág. 129. Em 1488 Ficino escreveu em uma carta que toda a Europa freqüentemente são doentes (Ficino segue aqui a velha teoria da sensibilidade
interessava-se por suas obras, e em 1491 escreveu que tinha correspondentes na melancólica e da doença do filósofo), e.g. Aristóteles, Carneades, Crisipo, Plotino
França, Alemanha, Espanha e Hungria. R. Marcel, Marsile Ficin, Paris (Belles etc .. Quando se constela um "destino" poderoso, de acordo com essa concepção, a
Lettres), 1958, pág. 534 e seguintes, sobre o relacionamento de Ficino com intelec- natureza deve passar a segundo plano, não apenas em uma vida considerada como
tuais europeus, e sua biografia em detalhes. uma totalidade biográfica, mas em cada momento psíquico intenso de cada vida
que exaure o corpo natural. Sua concepção é psicoterapicamente consequente.~
36. P. O. Kristeller , Studies in Renaissance Thought, pág. 268.
se pode tratar sintomas fisicos sem levar em conta que eles são" regidos" pela al-
~ 37. A tradução de Kristeller(da Theologia Platonica) ibidem. ma e mais, ue o trabalho intenso com a alma - tal como o ue se dá no decorrer
Trinkaus,lmage and Likeness, pág. 473. de uma anális_e profunda - .te(á efeitos sintomátiCOS so re a natureza corporal. Os
sintomas que se produzem durante a análise são portanto não apenas a reativação
9 Plotino fazia distinção entre o movimento da alma e o movimento do corpo de eventos passados, mas evidenciam a ação de um destino específico que está sen-
(Enéadas, Il, 2, 2). A alma tem uma rotação circular; "o sentido para a frente é do constelado pela fantasia. O processo de patologização pode assim ser consi-
característico do corpo" . Admitindo que "corpo" refere-se à abordagem natural, derado como uma parte inerente do envolvimento da alma com um destino es-
rígida, do conteúdo manifesto, do diretamente literal, vemos que a contra- pecífico (maiores detalhes sobre "patologização" no capitulo dois de Revisioning
educação da alma refere-se a um outro estilo de reflexão, em que a aproximação Psychology ; New York[ Harper and Row], 1975).
em círculos é primária. Dessa forma, "corpo", em Ficino, não é alguma coisa que
deva ser tratada separadamente, num sentido literal. Antes refere-se Ficino a uma 47. CW 6, § 174.
separação do ponto de vista naturalista, sirnplista, do "sentido para a frente" cor 48. The Autobiography of Giambattista Vico, trad. e notas de M. H. Fisch e T. G. Ber-
poral, que é tangencial aos interesses cíclicos e sempre recorrentes da alma. gin, Ithaca (Cornell Univ. Press), 1963, pág. 137.
40. O termo é de Ficino, Theol. Platon., e significa (Trinkaus, Image and Likenen, 49. Porfírio, "On the Life of Plotinus and the Arrangement of His Work" in Mac
pág. 473): "Começamos a reconhecer que o erro da vida não educada nasce, na Kenna, Enéadas, pág. I.
maioria dos casos, da experiência do corpo, quando o concebemos a partir de uma
certa educação que lhe é contrária". O conceito análogo a esta contra-educação, na 50. A utobiography ; pág. 111.
psicologia junguiana é chamado "pensamento simbólico" (Jung), "percepção sim- 51. Para um trabalho sobre Vico e a psicologia, ver F. Dogana, "11 Pensiero di G. B.
bólica" (Whitrnont), "consciência psíquica" (Layard). O conceito análogo em Vico Vico alia duce delle moderne dotrine psichologiche", Arch. di Psicol. Neurol. e
é chamado de' 'discurso negativo". Em todos, o caminho da educação psicológica é Psichiat. 31, 6, 1970, págs. 514-30; também R. Flint, Vico, Edinburgh (Black-
ncebidO como um opus contra naturam. } wood), 1884, págs. 129-35. Embora A. R. Carnponigri, Time and Idea: The Theory
41. icino, Commentary on the Symposium VI, 9 (Jayne): "A própria alma é a morada of History in Giambattista Vico (Notre Dame [Univ. Press], 1968) não mencione
. o pensamento humano. O espírito é a morada da alma e a morada do espírito é o psicologia em seu índice, seu capítulo "As modificações da Mente Humana" é
corpo. Três são os habitantes e três as moradas. Cada um deles encontra-se exilado, relevante. Os volumosos anais do simpósio internacional em honra do tricentenário
quando perde sua morada natural". de Vico (O. Tagliacozzo e H. V. White, Giambattista Vico ; Baltimore [Johns
~ 42. R. R, Bolgar, Hopkins], 1969) não tem nenhum trabalho sobre psicologia, e menciona-se psi-
The Classical Heritage, Cambridge (Univ. Press), 1954, pág. 287-88.
cologia no índice apenas em dois contextos genéricos, sendo estes irrelevantes.

i:)
Nesca A. Robb, Neoplatonism of the Italian Renaissance, Londres (Allen and Un-
win), 1935, pág.43. 52. Para alguns elogios modernos a Vico ver: Elizabeth Bewell, The Orphic Voice,
Londres (Routledge), 1961, pág. 181; O. Barfield, What Coleridge Thought,
4 CW8, §§ 408-20. Jung sublinha aqui o fato de não podermos transformar o aspecto Middletown (Wesleyan Univ. Press), 1971, p. 205, n." 2; E. Cassirer, The Logic
compulsivo da natureza instintiva diretamente (§ 415). Mas a natureza é passível de of the Humanities, New Haven (Yale), 1961. pp. 52-55. Cassirer enfatiza o valor
transformação através de imagens de fantasia arquetipica, e através de um exercício subjetivo e psicológico da obra de Vico, que o mantém dentro da tradição neo-
que ele denomina "imaginação ativa" (§ 414). Uma linha de pensamento seme- platônica, em que o conhecimento, em última análise, é auto-reflexivo, para bem
lhante ocorre em Ficino e é parcialmente responsável por sua aplicação a canções do autoconhecirnento, mais que abstratamente físico, matemático ou lógico.
astrológicas e à magia como formas de tratamento para a sua "natureza" (melan-
53. I. Berlin, "Vico's Concept of Knowledge", in Tagliacozzo, pág. 376, é a melhor

0. colia) através de ocupação ativa com imagens arquetípicas.


apreciação da enorme importância de Vico para todas as humanidades, inclusive a
45. ung é também suficientemente neoplatônico para sentir desdém pelo homem sim- psicologia através de sua elaboração, frente ao predominante pensamento carte-
plesmente "natural". Escreve: "O homem natural não é um 'self' - é a massa c siano de sua época, de um novo método episternológico, chamado agora, de acor-
uma partícula na massa, a tal ponto coletivo que não pode estar seguro nem sequer do um Dilthey, "versthen": "E uma espécie própria. Éconhecimento fundado na
de seu próprio ego" (CW 12, § 104; cf. CW. 5, § 335). No sentido de Ficino, o memória ou na imaginação. Não é analisável exceto em termos de si mesmo, nem
homem natural não está ligado a um destino, que Jung provavelmente chamaria de pode ser identificado salvo através de exemplos ... Esse é o tipo de conhecimento
individuação. Assim, o apelo à natureza ou ao instinto natural na pessoa, como que os participantes em uma atividade reivindicam como seu em contraposição ao

188 189
de meros observadores; o conhecimento do 'lado de dentro' da história enquanto 1544), cuja investigação precisa das imagens em um "teatro" para abranger a
oposto ao obtido a partir de alguma outra posição privilegiada 'do lado de fora'; memória (ou imaginação) por inteiro, foi brilhantemente descrita por Frances
saber por 'conhecimento direto' com meus estados 'interiores' ou por percepção Yates, The Art of Memory, London (Routledge), 1966, págs, 129-72. O sistema de
simpática dos estados de outros, que pode ser obtida por um auto grau de capa- . Giulio Camillo é um documento básico para a psicologia arquetípica na medida em
cidade imaginativa; o conhecimento implícito quando um trabalho da imaginação que expõe um plano geral daquilo que foi chamado de forma ainda tão vacilante de
ou de diagnóstico social ou um trabalho crítico ... é descrito não como correto ou "o inconsciente". Rafael Lopez começou em 1972, em uma série de seminários em
incorreto um sucesso ou um fracasso, mas como profundo ou superficial, percep- Zurique, uma promissora incursão com vistas à obtenção de insights para a
tivo ou estúpido, vivo ou morto". Se, como diz Berlin, este é o grande e original psicologia arquetípica a partir deste "teatro" renascentista da psique.
feito de Vico, o méto~psicologia profunda retoma-o.
63. Cf. H. Corbin, "Mundus Imaginalis, or the Imaginary and the Imagina!", Spring
54. Flint, Vico, pág. 129; The New Science of Giambattista Vico [sN].(1774), trad. e 1972, NewYork e Zurique (Spring Publ.), 1972, págs. 1-19.
ed. deT. G. BergineM. H. Fisch, VII, 2, §695, Ithaca (Cornell Univ. Press), 1968,
pág.263. 64. Proclus, Elements of Theology ; ed., trad. e notas de E. R. Dodds, 2~ ed., Oxford
(Clarendon Press), 1963, págs. 218-23 (Props. págs. 29-34). O processo de reversão
55. D. Bidney, "Vico's New Science of Myth", in Tagliacozzo, pág. 274. ao semelhante (epistrophé) tem seu paralelo no ta'wil de Avicena, o método de inter-
56. CW6, §§ 78, 84, 174, 743. pretação que coloca tanto o texto (sonho, comportamento, sintoma, visão) como o
intérprete também, em uma relação correta com a alma (cf. H. Corbin, A vicena
57. CW 8, § 209; cf. §§ 202-208. nd the Visionary Recital, New York Pantheon, Bollingen, 1960, págs. 28-34).
58. Encontramos uma idéia semelhante em Ficino ("Commentary Syrnposium" V, 13) 65 .. ' arnponigri, Time and Idea, pág. 131: " 'Ricorsi' aparece em Vico, em primeira
onde cada uma das doze divindades do Olimpo é associada a um dos doze signos do ~ instância, como uma noção metodológica, Designa um artifício metodológico para
Zodiaco, uma tentativa da psicologia arquetípica de mostrar "que os deuses con- tornar efetiva sua descoberta da primazia da poesia e, com isto, da genuína estrutura
ferem artes aos homens". Na Theol. Platon, XIV, 1 (Trinkaus, pág. 487), Ficino temporal e do movimento da história. Consiste no emprego das categorias do co-
elabora ainda mais essas doze estruturas para demonstrar como elas governam os nhecimento poético para a interpretação das estruturas culturais e sociais dos tempos
caminhos em que a alma se esforça para tornar-se semelhante a Deus. Jung indica pós-poéticos. Por esse emprego fica determinada a contemporaneidade abstrata~ e
que essas estruturas agora estão "internalizadas". "Em lugar da perda das divin-

ê;
tre estruturas formais e temporais". Em outras palavras: as pessoas arquetípicas
dades olímpicas revelou-se a riqueza interior da alma que reside em todo coração ranscendem as limitações históricas mesmo quando se manifestam no tempo his-
humano". (Esta passagem está no original do último parágrafo da seção 3 da con- tó~ic? ~ssas figuras poéticas constituem as categorias finais para o entendimento da
ferência de Eranos: "Transformation Symbolism of the Mass", mas não aparece existencia humana.
em CW li, § 375). Mas as divindades do Olimpo não aparecem apenas interna-
lizadas no coração: Jung também vê essas estruturas ressurgindo na psicopato- 66. so o termo "reconhecer" de próposito, pois é o termo que Jung às vezes usava
logia, os Olímpicos transformando-se em doenças (CW 13, § 54). para descrever o que entendia por "integração ", cf. CW 13, § 62; também CW 7, §
337; CW 14, § 616; CW 9, li, § 58.
59. Autobiography; págs. 34-5.
Cf. Carta 206 J., 11 de agosto de 1910 (Freudl Jung Letters): " ... tenho obrigações
60. "O Politeísmo é a mais sutil forma de apreensão dos 'fatos da mente', incompreen- secretas para com meu inconsciente ('inconscient supérieur') em relação a Roma e
sível apenas para aqueles que, como Locke, encaram os processos mentais como ao Sul, que fazem totalmente impossível uma passagem rápida pelo país. Roma em
simples elaborações das impressões dos sentidos ... ' " Esta passagem de Kathleen particular não me é permitida, mas está cada vez mais próxima e chego mesmo a
Raine faz parte de uma exposição mais longa sobre o papel da abordagem politeísta antecipá-Ia em certos momentos". Para a "misteriosa inibição" de Freud em
proposta pelo mais importante neoplatônico inglês (e como Creuzer e Ficino, tra- relação a Roma, ver H. F. Ellenberger, The Discovery of the Unconscious, New
dutor de Plotino) Thomas Taylor. K. Raine e G. M. Harper, Thomas Tay!or the York (Basic Books), 1970, pág. 447.
Platonist, Princeton (Princeton Univ. Press, Bollingen), 1969, pág. 40. K. Raine
acrescenta em uma nota de rodapé (pág. 41.), "Os arquétipos de C. G. Jung podem 68. Tirei a concepção de uma psique geográfica e histórica de Rafael Lopez, que a
também ser descritos como elementos de um 'panteon' de naturezas divinas da desenvolveu dentro de uma peculiar tradição espanhola (Ortega y Gasset, Una-
maneira como estas se encontram manifestas e diversificadas na psique". Cf. tam- muno, Santayana, Madriaga) que compreende as idéias em termos do tempera-
bém meu artigo "Psychology: Monotheistic or Polytheistic?", Spring 1971, New mento geográfico e histórico em que elas nascem e residem. A concepção, em al-
York e Zurique (Spring Publ.), 1971, págs. 193-208 e os comentários de K. Raine, guns aspectos, é comparável à valiosa noção junguiana de um inconsciente racial,
págs.216-219. ou nível racial do inconsciente coletivo, que o levou a referir-se a uma psique ger-
mânica, psique judia, psique medieval e moderna etc .. A consideração de "Itália"
61. CW 13, § 299; cf. CW 9, li, § 41. e "Roma" como legítima história e geografia psíquicas, faz delas áreasde ima-
~ A elaboração de figuras clássicas, lit;rárias, históri~as e mit?lógicas como tipos ginação cultural, expressões genuínas de regiões da alma e não mais imagens do
U ideais, até mesmo como formas platônicas ou arqueupos, fOI uma convenção da Sul, da liberdade e da canção, do Catolicismo, da irresponsabilidade sombria e
retórica renascentista e não se originou com Tasso. A fonte é Hermógenes (segun- coisas que tais. "Itália" não é apenas uma área para a projeção do reprimido e do
do século depois de Cristo) e seu editor de Strassburg, Johannes Sturm (1571). Cf. inconsciente, mas refere-se ela própria a uma arena da cultura ocidental, que per-
A. M. Patterson, Hermogenes and lhe Renaissance, Princeton (Univ. Press), 1970, tence à psique coletiva de todo homem ocidental.
pág. 37. Mas anterior a Sturm é a tradução e elaboração de Hermógenes feitas por 69. Cf. L. Zoja, "Observations in Transit between Milanand Zürich ", Spring 1973,
aquele gênio pouco reconhecido que foi Giulio Camillo Delminio (circa 1480- New York and Zürich (Spring Publ.), 1973, para os primeiros passos nessa direção.

190 191
~ Uma reavaliação do Renascimento italiano a fim de sugerir sua importância para a
\.y psicologia, e com isso deslocar a própria psicologia de suas limitações geográficas e
históricas do judeu-protestantismo da Europa central e do norte - este foi um dos
9- TEORIA ARQUETÍPICA: C. G. JUNG

objetivos de minhas Conferências Terry (IV, "De-Humanizing"), Revisioning


Psychology.

Uma exposição não pode deixar de ser uma apologia, uma crítica
e também uma confissão.
Conferência apresentada na Reunião" Jung e a
Cultura Européia", Roma, 22 de maio de 1973, e
publicada em tradução italiana de Priscilla Artom
na Rivista di Psicologia Analitica4/2, outubro de
1973,págs.322-40.

Nota Introdutória: Tentarei não me afastar da abordagem teórica


particular de Jung. Para este, a teoria estava sempre relacionada à
terapia da alma, porque as idéias não podem ser separadas da vida
sem que haja danos para ambas. À medida que prosseguirmos, IreI-
~do as implIcações teraPêuticas das teorias da psicologia ar-
quetípica.
Designar a psicologia de Jung a partir de sua idéia estrutural
principal, o arquétipo, põe a ênfase no trabalho teórico de sua ma-
turidade e do período final de sua vida (circa 1928-1961, entre as
_idades 53-86). Em geral sua psicologia é chamada de "analítica", um
termo que foi cunhado nos períodos iniciais, ainda em relação com a
"psicanálise" de Freud. Mas "arquetípica" corresponde mais ade-
quadamente à sua própria construção como um todo e ao seu amplo
espectro de interesses ao lado da análise em si. "Arquetípica" des-
creve também de maneira mais precisa a abordagem junguiana dos
fundamentos da psique.
Neste meu trabalho uso com bastante freqüência a palavra
"compreender". Compreensão ~ez o mais operacional dos con~
11
eitos 'unguian9s, implícito em todos os demais, e situa a abordage~
.de Jung mais na tradição das psicologias da compreensão. (Dilthey,
Nietzsche, Jaspers) do que entre as psicologias que são explicatórias.
descritivas ou médicas no sentido estrito. )ung estabeleceu como
...--meta..desde Q jnícjo. não comparar. medir, explicar ou redimir a per;
sonalidade mas com reendê-Ia e ensiná-Ia a com reender O seu mito
era o mito do significado (Jaffé, 1971)._

A IDÉIA E A NA TUREZA DA PERSONALIDADE

Individualidade. Jung escreve: "Minha vida foi permeada e mantida


coesa por uma idéia e um objetivo: a saber, penetrar o segredo da per-

192 193
sonalidade. Tudo pode ser explicado a partir desse ponto central e Cada personalidade é potencialmente um Si-mesmo que incorpora e
todas as minhas obras relacionam-se com esse tema único "(MDR reflete majs Que a si mesmo. Não é auto-suficiente, mas relacionado
pág. 206). Quase no final de seu último ensaio, acerca da angústia do com os outros tanto com as outras pessoas como com "o outro",
homem contemporâneo, lança a pergunta retórica de todo indivíduo que não pessoal nem humano. A ró ria alavra ersonalidade ue
ameaçado de extinção final: "Sabe o indivíduo que é ele fieela] o con- vem do re o ersona im lica em uma máscara através da ual faz-se
trapeso que determina o movimento dos pratos da balança?" (CW 10, ouvir algo transcendente, Sem esse "outro" que se encontra por trás
§ 586). O que acontece com o indixíduQ e o mundo em geraldeI.ll:DJie da consciência do ego, independente deste embora tornando a cons-
da personalidade individual. Nenhuma outra idéia na obra de Jung ciência possível, não haveria personalidade individualizada, não
tem tanta importância quanto a de personalidade. O indivíduo é o haveria um centro subjetivo ao qual os eventos se relacionam, trans-
único e natural portador da vida, e isto vale para toda a natureza". formando-se em experiências. Esta convicção interna em si mesmo
~CW 16, §224). "Toda vida é vida individual. e no indivíduo sozinho como personalidade é chamada por Jung de "vocação" (CW 17, § 300
e que se deve buscar o significado últimq". (CW 10, §923). e segs., cf. Grinell 1970).
. lndividuação. Jung cunhou o termo "individuação para a ati- A condição clinicamente chamada de despersonalização demons-
vidade da realização da personalidade.; ~ um termo que "deõõiãõ tra o que Jung quer dizer com isso. Aí pode ocorrer uma perda da
erocesso pelo qual uma pessoa tQrn.a.=S_e~m'ip-djyídllo' psicolÓgjeg • realidade pessoal e da identidade, mesmo se todo o restante do ego
isto é, uma entidade se arada do todo" (CW 9. I, § 490). De modo permanece intacto; a percepção, a orientação, memória, a associação
mais simples chama a individuação de processo pelo qllal a pessoa etc., não apresentam distúrbios (Meyer (ed.] 1968). A desperso~a-
"torna-se a uilo ue realmente é" (CW 16, §1I). Individuação é a lização indica que o senso de personalidade, a própria crença e convtc-
constr~ção te~rica básica, ou perspectiva, a partir da qual tem lugar ção na realidade de si mesmo como indivíduo, depende de um fator
uma nc.a proliferação de outras idéias sobre personalidade, algumas que transcende a personalidade do ego, que ultrapassa seu aparelho
das quais passaremos a examinar agora. sensório e os poderes da sua vontade. Por vezes Jung chama esse
fator, do qual o indivíduo depende, de "Self". Este termo pode ser
A teoria junguiana não pergunta "o que é a personalidade",
considerado uma descrição da substância e uma descrição do valor.
como se esta fosse uma entidade a ser definida e explicada. Assume
Prefiro a última.
antes. uma postura dinâmica e pragmática. perguntando: "De gu.$(
maneira u,?1a pessoa'pode saber quem é, descobrir sua persopaljdade. Self. Em J ung o Self refere-se a:~ expansão mais completa da
de~en~olve-Ia e. reflP~-la. tornando-se ele (ela) próprio (a):'? A individualidade e ~ ex eriências dos mais elevados valores que ul:
propn,a personalidade e um dado que acompanha a realidade psíquica tra assam a ró ria extensão do indivíduo isto é ex eriências do
daquele que faz a pergunta, de modo que o conceito de personalidade .transcendente e do outro. Tais experiências e imagens de grande valor
é presumido. no sentido comum do dicionário, como o+'ser pessoal", .. e poder têm recebido tradicionalmente os nomes de Deuses.Ao dar ao
longe de ser uma abstração ou uma coisa, e organização deste ser em "Self" este duplo significado. tanto pessoal como transcendente, Jung
uma unidade qualitativamente diferenciada. (A individuação é um su ere ue cada essoa está or defini - _g.o_tr.anSCCll;..
processo de diferenciação" [CW 6, § 757], o que significa "desenvol- . ente ou mesmo ue ossui um valor su remo t n n t l2.a.UL
vimento das diferenças, separação das partes do todo" [CW 6. § além dos limites de sua personalidade do ego. Isso torna importantes
7~5a). Enquanto os filósofos e teólogos procuram dar conta da essên- - todas as manifestações da natureza humana. Mesmo as condições mais
cia desse ser pessoal em sua linguagem metafísica, e enquanto os em- vis têm um significado mais amplo e não são apenas falhas humanas
briologistas e geneticistas, em sua linguagem física, procuram dar pois apontam para fatores coletivos, arquetípicos e não-humanos ...Q.
conta de suas origens, a hipótese de Jung tenta descrevê-lo e promovê- .duplo significado do Selfsugere também que ~ personalidade não pode
10 - psicologicamente,
ser compreendida pela abordagem pessoal Isolada . .Deye-se sempre
Valor. Parte dessa descrição é feita em termos de valor. Uma for- colocar um foco sobre o substrato impessoal. não-humano.
m~ de dar ~alor à personalidade é conectá-Ia com fatores transcendep.- Mal. Esse substrato não é só osLti _íLhom. Q não-humano
_t~ts. espeCialmente Deus. Assim fazendo, o conceito junguiano de
personalidade mantém-se na tradição greco-romana e judeu-cristã.
significa também o inumano. A personalidade reflete igualmepte ª
desordem a destrui ão e os valores da sombra. Esses poderes são tão
194
195
I da fantasia "a si ue cria a realidade
(CW6, §78).
JrUDgjnyerte a conhecida teoria que sustenta. ul! a real~dade é ex-
terna, que as imagens são marcas impressas ~ p-ªtl. qo exteoo[, que as
fantasias são im ressões degeneradas ou dlstorcldas. Separa-se tam-
bém dos seus colegas psicanalistas que a rrrnarn ser a fanta~ia uma
.o o a onalid de indivi ual oss realidade substitutiva. Fantasia é realidade até m con-
visto ser o repositório de todos os valores ferindo convicção instintiva (a "fé animal" de Santaiana) a toda e
. i ado alma e também destrui ão e mal qualquer área da experiência que acreditamos real. Criando realidade
~íduos, estatisticamente insi nificante uanto nas formas e conceitos mediante os Q.uais realmente percebemos.j;
um tipo valiosíssimo de ocupacão. .. apreendemos o mundo, formulamo-Io e lidamos com ele fanta i é
c,
ª
.Qrova da atividade ne entró ica da~ consciência. As imagens são .a
~eligiãb. ?sses aspectos religiosos da teoria junguiana da per- única realidade que apreendemos diretamente; são a expressão pn-
sonahdad~ derivam em parte de sua própria constituição e em parte de mária da mente e da sua energia, que não podemos conhecer senão
se~ ~.?ncelto, forma?o através da prática e da pesquisa, de que.-S.. através das imagens que apresenta. Quando ercebemos um 'm
rehglao encQnt-ra-se merentemente enraizada na personalidade f:! não da fantasia, estamos olhando para o interior da mente do instinto,
pod~ ser consl,dera~a uma Ilusão, tanto quanto não pode sê-to a sec ven o a pr poa I I o antasia, enquanto atividade imaginativa
.xualídade. Alem ~ISSO, as metáforas religiosas que emprega fazem e I en I uxo e ener Ia sí Ulca' - C 6, §.722, cf. §§ 711,
parte da sua maneira peculiar de atribuir valor a fatos psíquicos, da 2: e segs.; C 769,889; CW 8, § 389).
mesma forma que outros psicólogos deixam implícitos seus sistemas
de valor ao empregar outros tipos de metáforas transcendentes, tais Instinto e Arquétipo. A primazia das imagens significa que elas
co~o "natureza", "evolução", "autenticidade", "maturidade" etc .. são para o reino da cognição o que a atividade instintiva é ao nível
.A lmguagemreligiosa de Jung de forma alguma implica em ortodoxia conativo-afetivo, No domínio da mente o instinto é percebido como
de cre associ ão a uma i re' a ou observância de ritual. imagens. No domínio do comportamento as imagens são desempe-
nhadas como instinto. O comportamento é sempre a encenacão de
. Realidade Psíquica. O mundo da realidade que a personalidade uma fantasia, e a fantàsiá não é simplesmente algo <me ocorre prj-
habita é o da realidade psíquica. Em Jung "realidade" tem uma vadamente na cabeça, mas que se apresenta em nossas jnstâncias com-
definição completamente diferente da de Freud, em que a palavra "portamentais. Eventos psíquicos e eventos comgortamentais são djs·
refere-se principalmente ao que é externo, social e material e onde a tintos mas indivisíveis. Um não é a sublimação do outro, de vez que
realidade psíquica é decisiva apenas no domínio das neuroses e das sã.o co-existentes. Conceber o instinto independente de padrões de
psicoses. (Casey 1972). Jung afirma: "Realidade é sim les ente 'imagens é fazê-lo cego, e conceber imagens independentes do instinto
fq!lilo gu.e afeta uma alma humana" (CW 6, § 60). Todo tipo de é privá-Ias de vitalidade e de necessidade. Agir assim seria transformar
c.OIsas.a~~ta ~ al~a humana - mentiras, alucinações, slogans polí- a imaginação mais em um luxo sublimado do que em um instrumento
ticos, idéias cíentificas fora de moda, superstições - e por isso mesmo de sobrevivência.
esses eventos são reais, não importa se verdadeiros ou não. Muitos .0 princípio que organiza as imagen~ e ~á à re~lidad7 ps,íQ.uica
outros eventos conscientes - bons conselhos, fatos históricos có- seus padrões específicos e suas formas habituaiS - urnversalS, tlPlcas,
digos éticos, interpretações psicológicas - podem não ter efeito al- , regulares, conservadoramente repetitivas através dos séculos - é
gum so~re as profundezas da alma, de modo que esses eventos podem
.chamado por Jung de "arquétipo". 'E.stes mesm?~ qu~l~fic~ti~os
ser considerados como não-reais, não importa se verdadeiros ou não.
aplicam-se também ao instinto. A energia do arquetmo e mstmt!ya
Imagens da Fantasia. As imagens da fantasia encontram-se no porque o arquétipo é o próprio instinto; o arquétipo é o "padrão 4e
nível mais baixo-da-realidade sí uica. Estas imagens são a atividade comportamento" do instinto, é o seu "significado" ou como Inng dIZ
. U!!Lana da c~~çi .' Esta atividade corrente de fantasia, um ,t~mbém, seu "equivalente psíquico" (CW 8, §§ 397 e segs.).
rocesso vital _~. afirma não oder ser ex licado como simQles A analogia de Jung aqui é tomada do comportamento animal.
"a ão reflexa a stímulos sensórios" é um contínuo ato de criaçãp . Sua hipótese é a de que todo mecanismo inato de descarga (ou instin-
196
197
to) tem um padrão de organização e implica numa imagem de fantasia A PERSONALIDADE EM SEU CONTEXTO
através da qual é liberado ou que representa o seu objetivo. O instinto
falha quando há distÚrbios na producão de ima~ens. Jung (CW 6, § A individualidade pressupõe que exista alguma coisa ao seu lado
765) define instinto como "um impulso em direção a determinadas e em seu interior, a partir do que se diferencia. !ndivid~alidade não
atividades", que é compulsivamente necessário, herdado, de caráter significa solidariedade e assim não pode ser considerada Isoladamen-
reflexo, uniforme, regular e inconsciente (CW 8, §§ 267,233 e segs., te, sem os seus contextos.
378). O fato dos instintos serem tão específicos e típicos aponta para a Amplificação . .Jung chama de amplif~cação seu, ffi:étodo de
-'existência, em seu interior, de um princíp'io, uma ordem, um signi- apreender o contexto. O objetivo ,nã~ ~ redu~lf,dados pSlgUlC~S a seus
ficado e um propósito. São os arquétinos. Governam a vida psíQuica 'elementos mais simples ou a um slglllflcado UlllCO: mas ~borda-lQ p~r
d,a personalidade. . diferentes aspectos até ue seu sentido a are a mais consíst n e
A idéia de arquétipo é bastante Útil para a psicoterapia. Como a
fantasia nunca é apenas um pouco de irreaJ.idade, como ex rime o as-
pecto arcaico, emOClOna e cnativo a personalidade e como expressa a
realidade primária da pessoa, colocando o foco sobre a fantasia es-.,
tamos atin indo a uilo ue realmente está em a ão no interior da' aI,
~. As transformações qua itativas a antasia, tais como as que se ob
servam no decorrer de uma longa série de sonhos ou as obtidas por dis ~
ciplina mediativa representam transformações dos arquétipos que
{ regem a personalidade e são sua natureza básica.

Esquizofrenia, Percebemos essas transformações da fantasia


também no curso da degeneração esquizofrênica, o que sugere al-
terações na estrutura básica da personalidade. A teoria junguiana da
esquizofrenia baseia-se na interação psicofisica. Mesmo se postu-
lamos que psique e corpo são um só, nosso conhecimento direto re-
fere-se apenas à psique. O conhecimento que temos do corpo dá-se
sempre através de imagens psíquicas. Embora essas imagens, como
tudo indica, dependam de sistemas neuroquirnicos, o que quer que
digamos ou façamos com esses sistemas depende, mais uma vez, das
imagens psíquicas. Não podemos reduzir esses elementos uns aos
outros. São interdependentes e interatuantes.

Jung foi o primeiro, na psiquiatria moderna, a sugerir a existên-


cia de uma origem psicológica para a esquizofrenia. Já em 1907 (e
posteriormente em 1958) (CW 3) considerou a esquizofrenia como
sendo uma auto-intoxicação, um distúrbio metabólico devido a um
complexo patogênico cujos afetos intensos envolvem processos so-
máticos. O arquétipo presente no núcleo do complexo seria este fator
psicossomático que induz tanto os distúrbios psicológicos como a
"toxina" somática. A terapia da esquizofrenia, de que Jung foi taIll;
bém pioneiro, enfoca principalmente esses fatores arquet:picos,

199
198
da personalidade inclui aspectos sombrios dos sentimentos, acon-
tecimentos meio esquecidos e distorcidos. São aspectos da comple-
xidade pessoal que estão longe de serem fatos e dificilmente podem ser
expressos por palavras. Por fim, a anamnese é histórica. Refere-se ao
passado. Mas o contexto da personalidade está condicionado por
aquilo que se projeta para diante sob a forma de ambições e ansie-
dades e também de negações do presente.
Os junguianos levam também em conta os seguintes fatores para
a amplificação da história de caso básica.
. O- O Ancestral. "Família" na sicolo ia de Jun
do ue a enas os membros reais com os uais a essoa vive ou a
inclui mai~

família com a qual viveu como filho ou como pai ou mãe (CW 17, §
93). Na verdade, "família" inclui essas essoas reais mas ab(a.n e.
também as ocorrências ref rente.s ais dos .aiso-l2QL<l-ueo_g~·
.Qrocura não é a . enas a história da família mas também a antasia da.
fqmília. Em minhas análises faço perguntas sobre os avós e até -sobre
os pais destes, o que faziam, o que tinham de diferente, quais as suas
esperanças e de que morreram. Pergunto sobre as inter-relações de uns
com os outros, o contingente racial, a crença religiosa, a constituição
física e a posição econômica. PQ~_SO_R~9iume_u_mªn-ªlisalliÍo elabor~
uma árvore enealó ica a fim de descobrir similaridades em adrões
que s~ repetem ou diferen. as marcantes entre a vida do acientee a da
família com a finalidade de erceber como se encaixa na fantasia_
familiar. Com esta investigação não estamos investigando fatores .
-=(!1> psíquicos herdados. Estamos antes recriando uma enejllo ia OU
m~t:,lo ia da "~1Ínhar6 da~' Jamília. -Isto aiUd-ª__~ forQ1ar no ia.-
dlvlduo um sentimento de ossuir raízes um contexto onde sua Rer-
_ sonalidade. se insere e com o ,gual possui afinidades emocionais. Esta in-
vestigação da família, o cuidado respeitoso que se dedica a cada detalhe ., . 1-lma. A teoria junguiana pressupõe um fator independente que
da fantasia e a cada elemento de prova (velhas fotografias, lembranças) Ja foi cha~ad? de camada profunda da alma. Uma personalidade
revivifica, num cenário clínico moderno, uma prática universal que P?de ter atmgldo. um alt? ní~e.1 educacional ou econômico e apesar
nossa cultura perdeu, chamada culto dos ancestrais. diSSO ser um deficle~te pSlcologlco, abaixo das próprias possibilidades
de cultura, I?ercepçao interna, sensualidade, capacidade emocional e
Nível Psicológico. Esta amplificação expõe como áreas potenciais
aSSim, por diante. A análise profunda empreende o cultivo da alma
de stress quaisquer disparidades extremas entre as partes componentes
2.traves do aprofu~aan:ento dos eventos psíguicqs, sejam eles sen-
da personalidade.. Pertencem ao nível psicológico de uma pesso~:
~entos, percepcoes mternas, peculiaridades patológicas ou tan-
idade psicológica; qualidade do autoconhecimento, do humor e c!a
ESlas., P,reenche as lacunas e aprofunda as superficialidades do níyel
.perc~pção .interna; capacidade de emoção, especialmente a depressã,.Qi
Js~co[oglco d~ uma pe,sso~. A ~amada profunda exige vagar e firmeza. /
quociente mtelectual; qualidade e quantidade de imaginaçãoj lacunaJ
eXI e ue se viva as cOisas mtenormente como ima ens muito mais do
ou vazios (pontos em branco); natureza da sensualidadej dons e suces-
LQue, como ações externas voltadas para os outros. em termos de dis-
.12..s; áreas de medo; cultura geral no uso da linguagem e relacionamen- pandades e superficialidades em níveis psicológicos que Jung fala
to com formas simbólicas,. desde os sonhos até a arte, viagens, música.
quando se mostra temeroso em relação ao "homem moderno à
habilidades manuais hábitos de comer e beber' ex edêndas trá ü:as
procura de uma alma", como se intitula um de seus livros,
_ por que se passou (guerra, mortes, do.(!nças, traiçges, fracassos etc.).
201
200
G>- o Atual. Uma abordagem da psicologia de Jung que difere
da de Freud é a que se refere a passado e presente. Freud sai em busca
entre o individual e o universal (CW 16, §§ 1-5) é em si uma situação
arquetípica que se desenrola na vida de cada pessoa.
das mais antigas recordações, enquanto que Jung volta-se para o
Quando examinamos mais cuidadosamente o conceito de Jung,
"aqui e agora". O que me interessa aqui não é tanto se a caracteti-
encontramos o seguinte:
zação de Freud feita por Jung está certa ou errada, mas sim a sua in-
sistência em relação à situação atual. Neste ponto o pensamento de fa)\Nem tudo que é coletivo é atual. A si ue é altamente sele iv
Jung antecipa-se a escolas posteriores - .exístencialísmo, rogerianis- em gi;:âo aqUIlo que a mobiliza. A enas um eql.l '.
mo, Gestalt, encontro. "coletivo" alin e-a realmente e é or isso mesmo si u'c I.
togo voltaremos a isso.
Compensação. Em primeiro lugar. atual significa corrente. Q..
\
. proble~a presente é explora~~ em termos do seu significado presente.: @ O coletiyo é também o comum. o que possuímos em comum e.,.
O que e qUe o problema esta mterrompendo? O que ele (e não você) ue nos mantém universalmente unidos como seres humanos. A
deseja? A que e de gu.e ~0?0 funciona como uma compensação? Agui, hipótese do inconsciente coletivo significa para a terapia que todas as
o eramos com o flnCI 10 da auto-re ula ão: a ersonalidade na- pessoas podem se comunicar neste nível humano comum, tanto no
turalmente tenta equilibrar-se em meio aos vários complexos que se presente como com os personagens do passado, na linguagem da
opõem. Toda,gueixa presente faz parte da situação presente. encaÜs.a- emoção, da fantasia, do sonho, das situações e imagens arquetípicas,
se em um significadoarguetípico e expressa um aspecto dele numa lin- a despeito das diferenças individuais de idade, sexo, sanidade, cultura.
guagem metafórica. Todos os sonhos, sintomas, complicações De modo semelhante, a hipótese da consciência coletiva estabelece a
emocionais e fracassos sao su metI os a uestão a ina idade - lial comunidade através dos papéis (persona). Podemos entender os ci-
o seu ro ósito e inten ão, o ue su erem ara o futuro - de re~ dadãos nossos amigos também em termos de suas atividades coletivas
ferência a uestões sobre causas. (carteiro, vendedora, paciente, enfermeira etc.). Também estas são
contextos nos quais a personalidade se situa e pelos quais se torna
A situa ão corrente tem um si nificado ar uetí ico. Assim, a in-
mais ~preensível.
vestigação do contexto deve expandir-se e aprofundar-se em direção
às realidades externas da vida humana. A 'amplificação conduz ao 19)O colet}vo não é apenas o interior ou o exterior, o subjetivo
contexto mais profundo voltando-se para o mito e para a religião, ou o objetivo. E ambos. ,Sou coletivizado tanto pelo papel que desem-
filosofia e ficção, arte e folclore, a fim de dar pleno valor e compreen- penho exteriormente em minha profissão, quanto pelo humor do meu
são psicológica ao significado arquetípico. complexo anima. Os humores e opiniões do amante, do vendedor, do
herói messiânico ou do guru terapêutico apresentam diferenças in-
(j)- O Coletivo. É claro que a personalidade situa-se em uma dividuais muito pequenas. Quem viaja traz na volta relatos coletivos
pessoa real, viva, que se levanta todas as manhãs em um dado quarto, parecidos, seja de uma volta num ônibus público, seja de uma sessão
leva um padrão de vida determinado no meio de determinadas outras privada de drogas. A interioridade e a exterioridade podem ambas ser
pessoas, é rodeada de objetos definidos, recebe a sua quota de infor- coletivas e Jung demonstra em vários trabalhos (sobre discos voa-
mação subliminal, que vem de "forças" sociais, políticas e econô- dores, sobre a Alemanha de Hitler - CW 10) que os dois coletivos
micas, e volta a dormir e sonhar, submetendo-se a personalidade a refletem um ao outro. O Zeitgeist (espírito dos tempos) afeta tanto o
uma nova imersão num segundo nível coletivo, com suas cenas es- interior como o exterior das imagens e emoções arquetípicas.
pecíficas, seus amigos e inimigos e sua quota de informação. Em
ambos os níveis a personalidade age e sofre ações. Essa interação entre Por isso, conhecer a personalidade individual significa conhecer
o individual e o coletivo é um tema que está presente por toda a obra suas variações em relação ao seu contexto coletivo. Os desvios tor-
de Jung. nam-se assim as pistas para a essência da individualidade. Isto é tam-
bém o que significa, segundo a visão junguiana, ser uma personali-
Ao nível simples e ingênuo da experiência existe uma OPOSiÇãD dade individualizada: diferenciar-se. Mas esta personalidade, ideal-
entre o individual e o coletivo: não posso ser eu mesmo quando estou mente, não deverá renegar a coletividade pois terá encontrado um estilo
fazendo coisas que dizem respeito à coletividade, e a coletividade não diferenciado de desempenhar papéis. A adaptacão. de acordo com a
pode funcionar com um propósito unificado se tiver de levar em contg.; . - . n uiana significa não ª destwição da jndjyidualidade mas sim a.
o estilo e as necessidades de cada indivíduo. A antinomia filosófica inovação da coletividade.Viver uma vocação coletiva de uma maneira

202 203
individual é precisamente o caminho a ser seguido para preencher os
padrões do mito de cada um. minha opção relativa ao tratamento dos distúrbios de personalidade
-. recairá sobre os métodos que se inspirem no mesmo tipo de pensa-
'Mitologia. Para completar o contexto coletivo, amplifica-se a mento. Serei abstrato e matemático, ou como um treinador ?e ani-
personalidade através de paralelos mitolÓgicos. Os mitos dão outra mais, um pregador ou um recenseador do inventário da personalidade.
dimensão à angústia presente. Para Jung, os mitos descrevem o com~ Entendendo-se os rocessos de ual uer ers na id e om
gortamento dos arquétipos; são descrições dramáticas, na linguagem
intera ão e areia ão entre as diferentes ersonalidadeL arciais,~-
personificada. dos processos psíquicos. Como representações univer-
tabelece-se de imediato, através da ró ria teoria todo um cam o
sais de dilemas psicolÓgicos, os mitos sao·as bases dâ Dsjcologia ar- psicolÓgico, uma comunidade interior. Há rei cí s. Há.coa-
(luetípica. Além dos seus dramas, os mitos são dinâmicos, obrigando · trastes e con ItOS - não entre características, impulsos, forças ou
efetivamente a personalidade a afastar-se de sua fixação em si mesma,
regiões cerebrais, mas entre pessoa~ Lndividuais .
de seus problemas isolados, e dos "como" desesperados das soluções de respeito, cada uma delas com lexa e difícil de ent.end7L, c1l:dauma.
imediatistas. Além de fornecerem um fundo genericamente humano
delas tão capaz uanto o eu a ersonalidade do e o de mflUl o.or-
para a dificuldade particular e pessoal, descobrimos que os arquétipos,
anis mo político da si ue total. As teorias de Jung defi~itivam~nte
em um mito, são os fatores seletivos responsáveis pelo arranjo do .não apresentam uma psicologia do ego, uma vez que o ego e, tam.bem,
padrão particular em que a pessoa se encontra. De modo que, para
e deve sempre seguir sendo, por definição, apenas uma personahdade
compreender-se a dificuldade da pessoa deve-se buscar o Jladrão
p~.
mÍlico, pois suas personalidades míticas (as figuras arguetípicasl e_
~eus comportamentos fornecem os indícios do que está acontecendo Opostos. Essas relações interiores requerem compreensão psi-
em nosso comportamento.p contexto último da personaIidade são os cológica voltada para a comunidade de c~da uma das nossas pers~-
tnitos que ela está vivendo. . nalidades: entre as partes mais desenvolvidas e as que foram negli-
genciadas e reprimidas,entre as partes sadias e as doentes, e~tre os
ESTRUTURA DA PERSONALIDADE componentes moralistas e os criminosos, entre os novos entusiasmos
juvenis e os impulsos físicos selvagens. Jung concebe estes problemas
entre todos esses elementos como o conflito dos opostos. Mas "os
Método Descritivo. A maneira como Jung apresenta a estrutura
opostos" é apenas uma expressão, um modo de referir-se à tiiiiiiir-'
da personalidade é radicalmente original em um ponto. Seu modelo é
elaborado em termos da própria personalidade, isto é, descreve a es- '" tuosa luta eXistente entre as pessoas que compõem cada ser humano
individual.
trutura da pessoa individual como composta de personalidades S ar-
~ Com Isto evita a di iculdade de transpor modelos biológicos, Sonh; e Drama. Jung refere-se a esse conflito interior também
. metafisicos ou mecanicistas para experiências humanas. em termos de drama. Sua teoria do sonho afirma que este possui uma
Para ]ung não existe nada de mais "básico" do que a prÓpri~ estrutura dramátLc.a que vaLdesd.e asena de abertura., Qersonapens.
_psique. E a umca coisa que experimentamos diretamente e conhe- enredo, crise,=~A.1:ç~olução. Como encara o sonho como reahdade
cemos imediatamente. Todos os outros campos derivam das experiên- !Si9.llka direta. ou o auto-retratados compl.ex,?s. ~ eStrutura da
cias psíquicas. Os conceitos das outras disciplinas que alguns psi- .psique é, portantQ, .dramática. Se a estrutura pSlqUl.cae fu?-damental-
( cólogos usam para dar conta da estrutura da personalidade e de seus mente um processo dramático, então toda a história da vida d~ uma
processos são invenções secundárias. São abstrações das imagens pessoa é uma estória e a personalidade não 'pode ser apreendl~a de
primárias, na psique em seu nível pré-conceitual. modo mais preciso do que sob a forma narrativa ..Dessa perspectlya, a
.personalidade é um teatro de figur~s arquetípicas: algumas proe-
. Ao lado disso, modelos que contam com analogias de outras •minentes e centrais, outras nos ?~stldores. e. a~ discussões. ~
disciplinas, também tendem a insinuar, por exemplo, um ponto de ·abordar temas herÓicos. comerciais. de comedia. de tragedla. de
vista biológico', ou físico, ou moral, em relação a processos psico- farsa.
lógicos. Se concebo as partes de minha personalidade como umas tan-
O modo do ego relacionar-se internamente com os outros e a
tas forças matemáticas, impulsos instintivos ou fatores independentes, posição que toma, apoiando um lado e opondo-se a outro. são aspeF-
a compreensão que terei de mim mesmo não se afastará muito disso e tos gue aparecem no relacionamento de uma pessoa com seI! meIO
" -
204 .
205
~l. Se me com porto de modo autoritário e repressivo em relação à parciais são dados diretos da consciência e não apenas i.nferências.
minha fraqueza interior, tenderei a ser da mesma forma para com os Encontramos essas pessoas em nossos sonhos e as OUVImoscomo
outros, não levando em consideração as necessidades de meus colegas vozes interiores. Vivemo-Ias em nossas reações peculiares, a que nos-
e de meus pacientes mais do que o meu egoísmo me permite com res- sos amigos se referem quando dizem "nem parece você", nos mo~en-
peito a minhas necessidades interiores. Se faço o jogo dos favoritos, tos em que nos percebemos muitíssimo parecidos com .nosso pai ou
dando preferência aos companheiros interiores que seduzem, encan- nossa mãe, quando estamos fora de nós mesmos o.udesfIgurados pela
tam e lisonjeiam o ego, é muito provável que eu venha a jogar o mes- raiva, quando dizemos o que não pretendemos dizer ou quan~o nos
mo jogo no mundo em geral, evitando críticas e confrontações. Na frustramos de mil e uma maneiras. Para Jung essas personalIdades
teoria de Jung os papéis que desem enhamos no relacionamento eS-' parciais são também o fundamento da crença universal em espíritos e
soa a pessoa são eterminados pelas personalidades parciais. As demônios (CW 8, §§ 570 e segs.).
relacÕesinterpessoais baseiam-se nas relaçÕesintrapessoais. Figuras Arquetípicas. Jung insiste que seus con~eitos sejam fo~-
As Personalidades Múltiplas Personificadas. A maneira per- mulados em termos da experiência, e assim denomina as personali-
sonificada (Hillman 1975) de considerar a estrutura da personalidade. dades parciais segundo suas imagens. Seu método é, a um só tempo,
~é valiosa para a terapia, ou, melhor dizendo, já é terapêutica em seus fenomenológico, atendo-se ao máximo às coisas como se apresentam,
efeitos. "1m ulsos" "rocessos" e "fatores" são coisas ue er- e ingenuamente realista, considerando os eventos psíquicos e~ seu
manecem abstrafa,s. Conduzem a racionalizações intelectuais e a valor aparente como plenamente reais. Afirma que as ?escnç~s
defesas contra a experiência direta. Já com personificações o contato primitivas (personificação e demonização) corresponde:n ~ man~Ira
_...P.Q.duerdiretQ. Na terapia junguiana a técnica chamada "imaginação empiricamente mais precisa de discorrer sobre os fat?s pSIqUICOS.E ?a
,ativa" faz precisamente isso. É um encontro entre as partes da per- personificação de suaves ninfas sedutoras que experImentamos aquilo
..~onalidade; é uma batalha, um diálogo, um simpósio, um drama entre que aprendemos a chamar de "desejo sexual", e é sob a forma de d~s-
os complexos. . grenhados demônios noturnos que entramos em contato com aquilo
que os tratados rotulam de "ansiedade". .
No entanto, antes de tentarmos dar conta detalhadamente da es-
trutura da personalidade, temos de considerar diversas conseqüências .As personalidades parciais agrupam-se sob os nomes de sombra,
teóricas de natureza geral. Entre estas, a mais importante é o conce.ito uersona: e"go(herói). anima. animus. pu7r (ete~na.j~ye~t!lde) senex
~de Jung de que toda personalidade é euencjqlmente múltipla (CW 8, ~elho sábio), trickster, grande mãe, an~mal sIgmfIcatIvo. cu:~dor,
~ § 365, 388). A personalidade múltipla é a natureza humana. Por isso .~rianca divina. Self. Por um lado, estes sao .os nomes dos arqu~tIpOS,
toda personalidade é potencialmente dissociável em personalidades isto é, figuras típicas do mito, da arte, da literatura e da religião em
parciais que a compõem. Isto é ao mesmo tempo uma ameaça regres- todo o mundo. Por outro lado, são figuras típicas dos sonhos, dos
..siva e uma diferenciação progressiva. A individualidade (que no pen- papéis familiares, das emoções pessoais e das patologias que pa-
samento de Jung significa individido) é o pólo oposto da dissocia-. dronizam nosso comportamento. Podem ser encontrados onde qu:r
bilidade natural. A personalidade individual significa uma diversidade que a imaginação humana elabore seus pr~dutos,. dos, dogmas reli-
contida, uma unidade diferenciada que não é nem única nem simple~: giosos às convicções delirantes, da a~te mais sublime a l:'sIcose alu-
A totalidade da personalidade significa uma tensão altamente com- cinatória. Essas figuras são instânCIas q~e a perso~ahdade pode
plexa entre partes. A personalidade dissociável, múltipla, é um prin- adotar quando uma ou outra delas predomma. determmando ayers-
cípio que se mantém inalterado durante todo o desenvolvimento da ectiva ue assa a residir nossas idéias e sentimentos ares eIto do .
teoria de Jung. Percebemo-Io em seus primeiros trabalhos sobre es- .mundo e ares eito de nós mesmos. . claro que todas elas e suas
qúizofrenia, em seu interesse pela parapsicologia, pelas visões alu- variações não aparecem de uma vez só, de modo que não se trata de
cinatórias, pela dissociação, bem como no relato autobiográfico em memorizar o elenco de um show de variedades a fim de conhecer a
que se coloca a si mesmo em termos de personalidade número um e psicologia da personalidade. Mas, do ponto de vista de Jung,.t~ata-se
.• personalidade número dois (MDR, pág. 45-68). de reconhecer que a personalidade é arquetipicamente condicionada
Embora a idéia das personalidades parciais seja uma construção ou que a personalidade é uma cena dialética onde, no decorrer da
hipotética e também uma metáfora, tanto quanto outras construções vida, intervêm muitos caracteres imaginários, participando, comu-
explicatórias como impulso, fator, necessidade etc., as personalidades nicando-se, discutindo. (Nosso objetivo aqui é apenas dar um esboço

207
206
de como as personalidades parciais em geral operam). Há estudos
bém, conter qualquer outro aspecto incompatível- a sexualidade ou
mais detalhados que examinam a maioria dessas figuras, sua feno-
a primitividade não vividas, as realizações potenciais não concreti-
menologia e sua patologia. Alguns desses estudos recentes, além dós
zadas e a sensibilidade cultural não realizada. A sombra apresenta, de
do próprio Jung, são os de Neumann 1955, grande mãe; Guggenbühl
modo especial as imagens da patologia da pessoa: sadismo, lamen-
1971, sombra; E. Jung 1957, Adler 1961, de Castillejo 1973, animus;
tações hipocondríacas ou qualquer um dos vários síndromes psicó-
E. Jung 1957, Hillman 1973/4, anima; v. Franz 1970, puer; Hillman
ticos que refletem, em caricatura, a estrutura global da personalidade.
1970, Vitale 1973, senex. Esta lista, de" forma alguma completa,
oferece uma boa introdução às figuras arquetípicas e seus efeitos O trabalho terapêutico não pode evitar o encontro com a sombra.
sobre o comportamento. ~ m dos objetivos da tera ia junguiana é a acomodação mútua dos
Tomemos por exemplo ~ É a imagem de todos os aspec- dois irmãos o e o e a som r e um re atlv z s
tos da personalidade em que nos poderíamos transformar. Em meus antagônicas prévias, iluminando o sombrio e sombreando o lu~inoso.
sonhos pode ser um irmão, um colega de escola que eu temia ou in- No entanto, a sombra nunca é totalmente superada, na medida em
vejava, um marginal ou uma pessoa bem sucedida, um colega de que nunca conseguimos realizar todo o nosso potencial e nunca aban-
profissão cujas características são aquelas que mais detesto - mas donamos de todo os aspectos destrutivos e malévolos da natureza
que são as que mais se aproximam das minhas próprias. Devido à humana. A sombra é particularmente relevante para a compreensão
minha identificação com uma personalidade que chamo de "meu das dificuldades que podem ocorrer entre analista e paciente. Eles
ego", a sombra em.geral aparece como um ser inferior e rejeitado nela podem projetar mutuamente as sombras, de modo que um fica sendo
sociedade. O desenvolvimento de uma personalidade parcial, o ego. sempre o forte, o sadio e o sábio, enquanto o outro é o fraco, o au-
ao mesmo tempo yai formando a sombrª. Em nossa cultura o desen- todestrutivo, o inferior (GuggenbühI1971).
volvimento do ego vai-se dando através de opções entre o bem e o mal, Situações Arquetipicas. Tão significativas quanto as figuras ar-
entre o certo e o errado, amor e desamor. O mau, o errado, o desa- quetípicas são as situações arquetípicas. Embora rigorosamente não
mado, recaem então sobre a sombra, tornando-a amedrontadora. Em façam parte da estrutura da personalidade, são fundamentais para a
pouco tempo, o lado suprimido torna-se o lado reprimido; o ar- compreensão do comportamento. Quando identificamos as situações
quétipo da sombra, que é um potencial de valores destrutivos, a um arquetípicas que uma pessoa está realmente vivendo, ficamos em
"instinto do mal", é ativado pelos impulsos rejeitados da vida diária. melhores condições de entender o ue está se ass n
Quanto mais adequado me torno, mais a sombra se alimenta de Podemos tomar, por exemplo, a micia ão "Muitas culturas têm ritu.ais
motivações contrárias, até chegar aos extremos de um Dr. Jekill e Mr. de iniciação a fim de ajudar o indivíduo a passar de um estágio da Ylda
Hyde. Como a sombra é uma figura arquetípica, e não apenas UI1l \?ara outro. De acordo com. a teoria j~ng~ia.na (H~n?~rson 1967) ~ma
nome para disfarcar o reprimido. temos de considerá-Ia como uma pessoa que não tenha o eqUivalente pSlcol.oglcoda IlllClacã?pode Úcar "
ersonalidade viva, com intenções, sentimentos e idéias. desorientada quando confrontar uma Situação de tran~lção para a
Se nos mantemos inocentes e farisaicos em nossa consciência do ~..9ualnão se encontre psicologicamente preparada. Em tais mom~ntos
ego, forçamos a sombra para a escuridão, que é o seu lugar, da mesma pode ocorrer uma regressão completa, ~~ ~ual toda a per.sonal~~ade
forma que se representa o diabo no inferno e se fantasia o criminoso parece fugir, recuando de uma tarefa difícil (exames, serviço militar,
nas trevas da noite. Assim, nos sonhos, a sombra aparecerá em casamento, parto, menopausa e meia-idade, morte de um ente que-
guetos, como um caso de assistência social, como um inválido, rido, a própria morte). Pode acontecer um episódio psicótico agudo.
aleijado ou doente. Aparece também nas imagens do político po- Quando examinamos as fantasias, medos, atitudes e sonhos que ti-
deroso, do falso guru, do bando de rua, ou de uma pessoa de pele es- veram lugar durante a crise, podemos verificar que mostram a pessoa
cura. É fácil entender como os problemas da sociedade podem referir- passando por uma iniciação psicológica, conferindo um senti,d~ ritual
se diretamente a personalidades parciais individuais. ao comportamento peculiar - os medos exagerados de médico, as
fantasias de tortura, a sensação de isolamento, as imagens de nas-
A sombra determina também os motivos dissimulados nos planos, cimento ou de transformação em uma nova condição, as vozes alu-
os esquemas para o progresso profissional, os boatos maldosos, as cinatórias dando instruções, tudo isso pode ser apr~priado à situação
deslealdades, apesar de nossas honestas intenções. Embora tenha feito arquetípica da iniciação. Ao confirmar os acontecimentos como ar-
sua descrição em termos principalmente éticos, a sombra pode, tam- quetipicamente significativos, a pessoa que esteja lidando mais de per-
2Ô8
209
to com o caso pode ajudar, não somente impedindo uma desinte- penencias formam fases na combinação das duas principais oposi-
gração ou um suicídio estúpido, como também tornando o episódio ções: ouro e prata, sol e lua, rei e rainha, consciência ativa e incons-
psicologicamente significativo. ciência reflexiva. s formula ões ai uímicas corres ondem às fi uras
arquetípicas mencionadas anteriormente (anima, animus, senex etc.),
. Outr~ situação arguetípica é o &e~T<palavra grega que sig- 'preenchendo com detalhes patológicos e com sutis percepções psi-
j rnfica recmto .sagra90~ QU área fecliada na q"lIal pode-se colocar os
cológicas estas personificações mais genéricas.
problemas maIS ternveIs, onde se pode viver a experiência de um cen-
tro ordenador ou onde a ró ria ersonalidade pode se proteger en- Os' processos que se desenrolam na personalidade são tambéJll
.uanto se pr~ce.ssam ~lte~a ões vitais: Jung ilustrou o temenos com fig~rados ar ueti icamente na ai uimia como uma s' r' de e .
figuras geometncas principalmente baseadas nas manda/as orientais. Os nomes de muitas dessas operações sobrevivem na psicologia clí-
Seu apare~imento espontâneo em situações de sobrecarga extrema= nica. Projeção, dissolução, sublimação, fixação e condensação eram
blente ~es~nteg~adoras e sua. relevância para a compreensão de rituais todos termos alquímicos. Os dois principais processos - solucão e
.contrafobIcoS sao apenas dOIS aspectos da sua importância. çQ~guli&cão ~ são outra forma de colocar o trabalho principal da
psicoterapia: separar e unir, analisar e sintetizar. Assim sendo, mé-
Na. descid outr~ situação arquetípica, há fregüentemente um todos que a análise moderna crê ter inventado para promover o desen-
e~cure~Imen o de.pressIvo ou uma confusa obnubilação da consciên- volvimento da personalidade eram já conhecidos da alquimia como
CIa ate mesmo uma perda da orientação, em função da experiência de descrição de movimentos autônomos dos processos psíquicos . .Q...Q.b.-
as ~ctos até então descon eci os a personalidade. O sacrt leiO jetivo da obra alguímica - e no pensamento de Jung, os objetivos são
}~lU1tas vezes fornece ex lica ão ara mutl ões bizarras ou _ apenas marcos, que devem ser valorizados por seus ímpetos como
.tl~entos de carência absoluta. O abandon é muito conhecido cli- ideais e não serem perseguidos literalmente até sua realização (CW 17,
,ll1camenJe., nas eI?oções despertadas pe a separação, solidão e desam- § 291) -.é uma série de uniões das djyersas substâncias psíQl!icas em
~,que, como e mostrado nos mitos de Hércules, Moisés, Jesus etc., conflito. Jung chama essas uniões de "integracão da personaJjdade" e
refere~-se a uma pré-~ondição necessária para a emergência de um a obra" de "individuação da personalidade".
!!,ovo tmo de força que mtegra arquetipicamente o mesmo padrão.
Tipos (A) - /ntroversão e Extroversão. Além das estrnlmaS da·
Substâncias e Processos Arquetípicos. Alquimia. Quando se dis- peisonalidadeencontra-se a tendê.neja globáT característica de sua
c.ute a obra de Jung, seus escritos sobre alquimia muitas vezes cons- energia. A sua orientação dinâmica básica é para fora, fluindo para o
tituem um embaraço. Mas apresentá-lo sem esta parte da sua teoria mundo e para as coisas, para as pessoas e para os valores que estejam
seria uma grande distorção. Jung devotou seus últimos trinta anos de à sua volta? Ou o seu movimento primário é para dentro, em direção à
pesquisa a esse tema, publicou cerca de um quarto de sua obra sobre sua subjetividade, aos reclamos de sua natureza, imagens e valores in-
te~to~ e temas alquímicos e disse em sua autobiografia que foi a al- teriores? ~sta distinção entre as orientações objetiva e subjetiva da.
quirrna que forneceu o verdadeiro substrato da sua psicologia (MDR, personalidade, entre introversão e extroversão, é uma das maiore.s
págs. 205, 212, 221). A aíauímía, portanto, não é apenas de interesse •contribuicões de Jung à teoria psicológica. Logo foi aproveitada por
~rudito nem. constitui um campo separado de pesquisa, nem tampouco Hermann Rorschach, cuja obra, tão amplamente influente, começou
e uma mama ou paixão particular de Jung. É um fato fundamental primariamente como uma investigação adicional, através de métodos
pa~a .a sua concepção da estrutura da personalidade. Jung via a al- projetivos, da polaridade introvertidol extrovertido (Klopfer, 1972) e
qUImIa. como uma psicologia pré-científica da personalidade sob a foi desenvolvida em muitos trabalhos publicados por H. J. Eysench,
caBa .de metáforas. gntendeu as quatro substâncias básicas da al- tanto teórica como experimentalmente.
qUImI~ (~humbo, ~al, enxo.fre. e .mercúrio) como sendo componentes Como tão freqüentemente ocorre com idéias bem sucedidas
arqu~tlp1COS da pSIque. A mdlVlduação, ou realização plena da per- (evolução, entropia, relatividade), estas adquirem popularidade. Por
.s~n~lIdade, requer uma I~nga série de operações sobre um substrato isso mesmo perdem muito de sua precisão e sutileza originais. No
bas.Ico, e~ resso metafoncamente por essas substâncias. A perso- presente, é por demais fácil caracterizar os introvertidos como re-
nalidade e uma com mação especi ica o c um o enso e depressivo traídos e esquizóides e os extrovertidos como maníacos e superficiais.
com o enxofre inflamável e agressivo, com o sal amargamente sábio Facilmente acreditamos que os introvertidos são desadaptados e os ex-
com o volátil e evasivo mercúrio, A alteração e a integração dessas ex- trovertidos adaptados demais. Essa maneira do_gmática de considerar

210 211
as atitudes da pe~sonali~a~e deriva ela própria dos preconceitos do ob- preferencialmente, estruturalmente e tipicamente por meio de uma ou
se~v~dor e da atitude típica da própria pessoa. Por isso, considerar outra dessas faculdades. Não somos simplesmente extrovertidos ou
atividade ou _dependênc~a.do objeto como chaves para a compreensão introvertidos; somos também indivíduos que pensam ou que sentem
~a extroversao, ou hostilidade anü-socíal e desejo de poder para a da de maneira tipicamente introvertida, ou somos tipos intuitivos ex-
Introve.rsão pode revelar-se algo bastante decepcionante. A atitude in- trovertidos. As uatro fun ões são modos da consciência en uanto
trovertI~a re~uer uma boa dose de envolvimento com o mundo a fim de que as atitudes de introversão e extroversão referem-se às energias
conseg~ur estimulo para a sua subjetividade; E a personalidade ex- • básicas da essoa. As quatro funções descrevem a maneira como a
trovertida pode voltar-se violentamente contra o seu meio ser tímida consciência molda a experiência. Presume-se que a função sensação,
em grandes eventos sociais ou ser inovadora em relação a idéias e sis- por exemplo, opere principalmente através da percepção, captando
temas. Este comportam~nto, se bem que aparentemente introvertido, internamente as imagens e manifestações do corpo e, externamente,
realmente reflete uma onentação para o objeto e uma exata apreciação apoiando-se na observação exata e no senso estético. Assim, o mesmo
do mesmo. ~"Para" o Íllu?do ou "contra" o mundo são movimentos ocorre com o pensamento, sentimento e intuição - cada uma
na mesma dIme~s~o: ~ão amda em termos do mundo e por isso refletem apresentando uma modalidade típica e uma patologia típica da cons-
ambos a predominância de extroversão). ciência.
Como a introversãoe ~ extroversão são fenômenos energéticos, o Mais recentemente, um grande número de publicações (Marshall
melhor que se pode fazer e pensar nelas como "fatos da natureza" 1968; Shapiro 1972; von Franz e HilIman 1971; Mann etal. 1972; Plaut
dado:>que acompanham a existência, como o direito e o esquerdo ex- 1972) atesta o recorrente interesse, tanto clínico como experimental,
pansao e contração, manhã e tarde, cada um tendo a sua razão de ser. por esse aspecto "da teoria junguiana da personalidade. No entanto,
dentro da obra toda de Jung, a tipologia é apenas um dos vinte gros-
. I~tr?versão e extroversão são conceitos de valor prático ~ara o sos volumes que compõem suas obras completas e a tipologia per-
dIaB?OStICO,para o tratamento e para o. prognóstico clínico As manece sendo apenas uma abordagem introdutoria das complexidades
,m~dIdas ,terap~uticas pre~isam sempre ser relativizadas -de acordo 'Cõii1 da personalidade. A tipologia é elementar, tanto no sentido de fun-
, o tI o sIcolQ ICOdo_.aClente o ue é alimento ara um, ara outro damental como de preliminar, simc'esmente um primeiro passo para
p~de ser veneIlo. As vezes Jung aconselha a compensação por meio da se penetrar na natureza das diferenças individuais e nas teorias de
atitude ~p~sta,. en~uanto que outras vezes insinua que o tratamento de Jung.
e~colha e mais aI,nda a mesma coisa". O tratamento eletivo de con-
1Ições de extrema mtroversão, por exemplo, é menos uma extrovelsão Complexos. A formulação teórica mais importante de Jung é a
orçad,a ara com e?s~r. do ue uma meticulosa investi..a,ão e uma. dos complexos. É seu o termo e foi usado por ele ,e por seus colabo-
empatIa com a SU~letIVIda~edo paciente por intermédio da com- radores do Burghólzli, a clínica psiquiátrica da Universidade de Zu-
preensão das fan.tasI~s. Os tipos psicológicos são também valiosos ins- rique, para dar conta de interferências em associações verbais numa
trum.entos conceituaís para a compreensão de pessoas nas mais diver- situação experimental - o Experimento das Associações. Uma lista
sas snuações: t~abalho .co~ ~olegas, vida com a família, escolha de de cem palavras - verbos, substantivos, adjetivos - é lida uma a
proJeto~ ~ de metodos cientificos, preferências de lazer. Até a política uma, a um indivíduo que é solicitado a responder tão rapidamente
e a religião caem sob a influência das propensões introvertidas- quanto possível, com a primeira palavra (e apenas uma) que lhe vier à
extrovertIdas. mente. Após o registro das cem associações às palavras-teste e dos
tempos de reação (em quintos de segundos) para cada uma delas, o ex-
perimentador novamente lê a lista de palavras-estímulo pedindo à pes-
soa que repita o que havia dito da primeira vez. Desvios entre a pri-
meira associação e a repetição também são registrados. Examinam-se
então nos protocolos os padrões de perturbação, como por exemplo
os tempos prolongados de reação, repetição da mesma reação verbal,
esquecimento da reação original por ocasião da repetição, associações
peculiares ou bizarras, rimas, reações afetivas, etc. (cf. CW 2; Hull e
Lugoff 1921; Rapaport et ai. 1946; Cramer 1968).
212
,213
A hi ótese de Jun era a de ué os distúrbios nas associa ões
refl;tem um grup~ in~o~s~iente de idéias, imagens e recordações, in-
terh. adas de maneira mdlvldual ermeadas or uma única tonalidade
,Experimentado
dade com sentimentos,
figurativamente, o complexo é uma Bersonali-
motivações e recordacões. Expenmentado
'1 ,
afetIva (anseio, angústia, medo, dor) e carregadas de forte emocão. •somaticamente o com lexo é uma altera ãQ no ritmo cardíaco na cor
fhamou, a ISSOde complexo. A despeito das melhores intenções da da pele, no c~ntrole esfincteriano, na tumescênci~ genital, na res~
perso~ahdade. do eg? ~m prestar atenção e seguir as instruções, -piração, na sudorese etc .. Experimentado energetlcamente, o com-
ocornam as mterferenclas. Esse trabalho experimental realizado lexo é um núcleo dinâmico, que está sem re acrescentando nov~s
durante a primeira década do presente século, colocou-o em contato partículas a si, como um magneto, ou coalescen o com outras um.-
c.om Freud. PO; e~sa época, a psicologia clínica, a psicologia expe- dades atômicas, corno uma molécula. Produz tensão, compulsõe~,
r.l~ental e a pSlqUlatna trabalhavam todas juntas, em fraternal fe- situa ões carregadas transforma ões atra ões re ulsõ s. ExpelJ,;
licidade. mentado patologicamente, o complexo é ~ma ferida a~e~t~ pronta a
contaminar-se pelos micróbios das proximidades (sugestJblhdade), um
âncer uecresce autonomamente um otencial de ânico ou uma
o trabalho de Jung forneceu à teoria freudiana da repressão a idéia supervaloriza a, que se torna primeir~ delirante. passando
segund,a perna .de que necessitava para manter-se de pé. A primeira depois a formar um sistema delirant~ para~ólde, que consegue as-
p~rna e ~~edotlsamente empírica, uma coleção de psicopatologias da similar ao seu núcleo todo argumento dissuasivo.
Vida cotídíana - lapsos da língua, parapraxias, esquecimentos, dis-
trações. Mas a segunda perna, os distúrbios da atenção, podem ser Complexo e Arquétipo. A análise de qualquer complexo I?ostra-
~emonstrada~ expenmentalmente. A teoria da repressão iniciava, as- o composto de associações pessoais provenientes de eXI?enenc~~s pes-
Sim, sua cammhada empírica, e com ela as importantes conclusões ad- soais. Mas J ung reconheceu que a energia que ele podena ~obIllzar, a
ve~ient~s - o .funcionamento de um segundo sistema mental, ou a autonomia do seu comportamento e o caráter arcaico ~ umversal.~as
psique mconsc.enre, Desta forma, Freud e Jung apoiavam-se mu- suas imagens não poderiam ser explicados apenas atraves da expenen~
tuamente. A idéia freudiana de inconsciente usou a teoria junguiana cia pessoal. Assim lançou ele a hipótese de que,~ núcleo do co~plexo e
do~ complexos para fundamentar-se empiricamente. O conceito jun- ar uetí ico e de ue o material essoal é or amzado o~ u~~ ~m
guiano de complexo usou a teoria freudiana da repressão e do incons- . ar uetí ica, em torll-º da ual se acumula com ene.r Ia lI1S11I~t.IYa-<l
Ciente como base teórica. nível Sü-máÜco. Por exemplo, meu complexo materno constr~l-se a
partir de minhas experiências com minha mãe e de m.i.?h~s associações
com o mundo dela. Mas a padronização dessas experiencias e a Ime~sa
No ~eio de todo o trabalho desse período, especialmente voltado
carga emocional que esse padrão contém refere-se à imago arquetíp.lca
para a p~lcopatolog~a. (teoria da esquizofrenia), criminologia (detetor
da grande mãe e aos desejos instintivos, aos tab~s e a ma~la envolvida
de mentiras) e me~lc~na 'psicossomá~ica (fenômenos psicogalvânicos
ou alterações na resistência oucondutlVidade elétrica da pele quando se na relação mãe-filho, junto com as ricas fantasias coletJvas.e com os
papéis relacionados com a natureza, a amamentação, o crescimento, a
atacam os complexos), existe um trabalho particularmente relevante
roteção, a imunização, o açambarcamento, a sufocação etc.: A
para a teoria da personalidade (CW 2, §§ 793 e segs.). Nele Jung de-
erapia pode desenrolar muita. coisa dp co~plexo mat,er~o ao nivel
mo~str~ a conexão entre o conteúdo do distúrbio que aparece na ex-
pessoal, libertando a personalidade de. proJ~ções de significado ar-
p~nencla das associações com o sintoma histérico e com o sonho. A .
quetípico feitas sobre a cidadã comum 'flue e a nossa mãe concreta.
hlpót~s~ do complexo pOde,suficientemente dar conta dos três. O mes-
Mas o fundamento arquetípico do comp~~o mater~o e todos os seus
mo ~ umco complexo perturba a associação, está por trás do sIgnifi'Cã'ão I aspectos permanece a vida toda, faz parte \a humanidade.
rea e um eixe de idéias e imagens
emoclOnalm.e~te .carre~adas , e aparece como Igura persomficada nõs
so~s. A ~Isao JungUl~~a da personalí a e como uma mu tlplicidade A TERAPIA DA PERSONALIDADE . ~~. . .
de perso~~hdades I?arcI~ls ~~ mteração, "psique divididas" (CW 8, § Todo este tempo vim apresentando as Imphcações, opera~lOnals
20~)"Ou pessoal~Inho tibid., § 209) pode muito bem ter tido sua dos conceitos de Jung. O objetivo dessa conclusão sera reunir essas
ongem nos expenmentos das associações e nas hipóteses dos com- implicações em uma série de afirmações curtas:
plexos, q~e pa~a ~le eram as realidades básicas, os elementos, os nú-
cleos da Vida psiqurca. ,wuma vez que as imagens da fantasia s.ão o fundamento .da
conSCiência, na terapia saímos em busca dessas Imagens. As fantasias
214·
215
sobrecarregados de demandas arquetípicas. A expectativa que se tem
de mães e pais, professores, amigos e amantes ultrapassa em muito a
capacidade de seres humanos pessoais; as pessoas buscam umas nas
outras qualidades arquetípicas que, em outras culturas, só se encon-
{ trariam em Deuses e Deusas .
.O movimento que tende à impessoalização dos relacionamentos e
ao relacionamento com o impessoal é facilitado pelo terapeuta de
v' i f rm s: através da aten ão seletiva or meio de interpretações,
nela estilo da relacão terapêutica que tenta ser ao mesmo tempo pessoal
(e impessoal, e pelo interesse nos sonhos. Preferimos não traduzir os
sonhos com explicações psicodinâmicas ou com conceitos (mesmo os
próprios termos de Jung - "anima", "sombra" - ficam distorcidos
se empregados como conceitos). Ao invés disso, respondemos ao
sonho com uma linguagem igualmente metafórica, podendo até mes-
mo responder contando um outro sonho. Afastamo-nos dOJ?essoaL~
encaminhamo-nos para as estórias e para o mitológico, falando umª
linguagem imaginativa, personificada, com alusões a ficções de todo
.J.iQ.Q.. (filmes, contos de fadas, peças de teatro). ~QQc.entrandn::no.s_
mais nas imagens do sonho Berr 12M dQ_ u.eem_sua_trad ~
peramos revitalizar a imaginação do I>aciente. Isto é remitQ/ogização.
-~ Visto q~e ~s imagens e o instinto são co?c.ebidos como dois as-
pe~\is de uma umca e mesma estrutura arquetípica (e não como uma
sublimação do "inferior" pelo "superior"), a ênfase terapêutica
sobre as imagens é uma ênfase também sobre o instinto. Por meio da
imaginação ativa os distúrbios instintivos são assíveis de altera ã"o:
, so os sim o os sao tao potentes quanto os sintomas. Evita-se a abor-
dagemdiretadas terapias do corpo e do comportamento, em benefício
_de um engajamento psicológico com imagens, de modo que a vita-
lidade instintiva e uma sofisticada diferenciacão psíquica caminhem
juntos. Isso conduz a uma adaptação mais imediata e mais calorosa,
c que ao mesmo tempo é culturalmente imaginativa, seja ela expressa
através da música, da pintura ou do material escrito, ou pelo trabalho
com os sonhos, ou pelo despertar da perspectiva imaginativa na vida
diária. Isso pode ser chamado de vitaiização.
mA teoria geral da neurose, em termos 'un .Yia.IlQs._é sim Jes-
meriFe'à um atera I a 1::" (Jung repudiava uma teoria específica da
neurose, que não se apoiasse nos insights obtidos a partir da tipologia,
dos complexos e dos padrões arquetípicos). A terapia de todas as
. neuroses, quaisquer que se'am os ti os retende am liar os limites da
consciência para a em da unilateralidade dominante - em eral a do'
'ego - esten endo-a às outras- ersonalidades arei is. O paciente'
-a ren e a con uzir o rocesso de sicolo iza ão a ÓS o términ
terapia. O paciente consegue isto seja através de diálogos intrapessoais
216
217
entre as partes componentes de si próprio, 0].1 em seu relaCion;mento .
1..N. Marshall, "The Four Functions: A Conceptua I'A na Iysis." , J . Analyt . Psychol.,
psicológico pessoal, ou pela reflexão sobre imagens oníricas carre~ 13,1,1968, págs. 1-32. . .
gando-as consigo durante o dia. dando-Ihes vidª-. Mantêm-se nas J. E. Meyer (Ed.), Depersonalisation (15 trabalhos de vários autores), Darmstadt (WISS.
proximidades, de forma especial, as partes que não mudam e as Buchgesellschaft),1968.
imagens desagradáveis que se gostaria de reprimir. Esse trabalho con- E . N eu mann , The Great Mother, An Analysis of the Archetype, New York (Pantheon),
' m o sí uico da essoa essa familiaridade com suas múl- 1954.
ti Ias ersonalidades confere uma capacidade de contenção cada vez J Perry "The Messianic Hero", J. Analyt. Psychol., 17, 1, 1972, págs. 111-151. .
maior, mais espaço e profundidade à personahda e. a uma e íníção D.. Rapaport,
, M . G'II
I & R ., Schafer Diagnostic Psychological
. Testing, vol. 2. Chicago
inais precisa, unindo os fios e ouxando a unidade unilateral. (Yearbook Pub1.),1946.
Isso pode ser chamado, e consolidação. K. J. Shapiro, "A Critique of Introversion", Spring 1972, págs. 60-73.. .
M. - L. von Franz, The Problem of lhe Puer Aeternus, New York e Zurique (Spring
REFERENCIAS Publications),1971. .
M. - L. von Franz & J. HilIman, Lectures of Jung's Typology, New York e Zurique
C. G. Jung, The Collected Works, vais. 1-17 (Princeton University Press), 1954. (Spring Publications), 1971.
Abreviado par~W seguido dos números dos parágrafos, exceto quando indicado . f h F th "in Fathers and Mothers, New
de outra maneira. A. Vitale, "Sat~rn: The !ranpsfobrl~attIOn)o1~7e3a(Tr:~uzido por Pedro P. Kujawski e
York e Zunque (Spring u tca ions , .
C. G. Jung & A. Jaffe, Memories, Dreams, Reflexions, New York (Pantheon), 1961. publicado nesta Coleção com o título de Pais e Mães - N. dos Eds.).
Abreviado para MDR.

G. Adler, The Living Symboi, New York (Pantheon), 1961.


P. Berry, "An Approach to the Dream", Spring 1974, págs. 58-79.
Publicado originalmente
como .capíh~lo 3 de
E. S. Casey, "Freud's Theory of Reality: A Critical Account", Rev. Metaphysics XXV,
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218
219
t)_PROBLEMAS METODOLÓGICOS NA PESQUISA DE
~HOS*

Quando se leva em conta o progresso espantoso que as ciências


vêm experimentando desde 1900, torna-se ainda mais notável o fato
de tão pouco ter sido conseguido na investigação de sonhos (1, 2). E aí
nos perguntamos qualpoderia ser o fundamento dessa estagnação .
. :~
Três dentre os numerosos requisitos genéricos para o progresso
da ciência deveriagiser examinados de forma especial, devido a sua
relevância na que~ da estagnação da pesquisa de sonhos. O pri-
meiro é a necessidade de abandonar uma teoria já não mais provei-
tosa, um modelo de pensamento já obsoleto, que entrava a investi-
gação. Poderíamos citar como exemplo a geografia e a cosmologia
ptolomaicas. O segundo requisito é a necessidade de se dispor de ins-
trumentos mais refinados para a coleta de novos dados, como por
exemplo o telescópio ou o microscópio.
Esses dois requisitos só conduzirão a perspectivas mais frutíferas
se, terceiro, novos métodos puderem ordenar os eventos com uma
coerência mais significativa do que se tem verificado.

Quanto ao primeiro requisito - desembaraçar-se de um modelo


obsoleto de pensamento - observamos que o modelo que tem do-
minado o campo da investigacão dos sonhos. durante a prjmejra
_metade do século, é o que foi introduzido por Freug" Meier (3) salien-
tou que" ... nos cinqüenta anos desde a formulação dessa teoria dos
sonhos a literatura, com poucas exceções, não trouxe qualquer ponto

• Capítulo traduzido por Ivani Blum e Silva.

221
de vista novo; ao contrário, tem-se limitado essencialmente a confir- Não podemos, no curto espaço deste artigo, detalhar as conse-
mar a teoria de Freud - ou simplesmente a repeti-Ia". qüências negativas da realização de Freud e dar integralmente razão à
afirmativa de Meier. Seria suficiente notarmos que a abertura do con-
Passando em revista a literatura mais recente sobre a investigação
tinente do inconsciente não levou a uma correspondente corrida do
dos sonhos, verificamos com muita freqüência que o esforço generoso
ouro da pesquisa exploratória. A nova terra foi mapeada de modo
de homens de talento resulta em frutos escassos. Como exemplos
demasiado rígido e designada de forma demasiado chocante, a ponto
podemos citar os trabalhos sobre sonhos e parapsicologia de Servadio, de os poucos que ousaram arriscar-se apenas confirmarem aquilo que
Eisenbud e outros; a obra de Fisher (4) (e outros) sobre a recordação,
já havia sido descoberto por Freud. A tendência da pesquisa tem sido
em sonhos, de imagens estimuladas subliminarmente (fenômenos de a de evitar o lado noturno da mente, de forma que o próprio tema do
Poetzl); as hipóteses sobre a função dos sonhos e a análise de seus
sonho, segundo o relato de Webb (5), vem sendo negligenciado até
conteúdos coligidas na situação experimental idealizada pela Escola hoje. "A porcentagem média de trabalhos psicológicos que tinham o
de Chicago; coletâneas antropológicas de sonhos. Quase todos os sono (excluindo os sonhos) como tema era, entre 1940 e 1959, de
, trabalhos utilizam um esquema referencial frelldjano ao teorjzar sobre,
0,267 ou mais ou menos dois e meio artigos em cada mil". O lndex
achados. Quase todos sofrem a constrição do mesmo modelo, de lvfedicus mostra, num recente período de dois anos (1958-59),
modo que suas descobertas apenas reafirmam a teoria freudiana já aproximadamente apenas um artigo por 1.000 a respeito do sono. Não
nas mentes dos pesquisadores. No entanto, uma proposta de pesquisa, seria adequado correlacionarmos a escassez da investigação sobre o
independente e objetiva, não deveria questionar o próprio modelo sono e o sonho com a crescente esterilidade científica da teoria psi-
com que se está operando? Parece-nos Que. para haver pro~resso canalítica?
científico na pesquisa de sonhos, é necessário agora proceder-se à
,revisão da teoria freudiana nesse campo. '\../\ Digamos, em resumo, que o modelo conceitual freudiano im-
e.lpediu o desenvolvimento ulterior da es uisa de sonhos elas s u'-
O sucesso da teoria freudiana dos sonhos não é um mero acidente ( tes razÕes'
na história da psicologia. Sua Traumdeutung, surgindo nos fins do
século passado, resolveu de forma brilhante o problema do sonho, tal Em primeiro lugar por ser elegante. A Interpretação dos Sonhos,
como então se formulava. Durante o século XIX, dominavam três em especial o capítulo 7, é exemplar enquanto sistema teórico fechado
hipóteses referentes aos sonhos, cada uma em conflito com as outras. e harmonioso.
A posição romântica era de ver o sonho como uma mensagem do além
com um significado pessoal. Os raciona/istas negavam totalmente a Segundo, porque está de acordo com uma Weltbi/d cientificjsta e
possibilidade se atribuir sentido aos conteúdos oníricos. M~s r~- materialista, quê hOJe não é mais tão operacional quanto era então.
mânticos e racionalistas concordavam que o sonho, por ser mspi-
Terceiro, 12 r ter suas raízes na teoria ositivista e associacionista
ração poética ou apenas tolice, não poderia ter cabimento na ciência.
da rri'~nte.
O ponto de vista materialista favorecia a pesquisa científica, mas
apenas no sentido de provar a origem orgânica do sonho. Essa pes- Quarto, porque desvaloriza os conteúdos manifestos dos sophos.
quisa tinha por objetivo a redução dos fenômenos oníricos a ativi- cuja consideração é o ponto de partida para qualquer pesquisa de
dades do corpo e estímulos dos sentidos. orientação empírica.
Freud retomando a antiga tradição segundo a qual o sonho tem Quinto, porque atribui um peso maior aos desejos e às recor-
significado pessoal imediato para aquele que sonha, deu crédito à da ões do IDconSCIente essoal . lçu,k.1!1!U:Spedalista ern.ín-
posição romântica (chegou a comparar o sonho a um~ carta, u'!la . terpretação de sonhos ara fazê-Ios emer ir à consciência, estimulan-
mensagem). Admitiu também a ilogicidade e irracionahdade da lin- do desse modo mais o interesse elo si nificado e inter eta~,
guagem dos sonhos e forneceu uma explicação racional da causalidade
dessa ilogicidade. Por fim, com sua teoria sexual da libido, concordou .
~ sonho do que pela investigação do sonho
.
como tal.
com a posição materialista, que afirmava a existência de uma base or- .Sexto e último, por ter-se tornado - se é que posso dizer assim -
gânica para o sonho. Deste modo, reuniu as oposições contrastantes um chc e com um efeltº-Qaralisador da dúvida filosó[J.Ç.ae do es tÍritQ
vigentes no século XIX e ordenou-as em um sistema coerente. de pesquisª.

223
para observar os fenômenos, nossa técnica de observação foi refi-
nada, trazendo o observador para mais perto do seu objeto de estudo.
Voltando ao segundo requisito - avanço tecnológico - obser- Podemos agora fazer outras indagações psicológicas, tais como:
vamos que as maiores contribuições neste campo são anteriores à por que um sonho se transforma, de um relatório seco feito à noite
Traumdeutung de Freud: Maury (1878) (6), Vold (1896, 1897) (7),. passando a uma narrativa ordenada pela manhã (elaboração secun-
Ladd (1892) (8), Calkins (1893) (9), Vaschide (1899, 1902, 1903) (10), dária do sonho)? Quando de manhã não se tem lembrança do sonho,
Claviêre (1897)(11), Pilcz (1898)(12), De Sanctis (1902)(13), bem como embora exista evidência fisiológica do ato de sonhar, podemos con-
trabalhos sobre sonhos de cegos, por Jarish (1870) (14), Jastrow (1888) cluir que se trata de repressão? Ou, como perguntam Dement e Wol-
(15) e Hitschmann (1894) (16), para mencionar apenas alguns dentre os pert (26), haveria alguma relação, e em caso positivo, de que tipo, en-
que pesquisaram o sono e os sonhos usando métodos experimentais e tre os conteúdos manifestos dos sonhos de uma mesma noite?
estatísticos.
Ao declínio da pesquisa empírica significativa durante este século
corresponde a ascenção da herrnenêutica psicanalítica no mesmo Chegamos agora ao terceiro e mais significativo requisito, me-
período. Embora Hall (17) apresente conclusões sobre conteúdos de todologia, ou seja, os caminhos pelos quais nos aproximamos de nos-
10.000 sonhos, e Junger (18) refira-se a 100;000 detalhes de uma série sas descobertas e dos modelos que utilizamos para ordená-Ias e com-
de 10 anos de sonhos (dele próprio) e apesar de Siebenthal (op. cit.), preendê-Ias. Em outras palavras: desde o início devemos ter bem
Ramsay (op. ci(.) e de Martino (19) relatarem várias centenas de ?efinidas guais as indagações que queremos fazer ao material onírjço,
trabalhos nesse campo, nenhum foi considerado significativo até que Já que prudens quaestio dimidium scientia, isto é, uma pergunta
os primeiros rasgos de inovação tecnologica irromperam no Chicago aproprjada já é metade do conhecjmento Examinamos o material
lnstitute for Dreaming and Sleeping em 1955 (já me referi a esse onírico de maneiras completamente diferentes, quando perguntamos
trabalho e levantei questões sobre ele no C. G. Jung Institute há dois "como e o que causou o sonho, quais os seus conteúdos manifestos"?,
anos e espero que nesta Conferência outros voltem a discuti-lo). e quando perguntamos "flual o significado do sonho, que problemas e _
processos refletem-se do sonho"'! . .
Essa pesquisa chegou à conclusão que relatos subjetivos de "ter
sonhado" correspondem em grande parte a movimentos rápidos dos
Um dos mais importantes métodos da investigação científica
é a decomposição do objeto em seus elementos. Aplicada ao nosso
olhos durante o sono, especialmente durante o chamado período de
sono leve, como o encefalógrafo registrou. Kleitman (20) faz uma campo, esse tipo de abordagem nos permitiria comparar os elementos
resenha dos trabalhos de Aserinsky, Dement, Wolpert, Kamiya, Tros- do sonho e então os próprios sonhos poderiam ser classificados, tendo
man, Rechschaffen e dos seus próprios trabalhos. A literatura fornece por base um elemento ou grupo de elementos dominantes. Dessa for-
um quadro de um campo de investigação que está crescendo rapi- ma, sonhos com a palavra rio, mãe ou revólver poderiam ser com-
damente e em que uma boa quantidade de experimentação vai avan- parados, e os próprios elementos poderiam ser inventariados para
çando, o que já é motivo para controvérsias sobre hipóteses e contra- tratamento estatístico. Além disso, poderíamos, usando esses elemen-
hipóteses (Dement 1960![Q.l]; Barber, Ullman e Dement 1960 [22], tos dos sonhos, construir mapas e gráficos, de acordo com suas
Malcolm 1959 (23]; Hawkins et aI. 1962 [24]; Kubie 1962 [25] ). freqüências. Esse tipo de análise pelos elementos tem-se constituído
no. principal método da pesquisa dos conteúdos dos sonhos. Podemos
o principal interesse psicológico por esses trabalhos é que, pela citar como exemplos as investigações de Blanchard (27), de Martino
primeira vez, os sonhos podem ser registrados imediatamente após o (28) e Schnell (29), sobre sonhos de escolares. As questões versam
ato de sonhar. Trata-se não apenas de uma grande quantidade de sobre o que as crianças sonham, ou qual o principal conteúdo dos
material não-psicanalítico aproveitável, como também o material sonhos dos escolares, tendo-se descoberto que um grupo deles fre-
recolhido está menos sujeito a alterações feitas pela consciência vigil. qüentemente sonha com fantasmas e ladrões, ou que um grupo sonha
Isto por exemplo foi-me confirmado por John Watson, que comparou mais com uma espécie de animal do que com outra.
relatos de sonhos registrados no laboratório durante a noite com os Ainda que estudos dessa natureza possibilitem a obtenção de
registros dos mesmos sonhos na manhã seguinte. Do mesmo modo médias estatísticas dos elementos presentes nos sonhos, e mesmo for-
que, com o microscópio e o telescópio, ficamos em melhor posição
225
224
necer um modelo estatístico para esses elementos, tais estudos não nos são. Mesmo quando se usam títulos e rubricas mais abrangentes -
levam a uma maior compreensão dos sonhos e de sua dinâmica. Muito sonhos sexuais, sonhos com água -- o método continua a basear-se
pouco podem-nos dizer a respeito do que mais desejamos saber: o que nos elementos constitutivos.
significa o sonho num sentido interpretativo, Por exemplo, é muito Um mérito notável da classificação baseada nos elementos é que
mais raro encontrarmos, num sonho, uma avestruz do que um cavalo. essas categorias formam uma estrutura, no interior da qual é possível
A avestruz terá um' significado estatístico mais alto, no sentido da dispor transformações sob forma de gráficos. Por exemplo, dentro da
raridade e da anormalidade. Mas o significado do cavalo de modo classe arma poderia haver - à medida que o trabalho terapêutico
nenhum diminuiu por ser mais comum e 'regular. Além do que, a avança - tanto mudanças quantitativas como qualitativas. Poderia
freqüência não nos diz nada a respeito do que significam avestruz e haver um aumento ou urna diminuição na freqüência de sonhos com
cavalo no sonho e para aquele que sonha. armas proporcionalmente a outros sonhos, ou poderia haver mudan-
Podemos sofisticar o método da análise por elementos, colocan- ças quanto às espécies de armas: punho nu, lança medieval, bomba H.
do-os em categorias mais amplas. Em vez de rio, poderíamos usar a Isto nos coloca diante de outra questão: qual o fundamento
rubrica água, e em vez de mãe, mulher idosa, em vez de revólver, ar- metodológico para a determinação da mudança qualitativa no con-
ma. Assim poderíamos eventualmente chegar a classes fundamentais teúdo dos sonhos? Jung (33) propõe, em seus estudos sobre a al-
de sonhos, como por exemplo, "sonhos parentais", "sonhos de quimia, certos modelos para a avaliação de mudanças qualitativas.
agressão", "sonh"os de ansiedade" etc .. A pesquisa de C. S. Hall e Segundo esses modelos, cores específicas podem ser interpretadas
discípulos (30) baseia-se em grande parte nesse método. Hall e seus como indicadoras de estágios no desenvolvimento psicológico. Há
alunos elaboraram manuais técnicos (31) para a classificação dos muitos outros expedientes técnicos semelhantes utilizados pelos
sonhos de acordo com seus elementos. A agressão nos sonhos é analistas para avaliação do progresso, que poderiam ser reformulados
, agrupada em vários tipos e subgrupos - física, verbal, envolvendo como hipóteses e testados como tais nas pesquisas de sonhos. Além dos
quem sonha, presenciada por este etc. - e de acordo com as rubricas paralelos que podem ser estabelecidos ao processo de individuação,
utilizadas comumente nas estatísticas de estudos sociológicos, clas- apontados por Jung e seus colaboradores, a literaturajunguiana sugere
sifica-se ainda a agressão por idade, sexo etc., daquele que sonha. outras analogias ou modelos para avaliação do progresso através do
Convém notar, no entanto, com muito critério, que esse tipo de .conteúdo dos sonhos, taiscomo: (modelo matemático) de multipli-
abordagem acarreta duas dificuldades principais. Em primeiro lugar, Cidade indefinida a número primário; (modelo biológico) de animal'
a mudança de revolver para arma e daí para "agressão" é de fato uma primitivo a ser humano); (modelo social) de coletivo a individual;
mudança na especificidade do sonho, uma transposição de imagens (modelo metafísico) de desordem a ordem, de simples a complexo e de
reais para categorias e conceitos. Trata-se de um movimento neces- novo a simples. Estes são apenas alguns dos pressupostos usados pelos
sário no método das ciências naturais essa passagem de fenômenos analistas para a avaliação de mudanças no conteúdo dos sonhos. A
particulares para agrupamentos maiores, a fim de ordená-los, Mas pesquisa comparativa pode revelar quais destas suposições são pre-
no que respeita às imagens dos sonhos, essa ordenação pode distorcer conceitos e quais as confirmadas pelos fatos. Por exemplo, o aumento
a realidade fundamental do sonho: cada sonho é uma apresentação da produção, nos sonhos, de mandalas ordenadas corresponde a
única. Poderíamos mesmo sustentar que o sonho é tão idiossincrásico critérios exteriores de progresso? Os analistas, obrigados a fazer jul-
-.pa que torna impossível qualquer sistema nomotético de pesquisa com- gamentos qualitativos em relação à regressão-progressão, são au-
parativa, ainda que os próprios analistas continuamente façam re- xiliados por suas próprias emoções e pelas emoções daquele que
ferência a imagens e situações similares em sonhos similares e ex- sonha, bem como por outros fatores, como a relação do sonhador
traiam conclusões heurísticas de suas comparações não-científicas. com o sonho etc .. Mas os analistas ficarão muito gratos se a pesquisa
de sonhos puder fornecer algo de concreto para suas escalas de valor.
Em segundo lugar, não deveríamos perder de vista o fato de que
aquilo que determina a inclusão de um sonho na categoria agressão é a Esta é, sem dúvida, uma área diflcil para a pesquisa não somente
presença ou a ausência de um elemento peculiar. Se essa passagem do porque o progresso é subjetivo e difícil de ser medido mas também por-
elemento para a classe seria justificada ou não, e qual o efeito dessa que o surgimento, com pouca freqüência, de imagens de "baixo"
passagem na determinação do valor do sonho, ao limitar as muitas nível (homem das cavernas, enxame de abelhas, crianças do jardim da
possibilidades em sua gestalt total, são questões abertas para a discus- infância) pode coincidir com o progresso com mais precisão do que o
226
2,27
aparecimento, com grande freqüência, de imagens de nível "supe- comparação com os temas mitológicos. Muitos desses temas
rior", tais como as de dignitários da Igreja e das Universidades. Não mitológicos - ao coligi-Ios, Frobenius, em particular, prestou
importa qual seja, alto ou baixo, raro ou normal, é seu impacto sim- notável serviço - são também encontrados em sonhos, freqüen-
bólico que confere a um elemento seu valor fundamental. Já que temente com o mesmo exato sentido ... Gostaria de realçar que a
qualquer elemento pode assumir um significado simbólico, seria comparação dos temas típicos de sonhos com os da mitologia
difícil, se não impossível, elaborar escalas objetivas de valores dos sugere a idéia - já posta em evidência por Nietzsche - que o pen-
conteúdos, baseando-se nas pesquisas de sonhos, samento ontrico deveria ser considerado como uma forma de pen-
Apesar de toda a sua aparente importância ao registrar freqüên- samento filogeneticamente mais antiga.
cias e fornecer categorias, o método baseado nos elementos não é nem Embora o sonho possa ser considerado, pelo menos em alguns
o único e nem o melhor. Esta convicção que se instalou em mim é aspectos, como um produto da natureza, um método adequado para
resultado de um trabalho com dois pequenos grupos de pesquisa. Aí a investigá-l o deve diferir de outro método adequado à investigação de
falta de uma compreensão mais profunda, baseada em conhecimentos .outros produtos da natureza, que não dependem da psique humana do
precisos (e a ausência de uma hipótese diretriz) é até mais visível do mesmo modo que o sonho. O sonho está a meio caminho entre o
que no trabalho prático, onde a arte terapêutica pode substituir a in- poema e o paramécio. Como o paramécio, é um produto da natureza,
.
suficiência científica. não criado pela vontade humana. Mas, como o poema, é um produto
A pesquisa baseada na divisão de um sonho em seus elemento,,5 da arte, dependendo da imaginação do homem.
.tem sérias limitacõçs. I.mplica num moddo fundamentalmente ina- Em nosso grupo de pesquisa no Instituto Jung, ao estudarmos
propriado para o sonho. Do mçsmo modo Que outros processos men- sonhos contendo imagens de animais, temos observado que a orde-
tais, os sonhos não. são meras associacões de componentes Eles são nação desses sonhos, levando-se em conta apenas as imagens animais,
Gestalten, totalidades significativas intencionais. Acima de tudo, os não é uma formulação correta. Q método deve se adequar ao objeto e
sonhos são seqüências padronizadas. . se,o objeto for um processo o método deverá ser capaz de delineaL
A esterilidade da pesquisa de sonhos - da maneira como foi es- seqüências e abarcar llr ce A ênfase de Jung sobre a estrutura
tabelecida por aqueles que melhor conhecem o campo (v. Siebenthal) dramática do sonho indic S como um dra a
- deve-se em grande parte ao seu rompimento com a interpretação 'ação, é uma representação dramática. O sonho atua (handelt, agiert).
.r Estas seqüências de ação não são redutíveis a simples atos como
do sonho. Esse fato em parte tem origem nas conseqüências do tra-
balho de Freud, como discuti acima. Mas qualquer método de pes- correr, lutar, comer, que alguns estudos usam como categorias para a
quisa que se pretenda frutífero não pode ignorar Freud e a importân- análise dos conteúdos. Isto nada mais é do que uma análise baseada
cia de se perceber significado nos sonhos. Não podemos desprezar o em elementos, mas usando desta vez formas verbais em lugar de subs-
significado do sonho (Traumdeutung) em nome da pesquisa do sonho .". tantivos.
(Traumforschung), nem tentar explicar sem ao mesmo tempo procurar Uma classificação dos sonhos conforme as imagens dos animais
compreender. A própria pesquisa científica tem como objetivo fun- - sonhos com cachorros, com tigres etc. - não nos leva à compreen-
damental a busca do sentido. . são do efetivo processo que está se desenrolando. As seqüências de,
ação podem ser melhor compreendidas se consideradas ?OWo mi-
Gostaria de citar uma passagem de Jung (CW 8, § 474) como
t%gemas. Estes são fragmentos ou segmentos adromzados de
outro ponto de partida para um método mais compreensivo de pes-
seqüências de açoes, ana ogos aos e 1S0 lOS ue a arecem
quisa de sonhos: pro uç es a 1magmação humana. São especificamente categorias
humanas e, por essa razão, mais próximas do domínio das Geisteswis-
Gostaria agora de tratar rapidamente de alguns outros problemas
senschaft (humanidades), da história da arte, do pensamento e da cul-
da psicologia do sonho, que são contingentes a uma discussão
tura, do que do domínio das ciências naturais.
geral sobre os sonhos. Primeiro, quanto à classificação dos so-
nhos, eu não valorizaria tanto a importância, quer prática, quer Encontramos nos sonhos, por exemplo, complicadas seqüências
teórica, dessa questão ... Parece-me que os temas típicos nos so- de ações, do tipo: reconciliação com o animal depois que o sonhador
nhos são de importância bem maior, desde que permitam uma ou sonhadora rebaixa-se ao nível do animal; submissão de um animal

228 229
selvagem a uma mulher desconhecida; um animal mostra-se indes- A .0 hos ue faz suas com ar ações à base dos mi-
trutível apesar das repetidas tentativas de matá-lo; um animal prova- toloÚmas' e não à base da freqüência dose ementos - tem uma
se incapaz de causar dano, contrariamente às expectativas do so- :71ltilidade prática imediata. Um conhecimento suficiente ~o ~jtQ .de
nhador. Estes são apenas alguns dos muitos exemplos que tentamos . gue os mitologemas são os fios dinâmicos, dará ao analIsta indícios
descrever. Existem também temas melhor conhecidos, como o animal QrogDÓstll;os Pode ajudar o analista a acompanhar os padrões de
falante, ou o animal que se transforma em uma pessoa ou o animal ação que têm Ju&ar Da mente inconsciente do analisando. O que pode
com cores ou sinais inusitados - mas não é necessário que nos orientar melhor a atitude de quem sonha no sentido de desempenhar
ocupemos aqui desses temas tão conhecidos dos contos de fadas e das seu papel de acordo com a expectativa que seu drama "interior" man-
pesquisas folclóricas. tém de um padrão fundamental, seu. Por exemplo, o elemento
É óbvio que a análise de sonhos com animais a partir de seus "touro" e as normas estatísticas sobre o "elemento touro'; no sonho
elementos - apenas as imagens dos animais - não captaria os pouco dizem ao analista. No entanto, são necessárias a~itu~es e com-
processos que estão se desenrolando nos sonhos. Nosso trabalho prin- portamentos conscientes diferentes para uma pessoa cUJOmitologema
cipal tem sido a elaboração de descrições conceituais desses processos. implique no sacrificio do touro em combate, ou em comer o tou~o,
A linguagem conceitual, como argumentou Bergson, tende a provocar imolar o touro ritualmente, fugir dele, montá-lo ou aprender sua lin-
uma distorção das atividades ou processos, transformando-os em guagem.
modelos estáticos do intelecto. Isto é particularmente verdadeiro no
O trabalho da pesquisa de sonhos fica sendo isolar esses motivos,
que se refere às importantes mas delicadas expressões de sentimentos e
compará-los entre i diferentes sonhadores em diferentes análises, ou
atitudes entre homem e animal que ocorrem nos sonhos. Felizmente,
entre os sonhos do mesmo sonhador durante um certo espaço de tem-
podemos nos guiar pelas indicações dadas por Jung, Frazer, Kerényi,
po, investigando os motivos para verificar se existe uma ordem se-
Neumann, Campbell, Eliade e por todos aqueles que têm tentado for-
qüencial ou talvez um processo de desenvolvimento (de acordo com
mular como mitologemas os episódios dramáticos comparáveis entre
padrões de mudança qualitativa), relacionando-os com idade do
si, seja nos sonhos, nas artes, nos rituais, na religião, na fantasia - ou
na psicopatologia. sonhador, sexo, nível de cultura psicológica, sintomatologia e assim
por diante.
Os trabalhos de von Franz e von Beit (34) sobre contos de fadas, e
Nosso método consiste assim em apreender fenomenologicamente.
de Propp (35) sobre contos folclóricos utilizam-se do mesmo método.
a seqüência de ação e conceituá-la como um mitologema. Evito usar o
Algo semelhante é a antropologia estruturalista de Lévi-Strauss e a
termo padrão arquetípico antes que os temas sejam amplificados para
religião comparada de Eliade e sua escola. Nestes diferentes campos, o
. além do contexto onírico onde se revelaram. É claro que o próprio
método pretende dar conta de seqüências de ação. Procura-se chegar
reconhecimento dessas seqüências como mitologemas implica no fato
ao significado do material pondo-se a descoberto os padrões fun-
de estarmos procurando por elas nos sonhos e portanto considerando
cionais ou estruturais, os motivos típicos. Esses motivos nodem ser
o sonho em termos de padrões arquetípicos.
considerados como a linguagem primordial da mente inconsciente,
determinando não apenas os sonhos, mas também os padrões de com- _ Essa abordagem pode também' ser útil quando se tenta fazer a
portamento da vontade consciente. Mark Blum notou isso e sugere descri ão da ener ética dos sonhos. Essa questão tem ocupado alguns
que o mesmo método possa talvez ser aplicável ao estudo da história, de nós e pesquisa parapsico ógica. Aí a questão tem sido colocad~
na medida em que os mitologemas atuam nas biografias de perso- assim: como'u ar a artir do conteÍído onírico manifesto a dire ão
nalidades históricas. A implicação disto é que as crises históricas da ener ia e as mudanças no otencial, do consciente para o incons-
devam ser encaradas também a partir da psicologia do inconsciente. +Wl<W&..I<..l'.Al-=~O?.!'a.
Entender um mitologema que aparece em um sonho que se entenda al- Se tomamos o sonho como um drama, temos então um camgo de _
go mais além do processo terapêutico. O mitologema.diz algum~ COis~ ~à, ou como diriam os psicólogos da Gestalt,um campo de forças.
também a respeito do nível cultural e histórico daquele que sonha. A fim de descrever a tensão existente nesse campo e a direcão do fluxQ
um metodo que contem implicações para a sociologia, sugerindo uma energetIco, devemos exa . .0 . . ."
ponte entre as duas disciplinas. (Comparem-se os estudos psicológicos oquea a eri e/ia, os ontos de mt r ) e deJiru:rac.àQ,.
de Jung sobre Wotan e sobre os discos voadores: [CW 10] como mi- Lvsis. Mais uma vez, essas coisas não podem ser esquernatizadas
tologemas subjacentes a eventos sócio-históricos). 'adequadamente se usarmos os elementos oníricos simples, como fogo,

230
231
explosão ou movimento súbito; isto será mais provavelmente con- NOTAS
seguido se descobrirmos os mitologemas nos sonhos.Jsto possibilita 1. G. V. Ramsey, Studies of Dreaming, Psychol. BulI. 50: 432-455,1953.
--puma compreensão do que realmente t' . t mbém~ 2. W. v. Siebenthal, Die Wissenschaft von Traum, Berlin, (Springer), 1953.
_ da direcão e da intensidade da energia envolvida.
3. C. A. Meier, Zeitgemasse Probleme der Traumjorschung, Kultur - und Staatswis-
A investigação da tensão onirica pode beneficiar-se dos estudos senschaftliche Schriften, E. T. H., Zurique, 75,1950.
dos Movimentos Rápidos dos Olhos, de acordo com Dement. Ad- 4. C. Fisher,: Introduction to "Preconscious stimulation in dreams, associations, and
mitindo que tensão tem a ver com repressão, então pelo exame da . images" (Estudos clássicos de O. Põtzl, R. Allers e J. Teler), Psychol. Issues
repressão nos testes, de rememoração dos sonhos, podemos chegar a Monograph n? 7, New York (I. U. P.), 1960.
um conhecimento mais preciso da repressão relacionada às tensões 5. W. B. Webb, An overview of sleep as an experimental variable (1940-1959) Seien-
oníricas. ee, 134: 1421-1423, 1%1.
6. L. F. Maury,LeSommeiletlesRéves, Paris, 1878.
Além disso., ainyestigacão do sonho pode conduzir também·a
7. M. Vold, Expériences sur les réves et en particulier sur ceux ~'?rigine musculaire et
correIa ões úteis com a forma ão dos sintomas sicossomáticos. Será optique, Rev. de I'hypnotisme et de Ia ps~ehol, .Jan., 18?6; Einige Experimente uber
que as tensões psicológicas extremas refletidas nos mitologemas dos Gesichstsbilderim Traum, 3. o congresso mt. PSIC.,Munique, 1897.
sonhos manifestam-se de alguma forma nos distúrbios fisiológicos 8. G. T. Ladd, Contribution to the psychology of visual dreams, Mind, 2: 299-304,
funcionais? - é uma pergunta que, se formulada, poderia nos levar a .1892.
maiores evidências de um paralelismo psicofisico. Se a resposta for o 9. M. W. Calkins, Statistcs of dreams, Am. J. Psychol., 5: 311-343, 1893.
contrário - quanto maior a tensão onírica menor o número de sin-
10. N. Vasehide, Les recherches expérimentales sur les réves: De Ia continuité des rév~
tomas fisicos - então as evidências seriam de inversão ou conversão pendant le sommeil, C. R. Acad. d. Sei., CXXIX: 183-186; Les recherches expe-
psicofísica. rimentales sur les réves: Les Méthodes, Rev. psychiat. et psychol. expér., 190~;
Recherches expérimentales sur les réves: Du rapport de Iaprofondeur du sommeil
avec Ianature des réves, C. R. Acad. d. Sei., CXXXVIl.
11. J. Claviêre, La rapiditédelapenséedans leréve, Rev. Phill., 43: 507-509, ~97.
Em resumo, achamos que o abandono do modelo freudiano de 12. A. Pilcz, Über eine gewisse Gesetzmassigkeit in den Trâumen, Wien. klin.
pensamento, e mais a introdução de novas técnicas de "captar" Rudseh 12: 505-507,1898.
sonhos, leva à necessidade de novos métodos na ordenação de fe- 13. S. De Sanctis, An experimental investigation of dreaming. Psyehol. Rev., 9: 254-
nômenos oníricos. Um método que se baseie nos elementos do sonho, 282,1902.
ou até mesmo nas imagens oníricas, é limitado. É preciso também um 14. A. Jarisch, Die Traume der Blinden, Organ der Taubstummen-und Blindenanstal-
método compreensivo para abarcar os processos oníricos. Este mé- ten in Deutsehland., dez., 1870.
todo requer novas formulações que não podem ser conceituadas com 15. J. Jastrow, Dreams of the blind. New Princeton Rev., 5: 18-34, 1888.
facilidade porque representam seqüências de ação .. O método pr~-
ferido para a descricão do que ocorre no sonho é o mitolo~emª, ou '16. F. Hitschmann, Uber das Traumleben der Blinden, Z. Psychol. Physiol. Sinnesor-
gane, 7:388-393,1894.
episódio arauetípicp. Estas seqüências de ação podem ser usadas tam-
bémpara o estudo da ene[~éticª do sonho 17. C. S. H ali, What people dream about, Am. Sci., MaL, 1951; The Meaning of
Dreams, New York (Harper), 1953.
Por fim, o problema clássico da pesquisa de sonhos, apresentado 18. G. Junger, Der Traumrhytmus; Ergebnisse einer statistischen Untersuchung, Scw.
com bastante clareza por Siebenthal (op. cit.), isto é, a oposição entre Z. f. Psychol. u. ihre Anwend., 14: 297-308, 1955.
Traumdeutung e Traumorschung, entre Geisteswissenschaft e Natur- 19. M. F. de Martino, Dreams and Personality Dynamics, Springfield, Illinois
wissenschaft ; entre ver tehen e erklãren pode ser transposta por este (Thomas),1959.
método. Podem-se abs rair unidades primárias dos sonhos, classificá- 20. N. Kleitman, Patterns of dreaming, Sei. Am. Nov. 1960.
Ias e compará-Ias. Ma a unidade primária não é um elemento está- 21. W.Dement, Theeffectofdreamdeprivation, Science, 131: 1705-1707,1960.
tico. É mais uma seqü ncia de ação mitológica, que sempre tem sig-
22. T. X. Barber, M. Ullman e W. Dement, Correspondence on dream deprivation,
nificado. O método d comparação destes padrões dinâmicos pri- . Science, 132: 1416-1422, 1960.
mários e sua tradução em nossas vidas psicológicas são temas para
23. N. Malcolm, Dreaming, Londres (Kegan Paul), 1959.
novos estudos.
233
232
24. D. R. Hawkins et ai., Basal skin resistance during sleep and "dreaming", Scien-
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Trabalho apresentado em tradução alemã de Hil-


de Binswanger, à Swiss Society for Analytical
Psychology, Berna, verão de 1961, e publicado
em Traum und Symbol (ed. C. A. Meier), Zu-
rique: Rascher, 1963. ,
Uma bibliografia de 195 títulos, relacionando
..0
trabalhos em pesquisas de sonhos durante os anos
de 1956-63, não foi incluída aqui. Gostaria de
agradecer a Hilde Binswanger, Eleanor Mattern e
colaboradores na pesquisa de imagens de animais
em sonhos, pelas suas contribuições ao presente
trabalho.

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