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escuta 2ª EDIÇÃO
...
. ,1-ii.
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A METAPSICOL OGIA DO CUI0
Considerações preliminares
A recepção ao infa
nte , à criança e ao
adoles
no plano da cuceltuntrae
O ingresso de wn recé
m -nascido na vida e
mente hu mano é mar no mundo pro .
cado por uma compl
mento s que estabelece exa trama de aconPr t .
ta-
m as condições e as
e, em decorrência, do formas de sua recepecà1-
seu vir-a-ser humano.
ciedade e cada época Cada cultura, cada çso~
se caracterizam por
pecíficos, mas nunc seus procedimentos es
a faltam algumas di -
univer sais . E embora mensões que parecem
no começo da vida ta
muito evidentes, eles is acontecimentos sejam
se repetem em outros
indo , na verdade, bem pontos de passagem ,
além da adolescência
Há, por exemplo, proc .
edimentos ritualizados
retiram o infante das de 'salvação' que
trevas do não-ser, da
ra, para colocá-lo entr an imalidade e da loucu-
e os vivos e humanos
sões, por exemplo , fa . Batizados e circunci-
zem parte deste arse
outros rituais de pass nal. Ao longo da vida
agem po dem ser acio ,
o sujeito entre se us pa nados para reposiciona
res e semel hantes, so r
baixo do mesmo céu bre o mesmo solo e de
(ou dos mesmos deus -
Comunhão, entre cató es), como a Primeira
licos , e os Bar e Bat M
rimônias como festas itzvah entre judeus. Ce-
de formatura, aniversá
tencem à mesma rios e casamentos per-
fa m íl ia dos d is po si
reposionamento no m ti vo s de recepção
undo. Assim ocorrem e
grações do indivíduo as integrações e reinte-
nos dois planos religio
de (solidariedade com so s: o da horizontalida-
os semelhantes) e o da
e obediência ao sagrad verticalidade (adoração
o ou aos mais elevad
estes procedimentos os valores). Em todos
e rituais se dá uma se
sujeito das trevas, da paração - separa-se 0
natureza , da ignorânc
dície e do pecado , ou ia, da loucura, da imun
da família de origem -
que se possa dar uma , por exemplo - para
nova ligação.
Outros procedimentos
. - frequentemente in
teno res - colocam-se no terligados aos an-
campo do que hoje em · amos
como tratam ento. Atu dia denomm
almente , a ciência e
comando, por exempl as técnicas assumem .0
d'1 o, na pu er icultura, na pediatria e
spos1t· 1v
·
os de cura e de estabe nos demat~
de . Mas quando o es le cim ento e restabelecimento da sau·
pírito científico não er .
a dominante ou 0nde ain
·
A metapsicologia do cuidado 133
. (dietas) ·
- , h'ig·ie"nicos · es,
( regim
. é., os .procedimentos ,alimentares
da não .
hábitos de lim peza ea
. e exerc1c1os ft s1cos) e terape"ut·icos rc:mou sao
~
construídos e ac10nados
. em outras
. ·
bases , frequentein ente re 1·1g1osas.
Contudo, um mfante, uma criança ou um ado lescente (ressalvando-
-se que estas categorias são ocidentais e modernas, não universais,
mas que as mudanças de idade ao longo da vida nunca puderam ser
ignoradas) sempre foram objetos de prescr ições e interdições vo l-
tadas para assegurar ou prom over a sua integridade física.e mental
e seu ingresso e participação na comunidade dos homens. Também
neste âmbito, são efetuadas separações e ligações: o bom , o conve-
niente, o desejável e o salutar não podem se instalar se os seus ini-
migos não forem identificados e combatidos.
Finalmente, em um plano cm que já não dominam nem os ri-
tuai s, nem as prescrições e in terdi ções laicas muito codificadas e
quase obrigatórias, encontramos um conjunto de procedimentos de
puro cuidado. É claro que nos dois planos anteriormente conside-
rados já há práticas de cuidados sendo exercitadas: cuida-se da alma
e cuida-se do corpo. No entanto, mesmo quando a recepção de or-
dem religiosa domina, ou quando a dominância passa a ser a do tra-
tamento. há uma infinidade de outras ações de cuidado que nem ç-1
visam à salvação das almas nem ao bem-estar da unidade sornato-
psíquica do indivíduo. Chamaremos de ética a esta dimensão da di s-
posição do mundo hum ano em receber seus novos membros~ nela
as operações de separação e ligação - corte e costur~ -, tão d~-
cisivas no faze r se ntido como vis to no capítu lo anterior, se mani-
fe stam da forma tão oL; mais cristalina~ posto que menos rígida,
como se verá adiante. Tal dimensão inclui. naturalmente, 0 q~e cabe
,.
. das praticas :i ,- · mas não se reduz a isso, ao
de ,·ec ucaçao ,
na rubrica
menos no sentido restrito do termo. Experiências que não cos_tum:-
rnos entender como ai vo de uma ·educação' também sã.o rn~tivo t e
. . . prazer ao d1 vert1rnen o,
cuidados. corno as que dizem respeito ao '
às brincadei ras e entrete nim entos. por exemplo. /\
Luís Cláudio Figueiredo
134
omo outro e consigo - como forma do Per . .
o cuidado - e facilitar que se crie / forme um sentido h ni1t1r Ou
urnano,
Reconhecer
Interpelar e reclamar
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ado e a passagem par a· a {P, ··Sf>O· l1~d t)Jii1.J, 1 .t I t'Oê '
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O cuid
144 Luls Cláudio Figueiredo
Exercício e transmissão
cst,í nn origem dt:1 ·pcrver sflo do cuidado· . Nno são poucos. infoli1.-
,ncntc. os excm plos tirados das artes. dn li Lcrntura e dn vida de pu•
drt!sf profosso rc s. m édicos. enferm eiros. pai s. nulcs e irn, rt o s que
fazem da experi ênci a de cuidar uma oportun idade perfeita pnru o
controk e para o prazer perversos.
Tanto quanto no coso dos agentes da reparação moníHca, no
uso obsessivo das pnítkas de cuidndo s. a nltcrida de do sujeito é ig-
norada ou destruído. N o melhor dos casos. cria-se a ombi valência .
no pior, a cumpli cidade e. nas situações mais extrema s. dá-se um
assassinato de alma com a conivên cia m asoqui sta do morto. Ali ás,
é necessá rio ressa ltar: ass im como o bom cuidado r produ z sujeitos
capazes de cuidar e se cuidar. os cuidado res m aníacos ou sád icos
geram sujeitos ( fi I hos. ai unos. subord i nndos etc.) extremamente pro-
pensos a manter- se na depend ência dos se us cuidado s e maus-tr a-
tos. repetind o es te padrão pela vida afora. No que pode parecer um
paradoxo, tais sujeitos dependent es de cuidado s cumpre m. no pl a-
no inconsc iente, o papel de cuidarem de se us cuidado res, que não
poderiam viver se m eles. Psicot iznr. por exem plo, pode ser uma for-
111 ~1 doente de cuidar dos pai s. dando-1 hes sentido e razão ele ser ( cf.
Searles. I 979).
Nova men te , cabe recordar. será a presenç a em re se rv a do
cujdador o m elhor antídoto contra a mania e o sadismo di sfarçad o
dos agentes de cuidado.
Cuidado e sublimação
dar façam parte das vias sub'lim atórias que nem se confundem com
as da reparação maníac a ou obsessi va, nem com as da erotizaçã.o
das relações de poder e proveito ( fala-se em ·erotiza ção· destas re-
Iaç"oes quando elas se transfo rmam em ·
. uma f?nte ·
É de ~razer direto).
~ do pra-::.er do brincar e não do prazer sexualiz ado stncto sensu que
;~ .~ata, ou seja~ de uma transfo rmação sublima da das fantasia s eró-
C-as e agressivas mais primitiv as (cf Loewal d, 1988). Quando estas
Luls Cláudio Figueiredo
148
s partidos
Ias promessas de englobamento absoluto proferidas pelo
totalitários e pelos líderes religiosos.
es-
Em contrapartida, as irrupções do não sentido se dão na
o, a in-
teira desta forma de implicação exagerada que é a ex-citaçã
reserva.
terpelação e a reclamação traumatizantes, e no exagero da
essen-
Se as chamadas à vida, às falas e à ordem são ingredientes
nto das
ciais dos cuidados, o exagero destas funções , em detrime
etividades
outras duas funções da presença impJicada, produz subj
e, a nossa
cronicamente traumatizadas e defendidas. De outra part
te em dis-
tão cara presença reservada pode se con verter facilmen
incapa-
tância afetiva e indiferença. É o caso , por exemplo, de pais
questõ:s
zes de cuidar por estarem , eles mesmos , às voltas com
cruciais de sua sobrevivência fisica e psíquica, como no"com caso da mae
• do por Green: com
.un1.da, ana11sa . o , . plexo da
profiundamente depr
c,.,os do to-
mãe morta" (Green 1983). Os fenômenos sociais e pohtt
talitarismo, acima ~ontemplados, talvez tenham eStª funçao defen-
. . 'fi bem como pode ter a
s1 va contra o trauma e contra a md1 eren ça,
. . rbado que se encontra
mesma função subjetiva o narc1s1smo exac e .
n taçã o evid ente no am-
eSía mescla de competitividade e repr esen '
. . ta neo l1'b era1.
biente narc1s1s .d d as defesas pa- ~ ,
No que diz respeito aos agen tes dos c~t ~ ocso, m os cuidados ~•J·; t-• ••. ,), ",, .'
to}· · . ~ · pat1ve1s vivamos uma ·" .
ogicas contra o não sent zdo sao mco m --r
1 -:_::, _)
exercid os de forma equih'b rada e espontânea. ia vez tos e djsp osto s a
.
crise de cuidadores: menos sujeitos sentem-se ap
Lu ís Cláudio Figueiredo
150
Palavras finais
. eses
Mas 1ninha. suspeita é a de que por trás de todos t e1emen-
tas de nossa reahdade (a cultura hospitalar e médica e as atribula-
ções cotidianas) jaz u1na outra realidade bem diferente. Estamos
pouco preparados para cuidar, acompanhar os doentes, receber os
moribundos em seus últimos passos, estudar c01n os filhos , escu-
tar os amigos etc. Nos sa capacidade de prestar atenção uns nos
outros , por exemplo, parece drasticainente reduzida.
Recuperar esta capacidade nos parece uma tarefa urgente e
preciosa, tanto para os agentes de cuidados - entre os quajs o psi-
canalista - quanto para todos os humanos. Cremos que seja a única
fonna de dar à vida que levamos e ao mundo em que vivemos sen-
tido e valor. Mas quanto a isso, se a psicanálise e os psicanalistas
podem nos ajudar no diagnóstico e na indicação dos rumos do 'tra-
tamento', infelizmente não poderão enfrentar sozinhos a magnitude
da tarefa.