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Luís Cláudio Figueiredo

AS DIVERSAS FACES DO CUIDAR


novos ensaios de psicanálise contemporânea

r

escuta 2ª EDIÇÃO

...
. ,1-ii.
/,0 0
A METAPSICOL OGIA DO CUI0

Considerações preliminares

e~ de cu ida r ÍJ/ em pane dds (1brig,h;úc:-. ~ l.irc 1:,c: t;.)-


A1i vi dad
as Jc tod o') o~ rro fr'\..,ion aií i du:-. ,..fie.,~ (1 ..1 "m,d~ i..\ d~i 1.:dt1L'fl•
pccífic
co mo . em ge ral , do qu e n<b c<1be " tndos 11~ 1 co,,di\·do d1..·
ção . bem -
seres humanos v ivendo cm ~oc
ied ade. Os saberes L: prátírn s e.la p\i
no s ofe rec er pre cio sos elemenlu.:-i parn um a com -
canálise po dem
rigoro sa do qu e est á en vo lvi do no ~ cuidado~ , propiciando
preensão
mu laç ão do qu e po de rá, tal ve z, ser den ominad o como uma
a for o-
a em uma interpretação mctap ~ic
·teoria gera] do cuidar ass entad
1

identificar seus mecanismo\ e Ji-


lógica de tais processo s. capaz de
fun da s. Em co ntr ap art ida . esp era-se que tal concepção
nâmicas pro
a em be ne fic io da psi can áli se, estabelecendo um contexto gl:r<il
revert
apêutica, sem que com isso pre -
para o exercícjo de sua função ter
tenda-se ignorar O que há de sin
gular na prática ps ican alí tica. O
a se endereçar a todo\ <"' -'~ún-
presente texto foi escrito de fonna 1

ad ore s - pro fi ss ion ais ou não . co rn o J o c~bo (k ~J.ti ~ l


te~ cui d
mães - mas também a fazer
um sentido especial para os p'.')tt.:an.1-
eu tas . Pa ra red igi -lo , rec orr eu- se a toda ~1 pskanaf i,t.·.
lístas e t~rap pr·o c·• der· ao atn n e~,~rn 1<:nh)
· ·
· cessáno , mai s que nunc.: •
· ~ f'01· ne ~a "' .
('u\·u SCJa
rad igm as de qu e vie mo s faland o desde n I ntrtx lu\'. ~ll, .
de pa
132
Luís Cláudio Figuei
redo

A recepção ao infa
nte , à criança e ao
adoles
no plano da cuceltuntrae
O ingresso de wn recé
m -nascido na vida e
mente hu mano é mar no mundo pro .
cado por uma compl
mento s que estabelece exa trama de aconPr t .
ta-
m as condições e as
e, em decorrência, do formas de sua recepecà1-
seu vir-a-ser humano.
ciedade e cada época Cada cultura, cada çso~
se caracterizam por
pecíficos, mas nunc seus procedimentos es
a faltam algumas di -
univer sais . E embora mensões que parecem
no começo da vida ta
muito evidentes, eles is acontecimentos sejam
se repetem em outros
indo , na verdade, bem pontos de passagem ,
além da adolescência
Há, por exemplo, proc .
edimentos ritualizados
retiram o infante das de 'salvação' que
trevas do não-ser, da
ra, para colocá-lo entr an imalidade e da loucu-
e os vivos e humanos
sões, por exemplo , fa . Batizados e circunci-
zem parte deste arse
outros rituais de pass nal. Ao longo da vida
agem po dem ser acio ,
o sujeito entre se us pa nados para reposiciona
res e semel hantes, so r
baixo do mesmo céu bre o mesmo solo e de
(ou dos mesmos deus -
Comunhão, entre cató es), como a Primeira
licos , e os Bar e Bat M
rimônias como festas itzvah entre judeus. Ce-
de formatura, aniversá
tencem à mesma rios e casamentos per-
fa m íl ia dos d is po si
reposionamento no m ti vo s de recepção
undo. Assim ocorrem e
grações do indivíduo as integrações e reinte-
nos dois planos religio
de (solidariedade com so s: o da horizontalida-
os semelhantes) e o da
e obediência ao sagrad verticalidade (adoração
o ou aos mais elevad
estes procedimentos os valores). Em todos
e rituais se dá uma se
sujeito das trevas, da paração - separa-se 0
natureza , da ignorânc
dície e do pecado , ou ia, da loucura, da imun
da família de origem -
que se possa dar uma , por exemplo - para
nova ligação.
Outros procedimentos
. - frequentemente in
teno res - colocam-se no terligados aos an-
campo do que hoje em · amos
como tratam ento. Atu dia denomm
almente , a ciência e
comando, por exempl as técnicas assumem .0
d'1 o, na pu er icultura, na pediatria e
spos1t· 1v
·
os de cura e de estabe nos demat~
de . Mas quando o es le cim ento e restabelecimento da sau·
pírito científico não er .
a dominante ou 0nde ain
·
A metapsicologia do cuidado 133

. (dietas) ·
- , h'ig·ie"nicos · es,
( regim
. é., os .procedimentos ,alimentares
da não .
hábitos de lim peza ea
. e exerc1c1os ft s1cos) e terape"ut·icos rc:mou sao
~
construídos e ac10nados
. em outras
. ·
bases , frequentein ente re 1·1g1osas.
Contudo, um mfante, uma criança ou um ado lescente (ressalvando-
-se que estas categorias são ocidentais e modernas, não universais,
mas que as mudanças de idade ao longo da vida nunca puderam ser
ignoradas) sempre foram objetos de prescr ições e interdições vo l-
tadas para assegurar ou prom over a sua integridade física.e mental
e seu ingresso e participação na comunidade dos homens. Também
neste âmbito, são efetuadas separações e ligações: o bom , o conve-
niente, o desejável e o salutar não podem se instalar se os seus ini-
migos não forem identificados e combatidos.
Finalmente, em um plano cm que já não dominam nem os ri-
tuai s, nem as prescrições e in terdi ções laicas muito codificadas e
quase obrigatórias, encontramos um conjunto de procedimentos de
puro cuidado. É claro que nos dois planos anteriormente conside-
rados já há práticas de cuidados sendo exercitadas: cuida-se da alma
e cuida-se do corpo. No entanto, mesmo quando a recepção de or-
dem religiosa domina, ou quando a dominância passa a ser a do tra-
tamento. há uma infinidade de outras ações de cuidado que nem ç-1
visam à salvação das almas nem ao bem-estar da unidade sornato-
psíquica do indivíduo. Chamaremos de ética a esta dimensão da di s-
posição do mundo hum ano em receber seus novos membros~ nela
as operações de separação e ligação - corte e costur~ -, tão d~-
cisivas no faze r se ntido como vis to no capítu lo anterior, se mani-
fe stam da forma tão oL; mais cristalina~ posto que menos rígida,
como se verá adiante. Tal dimensão inclui. naturalmente, 0 q~e cabe
,.
. das praticas :i ,- · mas não se reduz a isso, ao
de ,·ec ucaçao ,
na rubrica
menos no sentido restrito do termo. Experiências que não cos_tum:-
rnos entender como ai vo de uma ·educação' também sã.o rn~tivo t e
. . . prazer ao d1 vert1rnen o,
cuidados. corno as que dizem respeito ao '
às brincadei ras e entrete nim entos. por exemplo. /\
Luís Cláudio Figueiredo
134
omo outro e consigo - como forma do Per . .
o cuidado - e facilitar que se crie / forme um sentido h ni1t1r Ou
urnano,

s motivações e razões alegadas. sejam de í


Mesmo qu e a- . · ndol ,
. . ·terapêutica', acred 1tamos que o sentido mais. ro,un~
p r (.!
rel12:10sa ou ~ d . . -
do de todas as práticas de recepção e o ~ pr~p1 c1ar para o indiví-
i bilida de de · fa ze r se nti d o de sua vid a e das
duo uma Poss
vicisS"itudes de sua existência ao longo do ~empo, do nascimento à
mom. Este ·1'.'.azer
li
sentido' se dá e é requerido em oposiç·ão aos[ ~
cessas traumáticos da passional idade primitiva e extrema que uma
vida. mesmo a mais simples , comum e pacífica, comporta. É O que
viemos caracterizando como ·experiência da loucura precoce'. Fa-
zer senti1io implica eslabelecer li ga\>ões, dar forma, sequência e in-
teligibilidade aos acontecimentos que ao longo de uma vida evocam
e provocam o retorno às experiê nc ias da loucura e da turbulência
emocional. Em outras palavras: fazer sentido equivale a constituir
para o sujeito uma experiência integrada, uma experiência de inte-
X
gração. Tais experiê ncias não se constit uem se não puderem ser
primeiramente exercidas, ensinadas e faci litadas pelos cuidados de
que somos alvo.
Sugere-se, enfim, que consideremos o 'fae;er sentido" em opo-
sição às falhas, excessos e faltas traumáticas com que a vida ine-
vitavelmente nos desafia. A existência humana transcorre longe da
perfeição, da estabilidade e da permanência. Nem há garantias, nem
correspondência preestabelecida entre nossos impulsos e desejos, de
um lado, e seus objetos e condições de satisfação, de outro, nem
entr~ ~quelas forças poderosas e insistentes e nossas capacidades ~e
domimo e autodomínio. O homem é um animal doente, como dts·
se O _filósofo, e as desproporções fazem parte essencial de nossa
, .
condição e da nos sa h.istona. õ _ ou
. A experiência das desproporç es
desencaixe _ é , . , nossas
•d uma ameaça continua de ' sem-sentido em
VI as.

1. ~sta apresentação se b . . . as ques-


15
toes debatidas f ase,a em dois textos anteriores nos qua 3 eo
200
capítulo Preced oram aprofundadas: Coelho Júnior e Figueiredo, ,
ente nesta coletânea .
A 111(.Hap o,coloqin do c,,.,frJ do

ExigC .. !'- C. nn indi\ idlH) e ,b lolct n id ,t•·


" . . ' 1 '- "· urn:1CPUfl l) U,l .~1,'", l·
111 d~ de •fa.1<.:·r ~cnt1do (cort e e ~n, tuttt mn 0,1tl
\ i ,J .

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, If t'tH) cn1110 ut na i
1,~ i~ssítura d.e um ,\ nln humano par,•
u.. t a c xí , l<.~tl 1, .
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~efrvnm cnte. em ··uma hi stúria feita ck \ Otll ,, •le ' tir,,
l. 1 · li , .
.., . . . · "' " ' \ \. n 1 «l e1t l pv r•
um idiota e que nao s1gmfica nada". como di-.,,~ ~hJ ~'->p<.·,src. f t,
11
retomado pelo grande romancista amer icano \\ 'i 11iam f· tlU l"-ncr. tt r-
1
nar a existência algo distinto desta eloquente dc,rriçno 0 J ,u c..• I:, cticu
1
d0s cu;dados.

As dime nsõe s do cu idado com o outro e as figuras da alten


dade
(mod os do agente cuidador se apresentar como
presença 1mp/lcacia )

O agen te de cuidados - o~ pais. o medico. a en knnl 'ira . o


professor, o amigo etc . - em parte exerc e sua função ~orno prl·-
se nça implicada. ou seja. com prometido e atuanll: . O sujeito impli -
cado é o que 'faz coi sas··. Esta afirmação pode paret cr óhvi a poi s
estamos acostumados a reconhecer um agente d~ cuidados pelo St!u
fazer. No entanto. como veremos adiante, um a forma de<.:i..;iva do
cuidar não envolve o fazer , colocando-se o agente cuidador como
prese nça em reserva. Começaremos, porém , contemplando alguma~ ')
modalidades da presença implicada do cuidador. Cada um a de~tas
modalidades corresponde a uma figura da alteridade , um modo do
·outro' se apresentar (Coelho Junior e Figueiredo, 2003) corno agen~
te de cuidados.

Suste ntar e conte r

Comecemos com a •intersubjetividade tranSubjcti\ a·, O ·nu -


tro~ 4uc ar.;sim se apresenta é um outro englobante. 0 t1mhí..•llft'
t ,f,.
tial f" •
- ' e 1s1co) • 1·l 1 ' Õt'~ dt· c1~ ·olhi T .
,11
ou um objeto que desempcn,rn L.~. . ~ ·. .
t - .1
. ,
ho'·>/Peuw
·' ., a~usu
/har, suslentur. No 1.uni·tt:_, e. 11 'q ltll\.: JO d:t,
·· - 1da. ck fh~k
Luís Cláudio Figueiredo
136

nem ser reconhecido como um outro diferente de mim, mas ao lon r


· ' · b · d go
de toda a nossa existência so vivemos em quan o podemos con-
tar com algo ou alguém capaz de exercer ,estas tar~fas transubjeti-
vas, mesmo que já percebamos que ha uma diferença e uma
separação entre nós e este outro.
Podemos identificar duas dimensões destas funções primor-
diais: a função de holding (sustentação; Winnicott, 1960) que nos
garante a continuidade, e a função de containing (continência; w.
Bion, 1970) que nos proporciona as experiências de transformação
(Cf. Ogden, 2004 ).
Não existimos, não nos sentimos existir, não conquistamos um
senso de realidade se alguma continuidade não estiver sendo ofere-
cida e experimentada. De início, trata-se da continuidade somato-
psíquica em seu nível mais concreto; ao longo da existência, outras
dimensões de continuidade - envolvendo as referências identitárias
e simbólicas - tornam-se decisivas. Diante dos percalços da vida
- das necessidades e desejos, e das relações com os outros - a
continuidade não está assegurada e precisa ir sendo construída e re-
construída a cada passo, tarefa do agente de cuidados que dá sus-
tentação: ele, para usar uma linguagem coloquial, ' segura a barra'.
Frequentemente, são famílias, grupos e instituições os objetos mais
aptos a oferecer holding ao longo da vida, principalmente quando
o que está em jogo é a continuidade na posição simbólica do sujei-
to no mundo; mas indivíduos isolados podem se tornar agentes de
holding muito eficazes. É o que se espera, por exemplo, de uma mãe
suficientemente boa, embora mesmo ela costume funcionar melhor
se conta com o marido e com a família para lhe dar lastro e supor-
te; ela própria precisa de referências simbólicas para oferecer O seu
abraço ao bebê, um que seja seguro, mas não o esmague. Ne~ta
me?ida, mesmo sendo um indivíduo isolado quem oferece o holding
mais básico e primitivo, este indivíduo - a mãe, por exemplo -
funciona como uma instituição.
Por outro lado, é preciso crescer, expandir-se, se possí~el ,
0
sem rupturas excessivas, mas também sem meras repetições.~
" . que1n nos pode oferecer con d'tç õese vias,
outro quem d,a._cont·menc1a,
para a trans.ço , . un1 ftlnW,
ã p or exemplo, uma obra art1st1ca,
1. i rmaç o.
A metapsicologia do cuidado
137
um bom romance, poesias são ext
, • ' remamente c
nossas angustias, nossos deseios e b' .. apazes de conter
J am içoes noss . .
e nossos medos - muitas vezes ' as curiosidades
. , operando como .r, . .
cientes projetadas para dentro d .1amas1as mcons-
. . o outro ou do objet .
que Melan1e Klem denominou de , ident'fi . .. . ~, no p1 ocesso
, 1 icaçao pr0Jet1va' ( 1946) -
de forma a transforma-los em conteúdos h , . . '
. 1 , · recon ec1ve1s, mterpretá-
ve1s e to erave1s. Por exemplo. as história · t~ · • .
, s m ant1s a1udam a crian-
ça a nomear, entender, aceitar e tolerar mu • ·
11os e1ementos de sua
vida corporal e mental primitiva Esta é a base par
. · a a sua trans1or-

mação e crescimento emocional.
Tal capacidade de transfonnação, como é evidente nas obras
de arte e literárias, corresponde à capacidade de sonhar. Nossas vi-
das podem se enriquecer a partir do contato com estes objetos de
continência, que sonham por nós e nos ensinam a sonhar os con-
teúdos das fantasias inconscientes que, para dentro deles, projeta-
mos. Mas também grupos, jnstituições e indivíduos isolados podem
nos ajudar nestas transformações, ajudando a sonhar, ajudando a dar
forma, colorido, palavra e voz aos estratos mais profundos do psi-
quismo. Estas são formas extraordinariamente importantes do cui-
dar. Quando nos faltam ,_ sofremos com a sobrecarga de experiências
emocionais obscuras e perturbadoras que evocam em nós a ainea-
ça de loucura.
Tanto para a experiência da continuidade qua~to_ par~ a de
transfonnação, a presença implicada do outro transubJet1vo por- e:
tanto, indispensável, segurando, hosped_and?, agasalhando, ahmet~-
tando e 'sonhando' das maneiras mais diversas, desde as mais
concretas até as mais sutis e espirituais.

Reconhecer

. d é a que comparece na inter-


Uma segunda figura da altend a. e . ·t firente a frente exer-
. . . A . há
su b~etiv1dade interpessoal. qui dois suJeI os abilidade especial
uma respons • .
cendo um para o outro - em bora ecer Na .
P sicanált-
. f ,., de reconIrz ·
caiba ao agente cuidador - a unçao t .[.',tinção Winnicott
. . ,. fase a es a i
se, dois autores destacaram-se na en ·
1 '
Luls Cláudio Figueiredo
138

El a po de Re r de sd ob rada em dois níveis· 0


, 19 71) L' Kollut ( 19 78). · 1 do que a segunda depe.n.
'dn ll'StcttHlltlwr e l) dn reflct 1r/ cspc l 1a r, s~ n
nu.
o cs pc lh nm cn t o qu e nã o 111c lua o autêntico tester
dl' chi primcirn : jmagen
rú ef etiv ar a tar ef a de reconhecimento, criando
nhn rn,o pn ck
do se (l M ui tas ve ze s, cuidar é, basic amente~
fo l~t•füins e nlit·nnntes no
tar ak nç âo e re co nh ec er o objeto dos cuidados
~cr c~1pa ,. d~ pres e. se po s.
de próp rio e si ng u lar , dando disso testemunho
, ~1ue ele tem .
lcv nn do de vo lta ao su jeito sua própria imagem
· sfvcl. de passar despercebida,
tão
al id ad e de G ui da do s po
·.,· Es ta mod extremamente noci va
as su a fa lta re ve l a- se
discreta ela pode se r. m autoest ima (d imensões do
da au to im ag e m e da
para a instalação sé rie de problemas psicoJó.
ac ar re ta um a
1t
se (f) . o que. por sua vez, sc reta e aparentemente anó•
m en ta is . Po rq ue é di
gicos e comporta r qu an do fa lta ou falha a
za , a nã o se
dina . pouc o se va lo ri qu e se resume a prestar aten-
st e cu id ar si len cio so
disponibi lidade de fo r pe rtinente. Neste mundo
id a, qu an do e se
ção e responder na med entre os desejos e seus ob
je·
ro po rç õe s pr ol ife ra m
em que as desp pe riê nc ia da m edida, enrai

m ot iv os et c., a ex
tos, os medos e seus do outro , no que tem de
mais
co nh ec im en to pr ec is o
zada em um re agerado.
."C om po rta um po te nc ia l ét ico difíc il de ser ex
próprio

Interpelar e reclamar

ns id er em os es ta fig ur a da alteridade que é a da


Finalmente, co eren-
vi da de 'tr au m át ic a' . No caso , trata-se do 'outro ' dif 0
in tersubjeti nç a e pela incompletude ; é
e se m pr e pe la di fe re
te , marcado desd e, vu lnerável , dotado de w~,
m es m o, de se ja nt
outro sexuado e, ele os exi-
e. Po de pa re ce r es tra nh o incluir este traço entre
inconscient , muitas vezes, aí reside um
~
en te do cu id ad o po is
gidos para o ag ca so da 'confusão de línguas
m en to s, co m o no
fonte de graves sofri o en tant o é a partir daí qu e se
zi (1 93 2) . N
descrita por S. Fere.nc .
.znterpelar, seduzir '(Laplanche , 199
2) ou
pode exercer a função de qu ais o objeto dos cuidados não
rez , 19 92 ), se m as
reclam,ar _(Alva
e.
acede ª vida e à humanidad
A metapsicologia do cuidado
139

o outro cuidador deve ser também uma +1 0nte de questoes


~
· e
enigmas (Laplanche, 1992). Nesta condição, ele introduz (Laplan- A,,
che) ou desperta (?r~en) ª pulsionalidade, um movimento somato-
ps~q~ic~ e um~ ex1gencrn de resposta; apenas como resposta a esta ·
ex1gencta ~lg~~m vem-a-ser. Na verdade, preferimos a noção de que
0 objeto pnmano desperta a pulsionalidade (Green, 1993) à de que
ele a introduz, co~o afi~a Laplanche, pois acreditamos, a partir de
Freud e de Melame Klein, que a pulsionalidade infantil é intrínseca
posto que só se manifeste na relação com objetos. Ambas as noções:
contudo, apontam para a função de interpelar na qual se trata de uma :::r-
fonna de recepção bastante ativa que equivale a uma intimação.
Um modo muito primitivo e aparentemente casual de intimar
ocorre quando damos um nome - ou um apelido - a alguém, isto
é, nomeamos e forçamos o sujeito a responder pelo seu nome, pela
sua pessoa, por sua existência. A isto corresponde a função de ex-
citar, chamar para fora, chamar às falas . Além disso, o outro, que
interpela e reclama, funciona como agente do confronto e do limi-
te fazendo com que o sujeito entre em contato com os fatos da exis-
tência: a morte, a finitude, a alteridade e a lei. Ambas as funções -
chamar à vida chamar às falas e chamar à ordem - são tão ne-
'
cessárias aos processos de constituição psíquica e narcísica quan-
to as funções do acolhimento e do reconhecimento vistas
anteriormente. Esta modalidade de cuidado é, por exemplo, a do
professor que chama o aluno à lousa para resolver um probl:ma, a
do juiz que ouve depoimentos, a do padre que ~u~e confissoes ou
a do médico que solicita ao paciente uma descn~ao de suas~dores
e sintomas, de seus hábitos alimentares etc., ou aindaª da~ª: que
·l
1 conversa com o filho que ainda nem sabe falar. Além do mais, e cla-
ro, ela o interpela e seduz por seus gestos, olhares etc. que, no con-
junto, o mobilizam e equivalem a uma exigência de respoS tª· ~~m
tais• . N t é claro o suJe1to
cuidados um bebê não 'vmga'. es e cas O' '
"' ' d bora venha a ser falante
nao vem-a-ser imediatamente falan
a ·
°- em
h , · plicitamente, ex1g1 o
• ·d como
Partir do que escuta e do que 1 e e, im . · do seja
resposta. Mas ainda antes de aprender a falar, seJa so~r~:sp~sta à
olh d
an o, estendendo os braços etc., ele vem-a-ser
,. ,
com
a (Alvarez) sua
doe e interpelação
· ~ Ih .e: • a mae rec 1am
que a mae . e iaz.
Presença viva e interativa.
140 Lu is Cláudio Figueiredo

Os extravias e excessos nas funções de


CUtda(lo
exageros da írnplicação

de coco~ que é bom ~ a gente enjoa . Os. ex


. Até
. de doce . , ce~so~
da 1mpltcação são bem mais graves do que um mero mal-estar , ,
trico . Quando a intersubjet ividade transubjeti va domina em '~·· g~s-
- ,,.ces-
so. configura- se uma experiênc ia de engolfame nto total itário.,
claustrofób ico. É o cuidado que não dá sossego, s ufoca . Mas tam~
bém o reconhecim ento ilimitado - que \ ai muito além e se desvia
do testemunh o autêntico e veraz - produz uma es pecularidade nar-
d$i ca_em que se instala a dependênc ia diante da atenção e da apro-
vação alheia, um estad o de alienação. Finalmente . e da mane ira mai~
evidente, pode-se gerar uma experiênci a de traumati ~m o crr)nico
quando o o utro, reclamante e interpelado r, o outro-questão. so bressai
demasiada mente. Seja pela impotência a que o s ujeito se \ê red uzi-
" do, seja pelas defesas que de vem ser construídas para continuar vivo.
apesar do traum a, esta forma de cuidado pode ser das mais perni-
ci osas quando atuada em excesso. Ela gera sujeitos com uma
autocrítica arrasadora (u m superego severo e intratável ), ou com
uma compulsão para a adaptação absoluta às demandas do ambiente
(um falso se(f enrijecido e dominante ), incompatív el com a vida e
a espontanei dade. No começo da vida, os excessos nesta função in-
terpeladora serão particularm ente perniciosos e é preciso muita aten-
ção para a questão da ' dosagem ' . N o entanto , sustentamo s que
mesmo nestes momentos em que as funções de acolher e reconhe-
cer são tão decisivas, alguma forma de interpelaçã o deve estar pre-
sente corno modo de despertar e chamar para a vida.
Todos os exageros da presença implicada, contudo. promo-
vem experiência s de loucura precoce e, a partir das defesas que pre-
,., "'- cisam então ser construídas , comportam modos de aprisionamento
>;<~!-.~'"'·,. psíquico, de imobilidad e e de incapacitaç ão. Como voltaremos ª ver
(/ ~~J'.:; - adiante, estas três figuras da alteridade, estas três modal idades d~
he(cr,.;
,._;,' • · cu1"d a d os c· o m s uas res pectivas funçõe s - acolh er, rc oon - cu .1-
q uestionar - preci sam agir em equilíbrio dinâmico para qu~ º" d,
. . . id:1de l
d a d os ef-ct1 vamen te proporc ionem a instalação de uma capac ·. , .0
f:azer sentJ.d.o no .111 d'1v1'd uo. No entanto. mesmo o me Ih or cqu1 l1brl
A metapsicologia do cu idado
14 1
das funções da presença implicada do 'd
. ., 1
te nem sena v1ave se ao cuidador na".' cu1 bador nem
·
se .
na su
fi .
.
sentar-se, ou melhor, de manter-se tamb o cou esse a s b d . 1c1en-
é a e ona de au-
m em presença reservada .

Implicação e reserva: retomand -


0 a questao a parti.r
das funções cuidadoras

. Em um texto ~ublicado há alguns anos (Figueiredo e Coelho


Júmor, 2000), su~en que a condução de um proce sso de psica
náli-
se requer ao analista a capacidade de manter-se, simultaneamen
te.
como presença implicada e pres ença reservada. É óbvia a
insufi~
ciência da pura reserva, entendida como neutralidade, indif
erença
e silêncio, principalmente diante dos pacientes chamados 'difíc
eis',
aqueles que trazem a loucura à flor da pele. No entanto, seja
na aná-
lise, seja na vida, e em qualquer experiência de cuidado, são
inegá-
veis os malefícios da implicação pura - os extravias e exce
ssos
das funções cuidadoras - mesmo quando, e principalmente
quan-
do, são justificados pelas melhores razões humanitárias: salva
r, so-
correr, curar a todo custo! Para que se dê o equilíbrio dinâ
mico
entre os três eixos dos cuidados , e, mais ainda, para que este
equi-
líbrio ocorra de modo espontâneo, é necessário que o agen
te cui-
dador possa mod erar seus fazeres. Essa moderação depe
nde da
capacidade de o agente de cuidados conseguir manter-se em
reserva
e desapegar-se. Nesta condição, ele ' deixa ser' seu 'objeto' e O
_não
cuidar converte-se em uma maneira muito sutil e eficaz de
cwda-
do, como o da mãe que deixa seu filho brincar sossegad_o enqu
an-
to ela se atém a estar presente, ao 1ado, st·1enciosa dedicando-se ,
,
quem sabe, a seus próprios afazeres e interesses. . ,
. , .
Nesta posição, o cmdador exerce ª " . . renú ncia a sua prop na
. d'
, . . d endenc1a Va1e izer. ele .
ompotência e à aceitação da sua prop na ep
, . ,1 cura ' Trata· -se, en fim 1 ,
de
consegue pôr limites à sua prop rta ou ,' · •so
renunciar às fantasias reparadoras mam,ac as· e prect saber cuidar
d .· 'dar pelos ou-
• · deix ar-se cm
o outro , mas também cmdar ~e 51 e ..; m dos mais fundamentais
tros, pois a mutualidade nos cmdados eu ..
• , .
Princ1 . d e transm1t1do.
p1os éticos a ser exercita o ·
142 Luis Cléudio Figueiredo

De saída, é preciso saber deixar-se cuidar pelo 'terceiro ele-


mento· da relação em que se ocupa o lugar de agente de cuidados
como. por exemplo, a mãe do bebê que se deixa cuidar pelo pai
e
pelas avós do recém-nasc ido, e que se deixa orientar pelo méd ico.
pelas amigas etc. Enfim , este cuidador sabe compartilhar e opera
r
em relações complexas de colaboração. Em termos psicanalíticos
pode-se dizer que este sujeito foi capaz de um bom atravessamen-'
to das questões da triangulação edipiana, e pôde renunciar à onipo
-
tência e ao fasc ínio das relaç ões duai s e excl uden tes. tendo
conseguido elaborar a situação edípica original (mas este ponto não
será desenvolvido no presente contexto). Sem prejuízo do que sabe
e pode , e sem renegar o que sabe que sabe e pode, o agente de cui-
dados nem sabe tudo , nem tudo pode. Reconhecer a finitude e o li-
mite deixará o cuidador muito mais sensível aos objetos de seu
cuidado e muito menos propenso a exercer tiranicamente seus cui-
dados, uma hipótese que não pode ser ignorada , como se verá a se-
guir. Este agente de cuidado não fará do cuidar um exercício de
domínio e, assim, os exageros da presença implicada serão mais fa-
cilmente evitados.
Não só o agente dos cuidados melhora a qualidade do que faz
quando compartilha seus fazeres e decisões com outros agentes
cuidadores. Ele ganha muito se descobrir que o objeto de cuidados
em diversos aspectos surpreendentes pode, também ele, exercer
funções cuidadoras diante daquele que, supostamente, monopoliza
tais tarefas. Deixar-se cuidar pelo objeto do cuidado passa a ser, em
si mesmo, uma forma eficaz de cuidar. É preciso que a mãe, por
exemplo, descubra os modos de ser cuidada pelo bebê, o médico
pelo paciente, o professor pelo aluno etc. O psicanalista americano
H · Searles ( 1979) nos apresenta inúmeros exern plos e uma
interpre~
tação te~rica convincente acerca da importância desta reversã_o ~e
expectativas: deixar-se cuidar pelo objeto de cuidados - na JUs~a
;edi ~a ~ sem explora~~º - tem a função de confinnar a potên
::~
.ª. Sigmficação do suJe1to; tanto é uma chamada à ativa respon~·
bt 1idade quanto·
. . uma, con . fi1rma .
ção e um reco nhec imen d
to 0 OLltrº ·
SeJa
.. um bebê um J· ·· d , •1t10 de~
, a uno, um oente um psicótico ou um "e
bthtado. '
A n',IJ ·.
, :-i cto cu j ~ lo

~'°' Hmi h;. .


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·','l~ .,,,h human,v< ,e dl' ..,Jt.._pu~cr J~· ,oil'" r· l fl,n ' IH fie !' \
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rc,er\ nda atnda C\t a por "cr d1to . ( a~~ ao \ 1
a.:;-'-
,..~111 \.., \.ll..:
•, \.... l 1..l,1C .
1 ,)'- 1 ....
1• •
r~ccr ao objeto do '-CU cuidado um e,rJç<,
\ itdl 1.k-,,)f',tr.ud,). -~
.., 3wrndo 10
por i;,ua pre:-,ença e "-ieus fa,~rt>, . E n~,
ít' ~--p . .1~"' \ it.ll. , uc
d cui dado r deixa \j\ rc e\ azio -- ~cndo ~ca 1
LHt...'i.J ltl " t·lln ~mt · .: ~h:
rnnegé-lo contra a pre sença e,,cc~ ~1 \ n de
")~ etl"' ~ r~p r(',l ''HJ " 1.)._,',
-- . que o ~ujei to poderá C'\crcitar "' UJ capJ(11. 1
.L\d~ r1..1r,t ..il u( 1n,tr. ...,,}-
nha r. brin car . pen~ar e. ma i, am rlam ~nt
e . (f!J r (' mu111..l\\ n,1 ...,lu
med ida e ~eg un do 1.,ua'I pos~ihi !idade, .. \ h
..h~ dt tndP t) 1110\ 1nh: o -
to é exatamente o da r(:tirada e"tratégicJ d{)
,.1~enlt' i.:u1d~11.k•r ~k '-t'
man térr1 cm rc~erva parn con \ ocar à ação.
ou "eia. d.ir t'th1.: ju ~t ~tt,
\idad~ criativa a1t1oerPlica <lo ~ujei to lF~Jida
. J{)I)~ ) l ri -1-,t.\ J'-\,1111
um espaço pot enc i 3 I ( ~ 'inn ÍCll lt ) na pr~'
-lt:nça rê"lcrvacJa Lh i 1.'ll id.1d~ ,r
e. neste c~paço . aluc ina r. e toda~ a..., -,ua't Jt:ri
'vai,:õt: ,. L. Pº" "''d 1..·
necessá rio. Da alucinaç ão. do ~onho e da hrim
.aJl.!ir'-1 - tnnnJ-., i.:k-
lllên tare s do f ant asia r incon.;.ciemc ( \tk lanit
? Klt: in) - Jcl:urr\.'.111 lo-
do~ o~ dernais recur~os p:"\iquico~ cria
ti\ o~ a que o -.,uj~iro poJt: ll·r
acesso e de que pode ~e apropriar. O pen
~amento maí, r~c~on,tl t
abstrato tem suas raízes e condiçõe-., de po~
~ibilidade nu ah.icm~~âu.
no ~onho e na brincadeira. Lma IL!n\ ào pn mu 1
l, 1J:!c1 L\-1J~a d ui
nd11 en\ oh l' 11L· nh um fo LeT. ma :, <lile l !-.t' d~ ,r-.>
t;r ~ deixe: -',;:_;i:;;,_,.,.....
u 'r . n que el1ui\ ak à ação n~g ativa
de não impi.:.: +J;P•i. tue
~ievnkça ""'1-é a de ahrir t"Sf' ayo e tlar t;.;mpc~ ,1. , 1 ·1' ------ •
~:-:.,:.
:
!,_,1' r"' ' " d ::,,._..
, vtHL o- :,1.,' ~rn rc:~cn a. parc , 1·t) ::.r1,: 10 da -. i::lnlt.t:)1 t
1 u 1 .., H T <
k~ d(J ;.,uji.:i to.

.
ado e a passagem par a· a {P, ··Sf>O· l1~d t)Jii1.J, 1 .t I t'Oê '
(l ,.!J
O cuid
144 Luls Cláudio Figueiredo

• i"-' mundo e na história humanos, mas ser ele mesmo u


V t( º• 110 , m Par.
tici pante ativo destes processos, mesmo quando lhe faltam conh _
cimentos especializados. O doente não se converte em médico e
, ma)
espera-se que ele conheça algo da sua doença e da 'sua' medicina
para que não adoeça de novo ou poss~ tratar-se m.elhor. Nesta me-
dida. 0 desejável é que as funções cuidadoras seJam introjetadas.
Tudo seria mais simples se elas pudessem ser plenamente codifica-
das, como se dá nos rituais, para serem ensinadas e repetidas. Po-
rém, o campo de cuidados é mais amplo e mais complexo e nele as
ritualizações e os procedimentos especializados nem são exclusivos
nem são o mais importante. Muitas vezes os agentes especializado s
como médicos, professores etc. pensam que suas atividades pode-
riam se ater às normas técnicas de eficácia. Mas não é verdade e 0
equilíbrio dinâmico entre as funções da presença implicada, e suas
relações com a presença reservada, não são ensinados em nenhum
manual. É preciso que haja uma introjeção criativa das funções cui-
dadoras, e isso também não se aprende nem por receita nem por
imitação. É claro que a imitação de bons modelos de cuidados pode
ajudar, bem como aj uda uma compreensão mais teórica do que está
envolvido nas práticas de cuidado. No entanto, para que a introje-
ção seja criativa é necessário que elas se enraízem nas capacidades
do sujeito ativadas pelo outro, pelo agente cuidador. Em especial,
acreditamos que a introjeção das boas experiências e dos bons mo-
delos requer uma forma de cuidados em que se abram espaços e se
dê tempo. Nesta medida, tudo que foi dito acerca da presença re-
servada é da maior importância., pois apenas a moderação das fan-
tasias onipotentes do cuidador - estabelecendo os limites do que
faz e do que pode fazer - lança as bases para que seus fazeres na"'o
se confundam com poder e domín io.
Quando poder e domínio passam a predominar (nos usos pa-
tológicos do cuidar, examinados adiante), dois efeitos ocorrem:ª~
gera-se uma profunda ambivalência no objeto do cuidado que .5
sen te, ao mesmo tempo, muito cuidado e muito descuida . d muito
o, _
trata.d 0 e mmto
· maltratado, · 1·d des au
aprisionado ,· b) suas potencia 1 ª
t , . . . d pe1a
oer~ticas cnat1vas não são acionadas. Este suJ· eito, trava O · •
amb1 1" · • 1
va encia e pela nnpotência, não poderá ser atravessado pe Jas n
A metapsicologla do Cuidado
145
m.,jeçõcs criutivns. Ou h~m rejeitará o~ intr<\· .• . . .
1 1os comn 4ucm r...:Jc . .
utn c01 po c.:st1tinho e potcnc1almcnte mttni vo ~ C)lJ
- . • -~ , •• 1
.. • • • •
ita
. . , ·
h · ...
o
-A sem asstmtlaçào genuina. No lurr ar de um~ " . ., . cm ltll'o rp<1 r;1.. 10 4-i -
·
• . . . . 1 l\\.. 1U lJl· d\l\u•
q,a\ da~ at1,, idades d~ cuidado ~ ecn con tnrc
·· ·"'-=
mp , p
..,;. ~'\,' ~-
, • • "
·
1 \lt a (.'. <; 1111 p ._:<:,
ínap ttdà() para cui dar ou um e>.ercil:io n1t~c:1ni cu. t.::"tl
t ", l
1
'r~Dtip<1du . r ..·-
p~titi~t) e ~0mpul ~i\ O. Infe li zmente, não nos faltariam
e:\cmplo~ de
rnfies ~pais. médicos. professo res. enfenneiros etr
. que t~nd~m para
esta segunda condição. posto que os que se sent em
decididamente
inaptos evitam as tarefas desta natureza e estas profissõ
es.
A penas quem introjetou criativamente as funçfü~~
l'.uid,t"for,1s
e fb exerce com a mesma criatividade pode tr~:msmiti-las
d~ form,1
criativa e eficaz. e ajt1dar na constitui\:àO de suj~itos r1..
..,·pu11stivd., .
Como já sugerimos. a tran smi ssão não pode ser vistn
como
um adendo facultativo: cuidar bem é. entr e outrns coi
sas. transm i-
tir bem as funções cuidadoras. mesmo que em uma
dose modesta
e limitada. O bom professor ensina a aprender e a ensi
nar, os bons
pais geram bons filho s e bons pais, o bom méd ico ou o
bom enfe r-
meiro fazem de se u pac ient e um agente de saúde,
e assim por
diante. Não conseguir tran smitir a capacidade cuidadora
é prova, em
última análise, de que ela não pôde se r bem exe rcitada.

Exercício e transmissão

O que e, ' bem exerclta.


r a capacidade de cuid ar' senão um
. . •a
as boas ideias introj etadas co m aqutl o
mescla dos bons modelos e d . otencial de objetalizaçào
que emerge do suje ito a partir de seu ~.d d . tc)e
,
(Cneen), vale dizer, a partir . ~ pac1 a e au t·o· t·1,.,, í·,, de a1uô~
1
.
da sua ca .. ~ C)VO~ ob·ietos a se-
nar, sonhar e brin , ·produçao e1e n - .
car na e par aª
. _ 1 , as o exet·e,·\;.·,')~ ,·ria ..
ti v<, \,h)s
rem inve stido s? Em out ras pa r '
' . . , . fi "dO nos
ª' pl
. -, issos orimúril)S e tHJ
OlC .. . . r-

cu ,dados mantem um pé be 1n me'" l
. ,. ·ct, . . vertc: .. s\.:
·.
t m
. rn -r)n\/ tn)~(' t' lu ..
(, 1g ,
Ptinc1p10 de prazer. O e.ui J t l;O ll · . ... · ·' r' 6 l'~pl l th' 1..k' ,a·
utco. Mesmo que imp onh. a a 1gum "ncn ti <. to. 11 <t 0
, 1• .

critk io o que o mov~.


Luís Cláudio Figueiredo
146
Usos patológicos das atividades de cuidar

Exercendo os cuidados corremos riscos, como, por exemplo,


de atuarmos O que pode ser caracterizado como 'reparação ma-
0
níaca' e 'reparação obsessiva'. Mas se pudermos desempenhar as
atividades de cuidar em profundo contato com o praz er de criar ,
estaremos menos propensos a estas formas de atuação, com suas
cargas mortíferas de onipotência e crueldade, tão mais perigosas
quanto mais a fantasia inconsciente onipotente se encontra disfar-
çada em ação de resgate e salvamento. Na reparação maníaca, o
suposto agente de cuidado está movido pela fantasia de negar algum
estrago irreparável e intolerável de que se sente culpado por imagi-
nar que destruiu seus entes mais queridos e suas relações mais sig-
nifi cativas, ao menos no campo de seu mundo interno, de sua
imaginação, no plano inconsciente. Não se trata de consertar o que,
a seus olhos , não tem conserto, e sim de realmente negar a existência
do dano. Isso poderia ser realizado apenas na fantasia (é o caso de
sujeitos distantes, arrogantes , frios e com um senso de superioridade
doentio), mas o cuidador imbuído desta fantasia tenta na realidade,
e diante de um objeto que lhe pareça requerer cuidados - o doen-
te para o médico e o enfermeiro, o aluno para o professor etc. - ,
exercer tiranicamente o poder de fazer e desfazer o outro segundo
seu ideal de perfeição. Ele irá 'cuid ar' custe o que custar, doa a
qu~m doer, sem nenhuma empatia com a realidade da pessoa a ser
cmdada, seus desejos, vontades e sofrimentos. Livre-nos Deus de
um cuidador obcecado e fanático cujos cuidados são movidos pela
neces~idade de se livrar de uma culpa inconsciente. Os cuidados
oferecidos pelos pais de sujeitos que se tornam psicóticos frequen-
tem:nte apresentam este caráter. É o caso , por exemplo do pai do
presidente ~chreber, estudado por Freud, um pai obcecado pelos ri-
gorosos cmdados despoticamente ministrados ao filho
Por outro lado, se é de prazer que se trata ' não pode ser do
prazer (ou. gozo ) 0 bfd O
. i com o controle absoluto do outro ' de,. , for-
ma a corrig ir meti 1 .
obieto d 'd cu .?sarnente suas imperfeições. Esta fixaçao• do
os cm ados em uma posiç · va,
J
como v· , ão meramente objetal e passid
imos , e um dos risco d
s O excesso de presença implica a, e
>

A metapsic ologio do cuidado 147

cst,í nn origem dt:1 ·pcrver sflo do cuidado· . Nno são poucos. infoli1.-
,ncntc. os excm plos tirados das artes. dn li Lcrntura e dn vida de pu•
drt!sf profosso rc s. m édicos. enferm eiros. pai s. nulcs e irn, rt o s que
fazem da experi ênci a de cuidar uma oportun idade perfeita pnru o
controk e para o prazer perversos.
Tanto quanto no coso dos agentes da reparação moníHca, no
uso obsessivo das pnítkas de cuidndo s. a nltcrida de do sujeito é ig-
norada ou destruído. N o melhor dos casos. cria-se a ombi valência .
no pior, a cumpli cidade e. nas situações mais extrema s. dá-se um
assassinato de alma com a conivên cia m asoqui sta do morto. Ali ás,
é necessá rio ressa ltar: ass im como o bom cuidado r produ z sujeitos
capazes de cuidar e se cuidar. os cuidado res m aníacos ou sád icos
geram sujeitos ( fi I hos. ai unos. subord i nndos etc.) extremamente pro-
pensos a manter- se na depend ência dos se us cuidado s e maus-tr a-
tos. repetind o es te padrão pela vida afora. No que pode parecer um
paradoxo, tais sujeitos dependent es de cuidado s cumpre m. no pl a-
no inconsc iente, o papel de cuidarem de se us cuidado res, que não
poderiam viver se m eles. Psicot iznr. por exem plo, pode ser uma for-
111 ~1 doente de cuidar dos pai s. dando-1 hes sentido e razão ele ser ( cf.
Searles. I 979).
Nova men te , cabe recordar. será a presenç a em re se rv a do
cujdador o m elhor antídoto contra a mania e o sadismo di sfarçad o
dos agentes de cuidado.

Cuidado e sublimação

É preciso dizendo de outro modo. que as atividades de cui-


1

dar façam parte das vias sub'lim atórias que nem se confundem com
as da reparação maníac a ou obsessi va, nem com as da erotizaçã.o
das relações de poder e proveito ( fala-se em ·erotiza ção· destas re-
Iaç"oes quando elas se transfo rmam em ·
. uma f?nte ·
É de ~razer direto).
~ do pra-::.er do brincar e não do prazer sexualiz ado stncto sensu que
;~ .~ata, ou seja~ de uma transfo rmação sublima da das fantasia s eró-
C-as e agressivas mais primitiv as (cf Loewal d, 1988). Quando estas
Luls Cláudio Figueiredo
148

. . d ~ . ser transformadas e sublim adas, as tarefas tep


fantasia!-'- pu erem , , . . '" . . a-
. . d ,r:ão ser executadas sem o componente d~ onipotênc:í•
ratóna s po e ' . . , . . . . a
. obsessiva)
(man1 aca ou · ·- , pots Já não ter à.o a função
, .. 1nconsc1
. ente de.
defender O agente do cuidado de suas _pr?pr~as ansiedades: neste
caso., ele suporta as imperfeições da exrsten~ta, as perdas e as tur-
bulências da vida sem precisar negá-las magicamente. A reparação
ganha um colorido criativo e as obras de criação adqui~em um po-
tencial reparatório ; cuidar será tanto reparar quanto criar, será fa-
zer novas ligações e produzir novas formas.

Rápida consideração da cultura contemporânea

É sempre difícil, ainda que importante, lançarmos um olhar


sobre o contexto cultural de nossa época. Cuidados não são dispen-
sados no vácuo, os agentes cuidadores e os objetos de seus cuida-
do s têm uma existência histórica determinada. Mas é arriscad o
afirmar que o que vemos e vivemos é radicalmente distinto do que
foi visto e vivido em outras eras, ou, ao contrário, que tudo sem-
pre foi igual e nada mudou. Arrisquemos um pouco.
Será que os excessos das funções cuidadoras na implicação
exagerada do acolhimento e do reconhecimento são características
marcantes de nosso tempo? Aparentemente, não. A capacidade de
indivíduos, famílias, grupos e instituições oferecerem estas formas
de cuidado parece em crise. Elas mesmas passam por graves des-
continuidades e arcam com certo descrédito: nem podem oferecer
continuidade aos sujeitos, nem fazê-los sonhar.
A própria existência de algumas aberrações neste âmbito,
como a proliferação de ideologias e partidos totalitários em meados
do século passado, e a luta feroz e competitiva por reconhecimen-
to.na sociedade neoliberal, atestam as falhas nos dispositivos de aco-
lhimento e reconhecimento disponíveis.
Uma sociedade da competição e da imagem revela, pelo av~s-
. ves· det·iciencias
so ' as. gra ·"' · em mecanismos sociais de reconhec11· nentl.)
dos m<livíduos em suas singularidades. O culto da s 'celebrida d~s
A metapsicologia do cuidado
149

e 05 'quinze minutos de fama ' (do que ele


algum dinheiro e visibi1idade como, por exe~ Ps1e0 ,vale m ~~ra ganhar
h B °/) ~ • os participantes do
Big Bhrot _er rtasz sao a caricatura do que pod eria ser de fato um
recon ec1men o.
Os fenômenos do. totalitarismo ' por seu t urno . , trazem a, tona
em ambientes e ob'~etos capazes de
a intensa ~demanda .de,. mcl . usão
sustenta çao e con tme nc1a. Na mes · ma direç
· . a~o , O ress urg1•m ento e
~ .
expa nsao do fanatismo nos fundamenta1ismos religiosos, parecem
reparação
corr~sponder, no pl~no ~acrossocial, às irrupções da
r- se pre-
mamaca: trata-se de 1nclmr a todo custo, doa a quem doe
massa de 1
ciso for, com o uso da força e da tortura. É justamente a
da pe- ,,
indivíduos avulsos e desamparados a que mais se sente atraí
i

s partidos
Ias promessas de englobamento absoluto proferidas pelo
totalitários e pelos líderes religiosos.
es-
Em contrapartida, as irrupções do não sentido se dão na
o, a in-
teira desta forma de implicação exagerada que é a ex-citaçã
reserva.
terpelação e a reclamação traumatizantes, e no exagero da
essen-
Se as chamadas à vida, às falas e à ordem são ingredientes
nto das
ciais dos cuidados, o exagero destas funções , em detrime
etividades
outras duas funções da presença impJicada, produz subj
e, a nossa
cronicamente traumatizadas e defendidas. De outra part
te em dis-
tão cara presença reservada pode se con verter facilmen
incapa-
tância afetiva e indiferença. É o caso , por exemplo, de pais
questõ:s
zes de cuidar por estarem , eles mesmos , às voltas com
cruciais de sua sobrevivência fisica e psíquica, como no"com caso da mae
• do por Green: com
.un1.da, ana11sa . o , . plexo da
profiundamente depr
c,.,os do to-
mãe morta" (Green 1983). Os fenômenos sociais e pohtt
talitarismo, acima ~ontemplados, talvez tenham eStª funçao defen-
. . 'fi bem como pode ter a
s1 va contra o trauma e contra a md1 eren ça,
. . rbado que se encontra
mesma função subjetiva o narc1s1smo exac e .
n taçã o evid ente no am-
eSía mescla de competitividade e repr esen '
. . ta neo l1'b era1.
biente narc1s1s .d d as defesas pa- ~ ,
No que diz respeito aos agen tes dos c~t ~ ocso, m os cuidados ~•J·; t-• ••. ,), ",, .'
to}· · . ~ · pat1ve1s vivamos uma ·" .
ogicas contra o não sent zdo sao mco m --r
1 -:_::, _)
exercid os de forma equih'b rada e espontânea. ia vez tos e djsp osto s a
.
crise de cuidadores: menos sujeitos sentem-se ap
Lu ís Cláudio Figueiredo
150

cuidar, e muitos que exerc em os cuidados o fazem de forma me-


cânica e ester:ot~padda., .dadores naturais' , cresce a dem
Na ausencia e cm anda pe-
. . • •
. os laicos, sejam os rehg10sos. Tudo ficaria
1os espec iahstas seJ am . . d'
resolvido se tais .' •alizações com seus ntua 1s e proce 1mentos
espec1 , .
. h b'l't
codificados, a t 1 ass em O suJ· eito efetivamente para as tarefas de
. . ,. , é .
cuidar. Nao o caso. As tarefas de cuidado vão muito além do que
se ensina e prescreve.

Palavras finais

Quem teve recentemente um parente ou amigo internad


o em
hospital de primeira linha, dotado de todos os recursos tecn
ológicos
e técnicos , de pessoal especializado etc., sabe que prec
isa levar sua
própria equipe de agentes de cuidados para cuidar do
doente: os
_ médicos e mesmo os enfermeiros do hospital não estã
o ali para isso,
o que não decorre necessariamente de insuficiências indi
viduais ou
má-vontade. Não faz parte da lógica desta instituição que
os cuid a-
dos possam ser tão ou mais necessários que os chamado
s ' proce-
dimentos '. Assim sendo, enfermeiros, por exemplo, 'dão
injeções',
'tiram a febre', medicam e se responsabilizam pelos proc
edimentos
mais sofisticados, mas cuidar que é bom, não é com eles
, nem lhes
cabe como tarefa. Resta a família; mas quem é que pode,
com a vida
que temos, com esta correria diária etc. cuidar de um enfe
rmo vinte
e quatro horas? Quem é que, sendo leigo, sabe o que
fazer diante
de todos os equipamentos de um quarto de hospital mod
erno? E, de
qualquer forma, como introduzir a dimensão do cuid
ado em um
ambiente tão asséptico , administrado e tecnológico? Nes
te contex-
to, 0 trabalho, por exemplo, dos "Doutores da Alegria"
vem na con-
tram. ão da cultura e t b 1 · azia · , d0
cmdar dentro de um res a e ece o luga ,
r, e mesmo a prim
. . espa
b1ente assim a te d" · ço que .
lhe e tão avesso pois em um am-
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• ' n encia mais forte será a de ' cuid
iso 1adas do pacient E . ar ' de aspectos
'cuidad , e_. m termos psicanalíticos, diríamos que tais.
os e proced1me t
n os tecnológicos endereçam-se a obJe ·
tos
A metapsicologia do cuidado
151

ciais, perdendo-se, justamente, uma das mais • . .


P ar . impo rtante s Vlf-
des do cuidado: a de oferecer ao suieho uma expene . ,. . . de .mte-
tLl ~ ncia
aração .
0

. eses
Mas 1ninha. suspeita é a de que por trás de todos t e1emen-
tas de nossa reahdade (a cultura hospitalar e médica e as atribula-
ções cotidianas) jaz u1na outra realidade bem diferente. Estamos
pouco preparados para cuidar, acompanhar os doentes, receber os
moribundos em seus últimos passos, estudar c01n os filhos , escu-
tar os amigos etc. Nos sa capacidade de prestar atenção uns nos
outros , por exemplo, parece drasticainente reduzida.
Recuperar esta capacidade nos parece uma tarefa urgente e
preciosa, tanto para os agentes de cuidados - entre os quajs o psi-
canalista - quanto para todos os humanos. Cremos que seja a única
fonna de dar à vida que levamos e ao mundo em que vivemos sen-
tido e valor. Mas quanto a isso, se a psicanálise e os psicanalistas
podem nos ajudar no diagnóstico e na indicação dos rumos do 'tra-
tamento', infelizmente não poderão enfrentar sozinhos a magnitude
da tarefa.

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