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Dados Internacionais de Catalogação na Publicação (CIP)

(Câmara Brasileira do Livro, SP, Brasil)


Ingold, Tim
Antropologia e/como educação/ Tim Ingold ; tradução Vítor Emanuel antos
Lim~ Leonardo Rangel dos Reis. - Petrópolis, RJ: Vozes, 2020. -
(C.Oleção Antropologia)

TíruJo original: Anthropology and/as Education


Bibliografia.
ISBN 978-85-326-6455-6

J. Antropologia 2. Aprendizagem - Metodologia


3. Educação (Filosofia) 4. Pedagogia I. Título II. érie.

20-33411
DD-301.01

'
lndiccs para cadlogo sistcm,itico:
1. Antropologia: Vilosofta 301.01

Maria Alice Ferreira Bibliotcdri.1 - CRB-8/7964


Contra a transmissão

Saindo da escola

Para aquele de nós criados em sociedades nominalmente ocidentais ou mo-


derna a palavra "educação" evoca mais comumente memórias de ir a escola.
ó pa amo por lá para nos lem brarmos de ser educa os: aprender a 1 ~
escrever, a contar e calcular, e por estes meios nos tornarmos conhecedores de
rodo os ramo do conhecimento, das ciências às artes e letras, que compõem o
legado de nossa civilização. Dos nossos filhos, talvez possamos reconhecer que
sua educação começa mesmo antes de irem para a escola, nessas instituições pré-
-escolares, tradicionalmente conhecidas como creches e jardins de infância, onde
as sementes da futura aprendizagem são plantadas. E podemos nos ter beneficia-
do da educação mesmo depois de deixar a escola, frequentando instituiçõe que
passam por uma variedade de nomes - faculdades, universidades, politécnicas -
que pretendem nos levar "mais longe" ou "mais alto", dependendo de seus status
acadêmicos, ao longo do caininho para a civilidade. ,Mas a escola, em no a avalia-
ção habitual, permanece o principal local de formação educacional~m rela ão ao
qual a pré-escola é entendida como preparação e a pós-e cola como realiza ão.
Em uma sociedade democraticamente constituída, é claramente re pon abilidade
do Estado assegurar uma provisão educacional adequada ao eu cidadãos e o
ministro da educação é encarregado, acima de tudo, de supervi ionar e cola e de
regulamentar o que acontece nelas, inclusive o que é en inado e como.
A prática da educação e a instinlição da escola, em re umo, parecem in epa-
ráveis. Não se pode aparentemente ter tm1a sem a outra. O que devemo diz r,
então, das sociedades sem escolas, ou onde apenas un1a minoria de fruta do privi-
légio de frequentá-las?...,É aceitável dizer de pessoas que não frequentaram~ cola
ue são sem educação, e portanto não civilizadas? Essas pes oa sabem mU1to ue
nós, pessoas eauca as, nao sa emo~. Os antropólogos se esforçaram para docu-
mentar esse conhecimento, para revelar seus detalhe , sofisticação e precisão, e
para descobrir os processos pelos quais ele é adquirido. Ele denu~ciai:ru:1:' com
razão, a divisão dos povos do mundo em educados e sem _educaçao, civihza~os
e primitivos. Isto não é mais_do que uma reflexão, eles dizem, de preconceito

15
. d'r, . , de cu Inira para cultura, assim como as in,
~ . O l ·cimento 11c1c . ·~~-
·tno -cntn o. ~c~n 1c , 111 de cada geração para a próxima. A escol
. . - c1ethtam sua passagc d - - é a
nru1çocs que 1~ '
1 1 i' tas outras. A e ucaçao, cntao, algo qu
• · · õcs mas 1a mu , e
e uma dessas m atrnç , · vive em sociedade, enquanto passam d
d cr humano que a
,1eontc e com to O s --r_i teJ·ª li tada ao lado dessas capacidades inclu
. . d ' -·dade?nuvezes, ' . ' ·
murunda e a matun . bólico que são consideradas corno rnarc
. fu em e pensamento sim , as
t~'c_ pa_ra 1guag 'd d ~ 1i dos os animais aprendem, é claro, no sentido de
di tmnva da humam a e. o
'
à
. d e • coisas em resposta s con çoes preva ecentes do
di - 1
,11·ustar uas maneiras e iazet as . , . .. . .
. é a1 d"ferente de cnar cenanos vutuais em antecipação
ambiente o entanto, go 1 .
• • ,..: _ 1•. - ·evalentes mas que podem vir a ser constatadas em
a condiçoes atuau11ente nao pr ' , . . .
e. ruro de modo a 111stn..I1r novatos sobre como hdar com
alº1.m1 momento no 1Ll , , •
º -
ele . ln truçao e er ,
d lib ·ada deste ripo - ou o que e geralmente conhecido como
1
· pode de e.ato ser exclusivamente hwnana .
pedagogia - 1• ., . .
Pedagogia é a arte de ensinar. Existem todos os tipos de maneiras de cüs-
cin!!llir entre ensino e aprendizagem, ou de mostrar como um excede o outro,
de;endendo, por exemplo, de o aluno meramente adquirir hábi~os a partir de ob-
servações do que outros fazem ou se os têm demonst1·ados deliberadamente, ou
e a demonstração é enquadrada em termos de regras ou princípios abstraídos de
contextos de aplicação. Aprender a fazer uma ferramenta de pedra lascada na pre-
ença de um mestre artesão exemplifica o pri111eiro; aprender a navegar por meio
de mapas de estrelas exemplifica o últi.mo 2 • Essas distinções, de grande importân-
cia para estudantes de comportamento comparado humano e não humano, não
são de i.nteres e imediato para mim neste m01nento. O que de fato me preocup~
é uma suposição que passa por pratican1ente todas as discussões desses assuntos
nomeadamente que a educação, no seu sentido mais lato, é sobre a transmiss~o
de informaçóes 3 • Para aqueles que defendem que a educação acontece nas escolas,
a escola é considerada um espaço isolado no qual o conhecimento é transmitido,
antes de sua aplicação quando os alunos o levam para o mundo extraescolar.
Pai:a aqueles que sustentam isso, ~ educação é uma p~tica de ..eedagogia qu_ss
uruversal para os seres humanos; quer eles fre uentem a escola ou não a mesma
lógica se aplica. A escola pode não ser o único ripo de instituição in~estida de

1. David e Ann James Premack (1994) d 6 d .


em seu sentido estrito para s h e en em fonemente o argumento a favor da pedagogtJ
tores afirmando ter observadoeres ~anos. Mas. o assunto continua controverso, com alguns au·
. o ensmo entre chim ' (BOES h do-O
ainda mais amplamente distrib 'd . panzes CH, 1991), e outros ac an de
de pontos de definição mais p:c.° no remo animal (CARO & HAUSER, 1992). Muito depe~
(BOESCH & TOMASELLO l 9~8o~,BcOomEo entre emulação, imitação e ensino propriamente di!O
' , SCH, 2003).
2. Sobre aprender a fazer ferramentas de edra '.
ficas de estrelas, cf. Lewis 1975. ,,.., 6P ' cf. St out, 2005. Sobre aprender a navegar par gra
' , e .r nro ull, 1991.
3. Cf., p.ex., os ensaios em Bloch, 2005 p ,.
. ara wna cnt1.ca, cf. Ingold, 2001.

16
um propósito . pedagógico,
. . . _ .mas práticas
. - des _
institucionais alternativas que vao
de .1 n,urattVJ · mi ciaç~~ nniaJ am~a podem ser modeladas a partir dela, pelo
menos en~ termo a.nal.íttcos, e credtta~a com uma função equivalente. Assim,
pode-se dizer qu_c elas operam de maneira "escolar"_., para transmitir O legado de
•osrumc , moralidade e crença que se soma ao que chamamos de "culrura" a cada
geraç~~ sucessi_va, de ~11~do que possa posteriormente ser expressa e promulgada
na pratica da vida cotidiana.
Meu obj~tivo n:st: capítul~ é argumentar contra a ideia d transmissao para
mosu-ar que isso nao e a maneira pela qual as pessoas comumente entendem 0
que fazem e que, de fato, ela distorce o ro ósito e significado da educação. Isto,
por sua vez, lançará as bases para o meu próximo capítulo, no qual argumentarei
que a educa ão é em realidade sobre atentar _para coisas e para o mundo. Em
uma quero provar que a educa ão é uma prática de aten ão não de trans-
missão - que é através da aten_ção que o conhecimento é gerado e continuado.
Para defender o caso contra a transmissão, começo com os escritos de John De-
we)~ pragmatista e filósofo, justamente considerado como o teórico educacional
preeminente do início do século XX, cujo livro Democracia e educação foi publica-
do exatamente há um século4 •

A continuidade da vida

Quem teria pensado em abrir um tratado sobre educação com a seguinte


frase: ''A distinção mais notável entre coisas vivas e inanimadas é que as primeiras
mantêm-se por renovação"? 5 O ponto de partida de Dewey não é a escola, nem
as pessoas, nem mesmo a humanidade. Em vez de partir da ideia de educação
como escolaridade e, em seguida, estendendo-se para domínios mais amplos da
cultura humana e até mesmo não humana, Dewey prossegue na direçao oposta.
Para entender o que é educação, ele diz: a primeira coisa a que temo que assisti
é a natureza da vida. Nós temos que entender.como plantas e animai diferem das
pedras. A pedra, castigada pelos elementos, é desgastada ou até quebrada. Mas
as coisas vivas, muito pelo contrário, absorvem as energia elementares e , u~-
tâncias - luz umidade e terra - as transformam em uma força para seu propn
' . .
crescimento e autorrenovação. No entanto, elas não podem contmuar com isso
indefinidamente, nem podem proceder em isolamento. Toda vid~ tem a tarefa de
trazer outras vidas e sustentá-las por quanto tempo for necess~no para que e ~s
por sua vez, gerem mais vida. A continuidade do ~rocess~ da vida, portanto, nao
é individual mas social. E educação em seu sentido ma.is amplo, segundo De-

4. Dewey, 1966. O Livro foi publicado pela primeira vez em 1916.

5. Ibid., p. 1.

17
• cJ v·ic.la 116_ Onde e quando a vida cstiv"
"e\' e "o meio de..,~,, cont ,mllc.'
. . hdc "'º
ta 1 a
0
'
Esta {iltima está acontecendo rnaj,
-..r
.' . 1
l { está a cc. ucaça . , ' .,
lContcccndo, ,1~~1111 t,,m lcm · ' mais particularmente, na escola.
· . , , ~- ·as da vida humana, ' · .
c'itrc1t.1mcntc, n.,~ es e,, . ·aJ', 0 imperativo educac1onaJ em sua for.
1 1 ngc de re, 1zar
o cnt,rnto, a csco a, 0 • 1 ··os meios de assegurar a continuidade
• , . as um dentre vaJ 1
nu m.us pura, e apen, rfi . 1 propensa à distorção que advérn do
1 • ente supe teta '
, ci.ll, e de forma rc ativa,i1d1 . c. • t'onaJ e O conhecimento da experiência de
· • -- 0 conteu o 1rnormac ' .
1so1amcnto entre ~ d 1 pode-se ter qualquer tJpo de senti.
vida atravé da qual e somente atraves e a, d' é . ,
• d' - encido guc Dewey preten ia maJs provavel de
do a verdade a e ucaçao no s , d d .
· ' : ' 1 d dentro de suas paredes. O que e ver a e1ramente
acontecer alem da e co a o gue , • e al .
. d
encial para a e ucaçao, e - gundo Dewev " não e a pedagogia
. 1orm , mediada
por in n-umento cognitivos especializados ~om__o a lmgua~em__ e a represen_ra-
- · bo' lica mas a rransmissão e a comurucaçao. Estes nao sao apenas meios
çao m1 , _ ,. · d , · •
que tornam po S1,, ,e] a vi'da. social , continuar·, eles. sao a .essenc1a
. a propna. vida _
ocial. A , ociedade", diz Dewey, "não só contmua existmdo por transrrussao,
por comunicaçã~, mas pode razoavehnente.,ser dito que existe na_tr~missã~, ~a
comunicação"?. A primeira vista, esta asserçao parece de encontro a minha propna
ambição para este capítulo, que é precisamente argumentar contra a ideia de
educação como um processo de transmissão, e, por implicação, de comunicação.
Eu pretendo mosrrar que a rransmissão é a morte da educação, pois ela retira o
coração da vida social. Como, então, posso possivelmente adicionar Dewey em
meu apoio? Para responder a esta pergunta, precisamos dar uma olhada mais de
perto nos significados destes termos-chave, comunicação e transmissão. Pois os
sentidos em que Dewey os emprega não são de maneira alguma os que estão em
uso comum hoje, influenciados como foram pelas revoluções em informática e
tecnologia de comunicação que dominaram a segunda metade do século XX.
Deixe-me começar com "comunicação". Para a maioria de nós hoje, isso
tem a ver ..
com transmitir informações ou enviar mensao-ens. b
Eu tenho alo-o b
para
rr~nutir: eu codifico em alguma forma física que permita que a mensagem
seJa. rransportad~ para você com distorção mínima; você recebe o pacote e de·
~odifica ~ conteudo. Idealmente, você deve acabar tendo exatamente a mesma
infor~açao comª qual eu comecei. Eu posso, a meu turno, enviar alo-o de volta;
podenamos
_ , . então falar de· co mumcaçao · - como un1a troca de informaçoes. . 0 - M
I JS
~ao e as~tm _9~,e ,? ewey entende o termo. N orando a afinidade entre as palavrJS
dcomumcaç~o , comunidade" e "comm ", ele se interessa em como os indi,+
uos com diferentes e ·" · d ·
xpenencias e vida podem chegar 1un acordo - UOl gr::ll1

6. Tbid., p. 2.
-----
7 • Dcwcy, J916
' , P· 4 · Er,◄, nfasc original.

18
dr ,rn:nt,1lid.1Lk semelhante que lhes 1,crmita conduzir sLias v'idas. Juntos
· K T: l
• J , . a vez
,

seguindo o precedente medieval, pode-se transformar "comum" em um verbo~


•om unicar seria entã~ ''comungar"9 • Nos contextos da educação, esta comunhã~
e ,1cima de tudo realizada por pessoas de diferentes gerações. Seu poder educa-
tivo, além di~so, e: tá no :ato de que a informação não passa de uma cabeça para
outra sem d1storçao. P01s se cu for compartilhar minha experiência com você
não é suficiente empacotá-la e enviá-la do jeito que ela é. Você pode receber~
pacote, mas isso não o fará ser mais sábio. Para que compartilhar seja educativo,
eu tenho que fazer um esforço imaginativo para lançar minha experiência de
maneira que ela possa se jLmtar à sua, para que possamos - em certo sentido -
percorrer os mesmos caminhos e, ao fazê-lo, criar sentido junrosrn. Não é que
você termine com Lm1 pedaço de conhecimento implantado em sua mente que já
pertenceu apenas a mim; em vez disso, chegamos a uma concordância que é nova
para nós dois. A educação é transformadora.

Comnnhão e variação

Agora, o que a educação é para a continuidade da vida, no uso de Dewey, a


comunicação também é para a transmissão. Uma é o meio para a outra. Embora
Dewey tenha menos cuidado em definir "transmissão" do que ele tem para defi-
nir "comunicação", é claro que a única coisa que ele não quer dizer pelo termo é o
que é convencional.mente usado para significá-lo hoje em dia, ou seja, o transpor-
te, de uma geração para a outra, de wn corpo de instruções e representações para
a conduta de uma forma de vida. A transmissão é possível, argumenta Dewey,
porque vidas se sobrepõem, porque como alguns envelhecem e evenmalmente
morrem, outros já nascem e crescem. É através da participação recí roca n~a
de cada um - através dos esforços contínuos e im,elacáveis de jovens e velhos,

8. Dewey, 1966, p. 4. O ponto-chave, como observa o teórico edu':a:ional Gere Bi~ _ra a~ co:ne~~
o texto de Dewey, é que O entendimento comum não é uma co~d•ç:o para a part.1c1paçao: ao e
que precisemos primeiro chegar a uma compreensão co°:um e so cnrao começar a _coordenar no a
ações. Para Dewey, é precisamente O contrário: o cntcnd11nento comwn é produzido, é o resultado
da cooperação bem-sucedida cm ação" (BIESTA, 2013, P· 30).
9. A escritora e ativista canadense Heather Menzies fala de comunhão n~sse entido, c?mo "uma
maneira de fazer e organizar as coisas como participan~c~ implicados [ ... 1!11~tt1-sos no ~qm e agora do
habitat vivo" (MENZIES, 2014, P· 122-123, ênfase ongmal). Cf._ tb. Bollie1 e Helfnch, 2014, que
inti tulam sua coleção Padrões de Comunhão íPattcrns of Commomrig] ·
10 . "A expenencia
· • . · ,, , como D ewey coJo ca , "cem que , ser formulada
. para ser comunicada. Formular .
1
requer [... ] cons1'd erar os pontos d e c011 rato
, que ha com. .a vida do outro
1., •
para

que• e a·1 possa
· ser· co-·
locada de modo cm que o outro possa apreciar o seu s1g111fi~ado_. [ ... 1 E p1ec1so ass1m1_ ar, ima~na?-
vamenre, ,aigo d a expenencia •. • d a outra
. pessoa, para
, ' falar-Lhe mreligenrcmcnte da própna expenencta.
Toda comunicação é como arte" (DEWEY, 1966, P· 5-6).

19
. écic de concordância que a cducaçã
eh ·gar .1 uma csp . . ,,
im.uu, n, e m.1duros, P•11ª .
. ncntos va 1rncs,
. . crenças e práticas
.
de uma sociedade
. . -
sã,
,
.l . w,,cp.m· e n., um 11crn ·., . . . somente se houver part1c1paçao de arn.
r Dcwcy 111s1stc guc A • • , •

lx·i i1ctu.1dos . 1 e 1,Ho, diante. As partes sernor e JUntor deve"'


. ode ser 1evac1a a _ _ .,.
bo, 0 .., l.1dos, .1 cducaçao P - então O que temos nao é educaçao, rna:
· · 0 rcsulrado. e nao, . . . s
u llnp.1rnlhar o nsco 11 • • ,, , '-ocê pode tremar um animal doméstíq
1 1 "trcmamcnto . v1 J
o que De, cy e iama e e . • ceA gucr recompensando-o, por exemplo
da maneira que vo , . 1
para e comportar • • d d e O interesse do anjmaJ esteJa na comjrl.,
,d d mida. Mas es e gu . . - ""i
com pc aços e co d O isto então não s1grnfica educaçao. Derna-
- :viço prestado ao seu on , , ' . , . _
ªº
11 no er D
iada vez lamenta ewey, os Jº
• vens da nossa pr6pna espec1e sao tratados da
, . . és d d
' . , "treinada como um anunal ao mv e e ucada corno
m ma forma, a cnança e . é • .
»11 d"da em que tal tremamento molda a mat na-pnma de
wn er hwnano . a me 1 ' . .

humano imaturos a wn desiian
v pree:,ástente , embora possa replicar o design, não
erve para fins educacionais quaisquer que sejam.
E te é O momento de introduzir um terceiro termo que, ao lado da comu•
nicação e da transmissão, desempenha um papel fundame~tal ~a filosofia da_ edu.
cação de Dewey. O termo é "ambiente". Sendo a comumcaçao a comunhao da
vida e, a transmissão sua perpetuação, o ambiente é, então, a sua variação. Ou
seja, não é simplesmente o que envolve o indivíduo ou a soma total de condi-
ções envolvidas. O gue faz um ambiente é a maneira como essas condições s~
desenhadas, ao longo do tempo, em um padrão de atividade con'tmta. Im~oine
um astrônomo olhando para as estrelas. Para ele, as estrelas, mesmo que remotas
fazem parte do ambiente - elas são dignas de interesse para ele. E sendo motivo
de interesse, elas fazem com que ele varie conforme seu olhar vagueia de estrela
em estrela. Raciocinando a partir desse exemplo, Dewey conclui que 'as coisas
com as g~ais um homem varia são seu ambiente genuíno"I 2 • Elas vão junto com
ele, _e _vanam confor°:e ele também varia, de acordo com suas inclinações e rus·
posiçoes. U~a maneira de colocar isso é em termos de pergunta e resposta. As
estrelas guesnonam O astrônomo, elas despertam sua curiosidade, e ele é movido
a resp~n~er. Essa resposta não é apenas uma reação, como se a uma perrurbaçio
da v1sao irrompesse na co 11 · ~ · , ·
dA • sciencia, mas uma resposta que prolono-a a propnJ
ten enc1a do astrônom 0 "d . 0
cli ~ , guc re st e no desCJo de conhecê-las melhor. Podemos
zer, na verdade como Dewe . l·
A promessa da educação está Y, que O astrônomo corresponde-se com as e cre as.
.
' na capacidade de responder e ser respondido: sent

11. Dcwcy, 1966, p. 13.


-----
12. lbid. , p. 11 . 1aro, l) cwcy pode . . .
mulJ1er varia ... " Ao longo <leste livrorta mdtuto bem ter escrito sobre 'as coisas com as quais~
cm sua maior p . · , on e quer que 0 ê ·a1 0 o
g ·nero da pessoa seja imaren , co111 _,,,s
, ' arte, cu usei pronomes m 1.
um, as vezes o outro· ascu inos e fcminii1os de 1orma
e . b", el par~
mtercam 1av -

20
essa "capacicfa~ic de rc po ta", por assim dizer, a educação seria impossívc113_ A
ideia de ca pa idade de_resposta é a chave para o meu argumento ne te livro e
é algo a que retornarei. Por enquanto, gostaria de concluir e ta seção estabele-
cendo a ligação entre comunicação como comunhão e ambiente corno variação.
O_po1:to que quero enf~tizar é que não há contradjção, como pode parecer à
p rimeira vista, entre es es dois termos. Pelo contrário, a comunhão e a variação sãQ
cÕdependente . Por w11 lado, não pode haver movimento, crescimento ou vida 110
compartilhamento da experiência, a menos que haja variação no que cada partic·-
pante rraz para ela. Primeiramente, a conquista da comunalidade não é a descoberta
do que os inruvíduos têm em comum: é uma criação contúma, não uma regressão
a uma origem. Na ausência de variação, a t'uuca diferença poderia ser entre aqueles
com mais dotes e aqueles com meno , e educação - corno wna transferência direta
de conhecimentos e valore dos primeiros para os últimos - seria reduzida a trei-
namento. orno Dewey se esforça para enfatizar, a imamridade não é wna falta, é
Lun poder e pecífico de cre cimento, e o propósito da educação não é preencher um
vazio na mente da criança, de elevá-la ao nível do adulto, mas trazer jovens e idosos
juntos para que a vida ocial po sa continuar. Assin1 corno quando os jovens enve-
lhecem, compartilhando a sabedoria nascida de urna longa experiência, os velhos
tornam - e joven ao compartilhar da curiosidade congenial, sensibilidade e abertu-
ra de mente de eu jllluores 14 • ão existe fim para isso: o crescimento só pode ser
um meio de crescimento arucional como vida para vida funu-a. Por outro lado, não
pode haver variação em coparticipação em um an1biente social compartilhado. É
na corre pondência com os outros - respondendo a eles, não no recebimento do
que é tra.n mitido - que cada wn de nós vem a si mesmo como pessoa detentora de
uma voz singular e reconhecível. Considerando que o trei.J.1an1ento suprime a dife-
rença, ou a admite apenas nas margens como iruossincrasia, a educação promove a
diferença como a própria fonte de personalidade.
Re umindo: comunhão e variação de endem urna da outra2 e ambas são
necc ária para a continuidade da vida. A comunidade educacional é mantida
Lmida atravé da variação, não ela semelha.n a. E wna comunidade - não ªRenas
uma convivência mas literalmente wna doação conjunta de com- "juntos", mais
-munus, ' dom') _ em que todos têm algo para dar precisan1ente porque e~es
não têm nada em comum e em que a coexistência generosa supera a regressa.o
) " • /

e enciali ta a uma identidade primorrua.1 15 . "Ter em comwn - como a propna

13. Desenhei a frase "capacidade de resposta" dos escritos do compositor John Cage, 2011, p. 10.
f. tb. Biesta, 2006, p. 70.

14. Dewe)~ 1966, p. 42-43, 51.


15 E l h • · A1 h nso Linuis fala da "comunidade daqueles que não têm nada
. m um vo ume omorumo, p o e,- _ N linh Jean Luc
cm comum" (UNGIS, 1994). Comunidade tem a ver com ser, nao ter. a mesma a, -

21
. ,as uma aspiração; não dada drt,1.
, I'111ha de base, 11 ' · • • u • • .e . '""\IC
1 1
h\lln,1111L ,ll e
• 11 ,10 e t11n,1
. . '.
r .
. exige est0I ço
comu111táno. r,c;tc cs1orço exige d
• . e
, 1111 s unu t,11d,1 que . os outros cada um contnbu1ndo cm
o ,muo, . . . . . ie se .1bram para ' . - .. , .,,
1 iovrns e ,dosos, 9 1 . 1 • 1 comum da qual vanaçocs ad1c 1on:i,.
wuo,, . li óes da v,c. a cn !li,)

Mt,ls l)l'opri.11> .1çoes, • cone. ç · . . ao desempenham o seu papel cm esta~.


. • • . 'lS de cada gc1 aç . d
surgem. ss1m, as pcsso, · . is seus sucessores sao ena os e crescem
' · - . t icntais sob as gua b
lc •cr .1s conc.hçocs •11111 _, • 1 ,., de Dewcv com ase nesses argumentas
. - : 1 de. E a cone usao . J',., . " . . '
cm dircç,10 à 111:inn K ª .. . . "transmissao direta , mas apenac; tndire.
• - ode oco11c1 po1 ,
e que .t cduc.1çao nao P . nJ6
, ~ " r intermédio do ambiente . . - -
t.tmcnte, P. 0 . á . ~ ·ecisamente para a transm1ssao, e nao para a
~1 e.,, da mform, t1ca, e pr . -
1 •1 , 11 •1 1' .' bi'erJte que O conceito de transm1ssao passou a se
· 'd d, da v1d:1-cm-wn-am ,
conunm a e . • , e de Dewev vou agora pegar em armas contra isso.
refe1ir. E por I o que, cm nom 1'

O modelo genealógico

Con idere a relação entre pais e filhos. Os primeiros podem ser a mãe ou o
pai; 0 últimos, filhos ou filhas. Na lin~uage~ an_tro,.,pológica, o te~mo técnico
para a relação, independentemente do genero, e f~açao. C~mo,_ entao, de~emos
descrevê-la? os gráficos de parentesco de antropologos, ha mwto tempo e con-
vencional descrever a filiação como uma linha vertical conectando dois ícones
em forma de diamante. Os ícones representam pessoas, sua forma de diamante
significa que eles podem ser homens ou mulheres. Mas qual é o significado da
linha? Leva apenas um segundo olhar para perceber que esta representação apa-
rentemente inocente está repleta de suposições escondidas. A primeira é que na
relação de filiação, as vidas dos pais e da criança não são juntadas, mas mantidas
bem af~tadas. Elas são separadas desde o início, e sempre permanecem as im,
nem mais, nem menos. Longe de tentarem entrar em contato ou responderem
um ªº outro, eles permanecem confinados a seus respectivos luQ'ares, cada um
dentro de se ' · tl 0
. u icone part.1.ct ar. Envefüecer nem afasta os pais da criança, nem
os aproxuna · crescimento e - b, - · ·
'. mamraçao tam em nao traze1n a cnança para mat
perto dos pais. Em se01mdo 1 linh - , • 'd·
S . o~ ugar, a a nao e, portanto, uma linha de vi J.
ep o que for que ela cond · - , 'd d
·d d . uz, nao e a v1 a em si mas um conjunto de ores
propne a es ou instruções . · ,. 1 . '. , , d
·irnc10,
, • e nao- cresce ou se e parad vive- a. E terceiro' Jª que a< linha< está la des e 0
sten e ao longo do tempo, esses atributos devem ser
--------------
Nancy insiste para nós reconhecermo . .
co'.11um ou com", e não "um ser ou s o s1gmficado apropriado de "ser-em-comum" como ~~
" l ---
na1s). Sobre a etimologia d _uma essência do comum" (NANCY 2000 55 ênfuse orig1·
de . a comunidade "d , , P· , br()S
uma comunidade estão vinculad ,, como oando junro ', cf. Esposito 2012: ''Os mern ]
que os condu, r ' os , escreve Esp · , ' , ..,.,.,. [...
z para iora de si mesmos ara . . ?st to, pelo dever de uma doação rec1p1 v--~
16. Dewey, 1966, p. 22. p. ' se ding1rem ao outro'' (2012, p. 49).

22
dnt.tdn, de Conn.1 indcpcndcmc e om antccedênci cm rei
' açao ao cresci.mcnto e
de, -11 ,oh 1mcnto no mundo.
. ' - é· d'treta
De acordo com O quadro, enfim , a fil1 1açao
r w t.1lmcntc 11.10. mediada pela ex11criência ambiental [J a 1,·,1h > 6 1
_ ' · r, , a. L, caro, uma
hnlu .de transn~tssao. Ao lo1~go dessas linhas, os indivíduos passam a ter posse
imcd1.1ta de atnbuto (propriedades, dotes, características) que já existem antes
de colo á-los cm jogo no negócio da vida. Ou, em uma palavra, eles herd;m.
Evidentemente, o gráfico de parentesco aplica uma lógica determinada. É a
lógica do que chamei de modelo genealógico, cuja definição é a de que os indiví-
duo ão e pecificados em sua constituição essencial, independentemente e antes
de ua vida no mundo, através da outorga de atributos de ancestrais 17 • Para pre-
venir qualquer possível mal-entendido, nem por um momento sequer pretendo
ugerir que o muitos povos em todo o mundo que gostam de gravar e recitar
ua genealogias recorrem a essa lógica 18 • Longe disso! Nas histórias que eles
contam obre seus ilustres antepassados, sobre gerar e ser gerado, cada geração
e apoia nisso e toca a próxima, como fibras que - alinhadas longitudinalmente -
as eguran1 a continuidade do todo da corda que vem do passado ao presente 19 •
Estas são histórias de vida. O modelo genealógico, por contraste, é um artefato
de análise antropológica formal, cuja origem é frequentemente creditada a um
dos antepassados mais ilustres da própria antropologia, W.H.R. Rivers. De fato
o método que Rivers propôs, nas primeiras décadas do século XX, para a coleta
e análise rigorosas de dados genealógicos permanece em uso comum hoje2°. o
entanto, o modelo não é de forma alguma exclusividade da antropologia, e pode

ser que a conquista de Rivers tenha sido mais estritamente ter personalizado
para o estudo do parentesco humano, uma maneira de pensar que era já, bem
estabelecida, pelo menos em todas as ciências da biologia e da psicologia. E ver-

17. Para um relato detalhado do modelo genealógico, cf. Ingold, 2000, p. 134-139.
18. Essa confusão entre o modelo genealógico e a recitação de genealogias e e.xemplificada na
discussão de Philippe Descola sobre a transmissão em ua obra-prima, B?o,~d 1, atu_re and Culture
[Além de natureza e cultura] (2013, p. 329-333). Para Descola, a rran ITI1 ao 7, acima de rodo, o
que permite aos mortos, através da filiação, conquistar os vivo (ibid., p. 3~9). E o pe o dopa, do
ancestral que sempre pressiona seus descendentes no presente, 'pa sando"mexora~'C~1;nte de t~a
geração para a próxima" (ibid., p. 331). Isto é para empregar a ~al:vra tran nu •º no enndo
original de continuidade da vida de Dewey. O sentido de tran m1 ao q~1e u tema O modelo ge-
nealógico, no entanto, é exatamente O oposto. Impede qualquer reconhecimento do qu~ o pre ente
deve ao passado para a sua continuação, nem encarrega as pes oa do pre ente de c~m1;11uar O tra-
· com transm1ssao
baIh o de seus antepassados. Pois, · - nesse sen• tido, o que e "pa' ado"
· _nao e a corrente
da vida em si, mas as especificações para vivê-la. Para uma crítica mai e.xten a, d. Ingold, 20lóa,
p. 317-318.
19. Para uma representação esquemática, cf. a Figura 4.6 em lngold, 2007, P· 118 ·
20. O artigo de Rivcrs, "The gencalogical method _of anthropol?gi~l in~uiry" l"O método ge-
nealógico da investigação antropológica"], foi publicado pela pnmeua vez em 1910 (RIVER '
1968). Cf. Ingold, 2007, p. 109-116.

23
. ,odeio foi submetido a críticas sustentada.\
. • olog1a recente, o n . ,
d, e.1e que, na .1ntt op . . . , gucles com os gua1s os antropólogos tên-.
\ l , 1 · ,s1srtn 1a - ent1e a . "'
cm parte ..i uz. eª 11 ' • a"'o são predeterminadas pela concx-
. , . ·la õcs de parentesco n, , '- . . ao
trab.1l!1ado 9l'.e as ,eldçd edida em que pessoas vivem Juntas, geralmente
genénc ', ma• sm1 mo a a_. na• 111 ateria] e experimenta
. 1mente para a 1orrnação
e
6
sob O me mo teto, e contu ucm m, . d J • •
21 E b' · e psicologia no entanto, o mo e o genealógico
uns do outros . m 10 1ogia ' . . , eJ
·or parte 111quest1onav .
continua firme e forte, e em sua mat ' ,.,
. ·
Em. b101ogia, o modelo perpassa duas clistinçoes semelhantes entre o genó-
. . ó ·
. c. , . t.
tipo e o 1enottpo, e en rc filogenia e ontogema. Enquanto que o gcn. tipo deve
e
1ornecer uma e pect'fi1c,aça,,.,o de proJ'eto formal para o futuro .orgamsmo, dado
no momento da concepção e codificado no g_e noma, o fenótipo é t~ma forma
manife ta que urge do crescimento do orgamsmo e de sua m~~raçao em_ um
ambiente específico. Uma premissa fundamental do modelo, ongrnaJ enunciado
por August Weismann 110 final do sécuJo XIX (embora em termos que ~recedem
a linguagem da genética moderna), é que apenas os elementos do genótlpo, e não
do fenótipo, podem ser passados através de rnna sequência descendente-ances-
n·al. Assim, a expressão desses elementos está confinada dentro de cada geração
ao ciclo de vida do indivíduo. Segue-se que, assim como a filiação é ortogonal ao
crescimento e à maturação na ant1·opologia das pessoas, também a descendência
é ortogonal à vida, ou a filogenia à ontogenia, na biologia dos organismos. a
psicologia, a mesma lógica é aplicada na distinção clássica entre a aprendizagem
social e a individual: a primeira se refere à forma como a informação desprovida
de contexto, especificando os padrões da vida cultural, é copiada do tutor ao
novato; a segunda se refere às diversas tentativas dos novatos de aplicar as infor-
mações já copiadas em ambientes contextuais de ação. De fato, tão perfeita é a
compatib~dade entre as versões biológica e psicológica do modelo genealógico
que. estu~osos sempre propõem teorias sintéticas da evolução biocultural pelas
quais as infor~aç~e~ genética e cultural passam por caminhos paralelos. É espe-
rado ~ue todo ~dividuo herde dois conjuntos de especificações, um estabelecido
atraves de . . _ genéa' ca e um outro a.traves
,., replicação , da replicação
• - por me10 · de
observaçao e llllitaçao - de uru·d d ál .
. ,., a es an ogas de culn1ra, que são postas Juntas
para uma mteraçao subsequente com o ambiente22.
A fixação nessas teorias no · d h , .
d e que o modelo genealógic conceito , _
e erança e rnna indicação mrus segura
..
d f::.. 1 , • 0 esta em açao. O modelo no entanto é desabilita·
o por uma dlac1a que está e " . ' ' , fa
da bi'olo · s O
g1a usan yama a faJ , • ,
m seu a.mago. Suc1ntainente exposta pela filoso
.
' acia e que as informações devam supostamente

21. Cf., p. ex., Bamford e Leach, 2009.


22. Essa ideia de coevolução ge ul
· - ne-c tura d · 11·
tattvos sao Durham, 1991; Richerson eu ongem a uma extensa literatura. Exemplos represe
e Boyd, 2008; e Paul, 2015.

24
"prccs.:i . ri r. aos proce .os _que lhes. dão origem"23 • A f:aláci·a
, é ta,- 0 incapacitante
· ·

para a 1dc1a de_ tr~1snus ao gcnét1ca quanto para a sua análoga cultural. Eu co-
meço c~m a prune1ra, antes de me voltar para a última, pela qual estou principal-
mente interessado.

Desfazendo o círculo

O genoma de um organismo, presente em todas as células do corpo, é com-


posto de comprimentos de ácido desoxirribonucleico (DNA) que tem aproprie-
dade singular, dentro da matriz química da célula, de criar c6pias com sequências
idênticas de bases ácidas. Esta propriedade, notável por si só, não é, porém, tão
notável que garanta a conclusão de que a sequência de DNA codifique uma es-
pecificação de caráter para o organismo. A replicação da molécula é uma coisa,
a reprodução do organismo é uma outra bem diferente, e uma ligação entre
elas somente pode ser estabelecida por meio do processo de desenvolvimento
ontogenético - isto é, do crescimento e maturação do organismo dentro de um
ambiente específico. A ideia do "traço genético" é, portanto, uma contradição
em termos, na medida em que atribui, ao que é copiado na inauguração do ciclo
de vida, propriedades que só emergem no curso do desenvolvimento. No genó-
tipo, concebido (em contraste com o genoma molecular) como um complexo
de traço , o organismo parece estar completo antes mesmo de ter começado, seu
ciclo de vida de moronou num ponto icônico - precisamente como nos mapas
de parentesco do antrop6logos. De fato, o genótipo, na verdade, não é mais do
que uma descrição formal, independente do contexto, do organismo, sem ava-
riação induzida pelo ambiente. Como tal, não existe em nenhum lugar, exceto na
imaginação do biólogo que observa, tendo-o instalado no coração do organismo
como um programa ou projeto para desenvolvimento subsequente - isto é, como
um bio-logos - vê o desdobramento da vida do organismo meran1ente como uma
transcrição, ob condições ambientais específicas, do que foi inscrito no início24 •
A circularidade desse raciocínio não precisa de mais comentários. Chamo
a atenção para isso apenas porque uma circularidade equivalente surge sempre
que o modelo genealógico é aplicado, por analogia, à tradição aprendida. Para.ª
cópia de características genéticas, o modelo substi~ a cópia d~ ~aç~s culturais
análogos. E O que a replicação faz para os genes, diz-se que a urutaçao faz para
a cultura. Seja exclusivamente para humanos ou não, a herança cultural deve se
basear em um instinto para inútar, que automatic~ente pro~oca comportamen-
to manifesto, testemunhado pelo observador neofito, a ser 1IDpresso na mente

23. Oyama, 1985, p. 13.


24 · ' _e. resunu· argumentos apresentad o sem m";or
este paragr<110, .., detalhe em Ingold, 2002.

25
01110 um esquema O ulto para sua replicação. o entanto, esse _apeJo ao instinto
imitativo como Dev e apontou há um século, confunde a afi111~ade que resulta
da convivência, com LUna força psicológica que a produz. Isto e, ele observou,
cau, ticamente, colocar o carro na frente dos bois: "isso tem efeito para a causa
do efeito"2s_ Bem as im! De fato, a ideia do "traço culniral" é tão contraditória,
em termo , quanto a ua contrapartida genética e pela mesma razão: c_omeça
onde termina. O que às veze é ch.1111ado de "tipo de culrura", por anal~~1a com
o genótipo, in tala- e no i1úcio - como um complexo de traços - h~~lt~s ou
di po ições que ó podem urgir através da prática conjunta e da expenenc1a em
um ambiente 26 . As im como o genótipo, o tipo de culrura é uma formalização
de critiva do comportamento observado que o analista imagina estar copiado de
dentro da mentes dos indivíduos de LUTia cultura apenas para de cobrir que ele
é copiado de fora em seu comportamento subsequente (e consequente). Que a
aprendizagem exigida na cópia deva ser chamada "social", embora se alegue que
preceda a entrada do destinatário no teatro da vida social, e que a aprendizagem
que se egue deva ser chamada de "individual", embora seja realizada com outros
neste mesmo teatro, apenas destaca a confusão. Teóricos da herança cultural
parece, conseguiram comprimir tudo o que diz respeito ao social para as cabe-
ças dos indivíduo , deixando o ambiente privado de qualquer relacionalidade e
invocado por nenhuma outra razão que a de que os indivíduos devam ter algo
tangível para interagir.
Tudo isso não é, obviamente, negar que a imitação ou a cópia acontecem en-
tre os seres humanos, e possivelmente entre animai de outros tipos, ou que seja
necessário assegurar a continuidade intergeracional. Mas não precedem tanto a
prática ambientalmente situada como procedem por via dela. Como Dewey co-
loca, imitação é "um nome enganoso para compartilhar com os outros do uso de
coisas que levam a consequências de interesse comum"27• O problema então é
como transformar a experiência de tal forma que ela possa se juntar à produção
de comunalidade. Como podem "os jovens assimilar o ponto de vista dos velhos
pergunta Dewey, ou "os mais velhos fazem os jovens terem mentes emelhantes a
si m~mos?" Su_a res~osta, em sua formulação mais geral, é "por meio da ação do
amb1ent: ao ev1denc1a~ certas respostas". Como o ambiente sofre variação contí-
nua, entao a pessoa varia em resposta a ele, e vice-versa. O velhos em sua maneira
'
25. Dewe)~ 1966, p. 34.

26. Pelo que sei, essa ideia foi proposta pela primeira vez em 1978 p Ri h R bert
Bo d ·b · - fu por eter c er on e o
fen~ti ~~euma contn_ mçao ndamenral para a teoria da evolução gene-cultura. ' Para prever o
ral' p um orgarusmo cultural, de~e-se conhecer seu genótipo, seu ambiente e seu 'tipo cuJru·
C~R~~sar~o~r~i8ue o orgarusmo recebe de outros indivíduos da me ma e pécie" (Rl·
, , p. 128).
27. Dewey, 1966, p. 34.

26
ou comport.1111 ·nto, varian1 cc~m os jovens; os jovens, cm <icus esforços para rcpro-
dlllin:m o qrn~obscrva'.11,_ a1~an~ com os antigos . Ou, resumindo, 0 guc estamos
incli n.Kios .1 chamar de m11ta.çao e na verdade uma modalidade de corrcspondên i~.
L1s se é a sim, então pela me. ma razão não pode ser entendida como uma mo-
d,11ilbdc de tr:rnsmissão - ~1ão, pelo menos, no cntido de transmissão implícito
pdo modelo genealógi o. E simplesmente impo sível, insiste Dcwcy, as crença e.
atitudes que um grupo social cultiva cm cus membros imaturos serem "martela-
- po d em ser " fi1s1camcnte
i '' ou "enge ad as "·, elas nao
las . extrai'das e inseri
· 'das", e elas
não podem e e paJhar por "contágio direto" ou "inculcação lfreral". Você pode ser
capaz de fazer e sas coisa com entidade materiais como unhas, dentes e germes,
mas não com ideia cuja formação dependa da cxperiência28 •
Qualquer que eja a força das restrições de Dcwey, elas parecem ter tido
pouco impacto na psicologia convencional, cujos profissionais continuam a
pen ar que elemento de conteúdo mental como crenças e atimdes podem ser
extraídas e inseridas da mesma maneira que ele tão vigorosamente procurou
refutar, e dedicaram muito esforço à de coberta de mecanismos cognitivos ina-
tos que trariam esse feito milagroso. Alguns psicólogos, juntamente com um
punhado de cguidores antropólogos fiéis, e um pouco mais de pessoas da
biologia, têm chamando es es elementos mentais de memes. Assim como os
gene habitam o corpo e controlam o seu desenvolvimento ontogenético, assim
também os mcmes - afirman1 - habitam a mente e controlam o pensamento e
o comportamento. Isto não é, na verdade, uma ideia nova. Embora populari-
zada na última décadas pelo biólogo Richard Dawkins e seus acólitos, essa
ideia tem e tado presente na literamra há um século ou mais, sua longevidade
sendo apenas páreo para a convicção inabalável de seus proponentes de que ela
está na vanguarda da ciência 29 • Na verdade, é difícil resistir à conclusão, à qual
retornarei abaixo, de que a ideia de transmissão memética é em si uma imagem
invertida da racionalidade científica, tal corno é refletida no e pelho da cultura.
Talvez seja por isso que se mostrou tão tenaz por tanto tempo.

Como seguir uma receita

Um defen or antropológico recente da ideia ~ Dan Sperber: e~bor,: ele


chame os elementos transmitidos de "representaçoes" em preferencia a me-
mes"3º. De acordo com Sperber, representações são diretamente contagiosas:

28. Toda as citações diretas neste parágrafo são de Dewey, l 966 , P· l l.


29 • Cf. D aw ki
• ns, 19?6 ; e Bl ac~.more,
1.. 2000 · Para' exemplos de propostas anteriores para um análogo
9
cultural do gene, e referências a estes, cf. Ingold, 2016b, P· 29 ·
3 0. pcrber, 1996.

27
. . <s de uma 1.,opulaçao como uma epidemia, Ínfcc
d'" ,,mkm s. cspa liia1 ,1t1 ave. b" 1 f:
· . d . ·l hereditariedade para recc e- as e azcndo con,
t mdo mente prcpat a as pc a à
• .. . • • rtcm de maneira conducente sua propagaçao
sem hospc<.1CHOS se compo
llll<.: . . . .
.· ê · . . pegado um resfriado e cst1vcsse 111cl1nado a
,ostcnor - como se voe uvcsse .
E •. . . {i • esso com partículas portadoras de mformação
e ·ptrrar. sim, o at 1ca csp • . . ,
~ , li das e replicadas enquanto lidamos com as coisas do
que ·a.o aptanas, cspa 1a , • .
dia a dia. Dentre essas partículas - para citar um dos exem?los fa:ontos _de
per bcr - tenai11 · s1'd o, ,.,,1rc,·i·o 1·mente sons falados gue codificam mstruçoes
(li ,

para a prcparaçao - do mo 1110 Mornay. Esse"'S sons , uma vez parte de uma tradi- _
- 1· ., .·,.,
çao cu ma.11,. 01 .. , .,..,1 te"rn sido , hoJ·c , cm grande. parte deslocados pelos . padroes
de tinta vi í ei na páginas de livros de receitas. De qualque: maneira, o as-
pirante a cozinheiro ó precisa decodificar os sons ~u os padroes para receber
a in rruçõe , agora implantadas como representaçoes em sua ~ente. ~ para
preparar O molho, tudo o que ele precisa fazer é ~onverter ess_as m~t~çoes em
comportamento corporal, embora a maneira precisa com que isso e feito pode,
é claro, depender de características específicas de sua cozinha 31 •
Há, no entanto, uma porém nessa hi tória, que reside nas condições de co-
dificação e decodificação. Se sons ou padronagens de tinta servem como vetores
para a transmissão de instruções e, se essas instruções devem ser recebidas na
sua totalidade antes de qualquer ato real de cozinha - de que outra forma elas
poderiam ser "convertidas em comportamento"? -, então devemos ter alguma
maneira de colocar significado em sons e padrões, e de ler o significado deles,
que é independente de qualquer contexto de ação. Para reafirmar a questão em
termos mais gerais: não pode haver transmissão de informações de um contexto
de implementação para outro sem regras de codificação e decodificação que e-
jam independentes do contexto. Os significados de palavras falada ou escritas,
ou de quaisquer outros símbolos que possam ser usados (como numérico ou
geométricos), devem ser dados com antecedência. Mais uma vez Dewey já e
debruçava sobre o problema muito antes de seus suces ore e tarem con ciente
disso. Nossa familiaridade com a linguagem falada e escrita, ele ob erva, é tal que
somos facilmente enganados em pensar que o conhe imento pode er in erido
diretamente na mente do outr·o: "quase parece que tudo o qu temo a fuzer [ ... ]
é transmitir um som para sua orelha"32 . Apena sus urre a pala ra 'derreta a
manteiga em uma panela e mi turc a farinha" e um molho 1ornay ai e ma-
terializar magicamente! Mas há, como Dewey nos diz, muito mai do que i o.
Pressupondo, para começar, que eu fale ua língua (e, a sim, colocando
entre parênteses a riqueza de experiências da infância, através da qual temos a

31. Ibid., p. 61.


32. Dcwey, 1996, p. 14.

28
Pº""L' de no~s,1 li_ngua 111,11:rn.1 ~, pos~o auJ111panhc11 0 qu. você di1, <;6 porque
LlH r ·,pomk J m111l1.1 cxpcncnc1.1, assim como ocorre com a sua, de derretimen-

to e .1gi t.1ç,10, d· m.rnus ·ar substâncias co mo f: rinha e manteiga, e c.le encontrar


0~ ini,.?.rcdicnt ·s e utensílios relevantes nos vários cantos da minha cozinha. Ac;
111 • truçô-. verbais da re ·cita, cm outras palavras, extraem seus <;Ígnificados nem
do ·cu apego a representaçoes mentais de dentro da minha cabeça, nem de c;eu
.,pego , queb dentro da sua, mas do se u posicionamento c.lentro do ambiente
famili,1r d.1 a, a"". enfade, ·e cu tivesse lido as palavras cm um li vro de receitas
em vez de cê-la no meu ouvido, talvez nunca teria conhecido o autor· de fato
podemo ter vivido discantes no espaço e no tempo. Mas como Dewey'observa,'
J proximidade fí ica em si não cria comunidade: "um fívro ou uma carta pode

in cimir uma a sociação mais íntima entre os seres humanos separados milhares
de quilômetros uns dos outros do que existe entre moradores sob o mesmo te-
to"34. O que importa é que tenhamo experiência para compartilhar. E e se era
o argumento de Dewey. Nem sons verbais nem as marcas gráficas da escrita, ele
in i riu, vêm com seus significados já anexados; em vez disso cJes reúnem eus
ignificado , da mesma forma que as coisas, a partir de sua inscrição na expe-
riência de atividade conjunta. O acordo a respeito do significado das palavra
é uma conqui ta da comunhão: temos que trabalhar continuamente e, por es a
razão é sempre provi ório, nunca final.
A experiência que você e eu compartilhamos, ou que eu compartilho com o
autor do livro de receitas, é de viajar através de umf am o de tare a a oc1a as.
Em outro lugar eu cunhei o termo "tas/zscape"* para me referir a e te campo35 •
Como placas de sinalização e1n uma paisagem, as instruçõe do livro fornecem
indicações específicas para os profissionais na n1edida em que ele percorrem o
taslzscape, cada instrução estrategicamente localizada cm um ponto que o autor,
olhando para trás em experiências prévias de preparação do prato cm que tão,
considerou uma conjunmra crítica na totalidade do proces o. Entre e· e pon-
tos, espera-se que O cozinheiro consiga encontrar eu can1inho, atenta e rc -
ponsavelmence, mas sem recurso a regra procc suais explícita· . - ou, em uma
, .
palavra, habilmente. Em si, então, a receita não é conhcc1menco. Pelo contrario,
abre um caminho para O conhecimento, gra as ~ ua localiz,1ção dentro de um

33. Ingold, 2001, p. 137.

34. Dcwcy, 1996, p. 4-5.


35. lngold, 2000, p. 198-201.
k O amor utiliza a expressão "tnskscn,pt"' para ressaltar a dinâmic;\ d.1s p.1is.1gens. É m~u. clspé~•l·c
,1 pc a
de entre
• 1açamcnro de tarefas. Em determmal • 1o momento . lte ·su '\ obr.i ' chegou .1 subst1tm-
.. ,f:
PaJ •• . , . ,. lta 1· o entrelaçamento de diferente tare a
' avra trama, mas agora voltou a ut1ltzá-la, para icss.i '
acontecendo fN .1~ J.

29
tm1:scnpt qlll: j,l (: parcia lmente familiar cm virtud_e de experiê_n~ias anreriorcs.
Sorm:11tc qu,mdo colocado no contexto de habilidades adquinda<; atravé<; da
npcriênci,l é que a informação especifica uma rota que é ~omprec_nsfvel e que
pode ser seguida d· maneira prática, e apenas uma rota assim_especificada pode
lcv,1r ao conhecimento. É nesse sentido que rodo o conhec11nento é fundado
11.1 habilidade. ssim como meu conhecimento da paisagem é obtido andando
,ltr~1 és dela, seguindo várias rotas sinalizadas, também meu conhecimento de
culinária a<l ém de eguir as várias receitas do livro. Isso não é um conheci-
mento que foi transmitido para mim; é um conhecimento que cresceu cm mi111
enquanto cu segui o mesmos caminhos que os meus predecessores e sob a
direção dele 36 .
Receita nesse entido são como histórias. Elas têm uma csrrurura narra-
' ,
tiva: ''primeiro faça i so, depois aquilo; observe, ao fazer isso e aquilo, como a
con i tência de eus ingredientes muda". mdo o que cu disse sobre receitas
e aplica a histórias também. Os antropólogos estão certos ao chamar a atenção
para as funções educativa de contar histórias, cm todo o mundo. Mas eles têm
errado ao concluir que as história são, portanto, vctore para a transmissão
codificada de informação que, uma vez decifrada, revelaria um sistema abran-
gente de conhecimento, crenças e valorcs 37 . Longe de vir com seus significados
já ligados, o significado de histórias - assim como o significado das instruções
no livro de receitas - é algo que os ouvintes têm de encontrar por si mes-
mos, atraindo-as para a correspondência com as suas experiências e histórias
de vida38 . Histórias se sobrepõem, com cada contar de história se inclinando e
cocando a próxima. Assim como as vidas acerca das quais elas falam. É assim
que ela continuan1. Vale a pena relembrar, aqui, a minha distinção anterior
entre o modelo genealógico e a recitação de genealogias. Uma no dá urna
equência conectada de ancestrais e descendentes, na qual cada elo entre pai e
filho é uma linha de transmissão. Mas o outro nos dá um correspondência de
vida - ora sobrepostas, ora ultrapassadas - comungando e variando ao longo
do caminho. Sendo experienciada em vez de modelada, a filiação não é um elo
de wna cadeia, mas um "envelhecer juntos", que continua até que a vida dos

36. lngold, 2001, p. 137-138.

37. Um .exemplo é o relato. . sensível


. de Donna Eder (2007) sobre a' narraç-ao
, , d e h'1stó nas
· ·md'1gcnas
dos
· navaios e
, • dsua transfcnb1lidade ao contexto
, . instintcional da escola
' ocide n . m ora en f:anzan
tal E b · do
a 1mportanc1a e se concentrar nas praticas de dizer, bem como O conteúdo d
· d . . o que
é d'
Jto,
Ed no
er,
entanto, sustenta que o propÓsito as lu tónas é transmitir um co 11J.l'"to d · 'fi dos
· I' · · " . u, e crenças e s1gm ca
tmp imos que, )Unto~, c?nsagram os princípios necessários para viver bem" (EDER 2007 279
288). _As crenças e s1gmficados já estão lá , enterrados nos textos
, d 1 ·
a 11st na, mesmo antes e su a'
ó · ' 'Pd·
narraçao.

38. lngold, 2011, p. 162.

30
,uis
r• •
e ..üxindo1uda, altura cm guc a criança terá encc>ntrad o outras v1·d as com
39
a, qu.11s corresponder· .

Razão e herança

Em vi ta de todas as objeções gue foram levantadas contra a noção de edu-


cação como trans1nissão ou "transporte direto", e não apenas nos escritos de
Dcwey, sua obstinada persistência exige alguma explicação. O próprio Dewe
e pergtmtou por que, apesar da disseminada condenação da ideia de ensino
como Lm1a espécie de decantação, e do aprender como ato passivo de absorção,
elas permaneceram bastante arraigadas na prática. Para ele, isso era uma fonte
de considerável frustração 40 • Um século depois, não mudou muito. a escola,
ainda se espera gue os estudantes sigam um currículo que foi estabelecido com
antecedência, e que progridam através de etapas mensuráveis desde o início até
a conclusão. Como se alguma lógica inexorável nos impelisse a impor um regi-
me cada vez mais restrito e finito de treinamento pedagógico, ao mesmo tempo
em gue exaltamos o valor da educação como a estrada real para a iluminação
racional. Lembro-me das lições de piano que tive que suportar quando criança.
Através de uma mistura de ameaças e incentivos, que não tinham nada a ver com
música, eu fui convencido a praticar escalas e arpejos. Desprovido de interesse
melódico, eles foram tocados uniformemente e sem expressão. Somente passan-
do por tais movimentos determinados mecanicamente, foi-me dito que eu pode-
ria ter alguma esperança de eventualmente alcançar o virtuosismo e a liberdade
expressiva exemplificada pelos mestres do instrumento. Desnecessário dizer qu
eu abandonei esse regime assim que pude, e obtive muito prazer musical tocando
à minha maneira inconstante, mas ainda assim variável desde então. O apelo con-
traditório para a liberdade e para o determinismo, aqlú como em tantos outros
campos de atuação, desafia o chamado de Dewey por uma educação dedicada a
crescimento de pessoas na commudade. Poderia ser que o ideal da iluminação
o que mantém vivo O modelo de transmissão? A história da antropologia fornec
uma pista para a resposta. .
Dizer que a antropologia há muito tem um problema com o conceito d
cultura seria um eufemismo. o problema está no fato de que a mesma palavr
com a qual, entre nossa própria espécie, nós exaltam.os o r:finamento do gost
e das boas maneiras também é rotineiramente aplicado a herança de outra

39 • A expressão "envefüecer juntos" vem d a etenomeno IOgia social de .Alfred Schütz,


b. afi
que a usou par
d
d " ~ ruamente envolv1dos na 10gr, 1a um o outro
escrever como consociados, pais e filhos, estao mu
(SCHUTz, 1962, p. 16-17).
4 0. Dewey, 1966, p. 38.

31
pc ons iletradas ujo pensamento e conduta devem seguir os ditames da tra-
dição•I'· I Iistoricamente, a antropologia se moveu de um extremo ao outro, da
célebre dcfiniçao de" ultura ou ivilização" com a gu!l Rch:a.rd Burnctt Tylor
nbriu sua cultura primitiva de 187 J, abrangendo tudo adgu1r1do pelo ho~cm
como um membro da sociedade", ao empréstimo ostensivo de Robert Low1c da
mesma definição cm sua História da teoria etnológica, ~e ~ ~37, onde ~ cultura,
no entanto, tornou-se "a soma total daquilo que um 111d1v1duo adqwre de sua
sociedade [ ... ] não por seus próprios esforços criativos, mas como um Jegado do
passado"'~2 • Para Tylor, Cultura (sempre no singu lar e com " "maiúscul?) era o
grande processo civilizacional pelo qual a humanidade se elevou progressivamen-
te, a diferentes graus entre diferentes nações, da superstição grosseira à razão e à
iluminação. Lowie, ao contrário, via na cultura uma diversidade quase aleatória
de formas habituais de viver e pensar, sendo absorvido sem esforço por sua mi-
ríade de portadores. Para toda a cultura humana, a que Tylor chamou de "todo
complexo", Lowie substituiu o termo de maneira célebre por "confusão sem
fim" 43 . A diferença entre suas respectivas definições depende do que significa di-
zer sobre a cultura ser "adquirida". O "homem da sociedade" de Tylor, em busca
de seu próprio progresso, adquire ativamente conhecimento através de investi-
gação intelectual. O "indivíduo" de Lowie, por outro lado, absorve sem esforço
as coisas a que ele estiver exposto, adquirindo sua cultura como uma herança
já concltúda. Indiscutivelmente, no entanto, foi o próprio projeto de Cultura
que precipitou a inércia percebida da tradição cultural. "Homem na sociedade",
tendo atingido o cume e observando a paisagem da humanidade de suas alturas
olímpicas, vê apenas a "confusão" abaixo de indivíduos envolvidos em seus diver-
sos caminhos, presos pelos legados do passado e sem a energia criativa para sair.
Nós temos Cultura e eles não porque eles são tidos pela cultura e nós não somos.
Hoje vemos essa mesma duplicidade nos debates sobre "ciência" e "conheci-
mento tradicional". Graças aos esforços combinados de antropólogos e seus con-
sultores, agora é amplamente reconhecido que as pessoas que ainda habitam em
lugares nos quais vivem da terra, ainda que possam ter se beneficiado um pouco da
educação "oci~ental", conhecem seus ambientes de maneiras que são extensas, de·
t~adas e p~ec1sas. Seu conheciment? cresce e é_ ct~tivaao na correspondência, não
so de geraçoes sucessivas, m ambem com ammais, plantas e a terra. Até cientis-
tas, que anteriormente haviam descartado o conhecimento dos habitantes como
muito subjetivo, qualitativo e anedótico para ser de valor, finalmente despertaram

4~. ~mA invenção da cultt~ra, publicado pela primeira vez em 1975, Roy Wa ner oferece um relaco
class1co de como cada sentido de culnll'a precipita O outro (2016, p. 21-27). g
42. Cf. Tylor, 1871, I, p. l; Lowie, 1937, p. 3.
43. Lowie, 1921, p. 428.

32
p,H\1 o :-,cu significado po tencial. Mas o que a ciência ainda acha difícil de entender
e ,111.uuro.1 dc:-i~c conhecimento. Para o projeto de ciência, concebida como a aqui-
,1ç,10 de conhccirncn_co atravé ?ª investigação empírica e análise racional, precipita
0 i;cu oposto, .º:' sqa, conhccm1ento que não apela para a razão, apenas para 0
1cg.1do da tr.1d1çao. O resuJtado é que formas de saber as quais nada são senão di-
n5..111ic.1s e abertas vêm a ser rcfonnuladas na imaginação científica como fórmulas
fi,as, proferidas cm questionamentos e com a autoridade de tempos imemoriais.
, próprias pessoas, embora se reconheça que elas sabem, não se espera que elas
.1ibarn que abem. Nem que elas percebam como, sem que elas saibam - através de
im'.u11eras gerações de eqtúvocos-de-cópias-cm-transmissão, acidentes de recombi-
nação, e uma peneira de alternativas dependendo das quais são mais bem-sucedidas
em fazer com que seus portadores se comportem de maneiras propícias para a sua
po terior propagação - , o seu conhecimento torna-se muito bem adaptado à vida
nos ambientes que habitam. A cultura se adapta, declaram os cientistas (como se
fo se tm1a grande descoberta e não um reflexo de sua própria razão), de maneira
análoga à adaptação por variação na seleção natural no domínio orgânico! Mas as
funções adaptáveis do chamado conhecimento tradicionaJ e as forças seletivas que
o moldaram, são - de acordo com esta narrativa - evidentes apenas para os cientis-
tas que a enquadraram e1n primeiro lugar, não para as pessoas que estão aparente-
mente destinadas a gastar suas vidas em sua implementação44 •
O conhecimento tradicional, em suma, é um artefato da razão científica,
precipitado por reivindicação própria da ciência de ter sido transcendido por
ela. Assimilado ao tipo de cultura, pertence a um racionalização do comporta-
mento precisamente análoga à racionalização genotípica equivalente do design
orgânico. Tanto o genótipo quanto o tipo de cultura, como já vi.mos, são lança-
dos pelo modelo genealógico, que substitui o crescimento e o desenvolvimento
pelo binário razão e herança. De UlTI lado do binário estão cientistas e outras
pessoas da cultura; do outro lado estão os guardiões do con.fiecimento tradicio-
nal, pessoas na cultura. E se os últimos, não sabendo o que abem, cnizarem
a fronteira entre a tradição e a razão, então, paradoxalmente, eles precisam da
ciência para reeducá-los em seu próprio conheciinento, para explicá-lo de volta
em termos formais, para que eles possam ver como o c?nhe~imento po~e ~er
usado como um instrumento de gestão racional e para liberta-los dos gnlhoes
do passado. o paradoxo não se limita, contudo, ao diáJogo pecul~ar da ciência
e do conhecimento tradicional. Isto é também encontrado nos discursos con-
temporâneos de educação, onde a mesma fronteira divide a in~enuidade da
infância da inteligência adulta. Estamos convencidos de que as cnanças devem

-
44 A li

-----------
,• d 'ê ·a e do conhecimento tradicional é ex.tensa. Di cussões
teratura critica em torno a c1 nct . k 1998 4 5-70· K ttil ln-
exemplares podem ser encontradas em Agrawal, 1995; Cnukshan , ' P· ' ur ª e
gold, 2000; e Nadasdy, 2003.

33
,n tdu .,d.,, p,u,, que prn,s,1111 ,1tr,wcc,c,ar de uma ond1çao para outra. Para este
hm, 0 mundo que das conhecem por e, periênc1a tem ~u · <;~r dcvolv1do a elas 1

k 101 m,, r,1 ion,1h1,1L\.1, como um sistema de regras e pnnc1p1~Js, ou o que antes
·r,,m ·lum,,dos de rud imentos. Drenados da variação am biental, esses _rudi-
mcntrn, ,10 tr,rnc,mitido 5 ,10s estudantes como se eles mapeassem um continen-
te 1,1 onhc ido, c,ervmdo de base territorial para sua própn: ascens,ão a razão.
mrnKio, upomos, deve ser explicado àqueles que he_rdara~ de nos pa~a q~e
1

pos am ..,e libert,1r de c,uas dcterm inaçõc5, mas no propno proJeto de expli_caça?
no~ o Ycmo - sejam ele habitan tes na tivos ou criançac; - como seres de mteli-
o-cn ia inferior a nó me mos, eres que devem neces ariamente confiar
t:'t ..
no que•
lhe foi tran mitido de de que ainda sejam incapazes de resolver as c01sas por s1
me mo 45 • Longe de superar a desigualdade pre umida da inteligência, a lógica
da razão e da herança a reproduz.

De volta à escola

A cultura humana, na imaginação pedagógica, é uma imensa pirâmide. a


ua ponta está a voz da razão, singular e resplandecente. Com sua pretensão de
u.niver aJidade, a razão é indiferente a variações na experiência daqueles que fa-
lam em seu nome. Transcendendo a experiência, fala com uma voz e uma ó, e
todo os que falam com ela são, portanto, intercambiáveis46 • a base da pirâmi-
de, enxames de memes variados competem pelo ho pedeiro na boca dos quai
vão colocar suas declarações proverbia.is, e em cuja mão ele vão co locar eus
modelos prescritos. Esses hospedeiros também não têm voz alguma que po am
chamar de sua. Eles são apenas vetores, fadados a tran mitir o meme com
quais foram infectados - e qualquer pessoa infectada com o me mo meme dir..i a
mesma coisa. Eles não faJa.m por eles mesmo , ma pela cultura. O mundo egun-
do a pedagogia, em suma, é um teatro de marionete : acima, a razão, a me rra
manipu ladora de marionetes, puxa a corda ; abaixo, LU11 el n o heterogêneo
de personagens, reunidos a partir do elemento da tradiç5. tran mitida, ;io
obrigados a dançar à sua sintonia. "A razão", como o filó ofo lichel erre iro-
nicamente observa, "nunca descobre, embaixo de , cu pé , qualquer coi a alén1
de seus próprios ditamcs"47 .

45. lfüe é o argumento do filósofo Jacques· Ranci · rc , 1991 , "., 0 qlt"l


.. re t onurcn1os.
46.
16 . A comunidade da razão, como diz, Jl 'testa, • e< constmuua
, • '. 1 •
por unu hngu1gem comum e lu11J
gica_comum. Is~o nm dá uma voz, mas apenas uma voz rcprcscntac'·,v·~ l ·] En1bo,.,.. ·,mparte 0
guc dizemos - · \ · · ' "· ... '"
biávcís" (Bil~~;~1~0p006rta 9t61em e.';t, d1zc~1t!o isso, porque na comunidade racional omos interc-Jlll·
, , p. 2, ênfase ongmal) .
47. Serres, 1997, p. xííí.

34
( 'o_nsidcrc, por ex ·mplo, o Teorema d~ Pitágoras, que O quadrado da hipote-
nus,1· e 1gu.1I
.. J sonu
. , dos quadrados nos do1o.; lados
• OJ)OStos • Que ele es·teJa
· associa-
·
do ,10 nome de P1_t.lgor:s é_, a prop~siLo, envolto nas névoas do tempo, mas veio
., rcprcscnt.1r ,1 qumtessen 1a ~a razao matemática abstrata, para a qual O teorema
e um etcrn~) 1~1<_lnumenLO, f 01s na pcd~gogia o nome não se refere mais ao per-
sonagem h1 tonco. E para esse propósito, cm princípio, qualquer nome serviria.
1.1. o que devemos fazer ela "hipotenusa"? 0111 que frequência qualquer um de
nó usa o termo na vida cotidiana? De fato, para a maioria de nós, 0 Teorema
de Pidgora é apenas uma daquelas coisas que aprendemos a recitar na escola. É
uma fórmu la para tran mi são, não uma demonstração de razão, e, ao recebê-lo
como tal, e replicando-o ob demanda, estamos apenas consolidando a impressão
de que temo a nós mesmos corno ercs de inteligência inferior, pelo menos em
comparação aos matemático . Que ele inclua tal palavra esotérica como hipote-
nu a - uma palavra raramente ouvida hoje fora do fechado círculo do teorema
e ua recitação - serve apenas para confirmar seu afastamento da experiência.
O teorema parece existir, nas palavras de Dewey, "em um mundo por si só, não
as imilado aos costumes comuns do pensamento e da expressão"48 •
Dewe)r, vocês devem se lembrar, rensou que deveríamos come ar nossa com-
preensão sobre o que é a educação não da escola, mas da vida. O problema
com a educação escolar:, em sua estimatiya, é gue ela tem uma maneira de isolar:,

- --
o que é ensinado do cadinho da ex eriência vivida a artir da g_ual o conheci-
----
mento real é gerado. O resultado é uma tendência a reduzir conhecimento a
informação transmitida Fºr meio de formas verbais e outras formas simbólicas
-
cujo significados são perdidos naqueles que não têm oportunidade de participar
de práticas que podem, em tempos passados e lugares remotos, originalmente
ter dado origem a elas. A hipotenusa pode ter sido parte do vernáculo cotidiano
dos antigos construtores gregos, mas não é mais assim para as crianças de hoje.
Há um perigo permanente, advertiu Dewey, que, na medida em que as escolas se
tornem cada vez mais dedicadas à transmissão de informações nessa forma isola-
da, o que é ensinado e aprendido nelas será separado da vida cotidiana, levando
a uma bifurcação entre a excelência técnica e o conhecimento comum pelo qual a
paisagem da educação deixará de ser uma de variação contínua, dando lugar a pi-
cos de especialização, que surgem de uma base homogênea e isotr~pic~ de_ senso
comum49 • Examinando a cena um século depois de Dewey ter escnto, e eVIdente
gue sua profecia foi catastroficamente cumprida.
o entanto seria errado ir ao outro extremo e desejar wna sociedade sem
escolas. Talvez ;stejamos presos em um círculo vicioso: talvez precisemos de es-

48 - Dewey, 1966, p. 8.

49. Ibid., p. 8-9.

35
. , as temos e porque constniímos uma sociedade baseada
cola apena po1 que nos , , , 1 -
< '_ •ifi -~ ó ela podem prover. Mas é um circuJo do qua nao somos
cm qu;u 1caçoes que .
• d
ma1 capazes e sair, assim· · como também não podemos 1r devo1. ta a um passado .
·unagma · d o, quand o tudo O que al01 o-
1ém precisava saber podena ser aprendido
. . . .
, d · · - 0 11a vi·da da comunidade. Se isso foi sempre assim, é d1s.
atravc a part1c1paça . . .
, l
cunve; ma certamen e n t a
- 0 é m";S
cu.
assim hoJC •
O mundo ue habitamos

atual.
mente é tão complexo, e coloca demandas tão diversa~ em seus habita~tes, que
algumas instituições do tipo são indispensáveis. Afé"m dis_so, se a educaçao armai
está disponível e é necessária para algtms, ela deve ser asslffi, para todos, para que
aqueles que não se beneficiam não sejam deixados em desvantagem p~rmanente,
incapazes de aproveitar as oportunidades de vida de seus contem 1:,or3:11-eos edu-
cados na escola. A questão, como Dewey deixou bastante claro, nao e de como
eliminar a escola, mas de como atingir o equilíbrio certo entre os modos formal
e informal de educação 50 . E não havia dúvida na mente dele, e na nossa hoje, que
o equilíbrio caiu desastrosamente para o lado da escolaridade formal.
Uma consequência desse desequilíbrio é a tendência de pensar a educa-
ção exclusivamente na linguagem da pedagogia e buscar suas precon?ições em
capacidades de simbolização consideradas exclusivas de humanos. E isso que
predispõe os antropólogos, trabalha11do em sociedades sem escolas, a procurar
educação na transmissão de informação simbolicamente codificada, por exem-
plo, em contextos de narrativa. Inicialmente na posse de idosos, é suposto que
a informação seja progressivamente liberada para jw1iores cujas capacidades
mentais são inatamente preparadas para recebê-la. Assim, a diferença original
entre juniores e seniores é gradualmente apagada na medida em que os primei-
ros são "reabastecidos" no nível dos últimos, apenas para que o processo seja
repetido na próxima geração. Mas se isso fosse assim - se a única diferença in-
tergeracional fosse entre os graus de herança, ou entre saber mais ou menos de
um repertório preexistente-, então a própria vida social teria sido embrutecida.
Cortada de sua fonte de nutrição, estaria presa em um retorno de ciclos sem-
pre repetidos de que apenas erros acidentais de transmissão poderiam oferecer
esperança de fuga. No entanto, apesar do efeito estultificante as metáforas da
transmissão e da herança continuaram a monopolizar O nosso ~ensamento não
apenas n_a antro~ologia, mas em todo o espectro das Ciências Humanas. L~nge
de
. respeitar
,. . a diferença, essas metáforas a expressam-na em g raus vana · d os de
1gnora11e1a,
_ . , ou de crença equivocada ou irracional , vi·s -a-vis ' · a orusc1encia
· ·" · da
razao
di e
c1ent1fica. que acabaria com o processo de comtingar e erradi cana · tod a a
1erença, se tivesse o poder de fazer isso.

50. ''Um dos maiores problemas com os uais a fil fi -


manter um equilíbrio adequado entre q d oso ª d~ e?ucaçao tem que lidar é o método de
cional" (DEWEY, 1996, p. 9). os mo os de educaçao informal e formal, incidental e inten·

36
este c,p(ntlo, argumentei , com Dewcy, contra a contraposição da razão
e d., herança ,\ que subsc~·c~c o modelo dominante de pedagogia. Este modelo,
na \'Crd.,dc, au • uma c1sao entre os modos de conhecer e os cQ.Oh ·cimentos
que eles transmitem . Quen: sabe é uma coisa; o conteúdo do que. é co..obecido
e outro. pe~agog1a~ entao, encena seu próprio método, gue, em princípio,
p de er e pec1ficado mdependentementc do quem e do o guê da Educação. É
equivalente a um método de transmissão, julgado em termos de sua eficiência
nio em crescimento de pessoas ou de seus conhecimentos, mas na transcrição de
conteúdo preexi tente de cabeça a cabeça. É minha opinião, ao contrário, gue o
primeiro lugar para encontrar a educação não está na pedagogia, mas na prática
participativa: não nas formas como as pessoas e as coisas são simbolicamente
repre entada na sua ausência, mas nas formas como são apresentadas e, acima de
rudo, como respondem umas às outras, nas correspondências da vida social. O
conhecimento cresce acompanhando linhas de correspondência: em comuob:ã~
onde e juntam; e em variação, em que cada um vem a si. Todo modo de sabe
então é uma linha de vida distinta, uma trajetória biográfica. Segue-se que tor-
nar- e conhecedor é parte integrante de se tornar a pessoa que você é. Isto é o que
o traz à tona quando você pensa é com sua mente e não com a de outra pessoa·
que quando você fala é com a sua voz; que quando você escreve é com a sua
mão. A educação democrática, em suma, é a produção não do anonimato, mas
da diferença. ão e o que nos torna humanos, pois como criaturas nascidas o
homem e da mulher somos todos humanos desde o início. É o que nos permite
que os seres humanos coletivamente se façam, cada um em seu caminho. É um
processo não de tornar-se humano, mas de devir humano. E como vou mostrar
no próximo capítulo, isto significa que devemos deixar de considerar a educação
como um método de transmissão, e pensar nela como uma Erárica de aten ão.

37
2
Pela atenção

O princípio do hábito
ós, seres hLUnanos não apenas vivemos nossas vidas. 6s as levamos. Essa
é a diferença entre bios e zõe, entre a vida vivida como uma hist6ria e a vida ligada
aos ciclos da natureza51 • Se animais não humanos, pelo meno de alguns ápo
também podem conduzir suas vidas, é uma questão para a qual nós atualmente
não temos uma resposta certa e, embora de grande interes e e importância, não
irei abordá-la aqui. O que presentemente me preocupa é a diferença, o excesso do
conduzir sobre o viver não a que tão de onde traçar a linha, se de fato alguma
pode ser traçada, entre criaturas que conduzem e criaruras que vivem a vida. Eu
quero saber o que significa conduzir a vida, em que sentido isso supera o que ja
existe, em que sentido tem um passado e um futuro, e uma noção de ua direção
própria. Para tanto, afirmo, é nmdamentalmeme a questão da educação. A pab-
vra "educação", afinal, é derivada do latim ducere, "liderar", embora o ignificado
do "e" que prefixa é um assunto mai comp 1cado para o qual retornarei. o ul-
timo capítulo eu argumentei que conduzir a vida não tem a ver com tran mi .io.
Pelo contrário, a transmissão fecha a vida para baixo, limitarido-;.1 à replic;.1 ~10 d~
rotinas já existentes. Na melhor das hipóteses, é uma modalidade de rreinJITiento.
não de educação. Neste capítulo cu argumento que o que realmente faz ,1 diteren-
ça entre conduzir a vida e viver é a atenção.
Tal como acontece com a ''educação", vale a pena not~u- ,1 deri,-.1çio d.1 p,1-
lavra, que mais uma vez devemos ao latim. '½tenção" vem do 11d-tt·11dt 11-, que
significa literalmente "alongar (tendere) cm direção a (nd)". F o ,1longamcntl) d,1
vida que busco. Todos sabemos o que isso significa, intuitiYamcncc, qtundl m. ,
esforçamos para ouvir um som distante. Embora cm um sentido pu ,un ·me m ·
cânico, o som alcança os nossos ouvidos, que estão finru:mcme l'itnl'lll\h.l(. , •nt
nossas cabeças; a sensação que temos é de que somos nós que ,1k,uw,1mns ,1 font ·
do som, como se todo o corpo fos~c ele mesmo urn ouvido d,,stko qu, s~:nt • 'tt'

51. Eu suscito aqui a discussão de Hannah Arcndt ( l 9fiH, p. 97) ,oht • n wm,du tb, 1,1,\ (. 1 ti
Ingold, 2015, p. 125-129.

38
sua tcn ão o e, forço do alongamento. ó dizemos - .
. 52 " que nao apenas ouvimos, mas
escura.mo
, . anvamente-
. . Esse
. é um significado
' de ate n tar. M as a palavra tem wna
érie de 1g111ficado relacionados que são igualment ·
. . . e unportante para o que vou
ter a dizer. E te mcluem:
, . cmdar
. de pessoas
' 011 de coi·sa , d e uma 1orma
e
que é ao
me mo tempo pratica e obediente·, e perar, na expectari· , , va d e wna ch ama d a ou
convocação; estar presente, ou entrar em presença, como em uma ocasião; e ir
junto com O outros, ~orno na adesão ou acompanhamento. Além de n.1do isso,
no entanto, eu gos taria de dar um significado adicionaJ para O aJongamento da
vida - mn temporal - pelo qual, com bios, a vida não é meramente vivida no aqui
e agora, mas é esticada por uma memória do fun.1ro que se permite que cada mo-
mento presente possa ser um novo começo. Para esta lembrança imaginativa, ou
imaginação mnemônica, introduzirei o termo "saudade". Saudade, no meu uso,
é outra palavra para o alongamento de uma vida, ao longo de uma linha.
Para começar, no entanto, gostaria de voltar a John Dewey e ao que ele tinha
a dizer sobre a continuidade da vida, especificamente em seu trabalho posterior
sobre a Arte como experiência53 . Aqui ele delibera longamente sobre o significado
de dois termos que erão igualmente de grande importância para a minha argu-
mentação, nomeadamente' fazer" e "passar por"54 . Em toda experiência, nos diz
Dewe)~ deve haver um elemento de ambos. O problema é descobrir a relação
entre eles, pois na percepção dessa relação está o trabalho da consciência. ão
pode ser que eles meramente alternem, pois, se assim fosse, não haveria nenhum
padrão para experimentar: não haveria mais do que uma série de episódios des-
conectados. A perspectiva de Dewey é de que a vida é contínua, em vez de episó-
dica, precisamente porque o passar por algo não está confinado dentro, mas sim
transborda todo fazer. esse sentido, as ações que empreendemos no mundo - as
coi as que fazemos - assumem e extraem alguns dos seus significados das coisas
pelas quais pas amos no curso de feitos anteriores, ou pelas quais passamos sob
condiçõe ambientais que essas ações causaram. E, por outro lado, o que atual-
mente enfrentamo na realização dessas ações, e as consequências ambientais que
elas trazem a seu turno, se sustentam em fazeres posteriores. O processo de viver,
para citar Dewey longamente,
[ ... ] po Ul· continuidade porque é um processo eternamente
.
renovado
de ao-ir obre O ambiente e de ser afetado pelo mesmo, Juntame?te com
a instituição das relações enrre o que é feito e as coisas ~elas qua.1s passa-
mos. [ ... ] O m undo que experienciamos torna-se parte mtegrante dp eu

52 s b di . - vir cf Home-Cook 2015, p. 24-29. Cf. tb. lngold, 2000,


• o re a snnçao entre escutar e ou , · '
p. 277.
53. Dewey, 1987. Este trabalho foi originalmente publicado em 1934·

54. Ibid., p. 47-58. Cf. tb. Ingold, 2015, P· 125- 129 ·

39
qm .,gc l ,lP,l de ,Kordo com ,1 cxpcnê11c1,1. hm c;ua ocorrência física,
.,, ull,,,, e m nc ntm cxpcncnclcl(.lm pass,1m e c;c vao. Ma<; algo do ,cu
,iµrnhL,\ do e \',\lot é m,111t1do como parte integrante do cu. Através de
h.,bHrn, fmm,lllm 110 111tcrcurso com o mundo, nós também habita.
mm dentro do mundo. Ele torna se um lar e o lar fu parte de todas as
no,-,,1s c\pcriências 55 •

cst.1 p,1ss.1gcm, .1lém de "fazer,, e "passar por'', Dewey apresenta u~ tcr-


-c1ro termo que também é crítico para o argumento guc desenvolv~ aqui. Isto
e o "lubito". O termo é notoriamente ambíguo, geralmente referrndo-sc ao
que faz as pc , oa fazerem as coisas e ao gue é formado nelas em conseguência
de rcpctid~rn1cntc fazê- las 56 • ós fazemos os hábitos, ou o hábitos nos fazem~
E, ta.mo , por a im dizer, na frente do hábito ou atrás dele? A resposta de De-
wey para o enigma é upor que não estamos nem na frente nem atrás, mas no
meio. Em efeito, ele re olve a ambiguidade mudando o registro de causa e con-
equência para o de processo. Assim, hábito, para Dewey, não é nem produtor
nem produto, mas o princípio de produção, em que um eu que habita em suas
própria prática é recursivamente gerado por elas. Como tal, o hábito é o que
opa ar pelas coisas traz para a tarefa do fazer. Em uma de suas últimas decla-
rações publicadas sobre o tema da educação - suas palestras sobre Experiência
e Educação datadas de 1938 - Dewey retorna à questão do hábito. Tomando
cuidado para distinguir o hábito como princípio do que poderíamos pensar
normalmente como um hábito, ou seja, uma maneira já fo<:a e estabelecida de
fazer as coisas, Dewey explica que, de acordo com este princípio,
[... ] toda experiência executada e pela qual passamos modifica quem
age e quem passa por ela, enquanto essa modificação afeta, quer quei-
ramos ou não, a qualidade das experiências subsequentes. Poi é uma
pessoa um tanto diferente que entra nelas 57 •

Mais uma vez, Dewey caracteriza a experiência através da conjunção de fazer


e passar por. E, novamente, o que para ele define hábito é uma relação e pecífica
entre os dois, na qual todo fazer é realizado passando por algo. Para apreciar
a importância deste princípio, basta-nos in1aginar qual eria a con eguência e a
relação fosse invertida. O que aconteceria se todas as sessõe fo en1 ubtendidas
por um ato de fazer, em vez do contrário? A inver ão, na verdade, produziria
um princípio que é o oposto do princípio do hábito: poderíamo chamá-lo de

55. Dcwcy, 1987, p. l 09.

56. Para uma discussão dos muitos significado do hábito e sua proveniência filosófica, cf. Car-
lislc, 2014.

57. Dcwey, 2015, p. 35.

40
nrindpio
r .
da_ vo lição. De
.
acordo com este princípio, tod o ato d elib erana • so b re
uma 111ccnçao propositalmente colocada ames del O e • •
. _ ' a. 1azer começana agm,
com uma 111tençao na mente de rnn agente e te. · ·
. , rmmana ne1a mesma com essa
. . cumprida no mundo. Entre o. começo e o fiun lá
inrcnçio 1 ,

é c1aro, coisas pe1as
quais o agente .tem . que passar - e possivelmente 11 a
-
,0 só 1 f:
ague e que az, mas tam-
bém outros su1eitos sob se~ comando e inscritos em seu projeto. Todos estão
O
fadado a passar por seus .efeitos e podem , de f:ato , , ser· alte rad os por eJes. Mas,
desde que aquele que estep passando por algo esteja dentro do ato do fazer ele
estará t~1.mbém sendo passivamen~e levado pelo ato, pois a parte ativa da conduta
é defimda por seus fins, ou finalidades. Com o princípio da volição, em suma,
fazer e passar por algo são separados em lados opostos de uma divisão entre o
• • 1\. • • /\ •
auvo e o passivo, agencia e pacienc1a.
Com o princípio do hábito, no entanto, essa oposição é dissolvida. Aqui, passar
por algo é o que a pessoa faz, e fazer é a coisa pela qual a pessoa passa. Passar por
algo de maneira ativa continuamente digere os fins do fazer e os extrude para
um mero começo. Nos termos de Dewey, a digestão é uma "absorção", enquan-
to que a extrusão é um "sair". Assim, o que ele chamou de "fase contínua de
experiência", embora, por um lado, "envolva rendição", por outro lado, implica
"a saída de energia para receber. Não mna retenção de energia". Se fôssemos
apenas passivos em meio à experiência, seríamos submersos por ela e sería-
mos incapazes de dar mna resposta. ''Nós devemos invocar energia e colocá-la
numa solução adequada", continua Dewey, "para absorver"58 • Eu chamo essas
invocação e colocação de "correspondência", outro termo no coração da minha
argumentação neste capítulo. Com a correspondência, não somos muito muda-
dos de fora como somos transformados de dentro. O fazer está dentro do passar
por algo. Isso é o que o distingue como llin ato da experiência, visto que realizar
w11a experiência - em qualquer coisa que não seja num sentido dramatúrgico
banal - é estar sempre dentro dela, é habitar nela. Assim, através do fazer que
passa por alo-o, como Dewey reconheceu, nós habitamos o mundo. E a tese
que eu queri defender, nos parágrafos seguintes, é a de que na sua receptividade
viva esta habitação é fundamentalmente um processo de atenção.

Caminhando

Suponha, por exemplo, que eu vá dar uma volta. É alg~ que pretendo fazer e
eu me preparo para isso planejando uma rota, colocand~ minhas botas e col~can-
do um mapa e provisões em uma mochila. Meu plano e dar uma volta pelo ~te-
rior, e talvez melhorar minha condição física e sensação de bem-estar a partlr do

S8. Dewey, 1987, p. 59.

41
exercício. Eu também quero pensar um pouco. Esses fins estão já lá no começo,
embora ainda não tenham sido cumpridos. Estou ciente de que cm sua realização
eu [ osso ter que ofrer um pouco: além das pernas doloridas e possíveis calos,
há a monotonia pura de colocar um pé após o outro, d; novo e outra ~cz. Ma~
enquanto isso tranquilizo a mim mesmo de que andar e apena um hábito; está
sedimentado no meu corpo e eu posso fazer isso mai ou menos sem pensar. O
pensamento só entra na atividade cm passagens perigosas ou cm momen~os cm
que talvez tenha que parar para verificar minhas rotas ou escolher o cammho a
eguir. Entre momentos, posso continuar pensando na minha cabeça e deixar o
resto do meu corpo cuidar de si me mo: como todo mundo sabe, caminhar é
bom para meditação, talvez por cau a de eu ritmo constante, talvez por causa da
pausa temporária que oferece da demandas que, de outra forma, nos pre sionam
de todos os lados. onsiderada a partir deste ângulo, o que a caminhada oferece
é um espaço entre o ponto fixos de origem e destino, um espaço para o esforço
mental e físico que, cu e pero, produzirá resultados. A ideia de fazer um passeio,
a fim de alcançar esses resultados, e tá de acordo com o princípio da volição.
Mas, uma vez embarcando na minha caminhada, esse relato não funciona
mais como antes de ter saído. aminhar deixa de ser algo que eu determino meu
corpo a fazer, como uma rotina autoimposta. Em vez disso, parece que eu me
torno o meu caminhar, e que a minha caminhada me leva59 • Eu estou lá, den-
tro dela, animado pelo cu movimento. E a cada passo cu não sou tão mudado
quanto modificado, não no entido de tran ição de lllll estado para outro, mas
de renovação peq:>éma. Eu serei de fato uma pessoa diferente quando chegar;
não a me ma pessoa cm outro lugar, ou com mn corpo marcado pelos estigmas
da pa sagem. Até as dorc e os calos se desdobram em minha experiência como
parte de w11a vida pela qual pa so ativamente, e pode ser ainda mais dolorosa
porque: goste ou não, eu não posso epará-las do ser andante que sou. Eles são
biográfico e eu posso contar urna história a partir deles 60 • Nem uma vez em meu
caminho posso sustentar a ideia de que caminhar é imprudente, um automatismo
corporal que liberta a mente para fazer as suas próprias coisas. Pelo contrário
an~ar é em_ ~ um hábitQ de pensar. Este pensamento não é, contudo, uma ope·
raç~o co~rutiva_ dentro d~ cabeça, mas o trabalho de uma mente que, em suas
del1beraçoes, mistura-se livremente com o corpo e O mundo. Ou, para colocar de

59. Ingold, 2015, p. 141.

60. Obfcnomcnól,?go James Hatley, refletindo sobre a prática de caminhar do artista Hamish ful·
ron, o erva que andar como Fulton O · - ' f:
' . , . pratica, nao e azer wna experiência no sentido de que eu
ao~rrauo, q~e cdu tenho! wna expenenc1a do mundo, mas no sentido de que eu me submeto a de,
• wnaaza o por e e [ ] o corpo sofre · d d · EYi
2003, p. 204-205). ··· ' mais O que onuna a terra em que anda" (H.ATL '

42
outr,1 f~rma, eu n,1~> penso tanto enquanto ando como penso cm andar". Este
pensar e unu maneira _de absor~er o mundo, de modo guc ele se torna menos o
tópico do p~n ar, e n~ais um me10 para minha meditação. Talvez o poder medita-
ti o de ~ammhar e tC)a exatamente nisso: dar espaço para o pensamento respirar,
para deixar o mundo enu·ar em cus reflexos. Entretanto, pclo mesmo motivo, para
ermo abertos ao mundo, devemos também renunciar a algo de nossa agência.
ós de emo nos tornar seres responsivos. Assim, mesmo enquanto ando, devo
ajustar meu pé ao terreno, seguir o caminho, submeter-me aos elementos. Existe,
em cada passo, um elemento de incerteza.
Isso, suponho, é o que significa habitar a prática de caminhar. É colocar o
'eu" que age 110 meio da experiência pela quaJ passamos, e não antes dela. O "eu"
volitivo é um intruso indesejável 110 fazer pelo qual passamos: intencionado em
impor suas próprias direções, ele continua se intrometendo, ditando os fins antes
do começo, insistindo em mn regime de parada e início em que cada ato segue
em equência a partir da conclusão de seu predecessor. O "eu" do hábito, ao
contrário, cai na corrente da ação. Aqui, as extremidades não são dadas com an-
tecedência, mas emergem na própria ação, e são reconhecíveis como tais apenas
na admissão da possibilidade de novos começos. Os começos produzem finais e
são produzidos por eles. Em meio a essa produção, ao mesmo tempo do eu e do
mundo, o "eu" está continuamente em questão. ão é mais possível dizer, com
, fiz aquilo". É preciso perguntar: "É isso que es-
confiança, "eu faço isso" ou "eu
tou fazendo?" ou "Fiz isso?" E como se a ação estivesse chamando minha agência
na sua esteira, não como uma resposta, mas como uma questão. "Eu sou", como
a filósofa Erin Manning coloca, é sempre, em grande parte, "era eu?"62 O princí-
pio do hábito afirma que ntmca se é totalmente o me tre dos próprios atos; que
conduzir a vida não é necessariamente estar no comando. De fato, presumir o
domínio em qualquer situação de incerteza existenciaJ é cortejar o de astre. ão
responder às exigências de mna situação pode arruinar os melhores planos. Mas
apenas porque nem tudo acontece de acordo com a própria vontade não signi-
fica que outra pessoa está no comando, ou que essa agência é mais amplamente
distribuída. Significa, sim, que deve haver aJgo errado com uma forma de pensar
a ~ção que presume que o que q~1er que 1:os a~onteça é lll~ c~ci~o de ~~rma
agencia ou outro63_ E se, em vez disso, nós mstalassemos o prmc1p10 do habito?
Se a agência não é dada antes da ação, como cau a para o efeito, mas está
sempre se formando e transformando de dentro da própria ação, então talvez
devêssemos transformar O substantivo no gerúndio de um verbo, e concordar em

61. Cf. meu ensaio "Modos de andar na mente: Ler, escrever, pintar" (Ingold, 2011, p. 196-209).

62 - Mann.ing, 2016, p. 37.

63. Ibid., p. 120.

43
."
falar de "torn,u - e agente ou
"ag'·tKiar"
~ · O equivalente cm francês,
. muitas .vezes
, , 1, e' a,v.aencement. ão me aventuro mais
on 1'dera do ·mtraduz1vc .
no potencial
,
c-
mântico de te termo aqui, pois ele urgirá novamente no pr_óx1mo_ capitulo. Basta
di zer que e, mai· ou me1. 105 equi·valente ,ao que eu apresentei. anteriormente
. ,. . como
fazer pa ando por". o princípio do hábito, então, subsan11 agencia por agen.
cement. A diferença é que enquanto a agência nos pertence, c~~o seres ~ot~do~
de olição, 0 agenciamento recai sobre nô , moradores do ha_bito. ~ pnmeira e
uma propriedade que upostamente po suímo que n_os permite ag~r; ~ segunda
é uma tarefa que devemos a umir como seres responsivos e r~spons~ve1s, ~ como
parte da vida pela qual pa amos. alocando em termos mais gerais, a v1d: em
si é uma tarefa, e conduzi-la, como bios, em vez de zõé, é a tarefa da educaçao64 •
É por is o que Dewey insistiu cm colocar a educação dentro do reino do hábito.
O resultado do processo educativo,,, como ele disse, pode ser apenas uma "ca-
pacidade para a educação adiciona1"65 •

Atencionalidade e correspondência

Agora temos duas tríades alternativas, cujo termos estão intimamente li-
gados por implicação mútua. De um lado e tá a tríade: volição, agência, inten-
cionalidade66. Do outro é a tríade: hábito, agencement, atenção. Eu expliquei a
diferença entre os princípios de vontade e hábito, e entre agência e agencement. O
passo seguinte é considerar a distinção entre intenção e atenção. Para começar
deixe-me voltar ao meu exemplo de dar um pas eia. Meu primeiro relato, de dar
uma volta, foi expresso de acordo com as minhas intenções: ver o campo, me-
lhorar minha forma física e bem-estar e pensar um pouco. Claro que há coisas às
quais eu tenho que me atentar, tanto na preparação quanto durante a caminhada
em si. Mas essa atenção é a maneira que a mente tem de checar o mundo.
Interrompe o movimento para fazer um balanço. Antes de air eu verifico que te-
nho tudo de que preciso: mapa, bússola, alimentação, e assin1 por diante. É como
m~car as coisas de uma lista que eu já tenho na minha cabeça. 0 caminho, eu
verifico que os rec~~sos da paisagem visível correspondem ao que e tá marca-
do no mapa, penrutmdo-me confirmar a minha posição ropoo-ráfica. E onde há
potenciais ri~cos, eu verifico que tenho a manobra certa para bcontorná-los. Em
suma, atençao tem a ver com combinar o conteúdo da mente com objetos no

64. "A única coisa que nos é dada e que é quando há vid h ,
si", declarou o filósofo José Ortco-a Gasset e . ª uman_a e, t~r que fazer algo, cada um Po'
Cm 1935 , ''A v1·d a é uma tare f:a" 0(ORTEGA
Y ' m ensa10 sobre a Historia como um sistema com~co
y GASSET. t'--
' 1961, p. 200, ênfase no original).
65. Dewe)~ 1966, p. 68,

66. Manning, 2016, p. 6.

44
inundo ' cstabdc cr um_a con:clação de um -para-um entre cada representação
mcnt,1I e ;1da ara tedst1ca fís1ca 67 Esta é a c0 r,na de t - d
· • , • < 11 , • a ençao quan o o nosso

modo fundamental de e t~r 11 ~ ~nundo é entendido por ser intencional. E é, por-


tanto, enquadrado pelo pnnc1p10 da volição.
, _M:1 no m:u egun_do rel:to de caminhar, que é enquadrado pelo princípio do
habito, a relaçao entre mtençao e atenção é o contrário. Andar a pé, como vimos,
exige a re po ta contínua do pedestre ao terreno, ao caminho e aos elementos.
Para re ponder, ele deve atentar a essas coisas enquanto caminha, participando ou
participando com elas em seus próprios movimentos. É isso que significa ouvir,
ob ervar e entir. Se a atenção, no nosso primeiro relato, interrompe ou corta o
movimento de modo a estabelecer uma relação transversal entre mente e mundo
(cuja separação é assumida desde o início), no segundo se junta com o movimen-
to como um acompanhamento ou refrão. Atenção, nesse sentido, é longitudinal.
O caminhante atento ajusta seu movimento ao terreno na medida em que ele se
desdobra debaixo de seus pés, ao _g1vés de ter que parar em intervalos ara checá-
-lo. E se o oposto de atenção é distração, então a mesma distinção é válida. Em
um relato, distração implica uma perda de foco mental, um embaçamento dos
objetos da atenção causados, muitas vezes, pelas intrusões do corpo na percepção
consciente, seja devido a aflições de dor nos pés e pernas doloridas, ou ao atrito
e sacolejas a que é submetido pelo terreno irregular ou outros impactos externo .
A mente atenta-se; o corpo distrai 68 . Mas, no outro relato, a distração é um des-
vio de todo o ser em seu ambiente. Enquanto segue um caminho o caminhante
ode ser atraído _para outro que o leva para longe talvez mesmo causando-lhe a
per a do seu caminho. Distração, aqui, é um desvio da linha de atenção, não
a oclusão do seu alvo. Essa é a distração da atração, que atrai, cativa e, em última
análise imobiliza sua vítima em uma malha de linhas que, indo em todo o en-
'
tidos, deixa-o literalmente enfeitiçado.
Agora, minha alegação é que, no hábito de c~ar~ em opo içã~ ~ vontade
de ir fazer uma caminhada, a atenção assume a pnondade ontolog1ca como
modo fundamental de estar no mundo, enquanto a intençõe ão apena mar-
cos lançados ao longo do can1 inho que, mais freque ntemente d~ que ~~o . ão
1

revelados em retrospectiva quando, olhando para tras em ~1ma viagem Jª feua,


nós a reconstruímos como um série de etapas predeterminadas. Ou, para re-
. se o pnnc1
surn 1r, · d a vo11·ça,.,o nos rende uma forma de atenção
· ' p10 . fundada
_ na
·
)·ntenc1ona lidad e, o pnnc1
· ' pio
· do ha'bi'to
, nos dá uma forma de mtençao fundada

67. Sobre isso, cf. Gell, 1985, p. 274-275.


68 Co , . ro George Home-Cook, a atenção no sentido de verificação
• mo observou_ o academ1co de teat · do por " uma perd a de atença-
, 0 e a usurpação da mente
'
causa a di straçao como seu oposto, caracteriza
pelo corpo" (2015, p. 39).

45
,ente csd cm açao na atenção de andar
. o Fu 1110 nego que uma n . . - é ,
n.1 ,1tenç,1 . ' , . . l'd 1. de dar um pl1sscio. Ma1, isso nao . uma
,ssim como csd ,u mtenc1011,1 1 ac. e < ' 1l
, ,, ~ l . . 1 • la contra o mundo; e, na vcn. ac e, uma mcn.
mente onl 111,1c.b ~ c,1 1cç,1 e o ocac.. . . - d d
J • . longo dos 11crcursos sensoriais da part1c1paçao o pe cstrc
te que se cstcnoc ,10 ' , • • · t ··
, .· , • J • tal mente não e trans1t1va, mas 111 ranc,1t1va,
no .1mb1cntc69. A con c1 neta oc e • • . •
_
n,10 de nu, ·om.
• ,, , •._1.,, 1:-..z com que o outro ao qual atende se torne
nc.1e o sct e. e <l , • • _

. eu objeto, toma-o por visto, e ''o ser-com,, salva ~ out:o da obJcttficaçao ao


trazê-lo para o nosso lado como compa1:heir? ou cum_pltc~. :ransforma O ser-
-outro cm cr-juntos. omcçar com o pnndp10 do há_~1to? e nao com o da vo1~-
tade, e reconhecer que a consciência é sempre consc1cnc1~ com antes que SeJa
con ciência , emprc de. Nós podemos reconhecer um movimento e re~ponder a
ele ante de consertá-lo cm nossa mira. As operações da mente atenctonal, em
re w110, não são cognitivas, mas ecológica . A luz desta conclusão, agora quero
voltar a um termo que acabou por ser fundamental para a minha discussão no
último capítulo - ou seja, correspondência - e ligá-lo ao que acabei de dizer
obre atencionalidade.
Primeiro, deixe-me dispor do significado de correspondência que não
pretendo com o termo. Eu não quero dizer que a correspondência de um
conjunto de elementos, como conceitos na mente, com outro conjunto, como
objetos no mundo, por alg1m1 princípio de homologia que leve qualquer um
do elementos no primeiro conjunto a ser equacionado com um ou mais ele-
mentos no segundo, e vice-versa. Isto é o que correspondência significa em
matemática, e há, naturalmente, urna estreita afinidade entre este significado
e o sentido da atenção como urna correlação transversal entre conceito e ob-
jeto70. O que eu não pretendo com a correspondência pode ser facilmente
compreendido comparando este sentido transversal de atenção com o seu
s~ntido longitudinal "indo junto com". É o processo pelo qual seres ou coisa
literalmente corespondem ou respondem uns aos outros ao longo do tempo,
corno, por exemplo, na troca de cartas ou de palavras em conversação. I to
compreende, como vimos no capítulo 1, a codependência de comum e deva-
riaçã~," da_ maneira pela qual cada ser encontra sua voz singular na partilha de
:xpenenc1as com out~os. A alegação que quero fazer é que a correspondência
e o modo de se relacionar de 1m1 ser que habita no h 'b't · '
. . a 1 o e CUJa postura e
atenc10sa.
.
Pois é ao atender uns aos outros , na, mcd'd ·. h
1 a em que canun arn
Juntos, que os seres correspondem.
---
69. lngold, 2015, p. 133.

70. E~sc senso de correspond<;ncia tem sua contra arte . . . - .


totem1smo, segundo o qual uma relação d 1· p a.nt1opol6g1ca na discus oc clá icas do
vai é. ' ' e a tança entre grupos . , . ,
' ente entre csp c1cs naturais. ada gru O e ~ ocm1s mapeia uma relação eqUl·
1964). P ' ntao, corresponde ao seu totem (LEVI-STRAUSS,

46
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e 1ntcr,lÇ,lO · occ po dc n a comparar com a diferença entre drns companheiros
·111 d.mdo Jlllltos, enfrentando o mesmo caminho• , e lima .,.,. ' tu açao de en t revista,
·
ou t.1!Yc 7 um Jogo de ~abulciro, em que os participantes se enfrentam do outro
b do dJ m_c~.l. Em um J0 g~ de xad:e7, por exemplo, os jogadores se aJternam em
-, ·us movimento , •e cada Jogada e ostensivamente discreta 1 deliberada e consi-
dcrada um a.to, CUJO r . ultado é alterar a configuração do tabuleiro. Agindo a
ad.1 Yez em ato que v1 am o outro, os jogadores parecem estar envolvido em
uma forma rudimentar de interação. Pois não são apenas suas identidades e m-
eparados de de o início, eles também não fazem nenhuma tentativa de
en ontrar un1a cau a comum. ada um guarda isso para si mesmo; não há nem
comungar nem vanaçao. ada movimento, no xadrez, não é nem uma submi ão
como uma declaração de intenções: seu propósito é frustrar e, finalmente, veri-
ficar o progres o do oponente. Assim, na medida em que o jogo avança, cada
"eu ' atrapalha o outro até terminar em o "mate" do total engarrafamento. Por
eras da aparência de interação, no entanto, encontra- e uma realidade diferente.
Pois na verdade, ambos os jogadores juntos habitam o jogo de xadrez: eles ão
atraído para ele, cativados por isso, abrem-se um para o outro em eu amor
compartilhado pelo jogo e pelo sentimento de camaradagem que lhe permite
jogar em espírito de amizade. Sua experiência comum se de envolve lado a lado
com cus estilos pessoais de jogar. Eles podem ter bom enso, já que enquanto
movem suas respectivas peças, que suas mão respondem a algo além dele e e
perguntam depois: "eu fiz isso?" ou "era eu?" Sua agência, em uma, e ti empre
questionada, não determinada com antecedência. O que está em jogo, na pratica..,
não é a oposição de sua agência, mas o alinhamento de eu agenciamento. E,
nesse sentido, os jogadores são, enfim, tanto correspondente no jogo quanto
companheiros de caminhada na trilha.

Cuidado e saudade

Eu agora me voJco para dois outro aspecto da at n_·ã~ ~1uc, como~ orr:e5-
pondência, são cruciais para nossa concepção do qu 'tgmh ·a e nduz1r a nda
e, portanto, da educação. Estes são cuidado .m_dadc. primeiro tr.12 uma
dimensão ética à atenção. Namralmcntc, nós nos 1mp rtan~os com , pc ' J.
dando-lhes toda a nossa atenção e respondendo à sua n ·cess1da~ks. mo scrc'
· d d 'd
corrcsponsívos, a rcsponsabiltda e o Clll at O ' :t é 1lgo que rc··u
' '
obre n •
aç0- cs que rca 1·1zamos cm seu cum pt·imento são
· , portanto, .da namrcz,1 da· tarefa .
Uma tarefa é uma ação que devemos ter cm vez de possuirmo ': p ·rrcnce ao ou-

· -~ 0 cf Ingold, 2013b, p. 105-108.


71 • Para uma discw,são mais aprofunuada dessa t ' •.sttnç, , ·

47
,,os por algo como o fazemos, é um c,f:
, . ·mos Tanto passai d l áb' - ªZer
tros e 11.10 a nos mcs ' · , . ic omos pessoas e 1, 1to. Nao é feito 1
" ,e vem a no porqL . ó . .1 pc a
iuss,mdo por , 9L bé n não é obngat no no sent1c o de que
• de mas cam I nes
110, a própria vonra ' d crior da sociedade da qual somo igualrnc
. . or alguma or cm sup ,e . ntc
s ·p 1mp to P • . . é feito porque em uma comurndade daqueJ
, , • p lo contrário, 1 so . . cs
rc pon avei • e ,, . to é cm uma comunidade ligada por djferen
q
ue não têm nada cm omum - 1
, .
' - é
que todos sao, at certo ponto, um estranho
ça
cm vez de identidade previa, cm C ó . a
. deles exige rnna resposta. orno o te nco da educa.
todo o outros - a presença . e •
_ . . . « que é feito O que precisa ser 1e1to, e o que eu posso
çao Gere Bie ta escreveu. o ' . ,
'
fazer é re pon er ao estr
d . ·an1 1o para ser responsivo e responsavel em relação ao
, '
' _, d de 11,im"n Nesse sentido, não pode haver responsabilidade
que o esn-aiu1O pe e • , .
,
em capac1 a e 'd d de r·esposta" , • , Para sermos responsave1s, devemos . ser capazes de
re ponder. E para poder responder, é preciso estar presente. N ~ hn~agem de co- 1

munhão e variação, em que cada pessoa fala c01n a sua voz uruca e smgular e não
como um representante da coletividade, o que importa não são tanto as palavras
que usainos, mas o fato de que devemos responder com elas. Pois é por meio de
nossas palavras, e pelas vozes com as quais as pronunciamos, que nos fazemos
presente aos oun-os como pessoas particulares que s01nos 73 .
Para cuidar dos outros, então, devemos pernuti-los estar em nossa presença
para que, assim, possamos estar presentes para eles. Em um sentido importante,
devemos deixá-los ser, para que possam falar conosco. No entanto, deixar ser,
nesse sentido, não é facilmente conciliado com a compreensão, muito menos
com explicação. Compreensão e explicação pertence1n àquele outro modo de
atenção, com~ verificação. Desse modo, atentamos às coisas e pessoas para que
possamos leva-las e~ conta. Uma vez que forem levadas em conta, elas podem
s~r checadas, removidas da nossa lista e enviadas para o repositório do "já conhe·
c1do". ou "bem entendido" , CUJOS · conteu, d os Ja • , nao- exigem
. qualquer c01sa. de no·'
E. asslffi,
. tantas
. . vezes , é como nos ' as encontran1os, nao - menos no contextos e pra'.
ocas
. msatuc1onalizados
. , de· ed ucaçao. - Quantas vezes ouvin1os clizer, por hunia·
rustas mstrmdos e compas · ~
d . sivos, que essa compreensão depende da incorpon1çao
e c01sas em seus contextos · . . ' o
l ,1 . ' seJam e1es sociais culnu-ais ou rustóricos? E com
co oca- os para dormir Para .· ' . .
mire continua a salt . ·d ª cnança rebelde, que se recusa a deitar-se e a ir dor
ar a cama nó · · xto
apropriado e seJ·a coin . d~' s emitimos o comando: 'volte ao seu conte;
preen ido~" Vc ·d d · . e nJ
verdade, exige é atenç- El · er a eira.mente, o que a cnai1ça quer '
ao. e ou ela t · . . nos
mostrar e grita para s em coisas a dizer para nos clizer ou para
. .
que s1grufica cuidar.
' er notado. E d ' .
evemos observar, ouvir e responder. Ist0
eo

72. Biesta, 2006, p. 64-65. Cf tb L' .


. . mg1s 1994 1
73. lngold 200 5 l ' , p. 30-131
' , p. 71. .

48
A in~plicação des_se argumento, no entanto, é radical. Isso significa que se
a cducaçao é obrec:udar do mundo em que vivemos, e de seus múltiplos habi-
tantes l;um~os e nao humanos~ então não é tanto sobre compreendê-los, mas
re tam·a-1os a presença, para entao atender e responder ao que eles têm a dizer.
a verdade, os filósofos Jan Masschelein e Maarten Simons, em sua defesa do
propósito educ_acional da escola (da qual discorreremos a seguir, no capítulo 3),
defendem precisamente este argumento. Existe um "momento mágico", eles di-
zem, quando as coisas que só costumavam ser faladas ou discutidas como eram
'
na ausência delas, de repente tornam-se presentes e ativas por iniciativa própria
e começam a falar por si mesmas. Encantados, nós escutamos. É o propósito da
escola, argumentam Masschelein e Sin1ons, para tornar as coisas reais novamente
nesse sentido, e para restaurá-las à nossa atenção74 . Há, no entanto, um ponto
ainda mais amplo a ser feito neste aspecto. É que o ctúdado não implica apenas
ouvir o que os outros têm a nos dizer, mas também responder apropriadamente.
I

E wna questão de descarregar uma dívida ontológica, de devolver ao mundo e


a seus habitantes o que devemos a eles pela nossa próf ria formação. Aquilo que
devemos é, no sentido original do termo, um dever. E por isso que a responsa-
bilidade do cuidado não é apenas prática (há tarefas a serem realizadas), mas um
dever (sanar uma dívida). Segue-se que a educação - conduzindo a vida - não é
feita a partir da volição, nem sob obrigação, mas como cumprimento do dever.
O que cuidado e atenção, então, têm a ver com a saudade? A resposta está
na forma como a saudade reúne as atividades de lembrar e imaginar. Ambas são
forma de presenciar: lembrando presenças do passado; imaginando o futuro.
Por lembrar, aqui, eu não quero dizer transformar o passado em um objeto da
memória. Isso seria o mesmo que separar o passado do presente, como se fosse
completo, acabado, feito, e dispo1úvel para transmissão como propriedade here-
ditária. É isso que acontece quando colocamos o passado em seu contexto. Todo
contexto, então, junto com tudo incorporado nele, torna-se parte do pacote.
Ao recordar ao contrário o passado não está terminado, mas ativo no presente.
' '
Lembrar, na prática, é reingressar como correspondente nos processos de desen-
volvimento próprio e dos outros. É pegar os fios de vidas passadas e juntar-se a
ele para encontrar um caminho a seguir. Mesmo que as pessoas que morreram
possam ser lembradas somente por suas histórias, cada revelação não é apenas
sobre a pessoa contada: em um sentido real, é a pessoa, com sua voz única e
caráter, trazida para O aqui e agora para que os vivos possam continuar uma
correspondência com elas. Contar histórias nesse sentido é um prolongamento
do bios, não uma maneira de embrulhá-lo. E isso é apenas outra maneira de dizer
que é uma forma de saudade.

74. Masschelein e Sirnons, 2013, p. 47.

49
. . . . cc)i,, a imaginação. Pois se lembrar não faz do passad
O mesmo o o1 l e • ' - . . , ' !J
. - • "ginar tambcm nao faz do futuro um obJeto. Ou SCJa na·
um obJcto, cntao 1111.. , ' . . . , ' o
. f' . . coi,,o um estado de c01sas d1stmto do presente. E, na vc
e proJctar o utlll o, r.
'da qtic em suas esperanças e sonhos, tem uma maneira d
d.1dc, pegar uma VI e ' • / e
/

, r d as ainai·i·as no mundo matenaJ. Onde ela ocorre esta alem d


C tar ,1 1rcntc e SU, ' ' ' ' _ O
. d
l1onzonte e no , sa coi,ccptualização. Pensadores de todas as profissoes, escreveu
. . .
De, ey em Arte conio experiência, scpm eles poc_tas _ou prntores, cientistas
ou filósofos, em suas imaginações "avançam cm ~reçao a um fim, vagamente
e imprecisamente prefigurado, tateando pelo cammho enquanto são seduzidas
peb identidade de mna aura em que suas o bserva~oes - ~ ref1 exoes
- nadam "7s . Nesta
aura, todo imaginar é lembrar e todo lembrar é unagmar. Futuro e passado, não
mais distinguíveis, fundem-se nos fins da saudade, em um lugar onde perpetua.
mente onhamos e nos esforçamos, mas nunca alcançamos. Em suma, a saudade
torna possível alinhar o cuidado e a atenção, que dependem do trazer as coisas
à pre ença, com o alongamento temporal da vida. Esta não é uma vida que Véli
daqui até lá, de m11 ponto de origem a um destino, nem pode ser marcada com
momentos. Como o trecho da atencionalidade com o qual corresponde, a vida
corre para sempre entre os pontos em que intenções se juntam, como um rio com
entre suas margens. Assim, a educação não pode ter "resultados" predetermina-
dos mais do que a vida. Como Dewey nos ensinou, e como observamos no capÍ·
tulo 1, o único resultado da vida é mais vida, o único resultado do crescimento é
ainda mais crescimento, o único resultado da educação é mais educação76 •

Atenção como educação e educação de atenção

Este, então, é o ponto ao qual quero retornar para o tema da educação, para
?1ostrar como o que nós dissemos até agora sobre a atenção se embasa nele. Farei
isso ab~rdando o trabalho de dois estudiosos que influenciaram profundamente
ª maneira como penso a educação: Jan Masschelein e Jan1es Gibson. Masschelein
é ~ filósofo contemporâneo cujo campo particular é a filosofia da educação.
Gibson_ era um psicólogo da percepção visual e um pioneiro do que veio a er
co1:11 ~cido como abordagem ecológica da percepção e da ação. Seus trabalho.l
mais nnportantes foram publicados nos ai1os de 1960 e 1970. Eu começo, no
ent~to, ~om algw11as palavras sobre o termo "educação" em si. Eu já obseli1t'1
a. denvaçao
.
da palavra do lat-;LUa
..... d ucere, "liderar"· no entai1to dern:e1
· · em abertoO
significado do "e" na frent E ·st • '. ' , os
l d e. xi e uma etunolog1a convencional e claro, que n
eva e volta a uma pala l · . '
vra arma re1acionada, educare, significando simplesmen
ce

75. Dewey, 1987, p. 80.

76. Dewey, 1966, p. 51.

so
cn, '.nar, uidar ou cri~r, ou in utir cm cada nova geração mancira1; aprovadas da
o 1cdadc e O conhecimento sobre o qual elas repousam. Masschelcin , no entan-
to propõe tran formar e ta convenção de ponta-cabeça. E se nós começássemos
com o e" de educação e reescreves emos a educação como e-ducação? O "e" vem
do ex, ignificando' fora". Educação, então, não seria sobre incutir conhecimento
na mentes dos novato , ma sobre conduzi -los para O mundo77_
o primeiro sentido, a educação - pelo menos cm sua versão moderna - visa
fornecer as ferramentas para explicação e raciocínio crítico. EJa se encaixa no
ideal de que o aluno, que começa em ignorância e deve primeiro ter as coisas
explicada , acabará por surgir como um pensador em seu próprio direito, eman-
cipado das convençõe e preconceitos do passado, e capaz de juntar-se à mesa
alta daqueles com autoridade para explicar. É uma passagem da ignorância para
o intelecto. o entanto, se o mundo pode ser conhecido apenas por meio de suas
explicações, ou pelas diferentes maneiras através das quais pode ser representado,
e se a razão nos en ina a desconfiar de todas as representações e a buscar um pon-
to de vista crítico próprio, livre dos contextos em que estes precursores represen-
tacionais são retro pectivamente entendidos como tendo sido embutidos, então,
como podemos nos abrir para o mundo em si? Como, pergunta Masschelein,
"podemos transformar o mundo em algo 'real', como tornar o mundo 'presente',
para dar novamente o real e descartar os escudos ou espelhos que parecem nos
ter trancado cada vez mais em autorreflexões e interpretações, em infinitos re-
tornos sobre 'pontos de vista', 'perspectivas' e 'opiniões"'? 78 Sua resposta é: ado-
tando práticas que nos permitem, literalmente, "nos expormos" 79 . E isso, afirma
Masschelein, é o objetivo da e-ducação no segundo sentido. Seu propósito não é
instilar unia consciência ou consciência do mundo ao nosso redor. Seu propósito
é, na verdade, de nos atrair para mna correspondência com este mundo. Ou, em
uma palavra, trata-se de atentar-se para ele.
Para um exemplo paradigmático do que a exposição significa na prática,
Masschelein nos convida a juntar-se a ele na atividade de caminhar. Uma vez na
trilha, nós nos submetemos a ela - somos até mesmo comandados por ela - e,
nesse sentido a caniinhada é uma experiência pela qual passamo . Mas isso não
) /

é, Masschelein nos diz, uma "passagem passiva". E ativa, "uma espécie de cortar
através da estrada"sº. Então, o que é essa estrada e o que ela corta? A estrada,
claro, é a da atenção, ao longo da qual o mm1do se abre e se faz presente para nós,

77. Masschelein, 2010a, p. 276-277.

78. Ibid., p. 276.

79. Masschelein, 2010b, p. 44, 50.

80. Masschelein, 2010a, p. 278.

SI
p,1ra que rn)s mesmos 11ossa111os estar ex1mstos a e.sta presença e sermos transfor-
. •/ • I l"l!l E
m,tdrn . 'omo Masschclcin insiste, "a atenção torna a cxpcncncia po_ssJvc _ · ,
o que a cst-rada corta são Lodas as conexões transitivas que conectam mtcnçoc.s a
seu, ,1lvos, a consciência com seus objetos ou a consciência crfrica d~guilo ª que
cl ..1 pertence. Uma coisa sobre o caminhar, de acordo com Masschclem, é que ele
nao oferece uma perspectiva diferente ou um conjunto de pcrspcctí~as daquilo
que pode er obtido por outros meios (como pelo ar), nem nos perm:tc d~safiar
qualquer ponto de vista com outros. O que nos oferece é uma rclaçao diferen-
te com o presente, que não pede explicação, compreensão ou interpretação no
contexto, mas pede nossa atenção sem fracionamentos, sem mediações e sem
qualificações. Can1inhar pode fazer isso por n6s porque, longe de nos pedir um
posicionamento a partir desta situação ou cLisso, ela contínuamente nos afasta
de qualquer ponto de vista - de qualquer posicionamento que possamos adotar.
'1\ndar", como explica Masschelem, "é sobre colocar essa posição em jogo; é
obre ex-posição, sobre estar fora de posição"82 • E isso, precisamente, é o que ele
quer dizer com exposição.
Agora, à primeira vista, Masschelem e Gibson dificilmente poderiam fazer
uma comparação menos provável. Seus mteresses, respectivamente na filosofia
da educação e na psicologia da percepção, são completamente diferentes, assim
como seus estilos mtelectuais e fontes de mspiração. No entanto, se Massche-
lein quer tornar o mundo real e presente para nós novamente, o mesmo acon-
tece com Gibson. E para Gibson, também, isso significa repudiar as ideias de
que só podemos conhecer o mundo da perspectiva de um ponto de vista fixo, e
só conhecê-lo na íntegra pela montagem, na mente, de todas as representações
parciais - obtidas de diversos pontos de vista - em um quadro abrangente do
todo, uma espécie de mapa mental. Para Gibson, o mundo que percebemos é
um mundo ao nosso redor, um ambiente. E nos familiarizamos com esse am-
biente não olhando para ele, ou por uma verificação mental que testa nossas
representações contra a evidência dos sentidos, mas por nos movermos nele,
por exemplo, a pé. Em movimento, seguimos o que Gíbson chama de 'cami-
nho da observação", e, na medida em que nos movemos, o padrão de estímulo
sensorial sofre modulação contínua. Com a visão, na qual Gibson está especial-
mente interessado, este é o padrão de luz refletido nas superfícies das coisas, ou
o que é conhecido como "ambiente de matriz ótica", que encontra os olhos do
observador em movimento. Subjacente às modulações da matriz estão certo
parâmetros invariantes, e é a alegação de Gibson de que essas invariantes são
suficientes para especificar características relevantes do ambiente, ou, mais pre-

81. Ibid., p. 282.

82. Ibid., p. 278.

S2
l·is1111cntc,
,. para .c~pccificar
. o que elas 1) ·rrnitcm , ·,n term os. (1e poss1·b·i•d
1 , ad cs
•)tt obst.kulos okrc 1drn, .10 observador cm scgLii'r seti
~ , . _ · , curso d e açao - .,,
0 ·'.

Fnn · css,1s características estao a su1)erfície e a textti d •


1 e para continuar
• e ra o soo,
·t)tll nosso exemplo da ammhada, al01111s tÍ})Os de solcJ . LJ·d
L • • 0 ~ , - como terra c;;o I a ou cac;;-
· tlho - ncnrntcm Gtmmhar, enquanto outros _ como ce· . ~ -
L, ! . ., . ,., 1xos ou pantanos - nao o
fa1ctn: E, _de acordo com Gibs~n, te~r~, cascalho, seixos e pântanos são percebidos,
ctn prnneiro lugar, cm ~a cammhabtlidadc. laro, o tipo de familiaridade com um
.tmbien~~ q~1e no _pern11te pcr~~bc_r caminhabilidade não vem pronta; cresce com
3 expcnenc1a. Acre cente famili_andade, no entanto, não vem do preenchimento

de bcm1a no mapa, mas a parar de um ajuste fino e gradual ou da sensibiliza-


ção de habilidade perceptivas que tornam os observadores cada vez mais atentos
às nuances do ambiente. A pessoa pode ser uma exploradora em terreno caseiro,
uma vez que no mundo real - em oposição ao mundo de suas representações - há
empre mais a ser descoberto. Assim, novatos não são tão "preenchidos" - como
previ to pelos defensores do modelo da transmissão da educação - mas "sintoniza-
do' 84 . Caso contrário, se o conhecimento do ancião é superior ao do principiante,
não é porque ele adquiriu as representações mentais que lhe permitiram construir
uma imagem mais elaborada do mundo, mas porque o seu sistema perceptivo está
sintonizado para atentar a aspectos críticos do ambiente que o novato simplesmen-
te não percebe. Adotando uma das metáforas-chave de Gibson, poderíamos dizer
que o sistema perceptivo do praticante experiente ressoa com as propriedades do
ambiente. Quanto mais experientes nos tornamos percorrendo os caminhos da
observação, de acordo com Gibson, mais capazes de perceber e responder :fluen-
temente às variações ambientais e aos invariantes paramétricos que estão por trás
dl e es. Isto e,' passamos pelo que ele ch amou d"d e e ucaçao -da atençao -"85 .
Para ambos, Masschelein e Gibson, então, a educação é fundamentalmente
sobre atenção, não sobre transmissão. Logo, eles estão, de maneira ~erente ,
dizendo a mesma coisa? Na verdade eles não estão, e a chave para a diferença
deles está na relação entre habilidade e submissão. Estas últimas ão nece a-
riamente copresentes em qualquer prática de hábito, ou de 'pa ar pelo fazer".
Considere novamente O exemplo do caminhante. Ele d_eve, ~~r um lado, e tar
suficientemente atento para ser capaz de perceber a cammhab1lid~d~ do :e.rreno,
e ajustar o andar dele em relação a isso. Ele tem um certo dom1ruo pranco da
arte de caminhar,· que vem com a cxpenenc1, ·" ·a • Mas' , por outro lado' a cada pas o,

83 A · abrangente em Thr Eco/o{ficnl Approacb of


Vi · teoria de Gibson é apresentada em sua forma _111,~•s ' G'b
isual Perception (1979). No "caminho da obscrvaçao , cf. 1 s '
011 1979 P· l 97~
'
f. cb. Ingold,
2000 , p. 226-228, 238-240.
84 · Ingold, 2001, p. 142.

85 · Gibson, 1979, p. 254. Cf. tb. Ingold, 2001.

S3
· 1 1,c) ··cm
tct certeza de 11ara onde ele vai, levar. E. quantlo
l' 1l' \l' Ml l111ll'lC ,\O C,llll, 1 ., , .
110., h,tbttu.unos ,1 •.rn,inlur, como cm qualquer outro hábito, e a ">Libmi">são que
' ~ ' ' 116
condu,, cnqu.rnto que a maestria segue cm sua esteira, e nao o contra no . Há
,\t ·nç.,o cm .unbos, mas numa delas o praticante ~stá a mando do mundo, na ou-
tr,t O mundo está a mando do praticante. Um deixa o mundo entrar, como urna
rcspir.,ção profunda; o outro deixa sair cm um movimento _orientado de percep-
áo e ação. "Expcricnciar como respirar", como Dewey disse, "é um ritmo de
in piração e expiração"117• Masschelcin está inequivocamente do lado da entrada.
É por i O que ele nos lembra que a palavra attendre, em francês, significa "es-
perar". Me mo em inglês, atender a coisas ou pessoas significa esperar por elas,
aceitando-a e seguindo o que elas fazem 88 • Gibson, pelo contrário, está do lado
da aída. a detecção de possibilidades, de oportunidades para continuar, os pra-
ticante e colhem e e voltam para as características vantajosas de um mundo que
já tá definido. Ou, em smna, enquanto que para Masschelein o praticante espe-
ra no mundo, para Gibson o mm1do espera pelo praticante89 . No primeiro caso,
a atenção educa, expondo-nos a um mundo em formação, deixando-o entrar. No
egundo, a atenção é o que é educado, por força dessa experiência. Na verdade,
no entanto, não pode haver um sem o outro. Submissão e maestria prática são
doi lados da mesma moeda. Essa moeda é o princípio do hábito.

Fraco, pobre e arriscado

''Educação", declarou o poeta William Butler Yeats, "não é sobre encher um


balde, mas sobre acender um fogo" 90 . O balde oferece certeza e previsibilidade
um ponto de partida e um ponto final, com passos mensuráveis ao lon<YO do
caminho. Tem resultados, que devem ser conhecidos e entendidos mesmo0 antes
do início do processo. O fogo, por outro lado, expõe-nos todos ao risco. ão há
co~o saber o que vai ince~diar e.º qu~ não vai, por quanto tempo O fogo vai
queunar, como se espalhara e quais serao seus resultados. Em seu recente livro
The Beautiful Risk of Education, Gert Biesta expressa a escolha como algo entre

86. Ingold, 2015, p. 138-142.

87. Dcwey, 1987, p. 62.

88. Masschelcin, 2010a, p. 282.

89. Ingold, 2015, p. l 36.

9_0. Embora ~ssa declaração seja comumcntc atribtúda a Yc , .


c1as para apoiar essa atribuição tem se mostrado indes . , :ts (p. ex., BIE_STA, 2013, p. 1), evtd~n-
o autor greco-romano Plutarco E,n SCLI ci, . c,S b cntn el. A fonte mais provável parece ter sido
. saio o rc a esc ta" PI .
para a mente não é um vaso que prcci·sa . ,'. u ' , urarco escreveu: '4A analogia correta
(PLUTARCH, 1992, p. 50). , sei precnc 11do, as ma eira que precisa ser inflamada"
n1 d · · ·

54
,•ssênci,1 e cxist nci,, ou, cm outras 11:.1lavras , entre ,nct·< f'í<•~ ·,c.". e v,·e..,1 91 • N o registre,
.. , •
.
i11crnrísico, ªP;kimos para alguma essência da humanidade transcendente. A tdu
c 1ç1o, então,~ o pr~ esso de se ~ornar humano, de incutir na matéria prima de se-
~ hum~no 1man110s .º conh~c,_m cnto,,as normas, valores e n.:sponsabílidadc.s da
per onaltdadc e da oc1edadc c,vtl . Isto e encher o balde. Mas escolher a cxísténcía
é re raurar os_ seres hum~10 Pª:ª um _rrocesso de vida vívido cm companhia de
outros, ou sep, ~ar~ a vida so 1al. Existência - vida não é um processo de se
cornar l~um~no; e sim um processo de devir humano92 • A questão da educação,
como diz Biesta, é e estamos preparados para correr o risco da vida, com toda
a ua incerteza, imprevisibilidade e frustração, ou se nós preferimos buscar uma
certeza aJém ou subentendendo a vida, no nível da metafísica. A escolha é entre 0
que ele chama de uma maneira forte e fraca de educação. O caminho forte oferece
egurança, previsibilidade e liberdade de riscos. O caminho fraco, pelo contrário,
é lento, difícil e de modo al un certo em eus resultados - se é que podemos falar
de "re ultados". ó vivemos em wna época em que políticos, gestores públicos
e o público são vociferantes em suas demandas de que a educação deva ser fone.
A fraqueza é percebida como Lm1 problema. A alegação de Biesta, ao contrário, é
de que se tirarmos a fraqueza da educação, corremos o risco de retirar a educação
por completo93 • Fazer isto seria extinguir o fogo.
A essa almra, deveria ser evidente que esta distinção entre formas fones e
fracas de educação são virtualmente congruentes com aquela a partir da qual
comecei este capítulo, entre os princípios de volição e hábito. O princípio vo-
litivo termina antes de começar, e visa trazer wna mudança de estado naqueles
ujeicos a ele obrigados a passar por suas imposições. No caso da educação, is o
é nada menos que a instalação de Lrma essência hwnana. É como e a educação
estivesse dentro de um momento permanente de criação, destinado a recapitular
em todas as gerações a gênese da humanidade na transição da natureza para a
sociedade. O princípio do hábito, pelo contrário, ao invés de começar pelo fins,
produz começos. Sua criatividade é a de "fazer passando por", de agencement,
em que os seres se forjam continuamente e w1s aos outro no cadinho da vida
social, sua hwnanidade não é urna conclusão precipitada, mas wna conqui tare-
lacional em curso. O teólogo Henry Nelson Wieman referiu-se a ele como o tipo
de criatividade que "progressivamente cria personalidade na comurudade". Por
trás das contingências daquilo que as pessoas fazem, ~ieman ~rgum~ntou, e da
miscelânea de produtos de "bens criados" para os quais estes feitos dao a c~ance
de surgirem, há um "bem criativo" intrínseco à vida hwnana em sua capacidade

91. Biesta, 2013, p. 17.


92 . Sobre essa distinção, cf. Ingold, 2013a, p. 6-9.
93. Biesta, 2013, p. 1.

ss
. 1 ·
. 111mc11tos.. 1,.,s,se tÍJJO de criatividade, escreve de , é"o
dc gc1.1r !K''>so,1'> cm i l' .,uo ' 1e. hzcr"9". N, o começa, corno o prindp·
1 . 1 1 f\. '. 1111s n,H> poc. ' , . 10
qt1c ,\ p •rs011,1 1c. ,1c. e Ml 1 , ' . . tençao cm mente e term111a com O se
. . . i > com um.1 ,n u
\'ohtl\o tc.·11.1 co1rn:ç,,c.(' . 1 t ' iLia com cada ponta solta oferecendo
-, 1 • tráno e e con JJ ·, a
lt1mpnmcnto. l e O con ' , , . . gudes gue seguem. Essa é a criatividade
. ·1· _J 1 1 >vos começos p,11 a a
poss1b1 1u,1c. c e. e m -1 nuiLO O mesmo contraste, entre uma forte
1 .1 . 1 B' ·sn também m:sen 1,a 1
e. .1, 1c. .1 soo.1 . te ' ' . ,. _ "de não ser para ser", e uma noção fraca
l , ..1· 1 . 1 como uma tt ans1çao ,., .
. _. .. .
º
110\'.IO e. e ct • \• ·
''chamar O ser para a v1c a •
1 ,,95 e a cducaçao no sentido fort
, . e,
d.1 u 1.1ç,1o c.:omo · ntinuamcntc no fraco sentido é
r~ -ria .1 essência da humanidade, o que ena co ' ' , a
cxi tên ia humana. . .
~ d , .
Fmbora to os possam ,os ser humanos
' por nascimento,
. a forte lógica de se
tornar 1rnmano 1mp - qu e ,aJ 001- ms são
• 11ca ' ,
no entanto, mais
.
humanos .gue outros.
ri.rnças cm cus "primeiros anos", mai~ próximas do seu ~onto d: onge~, tendo
. 1 temente no cammho
.1pcna omcça d o rece1 , para a humarndade, sao consideradas
menos humano do que adultos na abordagem da qualificação pJen~. Agora é a
mi ão da educação 110 sentido forte (do educare) _para elevar ~ada _cr~an~a de um
tado oriCTinaJ de ingenuidade e liberá-la para a liberdade da mteligencia adulta.
o encan~, como vimos no capítulo 1, longe de eliminar a desigualdade, esse
projeto de emancipação a perpetua. Faz isso pela inserção, desde o início, de uma
divi ão entre o de intelecto inferior (não apenas crianças, mas também as pessoas
em " ociedades tradicionais" e o "homem c01num" em nosso próprio país), que
estão em necessidade de Libertação, e aqueles de intelecto superior (adultos, cien-
tistas e pessoas da cultura), cuja missão é libertá-las. Os primeiros, por sua ve:z
tornar-se-ão emancipadores, mas apenas para colocar seus sucessores numa posi-
ção de inferioridade, para que o ciclo possa recomeçar. O que o filósofo Jacques
Ranciere chan1a de o "mito da pedagogia" de mn mundo dividido: entre "mentes
sábias e ignorantes [ ... ] os capazes e incapazes, os inteligentes e os estúpidos'196•
Tendo decretado um marco zero, um ponto de origem absoluto para o processo
educacional, o pedagogo lança um véu de ignorância sobre tudo a ser aprendido,
a~enas f!ra nom_e~-se à tare~a de levantá-lo. Essa tarefa, segundo Ranciere, é ex-
plicar: e transmitir a aprendizagem e formar mentes simultaneamente, liderando
essas mentes, de acordo com mna progressão ordenada, do mais simples ao mais
complexo''97 Mas a lógic d li ,.,
. ,· . ª a exp caçao gera mna regressão infinita. Uma vez que
uma coisa e explicada, então torna-se necessário explicar a explicação, e assim püí

94. Wicman, 1961, p. 63-66 Para um d' _ . .


cf. Ingold, 2014a. · ª iscussao mais aprofundada das ideias de W1emJil,
95. Biesta, 2013, p. 23.
96. Ranciere, 199], p. 6.
97. Ibid., p. 3.

56
di,1nrc, deixando o de~tinatár:o ?ª explicação, o aluno ignorado, cada vez mais
. ido
,l tt • , , • ,
1 e dando ma10r urgcnc1a à necessidade de "recupcrar ,,, d e recuperar a
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di. ün que a lóg1ca da e~phcaçao ~sta~eleceu. E O que O aluno aprende a partir
di, o? Ele apre nd e que ele e um ser mfenor, que não pode esperar entender a me-
no gue ele tenha coisa ~xplicadas a ele por pessoas gue O fazem!
QuaJ_a ~ternativa? ~ _ª lógica fraca do devir humano. Nesta lógica, a huma-
nidade nao e uma condiç_ao pronta que, podemos alcançar em vários graus. É na
verdade o gue fazemos disso, cada um a nossa maneira. Para Ranciere, é a partir
do pres upo to de que _todo ser h~an_o é de igual intelecto e igualmente capaz,
independente1;1e~te da idade, expene~1c1a ou qualquer outro critérío9s_ É claro gue
rodo mundo e diferente, mas essas diferenças não podem ser colocadas em qual-
quer escala de mais ou menos. As pessoas não são, em outras palavras, diferentes
de maneiras que são as mesmas para todos, mas são as mesmas em todos os seres
diferentes em seus próprios caminhos. Professor e aluno, então, longe de estarem
frente a frente como respectivamente instruídos e ignorantes, seguem na mesma
direção, como pessoas, cada uma com uma história particular para contar, aten-
dendo e respondendo um ao outro ao longo de uma jornada que eles empreen-
dem juntos; mas em direção a que resultado, ninguém sabe. Em uma palavra,
eles correspondem. Ranciere chama isso de uma correspondência de vontades99 ,
embora eu prefira chamar de correspondência de hábitos ou de agencements, visto
que a volição ou agência intencional de nenhuma das partes deva atrapalhar.
Que tipo de pedagogia é essa, em que o professor não tem nada para trans-
mitir, nada para passar nem quaisquer métodos, protocolos, regras ou formas
específicas de teste ou certificação para fazer isso? Masschelein tem uma palavra
para isso: ele a chama de "pedagogia pobre"100 . É "a arte de esperar e apre en-
tar", um convite para liderar (ex-ducere), oferecendo meios para experimentar e
tornar-se atento. Proporciona a possibilidade de exposição, através de exercício
que ampliam nossa atenção para o real e sua verdade: "não a verdade obre o r~
mas a verdade que sai do real [ ... ] na experiência"1º1 . Acima de tudo, a pedagogia
pobre é fraca e nós somos enfraquecidos por ela. Uma educação forte ~os arma
com conhecimento, nos permite escorar nossas defesas contra os capncho ~o
mundo externo dá-nos imunidade e fornece a segurança e O conforto da razao.
' 1 ,
Se alguma coisa nos incomoda, podemos explicar isso e fazer com que e ª va em-
bora - ou pelo menos colocá-la em seu contexto. Silenciados em nossa armadura,

98. Ibid., p. 101.


99. Ibid., p. 13.

lOO. Masschelein, 2010b.

lOL Masschelein, 2010a, p. 283-285.

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no entanto, e cercados pelo muro de nossa defc as inrelecmais, nó falhamos
cm aceitar ou responder à realidade que o mundo apre cnta para nós. Uma
educação fraca, empreendida com uma pedagogia pobre, alcança exatamente 0
opo to. Isto nos induz a romper a segurança de nossas p~siçõe defensivas, tirar
no a armadura e conhecer o mundo de braço abertos. E uma prática de desar-
mamento. I to é educação no sentido de ex-ducere. Trata-se de exposição e não de
imunidade; torna-nos vulneráveis em vez de podera o , mas, da me ma forma,
ela valoriza a verdade e a sabedoria sobre o conhecimento. Considerando que a
educação forte procura incutir o que é de ejado, a educação fraca é uma bu ca
pelo que é desejável. É uma forma de saudade e, na medida em que é feita de
forma responsável e responsavelmente com os outro , como um dever, é também
urr:ia forma de cuidado e correspondência. Mas acima de tudo é feita e passa pelas
c01sas com atenção.

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