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Coostrução do conhecimento

Marx
Plaget

freire
Trabalho e Conhecimento
Norberto J. Etges 5
o Construtivismo e sua Função Educacional
Llno de Macedo 25
o Processo do Conhecimento em Paulo Freire
Baldulno A. Andreola 32
Ensino e Construção do Conhecimento:
O Processo de Abstração Reflexionante
Fernando Becker 43
Reconstruções Convergentes com Avanços:
A Interdisciplinaridade
Terezln,ha Maria Vargas Flores 53
A Representação Infantil e a Educação Pré-Escolar
Helena Velllnho Corso 61
Palavras Mágicas
Clecl Maraschln 71
Piaget, Marx e a Ideologia Política da Escolarização
B. A. Kaufman 81

Editoração Eletr6n1ca1: Aldo L Jung

AssInaturas e números avu�


V.18 no 1, jan./jun. 1993 Ped!doe de _inatur.. devem eer enviados, juntamen" com
cheque cruzado em nome de Educação e Realidade para
Educação .. Realidade é uma publicação eemestral da
Faculdade de Educação da Universidade Federal do Rio Educação e Realidade
Grande do Sul. Faculdade de Educação
'
Universidade Federal do Rio Grande do Sul
Editore.: FlIrnando Becker e Rovllio Costa Av. Paulo Gama, 8/no, prédio 12201, 8° andar
CEP 9004().()6() Porto Alegre - AS
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Conselho Editorial: Balduino A. Andreola (presidente), Alceu Fone (051) 228 1633, ramal 3268
Ferrari, Aldanei Areias, Fernando Becker, Maria Estela Dal Pai Brasil
Franco, Mérion Campos Bordas, Norma Regina Marzola,
Rosa Ma Hessel Silveira, Rovllio Costa, Rute Vlvian Bequero. Assinatura para 1992
até março 1993 Cr$ 50.000,00
Secretária: Jacy Busatto no avulso Cr$ 30.000,00
No exterior, via aérea
Composição: Central de ProduçOes da Faculdade de _inatura 1993 US$ 20.00
Educação nO avulso US$ 12.00

Digitação: Nilo Salvagni ISSN 0100-3143


APRESENTAÇÃO

Podemos afirmar que houve, nestes a bagagem hereditária traz em seus gens (Cf.
últimos tempos, um crescimento da consciência Projeto Genoma - projeto que pretende, num
do objeto próprio do trabalho do professor: o prazo previsto de 25 anos, rastrear a totalidade,
,conhecimento. Um chamar a atenção, um alerta, do código genético humano) não inclui o legado
uma verdadeira. tomada de consciência da da cultura, organizado sobretudo nos últimos
natureza própria do conhecimento humano. Um milhares de anos de história da civilização. O
conhecimento do conhecimento. Um verdadeiro problema que se levanta, que é tão antigo
ato epistemológico para muito além dos "feu­ quanto a Psicologia - diria, tão antigo quanto a
dos· da Filosofia - área que, de fato, exercia o Filosofia - é o seguinte: como uma criança, que
direito de proferir este discurso. nasce neste minuto, poderá apropriar-se desta
Na educação, esta tomada de consciência cultura? É a resposta a esta pergunta que
ocorreu em nome de algo chamado "construti­ embasará as concepções e a prática do ensino
vismo·. Como diz uma professora: "Gostaria e da aprendizagem. Ora, como V!mos, há três
que o senhor falasse desse tal de Construtivis­ concepções básicas, concepções epistemológi­
mo'· Parece-me que a precariedade teórico­ cas, conscientes ou inconscientes, que norteiam
crítica em educação faz com que as coisas o ato educativo.
aconteçam mais ou menos assim: "eu não sei o A primeira, apriorista, as vezes inatista,
que eu quero, que direção vou tomar; mas sei o acredita que o conhecimento, na sua forma e,
que eu não quero; logo, sou construtivista·. às vezes, até no conteÚdo, nasce corri a criança.
Esta precariedade nada tem a ver com os A versão mais freqüente, pelo menos no meio
autores que nos legaram suas revolucionárias acadêmico, é aquela que acredita que o conhe­
contribuições teóricas que nos permitem reinter­ cimento se manifestará aos poucos (estágios);
pretar o ato educativo como um ato de conheci­ é apriorista não inatista, portanto. A Psicologia
mento, uma aproximação crítica da realidade, e do Desenvolvimento, como é concebida tradicio­
esse como um ato construtivo, como uma nalmente na Psicologia, fundamenta-se neste
construção - donde o termo "construtivismo·. pressuposto. No fundo, &sta concepção provém
Isto significa que o conhecimento não é de todo o tipo de crenças - religiosas ou não,
dado na bagagem hereditária - nem como reencarnacionistas ou não - cujo núcleo comum
estrutura já montada nem como programa a ser consiste em acreditar que o conhecimento é um
atualizado progressivamente de acordo com dom recebido do além, em algum momento
faixas etárias. O conhecimento também não é antes do nascimento da criança Cientificamen­
um dado vindo do meio - físico ou social - como te, é difícil sustentar esta crença, embora a
objeto já delineado, pronto, que basta ser obser­ Psicologia da Gestalt e seus respeitáveis traba­
vado ou ensinado para ser adquirido, aprendido. lhos de pesquisa tenham se constituído sobre
Não, o conhecimento é uma con�rução, . uma este pressuposto.
síntese produzida, aos poucos, para a qual A segunda, a emplmm:l, acredita que o
concorrem sempre e de forma radicalmente conhecimento provém do mundo ,do objeto,
complementar, tanto a bagagem hereditária enquanto é acessível aos sentidos (visão, audi­
quanto o meio; sínteses' confeccionadas pela ção...). A formulação mais rep�esentativa desta
ação do sujeito. Um sujeito que é, primordial­ corrente é, provavelmente, a de Hobbes, no
mente, apenas um conjunto de "exercício de Leviatã: "Nada há na inteligência que· não tenha
reflexos· e um objeto que é tão precário que passado pelos sentidos·. Isto é, a criança,
não consegue se "desamalgamar" deste sujeito quando nasce, é tabula rasa e tudo o que ela
primordial. Mas existe, por um lado, esta admirá­ adquirir, ao longo da vida, virá do mundo do
vel, herança da vida - a bagagem hereditária, objeto, passando, necessariamente, pelos
resultante de milhões de anos de evolução - e, sentidos ou pela observação.
por outro, um meio social, resultante de milhares Tanto no apriorismo quanto:no empriris­
de anos de civilização. A história da vida, por mo, a determinação do conhecimento é alheia
um lado, e a história da civilização, por outro. O ao sujeito: o conhecimento acontece indepen­
conhecimento é tributário, simultaneamente, dente da atividade do sujeito. Por um lado, a
destas duas histórias. liquidação do sujeit"" pelo apriorismo, é feita na
A quantidade imensa de informações que medida em que ele é determinado pelas condi-

2
ções prévias à sua ação. Quando o sujeito toma sujeito desta ação será aquele do "convivio com
consciência de sua subjetividade ele já está pesuisador e laboratório" e o "novo principio de
determinado. Por outro lado, são conhecidos os ação ... é o diverso e a riqueza posta na unidade
limites rigidos que o positivismo estabeleceu à da vontade e da inteligência". E não deixa por
observação para que ela seja reconhecida menos o caminho da pedagogia: "Uma escola
cientificamente. Na Psicologia, foi o behavioris­ ou sitema escolar que não efetiva a construção
mo que delineou, na esteira positivista, as deste individuo - ainda que muito "conscientize"
condições de cientiflCidade da observação. - é contra o trabalhador e deve ser destruida,
Watson, o pai do behaviorismo, afirmou um seja pública ou privada". Uno de MACEDO (O
sujeito determinado totalmente pelo objeto, isto Construtivismo e sua Função Educacional)
é, pelas condiçOe.s físicas ou sociais em que mostra as contradições entre uma postura
nasce e se desênvoive um indivíduo. Se tiver em construtivista e uma não construtivista, fazendo
mãos o contrOle do comportamento de uma emergir as Incompatibilidades, daí decorrentes,
criança, fará dela um anjo ou um demônio I O entre "ação e transmissão, tema e paradigma,
meio tem absoluto poder de determinação sobre tornar-se e ser, esquema e representação,
o sujeito. espontaneidade e indução, apontando caminhos
A terceira concepção surge não da soma para uma escola.. que quer "se tornar mais
elas duas anteriores, mas, dos. seus escombros. construtivista". Balduino A. ANDREOLA (Uma
Surge, por um lado, da negação tanto do aprio­ Nova Teoria do Conhecimento na Obra de Paulo
rismo quanto do empirismo e, de outro, das Freire) afirma que a obra de Paulo Freire traz,
construções produzidas na interação do sujeito sujacente, uma teoria do conhecimento que,
com o meio em que vive, com todas as suas pode-se dizer, situa-o dentro de uma postura
caracteristicas, inéditas ou não. O conhecimento construtivista Educação é, fundamentalmente,
não é dado na bagagem hereditária, nem como conscientização. "A conscientização constitui,
forma, nem como conteúdo. Mas todo recém­ em última análise, uma ieitura crítica da realida­
nascido traz consigo uma herança biológica que de". Fernando BECKER (Ensino e Construção
será seu ponto de partida Herança diferenciada do Conhecimento) mostra, fundado na Episte­
do macaco, do tubarão, da gaivota, etc. Herança mologia Genética piagetiana, que o conhecimen­
especificamente humana, mas ainda não deter­ to não é produto da sensação ou da percepção,
minada quanto ao conhecimento. O conheci­ mas da ação entendida como abstração reflexio­
mento - como forma (estrutura) e como conteú­ nante. Discorre sobre o ensino que se pratica e
do - começará a aparecer na medida em que propOe o ensino que decorre da teoria piagetia­
houver trocas entre o organismo e o meio - na da abstração reflexionante. Terezinha M. A.
físico e social. Estas trocas são possíveis pela FLORES (Reconstruções Convergentes com
ação assimiladora e acomodadora do organis­ Avanços: a Interdisciplinaridade) demonstra a
mo, ação inicialmente reflexa, mas rapidamente necessidade da interdisciplinaridade na edu­
intencional, em seguida simbólica e mais tarde cação vista sob a ótica piagetiana. Helena
operatória. Esta concepção de sujeito é tão Vellinho CORSO (A Representação Infantil e a
radical, em Piaget, que podomos afirmar que Educação Pré-Escoléjr) narra uma pesquisa de
não existe consciência, linguagem, inteligência, intervenção - sua dissertação de mestrado - pela
ou qualquer indicio de subjetividade, antes da qual reinventa o ensino, possibilitando o nítido
�. avanço na capacidade representativa de crian­
Como se vê, uma pedagogia concebida ças pré-escolares de periferia urbana de cidade
nesta visão de mundo negará, necessariamente, do interior do estado. Mostra, assim, a prática
a pedagogia convencional, a pedagogia da de uma proposta construtivista de ensino. Cleci
repetição, e construirá, a partir desta negação, MARASCHIN (Palavras MágicaS) apresenta o
uma pedagogia e uma didática continuamente trajeto de dois meninos, de 8 e 9 anos, que,
renovada, na medida em que mudam as condi­ desafiados pela linguagem artifICial, constroem
ções subjetivas e objetivas, na medida em que conhecimento em ambiente informatizado,
o individuo e o meio social se transformam por apesar de seu "defICitário" passado escolar.
sua mútua determinação e pelas construçOes Mostra, também, como uma pesquisa construti­
end6genas do sujeito. vista torna-se crítica do ensino convencional e
Os textos que seguem ..,rocuram, privile­ pode realimentar um ensino construtivista
giando diferentes pontos de vista, indicar os Finalmente, B. A. KAUFMANN (Piaget, Marx e a
caminhos 8 as caracteristicas desta trajetória. Ideologia Política da Escolarização) demonstra
Norberto J. ETGES (Trabalho e Conhecimento) os compromissos do behaviorismo, por um lado,
mergulha nas fOrites hegeliano-marxistas a fim e do construtivismo piagetiano, por outro, en­
de pensar a produção da ação humana como quanto orientam a pedagogia a serviço de uma
trabalho humano abstrato. Mostra como (l ou outra ordem social, política e econômica
3
Para ele, os pressupostos da psicologia constru­ Afinal, o exercício da critica, a construção do
tivista são incompatlveis com os pressupostos conhecimento e a educação são no fundo, a
,

da psicologia comportamentalista contemporâ- mesma coisa


nea
Nesta época em que o debate está esmo­
recido, em que se tenta, de todas as formas, Porto Alegre, 06 de abril de 1992
inclusive em instâncias governamentais, ridicula­
rizar o exercício do pensamento, esta é a nossa Fernando Becker
resposta.

4
Trabalhô· · .ec()nhêcirfi �r1tb·· ·
. · ))N����Rtd��!IBBliili
1 . Equívocos sobre o trabalho, o conhecImen­ ele mesmo produz através de suas próprias
to e a educação. mediações, de analisar seus pressupostos, seus
fundamentos e seguir a lógica imanente de seu
A relação entre trabalho, saber e educa­ desenvolvimento. A partir daí veremos como ele
ção mereceu extensa atenção entre os pesqui­ se torna o pressuposto ou pré-condição do
sadores preocupados com a educação nas pensamento e da razão, ela mesma se consti­
últimas décadas. Mas os estudos não apresen­ tuindo uma ruptura, um incondicionado que
taram avanços teóricos significativos entre os 'conserva" subsumindo-os, todos os elementos
autores que seguem matrizes postuladas como do trabalho. Propomos estudar o trabalho em
marxistas. Conseqüentemente, não conseguem sua complexidade e dinamismo, centrando a
ultrapassar as propostas liberais já experimenta­ análise no trabalho humano abstrato. Isto
das e repetidas inúmeras vezes. Este texto significa determinar também o valor em que se
propõe estudar o que é com certeza o problema objetiva, bem como todo o percurso de objeti­
fundamental não resolvido em toda esta cami­ vações em que lógica e historicamente ele se
nhada. É a concepção equivocada do trabalho põe. Esta análise requer a explicitação não só
subjacente nestas vertentes. dos pressupostos, mas a compreensão do
Estas concepções estudam sempre fundamento do qual parte e ao qual retoma nos
alguma forma histórica do trabalho, como a momentos de ruptura ao se transformar ou se
servil, a manufatureira, a industrial, e a identifi­ tornar outro.
cam com o seu conteúdo. Outras vezes, a
simples gênese de determinado tipo de trabalho,
isto é, sua origem capitalista o põe irremediavel­ 2. O deslocamento do trabalho e a centrallda­
mente deformador. Identificação da forma ou da de de novas categorias de análise.
gênese com o seu conceito. Além de enrijecer o
conceito ou o seu conteúdo com a forma, Como �e sabe, o trabalho humano abstra­
sempre analisada como uma positividade históri­ to não é primeiro na ordem histórica de desen­
ca, isto é, como uma coisa plenamente posta e volvimento. É antes o resultado de uma longa e
realizada, e perder as determinações e media­ dura trajetória da humanidade. O trabalho,
ções que ele vai pondo e produzindo historica­ especialmente em sua configuração moderna de
mente, fixa-se num mundo de coisas prontas, trabalho "vivido" indiferente, trabalho tout court,
justapostas, e se muito, relacionadas externa­ trabalho qualquer ou qualquer trabalho,e, no
mente. Como relações puramente externas, elas entanto, central na vida do trabalhador, não era
podem ser concebidas como casuais, não conhecido pela humanidade como tal, a não ser
necessárias, que facilmente poderiam ser mani­ nos países desenvolvidos nos últimos duzentos
puladas tanto pelos homens interesseiros - os anos. Nem mesmo os trabalhos concretos dos
capitalistas - como pelos verdadeiros sujeitos, os homens e das mulheres na produção de sua
,rabalhadores e seus intelectuais. Esta visão existência se constituía em ocupação' central ou
fixista de um mundo de justaposições, de coisas preocupaçã.o central ao nível do viVido durante
postas é presa de um pobre marxismo funciona­ a maior parte dos milênios de história escrita
lista, que se compraz em analisar as conseqüên­ conhecida. Somente nos últimos cinco séculos
cias profundamente negativas de determinadas ele se vem constituindo como o elemento central
formas históricas de trabalho, como qualquer na vida de cada indivíduo, conferindo sentido a
funçionalista. Propomos estudar o trabalho em todas as outras atividades sociais; políticas e
su� complexidade, sem, no entanto, fixá-lo ou culturais. Ao mesmo tempo, tornou-se o determi­
identificá-lo com nenhuma de suas formas. nante das estruturas da sociedade, dos princi­
Trata-se, isso sim, de determinar a trajetória que pais conflitos entre os interesses opostos dos

EDUCAÇÃO E REALIDADE, Porto Alegre, 18(1):5-24, jan/jun. 1993 5


homens, das lutas políticas e da produção Iidade centrados no trabalho e na atividade
intelectual. Entretanto, este trabalho, - que já remunerada representa, hoje, uma posição
virou trabalho geral ao nível do vivido -, apesar .2
conservadora .
de sua centralidade, não cria identificações ao Segundo estes muitos autores perlustra­
nível de sua execução. Se as pessoas não se dos por Offe, a sociedade não � pode ser
identificam subjetivamente com o trabalho nas reconstruída como consciência de classe, dado
fábricas e burocracias, elas, porém, adquirem que, prilllEliro, a diferenciação cada vez mais
sua identidade a partir do papel que ele repre­ acentuada do trabalho dissolve qualquer possi­
senta na sociedade e que os põe objetivamente bilidade de identificação coletiva centrada no
em diferentes classes e camadas sociais. Ter trabalho. Segundo, o trabalho se desprofissiona­
trabalho, ter emprego, é o elemento fundamental lizou e, por isso, dissolveu o lado subjetivo da
na vida de bilh6es de indivíduos. O direito ao profissão com a qual indivíduos e coletivos
trabalho ainda é o grande lema dos sindicatos antes se identificavam. Terceiro, a estrutura
e dos partidos de esquerda. Nisto seguem temporal do trabalho, intermitente, variado, e
rigorosamente os ditames do ideário e dos encurtado por aposentadorias antecipadas,
valores da burguesia. pouco tem a ver com uma biografia coerente de
Mas esta já se auto-impoe um discreto trajetória definid,il. com sua preparação inicial
silêncio sobre um valor qu� lhe é muito caro, para o trabalho, com uma carreira ascendente e
mas que sabe poder atender cada vez menos. com algum final satisfatório, pleno de sentido de
Pois quanto maior o desenvolvimento das forças realização. Fenômeno cada vez mais comum em
produtivas, menor a possibilidade de garantir países do primeiro mundo, mas nada estranho
trabalho ou emprego decente para todos. A bem ao que ocorre entre os trabalhadores de países
da verdade, jamais conseguiu, em nenhum país de terceiro e quarto mundo. O trabalho desta
do mundo,empregar sequer a metade da popu­ sorte se tornou subjetivamente irracional e
lação economicamente ativa, potencialmente tal. periférico para o assalariado de qualejuer nível.
O direito ao trabalho representa hoje para a Quarto, a racionalidade econômica e técnica do
burguesia, a quem cabe o papel de defendê-lo trabalho não dá conta da necessária normatiza­
e de educar, forçar cada nova geração para a ção ou lógica de muitas atividades remunera­
ética do trabalho, um valor problemático gerador das. Nelas a produção de bens e serviços se dá
de incômodo e de protestos. Do lado dos traba­ fora das esferas institucionais do trabalho for­
lhadores, por sua vez, o trabalho já não se mal: membros de famílias, entidades compulsó­
constitui mais no valor e na preocupação cen­ rias corno exércitos e prisões, toda a economia
trai, tal como vivido nos últimos séculos, espe­ informal semilegal ou criminalizada. Além disto,
cialmente nos países capitalistas avançados. estão al atividades de tipo pedagógico, terapêu­
A sociologia e a filosofia recentes refletem tico, de recuperação física, de relações sociais,
este novo momento, ao deslocar suas principais de diversão e de tipo policial, etc., que mediati­
teses para outros temas. Estes, sim, seriam zam o sentido comunicativo do conjunto da vida
realmente centrais com condições de explicar dos homens, inclusive o trabalho. Mas estes
adequadamente as determinações das estrutu­ serviços, públicos e/ou privados, têm uma
ras da sociedade e a vida vivida dos homens racionalidade própria, de caráter comunicativo,
enquanto sujeitos. Para eles o trabalho se interativo, e até diria, lúdico, que não se identifi­
tornou periférico, além dos aspectos negativos ca com a racionalidade e a ética do trabalho
de negação, diminuição e escravização constan­ produtivo, cuja "irracionalidade" eles tentam
tes do homem. Não é o detentor das promessas absorver, curar e garantir. Não pertencendo ao
de realização do homem como sujeito, nem de mundo do trabalho, ao qual não se submete em
estruturas sociais igualitárias e livres. "O traba­ termos de controles de rendimento e produtivi­
lho e a posição do trabalhador no processo dade, é, no entanto, imprescindível a ,ele, sendo­
produtivo não é tratado como o principal princí­ -lhe a garantia de sua continuidade institucional.
pio organizador das estruturas sociais, a dinâmi­
ca do desenvolvimento social não é conceptuali­ Se o· trabalho não é central na determi­
zada como resultante de conflitos em torno da nação de estruturas sociais e culturais, se a
dominação empresarial", segundo pesquisa da identificação de classe não tem mais sua base
literatura dos últimos anos por Off e1. Estes no trabalho, se subjetivamente 9 trabalho é
trabalhos enunciam cada vez mais fortemente "a problemático dada sua desprofissionalização, se
tese de que a sustentação inamovível (em o trabalho desqualifica e impede o desenvolvi­
termos de análise ou politicamente normativa) mento das faculdades cognitivas e deixa de
de modelos de sociedade e critérios de raciona- normatizar grandes fatias de atividades , então

6
se faz necéSSário outro referencial teórico que puramente exteriores sem nenhuma relação
nos possibilitem mapear os campos da realida­ imanente de uma às outras, todas elas separa­
de social e individual não determinadas pelo das em si umas das outras.
trabalho e a produção. Os cientistas sociais e os Analisando o trabalho em sua positividade
filósofos, como Habermas, Agnes Heller, Hanna formal, nele descobrem não apenas as mazelas
Arendt, entre outros, tentam reconstruir propos­ e as deformações que o capital imp6e, mas as
tas teóricas que parecem satisfazer essas ne­ que as exigências técnicas inerentes ao próprio
cessidades. A ação comunicativa, o desenvolvi­ processo de produção complexo sempre e
mento social da vida cotidiana, o elemento do necessariamente produzem. Podem ser atenua­
vivido e do subjetivo nos movimentos sociais, a das em seus efeitos, mas não podem ser supri-
definição e institucionalização dos papéis entre midas3. _

os sexos, a proteção das condições naturais da Estes estudos padecem da insuficiência


vida dos movimentos ecológicos e dos movi­ de permanecerem, como dissemos acima, ao
mentos pela paz e desarmamento, a questão nlvel do imediato e do aparente. Tentam analisar
dos direitos hu manos, etc., teriam um poder de o trabalho imediato ao nível da descrição antro­
determinação muito mais forte, até mais global, poIógica,ao nivel do vivido, no ruidoso mundo
na construção da ação social, da consciência, do mercado, da rua, da política. Acreditam
do saber, de estruturas sociais mais adequadas. apanhar o homem real, o homem sujeito, e a
Este deslocamento para temas de caráter verdadeira realidade em que este vive, fazendo
subjetivQ, interativo, ou para temas do vivido no realismo sociológico. Este seu sujeito e esta sua
embate do cotidiano aparentemente mais ime­ realidade, porém, vai se tornando cada vez mais
diato, podem ter uma dimensão de complemen­ distante, cada vez mais esgarçado e se confun­
tariedade em relaçAo às análises de Hegel e de de com uma idealidade cada vez mais indetermi­
Marx, como a ação comunicativa de Habermas nada e genérica. Perdem-se ao não buscar o
e a teoria das necessidades radicais de Heller, conceito simples de seu objeto de estudo, até
por exemplo. Habermas critica o que julga ser ter de renunciar solenemente a ele, como o faz
determinismo ou racionalidade instrumental em Habermas, Gorz, Foucault e tantos outros.
Marx, caminhando exatamente na direção apon­
tada por este. Na verdade Habermas critica o
pensamento desfigurado por pragmáticos segui­ 4. O conceito 81mples ou o conteúdo do
dores do mestre, que nele buscaram legitimação trabalho.
para sua desenfreada luta pelo poder e pela
dominação. O conceito simples do trabalho não requer
longas inquirições uma vez que já foi elaborado
pelos clássicos, filósofos e economistas.
3. O Imediato e a8 forma8 8em conteúdo. Desde locke se tornou preocupação
teórica importante entre os clássicos modernos,
Quando os cientistas sociais tentalT culminando em Hegel e Marx como o elemento
captar hoje a sociedade e seus novos proble· central da objetivação do homem no mundo. Por
mas ou conflitos em pobres dicotomias concei­ esta mediação ele se constrói como homem e
tuais do tipo ideal weberiano como: sociedade vai construindo um mundo humano, superando
industrial e sociedade pós-industrial, produção a mera naturalidade e imediatidade dele e do
e esfeta doméstica, valores materialistas e mundo.
valores pós-materialistas, modo de produção e Foi Hegel quem definiu, antes de Marx, o
modo de vida, e assim por diante, eles demons­ conceito simples e universal do trabalho, carac­
tram apenas que seu olhar permanece colado terizando-o desta maneira:
às vicissitud� do imediato e do aparente, que
sua lógica é ai lógica da pura positividade e da A mediação que consiste em preparar e adquI­
forma Fixando-se nas formas do aparecer do rir meios apropriados a carências �
real, e tomando-as como o real, tendem a das, meios que são eles próprfos, portanto,
igualmente particularizados, é o 1IabaIho, que
perder-se em infinitas descrições, fazem ciência
especifica, com viste a esses múltiplos fins e
comparativa sobre as diversas formas, sobre o
passando pelos processos mais diversos, o
lado bom e o lado mau, ou o lado positivo e o
material fornecido Imediatamente pela nature­
lado negativo destas positividades, sem nunca zs4.
desconfiar que estão pisando no duro terreno
da ciência puramente analítica, formal, onde Neste conceito se realça o trabalho como
tomam seus objetos de estudo como coisas

7
termo médio entre o desejo do indivíduo - os resistência do objetivo exterior. Este exige
carecimentos - que movimenta e o objeto prodll­ disciplina e obediência e respeito a suas pró­
zido. O movimento-trabalho produz um silogismo prias determinações.
real, o "silogismo do trabalho", o que já aponta A consciência puramente subjetiva não se
para a racionalidade objetiva nele inscrita, e que pode opor em termos absolutos ao r�I, apren­
a mente dos homens capta e expressa na sua de que não pode fazer tudo o que seus capri­
própria forma Hegel inscreve a transformação chos subjetivos querem, tal como a razão instru­
dos objetos ou da natureza do ângulo mais mentai quer manipular e de fato manipula o
utilitário possIvel: o produto vem a satisfazer mundo em termos de meios para fins subjetiva­
carecimentos particulares, através de meios mente idealizados sem respeito com a coisa
particulares. Na Fenomenologia do Espírito o "Sem a disciplina do serviço e da obediência, o
homem compareCe como o senhor e o escravo. temor permanece formal e não se estende sobre
Como o senhor, a consciência de si absoluta, toda a efetividade consciente do ser-aí. Sem a
excluindo de 'si tudo o que é outro, como dese­ atividade formadora, o temor permanece interior
jo. e mudo, e a consciência não se torna consciên­
Este desejo se reporta ao mundo mediante seu cia para ela mesma". Autismo absoluto c0nde­
outro eu, o escravo. nado li autodestruição. Neste ponto Hegel
O desejo é uma potência de negação vincula o trabalhÓ - a consciência formadora à
-

temível, que tende à absorção e à anulação de liberdade e ao conhecimento universal. "Se a


uma reàlidade que se faz sua, assimilando-a. consciência não se temperou no temor absoluto,
O escravo vai e "comporta-se negativa­ mas somente em alguma angústia particular,en­
mente em relação à coisa e a suprime;" mas ele tão a essênci a negativa permaneceu exterior a
se choca com a permanência dos objetos, que ela, sua substância não foi intimamente contami­
não pode destruir, ele os transforma: ele os nada por ela. Quando o conteúdo da consciên­
trabalha. Consciência deseJante (senhor) e cia natural não vacilou; essa consciêntia ainda
operante (escravo) o homem, enquanto escra­ pertence em ai ao ser determinado; então o
vo, inscreve seu desejo sempre evanescente na sentido próprio é simplesmente obatlnaçio,
continuidade do mundo. O trabalho ai "é desejo uma liberdade que ainda permanece na servi­
refreado" que o escravo canaliza todo seu dão". Em termos individuais significa a depen­
dinamismo interior moldando o mundo, dando­ dência dos caprichos e do voluntarismo arbitrá­
-lhe uma forma que é ele próprio. "Dle Arbelt 1st rio. Em termos sociais significa a dependência
gehemmte Beglerde, aufgehaltenes Verschwln­ do autoritarismo, do despotismo, das dependên­
s cias pessoais e do fisiologismo mais larvar, do
den, oder sle blldet" . "O trabalho é desejo
refreado, desaparecimento retardado: o traba­ culto do herói, do salvador. Significa povos
lho forma". Isto é, pelo trabalho o homem põe incapazes de relacionamento impessoal e de
novas formas ao mundo objetivo, o qual, retor­ autoclecisão. "l'ampouco, nesse caso, continua
-

nando ao homem, o forma por sua vez. Daí Hegel - a pura forma pode tornar-se sua 8ssên­
porque formar tem a ver com a cultura objetiva cla, tampouco essa forma,considerada como
e subjetiva Várias linhas de força estão presen­ estendendo-se acima do particular,pode ser
tes: primeiro, a fruição do produto. Segundo, a formação universal, Conceito absoluto; é somen­
construção do mundo pondo um objeto dotado te uma habilidade particular, que domina algo
de permanência, que resiste ao arbitrário de sua singular, mas não domina o poder universal e a
consciência individual ou de consciências autori­ essência objetiva em sua totalidade". Sem o
tárias e despóticas outros. Terceiro, no trabalho, trabalho o homem não chega ao conhecimento
"operação formadora", o homem, "como singu­ abstrato universal, ficando preso a suas repre­
laridade, ou o puro ser-para-si da consciência, sentações imediatas e a suas intuições sensí­
chega à intu�o do ser independente como veis. Fica submisso ao atraso da barbárie,
intuição de si.;6. É o reconhecimento de si no dependente da natureza sem dominar seu poder
mundo externo, no mundo econômico-social se e sua essência objetiva em seu todo._Voltaremos
torna um princípio de ação e de conhecimento, a este assuMo mais adiante. Vejamos por um
verdadeiro patamar de onde o homem vai instante como Marx se refere ao trabalho en­
avançando sempre mais no reconhecimento do quanto conceito simples. Reporta-se a ele como
mundo e de si mesmo. Quarto, o homem pelo presente em todas as épocas e a todas as
trabalho supera o medo diante do negativo e do formas sociais, como "condição natural neces­
mundo exterior. Negativo ou negação de sua sária do intercâmbio do homem e a natureza" ,
infinitude pelo exteriorizar-se mediante o serviço, "é a atividade dirigida com o fim de criar valo­
e o enfrentamento da dura permanência e res-cle-uso , de apropriar os elementos naturais

8
às necessidades humanas"7. Conceito idêntico coisas são, portanto, iguais a uma terceira que
ao de Hegel, que acabamos de ver, sem, entre­ por sua vez delas difere. Cada uma das duas,
tanto, a complexa elaboração deste. Esta elabo­ como valor-de-troca, é reduzível, necessariamen­
ração, porém, não deixa de existir em Marx no te, a essa terceira,,8 . O que é essa terceira
conjunto de suas obras: desde os Manuscritos colaa a que se reduzem todas as difer�ças das
ao Capital. Para ambos os clássicos, o trabalho mercadorias? É uma coisa de qualidade dife­
simples vai-se pondo no mundo, através de rente, e q�e não contém "nenhum átomo de
rupturas e complexas trajetórias de desenvolvi­ valor-de-uso,,9, "nenhum átomo de matéria"10,
mento, num processo de pressuposições e que consiste em ser produto de trabalho huma­
posições, em que a causalidade ora é interrom­ no. E logo acrescenta que o valor-de-uso deverá
pida ora se completa" inteiramente no efeito. ter sido suprimido. "O produto do trabalho já
Tentemos agora"seguir esta caminhada. terá passado por uma transmutação. Ele não é
mais mesa, casa, fio ou qualquer outra coisa útil.
Sumiram todas as suas qualidades materiais.
5. O devlr do trabalho: • mutação par. traba­ Também não é mais o produto do trabalho do
lho abstrato marceneiro, do pedreiro, do fiandeiro ou de
qualquer outra f9"ma de trabalho produtivo. Ao
o trabalho simples, do qual vimos alguns desaparecer o caráter útil dos produtos do
elementos expressos no sàu conceito, vai se trabalho, também desaparece o caráter útil dos
determinando lógica e historicamente em formas trabalhos nele corporificados, desvanecem-se,
cada vez mais ricas e complexas, ampliando as portanto, as diferentes formas do trabalho
relações entre os homens sobre áreas cada vez concreto, elas não mais se distinguem umas das
mais extensas, que ultrapassam de longe as outras, mas reduzem-se, todas, a uma única
formas puramente interpessoais, familiares, espécie de trabalho, o trabalho humano abstra­
tribais e nacionais. Na forma capitalista ele não to" (grifos nossos) 11.
aparece diretamente na boca do cenário. Com­
parece disfarçadamente na troca de mercado­
rias, até porque essa é a forma de aparência, de 8.Trabalho humano abstrato: abstração real e
manifestação primeira do capital. No mundo universal concreto e singular.
ruidoso do mercado, o trabalho é, neste sentido,
o grande ausente. Comparecem os produtos do A especificação do que seja exatamente
trabalho, como valores-de-uso e como valor, "esse residuo dos produtos do trabalho" como
contratos e ações de troca. Em função de massa pura e simples do trabalho humano em
necessidades, reais ou imaginárias, trocam-se geral, ou como dispêndio da força de trabalho
bens por dinheiro. A teoria econômica da utilida­ humana,- expressões constantemente emprega­
de marginal baseia-se na racionalidade subjetiva das em O Capitat e na Contribuição à Critica da
incidindo sobre as necessidades e a satisfação Economia Política - pode ter induzido a uma
que o referido bem proporciona aos indivíduos. leitura vulgar, que identifica o trabalho abstrato
Na verdade, a mente toda dos indivíduos está a trabalho em geral no sentido de uma repre­
ocupada com o valor-de-uso, com sua necessi­ sentação ou expressão mental abstrata O
dade, e com o preço que está em condições ou denominador comum dos diferentes trabalhos
não de pagar. Mas não se ocupa, nem pode se qualitativos implica no gênero como mera c0ns­
ocupar com o trabalho como valor. Se se ocu­ trução mental. Subjetiva-se o conceito. Já o
passe com o valor não compraria nem venderia trabalho abstrato lido como dispêndio fisiológico
nada de músculos, nervos, cérebro,etc. equivoca-se
Os valores-de-uso se trocam exatamente em certos autores como a base materialista da
por motivo de sua qualidade diferente produzido economia política e de todo o �erialismo
por trabalhos qu�itativamente diferentes. E, no marxiano, implicando numa falsa objetivação do
entanto, para poder haver troca, devem "x de conceito. Na realidade identificam o conceito
graxa, y de seda e z de ouro ... ser permutáveis com trabalhb imediato, e ainda pior, com traba­
e iguais entre si". De onde lhe vem a possibili­ lho manual,"" erro que se encontra nos autores
dade de uma igualdade, se os produtos são conhecidos na área de educação e trabalho e
qualitativamente diferentes? "Que significa essa em toda a literatura educativa presente em
igualdade?" indaga Marx, e responde: "Que nosso meio. Dal seus impasses teóricos e
algo comum, com a mesma grandeza, existe em práticos, as revoluções anunciadas de impossl­
duas coisas diferentes, em um quarter de trigo vel cumprimento, porque sua base é o velho
em quintais de ferro." E conclue: "As duas que necessariamente repõe o velho, a república

9
do trabalho, que é a do capital. em que especificamente aponta como exemplos
Os textos de Marx falam de redução, não de universais concretos a vida, eu, espírito,
de um processo de generalização, quando se conceito absoluto, afirma que "o universal
referem à conversão de trabalho qualitativo em verdadeiramente superior é aquele no qual este
trabalho abstrato, para indicar que se trata de aspecto que se dirige para o exterior é retomado
uma abstração material, real, prática: "Esta para o interior, a segunda negação, na qual a
redução aparece como uma abstração, mas é determinidade não é senão pura e simplesmente
uma abstração que se faz diariamente no pro­ como alguma coisa posta, como aparência.
cesso de produção social"12. E em O Capital Assi m a vida, o eu, a cultura, não são universais
propõe uma analogia com um "exemplo geomé- apenas como gêneros superiores, mas concre­
l"rlco. Para determinar e comparar a área dos tos, cujas determinidades também não são
polígonos, dEICompomo-los em triângulos. O espécies e gêneros inferiores, mas que em sua
próprio triângulo pode converter-se, também, realidade aio pura e simplesmente em si e
numa expressão inteiramente diversa de sua completos (grifo nosso,1 a, . O que quer dizer
figura vislvel - a metade do produto da base tudo isto? Que o universal concreto é tal como
pela altura"13. E logo acrescenta que essa um gênero superior, porém real, como a con­
terceira coisa comum aos trabalhos qualitativos cepção que temos de um Deus, gênero .supre­
"não pode ser uma propriedade das mercado­ mo, perfeitarnenre universal existindo ao lado
rias, geométrica,· física, química ou de qualquer dos gêneros e espécies inferiores, minerais,
outra natureza"14. Está excluída, portamo, a plantas e animais, e dos seres individuais, os
redução dos trabalhos ao nlvel fisiológico, como quais dele participam de alguma forma.
ainda se pode ver em recente obra de Goren­ Tomemos ainda o exemplo do eu. Diremos que
der. "A redução de todas as mercadorias a ele existe como singular concreto e universal ao
tempo de trabalho não é uma abstração maior lado de todos os comportamentos e ações
nem menos real que a redução a ar de todos os singulares e dos órgãos ou faculdades de meu
corpos orgânicos. De fato, o trabalho assim ser: Ele contém imediatamente em si o todo, a
medido pelo tempo, não aparece como trabalho particularidade e a singularidade. Assim também
de indivíduos diferentes, antes, os diferentes seu interior e sua exterioridade enquanto postas,
indivíduos que trabalham aparecem normalmen­ e que a ele sempre retornam como seu funda­
te como simples órgãos do trabalho"15. Em O mento. Tomemos ainda o exemplo do DNA
Capital16 afirma que toda a força de trabalho da como universal posto, já desenvolvido, portanto.
sociedade passa a ser "uma força de trabalho Está presente em todos os órgãos e células do
única", portanto, nlo um somatório ou agrega­ ser vivo, bem como nas mais variadas espécies
do, mas uma totalidade nova, um gênero, que de seu gênero, determinando-os. Na realidade
abrange todas as espécies de trabalho e todos ele determina a si mesmo ao se pOr nestas
os trabalhos singulares. Como veremos, trata-se particularidades e singularidades.
de um gênero real, com existência e efetividade
FeaI que atua sobre e ao lado dos trabalhos
individuais e particulares, que ele subsume. Nà 7. Diferença entre devlr e desenvolvimento:
verdade, trabalho abstrato é uma coisa, uma doia nivela de pressuposlçlo e poslçlo
existência concreta e universal. É um gênero
real, como Deus, um ser universal e concreto, Da mesma forma que o eu, a vida, a
singular, ao lado dos outros entes, que ele cultura,etc., e como o DNA, - coisas objetiva­
determina. Pois, já não são mais os indivíduos mente abstratas, - vão se pondo mas aparecen­
,

que põem o trabalho abstrato, mas é ele que os do como pondo coisas externas a eles, nas
põe como simples órgãos do trabalho. Mas, mais diversas formas, assim também o trabalho
afinal, o que vem a ser universal concreto singu­ humano abstrato, cujas características ainda
lar? É o que acabamos de apresentar. Mas precisam ser determinadas, vai se objetivando,
precisamos defini-lo e explicitá-lo um pouco vai se exteriorizando ou pondo em diferentes
mais para torná-lo mais compreenslvel. Hegel, formas ou .determinidades. Os processos de
na grande Lógica (segundo tomo), o define em posição, isto é, de pôr-se, ocorrem em dois
vários textos como aquilo que tem em si mesmo nlveis inteirámente distintos: o nivel ou processo
o momento da particularidade e da singularida­ do devir, da gênese, que sempre supõe des­
de, e também como ser posto que contém em continuidades, rupturas, e o nlvefdo processo
si os momentos da interioridade e a exteriorida­ de desenvolvimento, que ocorre de acordo com
de17. Momentos que sâo estudados longa e a lógica interna daquele ser Vejamos isto um
.

detalhadamente. em toda sua obra. Num texto pouco mais de perto.

10
A gênese é da ordem do devlr, da mutaçio, é Pois bem. O trabalho humano abstrato é
a passaggem de ser a ser através do nada da ordem do surgimento de algo qualitativamen­
Digamos que se trata de uma ruptura da causa­ te novo, é da ordem do devir. Não existia como
lidade que não se pode completar no efeito, tal na história dos homens e muito menos
pois o resultado, o condicionado se transforma determinava suas vidas. Sua gênese" portanto,
em um incondicionado, num principio autofun­ remete a seus antecedentes, sua pré-rondição.
dante de si mesmo. A gênese se refere aos Elementos çlestes foram sobressumidos (aufge­
antecedentes sim, porém, como pré-condiciona­ hoben) e redefinidos em sua nova condição. Isto
ntes. Designa processos anteriores ao do nasci­ nos remete à pergunta sobre quais foram seus
mento do novo ser. É da ordem da pré-história antecedentes cujos elementos entraram em sua
daquele ser. Pensemos' na descoberta recente nova composição.
de Thomas Cech 'e Sidney Altmann, ganhadores Os antecedentes do trt .J humano

do prêmio NGbeI de qulm,ica de 1989, segundo abstrato são, de um lado, os muitos trabalhos
a qual diverSas enzimas, que são protelnas concretos e particulares. Acima estudamos, com
simples, exteriores uma a outra, que o acaso Hegel e Marx, alguns de seus elementos impor­
junta, e que se transmutam em novo ser inde­ tantes. De outro lado, estão as ações concretas,
pendente e diferente delas: um novo DNA A espaço-temporais, da troca O trabalho, bem
gênese, neste caso pertence, ao momento como a troca contém componentes de abstra­
anterior, ao contrário do que em geral costuma­ ção real, sobressumidos no trabalho abstrato.
mos entender por gênese: do óvulo ao ser Giannotti em Trabalho e Reflexão pretende
desenvolvido. Os elementos do momento ante­ mesmo encontrar no trabalho concreto, imedia­
rior à ruptura são sobressumidas no momento to, que ele denomina "esquema operatório·, ou
do nascimento do novo e redefinidas em função na "individualidade técnica", quando o outro
do novo princfplo de desenvolvimento. Não se está presente direta ou Indiretamente um ele­
completam como a causa em seu efeito. O mento transcendentat primeiro. Acredita ver
fundamento do novo ser é ele mesmo, sendo neles as "condiçOes de existência· do surgi­
principio de seu próprio desenvolvimento. Eis mento dos fenômenos �� �iais.
porque antes do fundamento nada existe, e Assim, a ação sr --::;,utui ·;"j1O processo
Hegel o define como "o nada mas também efetivo de medida, ":-substancializa os
como reflexio-em-aI"19. Para ele, o devir, o primeiros objetos presentes para fazé!" com que
incondicionado é o movimento das condiçOes, se ponham enquanto manifestação, aparência,
como "contra-golpe de si mesmo, de tal sorte dum comum post0-21. A análise & a crítica deste
que o devenklo é antes o Incondicionado e o estudo, - que Giannotti mesmo r�
orlgln6rloo2O• Labarrlre e Jarczyk acrescentam explicitamente comogojeto realizado em "uma
nota de rodapé esclarecedora: "Em regime ótica transcendental • não cabe neste traba­
dialético, o último é sempre o originário; eis lho. Cabe apenas dizer que a ciessubstancjaliza­
porque o devir é "contra-golpe de si mesmo·: ção dos objetos e do outro presentes não faz da
forma reflexiva idêntica à auto-afirmação do ação ou do trabalho um trabalho abstrato,
conteúdo como totalidade". Voltando ao exem­ embora se trate de um processo de "abstração"
PlO das células de proteinas simples, diremos destes component8$, se se quiser. Na realidade
que o DNA que velo por último é o original e se trata muito mais de um processo de reflexão,
primeiro. pm:ecido com o da teoria hegeIiana da essên­
Nlvel inteiramente diferente de pressupo­ cta23, de onde alega seu caráter dialético. Então,
sição e posiçAo se dá no processo de desenvol­ ou se tem efetivamente um transcendental, uma
vimento. Ocorre a partir do nascimento do novo forma primeira a prior! à maneira kantiana, que
e constitui a evolução lógica e imanente de seu se cuida materiaJista; ou se tem uma multiplici­
conteúdo na direção de sua plena totalização ou dade de ações concretas. Destas Giannotti
exteriorização. Do germe à árvore, do óvulo ao evidentemente não quer parttr24, pois elas só
individuo pJenarne'nte desenvolvido. Processos poriam a possibilidade de abstraçe. mentais,
suscetlveis de interveniências, de interrupções, generalidades abstratas e subjetivas, como no
de envelhecimento e decadência, enquanto no caso dos � fisiológicos múltiplos,
nlvel anterior temos morte e nascimento: passa­ repreaentadoe como unidade. Falta-lhes oeste
gem de ser a ser através do nada caso a 8Ingularldade, pois o que eJ9sle no real
é apenas a multiplicidade. O comum abstraldo,
ou melhor, posto a partir de ações conçretas, o
8. Elementos abstratos no trabalho concreto "esquema operatório· ou a "Individualidade
ou almplea e na troca técnica" não pode instaurar novas objetivaçOes.

11
Ela é apenas uma armação vazia, formal, dos valor-de - uso aparece como um objeto indepen­
processos e das estruturas das realidades dente, "em compensação, como valor-de-troca
sociais. Mas isto exige outro estudo e outra era considerada desde início em relação com
apresentação que aqui não cabe. Importa todas as outras mercadorias. Todavia, esta
apenas considerar aqui que o trabalho concreto relação era apenas teórica mental"30. A muta­
pode importar em componentes abstratos, como ção, pois, ocorre com a troca. O trabalho se
é o sistema de carências de Hegel, ou o "desejo transforma numa nova realidade efetiva: é
refreado", que se vê obrigado a abstrair de substância. Trata-se de algo qualitativamente
fruições imediatas, esses componentes podem novo e diferente existente objetiva e realmente
preceder o trabalho abstrato como pré-condi­ no mundo dos homens. É substância social,
ções. A troca, da mesma forma, contém ações que, de resultado, agora é pressuposto e
de abstração real, digamos logo abstrações condição de todos os trabalhos dos homens.
reais. Elas precedem o trabalho abstrato, são Agora eles passam a ser seus órgãos, e seus
suas pré-condições imediatas, sendo nele trabalhos particulares são apenas expressões
sobressumidos e redefinidos. Não se trata de individuais dele.
fazer daquelas os elementos fundantes deste -
o macaco não é a chave da explicação do
homem -, porém, a descoberta de determinadas 9. Uma substância compacta.
abstrações na permuta, pOete indicar como
certas condições têm que estar presentes para Castoriadis é um entre muitos autores que
que ocorra o devir - e assim, a sobressunção caracterizam esta substância como uma entida­
destas no trabalho abstrato. de metafísica inventada por Marx. Faltou-lhe
Aliás, é preciso que se diga, sem aden­ entender o processo de constituição, de pressu­
trarmos nesta questão, que somente quando posição e de posição a nível de devir do real.
todas as condições de uma coisa estão presen­ Trata-se apenas de um resultado posto, que se
tes, é que ela entra na existência, que ela se tornou pressuposto, princípio e fundamento de
põe ou que ela devém25. si mesmo, de seu desenvolvimento. O que veio
A própria açãO de permuta requer total por último é o original e primeiro, diz Hegel.
exclusão do uso da mercadoria que se compra Tentemos agora entender o que é uma substân­
e vende. Para que a troca seja possível, é cia social.
preciso que o estatuto material da mercadoria Por um lado, a substância trabalho abstra­
permaneça imutável. A mente pode estar com­ to tem objetividade. Por outro, ela é impalpável,
pletamente mergulhada no uso ou consumo da pois não tem um átomo de matéria. É "coisa
mercadoria durante o ato da permuta. Mas esta social". Como tal, ela é compacta e se opõe ao
deve abstrair praticamente dele. "Põem-se de sujeito, que não a pode manipular de qualquer
lado os valores-de-uso das mercadorias, quando maneira, ad .libitum. Pelo contrário, ela pode
se trata da relação de troca entre elas" diz Marx. determinar suas ações e sua vida, como tam­
E continua: "Abstraímos, também, das formas e bém o sujeito se pode perder nela.
elementos materiais que fazem dele um valor-d­ Hegel identifica o próprio sentimento e a
e-uso.26. Pode ocorrer permuta de um produto intuição sensível dos indivíduos, como algo
que nem sequer foi produzido. A permuta abs­ muito material, com a substancialidade. Ao se
trai do tempo. Da mesma forma ela abstrai do referir a uma cultura ainda em sua infância, que
espaço: a mercadoria se encontra a milhares de identifica com a cultura oriental, baseada apenas
quilômetros. Finalmente, entre outras abstrações na Intuição e no sentimento, Hegel diz que ela
práticas, a troca chega ao limite de abstrair das "se acha numa relação imediata com seu obje­
diferentes formas de trabalho concreto, "traba­ to, e o objeto é tal que o sujeito se afoga na
lho no qual se apaga a individualidade dos substancialidade; não chega a desprender-se da
trabalhadores.27. unidade compacta e afirmar-se em sua liberdade
Este, como o valor de troca da mercado­ sUbjetiva"3l. Mas a substância trabalho abstrato
ria, "é sempre e apenas considerado como não é só algo consistente, massiva em si e por
resultado.28. Em si o produto do trabalho é só si, ela também remete a uma força que põe
trabalho individual materializado, e "a mercado­ determinações e desta forma se desenvolve: "A
ria é só tempo de trabalho individual materializa­ substância é potência, e potência:refletlda em
do, com um conteúdo particular, e não com o si, que não passa simplesmente, mas que �
tempo de trabalho geral. Não é imediatamente as determinações, e as diferencia de 81"32.
valor de troca,mas deve antes de tudo adquirir Quer dizer, ela se desenvolve. Movimento da
29 semente à arvore. A árvore é a substância
esse valor" . De início a mercadoria como

12
posta: ·unidade do ser e da aparência·, ou , nostalgia dos que gostariam de voltar àqueles
digamos, do conteúdo e da forma enquanto estágios primitivos, postura de muitos que se
aparência. Aparece só a álVore, e seu conteúdo, crêem progressistas, que identifica com a piedo­
seu DNA, nela desapareceu, formando uma sa visão romântica da burguesia ·é tão ridículo
unidade. Mas a compacticidade da substância sentir nostalgia daquela plenitude. primitiva,
tende a se elevar cada vez mais. Como a essên­ como acreditar quedar-se neste esvaziamento
cia, cujo movimento consiste na trajetória de se completo. A visão burguesa jamais se elevou
tornar conceito33, ou seja de se tornar sujeito, a por cima da oposição à dita visão romântica, e
substância, unidade posta do ser e da essência, é por isto que esta o acompanhará como uma
tende a conquistar seu poder de autodetermi­ oposiçãO legítima até sua morte piedosa·37.
nação como sujeito.

1 0. O desenvolvimento do trabalho humano 11. Onde estão o suleHo e as lutas de classe?


abstrato
Está ai o fundamento da alienação e da
Como é que se determina ou quais as falsa consciênci� mas este não é o objeto deste
determinações em que se põe a substância trabalho. O que quero deixar marcado aqui é
trabalho humano abstrato? Óbjetiva-se em valor, que o homem todo, sua inteligência e vontade,
e este,'por sua vez se exterioriza nas formas do seus desejos, suas lutas estão todas postas
dinheiro e das mercadorias. O trabalho abstrato nesta substância e nas objetivações que ela
como relação social, coisa social, toma a forma põe. Os humanistas, os progressistas de boa
de coisas e de relações entre coisas. A vontade vontade procuram descobrir o homem na sua
dos homens, portanto, mergulha na substanciali­ imediaticidade, querem ver o sujeito lutando,
dade, exterioriza-se no mundo. Sai inteiramente sofrendo, suando, amando, etc., e só -encontra­
de sua interioridade vazia, nega-se, e cria novas rão o que sua fantasia e seu arbítrio lhes dita.
formas de relações sociais, não mais baseadas Ao analisarem somente as formas pelas formas
na consangüineidade ou em relações diretas de perdem seu conteúdo.
senhorio e escravidão. As relações sociais Perdem também a verdadeira história e
mediadas por coisas lhe oportuniza esta inde­ caem no historicismo. Forma sem conteúdo é
pendência das relações pessoais, que é tanto como um vaso vazio, no qual se põe o que se
maior quanto maior a força social do meio de quiser, ouro, flor ou esterco.
troca34. Dinheiro é relação social, ...nexo com a Por isso só fazem análises de conjuntura
sociedade, que contere poder e independência de cunho jornalístico, sempre numa visão instru­
pessoal a seu portador individual, e que ele mentai. Assim também o sujeito sempre já dado
carrega consigo em seu bolso. Esta indepen­ de Paulo Freir.e reflete a concepção burguesa do
dência pessoal chega a constituir-se um sistema homem já pronto, que se ergue a partir dos
de metabolismo social geral, um sistema de cadarços de seus sapatos. Mesmo que afirme
relações universais, de necessidades universais que seu sujeito se transforme ou construa, o
e de capacidades universais35. Um pouco mais fato de partir de um sujeito posto vicia toda a
adiante analisa o desenvolvimento das faculda­ análise, pois na verdade ele é apenas predica­
des, e da omnilateralidade do indivíduo: ·0 grau do, e digamos logo que predicado do capital, ou
e a universalidade do desenvolvimento das apenas um ·sujeito· in fieri. Sujeito agora é o
faculdades, nas que se faz possível esta indivi­ capital, de que ele é predicado. Como tal ele
dualidade [[plenamente realizada, de que falou põe e repõe capital. Na situação real, portanto,
na frase anterior, NJE)], supõem precisamente é simplesmente impossível construir uma nova
a produção baseada sobre o valor de troca, que sociedade ou uma nova escola.
cria pela primeira vez, ao mesmo tempo que a O trabalho abstrato, relação social, subs­
universalidade da alienação do indivíduo frente tância que se manifesta na forma de mercado­
a si mesmo e aos demais, a universalidade e a rias e de dinheiro, quanto mais desenvolvido,
multilateralidade de suas relações e de suas mais dissolve, segundo seu desenvolvimento
habilidades. Nos estágios de desenvolvimento lógico e imanente, qualquer resquicio de trocas
precedentes, o indivíduo se apresenta com diretas, qualquer resquício de tríibalho. Em
maior plenitude precisamente porque ainda não outros termos, a aparência (dinheiro) como
elaborou a plenitude de suas relações e não as aparência posta da essência, e a essência
pôs frente a si mesmo como potência e relações (trabalho) coincidem de tal maneira que nada
36 resta do trabalho, nada resta de quem o produz.
sociais autõnomas· . E continua criticando a

13
Desaparece o homem, sua vontade, suas lutas, termo determinante d o processo, levando a luta
seus sentimentos imediatos, porque coincidem pela solução dos problemas até o fim.
com sua aparência, seu aparecimento nas É preciso, pois, que se repita, que o
coisas e suas relações. homem, o "sujeHo· está todo Inteiro posto no
Estas se manifestam nas categorias mundo das coisas e de suas relações. Suas
mentais. Já procuraram separar as lutas de lutas, seus interesses privados, que por isto, diz
41
classe, onde a subjetividade do sujeito e as Marx, são sociais . Suas vontades, suas lutas,
determinações subjetivas e "políticas· dos suas relações, seus trabalhos, suas construções
homens estão presentes, das categorias de coincidem com sua objetivação no mundo
análise, como se não captassem esta "realida­ exterior. Digamos que sua própria compacticida­
de·. Segundo alguns, as categorias refletiriam de imediata, seu mundo interior, o infinito de sua
as estruturas f�as, não as lutas de classe, psiquê, de seu imaginário, de seus sentimentos,
enquanto em movimento. Já para outros, trata­ se dessubstancializou nele e se pôs no mundo
-se simplesmente, de um lado, do mundo objeti­ exterior. Só então o indivíduo pode dominar
vo lá fora, estudado pelas ciências sociais, e de suas próprias relações, tanto as internas, quanto
outro, o mundo da subjetividade. Sabemos ser as externas: "É igualmente certo que os indiví­
esta última a da concepção idealista do sujeito duos não podem dominar suas próprias rela­
42
e objeto irremediavelmente separados. Pergunto: ções sociais antl!s de havê-Ias criado· .
qual a diferença da primeira com esta? Para Onde está, pois, o homem? No movimento
Marx, como para Hegel, a racionalidade da das categorias que expressam o movimento do
consciência dos homens não se separa da real. O que é o real? É a essência tornada
objetividade do mundo e das estruturas. "As verdade, ou seja, a unidade da essência e da
condições para ser tais indivíduos sociais na aparência, quando a essência se realiza inteira­
reprodução de sua vida, em seu processo vital mente na aparência. Digamos que o homem é o
produtivo, só são postas pelo processo econô­ trabalho posto no aparecer imediato das coisas:
mico histórico mesmo; tanto as condições é o homem posto plenamente no mundo e que
objetivas como as subjetivas, que não são mais nele se realiza, transformando-o e sendo ao
do que duas formas diferentes das mesmas mesmo tempo transformado. O movimento das
condições·38. Se lembramos o Prefácio à Contri­ categorias de análise é, pois, em seu próprio
buição, as estruturas determinantes fornecem as registro e segundo suas próprias leis, a expres­
condicões: "o modo de produção condiciona o são adequada e completa do movimento da luta
processo de vida social, político e espiritual em dos homens para se realizarem como individuali­
geral·39. Mas é desta matéria que emerge a dades plenas, empiricamente universais no
finalidade da superação e inclusive os meios interior de estruturas também postas historica­
para que ela se efetue. Aliás, os meios para a mente por eles.
resolução dos problemas contém em si os fins,
que a consciência racional transfigura na cons­
ciência em luta. A emergência dos fins, que é a 12. Que é ser sujeHo?
exigência objetiva da solução desses problemas,
põe a consciência a atuar efetivamente no A universalidade do homem já ganhou,
mundo. "É por isso que a humanidade só pois, existência nas coisas. Existência aqui quer
levanta os problemas que é capaz de resolver e dizer: primeira manifestação de seu ser posta no
assim, numa observação atenta, descobrir-se-á dinheiro, representante universal das mercado­
que o próprio problema só surgiu quando as rias e do trabalho abstrato. Ela apenas iniciou
condições materiais para o resolver já existiam sua trajetória na qual chega a se transformar em
ou estavam pelo menos, em vias de apare­ sujeito.
cer"40. É preciso entender que o homem sem­ Na primeira forma da substância trabalho
pre atuou efetivamente e que foi ele quem pôs abstrato, a forma valor, embora compacta, já
as estruturas históricas, mesmo quando elas se atua como "sujeito· que determina a vida dos
tornaram determinantes. Elas não são senão produtores .independentes. Mas -tem ainda
expressão sua. Mas agora se dá um momento muitos poros. Tem ainda pontos cegos. Sua
de inversão e retorno ao interior do homem, essência, que é abstrair do indivíduo ou da
enquanto fundamento de ação e de toda a individualidade dos trabalhadores, ainda não se
produção histórica. A consciência como vonta­ materializou por inteiro segundo soa lógica. A
de, que nas palavras de Hegel é a razão em ato, substância trabalho abstrato poderá efetivar a
emerge das condições objetivas dos meios e eliminação do indivíduo de diversas maneiras,
dos fins objetivos postos, e se torna agora o fazendo dele coisa, ou dinheiro. A abstração se

14
concretiza ainda mais quando transforma a reza que é abstrair do indivíduo. A abstração se
forma de ser do trabalhador individual em coleti­ concretiza cada vez mais desta sorte ao se
vo e este na máquina automática. Nestas con­ efetivar como trabalho coletivo.
dições o trabalho abstrato - como um universal O trabalho coletivo consiste numa verda­
concreto e singular ou uma nova estrutura deira transmutação ou devlr: morte e nascimen­
concreta de relaç� - assume cada vez mais a to. O trabalhador individual independente é
condição de sujeito do processo. destruído e aparece uma força social nova: "a
LIma forma de materializar sua essência é força coletiva.;45. O trabalhador coletivo é uma
transformar seu movimento poroso, de "sujeito criação do capital, que se manifestou durante
dinheiro·, - negado pela mercadoria e vice-ve­ vários séculos na manufatura Os indivíduos
rsa, - sujeito dormente durante longos períodos passam agora a ser "mer:nbros de um organis­
em lânguidas comunidades autônomas, quase mo que trabalha, representam apenas uma
sem intercâmbios nem mercado. Esta transmu­ forma de existência do capital·46.
tação fará dele sujeito pleno ao assumir a forma A negação da individualidade do trabalha­
capitalrC dor independente, do artesão e do camponês,
Ôr a, o que significa ser sujeito? Não se etc., que implica em imensos sofrimentos, como
perder na sua passagem para o predicado ou sabemos, implica ao mesmo tempo, pela força
predicados, ao assumir suas determinações. da abstração qln! se transmutou, num proces­
Positivamente: manter sua condição, sua identi­ so objetivo de posição de liberdade e de
dade ao passar para a condição de predicado. Individualidade. O trabalho coletivo separa,
O capital, qualquer que seja a forma em que classifica as operações, "individualizando todos
47
apareça, seja na forma dinheiro, seja na forma os seus órgãos· , conferindo-Ihes responsabili­
mercadoria: e esta ou como força de trabalho, dades específicas embora mínimas. É a famosa
ou como matéria prima ou como meio de pro­ quadriculação que Foucault descreve com
4
dução, é sempre capital e age como tal 3. Não tantas minúcias e rigor analítico. É o.exercício
se perde jamais em suas determinações. Pense­ das "disciplinas· que paradoxalmente cria e
-se, ao contrário, no indivíduo em sua determi­ destaca a individualidade da massa indiferen­
nação de metalúrgico ou de professor: ambos ciada de modos de produção precedentes. Que
passam inteiramente para elas e perdem sua represente um enorme grau de limitação, de
identidade. Já o sujeito-capital passa por elas repressão, de destruição, como dissemos acima,
sendo sempre ele mesmo. Mas o professor, o não merece nenhuma dúvida. Fixar-se, entretan­
metalúrgico, o trabalhador, enfim, o homem to, na alienação, diz Marx, caracteriza a forma
48
perde sua condição de sujeito. Quando dize­ de pensar dos economistas burgueses •
mos: "Liberdade � Coca-Cola·, queremos
significar o homem, em sua realização completa,
sem adjetivos: na verdade, a liberdade passa 14. O trabalhador coletivo da grande Indústria
inteira para a Coca-Cola restando só a Coca-C­ e da p6s-gr"nde Indústria.
ola. (Nada contra ela). Temos aí a condição do
sujeito in fieri, não posto. A individualidade Esta forma de produção capitalista, sabê­
passa para o predicado, identifica-se a ele, é, mo-lo, "revela-se, de um lado, progresso históri­
portanto, apenas predicado. Onde estão os co e fator necessário do desenvolvimento eco­
sujeitos postos da escola da libertação? No nômico da sociedade, e, do outro, meio civiliza­
Limbo etéreo do voluntarismo pretensioso. Sem do e refinado de exploração·49•
nenhuma capacidade de ação: "Não podem A analítica prática de tarefas instaurada na
dominar suas próprias relações antes de havê­ manufatura vai levando à abstração real da
44 qualificação requerida do trabalhador individual
-Ias criado· .
que facilmente se percebe a substituição de
seus movimentos manuais por dispositivos
13. O trabalho abstrato se materializa no mecânicos. A substância trabalho abstrato opera
processo de produção: o trabalhador coletivo a conversão.do trabalho coletivo para a máquina
ferramenta automática. Sob a forma capitalista o
Como o dinheiro - nexo social -, o capital indivíduo é descartável. O trabalho abstrato,
é produto dos indivíduos. Trabalho concreto lembremos, produto dos homens, aponta ao
transmutado em trabalho abstrato, substância mesmo tempo para a liberação da mão do
valor que se valoriza autonomamente. Nesta homem do trabalho escravo. Aponta para o
condição modifica também a organização do reino da liberdade do sujeito posto. Este indiví­
trabalho dos homens de acordo com sua natu- duo deverá também assumir diferentes determi-

15
nações sociais, diferentes papéis dada sua Já nos referimos ao momento negativo,
finitude radical, '-J;órém, não mais perderá sua enquanto objetivação alienada e alienante, em
identidade nelas. Como sujeito se apresenta que o homem é descartado por sua criatura na
diante d�rças naturais, dominando-as, sem presente sociedade capitalista O desemprego
ser por elas dominado. Que estas forças natu­ aberto, o trabalho informal, a crescente diferen­
rais, inclusive as postas nas máquinas e nos ciação de serviços que já não seguem as regras
robôs apresentem sempre resistências e limites de produtiv�de capital� atendendo, porém,
não significa de modo algum dominação de nesta condição, necessidatles do capital, mani­
parte delas, apenas desafio e condição de maior festam a diijéuldade estrutural posta pela máqui­
desenvolvimento e livre objetivação do homem. na automática ao capital. Ele tende, por m�itos
O trabalhador coletivo, portanto, j*'ção é meios, voltar ao trabalho das mãos, pondo os
mais o homem. Abstraído o homem, o tnséalha- indivíduos a fabricar computador� e/ou robôs
. .dor coletivo é agora a máquina ferramenta com as mãos. Mecanismos de · retrocesso na
éutomática e a máquina eletrônica TeorIcamen­ história mantendo a produção do valor e da
te o homem .. libertou do trabalho manual e mais valia pela utilização da força de trabalho
escravo, ela � o trabalho abstrato finalmen­ enq�o posta apenas na mão. Nem se pense
te se tornou verdade. Verdade sempre significa que sUa possibilidãde de sobrevivência se limite
em Hegel o acordo da coisa cons@O mesma, e a esta forma de "extração de mais valia Marx
não com nossas representações. É a realização aponta, nos Grundrlaae, exatamente para uma
plena, digamos, do DNA da semente ple,namen­ terceira fase de grande desenvolvimento do
te posto no tronco da árvore, nos seus' ramos, capital através do que se poderá definir como a
na riqueza de sua folhagem e de seus frutos. A da subsunçio formal Intelectual ou do Inteleto.
matéria é solidária do trabalhador, enquanto a Tal como no início de seu desenvolvimento não
forma capitalista de relações ainda o atenaza e dominou a mão dos indivíduos, que pemane­
exige ser eliminada. Objetivamente acabou-se ciam artesãos, a ele ·submetidos via' relação
a claaae operária. Conceber-se ainda como formal ou de contrato individual, agora o capital
claaae significa a eterna reposlçio da forma já não domina, a não ser por contrato coletivo
capitalista de relações. A matéria exige que o de trabalho, a capacidade intelectual do assala­
trabalhador se pense como homem novo, empi­ riado. Desenvolveremos este ponto mais deta­
ricamente universal e lute como tal. Proletário Ihadamente em outro estudo. Aqui apontamos
devia imprimir na linguagem dos homens esta apenas para alguns textos em que Marx se
nova forma livre de ser. É evidente que este refere a ele.
termo hoje está profundamente rejeitado e assim
deve continuar. O proletariado - o novo homem o trabalhador Já não Introduz o objeto natural
- não conseguiu negar-se como classe, impossi­ modificado, como etapa intermédiárfa, entre a
bilitando a abolição das classes. Mas a objetivi­ coisa e a si mesmo, mas insere o processo
natural,que transforma em industrial, 'como
dade exige que se crie um novo termo que a
meio entre si mesmo e a natureza inorgênica,
expresse adequadamente. Aterrível identificação
que ele domina. Apresenta-se ao lado do
dos trabalhadores com a miséria e com a alie­ processo de produção, em lugar de ser o
nação, além do equívoco fatal, revela o profundo agente principal. Nesta transformação o que
desprezo às massas alienadas que supostamen­ aparece como pilar fundamantal da produção
te nunca foram capazes de libertar de sua e da riqueza não é nem o trabalho Imediato
condição de gado marcado. O salvacionismo executado pelo homem nem o tampo em que
desta visãp �agógica dos-pastores do povo este trabalha, mas a apropriaçio da sue pró­
foi e continú8 latal para a 'Cdnstrução de uma pria força produtiva geral, sua compreensão da
nova sociedade. natureza e seu dom/nlo da ' mesma graças à
Felizmente as "massas" ditas alienadas sua existência como corpo social; numa pala­
vra, o desenvolvimento do individuo social...
souberam dar um basta a esta visão, com a
Tão logo como o trabalho em sua forma ime­
qual nunca se identificaram. É possível que
diata cflSsou de ser a grande fonte da riqueza,
estejam muito mais afinadas com a lógica objeti­ o tempo de trabalho deixa, e tem que daixar
va da materialidade do trabalho abstrato posto de ser sua medida, e portanto, o valor de troca
nas máquinas. Tentemos entender um pouco [[deixa de ser a medida]] do valor de uso50.
mais esta lógica e seu desenvolvimento.
O homem transformou o processo de
15. O nio-trabalho enquanto trabalho Intelec­ produção em processo industrial, e o trabalho
tual como produtor da riqueza material. imediato já não é mais o pilar fundamental da

16
produção, nem mesmo o tempo em que o da natureza, pois ela não constrói máquinas,
homem trabalha, mas a compreensão da nature­ nem locomotivas, estradas de ferro, etc., resta a
za, a ciência posta objetivamente nas forças máquina ou a ciência. Se, porém, o conteúdo é
produtivas e no inteleto do homem. A riqueza originário da máquina ou se é a própria máqui­
não é mais produto do trabalho mas do não-tr­ na, em ambos os casos ela é considerada como
abalho: "A mais-valia deixou de ser condição um absoluto em si determinando a vida dos
para o desenvolvimento da riqueza social, como homens. Esta concepção fetichista não é capaz
o não-trabalho de uns poucos deixou de sê-lo de seguir a trajetória do trabalho abstrato objeti­
para o desenvolvimento dos poderes gerais do vado no valor e expresso no dinheiro e menos
inteleto humano"s1 . O trabalho deixou de ser o ainda no capital. Ora, o conteúdo é o trabalho
fator da riqueza, ela é produto do não-trabalho, humano abstrato, que em sua forma negativa
do conhecimento e da compreensão da nature­ ou exterior se põe na forma valor, expresso no
za, da ciência. Digamos que a substância traba­ dinheiro e no capital enquanto negatividades.
lho abstrato se realiza na sua verdade, naquilo Mas esta visão só consegue ver positividade em
que ela é: ato de prescindir do homem como tudo de acordo com a concepção positivista e
produtor imediato, como trabalho manual, con­ linear que lhe é própria: no dinheiro, no capital,
vertendo-se em não-trabalho. Ela se materializa na máquina e na ciência e os fetichiza· como
no "trabalho" científico e passa '8 ser a verda­ puras exterioridádes naturais, independentes
deira fonte da riqueza social. Ele habita no dos processos de negação do homem que se
tempo livre e é atividade essencialmente livre, põe pelo trabalho. Pois, a máquina e a ciência
atraente, autorrealizadora e criativa. Porque são formas de objetivação, de negação da
infinitude vazia do homem. Não se trata, pois de
os trabalhos realmente livres, como por exem­ nenhuma dedução abstrata como querem
plo a composição musical, são ao mesmo alguns. Se assim for, terão que negar toda a
tempo condenadamente sérios, exigem o mais análise do valor, do dinheiro e do capital de
intenso dos esforços. O trabalho da produção Marx, como terão de negar toda a dialética do
material s6 adquire este caráter 1) se seu
real. proudhon volta com toda a força, com sua
caráter social está posto, 2) se é de Indo/e
concepção puramente positiva do real. Isto
clentlfica, ao mesmo tempo que trabalho geral,
facilita o discurso maniqueista sobre a perversi­
não esforço do homem enquanto força natural
adestrada de determinada maneire, porém, dade do capital, ou da máquina, e sobre o seu
como sujeito que se apresenta ao processo de lado bom, que, afinal, também deveria ser
produção, não sob uma forma meramente considerado, como se pode ver em Arroyo, em
natural, espontAnea, mas como atividade que seu recente trabalho: O princfpio educativo: o
regula todas as forças da natureza52. trabalho ou a resistência ao trabalho54• Discurso
moralista, que, sabemos, comove coraçOes, mas
Como referi acima, este desenvolvimento não cria nada
exige outro estudo detalhado, por nele haver
uma série de transformações, conversões ou
interversôes (Umschlagen) , processos tão 1 8. O devlr da Inteligência.
complexos apontados por Marx que o levou a
dizer esta palavra pouco palatável para os que O trabalho humano abstrato, desde que
já vêem a revolução batendo à porta: "Assim surgiu historicamente, além de sua objetivação
como o sistema da economia burguesa para no valor expresso no dinheiro, pôs também as
nós se desenvolveu tão somente pouco a pou­ condiçOes necessárias e suficientes, para o
co, outro tanto ocorre com a negação do siste­ surgimento do entendimento e da razão.
ma mesmo, nega ão que é o resultado último

dessa economia" . E que esse processo ora
apresentado ainda se inscreva no marco da 1 7. A Idéia não é decalque.
economia capitalista pode ser demonstrado pelo
processo de transformação do homem em Trata-se de um surgimento de um devlr, a
capital fIXO, portanto, capital. partir de pressupostos, que estando presentes,
Finalmente, para quem vê no avanço tecnológi­ são suprimidos em sua forma, e devém novo
co um novo conteúdo, como Frigotto, cabe tipo de ser. Tal como na Ideologia �lemã, Marx
perguntar de onde surgiu esta positividade também nos Grundrisse passa a representação
absoluta, se da natureza, se da máquina ou da de que as Idéias são um simples decalque, - é
ciência como conteúdo (e forma) nova e qual é verdade que em outra "potência", ao nível da
sua natureza. Supondo que não seja originária mente da única maneira que esta pode atuar -

17
das relações materiais. Vale a pena transcrever ca do devlr e do desenvolvimento a substância
um texto dos Grundrisse I quando se refere às trabalho abstrato.
relações humanas objetivadas no dinheiro:

Estas relações de dependência materiais, em 18. Características do conceito.


oposição às pessoais (a relação de dependên­
cia material é senão [[o conjunto deJJ vfnculos o conceito não é produto direto nem da
sociais que se contrapõem automaticamente
matéria, nem das relações materiais abstratas.
aos indivfduos aparentemente independentes,
E, no entanto, é um resultado. Resultado de
vale dizer, [[ao conjunto dosJJ vfnculos de
uma pressuposição (com suas próprias determi­
produção recfprocos convertidos em aut6no­
mos com relação aos Indivfduos) se apresen­ nações). Esta não pode ser qualquer coisa
tam também' de tal maneira que os indivfduos compacta e fechada, como, digamos, os ele­
são agora dominados por absI7açóes, enquanto mentos da natureza A pressuposição deve
antes dependiam uns dos outros. A abstração conter as condições dadas que possibilitem o
ou a idéia não é, entretanto, nada mais do que salto qualitativo, o surgimento do novo ser. Ora,
a expressão teórica dessas relações materiais as determinações fundamentais do conceito
que os dominam. Como é natural as relações consistem na abstração, no prescindir c!e ele­
só podem ser expressas somente sob a forma mentos singulare'S, particulares e na posição de
de idéias, e então os filósofos conceberam
uma universalidade que, no entanto, os subsu­
como caracterfstica da era moderna a do
me em si, deixando-os existir como tais, livre­
domfnio das idéias, identificando a criação da
mente, uns em relação com os outros e com ela.
livre individualidade com a ruptura deste domf­
nio das idéias. Desde o ponto de vista ideológi­
co o erro é tanto mais fácil de se cometer Digamos que os conceitos são puros no
porquanto este domfnio das relações (esta sentido kantiano de não conterem elemento
dependência material que, por outra parte, se empírico-material. Constituem uma ruptura total
transforma de novo em relações de dependên­ com os sentidos imediatos, especialmente com
cia pessoais determinadas, mas despojadas de a mão humana, conseqüentemente com todo e
toda ilusão) se apresenta como domfnio das qualquer trabalho manual. Ruptura com toda a
idéias na própria consciência dos indivfduos, e imediaticidade dos sentidos e do saber associa­
a fé na eternidade de tais idéias, quer dizer,
do a eles, portanto, do saber popular. O concei­
daquelas relações materiais de dependência,
to rompe com o espaço e o tempo nas coisas,
é, obviamente consolidada, nutrida, inculcada
inclusive o das formas a priori da sensibilidade
de todas as formas possfveis pelas classes
dominantes55. que Kant descreve na Estética Transcendental e
toma como fundamento do número e de toda a
Que a abstração ou a idéia seja a ex­ matemática, base das ciências modernas.
pressão teórica das relações materiais, concor­ Para K�nt, o conceito só podia ser produ­
damos, mas que seja "natural que tais relações to de uma faculdade dada, anterior à multiplici­
só possam ser expressas sob a forma de idéi­ dade dos objetos dados via sensibilidade na
as" requer uma explicação. Em primeiro lugar, multiplicidade das representações, bem como
esta afirmação não explica nem demonstra uma forma de sensibilidade anterior às sensa­
nada. Marx aí tende a tomar a asserção como ções participadas pelos objetos: intuição pura a
um dado já explicado, e o toma, portanto, como priori do espaço e do tempo. Ele não podia ver
natural. No entanto, nunca fez uma verdadeira como o conceito enquanto forma pura, pudesse
epistemologia, deixando o campo aberto. Seus ter uma raiz histórica, material e espaço-tem­
objetos eram outros. poral.
Certamente as idéias para ele não são Se, porém, os conceitos não-empíricos
mero decalque do real, a modo de um reflexo têm raiz histórica e material, temos que mostrar,
meramente passivo das coisas, ou de mero primeiro, onde estão estas raízes, segundo, que
reflexo condicionado de Pavlov ou Skinner, ou à os objetos exteriores "refletidos" no conceito
sua redução a uma melodia ou a um zumbido não somente se correspondem mas que o
56 princípio gerador dos conceitos surge ou de­
de 40 hertz , depreende-se de sua crítica ao
materialismo vulgáf57. vém a partir de condiçes materiais. Terceiro, que
Para compreendermos a natureza do este princípio gerador, resultado de pré-condi­
conceito seja-nos permitido seguir, ainda que ções materiais, ao negá-Ias, se torna'simultanea­
brevemente neste trabalho, a dialética das mente fundamento (causa) de si mesmo. Pres­
pressuposições e das posições ou seja a dialéti- suposição como absoluta necessidade de se
pôr em determinações ds si mesmo, isto é de se

18
delimitar em tantos outros conceitos, de se Grécia. Foi então e naquela região que os
silogizar, até se realizar pJenalnente como homens começaram expressar suas experiên­
conceito posto: unidade na diversidade. E, cias e o mundo de modo abstrato na forma de
finalmente, que estes conceitos, por isso mes­ conceitos e criaram a filosofia O estudo históri­
mo, correspondem aos objetos que expressam co deste desenvolVimento entre os gr�os exige
em sua própria potência. outro trabalho, que Rethel apresenta em seu
interessante livro Trabalho Intelectual e Trabalho
Manual, e ·que merece ser analisado em outro
1 9. Pressupostos trabalho.
Vejamos um pouco mais detalhadarnente
Não será nem qualquer elemento nem algumas determinaçOes do trabalho humano
qualquer fat� histórico que poderá servir como abstrato como pressuposto gerador do conceito,
pr�ondição do conceito como sua pré-história do entendimento e da razão. Lembremos que
Somente podEwá ser um conjunto de operaçOes geraçlo implica em morte e nuclmento na
elaboradas, contendo determinações materiais pr6-hlatórlll do objeto em questão, processo
abstratas e contendo ao mesmo tempo uma anterior ao surgimento do ovo ou do DNA.
grande potência de aglutinação ou de síntese. O trabalho abstrato é um princípio-sintéti­
Um conjunto que opera como causalidade, que co que, objetivádo no valor, sob a forma de
põe as diferentes determinaÇões com a relação aparecimento de dinheiro ou de capital, vincula
de um vínculo necessário, mas que, ao pô-Ias, universalmente todos os homens e todas as
permite sua livre relação entre si e consigo suas ações, determinando suas relaçOes, suas
mesma, que, portanto, se deixa também deter­ vidas. O trabalho humano abstrato abstrai da
minar por estas determinaçOes, sem perder sua singularidade e da diferença das coisas, como
identidade. se vê na relação de troca Ele é homogêneo,
Este tipo de operaçOes, constituindo um igual a si mesmo, universal. É o pressuposto e
fato histórico, uma produção material dos ho­ o determinante da imensa variedade de traba­
mens, não se encontra entre povos simples, de lhos humanos, das formas técnicas de produ­
características tribais ou patriarcais. Ali não ção, das formas de organização bem como da
existe praticamente nada que não esteja imedia­ infinita variedade de produtos e serviços efetivos
tamente presente aos sentidos, desde o conjun­ e das relações entre os homens, permanecendo
to de carecimentos, os meios de satisfazê-los, sempre igual a si nesta diferença posta
até o grupo de pessoas que produzem e usu­ Assim também é o grande princípio homogenei­
fruem do produto. Todas as relaçOes sociais são zador dos processos de produção, da universali­
diretas ou de cunho personalista, não se desen­ zação da relaçOes dos homens entre si, tornan­
volve um conjunto ou sistema de operaçOes tão do-os empiricarnente universais.
elaboradas como as descritas. Quando produ­ Ele é antes de tudo um novo ser, uma
zem suas vidas, fazem-no para o grupo imedia­ nova substância, uma nova estrutura de rela­
to, ou, quando produzem excedentes - num çOes, que, nesta condição, efetiva o quantum ou
sistema já mais avançado - os produzem para o a quantidade de trabalho. É essa a grande
Faraó, para o déspota, para o senhor feudal, descoberta que Marx avoca a si, ao criticar
representantes pessoais do todo. Não foi nestes Ricardo e a economia política clássica58• Quali­
povos que historicamente surgiu o ·pensamento dade e quantidade abstratas, pois prescindem
abstrato, o conceito. Os homens habitam no dos diferentes trabalhos conct:etos e de seus
reino dos signos, das alegorias, da poesia. produtores.
Sempre sob o signo do temor. Ele prescinde também do tempo e do
Procurar nestes povos tal conjunto de atividades espaço em que os trabalhos concretos se
condicionantes do conceito, provar-se-á exercí­ realizaram, realizam ou realizarão. O. valor em
cio perfeitamente inútil. que se objetiva sempre se conserva igual, e de
O conjunto de operaçOes que acima tal sorte que não importa na Bolsa de Valores se
referimos é o trabalho humano abstrato, ele o produto foi fabricado há anos, ou se o soja
mesmo resultado dos trabalhos qualitativos de que hoje se negocia Sineta não se plantou.
produtores independentes e seu sistema de Nesta condição é sempre uma relação que
intercâmbio introduzido no interior de uma vincula os homens e suas ações, � diversas
sociedade. Resultado que se tomou pressupos­ modalidades.
to e fundamento de toaos os trabalhos e das O trabalho abstrato, gênero concreto ou
relaçOes objetivas que ele põe entre os produto­ universal concreto e singular contém, pois,
res. Apareceu entre o século VIII e o VII A.Ç. na todos os elementos que Kant apresenta na

19
tábua das categorias. Estas são os conceitos proprias leis, cuja articulação repõe o mundo, -
mais abstratos que "encerram, -ainda segundo que nele se "perdeu" (desapareceu ou foi
Kant - todos os conceitos elementares do enten­ negado) - de tal modo que o torna verdadeiro,
dimento" e possibilitam as funções lógicas em isto é: realiza toda sua potencialidade. No
todos os juízos possíveis... pelas quais "o enten­ conceito o mundo aparece em registro diferente,
dimento é completamente exaurido e sua facul­ infinitamente superior. E se avançàmos um
dade inteiramente medida"59. São as categorias pouco nosso olhar, constatamos que a inteligên­
de quantidade, qualidade, de relação e de cia se põe na teoria, na ciência e na tecnologia.
modalidade. Como vimos, o trabalho abstrato O trabalho intelectual recria o mundo, fazendo
põe igualmente o espaço e o tempo abstratos com que o mundo exterior se complete, chegan­
na prática e nas relações dos homens. Elevado do à sua verdade. Desta forma o conceito e o
ao conceito, constitui o fundamento da matemá­ mundo exterior, bem como o mundo interior do
tica e das ciências modernas que nela se apói­ homem não apenas se correspondem, mas
am. Digamos que seu a priori é seu pressuposto mutuamente se verificam, se fazem verdade.
efetivado, realizado no sistema de operações Digamos que o mundo se humaniza e o homem
determinado pelo trabalho humano abstrato. se realiza

20. Fundamento de si mesmo. 21 . Independência do trabalho manual e do


trabalho abstrato.
Entretanto, convém verificar que o proces­
so de devir implica no desaparecimento, em De modo algum, porém, se pode aceitar
morte e nascimento. Mais precisamente, na a concepção de que o pensamento, o conceito
passagem de ser a ser através do nada. Assim, seja apenas um simples decalque, ou um reflexo
o conceito implica no desaparecimento completo mecânico qualquer do real. É um produto, sim,
das determinações materiais que estudamos de um princípio de ação autônomo, fundamento
brevemente na substância trabalho abstrato. O de si mesmo, produto de uma capacidade ou
conceito, que veio por último, não é uma dedu­ potência livre e independente de qualquer
ção formal e lógica de um primeiro princípio, ou matéria ou sistema de operações. Não tem nada
de uma fundação primeira Ele se faz base ou a ver com o trabalho manual, que bom número
fundamento, segundo a Lógica de Hegel60, a de idealizadores de repúblicas de trabalhadores
partir de sua posição como resultado das ações pretendem colocar como o fundamento do
produtivas, convertidas em trabalho abstrato, verdadeiro saber em oposição ao saber - sem­
que nele desaparecem. Vale a pena transpor pre perverso, segundo seu discurso moralista -,
aqui suas palavras logo no início desta obra: da burguesia O próprio movimento dialético do
trabalho abstr�to,. gênese do conceito, também
o Conceito sob este aspecto deve ser visto de não é sua causa ou determinante. A mediação
uma maneira geral, primeiro, como o tBtceIlO reflexiva, que é a negação, efetiva o desapareci­
(termo) com relação ao Ser e à Ess4ncia, com mento total da substância trabalho abstrato no
relação ao Imediato e com relação à 18fIexáo. conceito, que, contudo, o ·contém" em si.
Nesta medida são os momentos de seu devir,
Trata-se, portanto, de uma ·construção·, do
porém ele é sua base e lI8Idade, enquanto
surgimento, do nascimento desta potência, - a
identidade na qual se perderSm e na qual
estão contidos. Nele estão contidos, porque
mais poderosa de todas, segundo Hege;62.
ele é seu 18SUItado, não mais, porém, como
Estamos longe da concepção idealista que
Ser e como Essência; (pois) eles s6 têm esta acredita na inteligência como faculdade dada,
determinação na medida em que não retorna­ seja por Deus seja pela natureza. Em vez de
61 explicar a inteligência dos indivíduos, como
ram para esta unidade que é sua .
promete, ela já a pressupõe. F acuidade misterio­
Falando desta forma do conceito, não sa caída do céu, que, por uma harmonia prees­
apenas estamos falando dos objetos do mundo tabelecida, consegue com suas fomias ·apreen­
exterior postos no conceito. Na realidade, com der" o mundo objetual, é um fetiche, que uns
Hegel, estamos dizendo o homem. Não apenas tem e por isso dominam e outros não recebe­
apresentamos os objetos refletidos no espelho, ram, e por isso devem servir. Est� concepção
mas o próprio espelho, se me permitem a analo­ consagra definitivamente a diviSão entre o
gia. Falamos da base, fundamento de si mesmo, trabalho manual e o trabalho intelectual.
do novo princípio de ação intelectual que surgiu Já a concepção da inteligência como um
no homem. Este atua agora segundo suas devlr, como uma construção, como um surgi-

20
mento a partir da substância do trabalho abstra­ de superação da divisão entre trabalho manual
to, substância social que não contém ·um -agora feito pela máquina - e o trabalho intelec­
átomo de matéria063, também verifica uma total tual, efetivado pelo homem, que por meio dele
ruptura com a consciência e os ·saberes· domina o processo de produção por inteiro.
produzidos pelos sentidos. Não aceita, conse­ Sem a apropriação adequada do saber, materia­
qüentemente, a conçepção arcaica e ingênua da lizado na máquina e na cabeça do hdmem, este
formação do trabalhador pelo trabalho. O traba­ não se torna empiricamente universal em senti­
lho aí é sempre trabalho imediato, manual, do pleno. -
·concreto·. Perverso, na linguagem moralista de Querer educar o homem pelo trabalho é
Frigotto; deformador, segundo Arroyo, mas que condená-lo à escravidão. A formação do novo
teria uma positividade, - que se resolve no lado homem-sujeito exige, pela própria natureza do
bom Proudhoniano. ... poderramos avançar, diz
• trabalho abstrato materializado na tecnologia
Arroyo, aprofundando a positividade contraditó­ moderna, a instrução científICa mais aprimorada
ria, educativa, formadora, que vem do trabalho É o direito posto a partir do objeto mesmo. Do
moderno. Assumir com todas as cons�üências lado do sujeito, sua essência (entendimento e
o trabalho como princípio educativo064• Propõe razão) exigem sua mais plena realização: o
até mesmo ·uma visão menos lógica e dedutiva direito absoluto objetivamente fundapo no
e mais histórica que capte a produção dos seres sujeito. Esses dOis direitos são, na verdade um
humanos no próprio processo histórico de e o mesmo direito ao mesmo tempo individual e
produção-reprodução continuada·65 pelo qual social. Toda a sociedade .sr ecisa realizar-se
esses setores populares se constituem e formam como um ·general intelect , não apenas um
como seres humanos, pois, nestas últimas agregado ou somatório de indivíduos inteligen­
décadas as circunstâncias se vieram modifican­ tes, e isto significa a necessidade absoluta da
do e ·como elas, educadoras por excelência, criação da sociedade do não-trabalho. A pré-co­
vêm sendo educadas e se tornando mais educa­ ndição imediata e atual está no ato político por
tivas",56 sendo o trabalho a circunstância mais excelência da construção de indivíduos que
importante, evidentemente. dominam a ciência moderna, mediante instrução
mais adequada possível.
Esta adequação importa em construc:âo
22. O trabalho Intelectual e a formação do ativa de seu saber e só se adquire no com. ,vio
novo homem. com pesquisador e laboratório. Os empresários
e os técnicos nas empresas de informática se
Ora, o trabalho já se tornou socialmente referem a este homem como responsável. Na
abstrato historicamente há mais de dois mil e verdade não se trata de mero adjetivo adjudica­
setecentos anos, e se transformou em conceito. do ao sujeito, mas de um princípio de ação, de
Processo de filogênese, eu diria, mas isto é uma um :'abitus sociacultural, que faz dele um indiví­
simplificação que requer estudo cuidadoso. Seu duo que nãO perde sua condição de sujeito
processo de desenvolvimento já se materializou, diante de nenhuma situação inédita, nem diante
de um lado, na máquina-ferramenta automática dos diferentes papéis que terá de executar nos
e na eletrônica, liberando objetivamente o ho­ diferentes processos produtivos. Este novo
mem do trabalho manual, e, de outro, do lado princípio de ação não é mero anexo secundário
do conceito, se desenvolveu em ciência, que agregado às ·câmaras do entendimento e da
Marx, ao tratar ainda da manufatura, já define razão" mas é o diverso e a riqueza posta na
como "fôrça produtiva independente de traba­ unidade da vontade e da inteligência. Uma
Iho.67. Só pelo trabalho intelectual se constr6em escola ou sistema escolar que não efetiva a
tais máquinas e se domina a natureza e a construção deste individuo -ainda que muito
sociedade. Querer formar o trabalhador pelo ·conscientize" - é contra o trabalhador e deve
trabalho imediato é escravizá-lo. O socialismo ser destruída, seja pública ou privada Só é
taylorista de Lenin educou para a república do adequada a que não só se propõe, mas a que
trabalho, que é a república do capital. O capital efetivamente constrói o novo sujeito aqui e
é o glorificador do trabalho, sempre entendido agora Marx vê que este homem, já no momento
como trabalho imediato e manual. O reino da histórico que vivemos, ao entrar no processo
liberdade não está ali, mas no trabalho intelec­ produtivo, se transforma imedilitamente de
tl.{al, reino do não-trabalho. Este exige disciplina, capital variável em capital fixo69• Sua capacidade
responsabilidade, criatividade, enfim: efetiva o intelectual, auxiliada por uma imensa infraestru­
homem como sujeito. O saber, posto nas máqui­ tura material e intelectual, traduz imediatamente
nas e no cérebro dos homens é a única forma suas descobertas ou teorias científicas em

21
tecnologia. E quando se entrega ao lazer será capaz de construtiva vida social.

* * *

Notas

1. Claus Offe, Trabalho e Sociedade Problemas Corbisier, ed" Rio de Janeiro, Civilização Brasi­
Estruturais e Perspectivas Para o Futuro da leira, 1981 , p.134.
Sociedade do Trabalho. Rio de Janeiro, Tempo 32. Hegel, Lógica 11, p. 1 89.
Brasileiro, 1 989, p.16. 33. Ibidem, p.221 .
2, Ibidem, p.18. 34. Marx, Borrador 1, p.89 e 85.
3. André Gorz, Adeus ao Proletariado: Para Além 35. Ibidem, p.84 e 85.
do Socialismo. Rio de Janeiro, Forense, 1982, 36. Ibidem, p.92.
p.19. 37. Ibidem, p.92.
4. G'w.F. Hegel. A sociedade civil burguesa, 38. Marx. Borrador 2, p.395.39. Marx, Contribuição,
Apresentação de J.P. Lefebvre e colaboração p.24
de vários. Lisboa, Editorial Estampa, 1 979, p,80. 40. Ibidem, p.25
5. Idem, Phaenomenologie des Geistes. ed. por J. 41 . Marx, Borrador 1, p,84.42. Ibidem, p. 90
Hoffmeister, Hamburgo, Felix Meister, 1 952, 43. Ibidem, p. 1518.
p.1 49/3. 44. Ibidem, p. 90.
6. Ibidem, 1 49/8. 45. Marx, O Capital, Li,V. 1 , p. 375.
7. K8rl Marx. O Capital, Li,V. 1 , 1982, p.208. 46. ibidem, p. 382.
8. idem, p.43. 47. Ibidem, p. 400.
9. Idem, p.44 48. Marx, Borrador 2, p. 395.
10. Idem, p.55. 49. Marx, O Capital, Li,V. 1 , p.418,
11. Idem, p.44-45. 50. Marx, Borrador 2, p. 228.
12. Idem, Contribuição à Critica da Economia 51 . Ibidem, p. 228-229.52. Ibidem, p. 1 2O.
Política. Lisboa, Martins Fontes, 1 977, p.42. 53. Ibidem, p.237.
13. Idem, O Capital. 1982, p.43-44. 54. Miguel G. Arroyo. O princfpio educativo: O
14. Idem, Ibidem. trabalho ou a resistência ao trabalho. Teoria e
1 5. idem, Contribuição... , p. 34. Educação, n. 1 , 1990, p. 38 a 42.
16. Idem, O Capital, p.45. 55. Marx, Borrador 1, p. 92.
17. G'w.F. Hegel, La Science de la Logique: La 56. Ver Folha de S. Paulo, Caderno de Ciência,
Logique Subjective ou la Doetrine du Concept. Sexta feira, 24 de maio de 1 99 1 , p. 6: "Melo­
Deuxiàme tome, 1981 , p.255, 1 33. dia" mental deixa nb<.lrologista animado.
18. Idem, p.74. 57. Ver o excelente texto de Engels em: Ludwig
19. Idem, La Loglque de /' Essence, tomo I,v. 11, Feuerbach e o fim da Filosofia Clássica Alemã.
1 976, p.286 e S$, e tomo 11, p. 35 e 36, 69 e IN: Obras Escolhidas, v 3, p. 1 82-&4.
muitas outras. 58. Marx, O Capítsl, Notas: p.ô9 $O, 91.
20. Idem, tomo 11, p. 38. 59. Immanuél Kant. Crftíca da Razão Pura, pl.73 e
21 . José Arthur Giannotti,Trabalho e Reflexão: 75.
Ensaios para uma Dialética da Sociabílídade. 60. Hegel, La Science de la Loglque: La Loglque
2a. ed. São Paulo, Brasiliense, 1984,p.10. Subjective ou la Doetrine du Concept, 1981,
22. Idem, p.329. p.35.
23. Idem, p.2. 61. Ibidem, p.35.
24. Idem, p.9. 62. Ver a importante Introdução do prÓPI lU Hegel à
25. Hegel, Ibid., p. 141 e 258. A Fenomenologia do Esplrito, p.23.
26. Marx, lbid., p.44. 63. Marx, O Capital, p.55.
27. Idem, Contribuição ... p.33. 64. Arroyo, Ibidem, p.38.
28. Ibidem, p.4O. 65. Idem, Ibidem, p.41 .
29. Ibidem, p.45. 66. Idem, Ibidem, p.42 e 43.
30. Ibidem, p.45. 67. Marx, O Capital, p.414.
31. Ver Hegel, Introdução às Uç6es sobre a Filoso­ 68. Idem, Borrador 2, p.23O.
fia da História: Textos Escolhidos. Roland 69. Idem, �. 236.

22
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23
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* * *

Norberto J. Etges é professor do Centro de Ciência da Educação, do Curso de Mestrado em Educação da


Universidade Federal de Santa Catarina.

24
Meu objetivo neste texto é caracterizar mesmo, a linguagem seu instrumento mais
construtivismo, dando ênfase a sua função primoroso. Não poderia ser diferente. Quando
educacional. Para isso, adotarei primeiro o uma pessoa ou uma comunidade supõem ter
procedimento de contrastá-lo· com uma visão produzido, não importa se pela experiência ou
não construtivista do conhecimento. Parto do reflexão, um conhecimento sobre alguma coisa
pressuposto que construtivismo e não construti­ e julgam que é importante transmiti-lo para
vismo correspondem a duas visões opostas, isto alguém que - por hipótese - não possui este
é, complementares e irredutíveis. Por isso, pode­ conhecimento, fazem-no pela via da linguagem.
se, ainda que de forma caricata, analisar as Esta é de fato o recurso mais poderoso, econô­
características de um e outro, tal que seja mico e analógico que conhecemos para com­
possível, muitas vezes, dizermos para nós partilhar com alguém algo que, por não ter
mesmos quando estamos sendo construtivistas participado de sua história, ele só pode lhe ter
ou adotando um procedimento consistente com acesso por via indireta. É poderoso porque nos
esta posição sobre a aquisição do conhecimen­ transporta para um espaço e tempo desconheci­
to. dos para nós; porque nos faz pensar, tirar
Como estudioso da teoria de Piaget e conclusões, rever pontos de vista; porque dado
suas aplicações escolares ou psicopedagógicas, seu caráter irreversível, certos acontecimentos
tenho sido freqüentemente procurado por profis­ só podem ser "revividos" pela via da linguagem,
sionais que trabalham nestas áreas para respon­ etc. É econômico porque sintetiza nas imagens
der a estas perguntas: o que é construtivismo? que produz em nós algo que, na sua ocorrência
como e por que ser construtivista? Aqui, estas foi muito longo e cheio de detalhes que podem
serão meu mote. Mas, antes, devo advertir ao ser omitidos. É analógico porque por intermédio
leitor que não tenho formação filosófica e que de "S" produz algo que até então só tinl1a exis­
meu construtivismo reduz-se à versão que lhe tência em "A". Consideremos a última viagem
deu Piaget, tal como pude, ai de mim, assimilá­ Parati-Antártida-Parati, de quase dois anos, que
la. fez nosso navegador "solitário" Amir Klink. Cha­
Se construtivismo e não construtivismo mamos de "A" està sua experiência. Só por
correspondem a visões opostas de conhecimen­ intermédio de "B", isto é, via fotos, narrativa,
to, no mínimo duas tarefas nos· são dadas: descrição, etc, poderemos nos apropriar disso
analisar sua irredutibilidade e sua complementa­ que antes só ele possuía.
ridade. É isso que proponho ao leitor acompa­ Não se trata, pelo considerado acima, de
nhar-me nos dois próximos itens, pois no tercei­ condenar a linguagem, repito, melhor ou às
ro e último analiso alguns aspectos do construti­ vezes único meio de dispormos de certas infor­
vismo na escola. mações. O problema é o lugar que el� ocupa na
produção de um conhecimento. Na perspectiva
não construtivista seu lugar é o mais. importante.
Para um contraste entre construtlvlsmo Ao construtivismo interessam as ações do
e não construtlvlsmo sujeito que conhece. Estas, organizadas en­
quanto esquemas de assimilação, possibilitam
1. O construtivismo valoriza as ações, classificar, estabelecer relações, etc:!, sem o que
enquanto operaçóes do sujeito que conhece. aquilo que, por exemplo, se fala ou se escreve
para alguém não tem sentido para ele. Ou seja,
Visões não-construtivistas do conhecimen­ o que importa é a ação de ler ou interpretar o
to valorizam a transmissão, sendo, por isso texto e não apenas aquilo que, por ter-se torna-

EDUCAÇAO E REAUDADE, Porto Alegre, 18(1):25-31, jan/jun. 1993 25


do linguagem, pode por ele ser transmitido. outras partes do corpo, tal que este movimento
Mas, insisto, não basta isso. (minimamente ajustado no espaço de suas
posturas e no tempo de suas mudanças de
estado) possa ocorrer. Nesta fase, vê-se que
2. O construtivismo produz conhecimento todos os esforços da criança concentram-se no
em uma perspectiva não formal ou, se se quiser, aprender a engatinhar. Mal ela o 'consegue
apenas forma/izante. volta-se para os "novos" objetos (uma mãe que
teima em sa afastar dela, um cachorrinho, uma
Uma visão não construtivista do conheci­ bola interessante mas distante), utilizando o
mento é, necessariamente, formalizada Se nele engatinhar como instrumento de aproximação
há consideraçOes de conteúdo, este só interes­ ou afastamento deles. Quando se aprende a
sa enquanto exemplo ou descrição de algo, que escrever - e para muitos esta tarefa demora
possa, cada vez mais, ser abstraído de seu anos - todos os esforç� concentram-se em
contexto. Ou' seja, a forma tende a se tornar dominar seus "segredos". Mal aprende-se a
independente do conteúdo. Exemplo disso escrever e é o bilhete ou carta que nos toma
temos nas clásSicas frases das cartilhas. A toda a atenção. Ora, tematizar um esquema de
maioria delas corresponde a algo sem sentido, ação, tendo ele sido apenas meio ou inst(umen­
porque provavelmente jamais a ,ouviriamos em to de outras ações ou acontecimentos, implica
um diálogo real entre duas crianças ou mesmo em inverter esta situação. Agora, tem-se que
adultos. O autor da cartilha sabe disso. Mas, reconstituí-Io, transformá-lo, tomar consciência
sentiu-se, talvez, autorizado a escrevê-Ias por­ de suas características, do quão bem ou mal ele
que quis valorizar, por exemplo, a formação cumpre suas funções, significa criticá-lo, trans­
silábica "Va, ve, vi, vo, vu", recorrendo a um formá-lo, assumir suas conseqOencias, etc.
conteúdo qualquer para praticá-Ia A produção Tematizar é, por isso, reconstruir em um nível
construtivista do conhecimento é formalizante, superior aquilo que já realizamos em outro nível.
mas não formalizada. Nela, forma e conteúdo, Tematizar é construir um novo conhecimento,
ainda que não confundidos, são indissociáveis. para um velho e ignorado saber, reduzido à sua
Dal, por exemplo, preferir-se na aprendizagem boa ou má função instrumental.
da leitura e escrita da criança trabalhar a partir Outra coisa é o paradigma e seus casos
do nome dela ou de textos que tenham sentido exemplares. Na tematização a exigência é a da
ou valor funcional em sua cultura demonstração, da reconstituição e transforma­
Poder-se-ia repetir as considerações ção de algo já sabido. No paradigma é o mode­
acima, por intermédio de outros dois termos: lo ou padrão, graças ao qual reproduzimos algo
tematização e paradigma. A visão não construti­ dentro de certas condiçOes, repetindo um
vista de conhecimento opera por paradigmas e resultado esperado ou exigido. Para isso tem-se
,

seus casos exemplares. A construtivista por um os casos exemplares, ou seja, situações "con­
trabalho constante de reconstituição ou temati­ cretas" (ainda que não necessariamente lJividas
zação (o que exige descentração e coordenação por nós), ricas de "conteúdos formatados"
dos diferentes pontos de vista então produzi­ conforme o paradigma, pelas quais podemos
dos). Como nos mostrou Piaget (1974a e entendê-lo. Não nos espanta, por isso que na
,

1974b), os meios ou esquemas de ação que aprendizagem da leitura e escrita pela via não
utilizamos para produzir um resultado em função construtivista a cópia de frases, palavras ou
de um objetivo, quando de sl2a constituição letras sem sentido para a criança ser um dos
mobilizam todo um trabalho de regulação (Pia­ instrumentos mais usados. Por outro lado, como
get, 1977). Nesta fase, os meios são os próprios trabalhos complementares, tematização e para­
fins. Mal estes instrumentos coordenam-se entre digma são como duas faces de uma mesma
si, por um complexo processo de assimilação e moeda As crianças, todos nós, mal tematizando
acomodação recíprocas (Piaget, 1936) neste alguma coisa já a tratamos como um paradigma
quaterno (objetos, espaço, tempo e causalidade ou um "bom exemplo" a ser seguido ou evitado
ou implicação entre açOes) sem o qual algo não por nós ou nossos amigos.
existe (Piaget, 1937), assumem sua eterna e
inflflita função de serem meios para outros fins.
Ou seja, todo esquema de ação tem função 3. No construtivismo o conhecimento é
instrumental. Tomemos apenas dois exemplos. concebido como um tornar-se antes' de um ser.
Quando a criança aprende a engatinhar seus
esforços de regulação concentram-se nesta A visão não construtivista do conhecimen­
dificH arte de coordenar entre si braços, pernas, to é ontológica. Ou seja, parte-se de algo cuja

26
eXistência Já está minimamente constituída como lógicos e matemáticos da ação. Lógicos porque
objeto a ser conhecido. Daí sua pretensão se trata de um sujeito ou uma sociedade cons­
descritiva ou explicativa do conhecimento como truirem ou reconstruirem os procedimentos
um "é". Ora, no construtivismo o conhecimento necessários àquela produção. Sabemos que
só pode ter o estatuto da correspondência, da tanto em termos físicos quanto simbólicos algo
equivalência e não da identidade (Piaget, 1980). (o gesto de andar ou um texto, por exemplo) só
Por isso, o conhecimento só pode ser visto acontece se certos instrumentos ou meios forem
como um "tornar-se" e não como um "ser". Em coordenados no espaço e no tempo, tal que as
uma perspectiva adulta, formal, já constituída relações entre seus elementos produzam resúl­
(ainda que em constante reformulação), sabe­ tado consistente com um objetivo. A lógilia
mos, por exemplo, que· há um conhecimento expressa este "fazer bem" da ação, isto é, estas
sobre leitura e escrita a ser transmitido. Trata-se regras de procedimento, esta sintaxe, sem a
de um conhecimento socialmente produzido e qual algo não se constitui como um "objeto" ou
acumulado, cuja transmissão precisa ser feita ou acontecimento. Matemáticos, porque há uma
repetida naqueles que ainda não sabem ler ou "topologia", uma "algebra", um "grupo de
escrever. Ora, em uma perspectiva "infantil", deslocamentos" destes estados e posições, sem
informal, ainda não constituída minimamente os quais algo não acontece, nem se constitui.
enquanto tal, a escrita não é, mas se torna Matemáticos porque há uma lei de composição,
como um sendo para alguém: Para este, não se que se repete, que é estruturante do fenômeno
tratará de descrever uma forma de ler ou escre­ que, enquanto tal só se expressa em suas
ver já praticada, mas de refazer (ainda que de infinitas versões. Ou seja, um engatinhar, en­
forma abreviada) esta história nele e através de quanto ato, é sempre diferente de um outro,
ações ou objetos (ou dos termos que os repre­ mas enquanto lei de composição, só se constitui
sentam) que fazem sentido para ele. Assim, como um ·X", isto é, pela eterna troca de esta­
poder-se-ia dizer que quando "nasce" um escri­ dos e posições, por exemplo, entre P;9rna es­
tor também "nasce" uma escrita, quando "nas­ querda, braço direito, perna direita, braço es­
ce" um leitor também "nasce" um texto, mesmo querdo, etc. Esta lógica e matemática da ação,
que, para outros, estes (o texto e a escrita) já que produz conhecimento, dependem, como já
fossem constituídos. implícito no termo "teoria", de uma signifi�ação
Contrastando as duas posições de outro (Piaget, 1946) ou seja, de uma linguagem que
jeito: para o não construtivista a criança só possibilita interpretar, dar um sentido à dinâmica
saberá escrever no final do ano, quando tiver de tudo isso. Dinâmica que opera por intermédio
repetido o processo de alfabetização (ou domi­ dos ·significados" que transformam uma ação
nado seus paradigmas); para o construtivista a e dos "significantes", que conservam os aspec­
criança já sabe escrever desde o primeiro dia de tos que a constituem, enquanto algo estruturado
aula, ainda que este seu saber conhecerá e eficaz, ou seja, viilido. Neste caso, não se trata
muitos aperfeiçoamentos (no processo de sua de uma linguagem que apenas representa a
necessária tematização), tal que se torne mais realidade, mas que constitui ou conserva/trans­
legível e publicável para seu autor ou para um forma os aspectos da ação ou do pensamento,
outro. que tem valor (a ação ou o pensamento) de
conhecimento. Decorre disso que em uma
perspectiva construtivista produz-se interpreta­
4. Ao construtívismo o conhecimento só ções sobre a realidade e não fatos (posição não
tem sentido enquanto uma teoria da ação (em construtivista). Estas interpretações, pouco a
sua perspectiva lógico-matemátíca) e não en­ pouco na história de sua construção tanto
quanto uma teoria da representação. teórica quanto metodológica, çonvergem para
algo comum e público, isto é, em condições
Como já consideramos no Item 1, uma iguais consentido por todos. O conhecimento
visão não construtivista termina por considerar científico (Piaget, 1967) é, em muitos casos, um
o conhecimento como uma teoria da represen­ bom exemplo disso.
tação da realidade, não importa se boa ou má.
Ora, na perspectiva construtivista um conheci­
mento sobre algo (seja num plano individual, ou 5. O construtivismo é produto de uma
coletivo, como se faz em História da ciência, por ação espont§nea ou apenas desencàdeada, mas
exemplo), só é possível enquanto uma teoria da nunca induzida.
ação, da ação que produz este conhecimento.
E nesta teoria interessam sobretudo os aspectos

27
Para encerrarmos estas considerações espaço e no tempo de seus desenlaces). O
sobre ·0 que é construtivismo·, talvez seja bom mesmo se dava com o espaço cultural represen­
an�Hzarmos a mais difícil de suas exigências. tado pela igreja (com suas festas, procissões),
Exigência esta que o separa definitivamente de vizinhança (com as brincadeiras, jogos, caçadas,
um não construtivismo. Só a ação espontânea etc) e outros. Neste tempo, as transmissões -
do sujeito, ou apenas nele desencadeada, tem quase sempre orais e fornecidas por alguém
sentido na perspectiva construtivista. Esta é a querido e respeitável - e as ações produtivas
essência do ·método clínico· de Piaget (1926), ocorriam simultaneamente. Tinha-se uma casa
tão citado quanto imcompreendido: saber ouvir ·construtivista· e ·não construtivista· ao mesmo
ou desencadear na criança só aquilo que ela tempo. Estas duas perspectivas complementa­
possui como patrimônio de sua conduta, como vam-se, fundiam-se quase que em uma SÓ.
teoria de sua ação, como esquema assimilativo. Hoje tudo mudou. A famOia é pequena,
Ora, em uma visão não-construtivista a ação restrita aos pais (muitas vezes, só à mãe) e
induzida é muitas vezes a mais frequente. filhos. Trabalha-se fora. O tempo dentro de casa
é curto e ·precioso· (precisa-se cuidar da casa
e dos filhos). O cansaço e a "televisão· concor­
Para uma completitude entre construtl­ rem entre si, para ver quem tira mais tempo das
vlsmo e não construtlvlsmo relações informai� e descompromissadas entre
os moradores da casa. Os vizinhos são desco­
Adotamos o procedimento de analisar nhecidos e por isso perigosos. Os parentes
construtivismo e não construtivismo como duas moram longe e encontrá-los ·custa caro·.
formas opostas e, por isso, irredutíveis de co­ Muitas vezes, há mais desavenças do que
nhecimento. Em fazendo assim temos, também, avenças entre parentes e amigos, agora apenas
que concebê-los como complementares e colegas. Não é raro ter-se dois ou três empre­
fundamentais. O problema é saber quando ou gos. Ao lado disso, tudo se especializou. O pão
como operar um ou o outro. Sabemos que a e outros alimentos são comprados prontos ou
síntese, a fórmula ou paradigma são tão neces­ semi-prontos. O tempo de preparo da comida,
sários para a criança quanto a análise dos de lavagem da roupa e outros afazeres domésti­
meios que produzem este resultado. Ou seja, cos é e tem que ser curto. O médico, psicólogo
construtivismo e não construtivismo são duas ou dentista cuidam da saúde. A escola dá a
formas de produção de conhecimento. O proble­ instrução. As instruções precisam ser breves,
ma é diferienciá-Ias e integrá-Ias; é saber, repito, seriadas e eficientes. As relações são de prefe­
quando e como operá-los em proveito da edu­ rência formais e objetivas. Nada de nhenhe­
cação da criança. nhém. Levar os filhos para ver os amigos ou
colegas de escola é sempre difícil. Tem-se que
***
economizar também nisso.

Havia um tempo em que casa, oficina e ***

escola ocupavam um mesmo lugar e nelas tudo


se fazia e compreendia. As transmissões ou Construi, acima, de próp6sito as imagens
lições de vida dos mais velhos eram tão fre­ caricatas de um passado (não tão passado),
quentes quanto a participação direta das crian­ simultaneamente construtivista e não construti­
ças nos trabalhos que realizavam. Ajudar a mãe vista, e de um presente, pouco construtivista.
a cuidar das galinhas, da horta ou comida, Não se trata de saudosismo. Pode-se analizar as
ajudar ao pai na ordenha das vacas, no cultivo coisas de um outro ângulo. Hoje temos recursos
da roça, no traçado da madeira era tão necessá­ técnicos que tornam a ênfase sobre as ações ou
rio, para eles, quanto as brincadeiras e travessu­ operações que produzem conhecimento muito
ras, para as crianças. Neste contexto, muitas mais fáceis do que antigamente. HOje temos
histórias da própria família, de sua tradição, das gravador, câmera fotográfica, câmera de vídeo,
coisas boas e más acontecidas, eram contadas televisão, computador. Pode-se por eles fazer e
e contadas nas rnui1:2.S versões dos pais, avós, refazer infinitas, vezes uma ação e analizá-Ia nos
tias, irmãos mais velhos e outros. As primeiras seus mínimos detalhes. A metodologia das
letras eram obtidas não �aro também graças ao ciências está muito mais aperfeiçoada As
interesse de , ":. pai rico contratando um profes­ teorias se entrelaçam e explicam muito mais.
sor particular ou se servindo das habilidades de Temos o telefone. Insisto, temos o computador,
uma tia ·solteirona· e sabida. A família era gran­ a impressora, que tornam, por exemplo, o
de e próxima (no amor e no ódio bem como no processo de escrita muito mais fácil e estimu-

28
lante. Temos fax, modem, etc. Temos o rádio e O estatudo universal e obrigatório da
o avião. Temos uma imprensa cada vez mais educação primária é uma "conquista" do final
barata e ágil. Com isso, a criança dos dias de do século passado (cf., por exemplo, Delval,
hoje conta com recursos para seu desenvolvi­ 1991). Antes, como sabemos, a escola era
mento não imagináveis vinte ou trinta anos atrás. privilégio dos segmentos mais ricos e protegidos
Não se trata de ser saudosista, mas de analisar de nossa sociedade. Contudo, esta conquista
o preço que pagamos por uma modernidade na prática continua sendo uma quimera. Poucos
que rompeu uma função cuja análise (ou pers­ são os que continuam na escola, são os que
pectiva construtivista) e síntese (ou perspectiva aprendem nela. Estes, não por acaso, são em
- - não construtivista) eram solidárias e comple­ sua maioria filhos de famílias com mais recursos
mentares, até pelos poucos recursos que se financeiros e educacionais. Delval (1991) defen­
dispunham. Como aproveitar os recursos cons­ de a tese de que os compromissos antigos da
trutivistas destas revoluções técnicas? Como escola com a classe dominante continuam
tornar a escola construtivista, se a casa não inarredáveis; ou seja, há fracasso escolar, mas
pode mais sê-lo, tanto quanto a criança precisa­ não fracasso da escosla em sua função conser­
ria? Como tornar a vida e as lições de vida uma vadora dos privilégios dos seus protegidos.
realidade na escola? Mh la suposição é que manter-se não construti­
Sabemos que há construtivistas "natos". vista é uma das razões deste infeliz sucesso da
ProfesSores que se preocupam mais com o escola.
processo de aprendizagem de seus alunos. Que Afirmei acima que nossa escola é predo­
gostam deste nhenhenhém das crianças, que minantemente não construtivista. Consideremos,
valorizam a informação contextualizada e como a esse respeito, que a transmissão de conheci­
pode ser produzida pela criança. Professores mentos dos mais velhos para os "mais novos"
que, nunca tendo ouvido falar deste nome é tradicionalmente uma tarefa de adultos. Por
("construtivismo"), "traíam" a cartilha e inventa­ hipótese, eles é quem possuem expe�iência e
vam um número de outros recursos para apren­ "maturidade" suficiente para isso. Ora, a "crian­
dizagem do ler, escrever e contar. O mesmo se ça" é uma descoberta recente de nossa socie­
pode dizer das famílias. Há umas que, apesar dade (Delval, 1991). Até alguns séculos atrás
do quadro limitativo desenhado acima, sempre pensava-se que ela fosse um adulto em miniatu­
encontram tempo para viver e dar lições de vida ra, daí atribuirem-Ihe tarefas hoje inadmissíveis;
para seus filhos, para contar histórias, para ao contrário, pensava-se também que ela fosse
fazerem coisas juntas. Há outras que não se como um "anjo" pela inocência e simplicidade,
dispõem para ISso. Minha conjectura é que se a pela incapacidade de compreender ou acompa­
criança possui um "lar construtivista" então ela nhar certos acontecimentos na vida da família,
1
pode ("pagando caro", às vezes, por iSS0 ) até daí esconderem-lhe certas coisas ou exporem­
aprender em uma "escola não construtivista". na a outras sem qulquer crítica. Por outro lado,
Estas escolas chamadas "tradicionais", "fortes", julgava-se qué só o hábito, a experiência e a
onde as crianças vão lá para aprender as maté­ imitação modelariam a criança tornando-a tal
rias, dentro da ordem e disciplina. E, pelo que já qual um adulto. Daí a ênfase na transmissão, na
disse, penso que até nestas escolas sempre linguagem, na cópia. Mas, hoje - pelo menos
haverá professores ou outros funcionários esta é nossa suposição em todo este texto -
construtivistas. Mas, o problema é quando não seja pelos aspectos já analisados, seja por
há mais construtivismo (sempre no sentido tantos outros que autores mais preparados do
traçado aqui) em lugar algum e a criança terá que eu têm mostrado, tornar-se mais construti­
que, quase sozinha e sem recursos, receber vista é uma necessidade atribuída à escola.
transmissões, com conteúdos tão diferentes Quais as mudanças a serem feitas nos diversos
(português, matemática, ciências, regras morais, aspectos de sua estrutura e funcionamento? A
de higiene e saúde, etc) e tão importantes para seguir indico, de forma superficial e incompleta,
sua formação. E se pensarmos nas dificuldades alguns tópicos disso.
das famílias, que mal e mal conseguem sobre­
vier? É claro que em sua sabedoria valorizam
uma forma melhor de vida para seus filhos. Mas, 1. Postura do professor
como fazê-lo, se há coisas mais urgentes e se
não têm recursos para isso? Uma quesão muito debatida é sobre a
postura do professor, por exemplo, diante dos
conteúdos escolares. Supõem alguns que o
Para uma escola mais construtlvlsta professor construtivista não precisa considerar

29
os conteúdos ou matérias escolares, tanto comunidade de leitores, quanto um texto dito
quanto o fazem os professores da escola tr�di­ cientifico. E, igualmente, que este, como ponto
cional. Trata-se de um engano. O proft-sor de partida, deveria admitir - se se considerasse
construtivista deve saber muito a matéria que a perspectiva de seu leitor - tantas versões
ensina. Mas, por uma razão diferente. Antes, quanto um texto literário. Mas, muitas vezes,
tratava-se de saber bem, para transmitir ou qualquer semelhança entre o modo como se
avaliar certo. Agora, trata-se de saber bem para trabalha um texto científico e um texto literário é
discutir com a criança, para localizar na história mera coincidência
da ciência o ponto correspondente ao seu
pensamento, para fazer perguntas "inteligen­
tes", para formular hipóteses, para sistematizar, 3. Disciplina na sala de aula
quando necessário. O conhecimento científico
sobre determinado assunto será sempre nossa Uma boa aula não construtivista pede o
referência principal. Mas, não se trata de saber silêncio e a contemplação do ouvinte, para que
para impor, submeter ou induzir uma resposta o conferencista possa extasiá-lo com seus
na criança Em uma visão não construtivista a conhecimentos e sua sabedoria Pede a limpeza
resposta ou mensagem do professor é o que e o florido de uma sala de jantar, preparada
interessa. Em uma visão construtivista, é a para bem receber o amigo querido. Umá aula
pergunta ou situação problema que ele desen­ construtivista pede o ruido e a manipulação,
cadeia Aas crianças (Macedo, 1992). nem sempre jeitosa. daqueles que, tendo ou
aceitando uma pergunta, não estão satisfeitos
com o nível de suas respostas. Pede a "sujeira"
2. Materiais de ensino e o experimentalismo de urna cozinha
Reconheço que minhas imagens são
O lugar do livro didático e de outros grosseiras, extremadas. e muito caricatas. Mas,
recursos de ensino em uma escola construtivista com elas apenas gostaria de lembrar ao leitor os
é, igualmente, urna outra questão fundamental. valores que passamos, conscientemente ou não,
2
Consideremos, por exemplo, a questão do Iivr0 . nas "milhares" de vezes em que um professor
Simplificando muito, qualquer um conhece o intervem exigindo um silêncio, que é mais um
paradigma dos atuais: a) explicação sintética e mutismo, ou exigindo uma ordem, que é mais
"didática" dos conteúdos, b) exemplos, de um "Varrer para baixo do tapete".
preferência tirados de situação conhecida, e c)
proposta de exercicios ou experiências. Tudo
isso apresentado de "forma colorida" e com 4. Avaliação escolar
muitas ilustrações. O professor trabalha a situa­
ção explicando os termos desconhecidos e Em outros t�xtos desenvolvi, ainda que de
repetindo, com ou sem "arte", aquilo já disponí­ forma igualmehte introdutória, questOes relativas
vel no texto. Se as dúvidas não são muitas ou ao erro (Macedo, 1990) ou à avaliação escolar
se o tempo urge, passa-se à unidade seguinte (1992). Aqui, quero apenas considerar que esta
e assim sempre, até a "hora da verdade" (a eterna, importante e irresolvida questão - como
prova). Isto porque, se se trata de um livro sobre e por que avaliar a produção escolar da crian­
matéria científica (matemática, biologia, física, ça? - tem tratamentos muito diferentes, depen­
história, etc), não se pode "inventar" muito dendo da perspectiva construtivista ou não do
sobre o que lá está proposto. "Inventar" ou professor. E se é correto, como suponho, que
"Viajar" é quando muito permitido para o texto muitos de nós admitimos a necessidade de a
literário, isto se o professor de Português for escola tornar-se mais construtivista - mesmo que
"alternativO". Ora, em urna perspectiva construti­ não tenhamos ainda boas respostas para isso -
vista tudo isso teria que ser repensado. Sabe­ então, será preciso, também, discutir sobre a
mos que um texto literário, como ponto de avaliação nessas novas bases.
chegada, exige tanta coerência entre uma

30
Notas

1. Minha hipótese, um pouco mais desenvolvida 2. Esta imagem devo-a, mas sem responsabilizá­
em outro lugar (Macedo, 1991), é que nós, la pelas simplificações e generalizações aqui
produtos da "cartilha" e de uma escola nao cometidas, à Profa. Leny Martins 'Rodrlgues
construtlvlsta, temos uma relação predominan­ Teixeira, minha orientanda. Ela realiza um
temente utilitarista com as letras e os números. Importante trabalho (a ser defendido como sua
Ou seja, muitos de nós só escrevemos ou tese de doutorado até o final deste ano) sobre
calculamos quandoobrigedos pelas circunstân­ educação matemática em crianças de quinta­
cias da vida (trabalho, conta bancária, etc). série de primeiro grau; a análise do livro didáti­
Penso que esta nova geração terá uma relação co e do modo como professores utlllzam-no na
mais "amorosa" e espont4nea com estas sala de aula é apenas uma de suas contribui­
instrumeOtos hoje ful'ldamentals para uma çOes.
cidadani8 mais digna ti proveitosa.

.01.

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__
. _. La naissance de /'intetligence chez I'enfant.
NeuchAtel: Delachaux & Niestlé, 1936.

•••

Uno de Macedo é professor e Vica-Diretor do Instituto de Psicologia da Universidade de SIo Paulo.

31
1. O problema epistemológico na pers­ como ajudá-los, partindo das experiências, dos
pectiva de Freire. conhecimentos deles, para fazê-los passar de
seu conhecimento espontâneo, pouco organiza­
Por toda a parte, Paulo Freire é conhecido do, pré-crítico, a um conhecimento mais organi­
como criador de um novo método de alfabeti­ zado e crítico? A alfabetização seria uma etapa
zação de adultos. Acontece, porém, que muitos e um meio neste processo de conhecimento.
autores que escrevem sobre a pedagogia de Por algum tempo, ele cultivou a idéia de
Freire se limitam aos aspectos metodológicos. alfabetizar projetando imagens simples, acompa­
Não se dão conta de que, desde o início, a nhadas pela palavra correspondente. Queria
caminhada de Freire foi marcada por uma verificar se era possível, ao analfabeto, introjec­
grande preocupação epistemológica. A campa­ tar o nome associado à imagem, para exteriori­
nha nacional de alfabetização de adultos come­ zá-lo, numa etapa posterior. Formulara esta
çou, no Brasil, em 1962. Já antes, em 1960, hipótese ao dar-se conta da aprendizagem que
quando trabalhava com os camponeses e os seu filho, de dois anos, fazia com as palavras
operários analfabetos, o problema epistemológi­ apresentadas pela propaganda da TV. Mas a
co era para ele prioritário. Conta-nos, numa experiência que fez um dia, com uma mulher
entrevista (Pasquim, p. 7-11), que realizava, em analfabeta, fez-lhe mudar completamente sua
seu trabalho de ação cultural, com os grupos de hipótese inicial. Esta experiência, evocada na
adultos analfabetos, o que ele chama de ·para­ entrevista do Pasquim (1978), já a havia contado
doxal pós-alfabetização·, ou seja, discutia com em 1971. Escutemos o que nos diz o autor:
eles uma temática que podia ser reservada aos
alfabetizados. Os temas discutidos originavam­ ·Lembro-me que pedi ajuda a uma
se do grupo. mulher de Idade, multo amável, uma campone­
Antes de preocupar-se com a alfabetiza­ sa anáuabeta que trabalhava em nOsa casa
ção propriamente dita, preocupava-se em con­ como cozinheira. Um domingo, lhe disse:
'Olha, Maria, eu procuro uma maneira nova de
frontar seu conhecimento com o conhecimento
ensinar a ler, aos que não sabem e tenho
dos interlocutores. Partia do conhecimento necessidade de sua ajuda. Você quer ajudar­
deles. Convidava companheiros de universida­ me?' Ela aceitou. Levei-a à minha biblioteca e
des, sociólogos, economistas, etc., dispostos a projetei um desenho com um menino e abaixo
discutir com os analfabetos. do desenho estava escrita a paiavra 'menino'.
Perguntei-lhe: 'Maria, o que é isso?'E ela: 'um
·Foi ai que eu comecei a usar ajudas menino'. Projetei outro desenho com o mesmo
visuais, nos diz Freire, projetando slides de menino, mas ottograficamente 'menlno'estava
esquemas, de desenhos, de codificações. O escrito sem a sI/aba do meio ('meno' em lugar
resultado foi o seguinte: eu obseNei que o de menino). Perguntei-Iha: 'Maria; falta aiguma
povo começava a sistematizar, a organizar o coisa?' Ela me disse: 'Oh, sim, falta o do meio'.
seu pensamento em torno da análise da reaii­ Sorrihdo, mostrei-lhe outro desenho com um
dade. Quer dizer, ao analisar a sua reaiidade, menino, mas com a paiavra escrita sem a
discutindo a temática que eles mesmos sugeri­ última sI/aba (somente ('men/J, e lha perguntei
ram, eu obseNei que esses grupos começa­ outra vez: 'Faita aigo?"Sim, o finai'. Discutimos
vam a assumir uma posição altamente critica, cerca de uns 15 minutos sob" as diferentes
rigorosa na análise" (Ib., p. 8). possibilidades com menino, nino, menl, etc.
Por fim, me disse: 'Estou cansada. É muito
Freire não se perguntava, pois: como interessante, mas estou cansada'(...). Ao termi­
alfabetizar esses adultos? A questão era antes: nar perguntou-me: 'Você acredita que pude

32 EDUCAÇÃO E REAUDADE, Porto Alegre, 18(1):32-42, jan/jun. 1993


• ajudá-lo?' Respondi-lhe: 'Sim, ajudou-me muito, esta aprendizagem comensura-se ao homem
porque mudou minha maneira de pensar.' E todo, e seus prlnclpios fundam toda pedago­
ela: 'Obrigada.' É formidável o poder do amor." gia, desde a alfabetização até os mais altos
nfve/s do labor universitário" (Flori, 1974, p. 5).
Sozinho, em sua biblioteca, Freire pensou
novamente em sua primeira hipótese em função Freire considera a educação como um
desta experiência, e concluiu: processo que repete, no nível do indivíduo, o
que aconteceu com a humanidade como um
"Descobri que faltava desafiar, desde o inIcio, todo, em sua evolução histórica: a passagem do
a Intenclonalidade da consciência, ou melhor, momento em que a humanidade "sabia" àquele
o poder de reflexão da consciência, a dimen­ do "saber que sabia". É a emergência da cons­
são ativa da corisciência, e não como eu ciência. "Toda educação é, pois, declara ele
pensava antes" (Consc., p. 49-50). (1984�uma certa teoria do conhecimento, posta
em prática". Ele sublinha seguido, em seus
Citei detalhadamente esta experiência,
escritos, a dimensão epistemológica da educa­
porque contém elementos decisivos para a
ção, isto é, a educação como ato de conheci­
teoria do conhecimento e para toda a concep­
mento(1). Já declarou, aliás, que sua preocu­
ção pedagógica de Freire. Na entrevista anterior­
pação teórica �mpre foi mais a construção de
mente citada (Pasquim, 9), Freire volta às con­
uma teoria do conhecimento do que uma teoria
clusões desta mesma eXJ:>9tiência:
pedagógica. Quais são, pois, os princípios desta
teoria do conhecimento?
"AI eu disse a mim mesmo 'não tem
Primeiramente, Freire não adota uma
nada de Introjetar e extro}étar, o negócio é na
concepção intelectualista e racionalista do
base da compreensão crftica da palavra'. E ai
fui em frente. E comecei a fazer as primeiras conhecimento. O conhecimento engloba a
experiências já a nfvel assim crItico. O primeiro totalidade da experiência humana O ponto de
grupo com que eu trabalhei me deu resultados partida é a experiênCia concreta do' indivíduo,
extraordinários. E nunca mais parou. Mas você em seu grupo ou sua comunidade. Esta expe­
vê o seguinte af: que af a questão não era riência se expressa através do universo verbal e
somente técnico-metodol6gica, mas a questão do universo temático do grupo. As palavras e os
de fundo af é a capacidade de conhecer, temas mais significativos deste universo são
associada à curiosidade em torno do objeto". escolhidos como material para a organização do
programa de discussão e de estudo, para a
A alfabetização encontra, pois, seu senti­
elaboração do novo conhecimento, partindo da
do na perspectiva de uma teoria global do
probiematizaçãoda realidade vivida Aprofunda­
conhecimento; constitui um momento, uma
remos, mais tarde, a teoria e a metodologia dos
etapa, uma forma de conhecimento, ao mesmo
temas geradores;
tempo que instrumento a serviço de um conhe­
O conhecimento critico das relações entre
cimento mais perfeito. Voltaremos, adiante, ao
os seres humanos e o mundo não surge, diz
problema da alfabetização. O que nos interessa,
Freire, "corno resultado de um jogo intelectualis­
por ora, é a prioridade do problema epistemoló­
ta Como algo que. se constituisse fora da práti­
gico nas atividades e retlexões pedagógicas de
ca. A prática está compreendida nas situações
Freire. Suas observações, reflexões e conclu­
concretas que são codificadas para serem
sões nunca se reterem exclusivamente à alfabe­
submetidas à análise critica Analisar a codifica­
tização. Sempre está preocupado com o proces­
ção em sua "estrutura profunda" é, por isso
so global da educação, na medida em que se
mesmo, repensar a prática anterior e preparar­
preocupa com o homem como um todo, inserido
se para uma nova e diferente prática, se este for
na totalidade humana da história A intenção o caso. Dai a necessidade (...) de jamais rom­
última, na aprendizagem da leitura e da escrita,
per-se a unidade entre o contexto .teórico e o
segundo E. Fiori, vai além da alfabetização, e
contexto concreto, entre a teoria e prática
envolve todo o empreendimento educativo, (A.C.L, p. 54, E.C., p. 52), A unidade dialética
como esforço de totalização, e como aprendiza­ entre a teoria e a prática, entre a reflexão e a
gem da palavra, meio de comunhão humana e ação é um dos princípios afirmados através de
de tranformação do mundo. toda a obra de Freire.
O mecanicismo é outra concepção rejeita­
"Com a palavra, o homem se faz ho­
da por Fr�ire, tão vigorosamente quanto o
mem. Ao dizer a sua palavra, pois, o homem
intelectualismo, em sua critica à educação
assume conscientemente sua essencial con­
dição humana. E o método que lhe propicia bancária \ consciência não é espaço vazio a

33
ser preenchido. O conhecimento não é ato compreender a dimensão epistemológica da
passivo. educação. Retomemo-Ia, agora, sob o ponto de
vista da alfabetização como leitura critica da
"Conhecer, na dimensão humana, que realidade.
aqui nos Interessa, qualquer que seja o nlvel
em que se dê, não é o ato através do qual um
sujeito, transformado em objeto, recebe, dócil
2. Alfabetização, uma etapa no processo
e passivamente, os conteúdos que outro lhe dá
global do conhecimento
ou Imp6e. O conhecimento, paio contrário,
exige uma presença cur/osa do sujeito em face
do mundo. Requer sua ação transformadora Em ·Cartas à Guiné-Bissau· (p. 19), Freire
sobra a raaJldade. Demanda uma busca cons­ declara que ele próprio e a equipe do IDAC
tante. 'Implica em Invenção e reinvenção. nunca consideraram a alfabetização dos adultos
Reclama a renexão crftles de cada um sobre o por si mesma,
ato mesmo de conhecer, paio qual se reconhe­
ce conhecendo e, ao reconhecer-se assim, ·reduz/ndo-a a um puro aprendizado mecAnlcu
percebe o 'como' de seu conhecer e os condi­ da leitura e da escr/Ia, mas como um ato
cionamentos a que está submetido seu ato· polftlco, dje/amente associado é proaução, é
(E.C., p. 27). saúde, ao sistema regular d� e/lSI"!,, ao projeto
global de sociedade a ser concretizado (...).
,A dicotomia educador-educando, mestre­
aluno é superada pela unidade dialética dos Nestas afirmações, ele realiza, por um
dois sujeitos, que descobrem juntos o mundo, e lado, uma demitização da alfabetização: relativi­
juntos criam o conhecimento, no diálogo. "Edu­ za sua impu, ,.".r:". � face aos que a propõem
cador-educando e educando-educador, no como um valor em s:, I�,�'I:>soluto. Mas
processo educativo libertador, são ambos sujei­ por outro lado, lhe dá uma irll� �"I' lcia mais
tos cognoscentes diante de objetos cognoscí­ profunda, estabelecendo-a no contexto de I lm
veis, que os mediatizam· (E.C., p. 78-79; P.O., p. processo mais amplo e global. Ela não'., �o
98). O papel do educador não é negado nesta de partida, nem de chegada, mas um aspecto e
concepção dialógica do conhecimento. Pelo um momento importante neste processo. Freire,
contrário, é muito importante, como nos mostra em seu primeiro livro, assi. :).1 claramente que a
Freire, ao falar do diálogo como dimensão alfabetização não é o ponto de partida A alfabe­
essencial da pedagogia do oprimido. tização propriamente dita era precedida, nos
Reoeritemente, Fernando Becker apresen­ "circulos de cultura·, por uma série de discus­
tou, na Universidade de São Paulo, uma tese sOes, sobre o conceito antropológico de cultura
(1983), em que faz um estudo comparativo entre
a epistemologia genética de Piaget e a pedago­
gia de Freire, como contriubição para uma nova ·Para a Introdução do conCeIto de
"teoria da aprendizagem·, que signifique uma cultura, ao mesmo tempo gnoslológles e antro­
ajuda para superar o grande fracasso da edu­ pológica, elaboramos, após a 'reduçilo' deste
cação escolar atual. Como principais responsá­ conceito a traços fundamen/als, dez sltuaç6es
existenciais 'codincadas', capazes de desafiar
veis deste fracasso, Becker aponta, por um lado,
grupos e levá-los pala sua 'decodincaçáo' a
as duas grandes correntes que explicam o aslas compreens6es· (E.P.L., p. 109).
processo da aprendizagem e orientam, em
conseqüência, os métodos de ensino em nosso Partindo da discussão das situações
meio escolar: o apriorismo, expresso na psicolo­ codificadas, os operários ou camponeses analfa­
gia da Gestalt, e o empirismo do behaviorismo betos começavam a tomar' consciência da
associacionista; por outro lado, o caráter elitista própria situação de sujeitos da cl,lltura, e do
da escola. Becker tenta descobrir, na conple­ próprio valor de pessoas. Faço sapatos·, disse
"

mentariedade das contribuições dos dois auto­ um deles, "e descubro agora quetenho o mes­
res, subsídios para a elaboração de uma teoria mo valor do doutor que faz livros·. "Amanhã",
global e dinâmica da aprendizagem, reconhe­ disse certa vez um gari da Prefeitura de Brasília,
cendo neles elementos importantes para a ao discutir o conceito de cultura, "Vou entrar no
superação das situaçOes acima apontadas como meu trabalho de cabeça para cima·. (...) "Sei
responsáveis pelas profundas deformaçOes da agora que sou culto·, afirmou enfaticamente um
educação atual. idoso camponês (...), porque trabalho e traba­
Citei este estudo porque representa, a Ih8Qdo transformo o mundo·. (lb., p. 110),
meu ver, uma contribuição notável para se

34
Com essas discussões, o analfabeto desencadear outros atos criadores" (E.P.L., p.
começa a ver a realidade com outra visão; 104).
descobre-se criticamente como artífice do mun­
do da cultura e descobre também "criticamente Naquela modalidade de alfabetização,
a necessidade de aprender a ler e a escrever. segundo Schooyans (1970, p, 443),
Prepara-se para ser o agente deste aprendiza­
do" (Ib., p. 111). Nas "Cartas à Guiné-Bissau", "a leitura e a escrita são presentes vindos de
(p. 76-79; VA, p. 102), Freire traz um exemplo fora: Inibem a reflexão sobre a experiência
vivida e acentuam ainda o divórcio entre o
eloqüente desta descoberta crítica do valor da
pensamento e a ação. Os alunos são forçados
alfabetização. Em Sedengal, pequena comunida­
a engolir Informações transmitidas por um
de rural, muito combativa na luta da libertação, professor, segundo um programa Imposto, um
os progressos' na alfabetização eram muito ritmo preestabelecido, um manual indiferencia­
lentos e difíceis, apesar da excelente prepara­ do".
ção. O problema preocupava muito os animado­
res.Mas a população encontrou seu caminho e A alfabetização proposta por Freire parte
respondeu com mais criatividade do que a sempre da prática, da experiência vivida, dos
equipe esperava. As discussões chegaram a problemas concretos dos participantes do
uma proposta muito concreta: cultivar uma "círculo de cultúra". É, portanto, precedida pela
lavoura de bananas para financiar a campanha pesquisa do universo verbal do grupo que quer
de alfabetização. O projeto se desenvolveu se alfabetizar. Partindo do conjunto de palavras
pouco a pouco e todos se engajaram. Três assim levantadas, são escolhidas as palavras
grupos étnicos participaram, superando progres­ geradoras ou palavras-chave, isto é, aquelas
sivamente os próprios conflitos. Durante o palavras que, "decompostas em seus elementos
trabalho da plantação, as pessoas descobriram silábicos, propiciam, pela combinação desses
a importância de novos conhecimentos para a elementos, a criação de novas palavras" (E.P.L,
utilização das sementes e do adubo, para o p. 112, nota 13). A palavra chave está sempre
controle da água e do solo, para a comerciali­ ligada a um problema ou a um interesse impor­
zação dos produtos. Todas estas atividades tante da comunidade. Por isso Freire não separa
exigiam simultaneamente o desenvolvimento de mais os conceitos de palavra geradora e de
noções de cálculo, de administração, de saúde, tema gerador.
de higiene, de alimentação, etc. Portanto, o valor Através das diferentes combinações das
da alfabetização foi descoberto pela população, sílabas da ficha de descoberta, o educando
partindo de uma "leitura" mais crítica da própria pode descobrir a leitura de outras palavras que
realidade, feita na ação. já conhece. Desta maneira a aprendizagem da
Em seus escritos, Freire insiste sobre a leitura, que se realiza através da combinação de
dimensão crítica da alfabetização, como proces­ técnicas analíticas e sintéticas, é uma descober­
so de inserção na realidade, de busca e de ta crítica que o próprio educando faz do
criatividade. Os analfabetos "são provocados
para a percepção da significação profunda da "mecanismo de formação vocabular numa
linguagem e da palavra". Para eles, trata-se de IIngua silábica, como a portuguesa, que se faz
conquistar a palavra para "pronunciar o mun­ por meio de combinações fonêmicas. Apro­
do", não de aprender a repetição mecânica das
priando-se criticamente e não memorizadamen­
te - o que não seria uma apropriação - daste
palavras. O pedagogo brasileiro critica as carti­
mecanismo, começa a produzir por si mesmo
lhas sem nenhuma relação com a experiência
o seu sistema de sinais gráficos" (E.P.L., p.
concreta dos educandos, crianças ou adultos. 116).
Principalmente tratando-se de adultos, ele
observa: Não interessa descrever, aqui, todas as
etapas e as técnicas compreendidas pelo méto­
"Na verdade, somente com muita pa­ do de alfabetização de Freire. O que importa
ciência é passlvel tolerar, após as durezas de salientar sâo os aspectos de fundo da alfabeti­
um dia de trabalho ou de um dia sem 'traba­
zação, mais precisamente: sua dimensão crítica
lho', lições que falam de ASA 'Pedro viu a
-
e criativa; sua perspectiva epistemológica no
asa'- 'A asa é da Ave'. Uções que falam de
processo global do conhecimento; sua relação
Evas e de uvas a homens que às vezes conhe­
cem poucas Evas e nunca comeram uvas. 'Eva com a realidade concreta, com a experiência
viu a uva'. Pensávamos numa alfabetização que existencial e cultural dos alunos; sua integração
fosse em si um ato de criação, capaz de

35
necessária no processo global de conscientiza­ liberdade, é um ato de conhecimentc?, uma
ção. aproximação critica da rsa/idade. Desde'então,
Desconhecendo os aspectos assinalados, este palavra forma parte de meu vocabulário.
perderíamos de vista a filosofia que dá suporte Mas foi Há/der Cêmars que se encarregou de
difundi-Ia e traduz/-Ia para o Inglês e para o
ao método de alfabetização de Freire, que,
francês' (Consc., p. 25).
despojado de sua perspectiva fundamental de
libertação dos oprimidos, poderia ser confundido Em francês, espanhol, italiano e inglês, a
com uma campanha qualquer de alfabetização palavra não existe, originariamente, nos dicioná­
de adultos, mesmo a serviço de um sistema de rios. Mas passou a ser adotada a partir da
dominação. Para exemplificar concretamente tradução dos escritos de Freire e dos estudos
este perigo, evocarei duas interpretaçOes opos­ que foram surgindo em torno de sua obra
tas, do método' de Freire. Jeam VIAI (1977), de
um lado, identificou o método de alfabetização
de Freire com o MOBRAL Contrariamente a ele, 3.2 Sentido globa/izante e dia/ético da
JANUZZI (1979), analisa as diferenças funda­ conscientização.
mentais entre os dois métodos e a incompatibili·
dade de sua filosofia e de seus objetivos. A origerQ. da palavra "conscientização·,
Se a alfabetização não tem por objetivo seu uso e definição não são problema somente
uma conquista do direito à palavra autêntica por lingüístico. A evolução da linguagem está pro­
parte' do alfabetizado, mas a aprendizagem fundamente ligada aos fenômenos sociais,
passiva de uma palavra pré-estabelecida, perde políticos, econômicos e principalmente culturais.
inteiramente sua função de educação. A alfabeti­ Ora, a sociedade brasileira dos anos cincoenta
zação, segundo o método de Freire, deve estar e sessenta era uma sociedade em profunda
situada no processo global da conscientização. transformação. Freire, em ·Educação como
Não há alfabetização autêntica fora da conscien­ prática da liberdade· a define como 'sociedade
tização. em trânsito.
Se o uso e a significação da palavra
"Mais que escrever e ler que a 'asa é
·conscientização· estão ligados a uma situação
da ave', os a/fabetizandos necessitam perceber
a necessidade de um outro aprendizado: o de
histórica determinada, também estão relaciona­
'escrever'a sua vida, o de 'Ier'a sua realidade, dos com as análises da consciência oprimida, e
o que não será possivel se não tomam a histó­ com toda uma elaboração teórica das situações
ria nas· mãos para, fazendo-a, por ela serem analisadas2. A escolha da palavra, seu uso
feitos e refeitos" (A.C.L., p. 16). como "conceito central· na pedagogia de
Freire, a percepção da "profundidade de sua
significação·, não foram fatos acontecidos no
3, A Conscientização como plenitude do vazio, através da reflexão puramente _rata
conhecimento. Pode-se dizer que a significação encontrou uma
realidade pré-existente. E era uma realidade
3.1 Aspectos sem�nticos: a palavra "cons­ muito complexa: uma realidade histórica em
cientização· . transição; uma mobilização popular; un engaja­
mento pedagógico e político para dar a esta
Em português, a palavra ·conscientiza­ mobilização um caráter de consciência e de
ção· é neologismo recente. Freire não foi o ação política A palavra ·conscientização· é
criador, como ele mesmo o explica: criada e descoberta para expressar esta realida­
de nova Qual é, pois, sua siQniflcaÇão?
"Acredita-se gera/mente que sou autor Simplificando um pouco, podemos dizer
deste estranho vocábulo 'conscientização' por que ·conscientização· significa todo. o processo
ser este o conceito central de minhas Idéias de uma pedagogia de libertação. "Conscientiza­
sobre a educação. Na realldede, foi criado por
ção· equivale, portanto, a ·pedagogia do opri­
uma . equipe de professoras do INSTITUTO
SUPERIOR DE ESTUDOS BRASILEIROS por
mido· (P.d., p. 70). Não se pode reduzi-Ia "à
volte de 1964. Pode-se citar entre elas o filóso­ tomada de consciência· (BECKER, 1983, p. 126-
fo Ifvaro Pinto e o professor Guerreiro. Ao ouvir 130). "Educação como prática da Uberdade· foi
pela primeira vez a palavra conscientização, escrito no Chile, em 1965 e publicado no Brasil
percebi imediatamente a profundidade de seu e na Venezuela, em 1967. Para a tradução
significado, porque estou absolutamente con­ francesa (1971, p. 35; P.O., p. 85), Freire escre-
vencido de que a educação, como prática da

36
veu uma "Advertência" a respeito do conceito fora da unidade dialética ação-reflexão, prática­
de conscientização, que ele queria teoria. Da mesma forma, o contexto teórico não
existe fora da união dialética com o contexto
'preservar de qualquer Interpretação de caráter concreto. Neste contexto concreto, onde ne­
subjetivo ou psicológico. Não pode haver cessariamente os fatos se dão, encontramo­
conscientização - nlvel mais elevado que a nos pelo real, mas sem compreender critica­
simples tomada de consciência - escreve ele, mente por que os fatos são o que são. No
fora da ação transformadora, em profundidade, contexto teórico, mantendo o concreto ao
dos homens sobre a realidade social. Não nosso alcance, buscamos a razão de ser dos
pode haver conscientização fora da relação fatos" (Torres, li, p. 68).
dialética: homem-mundo; e nós não podemos
nem realizá-Ia, nem compreendê-/a, se nos o contexto teórico, no processo de cons­
deixarmos 'levar a lIusóes Idealistas ou a equi­ cientização, é o "círculo de cultura". O contexto
vocos objetivlstas. Deste modo, quando enfati­ concreto é a realidade objetiva, vivida pelos
zamos a necessidade duma conscientização, oprimidos. Esta realidade se expressa através
não a consideramos como uma solução mági­ de um universo de temas em contradição dialéti­
ca, milagrosa, que seria capaz de humanizar os ca Buscar, neste universo, os temas significati­
homens, deixando contudo intacto e virgem o vos, é o ponto de partida para desvendar a
mundo no qual lhes é vedado existir. A humani­
realidade que se deve transformar.
zação dos homens, que constitui sua libertação
permanente, não se opera no Interior de sua
consciência, mas sim na história que eles
devem constantemente fazer e refazer". 3.3 Desmistificaçl10 e conscientizaçl1o.

No livro "Extensão ou Comunicação?", o É o título de uma conferência que Freire


autor escreveu que toda educação verdadeira­ pronunciou em Cuernavaca, em 1971. O peda­
mente humanista deve ser libertadora e incluir, gogo brasileiro expressou, várias yezes, sua
entre suas preocupações fundamentais, o preocupação a respeito das interpretações e
aprofundamento da tomada de consciência. aplicações errÔneas da conscientização. Numa
conversação com um grupo de militantes do
"Este aprofundamento da tomada de IDAC (Torres, 11, p. 72-73), ele declara
consciência, que se faz através da conscienti­
zação, explica o autor, não é, e jamais poderia "que é Imposslvel analisar corretamente a
ser, um esforço de caráter intelectualista, nem coscientização como se fosse um passatempo
tampoúco individualista. Não se chega à cons­ Intelectual ou a construção de uma racionalida­
cientização por uma via pslcologlsta, idealista de separada do concreto. (...) Não existe
ou subjetivista, como tampouco se chega a ela cosclentlzação fora da práxis, fora da unidade
pelo objetivlsmo, por todas as razões a que já teor/a-práti,?a, reflexão-ação. Em compensação,
fizemos referência. Assim como a tomada de a conscientização, enquanto compromisso
c onsciência não se dá nos homens isolados, desmlstiflcador, não pode ser empreendida
Jnas enquanto travam entre si e o mundo pelas classes sociais dominantes: sue naturaza
re/açóes de transformação, assim também mesma as Impede".
somente ai pode a conscientização instaurar­
se" (E.C., p. 76). Numa outra entrevista, em Santiago do
Chile, Freire fala de uma "recuperação" da
A conscientização é processo de conheci­ conscientização, por parte de ingênuos ou de
mento, que se realiza na relação dialética ho­ astutos, que a despojam de sua dimensão
mem-mundo, que "não pode existir fora da politica Desta "recuperação" da conscientiza­
'práxis', ou melhor, sem o ato ação-reflexão" ção encontramos uma análise interessante na
(Consc., p. 26). Contra o subjetivismo, de um revista "Cuadernos de Educación" (1974, p. 21-
lado, e objetivismo mecanicista do outro, que, 25). A revista fala de oficialização da conscienti­
dissociando e ôpondo sujeito e objeto, disso­ zação, como sendo parte de um fenômeno
ciam e opõem prática e teoria, ação e reflexão, global de oficialização de doutrinas nascidas na
Freire proclama a unidade dialética destas, na heterodoxia, mas que, através de um longo
conscientização. processo, se tornaram doutrinas ofICiais, graças
a organismos públicos. A respeito9a conscienti­
"Separada da prática, a teoria trans­ zação, este fenÔmeno é claro no relatório "A­
forma-se em simples verbalismo. Separada da prender a ser", da UNESCO. "Para não cair em
teoria, a prática não é mals do que ativismo omissão inexplicável e para ser fiel aos seus
cego. É por Isso que não há práxis autêntica

37
postulados de 'neutralidade', a comissão cita cla-mundo (... ). A conscientização é Isto: tomar
Freire duas vezes, reduzindo-o a posições as posse da realidade; por esta razão, e por
mais inofensivas". causa da radicação ut6plca que a Informa, é
Na conferência de Cuernavaca, em 1971. um afastamento da realidade. (... ) A conscienti­
F�eire an�lisa, numa visão de conjunto, � zação é o olhar mais crftlco passlvel da realida­
de ..." (Consc., p. 26-29).
difer��tes Interpretações da "conscientizaçãf ,
classiflcando-as em cinco categorias.
Para que o homem se possa abstrair de
A desmistiflCação tem por objetivo devol­
seu mundo, tomar distância, através da reflexão,
ver à c�ientização sua verdadeira significa­
para ter dele uma consciência crftlca, é preciso
ção, assim como sua tarefa verdadeiramente
objetivá-lo. Para isso, o programa educativo
liberta�ora � humanizante. "A conscientização,
deve ser elaborado a partir da realidade concre­
nos diZ Freire, 'é um parto doloroso". Para os
ta, vivida pelos alunos.
cristãos, ele ,situa este parto na perspectiva da
páscoa "A '�ientização não é imposição,
"É na realidade madlatlzadora, na cons­
não é uma manipulação. Eu não posso impor ao ciência que dela tenhamos educadores e povo,
outro, diz ele, minhas,ppiniões; só posso convi­ que Iremos buscar o conteúdo programálico da
dá-lo a conversar, a d,iscutir. Impor aos outros educação.,D momento deste buscar-é o que
minha maneira de pensar é, uma forma de Inaugura o diálogo da educação como prática
aliená-lo, de manipulá-lo" (forres, I, p. 103-104). da libardade. É o momento em que se realiza
'Freire está evitando, há muitos anos, o a Investigação do que chamamos de universo
uso do termo "conscientização", no intuito de temático do povo ou conjunto de seus temes
desatualizar e desautorizar todas as deturpa­ geradores" (P.D., p. 102).
ções de que foi alvo esta categoria, originaria­
O universo temático é também denomina­
mente tão densa de signifléação.
do por Freire temát� significativa

4. Problematlzaçlo da realidade: 08
4.2 "Temas geradores" e "palavras gera­
"Temas Geradores".
doras".
4.1 Pressupostos filosóficos.
Que relação existe entre universo temático
e temas geradores, de um lado, e universo
Os homens, diferentemente dos animais
verbal e palavras geradoras de outro? Em
são seres de praxis. Não estão, somente, �
"Educação como prática da liberdade", Freire
mundo, mas com o mundo, em relações dialéti­
fala de "universo verbal" e de "palavras gerado­
cas com ele. Como seres coscientes, podem
ras". Em "P�gogia do Oprimido", fala de
emergir do mundo material, tomar distância,
"universo ter'nátlco" e de "ternas geradores". A
através da reflexão, e engajar-se, pela ação, na
investigação do "universo verbal" de um grupo
transformação do mesmo. "É precisamente isto,
dado, e a seleção de "palavras-chaves" são
a 'práxis humana', a unidade Indissolúvel entre
feitas em função da alfabetização. As "palavras­
minha ação e minha reflexão sobre o mundo"
chaves" se tomam "palavras geradoras" através
(Consc., p.26).
do processo dialético da análise e da SÚltese. A
O que, para o animal, é simplesmente
"paJavra-chave" dá origem (dai "geradora"), por
cincunvizinhança à qual deve se adaptar, o
meio de diversas combinações das siIabas de
homem traduz num mundo significativo e simbó­
sua famBia fonêmica, à descoberta, por parte do
lico. Este mundo transformado, pela praxis
alfabetizando, de outras palavras. As "palavras­
humana, em função de valores e de finalidades,
chaves" são geradoras numa linha fonética
torna-se "o mundo compreensivo da cultura e
O "universo temáticO" e os "ternas gera­
da história" (P.O., p. 105).
dores" são estudados em função de um progra­
A coscientização é o processo, nunca
ma de edl,lC8ÇAo conscientizantft. Os "ternas
encerrado, pelo qual o homem assume sua
significativos" são "geradores" de significação
posição de ser de práxis, na transformação e
semântica, existencial, cultural, histórica, etc., na
humanização do mundo. Ora,
linha de conhecimento da realidade, através do
diálogo educativo. São "geradores" de signifi­
"a conscientização não está baseada sobre a
consciência, de um lado, e o mundo de outro' cação, de diálogo, de conhecimento, de cons­
por outra parte, não pretende uma ;eparação: ciência crítica e, portanto, de decisão de engaja­
Ao contrário, está baseada na relação concifln- mento na transformação da realidade.

38
Trata-se de diferentes formas e de diferen­ chaves que vão mais longe, que permitem
tes núcleos de significação. Existe, porém, um introduzir uma reflexão das crianças sobre o
elemento comum, fundamental a assinalar, numa mundo social que as cerca".
concepção global da conscientização: o interes­
se pelo tema sempre está presente. Mesmo em
"Educação como prática da liberdade", se No livro "Ação cultural para a' liberdade"
Freire fala de "universo verbal" e de "palavras (p. 19), o autor observa que, na alfabetização
geradoras" o interesse não se restringe às "problematizar a palavra que veio do povo
palavras como elementos fonéticos. Ele explica significa problematizar a temática a eia referida,
que no levantamento do universo vocabular o que envolve necessariamente a análise da
realidade".
"não só Sê fixam os vocábulos mais carre­ Na entrevista publicada pelo jornal "Pas­
gados de sentido existencial e, por Isso, de quim" (p. 9), Freire traz a observação de um
maior 'Conteúdo emocionai, mas também os estudante holandês que lhe escreveu:
falares tfpi.cos do povo. Suas expressões parti­
culares, vocábuos ligados à experiência dos
grupos, de que a profissional é parte" (E.P.L., "Prof. Freire, na minha dissertação eu
p. 112). '
critico uma Ingenuidade sue que eu gostaria
de colocar nessa carta: quando o senhor
Os critérios para a escolha das palavras distingue tema gerador de palavra geradora.
são: "a) o da riqueza fonêmica" e "b) o das Parace-me uma contradição porque, Inclusive
dificuldades fonéticas". Mas o critério temático na sua prática Isso não existe, mas existe na
também está presente: "c)o de teor programáti­ sue teoria, então o sanhor errou quando teorl­
co da palavra, que implica numa maior pluralida­ zou a prática". Ele aceitou a observação, raco­
nhecendo que havia dlcotomlzsdo o Indlcoto­
de de engajamento da palavra numa dada
mízáve/.
realidade SQCial, cultural, poIitica, etc." (Ib, p.
113-114). A alfabetização nunca está, aliás,
separada do processo global de conscientiza­ Foi numa série de conferências em Cuer­
ção. Não há alfabetização que não seja cons­ navaca (1970, p. 15), que Freire explicitou de
cientização, na concepção pedagógica de forma mais clara, a meu ver, a unidade entre
Freire. "temas geradores" e "palavras geradoras".
Numa entrevista à revista "Veja" (1979: p.
3), declarou que "as palavras geradoras" esco­
lhidas no "universo vocabular", "encerram em "É preciso pesquisar, prlmeiramentf" o
si os temas de discussão que deverão corres­ que chamamos palavras geradoras, Isto é, um
ponder aos interesses dos alfabetizados". Ele carta número de palavras emocionalmente
acrescenta que a alfabetização não é somente carregadas, no grupo preciso em que trabalhe­
problema lingOístico, mas um problema de mos e, partindo delas, podemos fazer cosc/en­
leitura critica da realidade e de transformação da tlzaçáo, levando as pessoas a falar sobre
mesma. situações codificadas (fotos ou desenhos) ou
melhor, se posslvel, sobre situações reais (por
Em entrevista publicada na revista "l'Édu­
exemplo,em pleno trabalho de campo: 'Que é
cateur", falando das cartilhas Impostas na que fazemosn As palavras geradoras podem
alfabetização, declara: ser determinadas a partir de temas que as
pessoas sugerem, durante as discussões,
"A palavra geradora está associada a sobre essas situações, nas reuniões de sensi­
uma- temática geradora. A relação entre as bilização". Está claro que não se pode separar,
duas constitui uma poIftizaçáo da educação. A na conscientização, "palàvras geradoras" e
escolha da uma palavra geradora revela uma "temas geradores".
ideologia subjacente em quem a escreveu".
Poderlamos, assim, resumir. o problema
Depois de ter afirmado que o educador nestas palavras: Freire usou os conceitos "uni­
deveria escolher as palavras a partir dos interes­ verso vocabular", "palavras-chaves" e "palavras
ses e dos problemas das crianças, Freire dá geradoras", no contexto da alfabetização. Mas
uma sugestão: estes conceitos nunca estão SE!parados dos
conceitos de "universo temático" e "temas gera­
"Procurai fugir da tentação de palavras dores", porque a alfabetização é sempre cons-
neutras, como as dos animais familiares, dos
jogos, das gulodlces. Conservai as palavras-

39
cientizante, em todas as suas etapas, na con­ enriqueceu-se e aperfeiçoou-se por meio das
cepção de Freire. diferentes aplicações da pedagogia de Freire. O
desenvolvimento mais significativo se realizou no
4.3 Investigaçs'o conscientizante dos INODEP, em Paris. A nova linha de investigação,
temas . a pesquisa conscientizante, apresenta vanta­
gens fundamentais sobre a pesquisa informativa
Os temas geradores são pesquisados por tradicional, e também sobre a pesquisa partici­
meio de uma metodologia própria de investiga­ pante. A pesquisa conscientizante é realizada
ção, sendo que os diversos momentos são por grupos militantes, da comunidade alvo da
expostos por Freire em ·Pedagogia do Oprimi­ pesquisa, com a participação dos animadores
dO· (p. 112-141) e por José Luis Fiori (1973, p. convidados para dar o apoio metodológico.
31-45), que com ele trabalhou no Chile. Umitar­ Realiza-se dentro e por meio da ação. "Os
me-ei a assimalar aqui alguns aspectos que resultados da pesquisa são difundidos para o
revelam a cOerência desta metodologia com a conjunto da população da base - e Isto,em seu
filosofia que anima o projeto pedagógico-politico código natural - não reservados ao pesquisador
de Freire. e aos seus mandantes (pesquisa Informativa)
1) Inveatlgaçio-consclentlzaçio. A etapa nem aos pesquisadores e às suas 8Il)OStras
de investigação do universo temático, em seus (pesquisa particlf>ante)· (Humbert, 1978: p. 90-
diversos momentos, não êstá separada do 93). Tendo saído da ação, a pesquisa conscien­
processo de educação conscientizante. O grupo tizante deve chegar a novas formas de ação,
visado participa desde o inicio. O povo não é para a transformação da realidade (Ib" p. 80).
reduzido à simples função de objeto de investi­ 4) Nova forma de conhecimento. A
gação. O objeto de investigação é o próprio aplicação da teoria e da metodologia dos temas
pensamento. geradores não se limita aos programas de
alfabetização e de p6s.-alfabetização � adultos.
�1nvestigar o 'tema gerador' é investigar Freire fala, no fim de ·Educação corno prática
o pensar dos homens referido à realidade, é da liberdade" (p. 120-121), de um projeto para
investigar seu atuar s� a realidade, que é realizar o ·Ievantamento da temática do homeril
sua préxis. A metodologia que defendemos brasileiro". Previa a ajuda de especialistas para
exige, por isto mesmo, que, no nuxo da investi­ a análise destes temas.
gação, se façam ambos sujeitos da mesme -
os investigadores e os homens do povo que,
"Este levantamento, diz Freire, nos possibllitsrfa
aparentemente, seria seu objeto" (P.O., p. 115-
uma séria programação que se seguiria à
116).
etapa da alfabetização. Mais ainda, com a
criação de um catálogo de temas reduzidos e
referências bibliográficas que porfamos à
2) Objetividade da pesquisa Freire -
disposição dos colégios • universidades,
prevê uma objeção, a de que a participação do poderiamos empliar o ralo de eçáo d8 expe­
povo na pesquisa pode comprometer a objetivi­ riência e contribuir para • indispensável identi­
dade da mesma, e responde, contestando a ncação de nossa escola com • reaJidede".
concepção primária segundo a qual
A pesquisa consclentlzant. também é,
"os temas existiriam em sua pureza objetiva e aliás, um exemplo significativo de aplicação dos
origina/, fora dos homens, como se fossem temas num campo mais vasto que o da alfabeti­
coisas. (...) Não estjo ai, num carfo espaço, zação e da p6s-alfabetização.
como coisas petrlncades, mas estão sendo. A conscientização constitui, em última
São tão hist6ricos quanto os homens. Não
análise, uma leitura critica da realidade. A leitura
podem sar caplBdos fora deles, insiste Freire.
(. .) Não posso investigar o pensar dos outros,
.
de um texto, uma atividade de estudo ou de
relerido ao .mundo se não penso. Mas, não pesquisa, também são formas de leitura da
penso autenticamente se os outros também realidade. Um texto escrito, � obra, uma
pensam. Simplesmente, não posso pensar bibliografia! são formas de codificação de uma
paios outros nem para os outros, nem sem os realidade. Devo abordá-Ias, não como ·consumi­
outros. A investigação do pensar do povo não dor" de idéias, mas sim numa atitude critica que
pode ser feitIJ sem o povo, mas com ele, como procura descobrir e analisar os temas propos­
sujeito de seu pensar" (Ib, p. 116-118). tos, e, através destes temas, atinQ'ir uma leitura
critica do mundo. Toda leitura que fazemos, diz
3) Pesquisa consclentlzant. A investi­ -
Freire, deve ser uma re-Ieitura de uma leitura
gação conscientizante dos temas geradores

40
anterior do mundo, e uma nova escrita deste, Não nos basta o progresso do conheci­
através de minha ação. Ler e "estÚdar, segundo mento científico, em todos os campos. A ciência,
ele, não é um ato de consumir idéias, mas de por si SÓ, é sombria, trágica e Insensata, se
criá-Ias e recriá-Ias" (A.C.L, p. 12). Ler, estudar, carece de sentido. Hubert Reeves (198?) escre­
pesquisar, ensinar e aprender, são diferentes veu que "compete ao ser humano dar um senti­
modalidades de produção, ou seja, de criação do à realidade- (p. 173). Citanto Niàtzsche, ele
ou de recriação do conhecimento. nos lembra que: ·0 que importa não é o que é
verdadelró, é o que ajuda a viver", e comenta:
***

·Esta bela frase responde, assim penso,


Observei anteriormente, neste artigo, que u nossas interrogaçóes. O fim último do
Freire não tem do conhecimento uma concep­ conhecimento e da experl� não será,
ção intelectualista e racionalista. Retomando em definitivo, tornar para cada um a vida um
esta idéia, citarei um trecho de um dos seus pouco vlvfvel'l" (Ib, p. 189).
livros, "dialogados" mais recentes (Freire e
Shor, 1987). Trata-se de um texto em que Freire Este deveria ser nosso desafio maior de
efetua uma aproximação muito interessante intelectuais e de pesquisadores deste. fim de
entre educação, conhecimento � beleza artística século e de milêTIio: reinventar um conhecimento
Depois de afirmar que a educação, enquanto que tenha feiçOes de beleza; reconstruir urna
contribui para o processo de formação, de ciência que tenha sabor de vida e cheiro de
crescimento dos alunos, é um "exercício estéti­ gente, num século necr6filo, que se especializou
co', escreve: na ciência e na arte da morte, da guerra e da
destruição. E é por ar que se encaminha todo o
'Outro ponto que faz da aducação um longo e imenso esforço de Paulo Freire, na
momento artIstico é exatamente quando ela é, construção de uma nova proposta de conheci­
também, um ato da conhecimento. Conhecer,
mento.
para mím, é algo belol Na madlda em que
conhecer é desvendar um objeto, o desvenda­
mento dá "Vida' ao objeto, chama-o para a
"Vida", e até mesmo lhe confere uma nova
·vida·. Isto é uma tarefa artIstica, porque nosso
conhecimento tem qualidade de dar vida,
criando e animando os objetos enquanto os
estudamos' (Ib, p. 145).

***

NOTAS

1. P.O., p. 78-79; A.C.L, p. 55; E.C., p78-79. Na gente que descobriu Isso. Por exemplo, há duas teses
entrevista do Pasquim (1978,p. 8), Freire de­ uma no Canadá 8 outra na Holanda, quase com o
nuncia um equivoco na Interpretação do seu mesmo nome, ·0 ato de conhecimento em Freire', em
pensamento. A Claudlus Ceccon, que se referia que a preocupação dos que escreveram as teses nao
ao .pouco conhecimento do que significa foi outra senão esmiuçar a teoria do conhecimento
exatamente o método Paulo Freire, falado no que está lá e a sua validade ou nao. Esse é o appro­
mundo Inteiro·, ele responde: ·Eu tenho até ach que eu acho correto. Entao, nAo é o método no
minhas dúvidas se se pode falar de método. E sentido se é ba-be-b1-bo-bu. Se o sujeito ler direitinho
há, há um método. Ar é que está um dos os textos que eu tenho escrito, sobretudo 08 recentes,
equfvocos dos que, por ideologia, analisam o sobre o pro5lema da alfabetização, ele descobre que
que fiz procurando um método pedagógico, o que eu estpu fazendo é teoria do conhecimento. A
quando o que deveriam fazer é analisar procu­ alfabetização enquanto um momento da teoria do
rando um método de conhecimento e, ao conhecimento".
caracterizar o método de conhecimento, dizer
'mas, esse método de conhecimento é a pró­
pria pedagogia. 'Entendes? O caminho era o 2. EP.L., p. 59-60; Consc., p. 66-72; E.C., p. n;
caminho epistemológico. Evidentemente, tem EM., p. 39-41.

41
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•••

Baldulno Andreola é. Professor e Diretor da Faculdade de Educaçao da


Universidade Federal do Rio Grande do Sul.
4:l
Ao nível do senso comum, inclusive do A abstração reflexionante tem dois desdo­
senso comum acadêmico, o conhecimento é bramentos: a) se o objeto "é modificado pelas
entendido como um produto 'da sensação ou da ações do sujeito e enriquecido de propriedades
percepção. Na teoria de Piaget, ao contrário, o tiradas de suas coordenações" (p. 303) como
conhecimento é concebido como uma constru­ acontece quando uma criança de 3 anos enfilei­
ção. Em 1977 (Recherches sur I'Abstraction ra, sem plano prévio, alguns carrinhos e, ao
Réfléchissante), Piaget explica esta construção terminar, chama a este conjunto de "Fómula
através de um processo de abstração reflexio­ Um" (Fórmula Um); temos, então, uma abstra­
nante (abstraction réfléchissante). ção pseudo-empírica (pseudo-empirique). É
pseudo-empírica porque aquilo que a criança
retirou não está no objeto, isto é, no observável,
A abstração reflexlonante mas nas relações entre os objetos (carrinhos);
em outras palavras, a criança retirou dos objetos
o processo de abstração reflexionante o que ela colocou neles e não o que lhes é
comporta sempre dois aspectos inseparáveis: próprio; e o que ela colocou neles é produto da
de um lado, o reflexlonamento (réfiéchisse­ coordenação de suas ações que fez dos carri­
ment), isto é, a projeção sobre um patamar nhos, inicialmente isolados, um conjunto ("Fó­
superior daquilo que foi tirado do patamar mula Um"); por isso tal abstração faz parte da
inferior, como acontece com a passagem da categoria "reflexionante" e não da categoria
ação sensório-motora à representação; ou da "empírica"; b) .se o resultado de uma abstração
assimilação simbólica pré-operatória à operação reflexionante, de qualquer nível, tornar-se cons­
concreta. De outro lado, uma reflexão (réfle­ ciente temos uma abstração refletida (réflechie);
xion), "como ato mental de reconstrução e isto acontece, por exemplo, quando uma criança
reorganização sobre o patamar superior daquilo operatório-concreta' se apropria de alementos
que foi assim transferido do inferior" (p. 303). comuns às operações de adição de unidades,
De onde vem o "material" retirado por dezenas e centenas [apreende, na ação con­
reflexionamento? Vem de duas fontes possíveis: creta, que 3 + 3 + 3 3 x 3; ou que (9 - 3) -
=

a) dos observáveis, isto é, "dos objetos ou das 3 = 9 : 3] ou quando uma criança operatório­
ações do sujeito em suas características mate­ formal se apropria de relações comuns às
riais" (p. 303). O mecanismo que assim procede operações aritméticas [apreende que (2 + 3) +
leva o nome de abstração "empírica"; b) dos 4 2 + (3 + 4): comutatividade da adição] .
=

não-observáveis, isto é, das coordenações das O que significa abstração? A palavra latina
ações do sujeito, -coordenações endógenas "abs-traher�" significa retirar, arra�car, extrair
(ouço, observo uma criança de dois anos cha­ algo de algo. Nunca a totalidade, mas apenas
mando um cavalo de "au-au", mas não ouço, algo, algumas características. Reside, aqui, o
não vejo, não observo a coordenação que a limite do conhecimento (o objeto nunca é co­
levou a generalizar para o cavalo o nome que nhecido totalmente), por um lado,. e o motivo
atribuía usualmente ao cachorro); Piaget chama pelo qual o conhecimento é prog-ressivo, por
de "reflexionante" (réfléchissante) a esta forma outro. O processo do conhecimento está restrito
de abstração. ao que o sujeito pode retirar, isto é, assimilar,

EDUCAÇÃO E REALIDADE, Porto Alegre, 18(1) :43-52, jan/jun. 1993 43


dos observáveis ou dos não-observáveis. num ção. numa conduta, são função da Intensidde
determinado momento. da necessidade.... porque essa intensidade é ela
O que o sujeito retira por abstração? mesma função da relação entre os esquemas e
Aquilo que ele pode retirar. isto é. aquilo que a situação considerada num momento dado..."
seu esquema de assimilaÇão atual possibilita (AC. p.66).
que ele retire. A abstração está limitada pelo A abstração reflexionante dá-se sempre
esquema de assimilação disponível no momen­ por dois processos complementares (como
to; o esquema disponível é sfntese das experiên­ vimos acima. e que pretendemos desenvolver
cias anteriores. isto é. das abstrações. empíricas um pouco mais aquQ: a) de um lado o reflexlo­
e reflexionantes. passadas; mas ele pode modifi­ namento (réfJéchissernent) que consiste na
car este esquema Ele o modifica por acomo­ projeção sobre um patamar superior daquilo que
dação. Assim. que um esquema de assimilação foi retirado de um patamar Inferior. como se
é percebido. como insuficente. para dar conta fosse um refletor. Tal acontece quando a crian­
dos desafiOS" ao nivel das transformações do ça. já simbólica, traz ao plano da representação
real. o sujeito volta-se para si mesmo produzin­ o que até agora vigorava somente no plano da
do transformações nos esquemas que não coordenaçAo das ações sens6rio-motoras; b) de
funcionaram a contento. O esquema assim outro lado a refledo (réflexion) que consiste
.

refeito pode proceder. agora, a novas assimila­ num "ato mental"tle reconstrução e reorganiza­
çOes ou retiradas (abstrações) de caracteristicas ção sobre o patamar superior daquilo que foi
dos objetos. das ações e das coordenações das assim transferido do inferior" (p. 303). Para ficar
açOes; isto é. pode proceder a abstraçOes no exemplo. aquilo que é trazido do plano das
empíricas ou reflexionantes. Se novas difICulda­ açOes ou da coordenação das ações sensório­
des de assimilação ou de abstração se apresen­ motoras é reconstruido e reorganizado. a nivel
tarem o sujeito responderá novamente. agora endógeno no plano da representação. Em
em novo patamar. por acomodação. e assim outras palavras. um conteúdo qualquer abstrai­
sucessivamente. do num patamar é. no outro patamar. reorgani­
As novas respostas. ações ou condutas zado; considerando que este patamar superior
do sujeito não são automát� ou necessárias. é o lugar onde já se encontram construções
Dependem elas da necessidade oU da motiva­ anteriores. duas coisas acontecem: o conteúdo
ção "vivida" por eie no momento. A necessida­ novo é sugado para dentfG de um conjunto de
de ou motivação. para Piaget. não é algo estra­ elementos organizados (coordenação das ações
nho ao esquema ou à estrutura das ações. Ao ou estruturas) que são estranhos ao seu lugar
contrário. constituem elas o aspecto cognitivo ou de origem: por e� mpo. o peso - conteúdo
afetivo de ação. perceptlVel. no séOtido de sopesar - de UI'1lI.
esfera· de aço. manuseada pela primeira vez.
Não nos é pois necessário, para explíC81 a pela criança, é jogado para dentro (assimilado)
aprendizagem, recorrer a falores separados de de um univerSo de relaçOes - formas (previa­
motivação, não porque eles não Intervenham ..., mente construrdas) não perceptrveis. mas inteli­
mes porque eslão Incluldos desde o começo gíveis - inexistentes no plano material das esfe­
na concepção global da esslmlleção. De tal ras de aço. Em segundo lugar. este patamar de
ponto de vista, a necessidade nada mais li do
elementos organizados. das coordenações das
que o aspecto cognitivo ou afetivo da um
esquema, enquanto reclame sUa alimentação
ações. reorganiza-se (acomoda-se) por força da
normal, quer dizer os objetos que ele pode "reflexão" em função deste novo conteúdo.
esslml/ar; e o Interesse... li a relação afetiva Mesmo que numerosas crianças manuseassem
entre a necessidade e o objeto suscetlvel de a mesma esfera de aço ainda assim não teria­
satlsfaz""a (AC, p. 66). mos duas comspreensOes exatamente iguais
deste peso. pois o mundo deste segundo pata­
•Afirmar que alguém se interessa por um mar. mundo endógeno das coordenâçOes das
resultado ou por algum objeto equivale a dizer açOes. é diferente de uma para outra criança
que ele deseja aMlmllar este objeto ou resulta­ pois ele depende da experiência anterior ou da
do ou. ainda, que antecipa (ação virtual. desejo) história das açOes dos indivíduos. Mas. e isto é
uma assimilação. E. afirmar que alguém tem fascinante nó ser humano. não importa o cami­
necessidade é o mesmo que dizer que ele tem nho percorrido pela experiência ou pela história
esquemas que. por suas própria constituição das ações de um individuo. ele poderá chegar
como vida, "exigem" serem utilizados. "Pode­ ao conhecimento .unlveraal e nece88árlo.
mos sustentar. em compensação. sem tautolo­ Podemos imaginar experiências tão diferencia­
gia, que o grau de assimilação e de acomCY.la- das em função da geografia, da cultura, da

44
língua, etc, como as dos esquimós, dos ale­ uma mulher de 28 anos de idade, para escrever
mães, dos negros bauleses da Costa do Marfim, ·cabide". Ela escreveu: ·CBD". A retomada,
dos gaúchos, dos nativos de ilhas do Pacífico, pela hipótese silábica (Ferreiro, 1985), mostra
dos índios brasileiros, etc. Todos os sujeitos onde ela havia interrompido seu processo de
destas experiências podem chegar ao conheci­ construção da escrita (Cf., também, Montoya,
mento universal e necessário não importa a 1983 e 1988; Franco, 1888; Slomp, 1990; Corso,
diversidade de sua experiência, isto é, de suas 1991).
ações e de suas abstrações - empíricas ou
reflexionantes. Nisto todos eles se igualam
constituindo o sujeito epistêmico, o sujeito do Diferenciação e equllibrlo
conhecimento. Nada, no entanto, garante a
prior I que eles cheguem a tal ponto. E somente .... o equilíbrio cognitivo não é um estado
a ação, entendida como abstração reflexionante, de inatividade, mas de constantes trocas (RAR,
garante a posterlorl a chegada a este patamar p. 314). O equilíbrio é conseguido porque estas
de conhecimento. Mas - e isto é o que fascina trocas garantem a conservação do sistema
no conhecimento humano! - uma vez chegado Podemos afirmar, de forma aparentemente
a este patamar operatório-formal, a diversidade circular, que se não há trocas não há cpnser­
de experiências é superada; basta superar as vação do sistemA' e se não há conservação do
diferenças de linguagem, para que representan­ sistema não são possíveis trocas do organismo
tes de ,culturas tão diferentes possam comuni­ com o meio. Tais trocas realizam a conservação
car-se. do ·ciclo de ações ou de operações interdepen­
Aproveitemos este ponto para uma di­ dentes", isto é, realizam a conservação do
gressão. Reside, aqui, a fundamentação teórica sistema. Sem esta realimentação deste ciclo não
construída por piagetianos (Ramozzi-Chiarottino, são possíveis novas trocas. O que equivale a
1984) para rechaçar, simultaneamente, as dizer que a assimilação cessa. Sem 8S5imilação
teorias da càrêncla e da diferença cultural. não há acomodação, tornando impossível a
Segundo Piaget, suprimidas as condições da realização do equilíbrio.
ação, inviabiliza-se a experiênçia O que equivale Note-se, antes de prosseguirmos, que
a dizer que a abstração não ocorre ou ocorre ·equilíbrio cognitivo· não se confunde, em
precariamente. Neste caso, as estruturas men­ Piaget, com equilíbrio mecânico ou termodinâmi­
tais, que, para Piaget (1973), são orgânicas e co. Ele utiliza este termo por anologia não por
-

são função da ação, não são construídas ou são redução - à estabilidade de um organismo vivo.
precariamente 'reconstruídas. Podemos afirmar, ·Equilíbrio cognitivo" é diferente de equilíbrio
genericamente, que todo ser humano que mecânico que se obtém por balanceamento de
continua vivo pode, salvo no que se refere a forças opostas. É diferente de equilíbrio termodi­
prejuízos orgânicos irreversíveis, avançar na nâmico que consiste no repouso com destruição
construção de seus instrumentos cognitivos. das estruturaS. Obtém-se o ·equilíbrio cogAitlvo"
Sua grandeza ou sua miséria não está inscrita na medida em que o sistema se mantém aberto
na bagagem hereditária. Está, sim, nas condi­ ao meio, isto é, na medida em que há trocas do
ções objetivas que possibilitam, em grau maior organismo com o meio. As trocas são possíveis
ou menor, ou inviabilizam, as trocas do indivíduo na medida em que o sistema se mantém em
com o meio. Portanto, uma criança que vive funcionamento; mantém-se ele em funcionamen­
durante anos um quadro de desnutrição, e de to na medida em que procede a trocas com o
miséria que configura este quadro, não constrói meio... Mas, então, temos um movimento circu­
suas estruturas mentais no ritmo da criança bem lar?
alimentada e bem servida de objetos e de Teríamos um movimento circular se os
variadas solicitações culturais. É vítima de um elementos em interação fossem sempre Iguais.
·déficit·, pois. Entretanto, assim que forem Sujeito e objeto transformam-se, no emanto, por
superadas as condições objetivas responsáveis força da própria interação. O sujeito assimila os
pela produção deste déficit, a criança reassume objetos, istoé, age sobre eles transfõrmando-os
o processo de abstração, de onde havia parado, em função dos esquemas de que dispõe.
e torna a construir ou reconstuir seus instrumen­ Assimilar implica, pois, transformação do objeto.
tos cognitivos. Na fórmula de Ramozzi-Chiarotti­ Um objeto qualquer nunca é assimi,lado na sua
no, ·a criança está deficitária não é deficitária". totalidade, aliás inesgotável (cf. númênon kantia­
Para citar apenas um exemplo: Paulo Slomp, ao no); são assimiladas apenas carcteristicas dos
iniciar um trabalho de alfabetização de adultos, objetos, das ações ou da coordenação das
num presídio feminino de Porto Alegre, pediu a ações por abstração empírica ou reflexionante.

45
Estas características invaden o mundo endóge­ isto é, à ação que parte de necessidades dos
no (interno), mundo das coordenações do indivlduos ou dos grupos. Ação espontânea e
sujeito, impondo-lhe modificações para as quais não espontaneísta. "Espontaneísta· refere-se a
o sujeito nem sempre dispõe de instrumentos uma pseudo-concepção de espontãneo como
(esquemas ou estruturas) ou, pelo menos, se qualquer ação , por mais aleatória que fosse
instrumentos adequados para responder. Urge, ou, diria melhor, por mais aprisionada que fosse,
pois, qonstituir tais instrumentos por modificação seria espontânea, redundaria emtransformaçôes
dos instrumentos já existentes ou por constru­ significativas nas direções correlativas da objeti­
ção de instrumentos novos. Torna-se necessá­ vidade e da subjetividade. Com as contribuições
lio, portanto, que o sujeito se transforme a si da Psicanálise sabemos que praticamente não
mesmo. A este IiJsforço transformador de si há ação aleatória. O que há, isto sim, são ações
mesmo Piaget chama de acomodação. Acomo­ aprisionadas. Aprisionadas pelo trabalho aliena­
dar implica, pois, transformação do sujeito; do, pelas religiões, pelas neuroses, pelo treina­
transformação realizada pelo próprio sujeito. mento, etc. Aprisionadas pela ideologia, portan­
Assimilar e acomodar são, portanto, açOes to. Tais ações têm por função obstruir as trans­
transformadoras do próprio sujeito. Estas trans­ formações instalando uma circularidade que
formações são correlativas, isto é, na medida em torna inviável qualquer novidade. Lembre-se.
que elas acontecem no plano do objeto, aconte­ ainda, que ."espontãnea·, para Piaget, é a
cem, também, no plano do sujeito. ação assimiladora que busca prover uma neces­
Em 'outras palavras, o sujeito se faz sujeito sidade de origem endógena; e não a ação
na medida de sua ação transformaclora sobre os determinada por estímulos programados por
objetos. Objetividade e subjetividade, em Piaget, alguma instância institucional, como a escola,
são absolutamente complementares. Não há um por exemplo: ação de origem exógena, portanto.
sujeito prévio às ações como também não há Esta assume maior ou menor significação em
um objeto prévio às açOes. Sujeito e objeto se função daquela.
determinam mutuamente, sem sacrifício de suas Este equilíbrio é obtido por formas mais
identidades próprias, ao contrário, com enrique­ ou menos distanciadas do equilíbrio perfeito
cimento progressivo das mesmas, se as condi­ que só é conseguido, mesmo assim raramente,
ções objetivas não impedirem o desenrolar do em matemática pura. O ponto de chegada das
processo. É isto que Piaget quer dizer com diferentes formas de equilíbrio são estruturas
"equilibração majorante". É por isso, também, equilibradas que comportam, do ponto de vista
que não se fala em circularidade, mas em formal, em todos os patamares do reflexiona­
espiral ascendente em que cada nova espira mento, compensaçOes exatas entre afirmações
tem maior abrangência que a anterior. Isto é, a e negações. Antes do nível formal, porém, no
ação rompe esta circularidade. Em Piaget, a plano do pensamento natural, o caminho encon­
ação rompe a dicotomia entre a razão e a tra-se permeado de desequilíbrios como os
realidade; a ação supera a irredutibilidade sujei­ devidos aos conflitos entre o sujeito e os objetos
to-objeto. E ela a instância explicativa por exce­ por acomodação insuficiente, conflitos gerados
lência A seguinte história mostra-nos o quanto por falhas momentâneas de coordenação,
a ação é fundamental na explicação piagetiana. conflito entre diferenciação e integração. O
Perguntado por psicólogos soviéticos se atraso das negações em relação às afirmações,
acretitava na existência de um objeto, antes que que redunda num defeito das compensações,
fosse conhecido, Piaget respondeu: "Como constitui uma fonte sistemática de desequiUbrios.
psicólogo entendo que o sujeito só conhece um Piaget, em 1977, dá a entender que a
objeto enquanto age sobre ele e parcialmente o teoria da abstração veio para superar a teoria da
transforma Assim sendo, não sei o que o objeto equilibração, formulada alguns anos antes. Diz
é antes de conhecê-lo". Em seguida um deles ele, como aliás vimos acima, que o processo
qu,s saber se concordava com a afirmativa de geral de equilibração "permanece válido a titulo
que o mundo existe antes de ser conhecido. de tendências, e sobretudo nas contInuas -

Respondeu: "O conhecimento pressupõe uma reequilibrações refazeJ1do os desequUlbrios e


atividade do cérebro; ocorre que o cérebro é procedendo por regulações ordinárias antes de
uma parte do organismo, o qual ele próprio, é atingir essas regulagens 'perfeitas' que conti­
uma parte do mundo... Portanto, posso concor­ tuem as operações· (RAR, p. 315). :As novida­
.

dar com o senhor" (Watzlawick, apud Kessel­ des devidas à abstração reflexionante encon­
ring, 1981). traol sua razão de ser nesse processo. A equili­
Note-se, também, que Piaget não se bração, no entanto, não subordina instâncias
refere a qualquer ação. Mas à ação espontânea, explicativas como a "tomacla de consciência·,

46
que passa a ter lugar decisivo na abstração
. "equilíbrio entre a diferenciação e a integração...
reflexionante, ou como a "abstração empírica· é, sem dúvida, a caracteística a mais geral e a
sem a qual a abstração reflexionante dispara mais importante da abstração reflexionante"
para o racionalismo, para não falar da categoria (Piaget, 1977, p. 322). Reside, ar, a produção
nova de inestimável valor explicativo: a "abstra­ das novidades própria da abstração reflexionan­
ção pseudo-empírica", categoria com a qual te. Isto é, a aç� instrumentaliZa-se através de
toma-se possfvel atentar ao fascinante jogo de formas imprevisfveis, tanto no plano do objeto
significações com o qual o sujeito Impregna o quanto no plano do sujeito. Formas produzidas
mundo dos Objetos e dos acontecimentos antes na Interação e irredutfveis aos pólos primitivos
de assimilá-los na qualidade de objetos. desta interação (sujeito e objeto).
As construções de um nfvel ampliam, por
um lado, o .Ieque de posibilidades do nivel
precedente,., por outrd, determinam o âmbito Epistemologia genética e açlo docente
das açOes dO nfvel seguinte. A ação da acomo­
dação de um esquema a objetos exteriores faz A matétria prima do trabalno do professor
com que este esquema se diferencie; esta é o conhecimento. Não é conseguir que o aluno
diferenciação dá-se, de modo imprevisfvel, pois faça isto ou aquilo, mas conseguir que ele
origina-se ela de uma perturbação cuja "causa· entenda, por reflexionamento próprio, como fez
é de origem externa. isto é, OCorre em função de isto ou aquilo. Se uma criança desmontou e
carcterfsticas do mundo do objeto, até agora remontou corretamente um brinquedo, por
desconhecidas. A acomodàção tem, portanto, sugestão do professor, ou, se um aluno de
uma função dlferencladora. Neste sentido, colégio técnico desmontou e remontou o siste­
passa ela a constituir uma função específica da ma de carburação de um automóvel, como
abstração reflexionante, constituindo esta o tarefa de aula, não significa que ele tenha
processo mais geral. A diferenciação tem sem­ avançado em termos· de conhecimento. Este
pre duplo sentido: diferenciam-se os esquemas "conhecimento prático· constitui a matéria prima
pelo trabalho da acomodação e, por isso, dife­ do conhecimento; mas não é sobre ele que se
renciam-se cada vez mais os objetos a serem debruça Piaget. O criador da Epistemologia
assimilados. A esta função diferenciadora cor­ Genética tem em mira não esta ação prática, ou
responde uma função coordenadora que é de primeiro grau, mas a ação de segundo grau,
processada pela asslmllaçlo. Assimilação, ou de segunda potência. Isto é, a ação aobre
primeiramente, dos objetos e, posteriormente, esta ação de primeiro grau. A ação de primeiro
dos próprios esquemas entre si. Primeiro, o grau serve de apoio (porter sur = apoiar-se
bebê suga o que é colocado em sua boca, sobre) à ação de segundo grau, isto é, à abs­
depois ele agarra o objeto e o leva à boca para tração ou à tomada de consciência. Esta ação
sugar, mais tarde olha, agarra e suga, etc. O de segundo grau é uma ação eminentemente e
esquema de sugar foi assimilado ao esquema progressivamente endógena; uma açào que
de agarrar, os esquemas de agarrar e de sugar tende a uma progressiva interiorização.
foram assimilados ao esquema de olhar. Vfsto Exemplifiquemos. Se o professor que
de outro lado, o sugar resiste em certa medida pediu as tarefas práticas, acima, solicitasse,
ao agarrar, de tal modo que só certas coisas agora que a tarefa está concluída, aos seus
agarradas podem ser sugadas; o mesmo acon­ alunos que eles explicassem, pela fala, pela
tecendo com o olhar, isto é, nem tudo que é escrita, pelo desenho, etc, o que eles fizeram,
olhado pode ser agarrado ou só certas coisas mas .em voltar. prática - pelo menos durante
olhadas podem ser agarradas. Temos, assim, a explicação - estes alunos enfrentariam uma
assimilação dos esquemas entre si ou assimila­ dificuldade nova que não fora resolvida na
ção recíproca dos esquemas. "A abstração atividade prática; uma dificuldade pelo menos
reflexionante participa, com efeito, das coorde­ tão grande quanto a enfrentada na Solução da
nações, portanto, da assimilação recíproca dos tarefa práti�a Esta ação de segu/lda potência
esquemas de ações ou de operações... (Piaget,
• implica uma abstração, empírica e reflexionante
1977, p. 322). Esta assimilação recíproca abre ao mesmo tempo, que poderá, ou não deman­
caminho a novas assimilaçOes recíprocas, que dar abstraçOes pseudo-empírlcas e c�ar, ou
abrem caminho para novas acomodações que, não, a abstraçOes refletidas. O desenvolvimento
por sua vez, diferenciarão os esquemas a serem do conhecimento que, segundo P!éiget, embasa
coordenados. Os esquemas assim diferenciados toda aprendizagem, ocorre neste nivel, e não no
tendem, de retomo,a assimilar-se reciprocamen­ mero nivel da ação prática Uma pessoa pode
te abrindo novas Possibilidades para a ação. O atravessar sua vida repetindo tarefas práticas,

47
com grande habilidade, mas sem mostrar pro­ primeira vez, de eleições poderão discutir, à
gresso significativo no conhecimento. Veja-se o base de leituras - tais como as matérias jornalís­
que ocorre na burocracia oficial, por exemplo. ticas sobre eleições no Leste europeu, onde
Pessoas que passam a vida inteira manuseando velhos de 60 anos estão votando pela primeira
documentos, mas não desenvolvem a mínima vez - ou de informações mediante entrevistas a
capacidade de análise dos documentos que líderes políticos próximos, sobre o significado
passam por suas mãos. Pessoas que durante 20 desta ação. Estamos num terceiro patamar de
anos vêem, diariamente, televisão não são conhecimento, em que as primeiras explicações
capazes, por isso, de traçar um perfil crítico ou primeiras formas explicativas transformam-se
.deste "meio". Um agricultor que, durante toda em conteúdo para o qual constroem-se novas
sua vida, desgas�ou seus músculos no trabalho formas. Transitando, assim, para um quarto,
braçal provendo, com dificuldade, sua vida e a para um quinto, para um "enésimo" patamar de
dos seus, nem por isso é capaz de delinear uma reflexionamento, de acordo com o seguinte
crítica à divisão do trabalho na sociedade capi­ processo em espiral: "todo reflexionamento de
talista e, especificamente, "ver" o lugar do conteúdos (observáveis) supõe a intervenção de
camponês neste sitema de produção. Um meni­ uma forma (reflexão) e os conteúdos assim
no de rua que, não encontrando alternativa para transferidos exigem a construção de novas
viver, apela para o roubo ou para o furto, nem formas devidas à reflexão. Há, portanto, assim
por isso compreende o sistema de produção da uma alternância ininterrupta de reflexionamentos
sociedade capitalista ou consegue situar etica­ � reflexões reflexionamentos; e (ou) de conte­

mente seus atos. O operário da linha de monta­ údos � formas � conteúdos reelaborados �

gem pode passar 25 anos montando sistemas novas formas, etc, de domínios cada vez mais
elétricos de automóveis, que funcionam com amplos, sem fim e, sobretudo, sem começo
perfeição, mas ser incapaz de desenhar um absoluto" (Piaget, 1977, p. 306).
sistema similar. Vemos como o trabalho da' abstração
Suponhamos, agora, que os alunos, reflexionante sobrepõe-se ao da abstração
acima, passem a montar e desmontar outros . empírica, restringindo o campo de atuação
objetos, como motor elétrico, engrenagem de desta e alargando indefinidamente os referen­
relógio, motor de automóvel, "torpedo" de ciais daquela. A idéia empirista/positivista de
bicicleta. A cada montagem e desmontagem, o que a teoria é cópia ou radiografia do objeto,
professor pede que, de uma ou de outra forma, definitivamente não tem lugar aqui. O conheci­
expliquem o que fizeram. Estes alunos, em mento - e, a fortiori, suas categorias básicas de
breve, poderão tomar consciência (apropriar-se objeto, espaço, tempo e relação causal - é
dos mecanismos da própria ação) e chegar, resultado de uma construção por um processo
assim a uma generalização (Piaget, 1978) ao de abstração reflexionante que ocorre, de forma
compreender que estes aparelhos possuem geral, na inter.ação sujeito-objeto. É exatamente
mecanismos comuns; poderão, até, teorizar por força desta interação, por compreender que
sobre transmissão de força, rotações por minu­ o conhecimento é resultado de trocas do orga·
to, circuito elétrico, intensidade de carga elétrica, nismo com o meio, que a abstração reflexionan­
resistência dos materiais, e, quem sabe, até te, apesar da progressiva predominância sobre
projetar um aparelho com características inédi­ a abstração empírica, nunca se torna hegemôni­
tas se comparadas com as dos aparelhos ca, mas seguidamente volta a fazer apelo aos
manuseados - isto é, sua generalização ultrapas­ recursos da leitura perceptiva.
sa o plano do real (objetos manuseados) proje­ O trabalho da educação caracteriza-se,
tando-se sobre o plano dos possíveis (o conjun­ portanto, de forma peculiar. O operário da
to dos aparelhos possíveis a partir de determina­ construção civil não precisa saber como se
das condições). Imaginemos, didaticamente, que fabrica o cimento, o tijolo ou o ferro para cons­
estes alunos passém a organizar-se em grupos truir o prédio com êxito ("réussir", Piaget, 1974);
de trabalho, que passem a desenvolver estas o operário da linha de montagem .não precisa
tarefas em grupo. O professor poderá solicitar saber a definição operacional de aerodinâmica
deles que descrevam como se organizaram. para fabricar o automóvel. Ele (uma multidão de
Poderá, então, solicitar coisas parecidas, mas trabalhadores) é treinado para fazer o que
mais complexas: como se organiza o trabalho outros (um pequeno grupo) penSl'lram. E nin­
no comércio, na indústria, na agricultura; como guém, na linha de montagem, solicitará dele que
se constituem as relações entre patrão e empre­ explique o que fez G por que o fez. Ou seja, ele
gado, entre capital e trabalho, etc, etc. Para citar poderá trabalhar 30 anos na linha de montagem
mais um exemplo: alunos que participaram, pela sem aferir daí progressos significativos na sua

48
capacidade cognitiva. Sua prática não é utilizada que fazemos da epistemologia "subjacente" ao
como matéria prima para fazer teoria. Experiên­ trabalho do professor (Becker, 1992) mostrou
cia, no sentido de Piaget, não é prática mas o uma epistemologia predominantemente empiris­
que se faz com a prática; "experiência não é o ta, misturada de apriorismos algumas vezes
que se fez, mas o que se faz com o que se fez" inatistas e, raras vezes, construtivista; mesmo
(Aldous Huxley). Consideramos, por isso, inge­ nesta última hipótese, o construtivismo vem
nuidade atribuir ao trabalhador um saber genuí­ misturado de versões empiristas ou inatistas.
no pelo simples fato de ele ter a prática. O saber Esta compreensão epistemológica ideologizada
não vem da prática, mas da abstração reflexio­ faz do professor um treinador, um "domestica­
nante "apoiada sobre" ("porter sur") a prática. dor" que não tem consciência de sua ação; e
A prática é, por conseguinte, condição necessá­ não um educador capaz de criar relações cons­
ria da teoria; mas, de modo algum, sua condi­ trutivas na interação com seus alunos.
ção suficiente. Numa gélida noite de inverno - o termô­
Afirmamos, por isso, que o professor é um metro marcava zero grau - voltávamos para
trabalhador essencialmente diferente do operário casa, o Felipe - 8; 1 (17) - e eu. Há duas qua­
da linha de montagem. Embora critique contun­ dras de casa, perguntou-me ele: "Pai, o que é
dentemente o processo de alienação do traba­ , horizontal ' e 'v�rtical'? Apressando o 'passo,
lhador, próprio da linha de montagem, reconhe­ para não enregelar, imaginei uma resposta o
cemos que seu trabalho pode gerar um produto menos insensata possível, assumindo o ponto
acabado (uma geladeira, um automóvel). Nega­ de vista (espacial) dele. Perguntei: o poste é
mos que isto possa acontecer com o professor. horizontal ou vertical? Acertada a resposta, após
O trabalho docente alienado só pode gerar um algumas tentativas, continuei a perguntar: e a
produto discente alienado; se isto não acontece calçada, e a rua, a árvore, o carro, a porta, etc.;
é porque o aluno conseguiu, por outros cami­ suas respostas faziam sentido. Ao entrar no
nhos, criticar a prática de seu professor. É por prédio, deparei-me cortl o corrimão preto, longo,
isso que afirmamos que o professor precisa salientando-se sobre o fundo branco das pare­
saber como se constitui o conhecimento. (A des. Perguntei, e o corrimão? Ele ficou em
teoria de Piaget é um caminho importante, mas silêncio, visivelmente surpreso, quase imóvel,
está longe de ser o único - Cf. Marx, Gramsci, olhar perdido. Aguentei um tempo razoável de
Paulo Freire, Freinet, Vygotsky, etc). Caso con­ silêncio e pronunciei: "obliquo", Ele repetiu a
trário, poderá ele não só tornar inócuo o proces­ palavra, por várias vezes, até superar a dificulda­
so de aprendizagem como até obstruir o proces­ de de pronúncia. Entramos em casa. Sugeri:
so de desenvolvimento que o fundamenta. vamos representar no papel a vertical, a horizon­
Afirmamos, por isso, e o fazemos com tal e a oblíqua. Tomei uma folha "de pé" e
toda a ênfase possível: o treinamento é a pior tracei, no alto, as três dimençOes com um ponto
forma de se entender, na prática e na teoria, a comum de intersecção. Tive a impressão de que
produção escolar do conhecimento, pois ele ele não viu o meu traçado. Pegou a folha e
atua no sentido da destruição das condições desenhou, no rodapé, primeiro uma chaminé de
prévias do desenvolvimento. Na medida em que 9cm alt. por 1,5cm larg., com bastante fumaça,
o treinamento exige o fazer sem o compreen­ reta, no sentido da' folha; no alto da chaminé,
der, separando a prática da teoria, ele subtrai escreveu: "vertical". Em seguida, desenhou uma
a matéria prima do reflexionamento anulando o cama de 1cm de alt. por 2,5 de larg., com uma
processo de construção das condições prévias menina deitada nela; no alto escreveu: "orizon­
de todo desenvolvimento cognitivo e, portanto, tal". Por último, desenhou um prédio, em
de toda aprendizagem; pois o reflexionamento posição oblíqua à chaminé, com dois minaretes
do fazer ou da prática é a condição necessária constituídos de abóbadas e pontas lançando-se
do desenvolvimento do conhecimento. para o alto; escreveu, no alto: "ol:)líquo". Já
É neste sentido que a Epistemologia passara em muito sua hora de dormir e ele
Genética piagetiana constitui-se num poderoso ainda continuou a desenhar, desta vez no
instrumento de compreensão do processo de espaço que sobrava no meio da folha, "mons­
desenvolvimento do conhecimento humano; e, tros espaciais", foguetes, aviões e a lua, com
por conseqüência, do processo de aprendiza­ fisionomia humana, rodeada de estrelas. Con­
gem escolar. O conhecimento desta epistemolo­ tou-me uma breve história a res�jto, história
gia, pelo menos nas suas noções básicas, que faz parte de suas fantasias atuais. E, então,
possibilita ao professor compreender este foi dormir.
processo, alinhar-se a ele - não inutilizá-lo ou Tudo isto não demorou mais que o tempo
prejudicá-lo, portanto - e até acelerá-lo. A análise de uma hora-aula do Colégio onde ele cursa a

49
segunda série. No entanto, o processo de didático-pedagógico, mas que legitima o exercí­
aprendizagem escolar ignora completamente, e, cio pleno do treinamento; ou, para dizer a
isto é mais sério, ignora metodicamente, esse recíproca, o treinamento é a expressão legítima
processo. (E, por favor, que ninguém venha da epistemologia (empirista) predominante no
acusar-me de eu estar culpando o professor meio docente. Acompanhemos alguns exem­
pelo "fracasso" escolar...). Em lugar de alinhar­ plos:
se ao complexo e fascinante processo de de­ Diz a professora de Estatística, na univer­
senvolvimento, a metodologia de ensino da sidade: "O papel do professor é. de certa
escola continua a insistir no treinamento visando maneira. de transmissão do conhecimento e o
o domínio de algoritmos, de gramatiquices, de do aluno é de vivência"; "vivência" denota,
decorebas mil. Assim, o mesmo Filipe - criança aqui, a interiorização de um estímulo; configura,
igual às outrasl - que consegue, em tão pouco portanto, a noção empirista de experiência. A
tempo, coordenar noções complicadas como as professora de Botânica, lecionando em pós­
acima, não consegue responder problema bem graduação, diz: "Para mim o (papeO do profes­
menos complicado. Estava ele, naqueles dias, sor é realmente o de transmitir. o de tentar
fazendo a "lição de casa". Estava escrito: 190 + fazer com que eles absorvam o conhecimento;
15. Ele faz o cálculo como a escola o treinou: e o do aluno s�rla••• de tentar captar.enten­
soma "5 + O dá 5; 9 + 1 dá 10, escreve O e der, racionar a respeito disso . O professor
•.. "

sobra 1; o 1 que sobrou + o 1 da esquerda dá de Odontologia reage assim à pergunta sobre


2. Resultado: 205". Em seguida, fechei o cader­ os papéis representados em sala de aula: "O
no e perguntei ao Filipe: quanto dá 190 mais professor ensina e o aluno aprendel Qual é a
15? O Filipe olhou-me, meio sem graça, franziu tua dúvida?" A professora universitária de
a testa, fez força como quem quer forçar o História, afirma: "O professor deve organizar o
próprio pensamento e... não conseguiu respon­ conteúdo, esmiuçar.tornar agradável e esti­
der. Ele resolve sem mais o algoritmo, mas não mulante o conteúdo: O aluno de"e... par o
sabe somar! conteúdo nos buracos que ele tem na cabe­
O que aconteceu? O treinamento de ça "O professor de Educação Física, de Primei­
•••

ações práticas "planejadas" (resolver o algorit­ ro Grau, diz: "Se confirma que não é na teoria
mo, somando unidades) impede a apropriação que se vai conseguir alguma coisa. mas é na
de ações espontâneas, ou de qualquer outro prática•••• é através do convivlo deles com oa
tipo de ação, pelo processo de reflexionamento. pala", A professora de Jardim da Infância afir­
Nessa sala de aula não há lugar para o reflexio­ ma: "O professor tem que estimular a criança
namento, mas apenas para o treinamento. Não ao conhecimento; passar o conhecimento.
há lugar para a apropriação de ações efetiva­ ficar à disposição da criança para Isso", O
mente executadas, mas apenas para a repetição professor, de terceiro grau, de Geografia Huma­
interminável de ações planejadas por outro na, diz: "O professor é o condutor.é o orienta­
(professor). A aprendizagem escolar foi transfor­ dor... é ele que dlreclona o processo em ai da
mada num grande processo de treinamento pelo aprendizagem... O papel do aluno é exatamen-
qual o aluno é pressionado (disciplina) continua­ te a prontidão ... Tem que ter ouvidos e ouvir
mente a resolver problemas que não são seus e com a via de acionar a dimensão Intelectual
a executar ações que não lhe dizem respeito. A dele para buscar respostas".
avaliação escolar, complementar desse proces­ Estas concepções pedagógicas subme­
so, afere se o aluno resolveu os problemas do tem incondicionalmente o aluno ao professor. A
professor e executou as ações para as quais hegemonia do aluno é derivada da, e somente
não nutre qualquer gosto. O processo de apren­ da, hegemonia do professor. Isto significa que,
dizagem escolar não passa de um grande frente ao aluno, o professor goza de absoluta
processo de alienação; processo este eficiente hegemonia Ele mesmo, porém, está hierarquica­
e eficaz na medida em que dispõe dos instru­ mente submetido à estrutura curricular, pedagó­
mentos para levá-lo avante e, sobretudo, dispõe gica, administrativa, etc, da escola. Ele está ar
de todo o tempo do mundo. para cumprir uma missão: reproduzir a ide0lo­
E o professor, como se comporta frente a gia. Remeto, aqui, o leitor aos crítico-reproduti­
esta situação? Será que é surpresa o que eu vistas, aos críticos destes críticos, etc, para dar
vou dizer? O professor professa uma epistemo­ conta desta questão que, aqui, nã.o pode ser
logia (Becker, 1992), mais inconsciente do que desenvolvida (embora a Epistemologia Genética
consciente, plenamente adequada a esta ordem tenha respostas próprias para isto, não pode
de coisas. Uma epistemologia que não só serve ignorar as análises pertinentes da Sociologia
de pano de fundo para todo este descalabro Crítica). A epistemologia que constitui o pano de

50
fundo desta pedagogia, e a legitima na con­ prática), treinando os professores para aderirem
cepção de conhecimento no cotidiano escolar, a ela. O treinamento leva o professor a assumir
é a empirista. Esta epistemologia aparece, como um fazer, uma prática, sem a compreensão, sem
vimos acima, das mais diversas maneiras, nos a teoria que lhe dá sentido. ora, basta um breve
depoimentos dos docentes, tais como: "O aluno olhar na direção do passado para tomar cons­
é como 8 anilina no papel em branco, que a ciência dos resultados desta praxe: o sistema
gente tinge, passa para o papel; o aluno antigo absorve o novo, desintegrando o signifi­
assimila, elabora, coloca com as próprias cado deste. Em palavras mais simples: tudo
palavras"; ou este: o conhecimento dá-se continua como estava, com tendência a piorar...
"penso que sempre via cinco sentidos, de salvo trabalhos individuais ou de pequenos
uma ou outra maneira, ou lendo, ou participan­ grupos que têm criado uma dinâmica própria e
do, ou desmontando algum obJeto..."; ou, que resistem ao descalabro geral que atingiu a
ainda: o conhecimento "se dá à medida que produção do conhecimento escolar.
as coisas vão aparecendo e sendo Introduzi­ Nesta época em que as definições - ou as
das por nós nas crianças .•••. espertalhonas indefinições - de políticas educa­
cionais apontam para a construção de prédios
***
(CIEPs, CIEMs.. CIACs, verdadeiros "cabos
eleitorais· como os definiu seu idealizador), ou
Como vimos, a educação precisa ser para uma pretensa "revolução educacional
transformada não apenas no que concerne às concentrada num tal de Calendário Rotativo, ou,
relações de sala de aula - micro-mundo onde se ainda, outras megalomanias do gênero que
estruturam as relações pedagógicas por exce­ assolam a educação no país, absorvendo gigan­
lência. Precisa ser re-estruturada, também, no tescos recursos, temos que reagir com toda a
que concerne à formação dos professores. força e apontar o palco onde acontece efetiva­
Como pode um professor reconceber as rela­ mente o fenômeno educacional e 'para onde
ções pedagógicas de sala de aula se ele mes­ devem convergir os esforços que podem produ­
mo é vítima de uma visão precária, empirista, da zir modificações consistentes no panorama
matéria prima de seu fazer - o conhecimento. educacional: a sala de aula e a condição prévia
Como pode ele ,ropor e praticar a dialetização de seu funcionamento, o professor com uma
das relações entre professor e aluno, entre visão interacionista, construtivista, do ser huma­
ensino e aprendizagem, entre saber constituído no em geral e do conhecimento em particular -
e saber constituinte, entre estrutura e função, visão esta capaz de suportar a realidade trazida
entre Ciência e acontecimentos factuais... se ele para dentro da sala de aula pelo aluno e trans­
mesmo é vítma de uma visão de mundo antidia­ formá-Ia em matéria prima da ação pedagógica
lética? Como pode ele conceber o conhecimen­ visando, antes de qualquer coisa, a construção
to como uma construção se sua base epistemo­ das condições prévias de todo conhecimento e,
lógica é anticonstrutivista, antiinteracionista? a fortlorl, de toda aprendizagem.
Para reverter um quadro educacional Ao redor destes fatores é que deve girar
qualquer, com o qual não se concorda, costu­ todo o aparato educacional - e não ao redor das
ma-se propor uma "nova· prática (não confun­ próximas eleições.
dir com práxis, relação dinâmica entre teoria e

* * *

Referências blbllográglcas

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51
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Alegre: Pós-graduação em Educação I FACED I
UFRGS, 1991. (Diss. Mestrado).

• • •

Fernando Becker é Professor da Faculdade de Educação e Coordenador do


Curso de Pós-Graduação em Educação da Universidade Federal do Rio Grande do Sul.

52
ReconstruçoEt§;�crR\lE!r��n,��
. . PQm ªYélnç(j S :
interdisciplin�riªªd�. ·
. . .

TEAEZINHA MiR�VXtijisFtÔRES

Pesquisar com base na Epistemologia plinarmente. O próprio Piaget, em entrevista com


Genética de Jean Piaget, cedo ou tarde, signifi­ Jean-Claude Bringuier (1977) afirmou:
'
ca "interdisciplinar"; isto é, o pesquisador
piagetiano que bem compreendeu as constru­ [O senhor crê na investigação solitária?]
ções de conhecimento da Escola de Genebra e
delas faz uso adequado, confronta-se necessa­ - Ah não! Necessitam-se contactos, e sobretu·
do os que nos contradigam. E ademais, se
riamente com as diferentes áreas de conheci·
necessita uma equipe. Creio na investigação
mento: Lógica, Matemática, Física, Biologia,
interdisciplinar, creio na investiga�ão coletive.
Antropologia, Psicologia, Sociologia, Lingüística,
(p.44).
Educação.
Este artigo, além de tornar públicas as Foi o que Piaget logrou alcançar com
construções interdisciplinares da autora, preten­ seus colaboradores da Escola de Genebra.
de refletir sobre esta característica marcante da Quanto mais não seja, a própria biografia de
personalidade e da obra de Jean Piaget - um Piaget (biólogo, com tese de doutorado em
"interdisciplinador" por excelência. Analisando Zoologia) atesta sua conduta interdisciplinar.
tanto a biografia quanto os procedimentos
piagetianos, pode-se resumí-Ios na sua expres­ Simultaneamente com o trabalho de
são mais genuína: "reconstruções convergentes pesquisador, Piaget desenvolve uma intensa e
com avanços". O que significa esta afirmação, polifacética atividade docente: enaina psicolo­
no contexto da obra de Piaget, é o que se gia da criança no Instituto Jean-Jacques Rous­
pretende refletir aqui. seau; filosofia das ciências e história do pensa­
mento cientifico na Faculdade de Ciências da
Universidade de Genebra; sociologia no Institu­
to de Ciências Sociais da mesma Universidade;
Introdução - como Plaget Interdlsclpll-
psicologia, sociologia e filosofia das ciências
nou
na Universidade de Neucháte/. O que nos
interessa ressaltar aqui é a variedade de disci­
Em se tratando de "construção do conhe­ plinas ministradas - não se pode esquecer sua
cimento", a área de abrangência da Epistemolo­ formação básica em biologia nem seus amplos
gia Genética tende a abrir possibilidades, tanto conhecimentos no campo da lógica. Este fato,
em compreensão quanto em extensão. Não é que traduz sua vocação epistemológica expres­
exagero afirmar, pois, que também (e talvez sa em múltiplas ocasiões, explica também a
sobretudo) o tema da "interdisciplinaridade"1 interdisciplinaridade, que é uma das constan­
(ID) tem lugar de destaque no sistema piagetia­ tes d� toda a obra de Piaget. .
(COLL e GILLIÉRON in: LEITE, L.B. e outros
no. Digo sistema, uma vez que as diferentes
Piaget e a Escola de Genebra, 1987, p.21).
teorias construídas por Piaget formam uma
totalidade organizada, aberta e dinâmica. Ora,
BATTRO (1969) relata uma pequena
ao fazer esta afirmação, já estou sustentando
biografia de Piaget, na qual apontá seus mes­
que o pensamento piagetiano seja interdiscipli­
tres - grandes nomes da época: Arnold Rey­
nar. Também o foi seu procedimento. A Escola
mond (Lógica, Universidade de Neuchâtel);
de Genebra, fundada por Piaget, sempre funcio­
Lipps e Wreschner (psicologia em Zurich) ;
nou (e quero crer que ainda funcione) interdisci-

EDUCAÇÃO E REALIDADE, Porto Alegre, 18(1) :53-60, jan/jun. 1993 53


Bleuler (psiquiatria); Lalande e Binet (Paris); ·Isso o conduziu ao estudo das ações
Claparede (seu editor, de quem foi colaborador das crianças, dai surgindo sua teoria a respeito
no Instituto J.J. Rousseau). Sucedeu a Merleau­ do nascimento da inteligência (com �íveis
-ponty na cátedra da Sorbonne. Tendo inaugu­ aplicações à educação e à re-educação� (Op.­
rado, em 1955, o ·Centre International d'Episté­ cit., p.2).
mologie Génetique·, em Genebra, nele imprimiu Neste particular, incluimo-nos' entre os
a atitude interdisciplinar na pesquisa. Diz Battro: brasileiros que pensam ter bem compreendido
·Este centro tem funcionado sem interrupção a obra de Piaget e tentam realizar ·reconstru­
desde então e se converteu, no momento atual, ções convergentes com avanços· em pesquisas
numa das equipes interdisciplinares mais reno­ como nossa tese de doutoramento (FLORES,
madas do mundo. Piaget convida anualmente 1984) ou como a atual pesquisa sobre ·Meninos
destacados investigadores por um período e meninas de rua o que sabem e como pen­
-

acadêmico e propõe um tema comum de traba­ sam· (BECKER, FLORES e Outros, 1989-92), de
lho. Ao finalizar o ano, reúne em um Simpósio caráter Interdisciplinar.
uma dezena de eSj)9cialistas com o fim de
discutir os resultados2 (obra cito p.12)
RAMOZZI-CHIAROTTINO (1984) chama a ·Reconstruções convergentes com
atenção para o lugar da obra, piagetiana na avanços·: como os plagetlanos Interdlsclpll­
História das Idéias, partindo "CIos pré-socráticos nam
e chegando a Kant - delineando o ·Kantismo
evolutivo de Jean Piaget·. As já citadas entrevistas que J.C. BRIN­
GUIER (1977) realizou junto a Piaget e aos seus
Entendemos a obra de Piaget como uma discípulos em Genebra esclarecem em grande
retomada da problemática kantiana que se parte como proceder interdisciplinarmente em
resolverá à luz da Biologia e da concepção do bases epistemológico-genéticas.
ser humano como um animal simbólico. Reen­
contramos ai, de um lado, as preocupações de J.C. Bringuier: "Es una reconsidaraclón por...
Kant e, de outro, aquelas de Cassirer, o mais
ilustre dos neokantianos (Op.cit., p.29). J. Piaget: "Reconstrucclón. Y entonces ensa­
guida se ve que el paralelismo completo con lo
Fui aluna desta piagetiana brasileira E' que sostengo en aI terreno deI desarrollo
posso atestar o quanto ela vem se preocupando cognoscitivo, en fln todo conoalmienta, todo
em clarificar o verdadeiro sentido da obra de progreso de nuestra Inteligencla, toda transfor·
Piaget, como o fez ao escrever um livro (RA­ mación da la inteligancia, as siempra una
MOZZI-CHIAROTTINO, 1988) mostrando o reconstrucción endógena de datos exógenos
"imprescindível· para bem compreender Piaget. apartados por la exparlencla.
·Entre os preconceitos que advieram de
variadas análises da obra de Piaget, impedindo
J.C.B. Siempre lo que Impres/ona en ustedes
es esa necesldad parmanente de coherencia,
sua correta compreensão, figuram p.ex. o de
da vincular las cosas entre alies de una mana­
que ele teria sido um pedagogo ou um psicólo­
ra casi...
go do desenvolvimento e o de que teria dedica­
do sua vida ao estudo da criança (...) Piaget, J.P. Si en la vida uno es primaro biólogo y
como ele próprio acentuou muitas vezes, almeja­ luego. apistemó/ogo, no hay razón para no ser
va elaborar uma teoria do conhecimento em coherente. No son dos compartlmientos. Son
bases biológicas· (p.1). los mlsmos problemas. La Inteligencia es una
Partindo da observação da natureza, das adaptaci6n ai media exterior, como toda adap­
regularidades nos múltiplos fenÔmenos, tentou, taci6n biológica". (Op.clt., 1'.198).
na Zoologia e na Botânica, chegar à compreen­
são das leis mais gerais. Por outro lado, neste Então se pode delinear aqui' o caráter
processo de abstração , estudou e lecionou interdisciplinar das pesquisas piagetianas como
filosofia, sempre perseguindo a vontade de ·reconstruções· nas quais, há uma necessidade
construir uma teoria do conhecimento em bases intrínseca permanente de coerência das partes
biológicas. Esta construção não se deu absolu­ com o todo. Não há fragmentação (reducionis­
tamente no recÔndito de um gabinete mas nos mos) mas sempre interação. O construtivismo
pátios das escolas, nas salas de aula, ao ar interacionista de Jean Piaget (ele próprio, bio­
livre, quando fez suas observações sobre o graficamente) derrama-se sobre os procedimen­
comportamento humano. tos do Centro de Epistemologia Genética que
fundou em Genebra, como já foi citado anterior-

54
mente. logfa con é/.

Em outras entrevistas, pode-se c�servar J.C.B. - Yahora?

esta característica interdisciplinar em Guy Celle­


rier (que licenciou-se em Biologia e doutorou-se
G.C. - Me oeupo de clbernética(...) La dascri,r
clon moderna deI desarrol/o de la �mbriogenia
em psicologia, com Piaget); Rafael Carreras
as una dascripción que, en ai fondo, dascrlbe
(físico e colaborador de Piaget em Genebra); a un aut6mata. Ocurre exactamente como
Howard Gruher (professor de psicologia em New podrla oeurrlr en un ordenador con un progra­
Jersey). ma preestablecido4. ( ...)

H.G. (. .. ) es mui semejante ai proceso con el R.C. - Como ({slco, ml papel principal as expli­
que 131 n ino . constuye su mundo, sus pensa­ car ciertas problemas flslcos que tienen re/a­
mientos, sus ideas; porque 131 nio no aprende clon con la epistemologIa (...)
simplemente lo que 131 adulto 113 dics, reinventa.
Es una especie de creatívidad, y Piaget es 131 G.C. - Para ml, la psicologIa recién empezó a
psicólogo dei mundo que más hizo para desar­ separarse de la filosofia, en todo caso, des­
rol/ar una teoria de la creatividad. pués de Plaget, con Piaget". (Citações das pp.
131 a 148).
J.C. Bringuier - Ouiere decir que es doblemen­
te interesante para usted: Haveria muito mais a citar, por ex., das
entrevistas com llia Prigogine, um dos maiores
H.G. SI, hago entrevista con él, hojeo los
representantes da nova física, especialista em
archivos Piaget, hablo con su equipo y soy
termodinâmica e colaborador de Piaget - assim
miembro dei equipo (...) Se necesita siempre
como Seymour Papert, do M.I.T.
buscar uma slnteses de todo. Pera la slntesis
No entanto, a intenção aqui é apenas
prcgresa, se enriquece y por lo tanto lo que
hizo antRs debe rehacerse. Y cada tanto retoma apontar para as possibilidades que a Epistemo­
sus antig/.,;os problemas ( ...)" (Op.cit. p.126). logia Genética apresenta à investigação interdis­
ciplinar. A seguir, pretende-se examinar alguns
Então aqui pode-se observar como se textos de Piaget que tratam especificamente das
trabalha nas equipes de Genebra. O quanto as "reconstruções convergentes com avanços·
construçoes e reconstruções dos sujeitos estu­ para aproximá-Ias do tema ID.
dados servem como modelo para os procedi­
mentos dos pesquisadores em buscar sínteses
num todo que não se reduz ao fenômeno estu­ Interdlaclpllnarldade: a concepção de
dado mas que se reconstrói e avança no conhe­ Plaget
cimento deste mesmo fenômeno - em "recons­
truções convergentes com avanços·. En rasumen, la epistemologIa contempo­
ránea constituye cada vez más un campo de
J.C.B. - Ouisiera que me dijeran, los dos, cómo
invastigaclonas a um tiempo cientfficas y
I/egaron a trabajar com J. Piaget. Rafael Carre­
aut6nomas, que vendrlan a constituir una
ras - Yo habia hecho ({sica en Zurich y quería
disciplina sewada, reconoeida y debidamente
hacer como complemento una licenciatura em
rotulada, si no fuera, debido a su natura/eza
BiologIa, en la que estaba inclulda en esa
misma, fundamenta/mente interdisciplinar.
época la psicologIa. Por eso fui a los cursos
(Plaget, Tratado de lógica y conoeimlento
dei profesor Piaget (. ..) Entonces fui a veria y 113
cientifico, p.11).
dija "estas cosas me interesan". Y él me dijo:
"Venga 131 lunes". Vine 131 lunes (supe que 131 A concepção que Piaget deixou a respeito
lunes era la reunion dei Centro de Epistemo/o­ de ID está intimamente ligada ao que ele enten­
g{;i . Genética). deu por eplst&mologia Na verdade, torna-se
·
difícil separar estas concepçOes em Piaget, tão
Guy Cel/erier - (...) Yo escribia una tesis sobre imbricadas. elas se apresentam..Ainda mais:
los fundamentos dei Derecho Internacional tendo Piaget concebido a epistemologia com um
Público y lo vela como un problema de episte­ caráter "genético·, a idéia de desenvolvimento
mologIa. LeIa a Kelsen, que es 131 gran filósofo
estará sempre incluída. Portanto, a idéia de
dei Derecho dei Sigla, y él citaba Piaget.
·construção· caracterizará sempre as concep­
çOes epistemológicas piagetianas.
(..) EI nombre me decfa algo vagamente. Enton­
ces fui a escucharbo, e hice una licenciatura
en biologIa , y luego un doctorado em psico-

55
Desde esse ponto de vista, poderfamos (1973) tratou destas reconstruções a partir da
definir a epistemologia genética de uma manei­ hierarquização das disciplinas e dos possíveis
ra mais ampla e mais geraf, como o estudo dos contatos entre elas, ou como ele chamou,
mecanismos do aumento dos conhecimentos. "noções fundamentais convergentes· (Yer
Seu caráter próprio seria então anafisar - em
FLORES, T.M.V., 1991).
todos os planos que interessem à gênese ou à
O progresso interdisciplinar existiria,
elaboração dos conhecimentos cientfficos - a
passagem dos estados de conhecimento portanto, em função do emprego dessas diferen­
mfnimo aos de conhecimento mais avançado. tes noções pelas disciplinas afins, pois é em
(PIAGET, BETH e MAYS. Epistemologia Genéti­ torno destas "realidades comuns", que se
ca e Pesquisa Psicológica, 1974, p.20). agrupam e reagrupam os problemas interdisci­
plinares.
Ora, o construcionismo piagetiano dá Talvez certos cientistas não aceitem este
conta dessas passagens do mais simples ao ponto de vista, podendo duvidar tanto destas
mais complexo, isto é, desses mecanismos de noções (significação) quanto sustentar que seu
construção e reconstrução em patamares de processo intelectual se desenvolve em direções
abstração cada vez mais avançados. Relativa­ opostas. Para estes, o estudo interdisciplinar se
mente às ciências entre si, ID, tais mecanismos situaria num nível mais baixo de abstraç�o. Elas
serão "comuns". No seu famoso ensaio "Pro­ aceitariam exatamente a abstração como "con­
blemas Gerais da Investigação Interdisciplinar e sequência e resultado" da investigação concreta
Mecanismos Comuns·, Piaget (1973) demons­ (Piaget, ao contrário, coloca a abstração como
trou conceber estas relações epistemológicas processo desde o inicio).
como "recombinações construtivas·, ou reorga­ Distingue-se a MD que ressalta as aproxi­
nizações. mações concretas da interdisciplinaridade, que
exige o nível de abstração que Piaget apresenta
o verdadeiro objetivo da investigação pois trata-se da investigação dos l'(I8C8rlismos
interdisciplinar é, portanto, uma reforma ou comuns entre disciplinas e não somente de uma
uma reorganização dos dom{nios do saber, por "simples colaboração·. O verdadeiro objetivo da
trocas que consistem, na realidade, em recom­ investigação interdisciplinar é, pois, uma re-fo­
binações construtivas (Obra cit., p.141).
rma ou re-organização dos domínios do saber -
por trocas que consistem em re-combinações
O caráter de "mecanismos comuns· que
construtivas (Piaget, Obra cit.1, p.141).
envolve estas "trocas· liga-se aos processos de
Remarcamos, pois, o sentido construtivista
abstração os mélis complexos. De fato, abstra­
e não reducionista da interdisciplinaridade em
ções mais simples, isto é, menos integradoras,
Piaget.
podem caracterizar mecanismos multi ou pluri­
A propósito desta perspectiva construtivis­
disciplinares. Mas quanto mais integrador for o
ta de Piaget,. destacam-se as seguintes idéias:
processo, mais complexa a abstração, portanto,
por definição as "recombinações sucessivas
Do ponto de vista dos pesquisadores,
com avanços·. Esta expressão, tão cara a pode ser útil dispor de elementos de compa­
Piaget, será desenvolvida por ele noutro ensaio: ração de uma.a outra disciplina - uma vez que
"Adaptação Vital e Psicologia da Inteligência· cada um é instrufdo na sua, a divisão dos
(1974). domfnios cientfficos em ciências humanas
São estes dois últimos textos citados que apresenta quafquer coisa de surpreendente e
pretendo analisar aqui. Este último, junto com até de inquietante (Op.cit., 2, p 129).
.

Biologia e Conhecimento (1973) e Comporta­


mento Motor da Evolução (1977), compõe a Piaget acrescenta que nas ciências huma­
trilogia que integra as pes�uisas sobre os nas estas interações entre disciplinaridade são
isomorfismos bio-psicológicos . A "adaptação muito fracas. Seria necessário bem delimitar os
vital·, isto é, doS seres vivos, é isomorfa à campos específicos antes de tentar atingir os
psicologia da inteligência, como o é a biologia e mecanismos comuns. Tal estudo. comparativo
o conhecimento ou o comportamento e a evo­ teria a forma de "trabalhos interdisciplinares·
lução. Piaget diz textualmente: "o equivalente (p.133). Em seguida, o autor dá o exemplo da
cognitivo da fenocópia é a abstração·. Ambos Sociologia.
processos são considerados "reconstruções Esta, nao é como já disser�m alguns, a
convergentes com avanços·. síntese das ciências sociais, pois tem um objeto
Nos "problemas gerais da investigação específico.
interdisciplinar e mecanismos comuns·, Piaget Outro aspecto é o da metodologia do

56
"processo Interno do método". Por exemplo: a antes de uma suficiente elaboração teórica. As
antropologia, pela sua própria natureza e méto­ ciências humanas não podem deixar de lado a
dos, tende à interdisciplinaridade. pesquisa fundamental, tentadas a apenas apli­
Finalmente, Piaget faz abordagens bem car conhecimentos. "Seria necessário insistir
teóricas: no domínio das ciências "avançadas" nas origens destas aplicações e demonstrar que
como as ciências fisicas, as aplicações mais com freqOência trabalhos os mais desinteressa­
frutíferas vêm de trabalhos que, na sua origem, dos dão lugar a iniciativas práticas mais adequa­
não seriam absolutamente gerais, mas como das" (Op.cit., p.158).
solução de problemas rigorosamente teóricos
(Op.cit., p.156).
No domínio das ciências humanas, é Temos então:
preciso atentar para aplicações prematuras,

DHerent .. dlaclpllnas mecanismos


especHlcamente delimIta­ fr o n te i r as comuns
das ID

Como In(ter)dlsclpllnar nas condições Uno de Macedo, foi realizado numa favela de
de peaqulaa que temos: uma trajetória trans­ Porto Alegre, nas dependências de um Centro
pesaoal de Saúde Comunitário e de caráter i[l1:erdiscipli­
nar, onde convivi por dois anos com profissio­
Afirmei no início deste éirtigo que todo nais da Medicina Social, psiquiatras, assistentes
pesquisador piagetiano confronta-se, cedo ou sociais, higienistas e sociólogos. Cada caso
tarde, com o caráter interdisciplinar da Epi,>te­ estudado foi discutido em equipe, de maneira
mologia Genética. No meu caso, tomei consciên­ interdisciplinar; visitas foram feitas regularmente
cia deste fato já em 1973, quando iniciei pesqui­ às famílias, junto com o trabalho específico de
sas sob a coordenação do· neurologista argenti­ pesquisa, segundo a metodologia piagetiana.
no, então professor visitante da UFRGS, Dr. Após o doutorado, inseri-me na equipe
Antonio M. Battro. Ele fora discípulo de J. Piaget interdisciplinar do Projeto PERICAMPUS, sob a
e P. Fraisse e viera ao Brasil fundar, em várias coordenação da Prof. Merion C.Bordas. Neste
universidades, "Centros de Estudos Cognitivos", trabalho, além de questões metodológicas de
de caráter interdisciplinar, nos moldes de Gene­ pesquisa (pesquisa ação, de intervenção) con­
bra. Fui co-fundadora do GRECPA6 e também frontei-me também com questões ideológico-pa­
do atual LEC7 , que deu continuidade aos rtidárias. Estas interações conduziram-me ao
trabalhos. Coordenávamos pesquisas sobretudo questionamentos6cio-político-antropológicoque
psicofísicas, não apenas retestando estudos veio a ampliar o meu quadro de referencias
piagetianos em diferentes meios sócio-culturais interdisciplinares.
(escolas públicas, favelas) como também investi­ Passei, então a invustigar, além da temáti­
gando outras variáveis (mudanças de escalas, ca piagetiana, especificamente o tema ID. Iniciei
faixas etárias, profissões, etc.). Os resultados com professores de f, 'Z' e 3" graus, discutindo
destas pesquisas foram discutidos em Simpó­ com eles, simplesmente, a concepção de ID que
sios nacionais, dos quais participei em São apresentam. Tomando como referencial a con­
Paulo, Araraquara, Gramado (com a presença cepção de Piaget e da Escola de Genebra,
de Paul Fraisse) e Rio de Janeiro (com a pre­ ampliei a discussão a nível nacional (1989-90).
sença de Barbal Inheider). Resumidamente, encontrei três níVeis de cons­
As discussões interdisciplinares reuniam trução do conceito de ID:
sempre, além de psicopedagogos, matemáticos,
físicos, médicos, neurologistas, engenheiros, I. ausência de preocupação por ID,
dentre outros. Esta minha formação deu-me tanto no trabalho dOCente, quanto
lastro para avançar qualitativamente em "recons­ em pesquisas. "Eu, a equipe".
truções convergentes com avanços". Meu
doutorado (Flores, 1984) sob a orientação do Dr. 11. nível intermediário, no qual os sujei-

57
tos pensam ter uma concepção de interdisciplinaridade, até chegar a um estágio de
ID mas na ação pedagógica e na trans-disciplinaridade. Esta é definida pelo
pesquisa praticam multi- ou pluri-di­ entrevistado como a interação entre a teoria
sciplinaridade. produzida na universidade e a práxis pedagógi­
ca Suas idéias são bastante semelhantes às de
lU. nível interdisciplinar, tanto na do­ Grarnsci, quando afirma:
cência quanto na pesquisa: "nós, a "Criar uma cultura nova não significa
equipe". somente fazer a nível individual grandes desco­
bertas originais mas antes difundir de maneira
Encontrei, ainda um quarto nível, "Trans­ critica idéias já descobertas, socializando-as, por
disciplinar", do qual falarei mais adiante, e que assim dizer, delas fazendo bases de ação vital,
tenta reunir teoria e prática, para além da preo­ elementos de coordenação, de estruturação
cupação disciplinar acadêmica. intelectual e social. Que urna massa de homens
Com base nestes estudos prévios, montei seja conduzida a pensar de maneira unitária a
um projeto a nível de pós-DR, sobre "interdisci­ realidade presente é um fato filosoficamente
plinaridade na pesquisa"; que vim a desenvolver mais importante e original do que a descoberta
na Universidade Paris V, o qual passo a relatar por um gênio filosófico de urna nova v�dade
a seguir. que permanecerta patrimônio de c1rculos restri­
tos de intelectuais" (Antonio Gramsci - "U Mate­
rialismo Storico e la Filosofia de Benedetto
In(ter)dlsclpllnando entre 08 franceses Crocce").
Do meu ponto de vista, estas idéias de
Como bolsista da CAPES, realizei um Gramsci colocam não somente a questão do
estágio de Pós-DR junto à esquipe interdiscipli­ dualismo teoria-prática, como também a questão
nar de Sociologia da Educação da Université da relação entre cultura e educação, o que
René Descartes, Paris V, sob a coordenação do esteve presente no discurso do chileno Arzola.
Prof. Dr. Eric Plaisance, que veio a substituir Gostaria, para terminar, de apresentar a seguir
Viviane lsambert-Jamati nestes trabalhos. A as "reconstruções convergentes com avanços"
equipe discutiu, durante o ano letivo de outu­ que logrei abstrair do conjunto de interaçOes
bro/90 a Out/91, exatamente o tema que me que venho relatando até aqui.
propusera a desenvolver: interdisciplinaridade na
pesquisa. Por solicitação do CNRS (Centre
National de la Recherche Scientifique) todo Duvido, logo In(ter)dlsclpllno
pesquisador francês, neste período, envidou
esforços no sentido de produzir conhecimentos A partir do relato acima, onde me expus
de maneira interdisciplinar. Portanto, durante numa trajetória trans-pessoaJ, o que me resta
minha estada em Paris, tive oportunidades dizer sobre ilÍterdisciplinaridade (lD)? Em lugar
múltiplas de ampliar a visão de ID, junto a de grandes pretensões, dúvidas permanecem e,
etnólogos, antropólogos, biólogos, sociólogos, junto a elas, a consciência de nossas IimitaçOes.
filósofos, psicanalistas, dentre os quais destaca­ Penso que é esta dúvida e esta consciência o
ria Pierre Bourdieu e Jacques Derrida, cujos fundamento para todo trabalho interdisciplinar.
seminários acompanhei, procurando detectar o Durante quase vinte anos perseguindo a supe­
caráter interdisciplinar de seus trabalhos. ração destas dúvidas e a passagem para pata­
Prossegui a pesquisa sobre a concepção mares superiores de abstração e de consciên­
de ID através de entrevistas individuais, das cia, ID transformou-se já n'A CAUSA. Uma causa
quais destacaria três: com Eric Plaisance, que que se volta, necessariamentel para a abertura
deixou uma visão de ID ligada a currículo, desde do trabalho acadêmico tendo em vista uma
a escola materna� pré-escola, escola pública práxis pedagógica junto às classes populares.
fundamental, liceu e universidade; com Pierre Reunindo as informações retiradas destas
Bourdieu, que está publicada na revista "Ciência interações, "poderíamos agora dizer o que ID não
e Educação" nO 3, 1991, com Menga Ludke; e é (definição pela negação):
com Sergio Arzola, da PUC do Chile, que desejo
apresentar com detalhes aqui, pois desenvolve - ID não é uma simples colabOração entre
a concepção de trans-disciplinaridade de que pesquisadores de diferentes áreas de
falei acima. Segundo este autor, a universidade conhecimento;
do Chile passou por etapas de investigação que - ID não é uma "confrontação" entre as
vão desde a multi e pluridisciplinFlridade, a divergências multi-ou pluri-disciplinares;

58
- ID não é um jogo de forças donde são a "dúvida metodológica" como condição para
retiradas idéias principais de um lado e, ID. Não tomá-Ia, ID, como remédio para toda
simultaneamente, são enfraquecidas as paixão (sofrimento) da pesquisa: nada de certe­
do outro lado; zas, se existem dúvidas. Estou convencida que
- ID não é, por conseqüência, um jogo de esta é uma conduta interdisciplinar: indisciplinar,
dirigentes onde há vencedores e venci­ trabalhar com as dúvidas e as incerte:zas, este é
dos; o caminho para avançar no conhecimento. Em
- ID não é parecer nem conselho do mais linguagem piagetiana, poderia dizer que é a
sábio aos mais ignorantes desequilibração que conduz à tomada de cons­
ciência que permite a passagem para um novo
Contudo: patamar de abstração (reconstruções conver­
gentes com avanços).
- é preciso colaborar, isto é, "trabalhar Certamente, há momentos de impasses
junto" 'mas, como demonstra Piaget, sem (em francês, caminho sem sarda; em grego,
confundir aportes teóricos, distinguindo­ APORIA). Tais impasses são pois, "aporéticos",
,

-lhes bem as fronteiras e delimitando os onde a angústia toma o pesquisador "pela


objetos, determinando as intersecções e garganta". Estes momentos, para mim,.são os
os "mecanismos comuns�; mais ricos para ri'lobilizar esforços interdisciplina­
- é preciso confrontar, num verdadeiro res. Pais nada é mais fecundo do que uma
espírito de solidariedade científica, os "aporia" (sem caminho) no método científico
diferentes pontos de vista das diversas para conduzir o pesquisador ao encontro dos
áreas de conhecimento, colocando-se "porai" (os poros, os furos, as saidas)entre as
questões criticas e procurando as "inter­ franjas das disciplinas, as interfaces, os meca­
faces"; nismos comuns. A propósito, procure o leitor o
- Portanto, é preciso jogar com todas as estudo de Sarah Kofman "Comment.s'en sortir".
possibilidades e as divergências, procu­ Dei-me conta, durante a redação do meu
rando as superações das contradições, relatório de estágio Pós-DR, que ao ler a pala­
tendo em vista a proposta de Gramsci de vra "Interdiciplina" cometia o ato falho rle ler
atingir a um número cada vez maior de "indisciplina" (o que comentei com meus ami·
beneficiários da nossa produção acadêmi­ gos lacanlanos): estou certa que a indisciplina
ca. pode realmente conduzir a interdisciplinar, e por
esta razão tenho escrito in(ter)disciplinar nos
Ora, temos testemunhado no Brasil, uma meus textos. Esta seria a minha proposta, que
espécie de "finalismo soteriológico" com relação nada mais é do que uma tradução, com sangue
a ID. Esta, vem sendo tomada como a "pana­ latino, das práticas da Escola de Genebra.
céia" para todos os males da educação e da
pesquisa. TIVe a oportunidade de ressaltar, aqui,

.. * *

Notas

1, Para maior funcionalidade, preferimos adotar a 4, A propósito, leia-se a tese da plagetlana brasi­
sigla 10 (interdiscipllnarldade), leira Lés Fagundes (1986) e seus trabalhos no
Laboratório de Estudos Cognitivos da UFRGS,
2. Este mesmo procedimento foi utilizado por
Battro, na çlécada de 70, em vários Grupos de 5. Analisei estas reiaçOes isom6Ific8s num artigo
Estudos Cognitivos que funcionaram no Brasil (Flores, 1981) sobre "adaptação vital e adap­
- e aos quais devo a minha formação plagetla­ taçaO cognitiva". Outro texto furidamental para
na, a compreensão destes isomorfismos é "O
Nascimento da Inteligência na Criança" (Plaget,
3, Para Ramozzi-Chiarottino, ore-educação" é o 1979),
trabalho junto ao educando de refazer os
"caminhos necessários" (creados) a todo 6, Grupo de Estudos Cognitivos de Porto Alegre,
desenvolvimento dito "normal", UFRGS, que funcionou Interdiscipllnarmente de
1973 a 1979,

59
laboratório de Estudos Cognitivos, UFRGS,
Curso de Psicologia, de 1980 até a presente
data

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__o Interdlaclpllnarldade, epistemologia e currlculo. -' BETH, W. e MAYS, W. EpIstemologia Genética


Contexto a EcJucaçjo. Ijur, 4(15): 32-6, jul./set.1989. a Pesquisa Psicológica. Rio, Freitas Bastos, 1974.

* * *

Tereslnha Maria Vargas Flores é professora da Faculdade de EducacAo da


Universidade Federal do Rio Grande do Sul.

60
A repre§�rltªçãôi"'félr1fU ..

e a educàçãópr��êscólar
: . ' :.: . -.:.:::: : . ,. < ...: . :"
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H ELENA VELI.. INHO CbRSO>

A escola e a pré-escola não podem des­ pesquisa de intervenção realizada com um


conhecer a natureza do conhecimento ou a grupo de crianças pré-escolares. Na parte final
evolução pela qual este passa. Não podem do artigo discutimos algumas conclusões da
desconhecer as características da criança que pesquisa, relacionando-as às considerações
atende. A inteligência da criança· em idade pré­ teóricas iniciais a respeito da representação.
escolar (2 a 6 anos) caracteriza-se pela possibili­
dade de . representar, o que significa que a ela
será possível falar, imaginar, brincar simbolica­ A Representação Infantil
mente. Os estudos de Piaget acerca da forma­
ção do símbolo deixam clara a importância des­ Para Piaget, há representação quando, no
sas formas de representação de que se utiliza a sistema de significações que constitui toda
criança em sua interação com o mundo. A inteligência, o significante se difeFencia do
questão da representação infantil torna-se, pois, significado. É a função simbólica ou semiótica,
essencial para a teoria e a prática pedagógicas constituída ao final do período sensório-motor,
a nível da pré-escola. que garante esta diferenciação, permitindo que
Este artigo baseia-se em estudo desenvol­ a criança evoque os mais diversos significados
vido por nós nos anos de 1988 a 1990. Tal através de significantes diferenciados. Com a
estudo, que envolveu uma pesquisa empírica, função simbólica torna-se possível para a crian­
teve como foco central o tema da representa­ ça imaginar, falar, brincar simbolicamente, imitar
ção. Não obstante, a abordagem desta questão na ausência de modelos.
de ordem mais psicológica teve como finalidade Portanto, a inteligência da criança em
última a questão pedagógica. Relacionamos os idade pré-escolar caracteriza-se pela possibilida­
estudos de Piaget sobre a representação, de um de de representar. A interação da criança com
lado, e a educação, de outro, buscando um o mundo passa a se dar agora não mais apenas
aprimoramento da prática pedagógica pré­ no plano da ação, mas principalmente num nível
escolar, visando especialmente a pré-escola que simbólico, através de formas de representação
atende crianças de classes populares. como a fala, o jogo,· a imitação.
A partir da busca de uma compreensão Definida a representação, é preciso situar
mais clara da representação infantil, argumenta­ sua importância no quadro geral do desenvolvi­
mos no sentido de ser fundamental que a mento cognitivo, o qve, de certa forma, é conti­
educação pré-ecolar entenda e valorize as nuar a defini-Ia.
formas de representação da criança, caso esta Em primeiro lugar, é preciso resgatar o
educação pretenda estar comprometida com a caráter cognitivo das atividades'representativas,
construção do conhecimento. especificamente o jogo simbólico e a, imitação -
Sobre a questão da representação restri­ condutas muito características da criança em
gimo-nos, aqui, à discussão da natureza da idade pré-e!icolar.
atividade representativa bem como do papel da Sabemos que, para Piaget, conhecer é,
representação no quadro geral do desenvolvi­ em qualquer fase do desenvolvimento, assimilar
mento cognitivo. Abordamos a seguir estudos e acomodar. No período em questão (pré-opera­
recentes que apontam para a possibilidade de tório) a atividade assimiladora e al?pmodadora
existir um déficit cognitivo, entre as crianças de realiza-se na brincadeira simbólica e na imita­
classe baixa, situado exatamente no campo da ção. Portanto, estas atividades representativas
representação. Na terceira e quarta seções são formas de conhecer; são instrumentos de
apresentamos alguns dados empíricos sobre a que a criança se utiliza para compreender e

61
EDUCAÇÃO E REAUDADE, Porto Alegre, 18(1):61-70, jan/jun. 1993
apreender o real. Longe de considerá-Ias como assimilação operatória.
alheias à cognição, a pré-escola precisa, pelo Importa ainda abordar uma segunda
contrário, valorizar estas condutas enquanto questão que decorre naturalmente da anterior,
atividades que fazem parte do desenvolvimento dizendo respeito à interdependência entre o
cognitivo, isto é, enquanto efetiva construção de desenvolvimento da representação e o da
r.onhecimento por parte da criança. operação.
Então, se a assimilação e a acomodação Piaget esforçou-se por demonstrar que as
são os dois pólos de uma interação entre o operações têm sua origem nas ações. Não é da
organismo e o meio, jogo e imitação atestam linguagem, nem da percepção envolvida no
também esta interação, que é condição de todo simbolismo acompanhado de imagens, que
funcionamento intelectual. Está claro que é o deriva a operação.
oesequilíbrio em · favor da assimilação ou da Consideremos a sucessão de três níveis
acomodação o que define, respectivamente, na evolução do conhecimento - o n!vel da ação
jogo e imitaçãe), mas será O equilíbrio progressi­
,

que caracteriza o período sensório-rnotor, o da


vo entre essas duas tendências que resultará na representação (ou pré-operação), com a qual se
reversibilidade característica das operaçOes. inicia o período representativo, e a operação (ou
Somente uma concepção dialética de desenvol­ representação tornada reversíveQ. Se quisermos
vimento cognitivo, como é a piagetiana, permite demonstrar em uma figura a origem da Ôp9ra­
compreender que a assimilação egocêntrica, ção será preciso traçar uma seta saindo da
típica do jogo simbólico e do pré-conceito, é, ao ação e não da representação, embora mediada
mesmo tempo, obstáculo e preparação para a por esta, como veremos adiante:

AÇÃO REPRESENTAÇÃO OPER�ÇÃO

Todavia a representação, se não explica Entre o nível sensório-rnotor e o das operações


a gênese da operação, explica, sem dúvida, o há, de 2-3 a 6-7 anos, um nível que não é de
desenvolvimento que leva até ela. Piaget (1978) simples transição, pois ao mesmo tempo que
esclarece que as açOes sensório-motoras não se progride em relação à ação imediata, que a
transformam diretamente em operações quando função semi6tica permite interiorizar, é também
finda o período sensório-motor, sendo necessá­ assinalado por obstáculos novos, já que são
rio todo um período evolutivo, caracterizado precisos 5 ou 6 anos para a passagem da ação
justamente pelas condutas representativas, para à operação. O primeiro obstáculo à operação, e
que tal transformação ocorra. Entre a atividade que vem a ser a própria condição da formação
sensório-rnotora e as formas operatórias reversí­ desta, consiste na necessidade de reconstituir
veis do pensamento há, servindo corno ponte nesse plano novo, que é o da representação, o
entre ambas, a representação simbólica (no que já fora adquirido no plano (ia ação .

sentido, indicado por Piaget, 1978, de evocação Se recorrermos à mesma figura para, com
simbólica das realidades ausentes). As açOes uma seta, apontar agora o desenvolvimento
terão de ser interiorizadas e reconstruidas pela das operações não será possivel traçá-Ia direta­
representação antes de se tornarem reversiveis mente do pl'lmeiro nível ao terceiro, -pois, corno
(operaçOes). já foi dito, toda uma evolução representativa é
Na passagem da ação à operação distin­ necessária e anterior à transformação das ações
guem-se, de fato, três n!veis, e não apenas dois. em operaçOes:

62
AÇÃO REPRESENTAÇÃO OPERAÇÃO

ação ação Interlorlzada ação


prática e reconstltufda reversfyel

��

Vê-se que a ação, por ela mesma, não do aesenvol'vimento Intelectual.


garante a conceituação. Esta passa pela recons­ Caso a construção da capacidade repre­
trução representativa da ação. sentativa não seja assegurada, poderá se consti­
Queremos dizer que a representação é tuir um bloqueio no desenvolvimento cognitivo,
condição para a operação, porque é a capacida­ como mostram as pesquisas de Oongo Montoya
de de representar que possibilita a tomada de (1983, 1988).
consciência da organização. do mundo, na Considerando o número massivo de
medida em que ela torna possiveis os quadros crianças de classes populares que fracassam na
que englobam simultaneamente os fatos passa­ escola, e considerando que tal exclusão perpe­
dos, presentes e futuros. Especificamente, tua a condição de marginalidade destas mes­
queremos chamar a atenção para a natureza da mas crianças, este autor procurou compreender
atividade representativa. A representação não a maneira como o meio social próximo interfere
envolve apenas a percepção. Enquanto recons­ no desenvolvimento mental da criança marginali­
trução de realidades ausentes, ela não copia zada. Investigou por que mecanismos o meio
tudo o que seria o dado, mas faz abstraçOes, social e cultural estaria operando no sentido de
onde sínteses do real são construídas. favorecer ou dificultar suas possibilidades cogni­
Sendo ass im, a representação participa tivas.
da atividade estruturante e organizadora própria Conforme aferiu em seu estudo, funda­
da inteligência. Se o símbolo tem como condi­ mentado teoricamente na Epistemologia Genéti­
ção de existência os esquemas sens6rio-moto­ ca Piagetiana, o meio social próximo dessas
res previamente coordenados, por outro lado os crianças é bastante solicitador quanto a uma
sknboIos são, eles próprios, esquemas que inteligência prática, quanto a um "saber fazer".
também se coordenam progressivamente e que O contexto de sobrevivência premente exige
se constituem na condição prévia da reversibili­ delas o desenvolvimento de uma grande capaci­
dade operatória. Vê-se que valorizar a represen­ dade para lidar. com o meio imediato, de modo
tação infantil é, também, valorizar o desenvolvi­ que saem-se bem em tarefas como pr�parar
mento da operatoriedade, pois as atividades alimentos, cuidar de irmãos menores, comprar
representativas contribuem para a estruturação ou conseguir alimentos em feiras ou mercados,
operatória do pensamento. Na verdade, todo o etc. Desta forma, estas crianças desenvolvem
desenvolvimento da representação vai desembo­ uma capacidade para respeitar as regularidades
car na operação, não deixando de sér o primeiro e propriedades da natureza, não apresentando
o preparo da segunda A operação nada mais é problemas em relação à construção do real ao
do que a representação tornada reversivel. nivel de suas ações práticas. O problema apare­
ce quando se trata de conceitualizar, de organi­
zar estas ações ao mel da representação. Isto
A Dificuldade de Representar. Conslde­ porque o meio próximo dessas crianças não
raç6ea Sobre a Caracterização Cognitiva da solicita, justamente, a reconstituição rePresenta­
Criança de Classe Popular tiva das aç�s vividas. Em sua investigação, o
pesquisador pôde constatar que sÃo raras as
Se entendemos que as estruturas sens6- ocasiOes em que se conversa com a criança e
rio-motoras da ação não se prolongarão em se pede a ela que relate suas ações 8 experiên­
operações senão depois da reconstrução des­ cias realizadas. Ao mesmo tempo, seus interes­
sas estruturas práticas em estruturas de pensa­ ses simbólicos não são compartiltiâdos pelos
mento, entendemos também que a reconstrução adultos que a cercam. Não há espaço para que
representativa precisa ser garantida, pois s0- elas comuniquem suas fantasias, sonhos, senti­
mente assim estará assegurada a continuidade mentos e opiniões. A comunicação é quase

63
ausente, já que a criança restringe-se a obede­ quanto à própria possibilidade de conhecer já
cer as regras e normas estabelecidas, dada a que, "no entender de Piaget, vivência não é
valorização, pelo grupo familiar, de um compor­ sinônimo de conhecimento (...) não há conheci­
tamento obediente e passivo por parte da mento sem conceitos" (Ramozzi-Chiarottino,
criança 1988. p. 3,4).
Tal configuração do meio social próximo Como a noção de déficit é .bastante
não poderia deixar de constituir limites à estrutu­ polêmica, é importante deixar clara a concep­
ração cognitiva dos sujeitos nele inseridos. A ção de déficit que estes autores trazem. Tal
ausência de trocas a nível simbólico ocasionaria, déficit não seria um "traço essencial", uma
então, problemas na capacidade representativa característica do indivíduo e do grupo, mas é
desses sujeitos. entendido como um momento mais ou menos
Quanto aos. fatores que estariam determi­ cristalizado do processo de evolução cognitiva.
nando tal caracterização deste meio social, não Nas palavras de Ramozzi-Chirottino, estas
escapa ao autor a compreensão, desde uma crianças não são deficientes, mas estio defi­
perspectiva mais sociológica, de que este meio cientes. Importante nesta definição de déficit é,
é historicamente' determinado. A partir desta portanto, a noção de que ele representa um
ótica, que leva em conta a estruturação classista estado passível de ser alterado. Se a deficiência
da sociedade, entende-se a ausência de trocas é ocasionada poc: uma falta de solicitação no
simbólicas: que diz respeito a trocas simbólicas, uma solici­
tação adequada pode revertê-Ia. É o que de­
o processo de inserção no mercado de traba­ monstra Oongo Montoya (1988) em pesquisa
lho em condições extremamente desfavoráveis, onde realizou uma intervenção com vistas à
que caracteriza a condição de marginalidade, reconstrução da capacidade representativa de
limita não somente a disponibílídade de tempo crianças que apresentavam este déficit.
e energia para a atenção dos filhos, mas
A questão da existência ou não de déficits
também toda possibílídade do seu questiona­
cognitivos em crianças' marginalizadas determi­
mento e, consequentemente, a reflexão pelo
sujeito marginalizado sobre o conjunto das
nando sua dificuldade de aprender na escola já
suas relações, particularmente famílíares (Don­ provocou um longo debate sobre o qual não
go Montoya, 1983. p. 131). vamos nos ater. Apenas queremos enfatizar que
esta noção de déficit não revela uma posição
Assim, a investigação permitiu constatar ingênua ou acrítica em relação à escola e às
que as crianças marginalizadas estudadas determinações sociais, já que se percebe,
apresentam, de fato, um déficit cognitivo. Encon­ exatamente, o quanto ele é socialmente determi­
tra-se este no nível da organização representati­ nado, devendo-se, em última análise, à própria
va, devido a trocas inadequadas com o meio. A estruturação classista da nossa sociedade.
ausência de trocas - de interações - a nível Concordamos com Freitag (1985) em sua crítica
simbólico estaria determinando então problemas à idéia de que as crianças de classe baixa são
(déficits) na capacidade representativa desses apenas "diferentes", sendo que a determinação
sujeitos e, como consequência, problemas na do fracasso resultaria apenas da incompreensão
estruturação operatória de seu pensamento. Ao e do desrespeito d� escola em relação a esta
adquirirem a capacidade de representar, estas diferença cultural e linguística Tal abordagem
crianças, explica o autor, não foram solicitadas revela sua força conservadora, pois, embora
no sentido de estruturar suas representaç09S. denuncie a miséria da sociedade de classes,
Esta baixa solicitação acaba determinando, silencia estranhamente diante da pior das pri­
então, uma dificuldade de representar, de modo vações a que estão submetidas as classes
que, como diz Ramozzi-Chiarottino (1984), "tudo baixas, qual seja a privação de seus meios
se passa como se só fossem capazes de repre­ cognitivos de tomar consciência de sua realida­
sentar a situação em curso. A evocação lhes é de.
difícil, quase impossível" (p.91). Tal dificuldade Além disso, parece ser claro o quanto o
deixa estas crianças presas ao presente, sendo interacionismo piagetiano respalda teoricamente
pobre sua capacidade de elaborar o passado a noção de déficit. Ora, acreditando-se que a
em nível simbólico, bem como de antecipar o cognição resulta de trocas entre o organismo e
futuro através do pensamento. Crianças que não o meio, forçosamente acredita-se na possibilida­
vão além de um "saber fazer", sem tomada de de de uma deficiência cognitiva,. caso haja
consciência, encontram-se bloqueadas quanto algum problema nessa troca. Se a teoria de
às possibilidades de seu desenvolvimento, Piaget nos mostra o caminho necessário ("creo­
dos") segundo o qual se dá a evolução do

64
conhecimenfCJ humano, ela também esclarece educação compensatória. Acreditamos que a
que esta evolução existe, a princípio, sob a prática pedagógica pré-escolar precisa instru­
forma de possibilidades que poderão ou não ser mentalizar as crianças, e que isto será feito caso
atualizadas na interação do sujeito com o meio elas tenham garantido seu pleno desenvolvimen­
físico e social. Está claro que o meio, e, princi­ to cognitivo. Considerando que a aprendizagem
palmente, as possibilidades de ação da criança está unida ao processo de desenvolvimento do
neste meio, pode se constituir em fator que conhecimento, fica claro que se este processo
favorece como em fator que obstaculiza. é garantido a nível pré-escolar, as crianças
Os estudos que mostram os prejuízos podem dispor de instrumentos cognitivos para
ocasionados por uma interação insufICiente a enfrentar a escolaridade posterior e as aprendi­
nível simbólico parecem corroborar a argumen­ zagens específicas que ela supõe, bem como de
tação inicial de ql:Je as formas de representação realizar aprendizagens específicas já na pré­
da criança precisam ser valorizadas no âmbito escola É importante salientar que ao defender­
da educação pré-escolar, principalmente daque­ mos o fornecimento de condições para que a
la que atende crianças de classes populares. criança viva intensamente o estágio onde se
erteontra, não o fazemos apenas em função da
chegada ao estágio seguinte. O fato é que o
A Pesquisa Empírica - Alguns Dados sentido de um dstágio não está somente no
seguinte, mas também nele mesmo, e é só por
B�eando-nos nestes aspectos, pareceu­ ter vivido intensamente este estágio que o
nos que a prática pedagógica na pré-escola seguinte será possível.
pode atuar visando a garantir a construção da Para podermos aferir o possível efeito da
capacidade representativa da criança. Esta, intervenção sobre o desenvolvimento cognitivo
quando em idade pré-escolar, vive um período dos sujeitos da pesquisa, foram realizadas duas
de seu desenvolvimento intelectual caracterizado avaliações cognitivas, uma antes e ol(tra depois
pela possibilidade de representar, graças, como da intervenção. Nesta avaliação, foram feitas as
vimos, à constituição, no início da fase, da conhecidas provas de conservação de quantida­
função simbólica. Neste período, todas as des continuas e descontínuas, de seriação e de
coordenações alcançadas no plano da ação inclusão de classes, para diagnóstico do com­
serão reconstruídas agora num novo patamar - portamento operatório. E, dado o interesse
o da representação. Se tal processo é o que central da pesquisa, foram feitas provas para
caracteriza primordialmente o desenvolvimento avaliar a capacidade da criança de organizar
intelectual desta criança, resta à escola - e à representativamente as situações e aconteci­
pré-escola - ignorá-lo ou favorecê-lo. mentos. Envolvendo a representação através de
Através de uma pesquisa de intervenção, relatos e desenhos, estas últimas foram em
investigamos empiricamente a possibilidade de número de três: relato sobre a ação de vestir
uma atuação pedagógica pré-escolar, atenta à dois bonecos,' relato sobre a ação de organizar
importância das atividades representativas, urna fazenda em miniatura, com celeiro, cerca­
garantir o desenvolvimento cognitivo de crianças dos, animais e seres humanos de plástico e,
de famílias pertencentes a classes populares. finalmente, desenho sobre a organização da
Nossa intervenção junto a um grupo de fazendinha.
crianças faveladas de seis anos de idade procu­ As seis crianças que participaram da
rou definir uma linha de atuação pedagógica pesquisa são, pode-se dizer, representantes
que, pela valorização das formas de represen­ típicos da população de crianças pertencentes
tação da criança, e pela solicitação, atr�és de a classes populares, as quais, via de regra, "não
diferentes atividades, da reconstrução a nível aprendem" na escola. Moradoras de uma vila
simbólico das ações por elas vividas, pudesse periférica e vivendo em condições miseráveis,
garantir a construção da sua capacidade repre­ estavam matriculadas na pré-escola de urna
sentativa. escola estadual; escola esta onde se configura­
Partimos do princípio de que garantir a va tipicamente um quadro de fracaSso escolar,
construção da capacidade representativa da dados os altos índices de reprovação, repetên­
criança é instrumentalizá-Ia, pois esta constru­ cia e evasão.
ção é fundamental à continuidade de seu de­ Os encontros da pesquisa, localizados na
senvolvimento e, conseqüentemente, ao seu própria escola, aconteceram durante seis me­
desempenho na escolaridade posterior. Traba­ ses, com uma duração de duas horas e trinta
lhamos com esta noção de pré-escola instru­ minutos cada, e segundo uma freqüência de
mentalizadora, que é diferente da noção de três vezes por semana.

65
Na primeira avaliação cognitiva, no que se que elas haviam praticado. Também o desenho
refere às provas para diagnóstico do comporta­ das crianças não conseguia representar a
mento operatório, observou-se que as crianças organização introduzida por elas na fazenda em
apresentavam quase que na sua totalidade - miniatura Tomemos como exemplo o protocolo
cinco de seis crianças - completa ausência de da entrevista de uma das crianças nesta primei­
estruturas operatórias, o que pode ser acompa­ ra avaliação:
nhado no quadro 1, mostrado na página seguin­
te. Quanto às provas relativas à representação, Na organização prática da fazefICÚJ Diego
pode-se dizer que a totalidade das crianças distribui a totalidade dos animais pelos quatro
dispunha de uma capacidade representativa cercados, Independentemente da espécie.
bastante limi(ada, na medida em que a recons­ DeIxa o homem e as mulheras fora tanto do
trução representativa de suas ações se fazia de celeiro como dos cercados. O relato aobre tsI
forma desorganizada, incompleta e muito pouco organização, feito na ausência do modelo a
partir da questão ·Podes me contar como tu
precisa. Os relatas das crianças eram fragmen­ arrumaste teu rancho?" foi, depois de vários
tados, incoerentes, desorganizados, de modo minutos em silêncio, o seguinte:
que não reconstituíam representativamente as
açOes

Criança: ·Anumando.. .• tu me falaste o nome cJ./es.. .•

ExamlnadOlB: ·Mas de que jeito?" C.: •••.•

C.: •...• E.: "Que bichos tinham no teu rancho?'


E.: "O que tinha no rancho?" Faz menção de dirigir·.. até onde .. encontra a fazande
C.: • ...Bicho". organlUlda por eM, que 8f1OI'8 811COIIft-s e c«-la Por um
E.: ·E o que mais?" jornal.
C.: ·Mals?" E.: ·Tente me conter Sf1171 oIhat".
E.: ·TInha s6 bicho?" C.: ·Butrlllho".
C.: • ...Bastante·. E.: ·E onde tu botas.. ,o burrinho?'
E.: ·Bastante? Que tipo de bicho?" .�.: ·U do outro lado:... J
C.: ·Bicho...Um bolão·. E.: ·E o que mais tu fizeste?"
E.: ·Eu me lembro que antes de errumer teu rt6rcho C.: ••..•

Antes de comentarmos a proposta peda­ apres8fUda na primeira avaliação, as provas


gógica desenvolvida junto às crianças, quere­ envolvendo desenhos e relatos mostram uma
mos já dar conta da marcante evolução consta­ � evolução no sentido de uma reconstrução
tada em seu desenvolvimento cognitivo após o representativa mais completa e organizada em
término da intervençãQ. A Avaliação cognitiva termos da espaço e tempo. Eis a entrevista de
final pôs de manifestÓ urW claro avanço rib Diego, nesta segunda avaliaçAo:
processo cognitivo dos s.itos da pesquisa,
tanto em relação à operatoriedade do pensa­ Ao orgarílzar. fazenda usa os quatro cflrCados.
mento quanto ao que diz respeito à capacidade Num deles coloca as duas vacas. Noutro,
representativa coloca.JR!ioB 08 porcos. Do outro lado do
O quadro 2, apre�ado na página celeiro, .� h4 mal. dois cercadoa, coloca os
p8toe • if'buIro· (qu. ele çhsme de oavaIo) em
_

_seguinte, mostra que tod_ as cr� que


/MIl, • oa temeIroa • o cabrito (qye ele chama
estavam pré-operat6rias passaram para o nível :t» "fI1hotN") noutro. Uma du� foi
operatório concr,�o. Nas provas envolvento a posta.,. último cercado, a ouIIa ficou com
capacidade replésentativa, todos os sujeitos os porl!ós, • o homem Junto com o bumJ • os
atingem o último dos níveis definidos para efeito p8t0e. O relato acerca dfita anutI'NIÇio foi:
de diagnóstico. Partindo de uma representação
incompleta, fragmentada e desorganizada

E.: ·Podu me conter como tu arrumaste o teu rancho?" botei um � de porco ali dfInIro do cercado ...; no outro
C.: botei o homem no pato e no burro, e uma mulher
·Eu s6 zebu... zebu � . vaca. E tinha a casa".
..

dentro do cercado dos filhotes dando comida. O homem E.: ·A casa ficou 1IflZia?"
não fá dando nada pro cevalo" (de fato, 88 mulheres t8m C.: ·Eu ia bolá os home ali dentro".
nos bniços uma bacia com comida, enquanto que o homem E.: ·E tu chaQaste a botIIr eiguém .fI"
não). C.: .Não".
E.: ·E nos outros cercados?" E.: ·Então, quanro. cerçados tinham na tua tazencJ.?"
C.: ·Nos outros foi o cevalo com pato, depois eu C.: ·Um ... doia . ti'- . quatro. Qua/ro".
.. ..
PRIMEIRA AVAUAÇÃO COGNITIVA

PROVAS

SUJEITOS Conservação Conseryação Seriação Classific. Relato Organizo Desenho Org. Relato Ação
Quant. Desc. Quant. Cont. "Fazendinha" "Fazendinha" Vestir Bonecos

PO T O PC T O PC T O PC T O NR T1 1'2 R NR T R NR T1 1'2 R

André X X X X X X X

Diego X X X X X X X

Diornens X X X X X X X

Nilton X X X X X X X

Rafael X X X X X X X

Tatiane X X X X X X X

SEGUNDA AVALIAÇÃO COGNITIVA

PROVAS

SUJEITOS Conservação Conservação Seriação Classific. Relato Organizo Desenho Org. Relato Ação
Quant. Desc. Quant. Cont. "Fazendinha" "Fazendinha" Vestir Bonecos

PC T O PC T O PC T O PC T O NR T1 T2 R NR T R NR T1 1'2 R

André X X X X X X X

Diego X X X X X X X

Diornens X X X X X X X

- -
Nilton X X X X X X

Rafael X- X X X X X X

Tatiane X X X X X X X

PO - Pré-operatórlo T - Transição O - Operatório NR - N4o-represernação R - Representação

CI)
...,
Lembre-se que, na primeira avaliação, o quanto num tempo distante, planejamento das
discurso de Diego sequer continha um verbo: atividades realizadas e reconstituição das mes­
nenhum movimento era representado. Quando mas ao final do encontro, desenhos represen­
ele dizia "bicho', "bastante', "um bolão', é tando situações vividas. A roda, na qual as
como se o seu discurso estivesse baseado em crianças sentadas em círculo conversam, con­
imagens estáticas. Não há representação de tam experiências passadas, trocam opiniões, foi
conjunto, mas pelo contrário, há um filme em bastante valorizada durante os encontros.
câmera lenta, que representa "uma imagem - Criação individual e coletiva de represen­
imóvel após a outra, sem levar à fusão de tações. Especialmente quanto a este aspecto
imagens". Desta forma Piaget (1978. p. 304) baseamo-nos nos trabalhos de Madalena Freire
caracteriza a inteligência sensório-motora, (1988,1986),que propõe uma atuação pedagó­
caracterização que nos parece caber bem aqui, gica onde a valorização das atividades represen­
o que atesta o estado bastante primitivo em que tativas da criança está presente. Principalmente
se encontrava a representação de Diego. Na a idéia de representar as atividades e as pró­
segunda entrevista, os verbos, às vezes mais de prias crianças através de símbolos foi aproveita­
um na mesma frase, já aparecem, dando conta da, já que se constituiria em mais uma oportuni­
de que agora é possível representar o dinamis­ dade oferecida à. criança e ao grupo de criar
mo da ação. O "filme' a que Praget se refere representações. Tais símbolos são marcas ou
parece se desenrolar agora de maneira rápida, desenhos definidos pelo grupo, de maneira que
o que car-acteriza a representação interior. Esta, estão a meio caminho entre o símbolo e o signo,
juntamente com a tomada de consciência da já que do primeiro apresentam um vínculo de
ação total, o que permite desenrolar o filme nos semelhança entre o significante e o significado,
dois sentidos (reversibilidade), permite a passa­ enquanto que do segundo eles têm o aspecto
gem ao pensamento conceitual. Não só Diego, de terem sido convencionados pelo grupo.
mas também as demais crianças da pesquisa, Piaget (1978) explica que a criança precisa
demonstraram ter atingido o nível dos conceitos primeiro utilizar o símbolo individual (como ele
na avaliação cognitiva final. aparece no jogo simbólico, na imitação) para
depois adquirir o símbolo social, coletivo (signo).
Portanto, a construção de símbolos para uso do
A Intervenção - Uma Proposta Pedagógi­ grupo e "coletivos' neste sentido, parece poder
ca Possível favorecer esta passagem - individual para social,
e símbolo para signo. Os planejamentos, feitos
Caracterizamos, pois, a intervenção reali­ pelo grupo, das atividades a serem realizadas
zada como um esforço de garantir a construção nos encontros foram feitos com o auxílio de um
da capacidade representativa das crianças que quadro de pregas, onde eram afixadas fichas
foram sujeitos da pesquisa. Pautando-nos por com os símbolos das atividades na ordem em
este principio, as atividades e procedimentos que seriam executadas. O quadro também era
que integraram a intervenção atenderam a usado na combinação do que cada um faria na
características que podem ser assim sistematiza­ hora da "brincadeira em grupos', onde cada
das: um escolhia a atividade da qual gostaria de
- Valorização das manifestações espontâ­ participar, colocando seu símbolo (da criança)
neas da criança que envolvem a representação, abaixo do símbolo correspondente a ela (ativida­
tais como as brincadeiras de faz-de-conta, as de).
imitações, seus desenhos, sua fala (suas histó­ - Ênfase às relações de cooperação.
rias e narrativas). Envolvendo relações entre indivíduos, a prática
- Solicitação de reconstituições a nível da pedagógica envolve, por isso mesmo, relações
representação de diferentes experiências vividas sociais. Sabe-se, a partir de Piaget (t977), que
no plano da ação. Tal solicitação justificava-se diferentes tipos de relações sociais desempe­
especialmente para as crianças em questão, na nham influêflcias diferenciadas no -desenvolvi­
medida em que o meio social em que encon­ mento infantil, tanto cognitivo quanto moral. Se
tram-se inseridas costuma constituir-se em a vida social exerce diversas ações sobre o
empecilho às trocas simbólicas. São exemplos desenvolvimento individual, claro está que a
desse tipo de atividade, algumas das quais socialização na pré-escola conduzil:á a resulta­
foram reunidas a partir do trabalho de Dongo dos também diversos, conforme se caracterizem
Montoya (1988): relatos espontâneos a respeito aquelas ações. Piaget definiu dois tipos extre­
de experiências vividas, narrativas sobre ativida­ mos de relações sociais: a coação que, baseada
des executadas tanto num tempo próximo no respeito unilateral, reforça o egocentrismo, e

68
a cooperação que, baseada no respeito mútuo, propostas só teriam bom êxito desde que pu­
favorece a descentração e é a própria condição dessem ter um signifICado afetivo para as crian­
da autonomia moral e intelectual. Está claro que ças. De fato, em toda ação está presente o
a prática pedagógica pré-escolar que queira aspecto afetivo, pois toda conduta intelectual
favorecer o desenvolvimento cognitivo não pode comporta fatores afetivos na qualidade de
dispensar as atividades e atitudes que enfatizam móveis e, reciprocamente, em qualquer estado
a cooperação. A experiência pedagógica por afetivo intervêm percepções e compreensões
nós realizada pautou-se por estas noções, que constituem a sua estrutura cognitiva, sendo
priorizando, por exemplo, atividades feitas em os aspectos afetivo e cognitivo, ao mesmo
grupo, onde a troca de pontos de vista é favore­ tempo, inseparáveis e irredutiveis.
Cida; o planejamento era coletivo, de modo que
cabia ao grupo a decisão sobre as atividades a ***

serem realizadas; as regras envolvendo a orga­


nização e a disciplina em sala de aula eram o papel fundamental das atividades
definidas pelo grupo; a pesquisadora, no caso representativas no contexto do desenvolvimento
a professora, antes de colocar-se numa posição cognitivo infantil sugere a importância de que a
de autoridade, procurava, dentro do possivel, pré-escola compr�nda e valorize as formas de
situar-se como um "igual" dentro do grupo, representação da criança, utilizadas por ela
alguém que também discutia; mas a quem não como formas de conhecimento e expressão. Tal
cabia todas as decisões. importância parece ter ficado demostrada atra­
- Favorecimento da alfabetização. Em vés da referida pesquisa empírica, posto que a
nosso trabalho argumentamos no sentido de intervenção que pautou-se por este pricípio foi
que garantir a construção da capacidade repre­ capaz de garantir a construção da capacidade
sentativa é, também, favorecer a alfabetização, representativa de crianças de classe baixa que,
caso entendamos esta como um processo de em geral, como nos mostram os est....dos cita­
representação da linguagem. Piaget dá muita dos, têm na condição de marginalidade social
importância à história psicológica do sujeito, que em que vivem um fator de bloqueio a esta
explica as aquisições atuais. Isto quer dizer que construção.
a experiência anterior do sujeito é fundamental, A evolução cognitiva dos sujeitos da
parecendo lícito afirmar que a representação pesquisa, garantida pela intervenção, permite
anterior (símbolos e pré-conceitos) influi e é supor que uma atuação pedagógica pré-escolar
essencial para a representação posterior (signos assim caracterizada mostra-se eficiente quando
e conceitos). se trata de favorecer o desenvolvimento das
- Representações com significado: as crianças que atende. O processo cognitivo
ações vividas pela criança como conteúdo das primordial por que está (ou poderia estar) pas­
atividades. Como argumenta Oongo Montoya sando a criança em idade pré-escolar é a recon­
(1988), a reconstituição representativa da expe­ trução a nivel simbólico das ações, processo
riência da criança não pode ser efetuada com que culmina com a reversibilidade dessas
conteúdos alheios, mas sim com os seus pró­ últimas. A educação pré-escolar pode favorecer
prios, que serão reelaborados. A representação em muito este processo, desde que a tônica das
com significado é aquela que deriva da própria atividades que propõe recaia exatamente sobre
ação. A atividade verdadeiramente representati­ ele: não se trata apenas de agir, mas também
va e, portanto, construtiva, é aquela que foi de simbolizar, de diferentes modos, estas ações.
elaborada em função das ações da própria O que caracterizou essencialmente as atividades
criança. Assim, as atividades realizadas na integrantes da intervenção realizada foi a solici­
intervenção levaram em consideração as expe­ tação de reconstituições representativas de
riências cotidianas das crianças e seu universo ações praticadas pelas crianças.
cultural, a partir do que novos conteúdos pude­ Os resultados desta pesquisa parecem
ram ser abrangidos. ainda confirmar as reflexões que fIZemos acerca
- Representações com significado: a do papel da representação no desenvolvimento
questão da afetividade presente nas atividades. cognitivo, e das relações entre a representação
A idéia da representação com significado envol­ e a operação. Como se constatou, as atividades
ve também a questão do interesse. Só uma propostas foram capazes de produz� um avan­
atividade com significado afetivo poderia desper­ ço cognitivo nas crianças não só em relação a
tar um interesse em realizá-Ias por parte das sua capacidade representativa, mas também no
crianças. A intervenção necessariamente levou que diz respeito à operatoriedade do pensamen­
em conta este aspecto, pois as ações nela to. O avanço se manifestou de forma equivalen-

69
te, em cada criança, para a representação e a que se é certo que as condições cognitivas do
operação. Ora, na intervenção foram priorizadas aluno não garantem por si só o sucesso, posto
atividades envolvendo a representação, sendo que para o fracasso concorrem muitos fatores
que não foram privilegiadas situações ou ativida­ externos a ele, é certo também que nenhuma
des específicas visando a aquisição de estrutu­ aprendizagem poderá se realizar sem � estrutu­
ras operatórias. Tendo isto em vista, acredita­ ras cognitivas prévias. Acreditamos, portanto,
mos que fica confirmada a idéia de que favore­ que instrumentalizando a criança, que garantin­
cer o desenvolvimento da atividade representati­ do a realização das possibilidades cognitivas de
va é, também, garantir a constituição das ope­ seu aluno, a pré-escola estará se constituindo
rações. Vê-se que a estruturação lógica do em efetiva contribuição à escola de primeiro
.pensamento realiza-se no quadro geral do grau.
desenvolvimento da atividade representativa. Finalmente, cabe comentar a importância
Este fato fica claro quando se compreende que de uma reflexão sobre o papel da representação
a representação envolve abstrações refletidoras, no desenvolvimento cognitivo no contexto atual,
motor fundamental do desenvolvimento cogniti­ onde a busca de renovação das práticas peda­
vo. Como dissemos inicialmente, a representa­ gógicas tem levado ao surgimento de propostas
ção não procede por cópia, mas por sínteses, construtivistas que anunciam a importância da
elaboradas num novo patamar dereflexionamen­ ação do aluno. Cabe lembrarmos que a ação,
to. Longe de envolver apenás a percepção, a por ela mesma, não garante a conceituação. Há,
representação é, definitivamente, uma atividade de fato, uma defasagem entre a ação e a con­
construtiva ceituação, sendo que esta última passa pela
Lembremos ainda que as crianças partici­ reconstrução representativa da \lção a nível de
-

pantes da pesquisa, tendo realizado amplamen­ processo, é certo. Parece-nos claro que para
te suas possibilidades cognitivas, isto é, tendo entendermos o papel da ação na obra de Pia­
desenvolvido sua capacidade representativa e get, é fundamental também entendermos o
sua capacidade de operar, tinham, ao final da papel da representação. Parece-nos claro,
intervenção, as condições cognitivas necessá­ ainda, o quanto esta compreensão levada à
rias para enfrentar a escolaridade posterior, prática pedagógica pode resultar em efetiva
diminuindo as chances de fracasso. Acreditamos melhoria da qualidade da educação.

* * *

Referências Bibliográficas

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Pesquisa, (56:
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----;Jiãget. São Paulo: E.P.U, 1988.

* * *

Helena Vellinho Corso baseou seu texto na dissertação de Mestrado


"A representação Infantil e a educaçao pré-escolar - uma pesquisa de Intervençao".
Porto Alegre, Faculdade de Educação da Universidade Federal do Rio Grande dO Sul, 1991.
Helena Vellinho Corso é pslcopedagoga e professora da URCAMP - Bagé, RS

70
"Palavras Mágicas', foi a expressão José Valdir aos 8 anos também não tinha
utilizada por Paulo em seus primeiros contatos tido a oportunidade de �ir e de se surpre­
com a linguagem artificial. O que levaria um ender com o mundo simbólico da escrita Assim
menino de 9 anos com várias experiências de como Paulo havia passado por várias experiên­
alfabetização a conceituar desta forma os c0- cias de escolarização. Desde os 4 anos- sabia
mandos de uma linguagem artifICial? Para dizer o nome de algumas letras (que faziam
alguém analfabeto, o que po(ieriam representar parte de seu próprio nome), mas este conheci­
as palavrps? E qual o porquê de sua magia? mento não lhe possibilitava a leitura, já que
O que Paulo não conseguia explicar, mas entendia as letras como objetos que, como seus
era possível compreender por sua forma de brinquedos, têm nomes e podem ser "falados'
interagir com o computador, é que este objeto segundo uma ordem qualquer. O que ainda não
lhe devolvia um sentido para a sua ação de compreendia que a escrita é um sistema simbó­
colocar letras justapostas no vídeo. Ele não lico que representa umoutro sistema simbólico:
sabia o valor sonoro, ou o nome das letras, a linguagem.
também não compreendia a diferença das Neste estudo, vamos acompanhar como
representações para as letras e para os núme­ esses dois meninos, com histórias pessoais
ros. Mas logo pôde observar que as teclas diferentes, mas tendo em comum experiências
deixavam suas marcas na tela e que era possí­ negativas iniciais com a escola conseguem
vel fazer desaparecer todas estas marcas ao construir um sentido para a representação
teclar ATI. O efeito era mágico. Era simultâneo escrita dentro de um ambiente de aprendizagem
e não sucessivo como a sua ação de teclar letra informatizado. Alfabetizar-se tem neste ambiente
após letra. A magia do mundo simbólico tinha um sentido mais amplo que o domínio da leitura
no computador um representante concreto. Aqui e da escrita das palavras faladas. Alfabetizar-se
uma palavra Qustaposição de sinais) tinha o é aqui entendiçlo como um processo de d9"línio
valor de um símbolo e funcionava como tal. O de sistemas de representação. Sistemas que
comando ATI, no caso, fazia desaparecer todas possibilitam a simbolização e a comunicação de
as marcas feitas anteriormente na tela. E isto é fatos, ações, sentimentos, etc. do escritor.
um símbolo: um significante (ATI) que assume Apesar de ambos apresentarem dificuldades em
um sentido diferente de uma simples justaposi­ seu desenvolvimento não entraremos aqui
ção de letras. ATI é agora compreendido como nestes aspectos por definir que um ambiente de
uma "palavra mágica' que faz desaparecer. O aprendizagem deve propiciar condiçOes signifi­
mágico para este menino era ingressar na cativas de desenvolvimento para qualquer
dimensão do simbólico da escrita; utilizar um criança não importando seu nível s6cio-econômi­
significante que assume um significad02. co bem como seu grau de comprometimento
É isto o que acontece quando as crianças psicológico ou neurológico. Isso não quer dizer
que se encontram em processo de alfabetização que estes aspectos sejam negligenciados e
fazem ao "brincar com letras' formando diferen­ suas implicações não sejam pesqui&adas. Mas
tes agrupamentos como num jogo de armar. sim que em um ambiente de aprendizagem
Quando estas justaposições de letras, lidas por informatizado não partimos das dificuldades da
uma pessoa alfabetizada, adquirem algum criança nem do que lhe falta para atingir algum
sentido conhecido, as crianças demonstram conhecimento. Procuramos, isto si!:n , oferecer
satisfação. Esta magia do simbólico, que grande diferentes suportes de atividade aos processos
parte das crianças descobre brincando com de desenvolvimento que estão em funcionamen­
pessoas alfabetizadas é descoberta por algumas to na criança, processos estes que sustentam a
crianças ao interagir no computador. aprendizagem. Interessa os processos que

EDUCAÇÃO E REALIDADE, Porto Alegre, 18(1):71-80, jan/jun. 1993 71


servem de instrumentos para o sujeito construir bem pequenas realizam. Parece uma reedição
novas aprendizagens. do esquema sensório-motor. Só que no esque­
ma atual Paulo não usa o próprio corpo mas sim
o que buscamos é a construção de um objetos simbólicos (representações).
ambiente de aprendizagem que dê condições A ativação do esquema faz cQOl que, a
para que Paulo e José Valdir explorem inicial­ partir da 1 O" sessão, seu esquema procedural
mente aquilo que podem fazer. Esta ativação sofra uma transformação tomando por objeto a
dos esquemas de procedimentos que lhes são tartaruga e as letras assumem um papel de
possíveis criará condições para a construção de mediador entre ele e este objeto. Existe uma
novos esquemas de procedimentos3. A análise transformação do esquema, uma mudança em
do trabalho dos dois meninos nos possibilitará sua forma (as letras que eram objeto da ação
verificar como o funcionamento de seus esque­ passaram a ser mediadores desta) e portando já
mas abriu as possibilidades do domínio de não mais EP1 mas EP2. É a possibilidade da
alguns sistemas de representação. ativação e da re-edição de um procedimento
que dá a Paulo de o "saber fazer" e, ao mesmo
tempo, a ocasião de assimilar novos observáveis
·Onde se aperta para entender a tartaru­ e realizar novas çoordenaçOes.
ga?· A escrita como possibilidade de comu­
-

nl-:ação Paulo: "Agora ela vai sumir!· Tecla DT. Olha no


cartão com os comandos básicos e tecla PT
o problema da comunicação com a 56. "Agora adivinha onde ela se escondeu?"
máquina é sentido nas primeiras sessões por Professor: "Aqui!" aponta na teia uns 10 cm
abaixo da posição anterior.
Paulo. Diante deste conflito ele pergunta: "Onde
Paulo: "Agora vamos ver/· Tecla AT. "Acertou!
se aperta para entender a tartaruga?" Como se
Agora outro·.
existisse uma tecla que funcionasse como uma
espécie de tradução das mensagens. Este é o Agora o esquema procedural de Paulo é
primeiro dilema que o ambiente coloca para as o seguinte:
crianças que não conseguem representar suas
idéias, desejos, etc. por meio de algum sistema (1) Faz desaparecer a tartaruga usando o
de representação escrita. O que faz ele para comando DT;
superar este conflito inicial? Paulo, a partir da 8" (2) escolhe aleatoriamente entre os dois co­
sessão, iniciou a ativação de um processo de mandos de deslocamento (PF e PT) e os dois
desenvolvimento que chamaremos de esquema de direção (PE e PD) sem ainde ter conscllm­
procedural (EP). Este esquema caracterizava-se cia se o resultado será um deslocamento ou
pela repetição de um padrão: padrão que será um giro;
definido como EP1 (Esquema Procedural 1): (3) solicita que o professor Itr. diga onde
aparecem a tartaruga e
(4) reinlcia em 1.
(1) preenchia a tela do computador com letras
escolhidas, ora de forma Intencional (X - "da
Neste esquema a tartaruga passa a ser o
Xuxa", P - "do meu nome·) e ora de forma
aleatória e acionava a tecla Return,' objeto manipulável que sofre transformações
(Paulo pode fazer a tartaruga aparecer, desapa­
(2) limpava a tela usando o comando A TT e recer, mudar de direção 8 posição) e as letras
acionando li tecla Return; que no esquema 1 eram também objetos, neste
esquema funcionam como mediadores entre
(3) fazia desaparecer a tartaruga usando o Paulo e a tartaruga Embora ainda não com
comando DT e acionando a tecla Return; consciência, Paulo está utilizando a escrita em
sua função simbólica de mediador: de uma
(4) fazia reapatecer a tartaruga usando o co­ comunicação. Parece que está na direção de
mando AT e acionando a tecla return e
encontrar o'"onde se aperta para entender a
tartaruga".
(5) reiniciava em 1.
Estes esquemas ativados pela interação
Este esquema procedural de funciona­ no ambiente informatizado possibilitam a Paulo,
mento era circular, pois repetia-se incessante­ entre outras coisas, utilizar a eacrita como
mente. Podemos observar a semelhança deste mediador. A repetição do esquema, longe de ser
esquema 1 (desaparecer-reaparecer) com os entendida como um exercício de fIXação, é urna
esquemas do "jogo de esconder" que crianças necessidade do próprio sujeito. E esta repetição

72
sempre pode dar lugar a descoberta de novos tartaruga".
conhecimentos quando o sujeito pode abstrair Paulo tecla PUO (que são Jeuas de seu nome)
dos resultados da repetição alguma novidade. e diz que assim é o nome para a casa.
Como, por exemplo, na 138 sessão, Paulo O professor arma o programa
pergunta ao Professor como ele sabia onde iria para Paulo sempre dizendo o que está
fazendo: "Para o computador não esqu­
aparecer a tartaruga e o professor lhe mostra
cer da casa a gente diz para ele: "A­
que a tartaruga dá a "pista" deixando um traço
prenda puo" (tecla AP PUO) ai co/oca­
a cada deslocamento feito. Paulo passa então a mos o que a tartaruga faz (mostra para
utilizar os comandos UN (use nada) para não Paulo a lista de comandos dados ante­
deixar "pistas" e UL (use lápis) quando quer dar riormente), etc.
-uma "pista" ao professor. Outra descoberta de
Paulo foi que ele poderia fazer a tartaruga Note-se que esta introdução da progra­
"enganar" o professor mais facilmente se colo­ mação de PUO não tem a pretenção de ensinar
4
casse "mais números· para ela andar ou girar. Paulo a programar e nem atingiria tal objetivo,
Todos estes conhecimentos e outros aqui não mas sim dar-lhe mais uma ferramenta de explo­
mencionados, só foram possíveis pelo funciona­ ração e de expressão para que possa, ao utilizá­
mento repetido deste esquema e pela possibili­ la, construir aos poucos idéias sobre o que é
dade de abstrair novos fatos dos resultados da programar.
repetição do esquema. ObseFVamos aqui que a Mas o que ocorreu com EP2 de Paulo
repetição de um esquema, ao contrário dos com esta intervenção do professor. Podemos
exercícios de repetição, é espontânea, isto é, obervar duas coisas. Primeiro uma assimilação
parte de uma necessidade do sujeito e leva à do programa PUO no esquema EP2 sem alterar
possibilidade de novas descobertas. Todas sua organização mas possibilitando uma varia­
estas descobertas só foram possíveis porque ção EP2'.Assim PUO foi incorporado ao esque­
Paulo encontrou recursos para colocar em ma como uma nova forma de modificar a posi­
funcionamento sua atividade reflexiva. ção da tartaruga para descobrir onde ela iria
Nesta etapa do trabalho o professor faz aparecer:
uma intervenção apresentando para Paulo uma
outra 120ssibilidade deste ambiente: a progra­ Na 1sa sessão Paulo utiliza EP2':
maçã05. E aqui gostariamos de comentar um DT PT 58 AT DT PUO AT DT PE 78 AT DT PUO
pouco a metodologia de intervenção utilizada no
ambiente de aprendizagem. Apresentamos aos
Em segundo lugar, o programa PUO
sujeitos a possibilidade de programar sem o
possibilitou a Paulo explorar uma regra de
estabelecimento de pré-requisitos como o de ter
organização da escrita: o fato de que uma
terminado um projeto ou o de já ter uma idéia
mudança na posição da letra na palavra acarre­
do que seja programar. Ao dar-lhe a possibilida­
ta uma mudança de sentido:
de de trabalho neste nível, podemos acompa­
nhar suas idéias e as mudanças das mesmas na
Na 1B- sessão diz: "Agora eu vou fazer uma
construção do próprio conceito de programa­
experiência" (enquanto fala esfrega as mãos). Tecla:
ção. No caso de Paulo numa sessão onde
1. PUO li Return
estava funcionando com o esquema procedural 2. PUO e Return
2 o resultado dos deslocamentos da tartaruga 3. POU e Return
produziu um desenho que foi obtido pela utili­ 4. UOP e Return
zação dos comandos seguintes: DT PD 89 AT 5. PUO e Return e diz: "Ele só sabe
DT PT 89 AT DT PD 89 AT DT PF 80 AT DT PD assim, oh!"
89 AT DT PT 89 AT DT PD 89 AT DT PF 82.
Lembramos que Paulo utilizou estes Na verdade Paulo realizou o teste de uma
comandos dentro de seu esquema procedural 2, hipótese que havia construído em relação a
sem ter como objetivo produzir um desenho na escrita de seu nome. Ele sempre manifestava
tela, mas sim ver onde apareceria a tartaruga. um cuidado "rigoroso para que as letras de seu
nome estivessem na seqüência que havia me­
Professor: aponta o resultado na tela e diz: "O morizado. Com esta "experiência' pôde concluir
que a tartaruga desenhou?" que o computador só sabia executar o desenho
Paulo: "Uma casa". quando as letras estavam na ordem. PUO.
Professor: "Se a gente der um nome para a Na 178 ocorre uma nova intervenção do
casa nós podemos guardá-Ia e brincar com ela professor no sentido de oferecer uma outra
em outro dia .assim como tu brincas com a possibilidade de programação: o chamado

73
'programa surpresa". Esta intervenção consiste Com a possibilidde de c(iar seus próprios
em solicitar que a criança escolha Um nome de personagens Paulo inicia a transformação do
alguém que ela conheça para que a tartaruga esquema anterior. Houve uma extensão dos
faça a esta pessoa uma surpresa: seus objetos de manipulação e uma idéia inicial
de que cada personagem para existir precisa de
Paulo: "A tartaruga vai fazer uma surpresa para uma ·memória". Isto quer dizer que- o meio
mim". necessário para construir um personagem
Tecla AP PAULO estável (que não desapareça ao desligar o
Professor: "Agora nós vamos escolher alguns computador) era, utilizando os comandos (como
comandos para a tartaruga obedecer" (A no esquema anterior), definir um programa O
escolha das crianças é aleatória e é esta
que vamos poder observar é que são estas
caracterfstics que dá o caráter de surpresa ao
mudanças no esquema que lhe permitem estar
programa).
Paulo tec'- PD 89 PF 20 sai do editor e repete alerta e descobrir possibilidades de novas
seu non1e várias vezes, enquanto repete vai aprendizagens.
dizendo: 'Ainda não sei o que ela fá desenhan­
do ... O que será .. . após repetir umas 35 vezes Na sessão seguinte (28-) Paulo deseja cons­
seu nome diz: 'Eu já sei, ela me mandou um truir um filho para o teco. O professor lhe
beijo". mostra como. fazer novas figuras utlliZl1ndo o
comando EDFIG. Paulo tenta desenhar mas
o novo programa PAULO passa a ser não consegue coordenar as teclas de direção
utilizado como o programa PUO. do cursor com a barra de espaços que possibi­
A partir da 258 sessão Paulo interessa-se
lita marcar ou desmarcar uma região. Fica
bestante Inquieto pois o resultado que conse­
por alguns livros de estórias disponíveis no
gue fezer não se aproxima da Imagem mental
ambiente. Os livros que escolhe têm em comum
que construiu para o filho do Teco. Neste
que os protagonistas das estórias são animais. impasse encontra uma solução:
Este intéresse por estórias é uma novidade, uma
vez que anteriormente Paulo rejeita todas as Paulo: "tu (para o professor) dirige estes (indi­
tentativas feitas pelo professor para olhar livros, ca as teclas de direção) e au dirijo este (barra
manuais, folhas impressas, etc. Foi convidado de espaço).
então pelo professor a criar seus próprios Professor: 'Onde devo colocar o quadradi­
personagens. Inciciou com a figura do cachorro. nho?" (cursor).
Paulo: 'Aqui" (indica um ponto da matriz).
Após ter colocado o comando MUDEFIG
3 apresentado pelo professor. Esta solução do problema possibilitou a
Professor: "como poderia ser o nome dele?" Paulo a preocupação com uma só varlavel do
Paulo: "Teco. Escreve ai as letras" (Solicita ao sistema, permitindo o domínio parcial e a reali­
professor que escreva em uma folha de papel zação do novo personagem chamado AEA
as letras da palavra Teco). (sapeca):
Professor: "Vamos ver como a tua boca diz?"
Paulo: 'Te ... te ... e ... e" e tecla a letra E.
Professor: "Já terminou o nome ou falta falar
ainda?"
Paulo: "Co ... co ... o ... o' e tecla a letra O.

("'Ibservamos aqui uma primeira análise


silábica da palavra. EO passa ser um programa
que foi construído à semelhança do programa
PUO, isto é, o professor registra todos os co­
mandos utilizados por Paulo e após a escolha
do nome é colocado no editor:
Trabalhando a quatro mãos, P!iulo a cada
dia criava um novo personagem. E com um
AP EO
número maior de personagens era-lhe possível
ATAT 1 AT UN MUDEFIG PF 89
criar estórias faladas. Vejamos alguns persona­
FIM
gens criados nesta época (da 2P' sessão até a
"
soa sessão).

74
frF=O=F=O====� FrF=I=F=I=O====9 r.A�S�I�O�*====9

li
FLOPA PITU* FIEL*

Cada novo personagem criado era apre­ de PITU mulher de EO. Para Paulo uma cracte­
sentado aos demais e Paulo simulava diálogos rística importante é o domínio que este ambiente
entre eles, como por exemplo: Ao criar o perso­ lhe oferece sobre suas criações. Pois além de
nagem da FLOPA Paulo diz: "Agora você v8.Í fazê-lo aparecer.(AT) e desaparecer (Dl) confor­
conhecer os outros'" Tecla EO. "Como é seu
- me sua cJecisão Paulo criou outra possibilidade:
nome?" - "O meu é Flopa." - "Você é nova? a explosão de um personagem. Consegue este
Quem é seu dono?" - "Foi o Paulo quem me efeito pelo programa B (bomba):
fez" .., e assim para os outros personagens.
O interessante na criação ele sprites era a ap b
criação ele um personagem total com traços de criafigl 10 :b at mucJect 8 mudefig 10
personalidade atribuídos por Paulo. O persona­ fim
gem FIEL era tido como "gordo que gostava de
ter amigos". Mas havia personagens com carac­ Na 5:J- sessão Paulo diz: "QUMO os quadradi­
terísticas opostas. ASIO (assas)sino era "muito nhos (refer.se • matriz EDFIG)/ Hoje eu vou
malandro e gosta ele prender as crianças" fazer um .blcho .96 meu/" Trabalhando spzJnho,
(FIFIO e AEA). FLOPA "é namoradeira" ela com completo domInIo das teclas de direção e
da barra de NpaÇo constrói os sprites:
passa todo o tempo "paquerando os homens
que têm filhos" (FOFO, TECO) para o desespero
VELOZ
�G�RAN�D�A�O�====�rrGI�G=AN==T�E====9

IOX* ARRPIO*
F=========�

75
Os nomes marcados por "*" foram escri­ nome na bola ela poderia aparecer cada vez
tos de forma espontânea, os demais foram que ele a chamasse. Ele decidiu chamar-lhe de
completados pelo professor. O objetivo destas BV (bola verde). José Valdir usou como repre­
duas possibilidades é, além de respeitar o nível sentação duas letras que corresponciem às duas
conceitual de Paulo, permitindo que grave (no iniciais das palavras bola e verde. Podemos
disquete) nomes com suas diferentes hipóteses pensar que José Valdir assi m pr� por
(EO, AEA, ARRPIO), dar-lhe a possibilidde de duas razões: a primeira é que lhe era difícil
comparar sua hipótese com a forma alfabética encontrar tQdas as letras das palavras e a outra
da escrita convencional. razão é um entendimento de como estão escri­
A possibilidade de criação de estórias é tos os comandos básicos na linguagem LOGO.
cada vez maior com a criação de novos perso­ O programa BV fICOU assim definido:
nagens. Nem todos participam de todas as
estórias, mas' são chamados por Paulo de ap bv
acordo com o drama e as características de mudefig O
suas personalidades. mudect 3
Paulo está construíndo um "micromundo" fim
com personagens de diferentes tipos e caracte­
rísticas de personalidade que dão lugar a dife­ Nas sessõ�s seguintes José Valdir, utili­
rentes formas de interação el)tre 'eles. A lingua­ zando o mesmo esquema construiu os seguin­
gem escrita (artificial e natural) lhe possibilita um tes programas:
instrumento de representação deste seu micro­
mundo. E mais do que isso, pode representar ap ba (bola azl,ll)
seu esquema de procedimentos através da atat 1
programação. Já é capaz de representar pro­ at
priedades dos personagens tais como sua pf8pfSpf6pf 11
forma, tamanho, cor, nome. A maior exigência mudefig O
de representação lhe desafiará a representar mudect 4
interaçOes, características psicológicas, senti­ fim
mentos que pelo momento só são "falados"
por Paulo. ap yo (gato)
atat 10
"Para o computador fazer sozlnhol" A - at
representação do próprio esquema de proce­ pd6pf50
dimentos mudefig 2
mudect 7
Após algumas sessOes de exploração fim
José Valdir diz: "Quero outro bicho!" O profes­
sor lhe mostra o comando MUDEFIG e ele ap tp (trem preto)
explora os diferentes "disfarces" da tartaruga. A atat 3
partir da 3" sessão podemos observar o primeiro at
esquema procedural EP1 em funcionamento de pf 100
José Valdir que consite em: mudefig8
mudect 1
(1) chamar uma tartaruga; fim
(2) mudar-lhe a figura e
(3) a cor. A única diferença do program BV para os
demais é que nos seguintes JOSé Valdir necessi­
José Valdir: ·Quero fazer uma bola!" Tecla tou acrescentar comandos de deslocamento
MUDEFIG O. para que os personagens "saírem de trás da
Professor: "Por que zero?" bola verde" Na 5·, diz que quer um robô. Após
.•

José Valdir: ·Porque zero é uma bola- (refere­ olhar todas as figuras disponíveis, conclui que
se à figura). "Quero que fique verde!" não existem robôs. O professor então lhe indica
O professor lhe indica o comando MUDECT
como construir urna nova figura usando o editor
de figuras EDFIG. José Valdir �str6i urna
Após ter repetido o EP1 várias vezes, da
figura que é armazenada pelo professor da
mesma maneira que para Paulo, o professor
mesma maneira que as figuras desenhadas por
mostrou a José Valdir que se ele colocasse um
Paulo.

76
ap jiv (José Valdir) podem ser descritos e representados por um
atat 4 at algoritmo e este passa a repetir-se tantas vezes
criafigl 5 :h quanto o solicitado. José Valdir ainda não tem
mudefig 5 pt 40 consciência de todos os passos necessários e
fim a seqüência dos comandos na construção do
seu programa. Ele necessita ser auxiliado em
sua reflexão:

Professor: ·Primeiro tens que Inventsr um


nome para o programa".
José Valdir: .... Já sei! Bagunça". Tecla bca
lendo uma letra por sI/aba.
Professor: ·E agora, qual a primeira coisa que
acontece?"
José Valdir: ·Direita" Tecla PD 100. MUDEVEL
100.. ... agora a bola azul!" E assim até definir
A novidade de JIV era a construção da o programa:
figura. Quanto aos nomes dos programas obser­
vamos que José Valdir segue a idéia das iniciais ap bca
das palavras. Quando existe só uma palavra, jiv pd 100 mudevel 100
como no. caso do programa gato, ele realiza ba pd 100 mudevel 100
uma análise silábica colocando a letra Y para bv pd 100 mudevel 100
·ga" e a letra O para "to". No programa do yo pd 100 mudevel 100
robô ele necessita três letras para escrever seu tp pd 100 mudevel 100
nome. O esquema inicial sofre uma variação fim
quando José Valdir descobre a velocidade. O
programa não modifica o esquema anterior, Observamos que o programa bca é uma
apenas acrescenta-lhe um novo elemento, representação de seu esquema de procedimen­
incrementando sua abrangência: to. Repete os mesmos comandos apenas varian­
do o objeto.
ap tm (tartaruga maluca) Na 1? sessão José Valdir traz a idéia de
atat 5 mudevel 100 at fazer uma pista de corrida. Seu projeto é o de
fim dividir a tela em duas pistas e colocar carros
correndo em sentidos contrários. Mas por que
A mudança ocorre quando José Valdir esta idéia de uma pista de corrida? Podemos
começa a utilizar seus programas anteriores observar que em seu projeto José Valdir integra
como meios em outro esquema. Podemos falar os conhecimentos anteriores novamente corno
aqui de uma modificação do esquema procedu­ meios para atingir novos objetivos. Não ihteres­
ral EP1 em esquema procedural EP2 uma vez sa somente mudar a velocidade e a direção dos
que o que era o objetivo final de EP (chamar objetos que constrói, mas todas estas transfor­
uma tartaruga, mudar-lhe a figura e a cor) mações nas condiçOes dos objetos são neces­
passou a ser um meio para atingir o fim de EP2 sárias na concretização de um projeto maior que
(utilizar as figuras construídas para transformar as abarca: uma corrida Pode criar os desenhos
a direção e a velocidade). A partir da a8 sessão dos carros como fizera com o programa jiv,
José Valdir passa a: controlar sua direção e velocidade como no
programa bca José Valdir permanece6sessões
(1) chamar seus programas anteriores; neste projeto. Inicia dividindo a tela em 2 pistas
(2) mudar a direção e utilizando pf 100 e pf 100, já que era o maior no
(3) a velocidade da tartaruga. que conhecia. José Valdir conhece li represen­
tação das unidades e de alguns outros números
Após a repetição deste procedimento em maiores como é o caso do número 100 pois é o
algumas sessões, José Valdir é convidado a número da sua casa Após, inicia a construção
fazer seu procedimento através de um progra­ do carro no editor de figuras.
ma. Ao que ele responde: ·Para o computador Com o carro já definido inicia a colocação
fazer sozinho'" Aqui está uma idéia interessante do mesmo em diversas posições na pista:
da atividade de programação que começa a ser
descoberta por José Valdir. É a idéia de autôma­ un pe 100 pf 100
to. Isto é, os prOCedimentos que repetimos José Valdir: ·lhl Foi dema/sl"

77
Prof6$sor: "E agora?" mudefig O muclevel100
José Valdir: "Agora tem que voltar!· Tecla: pt fim
10 pt 10 pt 10 (para as repetições de coman­
dos José Valdir usa control-y). "Agora quero Analisando o projeto podemos verificar
para baixo·.
como José VaIdif organiza e representa sua
Professor: "Qual é ° lado?"
José Valdir: "Essa mão· (indica a 6$querda) e idéia de pista de corrida Nomeia-a com as
tecla: pe 10 pe 10 pe 10 pe 10 pe 10 pe 10 pe iniciais das palavras: barulho, sem e fim (BSF).
10 pe 10 sempre usando control-y. "Agora, A idéia da repetição está representada pelas
andarl" Tecla mudeve/ 100. simples repetições dos comandos. Ainda nAo é
capaz de operar com estas representações
José Valdir coloca 5 carros na pista Na como a adição ou a multiplicação para tratar os
esquerda da tela 3 carros descem e na direita 2 comandos repetidos ou a subtração para o
sobem. O prOcedimento utilizado para a c0lo­ ajuste das diferenças de Angulos. Mas o impor­
cação dos carros foi similar ao utilizado na tante é que está adquirindo um sitema de
colocação do primeiro carro. Para giros ou representação que lhe permite representar seus
deslocamentos grandes utilizava o númro100 e projetos.
para os ajustes repetia as vezes necessárias o Com a exploração do comando som já ,

número 10. Após a colocação, quis que os utilizado no programa BSF, e do comandÓ toque
carros fizessem barulho ao· iniciarem a andar. José Valdir consegue fazer dois programas, um
Foi-lhe apresentado o comando som e ele denominado BARULHO e o outro, DO. Para
escolheu som1515100. O programa foi por ele construir o programa DO, ele utiliza um xilofone.
denominado "barulho sem fim" e ficou assim: Fazendo uma testagem da execução do compu­
tador com sua própria execuçO no xilofone. A
ap bsf partir daí tem a idéia de fazer animais com seu
mudecf1 som caracteristico no computador. Qeftnlu uma
atat O pf100 pf100 voz para um �horro que chamou de au:
un pe100 pf100 pt10 pt10 pt10
pe10 pe10 pe10 pe10 pe10 pe10 pe10 pe ap au-au
10 toque O 8801019
criafigl O :carro mudefig O mudect11 mudevel 50 toque O 7841018
som1515100 toque O 8801019
atat1 at un pe100 pf100 toque O 7841018
pe10 pe10 pe10 pe10 pe10 pe10 pe10 pe fim
10
mudefig O mudect 4 mudevel100 Observamos aqui que existe a repetição
som1515100 de dois sons. O primeiro toque coresponde a
atat 2 at un pf100 pf100 pf10 pf10 "a" e o segundo a "u". Assim o progratna "diz
pe10 pe10 pe10 pe10 pe10 pe10 pe10 pe auau". Este é mais um exemplo de como um
10 pe10 programa pode representar um esquema de
pf100 pf100 pf10 pf10 pf10 pf10 pf10 pf10 procedimentos.
pf10 pf10 pf10 Para o som "miau" José Valdir utUiza 3
pe10 pe10 pe10 pe10 pe10 pe10 pe10 pe comandos toque: o primeiro para "mi", o segun­
10 pe10 do para "a" e o terceiro para "U·.
mudefig O mudect 8 mudevel100
som 1515100 ap miau
atat 3 at un toque O 7401010
pd 10 pd10 pd10 pd10 pd10 pd10 pd10 pd toque O 8801019
10 pd10 toque O 7841018
pf10 pf10 pf10 pf10 pf10 fim
pe10 pe10 pe10 pe10 pe10 pe10 pe10 pe
***
10 pe10
som1515100
atat 4 at un O empenho destas duas crianças na
pd100 pe10 pf100 pt10 pt10 pt10 pt10 representação de projetos definidOs por elas
pe10 pe10 pe10 pe10 pe10 pe10 pe10 pe mesmas nos possibilita discutir algumas ques­
10 pe10 tOes referentes ao emprego destes ambientes
na alfabetização, em sentido amplo, de crianças

78
com problemas de desenvolvimento. suas dificuldades, propicia espaço para uma
O diagnóstico de um desenvolvimento intervenção concreta do professor e coloca a
sadio ou não é determinado por um critério de criança no lugar de agente de sua aprendiza­
avaliação que é construído socialmente. Mesmo gem. Acreditamos que os dados analisados dos
quando estamos diante de um indivíduo concre­ dois meninos fornecem evidências de como a
to o padrão de avaliação mais utilizado é a ativação e o funcionamento dos esquemas que
comparação das suas condutas, aprendizagens são possíveis permite que o próprio sujeito
e desempenhos com um sujeito ideal, teórico encontre novos conhecimentos e construa
que informa das defasagens e da distância do novos esquemas.
primeiro em relação ao último. A maioria dos Assim como não comparamos nosso
-ç:ritérios de avaliação mostra o esperado para sujeito concreto com o ideal também não limita­
cada período do' desenvolvimento e nos dá mos o que pode e o que não pode aprender e
indícios do que falta ao nosso sujeito concreto os passos de sua aprendizagem. A estratégia
para se aproximar deste padrão. Nosso sujeito usada no ambiente é fazer com que o sujeito
concreto é sempre definido no negativo: "falta seja desafiado pelo conhecimento e "sofra" as
de atenção, dificuldade de coordenação viso­ conseqüências desta aventura. Assim não é
motora, não operatório, carência afetiva, desa­ necessário que esteja alfabetizado para escrever
gregação familiar, prejuízo neurológico, etc". os comandos da linguagem artificial, mas pode­
Estes diagnósticos são as "razões" que tentam rá descobrir os mistérios e a magia da escrita de
dar cont� da sua não aprendizagem mas que sua própria língua escrevendo na "língua da
raramente são passíveis de intervenção por máquina". Como também não é necesário já ter
parte dos professores. Trabalhar sobre o que compreendido a estrutura do sistema posicional
não está bem, com a dificuldade, tem sido o numérico para realizar um projeto, mas é testan­
objetivo de muitos profissionais que lidam com do suas hipóteses sobre a escrita de diferentes
estas crianças. A ênfase da intervenção sobre o quantidades que descobrirá quantidades que
sintoma pode acarretar, além do desejado nunca imaginou contar. E ainda, para programar
desaparecimento, outras saídas não levadas em um computador não é necessário ter um algorit­
conta por estes profissionais como por exemplo, mo definido, mas é no próprio processo de
a transferência do sintoma, a erotização do realização e reflexão dos resultados do realizado
mesmo, etc. que poderá chegar lá.
Um dos objetivos da realização do estudo E qual a razão da presença de uma
destes dois meninos foi abrir a discussão para linguagem artificial neste ambiente? Pelo singelo
a construção de uma outra perspectiva de motivo que uma linguagem artificial possibilita ao
trabalho com estas crianças. Esta possibilidade sujeito representar e manipular seus próprios
não nega que exista uma diferença no desenvol­ esquemas de procedimentos (isto é, suas ações
vimento destas crianças e o "sujeito ideal" das em seqüências). E a possibilidade de simboli­
avaliações (como existem diferenças entre este zação é a própria capacidade de colocar estas
"sujeito ideal" e qualquer outro sujeito humano seqüências representadas em um todo simultâ­
concreto). A atenção não está na diferença mas neo. É a partir da construção dos conjuntos de
sim nos esquemas de procedimentos postos em representações simultâneas (programas) que o
funcionamento pelo sujeito quando em interação sujeito pode ativar o processo de reflexão sobre
com um ambiente de aprendizagem. No estudo suas próprias maneiras de representar suas
que realizamos procuramos mostrar que a formas de agir.
ênfase nas possibilidades do sujeito e não nas

* * *

Notas

1. Este artigo faz parte do livro: "Explorando os 3. Cf. o processo de formação de possibilidades.
limites da deficiência". Organizado por FAGUN­ RAMOZZI-CHIAROTTINO, Z. Em busca do
DES, L (no prelo). sentido da obra de Jean Piaget. São Paulo :
Ática, 1984.
2. O simbólico da escrita é aqui entendido no
sentido da representação cf. PIAGET, J. A 4. "Mais números" para Paulo significa uma maior
formação do srmbolo na criança. Rio de Janei­ justaposição de sinais.
ro : Zahar, 1978.

79
5. Para InformaçOes sobre a programação em Brasiliense, 1985; VALENTE, J. e VALENTE, A.
Logo: AXT, M. Explorando listas em Logo. B. Logo: conceitos, aplicações e projetos. São
McGraw-HiII, São Paulo, 1989. PAPERT, S. Paulo : McGraw-HiII, 1988.
Logo: Computadorese Educação. São Paulo:

... ......

Cleci Maraschin é Professora do Departamento.de Psicologia do


Instituto de Filosofia e Ciências Humanas da Universidade Federal do Rio Grande do Sul e Integra a equipe de
Pesquisadores do laboratório de Estudos cognitivos do mesmo Departamento.

80
Os escritos de Piaget, nos últimos anos, temente, qualquer tentativa para aplicar o
têm fornecido um grande repertório de idéias construtivismo de Piaget em um contexto peda­
úteis e interessantes relacionadas ao processo gógico fundamentado na ideologia do capitalis­
de educação. Psicólogos1 especialistás2,3,4 em mo é, de fato, uma impossibilidade.
currlculo e educadoress,e têm mostrado como a Reese e Overton argumentaram que uma
psicologia do desenvolvimento cognitivo de teoria psicológica pressupõe um modelo metafí­
Piaget pode ser aplicada a várias questões sico ou epistemológico mais geraf. Esses
relativas à prática educacional. Em escritos modelos são representados como paradigmas
anteriores7", foi discutido que qualquer aplica­ ou visões de mundo. Teorias derivadas de
ção da teoria de Piaget deve refletir, num modelos diferentes são independentes e, con­
contexto pedagógico, uma base epistemológi­ seqüentemente, mutuamente exclusivas. Visões
ca; fazer de outro modo é limitar a natureza de mundo distintas envolvem distintaS concei­
revolucionária de Piaget e, desse modo, incor­ tualizações a respeito da natureza e aquisição
rer em erros grosseiros tanto na interpretação do conhecimento. Qualquer tentativa de slntese
quanto na aplicação. é impossivel e, melhor dito, confusa
A posição deste artigo é a de que a psicolo­ Riegel delineou a influência da ideologia
gia construtivista piagetiana e os pressupostos capitalista e da socialista na evolução da psico­
do materialismo científico (que constituem as logia do desenvolvimento1o• Ele vê a orientação
bases da psicologia comportamental contempo­ capitalista como um modelo de crescimento
rânea e do capitalismo monopolista) são mutua­ contínuo no qual indivíduos são avaliados em
mente exclusivos. Algumas implicações educa­ comparação a padrões normativos, o que
cionais da teoria do desenvolvimento de Piaget implica uma forma de estratificação. O socialis­
deveriam ser examinadas à luz da função mo, por outró lado, enfatiza o crescimento
dominante da escola na América (EEUU) a qual qualitativo que encoraja a unicidade (unique­
serve, essencialmente, para sustentar e promul­ ness) e padrões multidimensionais. A natureza
gar a ideologia política do capitalismo através dialética do construtillismo de Piaget comparti­
da psicologia do comportamentalismo. Será lha uma mesma fundamentação epistemológica
discutido que a Ideologia palitica de escolariza­ com a ideologia do socialismo e, conseqüente­
ção na cultura anglo-saxônica é compativel com mente, qualquer aplicação educacional de
os fundamentos teóricos do moderno capitalis­ Piaget, em um contexto pedagógico, deve ser
mo monopolista Capitalismo e comportameta­ vista num sistema politico e econômico compa­
lismo, como disciplinas teóricas, compartilham tivel.
uma mesma visão de mundo materialista. A Embora Kohlberg e Mayer tenham proporcio­
·Iinguagem· e a ·ciência· do comportamen­ nado uma forte argumentação a respeito das
talismo é também a ·Iinguagem· e a ·ciência" posições éticas que sustentam as ideologias
do capitalismo. educacionais, criticam, entretanto, o fato de que
Em função de a psicologia construtivista o desenvolvimento, como um objetivo em
piagetiana ser derivada de uma interdependên­ educação, seja feito sem referência a realidades
cia dialética do organismo e do meio, pressu­ políticas inerentes à ideologia capitalista e
põe-se uma imagem de homem e de natureza comportamentalista, as quais constituem a base
do conhecimento que é mutuamente exclusiva da prática educacional contemporânea Kohl­
em relação à ideologia capitalista. Conseqüen- berg e Mayer mostram que a ·concepção

EDUCAÇÃO E REAUDADE, Porto Alegre, 18(1):81-100, jan/jun. 1993 81


desenvolvimentista continua a única racional MODELOS: MATERIAUSTA E DIALÉTICO
para resolver essas (isto é, educacionais)
injustiças, e para promover a base para um De acordo com C. Wright Mills ·um modelo
processo educacional verdadeiramente demo­ é um inventário mais ou menos sistemático de
crático·11 (p. 494). No entanto, Kohlberg e elementos aos quais temos que prestar atenção
May�r falham na percepção de que a prática da se queremos entender algo. Não é verdadeiro
escolarização na ideologia capitalista não é ou falso; é útil e adequado para graus diferen­
para promulgar a democracia como um ideal, tes·12 (p. 36). Um modelo é compreensivo e
mas ao contrário, é um meio para promover um abrange todos os aspectos da condição huma­
mecanismo para controle social na manutenção na Modelos contém teorias da humanidade, da
de urna estrutura de classe rígida que é essen­ sociedade e da história Eles contém suposi­
cial para uma sociedade capitalista ções sobre como uma sociedade é construída
O presente artigo examina as questões e como se mantém. Eles também sugerem os
fundamentals relacionadas aos modelos episte­ métodos de estudo apropriados para suas
mológicos básicos, que são categorialmente teorias. Em resumo, um modelo fornece a
incompatíveis, e como essa incompatibilidade é maquinária para pensar a respeito da humani­
mantida submersa através das disciplinas dade, da sociedade e da história
teóricas da economia política e da psicologia. Um modelo é capaz de abranger toda ativi­
Esse determinismo categOrial baseado em dade humana Modelos definem as característi­
pressuposições epistemológicas não se esgota cas essenciais do homem e a natureza da
no nível das disciplinas teóricas. Ele se estende realidade. Reese e Overton indicam que os
a níveis mais profundos ainda, a aplicações modelos servem a três funções principais8•
específicas de uma dada teoria chamada de Primeiro, os modelos representam elementos e
prática Teorias construídas sobre distintos suas relações. Por exemplo, um modelo de
modelos epistemológicos são únicas e indepen­ sociedade poderia incluir a representação da
dentes; quaisquer àplicações ou práticas que relação de vários elementos que constituem
emanem de cada uma dessas teorias serão uma sociedade, tal como governo, escolas e os
também mutuamente exclusivas. meios de produção. Segundo, os modelos
Será discutido que a concepção materialista servem como princípios organizadores ou
do universo forma o modelo de onde emanam paradigmas que explicam aspectos específicos
as teorias relacionadas à psicologia comporta­ de teoriasl3• Um exemplo desta função pode
mental e ao capitalismo. A prática educacional ser visto no modelo biológico do conhecimento
baseada nessa fundamentação forma uma de Piaget que produz urna teoria psicológica
pedagogia que inclui a estratificação de classes baseada na interação com o ambientel4• Tercei­
na forma de seu curso, nas medidas psicométri­ ro, modelos servem para definir problemas
cas normativas de realização e num processo significativos; \.Ima ciência para investigar esses
desigual de educação que mantém as desigual­ problemas e a Interpretação de como aS solu­
dades de classes. Além disso, será mostrado ções desses problemas poderiam ser postas
que a psicologia do desenvolvimento de Piaget em prática para o melhoramento da humanida­
tem como seu pressuposto uma concepção de.
dialética que é mais compatível com a ideologia Tradicionalmente, três modelos gerais têm
socialista A prática educacional, baseada sido promovidos no pensamento filosófICO
nessa fundamentação, forma uma pedagogia ocidental. São o idealismo, o materialismo e a
que Inclui um modelo holista e dialético prefe­ dialética Para o propósito deste artigo, o mode­
rencialmente a uma visão reducionista e meca­ lo idealista não será discutido. A primeira razão
nicista; medidas qualitativas da capacidade é que as formas específicas-de'teoria e prática
cognitiva de preferência a medidas quantitativas relacionados ao modelo Idealista não são
de performance c{)ngnitiva; e um modelo de amplamente encontradas na sociedade ociden­
crescimento descontínuo que é avaliado em tal contemRQrânea na forma de ideologias
_

termos das necessidades coletivas da socieda­ polfticas ou prática educacional. O leitor interes­
de de preferência a um modelo de crescimento sado poderia consultar Kohlberg e Mayer para
contínuo onde as crianças são avaliadas em uma discussão do modelo idealista na prática
comparação a padrões normativos que refletem educaclonall4• Poderia ser salientado também
uma estrutura de classes rígida que a seguinte discussão a respeito'do materia­
lismo e da dialética não se preocupará em

82
oferecer exposições detalhadas relativas às como uma máquina pode ser encontrado no
filosofias específicas associados ao modelo trabalho de Hume. Hume adota o método
dado mas, ao contrário, fará descrições gerais newtoniano na filosofia para proporcionar uma
do modelo em questão. orientação mecânica à mente. Mischel declara:
É difícil localizar um ponto exato na história ·0 pensamento toma-se não algo que faze­
onde o modelo materialista teve suas origens. mos, mas a ocorrência de imagens mentais
Entretanto, a tradição filosófica geralmente cujas apariaçOes e desaparecimentos são
delimita suas origens ao filósofo Descartes, do explicadas pelas 'forças' da associação·18 (p.
século dezessete. Para proporcionar uma 13). Seguindo a tradição de Locke, Hume
justificativa epistemológica para a revolução propOe que, já que o pensamento é invisível,
científica de GaliI�u e de seu trabalho relaciona­ pode-se apenas focalizar no mundo externo a
do ao movimento dos corpos, Descartes propôs causa desses pensamentos. Para Hume e
um modelo de homem que consistia de mente outros materialistas, o comportamento humano
e corpo. De acordo com Ryle, a mente era, é causado por um agente extemo.
para Descartes, um fantasma na máquina15• O A análise causal liga-se a uma orientação
fantasma é constituído de substância de pensa­ determinista no modelo empirista Cada orienta­
mento sem existência corpórea e apenas as ção implica um processo unidirecional de causa
manifestaçOes extemas do corpó e seus movi­ e efeito.
mentos podem ser observados. A relação entre
mente e 'corpo é causada puramente na nature­ Como uma cosmologia, o modelo representa o
za Dentro do dualismo cartesiano de mente e universo como uma máquina, composta por peças
corpo, todas as ações humanas, são mecâni­ operando num campo espaço-temporal. As peças
cas e são causadas por uma cadeia contínua - partfculas elementares em movimento - e suas
relações formam a realidade básica na qual todos
de processos físicos.
os outros fenômenos mais complexos. são final­
A metáfora da máquina como uma caracterís­
mente reduzidos. Na operação da máquina, forças
tica do modelo materialista foi explicitamente são aplicadas e dar resulta uma seqüência de
postulada pelo trabalho de Hobbes, um con­ eventos semelhante a uma cadela Isso posto, falta
temporâneo de Galileu e Descartes. Mischel apenas um pequeno passo para o reconhecimento
descreve a concepção de Hobbes sobre os de que a predição completa é, em prlncfplo,
seres humanos como um sistema material onde posslvel. Desde que se tenha o completo conheci­
o coração é a mola principal, os nervos são as mento do estado da máquina em um ,determinado
cordas e as articulaçOes são as rodas. Para momento no tempo pode-se Inferir o estado no
Hobbes, as leis que govemavam os corpos próximo, dado o conhecimento das forças a serem
aplicadas - uma caracterfstlca adicional da máqui­
físicos também govemavam as ações humanas.
na, e conseqüentemente do universo representado
Locke está entre as figuras mais significativas
desse modo, é que é eminentemente suscetfvel de
encontradas na tradição materialista Seus
quantificação: EquaçOes funcionais podem ser
escritos filosóficos abrangem todo o campo dos constructos que mostram a relação entre as peças
interesses humanos. Se alguém tiver que em sua operaçã08 (p. 131).
encontrar um credo ou manifesto relacionado
ao modelo materialista, ele poderá ser encon­ As características gerais do modelo materia­
trado no MEnquiry Conceming Human Under­ lista podem ser resumidas da seguinte forma:
standing· (Investigação sobre a Compreensão
Humana) de Locke, escrito em 1690. A, agora, 1. A realidade é a soma de todos os even­
famosa doutrina da mente como uma -tabula tos e coisas que são quantitativamente
rasa· é encontrada nesse trabalho. Locke mensuráveis.
sumariza a posição materialista através da 2. O universo e todos os elementos nele
seguinte declaração: contidos são como urna máquina e,
portanto, pode-se explicar tudo sobre ele
Suponhamos que a mente seja, como dizemos, através das leis da ciência oU" princípios
papel em branco, vazio de todas as caracterfstlcas, da física
sem nenhuma idéia: - como ela é preenchida? . . A A lei da mecânica implica que os eventos
3.
essa pergunta eu respondo, em uma palavra, pela
ocorrem porque funcionam a partir de
EXPERI�NCIA17 (p. 313-4).
causas mecânicas e, enquànto essas
causas forem as mesmas, os efeitos
Com o início da mecânica newtoniana, no
também serão os mesmos.
século 18, o modelo materialista de homem

83
4. C�da evento no universo é uma instância da e, conseqüentemente, revela a sua nova
de um padrão ou lei causal definida antltese. Quando a nova tese e sua antltese
5. O número de leis no universo já está são unidas, a nova síntese é mais compreensi­
fixado e limitado e, portanto, uma vez va e reúne mais verdade do que qualquer das
que essas leis sejam compreendidas será doutrinas originais: Esse processo ,continua
possivel predizer todos os eventos. indefinidamente. De acordo com Hegel, a mente
6. Todos os fenômenos (psicológicos, s0- é dirigida pelo movimento de seu próprio pen­
ciológicos e históricos) podem ser reduzi­ samento em direção a formulações mais equili­
dos às leis básicas da fisica bradas, extensas e compreensivas da realidade.
Retornaremos a este método dialético de busca
A seguinte descrição do modelo dialético não da verdade na seção sobre o construtivismo de
tem a intenção 'de ser uma história filosófica Piaget.
compreensiva mas, ao contrário, uma descrição Um segundo aspecto significativo da filosofia
geral das características fundamentadas no de Hegel é a concepção da relação entre o
ponto de vista dialético de humanidade. Nenhu­ todo e as partes. É na área das relações entre
ma tentativa será feita para examinar os movi­ as partes e o todo que Hegel ataca a metodolo­
mentos filosóficos especfficos como atomismo gia do materialisruo cientifico e sua cosrooJogia
expiritual, absolutismo, pragmatismo oufenome­ mecanicista Para Hegel, nenhum elemento
nologia como contribuiçõeS para o modelo isolado no universo pode ser entendido quando
dialético geral. está divorciado do contexto do todo no qual
A característica isolada mais importante que aparece. Em vez de usar a aproximação redu­
distingue o modelo dialético do modelo materia­ cionista, advogada pela ciência materialista, a
lista é que a essência da realidade é a ação ciência dialética precisa usar o método dialético
humana em oposição à reação mecanicista O de doutrinas opostas para chegar a uma verda­
modelo dialético rejeita que exista um dualismo de significativa A realidade básica é encontra­
entre mente e corpo ou sujeito e objeto. O da no todo, o qual contém todos os outros
conhecimento da realidade não é nem o resul­ todos como suas partes. Embora os sujeitos do
tado da experiência interior nem o registro de conhecimento e os objetos do conhecimento
sensações exteriores, mas uma relação dinâmi­ aparecem como duas coisas separadas, são
ca entre um organismo ativo e um ambiente iluminados juntos peJo ato do conhecimento.
ativo. Hegel afirmou que o conhecimento da mente e
Em função de o modelo dialético geral não o conhecimento do objeto constituem um todo
ser facilmente traçado, a seguinte descrição ou unidade. A totalidade da relação está consti­
focalizará apenas os expoentes, na história das tuída pelo sujeito, peJo objeto e pelo ato do
idéias, que se dirigiram à natureza da mente e conhecimento. A totalidade do conhecimento é
da ação humana como uma teoria de conheci­ real e existe; mente e objetos são merarrente
mento. Como ponto de partida, será útil exami­ elementos nesse todo e se os observamos
nar os fundamentos epistemológicos de Hegel, como existindo separadamente, como no caso
Está além do alcance deste artigo revisar err do materialismo cientifico, isso levará a falsas
detalhe toda a filosofia de Hegel. No entanto, abstraçOes da verdade.
certos aspectos relevantes serão identificados Outra escola de filosofia a ser considerada
para o propósito geral de proporcionar a funda­ nesta descrição do modelo dialético será a do
mentação básica do modelo dialético. pragmatismo. Em lugar de desenvolver as
Para Hegel, a verdade da realidade é encon­ contribuições especificas de Peircs, James ou
trada por um processo ou método conhecido Dewey, será apresentada uma descrição geral
como dialética Hegel afirmou que, mediante o do pragmatismo. A descrição centrar-se-á
exame cuidadoso de qualquer doutrina, pode naquelas características do pragmati�mo rela­
ser mostrado que ele pode ser auto-contradit6- cionadas aos aspectos gerais do modelo dialé­
rio através da utilização de uma doutrina opos­ tico.
ta Isto representa a famosa noção hegeliana O pragmatismo foi o primeiro movimento
de tese e antltese. A verdade reside na síntese filosófico modemo a olhar para a biologia de
das duas unidades de ambas doutrinas num preferência à física ou à matemática como uma
plano superior. A doutrina da síntese resultante fonte de inspiração. A teoria evoluçionista de
conhecida como Tríade torna-se a nova tese. Darwin da seleção natural proporcionou para os
Mediante a análise, a Tríade torna-se inadequa- filósofos pragmatistas uma nova orientação a

84
respeito da natureza da transformação que futuro.
estava tradicionalmente fundamentada na 5. Todos os fenômenos (psicológicos, s0-
mecânica newtoniana ou na lógica analítica da ciológicos e históricos) são mais do que
matemática fatos isolados ou elementos por eles
O aspecto distintivo do pragmatismo é o seu contidos; são totalidades que os trans­
conceito de verdade, um conceito que identifICa cendem.
verdade com utilidade ou utilitarismo. O prag­ 6. A verdade é um valor que representa
matismo considera que o conhecimento é uma maneira oportuna de pensar sobre
verdade se "funciona- (if it "Works-). Uma a realidade.
idéia ou hipótese -está de acordo- com a
realidade no sentido de ser uma solução exito­ A NATUREZA DAS TEORIAS
sa para um proclema
Na experiência analítica a mente é ativa A As teorias são categorialmente subsumidas
mente não ápenas discrimina mas seleciona e conforme os modelos. Enquanto oposta a um
soma à percepção de verdade de acordo com modelo, uma teoria é uma declaração que se
os Interesses e propósitos do indivíduo. A pode demonstrar verdadeira ou falsa sobre a
verdade emerge da utilização crítica do melhor relação dos elementos no modelo. Uma teoria
método que se possa desenvolver. O que é real é por natureza incompleta e envolve aspectos
ou verdadeiro consi�e na' realidade que o isolados da condição humana
homem construiu porque é precisamente o tipo Como indicaram Reese e Overton, teorias
de realidade que melhor serve aos propósitos geradas de um mesmo modelo representam
de alguém. A verdade, portanto, é um valor. uma família de teorias embora elas não preci­
Visto que toda a experiência é finita, nenhuma sem estar necessariamente interessadas no
crença pode ser considerada totalmente corre­ mesmo conteúd09• Teorias baseadas num
ta. modelo compartilham uma linguagem comum.
O pragmatismo considera que as assim Exemplos de famílias de teorias psicológicas
chamadas leis de ciência devem ser considera­ estão representadas nas escolas behavioristas
das como ensaios de verdade ou hipóteses. A de teóricos das contiguidades (Guthrie e Ban­
verdade é uma hipótese construída pelo dura) e teóricos do reforçamento (Hull, Spence
homem e um produto da livre escolha e modifi­ e Skinner). As controvérsias sobre teorias, no
cável pelo livre arbítrio. Se a verdade modifica­ interior de uma mesma família, não envolvem
da ou hipótese produz consequências satisfató­ disputa epistemológica, apenas disputas empíri­
rias, a hipótese mais recentemente construída cas. Teorias geradas de diferentes modelos são
é -mais verdadeira- do que a hipótese origi­ sob o aspecto categorial mutuamente exclusi­
nai. A realidade está continuamente sendo feita vas.
O pragmatismo afirma que valores como verda­ Será argumentado aqui que as teorias rela­
de e mentira, beleza e feiura, realidade e irreali­ cionadas ao behaviorismo e ao capitalismo
dade, não são fatos externos, mas o produto da representam uma família de teorias com conteú­
ação humana dos distintos, e que o construtivismo de Piaget
As características gerais do modelo dialético e o socialismo também representam uma família
podem ser resumidas da seguinte forma: unificada de teorias.
Posteriormente será argumentado que as
1. A realidade é qualitativamente maior do teorias relacionadas à psicologia behaviorista e
que a soma dos elementos individuais ou à ideologia política do capitalismo representam
experiência que são quantitativamente uma família de teorias que emanam do modelo
mensuráveis. materialista, enquanto o construtivismo de
2. As leis da natureza são construídas como Piaget e a ideologia política do socialismo
um produto da interdependência dialética representam uma família de teorias gerada a
entre sujeitos e objetos. partir do modelo dialético. Como Reese e
3. As leis científicas não são definitivas nem Overton descreveram tão oportunamente, -a
absolutamente verdadeiras. diferença crucial é tão fundamental e extensa
4. O futuro é desconhecido e, portanto, não em suas implicaçOes que o sincretismo é
podemos falar que uma lei cientifica, impossível, e a única reconciliação possivel é
embora tenha funcionado no passado, como o jogo paralelo dos pré-escolares no qual
seja necessariamente considerada no os protagonistas estão separados, mas igual-

85
mente e mutuamente tolerantes·e (p. 116). causa final é o ponto de chegada em direção
ao qual um organismo se desenvolve.
BEHAVIORISMO Como o behaviorismo emana do modelo
materialista previamente descrito, apenas as
Está obviamente fora do alcance deste artigo causas material e eficiente são usadas para
apresentar uma discrição compreensiva da explicar os determinantes do comportamento
família de teorias representadas sob a rubrica humano. Tal como uma teoria de opiniões
geral de behaviorismo. A apresentação está psicológicas, MOS organismos. . . operando por
centralizada nos aspectos unificadores do meio da aplicação de forças, resultando em
behaviorismo e nas questões metodológicas, na uma cadeia de seqüências de eventos. Esclare­
medida em que se relacionam com o modelo cendo, isso significa que é assumido que
materialista. Uma análise detalhada desta somente as relações lineares existem entre as
relação pode ser encontrada em Misiak; "The causas eficientes e os efeitos,.20 (p. 82).
Philosophical Roots of Sicentific Psychology· Em toda a literatura behaviorista encontra­
( 1961). mos uma tendência derivada do modelo mate­
Conforme Skinner declara, MO behaviorismo rialista que enfoea a causalidade eficiente. O
não é a ciência do comportamento humano; é ponto em questão é que a causalidade efICiente
a filosofia desta ciência.li (p. 3). Skinner conti­ é derivada de uma visão de mundo particular
nua: Mconsiderar apenas 'aqueles fatos que que afirma que a experiência pode ser reduzida
podem,ser observados objetivamente no com­ a seqüências situacionais específicas de ante­
portamento de uma pessoa na sua relação com cedente independente e de eventos conse­
sua história ambiental prévia. Se todas as qüentes.
ligações são legítimas, nada está perdido pela Joad resumiu a posição behaviorista no que
negligência a um suposto elo não físico· (p. se relaciona ao modelo materialista:
13). Skinner denomina isso de Mbehaviorismo
metodológico· e é sua a afirmação de que o ... os movimentos nos corpos dos seres humanos
Mbehaviorismo metodológico pode ser pensa­ estio sempre determinados pelos movimentos
do como uma versão psicológica do positivismo precedentes nos seus corpos, esses, por sua vez
lógico· (p. 14). pelos movimentos precedentes, e assim por
diante, através de uma cadela contrnua de movi­
Um tema central para a psicologia do beha­
mentos corporais, a qual termina com estrmulos
viorismo centrou-se na análise dos determinan­ aplicados no corpo a partir do mundo externo para
tes causais. Embora exista grande diversidade o qual o primeiro movimento na cadela é uma
entre os behavioristas, a maioria concordaria respoSta ConseqQentemente, a lei de cause e
que a criação, manutenção e remoção de um efeito que opera universalmente no mundo externo
comportamento depende dos eventos ambien­ opera também no Interior dos corpos human0s21
tais de estimulação, e que existe uma relação (p. 521).
funcional e legítima entre os comportamentos e
os eventos ambientais. Como Overton e Reese Sem sombra de dúvida, o modelo materialista
indicam, Mna medida em que se mantém que define categorialmente a linguagem e a ciência
um evento é produzido por outro evento, indife­ do behaviorismo. O' behaviorismo é essencial­
rente a se esses eventos estão disfarçados sob mente uma transposição das mecânicas galile­
a aparência de relaçOes condicionais ou funcio­ ana e newtoniana na exploração das relações
nais, uma análise causal está de fato sendo entre eventos mentais e ação humana em
produzida,.20 (p. 76). termos de entidades independentes, enclausu­
Na tradição filosófica ocidental, quatro deter­ radas, que seguem a lei natural.
minantes causais são geralmente considerados. White resume, a seguir, o ponto de vista
São eles: as causas material, eficiente, formal e behaviorista:
final. No uso psicológico contemporâneo, as
causas materiais consistem nos materiais 1. O m�io pode ser, sem arnbiguidade,
biológicos necessários para o comportamento caracterizado como estímulo.
(bioquímico, neurológico e hormonaQ. A causa 2. O comportamento pode ser, sem ambi­
eficiente refere-se aos estímulos externos ou guidade, caracterizado como resposta
condição antecedente que estimula os organis­ 3. Existe uma classe de estímulos os quais
mos. A causa formal é o modelo organizacional aplicados contigentemente e imediata­
da estrutura psicológica de um organismo, A mente após uma resposta, aumentam-na
ou diminuem-na em algum indício mensu-

86
rável. Esses estímulos podem ser trata­ talista reúne o espírito, a moral, os valores e as
dos como reforçadores. atitudes da sociedade que envolve sua visão da
4. A aprendizagem pode ser completamente realidade social.
caracterizada em termos de várias rela­ Historicamente, a gênese da ideologia do
ções possíveis entre estímulos, respostas capitalismo moderno pode ser encontrada no
e reforçadores. Zeltgelst da ciência materialista do século XVIII.
5. A menos que haja evidência definitiva do É nos escritos de Hobbes, Hume e Locke que
contrário, classes de comportamento se encontram as origens do espírito capitalista
podem ser consideradas aprendíveis, A concepção total do homem e das ciências
manipuláveis, extinguíveis e treináveis sociais vieram sob a influência das concepções
pelo meio22 (p. 656-66). e métodos newtonianos. Os pensadores do
século XVIII enfatizaram a noção da lei universal
Finalmente, White mostra que, para os beha­ e da ordem causal em toda parte da natureza
vioristas, "há, então, um compromisso unifica­ O objetivo dos pensadores iluministas era
dor entre o universo científico de estímulos e construir uma ciência social completa de acor­
respostas e o entendimento da adaptação do com o modelo da fisica Eles acreditavam
comportamental como um processo de seleção que era possivel phegar a uma ciência natural
de respostas através do reforçamento, e a da produção da riqueza A tarefa da ciência
precisão metodológica da observação e inter­ econÔmica era decobrir e proclamar essas leis.
pretação parcimoniosa022 (p. 666). No trabalho de Hobbes, Locke e Hume,
encontra-se uma união entre a ciência materia­
A IDEOLOGIA CAPITALISTA lista e o determinismo econÔmico. Os pensado­
res iluministas do século XVIII combinavam a
O foco desta seção estará primeiramente concepção newtoniana da lei universal e da
dirigido ao contexto ideológico do capitalismo ordem causal harmÔnica com os problemas
e não à descrição funcional do capitalismo relacionados à dignidade e ao valor da vida do
como um sistema econÔmico. Para o objetívo homem nesta terra
deste artigo, uma ideologia é conceitualizada Em geral, a classe dominante, na sociedade
como um sistema de idéias e crenças que é capitalista contemporânea, baseia-se ainda nos
mais ou menos compartilhada por um grupo principios políticos, morais e econÔmicos,
social. introduzidos no século XVIII, sob a influência da
Dentro desta definição conceitual, C. Whight mecânica newtoniana e em resposta às neces­
Mills identifica três aspectos carcterísticos de sidades sociais do século XVIII.
uma ideologia: Dois desses principios, o hedonismo e o
valor de troca do trabalho são centrais para a
1. Uma ideologia representa um quadro das ideologia capitalista atual. O hedonismo e o
realidades sociais nas quais certas insti­ valor de troca do trabalho representam o centro
tuiçOes ou práticas são justificadas e ideológico essencial do capitalismo contempo­
outras são condenadas; râneo. Esses dois principios seguem os crité­
2. Uma ideologia contém suposiçOes sobre rios de MiII para uma ideologia O hedonismo e
como uma sociedade é organizada e o valor de troca do tabalho são usados como
como ela funciona; uma justificativa para a estratificação de clas­
3. Uma ideologia é uma ética ou uma articu­ ses, o papel do governo e o controle social, e
lação de ideais que são usados no julga­ o processo de escolarização que serve para
mento dos homens, eventos e movimen­ transmitir esses princípios.
tos12 (p. 12-3). Os princípios básicos do hedonismo moder­
no foram expostos por Hobbes no seu clássico
As ideologias crescem num contexto histórico trabalho Levlathan. Em contraste com a ética
especifico; em resposta a circunstâncias e religiosa da. época, Hobbes advogava uma
necessidades definidas em relação a outras filosofia hedonista ou uma filosofia de felicidade.
séries de idéias. O capitalismo é mais do que Achava ele que o bem verdadeiro e a dignidade
uma teoria de economia política Como uma do homem seriam encontrados na felicidade
ideologia, estabelece o tom para todos os individual.
'aspectos da sociedade e todas as dimensões A filosofia hedonista de que o povo age para
da vida humana e da cultura A ideologia capi- obter prazer e fugir da ou evitar a dor é similar

87
à psicologia behavorista de B. F. Skinner. Em Heilbroner resume as leis de mercado de
"Beyond Freedom and Dignity", Skinner decla­ Smith:
ra:
M leis de mercado de Adam Smith são basica­
A luta do homem pela liberdade não se deve a um mente simples. Elas nos dizem que como c0nse­
desejo de ser livre, mas a certos processos com­ qüência de um certo tipo de comportamento, em
uma certa estrutura social, teremos resultados
portamenta:s caracterrsticos do organismo huma­
perfeitamente definidos e previsfveis. Especifica­
no, cujo principal efeito é a evitação ou fuga dos
mente, elas nos mostram como o esforço do auto­
assim chamados aspectos 'aversivos' do mei023
Interesse Individuai em um ambiente de Indivrduos
(p. 34).
similarmente motivados resultará em competição;
e mais adiante eles demonstram como a competi­
o conceito de felicidade de Hobbes e o ção Irá resultar na provisão desses bens dos quais
conceito de liberdade de Skinner referem-se a sociedade necessita, nas quantidades que a
ambos a uma evitação da dor e a uma necessi­ sociedade deseja, e nos preços que a sociedade
dade de elogio ou reforçamento positivo. "Nós está preparada para pagar25 (p. 49-50).
reconhecemos a dignidade ou o valor de uma
pessoa quando lhe damos crédito (elogio) por A "mão invisível" de Smith é semelhante à
aquilo que fez" 23 (p. 55). "ordem natural" dos materialistas e às leis do
comportamento advogadas pela escola beha­
Encontra-se uma orientação similar em Locke: viorista da psicologia Existe claramente uma
An Ess ay Concernlng Human Understandlng: afinidade de modelos entre as teorias psicológi­
cas do behaviorismo e as teorias do capitalis­
o prazer e a dor, e o que os causa, o bem e o mo. O capitalismo econômico e o behaviorismo
mal, são as articulações nas quais giram nossas psicológico compartilham uma estrutura mate­
palxOes... A dificuldade que um homem encontra rialista comum. Como distintas disciplinas
em si próprio na ausência de alguma coisa, a qual teóricas, behaviorismo e capitalismo fIZeram
propicia satisfação e carrega a idéia de prazer com seus distintos caminhos; histórica e conceitual­
ela, é o que chamamos desejo; que é maior ou mente as suas gêneses podem ser traçadas em
menor assim como a Inquietação é mais ou menos modelo comum de realidade baseada na con­
veemente. .. O principal, se não único estrmulo para
cepção materialista da lei universal. A psicolo­
a atividade e ação humanas, é a dificuldade24 (p.
gia do behaviorismo e a economia do capitalis­
65).
mo representam uma concepção unificada de
A noção de 'dificuldade' em Locke é similar homem em um universo ordenado. O modelo
ao conceito de reforçamento negativo em materialista do universo como previamente
Skinner. "Quase todos os seres vivos agem descrito representa os princípios unificados do
para se livrarem das influências prejudiciais023 capitalismo e po behaviorismo.
(p. 24). Um segundo conceito ideológico de capitalis­
A filosofia hedonista de Hobbes e Locke mo é o de valor de troca do trabalho. Mais uma
fornecem uma base psicológica à teoria econô­ vez necessitaremos examinar o trabalho de
mica clássica de Adam Smith. A felicidade Adam Smith que foi o primeiro a distinguir o
humana consistia, para Smith, em satisfação de valor de uso do trabalho e o valor de troca do
necessidades. Era uma crença de Smith que os trabalho. Para Smith, o valor real de uma mer­
consumidores poderiam ser deixados sozinhos cadoria repousa não em seu valor de uso mas,
para selecionar aqueles bens os quais pensa­ de preferência, em seu valor de troca O valor
riam que pudessem melhor satisfazer suas de uma mercadoria é uma troca do trabalho
necessidades e aos produtores seria permitido requerido para produzi-lo. Um trabalhador
produzir livremente os bens que os consumido­ vende sua força de trabalho para um capitalista
res escolhessem. Este é um acréscimo direto à por seu valor, e o capitalista usa a força de
filosofia hedonista Nesta perspectiva, Smith, em trabalho paJ;a obter mercadorias as quais têm
seu trabalho clássico, WeaHh of Natlona, um valor mais alto do que aquele da força de
sugere uma "mão invisfvel" por meio da qual trabalho comprada O trabalho em si é uma
as paixOes individuais são levadas na direção mercadoria de troca na realização de um lucro.
que irá beneficiar a sociedade como um todo. Smith acreditava fervorosamente que o trabalho
Para Smith, as leis do mercado econômico é o único padrão com o qual podemos compa­
eram como as leis do mundo natural. rar os valores das diferentes mercadorias. O
valor de troca do trabalho para Smith era o

88
custo de manutenção e reprodução do traba­ postulada por Piaget reduz-se à -análise de
lhador em um padrão de vida socialmente como o sujeito torna-se progressivamente hábil
aceitável. O valor de troca do trabalho produz para conhecer objetos adequadamente, ou
estratificação de classes econômicas consistin­ seja, como ele se torna capaz de objetivida­
do de capitalistas que controlam os meios de de027 (p. 704).
produção e uma classe trabalhadora que tem A perspectiva epistemológica de Piaget não
apenas a sua força de trabalho para vender. vê a gênese do conhecimento nos objetos nem
O conceito ideológico central no modo nos sujeitos mas em uma relação dia/ética entre
capitalista de produção é a necessidade de os dois. O fundamento dialético de Piaget está
criar e reproduzir continuamente uma classe caracterizado no processo de acomodação­
trabalhadora à qual são negados os meios de assimilação, essencial para a adaptação intelec­
produção. O lucto ou a mais valia cresce quan­ tual. A adaptação intelectual é uma equilibração
do a classe capitalista paga a força de trabalho entre assimilação e acomodação. A assimila­
no seu valO( (o custo de manutenção e repro­ ção, para Piaget, envolve uma reestruturação
dução do trabalhador) e então produz merca­ cognitiva do objeto que corresponde a uma
dorias as quais têm um valor mais alto do que organização cognitiva na vida do sujeito. Flavell
aquele da força de trabalho comprada Conse­ descreve a assimilação como -o amoldamento
quentemente, o trabalho é uma mercadoria de de um evento da realidade à estrutura em
troca com um valor que excede a si mesmo. O formação do indivIduo·. Para Piaget -ne­
capitalista está apto para se apropriar da mais nhum comportamento, mesmo se ele é novo
valia através da propriedade dos meios de para o individuo, constitui um inIcio absoluto.
produção. Ele é sempre acomodado aos esquemas pré­
Enquanto a força de trabalho for comprada vios e conseqüentemente equivale à assimila­
corno uma mercadoria de troca, deverá haver ção de novos elementos a estruturas já existen­
uma superestrutura dentro da qual um sistema tes027 (p. 707).
reproduz uma classe trabalhadora Esta super­ Acomodação refere-se à reestruturação da
estrutura contém não apenas idéias sociais e organização cognitiva do sujeito ao objeto. O
polltlcas mas instituiçOes como a famllia, a sujeito deve modificar ativamente as estruturas
religião e as escolas que dão suporte e repro­ cognitivas existentes para satisfazer as deman­
duzem uma estrutura de classe para produzir das do mundo contraditório de objetos. O
trabalho como um artigo de troca Mais tarde, processo de acomodação refere-se à tendência
neste artigo, será mostrado como a instituição do Individuo em mudar as estruturas cognitivas
escolar representa um papel dominante na previamente formadas em resposta às novas
produção e no suprimento constante de traba­ demandas do ambiente.
lho para a classe capitalista Para Piaget, assimilação e acomodação
ocorrem simultaneamente e são indissociáveis.
o CONSTRUTIVISMO DE PIAGET: CONTRA­ A adaptação intelectual é um processo dinâmi­
DIÇAo DIALÉTICA co que envolve uma relação inextrincável entre
sujeito e objeto. Por um lado, o sujeito assimila
É central na teoria do conhecimento de objetos da realidade às suas próprias estruturas
Piaget a relação entre o sujeito e o objeto, ou o cognitivas, e, por outro lado, o sujeito modifica
organismo e o meio. Profundamente enraizada ou acomoda suas estruturas psicológicas
em uma perspectiva biológica, a teoria de existentes para corresponder aos objetos da
Plaget é ·essencialmente uma teoria de adap­ nova realidade. Não pode haver assimilação
tação de pensamentos à realidade, ainda que sem acomodação e vice-versa (sendo a única
esta adaptação por último revele, como ocorre exceção o brinquedo e a Imitação). Sistemas de
com toda adaptação, a existência de uma significados estão constantemente sendo
Interação inextrincável entre sujeitos e obje­ reorganizados. -Mudanças na estrutura assimi­
tos· (p. 24). Vendo o conhecimento como latória indiCiffi novas acomoda�, e novos
uma adaptação biológica, a epistemologia de esforços acomodatórlos estimulam uma reoga­
Piaget rejeita qualquer forma de dualismo nização estrutural"- (p. 50).
sujeito-objeto. Para Piaget ·0 conhecimento... A adaptação Intelectual de Piaget de acomo­
não provém nem dos objetos nem do sujeito, dação e assimilação é uma aplicação psicológi­
mas das interaçOes... entre o sujeito e esses ca do método dialético de Hegel de COntradição
objetos027 (p. 704). A teoria do conhecimento mútua

89
Em suas direçOes iniciais, assimilação e acomoda­ ordem. Um tipo de operação não é suficiente
ção são obviamente opostas uma à outra, enquan­ para a criança adquirir o conceito de número;
to que a assimilação li conservadora e tende a deve haver uma sintese coordenada de c1assifi­
subordinar o melo ao organismo enquanto tal, por cação e seriação.
sua vez a acomodação li a fonte das mudanças e
A noção de açãõ ou operação é C8!1lral para
conduz o organismo pelas sucessivas coaçOes do
a epistemologia piagetiana do construtivismo.
melo. Mas se em seus primórdios essas duas
funçOes são antagOnicas, li precisamente o papel Neste contexto, o conhecimento não é obtido
da vida mental em geral, e da inteligência em dos objetoS mas da própria ação.
particular, intercoordená-las211 (p. 352).
o próprio organismo vivo não li uma mera imagem
Conhecimento, no sentido dialético, é a de espelho das propriedades do seu melo. Ele
transformação da experiência contraditória em envolve uma esInDA a qual é construrda passo a
passo no curso da eplgênese, a qual não é inteira­
estruturas momentaneamente estáveis. Moas­
mente preforma� (p. 705).
singer apreSenta uma critica compreensiva de
Piaget a respeito da contradição de acordo A menos que o sujeito tenha agido sobre os
com a perspectiva mandsta30•
objetos e Interiorizado sua ação, não �iu
conhecimento. Plaget, como foi dito prevlãmen­
CONHECIMENTO COMO UMA CONSTRUÇÃO te, faz uma distinção entre dois tipos de açOes.
A primeira dessas açOes consiste primeiramen­
Durante toda sua vida, Piaget esteve preocu­ te de atividades sensório-motoras como empur­
pado principalmente com uma única questão, rar' puxar ou tocar. Essas açOes Individuais
embora fosse urna questão epistemológica ocasionam o que Piaget chama de aspectos
global: Qual é a natureza do conhecimento? figurativos do conhecimento. O conhecimento
Como afirmado previamente, a epistemologia figurativo é momentAn� e ligado à P;8"cepção.
piagetlana não vê a gênese do conhecimento O segundo tipo de ação é baseado em açOes
nos objetos nem nos sujeitos, mas em uma coordenadas e é denominado conhecimento
interação dialética Inextrincável entre os dois. A operatório. O conhecimento operatório pode ser
conseqOêncla natural desta interação é uma equiparado à noção anglo-saxOnica de -pensa­
construção individual do conhecimento. A mento-.
construção do conhecimento é um processo A raiz de todo o pensamento lógico enc0n­
biologicamente orientado pelo qual um sujeito tra-se na coordenação de açOes que forma a
desenvolve o seu próprio senso de realidade. base da abstração reflexiva (reflective). A
Objetividade não é uma propriedade Inicial, mas origem do pensamento lógico é construlda pelo
é inventada pelo sujeito. ConseqOentemente, a sujeito e encontra-se em açOes do sujeito e,
objetividade é profundamente Individual e mais especificamente, na coordenação de suas
relativa; não, como vêem os materialistas, uma açOes.
cópia fiel da realiC!ade. Resumindo a noção construtlvista de c0nhe-
Visto que o conhecimento objetivo não é cimento, Piaget afirma:
adquirido pelos registros perceptuais de dados
externos mas tem sua gênese em Interações, ...0 conhecimento resulta da conatruçAo contfnua,
Piaget postula dois tipos de atividade na cons­ visto que em cada série de entendimento, algum
trução do conhecimento: (1) a 'coordenação grau de 1nvenç40 está envolvido; no desenvolvi­
das açOes, e (2) as inter-relaçOes entre objetos. mento, a passagem de um estágio para o próximo
As duas atividades são Interdependentes e é está sempre caracterizado pela tormaçAo de novas
através da ação que se originam as relaçOes. estruturas que não exlstiam antes, tanto no mundo
As estruturas da ação são construldas -e não extemo quanto na mente do aujelto31 (p. 77).
são dadas nos objetos, visto que são depen­
dentes da ação, nem no sujeito, visto que o OS TIPOS DE CONHECIMENTO
sujeito precisa aprender como coordenar suas
açOes027 (p. 704). Piaget identifica dois tipos de conhecimento:
Um exemplo de cada coordenação da ação o conhecimento ffsico e o conhecimento lógico­
é descrito por Plaget na aquisição do número matemático. O conhecimento ffsico é abstrafdo
na criança O desenvolvimento da noção de pelo sujeito dos próprios objetos. P� exemplo,
número é baseado na coordenação de duas uma criança pode levantar objetos em sua mão
operaçOes distintas: classificação e relaçOes de e dar-se conta de que eles têm pesos diferen­
tes; ela descobre isso experimentalmente e o

90
seu conhecimento é extrafdo dos' objetos. É a classe necessário para entender a natureza da
experiência física que permite que a criança relação de um estado para sua capital. Toda
descubra o peso. O conhecimento ffsico origina relação lógico-matemática é construlda, e toda
os aspectos figurativos do conhecimento, relação subseqOente é uma relação entre
porque o sujeito tenta representar a realidade relaçOes. O processo de formação de cada
tal como se apresenta sem transformá-Ia relação é a abstração reflexiva Visto que Piaget
O conhecimento l6gico-matemático é deriva­ vê o processo de abstração reflexiva como uma
do da própria atividade do conhecimento e função biológica, toda a criança normal Irá
conseqOentemente é construido pelo sujeito. adquirir conhecimento lógico-matemático sem
No conhecimento I6gico-matemático, o sujeito a necessidade do ensinamento didático. Uma
reflete sobre su� própria atividade coordenada vez adquirido, o conhecimento lógico-matemá­
para originar aquilo que Piaget denomina tico torna-se parte do sujeito e conseqOente­
abstração raftexiva A abstração reflexiva é um mente não pode ser esquecido mas apenas
processo cognitivo que consiste em um meca­ usado como estruturas adicionais para futura
nismo interno de feedback em que o sujeito abstração reflexiva na formação de novo conhe­
reflete sobre suas próprias açOes coordenadas. cimento lóglco-matemátlco. A epistemologia
A reflexão não é um processo passivo ou piagetlana básica.pode ser resumida da seguin­
introspectivo, mas um sisteOl8 éoordenado de te maneira:
açOes que amplia progressivamente a estrutura
interna 'Piaget observa: 1. O conhecimento não tem sua origem
nem nos objetos nem nos sujeitos, mas
... podemos falar de experiências lóglco-matemátl­ em uma lnextrincável relação dialética
cas, as quais extraem Informação das proprieda­ entre os sujeitos e os objetos.
des de açOes que dizem respeito aos objetos, e 2. O conhecimento li urna construção que
nAo dos próprios obJetos . 27 (p. 728).
. .
li uma consequência natural das intera­
ções sujeito-objeto.
Na abstração reflexiva o sujeito abstral rela­
3. O conhecimento que li abstrafdo direta­
çOes lógicas entre objetos. Por exemplo, se
mente dos objetos é o conhecimento
urna criança levanta objetos, cada um de um
ffslco, enquanto que o conhecimento que
peso diferente, então o conhecimento ffsico
é resultado de açOes coordenadas li
pode ser abstrafdo para permitir que a criança
denominado conhecimento lógico-mate­
indique qual é o mais pesado. No entanto, a
mático.
criança ter que dispor os objetos em uma
relação serial do mais pesado ao mais leve
A IDEOLOGIA SOCIAUSTA
requer uma abstração reflexiva, ou seja, o
ordenamento de felações não está baseado
Como na seção sobre a ideologia capitalista,
nos próprios objetos mas deve ser construlda
a seguinte descrição do socialismo irá focalizar
pela criança como resultado de suas ações
primeiramente o contexto ideológico do socialis­
coordenadas. A relação serial é uma forma de
mo e não urna análise funcional do socialismo
conhecimento lógico-matemático e é construlda
como uma forma de economia poUtica. Esta .

pela criança; não, porém, de um conhecimento


seção também não tem a intenção de ser urna
ffsico dos objetos.
critica marxista da economia polltica capitalista
O aspecto revolucionário da noção epistemo­ No entanto, a filosofia de Marx será usada
lógica do conhecimento lógico-matemático de
como uma fundamentação ideológica do socia­
Piaget reside no fato de que cada conhecimen­
lismo. As duas idéias centrais da práxis e das
to não é diretamente ensinável porque é cons­
relaçOes sociais de produção formam o centro
truIdo a partir da abstração reflexiva que se
da ideologia do socialismo.
origina das relaçOes de objeto que o próprio
Para compreender o significado da práxis e
sujeito tenha inventado. É extremamente diflcil
das relações sociais de produção, precisamos
para aqueles de nós escolarizados em uma
entender a concepção marxista de história O
tradição empirista, mas a epistemologia piage­
materialismo dialético de Marx incorporou a
tiana relacionada à origem do conhecimento
idéia de Hegel da mudança Inerente e a noção
lógico-matemático claramente sustenta a noção materialista do ser filosófico fundamentada em
de que ninguém nos ensina como realizar
eventos sociais e ambientais e não em Idéias.
operaçOes aritméticas como adição ou multipli­
Marx acreditava Que as forças produtivas de
cação, ou ainda o princIpio de inclusão de

91
uma sociedade Cletermlnam a maneira como que podem realizar-se no ou com o ObJet031 (p.
um povo faz a sua vida e, ao mesmo tempo, a 15).
maneira como se relacionam entre si. As forças
produtivas e as relações de produção formam A noção marxista de que a verdade da
a "super-estrutura" das instituições de uma realidade deve ser demonstrada na prática e
sociedade, seus modos de pensamento e suas não na teoria ou em abstraçOes metafisicas é
opiniOes sobre a vida Para Marx, as vidas denominada práxis. A práxis nega o tradicional
materiais dos indMduos determinam as idéias dualismo teoria-prática, pensamento-ação e
e as crenças que sustentam essas instituições. estrutura-função. Dentro do contexto ideológico
Marx resume essa posição quando afirma: do socialismo, a práxis proporciona uma unifi­
cação da consciência e da sociedade. A práxis
A produção de idéias, de concepçOes, de cons­ permite aos indivíduos reconhecerem as contra­
ciência é, em primeiro lugar, diretamente Interligada diçOes existentes na sociedade. Os objetos
com a atividade material e com a relação material tornam-se objetos para o uso social de prefe­
dos homens - a linguagem da vida real. A imagina­ rência ao abstrato valor de troca Na práxis não
ção, o pensamento e a relação mental dos ho­ há divisão entre pensar e fazer.
mens aparece neste estágio como o afluxo direto As ideologias capitalistas, com sua ênfase no
de seu comportamento material. O mesmo aplica­ hedonismo e no valor de troca do trabalho,
se à produção mental como expresso na lingua­
encorajam uma divisão entre indMduos e
gem da polftica, das leis, da moralidade, da religião
objetos. Isso conduz ao que Marx denominou
e da metaffsica de um povo. Os homens são os
uma alienação do indMduo com relação ao
produtores de suas concepçOes, de suas idéias,
etc. Homens reais, ativos, como são condiciona­ meio. Os indivíduos tornam-se alienados não
dos por um desenvolvimento definido de suas apenas com relação aos objetos, mas também
forças produtivas e das relaçOes correspondentes com relação aos outros e a si próprios. Isso
a estas, até as suas formas mais afastadas. A leva-nos ao segundo principio ideológico do
consciência nunca pode ser algo mais do que a socialismo: as relaçOes sociais de prooução. As
existência consciente e a existência dos homens é relaçOes sociais de produção são estruturas de
o seu atual processo de vida. Se em toda a ideolo­ classe de uma sociedade. Como Marx postula:
gia, os homens e suas circunstâncias aparecem ao
contrário, como em uma ·câmara escura" esses Como uma regra geral, artigos de utilidade trans­
fenômenos surgem Justamente de seu processo formam-se em mercadorias apenas porque são
histórico de vida da mesma forma como a inversão produtos de indivfduos privados ou grupos de
dos objetos na retina faz do seu processo de vida indivfduos que realizam seu trabalho independente­
ffsica32 (p. 247). mente dos outros. A soma total do trabalho de
todos esses indivfduos privados forma o trabalho
Marx constantemente acentuava a unidade total da sociedade. Visto que os produtores não
essencial da teoria e da prática ou do pensa- entram em contato com cada outro, a caracterfstlca
I mento e da ação. O materialismo dialético social especmca do trabalho de cada prodUtor não
rejeita a metafísica tal como é tradicionalmente apareca, exceto no ato de troca. Em outras pala­
concebida como um mero conhecimento da vras, o trabalho do indivfduo impOe-se como uma
realidade. A doutrina de Marx sustenta que o parte do trabalho dasociedade apenas através das
conhecimento da realidade era também a sua relaçOes que o ato de troca estabelece diretamente
mudança O conhecimento, para Marx, não era
entre os produtos e indiretamente através dos
produtos. Para este último, conseqüentemente, as
um fim em si mesmo; sabemos a fim de agir. O
relaçOes sociais entre o trabalho de Indivfduos
conhecimento não pode ser entendido indepen­
privados aparecem pelo que eles são Isto é, nAo
,

dentemente de sua relação com a ação. A como as relaçOes sociais diretas de pessoas no
ação, dentro de uma perspectiva marxista, seu trabalho, mas, pelo contrário, como relaçOes
transforma os objetos no ambiente sobre o qual materiais de pessoas e relaçOes sociais de coI­
se agiu e este também transforma o sujeito. sas33 (p. 35).
A concepção de Piaget a respeito do conhe­
cimento e seu processo é notavelmente similar A ideologia capitalista usa o hedonismo e o
à de Marx: valor de troca do trabalho para sustentar um
sistema social economicamente estratifteado.
Saber é transformar a realidade para compreender Isto é necessário para assegurar uma força de
como um certo estado é originado... conhecar um trabalho "feliz", porém miserável, a fim de
objeto não significa copiá-lo - significa atuar sobre manter a ordem econOmica dominante. A
ele. Significa construir sistemas de transformaçOes "energia motora" (drive-energy) do capitalismo

92
é dependente de uma reserva constante de prático da escolarização.
mão-de-obra miserável, porém feliz. Para man­
ter um nível limite de felicidade, o capitalismo A ESCOLARIZAÇÃO CAPITAUSTA·BEHAVIO·
provê as necessidades do bem-estar material RISTA
para a sua classe trabalhadora, ou seja, para
reproduzir o trabalhador em um nível de vida O mito da educação americana reside na
socialmente aceitável. suposição de que o processo de escolarização
A ideologia socialista em um contexto de pode vencer as forças desiguais Inerentes à
práxis e relaçOes sociais de produção advoga economia capitalista Contudo, se examinarmos
a redistribuição da riqueza para criar uma cuidadosamente a prática da escolarização,
sociedade igualitária na qual nenhuma classe descobrimos que as escolas são organizadas
pode obter a posição vantajosa possibilitada para satisfazer as demandas da sociedade
pela posse dos meios de produção da socieda­ capitalista através do uso da psicologia do
de. O socialismo como uma ideologia política behaviorismo. As escolas, como uma instituição
sustenta a criação de uma sociedade livre do socializante, desenvolveram uma vida própria
hedonismo individual e eonstruida com base na que reflete a estrutura econOmlco-soclal da
cooperação e no valor social de uso. Como sociedade. A prática educacional é uma forma
uma ideologia, irá prevenir a alienação do de controle social. Através da psicologia do
trabalhador com relação aô seu trabalho e ao behaviorismo, os estudantes são recompensa­
seu semelhante. O socialismo enfatiza relaçOes dos por comportamentos e idéias que refletem
sociais qualitativas. A ideologia socialista é uma o comportamento e as idéias da classe domi­
relação entre pessoas e pessoas, enquanto o nante.
capitalismo é uma relação de pessoas e merca­ A organização burocrática das escolas refle­
dorias. te, em todos os detalhes, a estrutura hierárqui­
ca de uma corporação capitalista A autoridade
PRÁTICA: A ESCOLARIZAÇÃO COMO UMA executiva é investida no poder do superinten­
IDEOLOGIA POÚTICA dente, a direção intermediária é encontrada no
prédio dos administradores, os trabalhadores
As seções anteriores deste artigo argumenta­ da linha de produção são os professores e,
ram que a ideologia econÔmica do capitalismo finalmente, o aluno é a mercadoria O sistema
e os fundamentos psicológicos do behaviorismo de recompensas orientado comportamental­
são derivados de um mesmo modelo materialis­ mente segue, em todos os detalhes, a filosofia
ta O construtivismo de Piaget e a ideologia hedonista do capitalismo. As classificaçOes e a
socialista emanam de um modelo dialético. ameaça de fracasso equivalem, no mundo do
Nesta seção argumenta-se que qualquer forma trabalho, às regras de salários e ao medo de
de prática educacional deve ser categorialmen­ ser despedidQ.
te compativel, do modelo à teoria e desta à
prática Acreditamos que o slstenul educacional ajuda a
A instituição escola e a prática da escolariza­ Integrar a juventude ao sistema econOmlco, através
ção são, essencialmente, uma parte da super­ de uma correspondência estrutural entre suas
estrutura da sociedade a qual molda as cren­
relações sociais e as relações de produç40. A
estrutura das relações sociais na educação não
ças sociais, políticas e Intelectuais de seus
apenas habitua o estudante à disciplina do local de
cidadãos. A prática da escolarização em uma
trabalho mas desenvolve os tipos de comporta­
estrutura capitalista-behaviorista e a prática da mento pessoal, modelos de auto-apresentaç40,
escolarização em uma estrutura socialista­ auto-Imagem e identificações de classe social que
construtivista são mutuamente exclusivas. são os Ingredientes cruciais da adequeçao ao
Qualquer aplicação do construtivismo de Piaget emprego. Especificamente as relações sociais da
à prática da escolarização deve ser examinada educação - as relaçOes entre adminIStradores e
à luz das funções dominantes das escolas na professores, professores e estudantes, estudantes
América, Isto é, promulgar a ideologia política e estudantes, estudantes e seu trabalho - reprodu­
do capitalismo através da psicologia do beha­ zem a divisA0 hierárquica do trabalho. As relações
hierárquicas são refletidas nas linhas de autoridade
viorismo. Conforme afirma Riegel, há uma
vertical dos administradores aos professores e
-intima conexão entre as Ideologias econÔmica
estudantes. O trabalho alienado é refletido na falta
e política e o desenvolvimento das ciências"lo
de controle do estudante sobre sua própria educa­
(p. 129). Esta conexão está solidificada no nível ção, a alienação do estudante quanto ao conteúdo

93
currrcüTar, á moJl,,,ação do trabalho escolar através escritos por Piaget para a UNESCO.
de um sistema de classlflcaçOes e outras recom­ O construtivismo de Piaget defende uma
pensas externas em detrimento da Integração do pedagogia que sustenta um modelo hollstico e
estudante com o processo (aprendizagem) ou com dialético de desenvolvimento de preferência a
o resultado (conhecimento) do 'processo de
uma ênfase reducionista e mecanicista na
produção' educacional. A fragmentação no traba­
lho é refletida na competição Instltuclonallzada e aprendizagem.
freqüentemente destrutiva entre estudantes através
de uma contrnua e ostensiva classificação e o ponto principal de nossa teoria é que o conheci­
avallação merltocráticas. Preparando os jovens mento resulta das lnIeraçOas entre o sujeito 8 o
para uma série de relaçOes sociais similares objeto, as quais são mais valiosas do que aquilo
àquelas do local de trabalho, a escola esforça-se que os próprios objetos possam proporcionar. As
para preparar o desenvolvimento de necessidades teorias de aprendizagem como a de Hun, por outro
pessoais para esses requisitos34 (p. 131). lado, reduzem o conhecimento a 'cópias funcio­
nais' que não enriquecem a realidade. O problema
A ênfase continua na testagem e, especifica­
que devemos resolver para explicar o desenvolvI­
mento cognitivo, diz respeito à Invançao e não à
mente, os testes de OI servem para legitimar
mera cópia. Nem as generallzaçOes estrmulo­
um sistema de estratificação nas escolas. A resposta nem a Introdução de respostas transfor­
testagem proporciona uma justificação única maclonals poden'l explicar a novidade ou a Inven­
para as diferenças individuais a' fim de manter ção. Ao contrário, os conceitos de assimilação e
uma provisão constante de mão-de-obra barata acomodação das estruturas operatórias (que são
e manter a estratificação de classe. O papel criadas e não meramente descobertas, corno um
das escolas em uma estrutura capitalista beha­ resultado das atividades do sujeito), são orientadas
viorista é ·produzir" trabalhadores que alimen­ na direção dessa construção inventiva que caracte­
tam um sistema econômico desigual. Tal como riza todo pensamento vivo... Lembremos, também,
afirma Riegel, essa estrutura ·implica um que cada vez que ensinamos prematuramente a
modelo de crescimento continuo no interior do uma criança algo que ela poderia ter descoberto
por ela própria, esse criança é privada de Invetá-Io
qual todos os indivlduos são avaliados em e, conseqüentemente, de compreendê-lo completa­
relação a padrões isolados·10 (p. 129). mente21 (p. 714-5).
Bowles e Gintis apresentam dados emplricos
que demonstram que a ideologia do OI serve Aqui estão algumas observaçOes feitas por
para legitimar a divisão hierárquica do traba­ Piaget, em 1964, em uma conferência sobre
Ih03ll• Eles apresentam evidências estatísticas e estudos cognitivos e desenvolvimento curricular
históricas que indicam que ·a ideologia do OI realizada na Universidade Comell:
funciona para reconciliar os trabalhadores com
suas eventuais posições econômicas primeira­ A experiência é sempre necessária para o desen­
mente através da experiência da escolariza­ volvimento intelactual... O sujeito deve ser ativo,
ção... (p. 34).
• deve transformar as coisas e descobrir, então, a
A prática da escolarização é, na América, estrutura de suas próprias açOes sobre os objetos.
totalmente compativel com as fundamentações ... as crianças necessitam comunicar-se com as
teóricas do capitalismo e do behaviorismo; outras. Este é um fator essencial ao desenvolvI­
ambas emanam de um modelo materialista mento intelectual. COOperação é, na verdade, c0-
operação.
mais geral. A estrutura da educação reflete o O professor deve proporcionar os instrumentos
hedonismo e o principio do valor de troca que a criança possa usar para decidir as coisas
inerente ao capitalismo. Ela também reflete o por si própria... a verdade já feita é apenas uma
behaviorismo quando reforça a juventude a meia verdade.
trabalhar por recbmpensas externas. O principal Objetivo da educação é criar homen8
que sejam capazes de fazer coisas novas, não
A ESCOLARIZAÇÃO SOCIAUSTA-CONSTRU­ simplesmente de repetir o que outras geraçOes já
TIVISTA tenham feito - homens que sejam criativos, inventl­
vos e descobridores. O segundo objetivo da
Dos mais de 1200 livros e artigos escritos por educeçao é formar mentes que possam ser crftI­
cas, possanÍ verificar, e nAo apenas aceitar tudo o
Piaget, apenas dois foram diretamente dirigidos
que lhes seja oferecido. O grande perigo hoje são
à prática da escolarização. São eles "The os sIogans, opiniOes coletivas, tendências prontas
Sclence of Educatlon and the Paychology of de pensamento311 (p. 4-5).
the Chlld038 e -To Underatand la to Invent037•
Ambos os volumes são coleções de ensaios

94
o construtivismo de Plaget sustenta uma provas finais, em vez de chamar a atençAo para as
pedagogia que enfatiza medidas qualitativas de reais atividades e personalidade do estudante37 (p.
capacidade cognitiva em detrimento das medi­ 73-4).
daá quantitativas da performance cognitiva A
natureza dialética do construtivismo propõe um Piaget compara o processo educacional nas
modelo desenvolvimentista de crescimento sociedades industrializadas aos cerimoniosos
descontlnuo que é avaliado em termos das ritos de passagem nas tribos primitivas. A
necessidades coletivas de uma sociedade de prática da escolarização neste contexto é -para
preferência a um modelo de aprendizagem de imprimir, nas geraçOes m8is novas, a totalidade
crescimento contlnuo .onde as crianças são das verdades comumente aceitas, ou seja, os
avaliadas em r.elação a classes rigidas de valores coletivos e padrOes que já tenham
padrOes tendenciosos. -ConseqOentemente, assegurado a coesão das geraçOes anterio­
parece que Seria necessário, a fim de alinhar a r� (p. 89).
educação com as necessidades da sociedade, Piaget percebe que a educação é uma
empreender uma completa revisão dos méto­ totalidade indissociável. Se uma criança é
dos e objetivos da educação, de preferência a intelectualmente passiva, não saberá como ser
estar satisfeito com simples apelaçOes ao senso eticamente Uvre. .Ao contrário, se o desenvolvi­
comum037 (p. 1 2). mento ético de uma criança consiste na sub­
missão à autoridade do adulto e às reiaçOes
.. , deveria ser salientado imediatamente que o sociais que constituem a vida de uma sala de
direito a uma educaçao ética e Intelectual implica aula, a criança não saberá como ser intelectual­
mais do que o direito a adquirir conhecimento ou mente ativa
escutar, e mais do que uma obrlgaçlo a obedecer: Piaget percebe que:
é uma questão de um direito extensivo a todos, o
de construir certos Instrumentos espirituais precio­ Se o ensino consiste, simplesmente, em dar llçOes
sos, o que requer um melo social especffico, nao e tê-Ias repetidas em 'recltaçOes' ou 'testes' e em
feito exclusivamente de submlssão37 (p. 51-2). tê-Ias aplicadas a alguns exercfclos práticos que
do sempre prescritos, os resultados obtidos do
Considerando a totalidade dos escritos de aluno dificilmente terao mais significado do que no
Piaget relativos à educação, em nenhum lugar caso de qualquer exame escolar, sem considerar
ele é mais critico do que na área dos exames: o elemento de acaso no momento. É apenas na
medida em que os métodos de ensino 810 'ativos'
Tudo tem sido dito sobre o valor dos exames - em que eles constituem uma parte cada vez
escolares, e ainda esta verdadeira praga na educa­ maior de Iniciativas e esforços espontAneoe do
çao em todos os nlvels continua a envenenar - estudante - os resultados obtidos têm slgnificado37
esta terminologia não é suficientemente forte aqui (p. 77-8).
- as relaçOes normais entre o professor e o estu­
dante, comprometendo o prazer no trabalho de A aplicação do construtivismo de Piaget à
ambas as partes, tal corno uma mútua confidência prática de escolarização deve ser feita dentro
As duas falhas básicas dos exames do que, de um contexto de educação ética Plaget
geralmente, eles nao dão resultados objetivos, e questiona:
t�-se, fatalmente, um fim em si mesmo (Inva­
riavelmente os exames de admissão sAo sempre, Desejamos formar pessoas que &ao sujeitas às
primeiramente, exames finais: o exame de aclmls­ restrlçOes das geraçOes anteriores e às tradlçOes?
sAo para a educação secundária toma-se um fim Se sim, entao a autoridade do professor é suflcien­
para a educaçAo primária, etc.). O exame escolar te... com o sistema de recompensas e pun�
nao é objetlvo, prlmelro porque depende mais da reforçando este comportamento obediente (p.
memória do que das capacidades construtivas do 1 09-10).
estudante (como se ele fosse condenado a nunca
ser capaz de usar seus livros assim que estiver Piaget percebe que o método dialético pode­
fora da escoIal). Qualquer um poda confirmar quao ria ser empl'egado na educação ética A disci­
pouco a cIassIfIcaçAo, que resulta dos exames, plina que se origina externamente à criança
corresponde ao trabalho final útil das pessoas na
produz comportamento conformista que resulta
vida O exame escolar torna-se um fim em si
mesmo porque domina a preocupaçAo do profes­ em uma criança simplesmente respondendo a
sor, em vez de favOrecer seu papel natural como regras que não têm nenhum signifióado pess0-
aquele que estimula consciências e mentes. E o al. Da mesma forma que uma orientação não
professor dirlga todo o trabalho doe estudantes deixa a criança experienciar uma reciprocidade
para o resultado principal, que é o sucesso nas com outras e a possibilidade de construir novas

95
regras quando confrontada com circunstâncias Quem ousaria supor como nosSa educaçAo primá­
contraditórias: ria poderia mudar se 08 professores realmente
levassem a sério a proposlçAo de Plaget de que o
... recorter à reciprocidade em vez da autoridade, conhecimento é urna operação que constrói 08
construir a confiança em vez de buscar a punição, seus objet08� (p� 7).
encoraja o desenvolvimento da personalidade
moral mais do que qualquer restrição ou disciplina Para uma soCiedade advogar um processo
externa37 (p. 1 24). de escoiarttação que tenha como seu objetivo
primário o desenvolvimento do pensamento
No construtivismo de Piaget, o espírito de critico e da argumentação - tal como é suge­
uma educação ética de cooperação "não pode rido pelo construtivismo de Piaget - é de se
sér atingido por nenhum dos métodos co­ perguntar se a sociedade questiona as suposi­
muns037 (p. Ü !5). A escolarização deve ser uma çOes básicas que explicam sua Ideologia poIft1-
experiência -Vivida" e não pode ser desenvol­ ca Os fundamentos pedagógicos da esc0lariza­
vida em uma atmosfera de coação moral e ção na América são baseados na epistemologia
intelectual. do materialismo e na psicologia do behavIoris­
mo metodológico. Tal fundamento suger� que
SUMÁRIO E CONCLUSOES o mundo psicológico consiste de respostas que
são selecionadas pelas consequências ambien­
O obj�ivo primário deste artigo era demons­ tais. Portanto, o reforçarnento dominante para
trar que os fundamentos teóricos do capitalismo uma dada resposta é o grau no qual a resposta
e do behaviorismo e os fundamentos teóricos reflete a ideologia política e social aceitas, do
do socialismo e do construtivismo são mbltua­ capitalismo americano.
mente exclusivos. O capitalismo e o behavioris­
mo emanam de um modelo materialista mais Todas as teorias da psicologia propprcionam
geral enquanto o construtivismo e o socialismo uma fundamentação racional de como promo­
têm a sua gênese em um modelo dialético. Foi ver o funcionamento intelectual, mas a questão
argumentado que quaisquer formas de práticas de como as escolas podem proporcionar tal
educacionais derivadas de um modelo de cor­ clima de investigação é uma questão dos
rente categorial para a teoria e para a prática fundamentos epistemol6glcos e psIcoI6gicos do
são, também, mutuamente exclusivas. As figu­ capitalismo corporativista Talvez o mais impor­
ras 1 e 2 representam um sumário diagramático tante - dos resultados ainda ignorados relacio­
dessa corrente categorial. nados a um currfcuJó de pensamento e arguo
Qualquer aplicação do construtivismo de mentação - é a relação entre a nossa epistemo­
Piaget como um sistema de reforma educacio­ logia sobre as crianças e 08 métodos instrucio­
nal deve ser vista dentro de um contexto total nais, por um lado, e a relação entre a natureza
de reforma social e política Conforme Hans da escolarização e seus resultád08, em t�
Furth indica: do tipo de crianças prodUzidas, por outro.
Empregar uma diferente fundamentação epist•
... as ImpllcaçOes da teoria de Plaget da Inteligên­ moIógica e psicológica como a sugerida pelo
cia operatória não do limitadas à ciência psicoló­ construtivismo de Piaget pressupOe uma ima­
gica.. realmente, mudanças revOlucionárias . em gem de homem e de conhecimento que é
todo o campo da educação e das relaçOes huma­ Incompativel com a Ideologia capitalista.
nas parecem ser uma consequêncla direta de um
entendimento mais profundo da teoria de Plaget.

96
FIGURA 1

Materialismo

1. Mecanicista
2. Verdade universal
3. Reducionista
4. Causalidade material e eficiente
5. Lei Natural

Capitalismo Behavlorlsmo

1. HedonismO 1. Mecanismo estlmulo-resposta


2. Principio do valor de troca 2. Reforçamento externo
3. Lei natural de mercado - -a mão 3. Crescimento continuo
invisive/" 4. Medidas quantitativas do desempe­
4. Meritocracia nho
5. Propriedade privada dos meios e 5. Leis naturais de comporta0"," 'lU
modos de produção

Escolarlzaçio

1. Individualismo
2. Medidas quantitativas das realizações
3. Estratificação pela trajetória
4. Professor iniciado criança responde
-

aprendendo o meio
5. SeqOência linear do curriculo
6. Motivação extrill$8C8
FIGURA 2

Dialética

1. Fenomenológico
2. Verdade pragmática
3. HoIistico
4. Causalidade efICiente, material, formal e
final
5. Universo subjetivo

Socialismo Construtlvlsmo

1. Práxis 1. M.-odo dialético de assimilação e


2. Relações sociais de produção acomodação
3. PlanifICaÇão econômica 2. Auto-regulação
4. Igualitarismo 3. Crescimento descontInuo
5. Propriedade pública dos meios e 4. Medidas quaJititativas de capacidade
modos de produção 5. Adaptação cognitiva

Escolarização

1. Singularidade
2. Medidas qualitativas do desenvolvimento
3. PadrOes multidimensionais de avaliação
4. Professor e criança iniciam aprendendo
5. Seqüência hierárquica do curriculo
6. Motivação intrínseca
Notas

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Wrítíngs on Polítics and Philosophy,
tice-Hall, Englewood Cliffs, N. J.,
(Anchor Books, New York, 1 959). 1 969).

* * *

Tradução: Tania B. Iwaszko Marques, Psicóloga e Mestre em Educação.


Revisão: Fernando Becker
Digitação: Vera Mattos (bolsista PRUNI/UFRGS)
Referência: KAUFMAN, B. A. Piaget, Marx and the political ideology of schooling. Journal of
Curriculum Studies, Washington, 1 0(1 ): 1 9-44, 1 978.

* * *

B. A. KAUFMAN é professor da Universidade de Washington.

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