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A D U L T O S DO AMANHÃ

A fim de preparar os jovens para o amanhã,


é preciso antes de tudo considerar a adolescência
como tema de estudo, suas características biológicas
e psicossociais, mas também o que ela contém
de dilemas e incertezas, expectativas e sonhos
Por Claudemir Belintane, educador
U
ma das questões humanas mais ressante assumir a ideia de que há um sentido
intrigantes é o tratamento que sempre precário e instigante a ser construído.
a memória dá às fases da vida. Diante dessas reflexões, uma certeza se torna
Quando se solicita a um adulto evidente: continuar pesquisando e estudando
que fale sobre sua infância ou juventude, em é a forma de bordejar o tema da adolescência,
geral temos como resultado um recorte muito em suas várias vertentes (neurofisiológica,
parcial do que se viveu, do que se experimen- psíquica, cognitiva e social), e enredá-lo em
tou durante essas fases. Mesmo os especialis- sentidos cada vez mais interessantes.
tas que se dedicam ao estudo da adolescência
não fazem outra coisa senão recortar o tema CONSTRUÇÃO DE SENTIDOS
por meio do instrumental teórico de que dis- Tendo em vista esse jogo dialético, proponho
põem no momento - e nesse recorte utilizam trazer algumas reflexões que possam servir
muito pouco de sua experiência pessoal. como referências interessantes a educadores
Diante dessa dificuldade de apreensão e pais no contexto do ensino. Essas precau-
da adolescência, cabe aqui uma reflexão: se ções com a provisoriedade do conhecimento
MOMENTO DE
somos traídos pela memória, se as abordagens são um antídoto contra a nossa excessiva
REFLEXÃO
dos especialistas constituem um caleidoscópio vontade de equacionar tudo e todos em nos-
O caminho para o
complexo, como utilizar o conhecimento para sas redes de lógica e poder. Mover-se entre
conhecimento é feito
lidar profissionalmente, ou mesmo no âmbito textos, construir e reconstruir sentidos é uma
de recuos e avanços,
da família, com os jovens de hoje? Como a forma de buscarmos também a nossa adoles-
construção e reconstrução
educação, tanto a familiar como a escolar, cência perdida nos entretextos oriundos da
de sentidos. Educar
poderia encarar o problema? Seria essa missão adolescência alheia. adolescentes pressupõe
mais uma a ser alinhada aos três campos das A antropologia, por exemplo, estudan- o enfrentamento dos
missões impossíveis mencionados por Freud (a do os rituais de passagem da infância para fenómenos que os
psicanálise, a educação e a política)? a puberdade (ou adolescência) em diversas afetam e uma abertura
Boa parte dos intérpretes atuais de Freud culturas, permite um confronto interessante para outros tempos e
costuma considerar esse "impossível freudia- entre a nossa visão da adolescência e a de culturas, postura que os
no" como um reconhecimento explícito de outros povos. Nesses rituais podemos perce- auxiliará a compreender as
nossos limites e dos limites do próprio conhe- ber que as sociedades recobrem o corpo bioló- transformações pelas quais
cimento. Essa capitulação de Freud tornou-se gico com linguagens, com práticas ritualísticas passam, incitando neles o
uma referência para nos situar ante os avanços - fenómeno que também está presente em desejo de saber mais sobre
da ciência e da tecnologia, quando estes se nossa cultura. Ao confrontarmos nossa adoles- si mesmos e sobre os outros
impõem de modo prepotente sobre outros cência com a de outros povos, deslocamos um
saberes para não corrermos o risco de sub- pouco mais nossas certezas e até mesmo nos-
meter a nós mesmos, a nosso corpo e conhe- sos preconceitos e, talvez, sejamos incitados a
cimentos as técnicas resultantes de discursos perceber quais rituais revestem nosso corpo e
dominantes. Aplicando o mesmo princípio quais conflitos desencadeiam.
ao tema da adolescência, poderíamos tomar Do mesmo modo, a história nos per-
como referência o seguinte alerta: se tudo sou- mite uma reflexão interessante sobre
béssemos sobre ela, com certeza seríamos ten- a adolescência. Para o educador que ^
tados a enquadrar milhões de jovens em um quer recobrir essa fase com a precária
desastroso conjunto de prescrições e condutas, memória de seu tempo, ou apenas com
em infalíveis tratamentos psicológicos, médi- as certezas biológicas, estudar, por exem-
cos ou psiquiátricos - técnicas do tipo "laranja plo, como, nas diversas classes sociais e
mecânica", que estão sempre a assombrar as épocas, os adultos foram criando funções
lides do conhecimento tecnocientífico. e lugares para os adolescentes pode lhe
A ideia de que lidamos com o impossível, permitir uma compreensão mais refinada da
de que não abarcamos a totalidade do nosso própria adolescência e, consequentemente,
objeto, de que nossa memória é precária pode da de seus filhos e alunos.
nos levar a um jogo interessante - em vez de Até mesmo fenómenos aparen- r--
apostar na certeza, passamos a fazer uso do temente bem concretos, como
vacilo, dos avanços e recuos; em vez de ter os que orbitam a alimentação —•
na mão a explicação definitiva, é mais inte- na adolescência (anorexia e buli-

ESPECIAL O OLHAR A D O L E S C E N T E 95
A D U L T O S DO AMANHÃ

UMA QUESTÃO FSLOSÓFICA


A filosofia pode ajudar o adolescente a entender melhor a sua realidade,
tornando-o mais crítico e menos suscetível aos modismos
"Por que a gente espirra?/ Por que as uniias cres- o atinge como modelo de felicidade; imediatismo no
cem?/ Por que o sangue corre?/ Por que a gente morre? cotidiano, marcado pela superficialidade das relações;
(...)" Nos versos da canção Oito anos, a compositora banalização de problemas, que naturaliza situações e
Paula Toller explicita a curiosidade da criança perante gera indiferença etc. Ao mesmo tempo, busca construir
o mundo. Em algum momento do desenvolvimento a própria identidade (numa sociedade que tem cada vez
infantil, porém, essa fase inquietante cede espaço a um mais dificuldade de pensar a alteridade) e, à maneira de
momento de calmaria. Em muitos casos, os educadores outras gerações, essa auto-afirmação se dá por meio da
diriam apatia. O que aconteceu com aquela criança contestação de regras e autoridades constituídas.
cujos olhos brilhavam a cada descoberta? Ela cresceu. A filosofia, c o m o disciplina escolar, talvez não seja
Contudo, ainda não conquistou o "mundo adulto". capaz de solucionar a "trama", mas pode ajudar o ado-
Como o adolescente passa lescente a olhar de outro modo
a compreender o que aprende essa realidade. Por exemplo,
nessa nova fase? O que lhe levá-lo a refletir sobre a natu-
interessa? O que lhe é oferecido reza do conhecimento huma-
e cobrado? No caso do ensino no, diferenciando-o de simples
médio, tudo começa a se vol- informação; a questionar os
tar para o "deus" vestibular, critérios que m o v e m as pesso-
em que o conhecimento ganha as e m suas escolhas cotidianas;
caráter estritamente utilitário. a problematizar as buscas por
Não é difícil perceber que, ao um "sentido da vida"; a sentir
alcançar o mundo universitário, estranhamento ante situações
essa concepção não se dissipa. cristalizadas, desestabilizando
Pelo contrário, muitas vezes se o "senso c o m u m " . O potencial
agrava com a ênfase na espe- crítico da adolescência pode
cialização, na fragmentação do ser mais bem desenvolvido à
saber. Desse modo, como inter- medida que se aprende a des-
pretar o retorno da filosofia (e construir e reconstruir discur-
da sociologia) como disciplina sos, por meio do contato com
obrigatória no currículo nacio- textos filosóficos, da percep-
nal do ensino médio? ção do sentido das palavras,
Alguns educadores vêem dos encadeamentos de ideias,
essa medida com entusiasmo, do vislumbrar a arquitetura do
atribuindo à filosofia uma fun- texto, da busca das significa-
ção quase "redentora"; afinal, ções etc. A filosofia contribui
dizem: "Esses meninos não sabem pensar!", "Não para u m a reflexão sobre a própria busca de identida-
relacionam os fatos!", "Não usam a lógica!", "Teriam de do adolescente, já que se c o m p r e e n d e como algo
de ser mais críticos!". Outros a acham meio supérflua, inacabado, que realiza o próprio conhecimento c o m o
já que a disciplina "não é cobrada por todos os vesti- autoconhecimento; ao pensar a respeito de algo,
bulares". Em meio a essa discussão, é prudente balizar pensa-se a si mesmo. O u seja, oferece u m a oportuni-
as expectativas que são criadas sobre a filosofia na for- dade única: a escuta de si.
mação do adolescente, sem subestimar a contribuição Dessa forma, a filosofia t e m algo a oferecer ao
que ela pode dar. adolescente: a chance de reacender a c h a m a da dúvi-
O adolescente, hoje, está imerso numa rede de da, da admiração e do espanto diante do m u n d o .
complexas relações: fascínio pelas novas tecnologias,
e m que uma avalanche de imagens e informações lhe Por Sidnei Gomes Leal, professor de Filosofia e História do Colégio
chega a todo instante; consumismo desenfreado, que Giordano Bruno e da Rede Municipal de Ensino, em São Paulo.

96 MENTE&CÉREBRO www.mentecerebro.com.br
mia), constituem temas que podem ir além EMOÇÃO A TODA PROVA
da abordagem médica. É muito importante As tribos urbanas são u m
que o próprio adolescente compreenda - não fenómeno que t e m crescido
apenas na forma de campanha - as constru- muito nos últimos tempos,
ções que as diversas ciências fazem em torno t e m a que merece ser
desses fenómenos que afetam a sua geração. explorado com os jovens.
Algumas perguntas seriam muito bem-vindas: Entre as mais recentes está
a anorexia e a bulimia são exclusivas da nossa a dos emos, adolescentes
geração, ou existiram no passado? Outras cul- de 11 a 18 anos, altamente
turas também sofrem com elas? O modo de emotivos, adeptos da paz
vida contemporâneo, os apelos consumistas, e das manifestações públicas
a assunção de modelos corporais idealizados, de carinho e ultra-sensíveis
a reificação dos valores e sentimentos teriam a músicas que t r a t a m
a ver com a generalização desses fenómenos de conflitos familiares
em nossos dias? e rejeição a m o r o s a . Ao
lado, jovem com a típica
franja e os olhos pintados
ASSUNTOS POLÉMICOS
Em algumas escolas já se pode observar que
alguns temas polémicos, como o das tribos temas tabus que cercam a puberdade e a
urbanas, sobretudo as mais violentas, já estão adolescência; as escolas tratam-na a partir de
presentes em feiras de ciências, e isso é muito algumas palestras com especialistas, mas sem
bom. Como professor universitário, concedi a coragem de assimilar o tema a seus conteúdos
entrevistas a alunos do ensino básico que pes- habituais. Parece que os educadores e os pró-
quisavam sobre as motivações que levam um prios pais temem que a abordagem do tema
adolescente a se tornar membro de uma gan- suscite ainda mais o gosto pelo assunto e con-
gue violenta. Também já enfrentei com outro sequentemente pelo próprio objeto, as drogas
grupo de estudantes do ensino médio o desa- em si. Talvez desconheçam que o tema é bem
fio de saber se o computador e a internet, com mais amplo; inclui não apenas os aspectos
seus jogos e suas propostas de convivência bioquímicos da dependência, mas também
on-line, poderiam ser uma forma dominadora os costumes, a qualidade de vida, a falta de
de dependência psíquica. sentido e as ofertas de felicidade que a própria
A drogadição também tem sido um dos máquina consumista dissemina - mapas e tra-

DE OLHO NA FRAUDE
A cópia ilegal de filmes
e músicas disseminou
se entre os jovens como
f o r m a de acesso a bens
de consumo cultural, mas
t a m b é m pelo efeito da
penetração d a tecnologia
de alta qualidade no
cotidiano, que permite
o d o w n l o a d de arquivos
piratas pela internet e a
reprodução caseira de C D s
e DVDs. Ao lado, jovem
escolhe D V D falsificado e m
lofa d a Cidade Pirata, e m
Caracas, V e n e z u e l a , 2006

O OLHAR A D O L E S C E N T E 97
A D U L T O S DO AMANHA

EDUCAÇÃO SEXUAL
Abordagens transdisciplinares na escola favorecem a reflexão sobre temas tão
amplos como a sexualidade e as fases do desenvolvimento fiumano
Alguns temas se tornaram tabus ideia de trazer para o ensino básico
na história do ensino básico, como as a "educação sexual", tendo e m vista,
fases da vida. Não é difícil encontrar quase sempre, finalidades muito pre-
nas escolas as ilustrações que mostram cisas: evitar a gravidez precoce e
o crescimento biológico do h o m e m , as as doenças sexualmente transmissí-
fases que vão do útero à velhice. A visão veis (DSTs)/aids. Pouco se fala e m
orgânica do corpo acaba se impondo estudar as fases humanas de forma
como única verdade digna de figurar mais extensiva, transdisciplinar, em
nos programas escolares com mais ampliar as possibilidades de leitura
permanência. Claro que esses estudos das redes de sentido que os outros
são interessantes e importantes, mas, jovens, deste e de outros tempos,
isoladamente, o corpo destituído da tecem sobre o próprio viver.
vida social, da animação do desejo, Talvez com base nesses múltiplos
enfim, de tudo que faz pulsar a vida, focos seja possível entrever que o tema
nada diz ao corpo vivo do adolescente da sexualidade - tão caro aos adoles-
ou mesmo da criança. centes - não se reduz à compreensão
De vez em quando, os meios de biológica das transformações corpo-
comunicação e t a m b é m certos seto- rais, tampouco às leituras estereotipa-
res da educação se alvoroçam com a das que as mídias apresentam.

TEMAS E X P O S T O S jes psicossociais que de fato dão substância ao muitos outros que, em geral, não fazem parte
Ainda que determinados cotidiano de cada sujeito. dos tradicionais conteúdos escolares. Entretanto,
assuntos ligados a Nesses casos, é preciso ter em mente uma são assuntos emergentes do cotidiano do jovem
sexualidade, violência, velha crítica freudiana, posta no livro O mal- contemporâneo, os quais os estimulam em
moral e ética não sejam estar na civilização, que ironiza cruelmente o direção a uma ética, cuja formulação resulta não
fáceis de ser abordados viés moralista com que adultos tentam retirar mais da fala de um especialista portador de uma
com os jovens, eles não ou apaziguar temas polémicos do ensino: "Ao verdade, mas de uma pluralidade de focos que
devem ser tratados sob encaminhar os jovens para a vida com essa falsa a ciência contemporânea permite.
o véu de falsas proteções orientação psicológica, a educação se com- Para concluir, reafirmo a crença na pos-
porta como se devesse equipar pessoas que sibilidade de a educação reconhecer que os
partem para uma expedição ao pólo norte com diversos fenómenos que afetam diretamente
trajes de verão e mapas dos lagos italianos". os adolescentes de hoje também os incitam à
pesquisa, à busca da rede de sentido que as
PARA CONHECER MAIS PAUTAS E M E R G E N T E S ciências entretecem sobre seu corpo e seus
Sabemos que não é fácil transformar esses novos comportamentos. Como essa diversidade
Metáforas da memória:
temas em conhecimentos escolares, embora já temática vem sendo hoje abordada de forma
uma história das Ideias
tenhamos razões para concluir que as melhores bem ampla pelas mais diversas ciências, é
sobre a mente.
portas de entrada podem ser as chamadas feiras possível romper com o modelo do especialis-
D. Draaisma. Edusc, 2 0 0 5 .
de ciências. Na Feira Brasileira de Ciências e ta de renome (em geral médico ou psicólogo
Os sentidos da paixão. Engenharia - Febrace 2007, organizada pela reconhecidos pela mídia) e apostar na plura-
S. Cardoso e outros. lidade de temas que os próprios adolescentes
Escola Politécnica da USP, evento centralizador
Companhia das Letras, 1987.
que recebe os trabalhos finalistas das escolas de podem enfrentar como pesquisadores a fim
Corpo e sentido. ensino básico do país, constatamos muitas ousa- de se prepararem para o amanhã.
I. Assis Silva (org.). dias que estão bem além de falsas proteções. É o
Edusp, 1 9 9 6 . caso de temas como violência contra a mulher, O A U T O R C L A U D E M I R B E L I N T A N E é linguista e
O mal-estar na civilização. adolescência e violência na escola (bullying), tele- educador, professor de graduação e pós-graduação da
S. Freud. Imago, 1 9 9 7 . visão no imaginário infantil, pedofilia, pirataria e Faculdade de Educação da Universidade de São Paulo.

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4 m
nriAite
^•^lérebro
APRESENTA

adolescente
O S I N C R Í V E I S A N O S D E T R A N S I Ç Ã O PARA A I D A D E A D U L T A

ESPELHOS DA
SOCIED
C E M • MORAL E ÉTICA • VALORES E C O N S U M O •
JUVENTUDE E MÍDIA • G É N E R O E DIVERSIDADE • M A I O R I D A D E PENAL •
V I O L Ê N C I A • M O V I M E N T O S S O C I O C U L T U R A Í S • A D U L T O S DE A M A N H Ã

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