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o adulto constrói o menor e o aluno

Oví-vcj^ ás^->o

J2-

A ATUALIDADE DO NECESSÁRIO fazem a História, ressaltam a relevância dos


atores que a protagorúzam, o jogo entre eles e
Tudo que nos_é familiar tende a ser visto co- o cenário em que atuam. A o fazer isso, esses
mo natural; quando isso ocorre, naturaliza- atores projetam seus pontos de vista, selecio-
mos o que nos rodeia, os contatos e as rela-i n a m traços daqueles que são objeto da narra-
ções que mantemos com o que nos cerca, co- ção, extraem a sabedoria obtida pelas expe-
mo se sua existência fosse resultado da es- riências que tiveram com eles. Quase sempre /
pontaneidade, como se sempre tivesse existi- os relatos que perduram ocultam outras vozes -
do e, inevitavelmente, tivesse de existir. Esse na composição da narração e outras vivências.
modo de ser penetra em nossas vidas, dá sen- É assim que construímos os sujeitos que parti-
tido ao modo de entendermos e de nos repre- cipam nos diversos cenários em que nossas v i -
sentarmos no m u n d o cotidiano, isto é, dá das transcorrem. A educação é u m deles.
conteúdo a nosso senso comum. Este nos ser- O aluno é u m a construção social inventada
ve para perceber e dar significado à realidade pelos adultos ao longo da experiência históri-
natural, social e humana; v a i acumulaindo ca, porque são os adultos (pais, professores,
materiais para criar experiência com a qual cuidadores, legisladores ou autores de teorias l
podemos enfrentar situações e novos encon- sobre a psicologia do desenvolvimento) que /
tros. Essa experiência e esse senso c o m u m têm o poder de organizar a vida dos não-
vão sendo enriquecidos por nós com repre- adultos. Sem que isso possa ser evitado, re-
sentações tomadas de outros, com o que nos presentamos os menores^ como seres escolari-
contaram, com os discursos e histórias que
escutamos - cultura que herdamos - que fa-
lam das experiências prévias dos antepassa- U t i l i z o as categorias aluno, criança pequena, menor,
e t c , m u i t a s vezes como sinónimos. A denominação
dos dos quais somos herdeiros.
" m e n o r " , especificamente, u t i l i z o para englobar t o d o
Essas histórias, ou discursos, são compos- ser h u m a n o que " n ã o é a d u l t o " , p o r q u e na realidade
tas pelas vozes que perduram e são passadas o aluno não é u m a d u l t o completo. O termo menor é
a outros; esses relatos dominantes são os que mais a m p l o do que criança.
12 O ALUNO COMO INVENÇÃO

zados de pouca idade. As imagens obtidas são Não diremos nada de novo sobre a figura
projetadas nas relações que mantemos com do menor transformado em alimo, pois, de u m
eles, na maneira de vê-los e de entendê-los, jeito ou de outro, tudo já foi dito; mas é preciso
no que esperamos de seu comportamento lembrar outra vez algo que já é sabido e com-
diante das indicações que lhes fazemos o u biná-lo de outra forma para que passe a ser
diante de determinadas situações, nos parâ- parte dos discursos de nosso presente domina-
metros que servem para estabelecer o que do por outros modismos. O sujeito deixou de
consideramos normal e o que fica fora do to- ser atual nas propostas que d o m i n a m os dis-
lerável. ^ cursos atuais. A o tentar devolver esse tema pa-
A o acreditamos que são "menores", sua, ra a atualidade, queremos enfrentar os proble-
voz não nos importa e não os consultamos \.. mas do presente considerando os receptores
para elaborar o u reconstruir a ideia que te- da educação, em nome de quem parece que
mos sobre quem eles são. Os adultos definem tudo é feito. Não fazemos isso pelo simples i n -
a si mesmos, e os menores são definidos pelos teresse académico. As ideias importantes de-
adultos. Se eles não falam, e nós adultos faze- vem ser constantemente rememoradas, embo-
mos isso por eles, é lógico que a explicação de ra contextualizando-as no panorama a partir
sua experiência esteja m u i t o intermediada do qual nós as ressuscitamos, simplesmente
pelas visões que temos deles. Não será estra- porque aqueles que as lêem e escutam são d i -
nho, então, em u m a situação como a atual, ferentes. U m a tradição de pensamento não se
em que o grupo de menores passa a ter u m a estabelece na cultura que serve de apoio a este
certa identidade e a se constituir em agente e às ações dos seres humanos, do mesmo m o -
social, que os desajustes em nossas percep- do que se estabiliza uma mutação genética que
ções adultas sobre os alunos comecem a se se reproduz nas gerações seguintes dos sujei-
tornar evidentes. tos que a herdam, mas por ser reiterada. O fa-
Por que discutir sobre a obviedade da exis- to de ficar acumulada na tradição do discurso
tência dos alunos como menores dentro das so- não significa que faz parte da consciência cole-
ciedades escolarizadas? U m tema não é i m - tiva, mas que está viva dentro de cada u m de
portante pelo fato de estar na moda, nem dei- nós. O que para alguns já é sabido é preciso ser
xa de ser porque não é mais atual. As oscila- í rememorado para que outros também possam
ções de nossa atenção por qualquer dos tópi- saber, mas isso precisa ser feito, sobretudo, pa-
cos nos quais colocamos nossas preferências ra que possa continuar sendo contado e para
intelectuais dizem m u i t o de nós, de nossa so- i revitalizar a tradição.
ciedade e da cultura em u m dado momento; E m muitos casos, a aparente falta de atua-
delatam nossas sensibilidades. Os temas e lidade de u m tema o u problema é explicada,
problemas aparecem e desaparecem como simplesmente, por essa sensação de naturali-
preocupações, não porque foram resolvidos e dade que as situações, as pessoas e as vivên-
não se possa dizer algo novo, mas porque, co- cias na v i d a cotidiana provocam em nós. A o
mo dizia Gordon AUport, eles se cansam de estarmos acostumados com sua presença, es-
nós (e nos cansam). Nossa atenção oscila, va- ta pode nos impedir de pensar que poderiam
mos e voltamos sobre o mesmo, embora a par- ter sido de outra maneira, que realmente fo-
tir de linguagens e perspectivas diferentes. r a m e terão outra aparência o u presença, que
Essa inconstância faz com que nossa atuação, poderiam ter outro significado para nós e que
em vez de se apoiar em u m a experiência con- deveríamos ter nos conduzido de outro m o d o
tinuada que acumula e revisa as tradições de em relação a elas. "Sabemos" que o ar e os ba-
pensamento, se apoie em uma mistura de timentos cardíacos estão aí, deles depende ca-
lembranças e de esquecimentos, conforme as- da segundo de nossas vidas, mas não nos i m -
sinala Bauman (2002), enterrando algumas portamos nem nos preocupamos com isso; e,
ideias vivas e retomando outras que foram assim, não percebemos o que sua existência e
deixadas de lado em outro momento. seu funcionamento têm de maravilhoso, a
GIMENO SACRISTÁN 13

não ser quando sofrem alguma anomalia. soas que vemos é'ir às instituições escolares
Quase a mesma naturalidade outorgamos às todos os dias.
pessoas e às relações que mantemos com elas. U m a olhada nos números sobre a escolari-
Estamos tão presos às realidades cotidianas e zação de crianças e jovens nos mostra que a
aos semelhantes que nos rodeiam e ao que fa- condição de serem escolarizados desde os 3
zem e são para nós que, quase com toda cer- até os 15 anos é uma forma estatisticamente
teza, não nos sentimos estimulados a i m a g i - normal de estar em nossa sociedade, como se
nar outro m u n d o possível. Aceitamos como pode ver na Figura 1.1, tanto para as m u l h e -
natural e como certo o que acontece e v e m res como para os homens; embora sçja certo
dado, quando tudo é produto de uma trajetó- que, por trás desses dados estatísticos, se es-
ria que poderia ter tomado outro r u m o e che- condem realidades desiguais para diferentes
gado a ser de outra maneira. A mesma natu- grupos que não foram e ainda continuam
ralidade estendemos ao futuro (ao menos ao sem ser escolarizados nas mesmas condições.
imediato) e damos como certo que assim con- O aluno, como a criança, o menor o u a in-\
tinuará sendo. fância, em geral, são invenções dos adultos,
Com a figura do aluno acontece o mesmo:^ categorias que construímos com discursos
é tão natural ser aluno e vê-lo em nossa expe- que se relacionam com as práticas de estar e
riência cotidiana (tem sido assim em nossa de trabalhar com eles. São elaborações atri-
própria vida), que não questionamos o que buídas aos sujeitos que pensamos ter algu-
significa ter essa condição social que é contin- mas dessas condições. A peculiaridade socio-
gente e transitória. Damos como certo que, lógica e antropológica que supõe esse fato
em uma etapa de suas vidas, o papel das pes- geralmente passa despercebida, de tão natu-

TOTAL •O Ensino Fundamental Bactiarelado


Ed. Infantil . . - - Educação Básica FP2

T 1 1 1 1 1 1 1 1 r—y—I 1 r
4 5 6 7 8 9 10 11 12 13 14 15 16 17 18 19
% de população de menores escolarizados por idades

Figura 1.1 Porcentagem de população que tem a condição de ser aluno em diferentes idades.^

^ Gráfico elaborado c o m os dados sobre escolarização


que é oferecido pelo Ministério de Educação {Las ci-
fras de la Educación en Espana-2001)
14 O ALUNO COMO INVENÇÃO

ral que nos parece, sem que paremos para Nossa ideia de aluno - com todas as varia-
pensar se isso foi sempre assim, se ocorre ções, incoerências e contradições que possa-
universalmente, se será u m estado do qual mos encontrar nos significados que tal cate-
necessariamente surgem consequências sem- goria representa - é devedora e se alimenta
pre positivas para eles o u não, como v i v e m da longa experiência de compreender e tratar
essa tarefa, com quais dificuldades e preocu- os menores em geral, da herança de usos das
pações vão às aulas, o que encontrarão a l i , instituições que os acolheram, daquilo que
que desejos deixam ao sair de suas casas e diferentes agentes esperam que essas institui-
quais deixam nas portas da escola, que histó- ções façam com eles e das condições sociais,
ria têm ou que futuro os espera, por que car- políticas, económicas e culturais nas quais t u -
regam nas costas o peso do que devem assi- do isso está inserido. A infância construiu em
milar e esquecer depois, o que realmente parte o aluno, e este construiu parcialmente a
infância. As duas categorias pertencem e alu-
aprenderão e o que se verão obrigados a es-
dem a mundos nos quais se separam os me-
quecer, por que na rua são de u m jeito e nas
nores dos adultos (a infância da maturidade e
salas de aula de outro, por que em sua casa
o aluno da pessoa emancipada); isso constitui
podem beber água quando querem e na sala
uma característica das sociedades modernas:
de aula não, por que têm de i r ali todos os
ser escolarizado é a forma natural de conce-
dias e na mesma hora, por que v i v e m as se-
ber aqueles que têm a condição infantil. Essa
gundas-feiras de maneira diferente das sex-
estreita relação se projeta tanto no pensamen-
tas, por que em alguns casos vão vestidos de
to c o m u m como na psicologia científica.
uniforme e em outros não...
O tratamento que se deu ao aluno como
E possível intuir que, em torno da catego-
"objeto" do pensamento científico está longe
ria aluno, formou-se toda u m a ordem social
de poder nos oferecer u m a imagem completa
na qual se desempenham determinados pa-
e coerente, pois o estudo do sujeito-aluno f o i
péis e se configura u m m o d o de vida que nos
d i v i d i d o entre diversas disciplinas científicas
parece muito familiar porque estamos acostu-
(antropologia, psicologia, sociologia, medici-
mados a ele. Essa ordem propicia e " o b r i g a "
na, etc.) incapazes de relacionar seus respecti-
os sujeitos nela envolvidos a serem de u m a
vos discursos e contribuições. A primeira ten-
determinada maneira. Eles pensam, sentem, dência da psicologia f o i descrevê-lo, normali-
se entusiasmam, se inibem e se relacionam, zá-lo, caracterizando-o; depois f o i regulá-lo,
têm uma vida pessoal e familiar, u m a histó- desmembrando-o de sua condição social e
ria, u m contexto de vida e u m futuro. Quais cultural (e também escolar), dando, ao que
aspectos de toda essa complexidade da pes- mostrava a realidade, o valor de natureza
soa entram como significados nas representa- constituída e estável. De alguma forma, o dis-
ções que elaboramos do aluno e quais são des- curso pedagógico baseado no conhecimento
considerados? Isto é, do que é composta a científico fez com que realmente se mascaras-
imagem que temos da infância o u dos adoles- \ se a influência das condições sociais no de-
centes escolarizados? Como foram sendo , senvolvimento dos menores e no tipo de res-
configuradas toda essa ordem cultural e so- * •- posta que dão às exigências escolares. A ten-
cial e essas representações em torno do aluno, dência será atribuir as diferenças entre indiví-
com que lembranças e com que esquecimen- duos a características pessoais, tirando a res-
tos? A evolução da infância como u m a cate- ponsabilidade do ambiente educacional.
goria social foi delineada, primeiro, com o re- A pesquisa educacional, nas últimas déca-
conhecimento, a definição, o desenvolvimen- das, optou por tomar como objeto preferido o
to e a avaliação da criança e, subsequente- professor, dando atualidade a u m discurso
mente, de acordo com as intervenções dos que também d i v i d i u e parcelou o objeto de
adultos para facilitar seu desenvolvimento estudo. Curiosamente, em nosso contexto, o
(Austin, Dwyer e Freebody, 2003). sujeito professor está m u i t o mais presente no
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sores, etc, do que na qualidade da aprendiza-
discurso dos especialistas do que o aluno. gem. Pergunta-se pouco pelas mudanças que
Chama nossa atenção a ausência de simpó- deveriam ocorrer a partir das condições dos
sios, de congressos, de publicações o u de con- sujeitos receptores. Quando se d i z que uma
ferências sobre este; isto é, sua falta de noto- inovação fracassa o u tem êxito, poucas vezes
riedade. Essa desproporção o u esse esqueci- se apela para o que representa u m a o u outra
mento se inverte quando o objeto de estudo é para o aluno, no que melhora sua qualidade
a criança em relação aos adultos. A criança es- de vida./O fracasso dos estudantes diante do
tá muito mais presente do que seu homólogo, que se exige deles e de como se exige equiva-
o mais velho. O que querem dizer essas des- le à deterioração do sistema, isso sem se deter
proporções? Entre outras coisas, que discuti- na análise do que essas exigências significam
mos menos a categoria de ser aluno, que não para eles, que é em quem realmente t r i u n f a m
vemos em sua definição nada o u quase nada o u fracassam as reformas.
de controvertido, que a consideramos natural Consideramos que o receptor, beneficiário
tal como a percebemos, que não somos tão da educação, deixou de ser atualmente o pó- ^
sensíveis ao que ocorre com as crianças. Acre- lo de atração do pensamento educacional,
Q ditamos que o m o d o de ser aluno é a maneira tendo ficado diluído entre uma série de supo-
natural de ser criança; representamos os dois sições implícitas que, em muitos casos, per-
conceitos como se fossem, de alguma forma, deram a força de seus significados originais, e
equivalentes. E m compensação, não identifi- nos tratamentos pretensamente científicos
camos qualquer adulto como se fosse u m das disciplinas psicopedagógicas. O discurso
professor, porque sabemos que nem todos os dominante em educação nas últimas décadas
adultos o são. Polemizamos bastante sobre esteve m u i t o mais centrado na instituição es-
como entender as funções dos professores, colar, em sua eficácia, no currículo, no êxito
sobre os efeitos de seu desempenho; analisa- ou fracasso escolar, na acomodação da educa-
mos os paradigmas científicos dentro dos ção ào sistema p r o d u t i v o o u nas reformas
quais alcançar melhor uma adequada com- educacionais. O fracasso escolar preocupa,
preensão de seu ser e de seu ofício, mas não mas "os fracassados" n e m tanto. Natural-
temos a mesma sensibilidade em relação mente que no discurso estão m u i t o mais pre-
àqueles que recebem sua influência. Falamos sentes os professores do que os "clientes" que
muito sobre o ensino nas situações escolares dão sentido ao seu ofício. Estão fora dessa
ou sobre o currículo, nos mostramos mais tendência geral as preocupações sobre o gê-
, preocupados em como planejar e transmitir nero o u sobre a cultura étnica como motivos
y ú o que em como os alunos recebem esse ensi- de desigualdades entre os alunos. Geralmen-
no. As reformas educacionais costumam se te, qualquer problema o u tema de discussão
deter m u i t o mais na busca da melhoria da em educação tem seus receptores como u m
qualidade do ensino, na atualização dos con- referente implícito; em poucas ocasiões o su- ^
teúdos, na mudança das estruturas organiza- jeito escolarizado aparece no centro das con-
cionais e da gestão, dos interesses dos profes-

' Como abordagem empírica e como fato curioso, consultamos a base de dados do ISBN (registro de livros publica-
dos na Espanha desde 1972) para ver o número de vezes em que as publicações registradas nela contêm em seu tí-
tulo u m a série de termos-chave. N o m o m e n t o e m que escrevemos, f o i possível obter os seguintes resultados:

Base de dados Professor/a Aluno/a Estudante Menino/a Adulto/s


Professores/as Alunos/as
Professorado Alunado
ISBN 5.779 1.467 735 4.270 618

* C o m o objetivo de desenvolver u m projeto de avaliação de u m a experiência de inovação educacional, encontramos


u m determinado g r u p o de pais, mães e professores que suspeitava da eficácia da experiência p o r q u e os alunos
" i a m mais felizes e despreocupados para as escolas".
16 O ALUNO COMO INVENÇÃO

trovérsias. Aqueles que têm mais presença no Sendo o aluno destinatário da educação,
sistema escolar podem ficar dessa forma d i - parece que sua presença ficou m u i t o obscure-
luídos no discurso, ausentes em nossas cons- cida no atual discurso dominante sobre o en-
ciências e relegados a u m segundo plano em sino e a educação em geral. Nós acreditamos
nossas preocupações. Tudo é para o aluno, que a corrente sensibilizadora para as neces-
claro. Mas, apesar de sabermos que a política sidades do aluno, para seu m u n d o , difundida
educacional, as instituições, o currículo, as re- ao longo de todo o século XX, não está exata-
formas, os professores, etc, são para os sujei- mente em seu momento mais culminante, em
tos-alunos, o ponto de vista a partir do qual que a educação passou a ter u m papel rele-
os problemas são propostos mostra outras vante na produtividade económica e é m o t i -
prioridades, tanto no discurso como nas prá- vo de esperança de inserção na vida ativa, já
ticas. Falar de neoliberalismo, de compreen- que não é somente de mobilidade social. O
são ou de qualidade do sistema educacional é destinatário fundamental da educação não é
fazê-lo a partir de orientações, de preocupa- moda na agenda dos debates. As prioridades
ções ou de propostas que afetam os estudan- estabelecidas pela ordem ideológica e econó-
tes, mas é frequente não encontrá-los nessas mica dominantes nas últimas décadas obscu-
discussões.^ receram, quando não apagaram, os sujeitos.*'
A pedagogia contestadora e crítica quis , Também não é alheia a essa tendência a reti-
salvar o aluno do sistema educacional, da rada o u a queda da pressão reivindicatória do
autoridade familiar, da repressão e da m a n i - m o v i m e n t o estudantil, tão ausente nas últi-
pulação de sua consciência; a ciência o cien- mas décadas, a favor de u m a educação mais
tifizou, reduzindo-o a dimensões geralmen- de acordo com suas necessidades; u m a pres-
te discretas, justapostas umas em relação a são que os adultos ajudaram a desmontar, b u -
outras. A pedagogia o entendeu como maté- rocratizando a participação dos alunos nos
ria moldável. Nosso olhar, apesar de o sécu- órgãos de participação nas escolas.
lo XX ter sido qualificado como o "século da A essas alturas, não é nada original o que
criança", continua sendo mais magistrocên- podemos dizer do aluno, mas consideramos
trico (visto a partir dos professores), logo- que u m discurso que o enfoque e o situe no
cêntrico (dependente dos conteúdos míni- centro da cena pode ajudar a combinarmos as
mos) o u sociocêntrico (olhando as necessi- peças e observarmos, em u m quebra-cabeça
dades sociais) do que alunocêntrico (centra- mais significativo, como é o arquétipo que o
do no aluno). Esse desequilíbrio é a manifes- representa o u , melhor dizendo, como nós o
tação de uma longa história de desigualdade
de poder refletido na desigual presença dos
D e v i d o aos debates e m t o r n o da d e n o m i n a d a Lei de
discursos sobre professores e alunos. A l -
Qualidade, que f o i apresentada como corretora das
guém disse que quanto menor o status edu- disfuncionalidades da LOGSE, p u d e m o s c o m p r o v a r
cacional de u m a pessoa maior a probabilida- como os argumentos manejados e publicados se refe-
de de ela se tornar objeto de pesquisa. O pe- r i a m basicamente ao fracasso dos alunos, nunca ao
so corporativo dos professores é, simples- papel dos professores e de outros condicionantes. Os
alunos - certo setor dos mesmos - f o r a m apresenta-
mente, maior.
dos como culpados. Eles eram " i n a d e q u a d o s " para o
sistema, não este para eles. O determinismo sociológi-
co (a defesa de que o meio social é intocável e p o r isso
^ N o momento em que escrevemos este texto se coloca não conta), a crença na inexorável continuidade do ní-
em dúvida a eficácia d o modelo da compreensibilida- vel de r e n d i m e n t o académico (não há lugar para a
de para o ensino médio. Os argumentos que surgem compensação), o inatismo psicológico que subjaz aos
se referem a dificuldades dos professores para contro- argumentos que dão p o r fixadas as capacidades de
lar estudantes que não toleram esse sistema, que não cada u m às quais se lhes outorga u m destino e os ar-
são controláveis o u que estão desmotivados. Raras gumentos sobre o esforço como variável essencial para
vezes se diz que os professores o u as instituições inca- melhorar a educação exigem trazer para o p l a n o do
pazes de entender as necessidades desses alunos t a m - consciente as ideias e proposições essenciais que
bém são incontroláveis. mantemos sobre q u e m e como são os alunos.
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representamos. Nas salas de aula repletas, en- diana até as que nos proporcionam as disci-
contramos seres reais com u m status em pro- plinas científicas sobre as crianças e os jo-
cesso de mudança, que estão enraizados em vens), analisando os modelos que, como re-
contextos concretos, que têm suas próprias presentações ideais, existem na sociedade e
aspirações e que, em muitos casos, não se que cada u m de nós tem sobre o que acredita-
acomodam à ideia que os adultos haviam fei- mos que são e desejamos que sejam os sujei-
to deles. tos nessas etapas da vida. Discursos que, por
Por isso é preciso, a partir da perspectiva sua vez, se relacionam com outros mais glo-
mais complexa de que dispomos agora, reu- bais sobre a condição humana e seu destino,
nir os elementos dispersos que nos propor- sobre sua natureza política e social, sobre os
cionem uma imagem u m pouco mais unifica- direitos universais, o estado de bem-estar, etc/^
da e coerente do sujeito da educação. O m u n - O m u n d o da infância se constrói, necessaria-
do m u d o u , os alunos também. Teremos de al- mente, em contraposição ao do adulto. A m -
terar nossas representações do m u n d o e dos bos estão constituídos por práticas nas quais
alunos. participam, discursos que procuram com-
Em outra oportunidade, argumentamos preendê-los e modelos utópicos de referência;
(Gimeno, 2001a) que o sujeito da educação f o i elementos que se entrelaçam gerando inter-
uma referência fundamental no pensamento dependências entre eles, tal como se pretende
moderno e nas políticas de progresso, assim refletir na Figura 1.2.
como na maneira de conceber o ensino e a es- A d u l t o s e jovens têm algumas determina-
colarização. Agora cabe a nós lembrar como das condições de vida interdependentes. Os
se constrói nas relações com os adultos. menores reais (b) são definidos pelas circuns- /
tãncias concretas do m o d o de v i d a que le-j
v a m . Não existem infâncias prototípicas u n i - i
COMO SÍNTESE PRÉVIA: UM ESQUEMA formes o u ideais, mas modos de viver essa;
PARA A PESQUISA DAS etapa da vida. A infância e os menores reais
DETERMINAÇÕES DO SUJEITO INFANTIL v i v e m em circunstâncias familiares - seu
meio social por antonomásia - peculiares (hl)>p
Para responder as perguntas sobre o que é ser que os condicionam como seres vindos ao
menor^ou aluno, é necessária uma tripla atitu- m u n d o em espaços sociais singulares nos
de inquisitiva que se interesse, por u m lado, quais serão cuidados e estimulados, segundo
{• pelas condições em que v i v e m os sujeitos, as possibilidades próprias do meio ao qual
rastreando as origens dos modos de tratar os pertencem (b2), pois também não existe uma
menores (isto é, descobrir a origem das práti- família-modelo n e m u m a única forma de v i -
cas de se relacionar com eles na vida cotidiana da familiar. Os adultos têm sistemas de vida
e nas instituições que frequentaram e conti- (b3) nos quais cabem o u não os menores. Nas
nuam freqiientando). Por outro lado, é preci- sociedades com u m certo nível de complexi-
so considerar que essas práticas sociais e edu- dade, essas formas de viver requerem a sepa- 'V.
cacionais estão ligadas a outras mais globais, ração dos menores em outros espaços e m o -
relacionadas com o funcionamento da socie- dos de vida (b4), como é o caso da escolariza-
dade em geral: o governo dos indivíduos, as ção. Dessa forma, o menor filho se separa do
formas de produção e a evolução do trabalho, menor aluno. A relação entre a situação socio-
a distribuição da riqueza, as tecnologias de familiar ( b l ) e a escolar (b4) estabelece uma l i - ^
comunicação dominantes, as práticas do d i - gação essencial para definir e compreender o ^
reito, a evolução da família, o papel da escola- menor nas sociedades com a escolaridade
ridade em cada momento histórico e nas cir- universalizada. Enquanto as condições do su- c/"
cunstâncias sociais, etc. Finalmente, é preciso jeito menor dependem das dos adultos mais ^
uma análise do discurso (desde as crenças do imediatos que são os familiares (b2), o jogo
senso comum quç governam nossa vida coti- entre a vida dos adultos em família e o espa- ^
18 O ALUNO COMO INVENÇÃO

b2) Condições de b3) Condições c1) Discursos


vida dos adultos gerais de vida do como pode
familiares adulto V o ser hu

a3) Discursos (científicos e não-científicos) a2) Discursos sobre


sobre o valor determinante como e o ser

0
dessas condições humano

a) Visões
b) Infâncias da infância (cientificas
reais e não-científ icas)

a4) Discursos (científicos e não-científicos)


sobre o valor determinante a1) Discursos sobre
dessas condições a i

b1) Condições de b4) Condições de vida c2) Discursos sobre


vida familiares e institucionalizadas da como pode ser
sociais da criança criança (Educação) a infância

Figura 1.2 Determinantes da construção da Infância.

suas atividades na sociedade em geral plasma-em teorias implícitas e em u m pensa-


(b3) definirá os modos de ser e de viver dos mento disperso. A o longo do século XX, a psi-
menores nessa etapa da vida. cologia e as ciências sociais nos proporciona-
Os discursos e as ideias criam não só as rea- r a m uma nova forma de ver, de entender e de
lidades que de alguma forma nos determi- valorizar os menores em relação a orientações
nam como também as ideias que nos p e r m i - provenientes da filosofia, da política e do d i -
tem ver as realidades de u m a determinada reito que projetaram sobre o menor as visões
forma e, nesse sentido, é possível dizer que mais dignificantes da natureza humana em
essas ideias são u m elemento do m u n d o exis- geral (a2). Esses discursos, em grande parte
tente. A o outro, que é o menor, nós percebe- originados em meios intelectuais e académi-
mos e tratamos em função dos discursos que cos, começam a ser d i f u n d i d o s graças à for-
construímos ao longo da história da cultura, mação de professores, passando até a fazer
que nos falam de diferentes visões da infância parte das representações coletivas assumidas
(a). São construções que, sem dúvida, estão l i - pelo senso c o m u m das pessoas. As explica-
gadas às práticas às quais acabamos de nos ções sobre como as condições de v i d a cons-
referir, mas que, enquanto configuram u m troem o ser humano em geral (a3) serão pro-
senso comum ou uma inteligência prática, se jetadas, sem dúvida, nas explicações sobre co-
transformam em elementos de fundamental m o se constrói e como podemos i n f l u i r nos
importância para as relações sociais, voltadas menores (a4).
para nosso comportamento com os demais, A pulsão ética. A idade de ser menor tam-
dirigindo a percepção do outro, etc. Esse bém é u m momento carregado de esperança
componente discursivo que versa sobre a i n - para os adultos que projetam seus ideais (c2)
fância (al) tem raízes que absorvem a seiva - refletem as aspirações de melhora do g r u -
das camadas mais profundas da cultura e se p o (família, tribo o u sociedade) e da h u m a -
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^/iiidade em geral (cl) - sobre o menor. Talvez A HISTÓRIA DEPOSITADA NOS


o exemplo mais claro dessa esperança possa SIGNIFICADOS DAS PALAVRAS:
ser visto no reconhecimento do valor d i g n i - A CONSTRUÇÃO FEITA PELOS
ficante da educação que, em 1948, f o i reco- ADULTOS DA IDENTIDADE DO MENOR,
nhecida pela O N U como u m direito u n i v e r - QUE DEPOIS SERÁ O ALUNO
sal a mais na Declaração Universal dos D i -
reitos Humanos. Isso nos fez pensar na equi- A humanidade ocupa seu lugar na ordem das
N^valência da escolaridade como o direito à coisas; a infância tem o seu lugar na ordem da
vida humana: é preciso considerar o homem
• Wucação, elevando dessa f o r m a a condição
no homem e a criança na criança.
de aluno à categoria de u m papel necessário
(Rousseau, 1985, p. 84 )
que serve para a realização da dignidade h u -
mana: A linguagem nos proporciona u m a forma de
ver a realidade, u m a maneira de interpretá-
Art. 26. 1. "Toda pessoa tem direito à edu-
cação. A educação deve ser gratuita, ao menos la e de representá-la. A linguagem d o m i n a n -
no que concerne ao ensino elementar e funda- te t m d u z , então, as formas dominantes de
mental. O ensino elementar será obrigatório. conhecimento e de atuação dessa realidade.
O ensino técnico e profissional deverá ser ge- Não reflete u m saber neutro, pois "coloniza"
neralizado; o acesso aos estudos superiores se- a atualidade quando o empregamos. O ser
rá igual para todos, em função dos méritos res- h u m a n o cria significados sobre o m u n d o
pectivos [...]" que o rodeia e sobre si mesmo, sobre o que
considera que é t u d o isso e sobre o m u n d o
A posterior Declaração dos Direitos da Crian- desejável para ele, inventando conceitos que
ça de 1959 entende que a educação é u m d i - servem de referências para se ver, se com-
reito específico da infância: preender e se valorizar. Todas essas repre-
sentações f o r m a m u m a cultura sobre o que
(Princípio número 7): A criança tem direito
a receber educação, que será gratuita e obriga- acreditamos ser, sobre como evoluímos e so-
tória pelo menos nas etapas elementares. Será bre como gostaríamos de ser; consolidam em
dada a ela uma educação que favoreça sua cul- nós maneiras de ver, de tratar e de valorizar
tura geral e que permita, em condições de os demais e os menores em particular. U m a
igualdade de oportunidades, desenvolver suas cultura que reflete a carga semântica que os
aptidões e seu julgamento individual, seu sen- conceitos f o r a m recolhendo ao longo da his-
so de responsabilidade moral e social, chegan- tória, respondendo às condições de vida que
do a ser membro útil da sociedade. estavam vigentes em cada momento, que
O interesse superior da criança deve ser o contém as representações sobre o m u n d o
princípio condutor daqueles que têm a respon- real e o ideal ao qual gostaríamos que se as-
sabilidade por sua educação e orientação; tal semelhassem nossos descendentes.
responsabilidade cabe, em primeiro lugar, a
Para descobrir os parâmetros a partir dos
seus pais.
quais compreendemos, agimos em relação
A criança deve desfrutar plenamente de jo-
aos menores e avaliamos o comportamento
gos e recreações, que devem estar orientados
para fins perseguidos pela educação; a socie- do aluno, devemos analisar os discursos que
dade e as autoridades públicas irão se esforçar organizam as percepções e os princípios para
para promover o gozo desse direito. a ação que g u i a m os adultos em relação aos
menores em geral.
f'Assim, as ideias de dignidade humana e de Quando refletimos sobre alguma realida-
^^educação estarão intimamente ligadas à ne- de, quando a analisamos, fazemos comentá-
cessidade de escolaridade e à condição de rios o u lembramos algo sobre ela, ativamos
menores como alunos que estão fazendo uso u m discurso carregado de conceitos e de com-
de nada menos que u m direito. A história até binações destes cujos significados (que são
aqui foi muito longa. construções nossas) delimitam o sentido que
20 O ALUNO COMO INVENÇÃO

essa realidade adquire para nós na hora de dade que encerram e como condicionam nos-
pensar e de agir nela ou em relação a ela. As- sa percepção e nossas atitudes sobre a realida-
sim, em educação utilizamos tópicos como de que as pessoas representam e para as quais
aprendizagem, ensino, disciplina, inteligência, in- essas categorias são aplicadas./Não notamos
teresse ou motivação, fracasso, qualidade do ensi- como as utilizamos para entender o que consi-
no, nível escolar, classe social, cidadania, cultura, deramos n o r m a l o u anormal, aceitável o u re-
meio ambiente, docente, educação pública, currícu- cusável, digno o u indigno, valioso o u insigni-
lo, criança, jovem, construtivismo, etc, como ter- ficante nelas. O significado intelectual e mo-
mos que aglutinam em torno de cada u m de- ral, que damos como certo e convencionado a
les significados delimitados. Algumas dessas todas essas categorias, situa diante de nós as
categorias da linguagem prolongam antigas pessoas e nos inclina a vê-las, a valorizá-las e
histórias que foram moldadas por longas tra- a nos comportarmos em relação a elas com
dições de pensamento e de prática. E m alguns uma determinada predisposição.
casos, permaneceram estáveis; em outros, seu A categoria aluno é u m a forma social por
significado experimentou mudanças e muta- antonomásia de ser menor o u de v i v e r a in-
ções notáveis. Algumas categorias são utiliza- fância e a adolescência. Não é de todo univer-
das especificamente no campo particular da sal, mas é dominante para todos os indiví-
educação, outras são tiradas de áreas diferen- duos que, por sua idade, reconhecemos co-
tes da educacional. Algumas são descritivas m o menores. A escolaridade cria toda uma
(indicam como vemos a realiáade-aprendiza- cultura em torno de como vemos e nos com-
gem, por exemplo), outras têm mais u m cará- portamos com os menores (as maneiras de
ter valorativo {qualidade, fracasso, etc). A l g u - vê-los, de pensá-los e de amá-los). Ser aluno
mas despertam significados unívocos naque- supõe acumular a d u p l a carga semântica de
les que as utilizam, outras são mais equívocas ser menor mais a de ser escolarizado, exis-
e imprecisas. O uso dessas categorias e sua t i n d o variações culturais tanto nas formas
particular articulação f o r m a m o discurso por de conceber os menores como nas formas de
meio do qual compreendemos e valorizamos ser aluno.
a realidade. Toda essa bagagem de conceitos A carga de significação que tem o conceito
que dá sentido à realidade constitui, como aluno é o resultado da acumulação de manei-
afirma Popkewitz (1998), as fronteiras para as ras de entender os menores estando escolari-
formas de ver, de desejar, de falar, de pensar, zados. Dado que todos temos experiência
de sentir e de agir. Os discursos pedagógicos pessoal no desempenho dessa função duran-
que elaboramos com a rede de significados de te a l g u m tempo de nossas vidas nas socieda-
todos esses conceitos configuram o espaço em des escolarizadas, estaremos propensos a dar
que consideramos e pretendemos que trans- ao conceito de aluno o mesmo significado que
corram as ações dos agentes educacionais e do teve para nós o fato de termos desempenha-
comportamento das instituições. do esse papel. Ninguém nos ensina, nos nar-
Conceitos como aluno'' o u estudante se refe- ra o u nos teoriza o que é ser um aluno. Não e
rem a realidades tão imediatas em nossa expe- preciso. Sabemos de antemão graças às v i -
riência cotidiana e tão determinantes de nossa vências que tivemos como tais.
visão do presente que os manejamos sem que Como é a cultura específica - no grau que
nossa atenção os focalize de forma particulari- for - que fomos elaborando e aprendendo so-
zada. Não costumamos reparar na complexi- bre os "menores" e os "escolares" que nos le-

(?)
; va a percebê-los, a senti-los, a tratá-los e a nos
relacionarmos com eles de forma singular?
^ Sabemos que o termo, em sua f o r m a masculina, não Como aprendemos a nos comportar, sentir e
pode ocultar que hoje as mulheres têrh essa mesma
amar os menores? Que sentidos carrega e tem
condição e que sua presença representa u m m o t i v o de
diversificação do significado e do valor que o concei-
hoje a categoria aluno, que tipo de identidade
to representa. define para aqueles que têm essa condição e
-- - - -- ^— >.
GIMENO SACRISTÁN 21

com que determinação o faz? Hoje ela é u m a contam as representações simples do m u n -


categoria clara ou nebulosa, como são tantas do, adquiridas, às vezes, quase sem a cons-
outras? ciência de que estamos aprendendo com
Que conseqiiências têm para o aluno o fato elas, que são extremamente valiosas para
de viver nas instituições educacionais, estar efeitos práticos, embora estejam desordena-
'afetado por reformas, permanecer na educa- das, sejam formalmente insustentáveis e até
ção pública, no ensino obrigatório o u sob po- contraditórias entre si. Vemos e nos compor-
líticas do neoliberalismo? O que disseram so- tamos com os demais apoiados em uma ba-
bre ele as reformas educacionais que tanto gagem experimental m u i t o mais elementar e
ocuparam o cenário da atualidade e dos deba- menos elaborada, mas imensamente útil. Os
tes? Essa sensibilidade dominou, por exem- significados da infância para as pessoas co-
plo, o movimento da Educação Nova no início muns, e até mesmo para os professores, são
do século XX. O estatuto do aluno f o i preocu- extraídos da própria experiência e da v i d a
pação central dos movimentos antiautoritá- cotidiana que, ao ser assimilada, é reprodu-
rios que seguiram o rastro da contestação zida. As crianças e os alunos são pensados
política de 1968. O despertar dos m o v i m e n - por nós adultos, desejamos que cheguem a ^
tos críticos e de renovação educacional nos ser de u m a f o r m a determinada e os vemos
primórdios da democracia teve o sujeito da segundo as categorias cognitivas e senti- T
educação como u m referente essencial. Hoje mentais que elaboramos.
em dia isso não acontece.
N a v i d a cotidiana e do ponto de vista his-
Enquanto a educação for entendida como
tórico, ser aluno nos é apresentado como
uma atividade realizada p o r meio da troca
equivalente a ser menor, que está na infância.
entre as pessoas e graças à mesma, a imagem
A m b o s os conceitos - infância (menores em
que tivermos destas será u m fator determi-
geral) e aluno - c o m p a r t i l h a m u m mesmo
nante da relação entre elas. Vamos rever, en-
significado para nós porque ambos foram
tão, alguns dos eixos que nos ajudam a en-
construídos simultaneamente. A categoria
tender a posição que a categoria do sujeito
aluno faz parte da condição i n f a n t i l e da do
que exerce obrigatoriamente a função de ser
menor nas sociedades escolarizadas, en-
estudante ou aluno passou a ter em nosso
quanto a infância é hoje u m a categoria dis-
universo de significados.
tinguida socialmente na evolução da criança
A consolidação da ideia de aluno, como
por ser u m a etapa da v i d a em que se está es-
uma imagem social compartilhada por to-
colarizado. São duas imagens que se refle-
dos, deve ter ocorrido simultaneamente à
tem, que projetam entre si seus respectivos
expansão dos sistemas educacionais em so-
significados.
ciedades altamente urbanizadas e quando a
escolarização se universalizou como expe- N o m u n d o cotidiano contemporâneo, as
riência que todos tivemos, embora as marcas imagens sociais sobre os menores são cria-
dessa condição do ser humano, u m a catego- das, r e p r o d u z i d a s e recriadas nos âmbitos
ria do pensamento tão importante nas rela- das relações sociais familiares e escolares,
i ções sociais, estejam presentes m u i t o antes assim como a p u b l i c i d a d e , os meios de co-
de tal universalização. municação, o cinema e a televisão, a indús-
As pessoas em sua v i d a cotidiana não tria e o comércio de brinquedos desempe-
pensam, não questionam os conceitos o u ra- n h a m u m papel determinante na configura-
ciocinam sobre o que a realidade imediata ção da ideia de infância, c o n s t r u i n d o for-
lhes apresenta; não se relacionam com os de- mas arquetípicas de ser menor. Esses são os
mais por meio do diálogo e decidem o m o - verdadeiros artífices das representações da
mento de fazê-lo guiados pelos princípios infância, como e m outro t e m p o f o i a litera-
científicos e pelas grandes ideias morais. tura p o p u l a r e, especialmente, os l i v r o s i n -
Nas relações com os outros na v i d a diária, fantis.
^ j^>,
22 O ALUNO COMO INVENÇÃO ^ ^>^V. ^ j ^ o ^ ^ ^.AJ^^^/^c^cb ^^^^^x.-

A imprecisão dos limites sobre o que é da evolução psicológica, qualquer explica-


ser "menor", de acordo com as ção o u n o r m a pedagógica deve incorporar
realidades dos adultos essa premissa.
U m a das variáveis que diferenciam os me-
N a hora de dehmitar o significado de menor
nores, além de todas as citadas, é, precisamen-
ou de aluno, encontramos sérias dificuldades
te, o tipo de escolarização que recebem, o ní-
epistemológicas. A primeira se refere às for-
mas em que se vive í c o n d i ç ã o de menor e de vel alcançado e a qualidade da mesma. Os su-
aluno. As idades da vida representam modos jeitos concretos e diversos entre si serão alu-
de viver em u m m u n d o concreto e modos nos em ambientes educacionais que, por sua
concretos de viver n o m u n d o . Os sujeitos vez, são peculiares, pois são o reflexo das tra-
reais somente são inteligíveis vendo-os si- dições escolares diferentes, obedecem a pro-
tuados em suas condições biográficas, so- postas e histórias singulares, diferem segundo
ciais e culturais concretas: segundo a classe os níveis educacionais, etc. Isto é, a condição
social, a cultura, o género, etc, a que perten- de aluno é vivida a partir de diferentes manei-
cem; categorias que, p o r outro lado, se cru- ras de viver "as infâncias reais"; e o inverso,
zam entre si. À m a r g e m de qualquer ideal diferentes formas de viver a escolarização fa-
que possamos ter sobre o que entendemos rão com que a infância também seja diferente.
ou queremos que sejam as crianças o u me- Essa perspectiva de caráter mais socioló-
nores, estes são pessoas que v i v e m suas v i - gico supõe u m avanço em relação à visão psi-
das em condições reais. Como essas circuns- cológica dos menores que, frequentemente,
tâncias são variáveis e desiguais segundo a nos explicou o sujeito à margem de suas con-
geografia em que se está, a cultura, a classe dições de v i d a . Mas ainda resta u m perigo
social, a etnia, o sexo o u qualquer outra cir- que merece atenção: o do determinismo so-
cunstância de caráter pessoal o u social, os ciológico que esquece que os indivíduos são
sujeitos v i v e m sua infância o u sua pouca atores, sociais nunca determinados de todo.
idade de formas b e m diferentes. A infância é A l l i s o n , Jenks e Prout (1998, p . 206) conside-
objetivamente heterogénea porque existem r a m que a variedade da infância de uma pers-
infâncias socialmente diferentes e desiguais. pectiva sociológica deve ser compreendida
As meninas têm experiências diferentes das sob as coordenadas do caráter de agente dos
dos meninos, como diferente é a condição da sujeitos, diante da visão que dá mais valor à
criança abandonada se comparada com estrutura social. A criança não é u m a tabula
aquela que é ansiosamente desejada por rasa a ser preenchida pelos adultos, mas ela é
aqueles que a cuidarão. A infância das clas- o agente ativo em seu desenvolvimento. Isto
ses populares está longe de ser a mesma que é, temos de ver o sujeito como ator de alguma
a das classes abastadas: quanto a sua d u r a - maneira autónomo, que pode desenvolver
ção, forma de vivê-la, experiências tidas d u - uma certa capacidade de reação dentro das
rante a mesma. O conceito de menor (como o estruturas e instituições sociais. Se, como pro-
de aluno) engloba situações de pessoas m u i - põe Elias (2000), nos processos de socializa-
to heterogéneas. Não existem categorias u n i - ção, a individuação é u m efeito tão inevitável
versais, no sentido de que não são homogê- e certo como a integração e adaptação, ao en-
neas. Não existe infância, mas sujeitos que a tender ambos os aspectos no desenvolvimen-
, e x p e r i m e n t a m ^ m algumas coordenadas e to da v i d a da infância, devemos considerar
circunstâncias que diferem para cada u m de- que_o sujeito que é o menor também se i n d i -
les e para cada grupo social. Não estamos vidualiza construindo-se como indivíduo
(diante de categorias totalmente unívocas particular quando evolui para o ser adulto. A
• nem definitivas. Se somos criança, menor o u individuação é u m a fonte importante de d i -
jovem de muitas formas que não são equiva- versificação dessa etapa que chamamos de i n -
lentes, então, na hora de compreender o me- fância. Isto é, devemos ser conscientes de que,
nor em seu papel de aluno, qualquer teoria como pensam A l l i s o n , Jenks e Prout, existe
GIMENO SACRISTÁN 23

uma polarização entre universalidade e particu- diferentes e porque os olhamos de maneira d i -


larismo ao nos depararmos com as categorias ferente. Os discursos que definem os menores,
de menor, menino ou menina o u infância. Embo- as expectativas sobre as metas que devem ter
ra sejam categorias que afetam muitos, são v i - são, logicamente, elaboradas pelos adultos a
vidas singularmente. partir de sua perspectiva como tais. É óbvio
A segunda fonte de equívocos e de impre- que, ao longo da história, os menores foram
cisões está no fato de que menores e alunos são compreendidos, tratados e amados de manei-
sujeitos reais vistos através da bagagem cultu- ras diferentes, e por isso devemos considerar
ral a partir da qual os compreendemos; isto é, que a representação que agora temos deles
a partir das categorias que nós, adultos, te- tem por trás uma história que f o i variada e
mos, que foram e são variadas. As.situações, que não terminou. As imagens da criança e do
as pessoas e suas ações passam a ter u m senti- aluno aparentam ser conceitos claros e inequí-
do particular para nós ao percebê-las e valori- vocos, cujos significados parecem ser facil-
zá-las através da rede complexa composta pe- mente identificáveis por todos.
las concepções que temos sobre elas, segundo Existem formas de pensar a infância com
realidades práticas cotidianas em que v i v e m argumentações de diferentes níveis de dis-
os indivíduos o u os grupos aos quais se refe- curso: desde as teorias até as opiniões das
rem e também de acordo com as valorações que pessoas comuns. Ambas são diversas e confli-
fazemos das mesmas. Essa rede condiciona as tantes entre si. A história dos especialistas em
expectativas que temos sobre as pessoas. É ób- psicologia da criança é m u i t o recente para te-
vio que nossa "lente" não é uma criação total- rem conseguido pôr o u i m p o r sua ordem às
mente original, pois, embora organize os tra- crenças que fervilham entre todos os demais.
ços singulares de cada uma, ela, inevitavel- N a constituição de toda a bagagem de cren-
mente, reflete certos valores sociais mais o u ças sobre o menor contribuíram as religiões,
menos generalizados e compartilhados. Essa que deram orientações sobre as relações entre
rede se transforma em uma disposição para os seres humanos; ajvida em família; as v i -
entender, valorizar e reagir diante dos demais, sões sobre o destino dos indivíduos; a com-
e nós a manifestamos de maneira particular preensão de sua responsabilidade moral; seu
diante de cada indivíduo e em cada encontro status diante da divindade, etc. A organização
que mantemos com ele. Assim, quando nos social, o desenvolvimento das atividades pro-
referimos a aluno, criança e jovem - como acon- dutivas, a organização da família, etc, foram
tece também com adulto o u com aqueles que fontes de costumes, de concepções e de valo-
(j agrupamos na terceira idade - estamos nos re- rizações m u i t o diferentes sobre os menores. A
ferindo a categorias construídas por ideias, história da arte o u a literatura, tanto em suas
práticas de diferentes tipos e desejos que nos manifestações cultas como nas populares, nos
pertencem pessoalmente, mas que também oferecem imagens sobre os menores como
refletem formas socialmente propagadas de pessoas em diferentes ambientes, classes so-
pensar, hábitos generalizados de comporta- ciais, etc, dando a entender as formas de sua
mentos e de atitudes e valores de nosso tem- presença no m u n d o dos adultos. Hoje a p u -
po; algumas construções que carregam res- blicidade, o cinema e os meios de comunica-
quícios de u m passado mais o u menos próxi- ção alimentam esse fundo cultural sobre
mo, mais ou menos atualizado. Se tais catego- aqueles que são nossos menores. Tudo isso
rias são elaboradas por nós o u as tomamos ajudou a estabelecer alguns modelos de
emprestadas de outros, é natural que sejam aprendizagem emocional e intelectual para
indiscutivelmente relativas a u m tempo, a u m compreender, ver e se comportar com os me-
espaço e a uma cultura; portanto são mutáveis nores, para saber como se relacionar com eles,
em potencial, e assim foi possível demonstrar. cuidá-los, dirigi-los e respeitá-los.
As crianças e os jovens de hoje são diferentes Portanto, temos de saber que os discursos
dos do passado, porque v i v e m em sociedades para se pensar sobre a infância e a juventude
24 O ALUNO COMO INVENÇÃO

não f o r m a m u m bloco monolítico de visões e nada época em relação a do adulto, dando-


que devemos tentar desentranhar o pensa- Ihe certas características por pertencer a "sua
mento que define a infância e como ela é geração". As relações entre as gerações va-
construída, para saber quem acreditamos ser a riam, por sua vez, em função de outros pa-
criança e o jovem reais dentro da sociedade, drões coletivos, como são as culturas, o nível
indo além dos discursos científicos. económico, etc, que originam padrões dife-
- Os menores são para nós, além de alguns renciados de interação entre crianças e adul-
semelhantes que concebemos de u m a manei- tos (Allison, Jenks e Prout, 1998). Os espaços
ra determinada, alguém sobre o qual projeta- em que ocorrem essas relações diferem em
mos nossos ideais, que transformamos em uns e em outros casos (na família, na escola,
objeto de nossos desejos e de nossas frustra- / no trabalho, etc). A escolarização desempe-
ções, de nossos julgamentos e preconceitos. í n h o u u m papel importante na homogeneiza-
São seres que percebemos e amamos a partir , ' ção das crianças, à medida que se propagou.
da história que comunicamos por meio das A v i d a extra-escolar também difere de uns
complexas e ambivalentes relações que man- 1 grupos para outros: alguns dedicam seu tem-
temos e também das que procuramos evitar ipo para ajudar nos afazeres domésticos, o u -
com eles. tros se l i m i t a m ao estudo, e outros se tornam
Essa relativização significa, antes de t u - prisioneiros da tela da televisão.
do, pensar que existiram, existem e conti- Também podemos comprovar empirica-
nuarão existindo maneiras diferentes de re- mente que existem várias infâncias desejadas,
presentar o que são determinadas etapas da \s formas de querer o presente e o f u t u -
vida, no que canalizam as energias e as pos- ro dos menores, p r o p o n d o o u transmitindo-
sibilidades que têm, que direção de f u t u r o Ihes inconscientemente planos de vida, expec-
queremos i n f u n d i r a eles, que status tem ca- ^-^tativas de futuro, etc, que são fortes fatores de
da uma delas, etc. diferenciação entre as pessoas e os grupos so-
As percepções e valorações que os adultos ciais e culturais. A "criança", definida de acor-
fazem dos menores variam individualmente do com as imagens desejáveis do que se con-
para cada u m de nós, mas estão mediatizadas sidera infância ideal o u prototípica, é u m a
por padrões coletivos. Assim, por exemplo, construção apoiada em nossas crenças e nos
ser menor supõe fazer parte de u m a geração valores que oferecemos a ela o u no destino
identificada por ter nascido em uma determi- que entendemos que deve ter.
Associação Biasilena para
a Proteção dos Direitos
Editoriais e Autorais
RESPEITE O AUTOR
NÃO FACA CÓPIA

G487e Gimeno Sacristán, J.


O aluno como invenção / J. Gimeno Sacristán; trad.
Daisy Vaz de Moraes. - Porto Alegre : Artmed, 2005.

1. Educação - Aluno. I . Título.

CDU 37.011.32

Catalogação na publicação: Mônica Ballejo Canto


ISBN 85-363-0318-2

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