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ISBN 85-87334-83-2

LS8733L
Onde o seu tesouro está

Eugcne H. Peterson

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Textu5

!\iter<lj - RJ
200S
W'!'!'Il' }óllr Trl'llS/lrl' Is
Copyright © 199:'1 by Ellgene 11. Petersün. (cf o Alivc C:o[ll\lniccltions, Inc.,
7(J80 Gaddard StreeL Suite 200, Colorado Springs, CO .sO')20, USA)
l'ublished in :lssocialion wi(h th", lilerary agencies \'('illi.llll ~eill-Hall L(d, ofCornwalL
Fngland, and Alive Cornlllunicniolls !nc., Colorado Sprin~s, CO, USA

(i:) 2005 Editora Tollls

S'lIptrl/i.(tlO Dlitoria!
Alzdi Simas

Tmdllçâo
CLludia Ziller t-:aria

R{/Jisiio
Paulo Pancote

Dil1gmmaçt7o
Pedro Sirnas

Cf/pil
Oliveranclucas

Primeira ediç:io em portugLl\~S - Julho de 20ü5

Publicado no Brasil com;l devida alltoril.aç:io


e com todos os direitos reservados na língua portuguesa por
Editora Textlls
C;lixa PosL11 !07.00G - Niterói - RJ - 24}(,(J-970
lextllslÍl)eclitor;n extus.cOIl1. br - \V\\'\\'·.eclitoraleXtlls.com.br

As citações biblicas d",sLl obra são da Bíblia S;lgrada - I':OV;\ Ver<io Internacional
(g 199.'),2000 de lmernational Biblc Sociuy

Nenhuma pane deste livro pode ser reprodu/.ida sem () consentir]1t.:l1to pr{vio,
por escrilO, dn<; editores, exceto breves citações em livros e resenhelS.

CIP-BRASIL. CATALOCAÇAO:-.lA cONTE


SINDICATO NACIONAL DOS EDITORES DE LIVROS. RJ
PS780

Peterson, Eugene H., \932-


Onde o seu tesouro esd I Eugenc H. Petcrson ; traduçao Claudia Ziller Faria. -
I's:iterói, RJ ''!"cxtus, 200S

Tradução de: Where your treasure is


Inclui bibliografia
ISBN 85-

1. Bíhlia. A. T. Salmm - Uso devocional. 2. Cristianismo e política. 3. Estados L'nidos


- História - Aspectos religiosos - Cristianismo. I. Título.

05-2032. CDD 242.5


em; 243
24.06.05 29.06.05 010709
Ó Deus da terra e altar
Inclina-te e ouve nosso pranto;
lVós.\;OS governantes a hesital~
Nosso povo a vagar e J110rrer,·
/vfuros de ouro nos sepultam,
Espadas de desprezo que dividem;
Não ajástes de nós Teu podei:
Mas destrói para sempre o desdém.

De tudo que o terror ensina,


Das mentiras e da língua e caneta;
De toda palavra amena
Que aos homens cruéis acalenta;
Da venda e da projánoção
Da honra e da espada
Do sono e da condenaçào,
Livrai-nos, ó Bom Senhor!

Ala em viva corda


Príncipe, sacerdote e escravo;
Une bem nossa vida,
Castiga para salvar o Teu povo;
Em ira e exultação
Inflama comje e liberdade,
Levanta uma viva nação
Para Ti, a única espada.

G, K, Chesterton
Para Constance FitzGerald, O.C.O.
Sumário

Aprescntação à edição brasileira 9


Prefácio 11
I. Acabando com o dominio do cgo - Salmo 2 13
2. Fcito por Deus - Salmo 87 29
3. Centralizado em Deus - Salmo 110 45
4. Governo dc Deus - Salmo 93 61
5. Ajudado por Dcus - Salmo 46 81
6. Afirmado por Deus - Salmo 62 99
7. Compaixão de Dcus - Salmo 77 113
8. Justificado por Deus - Salmo 14 127
9. Servindo a Deus - Salmo 82 143
10. Suficiência de Deus - Salmo 114 161
11. Amar a Dcus - Salmo 45 183
Apresentação à
edição brasileira

iquei muito lisonjeado com o convite para escrever a


F apresentação da edição brasileira de Onde o seu te-
souro está. Que privilégio'
Meu primeiro contato com a obra de Eugene H. Peterson
se deu através do livro Um pastor segundo o coraç·ão de Deus,
presente que ganhei de um querido amigo, num domingo, após
um culto em nossa igreja. Hoje minha estante está entesourada
com vários livros de Pcterson: não parei mais de lê-lo.
Nos últimos anos, tenho lido bastante sobre oração, as-
sunto pelo qual nutro profundo interesse. Onde o seu tesouro
está é um presente para a alma e um prêmio para todos os que
têm buscado sabedoria através das Escrituras c vitória pelos
caminhos da oração.
São onze salmos escolhidos, onzc lições para viver, um
curso especial na escola de oração. Onze mergulhos nas águas
profundas e encantadoras do oceano do amor de Deus.

Seja muito abençoado.

Josué Rodrigues
Pastor da Igreja Presbiteriana Betãnia em Niterói
Prefácio

ste livro visa transfonllar por completo a vida nos


E Estados Unidos. A mudança já começou. Muitos
já se envolveram e espero ver muitos outros se alistarem. A
ação fundamental é a oração.
Escrevi para cristãos que desejam agir para mudar o
que está errado na sociedade e querem ir direto ao centro
do problema, não apenas fazer pequenos acertos em áreas
de importância secundária. Escolhi onze salmos que deram
[onlla à politica de Israel e podem moldar a nossa hoje,
e os analisei com seriedade, como foi planejado que fos-
sem considerados - orações que moldam a vida nacional.
Escrevi para incentivar os cristãos a orarem esses salmos
tanto como filhos de Deus que têm destino eterno quanto
como cidadãos com responsabilidades diárias no cuidado
de sua nação.
Contudo, escrever sobre oração não é orar, assim como
ler sobre ela também não é. Orar é, bem- orar. Gostaria que
fosse mais fácil. E também que houvesse uma fórmula para
atrair mais espectadores e levá-los a entrarem em ação. Em-
bora não exista, sugiro algumas providências:
Onde o seu tesouro está

1. Reúna um grupo de amigos que se comprometa a


encontrar-se onze vezes para "acabar com o domínio do
ego".
2. As reuniões devem durar uma hora e meía. Co-
mece orando o salmo em uníssono. Passe os trínta ou qua-
renta minutos seguintes lendo e debatendo meu texto sobre
o salmo-oração. Em seguída, volte a orar em uníssono. De-
pois, fique em silêncio durante quinze mínutos, para que
o salmo se aloje em seu íntimo. Nessa hora, o grupo será
uma companhia de crentes obedientes diante do Senhor.
Encerre o silêncio orando o salmo pela terceira vez.
3. Observe como Deus o leva a atos de obediência
nos aspectos mais públicos de sua vida. Não se apresse.
Não pense que agírá apenas com seus parceiros de oração
ou com cristãos. Não suponha que precisa apresentar pro-
j etos. Estej a pronto para ser levado a ações diferentes de
suas rotinas normais. Espere para ver o que vai acontecer.
4. Encontre seus amigos uma última vez, um ano após
a primeira reunião (marque esse encontro durante a déci-
ma primeira reunião), para compartilhar o que tem acon-
tecído. Verífiquem se vocês têm pereebido vitórias contra
o domínio do ego. Procure em sua vida novas conexões
entre terra e altar. Identifique outras pessoas que participa-
ram da obra de conexão. Pergunte a sí mesmo se Deus o
está levando a continuar a "acabar com o domínio do ego".
Busque em tudo ísso o que pode ser atribuído à ação funda-
mental da oração. O objetivo dessa reunião é compartilhar
sua vida, e observar na de seus amigos, a participação mais
profunda na ação de Deus neste mundo.

12
Capítulo 1
Acabando com o domínio
do ego

SALMO 2

Por que se amotinam as nações


e os povos tramam em vão?
Os reis da terra tomam posiçào
e os governantes conspiram unidos
contra o SENHUR e contra o seu ungido,
e dizem: "Façamos em pedaços as suas
correntes,lancemos de nós as suas algemas'"

Do seu trono nos céus o SFNHOR


põe-se a rir e caçoa deles,
Em sua ira os repreende
e em seufúror os aterroriza, dizendo.'
"Eu mesmo estabeleci o meu rei
em Sião, no meu santo monte ",

Proclamarei o decreto do SFNHOR:


Ele me disse: "Tu és meu filho;
eu hoje te gerei.
Pede-me, e te darei as nações como herança
e os confins da terra como tua propriedade,
Tu as quebrarás com vara deferro
e as despedaçarás como a um vaso de barro ",
Onde o seu tesouro está

Por isso, ó reis, sejam prudentes;


aceitem a advertência, autoridades da terra.
Adarem o SENHOR com temor;
exultem com tremor. Beijem o.!ilho,
para que ele /1({0 se ire e vocês não sejam destruídos de
repente,
pois num instante acende-se a sua ira.

Como sãofdizes todos os que nele se rejúgiam!

14
Minha experiência e minhas observações me ensina-
ram a reconhecer o inimigo da humanidade nesta dege-
neração que leva a ver só o ego, crescendo sempre em/or-
ça durante toda a história, mas e,lpecialmente em nosso
tempo. Nada mais é do que o próprio espírito que, deser-
dado, comete pecado contra o Espírito Santo.
MARTlN BUBER I

o longo de toda a malha rodoviária que corta


A os Estados Unidos, da Califórnia até à ilha de
Nova Iorque - a grande avenida principal da América - as
pessoas vivem completamente voltadas para si mesmas.
Cento e cinqüenta anos atrás Alexis de Tocqueville, que
morava na França, visitou o pais e escreveu: "Cada cidadão
se dedica habitualmente à contemplação de um objeto in-
significante, ou seja, ele mesmo"2 Um século já passou e a
situação ainda não melhorou. Mesmo com a realidade rica,
atraente, barulhenta e misteriosa em evidência por toda
parte, ninguém nem nada consegue afastar as pessoas da
preocupação obsessiva consigo mesmas mais do que um
instante.
É evidente a necessidade de acabar com o domínio
do ego. Observadores preocupados com a situação usaram
psicologia, sociologia, economia e teologia para fazer o
diagnóstico e atribuíram ao ego a culpa da deteriora-
ção da vida pública na desintegração da pessoal: há um
problema nessa área, responsável por tudo mais que está
errado.
\. Marlin BubcL il,feetings, editado por Mauricc Fricdman (LaSalle,
Ill: Open Court Puhlishing Co., 1973), pág. 59.
2. Alcxis de Tocqucville, Democwcy ;n /lmerica. 2 volumes (Nova
Iorque: Schocken Books. 1974),2:93.

15
Onde o seu tesouro está

Alguns se levantam em protestos pela paz, na tentati-


va de despertar as massas para o perigo em que nos encon-
tramos devido a um século de egoísmo e inconseqüência.
Essa gente tenta desesperadamente evitar a destruição da
Terra, protestando contra as insanidades do militarismo, da
cobiça e das práticas negligentes que devastam rios, flores-
tas e a atmosfera.
Também se volta contra o consumismo que deixa
grande parte do mundo imerso em fome e pobreza. Outros
distribuem folhetos que eonelamam ao arrependimento c
alertam para o perigo da condenação, no esforço de acor-
dar as multidões fugidias para a necessidade de cuidar da
alma, além do ego. Insistem em chamar atenção para o va-
lor eterno da alma, apresentam palavras bíblicas cheias de
autoridade que mostram quem somos e com que propósito
fomos criados. Fazem a pergunta mais importante: "Você
já foi salvo')". Os dois grupos atraem atenção ocasional,
mas nunca duradoura. Embora ambos se preocupem com a
situação, um não se importa com o outro. Nas poucas vezes
em que se falam, impera o desprezo mútuo. Um deseja sal-
var a sociedade, outro, as almas, mas não conhecem ter-
reno comum. De tempos em tempos, alguém oferece uma
solução: psicólogos propõem terapias, educadores criam
curriculos para as escolas, economistas elaboram leis c so-
ciólogos criam novos modelos de comunidade. O pensa-
mento enche o ar. Proliferam idéias. Algumas chegam a ser
experimentadas. Nada funciona por muito tempo.
Alexander So lzhenitsyn disse, em um sennào muito co-
mentado e hoje famoso, na Universidade de Harvard, cm \978:

Colocamos tanta esperança na política c nas reformas


soclais só para descobrir que estamos sendo privados

16
Acabando com o domínio do ego

de nosso bem mais precioso: a vida espiritual, que foi


pisoteada por partidos políticos no leste e por partidos
comerciais no Oeste". Estamos, bradou ele, em uma
"crise espiritual severa e cm um impasse politico. As ce-
lebradas façanhas tecnológicas do progresso, incluindo
a conquista do espaço, não redimem o século XX da in-
digência moral. Precisamos de "labareda espiritual".:

o que os jornalistas não relataram - ncm um único eru-


dito se deu ao trabalho de mencionar - é que há um núme-
ro significativo de pessoas tomando providências quanto à
prcocupação de Solzhenitsyn. Trabalho com algumas delas,
encorajando e algumas vezes orientando. Milhares de pas-
tores, padres e leigos estão engajados em obra semelhante.
Fazem muito mais pela sociedade e pela alma, avivando e
alimentando a "labareda espiritual", agem muito mais do
que os jornais relatam. O trabalho deles é orar.
Claro que a oração se relaciona a Deus. Ele é tanto
iniciador quanto destinatário dessa atividade ignorada mas
intcnsamente cultivada. Mas a oração se relaciona a muitos
outros elementos: guerra, governo, pobreza, sentimenta-
lismo, política, cconomia, trabalho e casamcnto. Em suma,
tudo. O consenso chocante no diagnóstico dos especialis-
tas modernos sobre a existência dc um problema com o ego
se compara ao conscnso igualmente chocante de nossos
ancestrais quanto à estratégia de ação: a oração é a única
forma de se libertar do mundo restrito do ego e penetrar
no imenso mundo de Deus sem negar, suprimir ou mutilar
o ego. Orar é também o único meio de escapar do ego-
tismo, quc leva a pessoa a autodestruição e a destruição

3. Alexander Solzhenitsyn, "Wor!d Sp!il Apwr. Vital Spec-


ches, I". de setembro de 1979.

17
Onde o seu tesouro está

da sociedade em que vive. Começamos, então, através da


oração, a tàzer diferença na comunidade em que vivemos.
Só em oração seremos capazes de abandonar as distorções
e restrições do ego e penetrar na verdade e grandeza de
Deus. Encontramos nela, para nossa surpresa, ego e socie-
dade curados e abençoados. É a velha história de perder a
vida para salvá-la; e a vida salva não é apenas a do próprio
individuo, mas a de todo mundo também.

A ação fundamental
Oração é ato político, energia social, bem público.
Ela molda a vida da nação muito mais do que a legislação.
O fato de não termos sido ainda dominados pela anarquia
deve-se muito mais à oração do que à polícia. É um ato
pennanente e intrincado de patriotismo no sentido mais
amplo da palavra - muito mais preciso, amoroso e prote-
tor do que qualquer patriotismo declarado em slogans. A
possibilidade de viver na sociedade e o renascimento da
esperança se devem à oração e não à prosperidade empre-
sarial ou ao florescimento das artes. O ato mais importante
para despertar toda saúde e força que há em nossa terra é
a oração. É claro que este não é o único meio, pois Deus
usa todas as coisas para realizar Sua vontade soberana, e
"todas as coisas" inclui, com toda certeza, policiais, artis-
tas, senadores, professores, terapeutas e operários. De toda
maneira, orar é a ação fundamental.
O erro mais comum quanto ao entendimento da ora-
ção é considerá-la ato privado. Falando de modo estrito,
segundo a Bíblia, isso não existe. Em sua raiz, privada se
refere a roubo. É furto. Quando privatizamos a oração, nos
apropriamos indevidamente da moeda comum, que pcr-

18
Acabando com o domínio do ego

tence a todos. Quando nos lançamos a ela sem qualquer


vontade ou consciência do que é abrangente, inclusive a
vida do reino que está "à mão", no tempo e no espaço, em-
pobrecemos a realidade social que Deus está criando.
Solitude em oração não é o mesmo que privacidade.
Há diferenças profundas entre os dois. Privacidade é a ten-
tativa de se afastar da interferência alheia. Na solitude, a
pessoa deixa um pouco a companhia dos outros para me-
lhor compreendê-los, através de uma reflexão mais pro-
funda. E então, toma consciência deles, e passa a servi-
los. Privacidade é ir para longe dos outros para não ser in-
comodado. Solitude é afastar-se da multidão para receber
instruções do "cicio tranqüilo e suave" de Deus. A Biblia
diz que Deus está entronizado nos louvores das multidões.
Orações privadas são egoístas e ineficazes; as feitas em
solitude reúnem uma comunidade de muitas vozes que, pe-
los séculos dos séculos, cantam, junto com anjos e arcanjos
e todas as milícias dos Céus - "Santo, santo, santo, Deus
Onipotente" .
Assim como é impossivel falar uma lingua individu-
al, também não se pode ter oração privada. Não existe lín-
gua individual. Cada palavra carrega uma longa história de
desenvolvimento em comunidades complexas de experiên-
cia. Toda fala é relacional, estabelece uma comunidade de
falantes e ouvintes. Isso também acontece com a oração, a
língua falada no vasto contexto da percepção de que Deus
fala e ouve. Estamos envolvidos, queiramos ou não, em
uma comunidade da Palavra - tàlada e lida, entendida e
obedecida (ou mal compreendida e desobedecida). Isso
pode acontecer na solitude, mas não na privacidade, pois
envolve o Outro e os outros.

19
On de o seu tesou ro está

o ego só existe saudável e inteiro quando se coloca


em relacionamento, sempre duplo, com Deus e os outros
seres humanos. Relacionamento implica em reciprocidade,
dar e receber, ouvir e responder. O Barão Friedrich von Hü-
gel escreveu à sua sobrinha, que estava aprendendo a orar:

Gostaria de saber se você entende um fato profundo e mara-


vilhoso. As almas - todas as almas humanas - são protí.m-
damente interligadas. Não podemos apenas orar uns pelos
outros. nós sofremos uns pelos outros. Nada é mais real do
que essa inter-relação - esse poder gracioso colocado por
Deus bem no ãmago de nossas enfermidades". '

Se o ego explora os outros, seja Deus ou o próximo,


e os subordina às suas compulsões, toma-se atormentado e
pervertido. Se abdica da criatividade e da interação com os
outros, seja Deus ou o próximo, toma-se débil e inchado.
Assim, cada pessoa só existe em relacionamento, não por
assumir nem por deixar que os outros assumam o controle.
Como desenvolver isso? Como suplantar a ganância que
nos leva a saquear por um lado e a preguiça que nos toma
parasitas por outro? Como nos desenvolver não apenas
como cristãos, mas também como cidadãos? A única res-
posta é a oração. Muitas coisas - idéias, pessoas, projetos,
planos, livros, comitês - ajudam e amparam, mas só há
"uma coisa necessária" - oração.

A escola da oração
Ainda não surgiu escola de oração melhor do que os
Salmos, que também envolvem imersão na politica. As
4. Bamn Friedrich von IWgel, Lettcrsjimn Baron h'iedrich von Hü-
:;e/ to a Niece, editado por Gwcndolyn Grcenc (Londres: 1. M. Dent anel
Sons Lld., 1958), pág. 25.

20
Acabando com o domínio do ego

pessoas que nos ensinam a orar nos Salmos eram muito


bem integradas nesses assuntos. Ninguém mais avaliou e
cultivou tão bem a percepção da pessoa. Ao mesmo tem-
po, nenhum outro povo teve compreensão mais rica de si
mesmo como nação pertencente a Deus. O ato caracteris-
tico que dava forma á sociedade e alimentava a alma era
a oração. Eles oravam quando estavam reunidos e quando
estavam sozinhos e a oração era igual nos dois cenários.
Essas orações, os Salmos, são profundamente pessoais e ao
mesmo tempo ardentemente políticas.
Na linguagem comum, política é entendida como
"aquilo que os políticos fazem" em questões públicas e
governamentais. Costuma sugerir desagrado e desaprova-
ção, pois o campo oferece ampla oportunidade para uso do
poder e muitas vezes há abuso. Assim, politica se liga a
descrições negativas: implacável, corrupto, ambicioso, se-
dento de poder, sem escrúpulos. Mas não se pode aban-
donar a palavra apenas porque seu sentido foi depreciado.
Ela deriva do termo grego polis (cidade). Representa tudo
que as pessoas fazem quando vivem em comunidade com
alguma intenção, trabalham por um objetivo comum e cum-
prem suas responsabilidades para que a sociedade se desen-
volva. De acordo com a Biblia, é o ambiente em que a obra
de Deus em tudo e em todos se completará (Apocalipse 21).
Ele começou com um casal em um jardim e terminará com
grandes multidões em uma cidade.
Para os cristãos, "politica" carrega amplas associações
e dimensões biblicas. Assim, em lugar de procurar outra pa-
lavra que não tenha sido maculada pelo mal e pela corrupção,
é importante usá-la como ela é, para aprendermos a ver Deus
em lugares que parecem inacessiveis á graça dEle. Aqueles

21
Onde o seu tesouro está

que afinnam que "religião e politica não se misturam" por


certo sabem o que estão falando. A mistura gerou um número
infindável de males - cruzadas, inquisições, exploração e caça
às bruxas. Ainda assim, Deus nos manda combinar as duas,
mas temos de tomar muito cuidado. O único caminho seguro
é a oração. É irreal e antibíblico separar a vida em atividades
religiosas e politicas, ou entre esferas sagradas e protànas.
Mas é dificil saber como reunir as duas sem colocar uma
nas mãos inescrupulosas da outra, politica usando oração e
vice-versa. A verdadeira mistura é politica se tornando re-
ligião e esta se tornando aquela. A oração é a único caminho
adequado para o grande feito de colocar essas polaridades
em relação dinâmica. Os Salmos são o maior documento da
oração agindo.
O livro dos Salmos é uma obra editada. Cento e
cinqüenta orações foram colecionadas e arranjadas de
modo a guiar e moldar nossa reação a Deus com precisão,
profundidade c abrangência. Essas preces declaram todos
os sentimentos e experiências possíveis em relação à pa-
lavra criadora e redentora de Deus em nós - João Calvino
chamou os Salmos de "análise minuciosa de todas as partes
da alma". 5 Dois Salmos foram colocados como introdução:
o primeiro com o foco centrado na pessoa, o segundo uma
grande angular vo ltada para a política. Deus trata cada um
individualmente, mas ao mesmo tempo tem caminhos pú-
blicos que interceptam a vida de nações, soberanos, reis e
governantes. Os dois Salmos foram colocados juntos de
propósito, uma introdução hifocal à vida de oração, uma
iniciação às respostas pessoais (Bem-aventurado o homem,

5. Joào Calvino. CommcntOl}' OI/ lhe Book oi Psalms, vaI. 1 (Grand


Rapids: Eerdmans. 1949), pág. XXXVII.

22
Acabando com o domínio do ego

I. I, RA) e políticas (Bem-aventurados todos, 2.12, RA) à


Palavra de Deus.
O Salmo I apresenta a pessoa que sente prazer em
meditar na lei de Deus; o 2 mostra o governo que Deus
usa para enfrcntar as conspirações dos que se colocam
contra Seu domínio. Todos os Salmos posteriores se colo-
cam entre esses dois extremos introdutórios, evidência de
que não pode existir, na vida de fé, divisão entre pessoal
e público, ego e sociedade. A sociedade contemporânea,
eontudo, demonstra grandes abismos exatamente nessas
junções, e pelo menos um dos motivos é que amamos
o Salmo I e ignoramos o 2. Cristãos em oração reúnem
aquilo que todos sempre deixam de lado, sem qualquer
escrúpulo. Devido à negligência para com orações seme-
lhantes às do Salmo 2, pareceu-me de importância estraté-
gica reapresentar muitas delas como uma fonte para "aca-
bar com o domínio do ego". Esses Salmos são evidência
material, formas de oração que estiveram em eclipse par-
cial. Orando-as, ou seguindo suas instruções, suplanta-
remos a barreira do ego e entraremos no reino que Cristo
vem estabelecendo.
Costumamos supor, de forma errada, que os Salmos
são composições privadas, repetidos por pastores, via-
jantes e fugitivos. Estudos detalhados mostram que eram
corporativos: orados pela comunidade reunida. Mesmo
que tenham sido compostos em solitude, eram orados na
congregação. Quando tinham origem na congregação, en-
contravam continuidade na solitude. Entretanto, não exis-
tiam dois tipos de oração, pública e privada. Vai contra
todo o espírito dos Salmos tomar esses lamentos comu-
nitários, louvores congregacionais, intercessões corpora-

23
Onde o seu tesouro está

tivas e usá-los como fórmulas agradávcis para consolo


individual.
O objctivo dc Dcus ao nos salvar não era nos levar
a cultivar êxtascs cm solidão, nem fazer rescrva para nós
em uma mansão celestial. I llmos feitos cidadãos de um
reino, ou seja, de lima sociedade. Através dos Salmos, Ele
ensina a linguagem do reino, que acabam se preocupando
tanto com a política selvagem quanto com as águas tran-
qüilas da piedade. Assim, não se justifica nossa facilidadc
para imaginar Deus cm Seu cuidado com um pardal que
cai, cnquanto hesitamos em crer que Ele está prcsente na
confusão dc salas cheias dc fumaça dc cigarro.
Hoje nossa percepção de nação c comunidade está dis-
torcida, muitos cristãos reduziram a oração a um ato priva-
do e muitos outros a usam como slogan político. Diante
disso, é essencial recuperarmos as dimensões da oração no
reino. Para muitos, a recuperação começa na participação
na obra antiga e generalizada de acabar com o dominio do
ego, evidente nos Salmos. Isso ganhará impulso quando
novas orações forem oferecidas ao "Deus da terra e altar",
que G. K. Chesterton invocou com tanta paixão no início
do século XX."

Reunido e disperso
Essa destruição do domínio do ego vem aconteeendo
por toda parte. Muitas pessoas se reúnem para participar
da obra. Quando acaba a reunião, prosseguem com o que
começaram em conjunto. São persistentes, determinadas,
eficientes. Karl J aspers comentou:

6. G. K. ChCStCrtOl1. The Collected Poenls (Nova Iorque: Dodd, Mcad


& Co.. 19XO). págs. 136-137.

24
Acabando com o domínio do ego

A verdadeira realidade passa quase despercebida e é, para


início de conversa, solitária c dispersa.. ,' Nossos jovens
que, daqui a trinta anos, fàrão o que é importante, estão
agora. com toda probabilidade, esperando em silêncio
o momento certo para agir. Ainda assim, mesmo sem
ser vistos, já se encontram estabelecendo sua existência
através de disciplina espiritual irrestrita",'

Reunidos em atos de adoração, eles oram, Espalhados,


eles se infiltram em lares, lojas, indústrias, escritórios, aca-
demias de ginástica, prefeituras, tribunais, prisões, ruas, play-
grounds e shopping eenters e continuam a oraL Grande parte
da população, profundamente ignorante quanto às forças que
mantêm a vida em curso, nem sabe que essa gente existe,
Essas pessoas que oram sabem o que a maioria desco-
nhece ou prefere ignorar: centralizar a vida nas exigências in-
saciáveis do ego é o caminho mais certo para a condenação,
Confinnam o julgamento de Wendell Berry:

Se quisellnos conigir os abusos que cometemos uns contra


os outros c contra nossa terra, se nossos esforços nesse sen-
tido pretenderem ser mais do que um impulso político pas-
sageiro, que no final será apenas outra forma de abuso, entào
precisaremos ir muito além de protestos públicos e ações
polítieas, Teremos de reconstruir a essência e a integridade de
melhores mentes, amizades, casamentos e comunidadcs",s

Sabem que a vida restrita ao ego aprisiona, mata a


alegria, produz neuroses e fomenta doenças, Devido ao puro
senso de sobrevivência se comprometem a um estilo de vida
voltado para os outros, tanto pessoalmente quanto em sua na-
7. Karl Jaspers. Mal1 in lhe Modem Age (Gardcn C1ty, N.Y.: Anchor
Press/Doublcday, 1951), pág. 77,
H, Wendell Bcrry, A Conlinuo1f.\' Harmony (Nova Iorque: Harcourt
Brace Jovanovich, 1972), pág, 79.

25
Onde o seu tesouro está

ção. Para usar as palavras de seu Mestre, são "luz" c "fer-


mento". A luz é silenciosa e o femlcnto invisível. A presença
é discreta, mas essas vidas são o modo que Deus usa para ilu-
minar e preservar a cívílização. As orações sc opõcm às fortcs
forças de desintegração que agem na sociedade.
Ninguém precisa de mais um movimento quc visc
salvar a sociedade. O antigo prossegue, fazendo bem seu
trabalho. Afirmar que tempos extraordinários requerem
medidas extrcmas não é verdade c é um conselho destrutí-
vo. Não precisamos de nova campanha, conscientização,
programa, legislação, política ou reforma. As pessoas quc
se reúncm em adoração e se oferccem em atos de oração
estão fazendo o quc é necessário. E aceitam que mais gcnte
se una a elas. Os atos de oração não se restringem ao que
elas fazem quando se colocam de joelhos ou participam
de um culto. As orações, assim como avançam até a socic-
dadc, também nos lcvam a participar dela. Não há como
saber exatamcnte o alcance: algumas pessoas são muito vi-
síveis em movimentos políticos enquanto outras trabalham
cm discrição, sem ser notadas, em lugares bem inespcra-
dos.') Aprendemos a obedecer ao que o Espírito está. rea-
lizando em nós c a não invejar nem criticar aqueles cuja
obediência os leva por caminhos difercntes.

9. "1 laje, parte da patologia da vida cristã ocidental se deve à destrui-


ção da unidade essencial entre místico c sócio-político, entre contemplativo
c profético. Misticismo c política são vistos, na melhor das hipóteses, como
modos alternativos de discipulado e na pior como opostos ideológicos in-
compatíveis. Assim temos, por um lado, formas de espiritual idade cscapis-
tas, pietistas c contra toda came c por outro, movimentos políticos lànáticos,
desumanos e contra a encarnação. Vemos, em ambos, o fracasso de levar a
humanidade a sério." Kcnneth Leech, The .')'ocial God (Londres: Sheldon
Press, 1981)

26
Acabando com o domínio do ego

Esses cidadãos têm desmascarado o engano do diabo,


que convence que a oração é um exercício dcvocional em
que os piedosos cultivam um tipo de felicidade privada com
o Todo-Poderoso, ou cm que os profanos são levados cm cir-
cunstâncias desesperadas e que para o, digamos assim, mun-
do real, as real izações precisam passar por comitês, máquinas
ou uma campanha de relações públicas. Eles reconheceram o
caráter profundo, abrangente, reformador e revolucionário da
oração: é a obra essencial para moldar a sociedade e formar a
alma. Envolve necessariamente o indivíduo, mas não começa
nem tcrmína com ele. Nascemos e somos sustentados em co-
munidade. Nossos atos c palavras, ser e tornar-se, a diminui
ou a enriquece, e ela tem o mesmo efeito sobre nós.
A oração age como o princípio do fulcro, o pequeno
ponto de apoio onde toda força da alavanca sc concentra
- percepção, intensificação, expansão e aprofundamento na
conjunção de Céu, Terra, Deus, o próximo, ego e sociedade.
É o ato que integra os aspectos internos e externos da vida,
correlaciona pessoal e público e trata dc necessidades in-
dividuais e intcresses nacionais. Nenhuma outra ação traz
tantos benefícios simultâneos à sociedade e à alma que ora.
Motivações pessoais e públicas, que envolvem Céu
e Terra, movem os que oram. Elcs procuram a autoprcser-
vação, já que uma autoridade lhes disse que apenas quem
perde a vida conseguirá salvá-la. Além disso, realizam um
ato de patriotismo, sabendo que a vida é tão intrinsecamente
ligada à dos outros que todo ato que polui, todo aborto da
justiça e toda crueldade - mesmo quc ocorra do outro lado
do planeta - degrada tanto a pessoa que foi diretamente
atingida quanto a que não foi. Essa percepção não se limita
aos cristãos. O pagão Marco Aurélio, por exemplo, en-

27
Onde o seu tesouro está

xergou esse fato com clareza: "Todas as coisas estão inter-


ligadas: o laço é sagrado e nada, ou quase nada, é alheio às
mínímas outras coisas". 'o Entretanto, a estratégia pertence
ao cristianismo.
A oração repara e cura as interligações. Avança até
a tunte da divisào entre o que é santo e o que é do mundo
o ego sem Deus - e busca a cura final, não se confor-
mando com nada menos do que o novo Céu e a nova Terra
da promessa. "Somos cidadãos do Céu", afirnlam os que
oram, e buscam com fervor as benesses de sua "terra".
Entretanto, essa paixão pelo invisível em nada prejudica
o envolvimento nos assuntos de todos os dias: trabalhar
bem, jogar limpo, assinar petições, pagar impostos, censu-
rar perversos, encorajar justos, molhar-se na chuva e sentir
o perfume das flores. Possuem um conjunto tremendo, ea-
leidoscópieo, de fragmentos de realidade tocada, cheirada,
vista e provada, recebida e oferecida em atos de oração.
Eles obedecem à ordem do Senhor: "Dêem a César o que é
de César e a Deus o que é de Deus"

10. Citado por Beny, A ContinllOlIS liannony, pág. 15.

28
Capítulo 2
Feito por Deus

SALMO 87

o StNHOR edificou sua cidade sobre o monte santo;


ele ama as portas de Sião
mais do que qualquer outro lugar de Jacó.
Coisas gloriosas são ditas de ti,
ó cidade de Deus'

Entre os que me reconhecem incluirei Raabe e Babilônia,


além da Filistia, de Tiro, e também da Etiópia,
como se tivessem nascidos em Sião.
Defato, acerca de Sião se dirá:
"Todos estes nasceram em Sião,
e o próprio Altíssimo a estabelecerá ".

o StNlIOR escreverá no registro dos povos:


"Este nasceu alí ".

Com danças e cânticos, dírão:


"Em Síão estão as nossas origens'"
Aquele quejá nasceu de novo nào pode viver ansioso
e preocupado com cada detalhe de sua vida, embora viva
nessa experiência. A vida tornou-se nova porque, sendo ori-
entado rumo à nova criaçào, ele vive na presença do Es-
pírito e sob a ínfluêncía dEle, a "intensídade da glóría".
JÜRGEN MOLTMANN I

ssim que pegamos a estrada para voltar para


A casa, em Maryland, ouvimos a pergunta: "O que
é 'cruzar',?". O ponto alto das férias na casa de amigos
em Chicago havia sido o nascimento de uma ninhada de
gatinhos. Nossa filha, de sete anos, ficou empolgada com o
milagre confuso e maravilhoso do nascimento. Observou.
Gritou. Fez perguntas. As crianças mais velhas implicaram
com ela, dando meias-respostas. Ela pressionou em busca
de mais informações e eles disseram, em tom de condes-
cendência, que era melhor perguntar aos pais.
"O que é 'cruzar "1" Eu e minha esposa sabíamos que
em algum momento essa pergunta seria colocada diante
de nós e havíamos conversado sobre a melhor forma de
responder. Nosso plano era transformar a curiosidade in-
fantil sobre sexo em apreciação, admiração e respeito pela
vida. Mas nào esperávamos que fosse tào cedo, de modo
que ainda não havíamos pensado na resposta especifica. O
tráfego de Chicago requer atenção redobrada do motorista,
de forma que tive que deixar minha esposa tratar de uma
questão que havíamos decidido abordar juntos. Sempre
queremos estar bem preparados para ocasiões como essa,
com tudo ensaiado e anotações à mão. Isso nunca acon-
tece. Eles nos pegam desprevenidos.
1. Jürgen Moltmann. The Church in lhe Fmver oj'lhe .spiril (Nova
Iorque: Ilarper & Ruw. j 975). pág. 279.

31
Onde o seu tesouro está

É impossivel evitar a redução da resposta a poucos fa-


tos estranhos ou a uma névoa de eufemismos. Não há pala-
vras adequadas para transmitir a glória. Ainda assim, alguma
coisa tem que ser dita, em palavras que dirijam a criança
não apenas aos fatos, mas também á verdade. A conversa
seguiu incerta, fez voltas indevidas e entrou por desvios es-
tranhos. Nas horas seguintes, o processo intrincado e longo
da educação sexual abandonou o nível não verbal e pene-
trou no verbal. Foi um momento inesquecível: vibrante
de curiosidade, intenso de carinho. Houve desdobramen-
tos surpreendentes, de falta de jeito a eloqüência, epifanias
de discernimento e periodos de silêncio embaraçado.

A maravilha do nascimento
O Salmo 87 é uma reação, surpreendente, gaguejante
e entusiasmada diante do nascimento, anunciado três ve-
zes: como se tivessem nascidos em Sião (v. 4); Todos estes
nasceram em SielO (v. 5) e Este nasceu ali (v. 6). Nasci-
mento. Nascimcnto. Nascimento.
Eruditos quc apreciam sentenças claras e em ordem
alegam que esse é o texto mais mutilado e desorganizado
dos Salmos.' As sentenças são incompletas, faltam conec-
tivos. As transições são abruptas, as imagcns, distorcidas.
No cntanto, os poetas (c os pais) sabem que não há como
evitar ambigüidade nas grandcs questões, nas grandes pas-
sagcns. Não apenas toleram, na verdade, cultivam a am-
bigüidade. Sabem que esclarecer c ordenar as coisas acima
do que estão sendo vivenciadas significa desinformar. Se-
gundo minha opinião, a confusão no texto do Salmo 87 não
se deve a perda e descolamento de sentenças durante sécu-
2. Mitchell DahoOll Tlle Psa/ms. 3 volumes. (Garden City, N.Y.:
Doublcday. 1975), 2:298.

32
Feito por Deus

los de cópia c transmissão. Muito mais provável é quc ele


seja oração sincera, dcsajcitada e espontânea cm prescnça
de excesso de significado e dc realidade.
Nascimento. Como acontecc') O que o provoca~ Por
mais comum que seja, semprc chama a atençào, provo-
ca admiração e suscita curiosidadc. Quercmos saber por
que existe alguma coisa no lugar do nada. Buscamos os
motivos quc fazem a vida de rcpente sc manifcstar a par-
tir das trevas, no meio da dor. Ansiamos por descobrir a
razão da alcgria quando há tanto choro. Talvez fossc mc-
lhor lamcntar, sabcndo que a criança nasceu para sofrer,
tão ccrto quanto o rio corre para o mar. Diante da dor, re-
jcição e tristcza que certamcnte cspcram pelo recém-nasci-
do, talvez fosse mais apropriado torcer as mãos cm aflição.
É verdade quc alguns impedcm o nascimento. Há abortos,
mas a maioria não faz isso. Há, na raça humana, um ins-
tinto conscnsual e arrebatador dc quc a vida é boa. Cada
nascimento represcnta uma nova c pura invasão dc vida em
nossa existência amcaçada pela morte. Apcsar da dor do
parto, do imenso trabalho de criar um bebê até elc se tornar
adulto, c da incerteza de doenças e acidcntes, o nascimento
é sempre uma boa noticia.
Mesmo assim, apesar da treqüência de nascimentos
c da alegria irreprimível nessa hora, costumamos nos atàs-
tar logo do significado do evento. O pavor da morte certa
turva a cxubcrância pela maravilha da vida. Ficamos ar-
rebatados de surpresa pclo vigor da vida, mas não passa
muito tcmpo e os sinais de destruição nos ccrcam. Então,
diante de um outro nascimcnto, ficamos presos no misté-
rio. Reagimos com reverência. Por quê'? Somos capazes
dc explicar o processo do nascimento. Conheccmos todos

33
Onde o seu tesouro está

os detalhcs genéticos e fisiológicos, mas nenhuma dcssas


explicações responde pela reverência.
Os pais não examinam identificações cromossômicas
para planejar um bebê e escolher a cor do cabelo, a textura
da pele e o tipo corporal. Scria absurdo pretender programar
uma estatura específica, determinar o QI e a vocação para
equipar a criança para seguir a profissão de salários mais ele-
vados daqui a vinte e cinco anos. Quando entramos no pro-
cesso reprodutivo, não calculamos probabilidades estatisti-
cas em distanciamento frio. Não fazemos exame meticuloso
do conjunto estonteante de detalhes fisiológicos quc se unem
na concepção e no nascimento. Somos levados a um misté-
rio muito maior do que nós. As intenções desempcnham um
papel, mas dc fonua nenhuma é o papel principal.
Houve, nos primciros anos do século XX, grande en-
tusiasmo em torno da eugcnia, programa que selecionava
pais potenciais pelos mcsmos princípios quc haviam apri-
morado as crias de ovelhas e cabras. Nessa época, houve
uma conversa muito famosa entre o brilhante mas feio
George Bernard Shaw c uma atriz londrina lindíssima des-
tituida de inteligência. Ela falou, com afetação:
- Ah, Sr. Shaw, o senhor não acha que nós dois dc-
veríamos tcr um filho? Seria um prodígio, com minha
aparência e seu cérebro!
Shaw replicou:
- Mas o que faríamos sc ele viessc com minha aparên-
cia e seu cérebro'l
Nada disso. Diante do nascimento, não raciocinamos.
Nós nos maravilhamos. Exclamamos: "Como se tivesscm
nascidos... todos estes nasceram... este nasceu". Na presença
do nascimento, estamos na fonte da vida. Por um instante, as

34
Feito por Deus

preocupações com a sobrevivência e os prognósticos de morte


diminuem. A espontaneidade vence. Pelo menos por alguns
momentos saímos de nós mesmos. Martin Buber escreveu:

Cada homem é único, por isso, outro primeiro homem


chega ao mundo toda vez que nasce lima criança. Es-
tando vivos, todos tateando como crianças voltando à
origem de nosso próprúJ eu, pudemos sentir () fáfo de
que há lima origem. há uma criaçào.:J

o nascimento mais comum está muito acima de tudo


que somos capazes de fazer, mesmo com o maior esforço
e tecnologia altamente sofisticada. Aqui há mistério, mas
de luz e não dc sombras, repleto de bondade, transbordante
de bênçãos. Todo nascimento nos Icva poderosamente de
volta a essa fonte: nossa origem é em alguém que não nós
mesmos, alguém maior do que nós.

Nações, não bebês


O Salmo menciona cinco nascimentos:

"Entre os que me reconhecem incluirei Raabc e Babilà-


nia, além da Filístia, de Tiro, e também da Etiópia, como
se tivessem nascido em Sião."

Parece estranho, São nomes de nações, não de pessoas.


A imaginação se perde: parecia que pensávamos em bebês
risonhos e, na verdade, nos confrontamos com nações vio-
lentas e amedrontadoras, Tratam-se de inimigos de Israel:
Raabe (nome antigo para Egito), nação que escravizou cm-
elmente o povo por mais de quatrocentos anos; Babilônia,

3. Martin Suber, On lhe Hihle, editado por Nahum Glatzcr (Nova


Iorque: Schockcn l3ooks, 1968), págs. 11-12.

35
Onde o seu tesouro está

que derrubou os muros de Jerusalém, saqueou o Templo e


levou o povo para um exílio devastador; Filistia, inimigo
litorâneo implacável c destruidor, com reputação merecida
de insensibilidade ás realidades morais c espirituais; Tiro,
mercadores ricos e profanos, os barões do roubo do mundo
antigo, cuja luxúria levou à decadência; Etiópia, soldados
do Saara inferior, que se ofereciam como mercenários. O
que esses cinco inimigos foram fazer em uma reflexão so-
bre as maravilhas e mistérios do nascimento? Só há uma
resposta satistàtória, por mais incrível que pareça: foram
parar na oração por terem nascido de novo.
Por todo o mundo, as pessoas mais improváveis têm
encontrado nova vida em Deus, vida que só pode ser des-
crita adequadamente pela metáfora radical e cheia de vida
do nascimento. Esse fenômeno transnacional, transcultural e
transraeial foi um dos resultados inesperados, mas feliz, da
dispersão dos hebreus nas nações circunvizinhas por causa da
perseguição c do exílio. As pessoas que moravam nos lugares
para onde eles foram puderam observá-los, ver seu estilo de
vida, olhar sobre os ombros deles enquanto liam e copiavam
as Escrituras, questionando sobre a te e sobre Deus.
Os hebreus não praticavam o proselitismo, mas eram
profundamente sérios - quanto ao sentido da vida, à aliança
com Deus. Nâo faziam campanhas para converter os outros,
mas sua te era contagiante. Os povos que travavam contato
com eles se sentiam atraídos pela intensidade estonteante
da adoração e pela peregrinação rumo ao amadurecimento
em santidade'" Com isso, abandonavam superstições, jogos
4. "Na Diáspora. a conversão roi um ato voluntário praticado por
multidões de gentios que desejavam se juntar ao povo de fé judeu." The
JeH'ish People in fhe First Cen/llry. 2 volumes. editado por S. Safrai e M.
Stcm (Philadelphia: Forlress Press. 1976). 2:622.

36
Feito por Deus

com espíritos e divindades, preocupações tolas com o ego.


Descobriam, através do testemunho dos judeus, a realidade
do Deus que críou, participou do mundo sofredor e abriu
um caminho de redenção. Com isso, creram. Tornaram-se
judeus também. Era uma vida maravilhosamente atrativa:
separação dos caminhos do mundo e concentração nos de
Deus. Nunca foi um movimento de massa, mas nada se
compara em intensidade, criatividade e influência.
Todo ano, judeus conseguiam voltar a Jerusalém para
celebrar os grandes momentos da fé: Páscoa, Pentecostes,
Tabemáculos. Estrangeiros começaram a aparecer em bandos
de peregrinos, pessoas com outro tom de pele, nariz de for-
mato diferente. Ninguém que conhecesse a experiência dos
hebreus teria previsto isso. Eles eram os estranhos no mun-
do da cultura, estrangeiros c forasteiros. A fé de Israel nunca
tinha sido popular, nem no próprio Israel, onde era constan-
temente superada pelo baalismo, que satisfazia o apetíte das
multidões. A religião hebraica nào apelava ao que a maioria
das pessoas pensava querer de uma religião. Os judeus foram
sempre minoria, muitas vezes perseguida e em sofiimento.
O apelo era por autenticidade: um Deus vivo e um
povo apaixonado. Em todas as nações onde os judeus vi-
viam, pessoas que buscavam algo maís perceberam nas
palavras, músicas e orações deles a revelação do Deus
santo e a evidência da humanidade saudável. Muitos foram
atraidos, uniram-se a eles, entraram na familia da fé. Logo
começaram a fazer peregrinações a Jerusalém também.
Com o passar de décadas e séculos, as pessoas que cruza-
vam as estradas do Oriente Médio foram se parecendo cada
vez menos com as tribos judaicas e cada vez mais com uma
reuniào da Organização das Nações Unidas. Uma pessoa

37
Onde o seu tesouro está

que ficasse ao lado do muro de Jerusalém assistindo a pro-


cissão poderia muito bem dizer, combinando a reverência
e a surpresa com que saudamos um recém-nascido à cu-
riosidade e ao prazer com que identificamos carros com
placas de outros estados:

"Entre os que me reconhecem incluirei Raabc e Babilô-


nia, além da Filistia, de Tiro, e também da Etiópia, como
se tivessem nascido em Sião."

Nascidos de novo. Nascidos na fé que os atrai ao cul-


to em Jerusalém, pregada nos dias de festa. Depois essa
pessoa que assiste a parada se volta e vê a reunião interna-
cional dentro dos portões da cidade e exclama:

De fato, acerca de Sião se dirá:


"Todos estes nasceram em Sião"

Mãe Sião: JCnlsalém importante não como capi-


tal política nem como Meca cultural, mas como local de
nasciment0 5 O aperfeiçoamento pessoal começa aqui, no
útero de Sião. Uma tàmília inesperada surgiu no mundo
a partir dessa matriz: ninguém poderia prever que Egito,
Babilônia, Filistia, Tiro e Etiópia teriam um parentesco em
comum. O útero de Sião, local de revelação c culto c, por
fim, de encarnaçào. Entramos na esfera da transformaçào e
partimos transfonnados.

5. A LXX cometeu um engano na tradução do versículo 5: "Ó, Mãe


Sião", Isso foi resultado, provavelmente. de um erro textual no grego, meti
no lugar de meter. Contudo, esse engano capta o espírito do Salmo de forma
tào surpreendente que não se pode deixá-lo de lado. (lames .loyce costumava
manter os cnos cometidos pelos datilógrafos ao transcrever sua letra difícil
de entender. Ele acreditava que haviam aperfeiçoado sua obra.)

38
Feito por Deus

Centenas de anos depois, Jesus extraiu do Salmo


a frase que estabeleceu o foco de Sua extraordinária
conversa noturna com Nicodemos: "É necessário que
vocês nasçam de novo". Tanto Jesus quanto Nicode-
mos oravam os Salmos, o livro de orações no qual foram
ensinados. Muitas vezes Nicodemos havia repetido ou
cantado:

o S[~H()R escreverá no registro dos povos:


"Este nasceu ali".

Mas, como acontece tantas vezes com o que é fami-


liar, o Salmo era apenas exterior a ele, um legado piedoso
recebido do passado. Ele nunca estivera "em" oração. Ago-
ra, conversando com Jesus, estava.
O nascimento físico é uma maravilha, o espiritual, ou-
tra, ambos quase igualmente inacreditáveis. Contem-
plando qualquer um, ou os dois, chegamos à nossa fonte:
descobrimos que não fomos feitos por nós mesmos, e sim
por Deus.

A cidade de Deus
Significativamente, a cidade é o local dessas exclama-
ções de nascimento.

o Sr.~H()R edificou sua cidade sobre o monte santo;


cle ama as portas de Sião
mais do que qualquer outro lugar de Jacó.
Coisas gloriosas são ditas de ti,
Ó cidade de Deus I

Precisamos pensar no amor de Deus pela cidade,


pois houve uma grande separação na consciência cristã

39
Onde o seu tesouro está

entre a idcntidade pessoal como pessoas de fé e a res-


ponsabilidadc política como cidadãos de uma nação. Fi-
camos maravilhados com o novo nascimento, mas exaus-
tos com a vida adulta. Nossos melhores instintos sobem
à superfície quando abraçamos com carinho um recém-
nascido. Não scntimos a menor atração pelo bêbado fe-
dido que assenta ao nosso lado no ônibus lotado, mesmo
sendo a inconvenicncia que ele representa muito menor
do que a que o bebê nos traz. Recebemos muito bem
os convertidos, mas reclamamos com veemcncia do go-
verno, tanto nacional quanto eclesiástico. Há vastas
árcas da comunidade cristã cm quc todo scnso de ci-
dadania se pcrdeu e só ficou a identidade do novo nasci-
mento. Contudo, não há o menor traço dessa separação
na cxperiência biblica.
Os recém-nascidos do Salmo 87 não fogem da cidade
para buscar a Deus em isolamento. Entram nela e parti-
cipam do governo. Como ato de oração, a esfera pessoal
(o nascimento) se combina com a pública (a cidade). Os
bebês cresccm c se tornam cidadãos. A vida celebrada no
nascimento se descnvolve e se transforma em responsabi-
lidade exercida pelo adulto.
O recém-nascido entra na cidade, não parte para o
campo, onde é possível viver por conta própria e se en-
tregar à fàntasia de ter sido feito por elc mesmo. Lá, pelo
menos, não há necessidade de contato chegado com pes-
soas inadequadas, nem de depender do serviço de gente que
complica a vida alhcia. Mas na cidade é diferente. Ela nos
envolve em assuntos urbanos, na política. Somos jogados,
queiramos ou não, em padrôes de transporte, transações de
negócios, funcionamcnto do sistema judicial c muito mais.

40
Feito por Deus

Acima de tudo, somos confrontados com a responsabili-


dade dc agir no meio de tudo iss0 6
A cidade de Dcus, da qual "coisas gloriosas são di-
tas", não é, claro, apcnas a Jerusalém disputada por políticos
rivais e notieiada por jornalistas. Também não é desmate-
rializada. É a cidade em que Deus opera Seus propósitos
e onde Sua glória brilha, mas mesmo assim um lugar real,
de igreja, cultura, culto e condições climáticas. É citada no
versículo 5 como uma pessoa, mãe que dá à luz uma des-
cendência internacional. Mas nos versículos 4 e 6 ela se
apresenta como ponto geográfico - no 6, ali. Fica sobre uma
montanha rochosa, seus portões estão abertos. Ali.
O nascimento espiritual nos leva a uma cidade física.
Nos dcscobrimos não apenas irmãos e irmãs em uma famí-
lia, mas também cidadãos cm uma metrópole (literalmente,
"mãe-cidade"). Nossos nomes foram registrados, além do
rol dos nascimentos, no dos impostos, o que significa quc
temos responsabi lidades com o bcm comum. Orar o Salmo
87 desenvolvc nosso compromisso consciente com o bem
público e nos ajuda a ver o mundo da política como terrcno
bíblico, não estranho.

6. Interessante notar que nas cidades-estados gregas, a esfera pública


costumava ser vista como o lugar de liberdade, cm contraste com a privada, o
local das necessidades. J\'esta, a vida era cercada pelas necessidades de côn-
juge, filhos, roupa, alimento, abrigo. ;\)a pública, a política, havia espaço para
criar com liberdade padrôl:s de associaçào c responsabilidade que elevavam
a vida acima dos aspectos de sobrevivência. Jesus aprofundou imensamente
esse disccl11imcnto com a proclamação do reino, a esfera pública de Deus. É
essencial reconquistar esse tcrreno público quc foi perdido por um secularis-
mo agressivo instigado por pietisl110 privado. A oraçào é ü meio fundamental
nesse trabalho de retomada. Veja Elizabcth Young-BnlchL Hannah Arcndt:
For Love olfhe ~Yorld (Nc\v I-lavcn: Yalc University Prcss, 1982), pág. 3] 9.

41
Onde o seu tesouro está

Mãe Sião
Cheguei a Jerusalém no final da tarde, em minha
primeira visita. Queria ir ao Muro Ocidental ao pôr-do-sol
para o começo do Sabá. Estava tarde, cu não sabia o cami-
nho. Apressei-me pelas ruas estreitas e apinhadas, pedindo
informações. Depois de errar algumas vezes e já sem fCJlego,
consegui chegar. O Muro. Do grande complexo do templo bí-
blico, só resta uma pequena parte de pedra na porção inferior
do Muro. Há um pátio em frente, onde as pessoas se reúnem
para orar. Para os judeus, é o lugar mais santo do planeta.
Em geral, os lugares santos são esplendores daarquitc-
tUfa: catedrais góticas, templos hindus, santuários budis-
tas, mesquitas muçulmanas. Não há nada de esplêndido no
Muro. Quem chega lá se depara com uma parede de pedra
sem qualquer formato especial. Os que oram ficam ao ar
livre. Não há beleza. Nem drama. Mas não se pode exigir
beleza nem entretenimento de uma mãe. Simplesmente de-
sejamos estar na fonte. Mãe Sião. O local do nascimento.
Isso, c apenas isso, responde pelas "coisas gloriosas" ditas
sobre ela. O fàto simples, embora imenso, da maternidade
supera todas as outras considerações.
Então chegou o pôr-do-sol, o sinal do inicio do Sabá.
Fiquei diante do Muro simples, sem atrativos, sentindo-me
profundamente comovido por causa da torrente de recorda-
ções que me vinha. Eu estava no lugar onde Davi governou,
onde Salomão construiu, Isaías pregou e Jeremias chorou.
Era o local em que Jesus ensinou, sofreu, morreu e ressus-
citou. Ouvi um cântico à distância, atrás de mim. Virei-me
e vi cerca de trezentos jovens (fiquei sabendo depois que
eram alunos da Universidade Yeshiva). Eles vinham com
os braços nos ombros uns dos outros, cantando enquanto se

42
Feito por Deus

moviam no mesmo ritmo, em uma solenidade alegre cru-


zando a praça rumo ao Muro. Chegaram no pátio onde eu
estava, formaram um grande círculo e começaram a cantar
e dançar no local de oração.
Foi um dos momentos mais emocionantes de minha
vida. Sentimentos profundos cuja intensidade me surpreen-
deu moveram meu íntimo. O lugar santo (o Muro), o dia
santo (Sabá) e a cidade santa (Jerusalém). E as multidões
de pessoas santas - todas as raças à minha vista, enquanto
eu ouvia muitas línguas diferentes. Tudo isso encontrou,
para mim, expressão física e vocal no canto e na dança dos
jovens. Subitamente a última frase do Salmo 87 surgiu em
minha mente como um epigrama do momento:

Com cânticos c danças, dirào:


"Em Sião estão as nossas origens!"'

Cânticos e danças resultam de excesso de energia.


Em cstado normal falamos, na hora da morte sussurramos,
mas quando não conseguimos nos conter, cantamos. Os
saudáveis andam, os decrépitos se arrastam, mas os que
estão cheios de vitalidade dançam.
Ondc conseguir a energia que leva a viver além de nós
mcsmos, feitos por Deus, cantando e dançando? Em Sião
- lugar de adoração, de pregação, de oração, de política.
O lugar que Deus estabeleceu para revelação e domínio,
que afim1a o invisivel cm nossa visibilidade, tempo e lugar
separados para dar atcnção ao que acontece à nossa volta,
abaixo de nós - e, agora, dentro de nós. Em Sião onde
tudo começa, o manancial, a fonte profunda e impossí-
vel de detcr de nova vida jorrando através de camadas de

43
Onde o seu tesouro está

pecado, indiferença e estupidez e explodindo em fontes


de cântico e dança. Saltos de louvor. Cambalhotas de obe-
dicncia. "Pulo corda em graça acompanhando uma música
a Cristo." 7

7. Eugene H. PctcrsOll, "festival", em A l-Videning UJ.!.ht, editora Luci


Shaw (Whealon. l1l.: Ilarold Shaw. 19R4), pág. ] 19.

44
1

Capítulo 3 1
Centralizado em Deus
1
SALMO no
o SDVI{(}R disse ao meu Senhor: 1
"Senta-te à minha direita
até que eufaç'a dos teus inimigos um estrado
para os teus pés ". 1
o SENHOR estenderá o cetro de teu poder
desde Siao, 1
e dominarás sobre os teus inimigos'
Quando convocares as tuas tropas,
o teu povo se apresentará voluntariamente. 1
Trajando vestes santas,
desde o romper da alvorada
os teusjovens virão como o orvalho.
1
O SENHOR jurou
e mio se arrependerá:
1
"Tu és sacerdote para sempre,
segundo a ordem de Melquisedeque".
1
o SI:.NHOR está à tua direita;
ele esmagará reis no dia da sua ira.
Julgará as naçàes, 1
amontoando os mortos
e esmagando governantes
em toda a extem'(/o da terra, 1
No caminho beberá de um ribeiro,
e então erguerá a cabeça,
1
1
1

No pensamento do mundo bíblico, não se espera que 1


o homem esteja centrado em sua própria personalidade,
e sim em Deus. ... O interesse deles era o drama divino, 1
não a personalidade humana; os acontecimentos sobre-
naturais, nào o encanto de um galileu.
DONALD BAILLIE I 1

s coisas não vão mui~o bem atualmente. Na ver- 1


A dade, nunca foram. E muito estranho. Vivemos
cercados por beleza estonteante. A terra sob nossos pés e
o céu acima de nossa cabeça são repletos de formas, sons 1
e cores de tirar o fôlego. Nós mesmos somos uma obra de
proporções magníficas: não há limite para a exuberância de 1
poemas, fotografias, histórias, paisagens, retratos, concertos,
máquinas, ferramentas, edifícios, jardins, pontes, motores,
1
represas, músicas, sonetos, mosaicos, esculturas, cerâmicas
e tecidos que os seres humanos fazem. Muitos acreditam que
o governo dos Estados Unidos seja a combinação mais bem 1
sucedida de liberdade política e responsabilidade que o mun-
do já viu. Diante da beleza estonteante e da terra maravilhosa 1
que temos, da grande inteligência c sensibilidade de homens
e mulheres e do evidente sucesso da experiência política na
democracia, por que o país enfrenta tantos problemas? Por 1
que a situação não é melhor? Após tantos séculos de pal-
estras, sermões, sinfonias, legislação, revoluções e ferrovias, 1
todos deveriam ser eruditos santos. Thomas Hardy escreveu
um epitáfio breve e cínico: "Após dois mil anos de liturgia
cristã/Progredimos e chegamos ao gás venenoso".'
1
I. Donald BaiEic, Cud Was íl1 Cf1ríst (Londres: Faber & Faber Ltd.,
1956), pág. 43-44
1
2. Thamas Hardy, The Complete Poenu (Nova lorque: Macmillan,
1952), pág. 572
1
47
1
Onde o seu tesouro está

Poderemos fazer alguma coisa? A maioria das pes-


j
soas pensa que sim. Certo, há dias em que parece que a
disputa fica entre fanatismo e apatia, pessoas que acusam j
um inimigo odioso por todos os ossos males e aquelas
que sucumbiram por achar que não podem fàzer nada.
Mas a verdade é que todos os dias se gasta muita ener-
j
gia para solucionar problemas: cuidado com o meio-am-
biente, compaixão pclos sofredores, preocupação com j
os pobres, diligência no governo. Grandes batalhões de
pessoas ensinam, curam, lcgislam, orientam, consolam e
reabilitam. Muitos combatcm o mal, tanto nas formas ób-
j
vias quanto nas sutis.
Entretanto, o imenso número de pessoas comprometi- j
das em agir diante do que está errado no mundo nem sem-
pre incentiva a esperança. Muitas vezes a observação da
vida dos que tentam agir e a análise fria dos resultados de
j
seus esforços não resultam em estímulo. Por exemplo: por
que pessoas que fazem tanto bem costumam agir tão maI'J j
Fazer o bem suscita o pior em algumas pessoas. Por que se
tomam tão mal-humoradas, duras e hipócritas') Por que tan-
tos se lançam a empreitadas impressionantes e logo depois j
perdem a empolgação') Por que tantas causas morais vi-
gorosas têm vida tão curta? Por que tanto fervor bem inten- j
cionado e justo se deteriora e vira sentimentalismo') Nem
sempre mergulhar de cabeça na batalha traz os resultados
esperados. Algumas vezes nosso esforço piora a situação. j
Algumas vezes o que piora somos nós mesmos.

RecoJocando a oração no centro


j
Os cristãos acordam todas as manhãs no meio dessa
confusão e levantam da cama dispostos a agir. Não sabe- j
4R j
j
Centralizado em Deus

mos o que fazer. Se fizermos uma pesquisa entre os cole-


gas, como alguém de vez em quando faz, encontraríamos
uma variedade imensa de respostas. No entanto, poucas
pessoas responderiam "orar". Não estou afinnando que a
pesquisa mostraria que os cristãos não oram, mas sim que
a maioria não considera a oração o ato central e essencial
para desfazer a confusão em que nos metemos. A maioria
considera a oração uma atividade privada, a ser realizada
dentro de casa. Quando acontece no setor públ ico, faz parte
de alguma cerimônia.
Esse entendimento e essa prática são tão generaliza-
dos e aceitos que ficamos chocados ao descobrir que em
outros tempos c Iugares os cristãos tinham posição com-
pletamente diversa. A diferença fica clara no que sabemos
sobre a comunidade cristã do primeiro século. Aquela épo-
ca, ao contrário da nossa, era totalmente deficitária em ter-
mos de pesquisas e análises estatisticas, de modo que nos
falta o tipo de evidência a que estamos acostumados. Mas
temos o Novo Testamento e vemos que nele o Salmo mais
popular é o 110 - com sete citaçôes e quinze alusões 3 Ne-
nhum outro Salmo chega nem perto disso. A comunidade
de cristãos do século I ponderava, debatia, memorizava e
meditava no Salmo 110. Era o texto que os atraia e molda-
va a vida comum quando abriam seu livro de orações. Mas
a comunidade de nosso século tem ouvido muito pouco
desse Salmo.
Venho fazendo pesquisas informais há alguns anos
e elas mostram que o favorito hoje é o 23, que não foi
citado nem uma vez no Novo Testamento. Não preten-

3. A. F. Kirkpatrick, COll1melllw:l' ()!l rhe Psa/IlI:"; (Londres: Cam-


bridge Univcrsity Prcss. 1947). pág. ]947.

49
Onde o seu tesouro está

do ser hostil ao confrontar nossa preferência com a dos


primeiros cristãos. O Salmo 23 merecc sua popularidade.
Ele trouxc, e continua trazcndo, a palavra verdadcira de
Deus e desenvolve um rclacionamento profundo e autên-
tico com Ele nos que o oram. Mas o 110 não merece ser
esquecido: é extremamcnte importante, escrito com arte e
vigor, e nos dirige em uma oração que tira o ego do centro
- nos resgata do egocentrismo, voltando nosso foco para
o ser e a ação de Deus. As conseqüências de orá-lo são
imensas para os que desejam agir diante do mal que as-
sola o mundo.

Equilíbrio perfeito
As duas sentenças mais importantes são oráculos de
discurso direto de Deus: O StNIIOR disse ao meu Senhor:
"Senta-te à minha direita até que eu faça dos teus inimi-
gos um estrado para os teus pés" (v. I) e O SENIIORjUrou e
não se arrependerá: "Tu és sacerdote para sempre, segun-
do a ordem de Melquisedeque" (vA). Esses dois versículos
dominam o Salmo c o dividem em duas partes perfeita-
mente equilibradas. David Noel Freedman fez a observa-
ção surpreendente de que cada estrofe (em hebraico) tem
setenta e quatro sílabas - equilíbrio perfeito! 4
A estrutura - "O SENHOR disse ... O SENIIOR jurou"
- por cla mesma já respondc pela proeminência do texto
no século I. As pcssoas que conhecemos, através do Novo
Testamento, se interessavam acima de tudo, em ouvir o
quc Deus tinha a lhes dizer. A sede que sentiam por receber
mais do que sabiam ser as boas novas era insaciável. O
apetite pela Palavra de Dcus, incessante. Eles eram como

4. Citado por DahoocL 7he Psulms. 3: 113.

50
Centralizado em Deus

Ezra Pound em Hornage to Sextus Propertius: "Conta-me,


conta-me, conta-me tudo, ávido espero, com ouvidos bem
abertos 1".'
Talvez seja exatamente essa base - "O SENHOR disse ...
O SENHOR jurou" - o motivo do esquecimento na atualidade.
As vozes religiosas que comandam as maiores audiências
em nossa sociedade fazem publicidade do ego - religioso,
claro, mas mesmo assim, ego. As distorções de raízes pro-
fundas, que levam a humanidade a pensar primeiro em si,
foram institucionalizadas na economia e sancionadas pela
psicologia. Agora arranjamos religiões no mesmo estilo,
que aumentam nosso potencial e nos fazem sentir bem a res-
peito de nós mesmos. Queremos orações que nos tragam
beneficios diários na forma de padrão de vida mais elevado,
com milagres ocasionais para aliviar o tédio. Nos aproxi-
mamos da Bíblia como consumidores, esquadrinhando os
textos para encontrar alguma pechincha. Vamos ao culto
como epicuristas emocionais, acreditando que o divino
deve fornecer um suplemento agradável de põr-do-sol e
sinfonias. Lemos "O SENHOR é meu pastor, nada me fàltará"
e nosso coração vibra. "Você não temerá o pavor da noite"
e ficamos tranqüilos. "Não nos trata conforme os nossos
pecados" e começamos a pensar que talvez tenhamos sido
rigorosos demais conosco mesmos. Mas quando lemos
"O SENHOR disse ... O SENHOR jurou" o interesse diminui
e pegamos o jornal para verificar como anda a bolsa de
valores.
Provavelmente não somos piores que as pessoas do
século I. Elas também agiam assim. Notável, contudo, é

5. Ezra Pound, 5;e1ecled Poems (Nova Iorque: NC\v Directions,


1957). pág. 82.

51
Onde o seu tesouro está

que, no meio da sensualidade e oportunismo religiosos, um


grupo de pessoas conseguiu desenvolver o prazer de ouvir
o que Deus tinha a dizer nos termos dEle, tanto que toma-
ram como oração favorita a que centralizava a vida nas
palavras dEle: "O SENHOR disse ... O SENHOR jurou". Orar
o Salmo 110 enfocou a atenção deles na palavra de Deus e
envolveu a vida deles na obra de Deus.

Acertos no meio do caminho


A repetição "O SENHOR disse ... O SENHOR jurou" en-
fatiza Deus no centro, estabelecendo o centro. A repetição
é funcional: depois de chamar, prende a atenção. Muito co-
mum na vida do Espírito é começar certo e tenninar erra-
do. Somos lançados ao caminho da fé pela palavra de Deus
("O SENHOR disse"), mas depois nos desviamos. Acertos
("O SENHOR jurou") são necessários para manter o enfoque
no centro correto.
O ego é persistente. Em silêncio, de forma sutil e com
engenhosidade, consegue voltar ao centro. Temos profissão
a desenvolver, responsabilidades institucionais a manter,
famílía a alimentar e jardins a cuidar. Há causas em que in-
vestimos grande porção de nossa identidade. A certa altura
encontramos o centro em "O SE:-JHOR disse", mas uma preo-
cupação urgente nos distraiu, ou um novo assunto absor-
veu nossa atenção. Claro que continuamos religiosos, mas
a religião foi se tomando um cenário confortável e seguro
para o ego, que ocupa a posição central. Sem perceber,
nos transformamos em escriturários esforçados na casa da
criação, preocupados com a clareza dos livros de controle,
mas alheios às trocas fantásticas e extravagantes de graça
e misericórdia que acontecem em todo lugar quando Deus

52
Centralizado em Deus

fala. Viramos editores intrometidos para os que nos cercam


e estão aprendendo a contar a história do amor salvífico
de Deus em sua vida: apagamos vírgulas, trocamos pon-
tos e vírgulas, ficamos irritados com a pieguice da história
que contam em sintaxe afobada e estranha. Então estamos
prontos para um acerto no meio do caminho, à moda do
Salmo 11 O: "O SENHOR jurou"!
É compreensível permitinnos, sem perceber, que as
preocupações do ego usurpem a adoração a Deus, mas não
é inevitável. É comum, mas não necessário, que a admi-
ração diante da palavra centralizadora de Deus escoe pela
peneira do dia-a-dia. Meus amigos Larry e Ruth moram
em uma tàzenda, em um vale no estado de Montana. Al-
guns quilõmetros adiante, depois do vale, as Montanhas
Rochosas iniciam sua subida c chegam a mais de 2.000 m
de altitude. Formam uma borda recortada no horizonte que
meus amigos enxergam, colorida em tons que variam de
azul a verde à medida que o sol avança pelo céu. Uma vez,
eu estava na casa deles e comentei:
- Que lugar maravilhoso para trabalhar! Mas talvez
vocês estejam tão acostumados que nem notem maís a
beleza.
Eles responderam:
- Ah, não' Paramos para contemplar várias vezes to-
dos os dias. A beleza muda sempre: cada vez que olhamos
somos envolvidos por novas variações.
Nem sempre a familiaridade gera desprezo, mas os
lembretes são necessários: "O SENHOR disse ... O SENHOR
jurou".
O Salmo 110 estabeleceu sua distinção na comuni-
dade cristã primitiva fazendo o ego se voltar para o Deus

53
Onde o seu tesouro está

que fala. Eles sabiam que viviam em um mundo arrui-


nado e que precisavam tomar alguma atitudc. Sabiam
também que as boas obras e grandes intenções eram tão
falhas que só conseguiam piorar a situação. Mas eles ti-
nham consciência de que isso não os desqualificava para
o trabalho: haviam sido chamados para a obra de Deus
em Cristo para estabelecer Sua vontade "na Terra como
no Céu".
Para fazer isso, oravam o Salmo 110, que moldou o
entendimento de quem eles eram e do lugar que ocupa-
vam no mundo através da declaração: quando Deus fala, as
coisas acontecem. Gênesis I lhes ensinara o que deveriam
esperar. A palavra de Deus cria: Disse Deus ... E assimfoi.
Em Gênesis I, a palavra de Deus criou o mundo, no Salmo
°
II ela estabeleceu o Messias, o Cristo.
O messianismo estava na moda no século I. Por
toda parte pululavam salvadores, vendedores de milagres
e messias de todo tipo, com projetos para a salvação do
mundo. Todos se envolviam com isso, de uma forma ou de
outra. A vida fervia de agitação, mas também havia muita
confusão. Parecia que ninguém seria capaz de entender o
que estava acontecendo, ninguém conseguiria separar a
verdade da mentira. As magníficas pedras fundamentais da
revelação bíblica da experiência hebraica estavam disper-
sas como entulho, contaminadas pelos germes vindos da
Grécia, Roma, Pérsia e Egito. Aparentemente, era impos-
sível diseernir uma verdade coerente no meio do caos. A
religião estava "sem forma e vazia; trevas cobríam a face
do abismo".
Jesus de Nazaré nasceu nesse mundo. Pobre, sem
poder, obscuro, Ele era um messias bem improvável. Então

54
Centralizado em Deus

Deus falou:

o Srl\HOR disse ao meu Senhor:


"Senta-te á minha direita até que eu faça dos teus
inimigos um estrado para os teus pés".

Um rei veio a existir, um que traz ordem, beleza,


justiça e paz. Deus voltou a falar:

o Sr'HoR jurou
e não se arrependerá:
"Tu és sacerdote para sempre,
segundo a ordem de Melquisedeque".

Um sacerdote que coloca as pessoas em relaciona-


mento perfeito com Deus foi formado. Deus falou e criou o
Messias rei-sacerdote, exatamente como havia falado para
criar o mundo. Nascimento, ministério, sofrimento, morte
c ressurreição de Jesus de Nazaré se reuniram e deram for-
ma a toda verdade e revelação que estavam dispersas e as
colocou em um evento reconhecível, orgânico e pessoal
- um ato assombroso de redenção.
Com os dois oráculos (versiculos 1 e 4) como ân-
coras, o Salmo elabora metáforas e não argumentos
para mostrar o Messias atraindo, sem coerçào, exér-
citos cheios de esperança para se colocarem sob sua
liderança:

Quando convocares as tuas tropas,


o teu povo se apresentará voluntariamente.
Trajando vestes santas,
desde o romper da aI varada
os teus jovens virão como o orvalho.

55
Onde o seu tesouro está

Um segundo grupo de metáforas mostra Deus estabe-


lecendo seu governo apesar de toda oposição:

o Senhor está à tua direita;


ele esmagará reis no dia da sua ira.
Julgará as nações.
amontoando os mortos
c esmagando governantes
em toda a extensào da telTa.
A sentença final é inesquecível:
No caminho beberá de um riheiro,
c então crgucrú a cabeça.

Os primeiros cristãos viam o Senhor Jesus nessa


imagem: o rei-sacerdote entre nós, em nosso nível, se-
dento em sua humanidade, ajoelhado à beira do riacho.
Depois, renovado, com a cabeça erguida, prossegue em
seu caminho, governando c salvando. O grandioso e o
simples se integram, o pessoal e o político se unem nessa
imagem('
Essa versão do Messias era totalmente destituída de
atrativos para os arrogantes deste mundo, Eles queriam
alguém que usasse o poder para colocar a vida de volta
nos trilhos. Por isso, desprezaram esse. A imagem não teve
melhor sorte com os piedosos tímidos. Um Messias com

6. Os eruditos modernos reconstroem imagem semelhante, mas em


termos de uma antiga cerimônia de entronização el11 que o rei era levado ao
sopé da colina de Jerusalém. ao manancial de Giom. Ali, bebia a água em
ato sacramental e era ungido pelo sacerdote. Depois. COI11 a cabeça erguida,
voltava ao templo cercado porjúbil0 c alegria. acompanhado pelos gritos de
"Longa vida ao rei!". (1 Reis \.32-40). Hans-Joachim Kraus, Psolms 60-/50
(Minneapolis: Augsburg. 19X9), págs. 76 e seguintes.

56
Centralizado em Deus

sede e ajoelhado era vulnerável e comum demais para eles.


Buscavam alguém que os tirasse das limitações e humi-
lhações de todos os dias. Mas, para os que estavam apren-
dendo a orar e se envolviam na ação de Deus a respeito da
postura de Jesus, a imagem era exata.
O Messias é reunido em funções fragmentadas de
governo e salvação, reinado e sacerdócio. Na antigui-
dade (na pessoa de Melquisedeque), os ofícios de rei
e sacerdote eram uma única função orgânica. Mas eles
se separaram e, em lugar de se complementarem, com
a maior freqüencia entravam em conflito e competição
ao invés de serem partes coordenadas de um todo. O
rei representava o poder de Deus para governar, mol-
dar e orientar a vida. O sacerdote mostrava o poder de
renovar, perdoar e revigorar. O primeiro, associado ao
palácio, operava no mundo externo da política. O outro,
ligado ao templo, agia no mundo interior do espirito.
O rei era especializado em relacionamentos horizontais,
humanos. O sacerdote, em verticais, espirituais. Dar es-
trutura à vida era responsabi lidade do primeiro, dar vida
à estrutura, do outro. Obviamente, foram feitos um para
o outro, mas não agiam assim. Então, diante dos olhos
de alguns palestinos, tudo se uniu na vida de Jesus. O
Salmo 110 descreve como isso aconteceu na formação
do Messias.
Deus governou e salvou, e os dois atos foram a mes-
ma coisa. Todas as partes do universo e da história en-
contraram seu lugar e fizeram sentido. Todos os anseios
e apetites do espírito chegaram ao fim. A vida externa e
a interna se mostraram uma só coisa: a vida de Deus em
Jesus Cristo, Senhor e Salvador.

57
Onde o seu tesouro está

Reunido
Então aconteccu outra coisa - se possivel, ainda mais
maravilhosa. Ao mesmo tempo em que descobriam essa
reunião e centralização de todas as coisas no Messias,
descobriram também que estavam centrados, ou seja, ha-
viam abandonado o domínio do ego, que, perturbado e en-
sandecido, pela tentativa de agradar centenas de deuses e
evitar milhares de demônios, agora estava livre dessa tarefa
impossível. A busca desesperada de encontrar respostas e
adquirir conhecimento, que estabeleceria uma segurança
parecida com a de um deus, havia acabado. A moralidade
obsessiva que as pessoas acreditavam que as prepararia
para irem ao Céu e que só conseguia fazê-Ias mais infeli-
zes fora abandonada. Todos os sistemas gnósticos, exercí-
cios morais e superstições foram jogados fora: "Senta-te à
minha direita até que eufaça dos teus inimigos um estrado
para os teus pés" - o governo foi estabelecido. "Tu és sa-
cerdote para sempre. segundo a ordem de Melquisedeque"
- a redenção está completa. O mundo também foi reunido
para que fizessc sentido. O Salmo 110 colocou as verdades
multifacetadas da Palavra de Deus, que cria o Messias em
forma de oraçào, que mantém a vida de fé atenta e pronta a
responder à grande variedade de obras que Deus realiza em
cada pessoa e no mundo todo. Sabendo isso, ninguém se
surpreende de ver que era o Salmo predileto no século I.

Uma agenda nada modesta


Amitai Etzioni, sociólogo israelita que imigrou para os
Estados Unidos, estabeleceu com paixão urgente o que ele
chama de "uma agenda nada modesta" para fazer alguma
coisa quanto ao rápido declinio da civilizaçào na América.

58
Centralizado em Deus

Ele abandonou a fria objetividade acadêmica e faz apelos


ferv0rosos por um compromisso com o bem comum na so-
ciedade e na nação. Está convicto de que esse compromisso
precisa vir não de um novo plano social ou programa legis-
lativo, mas de uma ação generalizada no sentido de acabar
com o domínio do ego. Escreveu:

Minha tese é que milhões de individuos, pilares de uma


sociedade livre e de uma economia vigorosa, afastaram-se
uns dos outros e perderam a eficáeia.... A necessidade de
reconstruir a economia, a segurança nacional e a comuni-
dade requer filosofia soeial e orientação individual muito
menos centradas no ego.'

Defende que a sociedade precisa ser reconstruída do


zero por lideranças que mostrem que o egoísmo e outras psi-
cologias em moda na última década não funcionarão para a
longa jornada.
É mesmo uma agenda nada modesta, mas não chega
nem perto da que Crísto estabeleceu para Seus seguidores,
que adquiriram a fama de colocar o mundo de pernas
para o ar. Eles descobriram bem no início que só a oração
era pessoal, a ponto de acabar com o domínío do ego, e
abrangente a ponto de incluir todos os aspectos do mundo
decaído na ação pessoal e política do Messias. A freqüên-
cia com que oravam o Salmo 110 constitui evidência dessa
descoberta. Ao contrário de nossos profetas e moralistas
seculares, eles foram muito além da análise e do ímpeto
- tinham uma estratégia plausível que colocaram em ação
com fidelidade em suas orações. De lá para cá, não se pas-

7. Amitai Etzioni, An lmmodesf Agenda (Nova Iorque', New Press,


1953).

S9
Onde o seu tesouro está

sou um dia sequer sem que cristãos (às vezes poucos, às


vezes muitos) orassem o Salmo 110 e orações semelhantes
a ele. Os recmtas continuam se juntando à tropa.
Deus deixou bem claro que não se contenta em res-
gdtar umas poucas almas da condenação. A redenção foi
concebida em uma escala que excede muito nossa capa-
cidade de entender - envolve novo Céu e nova Terra. As
pessoas que oram se envolvem tanto com o rei que estabe-
lece seu governo no cosmos quanto com o sacerdote que
trata as pessoas, diante de Deus. Na oração participamos
da ação oscilante pcssoal/politica de Deus, do centro para
a periferia.

60
Capítulo 4
Governo de Deus

SALMO 93

o SENHOR reina' Vestiu-se de majestade;


de majestade vestiu-se o SENHOR e armou-se de poder!
O mundo estáfirme e nào se abalará.
O teu trono está firme desde a antigiiidade;
tu existes desde a eternidade.

As águas se levantaram, SfiNHOR,


as águas levantaram a voz;
as águas levantaram seu bramido.
Mais poderoso do que o estrondo das águas impetuosas,
mais poderoso do que as ondas do mar
é o St'NfIOR nas alturas.

Os teus mandamentos permanecemfírmes efiéis;


a sanridade, Senhor, é o ornamento
perpétuo da tua casa.
A soberania que cruzou os mares rumo ao Novo Mun-
do era nova. Instalou a era da soberania humana absoluta
- o que significa era da presunçào humana absoluta. Há
um soberano agindo no universo. Sua ganância é infinita e
ele procurajàzer valer seus direitos.
WENDELL BERRY 1

resumo que as crianças gregas cresçam conven-


P cidas de que a Grécia é o melhor país do mundo.
Provavelmente as chinesas pensam o mesmo sobre a terra
delas. As da Tanzânia também. De qualquer forma, sei
que cresci com a firme convicção de que os Estados Uni-
dos são o melhor pais, terra dos livres e lar dos corajosos.
Adquiri, ainda, a opinião vaga e sólida de que vivia em
uma nação cristã. Acreditava que as montanhas e plani-
cies de beleza extraordinária, as imensas florestas e os
rios caudalosos eram recompensas de Deus à nossa fi-
dei idade. Os livros infantis e escolares me fizeram sentir
que minha terra tinha uma história cristã. O rei George III
da Inglaterra se encaixava muito bem na figura do Faraó.
Meus ancestrais sobreviveram a perseguições eruéis e a
travessia do Atlântico foi eomo a do Mar Vermelho. Ha-
via até mesmo tribos de bárbaros hostis como os cana-
neus, que ajudaram a estabelecer paralelos eonvincentes
entre os peregrinos da América e os filhos de Israel. A
América eomo Terra Prometida e os americanos como o
povo escolhido de Deus.
Esse povo desenvolveu a democracia como seu
governo - autogoverno. Houve, em outros momentos da

I. \Vendcll Berry. The [/nselt{;ng o/ Amcrico (Nova Iorque: Avon


Books. 1977). pág. 55.

63
Onde o seu tesouro está

história, incursões na democracia, mas nada tão abrangente


nem tão bem sucedido. Moldada em uma terra que exibia
todas as qualidades da terra prometida, entre pessoas que
viviam a dignidade do povo escolhido, dificilmente seria
surpresa descobrir que a democracia era vista, pura e sim-
plesmente, como bênção de Deus. A versão da história que
me ensinaram dizia que após vários séculos sob o peso
abusivo do domínio papal e um milênio sob a ameaça do
fanatismo islâmico, a democracia americana era boa de-
mais para ser verdade - e era verdadeira.
Sob todos os aspectos, a democracia americana é um
tremendo sucesso. Se há críticas ao sistema político - e
existem, algumas até muito penetrantes - em geral não
se opõem ao conceito de autogovemo, mas apenas a fa-
lhas na execução ou hipocrisia nas instituições. Devemos
admitir que há grandes defeitos em algumas de nossas
pretensões. Para mui ta gente as promessas ainda não se
concretizaram. Ainda assim, os críticos não parecem es-
tar na fila de imigração para Cuba ou China. Após séculos
de governo de caciques, ditadores militares, reis, rainhas,
conselhos e grupos de revolucionários fervorosos, che-
gamos à democracia. Autogovemo é o clímax da ciência
política.
O cristão, com a memória histórica tão inf1uen-
ciada pela noção de promessa c bênção divinas, dificil-
mente deixaria de concluir que o estilo de governo de
Deus é conforme o autogoverno. Mas essa conclusão
fracassa na oração, onde descobrimos uma realidade
muito diferente daquela em que crescemos. O povo não
é soberano - Deus é. Orando, não penetramos em um
mundo onde nossos desejos sào bem representados e

64
Governo de Deus

depois colocados em leis que equilibram o máximo de


liberdade eom o mínimo de interferência. A revelação
bíblica apresenta o Deus a quem oramos como ine-
quivocamente soberano. Além disso, deixa claro que
Ele pretende exercer Sua soberania de forma total e
arrebatadora. Tudo e todos se sujeitam a Ele. Não há
divisão entre realidade espiritual e material, como mui-
tos supõem, com Deus responsável pelo controle da
primeira e os políticos da segunda. O domínio dEle é
inclusivo e absoluto.
Assim, o ato da oração nos envolve em correntes
poderosas que se cruzam: a pressuposição rápida, baru-
lhenta e flamejante do autogoverno e a crença tranqüila,
quieta e crescente na soberania de Deus. Apresentamos
preces de submissão a Deus como rei em uma atmosfera
em que insistimos em votar para decidir todos os assuntos.
Creio que o orgulho pelo autogoverno inconscientemente
subverte o compromisso com a soberania de Deus em grau
muito mais elevado do que costumamos notar. Mas a sub-
versão também opera em outra direção. A insistência entu-
siasmada na autonomia leva à obediência grata ao controle
de Deus. A maré que sobe absorve a torrente que desce a
montanha. Claro que isso acarreta conseqüências pessoais
e políticas.

o SE:'IHOR reina
Sete Salmos proclamam e celebram esse domíni0 2
Provavelmente, tiveram origem em uma festa de ado-
ração do Dia de Ano Novo em Israel, quando era cele-
brada a entronização soberana de Deus sobre o povo, as

2. Salmos 47.93.95-99.

65
Onde o seu tesouro está

nações, a Terra e o ano que inieiava 3 Esses Salmos pon-


deram e oram sobre o governo de Deus com precisão c
exuberância. A oração percebe como o governo de Deus
se espalha por toda parte. Além disso, altera c acaba subs-
tituindo os feudos insignificantes onde tentamos controlar
a vida com estardalhaço ou ficamos indolentes e permi-
timos que os outros a dirijam. O Salmo 93 se destaca no
grupo dos sete. Majestoso em sua simplicidade destituída
de arte, imponente na brevídade despretensiosa, memorá-
vel nos ritmos fortes, ele atrai e convence. Uma das carac-
terísticas da poesia hebraica é a "rima" de significados e
não de sons, o emparelhamento de sentidos semelhantes ou
contrastantes em linhas sucessivas. Podemos ver isso na es-
trofe de abertura, separando as linhas em quatro pares de
rimas de sentidos paralelos.

o SEiV!fOR reina!
Vestiu-se de majestade;
de majestade vestiu-se o StNIIOR

3. Esses Salmos, com a expressão característica "0 SEV//OR reina",


são uma apologia contra todas as pretensões de domínio de outros deuses,
e reis que intentam ser deuses. Sigmund Mowinckel, grande estudioso dos
Salmos, nascido na Noruega, afinnou que eles eram cantados em um ritual
do Dia de Ano Novo, cm um ato de adoração, que saudava Deus como rei,
que renovava seu domínio recriando o mundo. "Há, nessa proclamação, uma
confissão contra as grandes monarquias orientais c sua religião. Nem Mar-
duque, nem Assíria, só Jcavá reinou, continua reinando e ainda será rei de-
pois que todos os outros poderes desvanecerem. É necessário traduzir Yah-
weh malak: Jeová tornou-se rei (na primeira criação), torna-se rei (hoje, l1a
entronização no Dia de Ano Novo, o dia em que o mundo é renovado por
Ele) e sc tornará rei (no dia da 'segunda' criação escatológica)." Johannes
IIcmple, Interprefed Dicfionar\' or fhe Eibie, 3:949. Veja também H. H.
Rowley. The Old Testamenf {Jnd A10dern Study (Londres: Oxford University
Press. 1952), págs. 190-]92.

66
Governo de Deus

e annou-se de poder'
O mundo está finne
c não se abalará.
O teu trono está finne desde a antigüidade;
tu existes desde a etemidade.

Estes quatro pares de linhas constroem um "bloco


sólido". A soberania de Deus é uma fortaleza estrutural.
Isso é fato histórico c teológico. Político e espiritual. Ter-
reno e celestial. O povo de fé aceita essa soberania e se
regozija nela. Desfruta de seus imensos beneficios. Ce-
lebra os grandes dias santificados. Admira e se lembra dos
líderes importantes. Busca respeitar a legislação do reino e
promover seus objetivos.
Contudo, ao mesmo tempo vivemos sob outros gover-
nos. A entronização de Deus, orada no Salmo 93, era repetida
pelos hebreus nos muitos séculos em que eles entronizavam
seus próprios reis. Durante cerca de quinhentos anos o re-
gime de governo foi a monarquia. No decorrer dessa metade
de milênio eles coroaram quarenta e dois reis. 4 Alguns foram
magnificos, outros terriveis. Muitos foram simplesmente co-
muns. Entretanto, cada um deles foi coroado em subordi-
nação ao governo de Deus. Nenhum tinha permissão para
pensar de si mesmo mais do que um ser humano com uma
tarefa a realizar. Nenhum cidadão tinha permissão para pen-
sar nada diferente disso.
A coroação dos reis no lugar de culto, com o ritual,
músicas e orações, levava a imaginação do povo a con-
siderar Deus, e apenas Ele, soberano. Nem sempre os reis

4. Esse número inclui os reis do reino unificado e os do sul e do norte


depois da divisão.

67
Onde o seu tesouro está

lembravam disso, c o povo também csquecia, mas pclo me-


nos a base correta era cstabelecida. Atos de adoração os le-
vavam continuamcntc de volta à convicção comum de que
o governo de Deus cstava sendo excrcido na política c na
comunidade social cm que viviam. Orar impedia quc cles
viessem a supor que ter um rei era, de alguma forma, mais
importante do que tcr Deus. Esse tipo de oração continuou
sem altcração na época do autogoverno. Uma geração após
outra, de judeus e cristãos fazendo esse tipo de oração, de-
senvolveu um sistema tão intrincado de envolvimento na
política do dominio de Deus, que nenhum governo está
livre de desafios ou subversão da comunidade de fé.
Não é possível nem desejável que os fiéis se afastem
das condições políticas de sua época e vivam apenas em
alcgria "sob o poder de Deus". Esporadicamente, há uma
tentativa de formar comunidades assim. Até hoje ncnhuma
deu certo, quer política quer espiritual. A realídadc inevi-
tável é que, além de vivcrmos sob o domínio dc Deus, es-
tamos sob a autoridade de rei, ditador, primeiro ministro,
imperador, presidentc, gcneral, que tem uma cquipe de con-
selheíros, tribunais, scnados, exércitos e burocracias, que
tratam da lei e da ordem, rcalizam o censo e ministram a
justiça.
Alguns dirigentes alegam ter acesso direto à mente dc
Deus e scr imagem exata dEle no govcrno. Outros reconhe-
cem o domínio divino de modo geral, mas acrcditam serem
eles os responsávcis pelo que acontece aqui, nesta naçào. Al-
guns são tão ousados que negam por completo a soberania de
Deus e dão a palavra final em todos os assuntos. O mais co-
mum é mera indiferença para com o governo de Deus: acrc-
ditamos nEle como Salvador c consolador, mas as questõcs

68
Governo de Deus

de govcrno - ir à gucrra, recolher impostos, controlar os


negócios e assinar tratados - devem estar muito distantes da
mente dEle, que já tem trabalho suficiente regendo o coral de
anjos e fazendo os registros no livro da vida.
Enquanto isso, uma convicção secreta persiste, teimo-
sa: "O &NfIOR reina". Bem aqui. O trono dElc é a Terra,
cssa coisa em que pisamos todos os dias. Além do mais,
o governo dEle não tolera oposição: "não se abalará". Se-
gue-se que qualquer líder tcrreno obcecado com o exercí-
cio do podcr sem interferência - seja para manter o ego
sem contrariedades, a familia na linha, a cultura intacta ou
o governo sob controle - enfrentará uma série de problemas
quando as pcssoas se pusercm a orar. Isso é verdade. Os
séculos forneceram evidência mais do que ampla do que
acontece: na oração, disccrnimos e acatamos um governo
melhor. Quando esse governo melhor entra em conflito com
o da nação, sociedade, família ou ego, os que oram transfe-
rem sua lealdade. Alguns chegam até a cruz - como Jesus,
literalmente, ou Paulo, de fonna metafórica.
Mas os sacrificios são tiros pela culatra. Em lugar
de destruir o governo de Deus, eles o estabelecem. Esse
povo que ora tcm uma longa história de sofrer incompreen-
são familiar, prisão pclo governo, demissão pelos patrões,
desprczo por parte da cultura. Contudo, parece não ligar
muito, pclo menos não a ponto de abandonar sua lcaldadc.
Seu soberano é melhor, mais sábio e bondoso e todos estão
felizes sob o domínio dEle.

Dilúvios de desgoverno
Precisamos descobrir como cles chegam a tais con-
vicções e lealdades e como as mantêm. Longos períodos da

69
Onde o seu tesouro está

história parecem carecer de qualquer sinal do governo di-


vino. Há passagens de nossa experiência pessoal que pare-
cem apenas eonfusão c desordem. Se quisermos afirmar e
obedecer ao domínio de Deus, temos que orar inclusive nas
experiências freqüentes e devastadoras de "desgoverno".

As águas se levantaram, SE~HOR,


as águas levantaram a voz;
as águas levantaram seu bramido.

De nada adianta a terra estabelecida se as águas cor-


rem desenfreadas pela superfície firme. De nada vale o
trono de Deus seguro se águas vio1cntas e implacáveis
levam tudo que está solto, deixando a terra limpa, mas
nua. Não me traz consolo saber que o solo sob meus pés
é sólido se não consigo ficar em pé por causa das ondas
que se abatem sobre mim. Quando a tempestade chega, a
Terra continua sólida como sempre foi, mas o resto todo
se abala. O firmamento também continua em ordem e dig-
no de confiança, mas tudo que existe entre céu e Terra é
levado, sem qualquer cerimônia, para a catástrofe.
Na história humana, as tempestades sempre chegam
às manchetes. A Terra firme não precisa de confirmação.
Está lá. Silenciosa. Sólida. Mas as águas levantam a voz,
o rugido. As forças de destruição e desintegração, as ener-
gias de dor e devastação, batem, forçam e gritam. Anda-
mos vários dias, e até anos, sobre a Terra sem dar a menor
atenção à solidez confiável e estóica, mas as tempestades
não permitem essa tàlta de atenção. Podemos passar o dia
inteiro sem notar que estamos secos, mas se formos atingi-
dos pela tempestade teremos a consciência profunda de
que ficamos molhados. Sendo a secura nosso estado natu-

70
Governo de Deus

ral, nós a temos como certa. Ficar molhado é uma situação


desconhecida e entramos em pânico.
É impressionante a fonna tremenda das inundações.
Só os peixes que nadam nas águas e os pássaros que voam
acima delas escapam ao pavor. A água devasta a terra. Ar-
ranca árvores enormes pela raiz. Revira rochas. A terra, tão
sólida, fica cheia de sulcos, tem seu contorno alterado, so-
fre com a erosão.
Além de ser iniciação à violência, inundação é me-
táfora para anarquia. As águas têm sua contraparte na i-
nundação de paixão, cuja caracteristica notória é o descon-
trole. O caos é inerente à luxúria e à cobiça. A agressividade
humana remonta à Antigüidade e requer intervenção. Por
mais que nos desagrade alguém nos dizer o que devemos
fazer, tememos muito mais uma sociedade na qual cada
um faz o que é certo a seus próprios olhos (Juizes 21.25),
decadência que aconteceu pelo menos uma vez na história
dos hebreus e não poucas na história mundial.
Mas sempre houve a retomada do governo. Caso
contrário, não haveria história humana. Todo governo é,
de uma fonna ou de outra, resposta à inundação. Se não
existissem inundações, não existiria governo. Elc se deve
à anarquia. Se tudo e todos convivessem em perfeita har-
monia, o governo seria tão dispensável quando o apêndice
em nosso orgamsmo.
Inundações encontram analogia em mercados, cam-
pos de batalha, familias e playgrounds: as regras foram es-
tabelecidas, todos agem como esperado, estão se divertindo
e, de repente, alguém se enche de fúria e a busca pacifica
se desintegra em escaramuça de socos, gritos e pilhagem.
Queremos saber se existe garantia contra isso, se há uma

71
Onde o seu tesouro está

fonna de acabar com as inundações destrutivas. Na Tcrra,


construímos reprcsas c diques, na sociedade, formamos
governos, equipamos a polícia e promulgamos leis. O grau
de sucesso varia. No tempo de Noé, o dilúvio foi a resposta
na mesma moeda à inundação de violência que assolava a
Terra: A terra estava ... cheia de violência (Gênesis 6.11,
13), e então, as águas do Dilúvio vieram sobre a terra
(7.10). Mas isso não aconteccrá mais. A violência não scrá
mais tratada com violência: nunca mais haverá dilúvio
para destruir a terra (9.11).

Mais poderoso do que o estrondo das águas impetuosas,


mais poderoso do que as ondas do mar é o SE'\JHOR nas
alturas. (Salmo 93.4)*

A soberania de Dcus faz frente ao dilúvio anárquico.


As águas levantam a voz três vczes. O poder dc Deus se
mostra soberano também três vezes. Esses pares de trios
ressoam pcla memória bíblica. Três palavras sobcranas
confrontaram e derrotaram os três testes que o diabo fez
para Jesus (Mateus 4.1-11). Três afinnações de amor con-
trabalançaram as três negaçõcs de Pedro (João 2 1.15-19).
A tríplice confinnação de quc "minha graça é suficiente"
(2 Coríntios 12.R-9) se coloca diante dos três protestos de
Paulo contra seu "espinho". Lucas narra três vezes a con-
versão de Paulo, indo contra as três vezes que falou sobre
as atividades terroristas dcle na igreja primitiva.'
*. A tradução em língua inglesa desse versículo é, literalmente: "Mais
poderoso do que o estrondo de muitas águas, mais poderoso do que as ondas
do mar, o SENHOR nas alturas é poderoso!", A palavra "poderoso" aparece
três vezes, e a partir disso o autor estabelece seu raciocínio. Esse fato deve
estar na mente do leitor para entender o trecho que se segue. (01. da T.)
5. Atos 8.1, 3: 9.1: compare com 9.1-19: 22.4-16: 26.9-18.

72
Governo de Deus

Em todos esses eventos, a soberania de Deus não foi


meramente afirmada, foi sentida. O governo dEle não é um
dogma que se deduz a partir de conceitos de Sua onipotên-
cia, é testemunho que articula a experiência de gente so-
frida e ferida que prosseguiu para viver o governo dEle
como "mais poderoso".
Esse testemunho tem implicações imensas, pois se
Deus não for soberano eu vivo, de fato, no meio do caos.
O acaso e a sorte permeiam o universo. Por outro lado, se
Ele governa, há uma ordem fundamental. Nenhum aci-
dente é mero acaso. Nenhum caos é definitivo. Nenhum
conflito é essencial. Quaisquer que sejam as vontades,
poderes e influências sobre mim e à minha volta, há algo
que é primeiro e último, inicial e final: o Senhor é mais
poderoso. A vida não é uma empreitada aleatória dirigida
por um grupo que se reúne a cada quinze dias, com cada
membro sujeito a pressões intensas de interesses especi-
ais, inclinado a ter favoritos entre os amigos e os parentes.
Há projeto e ordem no mundo. Posso planejar, ter espe-
rança e acreditar. A confusão e o conflito que tumultuam
a história estão limitados por clareza e paz mais amplas.
As reverberações dessa oração alcançam o batismo
de Jesus. Os primeiros cristãos identificavam continui-
dade entre as águas de julgamento, de onde Noé foi salvo
e abençoado com novo começo, e as do batismo, de onde
Jesus emergiu para nossa salvação e para estabelecer nova
aliança. A descida do Espirito Santo em forma de pomba
quando ele saiu da água era associada com a evidência
trazida pela pomba do surgimento de vida após o Dilúvio.
A bênção de Deus a Noé, que incluiu ampla delegação de
autoridade, encontra paralelo na voz celestial dirigida a

73
Onde o seu tesouro está

Jesus: Este é o meu Filho amado (Mateus 3.17). A frase


é citação do Salmo 2, e, assim, não é expressão de afeto,
mas declaração de autoridade: o Messias emerge do abis-
mo de morte e governa sobre o caos. "Mais poderoso do
que as ondas do mar é o SENHOR nas alturas."

Força não é atributo de Deus


Como esse governo de Deus, mais poderoso do que
as ondas do mar, se torna realidade? Como entra em nos-
sa história? Como acontece em nossa vida? Três linhas
descrevem:

Os teus mandamentos permanecem firmes e fiéis; a san-


tidade, SE""()", é o ornamento perpétuo da tua casa.

Teus mandamentos permanecem firnles e fiéis. Do-


minam as ondas. A violência do mar não é enfrentada com
violência dos céus. "A força não é atributo de Deus", disse
Inácio de Antioquia. Afirmação espantosa, mas totalmente
bíblica. Deus governa neste mundo por palavras e não
músculos, por decretos e não exércitos, fala de criação c
não de coerção. Esses decretos, que podem ser tão ignora-
dos e distorcidos, são repetidos era após era por profetas,
sacerdotes, reis, sábios, apóstolos e discípulos. O governo
se mantém através dos decretos.
Há urgência em fazer frente à violência mundial que
desafia Deus nos próprios termos dela - acabar com ela,
enfrentá-Ia com poder puro e simples. "SenhOl; queres
que façamos cairfógo do céu para destruí-los? " (Lucas
9.54) Mas ninguém forçará Deus a agir contra seu caráter.
A Palavra dEle governa: os decretos dele permanecem
firmes. Só eles, nada mais. A aparentemente frágil Pala-

74
Governo de Deus

vra de Deus se coloca contra as ações arrogantes e in-


timidadoras do mundo. Violência e arrogância diminuem
e se desgastam, a palavra permanece firme como sem-
pre. Firme (ne'emnu) foi traduzida, em vários contextos,
como "fiel", "imutável", "fundamental". Outra forma da
Palavra conclui e confirma as orações: amém, sim, firme
e confirmado, muito certo.
"Teus mandamentos" coloca para funcionar a e-
nergia - da providência e da rcdençâo - que finalmente
vence, superando os espasmos de violência que che-
gam às manchetes. Poucas vezes os jornalistas e his-
toriadores reparam nesses mandamentos, mas há sem-
pre uns poucos observadores, pessoas contemplativas
que permanecem atentas. Na mesma Jerusalém em que
o Salmo 93 foi orado em devoção e desafio por tantos
séculos, Amos Oz, um novelista moderno de Israel,
cria a personagem Hanna, para testemunhar a ener-
gia soberana que até hoje opera na cidade, sem que a
violência internacional e o secularismo banal repa-
rem ou comentem. Um dia, ela está na janela da co-
zinha, olhando para fora:

Havia, pendurado no ramo de uma figueira que crescia


em nosso jardim, um caldeirào enferrujado. Fazia anos
que estava lá. Talvez um vizinho, morto há muito tempo,
o tenha jogado pela janela do apartamento superior c cle
tcnha se agarrado nos galhos. Já estava lá. coberto de
ferrugem, perto da janela de nossa cozinha, quando nos
mudamos. Quatro, cinco anos. Nem os fortes ventos do
inverno haviam conseguido derrubá-lo. No entanto, no
Dia de Ano Novo, eu estava na pia da cozinha quando vi,
com lTICUS próprios olhos, o momento em que ele caiu.
Nenhuma brisa moveu o ar, nenhum gato, nenhum pás-
saro tocou nos galhos. Mas forças poderosas entraram

75
Onde o seu tesouro está

em ação naquele instante. O metal CnfelTIljado se desin-


tegrou e o caldeirão caiu no chão. tàzendo muito barulho.
O que quero dizer é que durante todos aqueles anos eu
observei o repouso completo de um objeto no qual acon-
tecia um processo oculto, durante todos aqueles anos. 6

Não longe dali, a algumas centenas de metros, o


Salmo 93 havia sido orado nas celebrações do Dia de Ano
Novo na entronização do Senhor, aquele cujos "manda-
mentos permanecem firmes". Forças poderosas agiam em
"todos aqueles anos". E continuam.
Uma segunda linha descreve como se entende o go-
verno de Deus: a santidade ... é o ornamento ... da tua casa.
"É o ornamento" éuma tradução fraca para na' wah, palavra
em que há uma qualidade pulsante em som e sentido: "tor-
nar adorável, adornar de forma vistosa". Na'wah é quie-
to c forte como o pulso. O livro bíblico que mais uti-
liza o termo é Cantares de Salomão,' no contexto do
diálogo de apaixonados. No amor erótico, duas vontades
poderosas e soberanas se tocam c reagem. Se uma força
a outra, surge o horror do estupro. Se uma se submete à
outra, nasce o enfado da aquiescência serviL Só quan-
do as duas vontades são desenvolvidas e expressas por
completo, em relacionamento rcsponsivo, nós celebra-
mos a beleza.
É compreensivel essa palavra ocorrer com tanta fre-
qüência nos diálogos que celebram a intimidade do amor

6. Amos Oz. Alr Alichael (Nova Iorque: Altrcd A. Knopt~ 1972), pág.
115.
7. Como nome em Cantares \.10 c como verbo em 1.5,2.14,4.3 c 6.4.

76
Governo de Deus

humano, mas é surpresa encontrá-Ia no Salmo 93, que


comemora o governo divino no mundo descontrolado. Es-
peramos encontrar imagens de encanto e beleza em músi-
cas de amor, mas acreditamos que o governo requer um
contexto mais frio, marcado por severidade e eficiência.
Mas Deus não abandona Seu caráter essencial quan-
do governa. Imutável em Seu amor e Sua profunda san-
tidade, Ele é Ele mesmo em Seu governo. Não deixa de
lado as vestes de amor santo quando exerce Seu dominio
sobre a lama da história humana. Os meios do governo de
Deus são consistentes com Seus fins: santidade, a beleza
gradual, paciente e penetrante de Seu domínio em nosso
mundo secularizado, violado e profanado.
SENJlOR ... perpétuo. A terceira linha afinna o domínio
no tempo. "À medida que os dias se estendem pela história"
capta o tom do tenno hebraico "perpétuo", I' orek yamim.
Não se trata de um governo eterno no Céu, alheio à história
humana. É o governo de Deus surgindo no calendário. A
oração não é a espera paciente do fim da história, quando o
governo se efetivará, mas é a participação paciente no go-
verno atual. O dominio de Deus não está sendo preservado
para começar em uma data futura, após séculos de governos
humanos fàzerem o melhor (ou o pior). Deus governa hoje.
Ele não depende de reconhecimento público.
Saibam ou não, homens e mulheres vivem sob o
governo de Deus. Alguns em rebeldia, por desafio ou ig-
norância. Outros em obediência relutante ou dedicada.
Mas ninguém escapa. O governo divino é a premissa de
nossa existência. Não existem dias em que Ele não opera.
A semana não se divide em um dia do Senhor, quando re-
conhecemos Seu governo, e seis dias humanos em que in-

77
Onde o seu tesouro está

dústrias, bolsas de valores, legislaturas, personalidades da


midia e juntas militares assumem o controle e governam
com mentiras, armas e dinheiro. O governo também não
se restringe a intervenções ocasionais que mais tarde são
lembradas como grandcs eventos históricos - êxodo, exi-
lio, Natal e Páscoa.
Claro que nada disso é óbvio. Os mandamentos do
governo são inaudiveis aos ouvidos incrédulos, sua beleza,
invisivel aos olhos céticos e sua atualidade não cstá apa-
rente para mentes ansiosas e corpos feridos. Mas muitas
realidades grandes e importantcs não são óbvias: a cstrutura
atômica da matéria, por exemp10, ou as propriedades da luz
c as complexidades da linguagem. Ainda assim, mesmo
quando entendemos errado, ou não entendemos, continua-
mos a segurar objetos, cnxergar formas e falar palavras. De
modo semelhante, nem a ignorância nem a indifercnça di-
minuem o governo dc Deus. Dia após dia "O SENHOR reina".
Levando em conta paixõcs rebeldes, temperamentos mali-
ciosos e vontades preguiçosas de milhões dc pessoas, junto
com boas intenções, desorientação desamparada e aventu-
ras fora de hora de outros milhões - para nâo falar do amor
disciplinado, obediência purificada e serviço sacrificial de
ainda outros milhõcs - nosso Soberano usa para agir tudo
que é material, pessoal c político. Usa tudo para moldar a
existência. Não parece ter pressa, mas a oração discernc que
lentidão não é sinônimo de indolência nem de negligência.
No final a vontade do soberano é feita.
Agora a simetria está completa: três linhas de violên-
cia anárquica contrabalançadas por três linhas do govcrno
mais poderoso do Senhor, exposto em três linhas da forma
como ele é administrado.

78
Governo de Deus

Egotismo escondido
Assim, a oração é uma atividade subversiva. Envolve
um ato mais ou menos aberto de desafio contra qualquer ale-
gação de perfeição do regime corrente. "Egotismo escon-
dido", afirma Herbert Butterfield, "talvez seja, em todo o
planeta, a maior causa de conflitos e problemas políticos."
x Professor de história moderna na Universidade de Cam-
bridge, Butterfield dedicou sua carreira a pesquisar o pro-
cesso histórico que levou a civilização à situação presente.
Mas, para ele, o "egotismo escondido" é a maior influência.
Se ele está com a razão, o chamado para orar, ato que revela
o egotismo c começa a tomar providências contra ele, é um
remédio excelente para os problemas políticos.
Deus governa. A oração desenvolve em nós a percep-
ção disso: intenções, caminhos, estratégias e mandamentos
dEle. A afirmação clara de Jesus - "Quem ama seu pai ou
sua mãe mais do que a mim não é digno de mim" (Ma-
teus 10.37) - toma relativas todas as outras autoridades:
familiar, jurídica, cultural ou governamental. Ao fazer essa
oração, mudança interessante acontece em nós. Ao passo
que a lealdade deixa nação, clube, raça ou qualquer outra
filiação, a verdadeira capacidade de estabelecer a comuni-
dade cresce. Muitas vezes o patriotismo não passa de ego-
tismo insuflado. A oração reduz a estridência dos protestos
políticos mas aumenta nossa habilidade como cidadãos
- compromisso, envolvimento, valores, paixão pela justiça
social. Ao orar, tomamos consciência da grande soberania
de Deus. Descobrimos ainda inclinação cada vez maior á
obediência. Devagar, mas com certeza, nenhuma cultura,

s. Herbert Butterfield, Writings Of1 Chrislianit}' and Histol)-' (Nova


Iorque: Oxford Universily Press, 1979). pág. 57.

79
Onde o seu tesouro está

iàmília, governo, emprego, nem mesmo o ego tirano, pode


se colocar contra o poder silencioso e a influência criadora
da soberania de Deus. Todo laço natural de familia e raça,
todo compromisso de vontade com pessoas e nações se
subordina, por fim, ao governo de Deus.

80
Capítulo 5
Ajudado por Deus

SALMO 46

Deus é o nosso refugio e a nossa fortaleza,


auxílio sempre presente na adversidade.
Por isso não temeremos, ainda que a terra trema
e os montes ajimdem no coração do mar,
ainda que estrondem as suas águas turbulentas
e os montes sejam sacudidos pela suajuria.

o SErillOR dos Exércitos está conosco;


o Deus de Jacó é a nossa torre segura.

Há um rio cujos canais alegram a cidade de Deus,


o Santo Lugar onde habita o Altíssimo.
Deus nela está! Não será abalada!
Deus vem em seu auxílio desde o romper da manhã.
Nações se agitam, reinos se abalam;
ele ergue a voz, e a terra se derrete.

o SENHOR dos Exércítos está conosco;


o Deus de Jacó é a nossa torre segura.

Venham! Vejam as obras do SEKHOR,


seus/eitos estarrecedores na terra.
Ele dáfim às guerras até os confins da terra;
quebra o arco e despedaça a lança;
destrói os escudos com fogo.
Onde o seu tesouro está

"Parem de lutar! Saibam que eu sou Deus'


Serei exaltado entre as nações,
serei exaltado na terra. "

o Sr.NHOR dos Exércitos está conosco;


o Deus de Jacó é a nossa torre segura.

82
Na vida Cristà, nada, ahsolutamente nada, pode ser
comprado em lojas de artigos faça você mesmo,
HARRY BLAMIRES I

cnho um amigo, pastor dc uma igreja em Balti-


T more, que foi assaltado numa noite de verão, en-
quanto estava passeando com o cachorro. O ladrão pegou
o relógio e a carteira dele e então, só para mostrar quem
estava no comando, jogou meu amigo no chão e deu vários
chutes nas costelas dele. Encontrei-o alguns dias depois.
Estava ferido, sentido dor e emocionalmente abalado pela
violência que sofrera. Disse-me quc estava animado com
uma viagem que faria na semana seguinte, para o estado
do Wyoming. Ia passar um mês no Parque Nacional Grand
Teton, bem longe da cidade dominada pelo crime.
Voltei a me encontrar com ele seis semanas depois.
Estava com o braço na tipóia. Perguntei o que havia
acontecido e ele contou que estava andando à cavalo nas
Montanhas Rochosas em Wyoming. A região, de alti-
tude elevada, é imaculada e maravilhosa. É impossível
abrigar pensamentos negativos num local tão maravi-
lhoso. Mais impossível ainda é agir com perversidade. O
criminoso mais próximo se encontra a pelo menos ccm
quilômetros de distância. De repente, o cavalo empinou,
assustado por uma sombra, e meu amigo caiu, contorcen-
do-se de dor pelo braço quebrado. Ele comentou:
- É mais seguro andar à noite nas ruas de Baltimore do
que de dia nas montanhas de Wyoming - a natureza intocada
tem vintc maneiras diferentes de matar uma pessoa.

1. Harry BlamÍres. Tyranny 01" Time (Nova Iorque: Morehousc-Bar-


low Co.. 1965), púg. 98.

83
Onde o seu tesouro está

Acordamos todos os dias para um mundo violento.


Há destruição por toda parte. As pessoas gritam e se atacam
mutuamente. É arriscado sair de casa à noite. Mas também
é perigoso percorrer trilhas nas montanhas durante o dia.
O mundo vai mal: os recursos são usados em orgias de
glutonaria e a beleza tem sido devastada em uma escala
sem precedentes. As pessoas sofrem torturas, maldições e
desprezo em uma epidemia de desumanização. Estatisti-
cas são compiladas c divulgadas a cada ano. Os números
são estarrecedores: assassinatos, estupros, assaltos, roubos,
abuso infantil, abuso conjugal, terrorismo político, guerra.
As crueldades que as pessoas criam para infligir às outras
superam nossa capacidade de suportar. Vendo o que as pes-
soas fazem umas com as outras e com a terra, sentimos von-
tade de ir morar nas montanhas. Mas, logo que chegamos
lá, descobrimos outro tipo de violência: um vulcão entra em
erupção e destrói a montanha, um rio transborda e inunda
a fazenda, um terremoto abre uma fenda na terra e vira de
cabeça para baixo e engole tudo que havia na superfície.
A Terra é um local violento. Tanto na cidade quanto
no campo. Quando as pessoas se reúnem e quando ficam
isoladas. Queremos vida segura e confortável. Tudo sob
controle. Desejamos excluir o mal, o perigo e o desastre.
Colocamos cadeado na porta e cerca em volta do terreno.
Chamamos policiais para vigiar a rua. Construímos arse-
nais de armas e os distribuímos por todo o mundo. E, com
todo esse esforço, a violência não diminui em nada.

Orando no meio da violência


Não se pode escapar da violência nem acabar com
ela usando a mesma anna. Existe algo que podemos fazer,

84
Ajudado por Deus

além de contê-la o melhor que pudermos, e suportá-la es-


toicamente? Sim, podemos orar. Vozes respeitadas e sábias
de todos os tempos dizem que a oração é o único ato que
faz diferença.
O Salmo 46 é uma dessas vozes, oração no meio da
violência para agir diante dos problemas. É a correção de
que precisamos desesperadamente para abandonar a práti-
ca indevida, embora generalizada, de usar a oração como
fuga. Quando o mundo distribui pancadas e humilhações
com liberalidade demais, tentamos usar a prece como um
mundo isolado de consolo onde desfrutamos da compreen-
são divina. Comparado à oração bíblica, e, em particular,
ao Salmo 46, isso é visto como um sintoma de doença do
espírito.
A oração saudável não resulta em afastamento, mas
também não leva ao confronto. Não é tanto uma forma de
lidar com o que está errado no mundo ou em mim mesmo.
É um caminho para lidar com Deus no mundo e em mim.
O mal (sob a forma de violência, no Salmo 46) é cncarado
dc maneira indireta: absorvido nas formas e cerimônias de
oração. Orar liberta do ataque da brutalidade por nos co-
locar na energia da graça. Nesse proccsso, a violência sc
transforma.
Por todos os séculos, em todos os cantos do mundo,
sempre houvc gente quc ora e quc continua a causar um
impacto incalculável. O fato de jornalistas não divulgarem
isso não diminui a força da pacificação persistente. Essa
gente leva a violência a sério, mas a mantém sob perspcc-
tiva. Deus requer quc cu dê mais atenção a Ele do que à
violência. Pensando nEle, vejo a cidade tomando forma no
meio da catástrofe.

85
Onde o seu tesouro está

Violência externa e interna


O cenário por trás do Salmo 46 é violento. Orá-lo
nos coloca em contato com mais violência que o espe-
rado. Aparecem três conjuntos de imagens. Primeiro,
violência na natureza: a terra abre suas mandíbulas em
um terremoto,2 vulcões brotam no oceano, inundações
espalham destruição (v.l a 3). O conjunto de imagens a
seguir se refere à violência política: nações iradas, reinos
que se desintegram, conquistas sólidas de governos que
se desfazem como figuras de cera sob o sol quente (v.6).
O terceiro grupo trata da violência militar: guerras, ar-
cos, lanças, carruagens - arsenal assustador usado para
ferir e matar, conquistar fracos c escravizar pobres (v.9).
É fácil identificar a ligação com fatos contemporâneos:
terremotos na Turquia, fome no sul do Saara, enchen-
tes no Mississippi, guerras no Oriente Médio. Estamos
destruindo os recursos do planeta. Abortando os fetos.
Violência externa, violência interna. Mandamos para a
cadeia os que descarregam a hostilidade nos semelhantes
e internamos em hospicios os que se voltam contra eles
mesmos. Quanto aos que se voltam contra outras nações,
colocamos medalhas no peito delcs. J
Quem pensa que a oração é isenta de conflitos está
mal informado. Quem acredita que a imersão nos Salmos
isolará das notícias corrosivas de cada dia está enganado.

2. Dahood traduziu assim o versículo 3: "nào temeremos as mandíbu-


las do mundo inferior", Tlle Psalms, 1:278.
3. Estou simplificando demais. Há muitos em prisões, hospícios e exér-
citos que não chegaram lá por motivos violentos, e há cristàos honrados que
oram em todos esses lugares. Mas de toda fonna, cadeias, asilos c exércitos
representam as locações visíveis da violência organizada em nosso tempo.

86
Ajudado por Deus

Quem acha que olhar para Deus resulta em paz jamais per-
turbada, e alegria contínua, a ponto de não haver mais es-
paço na vida para a percepção da barbaridade, está errado.
A natureza é violenta. As pessoas também. Ler os Salmos é
uma experiência chocante. Orá-los é ato de coragem.
Mas, embora as imagens do Salmo 46 sejam violen-
tas, a violência não é o assunto principal. Deus é o ponto
central. Não importa as circunstâncias que cercam a ora-
ção, ela se relaciona a Deus. Por mais desafio e desolação
que exista no ambiente em que vivemos, a oração encon-
tra seu caminho até o Senhor, como se houvesse um radar
embutido nela. Nada pode ser mais real do que Deus, e a
oração é a ação fundamental, na qual cultivamos a cons-
ciência dessa realidade, esquecida no meio de tanto som e
tanta luz.

o SENHOR dos Exércitos está conosco;


o Deus de Jacó é a nossa torre segura.

Esse é o refrão da prece, as duas linhas que repre-


sentam sístole e diástole do ritmo interior. As duas linhas
se repetem após cada uma das três partes de composição
simétrica - depois dos versículos 3, 6 e 10. 4
O nome de Deus foi escolhido aqui com grande
cuidado. SENHOR dos Exércitos apresenta uma imagem:
imensos batalhões de anjos, ligeiros e valentes, obede-

4. Falta o refrão após a primeira estrofe nos manuscritos mais antigos,


de modo que a maioria das traduções o omite também. Contudo, é opinião
generalizada que a ausência se deve a um erro de cópia, de modo que fiz a
inclusão. Veja Arthur Weiser. The Psalms (Philadelphia: Westminstcr. 1962).
págs. 368-369.

87
Onde o seu tesouro está

cendo ao comando divino. Dcus de Jacó traz à lembrança


uma história: o ser persistcnte à margem do rio Jaboque,
que lutou com Jacó até ele entrar na intimidade da bên-
ção. Deus poderoso, "SENHOR dos Exércitos", e pessoal,
"Deus de Jacó". Contudo, há uma inversão surpreendente
na forma como esses nomes se conectam às nossas expcc-
tativas. Induzimos que a metáfora militar se associará à
defesa, "torre segura", e que a pessoal virá ligada à inti-
midade, "conosco". Mas os termos foram trocados deli-
bcradamente, de modo que encontramos intimidade eom
o guerreiro e defcsa no amigo da família. O Deus podero-
so (SENHOR dos Exércitos) trava amizade (está conosco) e
o pessoal (Deus de Jacó) protege (torre segura).
Em qualquer caso, Deus é só um. A mudança dos ter-
mos impede expectativas estereotipadas sobre o que Ele será
e fará. O clichê é um grande inimigo da oração. Através da
repetição religiosa, as particularidades da fé se deterioram
em generalidades. Mas agora nossas percepções e, portanto,
nossas expectativas, voltaram a ser afiadas. Mesmo em uma
sociedade destrutiva, somos tratados com dignidade (não so-
mos violados). Na sociedade despersonalizada, encontramos
relacionamcnto (não estamos isolados). Não somos objctos
usados c ignorados. Somos valorizados, protegidos, respeita-
dos, amados, ouvidos e alguém fala conosco. Desfrutamos dc
scgurança e intimidade. E o que recebemos podcmos ofcrecer
a outros. O SENlfOR dos Exércitos está conosco; o Deus de
Jacó é a nossa torre segura.

A civilização que conhecemos


Há mais. A afinnação tripla, de um Deus poderoso
e pessoal, cstá ligada a uma imagem encorajadora da ora-

88
Ajudado por Deus

ção, que compreende o significado desta afirmação em um


mundo desintegrado pela violência. O versículo 4 apresen-
ta a imagem:

Há um rio cujos canais alegram a cidade de Deus,


OSanto Lugar onde habita o Altissimo.
Deus nela está' Não será abalada'
Deus vem em seu auxilio desde o romper da manhã.

Em contraste com a violência difundida na atmos-


fera em que oramos, a cidade de Deus é apresentada
como fato. Cidade é um lugar civilizado, onde há corte-
sia e confiança. Sabemos que não é sempre assim, mas
é o que esperamos (o que chega às noticias são as ex-
ceções). A cidade de Deus não é projeto para o futuro,
nem aspiração, nem promessa que conseguiremos reali-
zar se promulgarmos as leis adequadas. Ela existe. Ago-
ra. Deus habita nela, neste mundo. Ele não é um turista
que de vez em quando visita nossas praias. Estabeleceu
Sua morada aqui, não como pessoa que vem acampar,
mas como cidadão do lugar: há uma cidade de Deus. Ela
se localiza no mesmo mundo em que há violência, o que
significa que não preeisamos sair à procura de Deus em
um vale tranqüilo e longínquo.
Agostinho usou essa imagem da cidade de Deus
para desenvolver sua exposição sobre a presença e a
ação divinas no meio da presença e ação humanas, a
história dos caminhos de Deus permeando a dos nossos.
Ele escreveu The Cily o/ God (A Cidade de Deus) no
turbi lhão de uma das fases mais violentas da história,
quando Alarico e os bandos de bárbaros vinham do
norte e devastavam a civilização romana. Não se trata

89
Onde o seu tesouro está

de teologia de escapismo, mas de algo mais semelhante


a jornalismo de oração.
A cidade de Deus que Agostinho descreveu não se
identifica com política, legislação e judiciário que os jor-
nalistas narram e os eruditos estudam. Mas seria um grande
erro coneluir que ela é invisível, uma realidade "espiritual"
no meio da materialidade. É visível, histórica e real. 5 É
verdade que muitos não a enxergam, mas não por ela ser
invisível, mas apenas por não olharem na direção correta
ou não terem os olhos treinados para ver essas ações c essa
presença. O conceito de Agostinho foi sistematicamente
ignorado durante séculos, mas não foi refutado, e é im-
provável que venha a ser, já que foi desenvolvido a partir
da oração sempre confirmada do Salmo 46.
"Há um rio" que corre pela cidade. No mundo an-
tigo, as cidades importantes foram edificadas às margens
de grandes rios - Nilo, Tigre, Eufrates, Tibre. Do jardim
do Éden fluiam dois rios. E um outro cruzará a Nova Je-
rusalém. Rios significam bebida, limpeza e transporte. "Há
um rio" significa que a habitaçào de Deus neste mundo não
é um cortiço, nem um campo de refugiados arrumado às
pressas com caixas e barris. É um lugar bem suprido por
um rio c, portanto, agradável.
A justaposição de rio e cidade requer que entendamos
a habitação de Deus entre nós de modo abrangente - tanto
a que é criada pela palavra dEle quanto a que é construída
pelas ferramentas dos pedreiros. Não fica mais fácil perce-
ber a presença e a açào de Deus em nosso meío se banirmos
5. Charles Norris Cochrane apresenta uma exposição brilhante so-
bre Agostinho nessas questões cm Chrisliani(v and C/assical CU/fure (Nova
Iorque: Oxford University Prcss. 1957). especialmente o capitulo 12. "Di-
vine Neccssity and Human History"'. págs. 456 e seguintes.

90
Ajudado por Deus

o barulho da cidade para que apenas a criação intocada (o


rio) pennaneça. Nem adianta eliminar os elementos natu-
rais da água e do vento para que restem apenas as ruas e
estruturas planejadas de revelação (a cidade). A habitação
de Deus inclui tudo: mistério, esclarecimento, natureza,
história, simples, complexo, criação e reino.
No contexto da violência aterrorizante e inexorável
na natureza e nas nações, surge uma afirmação espantosa
sobre essa cidade-rio: "não será abalada". O verbo foi
usado antes, no versículo 2: os montes ajitndem no co-
ração do mar. Voltará a aparecer no versículo 6: reinos
se abalam. Aqui, foi aplicado à cidade que não será aba-
lada (v.5). A palavra vem de vocabulário relacionado a
catástrofes.' Foi usada na literatura antiga de Ugarit em
um sentido apocalíptico, indicando a destruição total no
dia do Juízo Final. Montanhas desabam, reinos chegam
ao fim, mas a cidade permanece. A criação não é segura,
nem a civilização, mas Deus é.
A cidade de Deus é segura, não por scr espaço bem
defendido e inviolável, mas porque é a esfera da ação divina
característica, seu auxílio. Essa palavra figura no versículo
I: auxílio sempre presente. Dahood traduz como "auxílio
desde tempos antigos", interpretando "sempre presente"
como "que sempre esteve presente" - com registro bem
antigo de sua presença. Em outras palavras, esse socorro
tem história longa, com séculos de documentação. Deus
não é um remédio inventado às pressas, mas sim auxílio
verdadeiro e testado, muito bem provado. O verbo volta
a ser usado no versículo 5: Deus vem em seu auxilio des-
de o romper da manhã. A Nova Tradução na Linguagem

6. Dahood, The Psalms, 1:279, 2X 1.

91
Onde o seu tesouro está

de Hoje traz uma expressão muito mais literal c viva: "de


manhã bem ccdo". Não há ncccssidade de nos arrastarmos
por metadc do dia, ou por metade da vida, antes que Deus
apareça, esfregando os olhos e pcrguntando se precisa-
mos que Ele faça alguma coisa por nós. Ele sabc como é o
mundo em que vivcmos e conhece nossa vulnerabilidadc,
pois ele mesmo habitou aqui (João I: 14). Ele prevê nossas
necessidades e faz planos com anteccdência. Está sempre
pronto a ajudar "de manhã bem ccdo".
Rccebemos auxílio, não por cuidarmos de nós mes-
mos, mas porque alguém cuida de nós; não por nos colo-
cannos por trás de muros de indiferença, mas por arris-
carmos a vida no mundo com a ajuda de Deus; não por
rcduzir nossa vida às dimcnsõcs triviais de um projcto dc
auto-ajuda, mas por nos aventurarmos na vastidão desco-
nhecida e ainda não testada da graça. A grande afirmação,
o maravilhoso discernimento da vida dc fé é que o auxilio
é ofcrccido o tempo todo.
A reclamação "orei e clamci por auxílio, mas nin-
guém veio me ajudar" tcm como resposta "Você rcccbeu
auxílio. Ele estava lá, bem à mão. Você talvez estivesse
procurando alguma coisa diferente, mas Deus trouxe o tipo
de socorro que traria cura à sua vida, a faria pcrfeita para
a eternidade. E ele não transformaria apenas sua vida, mas
também nações, socicdadc e cultura". Em lugar dc pcrgun-
tar por que o socorro não chegou, aqucle que ora aprende a
olhar com cuidado para o quc sc passa em sua vida, ncsta
história, nos lideres, movimentos, povos, e pergunta: "Será
essc o auxílio que Deus está mandando') Nunca pcnsei
nisso como ajuda, mas talvez seja". A oração nos confere
outra maneira, muito mais precisa, de ler a realidade do

92
Ajudado por Deus

que os jornais. "Pense bem!", exclama o pároco da aldeia


na obra de Scmano, "a Palavra sc fez Carne e nem um dos
jornalistas da época tinha a menor idéia de que isso estava
acontecendo'" 7

Vejam as obras do Senhor


Duas ordens nos afastam do mundo estreito da auto-
ajuda e nos levam para o mundo amplo do auxílio de Deus.
Primeiro, "Venham' Vejam as obras do SENHOR". Dê uma
longa olhada, analise o que Ele está íàzendo. Isso requer
atenção, paciência, energia e concentração. Todo mundo
faz mais barulho que Deus. As manchetes, os luminosos e os
sistemas de amplificação anunciam as obras humanas, mas
ninguém trata das dEle. Apesar de ignoradas, não há como
escapar delas, basta olhar. Estão por toda parte. São mara
vilhosas, mas Deus não possui agência de relações públi-
cas, não monta campanhas publicitárias para chamar a
atenção. Simplesmente convida a olhar. Oração é olhar as
obras do Senhor.
Olhamos. E vemos que "ele forjou a fertilidade na ter-
ra". S A proliferação da vida é formidável. Dando atenção a-
penas aos placares brilhantes e aos desastres mais sangren-
tos, despertamos e olhamos em tomo. Sem orar, lemos
apenas as letras grandes, reparamos somente nas mega-
tendências e observamos apenas a destruição gigante.
Orando, vemos o curso de dados vindos de toda parte. Uma

7. Georges Bcrnanos, The Dimy ofa COlfllfry Priest (Gardcn City,


N.Y.: lmagc l3ooks!Doublcday. 1954. pág. 164.
R. Dahood, com base em paralelos ugaríticos, convence, acredito, que
desolação é antônimo de guerras e, por isso, deve ser traduzido como fertili-
dade. The Psalms. 1:181.

93
Onde o seu tesouro está

peregrina cm oração, Annie Dillard, saiu de sua casa e con-


tou o que viu:

o criador parte em uma tangente tàntástiea e espe-


cífica após a outra, ou em milhões simultaneamente,
com uma exuberância que seri<\ injustificada e ener-
gia livre que jorra de fonte infinita. O que está acon-
tecendo aqui') O ponto do salto tremendo da libé-
lula, a barata d'água gigante, o canto do pássaro, ou
a beleza fascinante dos reflexos da luz do sol nos pei-
xinhos, não é que tudo se encaixa com precisão - mas que
tudo flui com tanta liberdade, como o riacho, que tudo se
lança em um emaranhado livre na orla. A liberdade é a
água e o clima do mundo, sua alimentação concedida de
graça, seu solo e sua seiva: e o criador ama o ímpeto. (j

Vemos também que Ele dáfim às guerras até os con-


fins da terra; quebra o arco e despedaça a lança; destrói
os escudos com fógo. Deus se envolvc no desarmamento
mundial. Todos os instrumentos que homens e mulheres
usam na tentativa dc impor sua vontade à força sobre o
próximo e os inimigos são jogados em um monte - como
lixo. A violência não funciona. Nunca funcionou e nunca
funcionará. As armas são inúteis.
A história da violência é um relato de fracassos. Nunca
houvc guerra vencida nem batalha vitoriosa. O uso da força
destrói a realidade que busca bencficiar, seja honra, verdadc
ou justiça. Vivendo ncste mundo e sendo pecadores, em ccr-

9. Anoie Dillard, Pilgrim ai Tinker Creek (Nova Iorque: Harpcr's


Magazine Press. 1974). pág. 137.

94
Ajudado por Deus

tas ocasiões, somos incapazes de evitar a violência, mas,


embora inevitável, ela não é certa. Deus não a pratica. 10
Análise firme e continuada das obras de Deus mostra
que a construção frenética e tola de armas (pessoais ou na-
cionais, psicológicas ou materiais) tem sido sujeita a de-
sarmamento sistemático e determinado. Ação violenta é a
antítese da criação. Quando deixamos de ter vontade ou
paciência para criar, tentamos expressar nossa vontade pela
coerção. Preguiçosos e imaturos respondem pela maior
parte da violência do mundo. Mas, por mais generalizada
que ela seja, a pessoa que ora percebe que não é assim que
o mundo da ação de Deus funciona. Mas é necessário ener-
gia e maturidade para ver isso e sustentar a visão.

Parem de lutar e saibam


A segunda ordem é: Parem de lutar! Saibam que eu
sou Deus!. Parem. Chega de pressa, detenha-se para notar
que há mais na vida do que seus pequenos empreendimen-
tos pessoais. No meio de barulho e pressa somos incapazes
de cultivar intimidade - relacionamentos pessoais profun-
dos e complexos. Deus é o centro vivo da redenção, de
modo que é essencial permanecermos em contato e res-
ponsivos à Sua vontade pessoal. Ele tem um plano para
este mundo e, se quisermos participar, temos de parar o
suficiente para descobrir o que é (pois certamente não fi-
10. Não nego que existam situaçàcs históricas em que temos per-
missão, e até recebemos ordem, de entrar em guerra. Entendo que as guer-
ras de Israel foram ordenadas nesse contexto - a melhor atitude possível
naquelas circunstâncias, mas não como justificativa para loda guerra. A
questão da "guerra justa" vem pondo à prova a inteligência e a consdcncia
dos cristàos há muitos séculos. Em minha opinião, a questão se torna menos
complexa a cada dia: uma possível guerra nuclear logo tornará todos pacifis-
tas (mas não passivos).

95
Onde o seu tesouro está

caremos sabendo pelas notícías da televisão). O Barão von


Hügel tínha uma palavra sábia em quasc todos os assuntos,
c sempre sustentou que "nunca se fez nada no meio do es-
touro da boiada" 11
Saibam. Nos escritos biblicos, saber muitas vezes tem
conotação sexual. Adão conheceu Eva. José não conheceu
Maria. Não sc trata, como muitos supõem, de eufemismos
pudicos. São metáforas ousadas. O melhor conhecimento,
completo c pessoal, não se atinge através de informações,
mas de intimidade compartilhada - conhecer e ser conhe-
cido que se torna um ato de criação. Uma analogia ao rela-
cionamento sexual, onde duas pessoas sc encontram vul-
neráveis e abertas uma à outra, tendo como conseqüência
a criação de uma nova vida. Unamuno, filósofo espanhol,
elabora a idéia: "'Conhecer' significa, na verdade, produzir,
c todo conhecimento vital, nesse sentido, pressupõe pene-
tração, fusão da parte mais intima do homem que sabe com
o objeto do saber".I' O rcsultado do conhecimento é um
novo ser, diferente de cada parcciro e mais do que cada um
deles. Nenhum filho é réplica dos pais, nem mera combina-
ção dos dois. Possui caracteristicas de ambos, mas a nova
vida é imprevisível, cheia de surpresas, autônoma.
Esse conhecimento scxual, que resulta em outra vida,
é a experiência comum usada para mostrar o quc acontcce
na oração: afastamento da comoção, fechamento da porta
para o mundo exterior c insistência na privacidade scm pres-
sa. Não se trata de ato anti-social, nem de deleite egoísta,
nem de negligência com a responsabilidade pública. Pelo
11. Baron Friedrich von Hügcl, Selected Lerters 1896-1924, editado
por BcmarJ HollanJ (Nova Iorque: E. P. Duttoo & co .• 1933). pág. 147.
12. Miguel de Unamullo, The Agony (d' Christianity (Nova Iorque:
Fredcrick Ungar Publishing Co.. 19(0), pág. 51.

96
Ajudado por Deus

contrário, é o cumprimento da responsabilidade pública,


contribuição para o aperfeiçoamento da civilização. É pre-
cisamente criativo: não há como tàzer amor no meio do
trânsito. Com toda sua criatividade maravilhosa, Michclan-
gelo jamais conseguiu pintar, desenhar nem esculpir nada
que se compare a um recém-nascido. Apesar da imensa
inventividade demonstrada na Renascença, Leonardo da
Vinci nunca conseguiu nem se aproximar daquilo que
qualquer casal de camponeses cria pelo simples fato de se
deitar em uma cama. As pessoas que oram se entregam ao
processo criativo nesse mesmo lugar de surpresa e prazer
elementar, que enriquece o mundo c transcende o ego.
Parem e saibam. A civilização está assolada por pro-
blemas não resolvidos c impasses desconcertantes. As men-
tes mais brilhantes já foram usadas até o limite máximo.
Os observadores mais aclamados encontram-se profunda-
mente preocupados com a situação atual. A contribuição
mais relevante que os cristãos têm a dar é o ato da oração
- encontros firmes, repetidos e sem pressa com o Deus vivo
e pessoal, onde nova vida é concebida.
Não nos limitamos a orar. Atitudes e comportamen-
tos se desenvolvem a partir da oração. Prosseguindo com
a analogia com a familia, ainda há necessidade de educar
os filhos, cuidar do jardim e ganhar o sustento. É preciso
exercitar a inteligência, moldar o comportamento, tomar
decisões morais e agir em coragem responsável. Mas se
não nascerem os bebês, a civilização chegará ao fim. E o
nascimento não acontecerá se as pessoas de fé não ansia-
rem pelo amor de Deus e não forem suficientemente disci-
plinadas para abandonar as distrações do mundo e dedicar
tempo a "parar e saber".

97
Capítulo 6
Afirmado Por Deus

SALMO 62

A minha alma descansa somente em Deus;


dele vem a minha salvação.
Somente ele é a rocha que me salva;
ele é a minha torre segura' Jamais serei abalado!

Até quando todos vocês atacarão um homem que está


como um muro inclinado,
como uma cerca prestes a cair?
Todo o propósito deles é derruhá-lo de sua posiÇtlO
elevada;
eles se deliciam com mentiras.
Com a boca abenç·oam.
mas no intimo amaldiçoam.

Descanse somente em Deus. ó minha alma;


dele vem a minha esperança.
Somente ele é a rocha que me salva;
ele é a minha torre alta' Não serei abalado'
A minha salvação e a minha honra de Deus dependem;
ele é a minha rocha firme, o meu refugio.

Confie nele em todos os momentos, ó povo;


derrame diante dele o coração,
pois ele é o nosso refugio.
Onde o seu tesouro está

Os homens de origem humilde não passam de um sopro,


os de origem importante não passam de mentira;
pesados na halança,
juntos não chegam ao peso de um sopro.

Não confiem na extorsào,


nem ponham a esperança em hens rouhados;
se as suas riquezas aumentam, não ponham nelas o
coração.

Uma vez Deusfalou,


duas vezes eu OlfVi,
que o poder pertence a Deus.
Contigo tamhém, Senhor, está afidelidade.
É certo que retribuirás a cada um
confórme o seu procedimento.

100
Talvez a vontade, em seu aspecto mais profúndo,
não denote auto-a{zrmação e autocontro!e, mas sim amor
e aquiescência, não vontade de poder, mas vontade de
orGl:
WlLLIAM BARRETT I

xistem vastas porções de vida atrofiada na


E maioria das pessoas. Somos capazes de criar,
amar e realizar muitas conquistas, mas grande parte disso
fica dormente. Estamos adormecidos nos relacionamen-
tos pessoais e acabamos levados de um lugar para outro,
sem perceber o que está acontecendo. Somos tímidos no
trabalho e, por isso, perdemos promoções. No casamento,
somos intimidados e acabamos sendo usados. Nos senti-
mos inúteis na comunidade, fadados a receber serviços
inferiores do governo e de empresas.
Então, de tempos em tempos, alguém se levanta e
anuncia como é maravilhosa a simples condição humana.
Documentação cientifica séria prova que até o menor de
nós possui um cérebro incrivel, emoções ricas e corpo alta-
mente desenvolvido. Pensar em criaturas assim imóveis e
retraidas é ridiculo. Nenhum ser humano jamais poderia ser
capacho dos outros, nem ser considerado um lixo. Somos
confrontados com a exigência de nos colocar de pé e pegar
em nossas mãos aquilo a que temos direito. Os apelos são
ferventes e envolvem reavivamento. As escrituras sagra-
das de psicologia, economia e ciência política fornecem
um sem-fim de textos para sermões sobre auto-afirmação.
Contudo, muitas décadas desse tipo de pregação trouxeram
resultados inesperados: sociedade inchada e entediada.
1. William Barrett, The lllusio/1 ofTechnique (Garden City, N.Y.: An-
char Press/Doub1cday. 1978). pág. 232.

101
Onde o seu tesouro está

Precisamos descobrir como necessidade tão óbvia ligada a


solução tão razoável acabou em resultado tão desastroso.
Postura positiva - ação confiante, iniciativa agradável
- é componente básico para viver bem. Mas auto-afinna-
ção distorce o bem fundamental e o toma inadequado para
o desenvolvimento humano e a comunidade saudável. O
Salmo 62 trata de afirmação, mas de Deus e não do ego.
Apresenta a transição entre a afinnação do ego e a partici-
pação na afirmação de Deus.
Na oração, nos tornamos conscientes da afirnlação
de Deus e respondemos a ela. Descobrimos que Deus está
agindo: Ele não é gás inerte, massa de idéias amorfa, vir-
tude abstrata, nem explicação distante para o cosmos. Ele
afirma Sua vontade neste mundo de assuntos humanos
- governo, criação, oceanos, cozinhas, almas e sociedade.
Muitos temem abandonar o evangelho da auto-afinnação,
pensando que cairão no medo da dúvida. Na verdade, ex-
perimentam algo bem diferente.

Espera silenciosa
Uma repetição marca o tema central dessa oração. A
repetição tem dois focos, porque os versículos 1-2 e 5-6
são quase, mas nào totalmente, idênticos. A sentença con-
troladora é somente em Deus, ó minha alma, espera silen-
ciosa (RA).
Somente em Del/S. Ele não é um entre muitos. Ora-
ção não é forma de se proteger, nem caminho para conferir
a última novidade da auto-ajuda. Compreensivelmente,
queremos explorar todas as opções: escrever cartas, dar
telefonemas, visitar clientes em potencial, conseguir entre-
vistas. Não sabemos quem poderá vir a ser útil. Claro que

102
Afirmado por Deus

cultivamos o relacionamento com Deus, mas não em oração.


Tentamos, mas não funciona. A oração é exclusiva, centra-
lizadora. Descobrimos ser impossivel orar com um olho em
uma grande oportunidade e outro em Deus. A oração treina
a alma para um único foco: somente em Deus.
Minha alma espera. Há outra vontade maior, mais
sábia e mais inteligente que a minha. Por isso, espero. Isso
significa que confio em alguém de quem vou receber alguma
coisa. Minha vontade, por mais importante e essencial que
seja, encontra outra mais importante e mais essencial. En-
quanto espero, descubro a existência de mais realidade fora
do que dentro de mim, e me coloco em posição de reagir a
ela. Começo a orar na tentativa de manipular a vontade de
Deus; termino me preparando para ser movido por ela. Há
um tipo de espera que nada tem a vcr com oração. É a cs-
pera oportunista - afastamento disciplinado e predatório que
aguarda tudo ficar pronto para eu me apoderar do máximo
que pudcr. É a postura do gato que espreita o pássaro, ou
da pessoa que aguarda com cautela a primeira investida, a
palavra de comando. Isso não é esperar em oração. Ao orar
tenho consciência da ação de Deus e sei que quando as cir-
cunstâncias estiverem preparadas, os outros no lugar certo e
meu coração pronto, Ele me convocará para entrar em ação.
Esse tipo de espera envolve recusa constante a agir antes
que Ele o faça. Esperar é nossa participação no processo que
resulta na "plenitude do tempo".
Silenciosa. Na oração, o silêncio não é a ausência de
som que ocorre quando não há mais nada a dizer, nem a
situação embaraçosa que resulta da timidez. É atitude po-
sitiva e fértil. Envolve mais interesse no que Deus tem a
dizer do que em conseguir falar com Ele. Significa preferir

103
Onde o seu tesouro está

ouvir a palavra dEle a pronunciar a minha. Raramente é


a primeira coisa quc acontece na oração. Sempre tenho
muito peso a retirar de meu peito. Tantas palavras parecem
urgentes, mas, depois de dizê-las, me afasto para conver-
sar com meus amigos, resolver meus assuntos e prosseguir
com minha rotina. Na oração, falar é esscncial, mas tam-
bém parcial. O silêncio também é essencial, mas ninguém
imagina isso quando ouve as preces dos que se recusam a
ser guiados pelas Escrituras.
Há bamlho demais neste mundo. Conversamos demais.
Apesar de vivermos na sociedade que mais gasta com estudo
em toda a história da civilização, somos cercados por tor-
rentes de lixo verbal. E continuamos suportando isso. Nunca
desligamos a gritaria do rádio e da televisão para aproveitar o
silêncio. Isso acontece porque não queremos de coração ouvir
a palavra que revela a futilidade da auto-afinnação e nos trans-
fonna, que nos manda abandonar as fantasias confortáveis e
partir em uma arriscada aventura de fé.
Silêncio é pré-requisito para ouvir. Se o rejeitamos,
as palavras se reduzem a elogios vazios ao nosso próprio
ego doentio. Quando falamos o tempo todo, ou pennitimos
que outros o fàçam, nossos ouvidos e bocas se enchem de
clichês, trivialidades, conversas tolas c palavreado preten-
sioso. A linguagem se renova no silêncio. Na ausência de
som humano toma-se possivel ouvir o logos, a Palavra de
Deus que confere forma e sentido às nossas.

História e esperança
Duas razões, que se complementam, sustentam essa
ação eomo tema. A primeira é dele vem a minha salvaçâo
(v.l). A segunda, dele vem a minha esperança (v.S). A primei-

104
Afirmado por Deus

ra entende que o passado (salvação) dá contcúdo ao prcsente.


A outra cstá convcncida de que o futuro (esperança) molda
o presente. A auto-afirmação se equilibra precariamente na
Iinha tênue do momento atual. A oração alarga essa linha no
tempo e no espaço e desenvolve familiaridade com o pas-
sado e amizade com o futuro. Nem pessoas ~ nem nações
saudáveis ~ vivem absortas em novidadcs definidas pela pu-
blicidadc. Precisamos da história da salvação c da esperança
de um reino, de um passado c um futuro, que sc coloquem
no presente c lhe confiram dimcnsões ~ altura, largura e pro-
fundidadc. A oração desenvolve essas dimensões. Sem ela,
o passado se torna nostalgia e o futuro, fantasia. A auto-afir-
mação rouba o passado para atcnder caprichos e, com isso,
destrói seu caráter único. Ou então, com ganância, hipoteca o
futuro para se deleitar no presente apesar das conseqüências
que virão sobre as futuras gerações.

Não serei abalado


Outra base para essa reputação radical do evangelho
da auto-afirmação, essa recusa a afinnar o ego em respeito
a Deus, que afirma ele mesmo, é uma condição duplamente
confirmada na experiência: Somente ele é a rocha que me
salva; ele é a minha forre segura! Jamais serei abalado
(v.2). Os três elementos ~ rocha, torre segura e salvação ~
criam o triângulo da afinnação de Deus, que atende a base
do ego (rocha), sua defesa (torre segura) e sua perfeição
(salvação). O triângulo estabelece Deus como o ambiente
em que o ego se afirma e recebe as condições para a liber-
dade: estabilidade, integridade e vigor.
A conseqüência de viver nessas condições é a per-
cepção do próprio ser: "Jamais serei abalado". É a mes-

105
Onde o seu tesouro está

ma palavra usada no Salmo 46 como atributo da cidadc


de Deus - que nunca será derrubada, nem na catástrofe
do Juizo Final (veja o capítulo 5). Não parece que o ego
que nega a si mesmo é anêmico nem debilitado. Acabar
com o domínio do ego na afirmação não é religiosidade
piegas. Há aqui sensação de solidez e força. Ao contrário
disso, a auto-afinnação acaba sendo apenas um impulso e,
de fonna nenhuma, resulta em afirmação. O ego procura
excitação, divertimento, gratificação, mimos, elogios, re-
compensa, desafio c satisfação. Muita gente se dedica a ma-
nipular e vender esses impulsos através de sedução e per-
suasão. A sociedade costuma preferir a orientação dos pu
blicitários à dos apóstolos. Na verdade, auto-afirmação não
passa de eufemismo para estilo de vida dominado por im-
pulsos e pressões. A motivação do ego oscila entre emoções
e honnônios e modas c tendências. À medida que nos acos-
tumamos a orar, deixamos de ser levados por tais bagatelas.

Sóbrio e sagaz
Ligadas a essas atitudes, para acabar com a neces-
sidade de auto-afirmação, colocam-se reflexões sobre as
condições no mundo da auto-afirmação. Pensamentos só-
brios e sagazes, que mantêm a oração em contato com a
sociedade predatória, que não ora e age com impeto, pois
a oração não se restringe à fonna como alimentamos nosso
relacionamento com Deus. Ela é também o caminho para
termos a visão clara, sem ilusões do mundo que está sem-
pre tentando nos encaixar em seus moldes.
A primeira reflexão diseerne a motivação básica ocul-
ta por trás do encorajamento falso dos que nos convidam a
buscar a prosperidade no mundo.

106
Afirmado por Deus

Até quando todos vocês atacarão um homem que está como


um muro inclinado, como uma cerca prestes a cair?
Todo o propósito deles é dcrrubá-Io de sua posição
elevada; eles se deliciam com mentiras.
Com a boca abençoam, mas no íntimo amaldiçoam.

Essas pessoas repetem o tempo todo que precisa-


mos desenvolver nosso potencial, alcançar o melhor
desempenho possivel c aproveitar ao máximo as opor-
tunidades. Na verdade, estão mentindo. Usam essa isca
para nos prender em seus esquemas. O objetivo real é
nos levar a gratificar a obsessão deles pelo poder, seu
desejo de dominar. Com a boca abençoam, mas no Ín-
timo amaldiç·oam. (vA) As palavras deles nos fazem sen-
tir maravilhosos - como se o mundo inteiro estivesse a-
berto para nós. Mas os atos nos prendem em ansiedade
desumanizadora que nos reduz a meros fantoches movi-
dos pelas cordas da economia. Exercem pressão incan-
sável sobre o ego e não se satisfazem até conseguirem
nos usar: Até quando todos vocês atacarão um homem... ?
(v.3).
A segunda reflexão (versículos 9 e 10) adverte con-
tra a divisão cinica da sociedade em categorias de pessoas
ruins que vencem e boas que perdem - assaltantes c as-
saltados.

Os homens de origem humilde não passam de um so-


pro, os de origem importante não passam de mentira;
pesados na balança, juntos não chegam ao peso de um
sopro.
Não conficm na extorsão, nem ponham a esperança em
bens roubados; se as suas riquezas aumentam, não ponham
nelas o coraçào.

107
Onde o seu tesouro está

Competição e conflito são inevitáveis no mundo


marcado pela auto-afirmação. As pessoas se dividem cm
venccdoras e perdedoras. Alguns enriquecem, outros cm-
pobreccm. Uns recebcm todos os prêmios e outros ficam
com todas as obrigações. Se pcrmitirmos quc cssa imagem
intcrprete a vida, ficaremos entre duas opções: sentiremos
inveja dos ricos ou pena dos pobres. Há quem faça os
dois. A inveja nos enchc de descontcntamento e nos re-
baixa a consumidores. A pena nos reduz a um coração que
sangra. Por fim, acabamos nos identificando com um dos
dois grupos, apresentando esse status, seja sorte ou azar,
como prova de nossa importância. Mas essa intcrpretação
da humanidade é tanto simplista quanto irreal: Os homens
de origem humilde nelo passam de um sopro. os de origem
importante não passam de mentira; pesados na balança,
juntos nào chegam ao peso de um sopro.
As balanças computadorizadas não fornecem a ima-
gem adequada. É necessário reconstruir na imaginação
as usadas no mundo antigo. Dois pratos se penduravam
nas duas pontas de uma haste horizontal equilibrada em
uma vcrtical. Para pesar um quilo de arroz, a pessoa co-
locava um peso que ela sabia ter um quilo em um dos
pratos, que descia até tocar o solo. No entanto, à medida
que adicionava arroz ao outro prato, o que tinha o peso ia
subindo até que os dois ficavam em altura igual, equili-
brados. Pode-se pesar qualquer coisa com esse método.
Só são necessários os pesos para fazer a comparação com
os produtos: meio quilo, um quilo, cinco quilos etc. Ago-
ra podemos nos dedicar à imagem do salmista: em um
prato, um peso escrito "ser humano, perfeito, imagem de
Deus". No outro, a pessoa mais rica do mundo, com a

108
Afirmado por Deus

carteira repleta de dinheiro e o cofre cheio de ações. Mas


uma surpresa acontece. Contrariando toda expectativa, o
prato em que ela está sobe. Ela não tem peso: "os de ori-
gem importante não passam de mentira". Ou então tome
o indivíduo mais desgraçado, que sofre todo tipo de dis-
criminação e desprezo. Por certo esse, privado de todas as
recompensas e bens terrenos e depurado pelo sofrimento,
será uma pessoa real. A exploração cruel lhe conferiu sta-
tus de autenticidade. Coloque na balança. Mas vem outra
surpresa! Os homens de origem humilde nelo passam de
um sopro. Em qualquer situação, a auto-afirmação é inú-
til. Ninguém se torna importante por alardear seus sofri-
mentos nem por apresentar seus troféus. A tragédia não
é prova de importância, assim como as conquistas tam-
bém não são. Exaltar as vitimas é tão inadequado quanto
bajular os vencedores. Só somos autênticos quando nos
entregamos ao relacionamento de confiança com Deus
definido e ordenado em Sua Palavra, participando de Seu
poder: Confie nele em todos os momentos, ó povo; der-
rame diante dele o coraçào (v.S).
O silêncio que torna possivel ouvir Deus também
nos permite ouvir as palavras do mundo como elas real-
mente são - mentiras baratas e não convincentes. As
bravatas c as promessas da auto-afirmação não passam
de soberba.

Abandonando o jogo
A auto-afirmação transforma a sociedade em jogo en-
tre a ganância corporativa e a indulgência privada. Diretrizes
políticas e econômicas restringem comportamentos extre-
mos e asseguram certos limites, mas o jogo é alvo da mesma

109
Onde o seu tesouro está

reverência destituída de críticas que os esportes da preferência


nacional. Mas um número significativo c influente de pessoas
abandonou o jogo. Deixaram de jogar para orar, porque

Uma vez Deus t~llou,


duas vezes eu ouvi.
que o poder pertence a Deus.
Contigo também, Senhor, está a fidelidade.
É certo que retribuirás a cada um confonne o
seu procedimento.

"O poder pertence a Deus!" Isso confunde e frustra


os competidores. É uma visão destituída de patriotismo.
A falta de particípação atrapalha o ritmo do jogo. Pe-
ter Berger demonstrou as vastas implicações sociais do
que acontece quando as pessoas se recusam a cooperar
com a históría: "Se é impossível transformar ou sabotar
a sociedade, sempre é possível afastar-se dela no íntimo.
A separação tem sido usada como método de resistên-
cia aos controles sociais pelo menos desde Lao-Tsé e foi
transformada em teoria de resistência pelos estóicos.... A
engenhosidade dos seres humanos para tirar vantagem, e
subverter até o sistema de controle mais sofisticado, é um
antídoto renovador para a depressão sociológica". 2
Todo ato de oração nos tira das engrenagens da auto-
afinnação e joga areia nas maquinações de loucura nacio-
nal. Ficam preparados o espaço e o silêncio em que a per-
feição pode genninar c se desenvolver.
Talvez a humildade (nome antigo para acabar com
o domínio da auto-afirmação) seja a virtude menos pro-

2. Peter Berger, !nvilalioll lo Socio!og)' (Gardcn City, N. Y: Anchor


Press/Doubleday, 1963 l, págs. 132-34.

110
Afirmado por Deus

curada atualmente. Na melhor das hipóteses, é vista com


condescendência, até aceitável entre devotos medrosos
que não possuem aptidão para os assuntos deste mundo.
Mas durante muito tempo a humildade foi a virtude mais
admirada, se não a mais praticada. Não é possível que
tantas pessoas que o mundo considerou sábias estives-
sem erradas.
Nossos antepassados acreditavam que a humildade
era o espírito humano moderado, resistente e forte. Eles
conheciam a dificuldade e sabiam que mesmo os que
admiravam a virtude e a professavam eram inclinados a
subvertê-la na prática. John Henry Newman comentou de
fonna cortante:

o que geralmente vemos é "o ato de inclinar-se sem o


menor esforço de abandonar, nem por um segundo, a pol-
trona em que nos estabelecemos com muita finneza. É o
ato do superior, que faz uma queixa a si mesmo, enquanto
assume que continua superior, c que sua postura nada mais
é do que um ato de graça para com aqueles em cujo nivel,
teoricamente, está se colocando",

Newman prossegue:

humildade é uma das virtudes mais difíceis de alcançar c


verificar. Reside apenas no coração, c as provas são ex-
tremamente sutis c delicadas. Há abundância de imitação.!

Mas até mesmo a pretensão à humildade foi aban-


donada. Vivemos cercados por seminários de treinamento
para afinnação e administração voltada para objetivos. So-

3. John Henry Ncwman, The ldea ola UniversitJ' (Notre Damc, Ind.:
University ofNotre Dame Press. 1982). pág. 156.

111
Onde o seu tesouro está

mos bombardeados por técnicas que prometem causar im-


pacto na sociedade. Quase todas acabam sendo apelos sutis
ou grosseiros ao orgulho.
Talvez seja falta de sabedoria partir para o ataque
aberto, mas orando o Salmo 62 atacamos o inimigo pe-
los flancos c adotamos uma vida leve e alegre, sem arras-
tar a imensa bagagem de enganos e bravatas com que a
auto-afirmação busca disfarçar sua fraqueza. Acabar com
o domínio da ncccssidade de afirmar a si mcsmo não tcm
nada a ver com a auto-anulação servil que D. H. Lawrence
repudiou com tanta vccmência" É uma atitude cheia de
energia, confiança, atcnção e tranqüilidade. A qucstão dei-
xa de ser a possibilidade das coisas serem feitas e passa a
ser quem as faz: eu ou Dcus.
Temos de escolher o que consideramos melhor: in-
centivar milhões de cidadãos a afirmarem a si mesmos
(que, na prática, significa estimular a cobiça e a am-
bição), ou crer que Dcus já está realizando uma vontade
muito melhor de infinitas maneiras visíveis c invisíveis,
em uma obra complexa para realizar a salvação em to-
dos os níveis da economia, sociedade e cultura. Preciso
me colocar à disposição dessa vontade, porque "o poder
pertence a Deus". Oração é o ato que constrói uma ponte
sobre o abismo que separa auto-afirmação da vida de hu-
mildade. Isso implica em maior interesse e empolgação
quanto ao que Deus está fazendo do que em descobrir
como posso me expressar ou melhorar o mundo. Esses
atos são as principais, embora discretas, contribuições
que podemos dar ao bem-estar público.

4. D. H. Lavvrence propôs um remédio de alfaiataria: se todos ves-


tirem calças vcnnclhas, ninguém parecerá estar sujo e não ser importante!

112
Capítulo 7
Compaixão de Deus

SALMO 77

Clamo a Deus por socorro;


clamo a Deus que me escute.
Quando estou angustiado, busco o Senhor;
de noite estendo as mãos sem cessar;
a minha alma está inconsolável!

Lembro-me de ti, Ó Deus, e suspiro;


começo a meditw; e o meu espírito desfalece.

Não me permites fechar os olhos;


tão inquieto estou que não consigofalw:
Fico a pensar nos dias que se./àram,
nos anos há muito passados;
de noite recordo minhas canções.
O meu coração medita, e o meu espírito pergunta;
Irá o Senhor rejeitar-nos para sempre?
Jamais tornará a mostrar-nos o seufavor?
Desapareceu para sempre o seu amor?
Acabou-se a sua promessa?
Esqueceu-se Deus de ser misericordioso?
Em sua ira refi-eou sua compaixôo?
Entôo pensei; A razôo da minha dor
é que a mão direita do Altíssimo não age mais.
Onde o seu tesouro está

Recordarei os(eitos do Sc>!VHOR;


recordarei os teus antigos milagres>

Meditarei em todas as tuas obras


e considerarei todos os teus/eitos>

Teus caminhos, Ó Deus, são santos>


Que deus é tão grande como o nosso Deus?
Tu és o Deus que realiza milagres;
mostras o teu poder entre os povos>
Com o teu braço/órte resgataste o teu povo,
os descendentes de Jacó e de José>

As águas te viram, Ó Deus,


as águas te viram e se contorceram,'
até os abismos estremeceram.
As nuvens despejaram chuvas,
ressoou nos céus o trovão,>
as tuasflechas reluziam em todas as direções.
No redemoinho, estrondou o teu trovão,
os teus relâmpagos iluminaram o mlll1do;
a terra tremeu e sacudiu-se.
A tua vereda passou pelo mar,
o teu caminho pelas águas poderosas,
e ninguém viu as tuas pegadas.
Guiaste o teu povo como a um rebanho
pela mão de Moisés e de Arão.

114
Não celebramos a doença, celebramos a cura.
S. GREGÓRIO NAZIANZENO I

iedade é uma das emoções mais nobres em um


P ser humano. Autopiedade talvez seja a mais des-
prezível. Compaixão é a capacidade de penetrar na dor a-
lheia para ajudar de alguma forma. Autocompaixão é en-
fermidade emocional incapacitante que enfraquece e dis-
torce totalmente a percepção da realidade. A piedade iden-
tifica a necessidade dos outros por amor, cura e dá forma
a palavras e atos que trazem força. A autopiedade reduz o
universo a uma ferida pessoal que se apresenta como prova
de importância. Compaixão é adrenalina que leva a atos de
misericórdia. A autocompaixão é um narcótico que deixa
os usuários cansados e perdidos.
Os contrastes são óbvios, podem ser identificados em
qualquer casa, empresa, indústria, escola ou parque. Não
há como negar a beleza de uma e a feiúra da outra. Con-
tudo, em nossa sociedade, a autocompaixão aparece muito
mais do que a compaixão. Na literatura, a autobiografia de
celebridades, gênero excessivamente popular, nos sufoca
em autopiedade subjetiva e evidencia que talvez sejamos a
população mais afogada nesse tipo de sentimento de toda a
história humana. Sentir pena de si mesmo transformou-se
em um tipo de arte. Os lamentos e queixumes que gerações
mais sábias ridicularizavam com sátiras hoje alcançaram
status de best-seller.
A vida de qualquer pessoa contém injustiça, decepção,
deslealdade c mágoa suficientes para fornecer à imaginação
1. S. Gregório Nazianzeno. OrallO 38, {,;itado por Thomas Merton,
S'easons (?l Ce!e!Jration (Nova Iorque: Farrar. Straus and Giroux, 1978),
p~g. 13.

115
Onde o seu tesouro está

ferida ampla matéria prima para elaborar melodramas lucra-


tivos de autopiedade. Com o estímulo de celebridades que
levam a público a pena que sentem delas mesmas e a sanção
da cultura atolada nesse sentimento, fica fácil transfonnar a
emoção em hábito.
O grande mal social da autopiedade é que ela toma
energia que, em estado saudável, move atos de cura, li-
beração, esclarecimento, e a derrama no solo vazio do
ego. A compaixão necessária para a cura da sociedade ter-
mina como nada mais do que uma mancha deprimente e
desfiguradora na alma.
Quase sempre, a autoeompaixão lida eom fatos preci-
sos: o carro daquele homem é melhor que o meu; o marido
daquela mulher é mais atencioso que o meu; o sistema di-
gestivo de fulano funciona melhor que o meu; o colega
menos competente recebeu uma promoção muito melhor
que a minha. Não há como negar fatos. As comparações
hostis secretaram seu veneno. Descubro uma verdade so-
bre mim mesmo e a comparo com aquilo que sei sobre os
,)utros. Esse conhecimento pode se tomar estímulo para
crescimento ou para abençoar os semelhantes. No entanto,
o mais comum é suscitar inveja. Identifico desigualdades e
injustiças. Descubro que o outro é mais rico, mais bonito,
tem situação melhor e ganha mais. Sinto que fui passado
para trás. Peguei o vírus da autopiedade e agora estou in-
fectado com uma das doenças mais graves do ego. Auto-
compaixão é infelicidade vira!. Estamos no meio de uma
epidemia e precisamos encontrar a cura.
Mesmo que não seja muito usado, o antídoto é bem
conhecido. É, simplesmente, a oração, ato sensível o su-
ficiente para estar em contato quase constante com a au-

116
Compaixão de Deus

topiedade, mas forte suficiente para não ser absorvido por


ela. Muitas vezes, o impulso inicial de orar vem da auto-
compaixão. Sentimos pena de nós mesmos e, como Deus
é muito conhecido pela compaixão ("Como um pai tem
compaixão de seus filhos, assim o S/-.NflOR tem compaixão
dos que o temem"), acreditamos que Ele está com pena de
nós. Mas não é assim. Na oração, a autopiedade encontra-
se com energia maior e mais saudável e se transforma.
O Salmo 77 é uma oração em que a autocompaixão
sentimental perde importância. O texto apresenta duas par-
tes quase iguais, embora contrastantes, os versiculos 1-10
e 11-20. A segunda parte é compaixão forte e bondosa. É
piedade, mas totalmente alheia ao ego.

A tirania do ego
A primeira metade do Salmo apresenta todos os ele-
mentos desagradáveis que caracterizam a autocom-
paixão. Por exemplo, os exageros. As linhas de abertura
apontam para a histeria do lamento: Clamo a Deus por
socorro; clamo a Deus que me escute. A repetição da
palavra clamo no início de cada frase dirige o enfoque
diretamente para o problema. A minha alma recusa con-
solar-se (RA). A recusa em aceitar o consolo revela a
motivação escusa do lamento: usar a tristeza para as-
segurar a tirania do ego. Todos devem reparar em mim,
porque estou sofrendo. Minhas dificuldades, proclama-
das em voz alta e com dramaticidade, exigem que todos
prestem atenção em mim. O psiquiatra Harry Stack Sul-
livan brincou ao comentar que a principal característica
dessas pessoas é que "nenhuma flor é bela o suficiente.
Há sempre necessidade de um pouco mais de tinta ver-

117
Onde o seu tesouro está

bal"2 Lemhro-me de Deus (RA) , mas não penso nEle


por muito tempo, pois a conseqüência é que "suspiro".
Deus é um pretexto religioso para eu sentir pena de mim
mesmo de uma forma piedosa e por isso, presume-se,
justificada.
A autopiedade acusa. O problema absorve tanto as
forças que não há tempo nem para dormir. Essa falta de
sono é imediatamente atribuída a Deus: Não me permites
F!char os olhos (vA). A palavra traduzida como "olhos"
só figura nesse versículo da Bíblia e talvez signifique "a-
talaia" ou "vigília". Nesse caso, a metáfora é ainda mais
forte: "Tu prendes a atenção de meus olhos"'- Pastores
faziam vigília durante toda a noite para cuidar do reba-
nho. Nenhum deles passava a noite inteira acordado - ou,
quando isso acontecia, era porque alguém os forçava a
ficar de olhos abertos. Em outras palavras, minha insônia
é culpa de Deus. Esta é uma característica recorrente na
autopiedade: outra pessoa, muitas vezes Deus, é respon-
sável por meus problemas.
A autocompaixão se dissolve em nostalgia: Fico a
pensar nos dias que selaram. nos anos há muito passados
(v.S). A grama era mais verde há cinqüenta anos. As gera-
ções anteriores eram mais fortes, mais nobres, mais justas.
Quase todo mundo pensa que tudo corria melhor antes -
mas não há duas pessoas que concordem sobre a data espe-
cífica em que tudo era melhor. Russell Baker revela nosso
blefe: "Apesar do anseio universal pelo passado, também
é verdade que 99% das pessoas que preferem o que pas-
sou nem pensariam em voltar a menos que pudessem levar
2. Harry Stack Sullivan. The Collected Wurks ulHw'll' 51ack 511111-
mlJ. 2 volumes (Nova Iorque: W. W. Norton, 1953), 1:202.
3. Dahood, The Psalms, 2:227.

118
Compaixão de Deus

seu carro"" A autopicdade, historiadora sofrível, avalia e


recorda apenas para alimentar a injustiça presente e para
evitar agir no sentido de resolver os problemas.
Ela é marcada por introspecção mórbida: De noite in-
dago o meu íntimo, e o meu espírito perscruta (v.6, RA).
Existem autoconsciência e auto-estudo saudáveis. Não há
virtude em ignorar o próprio ser e desprezar a vida interior.
Contudo, para ser útil e saudável, a introspecção requer
disciplina e orientação. De outra forma, como aqui, perde-
se no pântano da comiseração por si mesmo. O ego que
medita sobre ele está preso em um cômodo sem ar, sem
oxigênio. Se ficar lá por muito tempo, inspirando o gás que
ele mesmo expira, acabará doente.
A autopiedade é teologicamente ignorante: Irá o Se-
nhor rejeitar-nos para sempre? Jamais tornará a mostrar-
nos o seufúvor? (v.7). Essas perguntas dão início a uma
série de outras - cinco questões que conduzem ao climax.
Embora envolvam Deus, não são dirigidas a Ele. São per-
guntas retóricas jogadas ao ar na esperança de que alguém
confirme verdades que se acredita evidentes. Perguntas
retóricas presumem concordância. O assunto é tão evidente
que ninguém que use o raciocínio poderá discordar. Trans-
formando as questões em afirmações, temos: (1) O Senhor
vai nos rejeitar para sempre e jamais voltará a estar a nosso
favor; (2) a fidelidade dEle acabou para sempre; (3) Suas
promessas chegaram ao fim; (4) Deus esqueceu de ser mi-
sericordioso; e (5) a ira dEle refreou sua compaixão.
Deus que rejeita, está cansado, é mesquinho, esqueci-
do e está irado. Por mais elementar que seja o conhecimen-
to sobre Deus confonne revelado na Bíblia e vivenciado
4. "The World According to Russell Baker", Johns Hopkins ,\1aga-
zif/e 24 (1983): 8.

119
Onde o seu tesouro está

em séculos de história da salvação, ninguém poderá aceitar


essas afinnações. Nada disso se baseia em revelação ou
observação, tudo derivou da autocompaixão. Ninguém se
importa comigo. Nasci tarde demais para participar das
promessas. Fui deixado de lado. Ninguém sente meu so-
frimento. Depois, esses detalhes se expandem c chegam a
uma proclamação cósmica: Deus me rejeitou.
As perguntas, contaminadas pela autocompaixão,
levam a uma conclusão em que a ignorância só compete
com a pieguice: A ra::ào de minha dor é que a mào di-
reita do Altíssimo I1ClO age mais (v. 10). Ninguém pode
afirmar que Deus é amoroso, compassivo e bondoso.
Se um dia foi, deixou de ser. Eu sou a prova. Minha
condição, como todos podem ver, mostra que Deus não
é tudo aquilo que as pessoas pensavam. Se fosse, eu não
estaria em situação tão deplorável. Meu lamento possui
base teológica: Deus não me ama.

Exaltação da graça
Então, quando parece que não dá mais para supor-
tar, há uma mudança. De súbito, passamos a um mun-
do totalmente diferente. Esse tipo de coisa acontece na
oração, sem transição aparente. Em um momento nos
debatemos no lamaçal da autocompaixão. No instante
seguinte nos encontramos firmes sobre as montanhas,
tontos diante da maravilha da redenção. Tudo gira em
torno das sentenças abaixo:

Recordarei os feitos do SEVIIOR;


recordarei os teus antigos milagres.
Meditarei em todas as tuas obras
e considerarei todos os teus feitos.

120
Compaixão de Deus

Quatro ocorrências verbais expressam atenção: re-


cordar (duas vezes), meditar e considcrar. Outro conjunto,
agora de cxpressões, indica o objeto da atenção: feitos do
SENHOR, antigos milagres, Tuas obras e Tcus feitos. Digno
dc nota que os verbos já haviam sido usados na primeira
parte do Salmo (pensar, meditar, recordar, lembrar), mas as
expressões não. A transformação não ocorre quando aprcn-
demos a meditar, mas sim quando descobrimos cm quem
pensar. O problcma não foi falta de meditação. Houve re-
lutância em dirigir mente e espírito para dentro, para baixo
da superfície da vida. A primcira metade do Salmo é medi-
tativa, mas sem foco (meditação sem objcto, versículo 3),
tomada por nostalgia (versículo 5) ou por auto-indulgên-
cia (versiculo 6). Isso é meditação no ego ferido. Mas no
momento em que a mente passa do "meu problema" para
'Tuas obras", ocorre uma mudança radical.
Na oração a percepção se desenvolve: há muito mais
tàtos em andamento no mundo do que tenho consciência
quando estou decepcionado, ferido, frustrado ou amargu-
rado. Meus sentimentos, em determinado instante, embo-
ra importantes e verdadeiros, não podem ser interpretados
com precisão fora do contexto da ação de Deus. A medi-
tação intensifica a consciência e a pcrcepção. Quando scu
enfoque é limitado por scntimentos de autopiedade, o ego
isolado, o resultado é a intensificação da tristeza. Mas se o
foco se volta para Deus, tanto no ego quanto na história e
na criação, o resultado é a cxaltação da graça: Teus cami-
nhos, ó Deus, sàosantos (v.13). Milagres, manifestações de
poder e a redenção do povo (versículos 14 e 15) assomam
no horizonte. O mundo em que vivo é dominado pela cria-
ção, a revelação e a redenção. Meus sentimentos encon-

121
Onde o seu tesouro está

tram seu lugar no contexto da ação de Deus e podem ser


interpretados e avaliados com precisão. Annie Dillard, em
uma meditação expansiva incomparável sobre "as tuas o-
bras", Pilgrim aI Tinker Creek (Peregrino no Riacho Tin-
ker), mostra o resultado:

Prossigo em meu caminho como Billy Bray. Meu pé es-


querdo diz 'Glória' e o direito, 'Amém': dentro e fora do
riacho Sombrio, contra e a íàvor da correnteza, exultante.
entorpecido pela dança. ao som das trombetas de prata
que acompanham o louvor. S

Cantando a salvação
Dentro do panorama amplo da história, um evento
foi escolhido para consideração: a saída do Egito (versícu-
los 16-19). Foi uma época em que natural e sobrenatural,
Terra e Céus, pessoal e nacional foram orquestrados para
dar origem a um único ato de redenção. O acontecimento é
relembrado de fonna audiovisual e também dinãmica: sons
tremendos e clarões de luz tomam ritmo que nos 1cva a lou-
vor e reverência. Somos sacudidos para sair do redemoinho
de autopiedade que nos puxa para baixo e levados para a
marcha de louvor, o caminho da salvação de Deus.

As águas te viram. ó Deus.


as águas te viram c se contorceram:
até os abismos estremeceram.
As nuvens despejaram chuvas.
ressoou nos céus o trovão:
as tuas flechas reluziam em todas as direções.
No redemoinho. estrondou o teu trovão,
os teus relâmpagos iluminaram o mundo;
a terra tremeu e sacudiu-se.

5. Dillard. Pilgrim ar lfnker Cré'ek, pág. 271.

122
Compaixão de Deus

A tua vereda passou pelo mar,


o teu caminho pelas águas poderosas,
e ninguém viu as tuas pegadas.

o ritmo da oração sc altera nessc ponto. Até aqui,


a poesia foi escrita, na maior parte, em estrofes de duas
linhas. Agora surgem grupamentos de três, arranjo
majestoso e épico. O diapasão entra cm cena. Scmitons
de Gênesis 1 sc entrelaçam nas imagens para fornecer di-
mensão cósmica á salvação. O caos tomado pelas águas,
do qual Deus tirou a boa criação, ressoa nas sentenças
que cantam a salvação. Tanto o mundo em que vivemos
(criação) quanto o que vive em nós (salvação) foram
moldados por Deus. Minha autopiedade sem forma e la-
crimosa não tem como cscapar dessc poder.
Todos sabem que isso aconteceu. A própria existên-
cia de Israel prova e documcnta o evento. Mesmo assim,
ninguém sabe exatamente o que aconteceu: ninguém viu as
tuas pegadas (v.19). Pegadas fcitas em águas profundas não
deixam marcas. Vivemos as conseqüências da salvação, mas
o que a fez acontecer é invisível. Não há prova tangível de
que tudo aconteceu - a não ser por minha existência c pela
existência de tudo que é grande, santo e maravilhoso.

Uma imagem à disposição


Uma única palavra, repetida no início e no fim do
Salmo, mostra a semelhança aparente e a vcrdadeira dife-
rença entre a picdade que sentimos por nós mesmos c a
compaixão de Deus pelo mundo, que O leva a agir para a
salvação. A palavra é mão.
A primeira ocorrência é subjetiva, fala de sentimento:
Quando estou angustiado, busco o Senhor; de noite esten-

123
Onde o seu tesouro está

do as mãos sem cessar; a minha alma está inconsolável!


(v.2). O texto hebraico é mais dircto do que a tradução:
Minha mão corre para a noite. A conjunção de mão c corre
é cômica, forma uma imagem de desenho animado: uma
mão corrcndo pela noite, procurando alguém que a ajude.
Mas há outra possibilidadc. No hebraico, a palavra mão
é usada em muitas metáforas, e uma delas se encaixa no
contexto. Como em Jó 23.2, pode significar "ferida". Então
a imagem passaria a ser uma chaga que corre. Uma ferida
infeccionada, cheia de pus, que isola e que ninguém descja
tratar, como a do infeliz Filoctctcs da mitologia grega. Só
se pode dizer que a salvação aconteceu depois que essa
fcrida - a autopiedade fétida - foi tratada.
O uso final da palavra é objetivo: Guiaste o teu povo
como a um rehanho pela mão de Moisés e de Arão (v.20).
Não é bem isso que se espera. Uma mão foi estendida no
primeiro versículo, e esperamos que alguém a tenha agar-
rado ou segurado quando chegannos ao último. Ou, tendo
iniciado com uma ferida que corrc, prevemos que no final
encontraremos a cura. Mas não é isso quc acontece: a au-
topiedade não exerce pressão sobre o Todo- Poderoso nem
arranca concessões dEle. Em lugar disso, é uma ocasião
que Deus usa para atuar sobre a infelicidade que criamos
para nós mesmos e fazer nascer algo que dê prazer a Ele.
Descobriremos, surpresos, que isso é o quc traz prazer
também a nós.
As mãos de Moisés e Arão respondem à que foi es-
tendida em autocompaixão. Elas não protegem dos pro-
blemas, mas ensinam a viver no meio deles. Moisés e
Arão não ficam segurando as mãos do povo, unindo-se ao
lamento pela perda da casa e da segurança do Egito. Eles

124
Compaixão de Deus

os pegam pelas mãos e os conduzem para o deserto cruel.


A redenção já foi alcançada pelo "braço" do Senhor (versi-
culo 15). Agora é necessário aprender a seguir a vida de fé,
alimentar a compaixão. Isso só acontecc cm meio a dor e
sofrimento, lugar em que a sabedoria sc toma inacessivel à
autopiedade. Deus não atcnde nosso clamor de compaixão
por nós mesmos, Ele nos ensina a acabar com o dominio
dela. Entra em nossa vida e nos fornece profeta e sacer-
dote para nos conduzir pelo deserto da provação e da ten-
tação. Só então aprenderemos os caminhos da providência
e descobriremos os meios de graça - quarenta anos longos,
difíceis, marcados pela misericórdia e guiados pela graça
que representam a jornada dos que vivem pela fé. Nesse
caminho, aprendemos moralidade pessoal e responsabili-
dade social. A salvação é colocada a serviço da edificação
da comunidade, da prática da adoração e da confrontação
do mal.

o lugar certo
Por mais sem saida que seja a autocompaixão, a ora-
ção não a impede. Qualquer lugar é bom para começar a
orar, mas não podemos ter medo de ir parar em um lugar
totalmente diferente daquele em que começamos. O sal-
mista começou sentindo pena dele mesmo e fazendo per-
guntas insolentes. Terminou entoando um velho cântico
quc proclama o poder e a graça.
Meditamos em nossa humanidade ferida e introdu-
zimos o nome de Deus nos pensamentos de torma casual:
logo nossa imaginação é despertada pelas águas temerosas,
profundas e tremulantes, pela passagem de Deus através do
trovão que ressoa, pesando na Terra abalada e iluminada por

125
Onde o seu tesouro está

relâmpagos que cortam o Céu, pela redenção que Deus opera


em Seu povo, levando-o como a um rebanho. Arrancados da
introspecção mórbida, enxergamos nuvens derramando água
e colunas de fogo. Deus age em prol dos que precisam. Nos-
sa choradeira se reúne no trovão da ação divina e se trans-
forma em meditação sobre o poder de Deus, que renova o
espirito em participação compassiva em Seu auxilio, quando
oferecemos a Ele nosso clamor e não quando suprimimos a
autopiedade ou abafamos o choro. O desagradável Lembro-
me de ti, Ó Deus, e suspiro transforma-se, no decorrer da
oração, na empolgação de Meditarei em todas as tuas obras
e considerarei todos os teusfdtos. Teus caminhos, Ó Deus.
sào santos. Que deus é tào grande como o nosso Deus?

126
Capítulo 8
Justificado por Deus

SALMO 14

Diz o tolo em seu coração: "Deus não existe ".


Corromperam-se e cometeram atos detestáveis;
não há ninguém que faça o bem.
O SENHOR olha dos céus
para osfilhos dos homens,
para ver se há alguém que tenha entendimento,
alguém que busque a Deus.

Todos se desviaram, igualmente se corromperam;


não há ninguém que faça o bem,
não há nem um sequa

Será que nenhum dos malféitores aprende?


Eles devoram o meu povo como quem come pão,
e não clamam pelo SENllOR!

Olhem! Estão tomados de pavor!


Pois Deus está presente no meio dos justos.

Vocês, malfeitores, frustram os planos dos pobres,


mas o refúgio deles é o &!VHUR.

Ah, se de Sião viesse a salvação para Israel!


Quandu o SENHUR restaurar o seu povo,
Jacó exultará' Israel se regozijará'
o pomo dourado do egoísmo, lançado entre deuses
falsos, tornou-se o pomo da díscórdia, porque lutaram por
ele. Não conheciam a primeira regra dojogo santo, que de-
termina que cada jogador tem que tocar a bola e passá-Ia
adiante imediatamente. Ser pego com ela nas mãos éfalta,
agarrá-Ia leva à morte. Mas, quando ela voa de um jogador
para outro, tão rápida que o olho não consegue captm; e o
próprio Mestre lidera afália, entregando-se eternamente às
Suas criaturas na criação e tomando-as para Ele mesmo no
sacrificio da Palavra, então a dança eterna "deixa o Céu
tonto com a harmonia ".
c. S. LEWIS I
em sempre o ateu é um inimigo. Muitos são
N grandes amigos dos cristãos. Por exemplo, há al-
guns cuja convicção deriva de protesto: enfurecidos diante
do que está errado no mundo, são tomados por rebeldia fer-
vorosa. Não conseguem simplesmente aceitar paradoxos
estranhos: o Deus bondoso permite que nasçam crianças
aleijadas, o Deus de amor não impede estupro e tortura e o
Deus soberano fica parado enquanto regimes cruéis como
os de Gêngis Khan c Adolf Hitler se levantam. Assim,
eliminam Deus. Isso não reduz o sofrimento, mas acaba
com o paradoxo. Esse ateismo não deriva de pensamento
lógico (ou ilógico). É simplesmente protesto. Raiva diante
do sofrimento e da injustiça se torna raiva contra o Deus
que permite que isso aconteça. A negação expressa o pro-
testo. Essas pessoas costumam ser cheias de compaixão.
Sofrem e se revoltam. São profundamente espirituais, em
contato com a condição humana e os valores eternos.
1. ( . s. Lcwis, The Prohfcm ofPain (Nova Iorque: Macmillan, 1953),
pág. 141.

129
Onde o seu tesouro está

Ivan Karamazov é a representação literária mais fa-


mosa do ateísmo de protesto. Tinha um caderno onde a-
notava todo caso de sofrimento de inocentes de que ouvia
íàlar. Havia íàtos horriveis: acidentes, torturas, crueldade,
agonia, maldade e desespero. Ele se especializou em sofri-
mento iníàntil. Os relatos serviam como acusação indefen-
sável contra Deus: sendo o mundo assim, não pode existir
um Deus.' Mas Ivan falava o tempo todo no Deus em quem
não acreditava. O Cristo que ele havia rejeitado O per-
seguia. Até seu ateísmo era uma luta com o santo, o amor,
o significado. Possuia muito mais profundidade espiritual
do que pietistas convencionais que queimam incenso para
disfarçar o mau cheiro do sofrimento do mundo enquanto
cantam músicas alegres sobre o brilho de Deus.
Há outro tipo de ateu, que busca sinceridade intelec-
tual. Esses partem de uma idéia sobre Deus formada por
migalhas de engano, fragmentos de fantasias reunidas
aleatoriamente em filmes, programas de televisão e con-
versas superficiais. Um dia, olham para a imagem c de-
cidem que Deus não tem barba. Sem barba não há Deus.
Isso acontece freqüentemente com os adolescentes. Ao
passo que o intelecto amadurece, reexaminam as idéias
adquiridas na infância e concluem que são inadequadas.
"Nenhum adulto inteligente pode acreditar nisso", di-
zem, com muita razão. Tornam-se ateistas instantâneos.
Precisariam perguntar, ainda: "Há alguém de mente de-
senvolvida e intelecto preparado que acredita em Deus?
Se existe, em que acredita?".
Os pastores encontram esse tipo de ateísmo com bas-
tante freqüência. Minha resposta é continuar investigando.
2. Fyador Dostoevsky. The Brothers Kuranucov (NO\/a Iorque: Hcri-
lage Press. 1949). págs. 179-186.

130
Justificado por Deus

Peço: "Fale um pouco mais sobre esse Deus em que você


não acredita. Como ele é?". Depois de ouvir a resposta,
em geral concordo: "Eu também não acredito nesse Deus.
Diante do que você falou, também sou ateu".
Normalmente, a essa altura da conversa, meu inter-
locutor está interessado e me permite prosseguir. "Você
sabia que uma das acusações contra os cristãos do século
I era de ateísmo? Havia centenas de deuses na cultura e os
cristãos não acreditavam neles. Declaravam com veemên-
cia que os consideravam ridículos e que ninguém deveria
levá-los a sério".
"Compreensivelmente, os pagãos se ofendiam quan-
do as superstições que lhes davam consolo e suas histórias
interessantes eram tratadas com desprezo. Além disso, te-
miam que o crescimento da fé cristã pervertesse a ordem
social e política. Por isso, perseguiam os cristãos, joga-
vam-nos nas prisões e chegavam a matá-los sob a acusa-
ção de ateísmo. Dificilmente o fato de acreditarem em um
Deus seria considerado religião numa cultura em que todos
acreditavam em pelo menos algumas centenas de divin-
dades. Além disso, era dificil para gregos e romanos levar
a sério como deus um desconhccido scmita sem estátuas
nem templos para representar sua prcsença e validar sua
importância."
"Dessa fonua, você tem muitos companheiros cristãos
em sua fàlta de fé em um ou mais deuses. Gostaria de ouvir
um pouco sobre o único Deus em que os primeiros cristãos
acreditavam')"
Esses tipos de ateísmo precisam ser tratados com
apreciação e respeito. O ateu que protesta, sensível ao so-
frimento, pode ser aceito como parceiro na luta moral e

131
Onde o seu tesouro está

espiritual contra o diabo. A companhia dele serve como


defesa contra a presunç~ o. O que discrimina intelectual-
mente pode ser recebido ;omo aliado na rejcição cética de
toda cstupidez popular m li acabada a que se dá o nome de
"deus", tão abundante elll nossos dias. Esse tipo de ateu
pode ser convidado a deb ltes que investigam o que as me-
lhorcs mentes pensaram, ~ pensam, sobre Deus.
Mas há uma forma ,ie ateísmo que não sc podc tratar
com tanta condescendên :ia. O Salmo 14 a ataca com c-
nergia. O mundo a tolera. mas deveria temer - são aqucles
que dizem, no coração: "Deus não existe". É um ateísmo
silencioso e discreto que lunca chama atenção. Essas pes-
soas não declaram com a boca que Deus não existe. Pelo
contrário, afirmam o me, mo que todo mundo. Recitam o
Credo Apostólico e a Oração do Pai Nosso com todos os
fiéis. Elaboram argument JS impressionantes sobre a exis-
tência de Deus, denuncia n os ímpios, exigem orações em
público e estabeleeem utr a religião oficial.
Contudo, no coraçãe, dizem: "Deus não existe". Nun-
ca declaram o ateísmo e talvez nem tenham consciência
dele, mas o vivem - com uma vingança. Quando questio-
nados sobre sua fé, aprese ntam uma das tendências religio-
sas do momento ou declal am qualquer coisa que sua igreja
afirme sobre Deus. Alasc air MacIntyre formulou o credo
dessas pessoas: "Não ex ste Deus e é uma atitude sábia
orar a Ele de vez em qual do"3
Há uma alegria inco ltestável em afinnar "em seu co-
ração" que Deus não exis e: libertar-me de toda dependên-
cia, dominar a realidade, d ;scobrir que sou capaz de fazer as
pessoas atenderem meus ,lesejos, adquirir capacidade para
3. Alasdair MacIntyre. A; ;aillst lhe Se(l-fmages (?l lhe Age (Notre
Dame. Ind.: Univcrsity ofNotre I>arnc Prcss, 1978), pág. 26.

132
Justificado por Deus

controlar as situações. É como a alegria de deixar a reali-


dade áspera e persistente da terra e nadar pelo oceano - uma
existência sem esforço, flutuante. As correntes marítimas
banham e massageiam meu ego. Só tenho que me preocupar
comIgo mesmo.
Mas, mesmo com todas as promessas de imensidão,
com o horizonte infinito se estendendo diante de mim,
com a profundidade infindávcl sob mim, acabo vendo
quc o mundo é bem pequeno. Na verdade, não há muito
a fazer. Só comemos com dificuldade, só conseguimos
conversar em fragmentos, não há como ir a outro lugar.
Parece não haver relacionamento possível com coisas
nem com pessoas. Um pouco depois chega o cansaço e é
necessário partir. O ego não é o contexto em que se pode
viver em sentido completo e humano.
Precisamos de Deus sob nossos pés e dentro de nos-
sos pulmões. Dependemos do Criador, das criaturas e da
comunidade. Ele é o grande continente de realidade em
que vivemos. Se O negamos na prática, tentando viver
no oceano do ego, logo nos cansamos e precisamos de
todo tipo de ajuda artíficial para nos manter á superfí-
cie - pedaços de madeira flutuante e coletes salva-vidas.
O oceano não é nosso ambiente natural. Toda hora fi-
camos com os pulmões cheios de água e precisamos ser
resgatados para receber respiração artificial. Depois par-
timos e recomeçamos tudo. Deveríamos simplesmente
deixar o oceano do cgo e firmar os doís pés na terra seca
do reino de Deus.
Se, de fato, "Deus não existe", o ego é a realidade
imediata e final e estamos condenados a viver nela. Mas
o ego, como o útero (ele mesmo um tipo de existência

133
Onde o seu tesouro está

oceânica), é um lugar de ondc temos de sair para nos tor-


narmos uma pessoa.

Pessoas como bcns de consumo


Há mais em jogo aqui do quc a sobrevivência do
cgo. A do mundo também corre risco, pois esses atcus
dc coração, simpáticos e rcspeitáveis, colocam em perigo
a saúde c a sanidadc. São como vcrrugas na mcnte do
mundo, como vcrmes que dcvoram seu corpo. A acusa-
ção violenta do salmista é: Eles comem o meu povo como
quem come pão. Canibais! Tratam as pessoas como bcns
de consumo.
Ateísmo do coração sc transforma em opressào so-
cial. O ego estabclece suas próprias rcgras para satisfazer
suas compulsões, dc modo que o resultado social é quc as
pcssoas que mc cercam sc transformam em alimcnto - ma-
tcrial que posso usar para satisfazer minhas necessidades.
Eu as vcjo como aquilo que posso usar para tomar a vida
satisfatória, não mais como pcssoas.
Uma das maiores mcntiras de nossa era é afirmar que
minhas crenças só interessam a mim mesmo, que o quc se
passa no sccreto de mcu coraçào não é da conta de mais
ninguém. Mas aquilo cm que crcio interessa a todos que
me ccrcam, exatamente porque o quc acontece cm meu co-
ração logo influcnciará meu comportamento na sociedade.
Sc ror ateu cm meu coração e me colocar como soberano
no lugar dc Deus, aitcrando tudo em função de meus de-
sejos, neccssidades c tàntasias, acabarei me tomando um
pirata na socicdade. Não me canso dc procurar mcios de
conseguir usar para meu próprio benefício tudo que cxis-
te, scm me prcocupar em observar as condiçõcs de vida

134
Justificado por Deus

dos outros. O atcu dc coração logo se toma um câncer no


âmago da comunidadc.
G. K. Chesterton disse uma vez que se possuisse
imóveis para alugar, pediria, se fosse possível, informa-
ções sobre a fé de seus inquilinos, não sobre emprego ou
renda. Scgundo Chcstcrton, é a fé que determina o grau de
honestidade, o tipo de relacionamento e sua fidelidadc no
cuidado com a propriedade. Ganhar bem não isenta nin-
guém de ser desonesto. Um bom emprego não garante que
a pessoa irá saber gastar seus recursos. A fé não é uma rcs-
posta rápida a uma pesquisa de opinião, é o que há de mais
profundo em nós. Molda nosso comportamento e, portanto,
é o que há de mais prático em nós.

Uma palavra de relacionamento


O ateísmo do coração, que se traduz em farisaísmo, é
não apenas maligno, é burrice: Será que nenhum dos mal-
feitores aprende? (v.4). Acreditamos saber muito quando
voltamos as costas ao mistério de Deus e adquirimos uma
quantidadc cnonnc dc infomlações sobre como fazer o mun-
do agir em nosso favor. Contudo, aquisição de informações
não é o mesmo que conhecimento. Este se relaciona a Deus,
a seu mundo e a seu povo. Deus está presente no meio dos
justos (v.5) - não com os fariseus, mas com o que mantém o
relacionamento correto com a realidade.
Na Bíblia, a palavra traduzida como justo nunca se
refere ao que somos em nós mesmos - por melhores, mais
bem sucedidos e informados que sejamos - mas sim ao que
somos em relação a Deus. Justo é um tcrmo que trata dc
relacionamento, scndo o mais importante o que mantcmos
com Deus.

135
Onde o seu tesouro está

o ateísmo destrói relações. Rebaixa Deus e faz dEle


objeto que pode ser usado, abandonado, negado ou igno-
rado, segundo minhas escolhas. Ao mesmo tempo em que
isso acontece, as pessoas também são rebaixadas e trans-
formadas em objetos que podem ser usados, abandonados,
negados ou ignorados. Quando essa atitude se generaliza,
a sociedade se despersonaliza, deixa de ser sociedade e
passa a ser uma ponta de estoque onde podemos comprar
indivíduos a preço acessível.
A acusação prossegue: Vocês, malleitores, fi'ustram
os planos dos pobres (v.6). Os pobres, por toda a Bíblia,
são escolhidos para tratamento bondoso. Há uma con-
vicção profunda, declarada com ênfase nos dois Testa-
mentos, de que pobres e indigentes são objeto de interes-
se especial de Deus. 4 Na hora de eseolher um povo para
ser a comunidade pioneira da salvação na história, Deus
tomou eseravos pobres do Egito. Ao se tornar homem, foi
concebido no útero de Maria, na pobreza dela ("humil-
dade", Lucas 1.48) e viveu como pobre (2 Coríntios 8.9).
Ao criar a Igreja, reuniu a maioria dos participantes nas
fileiras dos pobres (I Coríntios 1.26-29).
Ronald Sider, em pesquisa ampla sobre as evidências
bíblieas a respeito desse assunto, comentou sobre a atenção
"estarrecedora e ilimitada" concedida aos pobres.' Sempre
que vigor e saúde marcam a Igreja, ela dedica cuidado es-
pecial aos pobres. Juliano, o apóstata, que odiava os cris-
tãos e se esforçou ao máximo para jogar descrédito sobre
eles, chamou-os de "galileus ímpios", mas foi forçado a
4. Gerhard \lOB Rad. Old Tesfamen! The%gl', 2 volumes (Nova
Iorque: Harper & Row. 1962). 1:400.
5. Ronald J. Sidcr, Rich Chrisrhms in an Age olHunger (Downcr's
Grave. 111.: IntcrVarsity Prcss. 1978). pág. 85.

136
Justificado por Deus

admitir que os supostos ateus "alimentam não só os pobres


deles; tratam também dos nossos"."
Assim resta saber por que fariseus que conhecem bem
a Bíblia acabam oprímindo os pobres. Um motivo é que a
pobreza se coloca como acusação contra a imensa tolice de
ser justo aos próprios olhos. Os pobres se apresentam como
humanidadc rcduzida ao que é estritamente essencial, sem
supérfluos, e neles reconhecemos, mesmo assim, nossos
semelhantes. Não há neles valor que possa ser medido em
moeda e ainda assim o Deus sofredor e compassivo nos con-
fronta através dos olhos deles. O pobre é a pessoa que não
me serve de nada, mas que exige alguma coisa de mim.
Mas, como soberano de minha vida (por definição,
justo aos meus próprios olhos - ou seja, justo sem relacio-
namentos), nego o relacionamento. E, para conseguir fugir
de tantas evidências, frustro "os planos dos pobres", altero
evidências e distorço dados. Desprezo os pobres dizendo
que são preguiçosos, denuncio a imoralidade deles ou sou
condescendente por achar que são ignorantes. Afinal, nin-
guém é pobre se não for preguiçoso, mau ou burro.
Posso escolher, em vez de frustrar os planos dos po-
bres, desfrutar da companhia deles 7 Lendo a Bíblia com
cuidado, verificamos que os pobres não são um problema
a solucionar, mas sim pessoas a qucm devemos nos unir.
Charles Williams, homem que entendia bem os caminhos
do Espírito Santo na história, observou que "a Igreja nun-
ca existiu muito tempo em um lugar sem criar a exigência

6. Martin Hengel, Properry and Riches in lhe Ear!y Church (Philadel-


phia: Fortrcss. 1974). pág. 45.
7. A palavra traduzida como "planos dos pobres" também pode ser
'"companhia dos pobres", Conselho é, também, concílio. Ver Dahood, The
Psaims. 1:R2.

137
Onde o seu tesouro está

de uma Revolução. Cristo disse: 'os pobres vocês sempre


terão consigo', e em todo lugar em que essa tradição chegou
acabamos tendo a perccpçào cortante da presença deles".'
Essa percepção dá origem à paixão pela justiça social.
Em hebraico, há relação estreita entre as palavras
pobre ('anivyim) e humilde ('anawin). A primeira designa
uma situação socioeconâmica. A outra, condiçào moral e
espiritual. As duas têm em comum a ausência de posses.
Devido às circunstâncias ou por escolha própria, não estão
no controle. Não podem, ou se recusam a segurar as rédeas
de seu destino. Por isso, estão aptos a receber os dons da
generosidade soberana de Deus e responder a eles.
Foi nesse ponto que .Jesus começou a ensinar Seus
seguidores a viverem pela fé. As palavras dEle chegaram até
nós em duas versões: "Bem-aventurados os pohres de es-
pírito" ('aniyyim -- Mateus 5.3) e "Bem-aventurados vocés.
os pohres" ('anawin - Lucas 6.20). Cada uma é análoga à
outra -- pobreza física é para o corpo o que a espiritual é para
a alma. Começamos na vida guiada por Deus doando a si
mesmo e nos abençoando através da ausência de bens.

Para que sejamos verdadeiramente abençoados, devemos


esquecer todo ímpeto de buscar posses. Temos que abrir
mào de nós mesmos e do impulso de cuidar de nossos
interesses. E o caminho para isso é expor-se a situações
de privação mentaL emocional c espiritual. '!

Ninguém se surpreende ao descobrir que o ateu de


coração se sente ameaçado pelo pobre: na presença da jus-
8. Charlcs \Villiams. He Cume Dmvn.f;·olJ1 Heaven (Londres: Fabcr
& Faber. ]956). pág. 63.
9. Simon Tugwel1. The Eca/iludes: Sozllldings in Christia/1 TradifioJl
(Springficld. 111.: Templegatc Publishcrs. 1980), pág. 26.

13R
Justificado por Deus

tificação de Deus, o farisaísmo se revcla como rcalmente é,


ou seja, atcísmo não declarado mas praticado com fervor.
Enquanto for possível evitar os pobres ou encará-los como
inferiores, a condição de não ter, na qual entendemos que
tudo quc é essencial à existência vem do Outro, será igno-
rada. O ateismo não declarado passa sem ser detectado e,
por isso, não é contestado.

Uma aflição comum


O mais alarmante é que tudo isso é muito comum. O
SEI\HOR olha dos céus para os filhos dos homens, para ver
sc há alguém que tenha entendimento, alguém que busque a
Deus. E não encontra ninguém. Todos se desviaram, igual-
mente se corromperam; não há ninguém que faça o bem, não
há nem um sequer.
Paulo cita isso em scu maravilhoso argumento na carta
aos Romanos, quando expõe as tentativas humanas de viver
em busca de autojustificação (3.10-12). Judeus e lo'Tegos, re-
ligiosos e sem religião, piedosos e pagãos - todos vivemos
envoltos no ego e tentamos prosseguir sem Deus ou usá-Lo
para nossos propósitos. Em qualquer caso, estamos diante do
ateísmo: redução de Deus a status de não-divindade, para que
eu, como meu próprio deus, possa ignorá-lo ou determinar que
Ele me ajude do jeito que eu quero.
Pelo menos um dos motivos disso ser tão comum é que
é muito fácil. O ateísmo do coração, oposto ao da mente, não
se preocupa em negar a existência de Deus com argumentos
lógicos. Isso requer muito esforço. Ademais, não é necessário.
Basta tirar-lhe a letra maiúscula, rebaixá-Lo de Deus para
deus. Concordo com a condição de deidade, mas restrinjo sua
jurisdição a questões que não ameaçam minha soberania.

139
Onde o seu tesouro está

Ao contrário do ateismo moral, o do coração não pro-


testa contra a existência de Deus em discursos inflamados.
Isso requer muito esforço e é desnecessário. Basta ignorar
o sofrimento inocente que questiona a presença divina. En-
quanto cu lido com tennos econômicos e não morais, bu-
rocráticos e não éticos, psicológicos e não espirituais, não
preciso pensar em Deus.
a ateísmo do coração é o sistema de fé (ou de falta
de fé) do farisaísmo. Estabelece o ego no centro e coloca
em volta dele coisas, pessoas, eventos e Deus, de tal fonna
que, apesar do que aconteça, o ego sempre estará certo. V(JX
mei vox dei ("minha voz é a voz de Deus"). Tudo é visto e
interpretado em relação ao ego soberano. Com freqüência,
isso é administrado com grau extraordinário de sucesso. Há
sempre muita gente que age com maldade ou burrice e pode
ser acusada pelo que está errado no mundo. Assim, o ego
soberano jamais será questionado.

Sem interesses por Deus


a ateísmo, tentativa de ser o senhor do próprio des-
tino e de todos os outros que se encontram por perto, não é
empreitada espalhafatosa de uma lenda, e sim assunto sério.
Esses ateus são rígidos, pretensiosos, pessoas rebaixadas em
seu potencial. Agindo com desprezo ou condescendência
para com Deus, a quem eonfessam em público (a verdadeira
atitude para com os pobres revela a atitude interior para com
o Senhor), dependem de bens de consumo, status ou da opi-
nião dos amigos - sempre alguma eoisa impessoal ou abstra-
ta - para conferir-lhes senso de valor. Na ausêneia de vida
interior, precisam de parafernália exterior, coisas persona-
lizadas ou pessoas despersonalizadas, para adquirir a percep-

140
Justificado por Deus

ção deles mesmos. a termo mais recente para esse ateismo


secreto do coração é narcisismo, que tipifica a estrutura de
caráter da sociedade que perdeu o interesse por Deus. 'o
Essas pessoas são tolas. Na Bíblia, tolo é o termo que
transmite mais desprezo. Trata de quem não sabe o que
se passa no cosmos, mas não é aquele ignorante que pro-
cura aprender, nem o que está perdído e quer se encontrar.
a tolo não sabe que não sabe. Na verdade, pensa que sabe
tudo, que entendeu todas as coisas, que possui informações
confidenciais e conhece todos os segredos. Falta-lhe a base
que o manterá firme. É incapaz de elaborar planos que te-
nham valor. Ao final, inevitavelmente, será destruído. Usado
como verbo, o termo tolo (nabal) significa "desmoronar" e,
bem ligada a essa palavra, vem a que significa "cadáver".'1
Quando o ar quente deixa o balão colorido, resta apenas uma
bexiga flácida.
a oposto de tolo é sábio, aquele que sabe viver. a
significado básico da palavra não é saber todas as respos-
tas, mas desenvolver as relações (relacionamentos) corre-
tas com as pessoas e com Deus. a sábio entende como o
mundo funciona, conhece paciência, amor, graça, adora-
ção, beleza e sabe ouvir. Tem consciência de que as pes-
soas são criaturas maravilhosas a quem deve respeitar e
com quem deve travar amizade. Isso se aplica de modo
especial àqueles que não vão lhe dar nada. Ele sabe que
10. Christophcr Lasch examinou esse fenômeno sob a perspectiva
sociológica. Ele defende que a causa não é perda de interesse el11 Deus. mas
sim no futuro c no passado, c isso pouco a pouco reduz a comunidade apenas
ao que é imediato c, por fim. leva o indivíduo a se importar apenas com seu
ego imediato. Veja The Clt!fure o(l'v'arcissism (Nova Iorque: Vv'. W. Norton,
1968). pág. 211.
11. Johanncs Pederscn, Israel, lts L[t'e alld CII/lure. volumes \-2
(Londres: Oxford Univcrsity Pross, 1946), págs. 429. 539.

141
Onde o seu tesouro está

a Terra é um dom admiravelmente intrincado do qual dc-


vemos desfrutar, mas que também prccisa de cuidados.
Sabe quc Deus cstá sempre no centro, é a realidade imu-
távcl cujo amor envolve todos. Tem consciência, ainda, de
que todo ser vivo tenta em alegria responder a Dcus e al-
cançá-Lo, assim como à nação/reino/comunidade em que
Ele nos colocou.
O sábio conhecc a única cura possível para o tolo. É a
oração tão apaixonada pcla salvação dos outros quanto pela
dele mcsmo: Ah, se de Sião viesse a salvação para Israel!.
Oração convicta de que só haverá bem-estar quando todos
forem restaurados ao lugar da bênção: Quando o SENHOR
restaurar o seZl povo. E oração que vê a comunidade como
lugar de celebração e não de aquisição: Jacó exultará! Is-
rael se regozijará! (versículo 7).

142
Capítulo 9
Servindo a Deus

SALMD82

É Deus quem preside à assembléia divina;


no meio dos deuses, ele é o juiz.
"Até quando vocês vão absolver os culpados
efavorecer os ímpios?
Garantam justiça para os fracos e para os órfãos;
mantenham os direitos dos necessitados e dos oprimidos.
Livrem osfracos e os pobres;
libertem-nos das mãos dos ímpios.

Eles nada sabem, nada entendem.


Vagueiam pelas trevas;
todos os fundamentos da terra estão abalados.

Eu disse: "Vocês são deuses,


todos vocês são filhos do Altíssimo.
Mas vocês morrerão como simples homens;
cairão como qualquer outro governante ".

Levanta-te, ó Deus, julga a terra,


pois todas as nações te pertencem
Não é certo concordar com a noção de que a vida de
um homem se divide entre o tempo que ele passa em seu
trabalho e o que ele dedica ao serviço de Deus. Ele tem que
ser capaz de servir a Deus em sua profissão, que deve ser
aceita e respeitada como meio da criação divina. ... Todo
fabricante e todo trabalhador são chamados para servir a
Deus em sua profissão ou negócio - não fora disso.
DOROTHY L. SAYERS 1

ma das afirmativas mais notáveis e ousadas da


U comunidade cristã foi feita por Ireneu, no início
do século 11. Nunca foi repudiada nem abandonada. Ele
disse que Deus "tomou-se o que somos para poder nos
transformar, no final, no que Ele é".2 Duzentos anos depois
Atanásio, em uma polêmica violenta contra um inimigo
que ele acreditava estar atacando a jugular da humanidade,
afirmou com mais ousadia ainda: "Ele se tomou homem
para que pudéssemos nos tomar Deus".3
A alegação é notável porque esses cristãos aceitavam
a origem hebraica, viviam de acordo com ela e não abriam
mão do monoteísmo: "Deus é Deus e não há outro". No meio
da confusão de deidades no mundo antigo, Israel conquistou
o culto apaixonado direcionado ao único Deus. Não havia
exceções: O SENHOR, o seu Deus, é Deus zeloso.
O entendimento de que Deus é um desenvolveu uma
esperança internacional visionária: como nações e raças
1. Dorothy L. Sayers, Creed ar Chaos? (Nova Iorque: Harcourt,
Brace & Co., 1949), págs. 56-57.
2. lreneu, Against Heresies, citado por Kenneth Leech, The Social
God (Londres: SheIdon Press, 1981), pág. 27.
3. Atanásio, On the Incarnation, citado por Louis Bouyer, A History
o(Christian Spirituality, volume 1 (Nova Iorque: Seabury Press, 1982), pág.
418.

145
Onde o seu tesouro está

estavam sob o poder de um único soberano e não de dei-


dades rivais em disputa, a comunidade e a paz mundial
eram possíveis (Isaías 2.1-5). Essa convicção forneceu
ainda a base para a integração do ego. Impediu a multi-
plicação de deuses correspondentes ao número de desejos,
acabou com o "deus" como mera alavanca para remover
todas as exigências da vida que não consigo afastar com
minha própria força.
Monoteísmo pode nos parecer termo pesado, óbvio
e intelectual, mas para os primeiros crentes era como uma
iluminação rápida e penetrante: Viva em um todo integra-
do, sem conflitos nem fragmentos, em um mundo desar-
mado e unido. Vale pensar no que teria levado os cristãos,
que celebravam e defendiam essa verdade conquistada a
duras penas, a aceitarem qualquer coisa que apresentasse o
menor traço de desafio.
Afirmar que há um traço potencialmente divino em
nós é audácia, porque o desejo humano de ser deus, em
geral descrito como orgulho, leva à ruína. A primeira ten-
tação narrada na Bíblia é ser "como Deus" (Gênesis 3.5).
Quem se toma como Deus não precisa ser Deus, e pode
perfeitamente funcionar como Ele por suas próprias forças.
Qualquer pessoa com o mínimo de experiência na condição
humana concorda que essa é a primeira das tentações, que
se insinua em nossa vida de forma evidente e também dis-
simulada.
Conhecedores da propensão a querer ser Deus, da in-
cansável engenhosidade do auto-engano e da auto-afirma-
ção, para fingir ser semelhante ao Pai, Ireneu e Atanásio,
pastores sábios e respeitados, não deveriam ter ousado abrir
nem uma fresta da porta que permite a entrada dessa ten-

146
Servindo a Deus

tação. No entanto, abriram, e muito conscientes do perigo.


Nenhum deles negaria o grande risco contido em suas de-
clarações. Eles se arriscaram porque viam um perigo muito
maior do que o politeísmo e o orgulho, ou seja, aquilo que
veio a se chamar, mais tarde, de arianismo.

Inimigos improváveis
Ário era um inimigo improvável. Pastor cristão no
Egito, no século IV e, segundo todas as informações, um
homem respeitável. Charles Williams o descreveu como
"persuasivo, virtuoso e simples".4 Os ensinamentos dele
pareciam plausíveis e livres de todo mal. Pelo menos à
primeira vista. Ele simplesmente afirmava que a verdadeira
vida de Deus não podia ser compartilhada nem transmitida.
O raciocínio é lógico: Deus é tão completamente santo, tão
absolutamente "outro" que não há como essa santidade ser
compartilhada com a humanidade sem ser comprometida
ou maculada e Deus, é claro, jamais será comprometido ou
maculado. Como conseqüência, Jesus não era expressão
de Deus em forma direta ou pessoal. Era uma criatura mol-
dada com o propósito de nos ensinar sobre Deus. O Se-
nhor teria necessariamente que manter distância de nós
para continuar sendo Deus.
A relação entre Deus, homens e mulheres é, então,
um relacionamento de ensino: didático e moral. Recebemos
instruções, mandamentos e ordens, mas não há comparti-
lhamento da experiência de vida, nem amor, nem comu-
nhão. No mundo de Ário havia separação completa entre
Deus e humanos. Ele não se derramava em amor salvífico.
Era visto como um tirano benigno que empurra as pessoas
4. Charles Williams. The Descenl oflhe Dove (Nova Iorque: Living
Age Books, 1956), pág. 51.

147
Onde o seu tesouro está

rumo à bondade ou, em outras versões, um pedante desti-


tuído de humor que adestra seus pupilos nos fundamentos
da moral. O Deus ariano era como o imperador romano:
sublime, remoto - um déspota.
Atanásio, pastor jovem que vivia na mesma cidade
que Ário, percebeu que os argumentos deste, por mais elo-
giosos que parecessem ser para Deus, aviltavam as pessoas.
Sentiu que havia alguma ligação profunda e íntima entre o
que acreditamos sobre Deus e a forma como agimos todos
os dias, notou que internalizamos o que entendemos como
ação de Deus em nosso favor e expressamos isso em com-
portamento social e político.
Se eu acreditar que Deus não compartilha dEle mes-
mo de forma pessoal e imediata, se pensar que Ele age
sempre de maneira impessoal e remota, adotarei a mesma
postura. Em meu papel de pai, passarei a dar ordens a meus
filhos como se eles fossem meus servos em lugar de con-
versar com eles como pessoas. Tratarei meu cônjuge como
alguém que deve atender minhas expectativas em lugar de
me lançar à difícil arte de dar e tomar da intimidade. Como
trabalhador, darei mais importância à tarefa do que à pes-
soa que a realiza. Cada vez que nego ou suprimo minha
capacidade de manter relacionamentos pessoais em favor
de um status ou função impessoal, perco um pouco da ima-
gem de Deus em minha humanidade.
Minhas opiniões sobre Deus influenciam o que penso
sobre mim mesmo e, assim, as transformações que ocor-
rem em mim. O arianismo considera Deus criador, mas
não salvador; instrutor mas não ajudador; comandante mas
não apaixonado. O resultado é um Técnico onipotente em
lugar de um Pai eterno. O Técnico cria, possui e usa como

148
Servindo a Deus

um oleiro fabrica, possui e usa seus vasos. Mas potes de


cerâmiea não têm pai. Assim, somos órgãos e o evangelho
não existe 5
Esse tipo de pensamento sobre Deus destrói radical-
mente o relaeionamento, e os grandes atos de encontro, amor
e oração, desaparecem pouco a pouco. Apesar de todo vigor
intelectual e aparência de bom-senso, o arianismo é abomi-
nação para as Escrituras e a humanidade: uma religião sem
amor e sem oração." É impossível ser humano em sentido
completo sem amor e oração, sem intimidade com o outro
e com Deus. Atanásio insistia que também era impossível
ser Deus de acordo com as Escrituras sem amor e oração.
Jesus, que amou e orou entre nós, não estava mostrando al-
guma coisa sobre Deus, mas estava na verdade sendo Deus
conosco, compartilhando a salvação em intimidade e etcrni-
dadc que estavam além da lógica grega e do senso-comum
egípcio. Ele estando conosco e dentro de nós, uma grande
transfonnação teve inicio: "Ele se tomou homem para que
pudéssemos nos tornar Deus".
Por mais improvável que pareça, essa discussão entre
dois pastores em Alexandria acabou sendo o evento políti-
co mais importante do século IV. Prosseguiu por décadas,
provocou a realização de sinodos e concílios, deu início
a perseguições sangrentas e exigiu atenção completa, em-

5. Leech, The Socio/ Cod, pág. 34.


6. "Em cada ponto temos clareza aparente, enquanto que tudo é vazio
c formal, entusiasmo infantil para brincar com cascas c conchas e satisJàçào
de criança na elaboração de silogismos vazios." J\dolf lIarnack, / /isfOlT q!
/)ogma, 7 volumes (Nova Iorque: Dovcr Publications, 1961), 4:41-42. Co-
chrane. em sua análise irrefutável da controvérsia, escreveu: "O arianismo
foi descrito como uma heresia de bom-senso, c roi sugerido que o verdadeiro
prohlema com o heresiarca cra que 'ele era incapaz de entender uma mct<Í-
fora'''. Chrisfianity and Classical CII/fure, pág. 233.

149
Onde o seu tesouro está

bora relutante, de seis imperadores. É uma eomprovação


históriea marcante do aforismo de Charles Péguy: "Tudo
começa no misticismo e tennina na política".' A intensi-
dade pessoal e interior de dar atenção a Deus se concentra
em energia que se expande para o exterior, na comunidade,
no governo e na cultura. O momento nem sempre é evi-
dente, mas aconteee o tempo todo.

Encarnação em público
Uma oração contribui para a alegação notável e ousa-
da de compartilhar da própria natureza de Deus. Participar
da obra dEle lança cristãos e suas comunidades repetidas
vezes no centro da história mundial. É o Salmo 82. Ele co-
loca em risco o monoteísmo para nos atrair a percepções e
reações que praticam a encarnação em público.
A linha de abertura estabelece o precedente para Ire-
neu e Atanásio. Na companhia de toda sua parentela es-
quecida e não mencionada, cles sc aventuraram a deixar a
segurança dos santuários - não sem certo temor ~ e foram
para as ruas como "pequenos Cristos" (o significado origi-
nal de cristão).

É Deus quem preside à assembléia divina;


no meio dos deuses, ele é o juiz.

Não há, nos Salmos, outra passagem que exija tanto


conhecimento teológico do tradutor. Nenhuma tradução li-
teral fica correta, pois é: "Deus ('elohim) se coloca na con-
gregação de Deus ('el); entre deuses ('elohim) ele julga". A
dificuldade é que a mesma palavra para Deus, 'elohim, é usa-
7. Charlcs Péguy, Basie Verities (Nova Iorque: Pantheon Books.
1943),pág.lü9.

150
Servindo a Deus

da duas vezes, mas com significado diferente. Na primeira


ocorrência está claro que se refere ao Deus de Israel, Criador
c Juiz do universo. Mas a segunda é mais difícil. Usando o
contexto para interpretar, vemos que se refere aos juízes hu-
manos de Israel, a qucm foi atribuída função elevada, seme-
lhante à de Deus.' Esses "deuses" são acusados de julgar
injustamente e recebem a ordcm de partir e agir da forma
correta (versículos 2-4). A "divindade" deles é reafirmada
no versículo 6, junto com a mortalidade no 7.
Assim, estamos diante não de uma dcfinição, mas de
uma visão teológica, cenário de pessoas trabalhando em
scrviços que Deus lhes atribuiu. O texto O apresenta como
Juiz, mas Ele não reserva o trabalho exclusivamente para
Ele mesmo. Compartilha. Isso é surpreendente, pois requer
inteligência elevada c virtude inflexível. Além disso, se o
trabalho for mal feito, os resultados adversos chegarão ao
próprio Juiz e provocarão questionamento sério sobre a ca-
pacidade dc quem está no controle: todos os fundamentos
da terra estào abalados (v.S).
Todos que receberam a incumbência de julgar são vis-
tos reunidos em uma assembléia em tomo de Deus, o Juiz.
A visão é clara e limpa - sem enf(:ites nem narrativas. Deus
e deuses aparcccm cinco vezes (versículos I, 6 e 8). Juiz e
justiça, cinco (versículos 2,3 c 8). O tema é claro: os que rece-
beram uma tarefa de Deus são chamados a prcstar contas.

H. A interpretação mais comum é que a visào descreve deidades pagàs


reunidas diante de um tribunal celeste, onde Deus as julga por seu embo-
tamento moral, responsável pela desordem cósmica e social. Ver Dahood,
The Psa!ms, 2:268. Não tenho objeção à possibilidade das imagens da visão
virem de algum tipo de mitologia, mas, cm seu contexto canônico, parece-
me muito mais provável que o Salmo tenha sido orado a partir de material da
experiência reaL pessoal e histórica.

151
Onde o seu tesouro está

É função dos juízes dístríbuír a justiça, manter o di-


reito, resgatar, libertar. Têm responsabilidade especial com
os fracos, órfãos, aflitos, destituídos e necessitados. Mas es-
ses juízes não estão cumprindo sua missão. Julgam segundo
seus caprichos e preconceitos. Ajudam os ricos e são influ-
enciados pelos perversos. O resultado da ação de um juiz
sábio, honesto e justo é aparente na vida dos que se colocam
diante dele. E também quando ele é tolo, desonesto e ten-
dencioso, o resultado é evidente na vida dos que ele julga.
A evidência histórica acusa os juízes. Por quanto tem-
po continuarão sendo injustos? São colocados no banco dos
réus: juízes julgados. Não são soberanos em seu trabalho,
participam da obra de Deus. Essa tarefa, por derivar de Deus
e scr delegada por Ele, os transforma, funcionalmente, em
deuses. Mas não os torna, eles mesmos, deuses, pois vocês
morrerilo como simples homens (v.7).
Esses deuses não estão trabalhando como deuses:
em seu serviço, traem seu ehamado, sem dar atenção à
naturcza e ao propósito de sua obra. 'Eles nada sahem,
nada entendem. Vagueiam pelas trevas. .. (v.S) Mas o que
deixam de saber, de entcnder e de ver? Que são deuses
em seu trabalho. Acreditam que por cles mesmos são
deuses e que por isso podem fazer o que quiserem, mas
isso não é verdade. Se não fizerem seu trabalho cm obe-
diência a Deus, acabarão se tornando nada: 'vácês silo
deuses, todos vocês silo filhos do Altíssimo. Mas vocês
morrerilo como simples homens; cairilo como qualquer
outro governante' (versículos 6-7). Se tomarmos o título
de deus e não fizermos o trabalho correspondente, só
conseguiremos enganar a nós mesmos. A morte revelará
a ilusão.

152
Servindo a Deus

Questionamento hostil
Jesus corroborou cssa interpretação do Salmo 82. No
inverno que antecedeu Sua paixão, foi questionado com
hostilidade: "Até quando nos deixará em suspense? Se é
você o Cristo, diga-nos abertamente ". Jesus disse: "Eu e
o Pai somos um ". A pena para esse desafio ao monoteÍs-
mo era apedrejamento, e os judeus pegaram pedras para a
execução. Jesus perguntou: "Eu lhes mostrei muitas boas
obras da parte do Pai. Por qual delas vocês querem me
apedrejar? ". Eles retorquiram: "Não vamos apedrejá-lo
por nenhuma boa obra, mas pela blasfêmia. porque você
é um simples homem e se apresenta como Deus". Jesus
conseguiu salvar sua vida com uma citação do Salmo 82:
"Não está escrito na Lei de vocês: 'Eu disse: Vocês são
deuses'? Se ele chamou 'deuses' àqueles a quem veio a
palavra de Deus (e a Escritura não pode ser anulada),
que dizer a respeito daquele a quem o Pai santificou e
enviou ao mundo? Então, por que vocês me acusam de
blasfêmia porque eu disse: Sou Filho de Deus?" (João
10.24-36).
Jesus atribuiu essa palavra a Ele mesmo, mas não com
exclusividade: "Se ele chamou 'deuses' a quem veio a pala-
vra de Deus... ". Essa é uma sentença interpretativa. Por Sua
Palavra, Deus transforma homens e mulheres em "deuses".
Pela ordem dEle, os juízes eram deuses, realizando seu traba-
lho. Aqui, como em Gênesis. "Ele.fàlou, e tudo sefá." (Salmo
33.9) O caos virou cosmos. Humanos se tornaram juízes que
participam da ministração divina da justiça e, com isso, pas-
saram a ser deuses. "Vocês são deuses" é uma atribuição cho-
cante do divino para o trabalho realizado por humanos. Soa
como blasfêmia aos nossos ouvidos, assim como foi com os

153
Onde o seu tesouro está

judeus que desafiaram Jesus. Mas não é blasfêmia, é encar-


nação.
Jesus usa o texto de forma consistente com o signifi-
cado do Salmo: eníàtiza o trabalho, não o ser, não o que a
pessoa é, mas o que ela faz. Ao fazer essa observação, não
estou desprezando a forte ênfase sobre o ser por todo o
evangelho de João, onde Jesus é apresentado como divino
(a seqüência dc afinnaçães com "cu sou" abrange toda essa
ênfase). Mas repare que o Salmo 82 foi usado para estabe-
lecer o trabalho como sinal dc participação no divino: "As
obras que eu realizo em nome de meu Pai/àlam por mim
... Eu lhes mostrei muitas boas obras da parte do Pai. Por
qual delas vocês querem me apedrejar? ... Se eu nào reali-
zo as obras do meu Pai, nào creiam em mim ... creiam nas
obras" (João 10.25,32,38, grifas meus).
Embora a obra importante do julgamento humano
tenha sido uma que sabemos que Jesus excluiu com muita
deliberação de sua prática ("Homem, quem me designou
juiz ou árbitro entre vocês?" Lucas 12.14), Ele se incluiu
no cspaço da referência do Salmo. A missão dEle era cn-
sinar, curar, pregar, visitar, orar c, muito provavclmente, no
inicio dc Sua vida, praticar carpintaria. Mas Ele entendia
que os juízes do Salmo representavam todos os obreiros.
Sua auto-inclusão expande a referência para além do tra-
balho dos juízes, envolve todo tipo dc obra: uma atribuição
para participar da obra divina. Não há trabalho secular. Nc-
nhum serviço é apenas nosso. Ao trabalhar, nunca estamos
"por conta própria".
Somos semelhantes a Dcus no trabalho porque toda
obra tem origem nEle e é Ele quem detennina o que de-
vcmos fazer. Há dupla intenção no trabalho: continuar o

154
Servindo a Deus

processo da criação (Gênesis 2.15) e enfrentar as conse-


qüências do pecado (Gênesis 3.17-19, 23). A obra original
de cuidar do jardim não foi revogada pela Queda, mas por
certo ficou mais complicada com a presença de espinhos e
pragas.
A reunião visionária de juízes no Salmo 82 gera ou-
tras visões: reuniões de motoristas, médicos, construtores,
advogados, comerciantes, professores, mineiros, guardas flo-
restais, fazendeiros, marinheiros, pastores, soldados, pesca-
dores, assistentes sociais, jornalistas, artistas, estivadores - o
catálogo de visões mais variadas que conseguirmos imaginar.
Visão não é doutrina. Seu propósito não é estabelecer linhas
claras de definições, mas sim abrir os horizontes da imagina-
ção para o mundo extenso da ação de Deus. As visões não são
cautelosas e cuidadosas, mas de extravagância descuidada.
Percebemos lampejos da maravilha de nosso serviço, de sua
santidade e significado. Em sua origem e intenção, o trabalho
almeja aumentar as bênçãos da criação e anular os efeitos da
perversidade. Reunidos assim pela visão, eu e meus colegas
ouvimos a pergunta: "Suas obras têm dado origem a vítimas
ou a gente que celebra'?".
Todo trabalho foi planejado para fluir da ação de
Deus. Exatamente da mesma forma, todas as obras po-
dem se afastar dEle. Qualquer serviço é passível de sepa-
ração do alvo oríginal e de explorar e rebaixar pessoas,
eoisas, sociedades e instituições. Em sua execução, o tra-
balho pode usar pessoas, materiais e idéias em benefício
próprio, e com isso a intenção da criação é subvertida e os
caminhos do pecado crescem. Nenhuma obra está livre
desse risco. O serviço ao ego acontece tanto na igreja
quanto nas fábricas. A exploração tem lugar com a mesma

155
Onde o seu tesouro está

facilidade no púlpito e no hospital. Juizes se corrompem.


Presidentes defraudam. Cientistas são desonestos. Robert
Louis Stevenson deparou-sc com um homem espancando
um cachorro em uma rua de Edimburgo. Partiu para a
ação - agarrou o homem pelo colarinho, empurrou-o para
uma parede e censurou-o. O homcm choramingou: "O ca-
chorro é meu e posso fazcr com ele o que eu bem quiser".
Stevenson respondeu: "O cachorro não é seu. É de Deus,
e cstou aqui para protegê-lo".
O que foi visto na oração começa a ser absorvido. O
teste do valor do trabalho não está no lucro que gera nem no
status que confere, mas nos efcitos que causa na criação. Te-
mos que verificar se as pessoas empobreceram, se a terra foi
aviltada e a sociedade, defraudada, se o mundo melhorou ou
piorou por causa de minhas obras. Estamos tão acostuma-
dos a avaliar em termos de produtividade que deixamos dc
perceber a importância cm termos de criatividade. Faz tanto
tempo que nos dedicamos à cficiência e ao lucro que nem
nos ocorre qucstionar a virtude. Mas Adam Smith não tilZ
parte do Cânon e o Salmo 82 faz. Deus nos conccde trabalho
não para estimular a ambição ncm para encher nossos bol-
sos, mas para aprofundar a criação e santificar a sociedade.
Nenhuma obra pode ser rcduzida apenas ao que fazemos
para ganhar a vida. Todo trabalho implica cm participação
na obra divina. Dcus trabalha e por isso nós também traba-
lhamos, e nisso somos dcuscs. Direcionamos energia, mol-
damos matéria e participamos de relacionamentos, cultiva-
mos e cuidamos de terra e altar.
O Salmo 82 se coloca como marco dc alerta contra a
oração como afastamcnto religioso do mundo externo para
cultivo de experiências interiorcs. A visão afasta nossa aten-

156
Servindo a Deus

ção da vida interior e leva para toda a abrangência da exte-


rior em nosso trabalho e vocação. Gregório de Nissa, um dos
primeiros pais da Igreja, insistiu com maestria em que orar
a Deus é impossível se o ato estiver confinado à mente e ao
coração: não há nada na oração que possa ser destilado da
vida e mantido santo em uma garrafa. Ele dirigiu a atenção
para a participação não no que Deus é, mas no quc ele faz.

o homem que compartilha com o pobre compartilhará


também eom Aquele que se tornou pobre por amor a
nós.... Precisamos imitar a compaixão divina de tal
f(mna que tenhamos a ousadia de dizer a Deus: "[mita
teu servo, Senhor, teu pobre e necessitado servo. Eu per-
doei, perdoa tu agora"."

Tornar-se Deus, então, é agir como Ele age - em amor,


pobreza e compaixão - não apenas em algumas noites por
mês e nos finais de semana, mas no trabalho diário. "Exter-
nalizar" é ato de oração tanto quanto internalizar.
O Salmo 82 foi arranjado em forma de visão. Ao orá-lo,
nos vemos chamados a prestar contas diante de Deus. Não
poderíamos jamais desperdiçar a vida de forma tão trivial,
servindo a nós mesmos e, com isso, infligindo tanta crueldade
e devastação aos outros. Pereebemos que somos deuses, não
em auto-afirmação orgulhosa, mas em descoberta que pro-
voca respeito: somos responsáveis por poupar vidas, distribuir
amor, exercer compaixão e oferecer misericórdia. Nos encon-
tramos em posição de fazer alguma coisa pelos outros, seja
explorar ou ajudar, ferir ou curar. Somos mais do que pessoas
que fazem o melhor possível, tentam ficar fora do caminho
dos importantes e empurram para o lado os pequenos. Diante
9. Gregório de r\issa, Froll1 G/or.\' lo Glorr (t\ova Iorque: Charles
Scribner's Sons. /961). pág. 190.

157
Onde o seu tesouro está

de Deus, entendemos quanto nós mesmos e o mundo empo-


brecem quando o trabalho comum é visto como alheio à vida
de fé. A visão recupera o esplendor original c nos testa com
relação a Ele, em ato de julgamento. Nunca mais verei o tra-
balho como aquilo que sou obrigado a fazer para prosseguir
como ser humano. Através da visão, que volta na oração e é
muitas vezes revista, recupero minha inclusão na declaração
incrívcl: "Vocês são deuses".

De ver a dizer
Mas isso não é a visão completa. Há, bem no final,
urna transição de ver para dizer. Surge um clamor:

Levanta-te, ó Deus, julga a terra,


pois todas as nações te pertencem

"Levanta-te, ó Deus..." Quando oramos, pensamos


que estamos fazendo Deus participar de nossas operações.
O que acontece é o contrário. Em lugar de atribuir a Ele
uma tarefa, descobrimos que serviço Ele designou para
nós, vemos que não conseguimos realizar e que precisamos
da iniciativa dEle para que o serviço volte a acontecer em
nós e nos outros. Ao pedir a Deus que realize o trabalho
dEle, que entendi ser meu também, volto a participar, em-
bora não saiba muito bem o que fazer, mas agora não sirvo
. .
mais a mlln mesmo.
E então: "terra ... nações". A visão deixou claro que
nosso propósito não é cuidar de nós mesmos e sim da terra
e das nações. A terra é assunto de oração tanto quanto a
alma. As nações, tanto quanto o próximo. A visão nos pro-
voca e motiva a orar com tanta veemência pela terra e as
nações quanto oramos por nossa saúde e salvação. Não se

158
Servindo a Deus

trata de reduzir os assuntos pessoais c se concentrar nos


políticos. A oração expande nossa capacidade de forma
quc mantemos tudo em nosso campo de oração e, assim,
na intercessão.
Buckminster Fuller declarou quc o propósito das pes-
soas neste mundo é ir contra a maré de entropia descrita na
Scgunda Lei da Termodinâmica. Os elementos físicos sc
dcsfazem em um ritmo tcrrível. As pessoas, por sua vez,
tentam retàzer. Constroem pontes, cidades e estradas; es-
crevem músicas, romances e constituições; têm idéias. Para
isso vivem neste mundo. O universo precisa de alguém ou
alguma coisa que impeça sua dcstruição. Fuller não incluiu
a oração cm sua Iista de providências, de fonna que eu
complemento: a oração acaba com a destruição. 111
Visões quc levam à oração mostram a santidade das
tarcfas humanas de todos os dias. A interccssão restaura o
trabalho desordenado e o recoloca em seu devido caminho.
A invocação interfere com a queda de culturas e sistemas e
faz de ora et labora o lema quc molda nossa história.

10. Devo essa referência a Annie Dillard, Liring hy Fictioll (Nova


Iorque: I-1arpcr & Row, 1982). p<Íg. 173.

159
Capítulo 10
Suficiência de Deus

SALMO 1I4

Quando Israel saiu do Egito,


e a casa de Jacó saiu do meio de um povo
de língua estrangeira,
Judá tornou-se o santuário de Deus,
Israel o seu domínio,

o mar olhou efúgiu,


o Jordào retrocedeu;
os montes saltaram como carneiros,
as colinas, como cordeiros,

Por quejúgit; ó mar:


E você, Jordào, por que retroceder?
Por que vocês saltaram como carneiros, Ó montes?
E vocês, colinas, porque saltaram como cordeiro,s'?

Estremeça na presença do Soberano, ó terra,


na presença do Deus de Jacó I
Elelez da rocha um açude,
do rochedo uma /ónte,
Para me criar, e criar você, Deus tem que criar meio
universo. O corpo e a mente de um homem formam um
.loco em que um mundo se concentra e se delineia até certo
ponto.
AUSTIN FARRER I
,
opinião corrente na atualidade que a culpa pela de-
E sordcm ecológica ocorrida no século XX cabe aos
cristãos. Para sustentar a acusação, surge a constatação de que
os cristãos costumam se preparar mais para a vida eterna do
quc para a temporal e que, em seu sistema de valorcs, o Céu
é muito mais importante do que a Terra: "Sou forasteiro aqui,
cm terra estranha estou". Tendo como alvo fundamental viver
eternamente nos Céus, possuem apenas sobras de energia para
cuidar deste planeta e perder tcmpo com ele.
Acompanha essa preferência pelo Céu a convicção
dc que a Terra sc destina à destruição iminente. Diante de
sina tão trágica, fica difícil reunir entusiasmo para limpar
rios e preservar florestas que logo se desfarão em cinzas no
incêndio terrível do Dia do Juízo. Com a Terra já em estado
avançado de decadência e corrupção, uma mina de superfí-
cie aqui e um aterro de lixo radioativo um pouco mais adi-
ante farão muito pouca diferença. Uma forma muito melhor
de aproveitar o tempo é tratar dos assuntos da alma, que a
deixarão pronta para habitar na "nova Terra" que descerá
do Céu quando acabar o julgamento da que existe agora.
Essa acusação contra os cristãos encontra base na
citação de textos bíblicos que aconselham a exploração da
Terra. Muitos afirmam que o texto de Gênesis: Encham e
subjuguem a terra! Dominem sobre os peixes do mar, so-
l Austin Farrer, Finite and !njinife (Westminster: Dacre Prcss, 1959),
pág.94.

163
Onde o seu tesouro está

bre as aves do céu e sobre todos os animais que se movem


pela terra (Gênesis 1:28) foi interpretado pelos cristãos
como licença para fazer o que bem entendessem com a ter-
ra, peixes, pássaros e tudo que se move. Subjugar significa
"colocado em uso para atender meus propósitos". Dominar
significa "cu estou no controle". Posso derrubar as flores-
tas sem pensar nas conseqüências, matar baleias, garças e
búfàlos segundo minha vontade, poluir os rios sem parar
para pensar. A Terra e seus recursos são meus e posso usá-
los como quiser. Foi Deus quem disse isso.
A acusação cresce ainda mais diante de compara-
ções com pessoas que não têm contato com a Bíblia. Os
povos primitivos mantêm relação muito diferente com a
Terra: reverência por ela e pelas forças da natureza - cli-
ma, estações, vegetação e vida selvagem. Há grandes mis-
térios, além da compreensão. Esses povos vivem em te-
mor e reverência diante da montanha, do rio, do trovão. Os
pagãos, de forma semelhante, têm relação diferente com
o planeta: eles o celebram, bem como as energias que se
movem por ele - o jorro de vida, o êxtase da procriação e a
influência do sol e das estrelas.
Pagãos e povos primitivos sabem que há algo muito
maior do que eles dentro, embaixo e sobre a Terra. Apren-
dem rituais e histórias que os mantêm em harmonia com ela.
Mas os que seguem a Bíblia desprezam o planeta. Ele está
"abaixo". Gostam de usá-lo, como um senhor gosta de um
servo e o usa, com pouca atenção e até mesmo percepção
de que o servo tem dignidade e um destino que ultrapassa
muito a tarefa trivial de tomar a vida conveniente para o

2. lan L McHarg, Design lvith Nature (Gardcn City, N.Y.: The Natu-
ral History Press, 1969).

164
Suficiência de Deus

senhor. Essa atitude possibilitou a devastação generalizada


e impensada de terra, mar e ar. A postura primitiva diante
da natureza jamais resultaria nisso. A postura pagã não teria
pennitido que tudo isso acontecesse. O pensamento biblico
forneceu atitudes e racionalizações que tornaram tudo pos-
sivel. '

Natureza em frangalhos
Essa é a acusação. Será verdade?
Dificilmcnte. Ela teve inicio em ignorância vergo-
nhosa e indesculpável sobre a mente bíblica e a história
moderna. É fato que homens e mulheres víolaram a Terra.
Nunca houve, em toda a história humana, um periodo em
que a destruição fosse tão severa quanto agora. O filósofo
francês Maurice Merleau-Ponty resumíu o resultado da
obstinação moderna com brevidade sombria: "A natureza
está em frangalhos".'
Mas a responsabilidade pela profanação não pode ser
atribuida à mente bíblica. É verdade que as Escrituras, fa-
zendo contraste com rcligiões primitivas e pagãs, não con-
sideram a natureza divina e, como conseqüência, objeto
de adoração. Ela é vista como criação: trazida à existência
pcla palavra de Deus e, assim, revelação de bondade e bên-
ção. Humanos não são servos do mundo natural (visão dos
pagãos e primitivos). Em decorrência disso, não sentem
terror nem êxtase diante dele. Mas também não estão, de
fonna alguma, acima dele, para poderem olhá-lo de cima,
sem cuidado ou em postura de condescendência.
Sendo as criaturas mais desenvolvidas, "à imagem de
Deus", podemos, por vont"de própria, participar dos pla-
nos dEle. Temos para com o jardim a imensa responsabili-
3. Citado ror Barrett, The l!!ltsiun oj'Teclmique, pág. 335.

165
Onde o seu tesouro está

dade de "cuidar dele e cultivá-lo" (Gênesis 2.15) e somos


"encarregados dos mistérios" (\ Coríntios 4.1 l. A criação
não é um estranho a ser tratado com hostilidade, supers-
tição ou indiferença. Foi feita pelo mesmo Criador que fez
homem e mulhcr que são, assim, da mesma parentela de
todos os elementos da criação. As atitudcs que os textos
bíblicos produzem são apreciação, responsabilidade, gra-
tidão e mutualismo.
Desprezo pela Terra é postura moderna e secular,
não antiga nem bíblica. Mais do que qualquer outro fa-
tor, a revolução do pensamento e da ação humanos intro-
duzida pela idade quc se costuma chamar de Iluminismo
responde por essa postura. Nesse movimento intelectual
c espiritual, os sercs humanos assumiram o controle de
todas as coisas, do ego e do mundo. As posturas diante
do mundo se tornaram secularizadas, de tal forma quc
deixou de existir um Dcus de amor e justiça a quem as
pessoas prestavam contas, só a humanidade dc ambição
e auto-interessc para dar ordens. "Glória ao homem nas
alturas e um alto padrão de vida para todos na Terra"
foi o hino-tema. A Tcrra cstá aqui para usarmos, não
para cuidarmos. O desenvolvimento tecnológico forne-
ceu cada vez mais instrumentos poderosos para impor a
vontade humana sobre o ambiente, ao mesmo tempo em
que o entendimento espiritual, que restringe o orgulho e
cultiva a humildade, diminuiu.
Adotando "imagem de Deus" como a metáfora con-
troladora, o entendimento de nosso lugar no universo se
desúlz, substituído pclo mito da auto-suficiência. Cada vez
4. Encontra-se apresentação excelente da história das atitudes c da
situação corrente em t'orthkceping, editado por Lorcn Wilkinson (Grand
Rapids: Ecrdmans. 1980). pág. 19.

166
Suficiência de Deus

menos pessoas perguntam: "Qual o plano de Deus na cria-


ção')". Elas querem saber: "Como posso usar a criação para
atingir meus objetivos?". Os propósitos deixaram de ser
avaliados em comparação com os de Deus. Simplesmente
parte-se da convicção de que o que é bom para os humanos
é bom para tudo.
Afastado do contexto da criação que atende os propó-
sitos divinos, o Iivre-arbítrio humano toma suas próprías
decisões sem submetê-las à instância superior (coisa que a
maioria das pessoas desconhece). Acabaram-se os passeios
de meditação na tranqüilidade arrebatadora das florestas,
as orações em gratidão ao Criador. As matas foram invadi-
das por técnicos que calculam quantas máquinas serão ne-
cessárias para limpar a terra para um novo condomínio.
A passividade sábia de criaturas à vontade umas com as
outras foi trocada pelo aperto nervoso dos tecnólogos nos
controles de uma máquina 4 Claro que isso não aconteceu
sempre, nem foi a atitude de todas as pessoas. Ainda há
gente sensível aos valores humanos e à realidade moral,
que usa a tecnologia com cuidado para a glória de Deus.
Mas esses compõem o remanescente.
Como conseqüência da devastação aparente em todos
os aspectos dessa deificação da vontade voraz, ávida, com
sede de poder, presunçosa e impulsiva e à luz da acusação
que pesa sobre a mente bíblica, pessoas preocupadas com
a devastação buscam inspiração e direção nos modelos
primitivos ou pagãos. Muitos cristãos foram levados na
mesma onda. Seria muito melhor se nos dedicássemos ao
que fazemos melhor: orar. Temos tradição de muitos sécu-
los de reunir elementos do ambiente em atos de oração,
o que nos coloca tanto em sintonia com a criação quanto

]67
Onde o seu tesouro está

com o serviço do Criador para que o serviço ininterrupto


dEle se torne nosso também. Orar seguindo determinados
Salmos nos coloca em posição de interceder, que desen-
volve atos que acabam com o domínio do ego com relação
à Terra. O Salmo 114 é um ponto de partida.

Antioração
O que mais chama atenção no Salmo 114 são as íma-
gens: o mar fugindo, o Jordão retrocedendo, montanhas e
colinas saltando como carneiros e cordeiros, pedras e ro-
chas esguichando correntes de água. Eis a oração imersa na
percepção da criação, familiarizada com a Terra, sensível à
vida nos aspectos não humanos do ambiente.
Olhando outra vez, vemos que a oração não trata da
natureza, e sim da história: um evento - a saida do Egito
- está presente nela. Examinando mais a fundo, descobri-
mos que não há, na Biblia, Salmos para a "natureza", ou
seja, sobre ou dirigidos a ela.
Há Salmos que tratam de nossa experiência e conhe-
cimento sobre céu, mar, animais e aves, usados como vo-
cabulário de oração, mas sempre se ora sobre Deus, não so-
bre a natureza. Os Salmistas louvam o ato divino da criação
(S1.33); expressam reverência díante de sua íncrível condes-
cendência ao incluir os humanos em posição de responsabi-
lidade (S1.8); justapõem as glórias gêmeas do céu c da lei na
revelação do plano de Deus (19); ficam maravilhados pelo
esquema de providência elaborado de forma impressionante
nas relações intríncadas entre luz, vendo, nuvens, oceanos,
fontes, pássaros, peixes, cegonhas, coelhos, pessoas traba-
lhando e pessoas louvando (S1.104). Entretanto, os Salmos
nunca eram sobre a natureza, sempre sobre Deus.

168
Suficiência de Deus

Os poetas bíblicos não se dedicavam à contemplação


da natureza. Na verdade, opunham-se veementemente a
isso. Era uma oposição deliberada, já que os hebreus viviam
cercados por povos que cultuavam a natureza. Os aspectos
mais notórios nela são fecundidade e destruição: por um
lado, os processos ocultos de nascimento na terra e no útero
e, por outro, as forças terríveis de vulcões, terremotos e
tempestades impossíveis de prever e eontrolar. Os cananeus
(e o mesmo acontecia em todas as nações extrabíblicas vi-
zinhas) se admiravam com essa divindade que não podiam
controlar e a ela oravam. É fácil identificar por que faziam
isso, já que inadvertidamente o fàzemos até hoje. É difícil
descobrir por que o mesmo não acontecia com os hebreus.
O mundo que nos cerca é magnífico. Sempre que
lhe damos atenção, surgem em nós sentimentos e pensa-
mentos que nos arrebatam, que se parecem muito com
oração. São tão espontâneos, sem elaboração, autênticos
e despretensiosos, que poucos duvidam de algum tipo de
comunhão profunda com uma realidade acima de nós,
com deuses - ou Deus. Comparadas com a experiência
em cultos com hora marcada, em lugar de oração esta-
belecida, essas sempre parecem mais genuínas. Isso talvez
responda pela preferência tantas vezes declarada pelo
pôr-do-sol na praia em lugar de hinos do século XVIII
cantados em uma capela.
Mas, quando nos voltamos para os ambientes naturais
para recuperar esses sentimentos, o que costuma acontecer
é que prestamos mais atenção ao que sentimos do que em
Deus. Cruzamos uma linha divisória. Não estamos orando,
mas sim "usando" a natureza para produzir sentimentos re-
ligiosos. Penetramos no ritmo misterioso das estações, nos

169
Onde o seu tesouro está

entregamos aos êxtases do clima, nos abrimos à influência


do sol e dos planetas.
Por si só, não há nada errado nessa prática, e muito
está certo. Errado é desenvolver a manipulação e exploração
sistemáticas da natureza. No curso de submeter-se às forças
naturais e absorver as energias da natureza divina, chega um
ponto em que a pessoa passa a questionar se não seria capaz
de inverter a influência para que as forças que vinha receben-
do no ego sejam redirecionadas de alguma forma para influ-
enciar a natureza. Parece plausivel e ela se lança à experiência.
Acabou de cruzar outra linha divisória. Está usando a criação
para alterar a criação, virando-a contra ela mesma.
A prática é tão comum que recebeu um nome de fanta-
sia: homeopatia, ou seja, cultivar sentimentos/ritmos/ações
de natureza divina para que a natureza divina fique sob
minha influência. A religião da natureza opera com base
no princípio de que há alguma coisa divina em montanhas,
rios, na lua, no sol, nas estrelas, estações e no clima. "Pe-
netrando" na natureza, a pessoa entra no divino, participa
da fertilidade, alia-se ao lado vitorioso, experimenta êx-
tases imortais. Há na criação forças divinas que podem ser
ofendidas ou apaziguadas. Praticando os rituais adequados
e com um pouco de sorte conseguiremos manipular a na-
tureza em beneficio próprio.
Essa é a origem da antioração chamada mágica.
A oração é a prática da disponibilidade diante de Deus,
mágica é o exercício da obstinação na natureza. Mágica
é o uso habilidoso de meios naturais para manipular o so-
brenatural (seja ele Deus ou o diabo) para levar o natural
a satisfazer minha vontade. O mágico sabe usar ervas, o
movimento dos planetas, o encantamento dos sons, o prep-

170
Suficiência de Deus

aro de poções, a elaboração de diagramas (tudo na esfera


da natureza) para impor sua vontade sobre a natureza. Nos
dias dos salmistas essa religião se chamava baalism0 5 Hoje
essa religião surge na forma de uma ou outra tecnologia
faustiana (usar a natureza para orquestrar a concupiscência
pelos sentimentos, usar a natureza para satisfazer o desejo
de poder, e assim por diante).
O relato cômico de I Reis 18, em que os sacerdotes de
Baal se cortavam com pedras para derramar o sangue na ten-
tativa de influenciar o céu para que viesse a chuva, é a história
mais tàmosa da Biblia sobre homeopatia. Se eles conseguis-
sem tàzer o líquido vital fluir em quantidade suficiente de seus
corpos, por certo o liquido vital também fluiria de Baal, o deus
do céu. Elias, ao contrário, não fez nada. Quem ora não age.
A ação cabe a Deus. Na oração não desenvolvemos tecnolo-
gia que coloca em movimento engrenagens e roldanas de um
milagre. Participamos da obra de Deus: "não seja como eu
quero, mas sim como Tu queres".
Os tecnólogos são os sucessores dos magos pagãos. Os
meios mudaram, mas o espirito continua o mesmo: máqui-
nas de metal e métodos psicológicos substituiram poções
mágicas, mas a intenção continua sendo impor minha von-
tade ao ambiente, a qualquer preço. Deus não participa,
ou então age só até o ponto em que pode ser usado para
acomodar o ego soberano.

O cenário da ação de Deus


Enquanto isso, o Salmo 114 mantém o foco na ora-
ção e não na magia. Mostra como Deus age, tendo como
5. Um relato claro da singularidade da vida de fé de Israel em relação
com o ambiente religioso encontra-se em G. E. Wright, The Old 7I.'stamell!
againslfts Envimnment (Chicago: Alce AlIenson, Inc .. 1955).

171
Onde o seu tesouro está

cúmplice a natureza. Não há nenhuma indicação de como


manipular a natureza para alterar a história para nossa con-
veniência. A Terra não existe para ser usada por nós, ela é
o cenário da ação dc Deus. Nos aproximamos da natureza
em orgulho, para usá-Ia. Na oração o salmista nos dire-
ciona para nos unirmos a ela em louvor e celebração pela
salvação de Deus.

Quando saiu Israel do Egito, c a casa de Jacó, do meio


de um povo de língua estranha, Judá se tomou o seu san-
tuário, c Israel. o scu domínio. (Salmos 114.1-2, RA)

As palavras mais discretas dessas linhas, os pro-


nomes, acabam sendo as mais importantes: Seu santuário,
Seu dominio, ou seja, santuário de Deus, domínio de Deus.
A experiência formativa da identidade de Israel, o êxodo,
não é apresentado com arrogância, como propaganda na-
cionalista, sob a qual se pode marchar gabando-se da su-
perioridade. Em lugar disso, o texto expressa submissão
despretensiosa ao dominio bondoso de Deus. A geografia
(Judá) se torna liturgia (santuário). Um pedaço de terra
no oriente antigo se torna a arena em que a ação divi na
acontece. As duas formas que costumamos usar para nos
localizar na realidade (onde estamos e o que vemos) são
englobadas em elementos maiores e mais íntimos, a pre-
sença e a ação de Deus. História e geografia são reunidas
no culto.
A mente bíblica que ora, sabe que um lugar é mais
do que geologia, mapa e análise, mais que economia e
propriedade. O lugar é visto em termos da presença e da
ação de Deus no ambiente. Essa mente não separa Deus da
natureza. Rochas, rios, baleias e elefantes são elementos

172
Suficiência de Deus

que participam da salvação. Não entende Deus através da


natureza, faz exatamente o contrário. Não declara que ela
é divina, de forma que ela não leva peso maior do que é ea-
paz de suportar, de modo que não nos curvamos diante dela
presos por superstições apavorantes, nem ficamos enamo-
rados dela por ilusões encantadoras. Também não reduzi-
mos Deus à natureza para podermos "dirigi-Lo", conven-
cidos de que basta aprender a técnica certa para conseguir
usá-Lo para alcançar nossos propósitos.
Mas surge o entendimento de algo mais semelhante a
um sacramento: a saída do Egito e a entrada em Canaã são
meios que Deus usou para se fazer conhecido e presente
com Seu povo. Para isso, usou história passível de localiza-
ção geográfica. A terra e seu cenário não são instrumentos
que as pessoas usam para ínfluenciar Deus, mas sim estru-
tura material para ação dEle entre Seu povo, que ora a Ele,
não a uma pedra "divina", nem a um deus petrificado.
A diferença entre sacramento e idolo (ou amuleto,
encantamento, rito ou estatueta) é que o primeiro é aquilo
que Deus usa para dar e o segundo é o que usamos para
pegar. O elemento material está envolvido nos dois casos,
mas nos dispomos diante do sacramento e somos obstina-
dos diante do idolo. Assim, os sacramentos são a matéria
de todos os dias (rios, cordeiros, água, pão, vinho), porque
Deus usa o que estiver disponível para compartilhar dEle
mesmo conosco. Os ídolos, por sua vez, são matéria ex-
cepcional-- metal precioso esculpido em formas impressio-
nantes, objetos incomuns como meteoros que suplementam
nossa vontade e acrescentam força às nossas aspirações de
domínio. Entretanto, quando pensamos em Deus segundo
o sacramento, Ele usa nossa consciência para jogar uma

173
Onde o seu tesouro está

luz abrangente sobre o ambiente, que mostra Egito e Pa-


lestina (e também nosso país) como lugar material em que
Ele age em redenção.

o caminho da vitória
As linhas intermediárias da oração expressam a for-
ma como essa percepção sacramental molda nossa relação
com o ambiente.
O mar olhou e fugiu.
o Jordão retrocedeu;
os montes saltaram cu mo carneiros,
as colinas. como cordeiros.

Em certo nivel, isso nada mais é do que um relato vivo


do êxodo: O mar olhou ejitgiu. Na linguagem mais sóbria
da prosa, essa é a história de Israel. Fugindo dos egipeios
e bloqueados pelas águas do Mar Vermelho, os israelitas
atravessaram por terra seca depois que Moisés bateu com
sua vara na água e o mar se abriu. Deus "providenciou um
caminho de escape". O Jordào retrocedeu lembra quando
o grande rio impediu a entrada do povo na Terra Prometida
depois da jornada de quarenta anos pelo deserto. Então
Josué bateu na água com a vara, o rio se abriu, o povo mar-
chou por c1e e iniciou a conquista da terra. Deus providen-
ciou um caminho para a vitória. O livro de Êxodo narra em
prosa que os montes saltaram como carneiros, as colinas,
como cordeiros, a história da longa espera do povo ao pé
do Sinai, atemorizados pelo som do vulcão e o terremoto
que sacudia a montanha enquanto Moisés recebia a Lei.
Para dizer com clareza, a ação e a presença de Deus
entre nós está tão além da compreensão que a descrição
séria e a definição precisa não servem mais. Os níveis de

174
Suficiência de Deus

realidade aqui vão tão além de nós que pedem extravagân-


cia na linguagem. Contudo, não há exagero. Qualquer lin-
guagem é inadequada e incapaz de transmitir as idéias.
Claro que as imagens do Mar Vermelho, fugindo como
um chacal, do rio Jordão abandonando seu posto como
sentinela covarde, e da transformação do Sinai em cor-
deiros e carneiros que brincam não são relato jornalistico
dos acontecimentos, mas também não são invenções de
uma imaginação desenfreada. Trata-se de gente que ora
e testemunha a salvação. A transposição do que todos
presumiam ser limitações reais (o Mar Vermelho c o Rio
Jordão) e o jorro inesperado de energia onde não havia
nada além de um afloramento imenso e morto de granito
no deserto morto (Sinai) determinaram novo uso para pa-
lavras antigas.
Há algo mais envolvido, ainda mais significativo. Na
oração, adquirimos o que Wallacc Stevens chamou de "mo-
tivo para metáfora". Vemos muito mais do que coisas dis-
cretas, percebemos tudo em tensão dinâmica e em relação
com tudo mais. A matéria prima do mundo não é matéria,
é energia. Para expressar essa vitalidade interconectada
usamos as metáforas.
A metáfora é uma palavra que carrega significado que
vai além de sua função básica. Em lugar de confundir, esse
"além" estende c esclarece a compreensão. A linguagem
da ecologia demonstra a interligação de todas as coisas (ar,
água, solo, pessoas, aves e assim por diante). Exatamente
da mesma maneira a da imaginação e a metáfora demons-
tram a interligação de todas as palavras. O termo histórico
(êxodo), o geológico (montes) e o animal (carneiros) sc re-
lacionam com todas as outras palavras.

175
Onde o seu tesouro está

Os significados se ligam. Nada pode ser entcndido


isoladamente, analisado sob um microscópio. Nenhuma
palavra será compreendida com uma simples pesquisa no
dicionário. Desde o primeiro instante em quc falamos so-
mos atraídos à rede total dc todas as línguas que já foram
faladas. Uma palavra nos leva a relacionamentos surpreen-
dentes com outra, depois mais outra, ainda outra. Por isso
a oração gosta tanto de palavras usadas com imaginação:
metáfora, símíle, metonímia, hipérbole. A oração não usa
a linguagem para construir um vocabulário do que existe,
mas para nos ligar e envolver em sintaxe associativa na
qual tudo está em movimento, encontrando seu lugar em
ralação á palavra dita por Deus.
Wendell Berry disse bem: "A Terra não está morta,
como o conceito de propriedadc, mas sim viva e com
vigor, de forma intrincada como um homem, ou uma
mulher e ... há uma intcrdependência delicada entre a
vida dela e a nossa"." Assim, a afirmação imaginativa:
os montes "saltaram como carnciros" é mais do que ilus-
tração que apresenta a exuberância de revelação do Si-
nai. É o entendimento penetrante de que a Terra reage
à revclação e participa dela. Paulo usa um pensamento
diferente, cmbora tão marcante quanto esse: Sabemos
que toda a natureza criada geme até agora, como em
dores de parto. E não só isso, mas nós mesmos (Ro-
manos 8.22-23). Metáfora e símile não explicam, fazcm
com que deixemos de ser estranhos e nos tornam ínti-
mos, envolvidos em toda rcalidade criada pela Palavra
de Deus.
A linguagem sofre deprcciação, quando usa a metá-
fora como enfeite, para encobrir pensamentos vazios e co-
6. Bcrry, A Continllo//s Harnwny, pág. 12.

176
Suficiência de Deus

locar floreios em prosa de má qualidade. Na verdade, a lin-


guagem imaginativa não é aquilo que aprendemos a usar
depois de dominar os rudimentos da fala comum. Ela an-
tecede a linguagem descritiva. Todas as crianças começam
usando as palavras como poetas, para elogiar, exclamar
e comentar. A fala mais original c precisa é a metaforica
- palavras quc descobrem uma unidadc subjacente em que,
muitas vczcs com surpresa, descobrimos que nos encaixa-
mos, lugar ao qual pertencemos.

"Robert Frost lembra que 'Metáfora é tomar uma coisa por


outra'. Nesse sentido, toda linb'llagcrn é metafórica, pois in-
siste em ligar uma coisa a outra. Uma palavra, qualquer uma,
envia perpetuamente tentáculos de conexão por toda parte.";

Somos residentes de um lar e não objetos em um am-


biente. "Mundo" é mais do que objcto dc cstudo e uso. Ele
é permeado por espirito - de Deus e meu. Somos parte do
que conhecemos.
Entendemos agora que oraçào e poesia são parentes
próximas. Toda palavra nos leva mais para perto do lugar
de onde as palavras vêm: a palavra criadora que faz mon-
tes, carneiros, colinas, cordeiros, Israel, Judá, Jacó, Cristo,
eu e você. Na poesia afirmamos isso, na oração nos toma-
mos o que afirmamos à medida que nos encontramos com
Aquele quc dá origem a tudo o que é dito.

Estremeça, ó terra
A última estrofe expressa o pessoal que se encontra
no centro do natural.
Estremeça na presença do Soberano. ó terra,
na presença do Deus de Jacó I
7. Banctt. The llllfSioll olTechniquc. pág. ]73,

]77
Onde o seu tesouro está

Ele fez da rocha um açude,


do rochedo uma fonte.

Aqui, terra abrange muitos elementos: Egito, Isra-


el, Judá, mar, Jordão, montanhas, colinas. No nível mais
profundo, não impera a divisão cntre "animal, vegetal c
mineral". Estamos juntos na presença de Deus, que não é
o trovão do Sinai, nem as ondulações do Jordão, nem as
carruagens egípcias. É aquilo diantc dc que estamos em
revcrência.
Estremeça aponta para o transcendental: admira-
ção, respeito, reverência, humildade. O homem-Prome-
teu não treme diante de terra nem dc altar, ele assumc o
comando. O tecnológico não se impressiona com flores-
tas nem exércitos de anjos; ele opera sua régua de cálcu-
lo sem qualquer emoção, com mãos firmes. As pessoas
que oram tremem junto com toda criação que aguarda,
com grande expectativa (Romanos 8.19) e em adoração
chcia de esperança diante do mistério da criação e da
redenção na qual Deus age em todas as coisas para o
hem (8.28).
Paulo tentou aprcsentar esse processo com palavras
retumbantes: predestinação, justificação, glorificação. O
esforço dele tem sido útil em muitos aspectos, mas duvido
que o pensamento teológico dele tcnha conseguido nos le-
var muito além das "orlas dos seus caminhos". Mais tarde
ele voltou à linguagem mais fundamental da oraçào: Ó pro-
fúndidade da riqueza da sabedoria e do conhecimento de
Deus I Quão insondáveis são os seus juízos e inescrutáveís
os seus caminhos! (Romanos 11.33). Nos encontramos,
aqui, mais próximos da realidade, na presença da açào de
Deus. Deixamos de apenas pensar nela.

178
Suficiência de Deus

Quem não conhece Deus acredita que estremcccr seja


ficar apavorado na prcscnça dEle. Isso não é verdade. A
sensação parcce mais com uma diversão, uma brincadeira
de fé. "Natureza" costuma ser vista como uma vasta estru-
tura matemática de causa c cfcito, céu e terra governados
por cctro de ferro, e qualquer um quc ousar desafiá-las será
quebrado "cm pedaços como um vaso de barro". Por e-
xemplo, a força da gravidade é irrevogável e quebra minha
perna se eu cair de uma árvore. A regra inflexivel da ter-
modinâmica qucima meu dedo quando pego uma forquilha
quc cstava no fogo.
A oração não desafia nem despreza essas leis, mas
sabe quc há mais do que elas no ambicnte. Existe também
a liberdadc. A diversão nasce no momento em quc cntcn-
dcmos isso. A oração, que entra cm relacionamento com
tcrra e céu, mar e montanha, brinca. Ela salta e dança.
Nosso univcrso não está preso nas leis dc causa e efeito.
Há, na presença do Deus de Jacó, vida imprevisivel. Existe
liberdade para mudar, para nos tornarmos melhores do que
éramos ao cntrar na presença de Deus, qucfin da rocha um
açude, do rochedo umafànte.
Milagres não são intcrrupções das leis. Se assim
fosse, teriam que ser ncgados por intelectuais preocupados
ou defendidos por crentes ansiosos. Antcs, são cxprcssão
da liberdade desfrutada pelos filhos de um Pai sábio e
generoso. Para entender esses assuntos, nada de exegese
rigorosa de textos bíblicos nem de experiências controla-
das em laboratórios. Oramos sobre eles e, com isso, en-
tremos em dimensões de liberdade pessoal no universo.
Em determinado nível (provavelmente, embora não neces-
sariamente, fora da compreensão acadêmica; os artigos da

179
Onde o seu tesouro está

"nova física" trazem esclarecimento inesperado sobre es-


sas verdades), estamos dançando. Nessa dança, lei e liber-
dade são sincronizadas e reagem uma á outra, mutuamente
dependentes, vivas e pessoais.

Nosso verdadeiro lar


Ninguém inicia a vida por sua própria conta. Também
não termina. A vida, em especial quando experimentamos
pela fé a interação complexa entrc criação e salvação, há
mais do que a mistura de bagagem genética e cultural.
Não é um objeto feito com as tábuas e os pregos de nossos
pensamentos, sonhos, sentimentos e fantasias. Ninguém é
auto-suficiente. Ao nascer, penetramos em um mundo cria-
do por Deus, já tomado por uma história rica, repleta de
participantes dedicados - mundo de animais, montanhas,
política e religião, onde as pessoas constroem casas, criam
filhos, onde vulcões cospem lava e rios correm para o mar;
mundo onde, por mais cuidado que tenhamos ao observar,
analisar e estudar, fatos surpreendentes sempre aconte-
cem (como rochas se transformando em açudes). Sempre
ficamos surpresos porque estamos lidando com elementos
além de nossas forças, que está acima de nossas cabeças.
Na oração, entendemos e praticamos nossa parte
nesse envolvimento intrincado com absolutamente tudo
que existe, por mais distante que nos pareça ou por mais
indiferentes que sejamos. Essa oração vai além de uma
ocupação secundária emocionante ou agradávcl, á qual nos
entregamos com prazer depois de terminar todo o serviço
de verdade. Ela é o tecido que liga nossa vasta existência. O
mundo da criação interpenetra o da redenção e vice-versa.
O céu de beleza extravagante e a Terra exuberante não são

180
Suficiência de Deus

meros cenários para fornecer um pouco de beleza á pe-


riferia do ego idolatrado. Eles são a imensa beleza em que
encontramos nosso verdadeiro lar, espaço em que vivemos
a cruz e Cristo, de forma abrangente, de coraçào aberto em
louvor.

181
Capítulo 11
Amar a Deus

SALMO 45

Com o coração vibrando de boas palavras


recito os meus versos em honra ao rei;
seja a minha língua como a pena de um hábil escritor.

És dos homens o mais notável;


derramou-se graça em teus lábios,
visto que Deus te abençoou para sempre.
Prende a espada à cintura, á poderoso!
Cobre-te de esplendor e majestade.

Na tua majestade cavalga vitoriosamente


pela verdade, pela misericórdia e pela justiça;
que a tua mão direita realizejeitos gloriosos.
Tuas/lechas afiadas
atingem o coração dos inimigos do rei;
debaixo dos teus pés caem nações.

o teu trono, ó Deus, suhsiste para todo o sempre;


cetro de justiça é o cetro do teu reino.
Amas ajustiça e odeias a iniqüidade;
por isso Deus, o teu Deus, escolheu-te
dentre os teus companheiros ungindo-te com áleo de
alegria.
Todas as tuas vestes exalam aroma de mirra, aloés e cássia;
nos palácios adornados de marfim ressoam os instrumen-
Onde o seu tesouro está

tos de corda que te alegram.


Filhas de reis estão entre as mulheres da tua corte;
à tua direita está a noiva real enj(eitada de ouro puro de
Ofir.

Ouça. ófilha, considere e incline os seus ouvidos:


Esqueça o seu povo e a casa paterna.
O reifái cativado pela sua beleza:
honre-o, pois ele é o seu senhOl:
A cidade de Tiro trará seus presentes;
seus moradores mais ricos buscarào o seufavor.

Cheia de esplendor está a princesa em seus aposentos,


COJn vestes
enfeitadas de ouro.
Em roupas bordadas é conduzida ao rei,
acompanhada de um cortejo de virgens; sào levadas à tua
presença.
Com alegria e exultação são conduzidas
ao palácio do rei.

Os teus filhos ocuparão o trono dos teus pais;


por toda a terra osfàrás príncipes.
Perpetuarei a tua lembranç'a por todas as geraçiJes;
por isso as naçiJes te louvarão para todo o sempre.

184
Muitas vezes, quando dizemos "eu amo você ", usa-
mos um imenso "eu" e um pequeno "você ". Tomamos
"amo" como conjunçào em lugar de entender que é um
verbo que implica em açào.
ANTHONY BLOOM 1

oração é o ato que nos coloca em contato com os


A relacionamentos mais abrangentes c os desen-
volve - ego, Deus, comunidade, criação, governo, cultura.
Nascemos em uma rede de relacionamentos e continuamos
nela por toda a vida. Mas muitas vezes não é isso que sen-
timos. Nossa sensação é de isolamento, afastamento, frag-
mentação e falta de contato. Não aceitamos bem essa situ-
ação e nos movemos para superá-Ia: telefonema para um
vizinho, inscrição em um clube, uma carta, um casamento.
As mais diversas tentativas se acumulam. O ego parece
menos isolado. A sociedade, menos fragmentada. Os fatos
se sucedem. Mas, se não orarmos, não será suficiente: na
oração, e só nela, conseguimos penetrar na complexidade e
profundidade do todo dinâmico e inter-relacionado. Deixar
de orar não é uma omissão inofensiva. É violação positiva
do ego e da sociedade.
Se negarmos nossos relacionamentos, seremos pira-
tas na sociedade, tomando sem dar, vendo o mundo de
coisas e pessoas como um espólio a pilhar. Se ignorarmos
os relacionamentos, seremos parasitas, sugando passiva-
mente os nutrientes do corpo político e dando apenas con-
tribuição negativa à vida dos outros. Oração é o ato fun-
damental que impede, por um lado, que nos degeneremos
em piratas e, por outro, nos deformemos em parasitas.
\. Ânthony B100m, Beginning to Pro")) (Nova Iorque: Paulist Prcss,
1970). piIg. XlV.

185
Onde o seu tesouro está

A situação em que isso fica mais aparente é o ato do


amor. Estar apaixonado é a melhor forma de viver como
indivíduo e como cidadão. O amor leva o cgo aos picos
mais elevados, e a sociedade à sua expressão mais ma-
dura. Amor é o ato em que público e pessoal se unem de
forma mais dramática, onde relacionamentos não vistos e
bem além de cálculos florescem e ficam à vista de maneira
aconchegante e atraente. Nesse ato interesses nacionais c
individuais são buscados ao mesmo tempo.
Mas o amor é também o ato em que se manifesta o que
temos de pior. Nesse campo acontecem nossas conquistas
mais extraordinárias, mas ele também é o palco das quedas
mais vergonhosas. O amor é o ato mais sublime de que os
humanos são capazes, mas também é a fonte das maiores
desgraças. O êxtase surge do amor, mas a mesma dinâmi-
ca muitas vezes se deteriora em violência. O lugar em que
acontecem mais assassinatos são os quartos dos casais.
O casamento expressa a conexão entre pessoal e pú-
blico em todos os aspectos do amor. Não há nada mais
pessoal do que o casamento, onde duas pessoas se unem
por vontade própria e se entregam à alegria da intimidade.
Também não há nada mais público: a intimidade implica
em responsabilidades, do modo que há necessidade de um
documento do Estado, da presença de um oficial público
na cerimônia, de testemunhas da comunidade para certi-
ficar o ato e registro oficial do evento em um cartório. O
casamento afirma a totalidade do amor entre duas pessoas.
Além disso, declara que a saúde da sociedade está emjogo.
A cerimônia do casamento envolve em um único ato a área
pessoal e a pública. E, mesmo que os envolvidos não cos-
tumem orar, ela costuma acontecer no lugar de oração.

186
Amar a Deus

E mesmo assim relutamos em acreditar que o amor


seja um ato apropriado à política. "Um casal que desfruta
de um bom casamento", escreveu Wendell Berry, "e cria
filhos saudáveis e moralmente competentes, prestam ao fÍL-
turo do mundo serviço mais direto e certo do que qualquer
líder político, embora jamais pronunciem uma palavra
pública sequer." 2 A cerimônia de casamento, estabelecida
no limite entre pessoal e público, continua a fornecer opor-
tunidades para novos começos em amor que envolvem in-
dividuos c sociedade. A relutância a explorar essas dimen-
sões é fÍLga. Estamos enrolados em amor a nós mesmos.
Nos arriscamos em momentos rápidos de paixões român-
ticas em que tentamos incluir o outro, mas relutamos em ir
além do cônjuge, do filho ou do amigo. Vizinhos, chefes,
grupos, causas, burocracia, nações, povos, raças - todos são
colocados sob outros rótulos como precedente, alfândega,
protocolo, interesse nacional, viabilidade econômica.

Do sagrado ao secular
O Salmo 45 é um hino de casamento. Como tal, in-
tegra pessoal e público na forma caracteristica das cerimô-
nias. No sentido estrito, não se trata de oração, mas de cân-
tico dirigido aos noivos na presença de Deus. Contudo, no
decorrer dos séculos de inclusão nos cultos em templos,
sinagogas e igrejas, acabou se tomando uma oração, espe-
cialmente poderosa para acabar com o domínio do ego no
amor.
A transição de secular a sagrado é bem comum na
oração. Palavras que se arranjam para tratar de assuntos

2. Berry. A Continuous Harmony. pág. 80.

187
Onde o seu tesouro está

cotidianos se envolvem em uma realidade maior e, nesse


contexto amplo, se transformam em oração. A frase dita
à mesa do jantar - "passe o pão" - é a experiência que
constrói a base para "o pão nosso de cada dia dá-nos hoje".
Um hino nupcial, composto e entoado para noivos anôni-
mos do antigo Israel, foi inserido em um livro de orações
(Salmos) e direciona a anulação do dominio do ego no
amor nas orações contemporâneas.

Com o eoraçáo vibrando de boas palavras


recito os meus versos em honra ao rei ...
à tua direita está a noiva real enfeitada de ouro puro de Ofir.

o caráter públ ico desse casamento é acentuado pela


designação dos noivos como "rei" e "noiva real" (versícu-
los I e 9). Um casamento de Estado! Esse cântico festivo
celebra a uníão de um rei hebreu com uma rainha vinda
de Tiro. As bodas reais são eventos políticos, mas não dei-
xam, por isso, de ser uniões românticas. Em nossa sociedade
democrática, onde os únicos casamentos reais que vemos
são os transm itidos da Grã-Bretanha, que ainda conserva
traços de monarquia, o aspecto romântieo das uniões é o
único aspecto a que damos atenção. Mas, na verdade, todo
casamento envolve o Estado, é autorizado e regulamentado
pela legislação.
Em meio a velas, vestidos, músicas envolventes, vo-
tos fervorosos, abraços e beijos, surgem também uma li-
cença, algumas vezes enfiada sem a menor cerimônia no
bolso de um dos convidados. Os celebrantes, em muitas
culturas, vestem os noivos como rei e rainha, com coroa,
tiara, cetro e vestido de cauda. A vestimenta formal enfati-
za a importância que os parceiros têm um para o outro, mas

188
Amar a Deus

também reconhece o impacto duradouro do casamento na


sociedade, embora o casal passe seus anos de vida comum
usando roupas muito mais adequadas para fábricas, merca-
dos e fazendas.
O amor, em sua forma madura, é tanto pessoal quan-
to público e a cerimônia demonstra isso. Mas poucas vezes
vemos o amor desenvolver em totalidade inclusiva. Após
o casamento, o afastamento do amor é mais comum do
que as aventuras. A imaturidade fica mais em evidência
do que a perfeição, mas o amor que se afasta do público e
mergulha na privacidade é irresponsável para com a nação.
Cultiva o prazer individual e abandona a responsabilidade
comunitária.
Contudo, esse retraimento pode seguir em outra di-
reção: amor que se afasta do pessoal e vai para o público é
irresponsável para com a família e os amigos. Leon Tolstoi
prendeu a atenção mundial durante alguns anos, procla-
mando o princípio do amor como politica pública, a fonna
de levar as nações a viverem em paz e união. No entanto, os
filhos dele reclamavam: "Papai ama o mundo, mas chuta os
filhos como se fossem cães".)
De todos os aspectos em que o ego pode dominar
uma pessoa, o amor a si mesmo é o mais destrutivo. Amor
é nosso modo básico de nos relacionarmos, exatamente
como acontece com Deus, á imagem de quem fomos
criados. Se o usarmos fora de relacionamentos, ou seja,
egoisticamente, torna-se uma abominação que corrompe
a sociedade e arruína o eg0 4 Entretanto, a capacidade

3. Honri Troyat. li)/s!ol' (Gardon City, N.Y.: Doubleday. 1967). pág.


439.
(4) Lasch, The CU/fure o/."Varcissism. págs. 72-73.

189
Onde o seu tesouro está

para destruir passa longos períodos sem ser identificada


porquc aparece sob o título envolvente de "amor". Lutero
dizia que o pecado era a pessoa incurvatus in se, ou seja,
curvada em si mesma. Quando o pecado leva o amor a se
curvar em si mesmo ele produz sua obra mais grotesca.
A área em que isso fica mais evidente é no casamento.
O Salmo, ao colocar o casamento romântico em cenário
político, fornece um palco mais amplo para direcionar o
desenvolvimento maduro do amor e protegê-lo do avilta-
mento.
Nenhuma declaração de amor, por mais pública e
apaixonada, garante que não haverá decadência para le-
var o amor ao ego. Esse poema transformado em oração,
o Salmo 45, toma dois elementos básicos do amor e os
direciona para proteger contra as distorções do amor a si
mesmo e os desenvolve em belezas do amor maduro. O
primeiro elemento, direcionado ao rei-noivo, é adoração. O
segundo, dirigido à rainha-noiva, é afastamento. Adoração
e aíàstamento em oração constituem a melhor cura para o
amor a si mesmo. Além disso, são de grande importância
na vida política.

o amor é cego?
És dos homens o mais notável:
derramou-se graça em tcus lábios,
visto que Deus te abençoou para sempre.
Prende a espada à cintura, ó poderoso'
Cobre-te de esplendor e majestade.
Na tua majestade cavalga v'itoriosamentc
pela verdade, pela misericórdia e pela justiça;
que a tua mão direita realize feitos gloriosos.
Tuas flechas afiadas
atingem o coraçào dos inimigos do rei;

190
Amar a Deus

debaixo dos teus pés caem nações.


O teu trono, ó Deus, subsiste para todo o sempre;
cetro de justiça é o cetro do teu reino.
Amas a justiça e odeias a iniqüidade;
por isso Deus, o teu Deus, escolheu-te
dentre os teus companheiros ungindo-te eom óleo de
alegria.
Todas as tuas vestes exalam aroma de mirra, aloés e cás-
SJa;
nos palácios adamados de matfim ressoam os instru-
mentos de corda que
te alegram.
Filhas de reis estào entre as mulheres da tua corte;
à tua direita está a noiva real enfeitada de ouro puro de Ofir.

A primeira metade do Salmo (versículos 2 a 9) é ado-


ração livre e fluente, admiração exuberante e extravagante.
O noivo é belo ("és dos homens o mais notável"), fala bem
("derramou-se graça em teus lábios"), heróico ("tuas fle-
chas afiadas atingem o coração dos inimigos do rei"), bon-
doso ("amas ajustiça e odeias a iniqüidade"), alegre ("nos
palácios adornados de marfim ressoam os instrumentos de
corda que te alegram") e feliz no amor ("à tua direita está a
noiva real enfeitada de ouro puro de Ofir").
Se eu, profundamente apaixonado por alguém,
começar a descrever com paixão aquilo que ninguém per-
cebeu ou o que todos ignoraram durante muitos anos, al-
guns à minha volta por certo irào comentar: "o amor é
cego". Isso quer dizer que o amor diminui a capacidade de
enxergar a realidade para que a fantasia, feita sob medida
para se encaixar em meus desejos, pode ser projetada so-
bre o outro c assim torná-lo mais aceitável. A conseqüên-
cia cinica é que se isso não acontecer, se cu o vir como

191
Onde o seu tesouro está

ele é de verdade, eu jamais me envolverei com ele, porque


todo mundo é, de fato, bem indigno de amor, seja isso vi-
sivel ou não, e, em alguns casos particularmente infelizes,
as duas coisas. O amor não enxerga a verdade, ele cria
ilusões que nos incapacitam para lidar com as realidades
duras da vida.
Mas o ditado popular, como acontece tantas vezes,
está errado. Cego é o ódio. E também o hábito, a con-
descendência e o cinismo. O amor abre os olhos, ca-
pacita-os a verem o que sempre existiu mas foi omitido
por pressa ou indiferença. O amor corrige o astigma-
tismo e o que havia sido distorcido em egoísmo agora
é percebido com precisão e apreciação. Também cura a
miopia para que o borrão do outro distante agora entre
em foco preciso. Sara a hipermetropia para que opor-
tunidades de intimidade deixem de ser ameaças nebu-
losas e passem a ser convites abençoados. O amor olha
para aquele que "não tinha qualquer beleza ou majes-
tade que nos atraísse, nada havia em sua aparência para
que o desejássemos" c enxerga aquele que é "dos ho-
mens o mais notável" o que foi ungido entre seus compa-
nheiros com óleo de alegria.
Se víssemos o outro como ele, ou ela, realmente é,
ninguém seria "o mais notável", exalando "aroma de mirra,
aloés c eássia". O amor penetra nas barreiras construídas
para defender contra rejeição, desprezo c depreciação, c vê
a vida criada por Deus para o amor. Quando nossos olhos
estão doentes por causa do amor a nós mesmos, não en-
xergamos beleza nem virtude. Tropeçamos em um mundo
nebuloso, sem foco e defon11ado e reclamamos que ele é
feio, ameaçador ou entediante.

192
Amar a Deus

o amor a si mesmo distorce a admiração espontânea


e a transfonna em inveja calculista. Tudo que é atraente e
desejável recebe uma etiqueta de preço. Em lugar de dança
e exclamações em um mundo maravilhoso, nos colocamos
à espreita entre prateleiras e pesquisas de preço, perguntan-
do: "Quando custa?". Nossos impulsos interiores destina-
dos a amadurecer em amor que adora se pervertem e se
tornam aquisição planejada. Por conseqüência, vivemos
em uma sociedade em que as transações, tanto materiais
quanto pessoais, se baseiam na inveja. As propagandas es-
timulam o consumo como estilo de vida, desenvolvendo
apetites insaciáveis, não apenas por bens, mas também por
novas experiências e satisfação pessoal. Espera-se que a
sociedade forneça estoque infinito de coisas e pessoas para
satisíàzer os apetites motivados pela inveja. Esta, e a an-
siedade que a acompanha, substituem a adoração com lou-
vores inventivos como a disposição dominante do amor a
SI mesmo.

A oração, nada menos, é pessoal e poderosa suficiente


para enfrentar esses estímulos onipresentes que incitam à
invcja, para redirecionar para a adoração e outros a imensa
energia do amor que se curva no cgo. Seguindo a orien-
tação de Hebreus 1.9, os cristãos usam o Salmo 45 para
desenvolver a adoração de Cristo, em quem encontramos o
humano e o divino ao mesmo tempo. Em tal oração recu-
peramos a capacidade do "assombro radical" que Abraham
Heschel defendeu ser essencial para personalidade c socic-
dade sadias. j
Nada nem ninguém jamais recebcu a admiração mc-
recida. Adoração é o ato em que nos colocamos de livre
5. Abraham Joshua Hcschcl, God ;n Scarch ollvfan (Nova Iorque:
fanar. Straus and Ciiroux, 1955), pág. 46.

193
Onde o seu tesouro está

vontade em homenagem àquilo que é mais e melhor do


que nós que responde pela maior parte do que existe.
O mundo em que vivemos é fecundo em beleza e gene-
roso em bondade. Vivemos entre gente que é "dos homens
o mais notável" e "exalam aroma de mirra, aloés e cás-
sia". Mas não nos damos conta disso, porque estamos tão
preocupados com a vaidade do amor a nós mesmos, es-
palhando cosméticos em nosso rosto oprimido e emaciado,
que não damos atenção à majestade e virilidade nas pes-
soas, nas criaturas e em Deus. Fomos criados para adorar.
Quando os instintos agem espontaneamente, adoramos
com fervor: "com o coração vibrando de boas palavras".

Nova aventura em amor


A segunda parte do Salmo, dirigida à rainha-noiva, adverte
contra o aíàstamento e completa a cura do amor a si mesmo.

Ouça, ó filha, considere e incline os seus ouvidos:


Esqueça o seu povo e a casa patema.
O rei t(li cativado pela sua beleza;
honre-o, pois ele é o seu senhor.
A cidade de Tiro trará seus presentes;
seus moradores mais ricos buscarão o seu favor.
Cheia de esplendor está a princesa em seus aposentos,
com vestes enfeitadas de ouro.
Em roupas bordadas é conduzida ao rei,
acompanhada de um cortejo de virgens; são levadas à
tua presença.
Com alegria e exultação são conduzidas
ao palácio do rei.

Ouça. Ó .filha, considere e incline os seus ouvidos:


Esqueça o seu povo e a casa paterna. A princesa de Tiro,

194
Amar a Deus

trazida á presença do rci hcbreu para se casar com ele, já


sente saudade de casa. Está cm país estranho, não conhece
o território, as pessoas falam com ela com sotaque di fe-
rente, ela scntc falta da segurança agradável de seus mni-
gos c sua família. Está tomada de dcscjo pelo que deixou
para trás. Enquanto pennanecer ligada à infância, á tàmí-
lia e aos costumes (ou seja, aquilo que lhc deu certeza da
accitação e de sua importância), cla será incapaz de uma
nova aventura em amor.
Se a primeira regra do amor é o reconhecimento mara-
vilhado (Esta, sim. é osso dos meus ossos e carne da minha
carne' - Gênesis 2.23), a scgunda é o homem deixará pai
e mele e se unirá à sua mulhe/; e eles se tornarelo uma só
carne (2.24). Se não "deixar", não poderá se apegar.
O amor nos leva a tcrritório novo. Para explorá-lo,
será necessário abandonar o velho. Isso implica em aban-
donar níveis de conquistas e relacionamentos anteriores e
cultivar novos. Todo ato de amor acarreta risco para o ego.
Não há garantias. Muita coisa pode dar errado: podemos
nos magoar, há possibilidadc de rejeição e engano. Mas,
sem correr esses riscos, só havcrá repetição de padrões an-
tigos, a rotina do conforto conhecido.
A pessoa não será ela mesma se não crescer e, para a
criatura feita á imagcm de Deus, isso significa amar. Ne-
nhum ser vivo pode permanecer cstático. Não há como
preservar a pessoa cm rcsina. Todo novo ato de amor re-
quer atàstamento do que já foi superado, e que agora serve
apenas para intàntilizar o indivíduo. Karlfried Durckheim
insistia: "Você nunca mata o ego, apenas descobre que ele
vive em uma casa maior do que você imaginava". Para
amadurecer, o ego tem que encontrar uma casa maior onde

195
Onde o seu tesouro está

possa morar do que aquela onde todos o mimam e atendem


seus menores caprichos. A passagem entre a casa paterna c
o casamento é o arquétipo da transição do ego confortável,
que recebe cuidados, para o ego vigoroso, que cuida dos
outros.
O amor a si mesmo é obcecado em manter o que tem
e ainda acrescentar um pouco mais. Por esse motivo é tão
entediante. Nunca tem coisas novas a dizer, nem outras
descobertas a fazer. Avalia sua posição com base no que
possui e entra em pânico só de pensar em perder alguma
coisa. Quando forçado a novos relacionamentos e situa-
ções, sua primeira consideração não é sobre os novos cam-
pos para o amor, mas sim sobre a perspectiva terrível de
perda. Assim, agarra, segura e chora.
O afastamento, pré-requisito para o casamento ma-
duro, nos prepara para amadurecer em amor por todos.
Uma vez após outra nós sobrevivemos ao nosso passado.
Chega um momento em que deixo de ser cônjuge, pai,
empregado, saudável. Certos períodos de minha vida são
imensamente valiosos, alegres e úteis, mas, por sua própria
natureza, não há como perpetuá-los. Ironicamente, se ten-
tannos fazer isso em nome do amor, estaremos arruinando
o amor.
Atàstamento não é deslealdade, é requisito para
o próximo avanço do amor, que se move para alcançar
perfeição. Esses movimentos quase sempre começam
com sentimentos de perda e privação. Mas afastamento
não é perda- é condição para nova criatividade. Se nos
agarrarmos a experiências, papéis, lembranças ou rela-
cionamentos, nos tornaremos dignos de pena. O amor a
si mesmo continua apegado ao bem muito depois que de-

196
Amar a Deus

ixou de ser bom para nós: "esqueça o seu povo e a casa


paterna". A casa de seu pai era muito boa na sua infância.
Não há nada errado com ela hoje, mas ela nào comporta
mais você, se é que você quer aproveitar ao máximo sua
vida. Hoje você é a noiva: "o rei foi cativado pela sua
beleza". Antes seus amigos e seus pais a consideravam
bela, agora você será bonita em outra dimensão, para seu
marido, seu rei.
Os versículos 12 a 15 descrevem a situaçào presente
da princesa, corrigindo a privação que ela sente. A roupa
tecida com ouro, os vestidos de muitas cores, as compa-
nheiras virgens, a parada de alegria que é a marcha do
casamento - tudo isso é a realidade presente. Está acon-
tecendo agora. Mas, para aproveitar isso, ela tem que se
afastar do passado, deixar a experiência de ser apreciada e
se lançar à de apreciar. A nostalgia obscurece o esplendor
do presente.
Muitos não conseguem entrar no êxtase do presente
eterno por causa de ligação preguiçosa e sentimental com
"Tiro". Emily Dickinson falou da "Renúncia - a virtude
cortante!"." A separação dolorosa do passado bom nos
liberta para o presente melhor. A negação ascética que é
parte tão importante da vida de fé de maneira nenhuma
nega o prazer. Ela nos prepara para ele. O casamento é o
paradigma da vida comum para esse abandono de tesouros
imaturos, pré-requisito para se experimentar as delícias da
intimidade madura.

6. Emily Dickinson, Tlle Complete Poems (Boston: Little, Brown &


Co., 1960).

197
Onde o seu tesouro está

Abrir e crescer
As linhas finais são uma promessa que se cumpre
quando a adoração (versículo I a 9) e o afastamento (10-
IS) se integram.

Os teus filhos oellparào o trono dos teus pais;


por toda a terra os farás príncipes.
Perpetuarei a tua lembrança por todas as gerações;
por isso as nações te louvarào para todo o sempre.

Em lugar de pais, filhos; de passado, futuro; de an-


cestrais, descendentes. Ao invés de entender a nós mesmos
através do que recebemos por herança, nos entendemos
pelo que nos tornamos ao criar nova vida.
O amor a si mesmo é estéril, infértil. O amor é fértil.
O amor a si mesmo se liga às coisas familiares e acon-
chegantes: bens, costumes. O amor se desliga do tumulto
doentio e com isso se abre para a fertilização do novo, para
o êxtase do inter-relacionamento c do ato da criação. O
apego é fechado e restrito. O afastamento leva à abertura e
ao crescimento.
Há uma alteração sutil nesses versiculos, que passa
sem identificação em nossas traduções, a mudança do dis-
curso da noiva para o noivo (o hebraico faz distinção en-
tre os pronomes "teus" e "tua" quando quem possui é do
sexo feminino ou masculino"). O destinatário agora é o
noivo-rei. Ele, assim como a noiva, precisa se afastar quan-
do compartilha os resultados. Nada no amor é unilateral.
Tanto na adoração quanto no afastamento há necessidade
de um parceiro. Não é possível separar as ações e designá-
las como masculinas ou femininas. Sempre que isso acon-
tece, a diferença leva à exploração e à subserviência. Essa é

198
Amar a Deus

uma das armadilhas mais antigas do amor a si mesmo, e é


inaceitável. Acabar com o domínio do ego no amor envolve
a dignidade da mutualidade e pratica a união em oração.
A oração cria o espaço que permite nos afastarmos
do que considerávamos necessário mas que, de fato, é ape-
nas restritivo. Então estaremos livres para receber amor, já
que este só pode ser vivido como ato livre. A oração cria
esse afastamento da necessidade e abertura á liberdade. Na
análise de Henri Nouwen,

sem oração "nossos relacionamentos com os outros se


enchem de carência, avidez, rigidez, apego, dependên-
cia, sentimentalismo, exploração e parasitismo .... So-
mos incapazes de considerar os outros como diferentes
de nós; vemos as pessoas apenas como gente que pode
ser usada para satisfazer nossas necessidades, muitas
vezes ocultas". :

A sabedoria deste mundo considera o amor maravi-


lhoso para o quarto, mas inadequado para o governo. Acei-
ta juras de amor na praia, à luz da lua, mas as considera
embaraçosas na mesa de reuniões da sala do conselho de
uma empresa. O problema é que nada na Bíblia corrobora
essa contenção. Dcus não apenas ama cada pessoa para a
salvar, Ele também vai estabelecendo Seu reino. Além do
mais, as Escrituras falam que o mesmo Deus que governa
o mundo salva a alma.
Ninguém tem dificuldade para acreditar que a carac-
teristica principal dc Deus é amor, já que "Deus é amor" (l
João 4.16). Os textos deixam claro que Ele agc em amor aos
individuos e ao público. "Sci que me quer bem, a Bíblia as-
sim o diz", não é citação bíblica, mas é um resumo prcciso
7. Henri Nouwcn, ReacMng QlI! (Garden City, N.Y.: Doubleday,
1975). púg. 30.

199
Onde o seu tesouro está

do conteúdo, exatamente como Deus tanto amou o mundo


(João 3.16). O mundo c o ego são o foco duplo do amor de
Deus. Ele não adota uma forma de agir com o mundo e
outra com os indivíduos. Não dcdica à alma amor pessoal
e às nações postura impessoal. Não nutre amor rcdentor
pelas pessoas para depois agir como policial na história.
Em todo tempo o que O move é o amor.
É bem verdadc que a expressão do amor na socie-
dade e na cultura requerem formas diferentes de expressão
entre membros da família e amigos. A manifestação mais
comum no setor público é a paixão pela justiça. Leis, não
beijos, a busca séria da política, em lugar de oferecimento
planejado de rosas, são o caminho. Mas a base bíblica para
o amor não pode mudar. Este, não oportunidades nem bus-
ca de lucro, continua sendo o fundamento, que não pode
ser trocado por nada, nem por ninguém.

Espontaneidade no amor
Para impedir a troca, o povo de fé ora. Oração é a
forma em que o amor pode ser praticado na sociedade e
no ego. Aqui também ela envolve adoração c afastamento.
O amor maduro se desenvolve no louvor generoso ao que
exíste e na recusa determinada a se apossar das coisas. Nis-
so, outros recebem afirmação e são libertos. A sociedade
recebe espaço para desenvolver em amor, sem ser desmo-
ralizada nem ter seu crescimento obstruído pela cobiça. A
oração desses egos louvados e libertos infiltra a sociedade
de fomlas que a libertam para a espontaneidade em amor,
tanto nos aspectos pessoais quanto nos públicos.
O casamento é a maneira normativa (embora não ex-
clusiva) em que as pessoas experimentam e praticam essa

200
Amar a Deus

vida de amor. Esse ambiente requer a integração das áreas


pessoal c pública. Todo casamento une duas familias não
relacionadas em contato histórico de compromisso. Toda
sociedade possui tabus contra incesto e leis contra casa-
mento dentro da família. Existem razões genéticas para
isso, mas também politicas. O crescimento para dentro
acarreta problemas biológicos e também sociais. Precisa-
mos ser obrigados a sair de nós mesmos para ter contato
com outros e demonstrar com nossa vida que ele é aliado
e não inimigo. Através da prática da adoração e do aíàsta-
mento, os estranhos se tornam apaixonados. A rivalidade
natural que se desenvolve entre pessoas diferentes é rever-
tida no ato do casamento, quando surgem alianças.
Isso era óbvio em nível internacional nos casamentos
na Antigüidade e na Idade Média, que eram combinados
entre casas reais, como no Salmo 45. Apesar disso, con-
tinua verdade em nosso bairro. Cada matrimônio cruza
outro limite de genealogia. Histórias diversas se unem de
fonna que o outro é apresentado para apreciação e louvor,
não para desprezo e rejeição. Todo casamento prova que o
outro individuo não é inimigo, rival, ameaça e sim amigo,
aliado e, na melhor das opções, objeto de amor.

Arquétipo da liberdade
Todo casal parte para o matrimônio com essa expec-
tativa, mas nem sempre isso acontece. Separações aconte-
cem, parceiros se tornam rivais, se enchem de ciúme, sen-
tem-se ameaçados, rejeitam e sofrem rejeição. As traições
acontecem. Ainda assim, o ato de amor recorrente mais
significativo que acontece na sociedade é o casamento.
Ezra Pound era defensor radical: "Uma íàmília bondosa é

201
Onde o seu tesouro está

capaz de humanizar todo um Estado e levá-lo a agir com


cortesia; um homem explorador e perverso pode levar uma
nação ao caos".' Sem dar atenção ao número de fracassos,
o efeito cumulativo das inúmeras experiências é positivo e
contraria o crescimento do ego para dentro de si mesmo.
O casamento é o arquétipo da liberdade. Os parceiros
deixam seus laços familiares naturais, rompem redes de
necessidade e previsibilidade e, no momento da cerimônia,
tornam-se os primeiros motivadores da política da liber-
dade. Isso vale inclusive para casamentos arranjados: em-
bora ninguém pense na vontade dos parceiros, o arranjo
resulta da escolha de alguém e não apenas da uma necessi-
dade biológica. Assim, todo casamento introduz na socie-
dade nova energia de amor e liberdade, que tem poder para
acabar com o domínio do ego, não apenas nos envolvidos
mas em toda a nação. Entretanto, apenas a introdução des-
sa energia não basta. Se bastasse, já viveriamos há muito
tempo na utopia. Há necessidade de continuação e de aper-
feiçoamento. Só conseguimos isso em Cristo. A fidelidade
na oração nos leva à longa vida de amor em que, e através
da qual, o mundo não perecerá.

8. Citado por Berry, A Coll1inl/O/lS Hormony, pág. 41.

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