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JORGE DE LIMA

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Ç P,r{. GILBERTO EREYRE
ozÍvto MoNTENEGRo

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PRIMEIRO DOS TRÊS CÀDERNOS
MANUscRrrosaea}ntíi;'";;o"iy3..i:;:*'^":1t1"i,-ui,iii"Ji
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;" Z:;;v}í 1; a"; o s s eu s livro s )'
"" ';-^;;:"ã ô"*o r".c-i'i"'-'pà""oo em dar o titulo
do romance:

Memórias d.e um
Mtttirto de Engenh'o.
dres, voltando a pé para easa, Eram assim as minhas iições cle porearia com aquele
a olharem para mim, de
bolsa a tiracolo, na garupa do rnestre que não se contentava com o lado teôrico de seu
eavalo braneo que me
levava e trazia da esdola. - rnagistério e também dava as suas lições de coisa.s-
Nós tírúamos, porém, no curral pegaclo à casa-gran-
O ourno m-estre que eu tive foi o Zé
15 professor cle, urna aula pública de amor. $.qu. Z_é Guedps- gps
Guedes, mcrl
de muita eoisa ruim. Levava-m;; contava dele com as Z,efas, os touros e as v'acâs nos fa-
zia-me da escola todos os aia..-f-rr, ;;;_ ziáiíãtiãi"ijàto entendimento. Era ali um bôm aampo'
cava eortr ele, de ida_e volta,
*uiu hora que fi_ -sc
aprendi coisas *"i*}ãoi* de rleinonÊtiáôao. No cercaclo dos engenhos o menino
de aprender inicia nestes mistérios do sexo, antecipando-se por mui-
àue a tabuada * u.'I"t.u.. Contava-me tudo
que era história de amor, tos anos no âmor. À reprodução da espécie ficava triara
sua e dos outros.
mora Zefa Cajá. nóe Um-ato sem grandeza ncrnhuma. Víamos as vacâs c
-Ali
E lá vinha com os deialhes, com as eoisas âs porcas nas dores do parto. E éramos quase que seus
vida desta mulher. Às vezes erradas da
;";;;;;, porta, e era umâ assistentes. Lembro-mê de uma vaca malhada que rnor-
conversa eomprida, eheia de reu por uma malvadeza do meu primo Silvino. Ttrle se
ditos o d. ;.*-";;ó"hi;;:
o menino, zé Guedes r ô homeur desbocado rneteu a médico, e com urna imperícia infeliz matou a
-olha
Mas ele pouao se importaoo !
Eu mesmo gos- pobre novilha turina do meu avô. I{inguóm soube no en-
tava de ouvir o bate_boea imundo. "o*igo.
Éclo caminho o mo- genho deste crime cometido com a minha cumplicidade.
Ieque oontinuava nas suas Concorríamos também no amor com os touros e os
lições, falando de mulheres
e de doenças-do-muudo. E oo-rrre pais-de-chiqueiro. Tínhamos as nossas cabras e as nos-
po. ,,o*" ere dava de
to{as as doenças: ea-valo, mula, crista_de_galo. sas vacas para encontros de lubriciiladê. -.§ -iÍrólniiscut:
Às vezes, da estr-ada, pediam pu", iiade selvagem do curral alrastava u ;ôíd-firiâr,cia às
vila: carret,6is de linha, papcl à. osolhrs. "o*p.arZéeoisas na cxperiôncias de prazeres quc não tínhanros idaclc dc
Guedes
entregava as enconeoda*,
foranào'aoroursas eompri- §õi,ar. Era apenas nunia buliçosa curiosidacle dc mc-
das com as mulatinhas. rrino, a meslna curiosidade que nos levava a ver o que
ari jú foi passada. euem manda nela .tndava por dentro dos brinquedos.
- -aq,ela
Juca. ó o Dr.
Uma tarde o primo Silvino me disse:
E eu ia sabendo que o ueu Tio Juea tinha vamos fazer porcaria no curral.
em quem mandava. De uma mulatas -Hoje
feita desoeu numa easa do De fato, à boca da noite, quando o gaclo chegaclo clo
palha, oncfe s6 morava uma pastoreador descansava, uns deitados e outros parados
negra. Ficou Iá dentro uma
porç_ã: de tempó.
euando saiu] ouvi a mulher dizendo r tr olhar o chão, eu vi o primo Silvino trepado na c(rroÍr,
vá, se esoueeer do corte de chita, procurando pôr-se por ciura de uma vaca
34-Não u*o rnzutsirrlrrr..
iosê ting d,o reso' ".irJro i enino de enllenln :15
m

mas níovivo com a desca-


A velha Sinhazinha dizia que semana santa boa era cadeia, crio bicho na peia' clos outros'
a do ftambé. O Padre JúIio beijava os pés dos pobres, rada daqu.tu qonrr.gã''ú"'"eo tallbrrraco
"ô .;;;;;- com os pés presos no
ánituaà' de costas'
fazia procissão de encontro e um sermão de lágrimas aqucla sua {ala de revol-
que todo o mundo chorava na igreja. As negras ficavam tronco, me impres;";;"-;;* molcque chibante
pela cozinha, sentadas, conversando em cochichos sobrc tado. Chico p"'ui"o"^ã''ã t'*r'i[eiro'
e norles obscenos' Toclo
o dia. Não se tomava banho de rio, para não se ficar da bagaceira, cheio de clitos siclo ele mcsmo o autor do
munrlo acreditava n"t if"ã--à
nu na frente um do outro. Náo se judiava com os ani-
malfeito,;ro molotu'ilu;a,
il' A, rnác da ofendicla viera
mais. Não se chamava nome a ningrrém. Um canário a coisa pra cima de
que eu tinha pegado me fizeram soltar. E as nossas ifaf'ãueixa* uo *lo'^uoã' uot^"rlo-ficaria ató se resolvcr
conversas avançavam até em corrigenda à vontadc dc Chico Pereira' E ; t;;;'co "1o
Deus. Nós achávamos que Jesus Cristo devia ter liqui- a casar com a sua vítima' do nrisioneiro' As
clado toclos os judeus e tomado conta de Jerusaiém. Náo
No outro tli' ;it"i narl i-un1'o apãrtadas dcmais
i*chaclas'
pe''tras presas iá';;i;;ti;
atinávamos com a grandeza do sacrifício. Queríamos a ao trorJo. n," qoon,io mc viu me chrtmou:
no buraco
""-ü;;.dir a úu'io Menina para me valer'
vitória material sobre os seus algozes.
Abriam, por esse tempo, o quarto dos santos. O san- Tia Maria me dissc:
tuário coberto de preto e as estampas viradas todas para ele deve, deve Pagar' I
-Se frri levar ao preso o
a parede. Os santos estavam com vcrgonha de olhar' NJtoru do almoço 1o rnnt-o todo donncntc' I
de comida' Estava coln o corpo quatro horas ta
pârâ o mundo.
Era as-si,ryl-a- r.eligião" do engenho onde rne criei.
te*á"-i*"f,fiia'ao
rrrato
tfo mais de vintc c I
deixando entorpecida";;;oa circulaçáo'
caso' Aquela dcsgraçada me
I
í a O rvrBu avô mandou botar o cabra no tronco. E nós
'- fo*o, vê-lo, estendido no chão, com o pé metido no -IIorro "q"i, Potlc me Pi'u'.de {acão' E
,;;-ôõ";;'í clcixci os meus pri-
furo do suplício. Earamente eu tinha visto gente no Fiquei ao taoà ã"'órlito ?crcita'
tronco. Somente um negro laclrão de cavalos ficara ali mos e o, *oluqott' Xao
fui ao poco lavar os cavalos I
ouvi,clo as suas his-
até que chegassem os soldados da vila, que o levaram. nara ficar ."*;;;; .oooor.unaof Irlra uma injustiça
Âgora, porém, Chico Pereira estava 1á, com os pés no tãrli-:';;ti;;; ;' *u' u"gnstias'
Por que náo seria mentira da
lrrrlnco redondo. o que estavam fazenclo'
no engenho que'estivessc
*-lí) rncntira daquela bicha severgonha. Ela botou pra mulata? xao rravia ninguém e o mo-
,'irrur rlc rnirn os estragos que os outros fez. Ela podc t favor ao tur"u' I mJça tinha siclo 'ofendida'
Chicà'Pereira só con-
(';rsr,r' conr o diabo, comigo não. O Coronel me mata, loque que nu*oJ"'l'q"íau"io'
lnlrri ru nfio rrto :llnarro com aqueia peste. Vou prir lrrvt comrgo. tnenintt cla enganho 43
l'l jtu,;lius tlo rr0u
À tarde, estava o meu avô sentado na sua cadeira, no caso' \tirüa
Na casa-grande só se falava baixinho *: l:::
perto da banca, no alpendre, quando chegaram Maria Tia Maria oao *t'ãã; ;; Puiuv'a'. }L::T
Pia e a mãe. Vinham todas duas chorando. À velha
correu logo para a Tia Maria, ajoelhando-se aos
ffi#á;,*; i;il rio Juca "á,9 li":y-1:3mesa'
rosé P'"]*:^:"t"::;::'
seus pés:
ffi:;;J""?,* " ""ir'o p^:*: gasta
:ffi;"f -;i prr"q""- t"rvem os estudos',besteiras
ãi;;rao, * etes voltam pra fazer "
desta
a minha filha, Maria Menina.
-Proteja
O meu avô ordenou que acabasse com aquela latomia. "*
ordem.
E mandou buscar um livro que havia debaixo do san-
passava no outro lado do rio'
9 A ESrRÀDÀ de,ó'Íerro
tuário.
fazia-se
vai jurar em cima deste livro santo como con- ouví-amos o trem- apitar' e
1
-Yocê Do engenno todas as
relógio de
tará, a verdade de tudo. O cabra está no tronco. Ele de sua pâssagem 'i*o "tpOtie de
nega, prefere morrer a casar., Yamos, bote a mão aqui atividades: antes a"^ du'' depàis do trem das
em cima e diga o nome de quem lhe fez mal. tluas. ""*-aut
Deu o livro vermelho com à cÍltz dourada na capa Costumávamos ir para a beira da linha ver de perto
pâra a negra botar a mão em cima. A velha e a filha os trens du pu..ug"ii"-' n *"11:'ff;Ht$:';:'rl;
ficaram fora do mundo. Àquelc livro santo não era para colsa r
olhando como se fossem uma cla Paraíba'
menos. E então a mãe de Maria Pia, como se estivesse
rários que vinham-ãt-nttitt e voltavam das nossas
com a faca nos peitos | .
não bota a tua alma no inferno.
lfu. ,to. proibiam esse espetágulo -comEmedo tinha razáo de
-Menina, traquinagens pelo úi' du ettruda'
O povo todo tinha chegado para perto da mulata. agoniados da
disse o meu avô, com aquela sua voz de ser tanta cautela: um dos lances mais esperas de trem.
-Yamos, minha infância ", pu.,ui numa dessas
mando. em fazer virar a'má-
E a mulata com os olhos esbugalhados: O meu primo Silvino combinara pan:o
Caboclo' Já outra vez' com um
que foi o Dr. Juca qucm me fez mal. ;"i;;; rampa domoleque pregara num pau'
-Juro
O meu avô não deu uma palavra. Só fez dizer: vermelho que um "* T^1tt:
que meu prlmo
o cabra. ,i*tu pr"ura o horário das dez' Agora o pedra bem ua
-Soltem
Corri pâra ver Chico Pereira, com a ânsia de encon- ;;;; -;, um desastre' E botou uma
esperando a
T,rÍ)r o meu constituinte inocente. curva da rampa. Xà' ritumos de espreita'
lr.ra. Quando vi;;; se aptoxiáar como um bicho
IDlc náo podia andar. Os pés inchados não tocavam uma
rro chiro. ,..,*prüo que viesse para uma armadilha' deu-me
explicar' Parecia
com um formigueiro no corpo todo. Eu não rrgonia dentro a" mim'q'o eu-não soube
-Itlstou
rlizi:r tprc a negra não prestava? O Dr. Juca agora vai ,lro eu ia ver íãtt" ae mim pedaços de gente *llll:
"ri ^pelo
Í'icrrr' <:orrr rntis esta nas costas. ,:,,r,,,ças rolando chão, sangue
,,coúoe"i'";:"#"'n?
44 joaó lin.s tlo r<:go
Oh que d,ia d,e iuí,ao! vclhas. ConLeci urnas quatro: Maria Gorcla, Gencrosa,
Oh que d,ia ile horror! Galdina e Romana. O meu ar,ô continuelva a dar-lhes de
Só as Ped,ras nã,o choraaam, comer e vestir. E c1ãiã-t;ã6âThil;ú d. groçu, conl-.à
porque não sentiram ilor. . . rnc sniããTe giia dá c sCiavidãg..l§*s1g.l*Ít]l* g- .p Bqta§
Ó mestres e contramestres, iam-lhes süócd-qpdq'.9-p_.servi§ão,.com o rncsrno arnor à
pi,lotos e capi,tã,o, .',;á:á;;;d;-. à *".üu pn'Áirriâàdô 'dô bôns animais
'uüt?t,os oer nosso Bahia rlomésticos. Na rua a meninada do ertgertho cncontrava
i
se cluer afu,nilar ou ctão. os seus amigos: os moleques, que eram os companheiros,
() as negras qllo thes derarn os peitos para mamâr; as
fnciclentc por incidente eram narrados nestes ver§os: boas servas nos braços de quem se criaram. Ali vivía-
meninos agarrad.os com as máes em pranto; um choro rnos misturados eom eles, levando carão das negras
agoniado de gente que vai morrer; a âglua entrando por rnais vclhas, iguais aos seus filhos molcques, na par-
dentro do navio; uma velha se salvando nllm garajau tilha de seus carinhos e de suas zâng'as. Nós não óramos
de galinhas; um homem rico chamado Pataca Lisa cor- scus irmãos-de-leite? Eu não tivera êstes irmãos porc{ue
rendo para dentro do camarote para buscar um pacotc rrascera na cidade, longe da salubridacle daqueles ú]reres
cle dinheiro e não voltando mais; foi ao funclo com a cic boas turinas. I\[as a máe-de-]eitc de Dola Clarissc,
sua riqueza. Todo o poema era uma abundância de a 'I'ia Generosa, como a chamávamos, fazia as t ezes dc
detalhes. E na voz plástica da velha, a tragédia parecia rninha avó. Toda cheia de cuidaclos comigo, brigava
a dois passos de nós. Fictrva arropiado com esse canto com os outros por minha causa. Quando se reclamava
soturno. Vinha-me entáo um mcdo antecipado de embar- tanta parcialidade a meu favor, e1a só tinha uma res-
car em navios, pelo horror das cenas clo naufrágio desse posta:
pobre Bahia,
não tcm mãe.
Depois Sinhá Totonha saía para outros engenhos, e -Coitadinho,
Nós mexíamos pela scnza,la, nos baús velhos das
cu fiãava esperando pelo dia em que ela voltasse, com
rregl'as, nas locas que elas faziam pelas paredes de
as suas histórias sempre novas para mim' Porque ela
possuía um peclaço do gônio que não envelhece' l;ripa, para os seus cofres, e onde elas guardavam os
,,,,us rosários, os seus ouros falsificados, os seus bentos
99 Resrlvl ainda a senzala dos tempos do cativeiro' rrrilagrosos.
-- Urr= vinte quartos com o nlesnlo alpendre na frente' Nas paredes cle barro havia sempre santos dependu-
Âs ncgras clo meu avô, mesmo depois da apoliçáo,- fi- r;r,los, e nunl canto a cama dc tábuas duras, onde há
(,irr:rÍr toclas no engenho, não deixu"u* u ,ua'r-{6m" rrr;ris de um século faziam o seu coito e pariam os s9/tls
cln,s cltnmavam a senzala. E ali foram morrendo dtr I rII r.s '
54 jotó l'i,nn tlo rclo menino de eng enho 55
§íg*qqnheci. marido"dg nenhuma, e no entanto viviam_ bestas, no contato libidinoso com os moleques da baga-
de barriga enorme, perpetuando a espécie sem prayi; ceira. As negras, porém, nos respeitavam. Náo abriam
clênciá e sem medo. Os moleques dormiam nas redes a boca para imoralitlade na frente da gente. Estavam
fedorcntas; o quarto toclo cheirava horr,ivelmente a clas nas suas palestras de intimidade de cacla uma,
mictório. Via-se o chão Írmido das urinas cla noite. Mas e mal nos viam muclavam de assunto, E no entanto
era ali onde estávamos satisfeitos, como se ocupássemos recebiam os seus homens no q.uarto com os filhos. O
aposentos de luxo. meu primo Silvino nos contou urn dia o que vira no
O interessante era que nós, os da casa-grandc, anclá- quarto da negra Francisca:
vamos atrás dos molcques. EIcs nos dirigiam, mandavam *Zó Guedes numa cama de vara ringindo.
mesmo em todas as nossas brincadeiras, porque sabiam E todo ano pariam o seu filho. Avelina tinha filho dol
nadar como peixes, andavarn a cavalo de todo jeito, Zé Ltd.ovína, do Joáo Miguel destilador, do I\{anuel}
matavam pássaros de bodoque, tomavam barrho a toclzrs I'edro purgaclor. Herdavam das mães escravas estal$
as horas e náo pediam ordem para sair para onde qui- fecondidade de boas parideiras. Eu vivia assim, no$
sessem. Tudo eies sabiam fazcr melhor do que a gentc; rneio dessa gcnte, sabcndo de tudo o quc faziam, sabendo
soltar papagaio, brincar cle pião, jogar castanha. Só de seus homens, de suas brigas, de suas doonças.
não sabiam ler. Mas isto, part rrós, lambóm não parecia No quarto da negra Maria Gorda náo se podia entrar.
grande coisa. Qucríamos vivor sollos, com o pó no chão Nunca conseguíamos nos aproximar desta velha afri-
e a cabeça no tempo, st,nhor.cs tl:r libcnl:rde que os cana. Ela não sabia falar, articulava uma meia língua,
moleques gozavárm a totlus as hor.as. Itl clos i)s vezes
e na hora do almoço e do jantar sâía da loca pendida
abusavam deste poderio, da fascinaçiro quc excrciam.
em cima de uma vara para buscar a ração. Gritava com
Pediam-nos para furtar coisas da casa-grande para elcs:
os moleques e as negras, com aqueles beiços caídos e
laranjas, sapotis, pedaços de queijo. Trocavam conosco
os peitos moles dopcndurados. Era de lUoçambique, e
os seus bodoques e os seus piões pelos gêneros que rou-
com mais de oitenta anos no Brasil, falava uma mistura
bávamos da despensa. E nos iniciav:rm nas conversâs,
picantes sobre as coisa§"élô' sexô. Por eles comecei a tla língua dela com não sei o quê. Esta veiha fazia-me
eltender o que os homens faziam com as mulheres, por, rncdo. As fadas perigosas dos contos da Sinhá Totonha
orrde nasciam os meninos. Eran pls._ótimos repetiáores. linham muito dela. O seu quarto fedia como carniça.
.de história n4!ur-al. Andávamos juntos naà noÀ'sas libdil' Na noite de São João era na sua porta somente que
tinagens pelo cercado. Havia um quarto dos carros onde rriro acendiam fogueira. O diabo dançava com ela a
iam ficando os veículos velhos do engenho. Dali fazía- rroitc inteira. Eu mesmo pensavâ que a negra tivessc
mos uma espécie de lupanar para jardim de infânci:r. rlrrirkluer coisa infernal, porque nela nada senti, nunen,
A nossa doce inocôncia perdia-se assim nessas convorsas rlc lrurnano, de parecido com gente. Todos \a rua tcrrrirrrrr
56 josé lins do rego menino de engt,nlto ll7
a trfaria Gorda. À tardinha sentava-se nrrm caixão à l,,.rlrl'a gente para uma surrâ, era para junto dela que
porta de casa, para fumar o seu cachimbo de canuclo ,,,r'r'íírmos. Ela pedia pelos scus netos com os olhos
comprido; mas ficava sozinha, resmungaüdo ninguéur ,'lrcios de lágrimas.
sabe o quê. A velha Generosa cozinhava para a casa-grande. Nin-
A velha Galdina era outra coisa. Africana também, ;irri'rn mêxia num cacaroco da cozinha a não ser ela. E
de Angola, andasa de muletas, pois quebrara uma pefllrr vicssem se meter nos seus serviços, que tomavam gri-
fazendo "cabra-cega" para brincar com os meninos. Fo- lrs, fossc lncsmo,B'.extg do_-y*lA" Tinha não sei quantos
ra alna cle braço cle meu avô, e toclos nós a chamávamos liliros e nctos. Nõ§rá"ãlia c-õom braços cle homem, tira-
de vovó. As negras queriam-lhe un bem muito grandc. \':r urna tacha dc docc do fogo, sem pedir ajuda a nin-
A Tia Galclina era para elas uma espécie de dona da .'.rrónr. Só falava gritanclo, mas nós tínhamos tudo o quc
rua. Nã,o se falava com ela gritando, e davarn-lhe o tra- ,lrrer'íamos dela, A negra Gcnelosa era boa corrlo os seus
tamento de vossa mercê. Eu vivia cln conversa com ela, rloces e as suas canjicas. Era só pcclir as coisas no seu
atrás das suas histórias da costa da África. Viera dc ,,rrvido, e ela nos rlar, scrn ligar importância às impcr-
lá com dez anos. Furtaram-na do pai. {Jm seu irmão a linôncias da velha Sinhazinha.
vendera aos compradores de negros, e marcaram-na no quisessc mandar na cozinha que viesse para
rosto a ferro em brasa. Contava a sua viagcm de muitos -Qucm
rr boca do fogo.
dias: os negros ama,rrados e os meninos soltos ; de dia E quarrdo iam r:eqlamar qualquer coisa, saía-se corn
botavam todos para tomar sol onde viam o cóu e o mar'. rluatro pedras na mãoiy
Já estava contcntc com aquela vida de navio. O veleilo w sc" quisessertÍ-era
*' assim. Tcmpos de cativeiro
corria como o vapor na linha. E um dia chegaram ern -Quc -."*i ***s
.iá tinha"m pgs§-*gg.
terra. Ela passou muito tempo ainda para ser comprir- Distribuía com os molcques do pastoreador as raçõcs
da. Os homens que vinham queriam mais gente grantlc tle carne-de-ceará e farinha scca. F o fazía aos gritos,
e molecas taludas. r:hamando seuergonho a todos eles. Náo se importavam,
A vovó contava que via almas, pássaros brancos ba- porém, com esta raiva da velha Generosa. Os moleques
tcndo asas pelas paredes. Na viagem, estas almas, dc sabiam que o coração dela era um torrão de açúcar.
noite, ficavam voando por eima dos negros amarrados. I'ois dava remédios pala as suas tosses e as suas feri-
p nos ensinava uns restos de palavras que ela ainda rlts, e rernendava-lhes os farrapos das roupas.
sabia de sua língua. Na noite de Natal botavam os bois A sêã'ialá ãô Santâ-Rôsã"t'ãô clesaparecera*ooft--a
no carro para a velha Galdina ir ouvir missa no Pilar. :rlrolição. Ela continuava pegada à casa-grande, com rH
E davam colchões velhos para a cama dela. Por qual- slras negras parindo, as boas amas-de-leite e os bons «rt
quer coisa chorava como uma criança. Quando queriaut lrrts do eito,
ãE je6é kna do rege menino do annonho nll
genho ândavam passando dias. E chegavam presentes
de toda parte: rendas da terra, colchas bordadas, pano§ Acordei-me, porém, com a primeira angústia de minha
de filé. Os bichos dos engenhos gostavam das primas vida. Os pássaros cantavam tão aiegres no gameleiro,
assanhadas, trlc,r:qne talvez não soubessem da minha dor. Senti nesse
À viagem seria na terça-feira. Depois de amanhá não rncu despertar de narnorado um vazio doloroso no eo_
veria mais a minha companheira. Fizemos os idílios ração. Tinha perdido a minha companheira dos cajuei-
derradeiros, correndo os nossos recantos preferidos, ros. E chorei ali entre os meus lençóis lágrimas qou o
como um casal de namorados de livro. arnor faria ainda muito correr dos meus olhos.
De manhã, o carro de boi saía com o povo para a
estação. Âs meninas de Tio João dando dinheiro às ne- fr$ g qnu qvô recebera uma carta sobre o meu pai.
gras, & velha Generosa chorando, todos na sala em abra,- Soube disto por uma conversa dele com o Tio Juca"
ços e beijos. O Tio Juca iria corrr ztr Tia Maria à estaçiio. Náo sabiam que eu estava na sala de visitas olhando
Para menino não havia lugar. Maria Clara nem parecia umas revistas velhas-e conversavam. O diretor do hos_
que me queria bcrn, totlu sartislioii,a, sentada no eârro. pício escrevera, perguntando se o meu pai continuaria
Pensava que cla e sl,ivcssc tr:isí,c como eu. I\Ías qual ! como pensionista, pois os parentes dele há meses que
Alegre com Í) viitgcrn, bcm cont,cnte no meio do alvoro- haviam suspendido a mesada.
ço das despcclid:rs. *Acho que o senhor deve pagar. Afinal de contas, ó
Já saí:iln rlo torrciro, ganhando a estrada. Cnrri para scu genroi
as estacas tlo curcir«lo rt, Í'im de olhar ainda o carro. Tre- isto mesrno o que eu fiz. Escrevi ao Lourenço
pei-rne na corc& ttó qrrtr sc sumisse a carruagem com a
-Foi
para tomar conta disto todos os meses.
minha ingrul,t. ()uuntlo drcguci, dc volta, não sei quen), Foi um choque parn mirn essa certeza da desgraça de
na cclzittlrtt: meu pobre pai. Sabia que estava doente, mas assim,
sorrr nilrnorada, heirr? quase na indigência, me tocou fundamente. Contei a Tia
-Ii'icorr
As lírgrilrrts rilregirrart-nle aos olhos, e disparei nilm l!Íaria o que escutara da conversa. Ela não me quis di-
churo qrro rrii,o «rorrl,ivc. Il'oi a graça da cnsa durante o zcr coisa nenhuma.
dia. Nrr rrrrrsir cr;irl,ar:un ilo meu avô. O velho José Pan- *Isto nã"o é assunto para menino. Vá brincar lá fora.
lirrn rirr"st:: Não achei graça em nada, nesse dia. Só pensâ,va no
.--A rlrrt'rrr l)rrxou cste rnenino assim namoraclor"'? meu pai amarrado num quarto, gritando.
Il o rrrcrr u,rrror' Í'ic&va na conversa de toda gente. Chegara uma vez um doido no engenho, para ser le_
I)orrrri à rrr»il,c, <r«rrrr Maria Clara junto de mim. Os so- vailo para o asilo. O homem olhava a gente como sc
nhos r-lo urrr rrrrrnirro rrlrtixonado são sempre os mesmos. quisesse comer com os olhos, e fazia um esforço
doscs-
96 iosó lins do r(uo 1:crado para soltar os braços amarrados de cãr:rla. Drr
mino de engcnho 97
série de injeções. E porque não se purlesse aplicar ali
uoite cortavam o
coração os seus gritos agoniados. no engenho o seu tratametrto, passaria uns remódios
Quando saiu de manhá para o trem, fui olhá-lo. Estava internos.
manso, com um sorriso de menino na boca. Fiquei preso aos horários dos frascos de mezinhas e
diabo tinha saído do corpo, diziam. às dietas exagerad.as. O meu avô com cuidados. Nin-
-O
O meu pai devia ser assim também. Devia estar tran- guém brigava comigo. Certa ocasião o primo Silvino
cado num quarto de grades, com aqueles gritos de de-
queria uma coisa que eu tarnbém desejava. Deram-me,
sespero, tratado como animal perigoso.
e porque o meu primo protestasse:
vão para o céu, afirmavam dos doidos. Sáo
-Eles como os anjos.
inocentes
é doente, ninguém pode fazer raiva a ele.
-Carlinho
Isso aumentava o meu desengano, as minhas descon-
Havia, porém, doidos que o cram por influência do
diabo. Metiam-se com invocações, e o demônio tomava fianças em mim mesmo. Yoltei-me para.o§,canár19.59,o
conta do corpo. carneiro. Eles não me falavam de doenças, nãdtinham
O meu pai, sem dúvida, não scria destes. Seria ino- medo de que eu morresse. Eram também as meditações
cente como os outros, e iria para o céu. E isto me con- solitárias e as conversas mudas com o meu íntimo que
solava um bocado de sua situaçáo. Mas os doidos come- voltavam. Jâ nã"o ia mais aos banhos de rio, brigavam
qavam a tomar conta de mim de uma mancira absor- quando me viam no sol, não podia ficar de noite na con-
vente. E comecei a ter medo dc ficar doido também. No versa pela senzala.
engenho todo mundo falava: pra dentro, Carlinhos.
-Entra
Era o que eu ouvia de totlos os lados. A minha vida
puxou ao pai, é a cara da mãe, tem o gênio
da-Fuiano
família. ia ficando como a dos meus canários prisioneiros, en-
Quem sabe se eu não ficaria como meu pai? Punha- quanto os nteus primos se soltavam e um magnífico ve-
me triste com estes pensamentos sombrios. rão se abria em dias de festa de sol, em noites brancas
porquê a namorada foi-se embora. de lua cheia. Não me queriam levar para parte alguma.

À lembrança do homem amarrado de cordas, e com Os moleques tinham medo de andar comigo.
tuqueles olhos dc cachorro doente, machucava a minha com a gente-era como respondiam aos
tenra sensibilidade. Essas preocupações de doença, co- -Bngam
meus convites de passeios e brincadeiras.
meçadas na iufância, iriam ser uma das torturas de mi- Via os meus primos vermelhos de sol, chupando tutkr
rrha adolcscôncia. o que era fruta, com uma amargura que me consurnitt.
lIm módico que veio ao engenho me examinou de meu Aqueles cuidados excessivos me transtornavam. Criitvir,
prrxtrlo. Pcrguntou por tudo, de que morrera minha uma raiva bem viva a todos os que se opunham às rni-
rrrrr,, rlrl rlrrc soÍ'r'iir mcu pai. Disse entáo que erâ prcci- nhas vontades. Até para a minha Tia Maria, tão ntci-
,rr lnr lrrrlrrrrtlrrlo l igor.oso I)ur.a o tngu caso, fazor ttrrtn enino de en.genho 99
trll l,'n,t ltnn tlt' tt'tJtt

I
-
-?r:a mim, tão cheia de ternura para o seu filho ado- *I)eus Nosso Senhor devia levar aquilo
me voltava com rancor. Só dava trabalho, aquele aleijão. Seria até
Este menino está ficando diferente, pensava ela para o pobrezinho.
d.«>s meus maus humores de contrariado. Mas ele não .rnorria, como se estivesse muito sóIido c
À niinha amiga acertava. Só me consentiam sair à satisfeito daquela miséria da natureza. Voltava parâ ca-
tnrdinha, nos meus passeios de carneiro. Mas que não sa pensando nele. Ouvira dizer que o pai morera de bo-
",roltasse com sereno. ber. O filho nascera assim por causa da cachaça'
Eu me sonsolava clas proibições nessas fugidas aos D-gS te.S p1 ol2lema q "de. he r e {ltariedacl e 7n e apr ox-imav e
"

arrcclores do engenho. Os moninos dos moradores brin_ 'tu*üOro tiirna ím pai a'qúôm podia puxar-
cavam comigo sem receio, pois atê lâ não chegavã]r {rs "*rípu,rot.
Il todos no engpnhq pellsavam nisto, porquc me cerca-
zel.os de minha gente. Na casa dc j\{aria pitu demorava_ vam rle cautelas e precauções' E os frascos de idtiifitio
me tardes inteiras, com o carncir.inho nmarrado cnmen- me enchiam a boca tle amargo três vezes ao dia. O pai
iicr folhas cle cabreira, enquitrrl,o crr, solto com os camâ- do Cabeção bebia como José Passarinho. E dera ao mun-
radas, fazia tudo o que não rnc r:orrsontiam fazer no eri_ do um filho daquele. l

,qenho. Eram três os meninos rlc Mtria pitu. E um do_ Os meus pensamentos vinham assim de fontes enve-
r:;rte, coitado, sempre sentittl<l rrrrnr cti.xão, e com uma nenadas d.e pessimismo. Menino, e pingando em cima
i:aheça ellorme, pendendo. Nir«r lur«lirvir, não falava, a da minha infância cste ácido corrosivo que me secavâ â I

c:rbeç4 arriada pâra a frcnl;c, corn o llcso, olhando para alegria de viver. E os meus parentes ainda mais me sa- I

o rlundo com uns olhos qucirrr:rrlos rlc vivaeidade. Des- crificando, em vez de me deixarem no cuntato inocente I

,J.t) ,:]ue nâScera que era assint. Â rrrÍi0


tratava dele como com os mcus pequenos prazeres. O diabo ilaquele doutor
tlc um bicho doméstico. I):rvir Ilrc l rromida com uma co_
lher de pau, deixando-o csrlrrt'cirlo rlcntro do caixão, no
tcrreiro, Fazia-me horror cssrr rrrilrl,ura quase desuma_
me fechara num inferno, ali, a dois passos de um pa-
raíso de portas abertas.
Os pensarrttrtttos ruins principiavam a fazer ninho no
I I
na. l!{as os seus olhos parcciirrrr rrrcsrno de gente. pretos meu coraçiro. Ilatiam asas pôr fora, mas vinham sem-
c vivos, fitavam-me com urrr irrlcrosse que me pertur-
hava. Era, sem dúvida, por so l,r'tl.irr de coisa estranha
pre termin:rr cornigo, nas soluções que me davam, nos
sonhos que lrlc faziam sonhar, nos ódios a que me arras-
ffi
rla casa. Não tinha nome, niro lirr.t lrinda batizado. Cha- tavam. Por rlchaixo dos sapotizeiros, nas sombras ami-
mavam-no de Cabeção, e elc r.rrslrorr«lia com um riso de gas destas írrvores, à espera dos canários, só pensava
boca mole, que fazia nojo. Às vlzos ficava com medo pensamentos IIIâus. Criava assim rien+"lo de mim umit
dele, com aqueles guinchos quc llrt' saíam da boca. Era pessoa que rtiro era â minha. As rcclusões forçadas, it
a fome. E davam-lhe um petlnrl«r dc brote para roer. À que submetiitr r o menino que precisava de ar e de sol,
mãe desejava-lhe a morte em t,orlrrs ts conversas. iam perdenrlo mais a minha alma que salvando o llloll
f00 josé lins do rego mino de engenh,o I0l
t

toru»\r§1

$corpo. Lembrava-me dc l\[aria Clara com uma saudade


lcheia de desejos que nunca tivera. Misturava as minhas Tomba ca,ma, negro,
|alcgrias de antigamente a umas vontades pcrversas d.e eu já tombei,.
foosse. Os meus impulsos tinham mais anos que.a minha I

$duao, Ficava horas seguidas olhando, no currâI, asvacá§' O engenho d,e Massamgana
Pue mandavam de outros engenhos para reproduzirem f aa três &nos que nã,o mói.
pom os zebus do mcu avô, e as bestas vadias rinchando
Ai,nd,a ontem plantei, cana,
lcom os pais-d'égua pelo ccrcado. O sexo crescia em mim faa três a,nos que não mói,,
'mais depressa do que as pernas e os braços.
A negra Luísa filera-sc de comparsa das minhas de- Os earros de boi gemendo nos eixos de pau-d'arco,
pravaçõcs Ao contrário das outras, eüê os cambiteiros tangendo os burros com o chicote tinin-
"rltó4yáa"s.
nos re§péitâvain seriamente, ela seria uma espécie de d.o, e o ó/ dos carreiros para os Labareda e os Meda-
anjo mau da minha infância. fa me botar pra dormir, e lha, mansinhos. Os moleques trepados nas mesas dos
cnquanto ficávamos sozinhos no quarto, arrastava-me carros, aprendendo a carrear com os mestres carreiros.
a coisas ignóbeis. Eu era um menino sem contato com Tudo nessa labuta melódica do engenho moendo.
o catccismo. Poueo sabia de rezas. E esta ausência pe- Chegavam visitas do Pilar. Os meninos do Capitão
rigosa de religiáo não me levava a temcr os peeados. José Medeiros com farda do Colégio Diocesano. Jâ nã.o
I[uito depois, esta misória de sentimentos religiosos se vinham montados em carneiros, com vergonha da mon-
refletiria em toda a minha vida, como uma desgraça. + taria de outrora. Contavam-me histórias do internato.
mole_ça me iniciava, naquele verdor de idade, nas su-A§
-rlc 'rrrlâta
E aqueles botões dourados de uniforme me enchiam de
ãoncupiscênciàs luxúria. NcÀ
irrcendiada de-.,..-..,.r"É* inveja. O meu avô conversava com o Padre Severino e o
_ Dr. Saiiruel, o juiz municipal. Tratavam dos negócios
sei contár-ôffi-Ufe""fâZiâ-"õômigo. Levava-me para os
---*"-,*
banhos da beira do rio, sujando a minha castidade de políticos da vila, das eleições próximas, e do júri de al-
criança com os seus arrebatamentos de besta. A sombra gum protegido do Coronel José Paulino.
I)egra do pecado se juntava âos meus desesperos de me- À noite, quando essa gente retornava, saíam atrás os
Itino contrariado, para mais me isolar da alcgria imensa moleques, com as latas de mel e os cabaços de caldo na
que gritava por toda partc. cabeça. Mas tudo isso, que fazia um acontecimento, ago-
O engenho, na festa das doze horas da moagem. O po-
ra me parecia de longe, indiferente. §í-pggsaJr--"o*-
Ibl
rpsu§- I-e_lq g ! i co s com.
9,p".9*Y. 33..1"o_*
*au, na s ma stur-
vo miscrável da bagaceira compunha um pocmâ na ser-
l-raçoes gostosas eom a negra r,ursa. -8"'Comeôei*ãffi
vidãro: o mestrc-de-açúcar pedindo fogo para a boca da rer-lhe um. b-em e squisit g. Ury" be-m*guç..Ite*arrastava ao
fornalha, o ruíclo compassado das talhadeiras no mcl .abá de sua saia po.u ôilãã.tr-io-.-E não gosta"a'.dã;
quente espumando. E no pé da moenda: rrcgros com quem se metia em cochichos. O grande mal
102 josé lins do rego menino d,e enganho 103
reclos, pedindo os seus favores.Àgora, para o casa-
tlos amorosos, a incluietaçõo dos c1ué se senteilr. enga- 'Tiâ Muiir, o velho Galdino fechara a cozinha
nados, um ciúme impertinente enfiava-se todo pelo rneu do Santa Eosa.
coraçáo. A negra, porém, me dizia que eu ainda tinha Começavam a chegar as gentes dos outros engenhos
o cheiro de leite na boca, e dava remd,ea-aolrs aos cabras para â grande festa de São Pedro: o povo da Aurora,
pelas alcovas eheirosas das fruteiras. ãa Fazendinha, do Jardim, tlo Cambão. Os carro§ de
Era um vício absorvcnte o meu pegadio conr a negra boi paravam no terreiro com uma festa de abraços'
Luísa. O sexo impunha-me essa {scravirlãn e}nminárel. Yinham meninos, vinham negras, vinha o baú com o
vestido novo para o dia. Chegava gente de cavalo, gente
36 O cASÀMENro da Tia llaria estava rnarcado para G de trem, da Paraíba e do B,ecife. I\{andaram buscar o
Síro Pedro. Ela fort ao If ecifc comprâr muitr coisa piano de Dona Neuen do Seu Lula. E quando chegou,
do seu enxoval. 'Irouxera-rne tim vclocíperie íl lurla r,o{t- na cabeça dos cabras, lembrei-rne de repente do Recife.
pn bonita dc marinheiro. ComprÍrra cÊIn estes pl.escntes Lá eles cantavam. Corri então para ver a cantiga dos
ir rnirrha vonl,ade dt-. ir <:r.rnr cla tarnbdm. ganhadores, regulando os passos com a toada, pâra não
No crrgcnJro, os J)rol)irr:rl,ivos «la fcsta toma,varrt eon_ desafinar:
lrr rlr. Í<,rlirs rrs rrl.ivi«lrrrlcs. ()s lrintores já tinham termi_ Joã,o Crioulo,
rurtlr» ir lirrr;rr,zrL rlil <lrs:r gutrrrlr'. tlttttlo csiava chciranrlu ll[ari,a Mulata.
rr, ril., nrv. rlirs po1'l;q"; ()s lr)lr'(iottcircls envet't.izavanl J oã,o Cri,oulo,
;r lrr.lríli:r Prr.lrr rl;r. slrllr; r'r'«rcrrtliit o ouro-hanana c]as Ma,ria Mulata,
rrrolrltr r';lri r'(,nr()(.'rlrlrrr. ( ) rrrr'sl rc (.111{irt6, cozinheiro, clie-
lirl';r (lrr tirlrrrl,,prrlrr Í';rztr o l»trtquete, À negra Genero- Ái pisa-pi'lão,
:;rr l'ir'lrvlr :r:l:irrr rl.rlrorurrllt «lo scu reino, e na cozinha pi,l,ão gonguê.
rll() p()rlilrrrr rruri:l trrlr',rrr os rttcttinos. O horncm de cha- Ai pisa-pilão,
;,,,u lrllur(,r) r, il,'trvr,trllll ;lt'rrlltn':tva os fiam]rres, isola- pilão gonguê.
,l,r rlr, l.rl,r o rrrrrrrrlo. I';rrc«tiit que a casa-grande perde-
r',r;r rrr,.llr,l,.,l,.,rrr;r virl;r conl a porta da cozinha fecha- ]I na beira dos rios oomeQava a matânça dos porcos e
rlrr. ( ) lr.rrrr.rrr nrr) rlrrlrilt t)r.ltt\rersas peios bancos. .Nin- dos carneiros. Fui ver os sacrifícios. Iam matar tam-
,,u.rr lr.rlrrr rrrlr,r'rl:*r lroislls, por ali oncle se pubiicavarn irrinr o meu câr'lrciro. Dar-me-iam outl:o, mas o Jasmim
l,,rllr.r rr:r r'\'r(ljrrl,.:r rlo ctrgcttltg. Nas cozinhas das ca- esiirva rebolantlo cle gordo, bom mesmo para o talho'
it:r l,tlilrrlr':r \ r\ ( nr :rj l,t'tttrr':IS (l :1S nCgfas, nCSSaS COn- Os porcos gclniam na ponta da faca d'e Zé Guedes, e um
\ r.r,r 1; r'r1r, (lr, r,r,urirr. Âs lrrirrr(rils deiiadas, dlqÍt-q.pS_ sângue escuro corria em ârco do pescoço furado.
,,;rlr1t-11, lrllll (':; r';rlrrrr,l.r r. lr c:tlll rl0s piolhos. E as ne-^' *I\ferrino náo pode ver estas coisas. Yira assassittr''
;,rr:: \ tt'r llrr. r',,rrllrrrrl,r :ll rrr,irl.r lrist.ririits, fazcndo os scus ,tino de engenho 105
l0 í t'trt\ ltttr ,1,, t, 11',
-Vá dizer ao Seu Juca que eu não quero isto aqui.
Mande o cabra pra vila. Entregue à justiça. Lá, faqam $$ Trxue uns doze anos quando eonhe<d Jrma mnlher,
como homem. Andava atrás <lela,'tiiirando â snâ
dele o que quiserem; aqui, náo. Estas surras não aclian- tapera de palha,, nuilta ânsia misturada de medo e de
tam nada. vergonha. Zefa Cajâ erâ a grande mundana dos eabras
O cabra vinha com â cabeça lascada, gotejando. A do eito. Não me queria.
camisa toda suja de sangue, com as cord.as amarrando se criar, menino enxericlo.
-YáL
Mas eu ficava por perto, eonversando com ela, olhando\
os braços. Não olhava para ninguóm.
para a mulata com vontade nlesmo de fazer coisa rlrim j
malvado t
-Diabo
negro me
F'ieou eomigo u:na porção de vezcs. Lerraea as coisas clo I
afrontou, Scu Ooronel. cngcnho para ela-pedaços ele carne, queijo roubadoil
-O para o Pilar:, foi com um bando atrás.
Quando saiu do annário ; dava-lhe o rlinheiro que o rneu avô deixava I
trfuitos já estavam do lado rl«rlo. por cima das mesas" Ela rne acariciava corn urna vo.a 1

cidade animal de amor: dizia que eu tinha gosto de leiteI


l,:rrrrbóm, peclindo pro- na boca e me queriâ comer coxno uilra fnrta de vez. An I
dava magro. }'
-
rlo s«rlrradinho encardi- monino cslá eom vício,
-Esto
Era mesmo um vício visguento aquele rlos afagos de
tias de sarlrltl(,, lilrsp;r r';r rrr l,rrr,lur rro outro dia, mas
a ntattclrir l'it,r,11. §;11s11rrc rl,, ;,;r'rrlc rriio larga. Sempre que Zefa Cajâ. Saía do café para. â casa dela, ia tlepois do
csti'rvarttos 1lr i, r,rl,,,'rrlr,r, rr:ro pisii,vlruros por cima da- almoço e depois do jantar. fi'oram dizer ao meu avô:
quilo, cr.rrrr rrrlrlo. lr):r1r;rtlr;rr';rrrr (lu(,(,n(luanto aquele satt- menino não sai da casa da, rapariga.
-O
O velho José Paulino então pa,ssou-me uns gritos:
gue llíio sl' surrrir.r:rr., o rlllrrrrlo I'irr;lria :rparecendo por
não feisse pra semana pro colégio clava-lhe uma
;tli" II:lvilr gtrrlr' (luc vir.r ,r rrr.llr'o rleitirdo pclos picadei- -Se
surra.
ros. lJ as vislttlr'rr! ('{)ilrr,r';r\ :lilr ll rrl)iirccer. Uns tin}ram Mas náo fcz o barulho que eu esperava. para estas
crtcontr:rtlt) o ('ng(,ulr,r rrrolrrrl,r n() scco. Outros, carros de coisas o veiho olhava por cima. À sua vida tarnbóm fo-
boi a,n,-lirrrtlo rir,r,i r;ril rl, lrrr',lrr.. lrl o neÉiro Gonçalo tom- ra cheia de irrogularicladps dessa nâtureza. euando bri-
tlatrtlo c-irrrrr. l,lsrrr: lrirl,,r'r;rr r.lrtqlrvalrl na eozinha, onde gou com o Tio Juca por causa da rnulata Maria pia,
tringuórrr rlrrvirllrr';r. () 1r. rlo rrurrizoii:o andava de um ouvi a negra Gcnerosa dizendo na cozinha:
lacto p:rla orrlro rlo rio l,) lrrrlo «lia liavia um sonho dc f:rla ! Quanrlo era mais moço, parercia um pai{
iroti;ia para, rrorrllrr'. N:r() r(. l'rrllrvll mais de lobisomem. -Quem
d'6gua atrás das negras. O Seu Juca teve a quem po*or!
As alrnas «lo orrlro rrrrrrr,l, l()rnir,vllIIl conta do medo tlo Mas eu tinha que pagâr o meu tributo antecipado ao
lrovo do Sltttl.rt Jiorrlr. arnor. Apanhei doença do mundo. Escondi rnuitos dias
114 jo:;é litts do rtso d,e engenho ll5
Parecia um orgulho d-a ruindacle de cada um' O Tio
do povo da casa-grande. Ensinarâm-me remódios que eu
Juca não dava tréguas. Levava-me aos banhos para o
tomava em segredo na beira do rio. Dormia no sereno â
tratamento rigoroso de =eringa. Bebia refresco de pe-
goma com açúcar para os meus males, Não melhorava,
ga-pinto em jelum, chá de urinana de manhá à noite' E
tinha mcdo de urinar com as dores medonhas. E por fiur
souberam nâ câsa-grande. Foi um escânclalo:
os diuréticos me Íaziam vergonha:
tamanho, e com gálico ! na cama!
-Daquelc -X[ijou
E era um debique de todo o mundo.
Botaram 7'efa Cajâ na cadeia, e eu, deseonfiado, eorn
vergonha de olhar o povo. Fiqriei um caso de todos os é lá homem ! dizia o velho José Paulino, quan-
-Isto
do soube da minha fraqneza.
comentários, de risadas. O mcu Tio Juca tomou conta
clo tratamento. Onde eu ctregava, 1á vinham com indi A negra França lavava os panos da minha doença'
retas : Batia no rio as minhas imunclícies purgadas.
danado ! Com um mês mais, já estaria em ponto de ir para o
-I\{enino
!'l comecei .a envaidecer-me com a minha doenqa" colégio.
Abria as pcrnas, exagcrando-me no andar. Eià urirrr A doenga-do-mundo me operara uma transformação'
glória para mim essa carga de bacilos que o amor dei- Via-me mais alguma coisa que um menino; e mesmo
Tp I"a_ p§_iJa"Jg gtl c glp o imbe rli c. I\{o s t r avarn-m e à s v-isita"* já me olhavam diferente. Jâ náo tinham para mim as,
masculinas co*ô uinã!ããime de virilidade adiantarla. eondescendências que se reservam às crianças. Às ne-l
oii Êãilioies-ãô ànsênho tomavam cleboche de'mim, dan- gras faziam-me de homem. Não paravam ut
do-me confiança nas suas conversas. Perguntavam pela "*t'"u* |
[uando eu chegava. Enxeriam-se. Procurava as lavadei- ['
Zefa Cajá, chamavam-na de professora. ras de roupa pela beira do rio. Ficavam quase nuasr {
ao avô !
-Puxou batendo os panos nas pedras. Tomava banho ttesnido fi.
E riam-se, como se fosse uma coisa inocente, este li- junto delas, olhando as suas partes relaxadamente des-
bertino de doze anos. J!
cobertas.
O moleque Ricardo pegara na mesma fonte a sua do-
daí, menino safado !
ença de homem. Estava entrevado na rede, sem dar um -Sai
Mas riam-se, gostando da curiosidade'
passo Eu tinha medo de ficar como ele. E me precavia
de tudo, prenclendo-me aos remédios, em escravidáo. O
mcu companheiro pagara mais caro de que eu o seu im-
Àgora o engenho oferecia-me o amor por tocla a pa-r-
te, na senzala, na beira do rio, rras casas de palha' Os
I
posto de maseuliniclade. Curava-se com os remédios de moleques levavam-me parâ as visitas por debaixo- dos
cirsa: as garrafas de raiz cle mato com aguardente de matoi, esperando a vez de oada um. Na casa-grande oB
ctln il..
homens achavam graça de tanta libertinagem'
A rninlrt foi pior do que a sua: é de cabresto. vadio ! §ó pai-de-chiqueirol
I l(; jr»*ó li'nt <lo rtyo
-Ifenino o d.e ensentw lt.
Eu ficava a pensar na Tia Maria, se ela soubesse de Acordei com os pássaros cantando no garneleiro. 'Io-
tudo aquilo. Longe de mim, parecia um vulto de uma cav&m dobrados ao meu bota-fora. E uma saudade an-
outra vida, a minha tia. Era urn outro o menino que ela tecipada do engenho me pegou em cirna da cama. Vie
criara com tanto dengue. O sexo vestira calças compri- ram-me acordar. Há tempo que estava de olhos abertos
'tdas np seu Carlinhos. E o coração de um menino depra- na companhia de meus pensamentos. Uma outra vida
Jvado só batia ao compasso de suas depravações. Estava ia começar para mim.
até esquecendo a doce ternura de minha segunda mãe. amansa menino !
[' Corria os campos como um cachorro no cio, esfregando
-Colégio
Em mim havia muita coisa precisando de freios e de
I a minha lubricidade por todos os cantos. Os moradores chibata. As negras diziam que eu tinha o mal dentro. A
i se queixavam:
Tia Sinhazinha falava clos meus atrasos. Os homens ri-
{ -Ninguém pode deixar as meninas em casa com o
am-se das intemperanças dos meus doze anos.
\ Seu Carlinhos. safado, menino atrasado, menino vadio ! ,
Joáo Bouco deu-me uma earreira por causa do filho -Menino
O meu puxado entrava e saía sem ninguém dar por,
pequeno, que eu quis pegar.
ele. fa ficando bom com a idade. IX nada de Deus pori:
Em junho iria para o colégio. Estava marcado o dia
clentro de mim. Dra indifercnte aos castigos do céu. O{
de minha particla.
lobisomens faziam-me mais medo. A minha religiáo nãol
ele endireita.
-Lá conhecia os pecados e as penitências. O pavor do infei
Recorriam ao colégio como a umâ casa de correção.
no, eu confundia com os castigos cins contos de Tran-l
Abandonavâm-se em desleixos para com os filhos, pen-
coso. Tudo entrava por uma pernâ de pinto e saía porl
sando corrigi-los no castigo dos internatos. E náo se im-
uma perna de pato. fa para a câÍrra sem um pclo-sinal
portavam com â infância, com os anos mais perigosos
e acordava sem uma ave-maria. O meu São Luís Gonza-
da vida. Em junho estaria no meu sanatório. Ia entre-
gar aos pa«lres e aos mestres uma alma onde a luxúria ga devia olhar com nojo para o seu irnrjio aflunclado na
lama.
cavâra galerias perigosas. Perdera a inocência, perde-
ra a grande felicidade de olhar o mundo como um brin= Agora o cológio iria eonsertar o desmantelo desta
quedo maior que os outros. Olhava o mundo atravós dos alma descida demais para a terra. friam podar os ga-
meus desejos e da minha ôárne. Tinha sentidos que de- lhos de uma árvore, para que os seus brotos crescessem
sejavam as botas do Polegar para as suas viagens. para cima.
voltar do colégio, vem outro, nem p&rece
-Quando
40 No dia seguinte tomaria o trem para o colégio. O o mesmo.
meu Tio Juca me }evaria para os padres, deixando Todo mundo acreditava nisto. Este outro, de que tan-
carta branca a meu respcito. to falavam, seria o sonho da minha mãe. O Carlinhos
I I8 joeé li.ns do rego ,.ino d,e engenho ll9

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