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Em primeiro lugar, a História recorda FATOS; não cabe a ela recordar suposições,
ilusões ou projetos que não chegaram a se realizar.
Por outro lado, ela recorda fatos PASSADOS, pois não se faz história, em sentido
estrito, a não ser de acontecimentos pretéritos. Uma história do presente não é propriamente
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história, é mais bem jornalismo ou crônica.1 E uma história do futuro também não é história,
mas é, isso sim, um exercício de futurologia! Pode até ser um tema literário muito atraente para
fascinantes divagações intelectuais, mas não é história.
Por fim, a história tem necessariamente que passar pelo crivo, ou seja, pela peneira da
memória. Nem tudo o que aconteceu no passado é registrável pela história, mas somente aquilo
que foi conservado pela memória humana. E aí impõe-se a pergunta: por que a memória humana
conserva algumas coisas e esquece outras? Porque julgou aquilo importante, memorável,
inesquecível. Somente fatos DIGNOS DE MEMÓRIA são lembrados pela História. Sem o crivo
da memória não se faz história.
Os franceses dizem que cultura geral é o que fica na memória quando a gente esqueceu
tudo o que aprendeu... De certa forma, podemos também dizer que a História é o que fica na
memória depois que se esqueceu todo o resto. O resto, no caso, é tudo aquilo episódico,
secundário, circunstancial, pouco importante.
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Não cabe aprofundar aqui um tema à margem do presente curso, mas que convém deixar registrado para
a reflexão e análise dos nossos alunos, é a relação entre jornalismo e história. O jornalista é o historiador
do presente, enquanto o historiador é, de certa forma, o jornalista do passado. O jornalista registra fatos
atuais sobre os quais no futuro se debruçará o historiador, analisando-os, filtrando-os, selecionando-os,
procurando neles estabelecer relações de causa e efeito que constituirão as próprias linhas mestras da
narrativa histórica. O jornalista fornece, assim, matéria prima privilegiada para o trabalho do historiador;
e, para entender o presente, o próprio jornalista precisa conhecer o passado no qual se insere o seu
presente; em outras palavras, precisa ter, ele também, algo de historiador. E o historiador que estude o
passado sem tomar em consideração o seu presente também não será bom historiador. Philippe Ariès
registra, a propósito, que o grande historiador francês Lucien Lefebvre “aconselhava seus alunos a lerem
com atenção o jornal diário. Os historiadores que dão as costas à sua época estão condenados a viver no
passado de suas pesquisas, como em um gueto: congelaram a duração” (Um historiador diletante. Rio de
Janeiro: Bertrand Brasil, 1994, p. 127). Por outro lado, jornalistas e historiadores têm – ou pelo menos
devem ter – em comum, um sério compromisso com a verdade: “Atribui-se a Philip L. Graham, quando
presidente do jornal Washington Post, a descrição mais acertada da atividade jornalística: `A correria da
imprensa torna inevitável que as reportagens tenham certo grau de superficialidade. Não está ao nosso
alcance nem é a nossa praia dar a palavra final. Nós fazemos o primeiro rascunho da história. É uma
tarefa extraordinária`. Isso não exime a imprensa de apurar os fatos com todo o rigor possível. O esboço
preliminar da história de que fala Graham precisa ser sempre o resultado da busca honesta e desprendida
da verdade.” (Veja, 3/6/2015, Carta ao Leitor).
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Objeto da História são os fatos realizados pelo homem, e bem assim os que de
algum modo lhe dizem respeito: [como] um eclipse, um terremoto, a erupção de
um vulcão etc. Em suma: todos os fatos e as circunstâncias que direta ou
indiretamente têm alguma relação com a natureza física ou moral do homem
entram como elementos modificadores na história.
Sendo a história, na frase do grande orador de Roma, a mestra da vida, segue-se
que o historiador deve explicar os fatos comparando-os, apontando as relações
que os ligam, investigando as causas e indicando os efeitos, para que das
ocorrências particulares possa deduzir lições gerais de sabedoria moral e política.
Infere-se facilmente de tudo isto que a história é uma ciência de alta importância,
e que a narração pura e simples, embora necessária para a constituição da
ciência, não forma, de per si, o objeto da história propriamente dita.4
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Marcus Tullius Cicero, De Oratore.
3
GALANTI, R. M. Compendio de Historia Universal. São Paulo: Tip. Siqueira, 1932, 6ª. edição, p. 3.
4
GALANTI, op. cit., p. 6-7.
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Vejamos as palavras do próprio Bloch: “Diz-se algumas vezes: A história é a ciência do passado. É, no
meu modo de ver, falar errado. (...) Há muito tempo, com efeito, nossos grandes precursores (...) nos
ensinaram a reconhecer: o objeto da história é, por natureza, o homem. Digamos melhor: os homens.
Mais que o singular, favorável à abstração, o plural, que é o modo gramatical da relatividade, convém a
uma ciência da diversidade. Por trás dos grandes vestígios sensíveis da paisagem, os artefatos ou as
máquinas, por trás dos escritos aparentemente mais insípidos e as instituições aparentemente mais
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desligadas daqueles que as criaram, são os homens que a história quer capturar. Quem não conseguir isso
será apenas, no máximo, um serviçal da erudição. Já o bom historiador se parece com o ogro da lenda.
Onde fareja carne humana, sabe que ali está a sua caça. (...) Ciência dos homens, dissemos. É ainda vago
demais. É preciso acrescentar: dos homens, no tempo. O historiador não apenas pensa humano. A
atmosfera em que seu pensamento respira naturalmente é a categoria da duração. (...) Ora, esse tempo
verdadeiro é, por natureza, um continuum. É também perpétua mudança. Da antítese desses dois atributos
provêm os grandes problemas da pesquisa histórica.” (BLOCH, Marc. Apologia da História ou O Ofício
do Historiador. Tradução de André Telles. Rio de Janeiro, Jorge Zahar Editor, 2001, p. 52-55)
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BLOCH, Marc. Apologia da História ou O Ofício de Historiador. Rio de Janeiro: Ed. Zahar, 2001.
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estava errado... De repente, puseram-se a rir, concluindo: – Se nós dois, que juntos vivemos
isso, não estamos de acordo, o que dirão de nós no futuro?7
Dica do professor:
Procure, na internet, a conferência do Prof. Dr. Ricardo da Costa, citada acima. Pode ser
encontrada em: https://www.ricardocosta.com/artigo/o-oficio-do-historiador
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COSTA, Ricardo da. O Ofício do Historiador. Conferência proferida no I Seminário de Graduandos e
Pós-Graduandos em História da UFJF, no dia 27 de outubro de 2009, publicada em International Studies
on Law and Education – 5 (janeiro-junho 2010), p. 79-84. Disponível em:
https://www.ricardocosta.com/artigo/o-oficio-do-historiador