Você está na página 1de 5

1

CENTRO UNIVERSITÁRIO ÍTALO-BRASILEIRO

Curso de Licenciatura em História

Disciplina: Teoria da História e Historiografia

Unidade 1) Que é História? História e memória. História não é


ciência exata.
Prof. Dr. Armando Alexandre dos Santos

Tópico A - Que é História?


A presente disciplina se intitula Teoria da História e Historiografia. Por uma
razão prática e também didática, iniciaremos nossa exposição conceituando a História e
tratando dos aspectos teóricos do seu estudo. Deixaremos para a segunda fase a
Historiografia, que consiste, como o próprio nome indica, na escrita da História – ou,
em outras palavras, na história da História.

A História, ensinavam os antigos gregos, é a recordação dos fatos passados, certos


e dignos de memória. Essa formulação, sem dúvida, pode ser discutível, em face dos
desenvolvimentos que os estudos históricos tiveram nos últimos séculos. Atualmente se entende
a História não apenas como uma recordação de fatos, mas também como um estudo
aprofundado, uma sistematização, uma elucidação dos processos históricos com a identificação
das causas e dos efeitos dos fatos. Mas, de qualquer forma, a formulação antiga é, para efeitos
didáticos, bastante expressiva e conserva sua validade.

Analisemos, pois, os elementos dessa formulação.

Em primeiro lugar, a História recorda FATOS; não cabe a ela recordar suposições,
ilusões ou projetos que não chegaram a se realizar.

Por outro lado, ela recorda fatos PASSADOS, pois não se faz história, em sentido
estrito, a não ser de acontecimentos pretéritos. Uma história do presente não é propriamente
2

história, é mais bem jornalismo ou crônica.1 E uma história do futuro também não é história,
mas é, isso sim, um exercício de futurologia! Pode até ser um tema literário muito atraente para
fascinantes divagações intelectuais, mas não é história.

Também só se pode fazer história de acontecimentos CERTOS. É claro que, em se


tratando de fatos antigos, sempre há algum grau de incerteza acerca de como eles ocorreram,
mas, de qualquer modo, a história necessita de certezas mínimas para poder ser validamente
composta e escrita. Essa certeza pode ser buscada em fontes de natureza muito diversa, desde
documentos escritos conservados em arquivos públicos ou privados, até restos arqueológicos,
tradições orais e costumes conservados pelos diversos povos. Mas ela precisa ser procurada
conscienciosamente pelo historiador.

Por fim, a história tem necessariamente que passar pelo crivo, ou seja, pela peneira da
memória. Nem tudo o que aconteceu no passado é registrável pela história, mas somente aquilo
que foi conservado pela memória humana. E aí impõe-se a pergunta: por que a memória humana
conserva algumas coisas e esquece outras? Porque julgou aquilo importante, memorável,
inesquecível. Somente fatos DIGNOS DE MEMÓRIA são lembrados pela História. Sem o crivo
da memória não se faz história.

Os franceses dizem que cultura geral é o que fica na memória quando a gente esqueceu
tudo o que aprendeu... De certa forma, podemos também dizer que a História é o que fica na
memória depois que se esqueceu todo o resto. O resto, no caso, é tudo aquilo episódico,
secundário, circunstancial, pouco importante.

1
Não cabe aprofundar aqui um tema à margem do presente curso, mas que convém deixar registrado para
a reflexão e análise dos nossos alunos, é a relação entre jornalismo e história. O jornalista é o historiador
do presente, enquanto o historiador é, de certa forma, o jornalista do passado. O jornalista registra fatos
atuais sobre os quais no futuro se debruçará o historiador, analisando-os, filtrando-os, selecionando-os,
procurando neles estabelecer relações de causa e efeito que constituirão as próprias linhas mestras da
narrativa histórica. O jornalista fornece, assim, matéria prima privilegiada para o trabalho do historiador;
e, para entender o presente, o próprio jornalista precisa conhecer o passado no qual se insere o seu
presente; em outras palavras, precisa ter, ele também, algo de historiador. E o historiador que estude o
passado sem tomar em consideração o seu presente também não será bom historiador. Philippe Ariès
registra, a propósito, que o grande historiador francês Lucien Lefebvre “aconselhava seus alunos a lerem
com atenção o jornal diário. Os historiadores que dão as costas à sua época estão condenados a viver no
passado de suas pesquisas, como em um gueto: congelaram a duração” (Um historiador diletante. Rio de
Janeiro: Bertrand Brasil, 1994, p. 127). Por outro lado, jornalistas e historiadores têm – ou pelo menos
devem ter – em comum, um sério compromisso com a verdade: “Atribui-se a Philip L. Graham, quando
presidente do jornal Washington Post, a descrição mais acertada da atividade jornalística: `A correria da
imprensa torna inevitável que as reportagens tenham certo grau de superficialidade. Não está ao nosso
alcance nem é a nossa praia dar a palavra final. Nós fazemos o primeiro rascunho da história. É uma
tarefa extraordinária`. Isso não exime a imprensa de apurar os fatos com todo o rigor possível. O esboço
preliminar da história de que fala Graham precisa ser sempre o resultado da busca honesta e desprendida
da verdade.” (Veja, 3/6/2015, Carta ao Leitor).
3

A par da “definição” grega de História, costuma-se também citar outra, de fonte


romana: “Historia testis temporum, lux veritatis, vita memoriae, magistra vitae, nuntia
vetustatis” (A História é a testemunha dos tempos, a luz da verdade, a vida da memória, a
mestra da vida, a anunciadora da antiguidade)2.

Nessa belíssima frase de Cícero, destaque-se o “mestra da vida”. Uma das


grandes utilidades da História é que ela nos traz experiências do passado, fornecendo-
nos elementos para não repetirmos erros cometidos outrora.
Menos literária e mais ajustada aos critérios historiográficos modernos é a
definição proposta pelo Pe. Raphael M. Galanti, (1840-1917), jesuíta italiano de grande
erudição, que viveu no Rio de Janeiro, onde foi membro atuante do Instituto Histórico e
Geográfico Brasileiro e professor do Colégio Pedro II: “História é a narração autêntica
e bem ordenada dos acontecimentos memoráveis que pertencem ao gênero humano.”3
O mesmo autor assim desdobra sua definição:

Objeto da História são os fatos realizados pelo homem, e bem assim os que de
algum modo lhe dizem respeito: [como] um eclipse, um terremoto, a erupção de
um vulcão etc. Em suma: todos os fatos e as circunstâncias que direta ou
indiretamente têm alguma relação com a natureza física ou moral do homem
entram como elementos modificadores na história.
Sendo a história, na frase do grande orador de Roma, a mestra da vida, segue-se
que o historiador deve explicar os fatos comparando-os, apontando as relações
que os ligam, investigando as causas e indicando os efeitos, para que das
ocorrências particulares possa deduzir lições gerais de sabedoria moral e política.
Infere-se facilmente de tudo isto que a história é uma ciência de alta importância,
e que a narração pura e simples, embora necessária para a constituição da
ciência, não forma, de per si, o objeto da história propriamente dita.4

Mais modernamente, o historiador francês Marc Bloch – personagem muito


importante que estudaremos mais adiante – conceitua a História como sendo “a ciência
dos homens no tempo”. Ou seja, como uma ciência que tem por objeto os homens,
coletivamente considerados, e tudo o que a eles diz respeito; e isso não de modo
estático, mas numa perspectiva dinâmica, através do tempo5.

2
Marcus Tullius Cicero, De Oratore.
3
GALANTI, R. M. Compendio de Historia Universal. São Paulo: Tip. Siqueira, 1932, 6ª. edição, p. 3.
4
GALANTI, op. cit., p. 6-7.
5
Vejamos as palavras do próprio Bloch: “Diz-se algumas vezes: A história é a ciência do passado. É, no
meu modo de ver, falar errado. (...) Há muito tempo, com efeito, nossos grandes precursores (...) nos
ensinaram a reconhecer: o objeto da história é, por natureza, o homem. Digamos melhor: os homens.
Mais que o singular, favorável à abstração, o plural, que é o modo gramatical da relatividade, convém a
uma ciência da diversidade. Por trás dos grandes vestígios sensíveis da paisagem, os artefatos ou as
máquinas, por trás dos escritos aparentemente mais insípidos e as instituições aparentemente mais
4

A História se escreve por representações, já que não é possível se repetir, exatamente e


à maneira de um filme ou gravação em altíssima fidelidade, algum acontecimento do passado.
Por mais autênticos e fidedignos que sejam os documentos utilizados, o historiador
necessariamente representa o passado que está historiando. É de grande importância o conceito
de representação.

No sentido etimológico, representar significa re-apresentar, significa tornar de novo


presente. A representação consiste, pois, no ato mediante o qual novamente tornamos presente
algo do passado, embora com as limitações e as variabilidades inerentes à natureza humana de
cada um de nós. Assim sendo, toda história, por mais científica e objetiva que seja, sempre terá
algo de criação, ou melhor, de re-criação. Essa condição de subjetividade é, ao mesmo tempo,
uma limitação da História, enquanto ciência, e é o seu maior atrativo, é aquilo por onde a
História se inscreve no rol das Ciências Humanas, e não no das Ciências Exatas.

“O Ofício do Historiador”, expressão cunhada em obra clássica do já citado Marc


6
Bloch , foi o título que o Prof. Dr. Ricardo da Costa, da Universidade Federal do Espírito Santo,
deu a uma conferência em que discorreu sobre as limitações e os desafios do historiador,
intelectual que deve ser consciente de que jamais atingirá a verdade total, mas deve incansável e
empenhadamente buscar atingi-la, com o espírito aberto para tudo quanto lhe revelem as fontes
do passado, sem se deixar condicionar por ideias preconcebidas, mas também sem cair em
relativismos. O professor iniciou sua alocução recordando um fato concreto: o ex-beatle Paul
McCartney (1942-) se encontrou certa ocasião em Londres, no início da década de 1990, com
George Martin (1926-2016), o antigo produtor que acompanhara toda a carreira ascensional dos
Beatles, desde que estes iniciaram suas apresentações até quando adquiriram fama mundial. Os
dois amigos começaram a recordar fatos antigos que haviam presenciado juntos, até que, de
repente, discordaram num ponto concreto, em que as recordações discrepavam. Tratava-se de
um acontecimento em que ambos haviam atuado juntos, mas cada qual jurava que o fato era de
um jeito diferente do outro. Os dois discutiram algum tempo, cada um tentando convencer o
outro da sua posição, mas ambos ficaram irredutíveis, os dois tendo certeza de que o outro

desligadas daqueles que as criaram, são os homens que a história quer capturar. Quem não conseguir isso
será apenas, no máximo, um serviçal da erudição. Já o bom historiador se parece com o ogro da lenda.
Onde fareja carne humana, sabe que ali está a sua caça. (...) Ciência dos homens, dissemos. É ainda vago
demais. É preciso acrescentar: dos homens, no tempo. O historiador não apenas pensa humano. A
atmosfera em que seu pensamento respira naturalmente é a categoria da duração. (...) Ora, esse tempo
verdadeiro é, por natureza, um continuum. É também perpétua mudança. Da antítese desses dois atributos
provêm os grandes problemas da pesquisa histórica.” (BLOCH, Marc. Apologia da História ou O Ofício
do Historiador. Tradução de André Telles. Rio de Janeiro, Jorge Zahar Editor, 2001, p. 52-55)
6
BLOCH, Marc. Apologia da História ou O Ofício de Historiador. Rio de Janeiro: Ed. Zahar, 2001.
5

estava errado... De repente, puseram-se a rir, concluindo: – Se nós dois, que juntos vivemos
isso, não estamos de acordo, o que dirão de nós no futuro?7

Esse pequeno episódio anedótico exprime bem o drama do historiador – e ao mesmo


tempo, insista-se, a maior atração do nosso ofício.

Dica do professor:

Procure, na internet, a conferência do Prof. Dr. Ricardo da Costa, citada acima. Pode ser
encontrada em: https://www.ricardocosta.com/artigo/o-oficio-do-historiador

7
COSTA, Ricardo da. O Ofício do Historiador. Conferência proferida no I Seminário de Graduandos e
Pós-Graduandos em História da UFJF, no dia 27 de outubro de 2009, publicada em International Studies
on Law and Education – 5 (janeiro-junho 2010), p. 79-84. Disponível em:
https://www.ricardocosta.com/artigo/o-oficio-do-historiador

Você também pode gostar