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Vimos, no tópico anterior, que só é registrado pela História aquilo que passou pelo crivo
da memória. Aprofundemos agora um pouco mais o mecanismo da memória humana, para
entendermos seu funcionamento e também, por tabela, para entendermos como ela influencia a
própria escrita da História.
Por que razão algumas coisas são conservadas na memória e outras, pelo contrário, são
esquecidas? Por que alguns fatos, ou alguns aspectos dos fatos, são considerados importantes
por algumas pessoas e são relegados à condição de pouco significativos e rapidamente
esquecidos por outras?
Para dar ideia dessa variabilidade, Saint-Laurent propõe aos seus leitores uma
experiência concreta: sugere que interroguem separadamente várias pessoas que acabaram de
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assistir juntas à mesma peça teatral e lhes peçam que falem acerca do espetáculo que
presenciaram minutos antes.
Umas se lembrarão de modo mais vivo dos cenários, das cores, das vestimentas dos
atores, dos gestos e dos movimentos de cada um deles ao longo da peça. O que as impressionou
particularmente foi o que viram, e é sobre isso que falarão.
Outras, por fim, de espírito mais frio e ponderado, terão conservado na memória a ideia
central da peça, bem como os argumentos ou os aspectos filosóficos do enredo: o que pensaram
e julgaram acerca da peça foi o que mais as marcou.
São quatro tipos de reações diferentes, correspondentes aos quatro tipos básicos de
memória humana: a visual, a auditiva, a afetiva ou emocional e a intelectual. Todos nós temos
essas quatro memórias, mas combinadas em graus diferenciados, em proporções extremamente
variadas1.
Isso acontece porque não existem duas pessoas iguais na face da terra, todos somos
diferentes. Ainda bem! A diferenciação é que produz a beleza do conjunto. Se todos fôssemos
iguais, a monotonia e a mesmice da nossa existência seriam insuportáveis. Se todos os sons
fossem reduzidos a uma única nota musical, estariam mortas a harmonia e a beleza no mundo
dos sons. Não existiriam Bachs, Mozarts ou Beethovens. A sirene de uma ambulância ou a
buzina de um automóvel... seriam a mais bela das sinfonias!
1
SAINT-LAURENT, Raymond de. La Mémoire. Avignon: Edouard Aubanel Éditeur, 1947, p. 19-20.
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individuais e os critérios da memória da espécie humana. É, por isso, também muito importante
no estudo da História, em geral.
Como ensinou o Prof. Friedrich von Hayek, Prêmio Nobel da Economia em 1974, os
princípios teóricos acabam se impondo “ainda quando não reconhecidos explicitamente”, de tal
modo que “o único resultado de nossa falta de preocupação pelos princípios é, ao que parece,
sermos governados por meio de uma lógica de acontecimentos que em vão procuramos
ignorar”2.
Todas essas questões estão em última análise relacionadas com o problema da memória.
O mecanismo da memória é sinuoso no espírito humano, muitas vezes ele é inexplicado e até
inexplicável para a própria pessoa que procura recordar ou, pelo contrário, quer esquecer seu
passado. É um exercício que mexe muito a fundo com nossas paixões e com nossas emoções
individuais. Normalmente, nós nos lembramos com nitidez daquilo que despertou em nós uma
paixão muito profunda, seja ela favorável seja desfavorável. Não é fácil esquecer algo que nos
agradou profundamente, como também é difícil esquecer algo que nos magoou, que nos feriu,
que nos causou muito sofrimento.
Guardamos facilmente na memória a recordação dos triunfos, das vitórias e dos elogios
que recebemos. Igualmente não conseguimos nos livrar da recordação traumática das nossas
derrotas, bem como das humilhações e injustiças que sofremos. Esquecemos facilmente,
entretanto, das coisas indiferentes. As coisas que não nos marcaram a fundo, emocionalmente,
vão sendo varridas da memória e se veem lançadas à vala comum do esquecimento. Dir-se-ia
que todos nós bebemos, no que diz respeito às coisas indiferentes, aquela água misteriosa do
Lethes, o rio que separava o mundo presente do inferno mitológico dos gregos antigos. De
2
Citação extraída de conferência intitulada "O individualismo: verdadeiro e falso", publicada em
"Estudios Públicos", n° 22, outono de 1986.
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acordo com suas crenças pagãs, as almas dos mortos atravessavam o Lethes, na barca de
Caronte, e sentiam muita sede. Bebiam, então, para se aliviar, a água do próprio rio, e com isso
se esqueciam do seu passado. Os mortos que bebiam água do Lethes ficavam, de acordo com a
mitologia grega, vazios e desmemoriados. Seriam como HDs de nossos modernos
computadores, que tivessem todo o seu conteúdo deletado e fossem, ademais, reformatados...
Tornavam-se aptos a, pela metempsicose, reencarnarem até mesmo em animais.
A realidade é que nossas vidas são cheias de fatos grandes ou pequenos que esquecemos
completamente, porque eles nos foram indiferentes. Passaram por nós, ou nós passamos por
eles, sem que tenham deixado marca em nossas memórias. As águas seletivas do imaginário
Lethes os varreram de todo. Para nós, individual e subjetivamente, é como se nunca tivessem
existido, é como se não fizessem parte da verdade.
Verdade... Essa é uma palavra que usamos a todo momento e que, em História, tem
enorme importância. Mas, que significa ela? O que é a verdade?
Essa foi a pergunta que Pôncio Pilatos fez a Jesus Cristo (Jo 18,38). Para os cristãos,
Deus é a Verdade, Jesus Cristo é a Verdade: “Eu sou o caminho, a verdade e a vida”, declarou
formalmente Ele (Jo, 14,6).
Para os gregos antigos, verdade era outra coisa. Em grego, verdade era aletheia, ou seja,
não-esquecimento, era tudo o que não tinha sido apagado pela água do rio Lethes. O conceito de
verdade, para os gregos clássicos, confundia-se, pois, com a ideia de memória. Verdade era o
que a memória tinha conservado.
No trabalho de seleção subconsciente do que deve e não deve ser lembrado, do que deve
e não deve ser esquecido, cada um de nós é senhor de si, sem dúvida, mas somente até certo
ponto. Se nós fôssemos senhores absolutos da nossa seleção, jamais esqueceríamos algo que nos
interessasse, todos os alunos tirariam nota 10 em todas as provas e exames que fizessem... E,
bem ainda maior, conseguiríamos esquecer totalmente fatos que nos traumatizaram no passado,
nos feriram e nos magoaram. Só recordaríamos as coisas boas, agradáveis e úteis, e nem nos
preocuparíamos com as más lembranças que nos afligem, nos fazem sofrer e condicionam nossa
felicidade.
A realidade concreta da nossa vida é que cada um de nós se lembra de muitas coisas
boas e agradáveis, a par de muitas outras ruins e desagradáveis que sinceramente, no mais
íntimo de nosso ser, preferiríamos esquecer. A seleção do que nos ficou, nós mesmos fazemos,
ao longo da vida, no plano consciente e, ainda mais, no subconsciente.
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A memória não é só algo pessoal e individual, mas ela também pode ser compartilhada
coletivamente, por grupos humanos maiores ou menores, por famílias, associações, grupos
profissionais, até mesmo por nações inteiras.
Um exemplo típico se deu com os carrascos, na sociedade europeia desde a Idade Média
até os séculos XVIII e XIX. Como estava prevista, no ordenamento jurídico-penal, a aplicação
da pena de morte para determinados delitos graves, a profissão de carrasco era tida como
indispensável, mas havia um sentimento difuso de horror e rejeição em relação a ela. Por isso,
dificilmente o filho de um carrasco conseguiria uma noiva que não fosse também filha ou irmã
de outro carrasco. Dessa forma, estabeleceram-se grupos familiares de carrascos, em redes
genealógicas que se estendiam no espaço por províncias inteiras e, no tempo, por várias
gerações3. Em grupos assim fechados, era natural que se desenvolvesse todo um conjunto de
recordações e memórias compartilhadas.
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A mais célebre das famílias de carrascos foi, sem dúvida, a família Sanson, que ao longo de sete
gerações, desde o final do século XVII até meados do XIX, forneceu carrascos à França. É muito ampla a
bibliografia existente na França, acerca das dinastias de carrascos em geral, e dos Sanson em particular.
Ver, entre muitos outros: ARMAND, Frédéric. Les bourreaux en France : Du Moyen Age à l'abolition de
la peine de mort, “Guillotin et la guillotine”, 2012; DEMOREST, Michel; DEMOREST, Danielle.
Dictionnaire historique et anecdotique des bourreaux. Paris: Gens de Justice, 1996; DELARUE, Jacques.
Le métier de bourreau du Moyen-Age à aujourd´hui. Paris: Fayard, 1979; CHRISTOPHE, Robert.
Sanson, bourreaux de père en fils, pendant deux siècles. Paris: Arthème Fayard, 1960;
LECHERBONNIER, Bernard. Bourreaux de père en fils: Les Sanson: 1688-1847. Paris: Albin Michel,
1989.
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Algo do mesmo gênero se dava com profissões que, no passado, eram consideradas
pouco honrosas, como por exemplo a de atores e atrizes de teatro ou de circo. Constituíam-se
verdadeiras dinastias teatrais ou circenses, cada uma delas com seu próprio conjunto de
recordações compartilhadas, atuando à maneira de reforço da identidade daquele grupo
minoritário colocado, por força das circunstâncias, à margem do conjunto da sociedade.
O senso de identidade profundo do povo judeu, como também o dos ciganos, em larga
medida se explica pelo compartilhamento de sua memória coletiva. Se não ocorresse tal
compartilhamento, ter-se-iam forçosamente rompido os elos culturais que durante muitos
séculos e até por milênios resistiram a incontáveis perseguições.
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Ver, a respeito: A perseguição japonesa ao catolicismo e os kakure kirishitan. Disponível em:
http://www.e-cristianismo.com.br/historia-do-cristianismo/a-perseguicao-japonesa-ao-catolicismo-e-os-
kakure-kirishitan.html.
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Entre muitas outras obras que tratam desse assunto, ver: SCHWARZ, Samuel. Os Cristãos-Novos em
Portugal no século XX. Lisboa: Ed. Associação dos Arqueólogos Portugueses, 1925.
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propriamente como hostil, tende a envolver e descaracterizar os que vêm de fora. É o que o
arqueólogo e antropólogo Harry Shapiro (1902-1990) designa como “o significado psicológico
do exílio”:
As atitudes que envolvem um grupo de pessoas distantes da sua terra natal e cultura
caem num padrão que parece enquadrar-se nas leis da dinâmica social. Entre outras
coisas, uma colônia desse tipo procura inicialmente reconstituir, na medida do
possível, uma aparência da sua própria civilização e sistema de vida. Nenhuma
perda parece mais angustiosa que a desses bens. Objetos, modos, usos e ideias
associados à terra natal adquirem um grande valor enquanto o grupo sobrevive – e
desse valor precisa para sobreviver. De qualquer forma, estes aspectos de cultura ou
fé facilmente adquirem sentido simbólico e funcionam como uma base de
sustentação para o espírito grupal. Frequentemente as origens e tradições comuns
servem, pelo menos durante certo tempo, para manter alguns desses grupos unidos
sempre que se encontram no seio de populações diferentes. Preferem viver como um
grupo encerrado em si mesmos, para assim reconstruir um ambiente cultural no qual
possam sentir-se “em casa”. (...) Na América do século XIX, pequenas Itálias,
Alemanhas, Irlandas etc. surgiram onde quer que colonos de terras europeias
tenham-se estabelecido com uma preponderância desta ou daquela origem. Aqui a
linguagem e as tradições da terra natal eram nutridas e preservadas. Para que não se
imagine ser este um fenômeno restrito a civilizações mais evoluídas, muitos
exemplos podem ser citados em que se veneram culturas dos tipos mais simples.
(...)6
Dica do professor:
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SHAPIRO, Harry L. O Povo Judeu: uma história biológica. Rio de Janeiro: Edições Biblos Ltda.,
publicação especial da Confederação Israelita do Brasil, 1966, p. 65-67.