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HISTÓRIA

CONTEMPORÂNEA
A Revolução
Francesa
Hezrom Vieira Costa Lima

OBJETIVOS DE APRENDIZAGEM

>> Descrever a organização política e social da França pré-revolução.


>> Identificar os processos históricos que se desenvolveram após a Queda
da Bastilha.
>> Relacionar a produção de diferentes intelectuais e historiadores acerca da
Revolução Francesa.

Introdução
Entre meados do século XVII até o final do século XVIII, a França era uma espécie
de vitrine do absolutismo no continente europeu. O luxo e a opulência dessa
monarquia mostraram seu auge durante o reinado de Luís XIV, reconhecido como
Rei Sol. O brilho desse “astro-rei” pairou sobre a França por mais de 70 anos,
entre 1643 e 1715. É a partir desse longo reinado que é possível lançar um olhar
de compreensão sobre a importância do sistema político francês e a ruptura
ocasionada com o processo revolucionário ocorrido em 1789.
Luís XIV foi um monarca que simbolizou o período em que viveu. Esse fato se
deve menos ao tempo que governou e mais à estrutura política e social que foi
fortalecida durante seu reinado. A nobreza francesa passou por uma mudança
ocasionada pela construção do Palácio de Versalhes. Esse castelo evidenciou o
poder real e transformou-se no novo local da corte francesa, ao mesmo tempo
que uma parcela da aristocracia vivia no luxo e em festas sustentadas pelos
cofres reais. Isso aumentava o desejo por parte da elite de viver perto do “Rei
Sol”, criando uma relação de dependência. Assim, o monarca ampliava seu poder,
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pois a elite ficava subordinada aos interesses reais e ficava próxima, o que evitava
uma fragmentação do poder.
Essa forma de governar de Luís XIV foi responsável por originar um modelo
em que a imagem do monarca deveria se fazer presente em todos os locais do
reino. Quando não estava presente fisicamente, o brilho do Rei Sol iluminava os
mais variados lugares por meio de diversas representações simbólicas, como
estátuas, bustos, moedas, quadros, broches, entre outros. Esse modelo, baseado
na “propaganda”, construiu uma imagem do rei que pode ser compreendida por
meio de duas perspectivas: a pública e a privada (BURKE, 2018). Na perspectiva
privada, a figura do rei ficava restrita a um círculo privilegiado que gravitava em
torno do rei, por meio da corte. Nesse contexto, a imagem real era apresentada
sob uma camada de maquiagem e outros elementos que faziam parte do estilo
da época e refletiam os objetivos estéticos de Luís XIV. Já na perspectiva pública,
em que as representações simbólicas do rei se faziam presentes, era mais fácil a
manipulação estética real em torno dos objetivos almejados pelo rei.
Embora o reinado de Luís XIV esteja separado dos eventos originários da
tomada da Bastilha em 1789 por um período de 74 anos, contemplando os governos
de Luís XV e Luís XVI, seus efeitos se mantiveram por meio da continuação da
Dinastia Bourbon no trono e, em especial, por meio da manutenção da relação
de dependência entre a aristocracia francesa e o monarca.
Neste capítulo, você vai estudar as especificações políticas e sociais da França
pré-Revolução, relacionando esse contexto com os desdobramentos ocorridos
após o 14 de julho de 1789. Em seguida, você vai compreender as pluralidades de
objetivos e interesses presentes no tecido social francês, bem como as interpre-
tações acerca do processo revolucionário por parte desses grupos sociais. Por
fim, você vai verificar diversas interpretações acerca da Revolução Francesa,
compreendendo a perspectiva de diferentes intelectuais e até uma perspectiva
historiográfica.

A gênese do processo revolucionário: o


contexto socioeconômico da França no final
do século XVIII
O processo revolucionário ocorrido na França em 1789 abalou o mundo. Na
mesma medida em que lançou as bases para o surgimento de um novo mo-
delo de sociedade, também solapou os alicerces que sustentavam o modelo
absolutista, denominado Antigo Regime. Além disso, fez surgir no horizonte
de expectativa uma nova relação com o tempo histórico, fruto de um evento
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inédito. Organizou-se, portanto, outro regime de historicidade, de cunho


futurista, que consistiu em um futuro a ser alcançado por todos os indivíduos.
Para uma melhor compreensão das transformações ocorridas na França
ocasionadas pelo processo revolucionário, faz-se necessária uma caracteriza-
ção do contexto socioeconômico daquela nação, buscando-se o entendimento
da gênese desses eventos e do porquê desse rumo até então inédito na
história. A França, governada por Luís XVI desde 1774, ocupava uma posição de
relevância no continente europeu, tanto em relação ao modelo de aristocracia
utilizado, quanto em se tratando da composição social.
Hobsbawm (2019) afirma que, no final do século XVIII, a França era um país
populoso, com cerca de 23 milhões de habitantes — estima-se que um em
cada cinco europeus era francês. A divisão social interna era organizada a
partir de ordens, denominadas estados. A elite era composta por um seleto
grupo de aproximadamente 400 mil pessoas, privilegiadas com a isenção de
vários impostos e o direito de receber tributos feudais.
Essa nobreza, dividida em três grupos, ilustrava os interesses de parte das
forças políticas em atuação nesse período. No entanto, é errôneo imaginar
que as pessoas possuíam uma unidade por fazerem parte do mesmo estado.
De fato, distinções ocorriam dentro do próprio grupo. Um exemplo era a
chamada noblesse de robe, ou nobreza de toga, uma classe média enobrecida
pelo rei que servia aos seus interesses financeiros e administrativos. Foi
nessa disputa interna por cargos da administração, outrora ocupados por
indivíduos capazes tecnicamente e sem apresentar ameaça política e agora
ocupados por uma nobreza tradicional, refletindo o inverso da situação,
que surgiu a fagulha da chamada “reação feudal”, denominada revolução
aristocrática por Lefebvre (2019).

A Revolução Francesa foi interpretada sob as mais variadas lentes


com o passar do tempo, sendo revisitada por grupos distintos, os
quais lançaram luz para enfatizar aspectos que correspondiam aos interesses
dos autointitulados herdeiros de 1789. Na época do bicentenário desse pro-
cesso revolucionário, o historiador inglês Eric Hobsbawm analisou as várias
interpretações atribuídas ao processo revolucionário naqueles 200 anos. Para
saber mais, consulte a obra de Hobsbawm intitulada Ecos da Marselhesa: dois
séculos reveem a Revolução Francesa (1996).

A situação financeira da França se agravou devido à participação em con-


flitos bélicos, como a Guerra dos Sete Anos (1756–1763), na qual foi derrotada
pela Inglaterra, e a Revolução Americana (1765–1783), que culminou com o
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processo de independência da colônia inglesa mais próspera da América do


Norte. Embora os motivos de envolvimento nas guerras fossem distintos, o
resultado foi o mesmo: o aumento dos gastos públicos para o financiamento
e o pagamento das dívidas contraídas durante os conflitos. Foi com relação
a essa questão — o contexto socioeconômico da França no final do século
XVIII — que surgiu a faísca da revolução. Hobsbawm (1996, p. 19) aponta que
“[...] a Revolução começou como uma tentativa aristocrática de recapturar
o Estado”.
Na esteira desse processo, o rei Luís XVI decidiu convocar, em 1787, a
Assembleia de Notáveis (Assemblée des Notables), buscando resolver a crise
financeira na qual a França se encontrava. Como o próprio nome sugere, esse
órgão de caráter consultivo correspondia a um seleto grupo de indivíduos
próximos ao monarca, escolhidos devido à sua lealdade ao soberano. En-
tretanto, a crise financeira não foi resolvida, pois, conforme aponta Volvelle
(2019), a elite se recusou a pagar pelos gastos governamentais caso seus
privilégios não fossem mantidos.
Como o resultado obtido pelo rei não foi o esperado, ele decidiu tomar
outra atitude, já no ano de 1789, e optou por convocar outra assembleia
consultiva, a dos Estados Gerais (États Généraux) (Figura 1), inativa há mais de
um século — a última ocorrência tinha sido no ano de 1614, durante o reinado
de Luís XIII. Essa estrutura funcionava por meio de petições por parte dos
representantes de cada ordem. O voto era estabelecido pelas ordens — dessa
forma, o Primeiro Estado, representado pelo clero, tinha direito a um voto,
e o Segundo Estado, constituído pela nobreza, também tinha um voto. Por
fim, o Terceiro Estado, uma denominação que englobava os grupos que não
faziam parte do clero ou da nobreza, correspondendo a 95% da população
francesa, também tinha direito a um voto.
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Figura 1. Litogravura de 1789, produzida por Isidore-Stanislaus Helman e Charles Monnet,


representando a seção de abertura dos Estados Gerais, ocorrida em 5 de maio de 1789.
Fonte: Helman e Monnet (1789, documento on-line).

Os representantes do Terceiro Estado passaram a protestar pela injusta


forma de representação política, desejando ampliar o seu direito de voto para
uma proporção igual aos membros dos outros Estados, que correspondia a
300 votantes em cada, respectivamente. Dessa forma, o equilíbrio de forças
se mostraria mais eficaz, pois os votos seriam contabilizados individualmente,
o que impossibilitaria uma prática bastante comum de união entre os dois
Estados contra os interesses do Terceiro Estado. Porém, o rei, percebendo
a exaltação dos ânimos por parte dos reunidos e vislumbrando como seus
interesses estavam em risco, decidiu por abortar a seção e dissolver os
Estados Gerais.
Porém, algo de diferente pairava no ar da França naquele período. Os ideais
defendidos pelo Iluminismo e encarnados na maçonaria se faziam presentes
no imaginário coletivo de uma burguesia que sonhava com transformações
de cunho político (GRESPAN, 2003). Somava-se a isso o alto custo de vida
enfrentado pela população, que, nos anos anteriores, desde 1787, enfrentava
um inverno rigoroso e uma crise de produção nas lavouras. Isso levou a um
encarecimento no custo de vida, sobretudo no valor do pão, principal alimento
consumido pelas camadas populares. Nas palavras de Hobsbawm (2019, p.
115), “[...] o preço do pão registrava a política de Paris com a exatidão de um
termômetro”. Para Lefebvre (2020), o maior inimigo da população francesa
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era a fome. Essa insatisfação homogênea contra os privilégios do clero e da


nobreza, somada à união de um grupo tão heterogêneo, foi responsável por
uma transformação profunda na sociedade francesa.
Ao serem impedidos pelo próprio rei de se reunirem novamente no salão
principal, onde desde o dia 5 de maio ocorria a organização dos Estados
Gerais, os representantes do Terceiro Estado — constituído nesse momento
por membros da burguesia, chamados sans-culottes —, os representantes
do baixo clero e alguns indivíduos convencidos pelo discurso de Robespierre
decidiram se reunir na sala ao lado. O local não era destinado para esses
fins, afinal de contas, tratava-se de um ambiente destinado ao jogo da péla,
uma prática esportiva que se assemelha ao tênis atual. A reunião por parte
de um grupo insatisfeito em um ambiente destinado a uma atividade lúdica
é emblemática porque simboliza o que estava em jogo na França naquele
momento.
Em 20 de junho de 1789, três dias após o Terceiro Estado se declarar em
Assembleia Nacional contra a reação estatal por parte do rei Luís XIV, ocorreu
o juramento do jogo da péla (Figura 2). Nesse episódio, o grupo de repre-
sentantes do Terceiro Estado decidiu só se dissipar após a criação de uma
nova Constituição para o governo francês. Esse evento marcou o início de
transformações na sociedade francesa.

Figura 2. Litogravura de 1791, produzida por Jacques-Louis David, retratando o juramento do


jogo da péla, ocorrido em 20 de junho de 1789. David foi deputado na Convenção em 1793.
Fonte: Fhore e Torrès (1789, documento on-line).
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Assembleia Nacional Constituinte: o prelúdio da


derrocada da monarquia absolutista na França
Ao se reunir em Assembleia Nacional, o objetivo era diminuir o poder real, mas
sem romper, necessariamente, com o regime monárquico, afinal de contas, o
rei ainda simbolizava o modelo de governança dentro da sociedade francesa.
Após a criação de uma nova Constituição, um novo sujeito entrou em cena
como ponta de lança dos interesses do povo francês: a nação francesa.
Uma postura pacifista foi adotada pelos revolucionários franceses, per-
cebida no decreto da Assembleia Constituinte de 22 de maio de 1790, sob o
título sugestivo de “a paz para o mundo”. Nele, “[...] a nação francesa renuncia
a empreender qualquer guerra cujo objetivo seja a conquista e não empregará
jamais suas forças contra a liberdade de qualquer povo” (MONDAINI, 2008,
p. 199).
Os interesses da população divergiam dos interesses do monarca, en-
caminhando-se para um ponto de ruptura. A Declaração de Mirabeau, um
ex-nobre, frente à Assembleia Nacional Constituinte, lançou luz ao choque
de interesses que se fez presente naquele período revolucionário. Conforme
relata Hobsbawm (2019, p. 108), “Mirabeau, um brilhante e desacreditado
ex-nobre disse ao rei: ‘Majestade, vós sois um estranho nesta Assembleia e
não tendes o direito de se pronunciar aqui’”.
Manifestando os interesses do povo, o “[...] rei não era mais Luís, pela Graça
de Deus, rei da França e Navarra, mas Luís, pela Graça de Deus e do direito
constitucional do Estado, rei dos Franceses” (HOBSBAWM, 1996, p. 21). Essa
alteração no status do soberano mostra o direcionamento que o processo
revolucionário tomou: a encarnação dos interesses por parte de um grupo — a
nação francesa — frente aos privilégios exacerbados de uma pequena elite.
A figura de Luís XVI desperta sentimentos distintos por parte dos his-
toriadores; alguns o consideram estúpido e desprezível, como Hobsbawm
(2019), outros apontam que ele não era um governante ruim, como na opinião
de Volvelle (2007). Entretanto, as decisões tomadas por esse monarca, que
tinha acabado de ter seu poder diminuído consideravelmente — ao seguir os
conselhos de sua esposa estrangeira, Maria Antonieta, e de seus ministros —,
não necessariamente garantem uma análise de suas capacidades cognitivas
e de seus posteriores fracassos. Elas servem mais para proporcionar uma
compreensão maior dos interesses políticos que estavam em disputa por
parte das monarquias absolutistas europeias.
A mobilização das massas, incluindo trabalhadores comuns, intelectuais,
camponeses, desempregados e todo tipo de profissional liberal, juntamente
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com a burguesia, operou um sentimento antinobiliárquico que ocasionou uma


politização do cotidiano (HUNT, 2007). Na próxima seção, serão abordadas
questões como: de que forma o soberano francês lidou com a modificação
de status no seu governo? Por que a monarquia constitucional foi substituída
por outro governo, de caráter republicano? Qual foi a reação popular frente
à contrarrevolução iniciada por Luís XVI? Como as aristocracias estrangeiras
enxergaram a mudança gerada na França? Como grupos distintos passaram
a disputar os rumos da Revolução?

Desde o início do processo revolucionário francês, e no desenrolar


desse processo, existiram distinções na forma de percepção sobre os
rumos que a França deveria tomar após o fim da monarquia absolutista. Esses
acontecimentos foram fruto das diferenças de classe e percepção existentes
nos grupos que formavam o tão heterogêneo Terceiro Estado. Essa é a discussão
proposta pela historiadora estadunidense Lynn Hunt no livro Política, Cultura
e Classe na Revolução Francesa (2007).

A Revolução Francesa
A constituição de uma monarquia parlamentar, em substituição do modelo
vigente pautado nos preceitos absolutistas, marcou politicamente a transfor-
mação da estrutura política da França e serviu como norte para os episódios
da Revolução Francesa. Porém, o seu significado simbólico e marco fundante
ganhou força com a Tomada da Bastilha, episódio ocorrido em uma terça-
-feira, 14 de julho de 1789, que contou com a participação das duas principais
forças que levaram a cabo o processo revolucionário: os sans-cullotes e as
camadas populares de Paris.
Uma das primeiras medidas adotadas pelo povo francês após a Assembleia
Constituinte foi a adoção da Guarda Nacional (La Garde Nationale), criada a
partir do Comitê de Vigilância. Ela visava a cumprir a função dupla de impe-
dir a reação por parte das antigas elites, representadas pelo rei, nobreza e
clero, e garantir a manutenção dos direitos adquiridos naquele momento.
Para tanto, foi necessário um chamado geral à nação para que todos os
cidadãos capazes pegassem em armas para defender os interesses do povo
francês. Para garantir o exercício da defesa, ficou decidido que cada distrito
se responsabilizaria pelo envio de 200 cidadãos para pegar em armas e lutar.
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A Tomada da Bastilha, evento fundante e marco simbólico da Revo-


lução Francesa, não foi entendido da mesma forma por aqueles que
interpretaram o processo revolucionário. Os acontecimentos narrados a seguir
fazem parte da obra O Renascimento do Acontecimento (2013), do historiador
francês François Dosse. Nela, são apresentadas visões distintas e até mesmo
antagônicas sobre a interpretação de um evento que faz parte da memória
coletiva da Revolução de 1789 na França. Vale a pena a leitura da obra para
você entender como um evento pode ser ressignificado e utilizado de formas
distintas ao longo do tempo.

No dia 13 de julho, a Assembleia se reuniu e enviou uma delegação ao rei


para que ele retirasse suas tropas. Ao mesmo tempo, corria um rumor de que
o rei estava organizando um ataque em sete locais na noite do dia 14 para
o dia 15 de julho. Esse rumor tinha fundamento, afinal de contas, o rei não
ficou passivo frente às mudanças orquestradas pelo povo que clamava por
mudança. O evento ocasionou a dissolução da Assembleia Nacional.
O resultado foi uma marcha da população em direção à prefeitura (Hôtel
de Ville), exigindo as armas que garantiriam a defesa do regime recém-im-
plementado. Em seguida, a população se direcionou ao Palácio dos Inválidos
(Hôtel des Invalides), um local criado pelo rei para abrigar soldados inválidos,
feridos em batalha, e que também funcionava como depósito de armas.
Nesse local, foram obtidos entre 28 e 32 mil fuzis, que foram utilizados para
enfrentar as tropas realistas que tinham como objetivo a restauração da
monarquia absolutista. Desse ponto, o grupo decidiu marchar em direção à
Bastilha, uma fortaleza que funcionava como prisão política e simbolizava
o domínio do modelo absolutista nas ruas de Paris.
Quando a multidão chegou na entrada da Faubourg Saint-Antoine, uma
fortaleza de pedra surgia no horizonte como um colosso indestrutível. Essa
era a Bastilha; sua estrutura possuía muralhas de 30 metros de altura, rodeada
por oito torres, e seus fossos atingiam 25 metros de largura e eram repletos
de água. No seu interior estava uma guarnição de defesa, ocupada por 80
inválidos, protegidos por 30 sentinelas, todos liderados pelo governador de
Launay.
O primeiro contato feito entre eles ocorreu por parte do parlamentar
Thuriot, que ordenou a rendição dos aquartelados na Bastilha, ordem que
foi prontamente ignorada. Em seguida, uma segunda comissão foi enviada,
liderada por dois deputados, responsáveis por tentar negociar a rendição
das tropas leais ao rei. O governador De Launay convidou os dois deputados
para entrar e, supostamente, almoçar com ele. Não se sabe se o governador
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simplesmente agiu covardemente ou se pensou ter caído em uma armadilha


— o que se sabe é que, ao se deparar com a multidão que estava à frente
da Bastilha, De Launay ordenou a suspensão da ponte levadiça e mandou
as tropas atirarem na multidão que estava na frente da fortaleza. Diversas
pessoas foram atingidas, e várias morreram com tiros à queima roupa.
Após esse episódio, entendido pela população como traição, a situação se
intensificou, e a população passou a pressionar os muros e insistiu em invadir
a fortaleza. Enquanto o ataque acontecia, os guardas disparavam sem parar.
No fim do dia, o total de mortos do lado de fora somava 83 pessoas, além de
88 que ficaram feridas. As tropas do governador De Launay, sob a proteção
física e simbólica da Bastilha, sofreram apenas uma baixa.
Em dado momento, um carroceiro tomou a frente do ataque, de machado
na mão, subiu por uma guarita e, a golpes incessantes e sob forte rajada de
balas, conseguiu destruir as correntes — com todo o simbolismo presente
na mensagem. Dessa forma, derrubou a primeira ponte levadiça e abriu o
caminho para a multidão, que ocupou o pátio da fortaleza de pedras. Os ata-
cantes eram compostos por dois destacamentos das guardas francesas, uma
multidão e alguns burgueses da milícia, que se somaram à força de ataque ao
levar cinco canhões, retirados dos inválidos. Três deles foram posicionados
em frente às portas da fortaleza.
Percebendo o aumento do poder bélico dos atacantes e observando
que estava cercado, De Launay ameaçou utilizar outra estratégia. Dentro da
Bastilha estavam 20 mil quilos de pólvora, o que levou o governador a cogitar
a possibilidade de explodir a fortaleza, juntamente com seu destacamento e
o bairro. Quem conseguiu dissuadir o governador dessa atitude foi Béquart,
um dos 80 inválidos que estavam protegidos dentro da Bastilha.
Após mais de cinco horas de combate, os invasores conseguiram ocupar
o pátio da Bastilha e renderam o governador. As chaves da prisão, símbolo
da opressão real francesa, estavam agora na ponta de uma lança, assim
como o regulamento do prédio. O governador De Launay foi capturado pela
população e, como represália por ordenar o disparo inicial contra a população,
foi vítima desta.
Um dos principais algozes do governador De Launay foi um cozinheiro cha-
mado Desnot. Em um momento anterior à Revolução, ele foi alvo da violência
arbitrária do governador e recebeu um pontapé na barriga. Em um momento
de inversão de papéis, foi Desnot quem cometeu a violência. Utilizando-se da
sua habilidade com armas brancas, iniciou a decapitação do antigo governador
(Figura 3) e desfilou pelas ruas da cidade com sua cabeça.
A Revolução Francesa 11

Figura 3. Pintura que referencia o episódio da Tomada da Bastilha, ocorrido em 14 de julho


de 1789. Apesar da violência inerente ao processo da captura, existe uma exaltação por parte
do autor, Charles Paul Landon.
Fonte: Landon (1794, documento on-line).

Após a conquista da Bastilha, a população tomou as chaves das prisões


e libertou os sete prisioneiros que se encontravam lá dentro, em um sinal de
libertação dos inimigos do rei, simbolizando o fim da opressão representada
pelo antigo regime. A violência presente no episódio da conquista da Bastilha
marcou o ápice de uma luta colossal entre dois lados que se enfrentavam
em território francês e que culminou no primeiro confronto direto entre um
grupo heterogêneo, o povo francês, contra os representantes de uma antiga
ordem. Apesar de todo o esforço, esses lados já demonstravam que não
possuíam mais forças para conviver naquele mundo, que dava os primeiros
sinais de modificação.
Após a vitória contra a Bastilha na capital parisiense, um sentimento
antinobreza se espalhou pelo interior da França, conhecido como o Grande
Medo (Grande Peur. Figura 4). Entre os dias 20 de julho e 6 de agosto de 1789,
as demais províncias do território francês foram tomadas por uma espécie
de revolta popular, em que os camponeses invadiram as propriedades dos
nobres. Aproveitando o clima de transformação que pairava no ar, os cam-
poneses realizaram uma espécie de justiça social, invadindo, saqueando e,
em muitos casos, massacrando representantes da nobreza e do clero que
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outrora foram responsáveis por ocasionar sofrimentos e medo nos grupos


mais vulneráveis daquela sociedade (LEFEBVE, 2020).

Figura 4. Pintura de Jean Hans retratando o Grande Medo. É possível visualizar a dimensão
dos envolvidos no sentimento antinobiliárquico e a reação frente às violências sofridas
historicamente.
Fonte: Hans (1789, documento on-line).

Menos de um mês após o 14 de julho, “[...] a estrutura social do feudalismo


rural francês e a máquina estatal da França Real ruíram em pedaços” (HOBS-
BAWM, 1996, p. 25). Com o desenrolar dos eventos e a violência eminente no
processo revolucionário, parte da nobreza francesa, incluindo membros do
alto clero, decidiu emigrar para fugir da reação do povo. Os destinos principais
foram a Áustria e a Prússia, nações vizinhas e com um governo absolutista.
A burguesia moderada, principal articuladora do processo revolucionário,
juntamente com a fúria arrebatadora das massas, saiu vitoriosa do processo
e herdou um modelo de governança que estava em transformação. Cabia à
burguesia finalizar o processo revolucionário e efetivar as mudanças que
tanto almejavam. Iniciou-se uma nova etapa na Revolução (GALLO, 2012).

Monarquia constitucional
Para sustentar a nova etapa que o governo revolucionário inaugurou, fez-se
necessária a criação de um documento que materializasse o pensamento
A Revolução Francesa 13

liberal burguês: a Declaração de Direitos do Homem e do Cidadão, ratificada


em 26 de agosto de 1789 (HUNT, 2007).

A Declaração de Direitos do Homem e do Cidadão (1789) estabeleceu


os princípios defendidos pela sociedade francesa, tendo à frente
os interesses liberais da burguesia. Os princípios de liberdade, propriedade,
segurança e resistência à opressão expuseram uma nova ordem que nascia
junto com o processo revolucionário. Confira a seguir alguns artigos presentes
nesse documento.
Art. 1º. Os homens nascem e são livres e iguais em direitos. As distinções sociais
só podem fundamentar-se na utilidade comum.

Art. 2º. A finalidade de toda associação política é a conservação dos direitos na-
turais e imprescritíveis do homem. Esses direitos são a liberdade, a propriedade,
a segurança e a resistência à opressão.

[...]

Art. 10º. Ninguém pode ser molestado por suas opiniões, incluindo opiniões religio-
sas, desde que sua manifestação não perturbe a ordem pública estabelecida pela lei.

Art. 11º. A livre comunicação das ideias e das opiniões é um dos mais preciosos
direitos do homem. Todo cidadão pode, portanto, falar, escrever, imprimir livremente,
respondendo, todavia, pelos abusos desta liberdade nos termos previstos na lei.

[...]

Art. 17º. Como a propriedade é um direito inviolável e sagrado, ninguém dela pode
ser privado, a não ser quando a necessidade pública legalmente comprovada o exigir
e sob condição de justa e prévia indenização. (HUNT, 2009, p. 225-227).

Luís XVI decidiu se mudar, deixando o Palácio de Versalhes e migrando


para o Palácio das Tulherias. Essa medida foi fruto da reação popular que,
dentre outras condições, condenava os gastos exorbitantes e o luxo que o
antigo palácio representava na memória social francesa (GALLO, 2012). Outra
medida adotada pela burguesia foi materializada na Constituição Civil do
Clero, em 1790. Essa medida visou a submeter a autoridade clerical à nação
francesa, culminando na nacionalização do clero daquele país. A medida gerou
controvérsias e acabou dividindo os religiosos do país em dois grupos, clero
constitucional e clero refratário. O primeiro corresponde ao grupo que se
submeteu à vontade do povo, tornando-se funcionários públicos, e o segundo
foi contra a medida, somando forças no processo contrarrevolucionário que
continuava a operar em sigilo, visando a ocupar novamente o lugar de poder.
14 A Revolução Francesa

O fim da monarquia
Conforme menciona Hobsbawm (2019), seria uma grande inocência imaginar
que Luís XVI aceitaria a derrota de bom grado e as mudanças que foram
geradas desde a convocação dos Estados Gerais, e mais ainda supor que ele
não estava orquestrando uma reação. As elites que fugiram para o exterior,
sobretudo nas nações vizinhas Prússia e Áustria, essa última com vínculos
fortalecidos com a monarquia francesa após o casamento de Luís XVI com
Maria Antonieta, iniciaram uma operação de contrarrevolução. Elas conse-
guiram convencer os monarcas dessas nações a enviar tropas para invadir a
França e acabar de vez com o mau exemplo que aquela nação estava lançando
para os demais Estados nacionais.
As divergências se ampliaram após essa questão. Os jacobinos, lidera-
dos por Robespierre, se posicionaram contra a guerra, visando a resolver
problemas internos. Por sua vez, a extrema direita e a esquerda moderada
enxergavam de forma positiva o conflito, cada um com um objetivo específico.
Era por meio da guerra, e da ameaça estrangeira que ela ocasionava, que
se poderia criar uma justificativa para a demora em solucionar problemas
levantados pela população. Outra parcela enxergava no exemplo francês uma
espécie de movimento que levaria à libertação das nações contra a tirania
do absolutismo (HOBSBAWM, 2019).
Uma declaração formal de guerra ocorreu em abril de 1792. Dois meses
depois, em junho, Luís XVI, juntamente com sua esposa Maria Antonieta e
membros da sua família, orquestraram um plano de fuga quase suicida. O
plano foi incentivado por oficiais estrangeiros, sobretudo representantes da
Áustria e da Prússia. Para Ozouf (2009), os planos de fuga foram um fracasso
por diversos fatores: a demora no processo, as constantes pausas, a ausên-
cia de troca de informações entre os envolvidos, entre outros. De qualquer
forma, o rei, que viajava disfarçado, foi reconhecido e capturado em Varenes,
próximo da fronteira com a Áustria.
A partir daí, iniciou-se o processo irreversível do declínio da monarquia.
O rei foi preso e se tornou o responsável pela situação na qual a França se
encontrava: cercada de inimigos por todos os lados, com seu território profa-
nado e a nação ameaçada por potências estrangeiras. Luís, agora considerado
traidor, deixava de ser rei e se transformava em prisioneiro. Preso, julgado
e condenado pela mais alta traição contra o povo, Luís foi condenado à gui-
lhotina. Abriam-se as portas para um novo governo na França, orquestrado
pelo povo. Quase instantaneamente, ao cair a coroa francesa, juntamente
com a cabeça do rei, surgia um novo governo: a república.
A Revolução Francesa 15

República Francesa, Ano I: a Gironda


A condenação de Luís XVI gerou reações entre as potências estrangeiras e
também dentro do território francês. No oeste da França, ocorreu a Revolta
da Vendeia, em que um grupo de camponeses de forte tradição católica,
distantes da capital francesa e, consequentemente, dos ideais republicanos,
decidiu participar de uma contrarrevolução e se levantou contra a recém-
-instaurada República Francesa.
A ação armada dos sans-cullote de Paris inaugurou a chamada ‘heroica
idade de ferro da Revolução Francesa’ (HOBSBAWM, 2019). Nesse período, os
republicanos, que acabavam de inaugurar um novo governo, refletido no Ano
I do calendário revolucionário, deveriam enfrentar o inimigo estrangeiro. Ao
mesmo tempo, julgavam e massacravam os traidores contrarrevolucionários
e prisioneiros políticos e convocavam eleições para a Convenção Nacional.

A República inaugurou um novo tempo na história não apenas da


França, mas da humanidade. Os próprios revolucionários tinham
percepção dessa realidade e criaram um calendário para representar essa nova
época que acabara de surgir: 1791 seria o marco inicial, começando com o Ano
I. O tempo seria marcado em 12 meses, com 30 dias cada, e as semanas seriam
divididas em 10 dias. Os cinco dias restantes seriam destinados a festas, e a
cada quatro anos um dia seria acrescentado (bissexto).
„„ Vindimário, o mês da vindima (colheita da uva): setembro-outubro.
„„ Brumário, mês das brumas: outubro-novembro.
„„ Frimário, mês das frimas (geadas): nozembro-dezembro.
„„ Nivoso, mês da neve: dezembro-janeiro.
„„ Pluvioso, mês da chuva: janeiro-fevereiro.
„„ Ventoso, mês do vento: 20/fevereiro-março.
„„ Germinal, mês da germinação: março-abril.
„„ Floreal, mês das flores: abril-maio.
„„ Pradial, mês dos prados: maio-junho.
„„ Messidor, mês das messes (colheitas): 18/junho-julho.
„„ Termidor, mês do calor: julho-agosto.
„„ Frutidor, mês das frutas: agosto-setembro.

Tropas estrangeiras, representantes dos reinos católicos do absolutismo,


treinadas por uma elite versada nas mais variadas técnicas de combate do
mundo moderno europeu, enfrentaram os soldados republicanos seculares
16 A Revolução Francesa

franceses, em sua maioria abalados pelos confrontos internos e a fome. A


Batalha de Valmy, em que as tropas francesas ecoaram a Marselhesa (La
Marseillaise), que posteriormente se transformaria em sinônimo de ideias
revolucionárias, terminou com a derrota das forças invasoras.
Ao mesmo tempo que lidava com as ameaças ao governo republicano, a
burguesia, representada pela Gironda, demonstrava uma face conservadora,
entendendo que o processo revolucionário estava encerrado e sentindo
cada vez mais a pressão pela constante ameaça das massas em relação
aos interesses desse grupo social. Ficava evidente para os sans-culottes e,
sobretudo, para os jacobinos que medidas deveriam ser tomadas. Em 2 de
junho de 1793, deputados girondinos foram expulsos e presos, acusados de
traição. O primeiro governo republicano, de caráter burguês, chegava ao
fim na França, terminando com uma alta nos preços, inflação e a constante
ameaça de uma contrarrevolução.

República Francesa, Ano II: jacobinos


Como os girondinos tinham mostrado no seu governo, após a conquista da
pauta burguesa, estes se tornaram cada vez mais reacionários, percebendo
com desconforto o avanço cada vez mais significativo das massas, o que era
visto como uma ameaça à ordem. Buscando dar continuidade ao processo
revolucionário, a ala mais radical do antigo Terceiro Estado, os jacobinos,
apoiados pelos sans-cullotes de Paris, assumiu o governo francês com um
cenário problemático.
A herança deixada pelo governo burguês dos girondinos criou um problema
financeiro, e foi necessário mobilizar todos os recursos para que a França
conseguisse derrotar seus inimigos externos e internos. Nesse sentido, a
República jacobina foi o primeiro governo que adotou a noção de guerra total
no sentido moderno do termo (HOBSBAWM, 2019). Ou seja, houve a mobilização
de todos os recursos disponíveis para o sucesso das campanhas militares. Da
cidade ao campo, tudo o que era produzido passava pelo critério de seleção
dos jacobinos para fortalecer as tropas.
Vencer os invasores e contrarrevolucionários era o principal motivo que
levava os franceses a lutar. Sua derrota significaria o fim da Revolução e
de todo o sistema de transformações que fora aberto de 1789 em diante.
A vitória da república frente ao absolutismo significava a sobrevivência da
Revolução. Visando a seguir com o processo revolucionário e, sem sombra
de dúvidas, fazer valer o espírito mais radical da Revolução, os jacobinos
reergueram o Comitê de Salvação Pública (Comité de Salut Public), um órgão
A Revolução Francesa 17

do Executivo criado pela Convenção, mas que ganhou notoriedade durante


a república jacobina.
O Comitê de Salvação Pública foi o mecanismo utilizado pelos jacobinos
para fazer valer o ímpeto revolucionário, funcionando como uma espécie
de política, em que os inimigos da revolução eram identificados, julgados e
condenados por crime de traição contra a Revolução. Representantes dos
jacobinos, como Maximilien de Robespierre e Saint-Just, foram os represen-
tantes máximos da república jacobina e encarnaram o lado mais radical do
processo revolucionário. Eles tiveram que enfrentar a ameaça estrangeira,
representando os poderes absolutistas, e a ameaça interna, com os contrar-
revolucionários desejosos de restaurar a monarquia e até mesmo uma parcela
da burguesia, que queria parar o carro-chefe da Revolução.
Nesse período, os inimigos da Revolução foram perseguidos e julgados
pelos seus crimes. O destino de todos os acusados era a guilhotina, uma arma
criada para evitar tortura e sofrimentos desnecessários para os acusados,
mas que, no fim das contas, tornou-se símbolo desse período. O período em
que os jacobinos utilizaram esse instrumento ficou conhecido como Terror.
Porém, como bem demonstra Andress (2009), essa nomenclatura foi inventada
pelos inimigos dos jacobinos e carregava um caráter ideológico, fazendo valer
uma imagem que caricaturizava o período.
Mas, afinal de contas, quais foram as principais medidas adotadas pelos
jacobinos? Foi durante o Ano II da República, durante o governo jacobino, que
a França conseguiu mobilizar recursos para vencer seus inimigos invasores.
Os jacobinos criaram um modelo de promoção com base no mérito, o que
favoreceu as iniciativas pessoais em combate. Dessa forma, um soldado
passaria a subir de patente, sendo reconhecido entre seus pares, mediante
o esforço pessoal empreendido em combate, quebrando o antigo modelo
aristocrático do exército. O valor que a possibilidade de ascensão agregou
para o exército ampliou consideravelmente o desempenho dos soldados
em combate.
No campo socioeconômico, os jacobinos foram responsáveis por elaborar
transformações que moldaram essa nova fase da República, promulgando
uma nova constituição em 1793, mais democrática e com participação popular,
pondo fim ao voto censitário elaborado pelos girondinos. Nesse novo docu-
mento, criou-se o sufrágio masculino, e a escravidão negra nas colônias foi
extinta. Houve a distribuição de terras aos camponeses, garantindo também
as sementes necessárias para o plantio, e a criação de escolas públicas.
Em pouco mais de oito meses, a República jacobina conseguiu organizar
as finanças públicas, montou um exército experiente e com moral elevada,
18 A Revolução Francesa

além de derrotar os inimigos estrangeiros. Tudo parecia correr bem, mas


a onda de perseguição aos contrarrevolucionários, incluídos aí os antigos
aliados dos jacobinos, como foi o caso do girondino Danton, minou o apoio
dos jacobinos frente aos sans-cullotes de Paris e à população francesa de
uma maneira geral. A burguesia, que foi afastada do poder, passou então a
organizar um contragolpe e ascender ao poder novamente. Como Robespierre
e Saint-Just, principais representantes dos jacobinos, ficaram sem base de
apoio, foram encurralados, presos e condenados à morte na guilhotina, sem
direito à julgamento, no episódio conhecido como Golpe de 9 Termidor.

A reação conservadora e o Terror Branco


A alta burguesia assumiu novamente o poder na França, tendo conseguido
afastar os jacobinos. Iniciou-se um processo de retaliação contra as perse-
guições sofridas durante o terror jacobino. A constituição jacobina do ano II
foi anulada, sendo criada uma nova, a Constituição do Ano III. As principais
conquistas obtidas pelos jacobinos foram canceladas: retornou-se ao voto
censitário, afastando boa parte das camadas populares do processo demo-
crático, o acesso às terras foi cancelado, e o congelamento do pão também
foi encerrado.
Além disso, a burguesia passou a perseguir os jacobinos. Iniciou-se um
período chamado Terror Branco ou reação termidoriana, em que grupos
reacionários, em sua maioria monarquistas e a alta burguesia, passaram
a perseguir republicanos e jacobinos. Os massacres ocorreram em toda a
França. Enquanto isso, as potências estrangeiras organizaram uma nova
coalisão e partiram para mais uma tentativa de invasão na França, que, além
de ser sacudida por problemas internos, deveria enfrentar mais uma vez a
fúria das monarquias absolutistas.

O Diretório
Nesse contexto, a alta burguesia organizou um novo governo, em que o Poder
Executivo era composto por um grupo de cinco indivíduos, eleitos para o cargo
por cinco anos, visando assim a retirar a personificação do poder e evitar o
controle por parte de um único indivíduo. Os grupos de oposição brotavam
de todos os lados, desde os nunca totalmente derrotados restauradores da
monarquia até os recém-derrotados jacobinos.
O governo parecia não conseguir lidar com essas questões. Os restau-
radores da monarquia tentaram um golpe fracassado em 1795. No outro
A Revolução Francesa 19

ano, os jacobinos orquestram a Conspiração dos Iguais, mas também foram


derrotados. O clima parecia insustentável. O exército fortalecido pelo governo
jacobino, mas sem o pensamento ideológico, tomou as rédeas do poder e
orquestrou um golpe de estado, o famoso 18 Brumário, começando assim
uma nova etapa da Revolução Francesa.

Ecos de 1789: as interpretações da


Revolução Francesa
A Revolução Francesa inaugurou um novo tempo no horizonte. O modelo
absolutista foi derrotado, e os ideias de liberdade e igualdade pregados desde
o início da Revolução alimentaram os desejos de transformação dos grupos
que não participavam do poder. A partir da interpretação desses eventos,
entende-se que o Terceiro Estado se mostrou um grupo heterogêneo, e as
contradições da união desses indivíduos se mostraram por meio dos mais
variados projetos e rumos que a Revolução tomou. Tendo como base esses
pressupostos, fica evidente que o regime absolutista, bem como tudo o que
ele simbolizava, dava sinais de que seus dias estavam contados, pois a po-
pulação passou a combater o que esse modelo defendia e passou a acreditar
em um novo ideal. O sol de 1792 passou a brilhar em outros cantos: eram a
liberdade e a igualdade trazidas pela República. Mas será que a Revolução
sempre foi percebida dessa maneira?
A interpretação da Revolução, bem como a seleção de certos eventos
para justificar o verdadeiro ideal de 1789, ocorreu desde o início do processo
revolucionário (GALLO, 2012). Godechot (1969, p. 423) se refere a esse processo
da seguinte maneira:

De 1815 ao final do século XIX a Revolução foi um arsenal do qual os partidos po-
líticos tiravam os seus argumentos: os liberais, os republicanos e os radicais para
justificarem sua política; os realistas, os conservadores e em certos momentos, os
bonapartistas, para condenarem a de seus adversários. Assim, a história política
da Revolução ficou sendo o único objeto dos estudos

Chartier (2009, p. 26) apresenta a interpretação clássica do historiador


Daniel Mornet, que traça uma relação “entre o progresso de novas ideias
através do século XVIII e a emergência da Revolução como acontecimento”.
Nessa perspectiva, ainda segundo Chartier (2009, p. 26), três leis governavam
a difusão das novas ideias:
20 A Revolução Francesa

Primeiro, as ideias desciam pela escala social “das classes altamente refinadas
para a burguesia, para a pequena burguesia e para o povo”. Em Segundo lugar, essa
penetração se difundia do centro (Paris) para a periferia (as províncias). Finalmente,
o processo foi se acelerando no decorrer do século, começando com minorias
que anteciparam as novas ideias antes de 1750 e prosseguindo nos decisivos e
mobilizadores conflitos na metade do século, para chegar, após 1770, na difusão
universal desses novos princípios.

A Revolução sob a ótica inglesa


Do outro lado do Canal da Mancha, o irlandês Edmund Burke traçava um
paralelo entre o processo revolucionário ocorrido na França em 1789 e a
experiência britânica vivenciada pela Inglaterra com a Revolução Gloriosa
(1688-1689), instituindo a monarquia parlamentar. Para Burke, que publi-
cou Reflections on the Revolution in France em outubro de 1790 — ou seja,
dois anos após o início do processo revolucionário —, a Revolução foi “uma
reviravolta total das instituições tradicionais da França e um esforço para
dar à sociedade francesa uma estrutura nova, construída em tabula rasa,
segundo a doutrina dos filósofos”, conforme apresenta Godechot (1969, p.
424). O posicionamento desse intelectual era de que a Revolução foi uma
utopia e uma quimera, pois, para ele, o natural era a herança do passado, o
que garantia a legitimação das instituições tradicionais. Como o processo
revolucionário não tinha precedentes históricos, ou seja, era um fenômeno
novo, estava fadado ao fracasso, não poderia durar.
A rixa histórica entre ingleses e franceses não produziu apenas visões
contrárias ao processo revolucionário, como pode parecer a partir de uma
leitura mais simplista desse processo. Thomas Paine publicou Rights of Man
em 1791, obra que é interpretada como uma resposta às argumentações de
Edmund Burke acerca do processo revolucionário francês. Segundo Paine,
a defesa da tradição significava que os mortos deveriam governar os vivos,
e, na sua visão, os vivos possuem o direito de se reinventar. Essa linha de
raciocínio justifica as ações francesas e cria, na visão do autor, um “adão
político”, termo utilizado por ele para justificar um novo modelo social.

A Revolução sob a ótica dos franceses


Nenhuma análise historiográfica sobre a Revolução Francesa pode ser levada
a sério se não for feita menção a Jules Michelet e à sua obra História da Re-
volução Francesa, escrita entre 1846 e 1853. Michelet realizou pesquisas em
arquivos e se ancorou em fontes como documentos impressos, manuscritos
A Revolução Francesa 21

e tradição oral para explicar o processo revolucionário. Segundo Godechot


(1969, p. 432-433), Michelet:

[...] consultou as fontes manuscritas nos arquivos parisieneses, naturalmente


nos arquivos nacionais, dos quais era editor, e também no arquivo do Sena, hoje
desaparecido pelo incêndio de 1871. Nesse aspecto sua obra tem valor excepcio-
nal, porque é baseada em documentos aos quais é quase impossível recorrer, em
especial os registros das deliberações da Comuna de Paris, os verbais das sessões
“parisieneses” ou aqueles de certos clubes, como o clube dos cordoeiros.

Apesar da vasta documentação, a obra de Michelet repousa sobre uma


interpretação bastante subjetiva, pois, como afirma Godechot (1969, p. 431),
ele era filho de um impressor arruinado por Bonaparte e pertencia ao grupo
de herdeiros dos sans-culottes. Entretanto, o autor afirma que sua obra vale
“sobretudo por seu estilo incomparável, por sua eloquência dominante, por
seu generoso idealismo” (GODECHOT, 1969, p. 431).
Fruto da Revolução de 1848 e da ascensão de Bonaparte ao poder na
França, culminando com a instauração do II Império, o destino do processo
revolucionário foi colocado em perspectiva. Alexis de Tocqueville publicou
Ancien Régime et la Revolution Française em 1856. Segundo Chartier (2009,
p. 35), “Para Tocqueville, era essencial expressar que a Revolução foi, para-
doxalmente, o desfecho inevitável tanto de uma evolução extremamente
longa da centralização administrativa assumida pela monarquia quanto de
uma ruptura brutal, violenta e inesperada”.

Segundo Tocqueville (1967, p. 81 apud CHARTIER, 2009, p. 35-36):


O acaso não desempenhou papel algum na irrupção da Revolução; embora tenha
apanhado o mundo de surpresa, foi o desfecho inevitável de um longo período de
gestação, a conclusão abrupta e violenta de um processo no qual seis gerações
desempenharam um papel intermitente. Mesmo que ela não tivesse ocorrido, de
qualquer maneira, cedo ou tarde, a velha estrutura social teria sido abalada. A única
diferença teria sido que, em vez de ruir de forma tão súbita e brutal, teria desabado
pouco a pouco. Numa única e cruel arremetida, sem aviso, sem transição e sem
compunção, a Revolução efetivou o que de todo modo tenderia a ocorrer, apenas
de forma lenta e gradual. Assim, tal foi a conquista da Revolução.

Em sua proposta, Tocqueville insere a análise do Antigo Regime e identifica


continuidades acerca do processo de centralização praticadas no processo re-
volucionário, bem como identifica rupturas violentas a partir desse processo.
Chartier (2009, p. 36) ressalta que Tocqueville “enfatizou uma cronologia de
22 A Revolução Francesa

curto prazo (os trinta ou quarenta anos que precederam a Revolução) e tentou
discernir as mudanças culturais que produziram transformações rápidas em
ideias e sentimentos”. Já Godechot (1969, p. 449) ressalta que o grande mérito
de Tocqueville foi evidenciar a luta de classes na evolução histórica:

A monarquia aliou-se rapidamente às classes populares contra a aristocracia,


e aí Tocqueville, apesar da serenidade que habitualmente demonstrava, deixou
subentendida a proteção à classe a que pertencia, e que não pudera realizar a
tarefa a que era destinada, como realizara na Inglaterra. Os reis conduziram essa
luta sobretudo por meio da centralização governamental e administrativa — cen-
tralização que Revolução e Império acentuaram.

Em 1885, na Sorbonne, foi criada a cadeira de História da Revolução Fran-


cesa. Em 1937, Georges Lefebvre assumiu essa cátedra e se tornou o principal
historiador sobre o assunto no início do século XX. De acordo com sua tese e o
argumento apresentado intitulado La Révolution Française, publicados origi-
nalmente em 1951 (Vol. 1) e 1957 (Vol. 2), o processo revolucionário apresentou
três revoluções distintas, orquestradas por sujeitos e interesses heterogêneos.
Segundo Lefebvre, existiram três processos em curso: uma primeira revolução
aristocrática, uma revolução burguesa e uma revolução popular.
Já a contribuição historiográfica de Michel Volvelle é voltada para o campo
da história cultural, conhecido na tradição francesa como mentalidades.
Suas obras envolvem diversos aspectos do processo revolucionário, como o
processo de descristianização, em Religion et Révolution : la déchristianisation
de l'an II, publicado em 1976, La Mentalité révolutionnaire: société et mentalités
sous la Révolution française, de 1986, e La Révolution française expliquée à
ma petite-fille, de 2006 — para citar apenas as obras mais conhecidas pelo
público brasileiro.
Por fim, também devem ser mencionados os estudos comparativos, como
o clássico do historiador britânico Eric Hobsbawm, intitulado The Age of Re-
volution: Europe 1789-1848. Nele, o autor introduz a noção de dupla revolução,
enfocando as transformações ocorridas no mundo após a Revolução Industrial
inglesa e a Revolução Francesa. Destacam-se também as contribuições de
Hannah Arendt em On Revolution, publicado em 1963, em que a filósofa realiza
uma análise comparativa entre a Revolução Francesa de 1789 e a revolução
americana de 1776.
A Revolução Francesa 23

Referências
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VOLVELLE, M. A Revolução Francesa: 1789-1799. 2. ed. São Paulo: Editora Unesp, 2019.
24 A Revolução Francesa

Leituras recomendadas
BURKE, E. Reflexões sobre a Revolução Francesa. 4. ed. Campinas: Vide Editorial, 2017.
HARTOG, F. Regimes de historicidade: presenteísmo e experiências do tempo. Belo
Horizonte: Autêntica, 2015.
RÉMOND, R. O Antigo Regime e a Revolução: 1750-1815: introdução à história de nosso
tempo. Rio de Janeiro: Apicuri, 2016.
TOCQUEVILLE, A. de. O Antigo Regime e a Revolução. 2. ed. São Paulo: WMF Martins
Fontes, 2016.
TODOROV, T. A conquista da América: a questão do outro. São Paulo: Martins Fontes, 2003.
VOLVELLE, M. A Revolução Francesa explicada à minha neta. São Paulo: Editora Unesp,
2007.

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