Você está na página 1de 14

Teologia da Evangelização (5)

2. A Universalidade do Pecado:
Ao evangelizarmos, não saímos com uma “lanterna acesa”, procurando en-
tre os homens aqueles que sejam pecadores. Também não abordamos as pessoas
perguntando: “Você é pecador?” e no caso de uma resposta negativa, pedimos-lhe
desculpas e vamos embora, quem sabe tentando refinar os nossos métodos, bus-
cando outros homens com “aparência” de pecador. Quando nos dirigimos aos ho-
mens apresentando a salvação por Cristo, estamos na realidade, reivindicando que
eles se arrependam e creiam no Evangelho. Ao assim procedermos, estamos, de fa-
to, pressupondo corretamente que todos os homens pecaram distanciando-se de
Deus, estando perdidos, necessitando, portanto, da salvação. Esta é a convicção de
Paulo: “.... todos pecaram e carecem da glória de Deus” (Rm 3.23).

A) PECADO COMO ALGO NIVELADOR:

O pecado é o grande nivelador de toda a humanidade: todos pecaram;


1
todos estão no mesmo nível; não há lugar para arrogância ou supostas boas obras
2
justificadoras (Rm 3.19-20). Se todos pecaram, isso significa que nós também pe-
camos; se todos precisam de salvação, significa que nós também precisamos. “Pe-
cado não é algo peculiar a uns poucos, senão que permeia o mundo intei-
3
ro”. O pecado nos impossibilita totalmente de nos salvar a nós mesmos.

Na Oração do Senhor temos um indicativo da universalidade do pecado. “O fato


de Jesus ensinar a todas as pessoas a fazerem esta oração demonstra a uni-
versalidade do pecado; e para repetir esta oração se requer um sentido de
4
pecado”.

A Escritura nos fala que o pecado, comum a todos nós (Rm 3.23), nos fez cativos
5 6
(Jo 8.34; Rm 6.20; 7.23 ), habitando em nós (Rm 7.17,20), mantendo-nos sob o
seu domínio. Portanto, negar a nossa condição de pecadores, é negar a própria Pa-
lavra de Deus, que diz: “Se dissermos que não temos cometido pecado, fazemo-lo

1
Ver: Francis Schaeffer, A Obra Consumada de Cristo, São Paulo: Editora Cultura Cristã, 2003, p. 70.
2
“Ora, sabemos que tudo o que a lei diz, aos que vivem na lei o diz para que se cale toda boca, e to-
do o mundo seja culpável perante Deus, visto que ninguém será justificado diante dele por obras da
lei, em razão de que pela lei vem o pleno conhecimento do pecado” (Rm 3.19-20).
3
João Calvino, Efésios, São Paulo: Paracletos, 1998, (Ef 2.2), p. 52.
4
W. Barclay, El Padrenuestro, Buenos Aires: La Aurora/ABAP, 1985, p. 118.
5
“....Em verdade, em verdade vos digo: todo o que comete pecado é escravo do pecado” (Jo 8.34).
“Porque, quando éreis escravos do pecado, estáveis isentos em relação à justiça” (Rm 6.20). “Mas
vejo, nos meus membros, outra lei que, guerreando contra a lei da minha mente, me faz prisioneiro
da lei do pecado que está nos meus membros” (Rm 7.23).
6
“Neste caso, quem faz isto já não sou eu, mas o pecado que habita em mim. (...) Mas, se eu faço o
que não quero, já não sou eu quem o faz, e sim o pecado que habita em mim” (Rm 7.17,20).
Teologia da Evangelização (5) ‒ Rev. Hermisten ‒ 31/01/2011 ‒ 2

mentiroso e a sua palavra não está em nós” (1Jo 1.10). “Não ser consciente de
7
pecado algum é o pior pecado de todos”.

B) A GRAVIDADE DO PECADO:

Sem a consciência do pecado não há Evangelho. Somente o Evangelho


8
trata o pecado com seriedade. A Lei é o Evangelho ainda que não em sua plenitu-
de. Contudo, sem a Lei não há consciência do pecado e, por isso mesmo, a convic-
ção da necessidade de salvação. A Boa Nova de salvação engloba o pecado, as su-
as consequências e a libertação de suas mazelas pela graça de Deus. Por isso é
que podemos dizer que a Lei é graça.

É natural que os homens se inclinem prazerosamente para os ensinamentos que


9
falam de suas virtudes e capacidade. “O Cristianismo é a religião do coração
10
ferido”.

11
O homem é hábil em buscar “uma capa e subterfúgio para seu pecado”.
Ou, quem sabe, podemos nutrir até alguma noção sobre pecado, contudo, tendemos
a pensar que isso é coisa praticada por pessoas ignorantes, deste modo, o conhe-
cimento, por si só, nos liberta desta prática, supomos. Em geral a mente secular é
profundamente otimista em relação às suas potencialidades. Portanto, falar de pe-
cado é algo que não encontra tão facilmente ouvidos prazerosos ou mesmo atentos.
Daí, uma tendência comum é a tentativa de suavizar esta doutrina, mudando nomes,
perspectivas ou simplesmente silenciado a respeito. Dentro de uma perspectiva
mais filosófica, tenta-se driblar a real questão por meio da amenização da realidade
com a apresentação do perdão, como se a noção de perdão, por si só, trouxesse a-
lívio, enquanto que a proclamação da realidade do pecado assustasse as pessoas,
as afastassem da mensagem do Evangelho. Pois bem, talvez isso seja assim no
campo especulativo onde o pecado e o perdão são apenas conceitos vagos sobre
os quais reflito por meio de uma análise fenomenológica, não me importando com a
sua essência e fundamentação teológica. Deste modo, o que importa é a percepção
subjetiva do conceito, não a veracidade e implicações dos fatos. Neste sentido, re-
cordo-me da declaração de Erasmo de Roterdã (1466-1536): "Por certo são nume-
rosos e fortes os argumentos contra a instituição da confissão pelo próprio
Senhor. Mas como negar a segurança em que se encontra aquele que se
12
confessou a um padre qualificado?".

7
W. Barclay, El Padrenuestro, p. 118.
8
Veja-se: J. Gresham Machen, Cristianismo e Liberalismo, São Paulo: Os Puritanos, 2001, p. 69ss.
9
Cf. João Calvino, As Institutas, II.1.2.
10
J. Gresham Machen, Cristianismo e Liberalismo, p. 71.
11
João Calvino, O Livro dos Salmos, São Paulo: Parakletos, 2003, Vol. 3, (Sl 105.6), p. 671.
12
Erasmo, Opera Omnia, Leyde, 1704, v, col. 145-6, Apud Jean Delumeau, A Confissão e o Perdão:
As Dificuldades da Confissão nos Séculos XIII a XVIII, São Paulo: Companhia das Letras, 1991, p.
37. Em outro lugar, também indagou: “Por que se dar ao trabalho de confessar seus pecados a
outro ser humano apenas pelo fato de ser um sacerdote, quando pode confessá-los direta-
Teologia da Evangelização (5) ‒ Rev. Hermisten ‒ 31/01/2011 ‒ 3

Por isso, entendemos que somente pela graça, por meio da Palavra, podemos ter
uma clara consciência de nossa pecaminosidade ativa e concreta e de sua afronta a
13
Deus. Ter consciência do pecado significa reconhecer o quão urgentemente preci-
samos de perdão. O Evangelho só se torna subjetivamente necessário – enquanto
que na realidade ele é urgentemente necessário – quando as pessoas percebem,
por Deus, a sua necessidade. Enquanto isso não acontecer, ele soará sempre como
algo descartável. “Não podemos ser cristãos sem convicção do pecado. Ser
cristão significa que compreendemos que somos culpados diante de Deus e
14
que estamos sob a ira de Deus”, resume Lloyd-Jones.

Quando tratamos deste tema, devemos ter em mente que a questão primeira não
é a quantidade ou intensidade de nossos pecados, mas, o fato de que pecamos – e,
diferentemente da compreensão de determinados pensadores humanistas, inclusive
15
cristãos –; a gravidade do pecado está no ponto de que todo pecado é primeira-
16
mente contra Deus, o eternamente santo, que não tolera o mal (Hc 2.13). O que in-
tensifica ainda mais a complexidade de nossa rebelião é o fato de rejeitarmos o Seu
17
infinito amor plenificado em Jesus Cristo.

mente a Deus?” (Apud Alister E. McGrath, Teologia, sistemática, histórica e filosófica: uma introdu-
ção à teologia cristã, São Paulo: Shedd Publicações, 2005, p. 84).
13
“É mister graça e iluminação espiritual para crermos que nossos pecados são um proble-
ma sério aos olhos de Deus, conforme a Bíblia nos diz. Precisamos orar para que Deus nos
torne humildes e dispostos a aprender, quando estudamos esse tema” (J.I. Packer, Vocábulos
de Deus, São José dos Campos, SP.: Fiel, 1994, p. 63. Ver também p. 70s).
14
D.M. Lloyd-Jones, O Supremo Propósito de Deus, São Paulo: Publicações Evangélicas Seleciona-
das, 1996, p. 227.
15
Dentro desta perspectiva limitante do sentido do pecado, incluímos, entre outros, Cecil Osborne,
que seguindo o pensamento de Erich Fromm (1900-1980), (“Pecado não se dirige primariamente
contra Deus, mas contra nós mesmos” (Erich Fromm, Psicanálise e Religião, 2ª ed. Rio de Janei-
ro: Livro Ibero-Americano, Ltda., 1962, p. 105). Do mesmo modo, ver a obra de Fromm, Análise do
Homem, São Paulo: Círculo do Livro, (s.d.), 218p), escreveu: “Pecado é essencialmente um erro
contra si mesmo ou contra outro ser humano” (Cecil Osborne, A Arte de Compreender-se a Si
Mesmo, Rio de Janeiro: JUERP., 1977, p. 139). Do mesmo modo, esse conceito tem sido amplamen-
te difundido por um discípulo de Norman Vincent Peale, Dr. Robert Schuller, que enfatiza: “o peca-
do é uma ofensa psicológica a si mesmo” (Vejam-se as pertinentes críticas a esta posição em:
John MacArthur Jr., Sociedade sem Pecado, São Paulo: Editora Cultura Cristã, 2002, p. 78ss).
16
"O pecado envolve uma certa responsabilidade, por um lado, responsabilidade esta sur-
gida da santidade de Deus, e, por outro lado, da seriedade do pecado como oposição à-
quela santidade" (John Murray, Redenção: Consumada e Aplicada, São Paulo: Editora Cultura Cris-
tã, 1993, p. 29). “Jamais compreenderemos o que o pecado realmente é, enquanto não a-
prendermos a pensar nele em termos de nosso relacionamento com Deus” (J.I. Packer, Vocá-
bulos de Deus, p. 64).
17
“O incrédulo despreza o amor de Deus. Se este amor fosse pequeno, seria um pecado
pequeno ignorá-lo. Se é grande, é grande pecado rejeitá-lo. Mas o fato é que este amor é
infinito. Isso faz da rejeição deste amor um pecado de proporções infinitas” (R.B. Kuiper, E-
vangelização Teocêntrica, São Paulo: Publicações Evangélicas Selecionadas, 1976, p. 19). “Como o
amor de Deus é infinito, desprezar esse amor é pecado de proporções infinitas No entanto, é
o que fazem aqueles que, por sua descrença, rejeitam o Filho de Deus, dom do Seu amor.
(...) Rejeitar este amor é incorrer no banimento eterno da presença de Deus. Responder com
fé e amor é herdar a vida eterna. Nada pode ser mais urgente do que a escolha de uma
destas atitudes" (R.B. Kuiper, Evangelização Teocêntrica, p. 72).
Teologia da Evangelização (5) ‒ Rev. Hermisten ‒ 31/01/2011 ‒ 4

Schaeffer (1912-1984) coloca a questão nestes termos:

“Nós pecamos deliberadamente contra o santo de Deus; é por isso que


a nossa situação é desesperadora. (...)
“O problema não está na quantidade de pecados que praticamos,
mas em quem ofendemos. Nós pecamos contra um Deus infinitamente
santo, que realmente existe. E, a partir do momento em que pecamos
contra um Deus infinitamente santo, que realmente existe, nosso pecado é
18
infinito”.

O problema é que o pecado não nos deixa perceber as suas consequências; es-
tamos totalmente alienados de Deus. Isso nos conduz ao próximo ponto.

C) A PERDA DA DIMENSÃO DA GRAVIDADE DO PECADO:

1) Desconsideração do que éramos e do que nos tornamos:

Por outro lado, o que nos torna tantas vezes indiferentes, é a nossa to-
19
tal incapacidade de perceber quem somos: o que éramos e no que agora nos tor-
namos; o nosso pecado e a sua gravidade, como observou Ryle (1816-1900) com
tons fortes: “Os próprios animais, cujo odor nos é bastante ofensivo, não têm
a menor idéia de que são tão mau cheirosos, e nem parecem tais uns para
os outros. E o homem, o homem caído, segundo creio, não tem noção de
quão vil coisa é o pecado aos olhos de Deus, cujas obras são absolutamente
20
perfeitas”.

A Bíblia no relato da Criação nos mostra que os seres criados por Deus (peixes,
aves, animais domésticos, animais selváticos, etc.) o foram conforme as suas res-
pectivas espécies. O homem, diferentemente, teve o seu modelo no próprio Deus
Criador (Gn 1.26; Ef 4.24), sendo distinto assim, de todo o resto da Criação, parti-
lhando com Deus de uma identidade desconhecida por todas as outras criaturas,
visto que somente o homem foi criado “à imagem e semelhança de Deus”. Somente
o homem pode partilhar de um relacionamento pessoal, voluntário e consciente com
Deus. Por isso, quando se trata de encontrar uma companheira para o homem com
a qual ele possa se relacionar de forma pessoal – já que não se encontra em todo o
resto da criação –, a solução é uma nova criação, tirada da costela de Adão e, trans-
21
formada por Deus em uma auxiliadora idônea, com a qual Adão se completará,
passando a haver uma “fusão interpessoal”, “unidade essencial”, constituindo-se os
dois uma só carne (Gn 2.20-24; Mc 10.8), unidos por Deus (Mt 19.6).

18
Francis Schaeffer, A Obra Consumada de Cristo, p. 75.
19
“A tragédia do mundo é que as pessoas não conhecem seu próprio ser; eles não sabem
o que deveriam ser” (D.M. Lloyd-Jones, O Caminho de Deus, não o nosso, São Paulo: Publicações
Evangélicas Selecionadas, 2003, p. 43).
20
J.C. Ryle, Santidade, São José dos Campos, SP.: FIEL, 1987, p. 26.
21
Ver: O. Palmer Robertson, Cristo dos Pactos, Campinas, SP.: Luz para o Caminho, 1997, p. 69.
Teologia da Evangelização (5) ‒ Rev. Hermisten ‒ 31/01/2011 ‒ 5

A imagem e semelhança refletem, em Adão, características próprias por intermé-


dio das quais ele poderia relacionar-se consigo mesmo, com o mundo e com Deus.
A imagem de Deus é uma precondição essencial para o seu relacionamento com
Deus, e expressa, também, a sua natureza essencial: o homem é o que é, por ser a
imagem de Deus: não existiria humanidade senão pelo fato de ser a imagem de
Deus; esta é a nossa existência autêntica e toda inclusiva. “Ser humano é ser a
imagem de Deus. Portanto, imago Dei descreve nosso estado normal. Não
assinala algo que está dentro de nós, ou a algo acerca de nós, senão a nos-
22
sa humanidade”. A imagem de Deus não é algo colado ou anexado a nós po-
dendo ser tirado ou recolocado. Antes, é algo essencial ao nosso ser. “A imagem
de Deus é intrínseca à humanidade. Não seríamos humanos sem ela. De to-
da a criação, somente nós somos capazes de ter um relacionamento pesso-
23
al consciente com o Criador e de reagir a Ele”. Portanto, o homem não sim-
plesmente possui a imagem de Deus, como algo externo ou acessório, antes, ele é a
24
própria imagem de Deus.

Desde a criação o homem foi colocado numa posição acima das outras criaturas,
cabendo-lhe o domínio sobre os outros seres criados, sendo abençoado por Deus
25
com a capacidade de procriar-se (Gn 1.22) e dispondo de grande parte da criação
para o seu alimento (Gn 1.26-30; 2.9). Como indicativo da posição elevada em que o
26
homem foi colocado, o Criador compartilha com ele, abençoando e capacitando-o,
do poder de nomear os animais – envolvendo neste processo, inteligência e não ar-
bitrariedade –, e também de dar nome à sua mulher (Gn 2.19,20,23; 3.20). E mais:
Deus delega-lhes poderes para cultivar (db;[') (‘abad) (lavrar, servir, trabalhar o solo) e
27
guardar (rm;v') (shãmar) (proteger, vigiar, manter as coisas) o jardim do Éden (Gn
2.15/Gn 2.5; 3.23), demonstrando a sua relação de domínio, não de exploração e
28
destruição, antes, um cuidado consciente, responsável e preservador da natureza:
“6 Deste-lhe domínio sobre as obras da tua mão e sob seus pés tudo lhe puseste: 7
ovelhas e bois, todos, e também os animais do campo; 8 as aves do céu, e os peixes
do mar, e tudo o que percorre as sendas dos mares” (Sl 8.6-8).

22
Gordon J. Spykman, Teología Reformacional: Un Nuevo Paradigma para Hacer la Dogmática, Je-
nison, Michigan: The Evangelical Literature League, 1994, p. 248-249.
23
Millard J. Erickson, Introdução à Teologia Sistemática, São Paulo: Vida Nova, 1997, p. 207.
24
Veja-se: Morton H. Smith, Systematic Theology, Greenville, South Carolina: Greenville Seminary
Press, 1994, Vol. 1, p. 238.
25
“Embora aos homens seja de natureza infundido o poder de procriar, Deus quer, entretan-
to, que seja reconhecido a Sua graça especial que a uns deixa sem progênie, a outros a-
gracia com descendência, pois que dádiva Sua é o fruto do ventre” (Sl 127.3). (João Calvino,
As Institutas, I.16.7).
26
Ver Gerard Van Groningen, Revelação Messiânica no Velho Testamento, Campinas, SP.: Luz para
o Caminho, 1995, p. 97.
27
Vejam-se: Gn 3.24; 30.31; 2Sm 15.16; Sl 12.7; Is 21.11-12.
28
Veja-se: Francis A. Schaeffer, Poluição e a Morte do Homem, p. 48-50.
Teologia da Evangelização (5) ‒ Rev. Hermisten ‒ 31/01/2011 ‒ 6

Todavia, todas estas atividades envolvem o trabalho compartilhado por Deus com
o ser humano. O nomear, procriar, dominar, guardar e cultivar refletem a graça pro-
vidente e capacitante de Deus. É neste particular – domínio –, que o homem foi bas-
tante aproximado de Deus pelo poder que lhe foi conferido.

Ao homem foi conferido o poder de ir além da matéria, podendo raciocinar, esta-


belecer conexão e visualizar o invisível, concretizar os seus propósitos ou modificá-
los conforme a sua “visão” primeira, etc. “O pensamento e o conhecimento do
homem, apesar de serem extraídos de seu cérebro, são todavia em sua es-
sência uma atividade inteiramente espiritual, pois transcendem aquilo que
29
ele pode ver e tocar”.

Coube ao homem por determinação de Deus, o domínio sobre toda a criação infe-
rior. Em outro lugar escrevemos: “O homem foi coroado como rei da criação
divina; foi-lhe dado domínio sobre todas as criaturas inferiores. Como tal foi
seu dever e privilégio fazer com que toda a natureza e todas as coisas cria-
das colocadas sob seu governo servissem à sua vontade e propósito, para
que ele e todo o seu glorioso domínio, glorificassem o Todo-Poderoso Criador
30
e Senhor do Universo”.

O homem não foi criado como um ser neutro entre o bem e o mal; ele foi formado
bom, santo, como Deus o é de forma absoluta. Daí que, segundo a própria avaliação
do seu Autor, tudo “era muito bom” (Gn 1.31). Ele foi formado em "retidão" e "verda-
31
deira santidade" (Ec 7.29; Ef 4.24; Cl 3.10). A santidade e retidão originais do ho-
mem não significam simplesmente inocência, mas, sim, o desejo inerente de ter
maior comunhão com Deus e agradar-Lhe; havia uma perfeita harmonia entre o seu
ser e a Lei Divina. O homem conhecia e tinha prazer na vontade divina. A santidade
dependia fundamentalmente desta sua comunhão com o Criador. O homem é a
“expressão mais nobre e sumamente admirável de Sua justiça, e sabedoria e
32
bondade”.

Antes de pecar, Adão tinha uma compreensão genuína a respeito de Deus. No


entanto, “após a sua rebelião, ficou privado da verdadeira luz divina, na au-
33
sência da qual nada há senão tremenda escuridão”. O seu conhecimento

29
Herman Bavinck, Teologia Sistemática, Santa Bárbara d’Oeste, SP.: SOCEP., 2001, p. 18.
30
Hermisten M.P. Costa, Reflexões Antropológicas, Campinas, SP., 1979, p. 13. (Trabalho não pu-
blicado).
31
“Eis o que tão-somente achei: que Deus fez o homem reto, mas ele se meteu em muitas
astúcias” (Ec 7.29. “E vos revistais do novo homem, criado segundo Deus, em justiça e reti-
dão procedentes da verdade” (Ef 4.24). “E vos revestistes do novo homem que se refaz para
o pleno conhecimento, segundo a imagem daquele que o criou” (Cl 3.10). Calvino explica as
expressões: "Portanto, por essa palavra, a perfeição de nossa natureza completa é designa-
da, como ela apareceu quando Adão foi dotado de um correto julgamento, tinha afeições
em harmonia com a razão, tinha todos os sentidos sãos e bem regulados, e verdadeiramen-
te excedido em tudo o que é bom” (John Calvin, Commentaries on The First Book of Moses Cal-
led Genesis, Vol. 1, (Gn 1.26), p. 94-95).
32
João Calvino, As Institutas, I.15.1.
33
João Calvino, Efésios, (Ef 4.18), p. 137.
Teologia da Evangelização (5) ‒ Rev. Hermisten ‒ 31/01/2011 ‒ 7

34
tornou-se totalmente nulo quanto à salvação. A queda trouxe sérias consequên-
cias: a morte e a escravidão. “Como a morte espiritual não é outra coisa senão
o estado de alienação em que a alma subsiste em relação a Deus, já nas-
cemos todos mortos, bem como vivemos mortos até que nos tornamos parti-
35
cipantes da vida de Cristo”. O homem perdeu totalmente seu discernimento
espiritual: ele está morto!

Portanto, o grande problema do homem é a sua permanente rebelião contra


36
Deus. Pecado consiste basicamente numa atitude errada para com Deus. “Peca-
do não é tanto uma expressão do que fazemos quanto uma expressão do
37
nosso relacionamento com Deus”, interpreta Lloyd-Jones. A Palavra de Deus
ao povo de Israel permanece como verdade para todos aqueles que ainda se encon-
tram distantes dEle: “Ouvi, ó céus, e dá ouvidos, ó terra, porque o SENHOR é quem
fala: Criei filhos e os engrandeci, mas eles estão revoltados contra mim” (Is 1.2). To-
dos, sem exceção, estão nesta situação, até que conheçam, pela fé, salvadoramen-
te a Cristo. O homem desde a queda encontra-se sob o domínio do pecado e, por
isso mesmo é incapaz de responder positivamente ao chamado externo do Evange-
lho. O pecado corrompeu o intelecto, a vontade e a faculdade moral de toda a raça
humana; por isso, o homem está morto espiritualmente, sendo escravo do pecado
38
(Gn 6.5; 8.21; Is 59.2; Jo 8.34,43,44 Rm 3.9-12,23; Ef 2.1,5; Cl 1.13; 2.13) e, nada

34
“Depois da Queda do primeiro homem, nenhum conhecimento de Deus valeu para a
salvação sem o Mediador” (João Calvino, As Institutas, II.6.1).
35
João Calvino, Efésios, (Ef 2.1), p. 51. “O gênero humano, depois que foi arruinado pela que-
da de Adão, ficou não só privado de um estado tão distinto e honrado, e despojado de seu
primevo domínio, mas está também mantido cativo sob uma degradante e ignomínia es-
cravidão” (João Calvino, O Livro dos Salmos, Vol. 1, (Sl 8.6), p. 171). “O primeiro homem foi cri-
ado por Deus em retidão; em sua queda, porém, arrastou-nos a uma corrupção tão profun-
da, que toda e qualquer luz que lhe foi originalmente concedida ficou totalmente obscure-
cida” (João Calvino, O Livro dos Salmos, Vol. 2, (Sl 62.9), p. 579). “Todos nós estamos perdidos
em Adão” (João Calvino, Efésios, (Ef 1.4), p. 24). “Não teremos uma idéia adequada do do-
mínio do pecado, a menos que nos convençamos dele como algo que se estende a cada
parte da alma, e reconheçamos que tanto a mente quanto o coração humanos se têm tor-
nado completamente corrompidos” (João Calvino, O Livro dos Salmos, Vol. 2, (Sl 51.5), p. 431).
36
“O pecado é antes um poder militante diametralmente oposto à vontade divina e seus
propósitos” (Gustaf Aulén, A Fé Cristã, São Paulo: ASTE., 1965, p. 143).
37
D.M. Lloyd-Jones, O Caminho de Deus, não o nosso, São Paulo: Publicações Evangélicas Selecio-
nadas, 2003, p. 25-26.
38
“Viu o SENHOR que a maldade do homem se havia multiplicado na terra e que era continuamente
mau todo desígnio do seu coração” (Gn 6.5). “.... o SENHOR (...) disse consigo mesmo: Não tornarei
a amaldiçoar a terra por causa do homem, porque é mau o desígnio íntimo do homem desde a sua
mocidade....” (Gn 8.21). “.... as vossas iniquidades fazem separação entre vós e o vosso Deus; e os
vossos pecados encobrem o seu rosto de vós, para que vos não ouça” (Is 59.2). “Replicou-lhes Je-
sus: Em verdade, em verdade vos digo: todo o que comete pecado é escravo do pecado. (...) Qual a
razão por que não compreendeis a minha linguagem? É porque sois incapazes de ouvir a minha pa-
lavra. Vós sois do diabo, que é vosso pai, e quereis satisfazer-lhe os desejos. Ele foi homicida desde
o princípio e jamais se firmou na verdade, porque nele não há verdade. Quando ele profere mentira,
fala do que lhe é próprio, porque é mentiroso e pai da mentira” (Jo 8.34,43,44). “Que se conclui? Te-
mos nós qualquer vantagem? Não, de forma nenhuma; pois já temos demonstrado que todos, tanto
judeus como gregos, estão debaixo do pecado; como está escrito: Não há justo, nem um sequer, não
há quem entenda, não há quem busque a Deus; todos se extraviaram, à uma se fizeram inúteis; não
há quem faça o bem, não há nem um sequer” (Rm 3.9-12). “.... todos pecaram e carecem da glória de
Teologia da Evangelização (5) ‒ Rev. Hermisten ‒ 31/01/2011 ‒ 8

pode fazer – e na realidade nem sequer deseja – para retornar à comunhão perdida.
Como disse o Senhor Jesus Cristo: “Em verdade, em verdade vos digo: todo o que
comete pecado é escravo do pecado”. (Jo 8.34) (Vejam-se: Is 64.6; Rm 6.6). Agora
“O homem peca com o consentimento de uma vontade pronta e dispos-
39
ta”. A depravação total é justamente isto: a contaminação de todas as nossas fa-
culdades pelo pecado. Perdemos totalmente a nossa capacidade de percepção espi-
ritual. As cousas de Deus soam como loucura (1Co 1.18-21; 2.6-8; 12-16). A nossa
lógica tão hábil para desvendar os mistérios do saber e desmantelar sofismas, se
mostra totalmente inadequada e incapaz para perceber a realidade da Palavra que
nos fala de Deus e do que somos. “O intelecto do homem está de fato cega-
do, envolto em infinitos erros e sempre contrário à sabedoria de Deus; a von-
tade, má e cheia de afeições corruptas, odeia a justiça de Deus; e a força fí-
40
sica, incapaz de boas obras, tende furiosamente à iniquidade”.

Ainda que o homem não seja absolutamente mau − não é tão mau quanto poderia
41
−, é extensivamente mau; todo o seu ser está contaminado pelo pecado. O pecado
nos domina completamente. Na linguagem do profeta Isaías, “toda a cabeça está
doente e todo o coração enfermo. Desde a planta do pé até à cabeça não há nele
cousa sã, são feridas, contusões e chagas inflamadas, umas e outras não espremi-
das, nem atadas, nem amolecidas com óleo” (Is 1.5-6). “Não teremos uma ideia
adequada do domínio do pecado, a menos que nos convençamos dele
como algo que se estende a cada parte da alma, e reconheçamos que
tanto a mente quanto o coração humanos se têm tornado completamente
42
corrompidos”.

Calvino, interpretando Rm 8.7, diz:

Deus” (Rm 3.23). “Ele vos deu vida, estando vós mortos nos vossos delitos e pecados, nos quais an-
dastes outrora, segundo o curso deste mundo, segundo o príncipe da potestade do ar, do espírito que
agora atua nos filhos da desobediência; (...) e estando nós mortos em nossos delitos, nos deu vida
juntamente com Cristo, —pela graça sois salvos” (Ef 2.1,5). “Ele nos libertou do império das trevas e
nos transportou para o reino do Filho do seu amor (...). E a vós outros, que estáveis mortos pelas
vossas transgressões e pela incircuncisão da vossa carne, vos deu vida juntamente com ele, perdo-
ando todos os nossos delitos” (Cl 1.13; 2.13).
39
João Calvino, Instrução na Fé, Goiânia, GO: Logos Editora, 2003, Cap. 5, p. 16.
40
João Calvino, Instrução na Fé, Cap. 4, p. 15.
41
"Lembremo-nos de que nossa ruína se deve imputar à depravação de nossa natureza,
não à natureza em si, em sua condição original, para que não lhe lancemos a acusação
contra o próprio Deus, autor dessa natureza" (J. Calvino, As Institutas, II.1.10). Vejam-se: Confis-
são de Westminster, VI.2; IX.3; Catecismo Menor de Westminster, Questão 18; Catecismo de Heidel-
berg, Questões 5 e 7; Cânones de Dort, III e IV; L. Berkhof, Teologia Sistemática, Campinas, SP.: Luz
para o Caminho, 1990, p. 248; W.J. Seaton, Os Cinco Pontos do Calvinismo, São Paulo: Publicações
Evangélicas Selecionadas, (s.d.), p. 6-7; Duane E. Spencer, TULIP: Os Cinco Pontos do Calvinismo à
Luz das Escrituras, São Paulo: Casa Editora Presbiteriana, 1992, p. 39; L. Boettner, La Predestinaci-
ón, Grand Rapids, Michigan: SLC. (s.d.), p. 55-73; A.W. Pink, Deus é Soberano, São Paulo: Fiel,
1977, p.101-119; Edwin H. Palmer, Doctrinas Claves, Carlisle, Pennsylvania: El Estandarte de la Ver-
dad, 1976, p. 11-36; A.A. Hodge, Esboços de Theologia, Lisboa: Barata & Sanches, 1895, Cap. XX,
p. 312-321; John L. Dagg, Manual de Teologia, São Paulo: Fiel, 1989, p. 126-130.
42
João Calvino, O Livro dos Salmos, Vol. 2, (Sl 51.5), p. 431. Do mesmo modo MacArthur: “A de-
pravação (...) significa que o mal contaminou cada aspecto da humanidade – coração,
mente, personalidade, emoções, consciência, razões e vontade (Cf. Jr 17.9; Jo 8.44)” (John
MacArthur Jr., Sociedade sem Pecado, São Paulo: Editora Cultura Cristã, 2002, p. 81).
Teologia da Evangelização (5) ‒ Rev. Hermisten ‒ 31/01/2011 ‒ 9

“....nada, senão a morte, procede dos labores de nossa carne, visto que
os mesmos são hostis à vontade de Deus. Ora, a vontade de Deus é a
norma da justiça. Segue-se que tudo quanto seja contrário a ela é injusto;
e se é injusto, também traz, ao mesmo tempo, a morte. Contemplamos a
vida em vão, caso Deus nos seja contrário e hostil, pois a morte, que é a
vingança da ira divina, deve necessariamente seguir de imediato a ira di-
vina.
“Observemos aqui que a vontade humana é em todos os aspectos o-
posta à vontade divina, pois assim como há uma grande diferença entre
43
nós e Deus, também deve haver entre a depravação e a retidão”.
44
O homem foi criado essencialmente como ser social. O pecado alienou-nos de
45
Deus e de nosso semelhante. Assim, o pecado, de certa forma, desumanizou-nos.
A Queda trouxe consequências desastrosas à imagem de Deus refletida no homem.
Após a queda, mesmo o homem não regenerado continua sendo imagem e seme-
lhança de Deus (aspecto metafísico): Apesar de o pecado ter sido devastador para o
46
homem, Deus não apagou a sua “imagem”, ainda que a tenha corrompida, alie-
nando-o de Deus. O pecado trouxe como implicação a perda do aspecto ético da
47 48
imagem de Deus. A nossa vontade, como agente de nosso intelecto, agora, é

43
João Calvino, Exposição de Romanos, (Rm 8.7), p. 266-267.
44
“O homem foi formado para ser um animal social” (John Calvin, Commentaries on The First
Book of Moses Called Genesis, Grand Rapids, Michigan: Baker Book House, 1981 (Reprinted), Vol. I,
(Gn 2.18), p. 128). Em outro lugar: “O homem é um animal social de natureza, consequente-
mente, propende por instinto natural a promover e conservar esta sociedade e, por isso, ob-
servamos que existem na mente de todos os homens impressões universais não só de uma
certa probidade, como também de uma ordem civil” (João Calvino, As Institutas, II.2.13).
45
“Pelo pecado estamos alienados de Deus” (João Calvino, Efésios, (Ef 1.9), p. 32); “Tão logo
Adão alienou-se de Deus em consequência de seu pecado, foi ele imediatamente despo-
jado de todas as coisas boas que recebera” (João Calvino, Exposição de Hebreus, São Paulo:
Paracletos, 1997, (Hb 2.5), p. 57). “Como a vida espiritual de Adão era o permanecer unido e
ligado a seu Criador, assim também o dEle alienar-se foi-lhe a morte da alma” (João Calvino,
As Institutas, II.1.5).
46
Vejam-se: João Calvino, As Institutas, I.15.4; II.1.5; Juan Calvino, Breve Instruccion Cristiana, Bar-
celona: Fundación Editorial de Literatura Reformada, 1966, p. 13; João Calvino, Efésios, (Ef 4.24), p.
142; João Calvino, O Livro dos Salmos, Vol. 1, (Sl 8.5), p. 169; Vol. 2, (Sl 62.9), p. 579.
47
Vejam-se: João Calvino, O Livro dos Salmos, Vol. 2, (Sl 51.5), p. 431-432. John Calvin, Commen-
taries on the Epistle of James, Grand Rapids, Michigan: Baker Book House Company, 1996, (Calvin's
Commentaries, Vol. XXII), (Tg 3.9) p. 323; As Institutas, I.15.8; II.2.26,27.
48
Ver: James M. Boice, O Evangelho da Graça, São Paulo: Cultura Cristã, 2003, p. 111. Agostinho
(354-430), comentando o Salmo 148, faz uma analogia muito interessante: “Como nossos ouvidos
captam nossas palavras, os ouvidos de Deus captam nossos pensamentos. Não é possível
agir mal quem tem bons pensamentos. Pois as ações procedem do pensamento. Ninguém
pode fazer alguma coisa, ou mover os membros para fazer algo, se primeiro não preceder
uma ordem de seu pensamento, como do interior do palácio, qualquer coisa que o impe-
rador ordenar, emana para todo o império romano; tudo o que se realiza através das pro-
víncias. Quanto movimento se faz somente a uma ordem do imperador, sentado lá dentro?
Ao falar, ele move somente os lábios; mas move-se toda a província, ao se executar o que
ele fala. Assim também em cada homem, o imperador acha-se no seu íntimo, senta-se em
seu coração; se é bem e ordena coisas boas, elas se fazem; se é mau, e ordena o mal, o
Teologia da Evangelização (5) ‒ Rev. Hermisten ‒ 31/01/2011 ‒ 10

oposta à vontade de Deus: “Observemos aqui que a vontade humana é em


todos os aspectos oposta à vontade divina, pois assim como há uma grande
diferença entre nós e Deus, também deve haver entre a depravação e a re-
49
tidão”. A imagem que agora refletimos estampa mais propriamente o caráter de
50
Satanás.

Deus faz uma analogia extremamente forte para ilustrar a nossa situação. Ele to-
ma dois animais difíceis de trato: o boi e o jumento. Mostra que a obtusidade, a tei-
mosia e a dificuldade de condução destes animais dão-se pela sua própria natureza;
no entanto, assim mesmo, eles sabem reconhecer os seus donos, aqueles que lhes
alimentam. O homem, por sua vez, como coroa da criação, cedendo ao pecado per-
deu totalmente o seu discernimento espiritual; já não reconhecemos nem mesmo o
51
nosso Criador; antes lhe voltamos as costas e prosseguimos em outra direção: “O
boi conhece o seu possuidor, e o jumento, o dono da sua manjedoura; mas Israel
não tem conhecimento, o meu povo não entende. Ai desta nação pecaminosa, povo
carregado de iniquidade, raça de malignos, filhos corruptores; abandonaram o SE-
NHOR, blasfemaram do Santo de Israel, voltaram para trás” (Is 1.3-4).

2) Desconsideração da Santidade de Deus revelada na Cruz:

Devido à depravação de nossa natureza, todos pecamos e somos res-


ponsáveis diante de Deus; a proximidade de Deus nos faz mais sensíveis a isto; a
contemplação da Sua gloriosa santidade realça de forma eloquente a gravidade de
52
nosso pecado. Diversos servos de Deus ilustram este fato: Pedro, após pesca ma-
ravilhosa, registra Lucas, “prostrou-se aos pés de Jesus, dizendo: Senhor, retira-te
de mim, porque sou pecador” (Lc 5.8). Paulo, o apóstolo de Cristo, que tinha uma vi-
são correta da glória de Deus e da sua dimensão espiritual, escreve: “....Cristo veio
ao mundo para salvar os pecadores, dos quais eu sou o principal” (1Tm 1.15). Esta
experiência foi comum também a Moisés, Jó, Isaías, Ezequiel, Daniel e João (Ve-
jam-se: Ex 3.6; Jó 42.5-6; Is 6.1-5; Ez 1.28; Dn 10.9; Ap 1.17). O fato é que jamais
poderemos ser santos sem que antes e durante, tenhamos a consciência de nosso
pecado. De modo enfático assevera Lloyd-Jones (1899-1981): “Nunca houve um
santo sobre a face da terra que não tenha visto a si mesmo como um vil pe-
cador; de modo que se você não sente que é um vil pecador, não é pare-

mal se faz” (Agostinho, Comentário aos Salmos, São Paulo: Paulus, (Patrística, 9/3), 1998, Vol. III,
(Sl 148.1-2), p. 1126-1127).
49
João Calvino, Exposição de Romanos, São Paulo: Paracletos, 1997, (Rm 8.7), p. 266-267.
50
“Moral e espiritualmente, o caráter do homem estampa a imagem de Satanás, e não a
de Deus. Ora, é precisamente isso o que a Bíblia quer dizer quando fala sobre o homem caí-
do no pecado como ‘filho do diabo’. (Jo 8.44; Mt 13.38; At 13.10 e 1Jo 3.8)” (J.I. Packer, Vo-
cábulos de Deus, p. 67).
51
Lloyd-Jones explora com vivacidade a analogia do texto. Veja-se: D.M. Lloyd-Jones, O Caminho de
Deus, não o nosso, p. 43-46.
52
Ver: Hermisten M.P. Costa, O Pai Nosso, São Paulo: Cultura Cristã, 2001; J.I. Packer, Vocábulos
de Deus, p. 63-64.
Teologia da Evangelização (5) ‒ Rev. Hermisten ‒ 31/01/2011 ‒ 11

53
cido com os santos”. No entanto, como o nosso conhecimento de Deus é menor
do que estes homens tiveram, a nossa consciência do pecado também é diminuta. A
contemplação da santidade de Deus ilumina as nossas trevas, mostrando-nos como
realmente somos e o quanto necessitamos de Deus.

A santidade absoluta de Deus se revela na cruz, onde o seu amor e a sua justiça
54
se evidenciam de forma eloquente e perfeita. A cruz enfatiza o Deus santo e ma-
jestoso, zeloso por sua glória. A cruz não fez Deus nos amar, antes, o Seu amor por
55
nós a produziu e se revelou ali.

Enquanto para nós as circunstâncias servem de pretexto para os nossos atos pe-
caminosos e os posteriores atenuantes, para Deus tais circunstâncias – sobre as
quais tem total domínio: Ele também é o Senhor das circunstâncias – oportunizam a
manifestação do que Ele é em Sua essência. O pecado não tornou Deus misericor-
dioso, santo ou justo; Ele é eternamente misericordioso, santo e justo. No entanto, o
pecado propiciou a Deus, por sua livre graça, revelar-se desta forma para conosco.
Na cruz vemos a manifestação gloriosa dos atributos de Deus. “A justiça e o amor
se encontraram e se abraçaram. Os santos atributos de Deus são glorificados
56
juntamente na morte do Filho de Deus na cruz”. Não haveria para nenhum de
nós salvação de nossos pecados sem a justificação. Da mesma forma, existe a justi-
ficação porque Jesus Cristo é a nossa justiça; é Ele mesmo quem nos redime (1Co
57
1.30). Como escreveu Lloyd-Jones (1899-1981): “Se lhes fosse solicitado res-
ponder onde a Bíblia ensina a santidade de Deus mais poderosamente teri-
am de ir ao Calvário. Deus é tão santo, tão plenamente santo, que nada se-
não aquela morte terrível poderia tornar possível que Ele nos perdoasse. A
cruz é a suprema e a mais sublime declaração e revelação da santidade de
58
Deus”. Na cruz temos a reconciliação do santo com o pecador, do perfeitamente

53
David M. Lloyd-Jones, O Clamor de um Desviado: Estudos sobre o Salmo 51, São Paulo: Publica-
ções Evangélicas Selecionadas, 1997, p. 40.
54
“A cruz e a coroa revelam não apenas as virtudes do Filho, mas também do Pai. Todos os
atributos divinos alcançam plena expressão aqui. Dentre todas elas, uma sobressai: a justiça
do Pai. Se Ele não tivesse sido justo, certamente não teria entregue Seu Filho Unigênito. E
também, se não fosse justo, Ele não teria recompensado o Filho por Seu sofrimento. Mais, por
meio dos louvores da multidão salva, o Pai (bem como o Filho) é glorificado” (William Hen-
driksen, O Evangelho de João, São Paulo: Cultura Cristã, 2004 (Jo 17.1), p. 754). “A cruz se levanta
como testemunho da infinita dignidade de Deus e o infinito ultraje do pecado” (John Piper, A
Supremacia de Deus na Pregação, São Paulo: Shedd Publicações, 2003, p. 31).
55
Veja-se: D.M. Lloyd-Jones, Deus o Pai, Deus o Filho, São Paulo: Publicações Evangélicas Selecio-
nadas, 1997 (Grandes Doutrinas Bíblicas, Vol. 1), p. 426.
56
David Martyn Lloyd-Jones, Uma Nação sob a Ira de Deus: estudos em Isaías 5, 2ª ed. Rio de Ja-
neiro: Textus, 2004, p. 222.
57
Ver: John Murray, Redenção: Consumada e Aplicada, São Paulo: Editora Cultura Cristã, 1993, p.
19.
58
D. M. Lloyd-Jones, Deus o Pai, Deus o Filho, São Paulo: Publicações Evangélicas Selecionadas,
1997, p. 97. “A santidade e a retidão do Seu ser eterno e do Seu caráter significam que Ele
não pode ignorar o pecado. O pecado é uma realidade, um problema (...) até para Deus. É
uma coisa que Ele vê e da qual tem que tratar, e assim manifesta a glória do Seu ser em Sua
santidade e justiça” (D.M Lloyd-Jones, Salvos desde a Eternidade, São Paulo: Publicações Evan-
gélicas Selecionadas, 2005 (Certeza Espiritual: Vol. 1), p. 51).
Teologia da Evangelização (5) ‒ Rev. Hermisten ‒ 31/01/2011 ‒ 12

justo com o totalmente injusto, do infinito com o finito; do Deus eterno com o homem
temporal: “A cruz é o centro da história e a reconciliação de todas as antíte-
59
ses”. Isaías diz que “Todos nós andávamos desgarrados como ovelhas; cada um
se desviava pelo caminho, mas o SENHOR fez cair sobre ele (Jesus Cristo) a iniqui-
dade de nós todos” (Is 53.6).

3) A Cruz realça a justiça gloriosa de Deus e o Seu invencível amor:

O pecado fala de nossa condenação e, portanto, da nossa necessidade


de salvação. A cruz revela este fato e, de forma gloriosa, nos mostra o caráter santo
e justo de Deus. Sem a justiça de Deus não haveria condenação para os nossos pe-
cados. “Se Deus perdoasse o pecado sem contudo ministrar sua justiça, dei-
xaria de ser Deus. A maravilha deste plano é que Deus, ao colocar os nossos
pecados sobre Cristo e ao tratar deles punindo-os em Cristo, pode perdoar-
60
nos e ainda ser justo. Ele puniu o pecado, não o esqueceu, não o ignorou”.
Jamais poderemos entender o sentido da grandiosidade do perdão concedido por
61
Deus sem a percepção adequada da nossa ofensa ao Deus Santo. O perdão
sempre parecerá pequeno àquele que tem a fala percepção de ser pequena a sua
dívida e uma grandiosa visão de suas potencialidades. “Somente aquele que co-
nhece a grandeza da ira será dominado pela magnitude da misericórdia. Do
mesmo modo é verdade: Somente aquele que experimentou a magnitude
62
da misericórdia pode mensurar de quão grande ira somos devedores”.

A certeza do perdão gratuito de Deus não deve nos levar a barateá-lo. Pense na
gravidade do seu pecado e na obra vicária de Cristo. Sem o derramamento do san-
gue do Cordeiro, não haveria remissão de pecados: todos pereceríamos. Calvino
acentua: “Jamais aplicaremos seriamente o perdão divino, enquanto não ti-
63
vermos obtido uma visão tal de nossos pecados, que nos inspire terror”.

John Stott coloca este ponto em cores vivas:

“Quando (...) tivermos um vislumbre da deslumbrante glória da santida-


de divina, e formos convencidos de nosso pecado pelo Espírito Santo de
tal modo que tremamos na presença de Deus e reconheçamos o que so-
mos, a saber, pecadores que merecem ir para o inferno, então, e somente

59
Herman Bavinck, Teologia Sistemática, Santa Bárbara D’Oeste, SP.: SOCEP., 2001, p. 48.
60
D.M Lloyd-Jones, Salvos desde a Eternidade, São Paulo: Publicações Evangélicas Selecionadas,
2005 (Certeza Espiritual: Vol. 1), p. 53. Veja-se também as páginas 105-106; William Hendriksen, O
Evangelho de João, São Paulo: Cultura Cristã, 2004 (Jo 17.1), p. 754.
61
Vejam-se: A. Booth, Somente pela Graça, São Paulo: Publicações Evangélicas Selecionadas,
1986, p. 15, 31; J.I. Packer, O Conhecimento de Deus, São Paulo: Mundo Cristão, 1980, p. 121; Ja-
mes M. Boice, O Evangelho da Graça, p. 106.
62
Gustav Stählin, o)rgh/, etc.: In: G. Kittel; G. Friedrich, eds. Theological Dictionary of the New Testa-
ment, Grand Rapids, Michigan: Eerdmans, 1983 (Reprinted), Vol. V, p. 425. Vd. também: John Mur-
ray, Redenção: Consumada e Aplicada, p. 20-21.
63
João Calvino, O Livro dos Salmos, Vol. 2, (Sl 51.3), p. 424.
Teologia da Evangelização (5) ‒ Rev. Hermisten ‒ 31/01/2011 ‒ 13

então a necessidade da cruz ficará tão óbvia que nos espantaremos de


jamais tê-la visto antes.
“O pano de fundo essencial da cruz, portanto, é uma compreensão
equilibrada da gravidade do pecado e da majestade de Deus. Se diminu-
64
irmos uma delas, diminuímos a cruz”.

A Trindade bendita em Seu amor e santidade provê a salvação do pecador propi-


ciando a paz: “A cruz trouxe a paz, embora não houvesse paz na cruz. Foi
uma cena caótica, mas a cruz proporcionou a justiça que, por si só, traz a
65
paz verdadeira”. A cruz revela a grandeza de nossa dívida, a santidade de Deus
e o Seu infinito amor. Portanto, quanto ao passado podemos nos enternecer em a-
ção de graças pela misericórdia de Deus; quanto ao presente devemos firmar em
Cristo a nossa fé em resposta ao Seu amor incomensurável; quanto ao futuro deve-
mos descansar confiantes em Sua providência.

Paulo, considerando a bendita realidade da obra do Trino Deus, manifesta-se em


ação de graças: “Graça a vós outros e paz, da parte de Deus, nosso Pai, e do nosso
Senhor Jesus Cristo, o qual se entregou a si mesmo pelos nossos pecados, para
nos desarraigar deste mundo perverso, segundo a vontade de nosso Deus e Pai, a
quem seja a glória pelos séculos dos séculos. Amém!” (Gl 1.3-5).

D) A AÇÃO DA IGREJA:

Portanto, todo o labor evangelístico da Igreja se ampara neste pressupos-


to fundamental: Todos os homens pecaram, distanciando-se de Deus, o Seu Cria-
dor, em Quem somente há vida. A Igreja anuncia o Evangelho sabendo que o ho-
mem nada pode fazer para voltar à vida; todos estão mortos em seus delitos e pe-
cados (Ef 2.1,5). Lloyd-Jones está correto ao declarar que “.... é completamente
antiescriturístico favorecer qualquer tipo de evangelização que negligencie
66
a doutrina sobre o pecado”. A cruz fornece o fundamento de pregação. Não há
pregação sem a conscientização da gravidade do pecado e da redenção definitiva
por meio de Cristo, o Deus eterno, na cruz.

A Igreja evangeliza consciente de que o pecado envolve de forma terrível e de-


sumanizante toda a raça humana; ela sabe que a cura para o homem não está nele
mesmo, mas, em Jesus Cristo, Aquele que restaura a nossa verdadeira humanida-
de. Somente o Deus Criador pode restaurar definitivamente as Suas criaturas; Ele
se dispôs a isso por meio de Seu Filho amado que deu a sua vida pelo Seu Povo (Jo

64
John R.W. Stott, A Cruz de Cristo, Florida: Editora Vida, 1991, p. 99. “Quando a percepção
que temos de Deus e do homem, da santidade e do pecado, é tortuosa, então nossa com-
preensão da expiação provavelmente também será tortuosa” (John R.W. Stott, A Cruz de
Cristo, p. 78). “A revelação do inferno na Escritura pressupõe uma profundidade de discerni-
mento da santidade divina e da pecaminosidade humana e demoníaca que a maioria de
nós não tem” (J.I. Packer, Teologia Concisa, São Paulo: Editora Cultura Cristã, 1999, p. 238).
65
John MacArthur Jr., O Caminho da Felicidade, São Paulo: Cultura Cristã, 2001, p. 157.
66
D.M. Lloyd-Jones, Santificados Mediante a Verdade, São Paulo: Publicações Evangélicas Selecio-
nadas (Certeza Espiritual, Vol. 3), 2006, p. 115.
Teologia da Evangelização (5) ‒ Rev. Hermisten ‒ 31/01/2011 ‒ 14

3.16), cofiando esta mensagem à Igreja, que proclama o Evangelho do Poder de


Deus (Rm 1.16), reivindicando que todos os homens se arrependam de seus peca-
dos e, por graça, tornem-se para Deus. “Ora, tudo provém de Deus, que nos recon-
ciliou consigo mesmo por meio de Cristo e nos deu o ministério da reconciliação, a
saber, que Deus estava em Cristo reconciliando consigo o mundo, não imputando
aos homens as suas transgressões, e nos confiou a palavra da reconciliação. De
sorte que somos embaixadores em nome de Cristo, como se Deus exortasse por
nosso intermédio. Em nome de Cristo, pois, rogamos que vos reconcilieis com Deus.
Aquele que não conheceu pecado, ele o fez pecado por nós; para que, nele, fôsse-
mos feitos justiça de Deus. E nós, na qualidade de cooperadores com ele, também
vos exortamos a que não recebais em vão a graça de Deus (porque ele diz: Eu te
ouvi no tempo da oportunidade e te socorri no dia da salvação; eis, agora, o tempo
sobremodo oportuno, eis, agora, o dia da salvação) (2Co 5.18-6.2).

Maringá, 22 de janeiro de 2011.


Rev. Hermisten Maia Pereira da Costa

Você também pode gostar