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FREUD, O PASSADO E AS PULSÕES

Caio César Costa Santos1

Na relação ordinária cotidiana, é comum um conjunto de pessoas rejeitar o seu


passado. Muitos dizem (e aí está a maioria), que “quem vive de passado é museu”.
Percebemos, enquanto cientistas ou aspirantes a cientistas o quanto este pensamento soa
despropositadamente infeliz. Vemos ainda como a sociedade em sua totalidade mergulha em
um “oceano de profundezas” sem mesmo conseguir enxergar a sua profundidade enquanto
humano. A base de tudo, de toda civilização preponderantemente escolarizada está no
fundamento último das coisas, na revelação do mundo cognoscível aos seus olhos. Mas o
quê da questão é que a grande maioria das pessoas preferem viver exclusivamente do
presente, deve ser porque o “agora” é a única instância que elas, as pessoas, conseguem
internalizar para si mesmas, como se elas fossem capazes apenas de racionalizar o dado
imediato, o que é apenas perceptível motoramente ou sensorialmente.
Elas não conseguem transgredir este espaço imediato e atingir um grau a mais de
elevação, neste caso, espiritual. Se o passado, como elas dizem, é um museu, então, tudo
que lá está estocado não pode ser mais removido, mexido, alterado, como se o passado fosse
uma bolha que a cada vez fica maior com o seu processo meramente de conservação. É fato
que se o passado só servisse para conservar coisas, estados e momentos, obviamente, nos
tornaríamos loucos e incapacitados do trabalho de reflexão. Outros ainda afirmam que o
“passado já morreu”. Dizendo com outras palavras, como se o passado não existisse mais,
ficasse lá atrás e pelo fato de não ser “perceptível imediatamente”, ele é relegado a segundo
plano ou infelizmente inexiste.
O fato é que felizmente não é assim que acontece. Mesmo assim, é triste e
lamentável ver pessoas negando e, ao mesmo tempo, abandonando o seu passado. Talvez,
este seja este um dos motivos de que as pessoas atualmente não acreditam mais em sessões
com psicanalistas, já que o objeto de análise destes é a massa ontologicamente virtual do
passado. Se negam o passado, negam as suas origens, o seu nascimento, as suas memórias, a
sua subjetividade; negam, portanto, quem elas são de fato. Freud, mais do que nunca,
desencavou o passado, trouxe à luz a sua extraordinariedade, tornou-o vivo, translúcido e

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Mestre em Letras pela Universidade Federal de Sergipe. E-mail: caio-costa@live.com
real. Percebeu que havia alguma coisa de extraordinariamente importante no nosso passado.
Que “ali” subexiste a face oculta de nós mesmos e precisávamos conhecê-la.
Conhecendo esta outra face, nos tornamos mais experientes e mais saudáveis. Nós
evoluímos e o ciclo de constante evolução não cessa, enquanto nos mantermos vivos. É
como o tempo, o tempo não para, ele está ali, aí, aqui, vivo e palpitante como nossas
pulsões. Freud percebeu que não haveria outra instância “analisável” a não ser o nosso
passado. Ali residem todas as nossas fraquezas, angústias, decepções, patologias, etc. É bem
verdade que o nosso passado é traumático, porque diariamente experienciamos forças
contrárias que se conflituam, que se dissipam e que acabam trazendo, no fim, alguma
resposta para nosso eu mais íntimo. Aprendemos também com o nosso sofrimento. Quem
nunca sofreu alguma perda de um objeto essencial em sua vida, por exemplo? Quem nunca
teve pais conflituosos? Quem nunca teve uma boa educação?
Tudo isso coverbera em nosso instinto emocional para as coisas do mundo. O estado
atual de nosso eu não é o mesmo no agora, ele muda incessantemente. Nós somos um
“mundo” dentro de nós mesmos. Ou melhor, nós somos vários “mundos” em um só eu.
Freud percebeu que estudar tão somente o funcionamento do sistema nervoso das enguias
ou dos peixes não era tão essencial e maravilhoso quanto estudar a psique humana. Certo
que ele queria entender com mais afinco a fisiologia do sistema nervoso destes animais que,
com certeza, lhe trariam um bom fundamento sobre a concepção anatômica do cérebro.
Mas, de qualquer forma, é a psique humana que Freud se entrega totalmente no seu fazer. É
à psique humana que ele escolhe, dentre os demais dispositivos, para compreender o lado
sombrio, selvagem e misterioso do homem.
De certa forma, ele escolheu um campo muito mais complexo que a anatomia dos
peixes. Compreender o homem é tão complexo quanto compreender o funcionamento do
Universo e suas galáxias. Porque, no homem, reside um outro “universo”, o da mentalidade,
da racionalidade, do modo de pensar as coisas do mundo e de dar significado a elas. A cada
novo significado ou a cada nova descoberta do eu, uma nova janela se abre, ou seja, um
novo mundo está prestes a ganhar um novo sentido, uma nova atmosfera, um novo diálogo.
Ao contrário do senso comum e da ignorância humana exorbitante, devemos sempre
retroceder ao passado, vivificá-lo, torná-lo transparente, discernível, embora ele seja,
algumas vezes, extremamente opaco e invisível, mas devemos nos projetar para o passado,
“apontar” para ele, ressignificá-lo.
Afinal, não nos resta tão somente o presente, no presente a consciência se apresenta,
mas é na recordação do passado que tudo se torna transparente aos nosso olhos e às nossas
percepções. Toda percepção retém um passado característico, todo ato de agir é formado por
uma porção prévia do passado que ficou lá atrás. Devemos ser também nós mesmos
analistas do nosso passado. Afinal, segundo Bergson, o que vivenciamos é o
presente-passado, deste mesmo jeito, “agarrados”, intrínsecos, não tem como separá-los. E
é, portanto, sob esta ótica, que Freud vê o passado, como a origem de nossos sintomas, de
nossas angústias, de nossos desejos, aspirações, etc.
Devemos, então, sempre retornar, remeter-se, recuperar e só depois agir sob o
presente. Porque o futuro nada mais é do que a compreensão do nosso passado junto à
consciência do nosso presente. E é somente neste movimento retrospectivo que poderemos
entender um pouco de nós mesmos. Então, quem vive de passado não é museu, ao contrário,
quem vive de passado é todo mundo, mesmo que você não queira, É, portanto, inevitável a
existência do passado em nossas vidas.

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