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2021
Editorial
Após décadas, os leitores brasileiros de Marcel
Proust e do romance Em busca do tempo perdido con-
tam novamente com um veículo para a divulgação
de suas atividades, reflexões e estudos. No marco dos
150 anos do autor e às vésperas do centenário de sua
morte, pesquisadores e amantes da obra trazem ao
público Intermitências, a revista brasileira de estudos
proustianos. Em suas páginas, imprimimos uma única
ambição: manter vivo o conhecido entusiasmo das le-
tras brasileiras por Proust e instigar um número cada
vez maior de leitores lusófonos a partirem em busca do
tempo perdido.
Há muito se repete que a primeira tradução da Re-
cherche em língua portuguesa é brasileira, que ela data
do final dos anos 40 e que seu projeto reuniu o crème
de la crème de nossa primeira geração modernista. O
que pouco se diz é que essa versão da editora Globo
coincide com a publicação de várias revistas em ho-
menagem a Proust. O volume 4 da Revista Branca, o
volume 5 de Nordeste e — caso mais importante — a Proustiana Brasileira, editada por Saldanha Coelho com
a colaboração de nomes cuja relevância dispensa comentários: Otto Maria Carpeaux, Sergio Buarque de Ho-
landa, Lúcia Miguel Pereira, Tristão de Athayde, Augusto Meyer, dentre outros. Hoje, as traduções brasileiras
de Em busca do tempo perdido já são três, mas seus meios de divulgação não acompanharam o mesmo ritmo.
Intermitências vem preencher esse longo hiato e deseja cultivar sua longevidade.
A revista conta com oito seções. Nosso Salão trará entrevistas com notáveis proustianos. Nesta edição inau-
gural, entrevistamos o professor Philippe Willemart, criador do mais antigo grupo de pesquisa de Proust da
universidade brasileira e um dos primeiros introdutores dos estudos em crítica genética em nosso país. Em
Retrato, o leitor encontrará perfis de leitores e estudiosos cujo trabalho de excelência contribuiu para uma me-
lhor difusão e compreensão da obra de Proust. Dessa vez, não resistimos a um Retrato duplo: Luciana Persice
pinta os traços da carreira de Bernard de Fallois, primeiro depositário dos cadernos de manuscritos de Proust,
e no segundo, recuperamos a figura de um dos proustianos brasileiros mais entusiasmados, o professor Her-
menegildo de Sá Cavalcante. Abrimos espaço à academia com nosso Dossiê, cujo tema neste ano é Proust no
Brasil. Maria Marta Laus Pereira debruça-se sobre a Proustiana Brasileira de que tratávamos há pouco; Paulo
Bungart Neto analisa as aproximações entre a obra memorialística de Augusto Meyer e o romance proustiano;
Etienne Sauthier estuda a importância de Jorge de Lima para a difusão da obra de Proust no Brasil e a dupla
Luiz Ribeiro e Amílcar Bezerra analisam a presença de Proust nas composições do músico pernambucano
Carlos Fernando.
Como prega a tradição das revistas críticas, Intermitências também conta com uma seção Vária, onde cole-
cionamos artigos sobre os temas, questões e aspectos os mais diversos da obra de Marcel Proust. Leda Tenório
da Motta, nesse que também é o bicentenário de Charles Baudelaire, publica um trabalho sobre a presença
velada do poeta pelas linhas da Recherche; Jonas Martini reflete sobre as nuances do real e do imaginário na
elaboração da fictícia Combray; Paulo Gustavo aponta algumas comparações entre Proust e o moralista Jou-
bert; Tarik Vivan Alexandre discute o poder do Tempo (maiúsculo) de Proust no encantamento de objetos
da memória; e Mário Barreto apresenta os destinatários das dedicatórias dos volumes de Em busca do tempo
perdido.
Textos de Proust jamais publicados no Brasil ganharão vida lusófona na seção Tradução. Alexandre Bebia-
no de Almeida, da Universidade de São Paulo, traduziu a pedido de Intermitências três cartas nas quais Proust
aborda a cena de Montjouvain e os temas do sadismo e da homossexualidade. Luciana Persice nos traz uma
versão de “Classicismo e romantimo”, carta que foi publicada como resposta a Émile Henriot, que lhe pergun-
tava se toda arte verdadeira é uma arte clássica. Também Mario Sergio Conti e Rosa Freire d’Aguiar oferecem
gentilmente excertos de sua nova tradução da Recherche, que será publicada muito em breve pela editora
Companhia das Letras. Essa é a primeira vez que Rosa traz ao público alguma passagem de seu projeto de tra-
dução. Por último, para sermos mais precisos, publicamos não uma tradução, mas, sim, uma versão: Etienne
Sauthier nos apresenta a primeira edição em francês do importante artigo de Tadeu Rocha sobre Henri Ro-
chat, O último “prisioneiro” de Proust, publicado originalmente no volume deste ano dos Cahiers de l’Herne.
Intermitências conta ainda com três pequenas seções. Em Proust pelo mundo, trataremos da recepção e
circulação da Recherche em outros sistemas literários. Neste volume, Frederico DeNez escreve o curioso (e du-
radouro) caso da tradução de Proust para o árabe, entre 1977 e 2006. Em Testemunhos, reuniremos histórias
daqueles que, como disse Manuel Bandeira em crônica de 1930, tentaram ler Proust reiteradas vezes antes de
lograr ingressar e compreender o universo da Recherche. Conheceremos aqui os depoimentos de Viridiana
Bueno, Mariana Dal Chico, Mell Ferraz, Giovanna Thomaz, Priscila Calado e Nathalia Bravo. Intermitências se
encerra com Atividades, onde, como o próprio nome já nos diz, o leitor encontrará uma longa lista de eventos,
publicações e monografias a respeito de Proust e seu romance.
Publicar uma revista impressa em um contexto de crise econômica, social e política beira o luxo — e In-
termitências não existiria sem o auxílio valoroso de entidades e pessoas que compreendem a obra de Marcel
Proust como bem universal e sua leitura brasileira como um eixo importante do amadurecimento de nosso
modernismo. Somos profundamente gratos ao apoio da Embaixada da França no Brasil, da Universidade de
São Paulo, da Universidade do Estado do Rio de Janeiro e de mais de trinta entusiastas anônimos que fizeram
doações através de plataformas de crowdfunding.

Carlos Eduardo Souza Queiroz


Fillipe Augusto Galeti Mauro

Ilustração: Giuliane de Alencar


Sumário
09 44
Proust em Itapetininga Marcel Proust et Jorge de Lima
Fillipe Mauro Etienne Sauthier

Salão 47
De Combray a Caruaru:
14 Caminhos de uma província
Entrevista PhilippeWillemart recriada
Amilcar Almeida Bezerra
Luciana Persice Nogueira-Pretti
e Luiz Ribeiro
e Carlos Eduardo Souza Queiroz

Retratos Vária
21 54
Bernard de Fallois, um pioneiro Baudelaire em Proust
Luciana Persice Nogueira-Pretti Leda Tenório da Motta

24 62
Hermenegildo de Sá Cavalcante Nomes de Illiers-Combray
Carlos Eduardo Souza Queiroz Jonas Thobias da Silva Dias Martini

68
Dossiê Proust e Joubert
Paulo Gustavo
30
A Proustiana Brasileira
Maria Marta Laus Pereira Oliveira 73
Nostos
Tarik Vivan Alexandre
37
“A amêndoa negra dos teus 80
olhos”: A presença de Em busca O que as dedicatórias de Proust
do tempo perdido na obra de dizem sobre Em busca do
Augusto Meyer tempo perdido
Paulo Bungart Neto
Mário Barreto
Tradução 109
Existe hora certa de ler Proust?
81 Mariana Dal Chico

Um romance indecente?
por Alexandre Bebiano 110
Sobre buscas compartilhadas
88 que atraem
[Classicismo e Romantismo] Mellory Ferraz Carrero
por Luciana Persice Nogueira-Pretti
112
90 Primeiro encontro com Proust
Catleias Giovanna Thomaz
por Mario Sergio Conti
113
93 Lendo Proust no “Clube de
Balbec Leitura Paris de Histórias”
Natalia Bravo e Priscila Calado
por Rosa Freire d’Aguiar

96 Atividades
Le dernier « prisionnier » de
Marcel Proust - de Tadeu Rocha 115
por Etienne Sauthier Livros / Música / Artigos /
Dissertações e teses
100
O último prisioneiro de Marcel 120
Proust - Tadeu Rocha Lista de associações e
instituições dedicadas a Proust
(exclusivamente ou não)
Proust pelo mundo
104 122
Mil e uma memórias Processo Heurístico
Frederico DeNez Acontecimental
Caroline Biasuz

Testemunho

106
Contrariando Proust
Viridiana Simões Bueno
Intermitências - Revista brasileira de estudos proustianos
Edição 2021
Ano 1 - Nº 01
Intermitências é uma revista literária de periodicidade anual.
ISBN 978-65-87602-22-6

Editor-chefe:
Carlos Eduardo Souza Queiroz - Proust Brasil

Organizado por
Carlos Eduardo Queiroz
Luciana Persice Nogueira-Pretti

Conselho Editorial:
Alexandre Bebiano de Almeida
Carlos Eduardo Souza Queiroz
Etienne Alexandro Sauthier
Fillipe Augusto Galeti Mauro
Frederico DeNez Benyam
Luciana Persice Nogueira-Pretti
Phillipe Leon Marie Ghislain Willemart

Edições Cândido

Direção Editorial:
Jean Cândido Brasileiro

Diagramação e projeto gráfico:


Absoluta Criações

Imagem da capa:
Estela Sahm

Ilustrações:
Gilles Diniz (pp. 02/03, 32, 47, 91, 113)
Giuliane de Alencar (pp. 05, 100)

2021

Todos os direitos dessa edição reservados à


EDIÇÕES CÂNDIDO BRASILEIRO LTDA.
Rua General Andrade Neves, 63 / 401
São Domingos | 24210-000 | Niterói/RJ

Impresso no Brasil
Revista brasileira de estudos proustianos - 2021

Proust em
Itapetininga
Fillipe Mauro

Ils ne seraient pas, selon moi, mes


lecteurs, mais les propres lecteurs
d’eux-mêmes.*
Marcel Proust,
À la recherche du temps perdu

O primeiro clube de leitura de Proust no Brasil, batizado Proust-Clube, foi inaugurado em junho de
1947, menos de quinze dias após a fundação da Société des Amis de Marcel Proust et de Illiers-Combray.1 Sua
sede era um apartamento do banqueiro Walther Moreira Salles, situado na ensolarada praia de Copacabana.2
Idealizado por Octacílio Alecrim, autor do romance de memórias Província submersa, o grupo contava com
a colaboração de grandes nomes da moderna cultura brasileira. Dentre eles, Carlos Drummond de Andrade,
Cyro dos Anjos, Jorge de Lima e José Lins do Rego. Graças a diplomatas como Roberto Assumpção, secretá-
rio da embaixada brasileira de Paris nos anos quarenta, seus membros contaram com confortável acesso ao
debate literário francês. Lograram convidar descendentes de Proust para uma inusitada visita ao Brasil e seus
escritos gozaram de boa acolhida em importantes coleções parisienses.3
O Proust-Clube, no entanto, pouco durou. Contradição insolúvel, surgiu como círculo de notáveis quando
Proust deixava de ser “restrito a um leitorado que domina a língua francesa de modo satisfatório”. 4 Cultivou a
obra de Proust a portas fechadas no exato momento em que, grande ironia, “seu público em potencial na socie-
dade brasileira se alargou”.5 Em 10 de julho de 1963, um segundo grupo de leitura da Recherche ainda tentaria
a sorte no Rio de Janeiro.6 Elegeu como nome Sociedade dos Amigos de Marcel Proust no Brasil, naquilo que
parece ser uma tentativa de se aproximar da matriz de Illiers-Combray. Mas seu destino não foi diferente. Esva-
ziou-se ainda mais rapidamente, sem nunca ter alcançado notoriedade, e caiu como o outro em esquecimento.
Após a primeira tradução da Recherche em língua portuguesa, ao final dos anos quarenta, Proust pouco a
pouco se popularizou. Tornou-se até mesmo tema de uma edição de O céu é o limite, primeiro jogo de per-
guntas e respostas da televisão brasileira.7 Com o ostracismo dos grupos fechados e a democratização das
leituras, veio a termo a era do Proust slogan, desse Proust que, como dizia
* Eles não seriam, a meu ver, meus
Saldanha Coelho, era com efeito mais alardeado do que lido por suas seitas
leitores, mas os próprios leitores de- de admiradores.8
les mesmos. Marcel Proust, À la Há um hiato de sete décadas entre a fundação do Proust-Clube de Octacílio
recherche du temps perdu. Paris:
Gallimard, col. Bibliothèque de la
Alecrim e a criação de um outro grupo bastante distinto dedicado à leitura e
Pléiade, v. IV, 1989, p. 610. à divulgação do romance de Proust no Brasil. Chamado sem maior hesitação

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Intermitências 1

e floreio de Proust Brasil, ele faz parte — o que também seria uma maneira
de um tempo marcado pelo meio menos sisuda, bem no espírito da nova
“informacional”,9 como dizia Milton publicação, de refletir sobre mudanças
Santos, e é a figura mais acabada dessa importantes que recentemente se ope-
transformação. Surgiu em 2017 na raram na percepção comum, no gosto
improvável cidade de Itapetininga, geral, na circulação ampla da obra de
terra de Júlio Prestes, apelidada Atenas Marcel Proust em nosso país.
do Sul durante a Velha República pela O criador do Proust Brasil é Carlos
grande concentração de escolas que Eduardo Queiroz. À época da fun-
ali serviam aos filhos da oligarquia dação do grupo, contava somente 24
cafeeira. Absolutamente nada liga anos. Natural da pequena Capão Bo-
Proust a Itapetininga, mas, de lá, esse nito, ele não é filho de um político e
grupo jovem e comum se ramificou de uma pianista, como fora o caso de
pelo vasto mundo através de diversas Octacílio Alecrim, abastado professor
mídias sociais e de novos meios de da antiga Universidade de Pernambu-
1. Bulletin de la Société des amis de
Marcel Proust et des amis de Com- comunicação. co. Seu pai, falecido há pouco tempo,
bray, Illiers, n.1, 1950, p. 67. Seu trabalho é intenso e constante. foi mecânico e sua mãe é hoje dona de
2. Id. Os membros do Proust Brasil recupe- uma pequena loja de roupas. Proust
3. Etienne Sauthier, Proust sous
ram escritos brasileiros sobre a Recher- ele conheceu ainda no colégio, após
les tropiques: diffusion, réceptions, che que acreditávamos para sempre uma coincidência que Breton classi-
appropriations et traduction de Mar- perdidos; divulgam teses e eventos aos ficaria como sutil episódio de “acaso
cel Proust au Brésil (1913-1960),
Villeneuve-d’Ascq: Septentrion,
quais talvez o grande público certa- objetivo”.11
2021, pp. 259-80. mente teria difícil acesso; ano após ano No ano de 2007, passeava por entre
4. Ibid., p. 242. organizam encontros entre amadores as estantes da pequena biblioteca pú-
e estudiosos de Proust com o apoio do blica de Capão Bonito sem procurar
5. Id.
poder público e de entidades de cultu- nada de específico. Era simplesmente
6. Ibid., p. 62.
ra; em meio ao horror da pandemia de um “rato”, como ele próprio diz, e os
7. Ibid., p. 280. covid, inscreveu Proust e seus leitores bibliotecários pediam até mesmo sua
8. Ibid., p. 313. brasileiros no infindável rol dos webi- ajuda para aprender a consultar o ca-
9. Milton Santos, A urbanização nários e lives — aquelas numerosas li- tálogo. Avistou ao fundo os sete volu-
brasileira, São Paulo: Edusp, 2020, ves que hoje já nos entediam, mas que mes da Recherche, em uma versão da
p. 38.
auxiliaram a manter aceso o diálogo editora Globo que trazia sobre a capa
10. Revista Branca: homenagem a intelectual durante os vários meses de azulada a carruagem Vitória de Odette
Proust, Rio de Janeiro, n. 4, dez.-
-jan., 1948-1949; Saldanha Coelho distanciamento humano. de Crécy, com relógios e ponteiros no
(org.), Proustiana Brasileira, Rio de No mais, o Proust Brasil se deve a lugar das rodas. Tomou-os em mãos,
Janeiro: Revista Branca, 1950. idealização desta revista, assim como mas não os leu. Como lhe impressio-
11. Eis um bom exemplo de acaso outrora, do primitivo Proust-Clube, nava, o tamanho dos livros também o
objetivo no romance Nadja: « Mais, surgiu a motivação para outros dois desencorajava. O início da leitura foi
Nadja, comme c’est étrange ! Où
prends-tu justement cette image qui volumes brasileiros dedicados ao au- adiado para uma tarde de domingo,
se trouve exprimée presque sous la tor da Recherche: uma edição come- a dois anos de distância. Recebeu em
même forme dans un ouvrage que morativa da Revista Branca, de 1948, casa o amigo Alexandre Castilho para
tu ne peux connaître et que je viens
de lire ? » [Mas, Nadja, que estranho! e o conhecido compêndio Proustiana ouvir música, a sinfonia Patética de
De onde você tira justamente essa Brasileira, de 1950.10 Por isso, nesta Tchaikovsky. Debaixo do braço, Ale-
imagem, que está expressa da mes- edição piloto de Intermitências, pare- xandre trazia aquela mesma edição de
ma maneira em uma obra que você
não pode conhecer e que eu acabo de ceu-me pertinente registrar a memó- No caminho de Swann para apresentar
ler?]. André Breton, Œuvres complè- ria desse novo grupo brasileiro de lei- a Carlos.
tes, Paris: Gallimard, col. Bibliothè- tura de À la recherche du temps perdu
que de la Pléiade, 1988, p. 698.

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Revista brasileira de estudos proustianos - 2021

Diante desse episódio, o narrador ra individual em um projeto mais am-


de Nadja talvez se perguntasse: como bicioso e coletivo de difusão da obra
um amigo poderia inconscientemente de Proust ocorreu em maio de 2014.
saber, sem tê-lo lido, que aquele livro Uma colega da faculdade avisou Car-
um dia interessara o outro? Etienne los de que a biblioteca de Itapetininga
Sauthier, que acaba de publicar um preparava um clube de leitura. Quem
importante livro sobre a recepção de o organizava era João Leonel, pro-
Proust no Brasil e que também partici- fessor de literatura da Universidade
pa desta edição de Intermitências com Presbiteriana Mackenzie. O primeiro
um interessante artigo sobre Jorge de livro discutido pelo grupo foi O cava-
Lima, arrisca uma hipótese. Ele diz leiro inexistente, de Ítalo Calvino. Nas
que, tanto quanto “debates culturais sessões seguintes, Leonel pediu mais
e intelectuais em curso no país” e a sugestões de leitura aos participantes.
“estrutura da elite desse território”, os Carlos propôs imediatamente os sete
“acasos particulares” parecem exercer volumes da Recherche, mas acabou ta-
grande protagonismo sobre o fenôme- chado de louco.
no de “circulação em um espaço lite- No ano seguinte, Leonel deixou Ita-
rário específico”.12 Carlos ficou com a petininga e o grupo de leitura. Para
impressão de que o livro o chamava. mantê-lo vivo, Carlos aceitou assumir
Quando começou a ler Proust, esse sua direção ao lado de outra partici-
jovem trabalhava como auxiliar em pante, a jornalista Fernanda Gehrke. A
um frigorífico de Itapetininga. Entrava dupla hoje completa sete anos no co-
no trabalho às quatro da tarde e saía mando do projeto. Em outro episódio
às duas da manhã. Lia a Recherche no de acaso objetivo, o cinema de Itapeti-
caminho de ida, dentro de um ônibus, ninga passou a exibir o documentário
e na volta, insone, sentado em uma es- Marcel Proust: a writer’s life, de Sarah
quina, ao lado de uma pequena pen- Mondale (1993). Foi a ocasião perfeita
são, aguardando como Proust o nascer para que Carlos realizasse seu antigo
do dia para poder enfim ir dormir. Le- desejo: ler em grupo À la recherche du
vou um ano para ler todo o romance e, temps perdu e compartilhar pelas redes
ao final, decidiu se matricular em um sociais os resultados de suas discussões.
curso de Letras. Sua faculdade entrou Temeu que, como previam seus co-
em falência e não existe mais. legas, o tamanho da obra afugentasse
Alexandre, o providencial amigo novos membros. Mas qual não foi sua 12. Etienne Sauthier. Op. cit., p. 73.
proustiano, também cursou Letras. Foi surpresa ao ver uma das participantes, 13. Francisco de Oliveira descre-
aluno brilhante da Universidade Fede- Vanessa Milani, chegar entusiasmada, ve essa violenta transformação no
ral de Ouro Preto. Aprendeu sozinho já à sessão seguinte do clube de leitu- famoso ensaio O ornitorrinco, de
2013. A industrialização brasileira
seis ou sete idiomas, segundo Carlos. ra, com o pesado box de volumes da a “marcha forçada”, levada adiante
Hoje ele está desaparecido, ninguém Recherche traduzido por Fernando Py graças a uma “fortíssima repressão
conhece seu paradeiro. Em sua última e editado pela Ediouro. O ciclo de lei- política, mão de ferro sobre os sin-
dicatos, coerção estatal no mais alto
imagem, registrada por câmeras de se- tura acabou durando longos dois anos. grau”, produziu um país “altamente
gurança, surge em uma agência bancá- Na biblioteca de Itapetininga, procu- urbanizado”, com “pouca força de
ria para sacar dinheiro. No alojamento rava-se apenas por Proust e não havia trabalho e população no campo”,
portanto sem “nenhum resíduo
da universidade, deixou tudo para trás: na cidade volumes suficientes para em- pré-capitalista”, mas com “um forte
livros, notebook e um telefone celular. prestar a todos os interessados. Proust agrobusiness”. Cf. Francisco Oliveira,
O acontecimento que lançou as ba- Brasil começou com apenas dezesseis “O ornitorrinco”. In: _______. Críti-
ca à razão dualista e O ornitorrinco,
ses para a transformação de uma leitu- participantes e hoje já conta com mais São Paulo: Boitempo, 2019, p. 132.

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Intermitências 1

de dois mil seguidores em uma única Combray. Tudo que Proust dizia,
rede social. Alguns deles são franceses, era como se eu já tivesse visto em
embora Carlos, até hoje, jamais tenha minha própria região. Proust mu-
tido a oportunidade de visitar a França. dou minha vida. Através dele me
compreendo melhor.16
As razões que levaram Proust a ser
tão bem acolhido pela província brasi-
leira ou, melhor dizendo, pelos órfãos Em seu conhecido Direito à litera-
dessa finada província brasileira estão tura, Antonio Candido condiciona a
intimamente associadas ao violento e humanização da vida ao acesso à li-
acelerado processo de modernização teratura. Sem literatura, ele diz, não
que, desde meados do século XX, vem é possível “o exercício da reflexão, a
se processando no país.13 Temas como aquisição do saber, a boa disposição
a memória involuntária e o subjetivis- para com o próximo, o afinamento das
mo do narrador proustiano foram úteis emoções, a capacidade de penetrar nos
para que nossos escritores memorialis- problemas da vida, o senso da beleza,
tas desenvolvessem uma visão original a percepção da complexidade do mun-
de um tempo perdido brasileiro. Como do e dos seres, o cultivo do humor”.17.
Combray — que Proust desloca dos ar- Nada pode haver de mais nobre que,
redores de Chartres para o entorno de por ter experimentado “algo delicioso”,
Verdun apenas para que seja aniquilada Carlos e seus próximos queiram “sen-
durante a Primeira Guerra e para que sibilizar as pessoas ao redor”, desejem
seu herói então, em uma demonstração que “outros experimentem desse sabor
de sua real vocação literária, constitua também”.18
o Temps retrouvé pelas vias da criação Pode-se reprovar em Proust Bra-
artística14 —, o campo brasileiro se viu sil uma certa proustmania, uma certa
pouco a pouco descaracterizado, me- “veneração fetichista, ao mesmo tem-
14. Cf. André Vanoncini, “La guerre tropolizado, empobrecido15 e, assim, po culto de amor e mantra” da obra
dans le ‘Temps retrouvé’ et les ori-
recuperável tão somente por meio da literária que é característico de vários
gines de la création proustienne”, clubes de leitura.19 O caráter aberto das
Zeitschrift für französische Sprache imaginação.
und Literatur, Stuttgart, Franz Stei- As cenas de retorno à casa familiar, atividades desse grupo e seu aspecto
ner Verlag, n. 103, v. 2, 1993, pp.
tristemente abandonada, que lemos de agitador da leitura me parecem, no
144-52. entanto, distingui-lo de experiências
em alguns romances reputadamen-
15. Milton Santos., op. cit., p. 11.
te proustianos, como Labirinto, Baú pregressas de clubes de leitura da Re-
16. Entrevista concedida por Carlos
de ossos e A menina do sobrado, são a cherche no Brasil. Trabalham com os
Eduardo Queiroz ao autor em 14 de poucos recursos de que dispõem em
julho de 2021. maior prova disso. Mas também aque-
les que perguntarem a leitores como favor de uma “distribuição equitativa”
17. Antonio Candido, “O direito à dos bens da cultura, no nobre intuito
literatura”. In: ______. Vários escri- Carlos o sentido que o romance de
tos, São Paulo: Duas cidades, 1995, Proust exerceu em sua vida encontra- de que “a literatura chamada erudita
p. 180.
rão respostas desse tipo: deixe de ser privilégio de pequenos
18. Entrevista concedida por Carlos grupos”.20
Eduardo Queiroz ao autor em 14 de
Ler Proust foi uma maneira de me
julho de 2021.
reconectar com a cidade onde nas-
19. Enza Biagini, “Proustismo e ci, Capão Bonito. Desde pequeno
‘proustologia’”. In: Anna Dolfi, Non
dimenticarsi di Proust: declinazioni
visitava a igreja da cidade e tinha
di un mito nella cultura moderna, vontade de conhecer seu campa-
Florença: Firenze University Press, nário. Foi lendo a Recherche que
2014, p. 49. finalmente subi. Lá de cima, pas-
20. Antonio Candido, op. cit., p. 186. sei a ver Capão Bonito como uma

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Revista brasileira de estudos proustianos - 2021

Bibliografia

BIAGINI, Enza. “Proustismo e ‘proustologia’”. In: DOLFI, Anna. Non dimenticarsi di Proust: declinazioni di un
mito nella cultura moderna. Florença: Firenze University Press, 2014.

BRETON, André. Œuvres complètes. Paris: Gallimard, col. Bibliothèque de la Pléiade, 1988.

Bulletin de la société des Amis de Marcel Proust et de Combray. Illiers, n. 1, 1950.

CANDIDO, Antonio. “O direito à literatura”. In: ______. Vários escritos. São Paulo: Duas cidades, 1995.

COELHO, Saldanha (org.). Proustiana Brasileira. Rio de Janeiro: Revista Branca, 1950.

OLIVEIRA, Francisco. “O ornitorrinco”. In:_______. Crítica à razão dualista e O ornitorrinco. São Paulo:
Boitempo, 2019.

PROUST, Marcel. À la recherche du temps perdu. Paris: Gallimard, col. Bibliothèque de la Pléiade, vol. IV, 1989.

Revista Branca: homenagem a Proust. Rio de Janeiro, n. 4, dezembro, 1948.

SANTOS, Milton. A urbanização brasileira. São Paulo: Edusp, 2020.

SAUTHIER, Etienne. Proust sous les tropiques: diffusion, réceptions, appropriations et traduction de Marcel
Proust au Brésil (1913-1960). Villeneuve-d’Ascq: Septentrion, 2021.

VANONCINI, André. “La guerre dans le ‘Temps Retrouvé’ et les origines de la création proustienne”. Zeits-
chrift für französische Sprache und Literatur, Stuttgart, Franz Steiner Verlag, n. 103, v. 2, 1993, pp. 144-52.

Fillipe Mauro é doutorando em literatura


francesa e comparada na Universidade de
São Paulo e na Universidade de Paris III -
Sorbonne Nouvelle. Estuda o romance de
Marcel Proust e sua presença na literatura
brasileira.

13
Intermitências 1

Salão

Entrevista
Philippe Willemart
Luciana Persice Nogueira-Pretti

Carlos Eduardo Souza Queiroz

Entrevista realizada em 25/05/2021,


concedida a Carlos Eduardo Souza Queiroz e
Luciana Persice Nogueira-Pretti. Transcrição
de Dominique Daria R. de A. Fernandes
(UERJ-PIBIC).

“Em muitas coisas que o Proust fala, nos


reconhecemos, e, talvez, somos levados a pensar
diferente a partir desse reconhecimento.”

14
Revista brasileira de estudos proustianos - 2021

Luciana Persice: Essa entrevista inaugura o primeiro número da Intermitências: revista de estudos proustia-
nos. Afinal, você é um dos principais responsáveis pelos estudos proustianos tais como acontecem entre nós,
atualmente. E esses estudos estão ligados ao início da Crítica Genética no Brasil, não é? Philippe, você é um
dos pioneiros dos estudos genéticos no Brasil. Como se deu a sua opção pelos estudos de gênese?

Philippe Willemart: É uma longa história… muito longa mesmo. Defendi a livre docência em dezembro de
1981, com uma tese intitulada A pequena letra em Freud, Lacan e Saussure, publicada pela Annablume somen-
te em 1987. Em 1982, solicitei uma bolsa ao CNPQ para um pós-doc de 15 jun. 1982 até 15 jun. 1983 em Paris
sob a supervisão de Jean-Bellemin Noël, especialista em psicanálise e literatura da Universidade de Paris VIII.
Quando cheguei em Paris, Jean me disse: “temos um manuscrito inédito que ninguém decifrou: Hérodias de
Flaubert. Se você quiser, pode transcrevê-lo e fazer deste manuscrito seu objeto de pesquisa”. Abandonei o
plano inicial e passei um ano decifrando cada fólio do primeiro capítulo do conto. Embora, um pouco mais
fácil do que o manuscrito proustiano, o manuscrito de Flaubert, mesmo assim, é difícil de ler, rasura muito,
uma rasura em cima de outra, que dificulta a leitura. Passei um ano decifrando os cem fólios deste capítulo.
Na edição, o capítulo só tem dez páginas. Participei dos seminários de Flaubert do Institut des Textes et Ma-
nuscrits Modernes (ITEM-CNRS), instituto fundado por Louis Hay e sua equipe de germanistas, fundadores
dos estudos de gênese. Entrei em contato com toda a equipe de Flaubert, que eu não conhecia. No final do
estágio, publiquei na revista de Paris VIII, Littérature, um artigo intitulado Le désir du narrateur et l’apparition
de Jean-Baptiste dans le manuscrit d’Hérodias, no número organizado por Bellemin-Noël, com a temática:
“L’inconscient dans l’avant-texte” (Littérature, Larousse, 1983, p. 52). Na volta ao Brasil, decidi divulgar o que
tinha aprendido em Paris, e escrevi no folhetim da Folha de São Paulo em 1984.
O nascimento da crítica genética no Brasil está bem documentado na introdução ao Compêndio de críti-
ca genética publicado pela editora Horizonte de Vinhedo (SP), escrita por Sérgio Romanelli, presidente da
APCG nesse período.
O primeiro artigo do Folhetim de abril teve repercussão e provocou a ira de Paulo Francis, correspon-
dente da Folha em Nova York que criticou a nova proposta. Escrevi mais um artigo em julho para rebater as
objeções, mas ele não continuou o debate. Esses dois artigos me permitiram sintetizar o que sabia da crítica
genética e encontrar argumentos para convencer o público. Queria muito publicar no Brasil o que tinha sido
feito em Paris. Apesar das dificuldades inerentes à transcrição diplomática de um manuscrito, a editora da
Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas da USP, a FFLCH-USP, publicou os cem fólios transcritos
e os dois artigos do Folhetim no seu Boletim n. 44, com o título: O Manuscrito de Gustave Flaubert: transcrição,
classificação e interpretação do proto-texto do 1º capítulo do conto Heródias [1984].
Em 1985, Telê Ancona Lopez, pesquisadora-responsável pelos manuscritos de Mário de Andrade no Instituto
de Estudos Brasileiros (IEB), Roberto Brandão, do Departamento de Literatura brasileira, e eu, decidimos lançar
um congresso para compartilhar o que sabíamos dos estudos de gênese no Brasil. Chamamos filólogos, colegas
que estudavam os manuscritos com o propósito de restabelecer o texto editado, alunos que tinham seguido uma
disciplina de pós que ministrei a partir da transcrição de Flaubert, e outros colegas interessados. Nesse congresso
de 1985, bastante frequentado por alunos e professores, tínhamos chamado, além de 27 representantes de 13
instituições que apresentaram uma comunicação, Antônio Callado, o autor de Quarup, Louis Hay, fundador
da Crítica Genética na França, e Jacques Neefs, conhecido flaubertiano da Paris VIII. No decorrer das sessões,
vendo o entusiasmo dos participantes, passamos um questionário propondo a fundação de uma associação que
juntaria os pesquisadores interessados pelos manuscritos de escritores. A proposta foi aceita por unanimidade e
assim foi fundada a Associação dos Pesquisadores do Manuscrito Literário, a APML, que se tornará mais tarde,
Associação dos Pesquisadores em Crítica Genética (APCG), já que acolheu pesquisadores em artes plásticas.
Uma das consequências importantes desse primeiro encontro foi a criação de dois convênios: um com o ITEM
e outro com Paris VIII, que permitiram o intercâmbio de pesquisadores franceses e brasileiros durante muitos

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Intermitências 1

anos graças ao apoio de FAPESP, do CNPq e da CCInt 2. A equipe de professores propôs um cur-
(Comissão de Convênios Internacionais fundada pelo so monográfico que iniciou-se em 1997 se não me
reitor Goldenberg). engano, o que me deu a chance de dar aulas, siste-
Em 1990, dois membros da Associação, Cecília maticamente, sobre Proust e, em seguida, de editar
Almeida Salles e Lilian Ledon da Silva, propuseram essas aulas na Ateliê, editora dos livros que vocês co-
editar uma revista, que se chama, até hoje, Manuscrí- nhecem: Proust poeta e psicanalista [2000], Educação
tica. O número 1, totalmente policopiado, sem capa, Sentimental em Proust [2002], Tratado das Sensações
foi, realmente, o começo de uma aventura, com o em A Prisioneira de Marcel Proust [2008], e Os proces-
desenho de uma artista daqui mesmo, Rubens Ma- sos de criação em À Sombra das Raparigas em Flor: A
tuck. Hoje, a Manuscrítica é publicada online, e é o Pulsão Invocante e a Psicologia no Espaço em Proust
elemento essencial da difusão da Crítica Genética no [2009]. Os quatro livros são aulas transcritas a partir
Brasil (ver em <https://www.revistas.usp.br/manus- de minhas notas, acrescidas dos retornos dos alunos.
critica/index>). Isto é, eu já tinha um interesse bastante grande por
Por outro lado, a APCG se reunia regularmente e Proust, uma abertura em direção a Proust.
realizou seu XIV congresso em Curitiba em 2019.
3. Em 1997, participei do congresso em Cérisy-
Carlos Eduardo Queiroz: E qual é o quinhão dos -la-Salle, que reuniu a maioria dos proustianos do pla-
estudos proustianos nesse processo? neta, por assim dizer: americanos, alemães, ingleses,
italianos, suíços, belgas, e franceses, sobretudo. Fiz
P. W.: Demorou um pouco. Eu dava aula de litera- amizade com vários deles e foi, para mim, um grande
tura francesa na graduação e tínhamos um semestre passo. Na volta desse congresso, comecei a pensar no
dedicado a quatro romancistas franceses: Balzac, que fazer. Já tinha pós-graduandos orientados no es-
Stendhal, Flaubert e Proust. Assim, comecei a lecio- tudo dos cadernos de Proust, como Guilherme Iná-
nar sobre Proust. Em 1993, publiquei “La jouissance cio da Silva. Tinha vários orientandos já dedicados
de Swann et la petite phrase de Vinteuil” na Littéra- ao estudo dos cadernos. Além de Guilherme Inácio
ture, artigo que já manifestava meu compromisso e da Silva, que tinha decifrado os Cadernos 20, 21 e 28,
minha dedicação à obra proustiana, texto inserido Carla Cavalcanti e Silva estava com o Caderno 54, e
em 2000 no Proust, poeta e psicanalista. Três fatores Jediel Gonçalves, com o caderno 44. Enquanto isso,
me inclinaram não a abandonar Flaubert, mas a me Nathalie Mauriac, do ITEM-CNRS, tinha montado o
dedicar mais à obra proustiana: projeto Brepols, que pretendia editar os 75 cadernos
1. Além das aulas na graduação e na pós-gra- de Proust. Havia uma equipe japonesa, dois pesqui-
duação sobre Em busca do tempo perdido, o primei- sadores isolados de Belfast e da Tailândia, e a nossa.
ro passo se deveu a uma doutoranda, Lilian Ledon, Encorajado por esse apoio, apresentei o projeto te-
muita ativa na APCG, que fez parte do corpo edi- mático Brepols brasileiro à FAPESP, a Fundação de
torial dos dois primeiros números da Manuscrítica. Amparo à Pesquisa do Estado de São Paulo, o projeto
Ela foi pesquisar na França sem bolsa. Após vender de estudo dos manuscritos de Proust, que foi aceito
o que tinha no Brasil, entrou em contato com a equi- em 2006. A partir daí, aumentaram os orientandos
pe proustiana dirigida por Bernard Brun, decifrou e que se dedicaram aos cadernos até que em 2011, no
transcreveu o “Caderno 28”. Na volta, já docente da final do projeto, tínhamos estudiosos dos Cadernos
equipe de francês da FFLCH, por volta de 1992-93, 8, 15, 16, 20, 21, 28, 39, 42, e 52, cadernos indicados,
decidiu largar a pesquisa e o ensino, e me deu todo na sua maioria, pela coordenadora geral do projeto,-
o material que tinha juntando durante a estadia na Nathalie Mauriac.
França: o Caderno 28 transcrito, a Pléiade proustia-
na, vários livros da critica proustiana, etc. A partir L.P.: Mas não é um trabalho de equipe?
daí, me senti não obrigado, mas inclinado a trabalhar
com Proust e a pesquisar seus manuscritos. P. W.: No início, não. Guilherme trabalhou sozinho
para sua tese defendida em 2003, mas já havia reuni-

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Revista brasileira de estudos proustianos - 2021

ões do Labô, o Laboratório do Manuscrito Literário, tiana Brasileira organizada por Saldanha Coelho em
criado em 1997, nas quais cada orientando expunha 1950 e recentemente por Etienne Saulthier, Proust
suas pesquisas e dificuldades, e lá havia interações e sous les tropiques (PU du Septentrion).
trabalho em equipe. Além do mais, houve reuniões Havia muitos amantes da obra proustiana, como
de transcrições de manuscritos parecidas com as da Ruy Coelho e Antonio Candido. Eu estive na casa
equipe Proust do ITEM nas quais cada detentor de deste último um dia, e ele me mostrou uma biblioteca
caderno propunha sua leitura. só de Proust. De tanto que ele o admirava, os únicos
No projeto Brepols, constava a organização de co- livros que não cedeu à USP, foi a coleção proustiana,
lóquios para os quais convidamos, além de Bernard que foi doada após seu falecimento. Nós continua-
Brun e Nathalie Mauriac, Françoise Leriche, Lydie mos essa tradição incluindo os cadernos em nossas
Rausier, Pyra Wise e outros. Houve cinco colóquios leituras.
proustianos no Brasil abertos ao público que, salvo o
primeiro, contava com a presença de um pesquisa- L.P.: Para os não especialistas, seria possível expli-
dor francês. O projeto permitiu também a realização car como é esse trabalho com os manuscritos? É só
de um “Encontro franco-brasileiro ao redor dos Ca- uma transcrição?
dernos de Proust”, no ITEM-Paris, em abril de 2010,
com a participação da maioria da equipe brasileira. P. W.: A função das transcrições é, primeiro, enten-
der o que Proust escrevia. Ele tinha uma letra muito
L.P.: Você falou do colóquio de Cérisy, que deve ter difícil. O leitor pode consultar os manuscritos no site
impulsionado, naquele momento, os estudos prous- da Bibliothèque National (http://gallica.bnf.fr), e cons-
tianos. E como foi, no Brasil, o “Proust 2011”, que re- tatar. Decifrar é dificílimo. Bernard Brun e Guilher-
sultou num livro? me liam os manuscritos de Proust como se fossem
um jornal impresso. Eu não conseguia com tanta fa-
P. W.: “Proust 2011” é a conclusão do primeiro pro- cilidade. A primeira etapa é entender o que o Proust
jeto temático Brepols, financiado generosamente pela escrevia para perceber quais eram os processos de
FAPESP. Reunimos pesquisadores proustianos brasi- criação utilizados, e, numa segunda etapa, transcre-
leiros e estrangeiros da América do Norte e da Euro- ver e diagramar. Diagramar quer dizer: dividir cada
pa. Foi um sucesso pela partilha das pesquisas entre folio por unidade textual e encontrar a ligação que
os brasileiros e não-brasileiros convidados, pelas con- cada uma tem com os outros, anteriores, isto é, des-
versas de corredores, pelas refeições compartilhadas. cobrir a lógica que existe de um trecho para outro. É
O que gostei nesse congresso, também, foi que cada um trabalho que eu nunca fiz, mas que Guilherme
um dos convidados estrangeiros aceitou dar aulas na fez para o Caderno 28 junto com Henriete Karam da
graduação de francês. O congresso acontecia durante UFRGS. A última etapa é achar um editor. Como a
o dia, e depois, eles davam aulas no curso noturno so- editora belga Brepols de Turnhout se especializou em
bre o que faziam. Isso foi ótimo como abertura, claro. edição de manuscritos, ela foi escolhida.
O livro editado com o auxílio da FAPESP reuniu as
contribuições de todos; tivemos que traduzir em por- CEQ: A questão das análises também faz parte
tuguês as falas em francês. Tinha pedido a três partici- desse processo?
pantes que falassem da “proustiana” no seu país, além
de sua comunicação. Assim, tivemos um apanhado da P. W.: Sim, a finalidade de qualquer leitura é
proustiana nos Estados Unidos e na Inglaterra por Ma- interpretar os manuscritos. Há exemplos em meus li-
rion Schmid, na Itália por Geneviève Henrot Sostero e vros que demonstram como eu interpretava. Cada vez
dos Estados-Unidos por Dominique Jullien. Foi ótimo que escrevia uma aula — quase nunca improviso —,
para ver como nos situávamos no mundo proustiano. eu tentava entender a lógica do trecho escolhido. Usa-
Essa nova geração de proustianos revelada em va, às vezes, os manuscritos para ver como Proust che-
2011 e da qual vocês fazem partem, Luciana e Carlos, gava ao resultado que líamos no texto publicado. Há
retomam uma tradição documentada no livro Prous- uma espécie de caminho do manuscrito para o texto

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Intermitências 1

publicado; aí se vê a riqueza do Proust e as múltiplas última etapa depende sempre de Paris ou de Nathalie
possibilidades que oferecia o manuscrito. A edição re- Mauriac, que tem contrato com a Brepols. Mas, até
cente dos Soixante-quinze feuillets [2021], é um exem- hoje, ela não mandou nenhum caderno nosso e edi-
plo disso. Proust partiu da sua autobiografia, da qual tou somente os Cadernos 54, 26, 53 e 71, transcritos
se distanciou aos poucos inventando disfarces para pela sua equipe. Por enquanto, os nossos estão aguar-
as personagens, transferindo características de uma dando. Samira Murad transcreveu os Cadernos 15 e
para outra, reescrevendo sempre, até chegar ao texto 16. Carla terminou o 52. Eu transcrevi o Caderno 8
publicado. É um caminho longo, muito longo. Preen- durante quase um mês em Paris em 2018. Somente
cheu 75 cadernos até chegar à última versão e ainda Guilherme completou a diagramação e os comentá-
nas provas reenviadas para a editora Gallimard, corri- rios e aguarda a edição.
gia, rasurava e acrescentava. Proust tem uma memória
imensa e parecia lembrar de tudo o que já foi escrito. L.P.: É muito interessante a oscilação da recepção
Realmente, admirável! de Proust, que tem altos e baixos. E esse tipo de publi-
cação é importante para manter uma continuidade,
L.P.: Nos congressos e reuniões de vocês, não exis- novas gerações de pesquisadores. Inclusive, a intro-
te discordância entre as diferentes equipes? Existe dução do Guilherme no Proust 2011 é muito focada
um processo dialógico? nessas gerações diferentes.

P. W.: Existe discordância na leitura. A letra do P. W.: Isso mesmo, inclusive o trabalho do Gui-
Proust é tão ruim, que, realmente, às vezes, você lherme de republicar Em Busca do Tempo Perdido foi
acha que a letra é um “l”, outros acham que não é, muito bom nesse sentido.
por exemplo. Temos que comparar a mesma palavra
em outros cadernos ou fólios para determinar quem C.E.Q.: Eu sou dessa geração da reedição que o
acertou. Então, passamos horas discutindo sobre tal Guilherme organizou. Eu comecei a ler a Recherche
ou qual letra. Isso ocupa um tempo imenso. Nathalie quando descobri que estava sendo publicada pela
Mauriac faz seminário toda semana transcrevendo Globo Livros novamente, no selo Biblioteca Azul.
os cadernos aos poucos com os presentes e discutin-
do cada palavra e como chegar a ela. Quando Ber- L.P.: E qual é o seu principal interesse de pesquisa,
nard Brun ainda era vivo, havia longas discussões, às atual, e se houver alguma relação, qual é a importân-
vezes não pacíficas, com Nathalie, ambos tendo uma cia, no seu trabalho, da recente publicação do livro
longa experiência com a escritura proustiana. Mui- Les soixante-quinze feuillets, publicado agora pela
tas vezes, uma solução se revela na versão seguinte Gallimard?
que, pode ser um pouco mais nítida, então, esclarece
o que vem antes. P. W.: Recebi o livro há pouco tempo… eu gostei e
não gostei. Editado por Nathalie Mauriac, sobrinha
CEQ: E em que pé que está a transcrição dos ca- bisneta de Marcel Proust, a transcrição vem com co-
dernos do Proust? Ainda está sendo transcrito? E, mentários críticos da própria Nathalie e de Jean-Yves
sobretudo, tem brasileiros transcrevendo esses ca- Tadié, o editor da obra proustiana na Pléiade.
dernos? Outros críticos apresentaram os Soixante-quinze
feuillets como um monumento sagrado, como se fos-
P. W.: Coordenei a equipe proustiana até 2019, se um achado, uma pérola, mas não concordo. Foram
ano em que passei a função para Carla Cavalcanti e manuscritos escritos em 1908, mais ou menos, um
Silva, professora na UNESP e pesquisadora prous- ano antes de começar Em Busca do Tempo Perdido,
tiana desde o mestrado. No final do segundo proje- que mostram um Proust iniciando, realmente, um
to temático FAPESP, foram transcritos os Cadernos romance. Ele começa a contar a vida dele, a vida em
28, 20 e 21 por Guilherme e Henriette Karam. Eles Illiers, com o avô, o tio, a avó, a tia.
fizeram toda a diagramação desses cadernos. Mas a

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Revista brasileira de estudos proustianos - 2021

Tadié sustenta que o verdadeiro começo da Re- importante, diferenciar o escritor do autor: o escritor
cherche só se dá quando Proust fez da memória in- é aquele que começou com sua biografia, o autor é
voluntária, não somente um evento psicológico e aquele que lemos na Recherche. O estudo dos manus-
capital, mas o princípio organizador da narração, o critos, e não somente dos 75 fólios, permite também
que corresponde ao dia em que imaginou descrever constatar a fusão entre a avó e a mãe. Muitas qualida-
como toda Combray saía de uma xícara de chá. des atribuídas à avó são, de fato, da mãe de Marcel.
Para outro, esses Soixante-quinze feuillets são uma Houve transformações muito importantes que mos-
pepita de ouro. Já para Anthony Pugh, que não co- tram que essa nova edição é esclarecedora até certo
nhecia esse último livro, a fonte da Recherche é o Ca- ponto, mas não elimina qualquer interpretação feita
derno 4, manuscrito já conhecido. antes de sua publicação. Nathalie ressalta que Proust,
Não vou dizer que tudo começou nesses fólios, depois de escrever esses 75 fólios, os colocou de lado
porque houve antes o romance Jean Santeuil, escri- e, só de vez em quando, os consultava. Enfim, esses
to de 1896 a 1900, que Proust nunca quis publicar, e 75 fólios não são, assim, o fundamento da Recherche,
outras novelas publicadas antes de 1908. Isto é, de- não são como dizem. É o começo de uma escritura,
terminar o começo de um romance decorre de uma isso sim.
aposta. Os Soixante-quinze feuillets constituem uma
etapa que mostra que Proust, como muitos escrito- L.P.: Então, se esse trabalho não o impressiona,
res, começa a contar a vida dele, que, aos poucos, é quais são os seus interesses atuais?
esquecida e transformada. Nathalie Mauriac obser-
va que nesses fólios, por exemplo, a mãe do herói se P.W.: Escrevi vários artigos nos anos 2018 e 2019
chama Jeanne, nome verdadeiro da mãe de Marcel, que tratavam dos processos de criação, objeto da crí-
e não Maman, como na BTP e que a grand-mère se tica genética, presentes em outros campos do saber: a
chama Adèle. astrofísica, as neurociências, a linguística, a psicaná-
lise e a inteligência artificial.
L.P.: E, praticamente, o dele também. Marcel é O primeiro capítulo da primeira parte relaciona
uma coisa residual. Proust e Einstein. Eles tinham as mesmas opiniões
sobre o tempo, sem se conhecer, como aconteceu
P.W.: Só uma vez aparece Marcel. Outra transfor- com Freud e Proust. Os três são do mesmo mun-
mação apontada por Nathalie Mauriac é a transforma- do cultural no qual as mesmas ideias circulavam.
ção do tio, o tio Adolphe, que aparece no Côté de chez Cada um as considera no seu campo. Um amigo fa-
Swann. Ele é o conjunto de três personagens. O tio de lou para Proust: “mas você escreve como Einstein,
verdade de Marcel, judeu, mulherengo, personagem você pensa como ele!” — “Mas eu nunca li Eins-
que some nos rascunhos. Uma parte do mulherengo tein!” ele respondeu. Nunca leu, mas, mesmo assim,
vai para Swann, olha a transformação! A personagem a concepção do tempo de Proust é parecida com a
do tio do herói que sobrou foi só aquele tio Adolphe, de Einstein, o artigo “Crítica Genética e Astrofísi-
que não é tão mulherengo assim (não tanto quanto o ca” foi publicado na Holanda na revista Proust Au-
Swann). Houve a transferência de qualidades de uma jourd’hui, em 2020. Os outros capítulos ainda citam
pessoa para personagens totalmente fictícias. Swann Proust, mais como referência a respeito da criação e
reúne um conjunto de caracteres que pertencia a um da concepção da literatura.
nobre, Monsieur de Bretteville, apreciado pelo tio de Na segunda parte, são textos de colaboradores: um
verdade, mas odiado pela avó. Essa personagem foi sobre Flusser, filósofo tcheco-brasileiro, por Edson
rejeitada no decorrer da narração e suas qualidades do Prado Pfutzenreuter e Patricia Kiss Spineli; outro
foram atribuídas a Swann. E assim, Swann ficou ju- foi escrito por Celso Loureiro Chaves, sobre “Gêne-
deu, mulherengo e tudo mais. Como disse Nathalie, ses Musicais”; Yuri dos Anjos escreveu sobre “Ma-
À la recherche du temps perdu é uma confluência de nuscritos e a Mídia”, e Roberto Zular, sobre “a Crítica
dois rios: o romanesco e a veia autobiográfica. Só que Genética como Antropologia da Escritura”. O livro
essa veia autobiográfica some aos poucos. É, por isso, intitulado A crítica genética à procura de outros sa-

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Intermitências 1

beres, título bem proustiano sugerido por Yuri, sairá isso. Outra coisa que ressaltei e que continua valen-
este mês de julho na editora L’Harmattan de Paris e do, é a noção de celibatário da arte, não sei se vocês
pela Perspectiva de São Paulo no final do ano. lembram. São aqueles estudantes ou colegas, que co-
O projeto seguinte, que está em curso, é uma nhecem tudo sobre tudo, que leram tudo, sabem co-
pesquisa a partir do filósofo alemão Peter Sloter- mentar e são exímios conhecedores de tais ou quais
dijk e será um ensaio que trata do escritor e do lei- teorias ou da obra proustiana, mas nunca escreveram
tor na qual Proust continua sendo uma referência um texto próprio. Proust dizia que temos que nos
fundamental. aproveitar deles, e escrever sobre eles e tudo o que
eles fazem, e não os descartar por não serem escri-
C.E.Q.: Nossa última pergunta, mas não menos im- tores. Pelo contrário, temos que tentar conhecê-los
portante que, inclusive, é título de um artigo seu pu- e rodeá-los, para perceber outras coisas que eles não
blicado na revista Cult, 2007: por que ler Proust hoje? conseguem traduzir em palavras. Depois, mencionei
a importância do sonho na vida. Proust usou muito
P.W.: Bom, para 2007, está respondido. Agora, o sonho e até pensou em chamar Em busca do tempo
hoje, o que responder? Eu acho que não mudou mui- perdido de Romance do inconsciente, sem conhecer
to. Se eu retomasse esse artigo, acho que eu escreveria Freud…
quase a mesma coisa. Continuo dizendo que Proust
estava a par de tudo o que se passava em sua época. L.P.: Sim, muito impressionante, mas ambos leram
Ele era, realmente, interessado, e conhecia tudo — o Ribot, e outros teóricos que sentaram as bases da psi-
que demonstro na relação que fiz entre ele e Einstein. cologia nascente, não?
Ressaltei que a obra proustiana fornece ao leitor os
meios de se ler, como escreve o narrador proustia- P.W.: Impressionante mesmo. A fonte comum seria
no no Tempo redescoberto. Continua sendo isso, eu Ribot, segundo Kristeva: “é preciso reler La Psycholo-
acho. A narrativa de Proust é o meio de nos lermos, gie des sentiments, de Théodule Ribot, para constatar
não de lermos o que o Proust é, mas de nos lermos a insistência no contexto filosófico contemporâneo
no espelho realmente. Em muitas coisas que o Proust do jovem Proust, na revivescência das lembranças”
fala, nos reconhecemos, e, talvez, somos levados a [Julia Kristeva, Le temps sensible, Paris, Gallimard,
pensar diferente a partir desse reconhecimento. In- 1994, p. 322]. Proust conseguiu falar do sonho como
sisti muito [no artigo] sobre a nova psicologia que Freud, caracterizá-lo de maneira muito breve, muito
ele montou, a Psicologia do Espaço, que vocês co- condensada, mas com uma força enorme, que não dá
nhecem. A Psicologia do Espaço permite entender o para esquecer.
que fazer quando queremos conhecer um objeto, um O último motivo para ler Proust, é entender a im-
livro, uma estátua, uma pintura, uma pessoa, o que portância da memória involuntária que está na base
quer que seja: temos que circular ao seu redor, como da construção de Em busca do tempo perdido. Con-
um satélite. Circular cada vez mais, criar laços e um cordo com Tadié nesse ponto. Memória involuntária,
espaço original. Também gostei bastante quando o que não depende de nós, que surge de repente, por
narrador insiste dizendo que temos que nos deixar acaso. Vemos um objeto, cheiramos um perfume, ou-
tocar pelo violino do outro, pelas cordas de um vio- vimos uma melodia ou um grito, provamos um chá e
lino interior. Repare que ele não fala do discurso do lembramos de outro acontecimento. Entretanto, não
outro, mas de som, de uma música interior que toca podemos nos limitar a lembrar, temos que buscar,
nosso ouvido e deveria provocar mudanças em nos- como o herói com a madeleine, o que provocou essa
sas relações. A impressão é uma coisa, mas traduzir lembrança, e a partir daí, escrever uma música, uma
em palavra é outra. A inteligência, que Proust colo- poesia, um livro. Temos que escrever, senão a im-
cou tanto de lado, deve colocar em palavras o que pressão some junto com a lembrança e continuamos
sentimos. É a inteligência que vai conseguir traduzir, “celibatários da arte”.
escrevendo as impressões que sentimos. E nossa sen-
sibilidade deve ser aguçada para conseguirmos fazer

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Revista brasileira de estudos proustianos - 2021

Retratos

Bernard de
Fallois,
um pioneiro
Luciana Persice Nogueira-Pretti

Briève rétrospective sur l’importance


de Bernard de Fallois pour les études
proustiennes : de son travail pionnier
avec les manuscrits non édités de
l’auteur à l’édition de poche de la
Recherche.

Algumas pessoas tiveram importância crucial na publicação póstuma da obra de Marcel Proust (1871-
1922). Jacques Rivière (1886-1925), diretor da Nouvelle Revue Française, foi editor e amigo, verdadeiro inter-
locutor no processo de edição dos volumes (a correspondência de Proust registra fartamente esta interlocu-
ção), e, com a morte do escritor, se alia ao seu irmão, Robert Proust (1873-1935), na organização do conjunto
das provas apenas parcialmente revisto por Marcel. Juntos, Jacques Rivière e Robert Proust colaboram para o
lançamento de La prisonnière (1923) e Albertine disparue (1925). Após o falecimento do próprio Rivière, cabe
a Robert Proust a revisão e publicação de Le temps retrouvé (1927), assim como dos cinco primeiros volumes
da Correspondance générale de Marcel Proust (1930 a 1935, 5 volumes).
Outro nome incontornável na publicação da obra póstuma de Proust é Bernard de Fallois (1926-2018). Aos
26 anos, publica o primeiro de dois livros surpreendentes, que recolocarão a obra de Proust no mercado editorial
depois de longo período de esquecimento: Jean Santeuil (1952; prefácio de André Maurois) e Contre Sainte-
Beuve (1954), títulos criados por Fallois, ambos editados pela Gallimard. Em seu prefácio ao segundo, Fallois
ressalta o caráter de ante-textos dessas narrativas com relação à composição de
A la Recherche du temps perdu (1913-1927). Não apenas publica, como confere 1. Entrevista concedida a Ma-
uma nova imagem a Proust, cujo mito seria, até então, o de um esteta diletante rianne Payot, L’Express Cultu-
re, 04/09/2013, atualizada em
e ocioso que, de repente, escreveu a Recherche (esta mudança de imagem seria, 03/01/2018. Disponível em <ht-
como afirma em entrevista, o principal objetivo de suas publicações).1 Esses ante- tps://www.lexpress.fr/culture/
textos revelam o trabalho encarniçado realizado por Proust durante tantos anos livre/bernard-de-fallois-certains-
-livres-ne-seront-bientot-plus-pu-
de suposto lazer. De quebra, apesar do desinteresse manifesto pela universidade blies_1278610.html>.O mesmo
francesa e do desprezo da intelectualidade engajada, resulta no princípio de também será explicado em entre-
uma nova onda de interesse pelo autor (seguem-se, por exemplo, o início da vista a Nathalie Mauriac Dyer, em
2011, igualmente pulicada em 2013
organização da correspondência de Proust pelo norte-americano Phillip Kolb — (Genesis, n. 36, pp. 105-112) — ano
publicada em várias etapas —, e a famosa biografia do inglês George Painter — do centenário de Du côté de chez
Swann.

21
Intermitências 1

1959 e 1965, traduzida para o francês cuidados de Luc Fraisse, e pela editora
em 1966, e reeditada em 1992 e 2008, Bernard de Fallois.
2 volumes). A existência dessa editora talvez
A publicação de Jean Santeuil e de explique o fato de que Fallois não
Contre Sainte-Beuve se deveu a um en- trabalhou, em sua integralidade, os
contro feliz. Em 1949, Fallois prepara- manuscritos de Proust que permane-
va sua tese de doutorado (que não será ceram em seu poder. Sua empreitada
concluída)2 e se interessou pelo recen- editorial iniciara em 1962, na Le Livre
te lançamento da biografia de Proust de Poche (Hachette); deixa essa casa
escrita por André Maurois (1885- em 1975 para tornar-se diretor geral
1967), onde havia trechos de inauditas do grupo Presses de la Cité. Em 1987,
cadernetas de Proust. Fallois contacta funda sua própria editora, as Éditions
o escritor e, por intercessão de Mau- de Fallois, dedicada à literatura con-
rois, conhece a filha de Robert Proust, temporânea inédita.
Suzy (Adrienne) Mante-Proust (1903- Mesmo distraindo-o dos manuscri-
1986), que possuía, além de caderne- tos que permaneceram inéditos, seu
tas e cadernos, todo um abundante e empreendimento editorial é de gran-
caótico amontoado de manuscritos de consequência para a divulgação da
deixados por Marcel e guardados por obra de Proust: por sua insistência, a
Robert; ela cede — temporariamen- Recherche será publicada, a partir de
te — a Fallois caixas abarrotadas de 1965, em formato de bolso — o que
documentos, que ele organiza e re- contribui para a sua divulgação entre
pertoria, mas não trabalha em sua o público leitor não especializado, e
totalidade. Os manuscritos de Proust realiza o sonho de Proust de ser lido
que estavam sob a guarda de Fallois por um vasto leitorado. Numa edição
deveriam ter sido devolvidos à her- cuidada, a Livre de Poche estampa na
deira, e ele sempre negou haver retido capa dos volumes do romance, inova-
algum… Em disposição testamentá- doras composições em sépia que mis-
ria, Fallois legou a documentação que turam fotografias e imagens dos ma-
ainda mantinha consigo à Biblioteca nuscritos proustianos.
Nacional da França — para alívio dos
pesquisadores. Lista de títulos de Fallois
Na obra crítica de Bernard de sobre a obra de Marcel
Fallois, prevalece o interesse por Proust:
Proust e, sobretudo, a preocupação
em publicar a documentação inédita. 1950 — Le Balzac de Monsieur de
Dos dezessete títulos que assina Guermantes, avec quatre dessins de
sobre Proust (haverá outros, ver a l’auteur. Introdução de Bernard de
lista abaixo), dez são apresentações Fallois (Ides et Calendes).
comentadas, seja em prefácios ou
introduções, desses textos, e dois 1952 — « Souvenir d’un capitaine »
são ensaios publicados em volumes (texto inédito de Proust, Le Figaro lit-
coletivos. As datas das publicações téraire, 22 nov.).
2. Na mesma entrevista, Fallois
lembra que seu objeto de tese — a
revelam, porém, que alguns títulos 1952 — Hommage à Marcel Proust.
construção da Recherche — foi são, bem proustianamente, póstumos, Bernard de Fallois, André Maurois et
desaconselhado: “Escolha alguém e publicados, em sua maioria, sob os al. (Le Disque Vert).
mais conhecido, cujo talento seja
mais reconhecido”, disseram-lhe.

22
Revista brasileira de estudos proustianos - 2021

1952 — Jean Santeuil. Prefácio de An- 2018 — Introduction à “À la Recherche


dré Maurois (Gallimard, 3 vol). du temps perdu” (Éditions de Fallois,
volume que reúne as introduções de
1954 — Contre Sainte-Beuve suivi Maximes et pensées).
de Nouveaux Mélanges. Prefácio de
Bernard de Fallois em que menciona 2019 — Sept conférences sur Marcel
a existência de outros manuscritos, Proust. Prefácio de Luc Fraisse (Édi-
inclusive os famosos 75 feuillets tions de Fallois).
(Gallimard):
2019 — Proust avant Proust. Essai sur
O primeiro grupo [de manuscritos] Les Plaisirs et les Jours”. Revisão, co-
compõe-se de setenta e cinco mentário e prefácio Luc Fraisse (Les
folhas,3 de formato muito grande, Belles-Lettres). Trata-se da segunda
e compreende seis episódios, parte da tese sobre Proust que Fallois
que serão todos retomados na interrompeu em 1950.
Recherche: a descrição de Veneza,
a estada em Balbec, o encontro
das jovens [raparigas], o deitar em Textos inéditos publicados
Combray, a poesia dos nomes e os a partir de documentação
dois “caminhos”.4 encontrada no espólio de
Fallois:
1959 — Univers de Proust. Bernard de
Fallois, André Ferré et al. (Le Point). 2019 — Le Mystérieux Correspondant
1965 — Contre Sainte-Beuve. Prefá- et autres nouvelles inédites. Organiza-
cio de Bernard de Fallois (formato de ção de Luc Fraisse (Éditions de Fal-
bolso Gallimard, coleção Idées). Reed. lois).
1973, 1987 (coleção Folio Essais), 1995. 2020 — Jeanne Proust, Souvenirs de
1965-1967 — À la recherche du temps lecture. Organização de Luc Fraisse
perdu (pela Le Livre de Poche, por ins- e Laurent Angard, prefácio de Marc
tigação de Bernard de Fallois, que leva Lambron (Éditions de Fallois).
às edições de bolso subsequentes pela 2021 — Marcel Proust. Les 75 Feuil-
Garnier-Flammarion e pela coleção lets. Organização de Nathalie Mauriac,
Folio da Gallimard). prefácio de Jean-Yves Tadié (Galli-
1988-1989 — À la recherche du temps mard, col. Blanche).
3. O termo “feuillet” designa o
perdu. Prefácio e introdução, de cada conjunto de duas páginas, frente e
volume, por Bernard de Fallois (Fran- Outros títulos ensaísticos de verso, geralmente destinado a ser
ce Loisirs, 12 vol; reedição em 3 volu- Fallois: encartado num caderno ou livro,
como folha avulsa ou folheto.
mes, 1999).
1961 — Simenon (Gallimard, reedi- 4. Contre Sainte-Beuve, Gallimard,
ção em 2003; Rencontre, reedição em 1954, Prefácio, p.14
1989 — Maximes et pensées dans “À
la recherche du temps perdu”. Seleção 1971).
e apresentação de Bernard de Fallois 1996 — Le Cirque (Actes Sud). Luciana Persice Nogueira-Pretti
(France Loisirs), que inclui texto iné- é Professora Adjunta da UERJ, no
Setor de Francês do ILE. É pós-dou-
dito do fundo Bernard de Fallois. 2019 — Chroniques cinématogra- tora em Língua e Literaturas de Lín-
phiques (Éditions de Fallois). gua Francesa pela UFRJ. Traduziu
1991 — Jean Santeuil (reedição, Galli- textos de e sobre Proust.
mard, 3 vol). luciana.persice@yahoo.com.br

23
Intermitências 1

Hermenegildo
de Sá
Cavalcante
Carlos Eduardo Souza Queiroz

Briève rétrospective sur l’importance de


Hermenegildo de Sá Cavalcante pour les
études proustiennes.

24
Revista brasileira de estudos proustianos - 2021

A recepção da obra de Proust no Brasil tem um capítulo muito intrigante no que diz respeito ao Nordeste
e que, aliás, foi muito bem documentada e analisada pelo historiador Etienne Sauthier em seu livro Proust
sous les tropiques: Diffusion, réceptions, appropriations et traduction de Marcel Proust au Brésil (1913-1960)
(Septentrion, Paris, 2021).
Desde o comentário crítico nada elogioso, diga-se, do maranhense Graça Aranha, em 1925, passando pelo
ensaio de Jorge de Lima, Proust, em 1929, até a criação, por Octacílio Alecrim, do Clube Proust do Brasil, em
1947, e a publicação da tese de Álvaro Lins, em 1956, A técnica do romance em Marcel Proust, vemos que o
Nordeste foi um grande polo de difusão da obra de Proust no Brasil. Ainda podemos acrescentar os nomes
de outros proustianos nordestinos como, por exemplo, o potiguar Jayme Adour da Câmara, o maranhense
Josué Montello, os pernambucanos Manuel Bandeira, Gláucio Veiga, Aderbal Jurema, Gilberto Freyre, Evaldo
Coutinho, João Cabral de Melo Neto; e os contemporâneos Roberto Machado e Paulo Gustavo.
Outra figura bastante importante para a difusão e, também, para a renovação do interesse pela obra do
romancista de À la recherche du temps perdu entre nós foi o cearense Hermenegildo de Sá Cavalcante (1927-
1995). Natural de Aurora, formou-se em Filosofia e Direito na UFC, foi presidente-fundador da Sociedade
Brasileira de Amigos de Marcel Proust, em 10 de julho de 1963, e vice-presidente da Sociedade Internacional
de Amigos de Proust.
Em Proust e Illiers, de 17 de fevereiro de 1963, um dos primeiros artigos de Hermenegildo, ele afir-
ma que, em sua terceira visita a Illiers, ao conversar com o presidente da Société des Amis de Marcel Proust,
disse: “é pensamento meu, ao regressar ao Brasil, depois de dois anos de ausência, fundar uma sociedade
dos amigos de Marcel Proust no Brasil”. A Sociedade Brasileira de Amigos de Marcel Proust foi fundada
naquele mesmo ano, aos 10 de julho, e
contava como membros Augusto Fre-
derico Schimidt, Afonso Arinos, José
Guilherme Merquior, Walter Moreira
Salles, Mimi Pessoa, Josué Montello,
Yeda Boechart, Elisa Barreto, Maria
Aparecida Delamare, entre outros.
Hermenegildo escreveu pouco mais
de uma dezena de textos entre artigos
e livros. Sua atuação como divulgador
da obra de Proust no Brasil também
se deu pela organização de eventos na
Academia Brasileira de Letras e pelas
famosas “reuniões mensais da Socie-
dade, provisoriamente instalada no 9º
andar da Maison de France”. Foi em
uma dessas reuniões que o pesquisa-
dor Ignácio Antônio Neis, autor do
artigo “A crítica literária brasileira nos
caminhos de Proust”, publicado em
1989, tenha iniciado sua pesquisa ain-
da em 1964, nas reuniões da SBAMP,
sob a orientação do então secretário
geral da Sociedade, Hubert Sarrazin.
Talvez a maior iniciativa de Her-
menegildo, tenha sido a de organizar
Hermenegildo de Sá Cavalcante e suas filhas Nádia e Márcia (s/d).

25
Intermitências 1

a “Semana Proustiana”, de 05 a 10 de julho de 1964, Biblioteca Hermenegildo de Sá


com uma programação bastante rica, cultural e social, Cavalcante
com conferências no Pen Club e Academia Brasilei-
ra de Letras, e almoços e jantares no Museu de Arte Na orelha do livro, Hernani de Andrade diz que
Moderna e no Copacabana Palace. Houve também Hermenegildo “possui uma biblioteca de mais de mil
exibição do documentário Le Temps d’une Vocation livros, revistas e suplementos sobre Proust, em vários
(Jaques Letellier, 1961), exposição fotográfica e de li- idiomas”. Essa biblioteca está, desde 2014, no Cen-
vros raros, e a palestra de uma das principais e mais to Universitário Farias Brito, em Fortaleza -CE. José
aguardadas figuras: Madame Suzy Mante Proust, a Mindlin disse, por ocasião de sua visita que, “esta é
sobrinha do autor da Recherche. Vale lembrar que uma das mais ricas bibliotecas sobre Proust que eu já
Hermenegildo, poucas semanas antes, esteve no vi”. A proustiana de Hermenegildo possui bem me-
programa Mesas Redondas de Gilson Amado, na TV nos do que mil volumes, é verdade. Proust diria que
Continental, “dando um show proustiano”, mostran- como “um avarento cujo cofre, furado, ia aos poucos
do um “vasto material, inclusive uma árvore gene- deixando evadirem-se os tesouros”.
alógica” de Proust. Nesse programa, Hermenegildo Dentre tantos volumes dedicado ao autor da Re-
também anunciou a chegada de Suzy Mante Proust cherche, podemos destacar os 21 volumes da Cor-
para a semana. Esta, por sua vez, esteve no programa respondance de Marcel Proust, organizada por Philip
Mesas Redondas, no dia 9 de julho de 1965, ao lado Kolb; o Remembrance of Things Past, tradução para o
de José Guilherme Merquior, Dilermando Cruz, Jo- inglês de C. K. Scott Moncrieff e Terence Kilmartin,
celina Wolfer Gilberto Cavalcanti, Cristian Murciaux de 1934; as edições em inglês, em francês e em portu-
e Hermenegildo. guês, da biografia Marcel Proust, de George D. Pain-
A contribuição de Hermenegildo para a difusão ter, e toda a sorte da crítica proustiana internacional
da obra de Proust entre nós se deu pelos trabalhos como, por exemplo, Proust et le Style e La Phrase de
publicados na imprensa e posteriormente reunidos Proust, de Jean Milly; Marcel Proust de 1907 a 1914,
parcialmente no livro Marcel Proust: roteiro crítico e de Henri Bonnet; L’Impossible Marcel Proust, de Ro-
sentimental, em 1986. Dentre eles, estão textos que ger Duchêne; Proust ou la généalogie du roman mo-
discutem quem foi o primeiro leitor de Proust no derne, de Ramon Fernandez, dois exemplares dos
Brasil; quem foi o médécin bresilienne que aparece na volumes do crítico maldito Maurice Bardéche, Mar-
Recherche; a influência da medicina; as personagens; cel Proust romancier. A Proust Souvenir, de Willian
o resumo de Em busca do tempo perdido, enfim, algu- Howard Adam, entre tantas outras preciosidades.
mas amenidades a fim de aclimatar Proust aos leito-
res brasileiros.

Proustiana da Biblioteca Hermenegildo de Sá Cavalcante do Centro Universitário Farias Brito.


26
Revista brasileira de estudos proustianos - 2021

Artigos de Hermenegildo de Sá CAVALCANTE, Hermenegildo de Sá. Proust e Illiers.


Cavalcante Diário de Notícias, Rio de Janeiro, 17 fev. 1963, p. 4.

CAVALCANTE, Hermenegildo de Sá. Proust e o Bra-


CAVALCANTE, Hermenegildo de Sá. “A influência sil. Jornal de Letras, Rio de Janeiro, abr. de 1971.
da medicina na obra de Marcel Proust”. Tribuna da
Imprensa, Rio de Janeiro, 13 out. 1977. CAVALCANTE, Hermenegildo de Sá. “Proust redi-
vivo segundo Céleste”, Tribuna da Imprensa, Rio
CAVALCANTE, Hermenegildo de Sá. “A Moda da de Janeiro, 30 set. 1977, p. 9.
Semiologia: Marcel Proust contra a análise estru-
tural”. Tribuna da Imprensa, Rio de Janeiro, 04 out. CAVALCANTE, Hermenegildo de Sá. Quem foi e o
1977, p. 09. que fez Marcel Proust. Rio de Janeiro: Sociedade
Brasileira de Amigos de Marcel Proust, 1966.
CAVALCANTE, Hermenegildo de Sá. “Marcel
Proust e os jovens de hoje”. Tribuna da Imprensa,
Rio de Janeiro, 22 set. 1977, p. 09.

CAVALCANTE, Hermenegildo de Sá. Marcel Proust, Agradeço ao Centro Universitário Farias Brito pela cessão
roteiro crítico e sentimental. Rio de Janeiro: Pallas, das fotografias de Hermenegildo de Sá Cavalcante (inédi-
tas até agora). Agradeço a bibliotecária Waleska Gurgel
1986. pela atenção e ao analista de laboratório de informática,
Caio César da Silva Barros pela digitalização do material.
CAVALCANTE, Hermenegildo de Sá. “Os conceitos Carlos Eduardo Souza Queiroz é criador do perfil literá-
fundamentais de Proust”. Tribuna da Imprensa, rio @proustbrasil e editor-chefe da Intermitências. É um
Rio de Janeiro, 13 out. 1977. dos editores do perfil literário @bibliotecalygiana dedica-
do a Lygia Fagundes Telles. Foi mediador de leitura na
Roda de Leitura em Capão Bonito e no Clube Proust de
CAVALCANTE, Hermenegildo de Sá. “O primeiro Itapetininga e é mediador no Clube do Livro de Itapeti-
leitor brasileiro de Proust”. Tribuna da Imprensa, ninga. É formado em Letras e atuou como professor na
Rio de Janeiro, 26 out. 1977. p. 09. rede pública de ensino.

27
Intermitências 1

Dossiê
Proust
no Brasil

28
Revista brasileira de estudos proustianos - 2021

A vitrine de Proust, organizada no Rio pela


Editora Globo, por ocasião do lançamento,
em 15 de outubro de 1948, da tradução
brasileira No Caminho de Swann.

29
Intermitências 1

A Proustiana
Brasileira
Textos antológicos da
recepção de Proust
Maria Marta Laus Pereira Oliveira

O que pode significar uma “proustiana” para leitores digitais do Brasil no século XX? Ao revisitar esses
textos, os leitores de hoje talvez encontrem a resposta para a questão acima. Parece-me digno de nota que,
por ocasião da comemoração dos 150 anos de nascimento do escritor francês Marcel Proust, um grupo de
iniciados se proponha a reler e comentar sua obra, assim como, em 1950, textos de críticos brasileiros tenham
sido reunidos em uma coletânea, a Proustiana Brasileira (Rio de Janeiro, Revista Branca, 1950), também para
marcar outra data importante, a de 25 anos de morte do autor. Porém, se naquela ocasião ele já era festejado
como um nome consagrado da litera-
tura francesa, hoje sua obra faz parte
da literatura universal e é respeitada
por literatos do mundo inteiro.
Ainda assim, não deixa de despertar
admiração que, em um país como o
Brasil dos anos 50, com uma produção
literária ainda incipiente, um grupo
de literatos, muitos deles bem jovens,
se dedicasse com paixão a um escritor
estrangeiro, autor de obra considera-
da de difícil leitura. Acrescente-se a
esta dificuldade o fato de que a gran-
de maioria deles leu a obra no origi-
nal, pois a tradução para o português
dos sete volumes do romance À la re-
cherche du temps perdu só começou a
ser feita em 1948. Eram os chamados
proustianos brasileiros.
Naquele período de pós-guerra, os
livros franceses, que se haviam torna-
do raros, apenas começavam a reapa-
recer nas livrarias das maiores cidades
brasileiras. Proust era conhecido pela
elite intelectual, sua obra era assunto
em discussões e em algumas revistas
literárias, mas poucas pessoas de fora
daqueles círculos o tinham realmente
lido.

30
Revista brasileira de estudos proustianos - 2021

No período que vai de 1937 a 1948, poucos títu- leitores e críticos, que haviam abordado a obra de
los constavam da bibliografia proustiana no Brasil. Proust com desconfiança e preconceito, a iniciação
A partir de então, iniciou-se o grande momento da de Saldanha Coelho ao universo proustiano foi ime-
recepção de Proust, para o qual contribuiu certa- diata e decisiva. Dirigindo a Revista Branca, para a
mente a tradução da Recherche para o português, qual organizou um número especial sobre Proust, e
realizada pela livraria O Globo, de Porto Alegre. posteriormente, organizando a Proustiana Brasileira,
Iniciada em 1948 e terminada em 1956, ela foi um na qual foram reeditados muitos dos artigos que ti-
fator mediador bastante significativo no processo nham sido publicados no número especial da Revista
de recepção literária, sendo esse o período mais rico Branca (Rio de Janeiro, n. 4, dez./jan. 1948/1949), ele
em documentos críticos. A tradução foi tanto cau- definiu desde o início a sua importante função na re-
sa quanto efeito do acentuado interesse pela obra cepção da obra de Proust no Brasil.
proustiana, suscitando um número significativo de A série de documentos críticos que vão surgir
manifestações em jornais e em publicações especia- é iniciada com o número especial da Revista Bran-
lizadas. ca, referido acima. Em artigo publicado no Correio
Também a crítica literária, que trabalha para a di- da Noite (Rio de Janeiro: 28 dez. 1948, p. 02), Willy
fusão de obras, tanto nacionais como estrangeiras, Lewin observa que o jovem e inteligente diretor da
escreve artigos e estabelece contatos, foi um impor- revista, Saldanha Coelho, podia envaidecer-se de ter
tante intermediário na recepção da obra proustia- organizado um número digno de qualquer ambiente
na no Brasil. Deve-se lembrar do contexto em que literário sério. Ele adverte, contudo, que tais paixões
a recepção se deu. Segundo Antônio Candido em por escritores ou temas literários que permaneceram
Literatura e subdesenvolvimento (São Paulo, Ática, arquivados por longo tempo poderiam ser perigosas,
1978), até os anos de 1930, predominou no Brasil o porque eram, em geral, marcadas pelo esnobismo. O
desejo de autonomia que inspirou o movimento mo- que, no entanto, ele não percebia naquela publicação.
dernista, os autores refletiam nos textos o desejo de O comentário evidencia os resquícios das primeiras
se libertarem da influência europeia. As décadas de impressões reveladas nas críticas francesas e brasilei-
1930 e 1940 apresentaram-se como um período de ras: a leitura de Proust era vista como difícil e, por
transição, no qual as propostas estéticas se consoli- isso, restrita a um pequeno grupo de iniciados.
daram na prática literária e os olhos dos brasileiros Além de organizador das obras coletivas referidas
se voltaram para dentro das fronteiras. O resultado acima, Saldanha Coelho fez também publicações in-
foi uma maior consciência das limitações: o país dividuais. Ele escreveu sobre a tradução de Proust
começou a ser visto como subdesenvolvido e as elites no Brasil no jornal Diário Carioca (Rio de Janeiro:
intelectuais reconheceram a dependência cultural 07 nov. 1948), registrando a curiosa reação de al-
como um fato natural. Já na década de 1950, a depen- guns brasileiros quando souberam que a livraria O
dência passou a ser vista como interdependência e o Globo, de Porto Alegre, se propunha a traduzir À la
que parecia retrocesso foi sentido como um sintoma recherche du temps perdu, pois acreditavam que o ro-
de maturidade. mance seria intraduzível para o português e que não
Foi nesse clima de redescoberta que a editora da Re- despertaria o interesse do leitor brasileiro. No artigo,
vista Branca apresentou ao público leitor a sua Prous- Saldanha Coelho se diz muito satisfeito com o resul-
tiana Brasileira em homenagem aos vinte e cinco anos tado da tradução do primeiro volume, No caminho
de morte do escritor. Com poucas exceções, os críticos de Swann, feita por Mario Quintana, e que acabara de
proustianos brasileiros mais importantes da primeira vir a público.
metade do século XX estão todos reunidos nessa pu- No número especial sobre Proust da Revista Bran-
blicação organizada por Saldanha Coelho. ca, que ele dirigia, Saldanha Coelho publicou o ar-
Grande proustiano que era, Saldanha Coelho tigo intitulado Proust slogan (p. 27), no qual analisa
constava entre os onze brasileiros inscritos na Société a situação da recepção da obra proustiana naquele
des Amis de Marcel Proust et des Amis de Combray, momento. O próprio nome da revista atesta que ela
fundada na França em 1947. Ao contrário de outros tinha sido criada sob o signo de Proust. Sabe-se que

31
Intermitências 1

o escritor francês, em sua juventude, colaborara em francesa de 1923 e, por sua vez, introduzem muitos
revistas literárias com nomes semelhantes, como Re- elementos na crítica brasileira que seriam desenvol-
vue Verte e Revue Lilas, em 1888, e Revue Blanche, vidos mais tarde por outros críticos.
em 1891. Depois, ele volta a tratar do tema na nota Pode-se considerar que esse ensaio de Tristão de
introdutória à Proustiana Brasileira (p. 06), na qual Athayde assim como um ensaio de Jorge de Lima de
faz um esboço da recepção da obra desde o primeiro 1929 (grande ausência na Proustiana Brasileira que
artigo crítico até aquele momento, em 1950. deve ser assinalada) foram marcos muito significati-
Na nota introdutória, Saldanha Coelho explica vos da recepção de Proust no Brasil.
que o objetivo da publicação é o de ser um documen- Athayde ressaltou o caráter renovador do roman-
to síntese do que havia sido escrito no Brasil sobre ce. Tal opinião foi em si mesma bastante renovadora
a obra e a personalidade de Proust, reunindo assim para a época, pois os modernistas, como Graça Ara-
trabalhos já publicados e outros inéditos. O esforço nha e Carlos Drummond de Andrade, consideraram
do organizador da coletânea foi imediatamente reco- Proust decadente e de leitura muito lenta e compli-
nhecido, conforme ficou explícito em um comentá- cada, o que contrariava os ideais de velocidade e de
rio crítico de Herberto Sales na Revista Branca (Rio consumo rápido que eles propagavam. No período
de Janeiro, maio 1950, p. 17), que elogia o empreen- modernista, Athayde manteve-se aberto às literaturas
dimento corajoso e a dedicação de Saldanha Coelho estrangeiras e por este motivo foi muitas vezes censu-
às realizações culturais. rado por seus pares. Na verdade, manteve-se fora de
Acredita-se que foi pela intermediação dos moder- escolas e grupos literários, sendo predisposto a uma
nistas que a obra proustiana ingressou no contexto filosofia de vida que se opunha à filosofia modernista.
literário brasileiro. Entre outros, um número especial Mas mostrou boa vontade com os “novos”, a ponto de
da Nouvelle Revue Française (Paris, v. 5, n. 112, 340 ser considerado como o crítico dos modernistas.
p., 01 jan. 1923), publicado em homenagem a Marcel
Proust após sua morte em 1922, serviu como media-
dor no processo da recepção pelos modernistas bra-
sileiros. Ele foi citado nos principais documentos crí-
ticos que apareceram nos anos 1920 e 1930, entre os
quais se destaca o ensaio de Tristão de Athayde, “Mar-
cel Proust”, publicado em Estudos: segunda série (Rio
de Janeiro, Terra de Sol, 1928, pp. 147-84), que abre a
sequência de ensaios que compõem a coletânea.
A Proustiana Brasileira inicia-se com a tradução
de dois trechos da obra proustiana, “A Morte de Ber-
gotte” (pp. 09-14), traduzido por Dinah Silveira de
Queiroz, e Mensagens (pp. 15-7), traduzido por José
Guermantes, em seguida, vem o ensaio de Tristão de
Athayde. Estes são os subtítulos do longo ensaio: “A
vida”, “A complexidade de Proust”, “A dissociação da
personalidade”, “Sob o signo da memória”, “A inter-
mitência mental”, “As duas psicologias”, “O espírito do
tempo”, “A sensibilidade proustiana”, “A metafrívola”
(esta expressão, composta pelas palavras “metafísica”
e “frivolidade”, é uma criação de Tristão de Athayde,
depois consagrada na crítica proustiana brasileira), Ilustração de Gilles Diniz.
“O cronista da decadência”, “Proust obscuro”, “O hu-
mour [sic] de Proust”, “O espírito e a natureza”. Os Assim, Athayde foi o primeiro a declarar o que pa-
subtítulos revelam sua dívida para com a publicação recia uma heresia aos olhos de seus contemporâneos:

32
Revista brasileira de estudos proustianos - 2021

Proust é realmente novo. Foi com estas palavras que Na lista dos grandes proustianos está também
ele iniciou o seu ensaio, completo e ao mesmo tempo Roberto Alvim Corrêa, citado entre os da “geração
profundo, pois em algumas páginas reuniu elemen- de 45” e considerado um crítico impressionista, se-
tos que permitem ao leitor ter uma visão geral dos guidor da linha clássica da crítica francesa. Nos en-
aspectos peculiares ao romance. Ali, identificou os saios que compõem Anteu e a crítica (São Paulo, José
aspectos que faziam a originalidade de Proust, sendo Olympio, 1948, 280 p.), ele analisa personalidades re-
que o primeiro apontado foi a topografia proustiana presentativas da literatura do período, tanto france-
do homem, uma das grandes concepções originais da sas como brasileiras. Proust serve de parâmetro para
obra de Proust ao considerar a dissociação da per- as análises de autores introspectivos, assim como é
sonalidade como um fenômeno normal, o homem lembrado em análises de estilo, sempre que o estilo
como um ser que dissocia tudo aquilo em que toca, seja prolixo e constituído de longas frases. Entre os
para quem os objetos se apresentam de diferentes ensaios do referido livro, há um estudo, “O vigésimo
formas segundo as circunstâncias ou a sensibilidade. aniversário da morte de Proust”, o segundo publicado
Partindo desse ponto de vista, o crítico explicou na Proustiana Brasileira (pp. 43-53). Nessa análise, o
a noção proustiana de tempo puro, segundo a qual crítico dá uma visão de conjunto da obra proustiana
todas as nossas lembranças, sensações e ideias vivem e reconhece sua importância no quadro da literatura
em nós. Destas lembranças, uma parte é reutilizada, francesa do início do século XX. Interessante obser-
a outra cai no esquecimento e uma terceira fica ador- var que Corrêa lamenta a falta de sentido moral no
mecida no inconsciente. Tudo o que está ali adorme- romance, o que, segundo ele, não o torna digno de
cido pode voltar sob o efeito de uma situação análoga representar oficialmente o pensamento francês.
àquela que deu origem à lembrança. O episódio da Contudo, confessa que Proust revelou o mistério
madeleine (o famoso biscoito em forma de concha) é da alma humana e mostrou imensa capacidade de
o mais representativo deste processo. introspecção e análise, sendo que sua obra requer
Tristão de Athayde foi original em diversos mo- do leitor a mesma faculdade introspectiva. Também
mentos de sua crítica, como ao cunhar a expressão constata a criação de uma nova técnica de romance,
“metafrívola” para caracterizar o aspecto da obra que um estilo próprio, que segue os meandros do pensa-
trata de assuntos fúteis com muita seriedade. Usou mento e desvia por atalhos em parênteses interminá-
também a expressão “sentido de equivalência” para veis com o fim de tornar mais clara a ideia e de apro-
indicar a forma com que Proust registrou, sem prio- ximar-se sempre mais da verdade. O escritor francês
ridade, fatos sociais insignificantes e outros da maior procurava conhecer profundamente cada homem e
gravidade. Por exemplo, quando o romancista ana- através dele todos os outros seres humanos. Para o
lisou com igual profundidade personagens expoen- crítico, foi essa a grande contribuição de Proust.
tes da aristocracia e gente do povo, como a Duques Outro que colaborou na Proustiana Brasileira e
Oriana de Guermantes e Françoise, a empregada da que já era autor de vários documentos críticos de
sua tia. Para os que não o compreenderam ou leram muito interesse para a recepção de Proust no Brasil,
mal, Proust foi considerado um “snob”, um deca- foi o escritor Octacílio Alecrim. Professor da Facul-
dente, mas o potencial de riqueza de sua obra não dade de Filosofia da Universidade de Pernambuco e
passou despercebido ao crítico brasileiro. Assim, o fundador do Proust Clube do Brasil (em 1947), ele
grande mérito deste estudo precursor foi ter identifi- teve destacada atuação na divulgação da obra prous-
cado uma nova concepção de romance, com técnicas tiana. Também estava entre os primeiros associados
inovadoras de análise psicológica e de composição, brasileiros da Société des Amis de Marcel Proust et
por isso é justo e apropriado que esteja em destaque des Amis de Combray, junto com Saldanha Coelho.
como primeiro texto crítico da Proustiana Brasileira Entre 1948 e 1957, Octacílio Alecrim publicou em
e que seja apresentado aqui mais extensamente, con- diferentes jornais e revistas especializadas. Destaca-
siderando-se que vários dos aspectos por ele tratados -se pela clareza e precisão, o artigo “Raízes de Proust”
são retomados em outras análises nos ensaios que publicado na Proustiana Brasileira (pp. 55-62), no
seguem. qual ele analisa uma das fontes da obra, identificando

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Intermitências 1

a origem de um de seus dos procedimentos mais ca- o autor seguiu as tendências de seu tempo ao aplicar
racterísticos: a ação da memória involuntária. Segun- em seu romance os princípios do bergsonismo, as-
do Alecrim, esse procedimento teve suas origens em sim como ocorreu com outros grandes romancistas
Rousseau, foi muito empregado por Flaubert, para daquela época. Enquanto Bergson e Freud se volta-
depois ser apropriado por Proust como mola propul- ram para o irracionalismo do pós-guerra de 1918
sora de sua criação literária. Não sendo longo, seu ar- teorizando aquela tendência, Proust e James Joyce a
tigo não é exaustivo, mas a argumentação empregada representaram no romance. Assim, em uma resposta
é enriquecida com numerosos exemplos e se torna à questão que os tempos propunham, os aspectos da
passível de verificação. teorização, da busca do tempo perdido, da morbidez
A contribuição que segue na coletânea vem do sul, psicológica foram largamente explorados na obra
com o texto de Augusto Meyer, poeta, crítico, memo- proustiana. Por outro lado, como cronista munda-
rialista e tradutor gaúcho. Foi um dos primeiros lei- no, Proust fixou os costumes da sociedade da época,
tores de Proust no Brasil. Estava entre os associados a tal ponto que sua obra tem sido considerada um
brasileiros da Société des Amis de Marcel Proust e dos maiores monumentos da decadência da civiliza-
des Amis de Combray. Tornou-se também membro ção ocidental. A essa capacidade de saber analisar o
do Proust Clube e escreveu muitos artigos sobre a interno e o externo, o subjetivo e o objetivo, Moraes
obra proustiana. Os primeiros foram publicados em Filho chama de “realismo dos dois lados”.
1929 e 1930 em Porto Alegre. Foi encarregado pela li- Em seu “Depoimento sobre Proust” (pp. 87-91),
vraria O Globo de escrever as notas distribuídas com título de um dos artigos da coletânea, Jaime Adour
a primeira edição do primeiro volume da Recherche. da Câmara ilustra a forma de como os leitores fran-
Voltou a escrever sobre o romance e publicou dois ar- ceses, contemporâneos do autor, reagiram diante de
tigos, “Relendo Marcel Proust” e “Proust e Bergson” sua obra e como os reflexos daquela reação chegaram
(Correio da Manhã, Rio de Janeiro, 09 jan. 1949 e 06 ao Brasil. Ele confessa que não tinha ouvido falar de
fev. 1949),que foram reunidos e constituem as partes Proust antes de 1919, quando então as revistas lite-
I e II do ensaio publicado pela Proustiana Brasileira rárias francesas, correntes entre os intelectuais bra-
(pp. 63-71). sileiros, começaram a falar sobre o escritor laureado
O ensaio analisa o tema do tempo perdido e recu- pelo Prêmio Goncourt daquele ano. Ele explica que
perado, aponta os aspectos coincidentes com os prin- a literatura que estava na moda era em grande par-
cípios filosóficos de Bergson na obra proustiana e faz te constituída de testemunhos de ex-combatentes ou
referências ao papel da arte como substitutivo da falta dos que falavam na reconstrução econômica daquele
de esperança e da ação destrutiva do tempo. Segundo mundo pós-guerra. Esta era a literatura preferida pe-
Meyer, o esforço de recuperação do tempo opõe-se à los jovens, de forma que a preferência do Goncourt
sua ação destrutiva através da memória criadora e a por um livro que não fora escrito por um ex-com-
procura do tempo perdido foi uma tentativa perma- batente nem falava preferencialmente da guerra foi
nente de recuperar o “eu” que estava aparentemente julgada insólita e recebida com inconformismo por
desaparecido. No romance, essa busca se deu de ma- uma parte da crítica francesa. Apesar de tudo, de um
neira lenta, às vezes pesada. Contudo, a espirituali- momento para outro, em parte graças ao prêmio,
zação da realidade se mostrou possível por meio da Proust conheceu glória e popularidade.
arte, podendo ser vislumbrada tanto em uma frase da Outra contribuição a ser destacada foi a da roman-
sonata de Vinteuil, como no jardim interior de Elstir cista e crítica literária, Lúcia Miguel Pereira, que tradu-
ou na cena de Bergotte, mortalmente enfermo, admi- ziu o último volume da Recherche, O tempo redescober-
rando um efeito de luz no quadro de Vermeer. to, em 1956. Ela havia publicado um estudo crítico e
No ensaio seguinte, “Marcel Proust e o realismo biográfico sobre Machado de Assis, em 1936, de gran-
dos dois lados” (pp. 73-85), Evaristo de Moraes Filho de repercussão nos meios literários e que cabe referir
analisa com muita precisão dois aspectos do roman- aqui. É curioso verificar que, naquele estudo, ela atri-
ce, o introspectivo e o social, que se casam tão har- bui a Machado de Assis muitas características que po-
moniosamente na obra de Proust. Segundo o crítico, deriam ser aplicadas com propriedade a Proust, e usa,

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Revista brasileira de estudos proustianos - 2021

inclusive, a expressão “proustianismo de Machado”. habilidade crítica, se propõe a explicar em seu texto.
Considerando-se a anterioridade cronológica da obra Ele assinala que muitos críticos lamentaram a beleza
machadiana, isso nos leva a pensar que a expressão já inútil do romance proustiano e o esnobismo daque-
fosse comum nos meios literários em 1936, indicativa la crônica de uma sociedade decadente, alguns de-
de exame minucioso da sociedade. les levados pela necessidade de encontrar uma lição
No seu ensaio na Proustiana Brasileira, “Proust e moralmente edificante ou uma função social na obra.
Chateaubriand” (pp. 93-5), ela coloca em paralelo os Mas, para Carpeaux, o sentido moral da obra prous-
dois grandes autores, aparentemente tão diferentes, tiana se encontra em suas qualidades estéticas, trans-
partindo de uma referência que Proust fez a Chateau- formando a realidade vista em valor plástico, como
briand relativa a Mémoires d’outre-tombe. Nas duas faz o verdadeiro artista, não um simples cronista.
passagens referidas por Proust, aponta uma possível Entre os fundadores do Proust Clube, do qual foi
inspiração da obra proustiana no que se refere à utili- também secretário geral, consta o nome de Eustá-
zação da memória involuntária como elemento artís- quio Duarte, escritor, médico e professor da Facul-
tico. Numa das passagens de Chateaubriand, o canto dade de Medicina do Recife. Seu artigo, “A neurose
de um pássaro faz reaparecer a imagem dos domínios de Proust” (pp. 115-24), foi anteriormente publicado
paternos: o personagem se sente transportado para o na Revista Branca e de forma mais completa na co-
passado e revê os campos onde ouvira o mesmo can- letânea. Como o título indica, a análise é feita sob o
to. Na outra, o odor de uma flor faz com que se trans- ponto de vista psicanalítico e também biográfico, se-
porte para o passado e sinta saudades da juventude. gundo o qual, a obra é vista como uma compensação
São reações semelhantes àquelas provocadas pela aos grandes conflitos íntimos do escritor, que procu-
madeleine no romance proustiano, mas, enquanto rou superá-los na busca de si mesmo.
em Chateaubriand foram imediatas e precisas, em O texto seguinte, “Proust e o teatro” (pp. 125-28) é
Proust foram arrancadas das profundezas do ser. Se de Josué Montelo, que se confessa grande proustiano,
na primeira obra o recurso à memória involuntária dizendo que acompanhava de perto toda publicação
foi passageiro, na segunda ele representou o motivo que se fazia no Brasil e na França e que o autor
central do romance. contava com local privilegiado em sua biblioteca.
Entre os que se destacaram na divulgação da obra Alcântara Silveira, outro colaborador da Prous-
proustiana no Brasil também está o nome de Rocha tiana Brasileira, também citado entre os críticos da
Filho. O texto publicado na Proustiana, “Imagem “Geração de 45”, foi um dos sócios do Proust Clube
de Proust” (pp. 97-107), havia sido anteriormen- e projetou-se entre os que mais trabalharam para a
te publicado na Revista Branca. Conforme sugere o divulgação da obra do mestre. Seu artigo, “Carta ao
título, o crítico faz um esboço da figura de Proust a novo leitor de Proust” (pp. 129-38), visava a preparar
partir de uma releitura de sua obra, com a intenção o leitor brasileiro para que abordasse a obra prous-
de chegar à verdadeira imagem do autor. Na análise, tiana com a atenção e o cuidado que ela exigia. Tra-
ele aborda como as dificuldades iniciais que o texto balhou no sentido de despertar no leitor brasileiro o
proustiano apresenta a seus leitores, uma vez venci- desejo de conhecê-la, na condição de simples leitor
das, o prendem para sempre à obra. Analisa também ou na de crítico literário, e de prepará-lo para com-
o lado mundano e o famoso esnobismo do autor, que preendê-la em sua grandeza.
muitos reconhecem como fonte da rica experiência Um nome muito respeitado na crítica brasileira,
posteriormente aproveitada, assim como seu dom Sérgio Buarque de Holanda destacou-se na crítica
de adivinhar e sua memória prodigiosa. Ao lado dos proustiana mais pela qualidade que pela quantidade
dons naturais, considera a estética refinada, cujas de sua contribuição. Publicou dois artigos no Diário
concepções vieram de John Ruskin, o mestre inglês de Notícias do Rio de Janeiro, em 1948, um dos quais
que foi traduzido por Proust para o francês. se encontra na Proustiana com o título “Proust e Ver-
A visão da arte como o supremo critério seria a dade” (pp. 139-44). Segundo o crítico, a visão final
“Lição de Proust” (pp. 109-14), que Otto Maria Car- da obra de Proust pertence ao domínio da imagina-
peaux, de reconhecida cultura literária e indiscutível ção estética, não ao da especulação filosófica, noção

35
Intermitências 1

indispensável para que se possa compreender o universo proustiano, onde a rememoração do mundo real
aparece filtrada pela arte.
Ao contrário de Carpeaux, de Holanda e de outros, Raymundo de Souza Dantas em “Aspectos de Proust”
(pp. 145-53) analisa a mensagem do romance procurando identificar seu valor moral. O texto, que fora ante-
riormente publicado no Correio da Manhã, do Rio de Janeiro, em 1949, conclui que o pensamento proustiano
só vale pelo efeito estético, não tem nenhum valor como proposta de vida.
O três últimos textos da coletânea são: “Introdução a um estudo sobre Proust” (pp. 155-67) de Gastão de
Holanda; “Proust, os humildes e a paisagem” (pp. 169-72) de Violeta de Alcântara Carreira; e “Marcel Proust,
um físico do subconsciente” (pp. 173-97) de Henrique Maron. Tiveram pouca repercussão no que se refere à
recepção crítica no Brasil.
No entanto, o artigo de Violeta de Alcântara Carreira contribui para que se delineie um perfil do leitor bra-
sileiro contemporâneo por ocasião da publicação da primeira tradução da Recherche, período da publicação
da coletânea. O texto procura motivar as pessoas para a leitura da obra, assinalando que algumas opiniões
divulgadas sobre Proust eram limitadoras, pois ao invés de aproximar o leitor, afastavam-no dela.
Para finalizar essa releitura da Proustiana Brasileira, segue um apanhado final com base no critério temático
dos textos ali reunidos. Ficou clara a dualidade da “decadência” versus “renovação” na visão da obra. Proust
como um cronista mundano, cuja obra revelava a sociedade decadente em que ele vivia. Se de um lado, a crí-
tica estava marcada pela tendência em buscar espiritualidade, moralismo e princípios ideológicos, por outro
lado, muitos críticos perceberam a importância da estética proustiana, que envolve na arte literária toda a
extensão das diferentes formas em que o dom artístico pode se manifestar (música, pintura, teatro). Neste
universo filtrado pela arte, também procuraram nos elementos do romance (personagens, ambiente, enredo)
a técnica com que tinham sido elaborados. Além destes aspectos, para numerosos críticos a obra proustiana
representou um instrumento de análise da psicologia humana, um estudo introspectivo, que levou seu autor,
e também seus leitores, a um conhecimento mais profundo de si mesmos e do ser humano em geral.
Ressaltamos também que, como se pode deduzir pela relação dos colaboradores da coletânea aqui analisa-
da, alguns dos nomes importantes para a crítica proustiana não têm a mesma importância dentro da crítica
brasileira em geral. Ao contrário, o renome de alguns daqueles críticos deve-se à sua atuação como analistas da
obra de Marcel Proust. Assim, a permanência do interesse de tais críticas deve-se principalmente à perenidade
do objeto da análise, ou seja, da própria obra proustiana.

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Revista brasileira de estudos proustianos - 2021

“A amêndoa
negra dos
teus olhos”
A presença de Em busca do
tempo perdido na obra de
Augusto Meyer

Paulo Bungart Neto

Marcel, menino mimoso, estou contigo, Proust:


vejo melhor a amêndoa negra dos teus olhos.
Transparência de uma longa vigília,
imagino as tuas mãos
como dois pássaros pousados na penumbra.

Augusto Meyer, Elegia para Marcel Proust

Para Tania Franco Carvalhal

Q uando se pensa no surgimento e consolidação do modernismo no Brasil, um fato é inegável — uma parte
significativa de seus escritores é assumidamente proustiana. A presença da obra de Marcel Proust entre os
modernistas brasileiros é tão acentuada, que eu ousaria afirmar que a percepção da importância da evocação
das memórias de infância, na esteira da obra que tematiza a busca das recordações latentes, quase perdidas,
do “menino mimoso” em longa vigília, é, sem dúvida, uma das linhas de força do movimento, caracterizando
uma tendência constante da escola modernista brasileira e chegando até a literatura contemporânea, da qual é
exemplo a narrativa O professor (2014), de Cristovão Tezza, que se inicia com a descrição, em terceira pessoa,
do truncado despertar do professor universitário Heliseu da Motta e Silva, na manhã do dia em que receberá
uma homenagem na universidade onde fez carreira.
Essa característica do nosso modernismo é percebida por Silviano Santiago no capítulo “Prosa literária atu-
al no Brasil”, de Nas malhas da letra: ensaios (1989), quando o crítico contrapõe as autobiografias produzidas
pelos exilados políticos da década de 1970 ao texto dos memorialistas modernistas, centrado no “clã familiar”,
cujo maior exemplo é a caudalosa obra do médico mineiro Pedro Nava. Se a tendência contemporânea é
focar o envolvimento político da jovem geração que havia pegado em armas para combater a ditadura, dei-

37
Intermitências 1

xando de lado as recordações da infância, no período De cacos, de buracos


modernista o destaque é justamente a evocação da de hiatos e de vácuos
“descoberta do mundo” através de uma mirada es- de elipses, psius
sencialmente proustiana. Para Santiago, a ambição faz-se, desfaz-se, faz-se
uma incorpórea face, resumo de existido
dos modernistas era a de “recapturar uma experiên-
(1976, 3 ed., p. 08)
cia não só pessoal como também do clã senhorial em
que se inseria o indivíduo” (2002, 2 ed., p. 38). No segundo caso, refiro-me ao narrador de Meus
Não tem como deixarmos de no mínimo ten- verdes anos: memórias (1956), de José Lins do Rêgo,
tar dimensionar até que ponto a leitura da obra de que confessa na Introdução:
Proust induziu os memorialistas brasileiros a investir A asma fez de mim um menino sem fôlego para as
na seara de um gênero praticamente secundário nas aventuras pelo sol e pela chuva. Tinham cuidados
letras brasileiras até o século XIX, e que viveu, gradu- demasiados com a criança franzina que não podia
almente, ao longo do século XX, um verdadeiro sur- levar sereno e tomar banho de rio
to de produções. Nem todo memorialista modernista (1980, 3 ed., p. 07).
brasileiro foi proustiano — e talvez o maior exemplo Se as frases do autor de Menino de engenho tives-
disso seja Graciliano Ramos e suas atormentadas Me- sem sido escritas por Marcel Proust, nenhum leitor
mórias do cárcere — mas certamente o modernismo estranharia. Por aí se percebe o quanto o modernis-
brasileiro é a escola literária na qual as memórias mo brasileiro se nutriu da chegada avassaladora da
atingiram o ápice, com obras de autores do quilate de obra de Proust ao país, com alguns de seus principais
Oswald de Andrade, Manuel Bandeira, Erico Verís- representantes ávidos, primeiramente, pela leitura
simo, Jorge Amado, Cassiano Ricardo, José Lins do dos originais, em francês, dos diversos volumes que
Rego, Murilo Mendes, Dyonelio Machado e Cyro dos compõem a longa obra em série, e, posteriormente,
Anjos, para citar alguns. escrevendo livros igualmente contendo manifesta-
Obviamente, obras de outros grandes prosadores ções da memória involuntária, como se vê, por exem-
europeus do início do século XX, como James Joyce plo, nos relatos de Pedro Nava e Augusto Meyer.
e Virginia Woolf, também repercutiram entre os es- Sobre a expectativa com que os escritores brasi-
critores brasileiros de então. Mas nenhum deles teve, leiros aguardavam a chegada, de navio, vindos da
nem de longe, o alcance, o impacto e a onipresença Europa, dos livros recém-publicados no Velho Con-
de um monumento da dimensão de À la recherche tinente, sobretudo os volumes de À la recherche du
du temps perdu em todas as esferas do fazer literá- temps perdu, observe-se o comentário de Pedro Nava
rio nacional, inclusive simbolicamente — o grande em Beira-mar: memórias/4, ao evocar a Livraria Al-
romancista francês faleceu no dia 18 de novembro ves, no centro da capital mineira, onde se procedia
de 1922, mesmo ano em que, meses antes, em feve- à “abertura dos caixotes” do material recebido e “o
reiro, as apresentações artísticas da Semana de Arte encontro num deles, dos livros que introduziram a
Moderna, no Theatro Municipal de São Paulo, ques- Recherche em Belo Horizonte” (1985, 4 ed., p. 97). A
tionaram os dogmas literários “oficiais” e escandali- novidade era disputada de forma acirrada entre lite-
zaram a conservadora sociedade paulistana. A me- ratos, editores e leitores curiosos.
morialística modernista brasileira é tão proustiana, Após essa primeira fase, de descoberta da novida-
em seus temas, ambientações e sugestões, que não de por parte de intelectuais que liam fluentemente no
lhe falta nem o registro em gênero diverso do narra- idioma francês, dois fatores impulsionaram a recepção
tivo e nem mesmo, na prosa, a figura do menino as- crítica do romance de Marcel Proust no Brasil: a pu-
mático e de saúde frágil que requer constante atenção blicação, em 1950, da coletânea de ensaios Proustiana
dos familiares. Brasileira, organizada por Saldanha Coelho, com tex-
No primeiro caso, estou falando da poesia de Car- tos de autores como Sérgio Buarque de Holanda, Otto
los Drummond de Andrade em Boitempo (1968), ru- Maria Carpeaux, Raymundo Souza Dantas e Alcântara
minação do tempo perdido e reencontrado, em que Silveira, dentre muitos outros. E a tradução brasileira
se lê versos como estes, de “(In) Memória”: de À la recherche du temps perdu, empreendida pela

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Revista brasileira de estudos proustianos - 2021

Editora Globo, de Porto Alegre, a partir de fins da dé- (…). O chá e as migalhas do bolo, o gosto e o chei-
cada de 1940, sob o título de Em busca do tempo perdi- ro reconstituem aos poucos a imagem, a recorda-
do e contando, dentre os tradutores, com nomes como ção visual. O tema da memória em Proust, ligado
os de Mario Quintana (os quatro primeiros volumes), ao motivo capital da criação estética, parece uma
adaptação ao romance, da filosofia bergsoniana.
Manuel Bandeira e Carlos Drummond de Andrade.
(MEYER, 1948, p. 10).
Em Solo de clarineta: memórias (1976) e em Um
certo Henrique Bertaso: pequeno retrato em que o Sobre o “Tempo”, Meyer diz se tratar da “principal
pintor também aparece (1973), Erico Veríssimo, que personagem da obra de Proust, seu tema essencial,
trabalhou na Editora Globo como editor e tradutor, sua substância” (1948, p. 13).
descreve a aventura ousadíssima que se tornou a ini- Leitor assíduo da Recherche, é fácil identificar as
ciativa de traduzir a Recherche para a língua portu- marcas dessa leitura disseminadas ao longo de pra-
guesa, uma vez que, mesmo se tratando de uma obra ticamente todos os gêneros literários aos quais Au-
hoje considerada clássica, do ponto de vista finan- gusto Meyer se dedicou, sobretudo na poesia, nos
ceiro e comercial era um negócio de alto risco, pois ensaios críticos e em seus dois volumes de memórias,
estava-se lidando com uma obra extensa, de extrema Segredos da infância (1949) e No tempo da flor (1966),
densidade psicológica, difícil assimilação e relativa- conforme demonstro em minha tese de Doutorado
mente hermética para o gosto geral do leitor brasi- intitulada Augusto Meyer proustiano: a reinvenção
leiro. Trocando em miúdos — os próprios diretores memorialística do eu, defendida na Universidade Fe-
sabiam que comercialmente não valeria a pena, mas, deral do Rio Grande do Sul (UFRGS) em 2007 e pu-
literariamente, acabou por se tornar um empreen- blicada em livro no ano de 2014.
dimento histórico, que deixou à margem, na época, Augusto Meyer foi o primeiro escritor da inci-
grandes editoras do Rio e de São Paulo. O projeto foi piente geração modernista gaúcha a editar um livro
à frente e se materializou na edição em sete volumes de poesia, A ilusão querida, em 1923. Na década de
da magistral obra, a primeira em língua portuguesa. 1920, o fecundo poeta ainda publicaria mais quatro
Hoje em dia, Em busca do tempo perdido conta com coletâneas de versos. Em Melhores poemas de Augus-
outras três edições em português — a espetacular to Meyer (2002), com seleção e apresentação de Tania
versão do poeta Fernando Py, de 1992 (Ediouro, em Franco Carvalhal, lê-se, na seção inicial, “Alguns po-
três volumes), com base na edição definitiva da Re- emas — 1922-1923”, o soneto “Flor de maricá”, de ní-
cherche publicada pela Editora Gallimard em 1989; tida inspiração proustiana, no qual o eu-lírico, assu-
e duas portuguesas, assinadas, respectivamente, por mindo abertamente a saudade que sente da infância,
Maria Gabriela Bragança e Pedro Tamem. relaciona a evocação do passado à memória olfativa:
O poeta, crítico, folclorista e memorialista gaúcho Este perfume tão fino
Augusto Meyer (1902-1970) participou dos dois em- é a saudade de um perfume
preendimentos. Na Proustiana Brasileira, é dele o en- e parece que resume
saio “Relendo Marcel Proust” (1950, pp. 63-71). No o amor de um poeta menino.
projeto ambicioso da Editora Globo, Meyer assumiu
Era um doce desatino
a responsabilidade de redigir uma espécie de dicio- era este mesmo perfume
nário de verbetes, intitulado “Notas para a leitura de e em meu peito um vivo lume,
No caminho de Swann”, que acompanha a primeira um nome, um segredo, um hino!
edição (1948) do primeiro volume do roman-fleuve,
No caminho de Swann, em tradução de Mario Quin- Mas onde estás, poeta louro?
tana. No verbete “Memória”, por exemplo, afirma o E onde está o teu tesouro
de amor, de mágoa e queixume?
escritor porto-alegrense que
[Marcel Proust] Estabelece distinção entre a me- De tudo aquilo, ficou-me
mória voluntária, ou da inteligência, e a associa- o vago aroma de um nome
ção evocativa, provocada por algum objeto que a e a saudade de um perfume
memória inconsciente impregnou de sensações (MEYER, 2002, p. 36).

39
Intermitências 1

Em “Elegia para Marcel Proust”, de Giraluz (1928), da literatura psicológica, a quem chama de “os três
poema cuja quarta estrofe utilizo como epígrafe des- primos dessa família espiritual” (p. 166), a partir da
se artigo, a confissão explícita da influência, lirismo “consciência da fragilidade do instante e a angús-
mnemônico que ecoaria fundo no conjunto da obra tia de sentir a vida fugindo” (p. 165), do “horror ao
de Meyer, sintetizado nas estrofes finais, verdadeira nada” (p. 166), e da “dissociação da personalidade”
explosão de sinestesias, na sequência da belíssima (p. 169). A grande questão que a leitura de suas obras
imagem da “amêndoa negra” e penetrante do olhar suscita, segundo o crítico, é o “problema psicológico
do escritor francês: da criação literária, no caso de alguns escritores mo-
Cetim róseo das macieiras no azul. dernos mais particularmente representativos dessa
Flora carnal das raparigas no à beira-mar. atitude estética (…); por efeito de leituras compara-
Bruna esfuminho Paris pela vidraça tivas, tratava-se de Proust, Pirandello e Machado de
Intermitências chuva e sol Le temps perdu. Assis” (p. 165).
No capítulo “Ao leitor”, de À sombra da estante
Marcel Proust, diagrama vivo sepultado na alcova,
(1947), posteriormente incluído na coletânea Tex-
o teu quarto era maior que o mundo:
cabia nele outro mundo…
tos críticos (1986), com seleção e introdução de João
Alexandre Barbosa, Meyer exalta a importância da
Fecho o teu livro doloroso nesta calma tropical leitura e seu caráter transfigurador na formação inte-
como quem fecha leve leve a asa de um cortinado lectual das pessoas, algo muito próximo daquilo que
sobre o sono de um menino… Marcel Proust escreveu, em 1905, portanto antes da
(MEYER, 2002, pp. 62-3). Recherche, no prefácio para a sua tradução (intitula-
da Sésame et les Lys) do romance Sesame and Lilies
Em 1937, a convite do presidente Getulio Vargas, (1865), do escritor britânico John Ruskin. O notável
Augusto Meyer se mudou para o Rio de Janeiro a texto de Proust foi publicado pela Editora Pontes, em
fim de se tornar o primeiro diretor do recém-criado 1989, com o título de Sobre a leitura e tradução de
Instituto Nacional do Livro (INL), praticamente in- Carlos Vogt. Leiamos os dois trechos iniciais em co-
terrompendo sua produção poética e passando a se tejo, para compreendermos a analogia entre as duas
dedicar exclusivamente à crítica literária e às ativi- convincentes argumentações. Proust abre seu texto
dades burocráticas vinculadas ao Instituto. Publicou, sugerindo que
dentre outros, os seguintes volumes de ensaios crí-
ticos: Machado de Assis (1935); À sombra da estante Talvez não haja na nossa infância dias que tenha-
mos vivido tão plenamente como aqueles que pen-
(1947); Le Bateau Ivre: análise e interpretação (1955);
samos ter deixado passar sem vivê-los, aqueles que
Preto & branco (1956); Camões, o bruxo e outros es-
passamos na companhia de um livro preferido
tudos (1958); A chave e a máscara (1964); e A for- (2003, 4 ed., p. 09).
ma secreta (1965); além de incursões pelo terreno da
pesquisa folclórica e do regionalismo, que resultaram Meyer inicia da seguinte forma:
nas obras Cancioneiro gaúcho (1952); Gaúcho, histó- Ler um livro é desinteressar-se a gente deste mun-
ria de uma palavra (1957); e Prosa dos pagos (1960). do comum e objetivo para viver noutro mundo. A
Como se vê, Augusto Meyer foi leitor íntimo e janela iluminada noite a dentro isola o leitor da re-
crítico contumaz de boa parte do cânone literário alidade da rua, que é o sumidouro da vida subjeti-
ocidental, voltando com regularidade à análise, so- va. (…) O homem, prisioneiro do círculo claro da
bretudo, de obras de Luiz de Camões, Arthur Rim- lâmpada, apenas ligado a este mundo pela fatalida-
de vegetativa do seu corpo, está suspenso no ponto
baud, Miguel de Cervantes, William Shakespeare,
ideal de uma outra dimensão, além do tempo e do
Machado de Assis, Luigi Pirandello e Marcel Proust. espaço. No tapete voador só há lugar para dois pas-
Acerca dos três últimos, antes mesmo de a Literatura sageiros: autor e leitor
Comparada se sedimentar, no Brasil, como discipli- (1986, p. 05).
na acadêmica e importante campo de investigação,
Meyer, em “Os três primos” (Preto & branco, 1956, O escritor brasileiro assume explicitamente a su-
pp. 165-70), aproxima a obra desses grandes mestres gestão do tema — em nota de rodapé, lembra que

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Revista brasileira de estudos proustianos - 2021

“Proust escreveu páginas admiráveis sobre o encanto madeleine para a obra de Proust. A origem biográ-
da leitura, ao prefaciar a sua tradução de Sesame and fica da evocação remete a uma experiência familiar,
Lilies” (MEYER, 1986, p. 03). de deslocamento e necessidade de adaptação, a uma
Todavia, engana-se quem pensa que a atividade região de clima bem mais inóspito que o da capital.
crítica de Augusto Meyer teve início com o icono- Nascido em Porto Alegre, Augusto conheceu o ge-
clasta ensaio sobre a obra de Machado de Assis, em lado inverno do interior sul-rio-grandense em ten-
1935. Na década de 1920, ele já assinava textos sema- ra idade, ao acompanhar o pai, nomeado gerente de
nais em dois dos principais jornais de Porto Alegre, minas de volfrâmio no pequeno município de Cerro
Diário de Notícias e Correio do Povo, demonstrando d’Árvore, nos pampas gaúchos, localidade que dá tí-
um conhecimento precoce e assombroso dos clás- tulo ao primeiro capítulo de Segredos da infância.
sicos da literatura para os padrões de um jovem de A alusão ao vento é imediata, feita logo nos pri-
vinte e poucos anos de idade, fato que comprova que meiros parágrafos do capítulo de abertura, acentuan-
a influência da leitura da Recherche tem ressonância do sua importância e direcionando o olhar do leitor
imediata em suas reflexões literárias. No Diário, pu- para a principal manifestação involuntária de sua
blica, em agosto de 1930, a crônica “Discurso do zao- memorialística, quando a “cadeia”, aparentemente
ri”. No Correio, dentre outros, veicula “Proust, o zao- malograda, “entre o homem e a criança”, se restabele-
ri” em maio de 1930 e “A culpa é de Reinaldo Hahn”, ce em definitivo:
em setembro do mesmo ano. Além de crônicas e en- Minha primeira recordação é um muro velho, no
saios sobre a obra de Proust, é significativa a alusão quintal de uma casa indefinível. (…) Depois, o ven-
à evocação do passado e às recordações da infância to da campanha, sobre o nosso rancho no Cerro
em crônicas as mais variadas, cujos títulos já indicam d’Árvore. Era uma voz tão grave, que metia medo.
a filiação proustiana, tais como “Tema da infância” Mais tarde, senti a mesma impressão ao atravessar
(junho de 1930); “Lembrança” (agosto de 1930); e “A os campos da fronteira. Como a um toque mágico,
criança e o homem” (agosto de 1935), todas estas pu- restabeleceu-se a cadeia entre o homem e a criança.
blicadas no Correio do Povo. Arquipélagos submersos de recordações vieram à tona.
Não tendo produzido narrativas em gêneros como (MEYER, 1949, pp. 11-2; grifos meus).
conto ou romance e tendo deixado momentanea- Minha intenção, ao grifar algumas expressões em
mente de lado a elaboração poética após a mudança itálico, é demonstrar o apelo de Meyer a mecanismos
para o Rio de Janeiro, Augusto Meyer deu vazão a seu inconscientes de lembranças que ressurgem espontâ-
profundo lirismo através de dois magníficos volumes nea e involuntariamente, acionadas quando o escri-
de memórias, Segredos da infância (1949) e No tempo tor retorna ao lugarejo, ponto de partida da memória
da flor (1966), ambos impregnados de uma explícita afetiva do menino e ponto de chegada do narrador
atmosfera proustiana, nos quais avultam inúmeras adulto das memórias. O medo sentido na infância
manifestações da memória involuntária, evocadas repercute vida afora, e será, no futuro, o gatilho da
através de um pungente e nada piegas sentimento memória involuntária do narrador, manifestação po-
de nostalgia da longínqua infância, abandonada em derosa e monopolizadora, pois “O vento mandava
alguma querência distante, perdida na curva do mi- naquelas várzeas e canhadas. Senti-o, desde o come-
nuano. Meyer havia planejado a redação de uma tri- ço, dominando tudo, sacudindo o rancho nas noites
logia memorialística, cujo terceiro e último volume frias, quando eu acordava com medo e ouvia lá fora o
receberia o sugestivo título de Becos da memória, mas seu gemido” (MEYER, 1949, p. 14).
não conseguiu finalizar o projeto, tendo falecido no Essa sensação híbrida, de medo, emoção e ex-
dia 10 de julho de 1970, exatos noventa e nove anos tratemporalidade, acompanha os demais capítulos,
após o nascimento de Marcel Proust! sempre focados em suas recordações da infância,
O potente vento do Rio Grande do Sul, tão caro às como o título da obra anuncia, prática que se repete
recordações de Augusto Meyer, é o mais significativo no volume seguinte, No tempo da flor, o segundo de
episódio da memória involuntária a atuar na evoca- sua memorialística, cujo período de vida retratado se
ção do escritor, adquirindo relevância equivalente à desloca para a adolescência, intensamente vivida nos

41
Intermitências 1

botecos, cinemas, livrarias e bibliotecas da idiossin- confuso e indiscreto”, deixando “um gosto de invernos
crática Belle Époque porto-alegrense, com gosto de mortos na lufada e enquadrou-se na moldura da janela
chope e chimarrão, “gatilho das comoções latentes”, o vulto esguio do adolescente que já fui” (p. 84).
conforme sintetiza na crônica “A criança e o homem”. Em sua produção poética, o vento também está
Nesse sentido, é significativo o início do capítulo presente de modo impactante. No poema “Galpão”,
“No tempo da flor”, homônimo ao título do livro: de Giraluz (1928), incluído na coletânea Poesias
O rumorejar do vento nas árvores desperta esque- (1922-1955), lê-se que são os campos que sentem
cidas recordações. Como aquele azulão pousado medo do vento, e não os destemidos campeiros:
na ponta do mais alto ramo, antes de levantar vôo Vêm de fora os rumores do campo medroso
(sic), a memória hesita, voltada para todos os la- e o seu grulho noturno pede silêncio:
dos do passado. Mas, de súbito, a intuição acerta o
rumo e vai direita e rápida, como ave de arribação o vento o vento o vento viaja,
atraída pelo faro de outra querência: a saudade do o vento viaja para o outro mundo…
tempo da flor…
Os campeiros são graves como a lembrança
(MEYER, 1966, p. 39; grifo meu).
de tudo que já passou.
Não se trata de coincidência — não é por acaso Morrem os olhos na cinza morta.
que Augusto Meyer utiliza a expressão “de súbito” — a brasa viva se apagou.
(equivalente ao tout d’un coup proustiano) e intitu-
la seu segundo livro de memórias em alusão ao tí- (MEYER, 1957, p. 71).
tulo escolhido por Mario Quintana para a tradução Conclui-se, assim, que a obra de Marcel Proust,
de À l’ombre des jeunes filles en fleurs (À sombra das com sua profunda complexidade psicológica e pro-
raparigas em flor). Afinal, “Bem sei, visto de longe, e blematização do tempo reencontrado nos acessos
por saudade, o tempo da flor é só aroma; vivido, é es- involuntários de uma memória não confiável, traiço-
pinho também” (MEYER, 1966, p. 40). Em suma, so- eiramente produtiva em sua insidiosa penetração e
mente os títulos, Segredos da infância e No tempo da reativação intermitente, ecoou fundo em várias esfe-
flor, por si sós já dizem muito sobre a adesão explícita ras da produção literária de Augusto Meyer, na poé-
de Augusto Meyer ao universo da Recherche. tica, ensaística e memorialística sobretudo, fechando
Assim como em Segredos da infância, ao longo das um ciclo de ressonâncias e influências, algumas assu-
lúdicas páginas de No tempo da flor há diversas refe- midas e outras sub-reptícias, que marcaram em de-
rências ao vento, nas mais variadas formas, nem sem- finitivo a obra do grande poeta e crítico modernista
pre relacionadas a lembranças da infância, mas geral- brasileiro, sugestionada pela “amêndoa negra” de um
mente como símbolo de bravura e da coragem de se olhar que prenunciou o longo alcance que a análise
enfrentar os desafios, sejam aqueles de um peão de psicológica viria a ocupar na literatura contemporâ-
fronteira que se abastece de “vento e galope” em “Do nea ocidental.
tempo da espanhola” (MEYER, 1966, p. 60); ou a “au-
dácia” juvenil de ler José de Alencar no telhado de sua Bibliografia
casa, na Praça da Matriz, em Porto Alegre, e em outros
lugares, no “não-sei-onde da memória imprecisa —, ANDRADE, Carlos Drummond de. Boitempo & a
mas sempre em todos eles, como um fio evocativo, está falta que ama. 3 ed. Rio de Janeiro: Livraria José
entremeado um cicio de vento a rumorejar na folha- Olympio, 1976.
gem” (“Alencar no telhado”, p. 75); ou, em “Importuna
memória”, através da menção à liberdade do adoles- BUNGART NETO, Paulo. Augusto Meyer proustiano:
cente que se impressionara, desde cedo, com o “espetá- a reinvenção memorialística do eu. Campo Gran-
culo da prostituição” na Praça da Matriz, evocação que de-MS: Editora UFMS; Dourados-MS: UFGD,
o narrador adulto reativa “aos primeiros frios”, quando 2014.
as lembranças, despertadas pelo vento que atirava “go-
tas miúdas na vidraça”, lhe “importunaram em bando

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Revista brasileira de estudos proustianos - 2021

MEYER, Augusto. “Ao leitor”. In: Textos críticos. Seleção e organização de João Alexandre Barbosa. São Paulo:
Perspectiva; Brasília-DF: Instituto Nacional do Livro / Fundação Nacional Pró-memória, 1986, pp. 03-10.

_______________. “Elegia para Marcel Proust”. In: Melhores poemas de Augusto Meyer. Seleção e apresenta-
ção de Tania Franco Carvalhal. São Paulo-SP: Global Editora, 2002, pp. 62-3.

_______________. “Flor de maricá. In: Melhores poemas de Augusto Meyer. Seleção e apresentação de Tania
Franco Carvalhal. São Paulo-SP: Global Editora, 2002, p. 36.

_______________. “Galpão”. In: Poesias (1922-1955). Rio de Janeiro-RJ: Livraria São José, 1957, p. 71.

_______________. “Notas para a leitura de No caminho de Swann”. In: PROUST, Marcel. No caminho de Swa-
nn. Tradução de Mario Quintana. Porto Alegre-RS: Globo, 1948.

_______________. No tempo da flor. Rio de Janeiro: O Cruzeiro, 1966.

_______________. “Os três primos”. In: Preto & branco. Rio de Janeiro: MEC / INL, 1956, pp. 165-70.

_______________. “Relendo Marcel Proust”. In: COELHO, Saldanha (Org.). Proustiana brasileira. Rio de
Janeiro-RJ: Revista Branca, 1950, pp. 63-71.

_______________. Segredos da infância. Porto Alegre: Globo, 1949.

NAVA, Pedro. Beira-mar memórias/4. 4 ed. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 1985.

PROUST, Marcel. No caminho de Swann. Tradução de Mario Quintana. Porto Alegre: Globo, 1948.

PROUST, Marcel. Sobre a leitura. Tradução de Carlos Vogt. 4 ed. Campinas: Pontes, 2003.

RAMOS, Graciliano. Memórias do cárcere. 2 v. Rio de Janeiro: Record, 1996.

REGO, José Lins do. Meus verdes anos: memórias. 3 ed. Rio de Janeiro: Livraria José Olympio, 1976.

SANTIAGO, Silviano. Nas malhas da letra: ensaios. Rio de Janeiro: Rocco, 2002.

TEZZA, Cristovão. O professor. 2 ed. Rio de Janeiro: Record, 2014.

VERÍSSIMO, Erico. Solo de clarineta: memórias. 2 v. 9 ed. Porto Alegre: Globo, 1976.

VERÍSSIMO, Erico. Um certo Henrique Bertaso: pequeno retrato em que o pintor também aparece. Porto Ale-
gre: Globo, 1973.

Paulo Bungart Neto é Doutor em Literatura


Comparada pela UFRGS (2007). Docente
dos cursos de Graduação e Mestrado em
Letras da UFGD desde 2008. Concluiu
recentemente estágio Pós-Doutoral na UCL
(Londres-Inglaterra).
E-mail: pauloneto@ufgd.edu.br.

43
Intermitências 1

Marcel
Proust et
Jorge de
Lima
Etienne Sauthier

L ancé il y a quelques années dans une recherche de doctorat sur la diffusion, la réception et la traduction de
l’œuvre de Marcel Proust, et plus spécifiquement d’À la recherche du temps perdu j’avais été réduit à rechercher
les différents points d’entrée de l’œuvre au Brésil. Ce processus d’arrivée avait eu lieu à la faveur de la diffusion du
Prix Goncourt de 1919, dont la presse des grandes villes du pays parlait, du témoignage de Brésiliens présents à
Paris au moment de la parution de Du côté de chez Swann chez Grasset ou encore à travers l’arrivée des volumes
chez les libraires et de l’effervescence à laquelle l’arrivée de ces caisses d’ouvrages si attendues donnaient lieu. Au
gré de cette recherche, la découverte de l’auteur, dans le nordeste brésilien, d’une thèse sur l’auteur de la Recherche
dès 1929 ne pouvait qu’interpeler. Ce travail impressionnait par sa dimension pionnière, mais aussi par son
originalité dans le champ littéraire brésilien de l’époque. Jorge de Lima (1895-1953), fils d’un commerçant de
l’état d’Alagoas dans le Nordeste brésilien s’était formé en médecine à Salvador de 1909 à 1914, avait terminé ses
études à Rio de Janeiro en 1915 et était retourné dans l’Alagoas, à Maceió en 1916, où il avait ouvert un cabinet
médical dont les aviateurs Latécoère de la base de Maceió étaient des patients au tournant des années 1920. Si
cette thèse date de 1929, la découverte d’intertextualités proustiennes évidentes dans un des poèmes de l’auteur
en 1925 montre que celui-ci avait sans doute alors une fine connaissance de Proust. Je me demandais comment
un auteur d’une ville périphérique du Nordeste pouvait avoir lu Proust et l’intégrer de manière aussi ferme aux
problématiques de son espace de réception avant 1925, à un moment où l’arrivée de l’auteur, même à Rio de
Janeiro ou São Paulo, était encore largement limitée. Au cours de recherches sur Jorge de Lima et le régionalisme
nordestin, je découvrais une des premières réceptions les plus romanesque et parmi les plus originales de l’œuvre
de Proust au Brésil.
À un moment où la réception tend à Rio de Janeiro à se faire en lien avec les thématiques urbaines et parisiennes de
Proust1 et où à São Paulo, elle parait ne pas de réaliser, Jorge de Lima, et cela est perceptible déjà en 1925 sous forme
d’intertextualités dans son poème O mundo do menino impossivel2 semble mettre en évidence le grand absent parmi les
volumes de la Recherche dans sa réception à Rio ou à São Paulo : Du côté de chez Swann et en particulier la dimension
provinciale de Combray. Ce poème de Jorge de Lima, qui semble s’installer totalement dans le rejet de l’importation
européenne que reproche le Régionalisme, courant intellectuel et littéraire nordestin, aux espaces de Rio de Janeiro
comme de São Paulo, le fait paradoxalement en s’inscrivant dans une intertextualité parfaitement proustienne3. En
effet, au moment où l’enfant casse ses « parfaits jouets » venus d’Europe et offerts par ses grands-parents, il n’y a

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Revista brasileira de estudos proustianos - 2021

rien d’innocent à ce qu’il le fasse au Ce qu’il y avait de plus Proust en


coucher, « à l’embouchure de la nuit », Proust, sans aucun doute, c’était
et s’il n’est pas bercé par « mère nègre son enfance. C’était le souvenir de
nuit », c’est bien dans son attente qu’il cet enfant qui à l’âge d’homme lui
a apporté plus fréquemment les
semble tout détruire. Il est enfin essentiel
délices de la mémoire consciente et
de signaler la lampe qui s’éteint contre le
plus encore, les rencontres si vivaces
mur de la maison à la fin du poème en avec l’homme extra-temporel, qui
fascinant l’enfant : transposition rurale et est sa création. Eh bien cet enfant
nordestine de la lampe merveilleuse du Proust [En français dans le texte]
narrateur dans sa chambre de Combray. était l’enfant dans lequel les élises,
Cette inscription dans l’intertextualité les cloches, les douceurs de la
proustienne nous mène à nous grand-mère, les petites choses dans
demander si le Proust de Combray n’a le voisinage de sa chère Combray
pas été une des clés de construction comme La lisière du bois de
d’une certaine identité nordestine, auquel Roussainville [En français dans le
texte] sont restés à jamais.
cas on pourrait paraphraser Anne-Marie
Thiesse et remarquer « qu’il n’y a rien de
plus international que la construction des Jorge de Lima souligne qu’en chaque
identités nationales ».4 endroit où il a vécu, le narrateur a gardé
Cette hypothèse pourrait trouver écho le souvenir de son lieu provincial de
dans l’essai sur Proust que Jorge de Lima l’enfance et qu’à cet égard les clochers,
publie en 1929.5 Cet essai a été écrit pour les cloches et leurs sons, sont un élément
essentiel, en lien avec la dimension 1. Sur cette question, voir : Etien-
briguer une place d’enseignement de ne Sauthier, « De Combray à Rio
littérature au Liceu Alagoano de Maceió catholique de l’enfance du narrateur de Janeiro : lectures et appropria-
dans l’état d’Alagoas. À la demande du de la Recherche.6 Si Jorge de Lima n’est tions brésiliennes de Marcel Proust
pas dupe et très conscient de ramener (1919-1958) », Brésil(s) [En ligne],
directeur de l’établissement, c’est José 10 | 2016, mis en ligne le 30 novem-
Lins do Rego, écrivain brésilien et ami à lui, à son identité provinciale et à son bre 2016. URL : http://journals.ope-
de Jorge de Lima qui choisit les sujets de propre catholicisme la lecture qu’il fait nedition.org/bresils/2093 ; DOI :
de l’œuvre de Proust, ce qu’il confesse 10.4000/bresils.2093
concours et qui parmi ceux-ci indique À
la recherche du temps perdu. Cet essai sur textuellement,7 avant de procéder à 2. Jorge de Lima, O mundo do me-
nino impossível, Maceió: Casa Tri-
Proust de Jorge de Lima a la particularité l’analyse du narrateur confondu avec gueiros, 1925.
d’inscrire essentiellement l’auteur de la l’auteur au moyen d’une une grille de
3. Sur ce poème et sa dimension
Recherche dans la perspective provinciale lecture jungienne,8 on ne peut que proustienne, voir aussi : Etienne
qui est adoptée dans la seconde partie de constater que quelques pages plus tard, Sauthier, « Brasilianiser Proust —
celui-ci revient à « la sainte église » La Nature comme élément d´assi-
Du côté de chez Swann : Combray. Dans milation de l´importation culturelle
un premier temps, celui-ci signale que dans Proust et à « l’église libératrice ».9 — (1920-1960). », Forum for intera-
la multiplication des personnages n’est Plus loin, Jorge de Lima parle de la merican Research, 9.2 (Sep. 2016) :
discussion entre la mère de Proust et p. 55-71.
pas une caractéristique proustienne,
puis, après avoir observé la comparaison Proust sur les cloches de Combray,10 4. Anne-Marie Thiesse, La créa-
avant de s’attacher aux thèmes croisés de tion des identités nationales. Europe
souvent faite entre Proust et Wagner, XVIIIe-XXe siècles, Paris, Seuil, coll.
signale que Proust et Wagner ne sont l’église et de la masculinité chez Proust.11 « Points Histoire », 2001 [1999].
pas comparables, cependant, au sous- On ne peut que constater ainsi que les 5. Jorge de Lima, Dois ensaios, Ma-
titre « ce qu’il y avait de plus Proust en thématiques les plus présentes dans ceió, Casa Ramalho, 1929.

Proust », Jorge de Lima signale la chose l’essai de Jorge de Lima, sont le rapport 6. Ibid, p. 18-19.
suivante : à la province et au catholicisme et une
7. Ibid., p. 25.
réflexion sur l’homosexualité de Proust
8. Ibid., pp. 29-30.
et sa dimension morale. Si l’auteur est
rapproché par Jorge de Lima à James 9. Ibid., pp. 31-3.

45
Intermitências 1

Joyce, Henry James, Meredith, Balzac fenêtre ouverte sur un jardin ou si le


ou Hugo, à des auteurs d’une certaine domestique oubliait un petit vase de
universalité littéraire et issus d’une fleurs dans la chambre, me voici dans
culture importée depuis l’espace que un clair sommeil avec Constance,
qui a rempli de douceur les jours de
Pascale Casanova appelle le « Méridien
mon enfance. Une fois, durant une
de Greenwich »,12 il est toutefois assez
période de persécution politique qui
remarquable que les thématiques suivit une de nos révolutions, nous
essentielles de l’essai de Jorge de Lima fûmes arrêtés, moi et trois camarades
ramènent Proust à la région nordestine étudiants, pour subversion : la police
et avec son identité telle que construite avait trouvé sur nos tables de travail
régionalement à la même période :13 quelque roman russe. Au poste, après
catholicisme, identité provinciale et nous avoir méthodiquement roués
rurale et idéal de virilité. C’est bel et bien de coup, ils nous laissèrent dans une
ainsi à une autodéfinition identitaire cellule grillagée qui donnait sur un
de l’espace de réception que constitue toit obscur. Malgré tout le cirque qui
venait d’arriver, je me suis réveillé
le Nordeste du Brésil que l’on retrouve
au matin en rêvant de Constance :
chez Jorge de Lima. Celle-ci passe par
le parfum d’un jasmin en fleur était
ce que l’on pourrait percevoir comme venu, par-dessus les toits, de quelque
l’importation culturelle ultime, à un balcon distant ou du petit jardin des
moment où Proust parait souvent à ses modestes maisons du quartier .14
lecteurs comme très marqué par l’espace
parisien. On le constate ainsi : Jorge de Lima est
Dans les années 1930, Jorge de Lima une des figures de proue de la réception
quitte le Nordeste et durant les années de l’auteur de la Recherche au Brésil
de violence politique que constituent et sans doute une des plus originales,
ces années au Brésil, dans son roman cependant, plus que toute chose, il est un
A Mulher Obscura, il insère ce passage parfait exemple du fait que lire un auteur,
qui a la particularité d’amalgamer deux en faire la critique ou à plus forte raison le
thématiques proustiennes, les lits et la pasticher, c’est aussi se lire en lui dans son
demi conscience au réveil comme la identité, individuelle comme collective.
mémoire involontaire, présentée ici par Au final, comme le dit l’auteur de la
l’odeur du jasmin, tout en y joignant Recherche lui-même : « En réalité, chaque
une réflexion sur son époque et son lecteur est quand il lit, le propre lecteur
10. Ibid., p. 38.
anticommunisme forcené. de soi-même. L’ouvrage de l’écrivain n’est
qu’une espèce d’instrument d’optique
11. Ibid., p. 40. De nombreuses années se sont qu’il offre au lecteur afin de lui permettre
12. Pascale Casanova, La Répu- passées, et voilà à nouveau que je dors de discerner ce que sans ce livre, il n’eût
blique Mondiale des Lettres, Paris, à Madalena, après avoir dormi dans
Seuil, 1999. peut-être pas vu en soi-même »15
les milliers de chambres du monde.
13. Durval Muniz de Albuquerque Dans toutes, des chambres accolées à
Jr., A invenção do Nordeste, São Pau- des grandes avenues mouvementées, Etienne Sauthier é professor secundário na
lo, Cortez, 2009.
à des cabarets, en cabine sur les Académie de Créteil (França). Doutor em
14. Jorge de Lima, A mulher obscu- eaux de l’océan, près d’églises, de Estudos Latino-Americanos pela Université
ra, (1939), 2 ed., Rio de Janeiro, Li- Sorbonne Nouvelle – Paris 3, possuí pós-dou-
vraria Agir Editora, 1959, p. 25.
forêts, des quais, des couvents, des torado pela UNICAMP, sócio-pesquisador
hôpitaux, des casernes, dans toutes, no CREDA (Centre de Recherche et de Do-
15. Marcel Proust, Le temps retrou- les rumeurs ambiantes ont toujours cumentation surles Amériques). Publicou em
vé, In: Marcel Proust, À la recherche 2021, Proust sous les tropiques: Diffusion, ré-
du temps perdu, Pléiade, Gallimard, altéré mes sommeils. Dans toutes, si
ceptions, appropriations et traduction de Mar-
1987-1989, IV, p. 490. par hasard, il m’arrivait de dormir la
cel Proust au Brésil (1913-1960) (Septentrion).

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Revista brasileira de estudos proustianos - 2021

De Combray
a Caruaru
Caminhos de uma província recriada

Amilcar Almeida Bezerra


Luiz Ribeiro

Nas noites frias da tua cidade, da Rua São


Sebastião até a Rua da Matriz, passas elegante
e garboso, vestindo a japona do Mané, não era
um sonho, tinha vindo de Moscou.

Hiram Fernandes Lima, Banho de Cheiro:


Carlos Fernando em pequenas doses

Le ciel de Combray, ilustração de Gilles Diniz.

Dans cet essai, basé sur une lecture comparative


de À la recherche du temps perdu, nous
présentons et analysons l'album musical
Crônicas Musicais de Caruaru, sorti en 2007
par le compositeur et producteur Carlos
Fernando, avec des chansons en l'honneur de
sa ville natale, situé à la campagne de l’état de
Pernambouc. On observe non seulement le rôle
de la mémoire affective comme fil conducteur
de leurs récits, mais aussi la transfiguration des
lieux et des personnages à travers la création
artistique.

47
Intermitências 1

Uma vez, Ferreira Gullar argutame- de artistas posteriores, entre outros as-
pectos, pelo modo singularmente mo-
te observou: “a cidade está no homem derno com que descreve nossa relação
/ quase como a árvore voa / no pássaro com a memória autobiográfica.
que a deixa”. Talvez por esta razão, ao No entanto, cabe perguntar: de que
embarcar no voo da memória prous- forma essa influência nos atinge, en-
tiana, somos apresentados a diversas quanto pensadores brasileiros e, espe-
localidades que se desvelam sob a ótica cificamente, nordestinos?
do autor: inicialmente Combray, depois A interlocução entre a Recherche
Paris, Balbec e Doncières. proustiana e as expressões artísticas de
Estação inicial deste que pode ser um Nordeste multifacetado é algo que,
considerado, à primeira vista, um bil- embora seja fonte de arguições desde o
dungsroman ou “romance de forma- século passado, ainda merece, sem dú-
ção”, Combray é o lugar através do qual vida, a nossa atenção. Em 1949, Ader-
travamos o primeiro contato com per- bal Jurema, político e professor parai-
sonagens basilares para o desenrolar bano — ao se perguntar quem não
poético e existencial dos sete volumes ficaria a recordar “as torres da igreja de
de Em busca do tempo perdido. Ali, o sua província” durante a leitura de No
Narrador inicia seu voo errante pelo caminho de Swann —, já afirmava que
labirinto do tempo e da memória, e
nós, leitores sempre fiéis, o seguimos. […] tanto faz que estejamos em
Estas províncias, ao longo do roman- Pernambuco ou em Combray, na
ce, se situam como entidades elásti- geografia da memória o conceito
cas, misteriosas, que se transformam de latitude e de longitude é tão livre
à medida em que são minuciosamente e arbitrário quanto das fórmulas da
descritas pelo autor. Lugares que re- reta-gramática para o legítimo po-
fluem das recordações e se dilatam, a eta. Por isso aqui estamos irmana-
exemplo do que nos diz Ítalo Calvino dos a quem soube interpretar com
vigor e sensibilidade únicas a eter-
em seu As cidades invisíveis.
na procura do tempo perdido.1
É certo que muitos artistas, sejam
escritores, diretores de cinema, fotó-
Dessa maneira, temos como obje-
grafos, compositores ou pintores — a
tivo, neste ensaio, a partir de uma lei-
exemplo de Virginia Woolf nas crô-
tura comparada de Em busca do tempo
nicas de Cenas londrinas (1931), da
perdido, apresentar e analisar o álbum
cinematografia autobiográfica de Fe-
musical Crônicas Musicais de Caruaru,
derico Fellini que tem em Amarcord
lançado no ano de 2007 pelo composi-
(1973), sua obra-prima, de Caetano
tor e produtor Carlos Fernando em ho-
Veloso em canções como “Motriz”
menagem à cidade natal, localizada no
(1983) e “Genipapo absoluto” (1989)
interior de Pernambuco.2
ou de Alfonso Cuarón no seu recente
1.A. Jurema, “Nós e Proust”, Nor- Nascido no ano de 1938, Carlos Fer-
deste, Recife, ano IV, n. 5, nov./dez. filme intitulado Roma (2018) — am-
nando se popularizou por meio do fre-
1949. bientado, apesar do nome, na Cidade
vo-canção, sendo o responsável pela co-
2. Com cerca de 350.000 habitantes, do México — produziram recriações
letânea Asas da América, que durou de
localizada no Agreste pernambuca- de seus lugares de origem a partir des-
no, a 130 km da capital Recife, Ca- 1979 a 1993, e representou um impulso
sa transfiguração estética da memória.
ruaru é considerada a cidade mais modernizador ao adicionar instrumen-
importante do interior do estado, e Também é notória a influência direta
tos como guitarra, baixo, bateria e tecla-
a terceira mais populosa do interior ou indireta de Proust sobre as gerações
nordestino. do aos tradicionais arranjos do gênero

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Revista brasileira de estudos proustianos - 2021

O compositor Carlos Fernando, na loja Passa Disco, em Recife-PE.


Foto: Fábio Cabral.

musical. “Banho de Cheiro”, uma de suas canções mais A memória é um elemento misterioso, quase inde-
famosas, alcançou sucesso na voz da cantora paraiba- finido, mas que nos liga às coisas que nem lembra-
na Elba Ramalho. mos de ter vivido. […] Para mim, são mais reais as
Embora nada indique que tenha sido leitor con- coisas que eu inventei. […] Eu agora percebo que
as duas reconstruções cinematográficas, de uma
tumaz de Proust, Fernando evoca em sua obra pro-
Rimini que eu refiz completamente, pertencem
cedimentos artísticos nos quais os voos da memória
muito mais à minha vida do que a Rimini real, do
também empreendem a livre recriação de situações, que a versão topograficamente precisa da pequena
personagens e lugares. Admirador do cinema de Fe- cidade na costa Adriática.3
derico Fellini, reproduz em muitas de suas canções a
estrutura picotada dos fragmentos da reminiscência Tomando como gancho esta fronteira imprecisa
e enfatiza traços pitorescos enfatiza traços pitorescos que separa a cidade real e a cidade imaginária, ressal-
de personagens e paisagens urbanas de sua infância tamos também que, entre a Combray proustiana e a
e juventude. localidade geograficamente localizável, incidem cer-
A ideia de que o cinema é como um “sonho pú- tos fluxos e trocas que, muitas vezes, confundem as
blico”, ou seja, um agenciamento inconsciente das duas: prova disso é que Illiers, cidadezinha próxima a
representações da memória reestruturadas sob a me- Paris que serviu de substrato para a criação da cidade
diação de uma linguagem artística, atravessa a obra que lemos na Recherche, mudou de nome, em 1971,
de Fellini e permite que a relacionemos com a obra para Illers-Combray, em homenagem ao autor.
de Proust, inclusive se considerarmos que a imagéti- Desta forma, no Crônicas Musicais de Caruaru,
ca proustiana prenuncia aspectos da narrativa cine- podemos afirmar que Carlos Fernando empreende,
matográfica felliniana. Em Amarcord, um dos filmes “fellinianamente”, um retorno proustiano em direção
no qual Fellini aborda reminiscências de sua infân- às reminiscências da cidade interiorana onde nasceu
cia e juventude em Rimini, sua cidade natal, o estilo e viveu até a juventude. A partir do álbum, o com-
não-linear da narrativa é resultado de seu encontro positor alia a inexatidão característica da lembran-
com a matéria viva da memória. Daí surge uma outra ça — […] o tempo perdido, ante o qual os esforços
Rimini, diferente da Rimini que podemos ver in loco. da memória e da inteligência fracassavam sempre”,
Considerando muito mais singular a cidade que cria- como escreveria Proust — ao devir artístico, criando
ra, o diretor italiano considera que: assim um trabalho que, conforme descreve o escritor

49
Intermitências 1

Octacílio Alecrim, ao falar da Recherche, engendra zado mais como um “prazer estético” que “uma curio-
“geniais transposições, justaposições e desintegra- sidade histórica”, o autor francês desenvolve:
ções no plano imaginário dos objetos, das coisas e
dos lugares. Assim os espaços de minha memória se cobriam
Em “É a Mãe”, uma das primeiras faixas do traba- aos poucos de nomes que, ordenando-se, compon-
lho, temos um verdadeiro apanhado genealógico e do-se uns em relação aos outros, estabelecendo
afetivo de contemporâneos de Fernando, como ele, entre eles ligações cada vez mais numerosas, imita-
vam essas obras de arte acabadas, onde não existe
filhos de Caruaru. Trata-se, harmonicamente, de
um só toque isolado, onde cada parte recebe suces-
uma bossa-nova interpretada por Azevedo em um
sivamente da outra a sua razão de ser como ela lhes
violão sincopado ao modo de nomes do movimento impõe a sua.4
como João Gilberto e Baden Powell. Na percussão,
um tamborim e caxixi. Um segundo violão executa Os nomes de “É a Mãe” constroem, assim, uma
um riff — um fraseado musical — que se repete ao espécie de mitologia das personagens de Caruaru,
final de cada estrofe. O foco, embora seja no violão ao e tornam-se, ao longo do álbum, relacionadas en-
estilo “goteira” dos bossanovistas, abarca também a tre si. As conhecemos, nos afeiçoamos a elas, para
guitarra de Paulo Rafael, que, num efeito chorus (tec- em seguida nos aprofundarmos em suas histórias e
nologia capaz de dobrar, na audição, as notas toca- feitos, narrados por Carlos Fernando de maneira,
das), inclui acordes sempre discretos. Na própria es- como define o jornalista Aluízio Falcão, que assina
trutura da canção, está reproduzido o caráter cíclico o encarte do álbum, “impressionista, sem as minú-
da memória. Cada volta ao mote “é a mãe” é sucedida cias da descrição em prosa”, mas que torna-se docu-
por um grupo diferente de personagens que habitam mentada “em sua essência lírica”.
a memória do autor, num movimento que remete Em canções como “Seu Artur do Bilhar”, por exem-
não apenas à estética da oralidade popular, como ao plo, sétima do álbum, Fernando retorna à descrição
próprio movimento da memória que, a cada voo que dos nomes e reitera a alegria de “personagens cria-
empreende em direção ao passado, evoca mais ima- dos no dia-a-dia da luz”. Em “O Social Guanabara”,
gens e sensações. quinta faixa, ode a um bar da cidade que não possuía
De tal modo, a intervenção de Rafael pode ser ob- portas, decreta, com um misto de saudade e alegria:
servada como um toque de contemporaneidade que “No meu tempo dourado, eu era quase nu, mas sabia
sutilmente contrasta com o tempo e lugar da memó- que era feliz, no país de Caruaru”.
ria narrada, nos lembrando, assim, do presente do Ouvimos também, em “Rua Saldanha da Gama”,
qual partimos. Além disso, somos levados à Caruaru última do projeto, sons de pássaros que, crescendo
dos anos 1950 e 1960, não pintada com as cores ca- gradualmente na canção, permanecem de forma
racterísticas de um coco ou de um baião, como seria sutil — como a madeleine proustiana ou o septeto
de se esperar, mas de uma bossa nova. de Vinteuil, isto é, evocações nascidas da senso-
Ao longo da canção, sempre repetindo a expressão rialidade — ao longo da canção. Reaparece o vio-
“É a Mãe”, Fernando menciona, em primeiro lugar, lão sincopado de Azevedo, executando um coco
Mestre Vitalino, artesão em barro que se celebrizou de roda, à semelhança de nomes como Jackson do
no país “levando nas asas do vento a cultura popular”. Pandeiro, sucesso nas rádios da cidade durante
Posteriormente, personagens ora famosos, como os a década de 1950. Dividindo as vozes com o ins-
irmãos Condé, ora íntimos, como é o caso de Cacho trumentista, Geraldo Amaral e Carlos Fernando,
de Coco, carnavalesco da cidade, e do ator Rui Rosal, numa das raras canções de carreira em que é pos-
“nosso Chaplin Gordo”, somam-se à narrativa. sível ouvir sua voz.
O apreço por nomes que constituem imageticamen- Como se acompanhássemos, em uma espécie de
te o município é semelhante àquele que Proust possui plano-sequência, o olhar do jovem Carlos, atraves-
ao procurar incessantemente pela genealogia das li- samos as ruas da cidade até chegar ao logradouro
nhagens nobres — predominada pelos Guermantes que nomeia a faixa musical. Nos primeiros versos, é
— que fazem parte da história de Combray. Caracteri- evocada a imagem do açougue público de Caruaru.

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Revista brasileira de estudos proustianos - 2021

Perto do matadouro, o autor descreve uma loja de O eterno fluxo e a imprecisão da


pneus do “irmão de Delmon Limeira”, que, de acor- memória
do com Fernando, era um “homem fidalgo da Sal- De certa maneira, é possível notar que os persona-
danha da Gama”. A partir daí, entra-se de vez na rua gens do Crônicas nos lembram os da Recherche na me-
e no cotidiano de seus personagens: relembrando as dida em que, ao passo que se baseiam em indivíduos
borboletas amarelas que possuíam um “cheirinho que existiram, transcendem a estes: se Alfred Agosti-
de jasmim”, Carlos cita personagens como Dona nelli, o chofer de Proust em Paris, ou mesmo Chico
Vavá, Caetano, seu pai, as crianças no jardim, e o Porto e outro boêmio citado por Fernando, apresen-
tio Mamede, “querido torcedor do Central[…]”.5 tam-se como possíveis modelos vivos para persona-
Ainda que separados fisicamente pelas respectivas gens, na criação artística isso assume contornos ex-
carreiras — um, compositor e constantemente em pandidos e desprendidos de uma existência vivida:
viagens, o outro, jornalista e estabelecido em Caru- afinal, sob que base a criação se apoia? Resgatemos
aru — Fernando reúne, de maneira entrecruzada, o episódio em que, no teatro, assistindo ao espetácu-
o presente e o passado ao mencionar um de seus lo Fedra, interpretado pela atriz Berma, o narrador
amigos mais próximos, “Olhando de lado, a casa de proustiano reflete sobre o incerto caráter da realidade:
Souza Pepeu”, e especular brevemente sobre as raízes
históricas da rua em “da prole holandesa dos olhos Apenas, quando se crê na realidade das coisas, usar
azuis”. Ao final, encaminha-se para outros persona- um meio artificial para fazer com que se mostrem
gens, reiterando sua “saudade danada”. não equivale inteiramente a sentir-se próximo de-
Encerrando sua epopeia caruaruense com “Rua las. Achava que já não era a Berma a quem via, e
sim a sua imagem na lente de aumento. Deixei o
Saldanha da Gama”, uma de suas canções mais ima-
binóculo; mas talvez a imagem que meu olho rece-
géticas, Carlos Fernando exprime a saudade da terra
bia, diminuída pela distância, não fosse mais exata;
natal, nos lembrando do motivo de seu empreendi- qual das duas Berma era a verdadeira?
mento musical. De forma cíclica — em que podemos
aludir ao eterno recomeço da obra proustiana —, Comparando-se as duas obras, podemos afirmar
suas reminiscências e a saudade da Rua Saldanha da que, mais do que indícios de um compromisso com
Gama e de toda a localidade pernambucana se con- um pretenso “real”, esses relatos possuem o poder de
figuram como um leitmotiv do percurso afetivo que recriar, remontar, e/ou remodelar as reminiscências,
rege o Crônicas musicais de Caruaru. assim como os inúmeros tempos passados, materiali-

Açougue Público da Rua Saldanha Marinho, 1945. Foto: autor desconhecido.

51
Intermitências 1

zados na obra com base em convicções, mantes, do barão de Charlus, de Ro-


questões do presente e desejos. bert de Saint-Loup e toda a comunida-
Como um tecido infinito que se de heráldica que Marcel ama e rejeita
puxa de um caixa, as duas obras carac- na mesma medida. No outro extremo,
terizam-se pelo eterno fluxo, ou seja, o lado de Méséglise, da burguesia que,
por uma memória inicial (um cheiro, assim como o narrador, também co-
um sabor, uma música, um quadro, munga e confabula com a antiga classe
um frame) que leva à outra, e que nos dominante: é o berço de Swann e Vin-
transporta à próxima, sem cronologia teuil, de Brichot, da marítima Balbec,
nem linearidade certa, como um eter- do pintor Elstir e da musa Albertine.
no rio, ou o roman-fleuve balzaquiano. Tal divisão, no entanto, não impede o
Os episódios passados são aludidos e entrecruzar desses lados ao longo do
retomados de forma sempre diferente romance, criando fios e “transversais
ao longo da narrativa. entre essas duas estradas”. Marcadas
Além disso, ao entender a precisão pela paisagem de planície e de rio, res-
como “fruto da própria consciência da pectivamente, Méséglise e Guerman-
imprecisão”, como explica o pesquisa- tes simbolizam também as pequenas
dor Paulo Gustavo,6 podemos atentar coisas da existência pacata, suposta-
para o fato de que mesmo em seu em- mente provinciana, a exemplo da hi-
penho material de recuperação, algo pocondria da tia Léonie e do almoço
irá lhes escapar: tratam-se, em suma, do sábado que, excepcionalmente,
de fragmentos incompletos, e consi- acontecia às 11 horas da manhã.
derando que, como descreve o próprio Coisa semelhante acontece ao longo
Proust, “uma memória sem falhas não das canções do Crônicas: assim como
é um excitante muito poderoso para Combray torna-se palco da Batalha de
estudar os fenômenos da memória”, Méséglise durante a Primeira Guerra,
essa é, indubitavelmente, uma riqueza. Caruaru, como a terceira faixa do ál-
3. FELLINI: sono un gran bugiardo.
Produção de Damien Pettigrew. Decerto, tal imprecisão também in- bum alude, é a terra do Bar de Belo,
França: MK2 Filmes, 2002. DVD fluencia a nossa própria fruição: evo- onde a Revolução Cubana, através de
(101min), son., color.
cando Heráclito, arriscamos que, mes- ondas radiofônicas moscovitas, ganha
4. Marcel Proust, “O Caminho de mo se voltarmos para o início de cada contornos locais, e o “sonho e utopia”
Guermantes”. In: PROUST, M. Em
busca do tempo perdido. Rio de Ja-
obra, é tarefa vã buscar duas vezes a tomam conta daquele rincão agresti-
neiro: Nova Fronteira, 2016. pp. mesma passagem na esperança de en- no, estimulando o dono do estabele-
421-22. contrá-la intacta, de todo semelhante cimento a ordenar que, em uma única
5. Fundado em 1919, o Central Es- ao primeiro contato que tivemos com noite, quem comesse ou bebesse não
porte Clube é um dos times de fu- ela. Algo mudou em nós, algo mudou precisaria pagar nada.
tebol mais tradicionais de Caruaru,
tendo sua sede no Estádio Luiz José na obra. O rio seguiu seu fluxo. Com olhos de cronista, o composi-
Lacerda. tor nos leva a conhecer os personagens
6. Paulo Gustavo, Encontros com O pêndulo poético e a peculiares daquela realidade e os rela-
Marcel Proust: Estilo e Precisão. província recriada ciona a figuras de destaque mundial:
Disponível em: <https://revistasera.
num salto não-linear, Caruaru “se cerca
info/2017/06/encontros-com-mar-
cel-proust-estilo-e-precisao-pau- Na Recherche, a cidade de Com- de luz” em “Coração do Agreste”, quar-
lo-gustavo/> Acesso em: 20 Ago. bray é formada por duas bases que ta faixa do álbum, e, na sequência da
2020.
funcionam como alicerces da catedral montagem, retornando para “É a Mãe”,
7. Marcel Proust, “O Tempo Recu- proustiana: num extremo, o lado de as “asas do vento” transformam o ator
perado”. In: PROUST, M. Em busca
do tempo perdido. Rio de Janeiro:
Guermantes, o espaço da aristocracia, Rui Rosal em Charles Chaplin e o con-
Nova Fronteira, 2016, p. 586. dos devaneios com a senhora de Guer- vida a tomar cachaça no bilhar de Seu

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Revista brasileira de estudos proustianos - 2021

Artur: ou deveríamos dizer Jean-Paul Sartre, apelido zombeteiro dado por Fernando em razão do estrabismo do
personagem?
No Crônicas, em suma, tudo aquilo que é íntimo se transforma: os músicos da Banda de Pífanos de Ca-
ruaru, na canção “Forrozear”, oitava faixa, se transfiguram nos “Beatles de Caruaru”, capazes de transformar
milho em ouro e fazer “do rock um baião”; em “Caruaru é Roma pegando fogo”, nona canção, a imagem a que
somos introduzidos é a da cidade tomada por um Nero que, com fogueiras juninas, incendeia os corações
agrestinos ao som de Luiz Gonzaga. Na Rua da Matriz, o Botequim do Barbosa e o Café Rio Branco represen-
tam o “Senado” do município, onde se reúnem os intelectuais locais dos mais variados espectros ideológicos.
Lá, a discussão política ganha ares renascentistas, neoclássicos: trata-se da ágora caruaruense.
Reiterando essa poética ao mesmo tempo cosmopolita e provinciana, que conecta os dois artistas, pode-
mos retomar a ótica do narrador proustiano, que move ininterruptamente o pêndulo situado entre a aldeia e
o universo, esforçando-se para recuperar (e, dessa maneira, reinventando) a própria história diversas vezes, e
em diversos pontos. Em meio a uma Paris sitiada, Marcel reflete:

Além disso, como nenhuma moldura, tornada invisível, constrangia mais esses fragmentos de paisagem, à noite,
quando o vento soprava rajadas glaciais, eu me julgava, bem mais do que em Balbec, à beira do mar revolto dos
meus sonhos de antigamente; e mesmo outros elementos da natureza, que até então não existiam em Paris, da-
vam a ilusão de que, ao descer do trem, acabava-se de chegar para as férias no campo.7

Reiterando esse aspecto do sonho e da criação, em “Caruaru, azul palavra”, sexta canção do Crônicas, Carlos
Fernando afirma que Caruaru, seu eterno lócus, estará presente onde quer que ele esteja. Além disso, nos chama
atenção também uma sutileza metalinguística no verso de Fernando: a partir de uma metáfora, ele relaciona o
artesanato em barro com o processo de composição. De uma argila abstrata, o artista ergue da fantasia “gênio e
crua” cabeças e membros dos bonecos que, pouco a pouco, tomam conta daquele rincão. Da criação dos perso-
nagens — como a xícara de chá da qual nascem os transeuntes de Combray — o sol se levanta sobre as frutas e
o Agreste “se acende”. Tudo ali nasce da escrita do artífice caruaruense, daquilo que é “surreal nas palavras dos
poetas”.
Para Proust e Fernando, Combray e Caruaru representam a “capital do universo” de cada um, a gênese e o
término de seus trabalhos: nelas, a ficção e utopia se desvelam. Tudo é possível. Ali, as personagens — tanto
as que narram quanto as que são narradas –, florescem e se findam continuamente. Há sempre a promessa de
uma nova Combray após as sonatas de Vinteuil, e de uma Caruaru ainda mais azul, recomeçada pela música e
o tilintar de copos nas noites utópicas do Bar de Belo. Com o impulso da madeleine ou do “cheirinho danado”
da Rua Saldanha da Gama, esses autores subtraem as circunstâncias de uma terra e de seu povo e, como um
espelho da alma, constroem uma alegoria de si mesmos.

Amilcar Almeida Bezerra é professor do Nú-


cleo de Design e Comunicação do Campus
Agreste e do Programa de pós-graduação em
Música do Campus Recife da Universidade
Federal de Pernambuco (UFPE). É vocalista e
compositor da banda Joana Francesa.
Luiz Ribeiro é jornalista e mestrando em Mú-
sica e Sociedade (UFPE-PPGMUS). Faz parte
das bandas Rasga Mortalha e Joana Francesa,
e integra o time de articulistas e editores do
site Café Colombo.

53
Intermitências 1

Vária

Baudelaire
em Proust
Leda Tenório da Motta Charles Baudelaire em fotografia de Etienne Carjat.

Le but de cet article est de souligner l


influence de l´oeuvre de Baudelaire sur le
roman proustien en panne d`écriture. Il s`agit
de montrer que, si l`impact de la mémoire
affective et du décadentisme baudeleriens
est assumé et vocalisé par le Narrateur,
à différents moments de son parcours
d`apprenti sorcier, la présence de l´Essai sur
ler rire de Baudelaire y est souterraine et reste
à être dévoilée, notamment à propos de la
nervosité, si baudelairaienne, qui s`empare
des gestes et du discours en porte à faux des
parvenus, snobes et homosssexuels en action
sur la scêne dérrisoire des salons.

54
Revista brasileira de estudos proustianos - 2021

Proust apela a Baudelaire

Há uma série de referências explícitas a Baudelaire que vêm atestar a dívida de Proust para com a sua eter-
nidade partida. Nos índices onomásticos dos 21 tomos da Correspondência Completa do escritor, tal como
estabelecida por Philip Kolb, Baudelaire é uma presença constante. Ficamos sabendo, assim, que, em carta a
seu primeiro editor, datada de 1913, ano em que No caminho de Swann sai pela Grasset, depois de rejeitado
pelo círculo bem-pensante da Gallimard, Proust associa claramente o destino de sua obra ao de As flores do
mal, ao reconhecer, em tratativas com o publisher, que só publica o primeiro tomo de Em busca do tempo per-
dido mediante pagamento, e até pelo caráter monetário dos entendimentos, que tanto Swann quanto As flores
do mal são “heresias comerciais”.
Não se trata só da epistolografia. Toda a juvenilia de Proust está repleta de apelos a Baudelaire. Em Os
prazeres e os dias, no capítulo intitulado “Mélancolique villégiature de Madame de Breyves”, em que temos
antecipações flagrantes da Recherche, a personagem do título é cortejada por um admirador, numa de suas
muitas soirées mundanas. Ela considera-o, inicialmente, pouco atraente, e ainda menos espirituoso que belo,
faz-se de rogada e o afugenta. É só quando, dissuadido por ela, o admirador lhe vira as costas para sempre,
que Madame de Breyves se dá conta de que já não pode viver sem a consideração do homem que desprezava
enquanto o tinha a seus pés, sente-se desesperada com sua partida e entra num trabalho de luto que a faz
abandonar a sociedade, ao mesmo tempo em que trata de voltar a conquistá-lo. Como Odette ou Albertine,
que são a mulher certa porque a errada, o objeto perdido cresce em importância, a ponto de ativar uma busca
maníaca, na medida mesma de seu desaparecimento. Nesse e em outros sentidos, os tomos No caminho de
Swann e A prisioneira têm conexão direta com Baudelaire. É o que explicita, no final da novela, o próprio
narrador, evocando um dos poemas em prosa de O spleen de Paris, “O Confiteor do Artista”, para explicar o
caráter insólito de sua ficção:

Ela maldizia esse inexprimível sentimento do mistério das coisas em que nosso espírito se
abisma num clarão de beleza, como o sol poente sobre o mar, por ter aprofundado seu amor,
tê-lo imaterializado, alargado, infinitizado sem torná-lo menos torturante pois [como disse
Baudelaire falando dos crepúsculos de outono] há sensações que não são menos intensas
por serem vagas e não existe ponta mais acerada que a do infinito.

Já na seção “La confession d’une jeune fille”, encontramos outros tantos motivos que seriam, depois, in-
confundivelmente proustianos. Assim, neste outro capítulo de seu primeiro livro, Proust projeta-se comple-
tamente em sua personagem — dando aliás razão a certo crítico por nome Jean Lorrain, quando insinua que
ele é um delicado —, ao nos contar a história de uma filha às voltas com uma paixão sacrílega, que não se
perdoa por magoar a mãe, entregando se a um amor que ela desaprova, e que vem então nos falar, como faria
futuramente o narrador de Em busca do tempo perdido, diante da revelação do vício da filha de Vinteuil, de
“alegrias envenenadas na sua própria fonte”. Ora, aí novamente, intervém uma remissão a Baudelaire, desta
feita a As flores do mal. Trata-se de dois versos do poema, do rol dos condenados, intitulado “Mulheres mal-
ditas”, inicialmente previsto para entrar num conjunto a chamar-se “As lésbicas”, ao que se liga visivelmente
toda a matéria de Sodoma e Gomorra. Na tradução de Ivan Junqueira, dizem eles: “E ao vento furibundo da
concupiscência/ Vossa carne se esgarça qual bandeira velha”.
Prosseguindo na exploração dos primeiros escritos, vemos Baudelaire ser praticamente divinizado por
Proust num necrológio de John Ruskin, que ele escreve, no ano de 1900, para o Figaro, e viria a figurar entre
aqueles textos, produzidos entre 1900 e 1908, que a Gallimard reuniria sob a rubrica de Essais et articles.
Entusiasta da obra de Ruskin, Proust o é ainda mais da de Baudelaire. Assim, nessa homenagem fúnebre ao
autor de Praeterita, ele nos pede para considerar a grandeza do morto em função da veneração que sempre lhe

55
Intermitências 1

inspiraram as coisas belas. E para nos dar a exata me- jornalísticos semanais de Sainte-Beuve, os Lundis,
dida do valor de Ruskin, o inclui na categoria dos es- ao passo que sobram ali menções a artistas menores,
tetas que devemos perdoar por praticarem o crime da mas de projeção social. Mais que isso, lembra toda
idolatria em relação a certos artistas de envergadura a atenção que Baudelaire se via constrangido a dis-
invulgar, tomando como exemplo Baudelaire: “[John pensar a este poderoso homem de letras, na espe-
Ruskin] soube cercar um objeto ínfimo de respeito rança de obter dele algum empurrão, indo, nesse afã,
religioso só por ter pertencido a Baudelaire”. da oferenda de poemas em missivas afetuosas até o
A mesma veneração ressurge num dos últimos envio de guloseimas. Nesse sentido, lembra este tre-
esboços de capítulo do inacabado Jean Santeuil, cho patético de uma carta do poeta ao crítico, que os
aquele intitulado “La vie mondaine et la création editores da obra baudelairiana completa para a cole-
littéraire”, no qual lemos, a propósito da vida dis- ção Pléiade desenterraram para nós: “Há alguns dias
sipada do herói Jean, que o pecado da preguiça é precisando muito vê-lo […] fui a Montparnasse. No
desculpável… se for a preguiça baudelairiana: “O caminho, passei por uma venda onde fazem o pain
mal era [para Jean] tudo o que endurecia o espírito d’épices e me veio a ideia fixa de que o Senhor aprecia
[…]. Ao passo que a preguiça, quando balouçada no essas iguarias […].” A propósito, lemos em Contra
charme da hora e que merece o nome de fecunda Sainte-Beuve:
que lhe deu Baudelaire, era o bem a perseguir”. Tra-
ta-se desta feita de uma homenagem a estes versos O maior poeta do século XIX, e o que é pior, seu
do poema “A cabeleira”: “Mergulharei a fronte bê- amigo, não figura nos Lundis, em que tantos con-
bada e amorosa/ Nesse sombrio oceano onde o ouro des e barões têm seu lugar. E quando, no momento
está encerrado;/ E minha alma sutil que sobre as on- do processo contra As flores do mal, o poeta lhe im-
plora uma carta em sua defesa, Sainte-Beuve res-
das goza/ Saberá vos achar, ó concha preguiçosa!/
ponde que suas relações com o regime imperial o
Infinito balouço do ócio embalsamado.”
impedem de fazê-lo […].
Já assim declarada nos textos preparatórios a À la
recherche du temps perdu, a importância do poeta para
Porém, melhor que a ousadia dos reparos ao re-
Proust só faz aumentar daí para frente. Tanto assim
verenciado mentor literário são os termos da defe-
que, quando chegamos neste limiar entre o grande ro-
sa do poeta que temos no Contra Sainte-Beuve. Ela
mance final e seu derradeiro tracejo que é Contre Sain-
constitui-se numa enfiada de apontamentos, os mais
te-Beuve, mais que de homenagens e citações esparsas,
agudos, sobre alguns poemas célebres de As flores do
somos servidos por todo um capítulo sobre Baudelai-
mal, em que Proust realça certas práticas baudelai-
re. Trata-se de um pequeno e belo ensaio crítico prous-
rianas nunca antes percebidas nessas peças fadadas
tiano, que está hoje entre os mais refinados já escritos
a serem canônicas. Realizando, por fim, a leitura que
sobre As flores do mal, sendo referência, de resto, para
julga que as Flores merecem, passa a encarecer a infi-
o Walter Benjamin dos “Temas baudelairianos”, e que a
nita ambiguidade do poeta, a pôr em tela o aporte de
Nouvelle Revue Française publicaria, em separado, em
suas contradições, a força de seus contrastes. E não só
1921, um ano antes da morte do escritor.
aquele que sempre se soube que os poemas das Flo-
Que se lembre o elogio que o então já não tão jo-
res do mal primam por desfiar — alto e baixo, divino
vem Proust faz nesse livro desabusado do maior líri-
e diabólico, perfumes e carniças, spleen e ideal, mas
co de um século que foi, para efeitos de autoridade
todas aquelas outras, invisíveis, que se acham escon-
crítica, beuviano, e a denúncia que ele encaminha aí,
didas sob as palavras.
em paralelo, a um Sainte-Beuve incapaz de compre-
Assim, percebe que os sentimentos são em Baude-
ender seu tempo, cuja suposta percuciência ousa, por
laire tão mais fortes quanto, paradoxalmente, toma-
isso mesmo, contestar. De fato, no penúltimo passo
dos a distância, o que arma uma nova tensão dentro/
de sua trajetória rumo à Recherche, Proust não faz
fora. “Nas mais sublimes expressões que dá a certos
por menos que interpelar o tratamento que o crítico
sentimentos, [Baudelaire] parece fazer uma pintu-
dispensa ao poeta. Sente-se indignado com o fato de
ra exterior de sua forma, sem simpatizar com eles”.
não haver menção a Baudelaire nos famosos artigos
Cita como exemplo, o poema “O rebelde”, em que o

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Revista brasileira de estudos proustianos - 2021

poeta fala de caridade, mas cujos versos não lhe pa- Começando por Chateaubriand, ele escreve: “é a uma
recem nada caritativos. Haveria algo menos caritati- sensação do tipo da madeleine que se liga a mais bela
vo — pergunta-se — que o sentimento em que tudo parte das Memórias de além-túmulo”. E nos explica:
isto é dito: “Um anjo em fúria qual uma águia cai do “aquela em que o escritor é tirado de suas reflexões
céu, /Segura, a garra adunca, os cabelos do ateu/ E, pelo canto de um tordo e, nesse mesmo instante má-
sacudindo-o, diz: À regra serás fiel!/ (Sou teu anjo gico, remetido de volta à propriedade paterna”. Aqui,
guardião, não sabias?) És meu!/ Pois é preciso amar, de fato, como na cena sísmica da madeleine, a melan-
sorrindo, à pior desgraça, /O perverso, o aleijado, o colia cede, por um átimo, e a recordação dos momen-
mendigo, o boçal/ Para que estendas a Jesus, quando tos felizes volta, inundando o presente: “Esqueci as
ele passa,/ Com tua caridade um tapete triunfal.” Su- catástrofes que acabava de presenciar e, subitamente
blinhe-se as menções cruéis aos aleijões, à perversi- transportado para o passado, revi os campos em que
dade, à boçalidade. ouvia cantar o tordo”. Como cede, segundo ainda o
Com a mesma fineza, percebe também, numa ou- Narrador, em Nerval:
tra de suas grandes intuições críticas, que Baudelai-
re não hesita em cortar as asas da eloquência, assim Uma das obras-primas da literatura francesa, Syl-
que suas palavras começam a voar alto demais. Eis o vie, de Gérard de Nerval, nos traz, como as Memó-
que lhe enseja notar que é bem quando certos versos rias de além-túmulo, em relação à Combourg de
baudelairianos têm tudo para chegar ao apogeu que Chateaubriand, uma sensação do mesmo gênero
da produzida pela madeleine e pelo canto do tordo.
eles são refreados, de repente, e passam a pender para
baixo, crispam-se em platitude.
Mas se ele passa rápido por estes dois precurso-
Versos que seu gênio, transportado desde o hemis- res, inclusive sem nos dizer qual é o objeto fétiche
tíquio precedente, se prepara para, com toda a for- que, em Nerval, desenterra o passado, é porque, nes-
ça, preencher em sua gigantesca carreira, e que dão te quesito, é Baudelaire quem tem todo o destaque.
a mais alta ideia da riqueza, da eloquência, do ili- Como confessa:
mitado de um gênio […], são bruscamente parali-
sados, como se ele não tivesse a força de continuar. Mas é em Baudelaire que essas reminiscências são
mais numerosas e assim, em minha opinião, deci-
Ilustração desse decrescendo é para Proust a últi- sivas. É o poeta […] que busca voluntariamente,
ma estrofe de “O cisne”, que começa altiva: “Assim, a no odor de uma mulher, por exemplo, ou de seu
alma exilada à sombra de uma faia, / Uma lembrança seio, ou de sua cabeleira, as analogias inspiradoras
que lhe evocarão, aqui, “o azul de um céu imenso e
antiga me ressoa infinda!” Para terminar com uma
esférico”, ali, “um porto cheio de flamas e mastros.
observação vaga: “Penso em marujos esquecidos
numa praia, / Nos párias, nos galés… e em outros
De fato, embora haja mais esquiva e menos entu-
mais ainda!”. Futuramente, um dos desconstrucio-
siasmo em Proust, que não se deixa nunca transpor-
nistas americanos viria mostrar aliás que é dessa in-
tar completamente por seus golpes sensitivos memo-
clinação que nascem os poemas em prosa ou O spleen
riais, não adere nunca completamente à embriaguez
de Paris.
que ameaça devolver-lhe a plenitude de uma recor-
Sem dúvida, tudo isso que o futuro grande roman-
dação, e até porque Baudelaire, como vimos, também
cista sabe encontrar num gênio precursor incom-
sabe conter-se, a memória afetiva proustiana é con-
preendido lhe serve de iniciação à literatura, talvez
fessadamente a baudelairiana.
mais ainda que, lá atrás, antes mesmo de Swann, es-
tes exercícios de estilo que são os pastiches. Contudo,
em maior medida, é de Baudelaire que Proust tira a
própria memória afetiva. É numa importante página
da última seção de O tempo redescoberto que o Nar-
rador se associa à tradição representada por Chate-
aubriand e Gérard de Nerval no campo da memória.

57
Intermitências 1

A violência sutil do riso a sofrimentos, a uma desconsideração que minha


avó não queria para seu neto!

Tantas e tais referências explícitas de Proust a Bau- Como se sabe, os refinamentos daquele que diz
delaire são bons motivos para nos perguntarmos se, “eu” na Recherche são justamente os nervosos, que
funcionando como referência oculta, e tanto mais levam ao sofrimento dos imoderados. Ora, a mais
poderosa, um texto baudelairiano menos conhecido vigorosa refutação dessa contenção clássica que o
como De l’essence du rire não teria também a ver, e narrador proustiano repele e nervosismo desmente
muito, com os caminhos da Recherche. é aquela com que nos deparamos no citado estudo
Efetivamente, das muitas notícias que temos de de Baudelaire. Inicialmente concebido para ser uma
Baudelaire no romance proustiano, uma em parti- Fisiologia do riso, que é mencionada numa carta à
cular parece particularmente elucidativa a respeito Mãe, datada de 1847, a versão que hoje conhecemos
da influência implícita, e tanto mais impositiva, das sob a denominação De l`essence du rire. Et générale-
teses desassombradas desse tratado demolidor. Ela ment du comique dans les arts plastiques assume fei-
pode ser encontrada em À sombra das raparigas em ção definitiva no final desse mesmo decênio, quando
flor, no ponto em que o volume traz à baila o tema re- é preparada para a Revue des deux mondes, de onde
corrente dos efeitos prejudiciais das artes decadentis- a extrairiam, em 1950, os editores da coleção Pléia-
tas sobre os jovens espíritos, e o Narrador põe-se na de, inserindo-a nas Curiosités esthétiques. Como se
defesa dos baudelairianos, em meio a uma discussão vê, o subtítulo vincula o texto à crítica baudelairiana
com a Avó, grande cultora dos clássicos. de artes e, nesse terreno, a um gênero predileto de
Retome-se a ação. Preocupada com o tempera- Proust pastichador, a caricatura. De fato, o “cômico
mento “nervoso” do neto, a Avó acha que certas nas artes plásticas” a que se refere Baudelaire é, de
companhias influem negativamente sobre ele, ao um lado, o que difundem as obras de alguns raros ar-
passo que outras, como a boa sociedade formada tistas plásticos caricaturistas desses tempos, para os
pelo círculo de frequentadores do salão da Sra. de quais os acadêmicos torcem o nariz, como Daumier
Villeparisis, lhe fazem bem. O Narrador sabe que o e Gavarni — o primeiro com sua “bufonaria san-
que está implícito nessa apreciação são os valores de grenta”, o segundo com suas “mordidas que parecem
moderação e equilíbrio da leitora de Sévigné que é lisonjear” —, e outros malditos do passado, como
a Avó. Assim, ele discorda de sua querida protetora, Brueghel e Goya: — o primeiro com seu “fantástico
em pensamento, tomando as dores dos decadentes: alucinado”, o segundo com seus “belos monges hor-
rendos”—, daí suas presenças na sequência imediata
Como dizemos que é do interesse da espécie, que dos assuntos, na Pléiade. Isso, dito, à medida que o
guia em amor as preferências de cada um de nós, e ensaio progride, vemos Baudelaire passar das Fine
para que a criança seja constituída do modo mais Arts à Literatura, outro reduto da seriedade a ser es-
normal faz as mulheres magras buscarem os ho- teticamente bombardeado. Quem leu o ensaio sabe
mens gordos e as gordas, os magros, assim também
por quê. Trata-se de um verdadeiro requisitório feito
eram, obscuramente, as exigências de minha feli-
ao cristianismo, de vez que, antes mesmo de se apo-
cidade ameaçada pelo nervosismo, pela propen-
são doentia à tristeza, ao isolamento que faziam derar da bienséance clássica, com suas regras da justa
[minha avó] pôr em primeiro lugar as qualidades expressão, a sensatez é um valor cristão.
da ponderação e do julgamento, particulares não O ensaio é tão flamejante quanto curto. Além do
somente à Sra. de Villeparisis mas a uma socieda- mais, é inacabado e fragmentário. Numa breve aber-
de em que eu haveria de encontrar uma distração, tura, Baudelaire começa por nos dizer que o traba-
um apaziguamento — semelhante àquela em que lho dos bons caricaturistas, embora desprezado pela
se viu florescer o espírito de uma […] Sévigné, es- Academia, é sempre revelador de sintomas morais»,
pírito que deposita mais felicidade, mais dignidade que podem ser melhor observados, justamente,
na vida que os refinamentos opostos, que levaram quando exagerados. Ampliados pelo olhar do artis-
um Baudelaire, um Poe, um Verlaine, um Rimbaud
ta que caricatura, esses sintomas magnificados dão

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Revista brasileira de estudos proustianos - 2021

medo. É para o reconforto dos “medrosos” que existe nômeno mais deplorável que a fraqueza rindo da fra-
uma espécie de dito popular, ou de provérbio, de que queza?”, pergunta-se. No entanto, se bem medido, os
Baudelaire nos diz ignorar a proveniência, mas não o desafiadores de Deus têm, para ele, o valor do sujeito
impulso pedagógico, com o qual ele epigrafa o bloco que, caído, sabe se reerguer. Mais profundamente, ele
de reflexões seguinte. Esse provérbio diz: “Le sage ne pensa que o fraco que ri do fraco responde com al-
rit qu’en tremblant”. Em tradução livre mas respeitosa tivez à humilhação da fraqueza em que se encontra.
do sentido: “O homem honesto/ sensato/ prudente/ Além disso, no seu entender, valor ainda mais pre-
comedido só ri tremendo”; ou ainda “O homem ho- cioso é o dom que tem o riso de indicar a divisão do
nesto/sensato/ prudente/ comedido morre de medo homem. Como ele explica aqui:
de rir”.
O poeta pergunta-se de onde viria essa estranha Que eu me faça bem compreender, o riso é a
moralidade. Seria uma frase de Cristo, um ensina- resultante necessária de nossa dupla natureza
mento de Joseph de Maistre, um excerto de um ser- […]. É satânico, logo profundamente humano. É
mão de Bossuet? E conclui pela primeira possibili- no homem a consequência da ideia de sua própria
superioridade.
dade. Prova do caráter “oficialmente cristão” dessa
recomendação de prudência, pondera, é que no céu
ninguém ri. O “Verbo Encarnado” é sério. Pode até A partir daí, Baudelaire cessa de interessar-se pela
haver raiva divina, acrescenta, lembrando-nos que Igreja e pela Academia, e põe-se a dirigir seus melho-
Cristo conheceu a cólera e as lágrimas, mas não zom- res dardos à nação francesa e, em consonância com
baria. Trata-se, segundo ele, de uma impossibilidade isso, à literatura francesa, enquanto lugar do bom-
formal. Vez que o riso humano está intimamente li- -senso. Doravante, entra na roda o honnête homme,
gado ao acidente da queda. Antes que o homem fosse o poeta claro e distinto, regrado e transparente, que,
precipitado para fora da beatitude, lemos, nada ener- agindo como se tivesse sido ungido pelo Criador, não
vava seu corpo, nada convulsionava sua alma, nada conhece a derrisão. Na exposição baudelairiana, ele
crispava a lisura do seu rosto, portanto nada o have- será vivamente contestado por este seu contrário que
ria de fazer rir. Assim, o espetáculo “melodramático” é o romântico desbragado. “Foi a escola romântica,
da risada só pode ser o sinal trocado da miséria hu- ou melhor dizendo uma de suas subdivisões, a satâ-
mana. A degringolada empluma-se com o signo da nica — diz-nos finalmente Baudelaire, indo ao pon-
vitória. O sujeito decaído apruma-se. Essas são con- to que mais o interessa, como autor de odes a Satã
siderações arrematadas por uma frase lapidar: “o riso que é —, que soube compreender a lei primordial do
é o mais claro signo satânico do homem”. riso”. Começa aqui um passeio pelo estrangeiro, que
Na sequência, introduz-se uma correlação entre o nos levará ao lado escuro da Beleza, via certas pan-
riso e a ciência, o que introduz um outro ataque, ago- tomimas inglesas e a narrativa fantástica do alemão
ra aos sábios, à Academia. Nesta parte do texto, Bau- Hoffmann.
delaire lembra que o pecado original, tal como nos é Para tratar delas, Baudelaire propõe, nesse final do
dito que ocorreu nos jardins do paraíso, é um crime ensaio, uma hierarquia do gênero cômico, segundo
relacionado ao desejo de saber. Eis por que o mesmo graus de “ferocidade”. Dessa hierarquia não fazem
“formulário” que associa a queda e o esgar do riso es- parte nem Rabelais nem Molière, segundo ele artistas
tabelece um nexo entre a ambição de conhecimen- tímidos, ainda muito imbuídos da sagesse nacional, e
to e a loucura. Assim, por contaminação, o inferno nesse sentido mais representativos daquilo que pro-
é também o lugar do cientista que quer imiscuir-se põe chamarmos de “cômico significativo”. Antes que
na arquitetura do universo. No fundo, o cientista e o este tipo de efeito de riso, interessa-lhe o resultado
palhaço têm algo de não-cristão e caminham juntos. mais “feroz” do “cômico absoluto”. Para encontrá-lo,
Orgulhosos em sua humana insignificância, lançam alerta-nos o poeta, é preciso atravessar o Canal da
uma ofensa contra os céus. Mancha e visitar os reinos brumosos de Shakespeare.
Em princípio, assente Baudelaire, tal desafio às al- Prova do maior interesse do espírito inglês é a recep-
turas poderia ser visto como negativo. “Haveria fe- ção que os franceses reservaram, em algum ponto
dos anos 1850, a uma troupe de atores vindos do país

59
Intermitências 1

vizinho para apresentar ao público parisiense uma minhar em círculo e ser remetido ao futuro. Nem só
adaptação inglesa de um tema da commedia dell’ar- porque o anti-herói no centro do discurso proustiano
te. Era uma hilariante pantomima, em que um Pier- é uma figura sabidamente doentia, insone e asmática,
rô acusado de furtar um objeto, via-se condenado a além de envolvida com crises de ciúmes e práticas de
morrer na guilhotina, detalhe já em si hilário, visto sadismo, espionagem do outro e voyeurismo sexu-
que o mundo um inglês não conhecia esse instru- al. Nem só porque estamos falando de um romance
mento de tortura. A personagem terminava execu- sobre o romance que fica preso ao fio de voz de um
tada… mas levantava-se do chão, recolhia a própria sujeito que se equivoca infinitamente sobre os dados
cabeça do cesto em que ela havia caído, erguia-se, de sua experiência rememorável e a interpretação
sem cabeça, exibindo o disco sangrento do pescoço dos signos, sejam os mundanos, os amorosos ou os
para a plateia, depois metia a cabeça no bolso, como da arte, num movimento de visão reivindicadamente
se a estivesse roubando, e deixava a cena. Proposto à caleidoscópico. Mas principalmente porque, se dei-
circunspecção francesa, o espetáculo só podia acabar xarmos de lado as velhas interpretações bondosas
como acabou: em fiasco. Baudelaire escreve: trazidas pelos primeiros leitores de Proust, a exemplo
de um André Maurois, um François Mauriac ou, no
Poucas pessoas se lembrarão disso, porque muito Brasil, um Ruy Coelho — que vinham a campo nos
poucos apareceram para assistir a esse tipo de di- falar em revelação final da Recherche, ascese heroi-
vertimento, mas os pobres mímicos tiveram aqui ca do narrador e ressurrreição do tempo —, toda a
uma triste acolhida. […] Dizia-se — e esses eram soma dos fracassos proustianos é de molde a referen-
os indulgentes — que eram artistas vulgares e
dar o frêmito nervoso de que Baudelaire faz depen-
medíocres, artistas substitutos. Eram ingleses, eis
der o riso absoluto.
tudo.
De fato, no momento em que se arredondam os
cem anos da morte de Proust, e graças a novas leitu-
O tratado termina com uma menção ao conto “A
ras da Recherche encetadas desde a segunda metade
princesa Brambilla” de Hoffmann, tirado pelo escri-
do século passado, por novas críticas e novas filoso-
tor de um cappricio italiano, sobre o qual o próprio
fias, já se pode falar desassombradamente numa co-
Hoffmann, citado por Baudelaire, costumava dizer:
média proustiana. Em Le temps sensible, Julia Kris-
“este não é um conto para pessoas a fim de tudo levar
teva combate o que chama “o clichê da madeleine”,
a sério e tudo ler no literal”. Estamos novamente aqui
propondo ver no êxtase fugidio do episódio em tor-
diante de uma história sem pé nem cabeça. Desta vez,
no do bolinho desintegrado no chá, não uma metá-
o que agrada ao poeta é que a personagem principal
fora do tempo, mas da escritura, já que, no projetado
— certo Giglio Fava —, é o inimigo de uma outra
romance de Proust, a criação se põe em suspenso e
personagem, certo príncipe Chiapperi, com quem
passa pela destruição. De algum modo, Gilles Deleu-
troca de papel. Trata-se de uma história de duplos,
ze referenda esta ideia, em Proust e os signos, ao suge-
o que é particularmente atraente para um Baudelai-
rir que o verdadeiro tempo proustiano não é o tempo
re disposto a admitir que “o artista só é artista sob a
reencontrado, mas aquele que se perde, literalmente,
condição de não ignorar nenhum fenômeno de sua
nos salões. Essa atualização das exegeses ganha novo
dupla natureza”. É pelo caráter exacerbado dessa du-
impulso em Gérard Genette, que, em Figuras, admi-
plicidade que o texto entra na categoria do “cômico
te que Proust leva a cabo uma experiência espiritual,
absoluto”, impensável para os franceses.
mas que esse sucesso é pouco diante de um outro,
Cultor do cômico maldito, escreveu André Bre-
que é conseguir, ainda por cima, o “fracasso desse
ton, na Antologia do humor negro, que “a disposi-
sucesso”, deixando-nos desse fracasso o “espetáculo
ção para o riso corrobora toda a concepção estética
perfeito que é sua obra”. Todos estão pensando nas
sobre a qual repousa a obra de Baudelaire” e que “é
dificuldades que definem a ultramodernidade desta
nada compreender do [seu] gênio fingir não perce-
literatura.
ber essa disposição”. A observação vale para Proust.
São pontuações que nos autorizam a rir com
Não apenas porque o narrador da Recherche é alguém
Proust, não somente porque foi um caricaturista, que
em confessada pane de escritura, daí o romance ca-

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Revista brasileira de estudos proustianos - 2021

ainda é capaz de introduzir um pastiche dos irmãos Goncourt no final de O tempo reencontrado — numa cena
perturbadora de nonsense, em que o salão dos dois naturalistas entra na roda da sociedade de Saint-Germain,
como se fosse real —, mas pelos ritos de corte em plena vida republicana francesa, pela mascarada dos esno-
bes, pelo jogo de cena dos arrivistas, pelo esconde-esconde dos homossexuais, pelas denegações dos inver-
tidos que preenchem boa parte da Recherche. Não sem produzir uma bateria formidável de duplos sentidos,
lapsos, afetações, tiradas, aliás típicos do humor judaico, e vicejantes à época do Affaire Dreyfus. Veja-se, por
exemplo, esta frase da Duquesa de Guermantes, em plena vigência do antidreyfusismo no seio da elite france-
sa, antes de sua virada de casaca:

Se Dreyfus é inocente, não o prova. Que cartas idiotas, enfáticas ele escreve de sua ilha. Não sei se o Senhor Es-
terházy é melhor que ele, mas tem um outro chique na maneira de compor suas frases, uma outra coloração. Isso
não deve agradar nem um pouco aos partidários do Senhor Dreyfus. Que infelicidade para eles não poderem trocar
de inocente.

Em Swann, o próprio Narrador descreve o côté Verdurin como saído de uma peça de Labiche. A continuação
nas cerca de quatro mil páginas seguintes.

Leda Tenório da Motta é professora no Pro-


grama de Estudos Pós-Graduados em Comu-
nicação e Semiótica da PUC/SP, pesquisadora
do CNPQ nível 1, pesquisadora associada ao
Reseau International Roland Barthes, tradu-
tora, crítica literária. Publicou, entre outros,
Proust: a violência sutil do riso (Perspectiva),
Prêmio Jabuti 2008 na categoria Teoria e Crí-
tica Literárias.

61
Intermitências 1

Nomes de
Illiers-Combray
O nome
Jonas Thobias da Silva Dias Martini
Fotos: Florian Lebel

Mais les noms présentent des personnes —


et des villes qu’ils nous habituent à croire
individuelles, uniques comme des personnes
— une image confuse qui tire d’eux, de leur
sonorité éclatante ou sombre, la couleur dont
elle est peinte uniformément…

Marcel Proust,
Du côté de chez Swann

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Revista brasileira de estudos proustianos - 2021

Em 29 de março de 1971, o então ministro francês Raymond Marcellin assina um decreto oficial que será
publicado alguns dias mais tarde com o seguinte título: “Décret […] portant changement de nom d’une commu-
ne”.1 A partir desse momento, o nome oficial de Illiers, cidade situada a 114 quilômetros de Paris, é composto
também pelo nome da cidade fictícia de Combray, presente na obra Em busca do tempo perdido de Marcel
Proust. O evento de renomeação de Illiers-Combray marcou o centenário de nascimento do escritor parisien-
se que na infância passava suas férias na comuna. Não apenas celebração da memória de Proust, não somente
incentivo à atração de um lugar devido à sua associação ao livro célebre, a mudança de nome manifesta a
própria consideração feita pela obra proustiana acerca da capacidade imagética das palavras e dos nomes, em
especial, os nomes de lugares. Indo assim mais longe, cinquenta anos depois, esse ato ainda motiva a pensar
na presença da ficção literária na realidade social e o potencial da literatura como designação cultural.
A pequena Illiers deve seu nome a Santo Hilário, padroeiro da cidade, e possui uma história significativa-
mente importante, sobretudo em finais da Idade Média, pela presença de Florent d’Illiers, capitão de Château-
dun, governador de Chartres sob o reinado de Carlos VII e companheiro de armas de Joana d’Arc na Guerra
dos Cem Anos. No século XIX, a cidade foi ocupada pelos prussianos e no XX bombardeada na Segunda
Guerra Mundial, após ter perdido muitos de seus habitantes na Primeira Guerra.2 Possui hoje cerca de três mil
habitantes e foi, como a maior parte das comunas francesas, desenvolvida em torno das Igrejas de Saint-Hi-
laire, destruída quando da Revolução Francesa,3 e de Saint-Jacques, reconstruída por Florent sobre edificações
do século XI.4
Illiers é local de nascimento de
Adrien Proust, pai de Marcel Proust.
Para seguir seus estudos, o futuro mé-
dico e promissor professor higienista na
Faculdade de Medicina de Paris deixou
o village primeiro para ser bolsista em
Chartres e depois para seguir carreira
na capital. Sua aplicação e notoriedade
na Paris do século XIX, em plena efer-
vescência urbanística, o fizeram escalar
rapidamente os mais destacados postos
das sociedades acadêmica e médica.5
Mas Illiers não fora esquecida. Durante
a infância de Marcel Proust, quinze fé-
rias de Páscoa e de verão foram passa-
das na casa da tia Elisabeth Amiot, irmã
do doutor Proust, casada com o nego-
ciante Jules Amiot.
Participando do décor da tenra ida-
de do escritor6, a cidade possui forte
influência sobre suas obras e, em parti-
cular, no famoso episódio da madelei-
ne, que, quando degustada pelo Nar-
rador de Em busca do tempo perdido,
ativa nele involuntariamente o gosto
daquela experimentada na juventude
em Combray, cidade cujos caracteres
se aproximam e se distanciam daque-
les de Illiers.

63
Intermitências 1

O nome de Combray que intitula sob o nome de Illiers em Jean Santeuil,


a primeira parte de um dos maiores Combray tem conforme Illiers sua rua
livros da história serve à composição Saint-Hilaire e sua rua do Saint-Esprit.
de uma paisagem que será esteio para Em Illiers-Combray a rua do Saint-Es-
a abordagem de um aspecto até então prit é hoje a do Dr. Proust — com o
pouco evocado pela intelligentsia oci- subtítulo “antigamente nomeada rua
dental: a capacidade de sentir tensio- do Saint-Esprit” —, onde encontra-se
1. Rémi Bonnet. “Printemps prous-
tien : comment Illiers a été rebaptisé nadas, sem o esforço do pensamento, a fachada principal da casa dos Amiot,
Combray”. In: L’Écho républicain. as dimensões concebidas de tempo. atualmente Museu Marcel Proust.
22 de abril de 2019. Esse cenário presente não apenas no As nuances de semelhança com
2. Illiers-Combray, Mediatheque L’ episódio da madeleine, mas em muitos Illiers, pelas referências narradas na
Apostrophe, Disponível em: <ht- momentos da Recherche, é o de uma obra e pelo fato biográfico das estadias
tps://bit.ly/3wwhur0>.
cidade interiorana com um passado de Proust, levam a uma correspon-
3. Jean-Yves Tadié, Marcel Proust.
Biographie. Paris: Gallimard, 1996.
medieval, uma antiga igreja e uma dência entre as paisagens realista de
atmosfera bucólica. A palavra “Com- Illiers e fictícia de Combray. A associa-
4. L’église de Saint-Jacques. Disponí-
vel em: <www.illiers-combray.com/ bray” vem seja do Castelo de Combray, ção das duas manifesta por um novo
eglise-sait-jacques.html>. próximo a Lisieux, seja das comu- nome, “Illiers-Combray” foi sugerido
5. Id., p. 47. nas de Combourg, de Cambrai ou de pela Sociedade dos Amigos de Com-
6. André Maurois, À la recherche
Combres.7 Saint-Hilaire aparece como bray, em particular, na pessoa do en-
de Marcel Proust, Paris: Hachette, a Igreja de Combray, resumindo a ci- tão prefeito de Illiers, René Compère,
1970, p. 15. dade, como Saint-Jacques faz hoje com e pelo professor Philibert-Louis Lar-
7. Jean-Yves Tadié, op. cit., p. 22. Illiers-Combray e, provavelmente, a cher, fundador da sociedade.9 A apro-
8. É curioso como Proust nomeia a destruída igreja de Saint-Hilaire fazia vação do ministério rende, é notório,
Igreja de Combray com o nome da com Illiers.8 Embora não fossem as tanto a atração turística e econômica
Igreja destruída de Illiers. mesmas, como na cidade apresentada da cidade rural, quanto a homenagem

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Revista brasileira de estudos proustianos - 2021

ao escritor progressivamente celebri- fora “por muito tempo escondida sob 9. Como atesta já em 1949 o brasi-
leiro Octacilio Alecrim ao se referir
zado no universo literário dos últimos o nome de Combray”.12 à empresa da sociedade em justifi-
cem anos. Entusiasta do patrimônio É preciso, contudo, salientar que os car a mudança de nome por consi-
da cidade em relação à presença de nomes de Illiers-Combray são com derar ser este um caso semelhante
ao de Fernay, que alterou seu nome
Proust e da Recherche, Larcher não efeito três: o da “realidade”, o da “fic- graças às memórias de Voltaire. Cf.
somente escreve livros sobre o tema10 ção” e o da “realidade-ficção” que a “Província de Combray”. In. Revista
como empreende em meados do sé- cidade apresenta com sua mudança Nordeste. Ano IV, n° 5, novembro,
dezembro de 1949, p. 4. Cf. Brochu-
culo XX uma série de petições no sen- de nome. Ainda que com o esforço re Illiers-Combray. Le cinquante-
tido de criar e preservar seus lugares motivado pelos mais diversos fato- naire du changement de nom. Soci-
de memória. Nesse movimento, exis- res, a “nova” cidade há de conviver été des amis de Marcel Proust et des
amis de Combray, 2021.
te um esforço de fazer com que Illiers com um dado que atravessa a própria
se pareça com Combray, elevando o obra pivô de seu nome: Illiers não é 10. Philibert-Louis Larcher, Le Par-
fum de Combray, Paris: Mercure de
nome da cidade ao nome capitulado e nunca poderá ser Combray. Até France, 1945;
pelo romance.11 Assim, por exemplo, mesmo a Illiers de Jean Santeuil nun-
_________. Le temps retrouvé. Lui-
a casa dos Amiot se transforma em ca poderá sê-lo. A crítica deve aclarar sant: impr. Durand, 1971.
Museu Marcel Proust, chamado tam- os termos muitas vezes pouco evo- 11. Egoa DuFourc. “Attitudes de
bém de Musée Tante Léonie, portando cados quando se pensa a relação do lecteurs de Marcel Proust et effets
o nome da tia do Narrador; o Jardin lugar com o livro. Não é a Recherche de la lecture d’A la recherche du
temps perdu dans la ville d’Illiers-
du Pré Catelan do tio Amiot que teria descrição nem documento da paisa- -Combray”. In. Les dossiers du Grihl,
servido de modelo para o Parc de Tan- gem de Illiers pois, ao criar Combray, v. 02, 2019. Disponível em: <http://
sonville de Swann é classificado como Marcel Proust não está a compor uma journals.openedition.org/dossiers-
grihl/7941>.
sítio literário e, por arremate, o nome poetologia geográfica, ele cria outra
mesmo da cidade é modificado, uma cidade e por isso é necessário o novo 12. Philibert-Louis Larcher, “Ra-
pport moral du secrétaire général”.
vez que, nas palavras de Larcher, Illiers nome. A exploração da sensibilida- In: Bulletin Marcel Proust, 1958, p.
de interior engendrada pela tensão 533.

65
Intermitências 1

temporal, principal motor da investigação feita Essa disparidade não habita, entretanto, apenas a
pelo Narrador, não é dada pela “realidade” espacial lista de combinações trazidas pela paisagem da Re-
de Illiers. Nada seria mais penoso do que pagar as cherche que difere daquela percebida pelo morador
milhares de páginas de Em busca do tempo perdido ou visitante de Illiers. Mora antes na capacidade de
com a afirmação de que ela reproduz o cenário vivi- ressonância da obra para além do próprio texto, isto
do pelo escritor em sua infância. é, para o leitor. A celebração cinquentenária que se
A grande questão da teoria literária, que os even- deve fazer sobre a mudança do nome é a da meta-
tos rememorativos de uma obra e de um autor as- morfose do “leitor de si mesmo” que reorganiza uma
sinalam, é a do que motiva um Proust criar uma estrutura socio-cultural, apontando para a necessi-
Combray e não reproduzir — se isso lhe fosse pos- dade de literatura. A tarefa de Marcel Proust ao criar
sível — Illiers no romance. Descortinam-se assim o Combray não fora apenas a de extrair de Illiers os
desafio de entendimento do fazer literário e o poder traços do ambiente que atingiu mais profundamente
do imaginário na produção de uma nova paisagem, seus sentidos. Ao narrá-los poeticamente, ele entre-
subsumida por um nome que a designa. Há de existir, gou à cidade uma outra cidade que ela outrora não
no entanto, uma comunicação entre essas “cidades”. tinha, o que a impediu para sempre de ser a mesma.
O “fingimento” da cidade imaginada assemelha-se A própria presença na Recherche da reflexão sobre o
àquela de Adrien Proust justamente porque ela com- poder do nome de resumir o lugar está em apontar
põe a possibilidade de expressão do autor. Contudo, que a sua fixação esconde uma série de aspectos. A
não é essa composição que faz com que Proust seja afirmação decisiva e desafiadora dos diferentes no-
celebrado. Se assim o fosse, qualquer descritor que mes de Illiers-Combray é de que não é possível escre-
se pretenda realista seria capaz de mudar o nome da ver ficção sem a “realidade”, da mesma forma que não
cidade. O que faz com que Illiers-Combray exista é a é possível manter-se na “realidade” tocada pela ficção
diferença existente entre a cidade francesa e a cidade sem a imaginação despertada outrora pelo ficcionis-
do livro. ta. É o que prova o ato de Monsieur Marcellin.

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Revista brasileira de estudos proustianos - 2021

Bibliografia

ALECRIM, Octacilio. “Província de Combray”. In. Revista Nordeste. Ano IV, n. 5, novembro, dezembro de
1949.

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TADIÉ, Jean-Yves. Marcel Proust. Biographie. Paris: Gallimard, 1996.

Jonas Thobias da Silva Dias Martini é Doutorando em Literatura pelo Institut de


Recherche en Langues et Littératures Européennes da Université de Haute Alsace/
Université de Strasbourg. Mestre em História Social da Cultura pela PUC-Rio.
Florian Lebel: « Il y a un peu plus d’un an de ça, je suis venu vivre à Illiers-Com-
bray, à deux pas de la maison de la Tante Léonie, quittant dès lors le tumulte des
grandes villes pour exercer mon métier de relecteur au plus proche de l’œuvre de
Marcel Proust. Depuis, je savoure le bonheur d’emprunter chaque jour les rues et
chemins qu’il arpentait durant les quelques étés qu’il a passés ici, il y a maintenant
près de 150 ans, et qu’il décrit avec tant d’intensité dans ses textes, qui prennent
par ailleurs une autre dimension, sans oublier celui d’apercevoir depuis ma fenêtre
le clocher de l’église Saint-Hilaire/Saint-Jacques et « sa figure inoubliable »…
« Avec le compte Instagram @lepaysdecombray, j’ai souhaité illustrer, par le biais
de Marcel Proust et son oeuvre, cette campagne, souvent ignorée, voire délais-
sée, mais dont l’intérêt grandit depuis quelques mois avec les événements que l’on
connaît hélas ! tous, au même titre que celui pour la littérature. »

67
Intermitências 1

Proust e
Joubert
Algumas notas
comparativas
Paulo Gustavo

J oseph Joubert (1754-1824) é praticamente o último dos grandes moralistas franceses. Dele, parodiando-se
o que disse Bertrand Russell de Spinoza em sua História da Filosofia Ocidental, talvez se possa afirmar que
é “[…] o mais nobre e o mais amável de todos os moralistas; intelectualmente, alguns outros o superaram,
mas eticamente é supremo”. Com efeito, ele procurou viver conforme o que pensava e em toda a sua vida deu
provas de ser, à contracorrente, um otimista que amava os homens. Não por acaso, à diferença de seus pares, é
considerado um pensador sem amargura. Para Raymond Dumay, no ensaio “Um Dom Quixote da Sabedoria”,
“Joubert provou que um otimista podia escrever bem e que era possível falar inteligentemente do homem sem
maldizê-lo”.1 Segundo seu estudioso e biógrafo G. Pailhès, sua máxima “O moralista faz frequentemente a mo-
ral com seu caráter”2 bem que pode ser aplicada ao próprio Joubert.. Nada tendo publicado em vida, Joubert
foi resgatado e originalmente editado por seu grande amigo o romancista François-René de Chateaubriand.
Segundo o Dicionário Marcel Proust, publicado sob a direção de Annick Bouillaguet e Brian G. Rogers,
Proust, em 1922, teria chamado o moralista de “o divino Joubert”. Outras referências dão conta de que o autor
da Recherche conferia a Joubert o status de autor de cabeceira. Na Recherche, Joubert será mencionado duas
vezes: pelo próprio narrador, que associa as cartas de Joubert a um prefácio de Balzac à Cartuxa de Parma, o
que é na verdade, segundo o citado Dicionário, um texto do próprio Stendhal; e
outra vez, quando o personagem Legrandin sugere a leitura do pensador à Mme. 1. Joseph Joubert. Pensées et Lettres
de Villeparisis — “Nunca leu Joubert? Teria lhe agradado tanto!”.3 Ambas as re- Présentées par Raymond Dumay,
Paris: Grasset, 1954.
ferências se encontram em O caminho de Guermantes.
2. G. Pailhès, Du Nouveau sur J. Jou-
Parece significativo que Legrandin seja, por assim dizer, o “porta-voz” dessa bert, Paris: Garnier Frères, 1900.
homenagem de Proust a Joubert. Não obstante ser um engenheiro, Legrandin
3. Dicionário Marcel Proust, or-
nos é apresentado como um lírico e desencantado “causeur”, cuja mágoa secreta ganizado por Annick Bouillaguet
é não ter conseguido entrar no mundo dos Guermantes e da alta sociedade. Tra- e Brian G. Rogers. Paris: Honoré
ta-se de um ressentido e, no fundo, uma espécie de esnobe que não se assume. Champion, 2014.
Em seu longo e bem documentado ensaio Le snobisme et les françaises: de 4. Émilien Carassus. Le snobisme
Paul Bourget à Marcel Proust 1884-1914, Émilien Carassus nos chama a atenção età Marcel
les Françaises: de Paul Bourget
Proust 1884–1914, Paris:
para ver como Proust, em sua relação com o esnobismo, entre outras percep- Armand Colin, 1966. (Tradução do
autor.)

68
Revista brasileira de estudos proustianos - 2021

ções, flagrou-lhe também um caráter pessoas. Também o moralista foi, a seu


vergonhoso e dissimulado tal como o modo, como Legrandin, uma espécie
encontramos na personagem de Le- de homem invisível, embora, é claro,
grandin: atentíssimo ao embate do mundo com
a vida espiritual, tendo dito, aos qua-
O caráter vergonhoso do esnobis- renta anos, que gostaria de ser perfeito.
mo, Proust o discerne a ponto de A acreditarmos em Joubert falando
na maior parte do tempo pintá- de si mesmo, e, para ficarmos no plano
-lo dissimulado sob a máscara do
material da escrita, logo veremos que
antiesnobismo. O esnobe finge
desprezar, crê mesmo desprezar
ele é um antípoda de Proust (não obs-
os clãs cujo acesso lhe permanece tante ter sido um enfermiço e um aca-
interdito. Escapa-se disso como mado, com o que o romancista prova-
Madame Verdurin, com um dar de velmente se identificou). Este, como se
ombros que declara os Noilles ou sabe, trabalha por acréscimo. Talvez
os Guermantes tediosos, ou como se possa dizer que tem a sabedoria da
Legrandin com belas palavras de- prolixidade, se é que se pode livrar esta
clamatórias.4 última palavra de sua carga pejorativa.
Digamos, então, que Proust tem uma
Em nota de rodapé, Carassus sabedoria da fecundidade verbal. Ele
observa, por oportuno, que “[…] à cria ramagens e volutas, toca e retoca
medida que os grandes vêm mais com um pincel que sempre está a pin-
numerosos ao salão de Madame gar. É um autor tão barroco quanto
Verdurin, diminui o número de simbolista, e tão inclassificável quanto
personagens considerados tediosos”. a sua obra-prima. Em alguns momen-
É Legrandin que dará ao menino tos, avança como se tudo o mais ficas-
Marcel o conselho que este recordará se para trás ou como se fosse cada vez
mais tarde: “Trate de conservar sem- mais fundo em busca de um real que
pre um pedaço de céu acima de sua se furta a suas sondagens e pesquisas.
vida, meu menino”. Uma advertência Sendo asmático, ele é quem nos deixa
moral que parece visar estoicamen- sem ar, muito embora encantados de
te a tranquilidade da alma em meio à cada matiz que acrescenta e de cada
própria turbulência do destino. Uma detalhe que prolonga.
tranquilidade que parece faltar ao pró- Joubert, ao contrário de Proust (e,
prio personagem. A simbologia da claro, praticando outro gênero), dei-
verticalidade assume aí uma função xa-nos um texto que é alinhado a ou-
reparadora. À semelhança de Joubert, tra família de escritores. Diz ele: “Se há
Legrandin, que tanto o admira, esfor- um homem atormentado pela maldita
ça-se por se deslocar para uma trans- ambição de pôr todo um livro numa
cendência moral, que, de certa forma, página, toda uma página numa frase e
também quer significar autonomia, esta frase numa palavra, este homem
despojamento e compensação pelos sou eu”.5 E ainda: “Fazer as pequenas
desapontamentos, um viver em equi- frases dizerem grandes coisas”. Ele 5. Esta citação de Joubert, como
líbrio numa vida discreta e, no limite, busca, como Ezra Pound teorizaria no todas as demais, à exceção da pri-
voltada para uma santidade possível. meira, é extraída do livro Pensées
século XX, uma compactação de sen- et Lettres Présentées par Raymond
Pode-se dizer, paradoxalmente, que tido, a concisão que, de fato, mesmo Dumay, publicado em Paris por
o inquieto Legrandin foge do conví- existindo em prosa, torna-se, por as- Bernard Grasset Éditeur, em 1954.
vio humano para se encontrar com as (A tradução para o português é do
sim dizer, mais notável no âmbito da autor.) Ver nota 4.

69
Intermitências 1

poesia. Enfim, Joubert busca uma de- mesmo tempo desfrutar a ilusão e co-
puração, tem a ânsia de acertar o alvo. nhecer a verdade” e que a “A poesia é
Segundo ele mesmo diz, “Em todas as por vezes mais filosófica que a filoso-
coisas, parece-me que as ideias inter- fia”. O moralista insiste, de certo modo
mediárias me faltam ou me entediam antecipando Freud, Schopenhauer e
bastante”. Para Joubert, toda adiposi- Nietzsche, que “Os poetas devem ser o
dade verbal é nefasta; para Proust, o grande estudo do filósofo que quer co-
excesso verbal é uma fonte de recursos nhecer os homens” e que “Procuran-
e de criação inesgotável. Joubert é um do a beleza, os poetas encontram mais
apolíneo; Proust, um dionisíaco. verdades que os filósofos procurando
Apesar dessa diferença que se dis- o verdadeiro”.
tancia do dégradée proustiano, Joubert, Sobre essa busca pela verdade, con-
por seu idealismo prático, de resto tão cordamos com Deleuze, em Proust e os
próximo de Proust, tem inúmeras e signos, que Proust empreende uma bus-
variadas convergências com o texto ca pela verdade. Todavia, o que defen-
proustiano da Recherche. Se citarmos demos é que Proust, ainda mais que a
que ele escreve que “É preciso ter uma verdade, procurou a sabedoria. Ele está
alma poética e um espírito geométrico”, mais interessado num “como viver”, as-
talvez fique mais claro entender suas sim como seu antecessor Montaigne.
semelhanças com Proust, até porque De sua parte, Joubert parece antecipar
este último, como a crítica assinalou, Proust ao escrever que devemos “Pro-
sempre fez questão de realçar o caráter curar mais a sabedoria do que a verda-
compositivo de sua obra, como um ar- de, pois ela está mais ao nosso alcance”
quiteto que antes desenha para, poste- (“Chercher la sagesse plutôt que la verité.
riormente, edificar seu prédio. Elle est plus à notre portée”). Curioso é
Numa outra perspectiva, tanto Jou- que, tratando da sabedoria, Joubert,
bert quanto Proust pertencem à famí- como Proust, parece tirá-la de um pe-
lia dos que creem no caráter mental destal livresco, aconselhando-a ser ou-
da realidade, inerente ao pensamento vida “nas ruas, nos caminhos” …Não
proustiano. Mencionemos de Proust o que o moralista, longe disso, seja um re-
conhecido trecho: belde ou algo como um ardente defen-
sor do povo. Pelo contrário, ele antecipa
Convencera-me de que só uma o que em Proust é um equilíbrio (ou se-
percepção grosseira e viciada co- ria um conflito não resolvido e, por isso
loca tudo no objeto, quando tudo mesmo, tão artisticamente fecundo?)
está no espírito.
entre a tradição e o próprio arrojo de
ser ousado, moderno e até iconoclasta,
E, de Joubert, esta observação tam-
trabalhando, como escreveu Richard
bém, a seu modo, solipsista:
Rorty, como um verdadeiro ironista…6
Vemos tudo através de nós mes- Mas vejamos o que diz o “divino”
mos. Nós somos um meio sempre Joubert sobre o equilíbrio visível no
interposto entre as coisas e nós. texto proustiano: “Toda novidade, se
ela não tem alguma antiguidade para
Nessa mesma linha de afinidades, apoio, falta-lhe base e solidez. Ela não
testemunhamos, como na Recherche, pode nem se estabelecer nem durar”.
6. Richard Rorty. Contingência, iro-
nia e solidariedade. Trad. de Vera que Joubert advoga, em seus pensa- Eis uma máxima que, a nosso ver,
Ribeiro, São Paulo: Martins, 2007. mentos e máximas, que “Pode-se ao abraça todo o romance proustiano. Em

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Revista brasileira de estudos proustianos - 2021

que pese a sua sensibilidade romântica Estas ligeiras notas comparativas fi-
e simbolista, Proust também se vol- cariam incompletas se não dissermos,
ta para aquilo que a tradição tem de apoiando-nos em Raymond Dumay,7
melhor e mais estabelecido; seu amor que, para Joubert, a “literatura foi sua
pelas catedrais, para ficarmos num única violenta paixão” e que de suas
exemplo emblemático, é uma prova de observações sobre ela ressuma, ainda
que em seu espírito agnóstico convi- que de forma fragmentária, uma teoria
vem contradições profundas; da mes- literária que antecipa a modernidade e
ma forma, ao rebaixar a aristocracia que, em vários pontos, coincide com
com um zelo racional e irônico, mal Proust.
esconde que se encanta com seu bri- Assim como o autor da Recherche,
lho fátuo e sua liturgia ultrapassada e Joubert é extremamente atento à ma-
pomposa. Escusado dizer que, em sua terialidade das palavras e ao seu cur-
própria existência, viveu tais parado- so no tempo. Para ele, as palavras não
xos, ou seja, uma juventude mundana apenas têm som e sentido, mas “calor e
e frívola em contradição com a própria vida”. São como “[…] vidros que obs-
condição, na idade madura, de um curecem tudo o que não ajudam a ver
autor retirado, grave e reflexivo. Não melhor” (estaria aí a origem da me-
por acaso, André Gide, sem suspeitar táfora proustiana do oftalmologista e
de tal “metamorfose”, e guardando a suas lentes?). São “corpos” e “lugares”
imagem social do jovem Proust, vai para os pensamentos. Acha ele que
rejeitar, na Nouvelle Revue Française palavras e pensamentos devem nascer
(depois Gallimard), os originais de No uns dos outros. Joubert tem, por assim
caminho de Swann. Sem hipocrisia, é dizer, um senso econômico das pala-
preciso compreendermos e perdoar- vras, um senso de que o valor aumenta
mos o autor de Os moedeiros falsos… à medida que encontramos uma pa-
Provavelmente, faríamos o mesmo. lavra bem escolhida que pode valer
Voltando àquela última considera- toda uma frase (“Les mots, lorsqu’ils
ção de Joubert, em que o novo e o anti- sont bien choisis, sont des abrégés de
go interagem no tempo, será talvez in- phrases”). Além disso, ele se refere
teressante lembrar, em nosso socorro, constantemente à música e à beleza
do Wittgenstein do livro Da certeza, das palavras. Joubert sonha com uma
em que o gênio austríaco expõe que a ciência dos nomes e das palavras que
dúvida nunca pode ser integral, mas nos ensinaria toda a arte do estilo.
que ela sempre apoia seu movimen- Como se vê, a relação oralidade-
to nos “gonzos” de alguma certeza. A -escrita tão patente em Proust quanto
propósito, Guimarães Rosa (aliás, lei- na literatura moderna em geral é uma
tor e admirador de Proust) resumiu das pedras de toque do moralista. Do
a questão num paradoxo exemplar: romancista, sabe-se, que gostaria de
“Meu duvidar é petição de mais cer- criar um livro para ser lido em voz alta. 7. Op. cit., p. 31.
teza” (Tutameia). Proust, assim, “vive” De fato, a Recherche, a seu modo mo- 8. Jean-Yves Tadié, Proust et le ro-
Joubert criando a “novidade” da Re- nólogo, conversa e confissão, está to- man, Paris: Gallimard, 1971.
cherche sobre os fundamentos da “an- mada pela oralidade. Como nos lem- 9. A esse propósito, ver Roger Shat-
tiguidade” da tradição literária, com a bra Jean-Yves Tadié, Proust modula os tuck, As ideias de Proust, Tradução
de Eliane Fittipaldi Pereira. São
qual, claro, dialoga (o que, por óbvio, diálogos conforme seus personagens. Paulo: Cultrix; Edusp, 1985.
não é simples concordância) todo o Daí uma diversidade de registros orais
10. Ramon Fernandez, Proust. Pa-
tempo. e um acréscimo de mais uma ilusão de ris: Grasset, 1979, p. 70.

71
Intermitências 1

vida a todos eles, ou seja, de mais verossimilhança. A propósito, o mesmo Jean-Yves Tadié tem esta observa-
ção esclarecedora: “Proust nunca é tão romancista que quando seus heróis falam” ou ainda: “[…] para Proust,
pastichar é ouvir a melodia de um autor […]”.8 Como quer que seja, ao trazer a poesia para dentro de seu ro-
mance, como já foi assinalado pela crítica, Proust traz com ela, por assim dizer, a função poética da linguagem
percebida por Jakobson e, por isso, também faz de sua obra um monumento à metaliteratura.
E, por falar em crítica, bem sabemos o quanto Proust tinha consciência do que o tempo representava para
se compreender e apreciar uma nova obra artística. Quem não se lembra que, em À sombra das raparigas em
flor, o narrador escreve: “Foram os próprios quartetos de Beethoven que levaram cinquenta anos para dar vida
e número ao público dos quartetos de Beethoven […]”?. Donde este corolário no mesmo trecho: “Cumpre,
pois que o artista — e assim o fizera Vinteuil — se quiser que a sua obra possa seguir seu caminho, a lance
onde haja bastante profundidade, em pleno e remoto futuro”. A ideia de que a obra cria a sua posteridade foi
mais tarde empregada por McLuhan em sua teoria da comunicação (Não havia, por exemplo, público de te-
levisão antes da televisão!), levando-a, assim, do mundo das letras para o mundo que os novos mídias então
preparavam.
O pensamento de Joubert se reflete nessa modulação proustiana do tempo em relação às obras ao nos en-
sinar que “O bom julgamento em literatura é uma faculdade muito lenta e que só muito tarde atinge o último
ponto de seu progresso”. Proust, é de se observar em sua citação no parágrafo anterior, matiza o tempo, dotan-
do-o de uma dimensão que acentua o já observado por Joubert. Essa dimensão, ele a chama de “profundidade”
e também atende pelo nome de “futuro”. Não é, portanto, de se estranhar que uma parte dos contemporâneos
não compreenda uma obra inovadora. O próprio caso da Recherche é emblemático a esse respeito, uma vez
que teve uma recepção, por assim dizer, ambígua. Recepção melhor no estrangeiro do que na própria França.9
É o que também nos diz Ramon Fernandez no seu Proust: “Proust, como Balzac, inspirou muito prontamente
fora da França uma espécie de culto; como Balzac, ele encontrou, em seu próprio país, ao mesmo tempo que
uma viva admiração, recusas e resistências”.10
É tempo de concluir, não obstante o muito que ainda teríamos a dizer. Quem nos acompanhou até aqui terá
visto, por estas breves notas, o quanto Proust, sem embargo do seu diálogo literário intertextual com dezenas
de outros autores (filósofos, dramaturgos, ficcionistas), ao escrever a Recherche, estava afinado eletivamente
com as ideias e sutilezas de Joubert, embora, até onde estamos informados, a própria crítica não tenha, salvo
engano, atentado para essa relação. É certo que ele leu e refletiu sobre “o divino” Joubert, que o antecipa em
sensibilidade e visão estética, sobretudo em termos literários e em preocupação com o tema da sabedoria. De
resto, as reflexões morais de Proust, ainda que muitas não tenham o otimismo das máximas do moralista, são
despidas de amargura e quase sempre vestidas de serenidade. Como Joubert, Proust também soube compre-
ender o tempo em sua relação com nossos mais sutis movimentos e atitudes psicológicos, pois como escreveu
belamente o pensador: “À sagacidade não é preciso mais que um momento para tudo perceber, mas à exatidão
é preciso anos para tudo expressar”. Foi com exatidão e sagacidade que Proust, o narrador do tempo “incor-
porado”, pôde nos legar uma obra monumental.
Se vocês nunca leram Proust ou Joubert, que pena, teriam se agradado tanto!

Paulo Gustavo é poeta e ensaísta, Mestre em


Teoria da Literatura pela UFPE e membro da
Academia Pernambucana de Letras.

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Revista brasileira de estudos proustianos - 2021

Nostos
A relação entre os
objetos e o passado
em Marcel Proust
Tarik Vivan Alexandre

Cet article montre la relation parmi


le temps et les objets magiques dans
l’oeuvre de Marcel Proust. On utilise
les textes de Gilles Deleuze, Walter
Benjamin et Catherine Malabou
pour discuter comme les objets qui
apparaît sur le roman de Proust,
comme les madeleines, sont partie
de la compréhension du temps lui
même comme passé perdu. Ainsi,
dans le roman de Proust, les objets
sont l’endroit ou les signes qu’aident
Marcel découvrir ses raisons pour
écrire la Recherche. Pour souligner
plus cettes relations, on utilise
le concept de jouet de Walter
Benjamin, qui réalise le déplacement
du sens des objets et les transforment.
Finalement, ce déplacement du sens
des objets montre qui, dans le roman
de Proust, le temps est, toujours, une
essai de révivre le passe de manière
impossible ou nostalgique.
Proust fotografado por Otto Wegener, aproximadamente 1895.

73
Intermitências 1

Sabe-se que Proust possuía um grande apreço por admite essa possibilidade sobre o mundo material ser
fecundo em possibilidades de aprendizado:
fotografias. Em inúmeros trechos de seus livros, bem
como em representações cinematográficas, o litera- A partir de certa idade, nossas recordações estão
to sempre aparece encarando as fotos de pessoas que de tal modo entrecruzadas umas nas outras que a
lhes eram queridas ou das quais tinha grande apreço. coisa em que pensamos ou o livro que lemos quase
A princípio, Proust parecia acreditar que nelas ha- não tem importância. Pusemos algo de nós mes-
via parte daquelas pessoas guardadas nas fotos e, ao mos em toda parte, tudo é fecundo, tudo é perigo-
revê-las, também podia entrar em contato com elas so, e podemos fazer descobertas igualmente pre-
ciosas tanto nos Pensamentos de Pascal como em
mais uma vez. É como se visse nessas fotografias algo
um anúncio de sabonete.2
de mágico, de propriamente cheio de sentido e que
pode ser constantemente manipulado para que se ex-
Proust dá enorme importância às relações com os
traia algo das pessoas que nela estão registradas.
objetos materiais, pois, como expresso pelo trecho,
O trabalho de Proust se centra fundamentalmente
todo e qualquer objeto ou evento pode ser relevante
em sua maior obra, Em busca do tempo perdido, aqui
para trazer reflexões ou questões sobre a condição de
denominada apenas como Recherche, seja pelo seu
Marcel enquanto personagem que se pretende escre-
caráter investigativo, seja também por ser um termo
ver um romance e, praticamente até o final da Recher-
mais rápido para designar o romance. Neste roman-
che, não sabe exatamente sobre o assunto que deveria
ce, a narrativa versa a respeito de um personagem,
escrever. Logo no começo de No caminho de Swann,
Marcel, que busca relatar a sua experiência na traje-
Proust assinala a importância de certa crença oriun-
tória de alcançar um objetivo: escrever um romance
da dos celtas em que os objetos materiais são cativos
notório. Nesse percurso, Marcel começa a repassar
de algum tipo de sentido oculto, são indispensáveis
a história de sua vida na tentativa de encontrar um
para o conhecimento e seu portador recebe com ele o
motivo literário forte o suficiente que o pudesse fazer
sentido que nele habita:
escrever uma narrativa pertinente e digna de sucesso.
Contudo, a personagem tem severas dificuldades em Acho muito razoável a crença céltica de que as almas
encontrar este motivo e só consegue encontrá-lo, efe- daqueles a quem perdemos se acham cativas em al-
tivamente, no último volume quando se depara com gum ser inferior, um vegetal, uma coisa inanimada
a concepção de tempo como o verdadeiro motivo li- efetivamente perdidas para nós até o dia, que para
terário de seu romance. Assim, durante o processo muitos nunca chega, em que nos sucede passar por
de descoberta do motivo filosófico/literário de seu perto da árvore, entrar na posse do objeto que lhe
romance, Proust percorre uma enorme variedade de serve de prisão. Então elas palpitam, nos chamam,
assuntos: a vida burguesa de seu tempo, as relações e que logo que as reconhecemos, está quebrado o
amorosas, as questões relativas a percepção do tempo encanto. […] É assim com nosso passado. Trabalho
e do espaço, a memória e, sobretudo, a curiosa rela- perdido procurar evocá-lo, todos os esforços de nos-
sa inteligência permanecem inúteis. Está ele oculto,
ção com os objetos.
fora de seu domínio e de seu alcance, em algum ob-
Ao longo da Recherche, não é incomum nos de- jeto material (na sensação que nos daria esse objeto
pararmos com cenas peculiares em que a relação do material) que nós nem suspeitamos.3
narrador para com os objetos que estão ao seu redor,
são de extrema importância para o desencadeamento Nesse sentido, o romance de Proust se vale da
do romance. As cenas a esse respeito são inúmeras: constante relação com os objetos que circundam o
desde o momento em que Marcel toma as madeleines narrador e, deles, retira alguma espécie de aprendiza-
imersas no chá1 até mesmo a um copo de laranjada do, de sentido que lá repousava e que, de certa forma,
que trazem para a personagem a compreensão de al- traz consigo um elemento indispensável para que a
guma dimensão que, naquele momento, ainda lhe era busca pelo tempo perdido ocorra. De acordo com
desconhecida ou ainda não havia sido devidamente Deleuze (2003), o romance proustiano se constitui de
aprendida. Marcel, em certo ponto do romance, até uma constante compreensão daquilo que se denomi-

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Revista brasileira de estudos proustianos - 2021

na como “signos”, a saber, uma série de eventos que, imperturbável da hora mais banal e mais efêmera,
sem definição e da ordem do abstrato,4 visam dar a mais sentimental e mais frágil, da vida daqueles a
Marcel seu entendimento sobre as condições neces- que pertencem? E quando Proust descreveu, numa
sárias para formular a Recherche. Entre estes signos passagem célebre, essa hora sumamente individu-
al, ele o faz de tal maneira que cada um de nós a
que enumera Deleuze (mundano, amoroso, sensível
reencontra 40 em sua própria existência. […] Coc-
e artístico), o signo sensível é aquele que se debruça
teau percebeu aquilo que deveria preocupar, em al-
sobre este aprendizado das experiências, ou ainda o tíssimo grau, todo leitor de Proust: ele viu o desejo
aprendizado que é oriundo dos objetos e da sensibi- de felicidade — cego, insensato e frenético — que
lidade que eles proporcionam. Para Deleuze, o signo habitava esse homem.6
sensível é o signo da percepção,5 justamente aquele
pelo qual é possível que haja o conhecimento dos Essa necessidade de felicidade que se encontra no
objetos. Portanto, conhecer os objetos, em Proust, trabalho de Proust parece de alguma forma nos con-
adquire duas dimensões: a dimensão da percepção duzir a observar essa demanda de retorno ao passado,
enquanto aprendizado e, ao mesmo tempo, o contato em que o tempo é o único local onde permanecem as
direto com a condição fundamental do autor, a saber, memórias e esse local supostamente primordial. Tal
de manipular o tempo. concepção dialoga diretamente com a noção de nos-
Em O tempo redescoberto, Proust afirma que o talgia, derivada do termo nostos que, no grego antigo,
grande motivo literário que conduz seu romance é possui a definição de “retorno para casa”. Em particu-
tratar sobre o tempo, mais especificamente o tem- lar, a Odisseia, de Homero, seria o exemplo mais evi-
po enquanto a vivência do narrador, de forma que é dente da tentativa de uma nostalgia bem sucedida:
indiscernível em que medida a vida de Marcel não
é, também, a própria temporalidade. Logo, todas as A raiz verbal do substantivo nostos, porém, tem a
lembranças oriundas do passado, o processo de re- conotação mais precisa de “voltar são e salvo para
memoração e, portanto, de ressignificação dessas ex- casa”, e também de “retornar da morte para a vida”
periências que foram relembradas é o próprio agir do (…): a primeira acepção do dicionário (“longa pe-
tempo que, doravante, se expõem unicamente como rabulação”) está presente em nostos, ao passo que a
segunda (“narração de viagem”) pertence à histó-
o próprio agir desse tempo que se comporta como
ria de outro substantivo que parece compartilhar
passado (tempo perdido) e tempo rememorado (ou
da mesma raiz, noos, que se refere, em Homero,
tempo redescoberto). Uma vez que toda a dimensão a uma faculdade cognitiva ligada à visão, e pode
do romance versa sobre o tempo, invariavelmente ser traduzido por “mente”, “ideia”, e “espírito”. Tais
sua relação com os objetos, e com os signos sensí- sentidos de nostos apontam para uma constelação
veis, é também uma relação de tempo. Há por parte mítica na qual se articulam duas imagens ou ideias:
de Proust, portanto, uma rememoração que visa um o percurso da morte para a vida e o caminho da
retorno a um estado mais anterior, genético, do qual escuridão para a luz.7
o passado seria como um retorno, ou um voltar para
um local familiar e conhecido. Odisseu, portanto, conduz-se como um nostálgico
Em seu texto “A imagem de Proust”, Walter Benja- na medida em que sente saudades de casa e busca,
min aponta para o fato de que Proust tenta, de todas de todas as formas possíveis, retornar para sua casa,
as formas possíveis, criar uma relação entre o que ele a saber, Ítaca. Após a guerra de Troia, narrada na Ilí-
batiza como “tempo entrecruzado”, no sentido de que ada, Odisseu fica preso em uma ilha junto da ninfa
o ocorrido do passado se une ao presente e, com isso, Calipso e, graças a ajuda de Atena, consegue uma nau
adquire uma nova condição de possibilidade: o alcance para voltar para casa. Nesse processo, o herói desco-
da felicidade, ou desse tempo incapaz de ser perdido: bre que, para seu pesar, ninguém mais em seu reino o
reconhece e, se não fosse pela criada que percebe a ci-
O que procurava ele tão freneticamente? O que catriz que possui em seu pé, Odisseu passaria por um
estava na base desse esforço interminável? Seria completo estranho em seu reino. Esse detalhe causa
lícito dizer que todas as vidas, obras e ações im- um espanto em Odisseu: a percepção de que as mu-
portantes nada mais são do que o desdobramento

75
Intermitências 1

danças causadas pelos eventos em Troia bem como as paisagens e os objetos se constituem, é também
a realidade foram alteradas ou, no mínimo, não são uma maneira de percorrê-los, vagar por eles, como
mais como eram antes. A saber, independentemen- um esforço de compreendê-los e, eventualmente,
te de Atena tê-lo transformado em um mendigo ao capturar o sentido cativo da dita crença céltica que
retornar para Ítaca, Odisseu não seria reconhecido Proust busca se referir. Em outras palavras, é como
pelos seus próximos. se a experiência de redescoberta, como as madeleines
Em Proust, igualmente, observamos essa necessi- ou o copo de laranjada, fossem uma necessidade de
dade de um retorno a um tema fundamental, o tem- não somente compreender a natureza do tempo, mas
po, como prerrogativa do romance, no sentido de que de poder usufruir desta experiência ainda outras tan-
compreender o tempo perdido, efetivamente redes- tas vezes. Todavia, e eis aqui o ponto nevrálgico da
cobri-lo, é também realizar o nostos. Em outras pala- rememoração, é o fato de que essa experiência é sem-
vras, é como se Marcel quisesse retornar para algum pre a experiência de algo que já ocorreu e não mais
lugar dentro do tempo em que se sentisse seguro, que pode ser concebida tal como era no passado.
seu motivo para escrever um romance fosse devida- Esse aspecto da obra conversa diretamente com
mente confirmado e, principalmente, bem execu- as reflexões de Benjamin (2007) no tocante aos brin-
tado. É como se o contato com os objetos mágicos quedos ou aos colecionadores: uma vez que o objeto
feitos por Proust pudesse conduzi-lo, mais uma vez, é retirado de seu contexto original, é como se ele fos-
a esse local em que repousa o tempo perdido. Nes- se ressignificado de forma a ser dessacrado, ou ainda
se aspecto, somos também conduzidos a relembrar a desfeito de seu sentido original:
passagem de Odisseu quando entra em contato com
os mortos na guerra de Troia ao alcançar o Tártaro e É decisivo na arte de colecionar que o objeto seja
revê-los outra vez, de alguma forma dialogando com desligado de todas as suas funções primitivas, a fim
o próprio passado. de travar a relação mais íntima que se pode imagi-
nar com aquilo que lhe é semelhante. Esta relação
Walter Benjamin (2007) em seu livro Passagens
é diametralmente oposta à utilidade e situa-se sob
aponta para algo similar, no sentido de que essa rela-
a categoria singular da completude. O que é esta
ção com os objetos materiais, em Proust, também é um “completude”? É uma grandiosa tentativa de su-
princípio de flânerie, ou de perambulação pelas pró- perar o caráter totalmente irracional de sua mera
prias percepções (e aqui memórias), das quais Proust existência através da integração em um sistema
insiste tanto em experienciar na tentativa de encontrar histórico novo, criado especialmente para este fim:
ou ainda investigar o tempo: a coleção. E para o verdadeiro colecionador, cada
uma das coisas torna-se neste sistema uma enciclo-
O princípio da flânerie em Proust: “Então, longe de pédia de toda a ciência da época, da paisagem, da
todas essas preocupações literárias e sem me pren- indústria, do proprietário do qual provém. O mais
der a nada, de repente um teto, o reflexo do sol em profundo encantamento do colecionador consiste
uma pedra, o cheiro de um caminho detinham-me em inscrever a coisa particular em um círculo má-
pelo prazer singular que me proporcionavam, e gico no qual ela se imobiliza, enquanto a percorre
também porque pareciam esconder, para além do um último estremecimento (o estremecimento de
que eu via, algo que me convidavam a buscar e que, ser adquirida). Tudo o que é lembrado, pensado,
apesar de meus esforços, não consegui descobrir” consciente torna-se suporte, pedestal, moldura, fe-
[…] — Esta passagem permite reconhecer clara- cho de sua posse. Não se deve pensar que o topos
mente como o antigo sentimento romântico da hyperouranios, que, segundo Platão, abriga as ima-
paisagem se desfaz e como surge uma nova visão gens primevas e imutáveis das coisas, seja estranho
romântica dela, que parece ser sobretudo de uma para o colecionador. Ele se perde, certamente. Mas
paisagem urbana, se é verdade que a cidade é o au- possui a força de erguer-se novamente apoiando-se
têntico solo sagrado da flânerie.8 em uma tábua da salvação, e a peça recém-adqui-
rida emerge como uma ilha no mar de névoas que
Benjamin aponta para o fato de que toda a expe- envolve seus sentidos. — Colecionar é uma forma
riência sensível dos romances de Proust, a saber, de de recordação prática e de todas as manifestações
conduzir suas memórias ao relembrar o modo como profanas da “proximidade”, a mais resumida.9

76
Revista brasileira de estudos proustianos - 2021

o que comporta uma multiplicação


Benjamin é enfático em afirmar infinita das dimensões do espaço e
que o objeto colecionado, uma vez do tempo. O mundo dilata-se a tal
agregado a um novo sistema de sig- ponto que se torna inapreensível,
e para Proust o conhecimento
nificados (nem que sejam somente
passa pelo sofrimento dessa
para o colecionador), agora adquire a
inapreensibilidade.10
propriedade de ser um objeto de to-
que para a recordação de uma série
O comentário de Calvino nos é
de circunstâncias, condições ou até
caro na medida em que compreende
mesmo movimentos históricos. Em
que essa relação entre espaço tempo,
outras palavras, o objeto colecionado,
que aqui podemos assumir como es-
ou ainda este objeto material que foi
tes objetos que refletem a condição do
deslocado de seu sentido original, ga-
tempo, constantemente podem ser re-
nha a capacidade de ser um objeto de
vistos e constantemente usados como
memória que desperta a lembrança e
objetos de rememoração ao ponto do
que pode suscitar novos sentidos para
inesgotável, de forma que o romance
aquele que o detém. Nesse sentido, é
de Proust é incapaz de ser concluído
como se Proust estivesse inserido na
já que sempre é possível haver “algo a
mesma perspectiva que afirma Benja-
mais” para ser relembrado e investiga-
min quando relata sobre esses objetos
do. De forma mais radical, há sempre
colecionados: a memória, uma vez que
algo que se perdeu efetivamente no 1. Marcel Proust, No caminho de
recorda sobre esses inúmeros objetos
passado e que o esforço em trazê-lo à Swann, Trad. Mario Quintana. São
(variadas vezes) e sobre seus estranhos Paulo: Globo, 2012, p. 74.
memória pode ocasionar mais relem-
sentidos que despertam para a memó- 2. Id., p. 98.
brança, mais memória ou ainda um
ria involuntária, sejam justamente ob-
aumento nessa coleção dos objetos do 3. Ibid., pp. 70-1.
jetos que ganharam o destino de servi-
tempo. 4. Gilles Deleuze, Proust e os signos,
rem para a rememoração e, assim, de
Sendo assim, é possível vislumbrar 2. ed. trad. Antonio Piquet e Rober-
ser parte constituinte do tempo. to Machado. Rio de Janeiro: Forense
que há, por parte de Proust, o intento
Dessa forma, é impossível não recor- Universitária, 2003. p. 04.
de rememorar como quem colecio-
dar o preciso comentário de Ítalo Calvi- 5. Id., p. 10).
na seus objetos do tempo e, com eles,
no (1990) a respeito da obra de Proust 6. Walter Benjamin, “A Imagem de
busca constantemente extrair esse sen-
enquanto uma obra dada a ser uma en- Proust”. In: Obras Escolhidas I – Ma-
tido — que talvez possamos chamá-lo gia e Técnica, Arte e Política: Ensaios
ciclopédia incapaz de ser concluída:
como mágico — a saber, o poder re- sobre literatura e história da cultura.
Trad. Sérgio Paulo Rouanet. São
Nem mesmo Proust consegue ver memorar o tempo que efetivamente
Paulo: Ed. Brasiliense, 2014, p. 39.
o fim de seu romance enciclopédia, se passou. Todavia, é importante no-
7. Christian Werner, “Introdução”,
mas não decerto por falta de tar, portanto, que a rememoração em In: Homero, Odisseia. Trad. Chris-
planejamento, dado que o projeto Proust é também constituída de algo tian Werner. Cosac Naify. São Pau-
da Recherche nasce como um todo, que se perde e, desse ponto de vista, lo: 2014, p. 60.
princípio, fim e linhas gerais, mas não consegue ser mais retomada em 8. Walter Benjamin, Passagens. Org.
porque a obra vai se adensando sua totalidade. Estes objetos que se Willi Bolle. Trad. Irene Aron, Cleo-
e dilatando em seu interior por nice Paes Barreto Mourão, Patrícia
manipulam para que ocorra essa re- de Freitas Camargo. Belo Horizon-
força de seu próprio sistema vital. memoração são inevitavelmente um te: UFMG, 2007, p. 465.
A rede que concatena todas as
fragmento de um tempo completa- 9. Id., p. 239.
coisas é também o tema de Proust:
mas em Proust essa rede é feita de
mente destruído, incapaz de ser reto- 10. Italo Calvino. Seis propostas para
pontos espaço-temporais ocupados mado por completo e que agora cabe a o próximo milênio. Trad. Ivo Barro-
sucessivamente por todos os seres, Marcel agarrá-lo de forma que não se so. Companhia das Letras. São Pau-
lo: 1990, p. 86)
possa perdê-lo:

77
Intermitências 1

sidade da perda e, principalmente, da


Faz muitos anos isso. A parede da incapacidade de retomada do tempo
escada, onde vi subir o reflexo de de forma completa e efetiva por parte
sua vela, já não existe há muito. Em daquele que rememora. Logo, a con-
mim, também, foram destruídas
dição de aprendizado por parte de
muitas coisas que julgava que iriam
durar para sempre, e novas coisas
Marcel (aqui aludindo ao comentário
se edificaram, dando nascimento a de Deleuze) é justamente daquele que
penas e alegrias novas, que eu não realiza a egiptologia12 desses signos,
poderia prever então, da mesma ou ainda que busca decifrar algo que,
forma que as antigas se me torna- possivelmente, já esteja perdido e in-
ram difíceis de compreender. Faz capaz de ser retomado completamen-
também muito tempo que meu pai te. Sendo assim, somente a relação
já deixou de poder dizer a mamãe: com os objetos, seja em seu caráter
“vai com o pequeno”. Jamais renas- mágico ou ainda de memória involun-
cerá para mim a possibilidade de tária por ser relembrado de algo sem
tais horas. Mas desde algum tem-
qualquer prerrogativa, é que pode pro-
po que recomeço a perceber muito
bem , se presto ouvidos, os soluços
porcionar uma experiência do tempo:
que tive então a coragem de conter tempo redescoberto como aquele que
com mamãe. Na realidade jamais é perdido, ou ainda a presença de uma
cessaram; e somente porque a vida ausência.
vai agora mais e mais emudecendo Catherine Malabou em seu texto
em redor de mim é que os escuto Ontologia do Acidente (2014) corro-
de novo, como os sinos de conven- bora esta leitura ao abordar a concep-
to, tão bem velados durante o dia ção de que o processo temporal, em
pelos ruídos da cidade, que parece Proust, é degenerativo, ou, no mínimo
que pararam, mas que se põe a tan- repleto de uma negatividade que faz
ger no silêncio da noite.11 com que Marcel perceba o processo de
envelhecimento de todos ao seu redor,
Aqui se evidencia ainda mais o in- incluindo a si próprio:
tuito de Benjamin ao colocar Proust
como um flâneur: a necessidade de va- A passagem do Temps retrouvé em
gar pelas memórias a fim de que não que o narrador idoso revê seus
as perca por completo. De forma mais antigos conhecidos após anos de
rigorosa, Proust quer que a passagem ausência, quando da “matinée”
do tempo não as destrua, faz com que oferecida na casa dos Guermantes,
tudo que está à disposição para a re- é uma extraordinária encenação
das duas concepções de velhice
memoração seja utilizado como um
evocadas acima, o devir-velho e o
objeto que se desloca de seu sentido
instantâneo da velhice. Proust as
para se tornar digno de coleção, de ser faz de certo modo coincidir. Mais
guardado em um canto especial, a sa- exatamente, preparando esse mo-
ber, a própria Recherche ou ainda nessa mento durante toda a Recherche
11. Marcel Proust, op. cit., p. 62. enciclopédia do tempo. du temps perdu, ele as conduz a
12. Gilles Deleuze, op. cit., p. 04. Em certo sentido, só é possível que esbarrarem uma com a outra, a se
a Recherche possa ser efetivada como entrechocarem, no segredo de uma
13. Catherine Malabou, Ontologia
do acidente. Trad. Fernando Schei- um romance que completa a trajetó- vertiginosa e angustiante unidade.
be, Florianópolis: Cultura e Barbá- ria de versar sobre o tempo na medida Os convidados se tornaram irre-
rie, 2014, pp. 43-4. em que ela também assume a neces- conhecíveis. “No primeiro instan-
14. Id. p. 44. te,” diz o narrador, “não entendi

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Revista brasileira de estudos proustianos - 2021

por que vacilava em reconhecer o dono da casa, tido nostálgico ou até mesmo de um retorno para um
os convidados, por que me pareciam todos trazer passado, efetivamente, inexistente ou perdido.
à caráter as cabeças, em regra empoadas, que os
modificava inteiramente”. Esse “que os modifica-
va inteiramente” é muito importante. Revela uma
Bibliografia
transformação bífida e conflituosa, de continuida-
de e ruptura ao mesmo tempo.13 BENJAMIN, W. “A Imagem de Proust”. In: Obras Es-
colhidas I — Magia e Técnica, Arte e Política —
Malabou propõe que o envelhecimento no último Ensaios sobre literatura e história da cultura. Trad.
romance da Recherche é a demonstração de um tempo Sérgio Paulo Rouanet. São Paulo: Brasiliense, 2014.
como destrutivo, a saber, como aquele que, ao desfa-
BENJAMIN, W. Passagens. Org. Willi Bolle. Trad.
zer ou deteriorar, degenera e anula as identidades. O
Irene Aron, Cleonice Paes Barreto Mourão, Patrí-
envelhecimento das personagens ao longo do salão de
cia de Freitas Camargo. Belo Horizonte: UFMG,
Guermantes claramente como esse tempo (ou nostos)
2007.
efetivamente passa e garante a perda. Entretanto, da
mesma forma que esse tempo passa foi que Marcel efe- CALVINO, I. Seis propostas para o próximo milênio.
tivamente compreendeu a redescoberta do Tempo. A Trad. Ivo Barroso. São Paulo: Companhia das Le-
destruição que Malabou aponta, por sua vez, também tras, 1990.
tem a capacidade de demonstrar uma continuidade,
pois a velhice faz com que ainda permaneça naqueles DELEUZE, G. Proust e os signos. 2. ed. Trad. Antonio
que envelheceram algo do passado: Piquet e Roberto Machado. Rio de Janeiro: Foren-
se Universitária, 2003.
A composição do novo indivíduo parece por um
lado ter ocorrido sem choques, ao termo de um MALABOU, C. Ontologia do acidente. Trad. Fer-
movimento gradual, de uma encenação incessan- nando Scheibe. Florianópolis: Cultura e Barbárie,
te e sem rasgos, como se o tempo superpusesse o 2014.
indivíduo a si mesmo: “Esse artista trabalha, aliás,
muito lentamente. Assim a réplica de Odette, cujo PROUST, M. No caminho de Swann. Trad. Mario
esboço, no dia em que vi Bergotte pela primeira Quintana. São Paulo: Globo, 2012a.
vez, vislumbrara no rosto de Gilberte, o Tempo, tal
um pintor que retivesse longamente a obra e aos PROUST, M. O Tempo redescoberto. Trad. Lúcia Mi-
poucos a completasse, levara-o afinal à perfeita guel Pereira. São Paulo: Globo, 2012b.
semelhança”. Longo trabalho, deformação consti-
tuinte do devir-velho, que procede à substituição WERNER, C. “Introdução”. In: Odisseia. Trad. Chris-
de cada célula por uma outra e prepara lentamente,
tian Werner. São Paulo: Cosac Naify, 2014.
em cada um de nós, o aniquilamento final.14

Finalmente, observando o percurso acima realiza-


do em conjunto com o comentário de Malabou, po-
demos notar que, no contexto dos objetos ou ainda
das relações que Proust estabelece com as memórias
ao longo da Recherche, torna-se uma condição ine-
vitável que o tempo seja uma relação de perda ou
degeneração. Nesse sentido, os objetos, uma vez que
são rememorados, passam por um deslocamento tal
que, para preservarem parte do sentido originário,
ou ainda sua capacidade de rememoração, devem ser Tarik Vivan Alexandre é Doutorando em Es-
tudos Literários pela Universidade Federal do
colecionados, preservados pela memória em um sen- Paraná (UFPR).
Contato: tarikalexandre@gmail.com

79
Intermitências 1

O que as
dedicatórias
de Proust
dizem sobre
Em busca do
tempo perdido
Mário Barreto

“Durante muito tempo, deitava-me cedo.” Para a maioria dos leitores, a leitura de Em busca do tempo
perdido se inicia com essa frase, que se tornou uma das mais conhecidas da literatura mundial. Para alguns
curiosos, entretanto, há um detalhe que precede a primeira frase e que revela muito do trabalho que Marcel
Proust teve para publicar sua obra: a dedicatória de No caminho de Swann, primeiro livro da saga, endereçada
a Gaston Calmette.
Calmette foi o diretor do Le Figaro entre 1902 e 1914, jornal de renome com o qual Proust colaborou com
pastiches e artigos sobre Rusk. Em 1909 e novamente em 1912, Calmette tentou convencer o editor e o time
de críticos literários do periódico a publicar o romance de Proust em fascículos do jornal, o que acabou sendo
recusado nas duas ocasiões sobretudo por Marcel ter fama de ser um mero bon-vivant e habitué dos círculos
esnobes da nobreza parisiense.
Marcel não teve mais escolhas senão publicar No caminho de Swann com dinheiro do próprio bolso, todavia o
fracasso da empreitada junto ao Le Figaro não arrefeceu a gratidão de Proust pelo esforço de Calmette, que aca-
bou tendo um fim de vida inusitado: foi assassinado dentro do escritório do jornal por Henriette Caillaux, esposa
do então Ministro das Finanças da França, Joseph Caillaux, após ter sido publicado no jornal uma matéria que
insinuava que Henriette e Joseph foram amantes durante o primeiro casamento do ministro.
Se a primeira dedicatória revela um pouco da trajetória de publicação do primeiro volume de Em busca do
tempo perdido, a segunda reflete a sua consagração. O terceiro volume do romance, No caminho de Guerman-
tes, é dedicado ao escritor Léon Daudet, que interveio de maneira decisiva na conquista do Prêmio Goncourt
pelo segundo romance da obra, À sombra das moças em flor.
O prêmio tornou o nome de Marcel Proust conhecido nacionalmente, garantindo o caminho para a publi-
cação do demais volumes do romance em vida e póstumos.
Assim como Gaston Calmette, Leon Daudet teve um fim de vida sui generis: monarquista convicto, Daudet
passou a vida alimentando rivalidades políticas e morreu em 1943 em Vichy, cidade-sede do governo francês
que decidiu colaborar com a política de Hitler e reconheceu a conquista de dois terços do território da França
pelas tropas alemãs.
Mário Barreto é engenheiro de formação, mas seu tempo livre é todo preenchido pelos livros. Mesmo antes de gostar
de ler, ja ouvia falar de Marcel Proust e seu Em busca do tempo perdido por sua mãe e seu tio, que dividiam as noites de
domingo falando de literatura. Hoje, Mário escreve sobre os livros que lê no perfil @prosaeproust no Instagram.

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Revista brasileira de estudos proustianos - 2021

Tradução

Um romance
indecente?
Três cartas de Proust sobre
No caminho de Swann
Traduzido por
Alexandre Bebiano

Imagem: Marcel Proust (sentado)


com Robert de Flers (à direita)e
Lucien Daudet (à esquerda),
aprox. 1896. Foto de Otto Wegener.
81
Intermitências 1

As cartas traduzidas aqui remetem à publicação de No caminho de Swann, em


novembro de 1913, pela editora Grasset, às expensas do próprio escritor. Ne-
las vemos Proust tentando justificar aos primeiros leitores de seus originais a
abordagem de certos temas que poderiam fazer com que o seu vasto romance
fosse visto como um tipo de obra indecente ou mesmo imoral, como ele próprio
reconhece na carta a Eugène Fasquelle. Esses temas são notadamente o sadismo
e a homossexualidade. Como se sabe, a publicação de Em busca do tempo per-
dido foi marcada por uma série de dificuldades, originais rejeitados por várias
editoras, a eclosão da Primeira Grande Guerra, sem falar da doença e da morte
do autor. Depois do lançamento de 1913, a publicação é interrompida durante a
guerra, para ser retomada somente em 1919, agora pela editora Gallimard, com
À sombra das moças em flor e com uma reedição revista de No caminho de Swa-
nn. Nesse intervalo, Proust modificou radicalmente o projeto original. Temos
agora uma série de volumes, no lugar dos únicos dois, O tempo perdido e O tem-
po redescoberto, concebidos inicialmente. A correspondência permite assim que
acompanhemos a história do romance, sua gênese, os percalços e, até mesmo, as
correções de rumo (como diz Proust na terceira carta, “mudarei evidentemente
o título pois queria ser lido”). Cabe notar, contudo, que as cartas não devem ser
lidas como se fossem um tipo de documento literal. É que o gênero epistolar
possui também os seus protocolos. Assim é que a carta de Proust, não tendo
aparentemente nenhuma explícita norma de organização, que não seja o desejo
de conversar com o destinatário (e de muitas vezes apenas agradar), aborda, com
1. Quanto aos temas próprios da
igual desembaraço, como veremos, tanto um tema polêmico ou filosófico quanto
escrita epistolar, declara Brigitte o mais miúdo dos acontecimentos (desculpas pela longa carta de oito páginas,
Diaz: “Ignorando, com vaidade, as a correção que o destinatário repete em suas cartas, a boa disposição compro-
exigências retóricas da disposição e
da argumentação, a carta se debru-
metida pelo mau estado de saúde), abarcando os mais diversos níveis de estilo
ça sobre todos os assuntos. Desde a no seu interior (seja o prosaico, o reflexivo, o literário ou o confessional).1 Nesse
reflexão moral até a crítica literária, sentido, as três cartas que traduzimos não fornecem somente informações; elas
passando pela introspecção bio-
gráfica, não existem campos que a
devem ser consideradas também como um exemplo da escrita proustiana, e se
sonda epistolar não se dê o trabalho assemelham a um tipo de exercício literário, em que o escritor elabora digressões
de explorar”. (Brigitte Diaz, L’ épis- de todo tipo, sem desrespeitar o registro íntimo de conversar — e agradar — a
tolaire ou la pensée nomade, Paris,
Puf, 2002, p. 40.
seu destinatário.2
2. A presente tradução se apoia na
edição da correspondência estabe- 1. A Eugène Fasquelle3
lecida por Philippe Kolb (Marcel
Proust, Correspondance, Paris: Plon, Nesta carta Proust agradece ao destinatário, fundador e proprietário da edi-
1970-1993. 21 vols). Para as notas e
os comentários, uma importante tora Fasquelle, sua decisão de publicar o primeiro volume de Em busca do tempo
antologia, um volume com mais de perdido. Mas, com o intuito de evitar qualquer futuro mal-entendido, Proust de-
seiscentas cartas, organizada por cide explicar a abordagem que faz de certos temas que poderiam ser considerados
Françoise Leriche, também nos aju-
dou muito (Marcel Proust, Lettres, “indecentes” pelo público, como o homossexualidade do senhor de Charlus. Cabe
Paris: Plon, 2004). Para uma pers- lembrar que Fasquelle recusará, mais tarde, os manuscritos, apoiando-se num pa-
pectiva mais geral de nossa aborda- recer negativo sobre o livro assinado por “Jacques Madeleine”, um dos pareceristas
gem da correspondência, é possível
conferir o artigo: “Três cartas de de sua editora.
Marcel Proust: o autor responde a
seus críticos”, que pode ser consul- ***
tado em <http://escritos.rb.gov.br/
numero06/artigo02.php>.

82
Revista brasileira de estudos proustianos - 2021

[28 ou 29 de outubro de 1912]4

Caro Senhor,

O senhor Calmette5 me deu a mais agradável das novas ao me dizer que o senhor se dispõe a publicar mi-
nha obra. Isso me dá um tão grande prazer — de vê-la publicada por sua editora - que tenho quase medo que
isso não seja concretizado, como todas as coisas que desejamos muito, permita assim que minhas primeiras
palavras sejam para lhe exprimir minha gratidão.
Queria muito honestamente o avisar de antemão de que a obra em causa é uma dessas que no passado seria
chamada de indecente, e mesmo muito mais indecente do que se tem o hábito de publicar. Se quanto a isso sou
obrigado a fornecer algumas explicações, é que, enviando-lhe apenas o manuscrito de meu primeiro volume,
o qual é, tirando algumas passagens, muito casto, não queria o enganar sobre o resto nem muito menos que,
uma vez publicado o primeiro, o senhor não queira mais publicar os dois últimos (ou o último, pois talvez
toda a segunda parte possa ser publicada em um grande volume).
Essa segunda parte está inteiramente escrita, mas, como está em cadernos e
3. Eugène Fasquelle (1863-1952)
não datilografada, não posso enviá-la agora, o manuscrito anexo a esta carta for- é proprietário e editor da editora
mando já o conteúdo de um volume. Ora, eis aqui o que será bem escandaloso no Fasquelle. Fundada em 1896, essa
segundo volume. Não tenho necessidade de lhe dizer que isso ocorre malgrado casa de edição é a sucessora de uma
outra mais antiga, a Charpentier &
minha vontade e que o caráter geral de minha obra responderá à alta moralida- Fasquelle (1890-1896), por sua vez
de de minhas intenções. Pedindo segredo sobre esse tema que ainda ninguém sucessora de uma outra, a Char-
conhece e que poderão me dissuadir de abordar quase isso “escape”, dou-lhe os pentier (1838-1890). Graças a essa
herança editorial, a casa Fasquelle
seguintes detalhes, para que desde agora saiba o que poderia fazer mudar sua é responsável, à época de Proust,
benevolente decisão. pela publicação de muitos autores
Uma das minhas personagens (da mesma maneira como elas se mostram tan- importantes da literatura francesa
do século XIX, como Émile Zola, os
to na obra quanto na vida, isto é, muito mal conhecidas de início e, muito tempo irmãos Goncourt, Gustave Flaubert
depois, com frequência, revelando-se o contrário do que acreditamos) aparece e Guy de Maupassant.
em uma pequena passagem da primeira parte como o suposto amante de uma 4. Proust jamais data suas cartas, o
das minhas heroínas. Em torno do fim da primeira parte (ou no começo da se- que deixa um problema para seus
gunda, se o manuscrito que enviei exceder um pouco os limites de um volume), estudiosos. A datação desta carta se
apoia nesta afirmação de Proust —
essa personagem se apresenta, ostenta virilidade, desprezo para com os jovens “o senhor Calmette me deu a mais
efeminados, etc.6 Ora, na segunda parte, a personagem, um velho senhor de uma agradável das novas”. De acordo com
grande família, vai se revelar um pederasta, que será retratado de uma maneira Philip Kolb, a “nova” de Gaston Cal-
mette teria sido transmitida a Proust
cômica, mas que, sem nenhum palavra grosseira, veremos “seduzindo” um por- pela senhora Strauss no dia 28 de ou-
teiro e sustentando um pianista. Acredito que essa personagem – o pederasta tubro de 1912. Portanto, a carta teria
viril, ressentido com os jovens efeminados que o enganam sobre a qualidade da sido escrita na noite do dia 28 ou na
manhã do dia seguinte.
mercadoria, por serem na realidade mulheres, esse “misantropo” de tanto haver
5. Gaston Calmette (1896-1914) é
sofrido por homens, como são misóginos certos homens que tanto sofreram por jornalista e diretor do jornal Le Fi-
mulheres, acredito que essa personagem é nova (sobretudo pela maneira que será garo. Até sua morte, mantém uma
abordada e que não posso detalhar aqui) — por isso, peço que não comente nada relação cordial com Proust, enco-
rajando e mesmo elogiando os arti-
com ninguém. Além disso, os temas tão diferentes que vão lhe fazer contraste, gos que o escritor envia de maneira
o quadro poético onde sua ridícula velhice se insere e se opõe, tudo isso retira esparsa para o jornal que dirige. De
dessa parte o cunho sempre desolador de uma monografia individual. Contudo, fato, muitos textos importantes de
Proust são ali publicados, como os
e embora nenhum detalhe seja chocante (ou não seja salvo pelo cômico, como pastiches sobre o Affaire Lemoine
quando o porteiro chama esse duque de cabelos brancos de “meninão!”), não e o ensaio “Sentimentos filiais de
quero esconder que não se trata de um tema corrente e achei mais honesto lhe um parricida”. Como uma forma
de reconhecimento, Proust dedica o
dizer, e mais prudente também, pois compreenda minha situação, tendo uma primeiro volume de seu romance a
obra que é certamente a última que escreverei e onde me esforço para inserir Gaston Calmette.

83
Intermitências 1

toda a minha filosofia, para fazer soar toda a minha “música”, caso o senhor, após o primeiro volume,
frature minha obra como um vaso que se quebra, tomando a decisão de interromper a publicação…
Como acredito que não me permitirá colocar “I” sobre o primeiro volume, dou ao primeiro volume o título
de O tempo perdido. Se conseguir encerrar todo o resto em um único volume, vou chamá-lo O tempo redes-
coberto. E acima desses títulos particulares inscreverei o título geral que faz alusão no mundo moral a uma
doença do corpo: As intermitências do coração. Seria bom que o primeiro volume fosse o mais longo possível,
nem que seja para que o final caiba em um único volume (não estou certo de que seja possível). Talvez (ainda
mais porque haverá passagens que me parecerão inúteis nas provas) haja uma forma de dispor em um único
volume o manuscrito que envio (isto é, as três partes do Tempo perdido, metade da obra total). Se isso for
impossível, seria necessário que o volume fosse até a página 633 (sublinhei a passagem com um lápis azul)
da datilografia (essas páginas são naturalmente menos longas do que as páginas impressas, de resto, algumas
foram saltadas). Digo isso caso não seja possível imprimir o manuscrito que envio (O tempo perdido) em um
único volume. Nesse caso, O tempo perdido teria apenas um volume e o que não pudesse aí entrar apareceria
no Tempo redescoberto. Mas, respeitando outra hipótese, na qual o senhor me concederia um volume grande o
suficiente para que caiba nesse volume impresso mais do que o manuscrito que enviei, isso seria muito vanta-
joso. Pois esse primeiro volume de preparação, um tipo de abertura poética, é infinitamente menos “público”
(a não ser a parte intitulada “Um amor de Swann” para a qual chamo sua atenção) do que será o segundo.
Assim, se pudermos ir mais longe e abastecê-lo com um pouco mais de ação, o primeiro volume (que
continuaria se chamando O tempo perdido, apenas O tempo redescoberto seria menos longo), isso seria muito
interessante, e haveria maior chance da segunda parte caber em um único volume. Se houvesse um meio de
incluir uma ou duas linhas por página a mais (por exemplo 39 linhas), seria maravilhoso.
Não quero exceder essas oito páginas, expresso mais uma vez assim meu pro-
fundo reconhecimento.
6. Alusão ao senhor de Charlus, um
dos personagens mais importantes
de Em busca do tempo perdido: é ele Marcel Proust
que, no romance de Proust, flerta,
não com um porteiro, mas com um
alfaiate, e sustenta, não um pianista,
P.S. – Confio meu manuscrito ao senhor, não possuindo eu mesmo originais,
mas o violinista Morel. ao menos idênticos. Estou confuso por lhe enviar oito páginas logo na primeira
7. Louis de Robert (1871-1937) foi carta. Elas me dispensarão de continuar a aborrecê-lo, mas peço que as leia até o
romancista e homem de letras. Suas final e que as tenha por confidenciais.
memórias foram recolhidas no livro
de sua autoria: De Lotti à Proust:
souvenirs et confidences [De Lotti a
Proust: recordações e confidências]
(Paris: Flammarion, 1928). Fre-
quentador dos salões literários de
Alphonse Daudet e da senhora Ar- 2. A Louis de Robert7
man de Cavaillet, desde 1897, esta-
belece relações amicais com Proust, Nesta carta o escritor responde a algumas objeções do amigo que o ajudava en-
sendo ambos então dreyfusistas.
Quando o autor de Swann decide tão a revisar as provas de No caminho de Swann (certas passagens do romance te-
publicar seu romance, pede conse- riam a “simpatia dos sádicos”, segundo Robert). Proust se vê assim constrangido a
lhos ao amigo, um escritor já reco- lhe explicar os propósitos mais gerais de Em busca do tempo perdido. Romancista já
nhecido. Depois da guerra, a corres-
pondência se faz mais rara. Em 16 reconhecido — ganhara o prêmio “Femina” em 1911 por Roman du malade [Ro-
de agosto de 1919, Louis de Robert mance do doente] —, Louis de Robert (1871-1937) manteve durante toda a vida
escreve o artigo “Flaubert écrivait relações cordiais com Proust. Em 1925, reune as cartas que o amigo lhe enviou no
mal” [Flaubert escrevia mal], pu-
blicado no número 16 da revista La livro Comment début a Marcel Proust [Como Marcel Proust começou].
Rose rouge. O artigo gera uma po-
lêmica literária em que Proust toma ***
parte, redigindo um ensaio em que
toma a defesa do estilo de Flaubert.

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Revista brasileira de estudos proustianos - 2021

[Pouco dias antes de 2 de julho de 1913]8

Meu caro Louis,

(Vejo que corrige toda vez “amigo” por “Marcel”. Se isso vem de um hábito
bem natural que possui de chamar seus amigos por seus nomes de família e não
por seus prenomes, ou de reservar o prenome àqueles com os quais mantém rela-
ções menos distantes e exclusivamente epistolares, muito francamente, suprima
Marcel, compreenderei isso perfeitamente e ficarei muito orgulhoso e muito feliz
com amigo.)
É muito difícil para mim responder às suas objeções, porque não respondo
de viva voz. Conversando, a própria inflexão da voz evitaria qualquer suspeita
de que possa existir qualquer coisa de categórico e orgulhoso em minhas afir-
mações. Admiro-o demais para não acreditar que tem razão quando evoca esses
“amigos desconhecidos” descritos por Sully Prudhomme em versos que a moda
abandonou, mas que permanecem, a meu ver, excelentes: “A verdade da amizade
é o sentir junto”,9 mas, sem acreditar que minha concepção de arte seja melhor 8. A hipótese se apóia na alusão
(posso lhe jurar), sou contrário à doçura dessa poesia; obedeço a uma verdade que Proust faz à possibilidade de
Bernard Grasset, editor então do
geral que me proíbe de pensar tanto nos simpáticos quanto nos antipáticos; meu primeiro volume do romance, vir
livro publicado, a simpatia dos sádicos10 me causará mal-estar como homem, ela a aceitar a sua publicação em dois
não poderia modificar, seja como for, as condições em que experimento a ver- tomos de 350 páginas cada um. Em
carta de 2 de julho de 1913, Gras-
dade e que não escolhi por capricho. De resto, sei que nisso estamos de acordo; set afastará totalmente essa hipóte-
para precisar mais, seria necessário que gastássemos mais suas forças de leitor e se, dizendo a Proust que isso seria
as minhas de correspondente, e devemos poupá-las. impossível (Correspondence, t. XIII,
carta 227, p. 395).
É assim ainda que, nos elogios adoráveis e bem-excessivos que o senhor me
faz, há um que só posso aceitar sob certo sentido (como elogio, ao menos). O 9. Alusão ao poema “Aux amis in-
connus” [Aos amigos desconhe-
senhor fala de minha arte minuciosa do detalhe, do imperceptível, etc. O que cidos], que abre o livro Les vaines
faço, eu o ignoro, mas sei o que quero fazer; ora, omito (salvo nas partes que tendresses [As inúteis carícias] (Pa-
não aprecio) todo detalhe, todo fato, atenho-me somente ao que me parece (à ris: A. Lemerre, 1875, pp. 03-5),
de Sully Prudhomme (1839-1907).
maneira dos pombos-correios que possuem um alvo; posso lhe explicar melhor Proust cita um dos versos da última
isso num dia em que estiver sofrendo menos) revelar alguma lei geral. Ora, como estrofe do poema: “Chers passants,
isso não nos é jamais revelado pela inteligência, como devemos fisgá-lo de certa ne prenez de moi-même qu’un peu,
/ Le peu qui vous a plu parce qu’il
maneira nas profundezas de nosso inconsciente, isso é imperceptível com efei- vous ressemble / Mais de nous ren-
to, porque está distante, porque é difícil de perceber, mas não é absolutamente contrer ne formons point le vœu :
um detalhe minucioso. Um pico no meio das nuvens, ainda que muito pequeno, / Le vrai de l’amitié, c’est de sentir
ensemble ; / Le reste en est fragile,
pode ser mais alto do que uma fábrica que está ao nosso lado. Por exemplo, uma épargnons-nous l’adieu”. Uma tra-
coisa imperceptível, se o senhor quiser, é esse sabor de chá que não consigo reco- dução livre desses versos seria mais
nhecer de início e no qual vou reencontrar os jardins de Combray. Mas isso não ou menos assim: “Caros passantes,
peguem de mim apenas um pouco,
é um detalhe minuciosamente observado, mas toda uma teoria da memória e do / O pouco que lhes agradou por-
conhecimento (isso é minha ambição, ao menos), não diretamente declarada em que se parece com a vossa pessoa /
termos lógicos (aliás, tudo isso aparecerá com evidência no terceiro volume). O Mas não alimentemos o desejo de
nos ver: / A verdade da amizade é o
que há de triste nas cartas, sobretudo quando uma mão esgotada pelo cansaço as sentir junto; / O resto é bem frágil,
escreve, é que elas parecem dizer o contrário do que pensamos. poupemo-nos do adeus”.
Se não tem bastante presente em seu espírito a ideia de meu terno e confuso 10. Proust parece fazer referência
reconhecimento por sua delicada boa-vontade, vai acreditar que estou achando ao ritual de sadismo e profanação
encenado pela senhorita Vinteuil e
que me despreza, quando acho que me superestima! Mas não, o senhor me com-
por sua amiga, que vamos encon-
preende; estamos querendo dizer a mesma coisa e não devemos temer qualquer trar em No caminho de Swann.

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Intermitências 1

mal-entendido. Se criasse um título para mim, como ficaria feliz! Mas queria um título todo simples, todo
cinza. O título geral, como o senhor sabe, é Em busca do tempo perdido. Teria alguma objeção a Charles Swann
para o primeiro volume dividido em dois (se Grasset11 aceitar a ideia de um estojo com dois volumes)? Mas
se faço um único volume de 500 páginas, não sou favorável a esse título, pois aí não estará o último retrato de
Swann, e meu livro não cumpriria então as promessas de seu título. O senhor apreciaria: Antes que o dia tenha
nascido? (eu não). Tive de renunciar a Intermitências do coração (título original), a Pombas apunhaladas, a
Passado intermitente, a Adoração perpétua, a Sétimo céu, a À sombra das moças em flor, títulos que serão de
capítulos do terceiro volume.
Já lhe disse — não? — que No caminho de Swann [Du côté de chez Swann] era por causa dos dois caminhos
que existiam em Combray. O senhor sabe, no campo falamos assim, “O senhor está indo para os lados do se-
nhor Rostand?”12. Mas não quero que esse livro seja publicado sob um título que vá desagradar ao único
amigo em que, no momento em que escrevia, não pude me proibir talvez de pensar, malgrado meu
esforço para sair de meu “eu fenomenal”. Por isso, escolherei um outro. Escolheria Charles Swann, se
pudesse indicar que são apenas os primeiros retratos de Charles Swann.

Com carinho,
11. Editor, Bernard Grasset (1881-
1955) é proprietário da editora Marcel Proust
que leva seu nome. Às expensas do
autor (Proust teve os manuscritos
de seu romance negado por várias Suas correções me foram preciosas. Não poderei lhe enviar as 3a provas, pois
editoras), Grasset publicará No ca- não acredito que as receberei. Quanto aos exemplares do livro, quantos o senhor
minho de Swann, em novembro de
1913. Mas, após o término da guer- queira, e com um infinito reconhecimento.
ra, sua casa de edição enfrentando
muitas dificuldades, Proust decide
romper o acordo de publicação dos
demais volumes. Em 1916, a editora 3. A Louis de Robert
de Gaston Gallimard negocia com
Bernard Grasset a transferência da Esta carta, escrita alguns dias após a anterior, dá continuidade à conversa que
obra de Proust, que será publicada
na nova editora a partir de 1919. Proust trava com o destinatário. Aqui Proust volta a discutir com o amigo certas
passagens do manuscrito sobre o sadismo e a explicar de que maneira o tema,
12. O título em francês Du côté de
chez Swann poderia ser traduzido assim como a homossexualidade, serão abordados em seu romance.
por: Para os lados de Swann ou Para
os lados da propriedade de Swann. A ***
mais recente tradução portuguesa,
realizada por Pedro Tamen, deci-
de traduzir o título por Do lado de [Entre os dias 2 e 10 de julho de 1913]13
Swann (Lisboa, Relógio da água,
2003).
Caro amigo,
13. A hipótese se apoia na pergunta
que Proust põe a seu amigo: “devo
publicar um volume de 520 ou um Sem me cansar muito, queria lhe dizer que minha concepção de arte me impe-
de 680 páginas?”. A pergunta nasce de de pensar nestes ou naqueles corações (porque neste momento torna-se indi-
da recusa por parte de Grasset da
publicação de Swann em dois to-
vidual — é impossível explicar assim; voltarei a isso depois), em troca, acredito
mos de 350 páginas, tal como origi- que não tenho absolutamente de temer, como o senhor parece sugerir, a simpatia
nalmente Proust deseja. A recusa de dos sádicos. O caso é mais surpreendente para o meu terceiro volume (pederasta,
Grasset foi expressa em carta data-
da de 2 de julho de 1913 (Corresp.,
em parte), e esse exemplo aumentado ilustrará melhor o que quero dizer.
t. XIII, carta 227, p. 395). Em 12 de Se tivesse retratado adolescentes vigorosos, se tivesse retratado amizades ter-
julho, Grasset admite que Proust nas, graves, sem jamais sugerir que isso vai mais longe, sem falar da menor pe-
“adotou a solução de três livros de
500 páginas” (Corresp. t. XIII, carta
derastia do mundo, poderia contar então com a simpatia de todos os pederastas,
228, p. 396). porque exporia justamente o que gostam. Muito precisamente porque disseco seu

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Revista brasileira de estudos proustianos - 2021

vício (emprego a palavra vício sem nenhum intenção de condenação), exponho sua doença, digo exatamente
o que mais lhes provoca horror, a saber, que esse sonho de beleza masculina é o resultado de um desequilíbrio
nervoso14. A melhor prova disso é que um pederasta adora os homens, mas detesta os pederastas. Além do
que, como os meus são homens mais velhos, alguma coisa de ridículo se mistura a seu caso (ao menos para
o leitor, pois no fundo é bem tocante), o que vai lhes exasperar ainda mais. Pois então, é um pouco a mesma
coisa para meus sádicos. A cena que retratei é tudo menos voluptuosa. O comentário que me dá a aparência
de um advogado segundo o senhor (e talvez tenha razão, quero dizer, razão de achar que tive a aparência de
um, pois não o sou absolutamente), esse comentário é justamente o que afastará de mim os corações sensíveis,
mas também, e sobretudo, os sádicos. Dizer às pessoas que perseguem a crueldade, “Os senhores são seres
amorosos pervertidos”, é dizer o que mais pode lhes desagradar. A ideia dessa cena me foi foi sugerida por
diferentes coisas, mas sobretudo por isto: um homem muito respeitado e conhecido era amante de uma pros-
tituta, embora fosse casado e pai de família. Ora, para alcançar todo o seu prazer, era preciso que dissesse a
essa prostituta: “o pequeno monstro”, quando falava de seu próprio filho. Uma vez em casa, era muito bom pai.
Caro amigo, pensei intitular meu primeiro volume A primavera. Mas continuo não compreendendo por
que o nome desse caminho de Combray, que chamávamos “o caminho de Swann”, com sua realidade terres-
tre, sua verdade local, não possui tanta poesia quanto outros títulos abstratos ou 14. Proust emprega a palavra “pede-
floridos. Se leu minha primeira parte, viu que havia ao redor de Combray dois rastia” ou “inversão” para designar
caminhos, o caminho de Méséglise-La-Vineuse e o caminho de Guermantes e o que hoje preferimos chamar gay
ou homossexualidade. As questões
que chamávamos o primeiro de “o caminho de Swann”. E esses dois caminhos relativas à formação da sexualidade
adquirem uma significação para minha vida interior. Ora, como todo esse volu- constituem um dos temas mais im-
me se passa, aliás, no caminho de Swann, achava esse título modesto, real, cinza, portantes de seu romance. Filho de
um importante médico e sanitarista
terno, como um tipo de trabalho de onde pudesse nascer poesia. Se o senhor da sociedade francesa, Proust repe-
acredita que isso impedirá a leitura do livro tanto quanto publicá-lo com 700 te muitas vezes as teoria médicas de
páginas, mudarei evidentemente o título, pois queria ser lido. Mas sem isso… sua época, que viam a “pederastia”
e mesmo a expressão artística como
Por outro lado, Grasset não quer saber de dois livros vendidos juntos, é preciso um “desequilíbrio do sistema ner-
escolher então um volume de 520 páginas ou um de 680. Eu o farei com 520. Mas voso”. É o que vemos expresso nes-
somente se o senhor vir nisso uma grande vantagem, pois esse de 680 termina de ta passagem do romance: “O sr. de
Charlus não passava, em suma, de
maneira soberba (no que concerne a meus fracos meios) e esse de 520 termina um Guermantes. Mas tinha bastado
muito pobremente. Agora o que prefiro é ser lido. Agradeço-lhe mais uma vez que a natureza desequilibrasse nele
toda a sua bondade, toda a sua indulgência e, acima de tudo, a sua severidade. o sistema nervoso para que, em vez
de uma mulher, como teria feito o
duque seu irmão, preferisse ele um
Seu pastor de Virgílio ou um discípulo
de Platão, e logo qualidades desco-
nhecidas ao duque de Guermantes
Marcel. e muita vez ligadas a esse desequlí-
brio tinham feito do sr. de Charlus
O senhor apreciaria como título: Jardins em uma taça de chá, ou A idade dos um pianista delicioso, um pintor di-
letante que não deixava de ter bom-
nomes para o primeiro. Para o segundo: A idade das palavras. Para o terceiro: -gosto, um conversador eloquente”
A idade das coisas. Preferiria Charles Swann, mas indicando que não se trata de (Marcel Proust, Sodoma e Gomorra,
todo o Swann: Primeiros traços de Charles Swann. tradução de Mario Quintana, 15 ed.,
São Paulo, Globo, 2001, p. 338).

Alexandre Bebiano de Almeida é


professor-pesquisador de Literatura
Francesa do Departamento de Letras
Modernas e organizador do Coló-
quio Proust 2011, da FFLCH-USP.

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Intermitências 1

[Classicismo e Romantismo]*
Traduzido por
Luciana Persice Nogueira-Pretti

Nota da Tradutora

Apresentamos aqui, em prévia, um dos textos que compõem o volume Ensaios e Artigos, a ser editado em
breve pela Âyiné (com tradução nossa). Originalmente organizado como a terceira parte do Contre Sainte-
-Beuve de Pierre Clarac e Yves Sandre (Pléiade, Gallimard, 1971), Ensaios e Artigos é o segundo livro com
textos de Marcel Proust publicado por essa editora de Belo Horizonte e Veneza (em sequência a Contra Sainte-
-Beuve), dando uma continuidade preciosa à divulgação da obra do escritor no Brasil. Como anunciado no tí-
tulo, Ensaios e Artigos é de uma coletânea (a mais completa possível em 1971) de toda sorte de textos escritos,
publicados ou não pelo autor, abundantemente anotada pelos editores franceses. Nossa tradução tenta manter
a integralidade do conjunto entre texto e notas, inclusive por sua utilidade ao estudioso da obra proustiana
(as notas explicam dificuldades do texto, esclarecem implícitos, e fazem uma detalhada referenciação à obra
ficcional).
O título encontra-se entre colchetes porque foi estabelecido pelos editores originais. Como explicado na
primeira nota, o texto é dirigido ao escritor e crítico literário Émile Henriot, que pedira a Proust que respon-
desse a uma enquete do jornal La Renaissance politique, littéraire, artistique: “Toda arte verdadeira é clássica?”.
Proust concederia uma entrevista, mas acabou respondendo por carta (02 dez. 1920), que foi publicada um
mês depois (08 jan. 1921, pp. 02-3). Não há reprodução desse ano do dito jornal no site Gallica, mas sabe-se
que André Gide e Anna de Noailles também participaram dessa enquete, que foi motivada pela polêmica geral
que agitava o meio intelectual da época acerca do classicismo das letras francesas, e da controvérsia específica
entre Charles Maurras (mencionado por Proust) e Raymond de la Tailhède (escritores ligados à école romane).

*Primeira publicação: La Renaissance po-


litique, littéraire, artistique, 8 de jan. 1921.
Ao longo do outono de 1920, Émile Henriot
(1889-1961) pediu a Proust uma entrevista
acerca de uma enquete, que fazia para essa
revista, sobre o classicismo e o romantismo.
A saúde de Proust não lhe permitiu recebê-lo
(ver Bulletin, 1954, p. 03ss), mas ele lhe en-
viou essa carta, que foi publicada.

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Revista brasileira de estudos proustianos - 2021

Senhor,
Creio que toda arte verdadeira é clássica, mas as leis do espírito permitem raramente que ela seja, à sua
aparição, reconhecida como tal. Sob esse ponto de vista, a arte é como a vida. A linguagem do amante infeliz,
do partidário político, dos pais sensatos, parece, aos que a possuem, carregar consigo uma irresistível evidên-
cia. Não se vê, entretanto, que ela persuada aqueles aos quais se dirige; uma verdade não se impõe de fora a
espíritos que ela deve previamente tornar semelhantes àquele onde nasceu. Manet, embora tenha sustentado
que sua Olímpia fosse clássica, e dito àqueles que a olhavam: “Eis justamente o que vocês admiram nos Mes-
tres”, o público via nisso somente derrisão. Mas hoje, usufrui-se diante de Olímpia o mesmo gênero de prazer
que dão as obras-primas mais antigas que a cercam, e na leitura de Baudelaire [o mesmo] que na de Racine.
Baudelaire não quer, ou não sabe, terminar uma peça, e, por outro lado, talvez não exista uma única obra
sua em que se sucedam e se condensem, com tamanha riqueza, todas as verdades acumuladas numa única
declaração de Fedra. Mas o estilo dos poemas condenados, que é exatamente o das tragédias, talvez ainda a
ultrapasse em nobreza. Esses grandes inovadores são os únicos verdadeiros clássicos e formam uma sucessão
quase contínua. Os imitadores dos clássicos, em seus mais belos momentos, proporcionam-nos tão apenas
um prazer de erudição e de gosto, que não tem grande valor. Que os inovadores dignos de tornarem-se um dia
clássicos obedeçam a uma severa disciplina interior, e sejam construtores acima de tudo, não se pode duvidar.
Mas justamente porque sua arquitetura é nova, acontece de ficarmos muito tempo sem a discernir. Esses clás-
sicos ainda não reconhecidos e os antigos praticam de tal modo a mesma arte, que os primeiros ainda são os
que fizeram a melhor crítica dos segundos. Sem dúvida, é preciso que ela não vá de encontro às tendências, à
linha crescente de um artista. Não há nada de tão tolo quanto dizer, como Théophile Gautier, o qual de resto
permaneceu um poeta de terceira categoria, que o mais belo verso de Racine é

A filha de Minos e de Pasífae.1

Mas é-nos permitido saborear nas tragédias de Racine, em seus cânticos, nas cartas de Mme de Sévigné, em
Boileau, belezas que lá estão de fato, e que o século XVII não percebeu.
Em resumo, os grandes artistas que foram chamados de românticos, realistas, decadentes etc, enquanto não
foram compreendidos, eis quem eu chamaria de clássicos, se M. Charles Maurras, nos magníficos estudos que
assinou como Criton,2 não nos tivesse avisado sobre os perigos que há em se
multiplicarem assim as denominações mais ou menos arbitrárias.
1. Fedra, v. 36. Jules Pierre Théophile
Gautier (1811-1872, poeta, romancis-
ta e crítico de arte) dignava-se a achar
esse verso harmonioso, mas julgava-o
vazio de sentido, opõe as duas heredi-
tariedades de Fedra dilacerada entre os
instintos que herdou da mãe, e a cons-
ciência moral, que herdou do pai. Ele
resume a totalidade da tragédia.
2. Charles Maurras (1868-1952), assi-
nava com o pseudônimo socrático de
“Criton” os artigos literários que publi-
cava na Action Française.

89
Intermitências 1

Catleias
Traduzido por
Mario Sergio Conti

*As traduções aqui publicadas


não são, necessariamente, as versões definitivas.

De todos os modos de produção do amor, de todos os agentes de disseminação do mal sagrado, um dos
mais eficazes é esse grande sopro de agitação que às vezes passa por nós. Então o ser com quem nos entrete-
mos nesse momento, a sorte está lançada, é aquele que amaremos. Nem mesmo é necessário que até ali tenha
nos agradado tanto ou mais que os outros. O que era preciso é que nossa predileção por ele se tornasse exclusi-
va. E essa condição se realiza quando — no momento em que ele nos fez falta — a procura dos prazeres que o
seu encanto nos dava é bruscamente substituída em nós por uma necessidade ansiosa que tem por objeto esse
mesmo ser, uma necessidade absurda que as leis desse mundo tornam impossível satisfazer e difícil curar — a
necessidade insensata e dolorosa de possuí-lo.
Swann se fez conduzir aos últimos restaurantes; era a única hipótese da felicidade que encarara com calma;
agora não escondia mais sua agitação, o valor que atribuía àquele encontro e prometeu em caso de sucesso
uma recompensa a seu cocheiro, como se, inspirando-lhe o desejo de ser bem sucedido, que viria se juntar ao
que ele próprio sentia, pudesse fazer com que Odette, caso já tivesse ido se deitar, no entanto se encontrasse
num restaurante do bulevar. Foi até a Maison Dorée, entrou duas vezes no Tortoni e, sem a ter visto, acabava
de sair do Café Anglais, a passos largos e ar carrancudo, para ir à carruagem que o esperava na esquina do
Boulevard des Italiens, quando deu com uma pessoa que vinha no sentido oposto: era Odette; ela lhe explicou
mais tarde que, ao não achar lugar no Prévost, fora cear na Maison Dorée, num canto em que ele não a vira, e
que agora voltava à sua carruagem.
Como não esperava vê-lo teve um sobressalto. Quanto a ele, percorrera Paris não porque achasse possível
encontrá-la, mas porque era demasiado cruel desistir. Mas essa alegria, na qual sua razão não havia parado de
acreditar que fosse irrealizável nessa noite, não lhe parecia agora ainda mais real; pois, não tendo colaborado
com a previsão de verossimilhanças, ela lhe permanecia exterior; ele não tinha necessidade de extrair do espí-
rito para lhe fornecer — é dela mesma que emanava, ela que projetava para ele — aquela verdade que irradia-
va a ponto de dissipar como num sonho o isolamento que ele temera, e sobre o qual apoiava, repousava, sem
pensar seu devaneio feliz. Da mesma forma um viajante chegando com bom tempo à beira do Mediterrâneo,
incerto da existência dos lugares que acabou de deixar, deixa que sua vista se deslumbre, em vez de olhá-los,
pelos raios que emite em sua direção o azul luminoso e resistente das águas.
Subiu com ela no carro que a esperava e disse ao seu que o seguisse.
Ela tinha na mão um buquê de catleias e Swann viu, sob o seu lenço de renda, que tinha nos cabelos flores
dessa mesma orquídea atadas a um enfeite de penas de cisne. Ela estava vestida sob a mantilha com uma onda
de veludo negro que, num trançado oblíquo, descobria num largo triângulo da orla de uma saia de seda branca
e permitia ver o forro, também de seda branca, na abertura do corpete decotado, onde estavam enfiadas outras
flores de catleias. Mal se recobrara do susto que Swann lhe causara quando um obstáculo fez o cavalo se des-
viar. Foram violentamente sacudidos, ela soltou um grito e ficou toda palpitante, sem fôlego.

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Revista brasileira de estudos proustianos - 2021

“Não é nada, lhe disse ele, não tenha medo.” por tanto tempo acalentara e assistir à sua realização,
E a segurou pelo ombro, apoiando-a contra ele como uma parenta que é chamada a compartilhar
para ampará-la; depois lhe disse: o êxito de uma criança a quem muito amou. Talvez
“Principalmente, não me fale, só me responda por Swann também fixasse o rosto da Odette ainda não
sinais para não ficar mais ofegante. Não se incomoda possuída, ainda nem mesmo beijada por ele, que via
que arrume as flores do seu corpete que se desloca- pela última vez, esse olhar com o qual, no dia da par-
ram com o choque. Receio que as perca, queria enfi- tida, gostaríamos de levar uma paisagem que deixa-
á-las um pouco mais.” mos para sempre.
Ela, que não estava habituada a ver homens lhe fa-
zerem tantos rodeios, disse sorrindo:
“Não, de jeito nenhum, não me incomoda.”
Mas, intimidado pela sua resposta, talvez também
por parecer ter sido sincero quando usou aquele pre-
texto, ou mesmo começando a acreditar que o fora,
ele exclamou:
“Ah, não, principalmente não fale, irá se sufocar de
novo, pode me responder por sinais, entenderei bem.
Sinceramente, não a incomodo? Veja, há um pouco
de… acho que é pólen que se espalhou; permite que
o limpe com minha mão? Não o farei com muita for-
ça, estou sendo muito brutal? Estou lhe fazendo um
pouco de cócegas? É que não queria tocar o veludo
do vestido para não amarrotá-lo. Mas, veja, é preciso
mesmo fixá-las, senão cairiam; e, assim, enterrando-
-as um pouco eu mesmo… A sério, não estou sendo
desagradável? E se as cheirasse para ver se não têm
fragrância. Nunca as cheirei, posso? diga a verdade.”
Sorrindo, ela ergueu levemente os ombros, como
para dizer “você é bobo, claro que vê que isso me
agrada.”
Ele passava sua outra mão ao longo do rosto de
Odette; ela o olhou fixamente, com o ar lânguido
e grave das mulheres do mestre florentino com as
quais a achara semelhante; à flor das pálpebras, seus Ilustração de Gilles Diniz inspirado em Um amor de Swann.
olhos brilhantes, largos e finos, como os dela, pare-
ciam prestes a se soltar como duas lágrimas. Ela incli- Mas era tão tímido com ela que, tendo acabado por
nava o pescoço como se vê fazerem todas, tanto nas possui-la naquela noite depois de começar arruman-
cenas pagãs como nos quadros religiosos. E, numa do suas catleias, seja por receio de parecer retrospec-
atitude que sem dúvida lhe era habitual, que sabia tivamente ter mentido, seja por falta de audácia para
conveniente naqueles momentos e que tinha o cuida- formular uma exigência maior que aquela (que podia
do em não se esquecer de adotar, ela parecia precisar renovar porque não incomodara Odette da primeira
de toda sua força para reter seu rosto, como se uma vez), nos dias seguintes usou o mesmo pretexto. Se
força invisível a atraísse para Swann. E foi Swann que, ela tinha catleias no seu corpete, ele dizia: “É pena
antes quer ela deixasse seu rosto cair, como se apesar que nesta noite as catleias não precisem ser arranja-
dela, sobre os seus lábios, a reteve um instante, a certa das, não foram abaladas como na outra noite; no en-
distância, entre suas duas mãos. Quisera deixar à sua tanto, parece que essa não está bem colocada. Posso
mente o tempo de chegar, de reconhecer o sonho que ver se cheiram tão pouco como as outras?” Ou então

91
Intermitências 1

se ela não as tinha: “Ah, sem catleias esta noite, é impossível me dedicar a meus pequenos arranjos.” De modo
que, durante certo tempo, não foi mudada a ordem que seguira no primeiro dia, começando pelos toques dos
dedos e dos lábios no colo de Odette, e foi com eles que iniciavam toda vez suas carícias; e, bem mais tarde,
quando o arranjo (ou simulacro de arranjo) de catleias caíra em desuso desde há muito, a metáfora “fazer
catleia” se tornara um simples vocábulo que empregavam sem pensar quando queriam se referir ao ato da
posse física — no qual aliás não se possui nada — sobreviveu na sua linguagem, que comemorava esse uso
esquecido. E talvez essa maneira particular de dizer “fazer amor” não significasse exatamente ao mesma coi-
sa que seus sinônimos. Por mais que se esteja cansado das mulheres, considerar a posse das mais diferentes
como se fosse sempre a mesma e conhecida de antemão, ela se torna ao contrário um prazer novo caso se
trate de mulheres muito difíceis — ou tidas como tais por nós — para que sejamos obrigados a fazê-la nas-
cer de algum episódio imprevisto de nossas relações com ela, como foi a primeira vez por Swann no arranjo
das catleias. Esperava trêmulo naquela noite (mas Odette, ele se dizia, se caíra na sua astúcia, não poderia
adivinhá-la) que era a posse daquela mulher que sairia das grandes pétalas cor de malva; e o prazer que ele
já sentia e que Odette talvez apenas tolerasse, lhe parecia, por causa disso — como pôde parecer ao primeiro
homem que dele desfrutou entre as flores do paraíso terrestre — um prazer que não existira até então, que ele
procurava criar, um prazer — assim como o nome especial que lhe deu retinha-lhe o indício — inteiramente
particular e novo.

Mario Sergio Conti é colunista do jornal Fo-


lha de S.Paulo e apresenta o programa Diálo-
gos, na GloboNews. Está traduzindo À procu-
ra do tempo perdido, ao lado de Rosa Freire
d'Aguiar para a Companhia das Letras.

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Revista brasileira de estudos proustianos - 2021

Balbec
Traduzido por
Rosa Freire d’Aguiar

*As traduções aqui publicadas


não são, necessariamente, as versões definitivas.

D epois os concertos terminaram, o mau tempo chegou, minhas amigas se foram de Balbec, não todas jun-
tas, como as andorinhas, mas na mesma semana. Albertine foi a primeira a ir embora, bruscamente, sem que
nenhuma de suas amigas conseguisse entender, nem então nem mais tarde, por que retornara de repente para
Paris, onde nem estudos nem distrações a chamavam. “Ela não disse nem quê nem por quê, e depois foi-se”,
resmungava Françoise que, aliás, bem que gostaria que fizéssemos igual. Ela nos achava indiscretos diante
dos empregados, já porém bem reduzidos em número mas retidos pelos raros hóspedes que permaneciam,
e diante do diretor que “comia dinheiro”. É verdade que fazia muito tempo que o hotel, que não demoraria a
fechar, vira partir quase todo mundo; mas nunca tinha sido tão agradável. Não era a opinião do diretor; ao
longo dos salões onde congelávamos e cuja porta já nenhum groom vigiava, ele andava para lá e para cá pelos
corredores, vestindo uma sobrecasaca nova, tão cuidado pelo barbeiro que seu rosto insípido parecia consistir
numa mistura em que para uma parte de carne houvesse três de cosméticos, mudando sem parar de gravata
(essas elegâncias saem mais baratas do que assegurar o aquecimento e manter o pessoal, e quem já não pode
mandar dez mil francos a uma obra de caridade ainda se faz, sem dificuldade, de generoso dando cem vinténs
de gorjeta ao telegrafista que lhe traz um telegrama). Ele tinha jeito de quem inspecionava o nada, de querer
dar, graças à boa aparência pessoal, um ar provisório à miséria que se sentia naquele hotel onde a temporada
não havia sido boa, e parecia o fantasma de um soberano que volta para assombrar as ruínas do que outrora
foi seu palácio. Ficou sobremodo descontente quando o trem local, que não tinha passageiros suficientes,
parou de funcionar até a primavera seguinte. “O que falta aqui”, dizia o diretor, “são os meios de comoção.”
Apesar do prejuízo que registrava, fazia projetos grandiosos para os anos seguintes. E como era, mesmo as-
sim, capaz de memorizar com exatidão belas expressões, quando se aplicavam à indústria hoteleira e tinham
como efeito magnificá-la, dizia: “Eu não estava suficientemente secundado embora na sala de jantar tivesse
uma boa equipe; mas os estafetas deixavam um pouco a desejar; vão ver que falange conseguirei reunir no ano
que vem”. Enquanto isso, a interrupção dos serviços do trenzinho local obrigava-o a mandar buscar as cartas
e às vezes a conduzir os viajantes numa carroça. Eu costumava pedir para subir ao lado do cocheiro e isso me
proporcionou passeios fosse qual fosse o tempo que fizesse, assim, como no inverno que passara em Combray.
Às vezes, porém, como o Cassino estava fechado, a chuva torrencial nos prendia, a minha avó e a mim, em
salas quase completamente vazias como no fundo do porão de um barco quando o vento sopra, e em que todo
dia, como durante uma travessia, uma nova pessoa, daquelas ao lado de quem havíamos passado três meses
sem conhecê-las, o presidente do tribunal de Rennes, o bâtonnier de Caen, uma senhora americana e suas
filhas, vinham nos ver, entabulavam conversa, inventavam alguma maneira de achar as horas menos longas,
revelavam um talento, ensinavam-nos um jogo, convidavam-nos para tomar chá, ou para tocar música, para
nos reunirmos a tal hora, para combinarmos juntos essas distrações que possuem o verdadeiro segredo de nos
darem prazer, o prazer que consiste não em pretendermos tê-lo mas apenas em nos ajudar a passar o tempo
de nosso tédio, em suma, travavam conosco, no final de nossa temporada, amizades que no dia seguinte seus

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Intermitências 1

regressos sucessivos iriam interromper. Conheci até pensei em Balbec foram os momentos em que toda
o jovem rico, um de seus dois amigos nobres e a atriz manhã, com bom tempo, minha avó, por ordem do
que retornara por alguns dias; mas agora o grupinho médico, me forçava a ficar deitado no escuro, pois à
só se compunha de três pessoas, pois o outro ami- tarde eu devia sair com Albertine e suas amigas. O di-
go voltara para Paris. Convidaram-me para ir jantar retor dava ordens para que não fizessem barulho no
com eles no seu restaurante. Acho que ficaram muito meu andar e cuidava pessoalmente para que fossem
contentes por eu não ter aceitado. Mas tinham feito o cumpridas. Por causa da luz muito forte eu mantinha
convite com a maior amabilidade possível, e embora fechadas o mais tempo possível as grandes cortinas
ele tivesse vindo, na verdade, do jovem rico, já que as violeta que na primeira noite me haviam manifesta-
outras pessoas eram apenas seus hóspedes, e como do tanta hostilidade. Mas apesar dos alfinetes com
o amigo que o acompanhava, o marquês Maurice de que, para que a claridade não passasse, Françoise as
Vaudémont, era de altíssima estirpe, a atriz, instin- prendia toda noite, e que só ela sabia tirar, apesar dos
tivamente, ao me perguntar se eu não gostaria de ir cobertores, da toalha de mesa de cretone vermelho,
disse-me para me lisonjear: dos panos apanhados aqui e ali e que prendia nas
“Isso dará tanto prazer a Maurice.” cortinas, ela não conseguia juntá-las perfeitamente,
E quando encontrei os três no saguão, foi o senhor a escuridão não era completa e as cortinas deixavam
de Vaudémont, enquanto o jovem rico se punha de espalhar-se pelo tapete como que um escarlate desfo-
lado, que me disse: lhar de anêmonas, entre as quais eu não podia deixar
“Não vai nos dar o prazer de jantar conosco?” de pousar um instante meus pés descalços. E na pare-
Em suma, eu aproveitara bem pouco de Balbec, o de em frente à janela e que ficava parcialmente ilumi-
que apenas me dava mais desejo de voltar. Parecia-me nada, um cilindro dourado apoiado em nada estava
que ficara lá muito pouco tempo. Não era a opinião verticalmente pousado e deslocava-se devagar como
de meus amigos que me escreviam para perguntar a coluna luminosa que precedia os hebreus no deser-
se eu contava viver ali definitivamente. E vendo que to. Eu tornava a me deitar; obrigado a saborear, sem
era o nome de Balbec que eram obrigados a escrever me mexer, apenas na imaginação, e todos ao mesmo
no envelope, como minha janela dava, não para um tempo, os prazeres do jogo, do banho, da caminha-
descampado ou para uma rua, e sim para os campos da, que a manhã aconselhava, a alegria fazia meu
do mar, cuju rumor eu ouvia durante a noite, a ele coração bater ruidosamente como uma máquina em
confiando o meu sono antes de dormir, como se fosse pleno funcionamento mas imóvel e que só pode des-
uma barca, eu tinha a ilusão de que essa promiscui- carregar sua velocidade girando sobre si mesma, sem
dade com as ondas deveria materialmente, sem que sair do lugar.
eu notasse, fazer penetrar em mim a noção de seu Eu sabia que minhas amigas estavam no dique,
encanto, à maneira dessas lições que aprendemos mas não as via, enquanto elas passavam diante das
dormindo. serranias desiguais do mar, em cujo fundo, e empo-
O diretor me oferecia para o próximo ano quar- leirada no meio de seus cumes azulados como um
tos melhores, mas agora eu estava apegado ao meu, povoado italiano, distinguia-se às vezes numa nesga
onde entrava já sem sentir o cheiro do vetiver, e cujas do céu a cidadezinha de Rivebelle, minuciosamente
dimensões meu pensamento, que outrora tão dificil- recortada pelo sol. Não via minhas amigas mas (en-
mente ali se elevava, acabara por assumir tão exata- quanto chegavam até o meu miradouro o pregão dos
mente que fui obrigado a submetê-lo a um tratamen- vendedores de jornais, “dos jornalistas”, como Fran-
to inverso quando tive de dormir em Paris no meu çoise os chamava, as vozes dos banhistas e das crian-
antigo quarto, que era de teto baixo. ças que brincavam, pontuando como esses gritos dos
De fato, foi preciso deixar Balbec, pois o frio e a pássaros marinhos o ruído da onda que quebrava
umidade se tornaram um tanto penetrantes para ficar suavemente) adivinhava sua presença, ouvia seu riso
mais tempo naquele hotel sem lareiras nem calefa- envolto como o das Nereidas na suave arrebentação
ção. Aliás, praticamente logo esqueci aquelas últimas que subia até meus ouvidos. “Espiamos, dizia-me à
semanas. O que revi quase invariavelmente quando noite Albertine, para ver se você desceria. Mas suas

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Revista brasileira de estudos proustianos - 2021

janelas ficaram fechadas, até na hora do concerto.” De fato, às dez horas ele explodia debaixo das minhas ja-
nelas. Nos intervalos dos instrumentos, se era maré cheia, recomeçava fluido e contínuo o deslizar da água de
uma onda que parecia envolver as arcadas do violino em suas volutas de cristal e fazer jorrar sua espuma por
cima dos ecos intermitentes de uma música submarina. Impacientava-me que ainda não tivessem vindo tra-
zer as minhas coisas para que eu pudesse me vestir. Dava meio-dia, finalmente Françoise chegava. E durante
meses seguidos, naquele Balbec que eu tanto desejara porque não o imaginava senão batido pela tempestade e
perdido nas brumas, o bom tempo fora tão deslumbrante e tão constante que, quando ela vinha abrir a janela,
eu podia, sem nunca me enganar, ter a esperança de encontrar a mesma nesga de sol dobrada no ângulo da
parede externa, e de uma cor imutável que era mais melancólica como a de um esmalte inerte e artificial do
que comovente como um sinal de verão. E enquanto Françoise retirava os alfinetes das bandeiras das janelas,
despregava os panos, puxava as cortinas, o dia de verão que ela ia desvelando parecia tão morto, tão imemorial
como uma múmia suntuosa e milenar que nossa velha criada apenas tivesse cautelosamente desenfaixado de
todas as suas bandagens, antes de fazê-la surgir embalsamada em sua veste de ouro.

Rosa Freire d'Aguiar é jornalista e tradutora


do francês, espanhol e italiano.Está tradu-
zindo À procura do tempo perdido, aolado de
Mario Sergio Conti para a Companhia das
Letras.

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Intermitências 1

Le dernier
« prisionnier »
de Marcel Proust
Tadeu Rocha

Tradução:
Etienne Sauthier

« Pour compléter le tableau régionaliste des écrivains « nouveaux » ou « rénovés » de la province d’Alagoas,
Jorge de Lima a découvert Proust, dont la Recherche du Temps Perdu, à travers la Province de son Enfance,
influencerait décisivement l’évolution du poète. Lui-même l’a confessé plus tard à l’écrivain Luis Santa Cruz et
celui-ci a rapporté le fait pour un numéro de la revue « Nordeste » dédié au romancier français.1
Cette découverte de Proust s’est revêtue des mystères d’un roman policier, dont après douze ans de recher-
che, l’auteur de cet essai peut seulement maintenant trouver la clé.
Jorge de Lima lui-même m’a raconté une fois sa rencontre avec l’évocateur de Combray. Un de ses patients à
Maceió, fonctionnaire de la « Latécoère », lisait un roman de Proust, le trouvant « quelque peu somnifère » (en
français dans le texte). Le livre lui avait été offert, à Recife, par un certain Rochat2, qui lui avait aussi remis une
photographie de l’écrivain, tous deux avec une dédicace de Proust. Le patient offrit le portrait et le livre à son
médecin et celui-ci, aimant le roman, fit venir toute la série de A la recherche du temps perdu.
Bientôt se forma une légende au sujet du mystérieux ami de Proust. José Lins do Rego, qui en 1928, a connu
cet employé de la « Latécoère » au cabinet de Jorge de Lima a dit dans la « Revista Branca » n. 43 que cet hom-
me s’appelait Henri Rochat, avait été employé du câble sous-marin français et qu’« en quittant Recife, à pied,
par le chemin du littoral » il avait laissé ses effets à la propriétaire de la pension où il logeait. Il a aussi écrit que
Jorge de Lima aurait remis à Tristão de Athayde le livre et le portrait que lui avait offerts le jeune homme de
la « Latécoère ».
De son côté, le poète Matheus de Lima, qui, à la demande de son frère, a fait les premières recherches sur la
vie de Rochat à Recife m’a éclairé personnellement sur le fait que l’énigmatique personnage aurait été employé
de la « Banque française et italienne » et avait résidé dans une pension française de l’Avenue Portugal. En dis-
cutant avec sa propriétaire, on a appris que le pensionnaire était parti à cheval — un beau cheval blanc - pour
le Ceará, par la côte, en lui laissant une malle de documents. Parmi eux, Matheus de Lima a vu lui-même, de
grands portraits de Proust, avec son ami, mais la propriétaire de la pension n’a pas consenti à se défaire des
documents — lettres et portraits — même pour le fort prix d’un conto de Reis [NDT : Un million de Reis].
Cela s’est passé encore avant la révolution de 1930, quand la Livre Sterling valait quarante mille Reis.
Sur les cinq photographies, presque de la taille d’une feuille de papier standard « Marcel Proust figurait en
compagnie de son ami français de Recife, dans cinq positions atmosphériquement (sic) différentes : debout,
assis, une autre fois debout, le visage derrière un éventail de comploteur… ». Les photos s’accompagnaient
d’une copieuse dédicace rimée qui formait une masse compacte au verso.
En discutant avec l’auteur de cet essai et au cours d’une interview publiée dans le Diário de Pernambuco du
10 juin 1956, Matheos de Lima n’a pas su dire le nom du jeune ami « Français de Recife » de Proust. De ses
recherches à la « Pension Defrance », il n’est sorti que le souvenir visuel des photographies et lettres et l’évo-

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Revista brasileira de estudos proustianos - 2021

cation de l’« homme au cheval blanc », jusqu’à fréquenter le « Club Internatio-


à qui Proust avait remis de l’argent, y nal de Recife ». Au dire de Belfort, il
compris pour l’achat du bel animal. « buvait comme un européen », mais
Avec le nom révélé par José Lins do avait un poste à responsabilité, proche
Rego et les informations fournies par de la gérance de la Banque. Après être
Matheos de Lima, j’ai commencé des resté quelques temps, Rochat a disparu
recherches afin d’identifier cet ami mystérieusement, réapparaissant dans
« français de Recife » de l’auteur d’« À la ville de Paraíba. Le citoyen ukrai-
la recherche du temps perdu ». Le con- nien Mendel Faingold, né et ayant pas-
sulat de France et les plus vieux fran- sé son enfance à Odessa, mais qui avait
çais de Recife m’ont garanti qu’il n’avait étudié à Liège, en Belgique, d’où il était
résidé dans cette ville au cours des 50 venu au Brésil, m’a donné d’importants
dernières années aucun ressortissant éclaircissement au sujet de son amitié
français de ce nom. Au consulat suis- avec Rochat, à la banque française et
se j’ai encore pu voir, il y a une dizaine italienne. Feingold a confirmé que le
d’années une petite fiche où figurait le suisse avait une bonne éducation et
nom d’Henri Rochat, sans le moindre que son sport préféré était les bala-
élément informatif. des à cheval — un bon cheval, gardé
A l’agence du Câble sous-marin dans un manège à Caxangá. Dans ses
français — la « Compagnie des Câbles cavalcades dominicales, Rochat était
Sud-Américains » — j’ai été informé toujours accompagné de ses collègues
avec certitude que Rochat n’avait ja- de travail, Faingold et Pierre Weil. Le
mais travaillé là-bas. Cependant, en patronyme de ce dernier jeune hom-
prenant contact avec d’anciens em- me, résident à Recife dès 1922 n’est pas
ployés de la « Banque Française et Ita- innocent.
lienne pour l’Amérique du Sud », - qui Aux dires de Faingold, le suisse avait
a été réquisitionnée durant la seconde passé peu de mois à Recife et, « un cer-
guerre mondiale par le gouvernement tain jour, avec surprise, on a appris à
brésilien, j’ai pu recueillir des infor- la banque, que Rochat avait quitté la
mations précises sur la vie de Rochat Pension Defrance, en route pour le
à Recife, que des anciens habitants de nord, à pied ». Longtemps après, on a
la Pension Defrance, où le suisse était reçu des nouvelles de son passage par
résident, ont complété de leurs excel- Fortaleza et de son décès, plus au nord.
lents éclaircissements. Des éclaircissements encore plus mi-
Mesdames Aimée Cerf et Tatiana nutieux que ceux de Mendel Faingold
Henry ont connu Rochat à la Pen- m’ont été donnés par le belge Maurice
sion Defrance. Et Madame Josette Le Grand. C’est à la Pension Defrance
Abraminte m’a dit avoir entendu des qu’il a connu Henri Rochat en 1922,
discussions de Madame Defrance à avec son blouson d’étudiant parisien 1. Nordeste, Recife, année IV, n. 5,
propos de son étrange pensionnaire, en peinture et son cheval Pampa ache- nov.-déc. 1949.
qui avait une ardoise à la Pension De- té à Recife. Rochat était venu de France 2. Voir Pyra Wise, « Henri Ro-
france, quand il est parti pour le Nord recommandé à Tomaso Fabaro, gérant chat : Des nouvelles du « Dernier
du Brésil. Les Brésiliens João Pires de de la succursale du Pernambuco (ré- prisonnier » de Marcel Proust »,
In: Jean-Yves Tadié (dir.), Le cercle
Avelins Belfort et Luis Lôbo se rappe- gion de Recife) de la Banque française de Marcel Proust III, Paris, Honoré
laient parfaitement d’Henri Rochat : il et italienne pour l’Amérique du sud. Champion, 2021, pp. 223-45.
était jeune, fort et sympathique. Il jou- Les samedis après-midi et les diman- 3. Revista Branca, Rio de Janeiro, n.
ait au football et aimait danser, il allait ches, Rochat montait un beau cheval 4, déc.-jan. 1948-1949, p. 35.

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Intermitências 1

pampa que Le Grand avait vu devant la Pension De- campagne nordestine, y menant une vie de bohème et
france, sur l’Avenue Portugal. Le jeune suisse « di- se perdant dans l’oubli et la mort ?
lapidait son salaire en fêtes » et recevait toujours de La « clé » de cette énigme a été trouvée par l’au-
l’argent de Paris, envoyé par une tante riche… Cette teur de cet essai, dans un commentaire de François
parente de Rochat, dont il n’a pas révélé le nom à ses de Mauriac, dans son livre Du côté de chez Proust,
amis de Recife a une grande importance. l’avant dernière des cinq lettres, toutes sans dates que
Le jeune homme a disparu de Recife alors qu’il de- le fameux écrivain lui a envoyées après la date du 19
vait quelques mois de pension à Madame Defrance. septembre 1919, « selon le cachet de la poste ». Dans
D’après ce que m’a dit Le Grand, le suisse a voyagé à cette lettre, dans laquelle Proust accusait réception
pied en direction de la ville de Paraíba (actuelle Joâo du roman Préséances de Mauriac, il se remémore
Pessoa), d’où il est parti pour Parnaíba, dans le Piaui, aussi, dans une parenthèse, « la nuit où vous avez eu
où il serait décédé. la bonté de venir gentiment dans mon petit apparte-
Selon les informations certaines de Le Grand, ment, avec mon unique H., qui aujourd’hui est par-
« Rochat possédait de nombreux volumes brochés de ti pour un pays lointain. Cette évocation se réfère
Proust, certains avec dédicace ». Le minutieux bel- à une « étrange cène à dix heure du soir, au chevet
ge a eu en main « bon nombre de ces livres », mais de Proust », durant la seconde quinzaine de février
il n’avait pu en lire aucun jusqu’à sa fin et les avait 1921, selon ce que note le « Journal d’un Homme de
rendus à leur propriétaire. Avec les éléments fournis Trente Ans » de Mauriac en date du 23 mars suivant.
par Joao Pires Belfort, Mendel Faingold et Maurice Bien qu’il ne participe plus aux « nourritures de ce
Le Grand, je me suis dirigé vers une vieille entrepri- monde », Proust faisait encore usage de son langage
se française de Parnaiba — la maison Marc Jacob, coutumier d’affection. Selon Mauriac : « les formules
s.a. — en les consultant, sur le passage possible de d’affection subsistaient, à peine, sur ses lèvres, sèches
Rochat dans la ville. La réponse fut immédiate : le d’une soif atroce qui ne serait jamais étanchée. Ce-
commerçant, Roland Jacob, neveu et successeur de pendant, dans l’évocation de cette réfection noctur-
Marc Jacob, m’a répondu que « Monsieur Rochat, ne, il l’appelait son unique H. Ce jeune homme de-
suisse, célibataire, était entré dans cette entreprise le vait partir, peu de temps après, pour l’Amérique, où
22 novembre 1922 et l’a quitté le 2 mars 1923 ». Après Proust lui avait trouvé un emploi. Ainsi il coupait lui-
avoir affirmé que Rochat était arrivé au Brésil par Rio -même les dernières attaches et restait seul dans son
de Janeiro et était passé par Recife avant d’arriver là, appartement, occupé par les épreuves de son livre ».
monsieur Roland Jacob m’a expliqué que les fonc- Commentant l’étrange dîner de l’appartement de
tions de Rochat dans l’entreprise de son oncle « éta- Proust, au cinquième étage du 44 de la rue Hamelin,
ient celles d’un correspondant de langue étrangère ». près du bois de Boulogne, André Maurois souligne
Et selon les informations de ses collègues, « monsieur qu’à cette occasion « Mauriac a vu le dernier Prison-
Rochat était un intellectuel talentueux, il aimait be- nier, que Proust appelait mon unique H… et qui était,
aucoup la poésie et la musique et excellait au piano dit-il, un jeune suisse. Mais H. lui-même était déjà
». Après qu’il eut quitté la maison Jacob, au début de condamné et Proust s’affairait à lui trouver un emploi
mars 1923, personne ne connaît les pérégrinations aux Etats-Unis ».
de Rochat. La dernière nouvelle dont se souviennent L’erreur évidente de Maurois, identifiant les Etats-
ses amis de Recife a été celle de sa mort, conséquence -Unis à l’Amérique, ne diminue pas la valeur de son
d’une fièvre, dans un endroit incertain du Nordeste commentaire et précise l’information de Mauriac et
occidental ou du Nord du Brésil. Ce qui est certain, la propre déclaration de Proust selon laquelle son
c’est que l’on ne sait où reposent les os de celui qui a unique H. était parti « pour un pays éloigné », situé
introduit les livres de Marcel Proust dans la métropo- aux Amériques. Il n’y a aucun doute que ce pays était
le régionale du Nordeste, aux alentours de 1922. Et bien le Brésil et que le jeune suisse H…. était Henri
qui était ce jeune suisse, pourquoi avait-il immigré Rochat, descendant d’une vieille famille helvétique
de Paris en Amérique du sud ? Pourquoi un étudiant du canton de Vaud. Dans son emploi à Recife, Rochat
parisien cultivé est venu errer dans les plateaux de la a été collègue d’un jeune français, Pierre Weil, qui de-

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Revista brasileira de estudos proustianos - 2021

vait être parent de Proust du côté maternel — les Weil, « famille juive d’origine lorraine et à la fortune solide ».
Cette tante de Rochat, qui lui envoyait de l’argent de Paris, était certainement Céleste Albaret, gouvernante
dévouée de la maison de Proust depuis l’année 1913, après son mariage avec Odillon Albaret, propriétaire de
taxi qui assurait le service exclusif de l’écrivain.
A cause de cette présence du dernier « Prisonnier » de Proust dans la métropole régionale du Nordeste, un
essai sur son œuvre notable a été écrit par Jorge de Lima pour le concours à la chaire de littérature du Liceo
alagoano. A la demande du Dr Francisco José dos Santos Ferraz, directeur de l’établissement l’écrivain José
Lins do Rego, qui avait déjà une « réputation de grand critique du Nord » en 1929, a organisé les épreuves du
concours et a introduit un thème inconnu : « Le roman de Marcel Proust » - qui fut, exactement, le sujet tiré
au sort pour le travail de thèse-concours des candidats. Lorsque le concurrent de Jorge de Lima, le Bacharel
Rodrigues de Melo, vit les volumes d’A la recherche du temps perdu, qu’on lui a mis à disposition, il a immé-
diatement renoncé à les consulter et à présenter le concours.
Personne ne s’étonne en effet que dans le Maceió de 1929, peu de gens connaissent le romancier français.
Le 9 janvier 1930 encore, le maitre-poète Manuel Bandeira [NDT. Futur traducteur de Proust au Brésil] disait,
dans une lettre à Jorge de Lima, qu’il n’avait pu jusqu’alors attaquer Proust, et ne savait rien à son sujet d’autre
que ce qu’il avait lu dans quelques critiques. Les quelques rares fois qu’il avait essayé de le lire, il l’avant aban-
donné : « le trouvant monstrueusement rasoir ».

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Intermitências 1

O último
“prisioneiro”
de Marcel Proust
Tadeu Rocha

Ilustração: Giuliane de Alencar.

Para completar o quadro regionalista dos escritores “novos” ou “renovados” da Província das Alagoas,
aconteceu que Jorge de Lima descobriu Proust, cuja recuperação do tempo perdido, através da Província de
sua infância, iria influenciar decisivamente na evolução do poeta. Ele mesmo o confessou, mais tarde, ao es-
critor Luís Santa Cruz e este referiu o fato em artigo para o número da revista “Nordeste”, dedicado ao roman-
cista francês. Esta descoberta de Proust se revestiu dos mistérios de uma novela policial, cuja “chave” somente
agora, após doze anos de pesquisas, o autor deste ensaio pôde encontrar.
O próprio Jorge de Lima contou-me, certa vez, o seu encontro com o evocador de Combray. Um seu cliente
em Maceió, funcionário da “Latécoère”, lia um romance de Proust, achando-o “quelque peu sonnifère”. O livro
fora-lhe presenteado, no Recife, por um certo Rochat, que também lhe dera uma fotografia do escritor, ambos
com a dedicatória de Proust. O cliente ofereceu o retrato e o livro ao seu médico e este, gostando do romance,
mandou buscar toda a série de “A la Recherche du Temps Perdu”.
Logo se formou uma lenda a respeito do misterioso amigo de Proust. José Lins do Rêgo, que em 1928 co-
nheceu aquele funcionário da “Latécoère”, no consultório de Jorge de Lima, adiantou na “Revista Branca” n. 4
que tal “homem, Intimamente Iigado a Proust”, se chamava Henri Rochat, fora funcionário do Cabo Submari-
no Francês e “tendo abandonado o Recife, a pé, pelo caminho do litoral”, deixara os seus trastes com a dona da
pensão em que morava, Também escreveu que Jorge de Lima oferecera a Tristão de Athayde o livro e o retrato
que o rapaz da “Latécoère” lhe presenteara.

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Revista brasileira de estudos proustianos - 2021

Enquanto isso, o poeta Matheus de Lima, que a po algum. Em contato, porém, com antigos servido-
pedido de seu irmão fez as primeiras pesquisas so- res da sucursal do Banco Francês e Italiano - “Banque
bre a vida de Rochat, no Recife, esclareceu-me pes- Française et Italienne pour l’Amérique du Sud” - que
soalmente que o enigmático personagem teria sido foi encampado pelo Governo do Brasil, durante a
funcionário do “Banco Francês e Italiano” e residira segunda guerra mundial, pude colher precisas infor-
numa pensão francesa da Avenida Portugal. Enten- mações sobre a vida de Rochat, no Recife, as quais se
dendo-se com a sua proprietária, foi informado de completaram com excelentes esclarecimentos de an-
que o hóspede saíra a cavalo - um belo cavalo branco tigos moradores da Pension Defrance, onde o jovem
para o Ceará, pela praia, deixando-lhe uma mala com suíço esteve hospedado.
documentos. Entre estes, o próprio Matheus de Lima Mesdames Aimée Cerf e Tatiana Henry conhece-
viu uns grandes retratos de Proust, com seu amigo, ram Rochat na Pension Defrance. E Madame Josette
mas a dona da pensão não quis desfazer-se dos docu- Abraminte disse-me ter ouvido de Madame De fran-
mentos, cartas e retratos nem pelo alto preço de um ce conversas a respeito do seu estranho hóspede, que
conto de réis. Isto ainda antes da Revolução de 1930, ficara devendo à Pension Defrance, ao viajar para o
quando a libra esterlina custava quarenta mil réis… Norte do Brasil.
Nas cinco fotografias, quase do tamanho de uma Os brasileiros João Pires de Avelins Belfort e Luís
folha de papel almaço, “Marcel Proust figurava em Lobo lembram-se, perfeitamente, de Henri Rochat:
companhia do seu amigo francês-recifense, em cinco era jovem, alto, forte e simpático. Jogava futebol e
posições atmosfericamente diferentes (atmosfera po- gostava de dançar, tendo até frequentado o Clube
ética): de pé, sentados, outra vez de pé, com os rostos Internacional do Recife. No dizer de Belfort, “bebia
por detrás de um leque comprometedor…” As fotos como um bom europeu”, mas desempenhava servi-
estavam oferecidas com “uma copiosa dedicatória ri- ços de responsabilidade, junto à gerência do Banco.
mada que avançava em massa compacta para o lado Após algum tempo de permanência nesta capital,
posterior”, Rochat desapareceu misteriosamente, surgindo na
Em conversa com o autor deste ensaio e numa en- cidade de Parnaíba.
trevista publicada no suplemento literário do “Diário O cidadão ucraniano Mendel Faingold, nasci-
de Pernambuco”, de 10 de junho de 1956, Matheus do e criado em Odessa, mas que estudou em Liége,
de Lima não soube dizer o nome do jovem amigo na Bélgica, de onde veio para o Brasil, prestou-me
“francês-recifense” de Proust. Das suas pesquisas na importantes esclarecimentos de sua amizade com
“Pension Défrance”, apenas ficaram a memória visual Henri Rochat, no Banco Francês e Italiano. Faingold
das cartas e fotografias e a sugestão do “homem do confirmou que o jovem suíço era muito educado e o
cavalo branco”, a quem Proust remetia dinheiro, in- seu esporte predileto era passear de cavalo um bom
clusive para a compra do belo animal. cavalo, guardado numa cocheira em Caxangá. Nas
Com o nome revelado por José Lins do Rêgo e os suas cavalgadas dominicais, Rochat era quase sempre
informes fornecidos por Matheus de Lima, iniciei acompanhado pelos seus colegas de trabalho Fain-
pesquisas a fim de identificar esse amigo “francês-re- gold e Pierre Weil. Atente-se bem para o sobrenome
cifense” do autor de “À la Recherche du Temps Perdu”. deste jovem francês, residente no Recife em meados
O Consulado da França e os mais velhos franceses do de 1922.
Recife garantiram-me não ter residido nesta capital, No dizer de Faingold, o suíço passou poucos me-
nos últimos cinquenta anos, nenhum súdito francês ses no Recife e, “certo dia, com surpresa, chegou ao
com tal nome. No Consulado Suíço ainda pude ver, Banco a notícia de que Rochat deixara a Pension De-
há cerca de dez anos, uma pequena ficha em que fi- france, com o rumo do Norte, a pé”. Tempos de pois,
gurava o nome de Henri Rochat, sem qualquer ele- apareceu a notícia de sua passagem por Fortaleza e de
mento informativo. seu falecimento, mais ao Norte.
Na agência do Cabo Submarino Francês - a “Com- Esclarecimentos ainda mais minuciosos do que
pagnie des Cables Sud Americains” - fui seguramente estes de Mendel Faingold me foram dados pelo bel-
informado de que Rochat ali não trabalhou, em tem- ga Maurice Le Grand. Foi na Pension Defrance que

101
Intermitências 1

ele conheceu Henri Rochat, em 1922, com o seu blu- sua morte, em consequência de uma febre, em lugar
são de estudante parisiense de pintura e o seu cavalo incerto do Nordeste Ocidental ou do Norte do Brasil.
pampa, comprado no Recife. Rochat veio da França O certo é que não se sabe onde os ossos daquele que
recomendado a Tomaso Fábaro, gerente da sucursal introduziu os livros de Marcel Proust na metrópole
pernambucana do Banco Francês e Italiano para a regional do Nordeste, nos meados de 1922.
América do Sul. E quem era este jovem suíço, como que deportado
Nos sábados à tarde e nos domingos, Rochat pas- de Paris para a América do Sul? Por que um culto
seava num belo cavalo pampa, que o informante estudante parisiense veio peregrinar pelas planícies
conheceu defronte da Pension Defrance, na Aveni- da cunha nordestina do Brasil, levando vida boêmia
da Portugal. O jovem suíço «gastava o ordenado em e perdendo-se no esquecimento e na morte?
farras» e sempre recebia dinheiro de Paris, enviado A “chave” dessa verdadeira novela policial foi en-
por uma tia rica… Peço a atenção do leitor para esta contrada pelo autor deste ensaio, num comentário
parenta de Rochat, cujo nome ele não revelou aos de François Mauriac, em seu livro “Du coté de chez
seus amigos recifenses… Proust”, à penúltima das cinco cartas, todas sem data,
Devendo alguns meses de pensão a Madame De que o famoso escritor lhe dirigiu, após 24 de setem-
France, o rapaz desapareceu do Recife. Ao que dis- bro de 1919, “segundo o carimbo do envelope”.
seram a Maurice Le Grand, o suíço viajou a pé, em Nessa carta, em que Proust acusava o recebimento
direção à cidade da Paraíba (atual João Pessoa), de do romance “Préséances”, de Mauriac, também re-
onde se deslocou para a de Parnaíba, no Piauí, onde memorou, num parêntese, “a noite em que tivestes
teria falecido. a bondade de vir tão gentilmente ao meu pequeno
De acordo com os seguros informes de Maurice Le quarto, com o meu único H, que hoje partiu para um
Grand, “Rochat possuía muitos volumes encaderna- país distante…”
dos de Proust, alguns com dedicatória.” O minucioso Tal evocação se refere a uma “estranha ceia, as
belga teve em mãos “vários desses livros”, mas não dez horas da noite, à cabeceira de Proust”, na segun-
suportou ler qualquer deles até o fim, devolvendo-os da quinzena de fevereiro de 1921, ao que registra o
a seu dono. “Journal d’un Homme de Trente Ans”, de Mauriac,
Com os elementos fornecidos por João Pires Bel- no dia 23 de março seguinte.
fort, Mendel Faingold e Maurice Le Grand, dirigi-me Se bem que não mais participasse dos “alimentos
a uma antiga firma francesa de Parnaíba Casa Marc deste mundo”, Proust ainda usava sua costumeira lin-
Jacob, S. A. consultando-a sobre a possível passagem guagem de afeição. No dizer de Mauriac, “as fórmulas
de Henri Rochat naquela cidade. A resposta foi ime- do carinho subsistiam, apenas, nos seus lábios, secos
diata: o alto comerciante Roland Jacob, sobrinho e de uma sede atroz e que não seria jamais estancada.
sucessor de Marc Jacob, respondeu-me que “o Sr. Ro- Entretanto, na evocação daquela refeição noturna,
chat, suíço, solteiro, entrou nesta firma no dia 22 de ele chama meu único H. Este rapaz, porém, devia
novembro de 1922, tendo deixado a mesma no dia 2 partir, pouco tempo depois, para a América, onde
de março de 1923.” Proust lhe havia arranjado um emprego. Assim, ele
Após afirmar que supunha ter Rochart ido do Rio mesmo cortava as últimas a marras e ficava sozinho
de Janeiro e saído para o Recife, o Sr. Roland Jacob no seu apartamento, preocupado com as provas do
esclareceu que as funções de Rochat na empresa do seu livro”. 1
seu tio “eram as de correspondente de línguas estran- Comentando a estranha ceia no apartamento de
geiras”. E, segundo informações de antigos colegas Proust, num quinto andar da Rua Hamelin, n. 44,
seus, “o Sr. Rochat era um intelectual talentoso, gos- perto do Bois de Boulogne, André Maurois esclare-
tava muito de poesia e música e tocava piano com ce que, nessa ocasião, “Mauriac viu o último Prisio-
maestria. “ Após sua saída da Casa Marc Jacob, em neiro, a quem Proust chamava meu único H… e que
começos de março de 1923, ninguém mais soube dos era, dizem, um jovem suíço. Mas, o próprio H… já
passos de Henri Rochat. A última notícia que ficou na estava condenado e Proust cuidava de arranjar -lhe
memória dos seus poucos amigos recifenses foi a de um emprego nos Estados Unidos”.2

102
Revista brasileira de estudos proustianos - 2021

O evidente engano de Maurois, identificando América com Estados Unidos, não diminui o valor do seu
comentário à precisa informação de Mauriac e à própria declaração de Proust de que o seu único H… partira
“para um país distante”, situado nas Américas.
Não há dúvida que tal país era, mesmo, o Brasil e que o jovem suíço H… era Henri Rochat, descendente
de uma velha família helvética do Cantão de Vaud. Em seu emprego no Recife, Rochat foi colega do jovem
francês Pierre Weil, que deveria ser parente de Proust, pelo lado materno os Weil, “família judaica de origem
lorena e de sólida fortuna”.3
Aquela tia de Rochat, que lhe mandava dinheiro de Paris, certamente que era Céleste Albaret, dedicada
governanta da casa de Proust, desde o ano de 1913, após seu casamento com Odilon Albaret, proprietário do
táxi que fazia os serviços exclusivos do escritor.
Por causa da presença do último “Prisioneiro” de Proust na metrópole regional do Nordeste, um ensaio
sobre a sua notável obra foi escrito por Jorge José de Lima, para o concurso à cadeira de Literatura do Liceu
Alagoano. A pedido do Dr. Francisco dos Santos Ferraz, diretor do estabelecimento, o escritor José Lins do
Rêgo, já tendo a «fama de grande crítico do Norte”, em 1929, organizou os pontos do concurso e lá incluiu
um tema desconhecido “O romance de Marcel Proust” - que foi, exatamente, o assunto sorteado para as teses
dos candidatos. Quando o concorrente de Jorge de Lima, bacharel Rodrigues de Melo, viu os volumes de “À
la Recherche du Temps Perdu”, que o primeiro lhe pôs à disposição, imediatamente desistiu de consultá-los e
de fazer o concurso.
Ninguém estranhe, porém, que no Maceió de 1929 pouca gente conhecesse o romancista francês. Ainda
em 9 de janeiro de 1930, o mestre-poeta Manuel Bandeira, em carta a Jorge de Lima, dizia que, até então, não
pudera “meter o dente no Proust” e a seu respeito nada sabia além do que tinha lido em alguns críticos. Nas
poucas vezes que tentara lê-lo, “desanimava achando-o monstruosamente cacete”.

1. Françoise Mauriac, “Du côté de


chez Proust”, Oeuvres Completes,
Librairie Arthême Fayard, Paris,
1951, tomo VI, p. 285, Bibliothéque
Bernard Grasset. A edição original
do livro Du côté de chez Proust apa-
receu em 1947, na coleção Le Choix,
das edições da “Table Ronde”.
2. André Maurois, À la recherche de
Marcel Proust, Librairie Hachette,
Paris, 1949, pp. 311-12.
3. André Mauois, Idem, p. 09.

103
Intermitências 1

Proust pelo mundo

Mil e uma
memórias
A jornada da tradução
d’ À la recherche du
temps perdu para o
árabe
Frederico DeNez

Não foi o Oriente de Decamps, nem mesmo o de


Delacroix que ficou a dançar-me na cabeça, mas o
velho Oriente daquelas Mil e Uma Noites que eu tanto
amara; e, perdendo-me aos poucos nos meandros das
ruas escuras, pensava no califa Haroun Al Rashid em
busca de aventuras pelas ruas de Bagdá.

Marcel Proust, O tempo redescoberto

Ao lembrarmos da monumental obra de Marcel Proust, Em busca do tempo perdido, nossa imediata asso-
ciação é àquilo que a própria história em si nos revela à medida que pousamos nossos olhos pelos seus infindá-
veis, intrincados e deleitosos parágrafos: os salões da Paris da Belle Époque, os ares bucólicos de Combray, as
aventuras do protagonista em Balbec. O que pode passar despercebido, no entanto, é a conexão da linguagem
proustiana ao Oriente Médio e sua riqueza cultural ímpar.
A língua árabe trouxe, à obra de Proust, mais elementos engrandecedores para seus leitores, pesquisado-
res e amantes de sua escrita. Com os mesmos toques que talvez Sheherazade poderia nos brindar: aventura,
mistério, curiosidade e desafios dos mais variados. Tais elementos podem descrever a verdadeira jornada de
tradução da obra de Proust para a língua árabe. O árabe é uma língua semítico-meridional, junto ao hebraico
e alguns idiomas berberes. Tradicionalmente associada ao Alcorão e ao Islamismo, ela é pré-islâmica, com
registros datando desde o século VI d.C., porém, normatizada e teve sua gramática constituída no século VIII,
como nos diz Safâ Jubran (2005).
Marcel Proust já havia sido citado em um periódico egípcio de 1945 e na única revista literária árabe da
época — também egípcia — chamada Akhbar Al-Adab, lançando um número especial dedicado a Proust e
sua influência no mundo árabe. Contudo, sua tradução para o idioma seria iniciada pelo tradutor sírio Elias
Bedawi, em 1977, com o primeiro dos sete volumes, O caminho de Swann. Seguiram À sombra das raparigas
em flor (1979) e O caminho de Guermantes (1980). A falta de recursos, divulgação e problemas referentes à
própria trama proustiana em si para o mundo árabe (variados trechos, especialmente de Sodoma e Gomorra,

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Revista brasileira de estudos proustianos - 2021

precisaram ser retirados da tradução, pelo costume e cultura islâmicos), o trabalho foi retomado somente no
final da década de 1990 e finalizada na íntegra apenas em 2006. O que esta aventura proustiana pelo Oriente
Médio pode nos trazer de reflexões?
Mahmoud Abbas nos traz seu relato de leitura quando da primeira tradução. Ele diz:

Eu sou um romance em busca do tempo perdido. O incrível é que agora, depois de chegar
ao final da primeira parte, senti um vácuo, uma série de pensamentos dolorosos e uma es-
tranha pressa para começar as outras partes, porque poderia me isolar do mundo exterior
por um longo tempo. E não poderei abandoná-lo por horas, meu pensamento permanecerá
preso a ele mesmo quando eu estiver com meus amigos, pois este foi um romance estranho
e maravilhoso, que me jogou em um mundo sem caminhos e às vezes dezenas deles, e eu
não sabia qual seguir, um espaço transbordando de ideias, e agora é jogado na minha frente
como um espelho. Ele me reflete através de suas personalidades e análises, como estou jo-
gando entre todos os tempos que passei na natureza, em que vivi entre o campo e a cidade,
entre a infância e agora, pela forma como ele manipulou o tempo, descrevendo a natureza
em suas várias formas.

Mahmoud Abbas, em seu relato de leitura de O caminho de Swann em 09 set. 1978.

Nas sinuosidades da escrita árabe, Proust revela novas possibilidades, como as revelaria em outras línguas.
As possibilidades das memórias, da arte, da escrita e da ampliação da percepção de si e do outro pela sua letra.
Como ele mesmo nos diz em “O tempo redescoberto”, todo leitor, quando lê, é leitor de si mesmo. Fascinado
pelo tempo, pela memória, pelas artes, pela literatura, a obra proustiana, em todos os idiomas em que chega,
apresenta ao seu leitor o encantamento do desvendar-se, tornar claros os sentimentos e paixões de todos.
Traduzir a arte é um desafio e Proust propõe tal desafio a todas as línguas que entram neste empreendimento:
extrair de si o que a letra revela, encontrar possibilidades de apreensão e contato com a cultura de chegada de
uma maneira que as toque como no relato de Abbas. Se para Proust “a verdadeira vida, a vida enfim descober-
ta e tornada clara, a única vida, por conseguinte, realmente vivida é a literatura”, traduzi-la é vê-la multiplicar-
se, desabrochar e serpentear como nos coleios sinuosos do árabe, é unir Oriente e Ocidente, aproximar através
dos sentimentos e emoções evocados pelas memórias os mundos mais aparentemente longínquos e diversos,
através do Tempo Redescoberto em nós, pertencendo, assim, não mais apenas à França, mas a toda civilização
que empresta suas letras para traduzir a memória.

105
Intermitências 1

Testemunho

Contrariando
Proust
Viridiana Simões Bueno

Contrariando Proust, vou ser imprudente e vou falar de mim e da minha experiência de ler Em busca do
tempo perdido, os sete volumes, em grupo, durante dois anos.
Sei que a minha visão de mim mergulhada nessa situação inesquecível não vai ser a mesma sobre mim
dos demais componentes do grupo e muito menos da experiência do grupo em si, que nem pretendo ser a
porta-voz.
E, contrariando mais uma vez Proust, desafiando o fato da nossa vida ser muito pouco cronológica, tantos
anacronismos interferindo na sequência, vou tentar contar a coisa cronologicamente.
Filha única, sozinha em casa das 8 às 18 horas, míope e com pouco fôlego e coordenação motora, nasci
inimiga das bolas, brincadeiras de correr e outras delícias. Os pais severos, silenciosos e com poucos amigos
me deram muitos e muitos livros e um cachorro. Assim, ler, significava viver aventuras, viagens, fantasias,
outras épocas, culturas, paisagens, …
Mais velha, passava as férias lendo. Depois de muitos anos um vizinho da minha idade, daquela época, me
contou que pensava que eu era muito arteira e era castigada com leituras intermináveis na rede da varanda da
minha casa.
Muito mais tarde, cursando Medicina e seus desdobramentos ao longo de 12 anos, submersa em livros
técnicos e artigos científicos, rodeada de colegas que não liam nada, não frequentavam museus, teatros, con-
certos ou balés, continuei sozinha nas minhas aventuras pelas artes com muito menos intensidade. Aventuras
estas tão importantes, segundo Proust, pela oportunidade de sair de si mesma e ver o mundo com os olhos de
outros.
Anos se passaram e com três filhos pequenos, sem cachorro ou árvores possíveis na Paulicéia de mais de
mil dentes, mudei para Itapetininga, sem nenhum conhecimento sobre a cidade, com exceção de dois amigos
muito prestativos que me auxiliaram nessa aventura, em 2011.
Fiquei bem perdida por aqui, como esperado ou desejado, travando conhecimentos superficiais com pes-
soas no comércio, nas reuniões de mães e professoras e com colegas de profissão.
Já em 2016, veio o convite para participar do grupo Leia Mulheres e depois, em 2017, na leitura do Proust
e, bendita surpresa, mais outros clubes também: Leia Clássicos, Clube do Livro, Clube de Poesia, Cineclube e
leitura de Guimarães Rosa.
As reuniões do Proust se davam na Oficina de Música, agora extinta e no imóvel, uma loja de bicicletas, e
éramos um grupo de pessoas encantadas com o desafio de ler Proust.
Sim, nós assamos madelleines e tomamos chá de tília. Confeccionamos uma memória involuntária, que se
preparada a contento, a massa da madelleine tem seus segredos, evocará aqueles dias das reuniões.

106
Revista brasileira de estudos proustianos - 2021

Para uma leitora solitária como eu, que tinha tido a inesquecível experiência de ler e discutir livros com
alguns poucos amigos na adolescência e, mais tarde, com meu marido, que no auge do enamoramento lemos
Fernando Pessoa juntos, foi simplesmente maravilhoso.
Várias pessoas, se reunindo mês a mês, incansavelmente por 2 anos e trocando impressões sobre Em Busca
do Tempo Perdido, que sem dúvida alguma para mim, uma das mais surpreendentes, sensíveis e arrebatadoras
obras já escritas, parecerá para alguns, um fenômeno inusitado.
A cada pedaço lido, como que eu fazendo parte daqueles cômodos e notando junto com o narrador as
lembranças que se perderam com o passar do tempo, seja nas badaladas de alguma torre, da algaravia dos
vendedores ambulantes e outros ruídos da rua ouvidos da cama enquanto a tosse me dominava ou aquela flor
naquele canteiro naquele dia longínquo. E, no meio desse sonho, naqueles parágrafos quilométricos, a descri-
ção minuciosa de uma obra musical ou de uma pintura ou das cúspides da forminha de assar madelleines ou
então a observação sutilmente mordaz da xenofobia e antissemitismo da elite, das pseudo-glórias militares,
das amantes luxuosas dos paladinos da moral e a homossexualidade condenada e mantida em segredo. Um
livro para sempre.
Lembro das meninas em flor ao sol naquela praia inexistente, como se tivesse estado lá. Das casas, das suas
escadas e vista das janelas, dos móveis, dos jardins, dos saraus, das óperas, do hotel, dos jantares, dos bordéis.
Tentei, caro leitor, folhear a obra para que aflorassem, depois de 3 anos, mais lembranças e sensações da
leitura que se perderam e então, me peguei relendo, do começo.

Itapetininga, agosto de 2021

Viridiana Simões Bueno é médica pela Santa


Casa, pediatra e endocrinologista pediatrica
pelo Instituto da Criança da FMUSP. Mãe de
três filhos, amamentados ao seio até muito
depois que falavam e corriam. Amante da na-
tureza e das partes, mora numa casa cercada
de árvores, flores, cães, gatos e outros bichos
e é leitora contumaz, colecionadora de milha-
res de livros favoritos e a Recherche mudou
seu modo de ler e de ser. Atualmente trabalha
em Maternidade do SUS e atende em con-
sultório, incluindo especial atenção a jovens
adultos transgêneros.

107
Intermitências 1

Existe hora certa de ler


Proust?
Mariana Dal Chico

A literatura entrou tarde na minha vida, consequentemente, os clássicos também. Fui uma jovem que di-
vidia seu tempo livre entre brincar com os amigos e passar as férias na praia com as primas. Entre um mer-
gulho e outro, vovó e minha tia me apresentaram um mundo feito de palavras, um diferente daquele que as
professoras na escola me obrigavam a estudar e procurar significados que eu tinha dificuldade em encontrar e
depois provar o que o autor quis dizer quando escolheu a cor azul para a sua cortina que balançava ao vento.
Esse novo mundo dentro das páginas era recheado de ação, criaturas misteriosas, romance e uma boa dose
de sangue. As duas me presentearam com o mundo de Sidney Sheldon, Agatha Christie e Stephen King. Even-
tualmente também lemos juntas O morro dos ventos uivantes, O apanhador no campo de centeio e O crime do
padre Amaro. Mas os thrillers policiais dominavam nossas leituras de verão.
Fiz faculdade de fisioterapia e pós-graduação em medicina chinesa, anos em que as leituras de ficção eram
raras e eu demorava meses para finalizar um livro.
Em 2010, com mais tempo para ler por lazer, resolvi compartilhar minhas impressões de leitura na internet,
com a intenção de não apenas incentivar a literatura como uma opção de diversão, mas também para desco-
brir novos gêneros, títulos e autores.
Aos poucos, aprendi que o mundo da literatura é praticamente infinito e muito maior do que eu imagina-
va. O mundo editorial me encantou de tal forma que passei a estudar com afinco seu funcionamento e hoje
trabalho nele.
Com os anos, percebi que há grandes nomes da literatura em que muitos dos meus autores contemporâneos
favoritos tinham se inspirado em cânones que muitas pessoas que conheci nesse meio literário passaram a me
indicar com a certeza de que me deliciaria com a leitura.
Só então que os clássicos começaram a entrar na minha vida.
Proust foi um dos primeiros grandes nomes que ouvi e sempre brinquei que leria apenas na ocasião de mi-
nha aposentadoria, já que a fama de Em busca do tempo perdido é de uma leitura de fôlego, não apenas por ser
composta por sete livros, mas também por sua linguagem que exige atenção e disposição do leitor.
Nos últimos anos me apaixonei pela literatura francesa e chegou o momento em que é inevitável adiar a
leitura de Em busca do tempo perdido. Confesso que estava com bastante medo, afinal não tenho formação
acadêmica na área que me auxilie nas chaves de leitura, mas também acredito que se eu não tentar, nunca
saberei se vou gostar — E nada me impede de ir atrás de textos de apoio disponíveis, certo?!
E assim comecei minha leitura de No caminho de Swann em 2020. Fui surpreendida positivamente, fiquei
completamente apaixonada pela escrita do autor. A forma como ele faz suas descrições e transporta o leitor
para dentro do livro, é sublime.
Mas foi preciso persistir um pouco para alcançar o encantamento, inicialmente os longos parágrafos reple-
tos de divagações foram um grande desafio para a minha concentração. Proust costuma iniciar um parágrafo
focado em um assunto, depois se embrenha em outros diversos temas e, só então, fecha o parágrafo voltando
ao assunto inicial; e neste ponto eu mal me lembrava qual era.

108
Revista brasileira de estudos proustianos - 2021

Não foi fácil me acostumar com essa estrutura, muitas releituras do mesmo parágrafo foram feitas, mas
depois que compreendi a mecânica da composição, passei a a fazer as associações com os temas e os persona-
gens e agora só retorno para reler um trecho por puro prazer.
Ainda tenho uma longa caminhada com o autor, me falta a leitura de cinco livros e não tenho pressa. Gosto
de ler Proust quando tenho tempo para ele, quando sei que não serei interrompida, quando posso mergulhar
em suas páginas e viajar para a França por pelos menos três horas e voltar de lá encantada com as personagens,
pinturas e música.
Enquanto isso, compartilho minha caminhada no meu perfil do Instagram, tento desmistificar o peso da
obra, mostrar para os leitores que todos são capazes de ler Em Busca do Tempo Perdido e que qualquer um
pode se apaixonar pela escrita de Proust, sem a obrigatoriedade de estudá-la academicamente.

Mariana Del Chico é profissional pós-gradu-


ada da área da saúde, migrou para o merca-
do editorial definitivamente em 2012 e desde
então faz cursos livres (editoração / prepara-
ção) e estuda diariamente o mercado literário.
Escreve sobre livros na internet desde 2010,
avalia originais nacionais e internacionais para
grupos editoriais desde 2014, ano que fundou
a empresa Increasy Consultoria Literária com
suas sócias.
Contato: mariana.dalchico@increasy.com.br

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Intermitências 1

Sobre buscas
compartilhadas
que atraem
Mellory Ferraz Carrero

No conjunto, trata-se de uma caça ao tesouro,


em que o tesouro é o tempo,
e o lugar onde foi escondido é o passado.
Vladimir Nabokov

H á alguma atração em se perder algo valioso. Até mesmo o que não possui valor. Porém, toda ideia de
perda é um convite para a ausência de um bem em potencial. E o exercício da busca se faz ainda mais interes-
sante quando não sabemos o que se está procurando — pois: será que estou perdendo muito se eu não estiver
buscando também?
Propor uma leitura conjunta da série Em busca do tempo perdido, de Proust, não é uma tarefa fácil, mas
decerto é um convite para um diálogo em potencial. De qualquer forma, é interessante que seja despretensio-
sa. Se é que é justo não ter pretensão alguma ao ler Proust. Minto. Na realidade, é muito difícil não pretender
nada ao sequer pensar em ler seus livros. Com a promessa de um encontro iminente, a busca já nos convoca
à expectativa.
E o que o leitor pode encontrar ao ler Em busca do tempo perdido, logo em seu primeiro livro, No caminho
de Swann?
Em primeiro lugar: um mergulho em sensações reflexivas. Pois se tem algo do qual não dá para sair ileso é
do banho de chá a encharcar o passado. Encadeando lembranças, esse chá e essa madeleine nos proporcionam
um exercício de reconstituição. Mas por que devemos nos preocupar em pensar no passado? Para revê-lo. Ou
reavê-lo? Pois, como disse o crítico literário Malcolm Bradbury (1989, p. 121), “[Em busca do tempo perdido]
é mesmo uma história de perda, mas é também uma epopéia de redescoberta, de uma vida revirada, reexa-
minada e revivida.”
No entanto, a linguagem aqui é um caso memorável. Segundo o escritor e crítico literário Vladimir Na-
bokov (2015, p. 264), o estilo proustiano é enriquecido por metáforas, com tendência a um número sem fim
de orações em uma mesma frase e, também, uma fusão em uma mesma unidade entre descrições e diálogos.
Tudo isso se faz presente em uma prosa totalmente atrelada aos pensamentos do protagonista, o que propor-
ciona um contato bastante único com o íntimo de uma pessoa — ou ao menos do retrato dela, como a boa
literatura pode mimetizar.
Também há, claro, o tema do tempo — o que sempre nos comove, nos motiva, nos instiga, nos anseia. Me-
xer com o nosso tempo é algo, aí sim, de extremo valor. Buscá-lo requer a coragem de olhar para o passado,
porque é reavendo a vida que se passou que se compreende a que se passa no presente momento.
Além disso, a obra pode ser vista como um romance do conhecimento, como bem indicou o filósofo Jac-
ques Rancière:

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Revista brasileira de estudos proustianos - 2021

Proust escreve (…) um romance do século do conhecimento que queria explicar as


aparências e dissipar seus prestígios, mesmo pagando o preço de chegar a esta con-
clusão perturbadora: não existe verdade das aparências sensíveis. Só há verdade do
sensível ali onde ele não faz nada aparecer, ali onde ele é somente um barulho, um
choque, um sabor descolados de qualquer promessa de sentido, uma sensação que
remete unicamente a outra sensação. (2021, p. 44)

Nesse encadeamento de sensações, chegamos a reflexões universais e íntimas, entendendo que a imagem
de algo ou alguém pode nos ludibriar. O inestimável geralmente não está na superfície, é preciso um doce
mergulho.
Creio que estas são algumas das principais motivações que atraem um leitor do século XXI à leitura de uma
obra extensa e desafiadora, mas que recompensa a dedicação a cada longa frase lida (e relida). Ou, ao menos,
são algumas das que os leitores indicaram por meio de mensagens que recebi pela plataforma Literature-se,
criada em 2010 e que serve como um meio para o estímulo à leitura. No início deste ano de 2021, eu e minha
amiga Mariana Dal Chico (agente literária e também criadora de conteúdo literário na internet) decidimos
encarar a leitura da série juntas, dessa forma uma incentivaria a outra (o que de fato está acontecendo) e po-
deríamos, ao longo da experiência, trocar dúvidas, ideias e interpretações. Como ambas temos um canal de
diálogo com outros tantos leitores (no Youtube, no Instagram, no Twitter e em outras redes sociais), compar-
tilhamos com eles essa iniciativa, aproveitando para fazermos um convite a quem se interessasse no projeto.
Assim como ela se mantém enquanto uma companhia literária a me incentivar, proporcionando-me a pos-
sibilidade de conversar com outra leitora de uma obra que tanto estimula o exercício reflexivo, poder com-
partilhar também com mais pessoas tem sido bastante interessante. Isso porque já noto quão especial é poder
trilhar essa busca sem me sentir sozinha, sabendo que incentivar essa experiência tão única (e tão particular!)
é uma tarefa desafiadora em uma época de modernidades — incluo o tempo — líquidas.

Bibliografia

BRADBURY, Malcolm. O mundo moderno: dez grandes escritores. São Paulo: Companhia das letras, 1989.

NABOKOV, Vladimir. Lições de literatura. São Paulo: Três Estrelas, 2015.

PROUST, Marcel. No caminho de Swann. São Paulo: Globo, 2006.

RANCIÈRE, Jacques. As margens da ficção. São Paulo: Editora 34, 2021.

Mellory Ferraz Carrero é pesquisadora,


crítica literária e atua há onze anos no in-
centivo à leitura por meio do canal no You-
Tube chamado Literature-se.
Formou-se em Estudos Literários pela
Universidade Estadual de Campinas (Uni-
camp), com pesquisa sobre o fluxo da
consciência na obra de Virginia Woolf.

111
Intermitências 1

Primeiro encontro
com Proust
Giovanna Thomaz

A primeira vez que encontrei Proust foi em uma sala de aula em Paris, cheia de estudantes cansados e
sonolentos. O professor lia em voz alta para a turma o famoso trecho da madeleine de Proust. Lembro de
sentir o coração quentinho pela primeira vez em muito tempo naquele frio e longo inverno francês. No ano
que seguiria, esse mesmo professor leria com a turma as principais passagens da obra - e eu me apaixonaria
perdidamente pelos textos.
Dois anos depois, de volta ao Brasil e muito orgulhosa do meu diploma francês, eu sentiria muita saudade
de três coisas que faziam parte da minha rotina durante o tempo que estudei na França: a segurança das ruas
da capital francesa; os maravilhosos queijos e vinhos comprados por menos de três euros; e, sobretudo, as
aulas de literatura francesa clássica onde líamos Proust.
Ao longo do curso que se estendeu por um semestre, aprendemos que o pai de Marcel Proust era médico —
um excelente médico que se dedicava com paixão ao ofício de ajudar e cuidar das pessoas. Orgulhoso de seu
pai, como eu do meu diploma, Proust decidiu fazer a mesma coisa com a literatura: salvar vidas.
Ao fazer a leitura dos sete volumes da coleção “Em busca do tempo perdido”, nos confrontamos com os
mais variados temas: o amor, as relações interpessoais, o passar do tempo, as memórias. Descobrimos tam-
bém que Proust não nos oferecia em suas páginas apenas uma narrativa - mas uma mistura de diversas narra-
tivas, sobre pessoas, lugares e memórias. Extremamente rico, da forma ao conteúdo, o livro emociona ainda
mais quando chega o momento em que entendemos a força da mensagem da obra, escondida no seu próprio
título o tempo todo.
Ao longo da leitura dos livros, acompanhamos a trajetória do narrador (muito provavelmente o próprio
Proust) e suas divagações sobre o sucesso social, o amor e a arte, assim como o papel que eles ocupam em
nossas vidas. Enquanto o narrador reflete sobre cada um desses temas, o tempo passa, ele chega ao final de
sua vida e olha para trás. Nenhum deles encerra em si o verdadeiro sentido da existência. O seu verdadeiro
sentido está em aprender a olhar e sentir as pequenas coisas, como o gosto de uma madeleine. Somente assim
podemos parar de perder tempo e começar a apreciar a existência em si, enquanto há tempo.
Junto com o narrador, descobrimos então que o segredo está em aprendermos a ser mais sensíveis e olhar
para as coisas que nos entornam todos os dias de maneira diferente, com generosidade. Está em conseguir
enxergar para além do hábito e reencontrar toda a beleza e a glória natural dos pequenos momentos. Está em
conseguir sentir prazer com coisas simples, como um banho gelado num dia de calor, o cheiro de café recém
passado, a sensação de terminar um livro incrível.
E como aprendemos a fazer isso? Não tenho como explicar - para entender a mensagem do autor, em toda a
sua força e eminência, é preciso ler os sete volumes com muito carinho e atenção. Não tem jeito. Para entender
o sentido da vida, você precisa ler Proust.

Giovanna Thomaz é professora de língua e literatura francesas. Atua com o ensino da língua
através do site Gigi dá aulas e com o incentivo à leitura por meio da página de Instagram Gigi
Lê Livros. É formada em Letras pela UFRGS e em Ciências da Linguagem pela Sorbonne,
onde atualmente também é mestranda.

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Revista brasileira de estudos proustianos - 2021

Lendo Proust
no “Clube de Leitura
Paris de Histórias”
Natalia Bravo
Priscila Calado

O “Clube de Leitura Paris de Histórias” nasceu em 29 de fevereiro de 2020, a partir de um sonho da ideali-
zadora do projeto “Paris de Histórias” (que começou com percursos históricos realizados em Paris, mas que
com a pandemia decidiu proporcionar experiências de conhecimento por meio de cursos livres e online),
Natalia Bravo, de promover a leitura de obras literárias que retratassem a França, Paris e suas histórias, não
apenas de autores franceses. Após a historiadora Natalia decidir criar um clube de leitura, ela procurou al-
guém da área de literatura para acompanhá-la na mediação, então o encontro com a professora de literatura
Priscila se deu por meio do Instagram e de uma amiga em comum.
O “Clube de Leitura Paris de Histórias” foi inaugurado com a leitura de Paris é uma festa, de Ernest
Hemingway, publicado postumamente em 1964 e situado entre a crônica e o romance, livro que retrata a
“geração perdida”, apelido dado por Gertrude Stein e reuniu interessados em ler e debater diversas obras.
Foi muito interessante mergulhar no pós-Primeira Guerra Mundial e no clima literário e artístico da época.
Durante o ano de 2020, também lemos obras de Gertrude Stein, Simone de Beauvoir, Albert Camus, Zelda
Fitzgerald, Colette, Annie Ernaux, Leïla Slimani e Janet Flanner.
Mas eis que ao pensar as escolhas para o calendário de leituras de
2021 do Clube, percebemos que faltava Proust e sua experiência
com a França de antes dos anos 20.
Não se pode desconsiderar a importância de um autor como
Proust na ficção francesa, ainda mais no seu aniversário de 150
anos. Muitos integrantes do Clube solicitavam que lêssemos jun-
tos Em busca do tempo perdido, mas achamos ousado demais in-
cluir a leitura dos 7 volumes, então decidimos propor a leitura
de Salões de Paris, livro que reúne crônicas de Proust que saíram
nos jornais antes de ele publicar o seu fenomenal À la recherche
du temps perdu.
Em Salões de Paris encontramos 22 crônicas curtas escritas
para a imprensa francesa (Le Fígaro, Le Gaulois, Le Mensuel, Re-
vue d’Art Dramatique, Revue Blanche), em que Proust retrata
saraus literários e musicais da alta sociedade francesa, comenta
atualidades e até mesmo o noticiário policial. A produção cro-
nística de Marcel Proust nos revela uma espécie de ensaio para o
que se tornaria posteriormente a obra de sete volumes. A escrita Ilustração de Gilles Diniz.

113
Intermitências 1

é semelhante, há lirismo, o relato dos costumes e as críticas à arte e à literatura estão presentes, a aristocracia
e pessoas da alta sociedade da época (nova nobreza) e as bajulações também. Proust comenta até casos de
polícia e inclui a memória, seu tema favorito, como no caso de “Sentimentos filiais de um parricida”, belíssima
crônica sobre seu colega de jantares parisienses que se tornou um assassino e suicida. Com espírito jornalista,
Proust retrata uma sociedade com espírito decadente e esnobe. Inclusive, algumas crônicas foram publicadas
sob pseudônimo.
Salões de Paris também traz crônicas adoráveis sobre sua infância, igrejas de vilarejos e a relação que es-
tabelece com os livros e a leitura, assuntos retomados em “Em busca do tempo perdido”. Depois da leitura,
compreendemos que a crônica não é um gênero menor, pois foi por meio dela e de um relato aparentemente
mundano e superficial, com confidências, que Proust forjou sua escrita, elaborou sua linguagem e exercitou
seu olhar irônico e crítico a respeito da sociedade parisiense, demonstrando seu conhecimento de mundo e
das artes. Por fim, a experiência de ler Proust e discutir com pessoas queridas que participam do “Clube de
Leitura Paris de Histórias” foi muito agradável e reveladora do espírito parisiense da época. Esperamos um dia
poder ler mais de Proust e debater sua obra.

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Revista brasileira de estudos proustianos - 2021

115
Intermitências 1

Atividades

Livros John Ruskin. Aqui, ela analisa as várias transforma-


ções que as leituras de Proust sobre Ruskin sofreram
La chambre de Léonie ao longo do tempo, de seus primeiros anos de apren-
Hélène Waysbord dizagem até a elaboração de seu romance.
Le Vistemboir
128 p. Proust 150
Coletivo
Société des Amis de Marcel Proust et des
amis de Combray
Hélène Waysbord é presidente da Casa de Izieu, o XX p.
memorial do extermínio de crianças judias da Fran-
ça. Após a eclosão da pandemia de Covid na Euro-
pa, deixou Paris e se confinou em sua casa de campo Em homenagem aos 150 anos de Proust, 150 só-
na Normandia. Lá, acompanha uma série de repor- cios da Sociedade dos Amigos de Marcel Proust, em
tagens da rádio France Culture a respeito da gover- Illiers-Combray, selecionaram uma passagem da Re-
nanta de Proust, Céleste Albaret, e decide reler a Re- cherche e refletiram a respeito de sua relevância. Nes-
cherche. Em La chambre de Léonie, Waysbord reúne se vasto panorama, o leitor encontrará considerações
suas reflexões sobre as raízes da enorme atração que a respeito de quase todos os principais temas do ro-
o romance de Proust exerce sobre seus leitores. mance proustiano. Trata-se, nas palavras de seus au-
tores, de um universo de 150 caminhos possíveis de
introdução à leitura de Proust.
Au fil de l’eau, au fil des
textes: littérature et pêche à
la ligne Marcel Proust, la vie, le
Gilles Castagnès temps
UGA Michel Erman
290 p. Actes Sud
132 p.

Não é conversa de pescador. O pesquisador Gilles


Castagnès divide o tempo entre suas aulas de litera- Michel Erman, professor da Universidade de Borgo-
tura francesa na Universidade de Sogang, na Coreia nha, é autor de uma longa lista de obras sobre Proust,
do Sul, e seu grande hobby — a pesca. Decidiu então dentre elas o divertido Les 100 Mots de Proust, de
conciliar trabalho e diversão debruçando-se sobre o 2013, em que elenca e define as cem palavras que en-
tema da haliêutica e o conceito da zoopoética. Para contramos com maior frequência na Recherche. Nes-
isso, vai do antigo poema de Ovídio ao romance de se novo ensaio, propõe alargar a noção consagrada de
Proust, com as alusões aos jovens pescadores do Vi- que o herói do romance de Proust está em busca so-
vonne, as metáforas da vida marinha de Balbec e a mente da realização de seu talento artístico. Mais que
grande alegoria do recife de corais na ópera de Paris. vocação ou um “belo livro”, como diz Erman, Marcel
partiria em busca “da própria vida”, tornando-se um
Voix entrelacées de Proust et filósofo da existência.
de Ruskin
Cynthia Gamble
Classiques Garnier
458 p.

A biblioteca proustiana da Garnier chega a seu volu-


me de número 39 com este livro de Cynthia Gamble,
professora emérita da Universidade de Exeter e gran-
de nome dos estudos sobre o crítico de arte inglês

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Revista brasileira de estudos proustianos - 2021

À la recherche du Paris de Proustonomics: cent ans


Marcel Proust avec Marcel Proust
Henri Raczymow Nicolas Ragonneau
Parigramme Temps qu’il fait
136 p. 312 p.

Paris sera toujours Paris. Esta edição bilíngue em Novamente Ragonneau. O editor do site Proustono-
francês e inglês contém uma centena de fotografias mics também publica este ano um livro de mesmo
e documentos sobre a Paris que o leitor encontra no nome, no qual analisa um século de história editorial
romance de Proust. Trata-se de uma ilustrativa carto- da obra de Proust. O interesse desse ensaio é melhor
grafia da arquitetura, do tempo e dos modos de vida compreender como se comportaram as vendas da
que alimentaram o imaginário do romancista. Recherche a partir da morte de seu autor.

Le Proustographe: Proust Un amour de Proust: Alfred


et À la recherche du temps Agostinelli (1888-1914)
Jean-Marc Quaranta
perdu en infographie
Nicolas Ragonneau e Nicolas Bouquins
Beaujouan 464 p.
Denoël
192 p. Produto de sua tese de livre-docência, Jean-Marc Qua-
Uma fortuna equivalente a seis milhões de euros e ranta lança agora a primeira biografia sobre esse im-
quase 24 mil euros gastos com medicamentos ao lon- portante personagem da vida de Proust: o motorista e
go do ano de 1919. Informações quantitativas como aviador Alfred Agostinelli, um dos vários modelos para
essas foram reunidas por Nicolas Ragonneau, editor a prisioneira Albertine. Conhecer a história de Agosti-
do site Proustonomics, nesse belo almanaque ou en- nelli é também conhecer melhor como Proust amava.
ciclopédia visual sobre Marcel Proust e sua obra. A Foi Proust quem pagou pelo curso de aviação de Agos-
elaboração de mais de cem infográficos é fruto do tinelli, que se inscreveu em uma academia de voo com
trabalho de Nicolas Beaujouan e seu prefácio é assi- o codinome Marcel Swann. Ele morreu pouco tempo
nado por Thierry Laget. depois em trágico acidente de avião sobre o mediterrâ-
neo. Foi enterrado no cemitério da Caucade, em Nice.
A l’ombre des jeunes filles Por vários anos, seu túmulo permaneceu abandonado,
en fleurs: Autour de Mme sem sequer o nome de sua família. Foi Jean-Marc Qua-
Swann II ranta justamente quem interveio para evitar sua demo-
Stéphane Heuet lição e conservá-lo como objeto de interesse cultural.
Delcourt
48 p.
Le temps perdu
Marcel Proust
Vencedor do prêmio Hervé Deluen em 2020, o car- Bouquins
tunista Stéphane Heuet segue publicando sua adapta- 1088 p.
ção da Recherche de Proust para os quadrinhos. Dessa
vez, leva às estantes a primeira parte de À sombra das
moças em flor, com cenas como a penetração do nar-
Depois da publicação dos Soixante-quinze feuillets, um
rador no lar dos Swann, a degradação de seu amor
novo rascunho inédito da Recherche de Proust vem a
por Gilberte, o encontro com o escritor Bergotte e a
público. Editado por Jean-Marc Quaranta, Le temps
decepcionante interpretação de Fedra por Berma.
perdu precede a redação de No caminho de Swann.
Proust tentara publicá-lo em inúmeras editoras. Pediu
o auxílio de Louis de Robert e de Lucien Daudet para

117
Intermitências 1

convencer Ollendorf, Fasquelle, a Mercure de France o início da redação da Recherche. Sabia-se de sua exis-
e, finalmente, a Nouvelle Revue Française. Esforço tência, mas passaram décadas guardados em uma pas-
vão. Sabe-se também que outros nomes importantes ta cor bordô, nas gavetas do crítico Bernard de Fallois,
do modernismo francês trabalharam com Proust na primeiro editor de Jean Santeuil e Contre Sainte-Beuve.
revisão desses escritos, dentre eles Jean Cocteau. Auteil (Combray) surge dividida entre um caminho de
Méséglise e um caminho de Villebon (Guermantes).
Proust amoureux: vie A angústia do beijo maternal está esboçada, mas é o
sexuelle, vie sentimentale, próprio herói quem por vezes entrega, sem o intermé-
vie spirituelle dio da governanta Félicie (Françoise), um suplicante
Patrick Mimouni bilhete à avó. Em outra versão, a mãe sobe as escadas,
Grasset mas não cede aos apelos do filho. Enraivecida, ordena
480 p. à criança nervosa que apenas durma. Ainda não há a
Outro volume dedicado ao universo amoroso de leitura de François le Champi.
Proust. O cineasta Patrick Mimouni reflete aqui não
somente sobre um único objeto amoroso do autor
da Recherche mas, sobretudo, a respeito da própria Relire, repenser Proust:
noção proustiana do amor. Atualiza, nesse sentido, leçons tirées d’une nouvelle
trabalhos hoje já obsoletos, como o famoso estu- traduction japonaise de la
Recherche
do de Henri Bonnet. Outro trunfo de Mimouni são
Kazuyoshi Yoshikawa
seus achados sobre o secreto misticismo judaico de Collège de France
Proust, leitor ocasional do Zohar. 100 p.
O pesquisador Kazuyoshi Yoshikawa dava somen-
À la recherche de Proust te início a uma série de conferências no Collège de
Saul Friedländer
France sobre a nova tradução de Proust para o japo-
Seuil
184 p. nês quando eclodiu sobre a Europa a pandemia de
Covid. Com a proibição de aglomerações, a solução
encontrada foi imprimir o curso suspenso na forma
desse livro, que traz um prefácio assinado por Antoi-
Este ensaio foi publicado em 2020 nos Estados Unidos, ne Compagnon. Segundo Yoshikawa, as traduções de
mas, somente agora, ganha tradução francesa. Eleito Proust que antecederam a sua no Japão eram repletas
um dos melhores títulos do ano pelos editores do Times de imprecisões de sentido. O caso mais pitoresco tal-
Literary Supplement, promove uma leitura da Recher- vez seja o da palavra cabaret, que vinha sendo tradu-
che à moda dos estudos culturais em voga na Univer- zida com o termo inglês night-club. Mas o cabaret de
sidade da California. Tenta discernir no romance uma Proust nada tem de bordel. Como aponta a Larousse
“camada profunda de autenticidade” e de “identidade”, de 1928, tratava-se de um tipo de restaurante elegan-
inflando zonas de contato entre o narrador e o autor. te e da moda. Na tradução de Yoshikawa, cabaret é
então preservado e tão somente convertido para o
Les soixante-quinze feuillets silabário fonético katakana.
et autres manuscrits inédits
Marcel Proust
Gallimard
384 p.

Nathalie Mauriac Dyer, líder da Equipe Proust da Es-


cola Normal Superior de Paris, transcreveu e editou
esse importante conjunto de rascunhos que precedem

118
Revista brasileira de estudos proustianos - 2021

Proust sous les tropiques Céleste et Marcel: un amour


Etienne Sauthier de Proust
Septentrion Jocelyne Sauvard
410 p. Éditions du Rocher
336 p.

Da lavra do historiador Etienne Sauthier, este é o Ainda Céleste Albaret, grande personagem das come-
primeiro livro sobre a ampla circulação da Recherche morações dos 150 anos de Marcel Proust. Trata-se aqui,
pela cultura brasileira. Mais que uma leitura da ima- não de uma biografia, mas, sim, de um longo romance
gem de Proust na imprensa local, Sauthier buscou cuja matéria de referência são os diários de Céleste e
uma interpretação global para a presença do roman- seus mil e cem dias de trabalho ao lado de Proust. Os
ce proustiano na construção da identidade moderna relatos dos bombardeios a Paris e do alastramento da
desse país. Como diz Sauthier, o objetivo do livro não gripe espanhola conferem ao enunciado uma dramati-
foi apenas verificar “em que medida a obra de Proust cidade própria à literatura. A sábia tática de Sauvard é o
se comunica com o público brasileiro”, mas também emprego do discurso indireto-livre. A autora interpreta
avaliar “como ela mesma pode se ler e se definir nessa a correspondência, os diários e os depoimentos reais de
leitura”. Entre poemas, romances, traduções, estudos Céleste Albaret. Em seguida, os transforma em dados
críticos e clubes de leitura, não é exagero dizer que o da própria consciência da personagem, transmitidos
Brasil criou um Proust que lhe é próprio. sob a forma de um monólogo interior.

À la recherche de Céleste Le cercle de Marcel Proust


Albaret Jean-Yves Tadié
Laure Hillerin Honoré Champion
Flammarion 258 p.
496 p.

Laure Hillerin, experimentada biógrafa de personali- O grande crítico proustiano havia sugerido, há al-
dades da aristocracia decadente da Belle Époque, tem guns anos, que nos esquecêssemos um pouco de
aqui a ambição de aprofundar o discurso da humilde Proust. Mas nem mesmo ele conseguiu resistir à ten-
Céleste e de realçar a função que ela desempenhou tação. Chega a seu terceiro volume Le cercle de Mar-
na vida de Proust. Em À la recherche de Céleste Alba- cel Proust — série de estudos sobre a vida social de
ret, torna-a protagonista de uma espécie de pequena Proust organizada por Tadié desde 2016 na Funda-
narrativa. A partir de sua correspondência, a autora ção Singer-Polignac. Destaque para o estudo de Pyra
logra delinear e intuir traços da psicologia profunda Wise sobre Henri Rochat, o último prisioneiro de
dessa heroína da vida de Proust. Merece destaque a Proust, que teria vindo para o Brasil e aqui deixado
interpretação da figura de Céleste como mais um dos os primeiros volumes da Recherche de que temos no-
vários cativos que Proust cultivou ao seu redor. A go- tícia em nosso país.
vernanta de enorme coração já nos era bastante co-
nhecida, mas não sua faceta de “musa e inspiradora” Proust et la Société
do grande autor. Mais que Céleste Albaret, o livro de Jean-Yves Tadié
Hillerin nos apresenta uma Céleste “Albaretine”. Gallimard
XX p.

O mais recente e aguardado estudo da lavra de Jean-


-Yves Tadié. Nesse volume, o grande crítico dos estu-

119
Intermitências 1

dos proustianos reflete sobre a representação da alta


burguesia Belle Époque na Em busca do tempo perdido
Artigos
e lembra que nenhum dos grandes temas políticos da
Criação, usos da memória e representações de cidade
virada do século escapa ao olhar do narrador proustia-
nas narrativas de Carlos Fernando, Federico Fellini e
no: do Caso Dreyfus ao Genocídio Armênio, da Revo-
Marcel Proust - Amilcar Almeida Bezerra e Luiz Clau-
lução Russa à Primeira Grande Guerra. O mesmo vale
dio Ribeiro Sales Fonsêca-[https://portalintercom.org.
para as inovações tecnológicas da época, com a fan-
br/anais/nacional2020/lista_area_DT6-CU.htm]
tasmagórica ligação telefônica à avó, o encantador en-
contro com Albertine sobre uma bicicleta em Balbec
Proust contra a Degradação: gênese, infortúnios e
ou mesmo a contemplação entusiasmada dos primei-
redenção de um livro — Luciana Persice Nogueira
ros aeroplanos, que rasgam os céus durante a matinê
-Pretti. Disponível em <https://www.revistas.usp.br/
Verdurin na Raspelière. Trata-se de uma tentativa de
manuscritica/article/view/180885>
ancorar o romance na história, concebendo-o como a
comédia humana do século passado.
Ó mon petit Marcel: quatro poemas brasileiros so-
bre Proust — Fillipe Mauro - Disponível em <ht-
Acordar para Proust tps://www.revistajangada.ufv.br/Jangada/article/
Paulo Gustavo view/353>
CEPE
RECIAL - v. 12, n. 19 (2021): Dossier: Proust en otras
literaturas. A 150 años de su nacimiento - Disponível
em <https://revistas.unc.edu.ar/index.php/recial/is-
Poeta e ensaísta pernambucano, Paulo Gustavo pu- sue/view/2323/456>
blica seu segundo livro sobre Marcel Proust. Desde A
tartaruga e a borboleta, se lança à tarefa de amealhar Como o Brasil do século XX se leu em Proust — Etien-
novos leitores da Busca do tempo perdido. Volume de ne Sauthier Disponível em <https://oglobo.globo.
linguagem acessível, este livro introduz temas chave com/cultura/livros/como-brasil-do-inicio-do-secu-
do romance, como o amor e o ciúme, a memória e o lo-xx-se-leu-em-proust-25101236>
hábito, os nomes e a linguagem.
Proust sous les tropiques. Diffusion, réceptions, appro-
Música priations et traduction de Marcel Proust au Brésil
(1913-1960) — Etienne Sauthier; François Weigel
Proust, le concert retrouvé
Disponível em <https://www.revistajangada.ufv.br/
Tanguy de Williencourt
e Théotime Langlois de Jangada/article/view/354>
Swarte
Harmonia Mundi
1h2min
Dissertações e Teses
Début de Siècle: Vida e História em A montanha má-
Para os melômanos. O Museu da Música e a Orques- gica, Mrs. Dalloway e O tempo recuperado — Jonas
tra Filarmônica de Paris convidaram o pianista Tan- Thobias da Silva Dias Martini (Dissertação de Me-
guy de Williencourt e o violinista Théotime Langlois trado — PUC-Rio). Disponível em <https://www.
de Swarte para interpretar peças que habitam o rico maxwell.vrac.pucrio.br/colecao.php?strSecao=resul-
imaginário musical da Recherche de Proust. No pro- tado&nrSeq=52632@2>
grama, o ouvinte encontrará a Sonata n. 1, op. 13,
para piano e violino, de Gabriel Fauré (importante O meio é a memória: Experiência e relato em Marcel
peça para a elaboração da fictícia sonata de Vinteuil) Proust, Federico Fellini e Carlos Fernando - Luiz Ri-
e À Clóris, de Reynaldo Hahn. Disponível nas plata- beiro (TCC - UFPE) - Disponível em
formas digitais, como o Spotify.

120
Revista brasileira de estudos proustianos - 2021

A gênese da noção de “Eu dividido” em textos de Mar- proustpourtous.over-blog.com/


cel Proust — Bruno Castro de Oliveira (Dissertação librairielefaillerblog.fr/un-amour-de-proust
de Mestrado - UNESP) - Disponível em lamadeleinedeproust.fr/blogs/news

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Proust e o Brasil, com Etienne Sauthier https://www.youtube.com/watch?v=uxx3iOtbQew


<https://www.youtube.com/watch?v=btsGYBl3uGs> (Marguerite Duras)

https://www.youtube.com/watch?v=GHR12w-
-OmwM (Philippe Sollers)
Lista de associações e
Nathalie Serraute – <https://www.youtube.com/
instituições dedicadas watch?v=oy4kZ2WBY2M>
a Proust (exclusiva- Francis Ponge – <https://www.youtube.com/
mente ou não) watch?v=vMKz4saGXv0>

Michel Butor – <https://www.youtube.com/


watch?v=tlK0CeHO-ow>
ITEM — Institut des textes et manuscrits modernes
Publicação : Bulletin d’informations proustiennes Louis-René des Forêts – <https://www.youtube.
www.item.ens.fr/proust/ com/watch?v=wE8Inziyj5k>

Société des Amis de Marcel Proust et des Amis de Entre os vários do Collège de France:
Combray
https://www.college-de-france.fr/site/antoine-com-
Publicação : Bulletin Marcel Proust
pagnon/course-2013-01-08-16h30.htm (« Proust
https://www.amisdeproust.fr/fr/presentation-fr
en 1913 »)
Blogs e links que tratam de Proust http s : / / w w w. youtu b e . c om / w at ch ? v = Pc 2 w -
pontovirgulatravessao.blogspot.com/p/nosso-ami- 9DR4w0&t=83s (« Deleuze sous les signes de
go-marcel-proust.html Proust »)
proustonomics.com/
facebook.com/proustbrasil/

121
Intermitências 1

122
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123
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80 para Edições Cândido
em dezembro de 2021.

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