Escolar Documentos
Profissional Documentos
Cultura Documentos
Bruno Maçães é presentemente Conselheiro Sénior da Flint Global, em Londres, onde aconselha
companhias sobre política internacional, e Senior Fellow da Universidade de Renmin, em Beijing, e
no Hudson Institute, em Washington. Secretário de Estado dos Assuntos Europeus de Portugal entre
2013 e 2015, foi condecorado pela Espanha e pela Roménia pelos seus serviços aos respetivos
governos. É doutorado em Ciência Política pela Universidade de Harvard e foi professor investigador
no American Enterprise Institute, em Washington, e no Carnegie, em Bruxelas. Tem escrito para os
periódicos Financial Times, Politico, Guardian e Foreign Affairs e aparece regularmente na CNN, na
BBC, na Bloomberg, na CCTV e na Al Jazeera.
Título: The Dawn of Eurasia – On the Trail of the New World Order
1.ª edição em papel: outubro de 2018
Autor: Bruno Maçães
Tradução: Pedro Vidal (João Quina Edições)
Revisão: João Assis Gomes
Capa: Ana Monteiro
ISBN: 978-989-644-547-8
Para a Senhora das Sugestões
«A brisa da alvorada tem segredos para te contar.»
Rumi
PREFÁCIO
N
o final de 2015, parti para aquilo que iria ser uma viagem de seis
meses ao longo das fronteiras históricas e culturais entre a Europa e a
Ásia. Durante os dois anos anteriores, o meu trabalho no Governo
português, onde era secretário de Estado para os Assuntos Europeus,
empurrara-me constantemente para essas fronteiras, por vezes por
predileção pessoal, a maior parte delas por necessidade. Isso deverá
significar algo importante quando acontece ao país localizado na ponta mais
ocidental da Europa. Ao ver que tantas das questões mais urgentes que
afetavam a União Europeia tinham que ver com as interações entre os dois
continentes e como a gestão dessas interações exigia uma perspetiva
alargada, comecei a suspeitar de que a História estava a levar-nos cada vez
mais para um mundo em que a fronteira entre a Europa e a Ásia viria a
desaparecer. As livrarias estavam cheias de livros acerca da Rússia
(geralmente, sobre os seus perigos), da China (geralmente, acerca dos seus
milagres) e da União Europeia (geralmente, acerca das suas crises), mas
consideravam-nas de forma isolada. Decidi investigar o que se poderia
aprender acerca da Rússia, da China e da Europa se fossem consideradas
como fazendo parte do mesmo sistema. Existia uma palavra óbvia para
descrever este sistema: Eurásia. É uma palavra relativamente nova, usada
pela primeira vez sob forma nominal pelo geólogo austríaco Eduard Suess,
em 1885. A noção de que a Europa e a Ásia deveriam ser pensadas como
uma única totalidade tem sido a área exclusiva de geólogos e biólogos,
confrontando o facto de que uma fronteira entre os dois continentes
constitui um obstáculo para a compreensão científica. Como o grande
explorador e cientista alemão Alexander van Humboldt disse em 1843, nas
ciências naturais «é preciso começar pela conetividade das grandes divisões
do Velho Mundo1». Mas porquê apenas nas ciências naturais? Porque não
na história, na política e na arte? Foi assim que a ideia deste livro surgiu
pela primeira vez.
A minha viagem eurasiática iria seguir duas regras simples. Primeira,
não seriam permitidos voos, mesmo que fosse para ligar dois pontos ou
suplantar uma dificuldade logística. Segunda, não existiriam planos para lá
da semana corrente. Não fazia ideia do tempo que a viagem iria demorar. A
rota e o calendário estavam ainda por determinar quando aterrei em Astracã,
na Rússia, a 15 de dezembro. Escolhi Astracã como ponto de partida por ser
essa cidade o portão de acesso histórico ao Cáucaso, que estava no topo da
minha lista de áreas de transição, onde a forma do futuro supercontinente
poderia estar já prefigurada. Astracã, outrora uma poderosa cidade, agora
quase esquecida pelo resto do mundo, era, em mais do que um sentido, um
excelente início. Ainda não decidira acerca do fim.
Durante o primeiro mês, errei pelo Cáucaso, acabando por atravessar a
cordilheira montanhosa através da tradicional estrada militar georgiana. Da
Geórgia viajei até à Arménia e depois até ao Irão, antes de virar para
ocidente, para a costa turca do mar Negro. De Trebizonda dirigi-me a
oriente, diretamente para Bacu, no Azerbaijão, onde apanhei um navio de
carga, através do Cáspio e até ao segmento da Ásia Central da minha
viagem. Merv, Bucara, Termez, Samarcanda. Tendo chegado a Andijan, no
vale de Fergana, já próximo da fronteira chinesa, tive a certeza de ter
deixado a Europa para trás, mas então quis ver como esta mesma rota de
transição pareceria vista do outro lado. Dirigi-me a norte, ao Cazaquistão e
à Sibéria, viajando até Vladivostoque, atravessando o lago Baical e
entrando na China no seu ponto mais oriental. Inverti então a minha direção
para a Ásia Central até à nova cidade de referência de Khorgas, que olhara à
distância quando me encontrava, dois ou três meses antes, na fronteira do
Cazaquistão. Ao todo, a viagem demorara exatamente seis meses. A partir
do momento em que entrei a bordo do avião de Ili para Beijing, a 15 de
junho de 2016, a primeira regra ditava que, apesar de continuar a viajar
enquanto efetuava pesquisas para o livro, a viagem eurasiática terminara
efetivamente. De Astracã até Khorgas pela rota mais longa possível.
Vivemos uma era dourada da viagem. A recente tecnologia, como os
mapas e os tradutores digitais, juntamente com toda a informação
constantemente atualizada da internet, elimina quase todas as fontes de
transtornos ou perigo, mas, ao mesmo tempo, o impacto destruidor do
turismo continua limitado aos mesmo locais populares, deixando uma
grande parte do mundo ou como já era há séculos, ou como se tornou em
função da modernização, e ambos os estados são igualmente genuínos e
importantes. Viajar nunca foi tão fácil, mas a literatura de viagem
provavelmente não sobreviverá num mundo em que qualquer pessoa pode
estar em qualquer ponto do mapa em menos de 24 horas. A maioria dos
diários de viagens tentou contornar este problema focando-se na forma e
constituindo o seu próprio género de ficção. Eu faço algo de diferente neste
livro. Uso a viagem para fornecer uma injeção de realidade nas análises
políticas, económicas e históricas.
Em janeiro de 2017 fui viver para Londres, onde seria conselheiro de
empresas de fundos de investimento e tecnológicas para a estratégia
política. O mundo em que operam é o novo mundo eurasiático descrito
neste livro. Os fundos de investimento que tentam lucrar com fusões e
aquisições estão a monitorizar ativamente o influxo de capital chinês na
Europa, mas sabem que isso funciona de acordo com regras muito
diferentes daquelas a que estão habituados e querem compreender a
dinâmica política pela qual dois sistemas de regras diferentes se confrontam
e combinam. As empresas tecnológicas estão a tentar ativamente entrar no
mercado russo, para o qual estão particularmente apetrechadas, mas fazê-lo
numa altura de conflito geopolítico entre o Ocidente e a Rússia significa
que cada movimento tem que ser visto de duas perspetivas opostas ao
mesmo tempo e, por vezes, estas duas perspetivas criam um infindável jogo
de espelhos. Existe a necessidade óbvia de pensar globalmente, mas as
diferenças são mais interessantes do que as semelhanças. Os homens de
negócios sabem isto melhor do que os políticos, os escritores ou os artistas.
Um dos principais objetivos deste livro é mostrar como o mundo é – tal
como sempre foi – um lugar fascinante e estranho. Se mantivermos os olhos
abertos, é fácil, em quase cada curva da estrada, entrar num mundo de pura
imaginação, onde a nossa maneira habitual de olhar e de pensar de repente
nos falha. É por essa razão que, tal como a viagem poderá ajudar uma
análise fundamentada no mundo real, também a análise a um certo nível de
reflexão é indispensável para nos guiar através das muitas formas diferentes
de ver o mundo. Pensamentos sem viagens são vazios; viagens sem
conceitos são cegas.
INTRODUÇÃO
O Mapa
I
O MITO DA SEPARAÇÃO
N
um livro acerca do desaparecimento da distinção entre a Europa e a
Ásia, o ponto de partida óbvio será a origem dessa separação. É uma
dessas questões que parece impossivelmente assustadora; muitos escritores
tentaram tornar clara a história desta distinção e falharam nessa tarefa.
Poderemos talvez esperar que se tenha tornado agora mais fácil, quando a
distinção está prestes a desaparecer, de tal modo que a possamos
compreender olhando para trás.
A minha opinião é que a separação é relativamente recente. Poderá ter
surgido há 400 ou 500 anos, apesar de alguns dos seus elementos se
poderem ter desenvolvido antes disso, embora a consciência do seu exato
significado só se tenha tornado presente mais tarde, provavelmente em
meados do século XVIII. É verdade que as palavras são muito mais antigas,
mas é preciso termos cuidado neste ponto. O estudante de História sabe que
o passado é uma tal congregação confusa de noções e sugestões que
quaisquer ideias que surjam triunfantes podem e irão encontrar as suas
origens mais atrás. Se essas ideias não tivessem emergido, contudo,
ninguém teria visto aí os seus inícios. Iremos portanto tentar evitar a falácia
da projeção retrospetiva.
A data de 29 de maio de 1453 poderá funcionar como um bom símbolo
para começarmos. A queda de Constantinopla e o triunfo dos turcos
otomanos marcou o fim da última linha clara de continuidade com o
Império Romano e instalou o palco para o estabelecimento definitivo do
islão na Europa, permanecendo até ao nosso tempo. Neste sentido, forçou
uma reavaliação dramática da ordem mundial existente. Horripilantes
relatos que chegavam de Veneza e de Roma pormenorizavam todos os
horrores reais e imaginários da conquista e do saque da cidade e exprimiam
o medo de que isso pudesse anunciar uma ameaça para toda a cristandade.
Depois de o choque inicial ter amainado, três dietas imperiais foram
rapidamente realizadas para discutir uma possível cruzada. Em todas as três
o principal orador em nome do sacro imperador romano foi Enea Silvio
Piccolomini, experiente diplomata imperial e bispo de Siena, mais tarde
papa Pio II. A segunda dieta teve lugar em Frankfurt em outubro de 1454.
Aí, Piccolomini pronunciou o discurso De Constantinopolitana Clade,
«Sobre a Queda de Constantinopla», uma das mais salientes peças retóricas
desse período, em que observava: «Na verdade, durante muitos séculos, a
nação cristã nunca sofreu tão grande desgraça como hoje. Os nossos
ancestrais experimentaram muitas vezes reveses na Ásia e em África, ou
seja, noutras regiões, mas nós, hoje, fomos apoucados e atingidos na própria
Europa, na nossa pátria, no nosso lar e sede.1»
É de facto uma espantosa formulação, que deve ter captado como a
ocasião parecia grave. Mas uma leitura mais cuidadosa revela que
Piccolomini faz uma óbvia distinção entre o lar físico, a Europa, e aqueles
que a habitam. Não é aos europeus que ele apela, mas à «nação cristã».
Quando a Europa acaba por emergir como ideia, será para substituir a
cristandade. Em comparação, poderá parecer uma ideia circunscrita pelo
local, uma geografia mais do que um termo religioso, mas – sendo a
História rica em paradoxos – a Europa iria de facto expandir-se por todo o
Planeta de uma forma que se esquivava à cristandade: «O nome de um
continente iria então transformar-se num símbolo de uma forma de vida e
iria mostrar-se capaz, não menos do que a fé que a precedera, de atrair
lealdades e ódios, missionários e mártires.2»
Se nunca se pretendeu que Europa e cristandade fossem sinónimos,
talvez as origens de uma identidade europeia possam ser encontradas noutro
local. Quando perguntei a um grupo de estudantes universitários em Bacu,
no Azerbaijão, se achavam que Bacu fazia parte da Europa ou da Ásia, um
jovem respondeu que deveria ser incluída na Europa porque fizera outrora
parte do Império Romano. Isto é verdade e mais interessante do que se
poderia pensar, uma vez que Bacu, e não as cidades mais centrais da Síria,
era de facto o ponto mais oriental do império. Há uma pequena aldeia
próxima da capital, chamada Ramana, que temos todas as razões para
acreditar que tenha sido fundada pelas legiões romanas que chegavam. É
tentador trepar ao forte medieval que ainda lá se ergue e proclamar que
chegámos ao fim da Europa – só que dificilmente os romanos pensariam em
si próprios como europeus. O seu império estendia-se por três continentes e,
durante longos períodos, o seu fulcro situava-se mais na Ásia do que na
Europa, enquanto o Egito se mantinha como um centro económico da maior
importância e fornecia uma interminável riqueza para o cobrador de
impostos.
Quanto mais enraizada está uma ideia, mais longe no passado se
procurarão as suas origens. No caso da querela entre a Europa e a Ásia, já a
encontramos como figura de narrativa dramática em Heródoto, mas mesmo
o grande historiador clássico sente que tem de a ligar a tempos mais
antigos, inspirando-se para isso nos historiadores persas. E o que dizem
estes historiadores? Admitem que a querela foi iniciada pela Ásia quando os
fenícios, os primeiros a realizarem longas viagens por mar, tendo
desembarcado em Argos, não partiram sem levarem consigo a beldade
local, Io, a filha do rei Ínaco, e mais algumas mulheres que passeavam pela
praia. Mais tarde, depois disto, certos helenos velejaram até Tiro, na
Fenícia, e raptaram a filha do rei, Europa, que iria transmitir o seu nome aos
seus descendentes e, com o tempo, ao novo continente.
Parece que cada geração de helenos e de bárbaros ia cometendo afrontas
semelhantes, encontrando sempre como justificação algo que os outros
tinham feito antes. Até àquele momento, escreve Heródoto, «nada mais
acontecera do que o rapto de mulheres de ambos os lados», mas quando
Páris, filho de Príamo, raptou Helena, os gregos cercaram e saquearam
Troia. De acordo com os persas, foi assim o início dessa grande divisão e
inimizade entre os dois continentes vizinhos3.
Quando tentamos reconstituir essa trágica divisão, a questão mais
interessante é saber onde terá Heródoto obtido uma visão do mundo na qual
a Europa e a Ásia teriam tão importantes papéis centrais e organizadores. O
seminal historiador Arnold Toynbee defendeu que a utilização da Europa e
da Ásia como um par de expressões geográficas antitéticas, mas
mutuamente complementares, foi criação de antigos marinheiros gregos que
navegavam as vias marítimas internas que se estendiam do Egeu até ao mar
de Azov. Encontrar o seu caminho para norte exigia que reunissem a
coragem para atravessar três estreitos sucessivos. Por cada uma dessas
travessias, seriam premiados com o acesso a um novo mar interior, um novo
Egeu. Depois de terem aberto caminho do Egeu ao mar de Mármara, do de
Mármara ao mar Negro e depois ao de Azov, tentariam por fim aceder ao
rio Don e subi-lo até aos míticos montes Rifeus, perpetuamente cobertos de
neve. Aí, a sua rota chegava ao fim. O Don marcaria, durante mais de mil
anos, a fronteira entre os dois continentes, mas, o que talvez fosse mais
importante, esta era uma fronteira e uma distinção existentes apenas para
aqueles marinheiros. Os nómadas a norte teriam achado essa separação
continental simplesmente ininteligível. Além disso, a partir do século XVI, o
conhecimento geográfico da Rússia aumentara o suficiente para se perceber
que o mítico Don era um lodoso e modesto rio, com origem bem a sul de
Moscovo, inteiramente incapaz de constituir a fronteira entre os dois
continentes.
Um código oculto
Como todas as criaturas míticas, a fronteira muda de forma, de lugar e foge
de cada vez que a vemos à distância. Vidas inteiras poderiam ser
desperdiçadas à sua procura, mas isso não quer dizer que não se possam
encontrar muitas outras coisas interessantes durante esse processo. A
fronteira entre a Europa e a Ásia foi sempre instável, insustentável e, na sua
maior parte, ilusória. Será fútil procurar qualquer tipo de mudança visível
ou invisível quando se deixa Ecaterimburgo, a cidade russa na fronteira da
Europa e da Ásia, indo para Omsk ou Novosibirsk, as maiores cidades a
leste dessa fronteira. A Rússia é um bloco e a sensação de se atingir
Vladivostoque na costa do Pacífico é, quanto muito, de ter chegado à
paisagem física e humana de uma cidade europeia clássica – com suaves
colinas, debruçada sobre o oceano, coberta de elegantes avenidas e edifícios
com fachadas de cantaria. No século XVIII, Voltaire disse que, no momento
em que se chegava ao Azov já não era possível dizer onde era a Europa e
onde era a Ásia4. Quanto à orla navegável em torno do mar Negro, esta
tendia a dissolver-se naturalmente à medida que Istambul se tornava o
coração do Império Otomano, constituindo o centro e não um ponto de
fronteira.
Se olharmos para os mapas do Renascimento, podemos ver como os
cartógrafos estavam a tentar empurrar o mais possível o Báltico para leste e
o mar Negro para norte, para que a fronteira oriental da Europa ficasse
parecida com um istmo, tão estreito quanto possível, que pudesse ajudar a
delimitá-la como um continente, uma unidade separada. Mas a Europa não
está ligada à Ásia, sendo antes uma sua extensão, uma grande península, ou
um subcontinente como a Índia. No século XVI estavam em circulação
muitas cópias de um mapa da Europa em forma de uma mulher, cuja cabeça
era a Península Ibérica, o braço esquerdo a Dinamarca e o direito a Itália,
tendo a Sicília na mão. Tudo estava desenhado com precisão, mas entre o
mar Negro e o mar Báltico havia vastas e indeterminadas regiões, sobre as
quais esvoaçavam as fímbrias do seu vestido5. Durante séculos, a fronteira
geográfica entre a Europa e a Ásia continuou a mudar, em geral deslocando-
se cada vez mais para leste, à medida que o conhecimento da Rússia
aumentava e, de modo talvez mais significativo, a própria Rússia abraçava
o projeto de europeização.
Num interessante episódio, um oficial sueco chamado Philip von
Strahlenberg, feito cativo na batalha de Poltava em 1709, teve de passar 13
anos na Rússia, onde se ocupou a estudar a sua geografia. De regresso a
Estocolmo, em 1730, publicou um livro onde defendia que os montes
Urales deveriam tornar-se o limite oriental da Europa. Mais ou menos pela
mesma altura, o estadista e cientista russo Vasily Tatishchev tentou compilar
um número de argumentos decisivos a favor de se traçar a fronteira ao
longo dessas montanhas, observando que são diferentes os peixes nos rios
que correm de cada um dos seus lados e que as baratas são abundantes a
ocidente e anteriormente desconhecidas a oriente6.
Esta é a opinião ainda hoje aceite, mas não devido a qualquer lógica
convincente, como poderá parecer o apelo aos padrões de vida das baratas.
Em 1935 foi distribuído um questionário a importantes geógrafos políticos
na Europa, onde se lhes perguntava onde colocariam a linha de fronteira.
Houve pouco consenso: das 42 respostas, catorze eram a favor da fronteira
ocidental da União Soviética e doze a favor da linha dos Urales, enquanto
as restantes se distribuíam por outras hipóteses ou declinavam escolher
qualquer delas7. Escrevendo em 1944, o historiador Marshall Hodgson
continuava a apelar a que se «evitasse o uso de mapas que estabelecem uma
inútil linha através do meio da Rússia8». Esta vasta área entre a Europa e a
Ásia é de facto um lugar em que todas as fronteiras, geográficas ou
culturais, são essencialmente indeterminadas. E, no entanto, a Europa e a
Ásia adquiriram o estatuto de categorias quase metafísicas. Como é que isto
aconteceu?
Permitam que sugira uma explicação: a divisão entre a Europa e a Ásia
não é uma divisão no espaço, mas no tempo.
A ideia da Ásia não é asiática mas europeia, aglomerando culturas e
civilizações extraordinariamente diferentes, cujo único traço comum parece
ter sido a exclusão coletiva da Europa. Que sentido faz agregar em conjunto
o Japão e a Arábia? Cada uma destas regiões tem laços históricos e culturais
mais fortes com a Europa do que uma com a outra. Do ponto de vista da
afinidade histórica e cultural, há outras divisões que rapidamente se
impõem: o Médio Oriente, a Ásia do Sul, o Extremo Oriente, o Sudeste
Asiático. Mas então porque não incluir a Europa como uma das partes
constituintes do supercontinente combinado, juntamente com a Rússia e a
Ásia Central? Como Henry Kissinger observa, até à chegada das potências
ocidentais nenhuma língua asiática tinha uma palavra para «Ásia» e
nenhum dos povos que ocupava aquilo a que chamamos «continente
asiático» se concebia como fazendo parte de uma única unidade, impondo
obrigações de solidariedade ou o sentimento de se ser conterrâneo9. Foram
as nações europeias que, ao enfatizarem a sua solidariedade, a sua
«europeidade» ao lidarem com os países asiáticos, deram inevitavelmente
lugar a um sentimento comum de «asiaticidade». Antes do final do século
XIX não existia esse sentimento, mas, no início do século XX, encontramos o
grande escritor japonês Okakura Kakuzo – autor de um famoso ensaio que
explica a cultura japonesa por referência ao papel do chá – a abrir um livro
com esta espantosa declaração: «a Ásia é una». A passagem prossegue:
A Europa já não tem mais nada para me dar. A sua vida é demasiado
familiar para forçar o meu ser a novos desenvolvimentos. Além
disso, está confinada de modo demasiadamente estreito. Toda a
Europa é essencialmente uma só em espírito. Quero ir a latitudes
onde a minha vida tenha de se tornar muito diferente para que a
existência seja possível, onde a compreensão requeira de uma
renovação radical dos meios de entendimento, latitudes em que seja
forçado a esquecer aquilo que até agora sabia e que era o máximo
possível.20
O regresso da Eurásia
Existe um número de razões para que a abordagem dicotómica à
História e à política eurasiáticas já não faça sentido, mas todas as suas
origens poderão ser encontradas na rápida modernização de países como o
Japão, a Coreia do Sul e a China. Se as duas primeiras ainda podiam ser
vistas como exceções históricas, ou mesmo como testas de ferro americanas
na Ásia, a transformação da China durante as últimas três décadas implodiu
a base tradicional para uma distinção civilizacional e trouxe os dois
continentes para o mesmo plano de existência. Sob alguns aspetos, isto
poderia ser visto como um regresso a tempos mais antigos, antes de a
ascensão da sociedade moderna na Europa ter criado uma separação entre
dois mundos inteiramente diferentes.
A crise da velha dicotomia está agora a ser projetada retroativamente, à
medida que os historiadores compreendem que a distinção que se desfez
talvez não fosse logo à partida assim tão forte ou válida. A História
japonesa revisionista vê no período Tokugawa – a sociedade feudal e
hierárquica que precedeu a modernização – menos uma era de atraso e
inércia do que um terreno fértil para a acumulação de capital e de progresso
tecnológico. Na China, uma nova História defende que o Estado imperial
não reprimia o comércio, as elites literárias participavam em
empreendimentos conjuntos com os mercadores e a produtividade agrária
subiu em regiões avançadas, enquanto a inovação tecnológica prosseguia ao
longo do século XVIII. Esta nova corrente está empenhada em investigar
semelhanças entre a Ásia e a Europa antes de especificar mais graus
matizados de contraste, mas esta correção – uma vez que aceita os
princípios usados para definir a modernidade europeia – desloca meramente
o Japão e a China de um lado para o outro.
Historiadores como Victor Lieberman vão mais longe. Ele propõe que
se utilizem padrões descritivos mais neutros e alargados, como o padrão
entre os séculos XV e XIX, pelo qual sociedades localizadas se fundiram em
unidades maiores, um processo que não se restringiu à Europa e que poderá
mesmo ter encontrado a sua máxima expressão noutras paragens. Assim, na
Europa Ocidental, 500 ou 600 unidades políticas mais ou menos
independentes estavam reduzidas a cerca de 25 no final do século XIX, ao
passo que no Sudeste Asiático continental cerca de 25 Estados
independentes estavam reduzidos a apenas três em 1825: Birmânia, Sião e
Vietname. Desta perspetiva, o desenvolvimento europeu parece uma
variante de padrões eurasiáticos mais gerais22.
O surgimento de um espaço eurasiático está intimamente ligado ao
aumento do conhecimento e da compreensão da História, que nos forçou a
substituir uma visão do mundo como estando dividido entre diferentes
povos e terras por uma visão diferente, em que um sistema mais geral
determina as suas relações. A forma mais promissora é o foco nas relações e
influências mútuas e não no conteúdo cultural partilhado. Halford
Mackinder teve uma vigorosa intuição quando compreendeu que a Europa é
uma ideia a que se chegou e se definiu em contraposição à Ásia.
Escrevendo em 1904, citava aqueles desabridos colonialistas que defendiam
publicamente que a única História que importava era a História europeia,
porque era aí que encontrávamos as nações que se tinham tornado
dominantes em todo o mundo. Ele expressa o seu desacordo não em termos
morais, mas observando que qualquer sentido de identidade coletiva
europeia tem de ser originada sob a pressão da força exterior. Existe um
relato literário de uma História que se foca na cultura e nas ideias e depois
há um relato de forças mais elementares, cuja pressão estimula os esforços
com os quais se alimentam a cultura e as ideias. «Peço-vos», escreve, «que
olheis por um momento para a Europa e para a História europeia como
subordinadas à Ásia e à História asiática, pois a civilização europeia é, num
sentido muito real, o produto da luta secular contra a invasão asiática»23.
Do século V ao XV, a Europa esteve constantemente exposta a uma sucessão
de invasores nómadas vindos dos recessos da Ásia, cavalgando através dos
espaços abertos do Sul da Rússia e penetrando a península europeia do
supercontinente, que se ia lentamente moldando pela necessidade de se lhes
opor. Mais tarde, a era dos Descobrimentos poderia ser vista como uma
tentativa de libertação dessa precária posição, encarcerada entre o mar
ocidental e as estepes orientais, e mais tarde para conquistar o desconhecido
abismo de onde o caos sempre emergira. Isto, em pinceladas muito vagas,
poderia ser uma história do projeto europeu, uma descrição excessivamente
grandiosa, mas de qualquer caso um quadro em cores vivas das ligações
entre a Europa e a Ásia, mais fundamental do que qualquer mito de
separação.
Marshall Hodgson observou em 1963 que, se desejássemos dividir a
Eurásia em duas partes, a divisão menos útil seria aquela em que a Europa
formasse uma parte e a Ásia a outra. Durante a maior parte da História
registada, a clivagem entre aquilo a que chamamos Europa e os seus
vizinhos mais próximos foi extraordinariamente ligeira. Mais óbvio é que o
pensamento grego se tornou um elemento integral da tradição do Médio
Oriente, ao passo que a religião do Médio Oriente – o cristianismo –
ocupou o lugar central da vida europeia. A linha de separação mais clara era
entre a China e o resto da Eurásia, mas, mesmo neste caso, a divisão acaba
por se quebrar, sendo o melhor exemplo de continuidade a expansão do
budismo desde as suas origens na Índia até à China e no seu percurso até ao
Japão. Hodgson conclui: «Todas as regiões formavam em conjunto um
único grande complexo histórico de desenvolvimentos culturais.24» A
Eurásia não era meramente um enquadramento para empréstimos e
influências entre unidades independentes, era em si própria uma unidade
genuína.
Não seria particularmente surpreendente se, tal como aconteceu antes
com a ideia de Europa, acabássemos por projetar a nova ideia de um
supercontinente asiático no passado histórico, descobrindo que, afinal de
contas, sempre existira.
2
INTEGRAÇÃO COMPETITIVA
A terceira via
A
refe Arad é uma artista de Teerão. Constrói corpos cosendo diferentes
pedaços de pano uns aos outros e, se o resultado evoca tipos de
criaturas alienígenas e monstros de tamanho humano, isso é completamente
de propósito. Disse-me que quer criar monstros, modelos em tecido
próximos das personagens míticas, sem qualquer identidade ou
individualidade. Conheci-a na Galeria Etemad, em Teerão Norte, enquanto
passava algumas semanas na cidade, sobretudo entre artistas
contemporâneos e donos de galerias. As suas esculturas são flexíveis,
viscosas, cosidas formando silhuetas disformes, um reflexo – disse-me ela –
da vida quotidiana das mulheres iranianas. Parando na Praça Tajrish,
compreendi de imediato o que Arefe queria dizer. Uma jovem subia as
escadas para a travessia superior destinada aos peões com um lenço negro
que lhe cobria o cabelo por completo – poucas mulheres em Teerão Norte
mostram preferência pelo hijab «apropriado» – mas combinava-o com umas
botas cor de rosa de salto agulha, que lhe chegavam ao joelho. A praça
inteira virou a cabeça para a ver passar.
Estes não são criativos híbridos culturais, mas quimeras distorcidas. As
autoridades pretendem um sinal de sujeição e é por isso que todas as
mulheres no Irão devem envergar o seu lenço na cabeça, onde quer que
seja, como proclamação pública de que as suas escolhas são, no fim,
desprovidas de valor. Para algumas, a humilhação é poderosa e deliberada.
Ao mesmo tempo, respondem borratando de todas as formas que podem os
devaneios quase estéticos que os clérigos desenvolveram para o Irão. O
resultado não é criativo, mas destrutivo, tal como as festas em Teerão Norte
são menos celebrações festivas do que afirmações distorcidas de vontade
contra uma força opressiva.
Quando a arte contemporânea chegou a Teerão nos anos finais do
regime do xá, constituiu uma abertura para os valores e os gostos
ocidentais. De acordo com o fundador e diretor inaugural do Museu de Arte
Contemporânea de Teerão em 1979, dado que o Irão já importava a
tecnologia e a ciência ocidentais, deveria também importar arte ocidental.
Esse projeto de imitação falhou quando o xá foi deposto e ninguém no Irão
o quer repetir. A cena artística representa ainda a ânsia de libertação das
convenções – de se tornar moderna – mas hoje é uma força muito mais
primordial e destrutiva, porque não restou um modelo para ser seguido.
Tornar-se moderno já não equivale a tornar-se ocidental. Ao falar com
jovens artistas iranianos, aprendi uma importante lição. Embora se
rebelassem contra os espaços confinados da vida em Teerão, insistiam
também em que não queriam seguir a mesma via dos europeus ou
americanos. A arte contemporânea ensinara-lhes que há sempre uma
maneira de ver diferente. A arte deve prever outras imagens, outros mundos.
A modernidade ocidental é para eles apenas uma outra forma de tradição
que deverá ser desenraizada e ultrapassada.
Quando hoje se discute política, regressa-se frequentemente a um de
dois modelos. O primeiro, popularizado por Francis Fukuyama, vê o mundo
inteiro a convergir para um padrão político europeu ou ocidental, a partir do
que deixa de ser possível um posterior desenvolvimento histórico. Cada
país ou região é avaliado segundo o tempo que demorará a atingir esse
destino final, mas todas as dúvidas e discussões acerca de para onde nos
dirigimos foram fundamentalmente resolvidas. O outro modelo, defendido
por Samuel Huntington, é cético em relação a um movimento irreversível
como esse. O mundo que retrata é o de um choque entre diferentes
civilizações que têm pouco ou nada em comum, em particular dado que a
cultura política ocidental se manterá geograficamente limitada. Este livro
adota uma terceira perspetiva. Concordo com Fukuyama em que o mundo
inteiro se encaminha para uma sociedade moderna, mas existem inúmeras
vias e, naturalmente, diferentes visões daquilo que será uma sociedade
moderna.
Hoje em dia, o mundo inteiro é moderno, mas existem diferentes
modelos de sociedade moderna. A partir desse facto, os termos essenciais da
nova ordem mundial seguem-se de forma mais ou menos direta. A distinção
nítida entre o moderno e o tradicional quebrou-se, dando lugar a um mundo
profundamente integrado, mas o seu traço mais distintivo é a incessante
competição entre diferentes ideias sobre como as redes mundiais deverão
ser organizadas.
Um choque de visões
Se fosse preciso escolher um momento em que essa perturbação se tornou
evidente para todos, a Cimeira da Associação Oriental, de Vilnius, em
novembro de 2013, sobressairia. Durante 10 anos, a União Europeia
procurara estabelecer contacto com os seus vizinhos do Sul e do Leste,
partindo do princípio de que as suas regras e instituições teriam alguma
força e validade mesmo fora das fronteiras da UE. O método consistia em
definir um conjunto de prioridades, incorporadas em planos de ação
detalhados, cuja aplicação seria recompensada com dinheiro, acesso a
mercados ou facilitação de deslocações para os cidadãos. Nalguns casos
foram negociados ambiciosos acordos políticos e contratos de livre
comércio com os países interessados. A Ucrânia, dada a sua dimensão e
importância geopolítica, era o maior prémio de todos. O acordo a ser
assinado em Vilnius nesse novembro traria o Estado pós-soviético
definitivamente para o interior da órbita europeia. Até que, apenas uma
semana antes da cimeira, tudo desabou.
Na noite de 28 de novembro, o jantar oficial entre os chefes de Estado e
de Governo foi adiado por duas horas enquanto o presidente da Comissão,
José Manuel Barroso, e o presidente do Conselho Europeu, Herman Van
Rompuy, faziam uma última tentativa para convencer o Presidente
ucraniano, Viktor Yanukovych, a mudar de opinião e assinar o acordo de
associação com a União Europeia. Os líderes aguardaram pacientemente,
bebericando vinho georgiano, ele próprio um símbolo do que estava em
jogo – a luta pelas fronteiras orientais. David Cameron acabara de publicar
um artigo de opinião sublinhando as suas perspetivas sobre a imigração e o
Presidente Traian Băsescu, da Roménia, confrontou-o em relação a isso. O
primeiro-ministro húngaro, Viktor Orbán, conversava com alguns dos seus
colegas da Europa Central, dizendo piadas que seriam consideradas de
muito mau gosto a alguns metros de distância, onde Mark Rutte da Holanda
conversava com os três primeiros-ministros escandinavos. São estas as
eternas divisões no coração da União Europeia. Então, subitamente,
Barroso e Van Rompuy regressaram da sua reunião de mãos a abanar. O
Presidente Yanukovych anunciou: «Temos grandes dificuldades com
Moscovo. Durante três anos deixaram-me sozinho a enfrentar a Rússia.
Grandes dificuldades.» Ao regressar a Kyiv nessa noite, o Presidente
ucraniano foi confrontado com os primeiros protestos de rua. Dois dias
mais tarde, uma grande multidão reuniu-se na Praça Maidan. O campeão
mundial de boxe – e uma proeminente figura da oposição – Vitali Klitschko
disse à multidão: «Roubaram o nosso sonho, o nosso sonho de vivermos
num país normal.» Passados menos de três meses, Yanukovych foi forçado
a fugir da Ucrânia e a Rússia iniciou uma longa e destruidora guerra com o
novo regime.
Como representante para a Europa do Governo português, fui envolvido
nos preparativos para a cimeira e pude mesmo representar o meu país na
reunião. Até hoje, continuo muitíssimo impressionado pela forma como a
importância histórica desse momento foi erradamente interpretada e
ignorada. Durante as reuniões preparatórias, era partilhada por todos a
opinião de que o Presidente ucraniano acabaria por aceder ao acordo,
trazendo a Ucrânia para mais perto da União Europeia; por isso, quando ele
ordenou subitamente a suspensão dos preparativos da sua assinatura, muitos
continuaram a acreditar tratar-se de um bluff de final de negociação. Todos
os adiamentos e hesitações eram vistos como uma tática negocial para
extrair de Bruxelas a abordagem mais benéfica possível sobre as reformas
requeridas. A burocracia de Bruxelas tinha uma teoria do mundo muito
simples: os Estados são capturados por interesses específicos, mas poderão
corrigir-se se existir pressão vinda do exterior. E, se o fizerem, de certeza
que se tornarão prósperos.
Em retrospetiva, podemos ver agora como a situação teve um
significado histórico bastante diferente. Por um lado, representou um
empurrão da União Europeia para oriente, a qual estava agora a abrir as
suas asas para lá das próprias fronteiras da Europa. Por outro lado, esse
empurrão estava destinado a entrar em conflito com a Rússia – e a Rússia,
como todos deverão saber, estava também a abrir as suas asas e com muito
maior convicção.
Recuemos um pouco em relação a Vilnius para podermos compreender
melhor a razão pela qual aquilo que aconteceu nessa noite foi ao mesmo
tempo inevitável e surpreendente. A 9 de junho de 2009 foi anunciado em
Moscovo um acordo sobre o estabelecimento de uma união fronteiriça com
dois parceiros, o Cazaquistão e a Bielorrússia, que entraria em vigor a 1 de
janeiro de 2010. Representantes de topo da Rússia e da União Europeia
tinham acabado de se reunir alguns dias antes, mas durante essa reunião em
particular o lado russo não dera quaisquer indicações de que em breve iria
tomar decisões que mudariam fundamentalmente a natureza das relações
bilaterais e regionais. De súbito a Ucrânia, como outros países na região,
era confrontada com uma escolha impossível. A clara expectativa da Rússia
de que se deveria juntar ao projeto económico excluiria o desenvolvimento
de acordos de livre comércio paralelos com Bruxelas; a União Aduaneira, e
não cada um dos países, assinaria todos os futuros acordos comerciais. A
Ucrânia teria de abandonar o processo de negociações já bastante avançado,
iniciado em 2007, para um ambicioso acordo de associação económica,
como preço de poder juntar-se à União Aduaneira que, como a UE não
hesitaria em apontar, fora estabelecida dois anos mais tarde.
Em várias reuniões ministeriais sobre comércio da UE, em 2013,
tivéramos de concordar numa resposta apropriada às medidas impostas pela
Rússia à Ucrânia e à Moldávia como forma de pressionar estes países a
abandonarem as suas negociações com Bruxelas. As suas exportações para
a Rússia estavam a ser embargadas ou retidas na fronteira, com grande
prejuízo económico interno. A UE respondeu tentando recompensá-las com
um acesso mais rápido aos mercados europeus, mas isto obviamente não
aconteceria com rapidez suficiente para poder compensar o prejuízo
económico imediato. Para dar um exemplo, nas minhas visitas à Moldávia
nessa altura, foi-me explicado que as exportações de fruta para a Europa
não acompanhariam o anunciado aumento de quotas, por não existirem os
necessários dispositivos de congelação e embalamento. Além disso, as
medidas adotadas por Moscovo não faziam parte de um jogo económico,
mas de uma escalada muito mais grave, que apenas admitia o triunfo ou a
derrota. Isto não era compreendido por mais do que um ou dois ministros
nessas reuniões.
Como a União Europeia, o Presidente Putin também vê o mundo de
acordo com duas ou três noções muito simples, mas que são quase o oposto
exato daquilo em que os europeus acreditam. Primeiro, a liderança russa
não acredita em regras neutras e universais. A neutralidade, na sua
perspetiva, é apenas uma falsidade destinada a enganar os outros. O poder é
sempre pessoal, mas poderá ser conveniente esconder o poder por detrás de
regras e instituições supostamente neutras. Talvez os russos estejam numa
posição única para enxergar através das ilusões mais ofuscantes da
globalização devido à sua experiência com a utopia soviética. Muito bem,
dirão eles, a troca de bens, conhecimento e cultura é no seu todo muito boa,
mas não há necessidade de assumir que atingimos por isso a «fraternidade
humana universal». Os benefícios da globalização estão desigualmente
distribuídos porque as regras são feitas por aqueles que têm o poder para as
fazer. Em resultado disso, Putin acredita que o mundo da política
internacional é uma arena de rivalidade e competição permanentes. O seu
por vezes ideólogo Vladislav Surkov surgiu com uma esclarecedora
analogia: a soberania é o equivalente político da competitividade
económica. Se levarmos esta analogia à sua conclusão lógica, acabamos
com algo muito próximo daquela que é a visão da ordem mundial hoje
prevalecente em Moscovo: um mundo onde os Estados competem pela sua
quota de soberania de forma muito parecida com as empresas que
competem pela sua quota de mercado na economia global. A soberania, no
nosso tempo, já não se expressa pela imagem da fortaleza inexpugnável. É
aberta ao mundo, tem vontade de participar em todas as trocas globais com
um espírito aberto, mas não exatamente um coração aberto – pelo contrário,
segundo a frase de Surkov, numa «luta aberta1».
Finalmente – e talvez sobretudo – Putin não pensa segundo linhas
nacionais. Pensa em termos de blocos maiores e, em última análise, em
termos de ordem mundial. Talvez seja este o elemento em que as suas
opiniões mais mudaram com o tempo, chegando lentamente à conclusão de
que, se a Rússia quiser preservar a sua ordem política, então essa ordem tem
de adquirir algum tipo de projeção global. Não se pode resistir às pressões
que vêm da ordem mundial. Portanto, ou a ordem mundial espelha alguns
elementos do contemporâneo regime russo, ou a Rússia espelhará a ordem
política liberal e ocidental.
Já em 2005 – um ano depois de a União Europeia lançar a Política de
Vizinhança que acabaria por culminar na Cimeira de Vilnius – Putin
descrevera o desaparecimento da União Soviética como um «determinante
desastre geopolítico». Nem a liderança russa nem as elites russas estavam
dispostas a aceitar a imagem de uma antiga superpotência reduzida a um
papel regional. Mais importante, essa dramática redução de estatuto era
vista em Moscovo como estando diretamente ligada a uma crescente
ambição ocidental, que era entendida como incluindo a tentativa de alterar a
ordem interna de regimes não-amigos através da força ou de revoluções
cuidadosamente geridas. O Kremlin chegou assim à conclusão de que seria
necessária uma abordagem igualmente musculada para pôr fim ao
expansionismo ocidental e projetar o poderio russo a uma escala global2.
Vilnius foi o momento em que essas duas visões do mundo colidiram.
Em termos práticos, nem a Rússia nem a Europa se poderão dar ao luxo de
não pensar em termos da futura organização política de todo o espaço
eurasiático. Ambas deverão estar agora plenamente conscientes da extensão
da interdependência que molda este espaço comum. A globalização é um
processo que começa por baixo, do choque entre diferentes blocos, e não a
partir de um conjunto de regras universais. Livres e soberanos, competem e
cooperam para criar essas regras. Chamo a isto integração competitiva. Mas
também aqui existe uma diferença radical: enquanto Bruxelas vê a
interdependência como um estímulo para criar instituições comuns para a
gerirem, Moscovo vê-a como um conjunto de vulnerabilidades de que é
preciso tirar proveito. Veremos mais tarde como Putin está interessado em
militarizar os canais, redes e nós de interdependência.
Também nos primeiros anos do novo século, como se fosse para coroar
uma total mudança de paradigma, a China passava de um destino quase
exclusivamente de investimento estrangeiro direto para uma fonte
rapidamente crescente de investimento externo, um processo que atinge
agora o seu ponto culminante e que levanta muitas questões acerca do
derradeiro carácter do capital chinês. Estas preocupações incluem o medo
de ceder o controlo sobre tecnologias estratégicas, a luta pelo acesso aos
recursos naturais e a possibilidade de o poder económico chinês se poder
traduzir em influência política, como pode ser evidenciado por múltiplos
exemplos. Depois de o Presidente Nicolas Sarkozy se ter encontrado com o
Dalai-Lama em dezembro de 2008, Beijing reagiu com dureza. Duas
delegações comerciais chinesas riscaram rapidamente a França das suas
agendas e o primeiro-ministro Wen Jiabao observou em público antes de um
périplo pela Europa: «Olhei para um mapa da Europa no avião. A minha
viagem contorna a França. Todos sabemos porquê.» Foi necessária uma
declaração francesa a reconhecer que o Tibete era parte integrante da China
para que uma nova delegação comercial chinesa aterrasse em Paris3.
A estratégia chinesa de usar o poder económico para alcançar objetivos
políticos externos tem algumas vantagens. Primeiro, a China está tão
dependente da sua integração na economia mundial que toda a fonte de
perturbação tem de ser minimizada. Um uso do poder estatal mais direto e
vigoroso acarretaria enormes riscos de perturbação, ou talvez mesmo de
corte, dos laços externos que suportam o crescimento e a estabilidade
chineses. O poder económico, em contrapartida, está incorporado na
economia mundial e fornece às autoridades chinesas um grau muito elevado
de ambiguidade e negação. Segundo, a diplomacia económica é algo para
que a China está particularmente capacitada. Por um lado, a dimensão do
mercado chinês dá-lhe um imenso peso. Por outro, o controlo estatal sobre
os agentes económicos permite ao Estado chinês comandar o sector privado
ao serviço dos seus próprios objetivos estratégicos4. Como veremos na
secção seguinte, a União Europeia não tem essa capacidade e, por isso, a
sua diplomacia económica tem de funcionar de formas ainda mais subtis.
Imperialismo regulador
Ouvimos falar muito da distinção entre poder «duro» e poder «suave» e, em
geral, o primeiro é identificado com o uso da força militar; mas algumas
formas de poder são unilaterais, mesmo que não tenham nada que ver com
força militar. Merecem provavelmente fazer parte daquilo a que
chamaríamos poder «duro», porque não dependem da disponibilidade do
outro lado para alinhar no jogo. Quando se trata das regras a serem
aplicadas numa dada jurisdição, ou jurisdições, é obviamente possível que
os Estados influenciem aquilo que os outros fazem através de um acordo ou
de um tratado internacional em que os seus respetivos interesses sejam
objeto de negociação e debate. Essa é uma forma. Depois temos a forma
como a União Europeia exerce o poder, que é completamente independente
daquilo que a outra parte pretende fazer e, o que é mais intrigante, é de
igual forma independente de algo que se pareça com um plano europeu
consciente.
A erudita jurista Anu Bradford descreve o processo nos termos que se
seguem5. Tudo começa pelo facto indiscutível de a UE possuir o maior
mercado interno do mundo, sujeito a padrões estritos. Se uma empresa
estrangeira quiser fazer negócios aí, então precisará de adaptar a sua
conduta ou processos de produção a esses padrões, determinados pelas
regras e regulamentos europeus e aplicados pelas instituições reguladoras
europeias. A única alternativa é renunciar ao mercado único da UE no seu
conjunto. Quase todas as empresas estrangeiras de relevo terão muita
relutância em fazê-lo.
O que acontece a seguir será provavelmente fácil de adivinhar.
Obviamente, a UE regula apenas o seu próprio mercado interno, mas quase
sempre as maiores empresas preferirão padronizar os seus processos de
produção, em vez de terem diferentes processos para diferentes jurisdições.
Isto poderá dever-se à economia de escala associada a um único processo de
produção global ou, em muitos casos, à indivisibilidade legal ou técnica das
suas operações: uma fusão global entre duas empresas, por exemplo, é
válida para todas as jurisdições, o que significa que a jurisdição antitrust
mais limitativa, frequentemente a da União Europeia, será aquela que
determina o destino da transação em qualquer lado. Uma vez que os
padrões europeus são quase sempre os mais estritos, a padronização
significará seguir as regras e regulamentos da UE. Neste ponto, essas regras
são já as regras de facto para essas empresas estrangeiras, mas o que
acontece a seguir não deverá ser menosprezado. Essas empresas encontrar-
se-ão numa situação de desvantagem nos seus mercados internos em
comparação com aquelas que não operem na União Europeia e que,
portanto, não estejam sujeitas aos seus padrões, tendo assim um incentivo
para pressionar os seus Governos para que adotem estes mesmos padrões e
criem um campo competitivo nivelado. Neste ponto, as leis e
regulamentações europeias foram sub-repticiamente inseridas numa
jurisdição estrangeira. É tudo muito inteligente, talvez demasiado
inteligente.
O poder regulador europeu funciona através do Atlântico, claro, mas,
devido a um certo número de razões, o que ocorre nesta ligação não é muito
relevante em termos políticos, apesar de exércitos de advogados estarem
constantemente ocupados com os seus efeitos. A paisagem regulatória é,
sob alguns aspetos bem marcados, muito semelhante e será ainda mais
aproximada, se puder ser negociado um acordo de comércio transatlântico
com os Estados Unidos, focado na coerência regulatória. Nalguns casos, os
padrões são na realidade mais estritos nos Estados Unidos e no Canadá e,
nesse caso, o poder regulador será sentido na Europa. Noutros casos, as
empresas americanas poderão limitar-se ao seu próprio mercado interno,
muito grande, sem se preocuparem com regras e padrões estrangeiros.
Só quando olhamos para a China, a Rússia e a Índia é que percebemos
tudo o que está em jogo. Temos aqui três grandes economias ligadas à
Europa através de laços cada vez mais fortes. Através desse espaço, a
especialização é uma força poderosa: a União Europeia é um enorme
mercado de consumo com uma elevada proporção de consumidores
abastados, o que faz dela um destino de eleição para os exportadores nas
economias asiáticas de rápido crescimento. Além disso, as diferenças nas
regras e nos padrões tendem a ser muito consideráveis e as questões
políticas sobre quais deverão ser as regras a adotar dificilmente poderão ser
evitadas. O mecanismo atrás descrito é assim um poderoso incentivo para
que países como a China adotem grande parte da legislação exigida para
entrar no mercado da UE, oferecendo aos cidadãos e aos decisores políticos
europeus a promessa de que todo o supercontinente poderá, com o tempo,
vir a parecer-se com a União Europeia em aspetos fundamentais.
Depois de a UE ter incluído a aviação no seu esquema de trocas de
emissões, todas as companhias aéreas têm de comprar autorizações de
emissões para os voos que descolem ou aterrem em aeroportos europeus. Se
uma companhia estrangeira se recusar, poderá ser multada e mesmo banida
do espaço aéreo europeu. A única forma de evitar a compra de autorizações
é essas companhias aéreas estarem sujeitas a «medidas equivalentes» na sua
jurisdição doméstica. Em resultado disso, os governos estrangeiros,
preocupados com a competitividade das suas companhias aéreas, têm um
poderoso incentivo para alterar as suas políticas energéticas e ambientais. A
China começou a desenvolver estritos mecanismos de redução de emissões
e pediu à União Europeia que considerasse a sua equivalência. O sistema de
trocas de emissão de carbono para a aviação conheceu inicialmente uma
forte oposição das autoridades chinesas, que congelaram as encomendas de
aeronaves Airbus em retaliação, mas o Presidente Xi Jinping, vendo-se num
beco sem saída, depressa desbloqueou as ordens durante uma visita ao seu
homólogo francês.
Esta história recorda outro episódio das chamadas «guerras da aviação»,
quando as transportadoras aéreas russas, mal informadas ou enganadas
pelas suas próprias autoridades reguladoras, falharam na utilização do
período de adaptação de 10 anos para que as suas frotas estivessem prontas
para uma diretiva da UE que introduzia novas exigências quanto ao ruído
produzido pelos aviões. Quando o prazo-limite expirou, a indústria
aeronáutica russa encontrou-se numa situação desesperada, ameaçada pela
expulsão de um mercado essencial para a sua sobrevivência e forçada a
negociar um período de transição extra, a partir de uma posição de completa
debilidade. Tudo isso ocorreu apenas um par de anos depois de o Presidente
Putin ascender ao poder e diz-se que foi um duro despertar para ele, o
momento em que percebeu que a Rússia corria o perigo de se tornar uma
dependência europeia. De repente, o mercado único europeu parecia aos
russos ser menos um enorme prémio e mais um mecanismo cego que
ameaçava tudo o que fosse russo, invadindo lentamente todos os elementos
da vida russa e reconfigurando-a à sua imagem6.
Mais recentemente, a expansão reguladora europeia tornou-se uma
delicada questão política no contexto do rápido desenvolvimento do sector
indiano do processamento de dados. Os consumidores na Europa esperam
naturalmente que os dados enviados para a Índia para operações de back-
office estejam tão seguros como na sua própria jurisdição. Se as empresas
indianas quiserem ter acesso a esses consumidores estrangeiros, a regulação
na Índia terá de oferecer níveis de proteção e privacidade que se conformem
aos padrões europeus. Neste caso, o objetivo final de alinhar jurisdições
estrangeiras é tornado perfeitamente explícito: a diretiva relevante
determina que uma transferência de dados pessoais para um país terceiro,
ou uma organização internacional, poderá ocorrer desde que a Comissão
Europeia tenha decidido que o país terceiro, ou a organização internacional
em causa, garante um nível adequado de proteção.
Esta é a teoria. O tempo e os processos normais da História resolveriam
o conflito entre normas diferentes. Construir uma ordem liberal a nível
mundial será apenas uma questão de deixar que esses processos funcionem
por si mesmos. Desde que, evidentemente, ocorram no ambiente externo
apropriado. Se a teoria tem uma falha é a de assumir que o resultado será
alcançado dentro das condições necessárias para a sua realização. As
normas liberais vencerão toda a competição, se operarem num ambiente
governado por normas liberais. Caso contrário, como veremos mais adiante
neste livro, o resultado será tudo menos predeterminado.
As novas guerras
Desapareceram as certezas do passado, quando a rivalidade e o conflito se
baseavam numa clara distinção entre os estados de guerra e paz. O conflito
na nossa época começa com o facto da integração profunda. Os diferentes
lados estão tão profundamente ligados por laços políticos, económicos e
técnicos que não podem ser traçadas fronteiras claras e todos estão, de certa
forma, presentes no interior do campo inimigo e tentarão enfraquecer as
forças deste a partir do seu interior. A imagem do conflito já não é a dos
combatentes no campo de batalha, mas a de espécies competindo pelo
mesmo ecossistema, forças em luta que são ao mesmo tempo parte de um
único sistema. E as armas, tal como no caso das espécies concorrentes,
tendem a ser insidiosas: falsa sinalização, mimetismo, engano, veneno e o
velho favorito da seleção natural, que consiste em corroer a energia do
adversário acedendo diretamente aos seus fluxos vitais ou subvertendo o
seu sistema nervoso. Se os agentes fazem parte do mesmo sistema, se
partilham relações de dependência e influência mútuas, poderá ser muito
mais compensador manipular e debilitar os outros, levá-los a agir de certas
formas, do que confrontá-los abertamente em formas mais destrutivas de
conflito.
O papel dos meios não-militares para alcançar objetivos políticos e
estratégicos cresceu e, em muitos casos, ultrapassou na verdade o poder das
armas na sua eficácia. A maioria consiste em táticas antigas, já testadas, mas
a globalização económica e o desenvolvimento de profundas redes globais
confere-lhes uma maior relevância e eficácia. A utilização da informação
pode agora tirar partido da internet e abrir novas frentes de conflito, como
no caso dos ciberataques e da pirataria de sistemas informáticos para a
recolha e a disseminação de informação. Outras táticas não-militares
incluem a aquisição de infraestruturas noutros Estados, a corrupção ou a
chantagem de funcionários diplomáticos e a manipulação de fluxos de
energia ou dos seus preços, todos eles ampliados numa economia global
integrada. Num raro discurso em dezembro de 2016, o chefe do serviço de
espionagem britânico (MI6) relevou esse ponto fundamental, argumentando
que «a conetividade que está no âmago da globalização pode ser explorada
pelos Estados com intenções hostis para perseguirem os seus objetivos e
poderem negar isso. Fazem-no através de meios tão variados como
ciberataques, propaganda ou subversão do processo democrático».
Alguns meses antes, no pico da crise dos refugiados, o comandante da
OTAN na Europa, Philip Breedlove, fizera a extraordinária declaração de
que a Rússia estava a fomentar um êxodo em massa de refugiados da Síria
como arma contra a União Europeia. A Rússia estava a militarizar
deliberadamente a migração, numa tentativa para esmagar as estruturas
europeias, disse ele na reunião do Senado em Washington em março de
2016. A acusação circulara em privado durante quase um ano. O facto de
estar a ser tornada pública parecia assinalar uma profunda mudança na
forma como deveríamos pensar na segurança desde que a globalização
erodira as fronteiras estabelecidas entre Estados. Havia um número de
factos convergentes: a velocidade das comunicações que produzia um
incremento nos fluxos de refugiados, a cultura dos direitos humanos
universais promovida pela União Europeia e a capacidade que a Rússia
redescobrira para projetar o seu poderio militar no exterior. O nível
acrescido de interação num mundo globalizado tornava muito mais fácil e
mais eficaz tentar enfraquecer o opositor a partir do interior. Neste caso,
mesmo que esse objetivo fosse secundário, a Rússia podia usar o
bombardeamento em massa de áreas civis na Síria para aumentar os fluxos
de refugiados, revelando a divisão entre os países europeus e enfraquecendo
a liderança alemã. A questão, claro está, era tornar mais difícil aos europeus
resistirem à crescente expansão russa junto às fronteiras, em primeiro lugar
na Ucrânia. Os europeus tomaram subitamente consciência de que as crises
sistémicas que abalavam a União Europeia podiam ser fomentadas por
outros Estados. Habituados a pôr em contraste um modelo de Estados
separados envolvidos num conflito e outro em que desenvolvem profundas
formas de integração, percebemos agora que os dois modelos se estão a
fundir num só. A integração é inescapável, mas pode ocorrer de acordo com
diferentes padrões de interação. É essencialmente competitiva e tem de ser
adotada como tal.
Não é apenas a Europa que é colocada entre os dois extremos do
isolacionismo e do universalismo. Estes constituem tendências naturais e
aplicam-se da mesma forma à Rússia e à China. Afinal de contas, se se
torna impossível moldar o mundo à nossa imagem, poderemos contentar-
nos com uma esfera delimitada. Mas nenhuma das tendências pode ser
concretizada; ambas colidem com a realidade política. A noção de que o
mundo inteiro pode ser organizado segundo um único modelo parece agora
implausível até aos europeus, outrora convencidos da sua inevitabilidade.
Inversamente, fechar as fronteiras ao mundo exterior e perseguir um
modelo nacional em isolamento já não é atraente nem para a Rússia nem
para a China, que prosseguiram de forma metódica essa opção durante os
seus anos comunistas. É por isso que a Eurásia não é um termo geográfico
mas político, mostrando uma forma de sair do dilema. Oferece um
compromisso entre agente e estrutura. As duas metades da palavra apontam
para agentes diferentes, ao passo que a síntese das duas conjura o contexto
externo no qual deverão atuar, tentando continuamente moldar esse
enquadramento partilhado à sua própria imagem.
Quando a Rússia e a China desenvolveram os seus novos e gigantescos
projetos de integração, tinham um objetivo subjacente: mostrar aos
europeus que o seu projeto de integração com décadas de antiguidade era
um entre muitos, não beneficiando de quaisquer aspirações especiais à
universalidade. No entanto, se esse objetivo subjacente teve um sucesso
para além das mais otimistas expetativas foi porque a União Europeia
estava já, e em grande parte por sua própria iniciativa, a recuar dentro das
suas próprias fronteiras. A crise da Zona Euro é provavelmente um bom
indicador de tal recuo. Não só forçou os europeus a olhar para dentro e a
focar quase toda a sua atenção na reforma das regras e das instituições da
Zona Euro, como diminuiu grandemente o prestígio e o poder «suave» da
Europa, baseados como estavam numa imagem de prosperidade económica
e de coordenação e realização de políticas eficientes.
Tanto a Rússia como a China estão assim prontas para a próxima fase
dos seus planos. O objetivo já não é apenas remover as pretensões
universais da base do edifício europeu, mas usar essas pretensões na
edificação dos seus próprios projetos. Veja-se o caso da Rússia. Se falarem
com os decisores políticos de Moscovo, dir-vos-ão que é a Rússia, e não a
Europa, que sabe como funciona a política mundial. Os europeus vivem
num mundo imaginário só deles, os russos vivem no mundo real. Os
europeus são paroquiais, os russos respondem às regras mais ou menos
universais da política do poder.
Em Beijing, as pretensões à universalidade não são menos espantosas.
Foi-me dito por decisores políticos que a China quer devolver ao mundo
aquilo que recebeu durante as últimas três décadas e ouvi a académicos que
a China está a desenvolver ativamente valores que possam apelar a todos os
seres humanos: uma versão do desenvolvimento e do bem-estar que possa
ser facilmente compreendida e assimilada por todas as nações do Planeta de
uma forma que não acontece com a democracia, nem com os direitos
humanos.
Em princípio, a União Europeia vê-se a si mesma como um ator global
e, enquanto tal, particularmente pronto para lidar com os desafios da
globalização, em que o multilateralismo e a legitimidade das normas
internacionais se tornaram ferramentas dominantes da política externa.
Como representa o primeiro e mais ambicioso projeto de integração do pós-
guerra, tende também a acalentar uma conceção errada particularmente
perigosa: a noção de que existe apenas um modelo de integração
internacional e que, portanto, qualquer projeto em qualquer parte do mundo
persegue no essencial os mesmos objetivos. Ao exprimirem as suas
iniciativas geopolíticas na linguagem da integração internacional, a Rússia e
a China obterão invariavelmente a reação esperada de Bruxelas. Essas
iniciativas são vistas como compatíveis, ou mesmo idênticas, à própria
lógica de integração da UE e, portanto, nunca entrando em conflito com os
seus interesses geopolíticos. Um recente artigo sobre a integração
eurasiática recomenda que a Europa tente absorver outras iniciativas na sua
própria matriz de processos de mercado e especialização técnica.
«Simplesmente ao empenharem-se em esforços de integração vastos e
multilaterais, os chineses e os russos escolheram competir no terreno da
UE. Os políticos europeus não têm de recear a cooperação com estas
iniciativas.7» A crença implícita é a de que apenas existe a forma europeia
de jogar o jogo da integração.
A tendência oposta é também vigorosa e igualmente enganadora. Os
europeus foram ficando cada vez mais convencidos de que o mundo
exterior é a fonte de todos os seus problemas e que, portanto, uma estratégia
capaz de isolar a política da UE destas perturbações externas é a única
forma de assegurar a estabilidade a longo prazo. Por exemplo, a crise
financeira, que muitos continuam a ver como um fenómeno exclusivamente
americano. De facto, o impacto do excedente comercial chinês e o
correspondente excesso de poupança terá sido provavelmente mais
importante – a expansão da produção na China criou enormes défices
comerciais e de contas-correntes, de tal modo que o crescimento económico
nos Estados Unidos teve de ser sustentado através de uma «bolha» no
crédito. A integração financeira através do Atlântico é tão profunda que a
Europa sofreria inevitavelmente quando essa «bolha» no crédito rebentasse.
Poderia a pior das crises ter sido evitada se a União Europeia tivesse posto
em ação alguma forma de controlo sobre os fluxos financeiros globais? O
mesmo argumento foi depois repetido no caso da Ucrânia, que muitas
pessoas na Europa achavam ter ficado enredada em excesso numa
ambiciosa política externa da UE. Mais claramente, a erupção da chegada
de refugiados da Síria foi atribuída à incapacidade da UE para controlar as
suas próprias fronteiras. Os dois últimos exemplos poderiam parecer provar
o disparate de abrandar a separação tradicionalmente firme entre a Europa e
a Ásia – com o fundamento de que esta última continua a ser, como no
século passado, uma fonte de grande instabilidade e caos.
Existe, como é óbvio, alguma verdade no argumento, mas muito menos
do que se poderia pensar. Se o objetivo é gerir fluxos fronteiriços, não se
pode pensar nas fronteiras como limites fechados. São pontos de transição,
mas a maioria dos fluxos só poderá ser gerida se agirmos sobre a origem e,
portanto, fora do nosso território. Frequentemente, existe uma relação
temporal entre a política externa e a interna, pelo que as crises e os desafios
que não são enfrentados por uma política externa ativa surgem mais tarde
no contexto interno. Se a União Europeia passou nos últimos anos de
exportadora de estabilidade a importadora de instabilidade poderá bem ter
sido por não levar suficientemente a sério o seu anterior papel. Mesmo que
a Europa quisesse repetir o modelo de contenção da Guerra Fria, este já não
seria adequado a um mundo cada vez mais conectado, em que as fronteiras
já não são barreiras à ação estatal e os países de sucesso são perfeitamente
capazes de projetar o seu poder para quase qualquer ponto do Globo.
3
O NOVO SUPERCONTINENTE
EURASIÁTICO
O mapa e o território
O todo é apenas um todo em relação às suas partes e as partes são apenas
partes em relação ao todo. Quando se trata de política mundial, isto
significa que a perspetiva que tivermos do todo irá sempre influenciar a
nossa compreensão das partes. Se a sua visão da ordem global tiver a
Europa no centro, então o resto do mundo ficará organizado em círculos
que irradiam a partir desse centro. O próprio viajante não encontrará senão
distantes ecos e pálidos reflexos do lugar de onde começou e qualquer
compreensão genuína das diferentes regiões e culturas será tornada
impossível. O objetivo não deveria ser olhar para o todo do ponto de vista
de uma das partes, mas olhar para cada uma das partes do ponto de vista do
todo. Aprendemos este hábito mental com o estudo de atlas e mapas, onde
cada ponto é definido e localizado por referência a todos os outros pontos e
onde somos obrigados a ganhar uma perspetiva externa, mais descolada e
mais objetiva. Ao mesmo tempo, um mapa fica apenas completo quando
regressamos dos lugares que este representa e conseguimos interpretar o
significado completo por detrás de cada pormenor e projetar sobre a
superfície plana as imagens armazenadas na nossa memória.
A História mostra que não existe uma forma natural de as partes do
sistema mundial se organizarem. Nem o sistema possui qualquer propensão
inata para se conservar estático, nem as partes para permanecerem num
determinado padrão. Muitas vezes no passado o pêndulo do poder ficou
exatamente equilibrado entre dois polos no sistema e nenhuma necessidade
histórica inerente ditava que alguém conquistasse uma posição hegemónica.
O facto de a Europa se ter destacado no século XVI, substituindo o Médio
Oriente como o cerne do sistema mundial, não pode ser usado para defender
que apenas a cultura e as instituições europeias poderiam ter tido sucesso.
De facto, como argumenta um historiador, a Europa nem sequer teve de
inventar o sistema, uma vez que o trabalho de base essencial já estava
disponível no século XIII, quando os europeus se encontravam ainda a viver
numa remota periferia14. Bastava mudar as regras e reorganizar as peças.
Em última análise, o facto de Lisboa, Amesterdão e Londres se terem
sucessivamente tornado a pedra angular do sistema foi um facto
contingente. Poderia facilmente ter sido o Cairo, Tabriz ou Hangchou.
Na segunda parte deste livro examinaremos tematicamente as principais
partes ou componentes do novo supercontinente. Esta perspetiva mais
concentrada ajudar-nos-á a compreender alguns dos pontos gerais
abordados neste capítulo, mas sem estes pontos gerais e uma visão a partir
de cima, a visão de cá de baixo permaneceria inacessível. Toda a viagem é
uma espiral. Comece com o conhecimento que já tem e use-o para
interpretar aquilo que descobrir na estrada, mas permaneça igualmente
aberto à revisão do seu conhecimento à medida que prosseguir. Toda a
viagem é uma espiral – e, nesse sentido, toda a viagem é infinda.
O leitor poderá perguntar se o mundo contemporâneo estará tão repleto
de contradição e de diferença como parece neste livro. Eu acredito que sim.
Se o considerar a partir da perspetiva do passado, então o mundo parece
uma totalidade de episódios e de histórias, cada qual movendo-se de acordo
com a sua própria lógica, como se fossem romances ou epopeias em
separado. Acontece o mesmo se considerar a questão a partir da perspetiva
do futuro. Nenhuma sociedade quer pensar em si própria como uma cópia.
Se nos for concedida a liberdade para o fazermos, todos desejamos rasgar
os nossos próprios caminhos na Terra, uma verdade igualmente aplicável
aos indivíduos e às sociedades políticas. Quando as diferenças não
existirem, ou quando tiverem sido perdidas, serão inventadas ou criadas de
novo. De facto, temos todas as razões para pensar que aquilo que mais tarde
se tornariam as vincadamente diferentes antigas civilizações mediterrânicas
e chinesa tiveram a sua origem comum no mundo mesopotâmico, um caso
notável de divergência histórica que contraria a nossa crença na
convergência. Poderá acontecer que, um dia, os seres humanos tenham
experimentado todas as possibilidades e que o seu conhecimento seja
completo, mas esse dia está lá muito longe no futuro.
Embarquemos na viagem, portanto, durante a qual teremos a
oportunidade de regressar a muitas das ideias discutidas na primeira parte
deste livro. Não deixará de ser apropriado que comecemos, não pela Europa
nem pela Ásia, nem por nenhum dos extremos do supercontinente, mas
antes, tanto quanto possível, pelo centro. In media res. No meio das coisas.
SEGUNDA PARTE
A Viagem
4
A PROCURA DO CENTRO
A tentação do Cáucaso
O centro do mundo
Tive bastante dificuldade em adormecer, por isso pouco depois de o Sol
nascer deixei a minha cabine refrigerada e dirigi-me à ponte, não antes de
deitar a mão a uma fatia de pão no convés. Estávamos mais ou menos no
meio do mar Cáspio, perto do disputado campo petrolífero de Kapaz. O
tempo, encoberto quando partíramos de Alyat, prometia um dia bonito e
claro e a luz da manhã adquiria cores invulgares ao refletir as águas calmas,
muito diferentes das ondas bravas de que me lembrava entre Derbent e
Buzovna. O Cáspio é um lago que foi outrora um mar e mantém nas suas
muitas cores diferentes a memória desta transformação. Imaginem um mar
aberto, sem sinal de terra em nenhum dos lados, mas onde a água, não
limpa e sem cor como a água do oceano, se separa em faixas de infindas
cores em mudança, dependendo da luz e do ângulo das nuvens no
horizonte.
Ao olharmos para o mapa, poderíamos pensar que o Cáspio é um grande
núcleo de transportes, o cruzamento entre a Ásia Central a oriente e a
Europa a ocidente, entre a Rússia a norte e o Irão e o Médio Oriente a sul.
Na realidade, funciona mais como uma barreira do que como uma ponte.
Olhei em volta para o mar vazio em nosso redor. Estava sozinho no meio do
maior lago na maior massa terrestre da Terra e o espaço vazio apenas
poderia ser preenchido com memórias casuais de velhos livros. Pensei em
Stepan Razin, a impossível combinação de um cossaco e um pirata das
Caraíbas, que se lançou à aventura e saqueou o Cáspio, atormentando
ininterruptamente os russos ao longo da costa norte e os persas ao sul, até à
sua sangrenta execução na Praça Vermelha de Moscovo, em 1671. Durante
a sua incursão mais famosa, capturou dois navios de mercadorias que
transportavam puros-sangues persas, uma dádiva do xá ao czar Alexis.
Olhei para leste e pensei em Muhammed, xá da Corásmia, que mudou o
curso da História quando executou os emissários de Gengis Khan, incitando
o grande conquistador a voltar a sua atenção para ocidente, o que resultou
na completa destruição de Samarcanda, Bucara, Otrar e todas as outras
lendárias cidades que eu iria visitar nos meses seguintes. Muhammed
passou os seus últimos dias a fugir das hordas que avançavam e morreu de
pleurisia numa ilha do Cáspio.
Uma vez que não existem navios de passageiros a atravessar o Cáspio, a
nossa única opção é comprar um bilhete para um navio de carga. A maioria
aceita uma mão-cheia de passageiros para fazer algum dinheiro extra, mas
não existem horários fixos. Temos de esperar por um navio que esteja
completamente carregado e pronto para partir. Felizmente, uma prestável
senhora russa que trabalha para a empresa de navegação não se importa de
nos fornecer o seu número de telefone. No entanto, de cada vez que lhe
telefonava, a resposta era sempre a mesma: hoje não há barcos,
provavelmente amanhã também não e se houver algum é com carregamento
de petróleo, por isso não serão permitidos passageiros.
Esta era a empresa pública do Azerbaijão. O Turquemenistão tem um
navio que opera na mesma rota de transporte, o Berkarar. Disseram-me que
era mais moderno, com melhores instalações para os passageiros, mas
ninguém sabia onde estava nem quando partia e a companhia não tinha
escritório em Bacu.
Estava prestes a desistir de alguma vez conseguir fazer a travessia.
Então, subitamente, recebi uma mensagem de Vika, a prestável senhora
russa: acabara de ser feita uma descarga, por isso iria partir um barco dentro
de duas ou três horas. Corri para o porto de Bacu onde era vendido o
bilhete, mas o navio partia na verdade de Alyat, a uma hora de carro mais a
sul, passando por Gobustão, o local de gravuras rupestres com dezenas de
milhares de anos. Os outros passageiros deram-me boleia no seu carro.
Eram jovens turcomanos que regressavam a casa, os quais se lembraram
devidamente de parar num supermercado para adquirirem um verdadeiro
suprimento de álcool. Antecipando uma lauta refeição mais tarde nessa
noite com a tripulação do navio, peguei apenas num pacote de passas para a
sobremesa.
Quando os contentores são transportados para o seu destino final na
Europa ou na Ásia Central, ou na China por via ferroviária, são transferidos
para e do navio diretamente e usam o terminal do novo porto de Alyat em
vez do velho terminal de Bacu. Com a conclusão da primeira fase da
expansão do porto durante o próximo par de anos, todas as operações
intermodais serão feitas aqui. Alyat está bem posicionado para se tornar o
maior e mais moderno porto do Cáspio.
Passar no controlo da imigração foi surpreendentemente fácil, por isso
ficámos completamente instalados nas nossas cabines com tempo livre
antes da partida. Eram as cabines mais nuas que podem imaginar: um
beliche, um colchão velho sem cobertores. Na medida em que a temperatura
rapidamente descerá abaixo de zero e não havendo aquecimento no navio,
aquela irá transformar-se numa longa noite sem dormir. Não havia
tripulação à vista, por isso a ideia de uma refeição quente teria também de
ser revista. Pouco antes de o Sol se pôr, o barco começa a balancear.
Partimos.
Uma ou duas horas após a partida de Alyat, consegui ver as luzes de
Neft Dashlari. Esta é a primeira das cidades imaginárias do Cáspio, lugares
tão implausíveis que temos dificuldade em acreditar que são reais. Neft
Dashlari é uma cidade inteira no meio do mar, com centenas de quilómetros
de estradas ligando diferentes plataformas petrolíferas, edifícios de
apartamentos parcialmente submersos albergando milhares de trabalhadores
do petróleo, escolas e cinemas, hotéis e até um parque com alamedas de
árvores. Foi a primeira plataforma petrolífera off-shore e a sua instalação
central ficou assente num alicerce que consiste em sete navios afundados,
incluindo o primeiro petroleiro do mundo, o Zoroastro, lançado ao mar em
Bacu em 1878. Um velho selo soviético representa a instalação como um
símbolo da conquista da natureza pelo Homem, uma estrada serpenteante
construída sobre as águas e estendendo-se até um brilhante Sol vermelho no
horizonte.
Gosto da história acerca de como o petróleo foi aqui descoberto pela
primeira vez. A tecnologia para identificar os campos petrolíferos off-shore
não existia, mas o conhecimento circulara entre os marinheiros durante
décadas, mesmo séculos, segundo o qual os perigosos escolhos e rochas
nesta área podiam ser evitados confiando no olfato: o cheiro a petróleo
durante uma tempestade era sinal de perigo. Enquanto deixamos Neft
Dashlari para trás, novas luzes de plataformas mais recentes, entrepostos do
império petrolífero do Azerbaijão, brilham em nosso redor: a Chirag, a East
Azeri, a Deepwater Guneshli, a Shah Deniz.
A linha reta que estamos a tomar de Bacu para Turkmenbashi poderá um
dia tornar-se a rota da energia que leve o petróleo e o gás da Ásia Central
para a Europa. Há um projeto para construir um oleoduto transcaspiano
ligando as costas oriental e ocidental, sugerido pela primeira vez há
exatamente 20 anos. Nada de muito especial aconteceu para além dos
habituais estudos de viabilidade e das negociações preliminares, mas a
União Europeia continua a incluí-lo entre os seus projetos de interesse
estratégico vital, mais recentemente nos planos atualizados para o Corredor
de Gás do Sul, que foram publicados em 2016.
Se o Azerbaijão quiser tornar-se não apenas um produtor de energia,
mas também um eixo de energia global, precisa desta crucial peça de
infraestrutura. Para o Turquemenistão, uma ligação de fornecimento para o
Ocidente seria uma via bem-vinda de diversificação energética, uma vez
que se encontra agora inteiramente dependente da China. Neste momento,
existem duas linhas de condutas: uma que vai para a China, com uma
capacidade atual de 55 mil milhões de metros cúbicos por ano, e outra para
a Rússia, com uma capacidade de 80 mil milhões de metros cúbicos. O
gasoduto Turquemenistão-China entra no Usbequistão em Olot e atravessa
o Usbequistão Central e o Sul do Cazaquistão, antes de chegar a Khorgas,
na fronteira chinesa. De acordo com a BP, o Turquemenistão situa-se em
quarto lugar no mundo em termos de volume de reservas de gás. No
entanto, o país enfrenta um certo número de obstáculos que impedem que as
suas reservas atinjam o mercado mundial. Desde o início de 2016, devido a
um desacordo sobre os preços, a Rússia deixou por completo de importar
gás turcomano. Mais tarde, nesse mesmo ano, uma disputa de preços com o
Irão deixou a China como o único mercado de exportação do país.
Previsivelmente, o Irão e a Rússia criticaram o projeto transcaspiano,
que reduziria grandemente a sua pressão sobre a Europa. Em 2011, por
exemplo, quando as conversações para seguir em frente com a construção
da conduta começaram a parecer mais sérias, a Rússia declarou que o
projeto era uma forma de «ingerência» e que aumentaria as tensões na
região. Em 2012 o Irão avisou que o outro nome do mar Cáspio – o mar da
Paz e da Amizade – mudaria se a construção da conduta fosse em frente. A
conduta viria de Turkmenbashi até Bacu, onde iria ligar-se à linha do
Cáucaso do Sul e depois à linha transanatoliana, ligando-se à rede de gás
europeia na Grécia. Esta poderia bem ser a única forma de a Europa
assegurar o acesso à energia na Ásia Central sem ficar dependente nem do
Irão nem da Rússia.
A história geológica do mar Cáspio é uma montanha-russa de
transformações, desde o momento em que ficou isolado do oceano com a
vasta fratura da bacia terrestre, separando-se em massas mais pequenas de
água rodeada de terra, como o Aral e o mar Negro. A sua história
geopolítica é igualmente convulsa. Antes da queda da União Soviética, o
Cáspio era partilhado por apenas dois Estados, a URSS e o Irão. Há cem
anos, era essencialmente um lago russo, com o Norte da Pérsia em grande
parte sob controlo russo. Hoje, estes dois países olham para os seus três
novos vizinhos – o Azerbaijão, o Turquemenistão e o Cazaquistão – com
um menosprezo mal disfarçado, à medida que a cada ano ganham um novo
grau de independência que aumenta a complexidade geopolítica da região.
Na verdade, a política do gasoduto eurasiático é uma ciência oculta. Os
projetos são anunciados e cancelados múltiplas vezes. Veja-se o recente
exemplo do TurkStream, que pretende ligar a Rússia à Turquia sob o mar
Negro e que é supostamente capaz de substituir o projetado Oleoduto
Transcaspiano. O TurkStream começou a ser considerado depois de a União
Europeia bloquear o avanço do desenvolvimento do South Stream, uma
conduta concebida para transportar o gás natural russo da região de
Krasnodar através do mar Negro até à Bulgária e, em seguida, para a
Europa Central e Ocidental. Nessa altura, a Turquia exibiu um alto nível de
subtileza diplomática e inteligência: conseguiu negociar um entendimento
com a Rússia, ao mesmo tempo que a pressionava suavemente para que
abandonasse o South Stream, ganhando assim também o aplauso da União
Europeia. Mais tarde, o projeto TurkStream conheceu dificuldades e foi
abandonado depois de um bombardeiro russo ter sido abatido em 2015 pela
Força Aérea Turca e as relações entre os dois países terem azedado.
Mais recentemente, o acordo reemergiu e foi assinado a 10 de outubro
de 2016, durante uma reunião em Istambul entre os presidentes Erdoğan e
Putin. Sem dúvida que as dificuldades técnicas e financeiras persistem. Foi-
me dito durante uma visita ao ministro dos Negócios Estrangeiros búlgaro
em 2015 que o tipo de compressores necessários para bombear gás no leito
do mar Negro já não pode ser obtido pela Rússia junto da União Europeia
nem dos Estados Unidos, uma vez que caem sob a alçada do regime de
sanções em vigor, deixando apenas o Japão como possível, mas relutante,
fornecedor. Em termos mais gerais, o investimento no novo traçado seria
considerável e poderá tornar-se proibitivo se não houver uma garantia firme
de o gás poder ser vendido na Europa, bem como na Turquia. Uma vez que
as mesmas regras de concorrência da União Europeia que condenaram o
South Stream continuam em vigor, essa garantia é difícil de obter. Contudo,
seria um erro pensar que nenhum destes projetos será alguma vez
completado. O mundo precisa de petróleo e de gás, por isso acabará por
existir um vencedor, depois de Governos e multinacionais se debaterem
sabotando-se uns aos outros e influenciando futuros projetos com as armas
cortantes da confiança dos investidores. Os pipelines são a continuação da
guerra por outros meios.
Não há melhor símbolo do mundo de interdependência e competição do
que este mar interior, lar de algumas das maiores reservas de energias
fósseis do mundo e, contudo, um sítio onde as regras do jogo político se
mantêm visivelmente indefinidas. Ser o centro do mundo é, ao mesmo
tempo, uma maldição e uma bênção: as fontes energéticas do Cáspio são de
grande interesse para a Europa, a China e a Rússia, mas a questão de como
as levar até ao seu destino, ou talvez até ao mar aberto, continua a ser
extremamente complexa. Vejo o Cáspio como um excelente exemplo de
integração competitiva. Junta inextrincavelmente os cinco países costeiros,
cria inumeráveis variáveis de interdependência e força-os a cooperar,
enquanto ao mesmo tempo eleva a competição a um alto nível e estabelece
a plataforma para essa intensificada competição. Desempenha papéis de
ligação e de divisão.
Não admira que os cinco países estejam a construir as suas armadas
caspianas, antecipando um momento de crescente competição pelos
recursos e talvez imitando um jogo de computador com um estranho vírus,
que força os jogadores a acumularem um número cada vez maior de navios
num mar interior, o que não deixa de ser um local um pouco estranho. Em
outubro de 2015, uma fragata e três contratorpedeiros da Esquadra do
Cáspio russa lançaram 26 mísseis de cruzeiro Kalibr 3M-14T sobre 11 alvos
na Síria. Percorreram 1 600 quilómetros através dos espaços aéreos iraniano
e, depois, iraquiano, antes de atingirem locais nas províncias de Raqqa,
Alepo e Idlib. Foi uma impressionante ilustração de como o Cáspio ocupa
de facto uma posição central e estratégica. Tornou também evidente que o
alcance de uma marinha moderna não se confina necessariamente à sua
zona operacional. Finalmente, foi uma mensagem para os Estados do
Cáspio de que a Rússia goza de uma considerável superioridade na área,
sendo capaz de escolher alvos à sua vontade e com impunidade. Foi esse o
verdadeiro início da intervenção russa na Síria e a Esquadra do Cáspio tem
continuado a desempenhar um papel estratégico no conflito. Os navios
armados com mísseis Kalibr usados no mar Cáspio foram enviados uma
série de vezes em auxílio das Forças de Defesa Aeroespacial do país.
Deve ter sido por volta do meio-dia que avistámos a segunda cidade
imaginária. A princípio, Avaza parece uma ilha, porque os edifícios altos,
marmóreos e brancos estão ainda completamente rodeados por água na
linha do horizonte. O que será aquela ilha? Os edifícios parecem demasiado
imaculados para fazerem parte de uma plataforma industrial, o contraste
perfeito com a cidade negra de Neft Dashlari. Quando o Azerbaijão, o
nosso navio – uma beleza enferrujada construída nos estaleiros Pula da
antiga Jugoslávia em 1985 – guina para sul para a última etapa da travessia,
a ilha branca desaparece e quase me convenço de que fora uma espécie de
miragem aquática, talvez provocada pelos desertos que circundam o Cáspio
como um oceano exterior.
Quando a cidade branca reaparece, estamos a aproximar-nos de
Turkmenbashi; já não é uma ilha, mas mesmo assim os seus edifícios fazem
parecer pequenos os da cidade, incluindo o grande hotel em que fiquei.
Turkmenbashi é uma cidade maravilhosamente pitoresca, aninhada entre o
mar e as baixas montanhas rochosas, ainda bem preservada como o posto
avançado colonial russo que outrora foi, a primeira estação do caminho de
ferro transcaspiano, seguindo o percurso da velha Rota da Seda até Andijã,
no vale de Fergana, local de nascimento do conquistador Babur. Se
visitarem o pequeno museu local ouvirão uma sucessão de histórias onde o
distante e o próximo são misturados, histórias dos operários turcomanos que
remaram numa canoa de Turkmenbashi até Astracã e pelo Volga acima, ou
das tribos do deserto de antanho, que plantavam sempre uma árvore
próximo das suas iurtes, para que a geração seguinte tivesse a madeira
necessária para construir as suas próprias iurtes. Eu iria apanhar o comboio
da noite para a capital, Asgabate, daí a dois dias, mas por enquanto a tarefa
seria passar pela imigração e pela alfândega, o que levaria três ou quatro
horas, mesmo sendo eu o único estrangeiro a chegar nesse dia, ou, mais
provavelmente, nesse mês, a Turkmenbashi. Consegui também ver a carga
que tínhamos transportado: tubagens de petróleo usadas que a tripulação,
que por fim aparecera, me disse virem originalmente da Geórgia.
Fora de Asgabate, os estrangeiros têm de ser acompanhados por um guia
oficial. Isso tem as suas vantagens, pois cedo pude fazer perguntas acerca
daquela visão a norte.
Visitámos a cidade branca no dia seguinte. Avaza é a estância turística
mais improvável do mundo. Compreende um total de 30 ou 40 hotéis, um
clube naval e um salão de congressos, tudo construído num imaculado
mármore branco. Não existem iates à vista nem certamente eventos no salão
de congressos. Naquele dia não havia uma única pessoa em toda a estância.
O Turquemenistão concede menos de mil vistos por ano e a população local
vive numa absoluta pobreza. O meu guia observa que, na estação alta,
alguns dos hotéis enchem, pois são oferecidas estadias gratuitas como
prémios aos funcionários públicos mais dedicados do país. Outros hotéis
funcionam como casas de saúde para os doentes. E talvez o clube naval
venha a acolher a elite se, um dia, esta for impedida de sair do país. O
Presidente Gurbanguly Berdymukhamedov vem mesmo de vez em quando
a Avaza, posando para fotografias no seu iate, batizado Galkynysh numa
referência ao gigantesco campo de gás. Quando a Rússia cortou relações
com o Egito e com a Turquia em 2015, disse-se que Avaza poderia ocupar o
lugar de Sharm El Sheikh e de Mármara como destino dos turistas russos.
Quando me dizem que um bungalow aqui pode custar 500 euros por noite,
isso parece ser exagerado.
Duas amigas
Num livro publicado pela primeira vez em 1990, Aleksandr Soljenítsin
defendia que as quatro repúblicas centro-asiáticas – Turquemenistão,
Usbequistão, Quirguistão e Tajiquistão – poderiam ser inequívoca e
irreversivelmente «separadas», mas que o caso do Cazaquistão era
completamente diferente. «O seu presentemente enorme território»,
escreveu, «foi cosido pelos comunistas de uma forma completamente
casual: onde quer que os rebanhos fizessem uma passagem anual chamava-
se Cazaquistão». Os cazaques estavam concentrados nos seus ancestrais
domínios ao longo de um arco de terras a sul, desde a fronteira chinesa
quase até ao Cáspio. «A população aqui é na realidade predominantemente
cazaque.» Se quiserem separar-se, terão de fazê-lo, concluía Soljenítsin,
«dentro desses limites»13. O sentimento teve eco na atual liderança russa,
com Putin a sugerir em determinada ocasião que o Cazaquistão nunca foi
um país antes do colapso da União Soviética.
«O Cazaquistão é independente há quase 30 anos. Estamos bem.
Queremos ser independentes. Por que razão haveríamos de perder isso?»,
perguntou-me uma jovem cazaque chamada Maria, explicando-me o que
pensava sobre aqueles que questionam se o Cazaquistão devia ser um país
independente.
Conheci Maria Voronina e a sua amiga, Leila Tyulebayeva, num café da
moda no centro de Almaty, mesmo por detrás do edifício da ópera clássica.
Fiquei imediatamente surpreendido pelo contraste. Maria é eslava. A sua
família mudou-se da Ucrânia para Kentau, uma cidade no Sul do país, há
três ou quatro gerações. Leila é metade cazaque e metade tártara. Nasceu
em Almaty. Ambas têm vinte e muitos anos, embora Maria seja um pouco
mais velha.
Kentau dista apenas 20 minutos da tradicional cidade de Turquestão, lar
do santuário assombradamente inacabado de Qoja Ahmet Yasawi,
construído pelo conquistador Timur sobre o túmulo de um dos maiores
líderes espirituais do islão. Ainda hoje, muitos em toda a Ásia Central
consideram que três visitas ao santuário são equivalentes a uma
peregrinação a Meca. Eu visitara Turquestão, ficando impressionado com a
sua profunda religiosidade e o modo de vida tradicional na cidade, mas
Turquestão e Kentau são afinal muito diferentes. Esta última é uma cidade
nova, um lugar de imigrantes e deportados. Foi fundada pelos gregos
deportados da costa do mar Negro durante a Segunda Guerra Mundial e a
sua população original era uma mistura de gregos, ucranianos, coreanos,
alemães e judeus, muitas das nacionalidades reprimidas da União Soviética.
Os coreanos chegaram pela primeira vez ao Cazaquistão em 1937,
deportados de Vladivostoque por Estaline, que os achava uma ameaça à
segurança. Falavam um dialeto coreano que há muito desaparecera da
península, misturado com algumas palavras russas e, nalguns casos,
ensinaram a agricultura aos cazaques locais, que ainda eram nómadas.
Quanto aos alemães, os primeiros colonos chegaram à fértil estepe do Volga
na segunda metade do século XVIII. Poderá ter havido um total de perto de
dois milhões de alemães na Rússia quando, depois do ataque alemão à
União Soviética, em 1941, Estaline decidiu deportá-los para o Ártico, para a
Sibéria e, no caso dos mais afortunados, para o Cazaquistão.
Kentau situa-se no sopé das montanhas Karatau, local de muitas lendas
e lugares secretos que prometem a vida eterna ou uma numerosa prole
àqueles que conseguem encontrá-los, mas a cidade é absolutamente
moderna, um centro industrial e mineiro construído para o mundo moderno.
Existem muitos lugares como Kentau espalhados por toda a velha União
Soviética, claro, mas no escassamente povoado Cazaquistão poderão ter
sido capazes de moldar mais profundamente a cultura nacional.
«Em Turquestão toda a gente fala cazaque», explica Maria, «mesmo os
russos. Kentau é diferente. Em Turquestão, as pessoas esperam que se fale
cazaque. Turquestão é uma Meca religiosa. O mausoléu é um local sagrado.
Mas Kentau é diferente. Era uma cidade industrial com muitas
nacionalidades diferentes. Na minha escola deviam existir umas 10
nacionalidades diferentes».
Agora, isso mudou. Maria diz-me que a «comunidade internacional»
partiu quase toda, rindo-se do uso dessa expressão aplicada a uma cidade
construída por deportados. As suas primeiras memórias são de 1992. Do
outro lado da sua casa havia uma padaria e, da janela, ela conseguia ver
uma longa linha de pessoas a fazerem fila para o pão, estendendo-se por
centenas de metros. «Costumavam chamar-lhe uma pequena Suíça em flor,
mas Kentau estava a transformar-se numa dessas cidadezinhas onde o
sentimento de desespero enche o ar.» Fazia tanto frio dentro das casas que,
de noite, a cidade enchia-se do fumo dos troncos a arderem em fogareiros
improvisados, chamados burzhuika. Como em quase toda a parte na antiga
União Soviética, esses foram os anos em que a sociedade se dividiu em dois
grupos: aqueles que lutavam por ganhar dinheiro de qualquer forma
possível, legal ou ilegal, e aqueles que esperavam que o Estado tomasse
conta de tudo, numa altura em que o Estado mal conseguia tomar conta de
si próprio.
Maria não tinha um desses fogareiros em casa, porque a avó achava que
a casa ficaria suja. A limpeza era a única forma de controlo que conhecia e
apresentar uma casa limpa e comida a única forma de afeto que
compreendia. Quando apanhavam Maria a beber ou a fumar, a mãe e a avó
batiam-lhe e chamavam-lhe nomes, mas ela recorda esses momentos como
a única altura em que estavam verdadeiramente próximas umas das outras,
«partilhando emoções e sentimentos de uma forma bastante pervertida».
Quando cresceram, tanto Maria como Leila tiveram namorados de todos
os grupos étnicos. Maria namorou tártaros, cazaques e um russo que era na
realidade alemão, um dos alemães do Volga que acabaram no Cazaquistão
depois das deportações de Estaline. Quanto a Leila, a sua família nunca
mostrou qualquer preferência pelos rapazes com quem namorasse. Embora
os seus pais não fossem muçulmanos particularmente devotos, os seus avós
eram aparentemente ainda menos. Afinal de contas, se recuarmos três ou
quatro gerações, não acabamos por nos encontrar num ambiente de tradição
primordial, mas mesmo no meio do entusiasmo revolucionário soviético.
Uma vez que o russo é a sua primeira língua, poderá ser considerada por
alguns uma «shala Kazakh», um termo pejorativo que significa «meia
cazaque». Ela já não se considera muçulmana e na realidade passou algum
tempo a estudar a religião mórmon e pensou em tornar-se mórmon.
Maria fala melhor o cazaque, embora, sendo etnicamente eslava, não se
esperasse que isso acontecesse. Perguntei a mim mesmo se não estariam
ambas a ser projetadas por histórias que recuam a décadas ou séculos: a
eslava exilada que se torna um pouco mais asiática à medida que o tempo
passa e a turca ou cazaque desenraizada que, lentamente, perde todos os
vestígios do mundo original. Olho para as duas amigas à minha frente como
duas histórias que se movem em sentidos opostos e que se intersetam, por
acaso, no seu caminho.
Conheceram-se no primeiro dia da universidade e têm sido as melhores
amigas desde então, mas as suas vidas têm propósitos cruzados sob aspetos
interessantes. Foram admitidas na universidade com as notas mais altas nos
exames e sabiam uma da outra mesmo já antes do primeiro dia, como
possíveis rivais, mas também como objeto de curiosidade. Maria é
etnicamente ucraniana, mas parece não ter qualquer interesse pela Europa,
nem pela cultura europeia. «Costumava ler alguns filósofos alemães, como
Nietzsche, mas é tudo. Claro que um dia gostaria de ir à Europa, para ver
alguns dos edifícios, mas não há nada no meu coração que me atraia. O meu
coração leva-me para a China, para o Japão, para a Turquia. Gostaria
mesmo de visitar o Usbequistão, o Irão, o Iraque, mais do que a Europa. Eu
pareço europeia. Seria demasiado confortável, não seria um grande
desafio.»
Leila, por outro lado, tem um interesse óbvio pela Europa, dizendo-me
que gostaria de viver na Europa durante algum tempo e visitar os sítios
todos, um a um. Quando lhes pergunto em que cidade ou país gostariam
mais de viver, as respostas correspondem aos seus caracteres. Maria
gostaria de viver na Turquia, ou talvez na Tailândia. Leila escolhe
Amesterdão e a Califórnia, os lugares onde toda a gente anda ocupada a
inovar e a quebrar as convenções. A única coisa em comum entre as suas
escolhas é despreocupadamente revelado por Maria: «Tem de ser um país
com praia, claro.»
Leila costumava pensar que o Cazaquistão era um país asiático e, por
vezes, continua a referir-se a ele nesses termos, mas, depois de viver um
ano na Coreia, já não está tão convencida. Agora, mesmo indo ao vizinho
Usbequistão, sente-se num mundo diferente, «cheio de exotismo» e nada
como aqui. Numa altura em que todas as grandes potências querem
deslocar-se para o centro do supercontinente, o Cazaquistão desfruta da
sorte de já lá se encontrar.
Pergunto-lhes com quem acham que o Cazaquistão tem maior afinidade:
a Rússia, a Turquia, a China, a Europa ou a América? Onde está o coração
cazaque? Tanto Maria como Leila me dizem que os cazaques tomam como
garantido o facto de estarem no meio e de que sempre estarão no meio.
Talvez o seu coração esteja na costa e no distante oceano. Como se fosse
para confirmar a minha teoria, nessa noite iria à Ópera de Almaty para ver
uma representação de Os Pescadores de Pérolas, de Bizet, cuja ação
decorre na praia em Ceilão e cuja principal personagem é uma sacerdotisa
brâmane, chamada Leila.
5
SONHOS CHINESES
Orientalismo techno
«M asreconhecimento
é preciso um algoritmo para o inglês e outro para o chinês no
do discurso, por isso as máquinas terão a sua
própria identidade nacional.»
O meu interlocutor sorriu.
«Nada disso. O algoritmo é bastante universal.»
«O que quer dizer?»
«Aprender a reconhecer o discurso e o processo de aprendizagem
funciona de igual modo para todas as línguas. Se for alimentado com os
dados, aprenderá latim ou sânscrito. Alguns algoritmos inventaram mesmo
as suas próprias línguas.»
Tinha ido ao Parque Tecnológico de Baidu, no Distrito Haidian de
Beijing, para me encontrar com Yuanqing Lin, diretor do Instituto de
Aprendizagem Profunda de Baidu. O complexo consiste em cinco edifícios
distintos, ligados por pontes cobertas, sobre um jardim botânico central,
onde pequenos cursos de água e árvores recém-plantadas revelam
gradualmente uma cápsula espacial no centro. É fácil perdermo-nos aqui.
Haidian alberga vários parques tecnológicos, cada um com dezenas ou
centenas de empresas já estabelecidas e de start-ups, numa escala talvez de
metade de Silicon Valley, mas aproximando-se rapidamente deste. A
comparação impõe-se ao visitante de Baidu, que é recebido no jardim e
depois no átrio por enormes rampas que ligam os pisos superiores, o
símbolo das velozes empresas de internet em todo o mundo.
O Instituto de Aprendizagem Profunda é uma das formas através das
quais Baidu, o gigante da investigação chinesa, está a tentar manter-se na
vanguarda da inovação, nomeadamente certificando-se de que os mais
recentes avanços tecnológicos podem ser usados com rapidez entre
diferentes empresas, incluindo o algoritmo de pesquisa essencial. A
aprendizagem profunda é uma velha ideia da inteligência artificial e muitos
pensam que é a nossa melhor aposta na criação de software que nos
transportará até muito perto – e, em muitos casos, para lá – das capacidades
humanas. Baseia-se em duas ideias. Primeiro, que as máquinas inteligentes
têm de ser capazes de aprender por si mesmas como desempenhar tarefas
complexas. Se tivermos quantidades suficientes de dados e de poder
computacional, deverá ser possível alimentar uma máquina com pares de
input e output do mundo real e deixar que ela desenvolva a melhor equação
para obter um a partir do outro. Por exemplo, fornecido enorme número de
fotografias de cães, um computador descobrirá por si os traços
identificativos mais fiáveis de um cão. Isto conduz-nos à segunda ideia
principal: os dados têm de ser organizados em camadas estruturadas
complexas, para poderem simular objetos do mundo real que são
igualmente complexos. O termo «aprendizagem profunda» refere-se à
forma como cada unidade de computação recebe informação de uma
unidade de computação anterior em padrões cada vez mais abstratos e
generalizados. Cada unidade da camada inferior recebe dados externos,
como pixéis numa imagem, e depois distribui essa informação a algumas ou
a todas as unidades na camada seguinte. Cada unidade nessa segunda
camada integra então as suas informações vindas da primeira camada e
passa o resultado mais para cima. Eventualmente, a camada superior
fornece o resultado: uma correspondência do cão no exemplo acima. Neste
aspeto, a inteligência de máquina acaba por se parecer com a forma como
uma grande série de neurónios trabalha no cérebro humano.
O reconhecimento do discurso e da imagem encontram-se entre as
aplicações mais imediatas da aprendizagem profunda. Yuanqing contou-me
como o Baidu conseguira desenvolver aplicações de reconhecimento de
discurso praticamente infalíveis, mesmo que o utilizador opte por sussurrar
para o seu dispositivo, em vez de falar normalmente. Estão agora a
concentrar os seus esforços sobre a forma de aplicar a aprendizagem
profunda à condução automatizada. Aplicá-la a sistemas de previsão ainda
está consideravelmente longe no futuro, mas o futuro aproxima-se a cada
dia.
«Como descreveria aquilo que é diferente na forma como os chineses
abordam a tecnologia?», perguntei-lhe. «Não apenas aqui no laboratório,
mas também lá fora na rua.»
«A intensidade da interação social. Os chineses veem-se em termos
coletivos.»
Yuanqing trabalhara nos Estados Unidos durante alguns anos. Ao
regressar à China, a principal necessidade de reajustamento cultural foi
corrigir a severa privacidade de Silicon Valley. Seria impensável, por
exemplo, alguém na Califórnia ligar-lhe para o telefone, sem antes avisar.
Na China, toda a gente telefonava, sem aviso, a toda a hora.
Parece estranho levantar esta questão quando se fala de tecnologia, mas
de facto não poderia ser mais relevante e esclarecedor. A tecnologia está,
em toda a parte, dependente de processos de interação social, desde o
trabalho de equipa no laboratório até às formas pelas quais as diferentes
tecnologias são difundidas através da sociedade. Diferentes soluções
precisam de ser testadas contra todas as alternativas disponíveis. Este é um
processo social. Mesmo as formas pelas quais os consumidores finais
comunicam entre si acerca dos novos dispositivos são, no final,
determinadas pela profundidade e diversidade destes padrões numa
determinada sociedade. É certamente plausível pensar que as intensas
formas de interação social têm sido responsáveis por processos de
desenvolvimento e difusão mais eficientes na China. Seja como for, o ponto
servirá para ilustrar como duas civilizações científicas podem diferir
substancialmente. Os padrões e as regras ditados por uma cultura científica
estão ainda dependentes do mundo de todos os dias, do qual são abstraídos.
Se andarem hoje em dia por uma cidade chinesa, as aplicações da
aprendizagem profunda poderão ser observadas por todo o lado à vossa
volta. O software de reconhecimento de discurso é tão fiável que muitos
jovens agora ditam os seus ensaios universitários. Se tirarem uma fotografia
de um objeto qualquer de que gostaram, um software especial poderá
encaminhar-vos diretamente para um site que o vende. Se tiverem um
acidente rodoviário, é fácil puxarem do vosso smartphone, tirarem uma
fotografia e usarem o reconhecimento de imagem para determinar os danos
e preencherem uma participação do seguro. Um professor universitário em
Chengdu usa a tecnologia de reconhecimento de rosto não apenas para
registar a frequência, mas também para ajudar a determinar os níveis de
aborrecimento entre os seus alunos. As aplicações de tradução tornam fácil
aos locais e aos turistas terem longas conversas falando as suas próprias
línguas. Uma aplicação desenvolvida no Baidu usa a visão do computador
para ajudar os invisuais, dizendo-lhes o que está à sua frente, desde
informações simples mas importantes como o valor das notas, até factos
mais complicados, como a idade de um interlocutor. O Baidu tem também
parcerias com uma rede global de restauração para abrir um novo
restaurante «inteligente» em Beijing, que emprega o reconhecimento facial
para fazer recomendações sobre o que os clientes poderiam pedir, com base
em fatores como a idade, género e expressão facial. O hardware de
reconhecimento de imagem instalado no restaurante percorre os rostos dos
clientes, procurando inferir disposições e extrair outra informação,
incluindo o género e a idade, para compor a sua recomendação.
A China parece ter entrado numa nova fase no desenvolvimento da
internet em que os mundos digital e físico ficaram mais estreitamente
ligados. Um dispositivo móvel na China é acima de tudo uma ligação e um
índice do mundo físico. Existem explicações plausíveis para isto, tal como a
alta densidade populacional, ou o facto de, na China, o primeiro dispositivo
computacional da maioria das pessoas ter sido um smartphone e não um
computador pessoal: sempre ligado e sempre fácil de deslocar. Suspeito,
contudo, que a principal razão é uma abordagem filosófica diferente à
internet. Os chineses veem a internet como uma ferramenta para agir no
mundo e talvez mesmo para o modificar e não como uma forma de
interpretá-lo. Os usos mais inovadores da internet estão a ser desenvolvidos
não por empresas de internet, mas por promotores imobiliários, bancos e
companhias de seguros e grandes herdades industriais. As empresas
chinesas estão apostadas em ser as primeiras a levar a internet para os
sectores menos sofisticados da economia real.
As aplicações de mensagens para dispositivos móveis, como a WeChat,
podem ser usadas para pagar a renda ou um café, para encontrar lugares de
estacionamento, para obter direções, para trocar contactos após uma
reunião, chamar veículos das empresas de táxis tradicionais, marcar uma
consulta médica, fazer doações, enviar dinheiro para os amigos ou para a
família, ou assistir em direto a uma aula universitária. Há dois anos, o
serviço lançou uma campanha do «pacote vermelho», em que os
utilizadores podiam enviar dinheiro digital para os amigos e a família para
celebrar o Novo Ano Chinês, em vez de enviarem notas num envelope
vermelho, como é habitual. Um inquérito ao comportamento dos
utilizadores de 2017 verificou que 87,7 por cento dos utilizadores da
WeChat usam a aplicação para a comunicação no trabalho diário. Os
telefones, as mensagens de texto e os aparelhos de fax eram usados por 59,5
por cento e o correio eletrónico por 22,6 por cento. Até os roubos dos
carteiristas foram digitalmente transformados: os larápios colam os seus
próprios códigos de resposta rápida sobre os originais, enganando os
utilizadores que acabam por fazer pagamentos para as suas contas, ou
roubando-lhes a sua informação pessoal. Aquilo a que Yuanqing chamava
«a natureza coletiva da China» está presente em tudo isto. Ao contrário da
página do Facebook, com o seu claro preenchimento e padrões de
assinatura, um grupo de WeChat é desorganizado; toda a informação é
igual, surgindo e deslocando-se para o fundo como se fosse produzida por
um único autor.
Regressar à Europa após uma visita à China é semelhante a regredir no
tempo, a um mundo em que as notas, o correio eletrónico e os cartões
profissionais ainda estão em uso. Os europeus acostumaram-se a novas
formas de conservadorismo social e tecnológico, uma resistência
generalizada à mudança que em toda a parte ergue a cabeça, muitas vezes
sob uma severa inquisição reguladora, ao passo que a Ásia parece viciada
na mudança, muitas vezes por si só. Este é o caso em particular do Extremo
Oriente, onde uma paixão pela tecnologia parece ter a sua própria lógica,
desligada do uso prático. Quem visite o Japão achará porventura esse o seu
traço mais característico, mais visível do que o cuidadoso protocolo e os
rituais ainda mais ou menos preservados num lugar como Quioto. Parece
que, na Europa ou nos Estados Unidos, não é permitido que a tecnologia
cresça com demasiado vigor, nem com demasiado destaque. No Japão não
existem limites, de modo que as pessoas se podem encantar com excessos
mais ou menos inúteis, como a porta do táxi que abre automaticamente, o
tampo da sanita equipado com múltiplas funções, ou o elevador que se
aproxima da velocidade de cruzeiro de uma pequena aeronave. Ao escrever
em 2001, o autor de ficção científica William Gibson tentava explicar o seu
fascínio pelo Japão. A resposta que deu foi que o Japão se tornara «o
cenário de fundo da imaginação global para o futuro». Os japoneses
pareciam viver alguns passos à frente na linha do tempo, «um mundo
reflexo, um planeta alienígena com o qual podemos na realidade interagir,
um futuro1».
Porque é que as coisas levaram este rumo? O jornalista e académico
britânico Martin Jacques sugere que o elemento crucial é a velocidade da
transformação. Como as sociedades do Extremo Oriente foram forçadas a
ombrear com o Ocidente num curto período de tempo, desenvolveram uma
experiência de mudança que é estruturalmente diferente daquela que se tem
na Europa ou nos Estados Unidos2. Aí, a experiência individual foi de
algum modo isolada das grandes mudanças históricas, que nalguns casos
ocorreram de facto para além do período de vida de uma única pessoa. No
Japão, na Coreia, ou agora na China, a mudança histórica é quase síncrona
com o ritmo de uma vida individual. A experiência de regressar a uma
cidade como Beijing após uma ausência de 10 anos é uma boa ilustração
disto, enquanto lutamos para encontrar as nossas referências em lugares que
não têm quase nada em comum com as nossas recordações deles.
No passado, as tentativas para ombrear com o Ocidente pareciam
sempre ter uma falha em relação a algum aspeto crucial. Por vezes,
falhavam quase imediatamente por se limitarem à última vaga de produtos
ou invenções ocidentais, geralmente no campo militar, esquecendo que,
para os usar, é preciso adotar certos comportamentos e práticas. Mesmo
quando penetram mais fundo no organismo social, as reformas de
modernização ou colidem com outros elementos na sociedade que estão por
reformar, ou reproduzem meramente uma fase anterior de desenvolvimento
no Ocidente, sendo rapidamente suplantadas pela fase seguinte. As últimas
décadas em países como o Japão, a Coreia e a China parecem ter sido
estruturalmente diferentes, na medida em que estas sociedades captam o
espírito da sociedade e da tecnologia modernas de uma forma muito mais
direta, fazendo-nos interrogar se não a terão de facto interiorizado com
menos restrições do que o próprio Ocidente. Irá a China parar quando sentir
que finalmente apanhou a Europa e os Estados Unidos, ou prosseguirá em
frente, em direção a novas tecnologias com poderosas consequências
sociais, políticas e humanas? No presente momento, os fabricantes na China
estão a planear introduzir a robótica e a automatização a uma escala sem
precedentes, esperando criar «fábricas escuras», em que as luzes poderão
ser desligadas, porque só lá estarão máquinas. A fratura nos hábitos sociais
e nas estruturas é óbvia, mas muitos veem isto como a primeira revolução
tecnológica a ser conduzida pela China, que lhe dará um ímpeto que falta à
Alemanha ou aos Estados Unidos, países que já tiveram a sua era na ribalta.
A grande divisão entre a Europa e a Ásia baseava-se na noção de que a
Europa se tinha deslocado para uma era histórica diferente, ela própria
marcada pelo progresso e pela contínua mudança, ao passo que a Ásia se
mantivera prisioneira da tradição, em que qualquer mudança, a acontecer,
não passaria de um movimento circular. Os europeus viajavam até ao Irão, à
Índia ou à China à procura dessa variedade do exótico que identificavam
com o seu próprio passado histórico e encontrariam aí um aviso silencioso
acerca do mundo a que poderiam regressar se alguma vez abandonassem a
sua fé nos valores modernos. É interessante observar como essa forma de
olhar o mundo – em que o mundo inteiro é obrigado a encaixar-se nas
categorias do desenvolvimento histórico europeu – foi agora virada de
cabeça para baixo. Não sendo já a terra da eterna estagnação, a Ásia parece
agora ter uma pretensão especial acerca do futuro. Se alguma cidade parece
ter realizado a estética de Blade Runner, simultaneamente escura e
brilhante, essa cidade é certamente Beijing. Isto é ainda uma distorção de
como o Ocidente olha para a China, mas de sinal oposto. O esforço para se
ser inteiramente moderno poderá agora ser uma ansiedade que afete a
Europa mais do que qualquer outro sítio. Neste processo, os europeus
projetam sobre as sociedades asiáticas a tarefa de viver, não no passado,
mas no mundo da ficção científica, onde nada é muito real durante muito
tempo. Mudaram de sociedades que se deslocavam muito devagar para
sociedades que se movem demasiado depressa.
Com isso, a grande divisão terminou.
A questão ocidental
Desde a ascensão da moderna Europa nos séculos XVI e XVII, o sistema do
mundo preservou a mesma forma essencial. Os Estados fora do núcleo
central eram confrontados com a opção de adotar as ideias e a prática
europeias, ou de serem soterrados pela civilização europeia, representada
por um dispositivo económico e tecnológico que assegurava, entre outras
coisas, uma supremacia militar sem paralelo, mas também por uma
ideologia iluminista que visava diretamente o cerne de todas as formas
tradicionais de pensamento. Países como o Japão, a Turquia e a Rússia
destacam-se devido ao esforço concentrado que dedicaram a resolver este
dilema. No caso da Rússia, a resposta teve um nome: o comunismo. Como
ideologia, o comunismo marxista ou ocidental está tão intimamente ligado à
dinâmica interna da «Questão Ocidental» que se poderá justificadamente
concluir que não desempenhou outro papel histórico.
Todos os ramos do totalitarismo do século XX, com todas as suas
diferenças e complexidade, poderão ser melhor interpretados como uma
reação particular à Questão Ocidental. A Alemanha – no seu vacilante e
tortuoso movimento em direção ao Ocidente –, o Japão e a União Soviética
viam-se como tendo de reagir à opressora dominação das ideias ocidentais,
representadas pela simbiose do comércio britânico e da liberdade francesa,
mais tarde assumidos a uma escala continental pelos Estados Unidos. Por
um lado, essas eram ideias estrangeiras, quase instintivamente declaradas
inferiores e decadentes. Por outro, o seu poder era inegável. A sua
capacidade para produzir as máquinas mais avançadas e aumentar a
produção industrial, alimentando assim grandes estruturas estatais, colocava
uma ameaça para todos aqueles que se atravessassem no seu caminho. A
solução que tanto o fascismo como o comunismo desenvolveram foi a de
extrair das sociedades ocidentais apenas aqueles elementos que estavam
diretamente ligados a esse elemento de poder. A sua forma de poder era a da
veneração e as sociedades totalitárias vieram a ser fundadas sobre essa
veneração. Como Mussolini escreveu na sua Doutrina do Fascismo, de
1932, «o Estado fascista expressa a vontade de exercer o poder e de
comandar».
Isso é muito bem dramatizado no romance Naomi, de Junichiro
Tanizaki, escrito em 1924. O protagonista do romance está apaixonado pelo
Ocidente, simbolizado pela jovem Naomi. Ela é, claro, japonesa – tal como
a imagem do Ocidente que o seu admirador persegue é japonesa –, mas
tanto o seu nome como os seus traços têm em si algo de distintamente
ocidental. «Pareces a Mary Pickford», diz-lhe ele, pouco depois de se
conhecerem. «Todos dizem que pareço eurasiática», responde ela. Num
momento crucial da história, o jovem compreende subitamente que não há
nada de espiritual no seu amor. Como ele diz, acaba por ter de reconhecer
que Naomi não era tão inteligente como ele esperara e que nunca poderá
tornar-se no seu modelo de mulher perfeita e sofisticada. «Má educação é
má educação.» E a sua paixão desaparece então? Nada disso. Da mesma
maneira que o seu espírito deixara de exercer qualquer atração, o seu corpo
atraía-o ainda mais poderosamente. Era a sua pele, os seus dentes, o seu
cabelo, os seus olhos que o atraíam. Não havia nisso nada de espiritual. Ela
traíra as suas expetativas em relação ao seu espírito, mas o seu corpo
ultrapassava agora o seu ideal.
Não é de surpreender que, a partir desse momento, a história conheça
uma viragem negativa, do mesmo modo que Tanizaki receava que a política
japonesa sofresse um desvio perigoso quando viesse a incorporar uma
atração desesperada pelo poder material do Ocidente, divorciada da forma
de vida que lhe dava um significado mais profundo. O Japão estava em vias
de criar uma sociedade espiritualmente vazia, sugere, porque estava a tentar
copiar o Ocidente no sentido muito limitado de copiar o seu poder físico e
material.
Para os nacionalistas russos, o aparelho ideológico do comunismo
oferecia um número de vantagens ou possibilidades. Num mundo cultural
fortemente exposto à influência ocidental já durante dois séculos, havia
poucas hipóteses de qualquer ideologia interna poder ser tomada a sério em
termos de desafio ao Ocidente. O comunismo, por outro lado, era uma
importação do Ocidente e transportava consigo todo o prestígio intelectual
dos produtos ocidentais. Ao mesmo tempo, não fazia parte do aparelho de
Estado ideológico do Ocidente. Formado como uma ideologia
revolucionária destinada a derrubar a sociedade ocidental na sua presente
forma, o comunismo poderia ser facilmente apropriado pelos nacionalistas
russos na sua luta global contra o Ocidente. A imitação só por si nunca
funciona, mas se imitarmos aquilo que o nosso objeto de imitação está a
tentar reprimir quanto a si próprio, talvez consigamos ter êxito. Talvez
consigamos derrubar enquanto estamos a imitar. O melhor de dois mundos,
ou é pelo menos o que deve ter parecido.
Os nacionalistas russos perceberam claramente que a supremacia
ocidental se baseava numa visão científica do mundo, um sistema coerente
de ideias e tecnologia, ao qual não se poderia resistir apenas através da
tecnologia. O comunismo existia no mesmo plano e, assim, poderia oferecer
o mesmo valor propagandístico do que o liberalismo ocidental. Oferecia,
em qualquer dos casos, uma outra poderosa vantagem. Era uma ideologia
que sublinhava os aspetos materiais e económicos da sociedade acima de
todos os outros e poderia assim ser usada pela Rússia para concentrar a sua
energia precisamente nessa área onde precisava de recuperar em relação ao
Ocidente. Num discurso em 1928, Estaline dizia:
Muhannad não está no restaurante no dia em que o visito, por isso faço
questão em voltar no dia seguinte, mas talvez tenha voltado a chegar
demasiado cedo. Abdul aponta para o carro estacionado lá fora, onde o seu
patrão está profundamente adormecido.
Por fim, à medida que o restaurante começa a encher, decidimos acordá-
lo e sentamo-nos a tomar uma chávena de forte café turco. Muhannad
conta-me a história de como veio a acabar em Yiwu. É uma história de
crescente presença chinesa e de poder «suave». Seguiu um tio até à
Tailândia, onde abriu um restaurante, mas a grande parte dos clientes, tanto
turistas como homens de negócios, eram chineses e tão maravilhosas eram
as histórias de dinheiro e sucesso que contavam que Muhannad cedo se
mudou para Cantão e de Cantão para a nova jóia da coroa do comércio
internacional em Yiwu, com as suas profundas ligações árabes. Perguntei-
lhe como é que Xi tinha sabido do restaurante. Alguma vez lá comera?
Muhannad não o confirma, mas certamente quer que eu acredite nisso. O
«sonho chinês» é bom para o negócio.
Depois, após a conversa amainar um pouco, voltamo-nos para a tragédia
na Síria. Os negociantes da Síria têm vindo para Yiwu desde que a cidade
começou a tornar-se um moderno centro comercial há 50 anos, mas agora o
influxo é de jovens que fogem da guerra, mesmo que oficialmente
continuem a chegar com vistos de negócios – como todos os que aqui estão
– e não como requerentes de asilo. Muhannad mostra-me fotografias de
recentes reuniões da comunidade num grande salão decorado com balões
vermelhos, brancos e verdes, as cores da bandeira da Síria. Não posso
deixar de pensar que todos aqueles balões devem ter ido do mercado.
Existem agora perto de mil sírios em Yiwu. Com a sua grande mesquita
e o seu infinito mercado, um bazar da era espacial, a cidade oferece-se, nos
corações destes homens e destas mulheres, como uma reprodução industrial
das cidades que deixaram para trás.
6
A ILHA
O
s funcionários russos nunca o dirão em público, mas em privado
confessam as crescentes preocupações com o cerco chinês. Isto tem
que ver com a luta pelo poder e pela influência na Ásia Central, mas
também com uma clara inversão de papéis. Até agora, a Rússia sempre
desempenhou o papel central do poder tecnológico e industrial na Ásia, ao
passo que a China continuava a ser uma economia de mercadorias, talvez
uma fonte de produtos alimentares para os países industriais. As
infraestruturas eram um exemplo óbvio do domínio económico russo e, pelo
menos durante um século, a via-férrea transiberiana constituía a ligação
inevitável entre os oceanos, ajudando a Rússia como um todo a definir-se
como a conexão entre o Oriente e o Ocidente. Essa infraestrutura corre
agora o perigo mortal de se tornar obsoleta, por causa da ausência de
manutenção e de modernização e, mais decisivamente, devido a duas ou
três alternativas que estão agora a ser desenvolvidas a sul. «Estão
preocupados com o Cintura e Rota?», perguntei a um diplomata russo no
Cazaquistão. «Claro que estamos», foi a resposta. «Não somos parvos.»
Xinjiang pode orgulhar-se de ter fronteiras com oito países diferentes,
da Mongólia à Índia, ao passo que a Rússia é agora uma presença muito
mais distante, como era antes da expansão a sul no século XIX. O
Cazaquistão ainda tem alguns milhões de pessoas de etnia russa entre a sua
população, mas estão concentradas próximo da fronteira russa, e a
influência económica, medida em fluxos de investimento e controlo sobre
as indústrias estratégicas, está a ser rapidamente transferida para a China,
um processo que será completado e tornado irreversível pela Cintura
Económica da Rota da Seda. Para mim é claro que, se a Rússia tentasse
reintegrar o Cazaquistão dentro da sua esfera de influência, como está a
tentar fazer no caso da Ucrânia, a China não ficaria a assistir. O Cazaquistão
tornou-se demasiado importante.
A fronteira entre a Rússia e a China tornou-se provavelmente a mais
pacífica da História da Rússia e nada nos permite supor que isso venha a
mudar. Pelo contrário, as tensões crescentes entre a Rússia e o Ocidente em
resultado da crise da Ucrânia forçaram-na a virar-se mais para a China, uma
fonte de investimento alternativa, que financia e expande o mercado para as
exportações de petróleo e gás. Três meses após o início da crise da Ucrânia,
a Gazprom assinou um acordo avaliado em 400 mil milhões de dólares para
fornecer gás natural à China por um período de 30 anos. A construção do
gasoduto, o «Energia da Sibéria», foi devidamente iniciada tanto na Rússia
como na China, incluindo a secção que cruza a fronteira, uma ligação
subterrânea que atravessa o rio Amur.
Se uma das razões pela qual a Rússia se tornou receosa da crescente
influência chinesa foi o relativo subdesenvolvimento das suas regiões
orientais, poderá ser possível reagir a esse risco cooptando o poderio
económico chinês e usando-o para planear um novo ímpeto económico para
a Sibéria e o Extremo Oriente. As barreiras políticas informais limitando o
investimento chinês na Rússia foram atenuadas. Por exemplo, em fevereiro
de 2015, o vice-primeiro-ministro Arkady Dvorkovich anunciou que as
empresas chinesas seriam agora bem-vindas na compra de bens no sector
dos recursos naturais e na participação em contratos de infraestruturas. Por
vezes, isso é levado ainda mais longe, sendo feita a sugestão de que, se a
Rússia e a China fossem capazes de chegar a um entendimento estratégico,
poderiam formar uma nova entente, moldando decisivamente a geopolítica
eurasiática a seu favor. Outros comentadores falaram acerca de novas
relações entre os dois gigantes como não tendo sido nada de premeditado. A
Rússia encontrou-se de súbito numa situação em que não poderia dar-se ao
luxo de abrir simultaneamente duas frentes de conflito. Pelo contrário, o
sentimento de isolamento internacional depois da anexação da Crimeia
talvez tenha feito com que as elites russas ficassem ansiosas por estabelecer
novas alianças com parceiros que pudessem partilhar o seu sentimento de
alienação dos valores ocidentais. Quanto à China, parece claro que o seu
esquema de política externa foi apanhado desprevenido pelos
acontecimentos na Ucrânia. Quando finalmente se decidiu como haveria de
lidar com a Rússia, as instruções foram no sentido de encorajar uma
reaproximação que, em si mesma, prometia criar oportunidades comerciais
e políticas interessantes1.
Os receios e as esperanças ocidentais, por vezes combinados, de que a
Rússia e a China pudessem formar uma aliança permanente com pretensões
hegemónicas ou, em alternativa, que uma tal aliança pudesse ser quebrada
sob o peso das rivalidades passadas e presentes, são igualmente errados.
Existe muito nas novas relações entre os dois países que é de natureza
estrutural e que apenas reproduz padrões igualmente observados nas suas
relações com a União Europeia. Relevantes entre aquelas são as relações de
interdependência, decorrente da aposta que todos os atores fazem num
sistema comum de regras e instituições. Mas, por outro lado, esse sistema
está aberto a mudanças, as suas regras podem ser influenciadas ou
determinadas por opções e ações dos diferentes participantes e, em
resultado disso, inclinadas mais a favor de um ou de outro e não de todos. É
um jogo competitivo e um jogo de todos contra todos. Além disso, a noção
de que a Rússia e a China partilham ideias políticas e económicas
semelhantes é uma falácia resultante do tradicional dualismo entre a
liberdade ocidental e a ditadura oriental, juntando todas as variantes da
última por não se encaixarem na primeira. Como Bobo Lo defende num
recente livro, a crítica russa aos valores políticos ocidentais não é
certamente equivalente à adoção de uma alternativa asiática. Talvez o
Kremlin se converta um dia a uma versão chinesa de capitalismo
autoritário, mas até aqui isso ainda não aconteceu e uma reforma na Rússia
segundo linhas chinesas envolveria mudanças tão drásticas que há todas as
razões para duvidar da possibilidade da sua concretização: a completa
diversificação da economia, afastando-a do gás e do petróleo, o crescimento
e o fortalecimento exponenciais das pequenas e médias empresas e uma
significativa devolução do poder às regiões e aos municípios2.
A Rússia poderá escorregar para uma relação de dependência acrescida,
mas, se essa for a melhor de todas as alternativas disponíveis, poderá
mesmo assim achar que está a ganhar algo de volta, em especial se a China
tiver a sua atenção focada no confronto mais importante com os Estados
Unidos, um confronto com o qual a Rússia poderá sentir alguma afinidade.
Mas, enquanto a dependência estiver a ser trocada por benefícios tangíveis,
o sistema continuará a adaptar-se à mudança e sem dúvida Moscovo
continuará a tentar ativamente criar as condições para uma influência
crescente sobre Beijing.
O jogo poderá por vezes tornar-se extremamente complexo. Nos anos
anteriores à anexação da Crimeia, a China enviou pessoal militar para a
Ucrânia para aprender como o país treinava os seus pilotos dos porta-
aviões, a preparar a constituição do seu primeiro grupo de combate. A base
aérea de Novofedorivka, na Crimeia, é um dos muito limitados lugares no
mundo onde isso pode ser feito, o único desses complexos alguma vez
construído em toda a União Soviética. A Ucrânia estava a planear arrendar o
complexo à China, por isso a anexação da península da Crimeia tinha o
benefício acrescido de transformar a Rússia num parceiro indispensável
naquilo que é admissivelmente o tabuleiro central na expansão militar da
China, à medida que se desloca da pura defesa costeira para uma projeção
do seu poder através dos oceanos Pacífico e Índico. Os planos chineses para
uma nova geração de porta-aviões baseiam-se na conceção e tecnologia
russas, uma opção que remonta à sua aquisição do Varyag ucraniano em
1998, supostamente através de uma companhia de Hong Kong que
tencionaria convertê-lo num casino. O porta-aviões, construído em 1985
para a Marinha Soviética e lançado à água em 1988, foi rapidamente
reequipado e requisitado pela Marinha Chinesa.
A imagem de uma Rússia passiva forçada a seguir o domínio da China
sofre de uma série de falácias. Mesmo que fosse verdade que a Rússia se
sente agora vulnerável ao poder chinês, a experiência ensina que, em tais
casos, tentará corrigir o desequilíbrio através de diferentes medidas de
improvisação e surpresa táticas, procurando formas de tirar partido do
crescimento da ambição da China. Há ainda tanto para determinar na
natureza da relação entre os dois países que quaisquer planos caem
redondamente no domínio da geopolítica e da teoria política fantasiosas,
atraindo aqueles que possuem uma ativa imaginação política. Depois das
minhas viagens pelo Extremo Oriente e pela Manchúria, fiquei a pensar que
a fronteira entre a Rússia e a China se aproxima mais do nosso conceito
ideal de fronteira do que em qualquer outro caso. O simples ato de
atravessar uma linha arbitrária é aqui equivalente a entrar num mundo
cultural separado, sem gradações nem transição, e o facto de a fronteira não
ter nem uma história rica nem acidentada é certamente o resultado de
ambos os países terem até agora vivido de costas voltadas.
No variável e complexo jogo de xadrez eurasiático, talvez não haja um
vetor com maiores consequências como o que é representado pela opinião
da Rússia sobre a China. Estas opiniões estão a mudar rapidamente, à
medida que a China se ergue e a Rússia se vai sentindo cada vez mais
afastada da Europa. Como poderá a Rússia definir-se hoje em dia como um
país europeu? Os seus exércitos são mais temidos do que necessários, o seu
investimento é malvisto, as suas exportações, para além do gás natural, já
não têm impacto. A China terá de surgir agora como a verdadeira questão
para a Rússia, que não tem nada a ganhar nem a perder na Europa, mas
muito a ganhar e tudo a perder na Ásia3.
Mesmo antes da Ucrânia, uma profunda e contínua reflexão sobre a
China tem produzido uma vibrante literatura, com muitos dos melhores
romancistas russos contemporâneos a escolherem a China e as relações
entre a Rússia e a China como um dos seus temas principais. Nalguns casos,
como A Dentada de Um Anjo, de Pável Krusánov, é-nos oferecida uma
visão aterradora de uma nova cultura poderosa fundindo elementos chineses
e russos, apostada em conquistar o mundo e inteiramente livre das tentações
ocidentais: o general, e mais tarde imperador, Ivan Nekitaev, a
personificação da malignidade política, é meio manchu e meio russo. «O
seu sangue é muito raro, é o sangue de dois impérios eurasiáticos.»
Nekitaev vê a sua governação como fazendo parte de uma linhagem que
remonta a Gengis Khan: «Se um homem é culpado, castigo a companhia, e
se uma companhia é culpada, castigo o batalhão.» A mensagem é bastante
simples: na crueldade asiática a Rússia encontrou finalmente a arma
decisiva contra o Ocidente.
Outros romances recentes movem-se em sentido contrário, retratando a
China como uma influência liberalizadora sobre a Rússia. Projetando o
futuro para os dois países e as duas culturas, poderá parecer plausível que a
adoção por parte da China do rápido crescimento económico e da
transformação social será acompanhada na Rússia por uma inflexão para a
tradição e a tradição agora na Rússia tem uma forma de adquirir um
significado histórico cada vez mais profundo, remontando aos heróis
medievais que resistiram aos primeiros movimentos de ocidentalização. Em
Gordura Azul, um romance de Vladimir Sorokin, os protagonistas bebem
cocktails chineses e parecem fascinados pela sofisticação da vida chinesa –
num século em que tudo funciona em proveito dos chineses, tal como em
séculos passados as coisas funcionavam em proveito dos americanos, dos
franceses ou dos britânicos. Em A Tempestade, também de Sorokin, os
chineses têm todas as características que estamos habituados a encontrar
nas críticas ao Ocidente, incluindo as críticas russas: não têm alma, são
materialistas, mecânicos, mas a sua capacidade para penetrar a Rússia e
remodelá-la à sua imagem é inquestionável e mesmo as palavras chinesas
são vulgarmente usadas pelos russos. O último exemplo antes de
regressarmos às minhas próprias histórias da fronteira é Clorofilia, de
Andrei Rubanov. Aqui, os chineses foram para a Sibéria para fugir ao
aquecimento global e quase todos os russos estão concentrados em
Moscovo, onde podem viver confortavelmente com o arrendamento das
terras da Sibéria, mas as suas vidas tornam-se progressivamente menos
humanas e até a luz do sol é apenas acessível àqueles que vivem nos pisos
do topo dos arranha-céus, construídos por toda a capital. Uma vez que esses
arranha-céus foram construídos por companhias chinesas, com dinheiro
chinês e cimento chinês, ninguém fica surpreendido por esses pisos
superiores serem arrendados por ricos empresários chineses. «Mesmo os
patriotas locais mais fervorosos têm de aceitá-lo.»
Sinais e símbolos
Há uma ilha, proibida e desabitada, oculta de olhares curiosos. Só que neste
caso a ilha não se situa no oceano, mas num rio – ou antes, na confluência
de dois importantes e quase míticos rios asiáticos, o Amur e o Ussuri, muito
perto da grande cidade de Khabarovsk, no extremo oriental da Rússia. A
ilha está dividida em duas secções quase iguais entre a Rússia e a China. A
União Soviética ocupou outrora a totalidade da ilha Bolshoy Ussuriysky –
conhecida como Heixiazi, ou Urso Preto, em chinês – mas, num acordo
verdadeiramente histórico em 2004, a Rússia concordou em devolver à
China metade. A transferência ocorreu em 2008. Desde então, a ilha no
Ussuri tornou-se um símbolo em miniatura das vastas regiões asiáticas
divididas entre os dois gigantes geopolíticos.
A história é interessante: depois do Tratado de Beijing, em 1860, ter
estabelecido a nova fronteira ao longo do Amur e do Ussuri, o principal
negociador russo da fronteira persuadiu de algum modo o seu homólogo
chinês a assinar um minúsculo mapa que, supostamente, dava expressão
visível aos termos do tratado. A fronteira deveria, evidentemente, percorrer
a confluência dos dois rios, mas Kazakevich – era esse o nome do
negociador – desenhou-a através de um pequeno canal que ligava os rios a
cerca de 50 quilómetros antes do ponto onde as principais correntes se
fundem. A ilha criada por este canal era assim deixada completamente do
lado russo da fronteira. Lentamente, foi sendo ocupada por colonos russos,
que a encaravam como um posto avançado da cidade de Khabarovsk,
particularmente a pequena aldeia e o cais no seu extremo oriental, fundados
em 1895.
Visitar a ilha e as aldeias em seu redor é do mais difícil que se possa
imaginar. Somos acompanhados por guardas fronteiriços russos e, antes de
tudo o mais, há uma longa entrevista com um agente dos serviços secretos.
Perguntaram-me todos os pormenores possíveis da minha vida e todos os
documentos que tinha comigo foram examinados e fotografados. A
entrevista em si foi também bastante instrutiva. A primeira pergunta que me
fizeram foi porque é que alguém de um país inimigo queria visitar a
fronteira entre a Rússia e a China.
Fiquei surpreendido ao ouvir Portugal e Rússia a serem descritos como
inimigos, por isso tateei um pouco. O que é que ele queria dizer?
«Portugal é membro da OTAN, não é?»
«Sim, mas não tenho a certeza se chamaria à Rússia e à OTAN
inimigos. Talvez nos tempos soviéticos, mas a Rússia e a União Soviética
não são a mesma coisa.»
O agente – cujo nome nunca fiquei a saber – ficou em silêncio por um
momento e depois disse: «Isso seria uma discussão filosófica muito
interessante.» Embora os estrangeiros o possam entender como um
cumprimento, os russos interpretarão frequentemente a rejeição do passado
soviético como uma rejeição do seu estatuto como superpotência global.
Depois da minha entrevista, que por vezes se parecia mais com uma
conversa, ocorreu-me que atualmente na Rússia ser agente dos serviços
secretos poderá ser o equivalente aspiracional a um empreendedor
tecnológico no Ocidente. Afinal de contas, o próprio Putin foi agente
secreto e a sua Administração irradia a cultura, a influência e a sofisticação
do Federalnaya Sluzhba Bezopasnosti (FSB). O meu interlocutor imitava os
modos que é suposto um agente secreto exibir, tentando apanhar-me em
contradições com perguntas inesperadas, enquanto examinava os meus
documentos e fotografias à procura de pormenores reveladores. Se
encontrasse algo interessante e importante, quem sabe se não seria
promovido e colocado em Moscovo? Iria pensar de novo acerca do nosso
encontro um ano depois, quando li as notícias sobre um ataque terrorista à
sede regional do FSB em Khabarovsk. Duas pessoas foram mortas,
incluindo um funcionário local, quando um adolescente armado entrou no
edifício e abriu fogo na área da receção, antes de passar pelo controlo de
segurança. O ataque foi rapidamente reclamado pelo Estado Islâmico, mas
isso não foi confirmado pelas autoridades russas. Nas fotografias, o agente
morto parecia-se com o jovem que eu conhecera, mas fora há muito tempo.
Não consegui ter a certeza.
Encontrar-me e falar com este agente e com os guardas fronteiriços no
posto de Kazakevichevo – a aldeia foi batizada, evidentemente, com o
nome do ardiloso negociador – abriu-me uma boa janela sobre como o
dispositivo de segurança pensa e como essas ideias se difundem pelos
funcionários de baixa patente nas províncias. Disseram-me como a Europa
era demasiado branda com o terrorismo. Devia lidar com os terroristas na
Bélgica como Moscovo lidou com eles no Cáucaso. Quando o
interrogatório terminou, perguntei ao meu interlocutor se ficara convencido
de que eu não era um espião nem um terrorista.
«Se pensasse que era um espião ou um terrorista, com certeza que nunca
sairia desta ilha.»
Os guardas fronteiriços eram menos faladores e certamente menos
sofisticados. Um deles perguntou-me se seria possível trabalhar no exército
português. «É difícil», disse-lhe. «Podemos ser inimigos.» O agente dos
serviços secretos tinha uma enorme autoridade sobre eles, apesar de ser
mais novo e de se vestir de forma casual, com um blusão justo de cabedal
preto.
Havia um ponto acerca do qual os guardas fronteiriços e o agente
estavam claramente em desacordo. Que iria ser da ilha? Uma das razões
para a divisão fora a promessa implícita de que a China ajudaria a
desenvolver a área fronteiriça com investimento e milhões de turistas. A
ilha Bolshoy Ussuriysky seria a ponta de lança deste esforço, um paraíso de
natureza intocada transformada numa florescente zona turística e um eixo
de laços transfronteiriços entre a Rússia e a China. Como vimos, as sanções
ocidentais ajudaram a expandir a noção de que o futuro da Rússia reside no
desenvolvimento de laços mais estreitos com a China. Bolshoy Ussuriysky
é um dos três ou quatro locais onde isto está a ser testado. Enquanto os
guardas fronteiriços e as pessoas nas aldeias fronteiriças levam os planos
mais ou menos a sério, o agente não tinha escrúpulos em dizer-me que
aquilo era um disparate e que por vezes não percebia as pessoas em
Moscovo.
Na fantástica visão de Vladimir Sorokin acerca da Rússia, O Dia do
Oprichnik, 28 milhões de chineses vivem na Sibéria e alguns funcionários
resmungam que a Rússia tem de «rastejar curvada perante o Reino
Celestial». Outros percebem que não existe alternativa a partir do momento
em que tudo de que a Rússia precisa, incluindo as camas e as sanitas, é
fabricado na China. Sorokin colocou o dedo numa dialética já poderosa. A
Rússia é atraída para a China, com a sua promessa de infindas
possibilidades económicas, mas ao mesmo tempo receia a sua própria
atração e recua. Os russos sentir-se-ão enganados se a China não lhes
expandir o seu poder económico e sentir-se-ão ameaçados se isso acontecer.
Deste dilema há pouca ou nenhuma fuga. Talvez a Rússia deseje que a sua
crescente dependência económica da China seja tão subtil que ninguém –
nem os próprios russos – dela se aperceba. Isso agradará também a Beijing,
que certamente tentará evitar criar a impressão de que algo como uma
entente entre os dois países esteja a ser concretizado.
Até agora, no seu lado da fronteira no Ussuri e no Amur, a Rússia deu
apenas um passo. Há um par de anos, construiu uma dispendiosa ponte, a
primeira a ligar Bolshoy Ussuriysky à margem sul do rio, mas a estrada
pavimentada termina passados poucos quilómetros depois de se atravessar.
Isto é bastante típico dos chamados projetos estratégicos na Rússia. É
rapidamente construído um símbolo, antes que alguém se esqueça do
projeto, mas depois não acontece mais nada.
A ilha está quase completamente deserta. Há uma mão-cheia de quintas
abandonadas, algumas estradas de terra batida e nenhuma fauna de que
valha a pena falar. Tinha sido avisado acerca dos ursos selvagens que
vagueavam pela ilha, mas parecia improvável que algum urso, quanto mais
um turista chinês, ali sobrevivesse.
As coisas não poderiam ser mais diferentes do lado chinês da fronteira.
Demos a volta e regressámos pela ponte sobre o Ussuri até Kazakevichevo.
A aldeia localiza-se numa posição privilegiada, do outro lado do Ussuri,
tanto em relação à linha da fronteira em Ussuriysky como à península
chinesa que se destaca a sul. Uma vez que se situa dentro do perímetro de
segurança da fronteira, não se pode entrar nem sair da aldeia sem se passar
por um controlo de segurança e apresentar uma autorização especial. Os
habitantes parecem bastante à vontade com esse facto. Poucos outros
lugares na Rússia serão tão bem guardados e tão seguros.
A partir de Kazakevichevo, podemos olhar para o outro lado do Ussuri e
comparar facilmente os dois lados da fronteira. Do lado russo, apenas a
alguns metros da nova linha de fronteira, pode ver-se a pequena mas
elegante Capela de São Vítor, construída em 1999 para homenagear
soldados russos que morreram a defender as fronteiras no Extremo Oriente,
desde que a Rússia consolidou o seu controlo sobre a região no século XIX.
Alguns deles morreram defendendo aquelas fronteiras contra os chineses,
claro. A linha de fronteira foi desenhada mesmo a oeste, para que a capela
pudesse continuar na Rússia.
Se olharem para a esquerda, em direção à China, logo a sul da ilha
Bolshoy Ussuriysky, a primeira coisa que verão será uma escultura gigante
daquilo que, à primeira vista, parece ser uma figura humana, tornando anã a
pequena capela ortodoxa. É de facto uma representação do ideograma
chinês para «oriente», o Sol a surgir por detrás dos ramos de uma árvore,
como acontece quando nasce e ainda está baixo no horizonte. Alguns dias
mais tarde, em Dalian, lembrei-me de perguntar a uma amiga chinesa, um
pouco maliciosamente, por que razão o ideograma para «ocidente» não é o
mesmo. Afinal de contas, o sol também fica por detrás das árvores quando
se põe a oeste. Ela abriu o Shuowen jiezi ( ) – um dicionário de
ideogramas chineses da dinastia Han – no seu telemóvel e explicou-me que
o ideograma para «ocidente» representa uma ave no seu ninho, porque
quando o Sol se põe a oeste, as aves regressam aos seus ninhos.
O que se verifica quando se olha para um mapa é que esta estátua está
colocada no ponto mais oriental da China, exatamente no primeiro lugar em
que na China se vê o Sol todas as manhãs. Uma das ironias da geografia
política nestas partes é que a China, o império mais oriental, fica a ocidente
e que a Rússia, uma potência europeia, a confronta pelo oriente. Uma faixa
de território russo corta a província chinesa de Heilongjiang até ao mar do
Japão. Olhando de novo, com mais cuidado, verão a razão pela qual tantas
pessoas em Beijing consideram o território do Extremo Oriente russo como
o último vestígio do colonialismo europeu nas terras chinesas. Será este
monumento um símbolo, uma proclamação de que o Oriente é chinês?
O ideograma gigantesco tem 49 metros de altura, uma alusão à data da
fundação da República Popular. Na praça envolvente, há também um mapa
da China desenhado no chão e um número de pavilhões.
Os guardas fronteiriços de Kazakevichevo, embora tenham tido o
cuidado de não discordar com a partilha da ilha, expressaram preocupações
óbvias acerca de como mudou a situação da segurança em Khabarovsk, a
segunda cidade no Extremo Oriente russo depois de Vladivostoque. No
caso de um conflito militar entre a China e a Rússia, a ilha poderia servir de
base de assalto para a rápida captura de Khabarovsk. O aeroporto da
próxima Fuyuan poderia facilmente ser usado para finalidades militares e a
monumental praça com o ideograma gigante e os pavilhões – já reforçada
com lajes de cimento – poderia receber baterias de artilharia.
De facto, a decisão de transferir metade da ilha para a China defrontou-
se originalmente com significativos protestos. Membros da Câmara
Municipal de Khabarovsk insistiram em que Bolshoy Ussuriysky era de
vital importância para defender a cidade em caso de agressão chinesa. Em
2005, dezenas de milhares de assinaturas contra a transferência foram
rapidamente recolhidas e enviadas para Moscovo, mas a decisão estava
tomada. Existem relatos de negociações secretas de último minuto em que a
Rússia tentou salvar toda a ilha com a oferta de fornecer à China, em troca e
sem custos, um número de contratorpedeiros. A China respondeu que
poderia concordar mas que, em vez dos contratorpedeiros, pedia uma
pequena fatia de território em redor dos primeiros afluentes do Tumen, onde
a Rússia se une à Coreia do Norte, o que permitiria finalmente o acesso
chinês ao mar do Japão.
Depois da minha entrevista com o agente dos serviços secretos, ele foi
fazer um telefonema e eu fiquei sozinho a conversar com a intérprete,
Galina. Ela confidenciou-me que, como eu, fora professora universitária,
tendo estudado Linguística em Leninegrado, sob a influência do linguista
pioneiro Roman Jakobson. Não pude deixar de ficar impressionado por os
serviços secretos russos usarem linguistas de tal calibre para simples tarefas
de tradução, mas, em retrospetiva, a associação parece sinistramente
apropriada. Quem melhor do que uma linguista estruturalista para ajudar a
navegar a espessa floresta de símbolos da ilha Bolshoy Ussuriysky?
Descobri um último símbolo nessa noite, enquanto pesquisava no
Google o terreno da ilha. Vista de cima, a praça da península que albergava
o gigantesco ideograma chinês, apontada a Khabarovsk, parecia-se
inconfundivelmente com um navio de guerra – um contratorpedeiro
chamado Oriente.
Oriente, Ocidente
O comboio noturno de Khabarovsk para Vladivostoque é o último segmento
da via-férrea transiberiana, por isso talvez seja compreensível que a
disposição no vagão-restaurante se torne festiva ao jantar, com a televisão a
berrar música rock e as últimas garrafas de vodca a serem rapidamente
esvaziadas. O comboio irá deixar-nos na bela estação mesmo no meio da
cidade, onde podemos tomar uma passagem de peões elevada até às
traseiras e olhar sobre o porto, tendo por fim alcançado o Pacífico.
Vladivostoque significa, em russo, «senhor do Oriente». É para
Vladivostoque que o ideograma chinês sobre o Ussuri está apontado,
lembrando que, até ao Tratado de Beijing, todo o território a sul do Amur no
mar do Japão era considerado chinês e Vladivostoque ainda era conhecida
como Haischenwai. Hoje, quase não sobram chineses, mas mesmo há cem
anos talvez um terço da população fosse chinês, concentrado em Millionka,
um bairro de alguns quarteirões a norte da estação ferroviária, transformada
agora num centro de moda e vida de café.
Hoje Millionka é um nome mítico, como a Atlântida, uma palavra
mantida viva depois de o local ter desaparecido sem deixar rasto. Mas o
local de Millionka não é menos lendário, um denso bairro de edifícios de
três pisos abrindo para pátios secretos, uma pequena área de apenas alguns
quarteirões onde viviam talvez cem mil migrantes chineses, de entre os
quais apenas alguns registados junto das autoridades. A população russa só
lá entrava à procura de ópio ou a fugir à polícia. A vida ali era como em
casa, na China: o mesmo sistema rígido de desigualdade social, as mesmas
guildas e sociedades secretas, o mesmo consolo taoista para os aflitos. Era
possível viver em Millionka sem nunca de lá sair: havia antros de ópio,
tabernas, bordéis, lavandarias, banhos, uma farmácia chinesa,
estabelecimentos de adivinhação e até um teatro, construído em 1899 e
aberto ao público um mês antes do teatro russo da cidade, com um
espetáculo de seis peças e acrobacia circense. Em 1936, Estaline ordenou
que o que restava de Millionka desaparecesse e os chineses fossem
deportados, alguns para cidades como Kentau, no Cazaquistão. Uma
testemunha contemporânea descreve a visita a casas de jogo em Millionka,
as entradas obstruídas por lixo e excrementos humanos. Lá dentro, as
janelas enfarruscadas não admitiam praticamente qualquer luz. Pares de
jogadores sentavam-se à mesa e ao longo de bancos, rodeados por curiosos.
Ocasionalmente, os empregados distribuíam pequenos copos de vodca
chinesa aos jogadores. Um jogo em particular para ocasiões especiais
consistia em determinar quem, de entre vários competidores, conseguia
estar mais tempo pendurado pelo pescoço e o método era brutalmente
simples: os que morriam perdiam.
Hoje, não resta nada. Millionka não passa de um rumor. Se visitarem o
museu da cidade, que por acaso está localizado no limite daquilo que foi
outrora Millionka, há uma sala exibindo luxuosas caixas de majongue,
deixadas para trás ou vendidas pelos antigos habitantes chineses. Dois ou
três dos pátios estão ainda mais ou menos na mesma do que os pátios nas
velhas fotografias, rodeados por compridas e contínuas varandas, com
cercaduras de ferro forjado. Subi a uma das varandas e uma mulher idosa
veio cá fora, para ver quem era o intruso. «Millionka?», perguntei. Ela
apontou para trás das costas e, por um momento, pensei que quisesse guiar-
me até um segundo pátio, mais interior.
Ela queria dizer que Millionka desaparecera, perdida no passado
distante.
7
A RÚSSIA VOLTA-SE
PARA ORIENTE
N
uma fria manhã de dezembro de 2015, encontrei-me a bordo de uma
jangada de madeira, rebocada ao longo do Volga por um pequeno
barco de pesca. Estava ali à procura dos vestígios de uma poderosa e quase
esquecida metrópole medieval. Outrora uma lendária capital de enorme
riqueza, situava-se nos cruzamentos da antiga Rota da Seda, mas continua a
ser um mistério exatamente onde. Um homem – com a ajuda de uma
dedicada equipa de estudantes – poderá ter descoberto a peça que faltava no
puzzle.
Todas as descobertas arqueológicas importantes ou confirmam ou
desafiam as histórias que os russos gostam de contar acerca do seu lugar no
mundo. Algumas pessoas veem a Rússia como uma criação dos eslavos que
viviam nas terras russas desde tempos pré-históricos. Outras olham para
oriente, para os mongóis e a Horda Dourada, indo ao ponto de afirmar que o
Estado russo é o herdeiro do legado imperial de Genghis Khan. O que
emerge inevitavelmente destas discussões é a ideia da Rússia como uma
ponte entre o Oriente e o Ocidente, um caldo de cultura de tribos e
religiões.
Astracã, no Sul da Rússia, manteve parte da sua identidade como a
ligação entre grandes civilizações. Quando foi incorporada no Império
Russo, no século XVI, a cidade foi destinada a um glorioso papel como
segunda capital no Sul e, no século XVII, os mercadores da Índia
estabeleceram aqui residência permanente. O edifício de dois andares está
ainda de pé, com a sua antiga função indicada numa pequena placa. Se o
contornarmos até às traseiras, veremos algumas das estruturas de tijolo
originais.
Hoje, Astracã é igualmente cosmopolita: cristãos, muçulmanos e
budistas coexistem pacificamente e mais de cem diferentes grupos étnicos
misturam-se no azafamado bazar tártaro, alguns quarteirões a sul das
paredes brancas de neve do Kremlin.
«Professor Dmitry Viktorovitch Vassilyev, Universidade Estatal de
Astracã.» A voz do outro lado da linha diz-me que nos encontremos no
laboratório arqueológico, mas deve ter pensado se eu seria capaz de
encontrar o local, por isso enviou a sua assistente, Dinara, para me esperar à
porta. Afinal de contas, Dmitry ainda estava a dar aula, por isso parámos
junto ao auditório a tempo de ouvir as suas palavras finais aos alunos.
«Encontrámos artefactos do Irão e da Rússia», dizia. «Da Alemanha e
da China, de Espanha e de Itália. Astracã costumava ser o centro do mundo.
O nosso continente tem quatro cantos: Europa, Irão, Índia e China. Astracã
está no centro. Foi aqui que o capitalismo começou. Explicar-vos-ei isso na
próxima semana.»
O laboratório arqueológico da Universidade Estatal de Astracã localiza-
se na cave do edifício principal da universidade, no fundo de uma série de
escadas em espiral. Isolado do piso superior, o espaço a abarrotar serve
simultaneamente de biblioteca, de área de armazenamento, de sala de
reuniões e de depósito. Para todo o lado para onde se olhe veem-se
maquetas arquitetónicas da velha fortaleza de Sarkel, esboços de crânios
humanos, mapas desenhados à mão da região do Volga, inúmeras pedras
preciosas e mesmo alguns quilos de chumbo, que podem ter feito parte do
tesouro do banco central cazar.
Todos os verões, Vassilyev leva uma equipa de estudantes até um campo
de escavação na vizinha Samosdelka. A vida no campo alterna entre o
trabalho duro, mergulhos no Volga e canções em redor da lareira à noite. No
final de agosto, regressam a Astracã com milhares de artefactos acabados de
descobrir. Os artefactos são então classificados e arquivados no museu da
cidade, longe da vista dos visitantes por falta de espaço de exposição ou,
talvez mais provavelmente, por falta de interesse oficial no projeto.
«Estamos sentados sobre moedas de ouro, mas deixamo-las na terra», diz
Vassilyev. Dmitry gosta de usar factos como metáforas. De facto, descobriu
muitas moedas de ouro e jóias em Samosdelka. Esta é uma das principais
razões para estar tão confiante em ter encontrado Itil, a capital do império
cazar, a última cidade perdida da Europa. No dia seguinte, o chefe da
administração local de Samosdelka confidencia-me que, quando era
criança, costumava brincar nos campos sem saber o que estava escondido lá
no fundo. Um dia um dos seus amigos descobriu um pote cheio até às
bordas de moedas de ouro. Não consegue lembrar-se do que lhes aconteceu,
ou pelo menos não diz.
Durante mais de três séculos, começando por volta de meados do século
VII, os cazares comandaram um vasto império que se estendia desde as
estepes setentrionais até ao Cáucaso e à Crimeia. Situava-se na Rota da
Seda, beneficiando do intenso comércio entre o Oriente e o Ocidente e
servia de amortecedor entre as terras cristãs e o Califado Árabe em
expansão, para leste e sul. Sobretudo, era o posto final antes da estepe, o
último Estado organizado antes do perigo e da ausência de lei das hordas
nómadas que deambulavam a oriente.
Uma das estradas levava os viajantes desde Espanha e França, através
de Praga e de Cracóvia até Kyiv e, depois, a Sarkel e a Itil, a capital cazar.
O império era, sob todos os aspetos, uma sociedade notavelmente tolerante:
o sistema judicial atendia às práticas e costumes de judeus, muçulmanos,
cristãos e pagãos, de formas que pressagiavam o futuro sistema de millets
dos otomanos.
No século X o império conheceu um fim abrupto, substituído por um
florescente principado de Kyiv e, mais tarde, com os Grandes Príncipes de
Moscovo, no século XV, pelo Império Russo. As causas do colapso
continuam desconhecidas. A Cazária tinha poderosos inimigos e as suas
próprias divisões internas poderão ter enfraquecido o Estado e o exército.
Por volta de 965, o governante do Rus de Kyiv, Sviatoslav, conquistou e
destruiu Itil. Um visitante escreveu pouco depois que nem uma passa ou
uma uva foi deixada na terra.
«Tem a certeza de que Itil era em Samosdelka?», pergunto a Vassilyev,
quando deixamos Astracã, seguindo para sul.
«Tenho a certeza absoluta», responde. Depois, acrescenta: «Mas claro
que há outros arqueólogos que discordam e há pessoas em Moscovo que
pensam que é em Sarkel, ou que desapareceu debaixo do Cáspio. Mas eu
tenho a certeza.»
Vassilyev trabalha no projeto arqueológico de Samosdelka desde o
início. Quando, há 25 anos, os camponeses em Samosdelka começaram a
abrir regos para as pastagens dos animais, encontraram estranhos artefactos,
sobretudo olaria. Levaram os seus achados ao professor primário local, que
chamou a atenção para eles à universidade em Astracã. Vassilyev começou
a escavar 10 anos depois.
Pela sua natureza, o trabalho dos arqueólogos é, evidentemente, lento.
Mas aqui as coisas são ainda mais lentas, devido à pesada burocracia e a
uma persistente ausência de fundos. Até agora, o trabalho tem estado
limitado a duas pequenas escavações, ambas com cerca de três metros de
profundidade.
A região do delta do Volga contém uma extraordinária mistura de
línguas, raças e religiões. O poeta russo Velimir Khlebnikov descreveu-a
como o triângulo de Cristo, Buda e Maomé. Pude ver o que queria dizer
enquanto nos dirigíamos para sul e Vassilyev traduzia os nomes das aldeias
que atravessávamos, umas tártaras, outras calmucas. Os calmucos são os
budistas mais antigos da Europa, tendo migrado da sua pátria ancestral dos
pastos da Mongólia, no século XVII, e a República da Calmúquia, mesmo a
oeste de Astracã, é o único lugar na Europa onde o budismo é praticado pela
maioria da população. Depressa chegámos a uma colina, que Vassilyev
explicou que era considerada sagrada pelos budistas na Rússia, os quais
acreditavam que, caso fosse destruída, o mundo chegaria ao seu fim.
Preocupante é parecer que metade da colina já terá desabado.
Neste ponto, estamos profundamente imersos na região do delta do
Volga, onde este se divide em múltiplos braços antes de desaguar no mar
Cáspio. Atravessamos dois destes braços antes de chegarmos ao local da
escavação. A ausência de pontes na área significa que temos de atravessar
em locais selecionados, onde foi estabelecido um improvisado serviço de
travessias – daí a jangada de madeira rebocada por um pequeno barco de
pesca.
Este é um país assente em fortes capacidades de organização. As
infraestruturas estão a desmoronar-se ou nunca foram desenvolvidas, mas as
coisas funcionam com precisão mecânica. Se isto parece contraditório,
talvez seja uma das contradições que melhor explique a Rússia. Como os
comboios russos: são desesperadamente lentos, mas chegam à hora.
Na fase final da nossa viagem, passamos por algumas explorações de
camelos, prodigiosos camelos bactrianos a pastarem ao longe. Assistir a
uma das corridas de camelos organizadas em Astracã, o único lugar na
Europa onde ocorrem, é estar preparado para estar cara a cara com o poder
indomado da natureza. Estes animais correm a velocidades próximas dos 60
quilómetros por hora e são reconhecidamente difíceis de domesticar.
Quando finalmente chegamos ao local da escavação, sinto-me aliviado,
mesmo exultante. As terras aluviais do Volga são neste sítio completamente
despojadas de vegetação, um facto que deverá ter que ver com aquilo que lá
está mesmo sob a superfície. Há tijolos vermelhos por todo o lado.
Toneladas e toneladas de tijolos primitivos, certamente mais primitivos do
que os tijolos que os mongóis trouxeram consigo no século XIII. Mais tarde,
quando mostro às pessoas fotografias deste local, dizem que parece Marte:
sem vegetação, o terreno cor de tijolo, uma velha carrinha russa, ou
tabletka, em vez do módulo de aterragem. É fácil acreditar que existiu aqui
outrora uma grande cidade.
Por um breve momento, esta planície vazia deixou o mundo conhecido
para se tornar o centro das suas profundezas desconhecidas, a maior cidade
soterrada do mundo. A Cazária estava ameaçada por todos os lados:
Bizâncio, os abássidas, os povos das estepes a leste e o cada vez mais
importante Rus de Kyiv a oeste. Um dia desapareceu, quase sem um
suspiro. Há aqui algo mais comum com os nossos destinos individuais do
que a ascensão e queda de outros grandes impérios. Mas não se deixem
enganar; a Cazária foi um grande império. Um outro cronista conta-nos
como o xá sassânida gostava de manter três cadeiras douradas junto ao seu
trono, para o caso de três convidados muito especiais o visitarem. Uma
estava reservada para o rei da China, a outra para o rei de Bizâncio e a
terceira para o rei da Cazária. Todo o potencial local de escavação de Itil
tem de passar por um simples teste: poderá ser esta a capital do grande
império?
No regresso a Astracã, verifico que as velhas categorias de oriente e
ocidente se acabaram por confundir. As imponentes muralhas brancas do
Kremlin de Astracã já não parecem tão belas nem tão altas, em comparação
com as muralhas vermelhas de Itil, apenas visíveis na imaginação.
Geograficamente, Astracã é uma cidade mesmo à ponta da Europa, a 300
quilómetros a oeste do rio Ural, mas o conceito de Europa parecia aqui
estranho e irrelevante. Europa e Ásia são conceitos exibidos para
determinados fins. Aqui, em Astracã, não têm qualquer propósito e ninguém
os leva a sério. Quando perguntei a Dinara se ela achava que Astracã era
uma cidade europeia, ela respondeu que duvidada se entendia a pergunta. O
que quer que a Europa possa ser, é também uma terra – uma terra de fadas
oriental – de estepes, camelos, templos budistas e potes de moedas de ouro.
Vassilyev regressa ao seu laboratório arqueológico. É um homem em
perseguição de um sonho, um homem cuja vida foi empregada nessa busca,
mas persegue o seu sonho de uma forma tão suave e discreta que, por isso,
esse sonho torna-se ainda mais precioso. Aquilo que me impressiona,
depois de ter tido tempo para recuperar, é a pura discrepância entre as duas
escavações que Dmitry completou até agora – pequenas, mas profundas – e
a dimensão da planície, que se estende até ao horizonte, onde Itil deverá ter
existido. Há trabalho em Samosdelka para durar cem anos. Conseguirá
arranjar o dinheiro para perseguir o seu sonho até ao fim? Duvido. O
arqueólogo é, sob certo aspeto, a melhor imagem do aventureiro, pois
quando se lança ao trabalho nunca sabe o que irá encontrar e que ideias
recebidas as suas descobertas o obrigarão a abandonar. É isso que o torna
tão excitante, é por isso que tantos de nós sonharam tornar-se arqueólogos
na nossa infância, mas a Rússia atual não é um lugar onde o passado e o
futuro possam ser deixados em aberto para novas descobertas.
As apostas são demasiado elevadas. A História é cada vez mais vista
pelo Estado russo como uma arma geopolítica e a Cazária continua a ser
uma ideia ambígua, mesmo perigosa. Deixem que vos dê um exemplo. Tive
pela primeira vez contacto com o enigma de Itil num curto ensaio de Lev
Gumilev, que deverá ser o maior historiador e filósofo da História russa do
século XX, cuja estatura era já lendária durante a sua acidentada vida,
grande parte dela passada no Gulag. Agora, 25 anos após a sua morte,
Gumilev é frequente e aprovativamente citado pelo Presidente Putin – mais
à frente veremos porquê – e uma prestigiada universidade no Cazaquistão
ostenta o seu nome. O seu interesse pela Cazária constitui uma das
passagens mais sombrias da sua biografia intelectual. Gumilev não era
simplesmente atraído pelo destino deste misterioso império. Recorrendo a
fontes que apontam para a conversão da elite governante cazar ao judaísmo,
ele vê no encontro russo com a Cazária um episódio do confronto global
entre russos e judeus, baseado numa oposição fundamental de traços de
carácter entre os dois povos. O desaparecimento da Cazária, para Gumilev,
foi um momento decisivo na emancipação da Rússia como uma civilização
da estepe, essencialmente rural e tradicional, em oposição ao capitalismo
ocidental1.
Estaline proibiu qualquer investigação sobre a cidade e os cazares,
receando que isso provasse que a Rússia descendia de um Estado judaico.
Mais recentemente, o facto de a Cazária poder ter sido o único Estado
judaico a erguer-se entre a queda do Segundo Templo e a formação de Israel
tem suscitado um interesse considerável. O Congresso Judaico Russo
financiou parte das escavações em Samosdelka, mas Dmitry não conseguiu
encontrar nenhum indício de uma presença judaica e o financiamento secou.
Quem controla o passado controla o futuro. Quem controla o presente
controla o passado. Este famoso ditado ilustra a relação entre a política e a
História na Rússia. Durante o seu conflito com a Ucrânia, foram debatidos
distantes acontecimentos históricos tão ferozmente como as mais recentes
notícias. Uma decisão das autoridades da região de Oryol, no Ocidente da
Rússia, de erigir uma estátua ao czar do século XVI, Ivan, o Terrível, tornou-
se matéria de debate aceso, com um jornal de negócios a chamar-lhe «o
disparo de uma salva nas guerras da memória e uma declaração numa
discussão política do direito do Governo a usar a força internamente». O
controlo estatal sobre a História do país parece agora tão importante como o
controlo do petróleo e do gás. Despojadas das aparências, toda a discussão
russa e toda a divisão na sociedade constituem mais uma discussão e uma
divisão sobre a História do que sobre a política.
A gestão do caos
Tudo gira em volta da velha questão: a europeização da Rússia. O
historiador Norman Davies observa argutamente que enquanto os
bolcheviques eram descritos no estrangeiro como «um bando de asiáticos
selvagens semeando a morte e a destruição como Átila ou Genghis Khan»,
a sua própria perceção era muito diferente. A revolução foi realizada em
nome da doutrina política mais progressista na Europa da altura: o
marxismo revolucionário. Os bolcheviques achavam que estavam a levar as
realizações da Revolução Francesa ao seu nível histórico seguinte e as suas
raízes situavam-se no movimento revolucionário alemão, ao qual
esperavam regressar quando a Alemanha unisse forças com a Rússia
provocando uma revolução proletária mundial17. Como já vimos num
capítulo anterior, a União Soviética poderá ser melhor entendida como uma
versão voluntariamente deformada de um Estado europeu moderno, um
Estado do qual fora extraído tudo o que não estivesse diretamente
relacionado com o poder estatal, a tecnologia e a capacidade industrial. O
Ocidente era tido como perigoso porque estava melhor organizado. Mas se
o Ocidente ultrapassara a Rússia em virtude da sua organização superior,
não seria possível desenvolver um foco exclusivo na organização, eliminar
tudo o resto que a detivesse e tornar assim os Estados ocidentais, por sua
vez, historicamente atrasados? A sociedade soviética era o triunfo da
organização sobre a vida.
Uma vez que os elementos do poder estatal e da industrialização
estavam, em última análise, enraizados em formas culturais muito mais
profundas e já não podiam produzir os desejados resultados quando eram
separados delas, o resultado estava destinado a ser o derradeiro colapso do
projeto revolucionário. Foi como se a União Soviética tivesse tomado todos
os elementos da vida europeia que considerava ameaças e, para se defender
deles, construísse um mundo onde nada mais existisse a não ser a lógica da
ameaça elevada a forma de vida.
Com o colapso do projeto comunista, o longo processo histórico através
do qual o resto do mundo alcançou a civilização europeia estava quase
completo. Em cada um dos casos, as forças que se revoltavam contra o
comunismo faziam-no com a esperança de uma nova vida, tão moderna
como as formas de vida europeias ou americanas, mas já não, como antes,
unicamente baseada na negação de tudo o que fosse ocidental. Muitos
pensavam que essa nova vida poderia ser importada do Ocidente,
esquecendo que, após um século ou mais de rápida modernização, nem a
China nem a Rússia, para tomar os exemplos mais óbvios, se encontravam
agora na vulnerável posição de imitadores culturais. Se aceitarmos que, à
luz das diferenças históricas e culturais que a separam dos seus vizinhos a
oeste, a Rússia não deveria ser vista como um país europeu, um facto de
grande significado surge de imediato: a Rússia é o único Estado fora da
Europa que sempre foi capaz de se manter genuinamente soberano e
independente dos grandes impérios europeus modernos.
É a partir dessa perspetiva que o interesse russo na questão eurasiática
deve ser compreendido. As grandes potências não integram, como o antigo
ministro dos Negócios Estrangeiros, Igor Ivanov, disse uma vez. Se a União
Europeia e a Rússia representam duas civilizações diferentes, as relações
entre as duas realizam-se a uma escala maior, que abrange diferentes polos
em Bruxelas, Moscovo e talvez Beijing. Por outras palavras, durante as
últimas duas décadas foi-se tornando cada vez mais claro para a liderança
russa que a integração com a Europa teria de ser multipolar e que a União
Europeia não deveria aspirar a ser mais do que um polo num projeto de
integração muito maior. A assimilação da Rússia na ordem europeia já não
era uma possibilidade, não apenas porque uma grande potência como a
Rússia não se integra, mas também porque o livre desenvolvimento da
sociedade russa após o colapso do comunismo revelou um profundo fosso
de diferenças culturais e políticas entre a Rússia e a União Europeia. A
Eurásia tornou-se para a Rússia uma forma de assegurar o espaço
necessário para desenvolver a sua própria civilização única, evitando o
cenário em que ficaria confinada pela China a oriente e sujeita à gradual
invasão de uma União Europeia em expansão a ocidente. Entretanto, a
União Europeia continua a propor um modelo de integração em que o poder
emana de Bruxelas e o progresso político está altamente correlacionado
com a distância a esse centro.
O modelo para as relações entre Bruxelas e Moscovo adotado pouco
depois do colapso da União Soviética pareceu assumir que a Rússia
convergiria gradualmente para as normas e valores europeus. Não foi o que
aconteceu. Para a liderança russa, a europeização da Rússia tinha um
significado muito diferente; a criação de «uma casa europeia comum», a ser
construída de novo com iguais contribuições de ambas as partes. Levada à
sua conclusão lógica, isso poderia resultar em algo semelhante à proposta
outrora apresentada pelo intelectual e personalidade televisiva Vitaly
Tretyakov: a criação de duas uniões em solo europeu, uma ocidental, outra
oriental, abrangendo a Europa Central e dirigida pela Rússia18. Muitas das
presentes incompreensões têm aqui as suas raízes, uma vez que a criação de
um novo sistema não é, do ponto de vista da União Europeia – vivendo no
final da História – uma tarefa nem realizável, nem sequer inteligível. A
Rússia, em contrapartida, «não entende a União Europeia como a forma
final da ordem política e económica da Europa19».
Por vezes pergunto-me se as diferenças entre a União Europeia e a
Rússia não poderão ser compreendidas em termos da oposição entre valores
e soberania. O facto é que a cultura política ocidental está sempre a uma
certa distância da noção de que as regras fundamentais da vida política são
criadas sem limitações por atores soberanos, ao passo que na Rússia isto
surge de forma tão natural que dizer o contrário é sempre visto como uma
marca de dissimulação e cinismo. A política em geral tem, em termos
relativos, baixos níveis de tolerância à reflexão teórica mas,
significativamente, isso quer dizer que um certo número de políticos
depressa acabará a apelar a uns quaisquer princípios indiscutíveis que os
poupem a uma reflexão intelectual cada vez mais difícil. Acontece que os
políticos europeus tendem a apelar a regras e valores aos quais o poder
político se deverá submeter, ao passo que na Rússia é muito mais comum e
natural apelar, não a regras, mas a um poder capaz de estabelecê-las e impô-
las.
Significativamente, mesmo quando a União Europeia expressa o desejo
de tratar a Rússia como um parceiro igual, isto significa algo inteiramente
diferente daquilo que a liderança russa entende. Para os europeus, significa
que a Rússia subscreverá os mesmos valores e regras que são aceites na
Europa, algo nitidamente distinto daquilo que Moscovo de facto exige:
partilhar o poder para criar ou estabelecer as regras no coração da ordem
mundial20.
A Rússia não quer substituir a ordem mundial liberal por um mundo
sem regras, mas acredita que um tal mundo seja o estado natural da
Humanidade e, portanto, esse caos só poderá ser evitado através do
exercício criativo do poder por um soberano forte. E isto não se aplica
menos às relações internacionais do que à política interna. O caos nunca é
completamente ultrapassado. Continua a existir mesmo por debaixo do
verniz da civilização e o papel do soberano consiste na sua gestão
adequada, para que não possa atingir a superfície. Putin sempre pensou que
uma democracia genuína não é possível na Rússia porque os que estão no
poder nunca sobreviveriam se fossem despojados dele. Os seus anos de
aprendizagem foram menos durante o último período soviético do que
durante a brutal política da era Iéltsin, em que o Presidente teve de lutar
duas ou três vezes pela sua sobrevivência física. Como o jornalista
britânico, nascido na Rússia, Arkady Ostrovsky mostra no seu livro A
Invenção da Rússia, até a televisão acabou por absorver a dialética do poder
e do caos, com novos programas em que Putin projeta uma imagem de
estabilidade e calma, enquanto os violentos dramas criminosos criam uma
imagem de desordem total. Como um antigo general dos serviços de
segurança explica, «este dilúvio de violência explícita não foi uma resposta
à intensa procura dos espectadores, mas uma política consciente forjada nos
níveis superiores da estrutura de poder russa, para criar a impressão de que
apenas o Estado forte retratado nas notícias poderia proteger a população
vulnerável da violência que aparece nos ecrãs21».
Uma das consequências, claro, é que, uma vez que o poder necessita da
presença latente do caos como fonte de legitimação, então o próprio caos é
legitimado e, ironicamente, poderá mesmo ser celebrado. Quando a Rússia
prossegue ativamente a desestabilização de países como a Ucrânia, isso é
em parte para apelar a uma hierarquia do poder bastante grosseira, entre
aqueles Estados que conseguem criar a ordem no interior das suas fronteiras
e aqueles que falham nesta tarefa básica. Na mesma linha, a multiplicação
de polos de conflito e de conflitos congelados aumenta o poder daqueles
únicos Estados que podem resolver tais questões. Para começar, o Ocidente
tem uma aversão tão profunda a lidar com a instabilidade e o conflito que a
forma segura de repelir o seu avanço sobre o «exterior próximo» russo é
instrumentalizar conflitos por resolver e disputas fronteiriças. Na verdade,
dos seis países que formam a Parceria Oriental – a iniciativa da União
Europeia que orienta as relações com os vizinhos orientais – apenas um, a
Bielorrússia, não se encontra atingido por um conflito interno por resolver,
com envolvimento russo militar e político. Segundo, dado que a
perturbação é criada por Moscovo, a ordem apenas poderá ser restabelecida
por Moscovo. O nível de conflito e de caos pode ser diretamente
correlacionado com o poder necessário para os gerir.
Putin gosta de colocar a questão acerca de quais deverão ser as regras a
reger o sistema global, não em relação aos valores morais e políticos –
como os líderes ocidentais gostam de fazer – mas quanto ao caso extremo
em que simplesmente não existem regras. Num discurso proferido no Clube
de Debate Internacional Valdai em 2014, perguntou, de forma algo astuta:
«Então, o que nos estará reservado se escolhermos viver não por regras,
mas sem quaisquer regras? E esse cenário é inteiramente possível; não
podemos descartá-lo, dadas as tensões na situação global.» Obviamente,
não é essa a via que está a recomendar, mas o contraste com as ideias
ocidentais não deixa por isso de ser nítido: a ordem é criada a partir do caos
e não a partir de valores e regras universais que o Ocidente proclama como
válidos e bons para todos, mas que são meramente o exercício unilateral de
legislar o poder através do soberano em funções.
Há na Rússia uma notável continuidade entre a política externa e a
interna e, de facto, existem desenvolvimentos recentes que poderão apontar
para uma completa fusão. A princípio, poderia pensar-se que é nos assuntos
internacionais que o caos e a força estarão sempre presentes, na ausência de
um poder comum organizado, mas a inércia é também aí uma força
poderosa e, na Rússia, pelo menos o Estado não está constrangido por
regras e procedimentos estritos, nem sequer na sua conduta interna. Receia-
se que a repressão organizada comece a parecer-se com uma guerra contra
um inimigo externo. Ao escrever em 1990, o poeta russo Joseph Brodsky
conseguia já ver como a década seguinte seria de caos e contradições, mas
compreendia também a relação próxima entre o caos e o poder político,
pelo menos na Rússia: «Este caos e estas contradições são, de facto, uma
garantia da estabilidade de um poder que está a tentar criar a ordem a partir
do caos e a encontrar soluções para os problemas.22» Observava também
que os últimos dias da União Soviética não poderiam deixar de se tornar um
objeto de fascínio universal pela forma como evidenciavam uma verdade
existencial. Num mundo privado do poder da religião revelada, temos de
encarar o facto de que ninguém sabe como viver. Alguns contentar-se-ão
com uma rotina ou outra e nunca perguntarão como deverão passar os seus
anos limitados neste planeta. O regime político sob o qual vivem, incluindo
o democrático, se for esse o caso, empurrá-los-á ou arrastá-los-á em
determinada direção e fornecer-lhes-á o consolo de que, qualquer que seja a
vida que levem, será o mais próxima possível do ideal. Brodsky pensava
que teria de dar o crédito ao moribundo Governo soviético de nem sequer
tentar evitar, simplificar ou disfarçar a questão. Não havia resposta, não
havia sentido para a vida e as pessoas tinham simplesmente de aceitar isso.
Conforme o romancista Victor Pelevin escreve em O Livro Sagrado do
Lobisomem, a substância da vida humana na verdade varia muito pouco de
cultura para cultura, mas os seres humanos exigem uma bela cobertura para
a tapar. A cultura russa, singularmente, não a fornece e chama a este estado
de coisas «espiritualidade».
Gleb Pavlovsky, um estudante dissidente dos tempos soviéticos que se
tornou um dos principais conselheiros de Putin na gestão da opinião pública
russa, observa num livro recente que o fundador do presente sistema russo,
Boris Iéltsin, era alguém psicologicamente predisposto a adorar surpresas e,
o que talvez seja mais importante, a aproveitar-se delas23. Esta
característica tornou-se uma peça mais ou menos permanente do sistema. O
seu sucessor, cuidadosamente escolhido, embora desenvolvendo toda uma
tecnologia para gerir surpresas, sabe que estas são indispensáveis. Toda a
ação rápida e inesperada deixa o público espantado e reforça a distinção
entre os governantes e os governados, uma distinção que as democracias
europeias têm tentado dispensar durante muito tempo. A hierarquia é
definida por referência a regras, mas não é definida pelas regras. Aquilo que
estabelece uma posição no sistema é a forma como nos relacionamos com
as regras: se as seguimos todas as vezes, se temos liberdade para as infringir
e, finalmente, se podemos agir com total indiferença pelas regras. Em geral,
as decisões não são tomadas sob uma norma, mas dizem respeito ao que
fazer com uma norma.
No topo da pirâmide situam-se aqueles que fazem as regras. Na Rússia,
por muito estranho que isso possa parecer aos olhos ocidentais, aqueles que
fazem as regras não sobreviveriam se não lhes fosse permitido infringi-las –
e, se não sobrevivessem, não haveria qualquer espécie de regras. No fundo
da pirâmide, ou melhor, por baixo dela, encontra-se algo infinitamente mais
interessante do que os reguladores ou as regras visíveis. As democracias
europeias baseiam-se num sistema de regras e estas formam uma membrana
impenetrável, de modo que nos encontramos sempre sob uma regra
qualquer. O sistema russo baseia-se no caso extremo; quando a regra deixa
de se aplicar, a cortina da ordem é afastada para o lado e o espetáculo nu do
poder que faz as regras torna-se súbita e inesperadamente visível. «O
Ocidente é governado por regras, a Rússia faz as regras. Logo, a Rússia
devia governar o Ocidente.» Foi assim que Vladislav Surkov – que é,
juntamente com Pavlovsky, uma das duas metades da famosa máquina
política do Kremlin – me explicou um dia a sua visão do mundo.
Pavlovsky observa que o Kremlin não tem de esperar por que estas
condições extremas se materializem. Pode organizá-las ou fabricá-las. O
caso clássico, explorado na literatura política desde os gregos, é o de um
príncipe que organiza uma conspiração contra si próprio, para poder expor
os seus inimigos e destruí-los numa exibição pública da inutilidade de
alguém se revoltar contra o Estado. De uma forma mais geral, se o poder
floresce ao vencer a oposição e se, como o corpo humano, precisa de ser
exercitado, seria perigoso entregarmo-nos em demasia a uma vida ociosa. O
poder nasce do esforço para criar ordem a partir do caos e, se houver falta
de caos, o próprio poder deverá fornecê-lo em doses adequadas. Sabemos
que Putin pensa assim porque, pelo menos numa ocasião, não se coibiu de
proclamá-lo. Dirigindo-se à multidão durante um concerto festivo na praça
moscovita Vasilyevsky Spusk, que marcava o primeiro aniversário da
anexação russa da Crimeia, reafirmou a sua opinião de que a Rússia e a
Ucrânia são um só povo, antes de se voltar para os desafios enfrentados
pela Rússia. Depois, acrescentou: «Nós continuaremos a avançar.
Fortaleceremos o nosso Estado e o nosso país. Ultrapassaremos as
dificuldades que tão facilmente nós próprios criámos durante estes tempos
recentes.»
Aqueles que, como Pavlovsky, conhecem a partir de dentro como o
sistema funciona, aqueles que viram a besta de perto, regressam
impressionados com a sua natureza caótica. É evidente que o Presidente
Putin não estabeleceu um claro canal de poder através do qual as decisões
sejam transmitidas até aos níveis mais inferiores do Estado. Não tem
incentivo para o fazer. Todas as decisões são reféns do destino: quanto mais
claras forem, mais fácil será mostrar que estavam erradas, quando as coisas
dão para o torto. Putin prefere enviar mensagens ambíguas. Põe toda a
gente a adivinhar o significado das suas palavras. No caso de as coisas
correrem mal, foi apenas porque esse significado não foi corretamente
interpretado. Sob estas condições, o caos está destinado a crescer, mas é
entendido como produtivo e capaz de reforçar o poder estatal.
O sistema russo orgulha-se de se sentir confortável com a ambiguidade
e isto significa também que as linhas que separam diferentes esferas há
muito que foram esborratadas, num sentido muito mais profundo do que
poderá parecer à primeira vista. Por exemplo, embora sendo óbvio que os
financiamentos e favorecimentos estatais são abundantemente utilizados
para enriquecer empresários e empreendimentos privados, é contudo difícil
dizer se o Estado foi capturado pelos oligarcas, ou se é o contrário que
acontece. Esses financiamentos, uma vez em mãos privadas, não são apenas
usados para comprar mansões e iates, mas são frequentemente canalizados
para a realização de objetivos importantes mas secretos do Estado russo, na
sua tentativa de aumentar o controlo sobre Governos estrangeiros. Para dar
um exemplo, a Marshall Capital, uma empresa de participações privada
dirigida por Konstantin Malofeyev, não beneficiou apenas de contratos
governamentais e informação privilegiada. Também reinvestiu alguns dos
lucros no financiamento da guerra na Ucrânia.
Parte do problema é que um país sujeito a uma forma forte de
governação pessoal não pode confiar num enquadramento estável e
previsível. Está refém dos variáveis estados de alma do seu líder ou líderes.
Como o romancista Vladimir Sorokin escreve, «a roda da imprevisibilidade
rodou; as regras do jogo foram estabelecidas». Putin tornou-se a
«caprichosa e imprevisível Rainha de Espadas»24. Mais importante, um
sistema que não conseguisse incorporar uma dimensão do caos, que
empurrasse para o exterior a irracionalidade do mundo, tornar-se-ia
vulnerável a esse próprio caos que irrompesse do exterior. Finalmente, o
poder não é poder se não for exercido e o maior dos poderes tem de ser
exercido contra a maior das oposições, a maior ameaça à ordem política. O
poder torna-se o mais aterrador possível se for capaz de assegurar a
permanente ameaça de caos, caso aqueles que estão sob ele saibam que, se
esse poder for afastado, o mundo entraria de imediato numa era de agitação
e tumulto.
É por essa razão que a política na Rússia pode ser precisamente definida
como a gestão do caos.
O Natal em Grozny
Em 1999, quando era primeiro-ministro, Putin disse numa entrevista
televisiva: «Falando metaforicamente, a Chechénia está em todo o lado.
Não apenas no Cáucaso do Norte.» Queria dizer que o caos e a desordem
estavam presentes em toda a parte na Rússia, com a Chechénia a representar
apenas a sua manifestação mais extrema e visível. Hoje, Putin poderia
repetir a frase «A Chechénia está em todo o lado», mas com um significado
diferente. Agora, é um símbolo de estabilidade nacional, embora a
estabilidade não tenha substituído o caos, mas antes se tenha sobreposto a
ele. Tal como durante os anos de Iéltsin, o sistema russo encontra aqui a sua
forma mais pura, que bem nos poderá fornecer uma antevisão daquilo em
que a Rússia se tornará no futuro. Se o poder estatal da Rússia usa por vezes
o caos ao mesmo tempo que o mantém à distância, na Chechénia essa
distância desapareceu. Se, na Rússia, o Estado nunca permite que a
possibilidade do caos desapareça do espírito das pessoas, aqui nunca
desaparece da sua própria experiência. Àqueles que possam sonhar em
perturbar a ordem existente responde oferecendo como ordem estável
apenas as súbitas e espetaculares ações do aparelho de Estado, que se
parece e atua mais como uma força revoltosa do que como um órgão de
execução da lei e da segurança. É como se o poder estatal, tradicionalmente
definido como o baluarte da ordem, tivesse decidido lutar contra o caos
absorvendo-o em si, tornando-se a sua única morada e, por último, o seu
pátio de recreio. O Estado não aspira a vencer e substituir o caos, mas a
nacionalizá-lo ou, por outras palavras, a adquiri-lo e desfrutar do seu
monopólio.
Em 2003, as Nações Unidas chamaram a Grozny, a capital da
Chechénia, a cidade mais destruída da Terra, o resultado de duas guerras
extraordinariamente brutais. Na primeira (1994-1996), a Rússia perdeu
mais tanques do que durante a batalha de Berlim, na Segunda Guerra
Mundial. A segunda (1999-2000), sob a liderança do recém-nomeado
Vladimir Putin, devia ser o derradeiro ajuste de contas com as aspirações
independentistas da Chechénia. A cidade foi arrasada e Putin, deleitando-se
na glória militar, ungiu Akhmad Kadyrov como o seu homem em Grozny.
Depois de o anterior Mufti Supremo ter sido assassinado em 2004, o seu
filho Ramzan levou a cabo a tarefa de desenraizar a revolta nas montanhas e
começar a reconstrução.
«Gostaria de determinar oficialmente», anunciara o todo-poderoso
Presidente da Chechénia, Ramzan Kadyrov, às suas forças no início de
2015, «que abram fogo se alguém de Moscovo ou de Stavropol – não
interessa de onde – aqui aparecer sem o vosso conhecimento». Eu sabia que
ele estava a referir-se a um oficial da segurança ou a um soldado armado,
mas mesmo assim tornou a minha chegada ao hotel de Grozny ligeiramente
mais enervante. Assim que entrei no átrio dei de caras com dois homens
com uniformes pretos justos, cada um com um revólver à cintura e sem
qualquer insígnia militar ou policial a não ser duas bandeiras bordadas nas
mangas: a chechena na direita e a russa na esquerda.
Iria ouvir falar muitas vezes destes agentes com ar de ninjas durante os
dias seguintes. Suscitam uma mistura de admiração e terror entre as pessoas
de Grozny. Houve um homem que me disse preferir evitar qualquer
contacto com eles, porque depois iria ficar enervado durante duas semanas.
É melhor não brincar ao pé deles e nem sequer os fitar. Outros descrevem-
nos apenas com objetividade científica como «homens muito fortes».
Ninguém tem a certeza absoluta se serão polícias ou militares. Oficialmente
pelo menos, o uniforme preto não é fornecido com base em qualquer
regulamento militar ou policial. «São mais do que polícias» é a melhor
explicação que oiço.
Por toda a parte em Grozny encontramos a todo o momento polícias
fortemente armados, pessoal militar e paramilitar – patrulhando as estradas
e as ruas, ou guardando locais sensíveis como centros comerciais ou a
recém-reconstruída Igreja do Arcanjo Miguel. Há mais agentes armados nas
ruas do que fregueses. Mas as Forças Especiais que encontrei à chegada são
de uma classe à parte: não sabemos onde estarão porque não parecem ter
uma tarefa definida. Estão sempre ocupados, como se estivessem numa
missão ou num serviço e podem ser subitamente vistos num sítio qualquer:
no bar do nosso hotel, correndo direito a nós, quase escorregando no
pavimento gelado, subindo as escadas de uma galeria comercial na Avenida
Putin, no centro da cidade. Um par de repórteres dos meios de comunicação
ocidentais escreveu que estão por todo o lado. Isso não é simplesmente
verdade. São mesmo difíceis de localizar, uma certa espécie de rara avis, de
ave rara. Mas o facto de poderem estar em qualquer lado em qualquer altura
cria uma impressão de ubiquidade que é mais forte do que a realidade. São
dirigidos por um homem a quem todos chamam o «Patriota» – o segundo
homem mais poderoso da Chechénia, mas cuja única posição oficial parece
ser a de presidente vitalício do Clube de Luta de Akhmat.
É 6 de janeiro, véspera de Natal na Rússia e fui assistir a uma das
sessões de treino do Clube de Luta. Realiza-se no Coliseu de Grozny, um
complexo desportivo novo em folha, com arquitetura de ponta, sobretudo
dedicado às Mixed Martial Arts – o desporto com o crescimento mais
rápido do mundo –, ao boxe e à luta. Quando foi construído, houve vozes na
Rússia, e mesmo na Chechénia, que apontaram rapidamente para os
perturbantes ecos da antiga Roma, pelo menos na versão de Hollywood,
com as suas arenas, gladiadores e acima de tudo – oferecendo circenses às
massas – Nero, o imperador. A comparação está carregada de perigo
político, mas não é a primeira vez que encontramos utilizações da cultura
popular em Grozny, uma capital pós-moderna no coração do Cáucaso russo.
Os jovens que conheci na sessão de treino são muito diferentes dos
membros das Forças Especiais que formaram o núcleo original do Clube de
Luta. São jovens gentis oriundos de círculos vulneráveis, que foram
receber-me educadamente quando cheguei e ouvem as instruções técnicas
do treinador com imensa atenção. Um deles contou-me mais tarde que está
a tentar deixar de fumar. É muito mais difícil fazê-lo na Chechénia do que
na Europa, explica. «Na Europa, anda-se sempre descontraído, mas aqui
nunca estamos à vontade, na presença da família ou de pessoas mais velhas,
ou das raparigas. Tem de se estar sempre apresentável e a tensão acumula-
se.» No balneário, talvez consiga encontrar relaxamento com uma
fotografia de parede a parede de Ramzan Kadyrov, flanqueado pelo seu
primo – o lutador Abdul-Kerim Edilov – e o «Patriota», Abuzayd
Vismuradov.
Não existem discotecas nem bares em Grozny. O único sítio onde o
álcool pode ser legalmente vendido é o Grozny City Hotel, onde estou
hospedado, um arranha-céus coberto de néon, de cinco estrelas e 32 pisos,
que parece não ter mais de 10 ou 20 hóspedes de cada vez. Em vez disso, os
cafés da baixa anunciam «saudáveis cocktails de fruta». Este é o islão pós-
moderno, onde tudo é dito e feito com um piscar de olho. O meu anfitrião
nessa noite tenta explicar-me essas contradições observando que os
chechenos vivem dentro de um quadrado cujos quatro cantos são: a cultura
tradicional chechena, a cultura russa, o islão e, em último lugar mas não
menos importante, o Ocidente – que adotam muito mais entusiasticamente
do que a Rússia, um resultado das experiências que os refugiados da guerra
trouxeram consigo ao regressarem da Europa e da América, mas também
uma forma de resistir à assimilação cultural russa.
O reforço da moral faz parte das incumbências das Forças Especiais do
Presidente, os homens de uniforme preto que vi a beberem refrigerantes de
laranja por uma palhinha no bar do hotel. É tanto um símbolo do seu
estatuto secreto como das contradições culturais da Chechénia
contemporânea aquilo que oiço nos diferentes testemunhos nesta área, com
alguns a afirmarem que as Forças Especiais espancaram mulheres por não
usarem lenços na cabeça, enquanto outros contam histórias sobre como
arrancaram brutalmente os lenços às mulheres e às raparigas mais
radicalizadas. Todas as mulheres em Grozny usam lenço, mas as mais novas
combinam-no com saltos altos e roupas justas. Também elas vivem dentro
do quadrado cultural checheno.
Hoje em dia já não se vê quase nada da velha Grozny. Ainda é um local
muito perigoso, claro – uma cidade onde uma das atividades mais lucrativas
é raptar russos e estrangeiros e pedir um resgate. Também se tornou numa
das maiores fontes da Europa de combatentes estrangeiros que vão para a
Síria juntar-se às fileiras do Estado Islâmico. Mas, se treparem ao bar
Kupol, no topo do Grozny City Hotel, o que veem é uma imitação do
Dubai, cheia de impressionantes arranha-céus, centros comerciais, uma
orquestra filarmónica tirada dos livros e a maior mesquita da Europa – e
também uma das mais belas. Um grande globo com as palavras «Grozny é
o centro do mundo» decora a rotunda à entrada da cidade.
Houve muitas poupanças indevidas nessas obras, financiadas sobretudo
através do orçamento federal russo. Testemunhas locais contam-me como o
globo já foi duas vezes deslocado da sua base pelos ventos fortes, rolando
estrada abaixo. Na minha última noite em Grozny, o Presidente Kadyrov foi
ao meu hotel para se dirigir a um batalhão de trabalhadoras beneficentes da
Fundação Akhmad Kadyrov, uma organização dirigida pela sua mãe. Peço
na receção que me façam sinal quando o Presidente chegar, mas eles
respondem secamente que sem dúvida irei notar quando isso acontecer. E,
de facto, é verdade. Juntamente com as cem jovens de uniformes verdes e
as Forças Especiais de Kadyrov de preto, dezenas de bombeiros irrompem
de súbito pelo átrio. Há um incêndio num dos pisos, nada de muito
surpreendente numa cidade onde materiais e revestimentos adulterados são
constantemente utilizados.
TÚNEL EURÁSIA
Rainha da Eurásia
A
experiência de atravessar o Bósforo é sempre singular. Os
romancistas contemporâneos turcos que escrevem sobre Istambul
reservam invariavelmente algumas páginas para descrever a poderosa
sensação de tomar um dos ferries e ser transportado para um mundo onírico
povoado por petroleiros, gaivotas e o forte ímpeto da corrente lá em baixo.
Os livros mais antigos falam sobre como a vida na cidade foi mudada com a
chegada dos primeiros ferries a vapor no século XIX, acrescentando o fumo
negro das suas chaminés ao magnífico horizonte de Istambul. Depois
chegou a era das maciças pontes sobre o Bósforo, quando a cidade
descobriu como era realmente gigantesca. Em ambos os casos, continua a
haver uma vívida experiência de atravessar a antiga separação entre os dois
continentes. No final de 2016, aconteceu eu estar em Istambul no dia em
que o novo túnel que ligaria os lados europeu e asiático da cidade ia ser
inaugurado, por isso fiz questão em acordar muito cedo para estar entre os
primeiros a atravessar. O meu percurso de cinco minutos de táxi através do
Túnel Eurásia iluminado a néon – cem metros abaixo da superfície – foi
diferente, como se a distância tivesse sido anulada e o próprio Bósforo
tivesse desaparecido da vista.
Os turistas em Istambul não se conseguem conter: perguntam
constantemente se este ou aquele lugar é do lado europeu ou do lado
asiático do Bósforo, ficam maravilhados com os residentes da cidade que
viajam diariamente para o trabalho entre os dois continentes e especulam
acerca das profundas diferenças culturais entre os bairros dos dois lados. A
realidade, claro, é mais complicada. Todos os lugares em Istambul têm dois
lados. O turismo está concentrado na costa europeia, mas o mesmo acontece
com a maioria dos bairros tradicionais e devotos de Istambul. O meu
favorito é Fatih. Toda a raça humana se junta em Fatih: mulheres cobertas
por xadores negros, pequenos negociantes, prostitutas, vendedores
ambulantes, estudantes, imigrantes recentes e refugiados da Síria ou do
Afeganistão. Muitas lojas de rua têm tabuletas em árabe, nalguns casos
porque os proprietários são árabes, noutros em sinal de respeito pela
tradição e pela religião.
O Presidente Recep Tayyip Erdoğan é enormemente popular nestas ruas.
A sua imagem está por todo o lado em Fatih, desde grandes cartazes que
cobrem edifícios inteiros até pequenas fotografias nas montras ou nas
barbearias. Para as pessoas daqui, Erdoğan é responsável por ter reposto o
lugar da religião na esfera pública. Os fiéis turcos explicarão como antes de
ele se encarregar da política turca, há 15 anos, a religião era algo de que
deviam ter vergonha e que estava estritamente reservado à esfera privada.
Agora é possível uma mulher usar um lenço de cabeça com orgulho e não
se sentir relegada para um estatuto de segunda classe. Na sociedade turca, a
religião e a classe social estão intimamente ligadas, mas no final a classe é
mais importante (a Turquia e a Grã-Bretanha são os dois países que
conheço onde a classe de algum modo está sempre presente no espírito de
toda a gente). As divisões são profundas, mas são divisões sociais e
políticas. É revelador que a bandeira verde do Califado Otomano não se
encontre em lado nenhum em Fatih – o lugar onde poderia talvez ter
sobrevivido ou conhecido um regresso –, ao passo que a bandeira vermelha
do Estado turco está por todo o lado.
A estrutura social existente é ferozmente defendida pelas classes
superiores turcas, educadas segundo modelos imaginários da vida europeia
civilizada. É preciso atravessar o Corno de Ouro e passear pelas ruas de
Nişantaşi para as ver no seu habitat natural. Fatih e Nişantaşi ficam ambos
do lado europeu do Bósforo, mas não poderiam ser mais diferentes.
Parecem também um pouco artificiais, precisamente porque todos nestes
dois mundos tentam apresentar uma imagem mais pura do que a
desordenada realidade da vida humana permite.
A maioria das pessoas em Nişantaşi vota ao desprezo a gente de Fatih.
Para elas, a classe trabalhadora pertence a um mundo diferente: pobre,
primitivo, sujo, irracional, talvez até violento ou perigoso. Para as elites, os
últimos 15 anos têm sido um perfeito pesadelo. Tiveram de assistir à forma
como o lado reprimido da vida turca veio à superfície em erupções cada vez
mais violentas, ameaçando inverter o curso do progresso e, talvez com
maior prejuízo, expondo o oásis de Nişantaşi como uma espécie de farsa.
Secretamente, odeiam Erdoğan. Em público, têm de se reconciliar com ele.
É difícil ter uma carreira com sucesso na Turquia se se odiar o todo-
poderoso Presidente e como é que alguém jovem e completamente
europeizada poderia não ter uma carreira de sucesso? Mas isso é apenas
metade do problema. Como hão de convencer os seus amigos europeus de
que a Turquia é tão europeia com a Alemanha ou a França, se todas aquelas
velhotas cobertas de xadores já não ficam em casa e se sentem à vontade
para andar pelas ruas de Istambul? Afinal de contas, não são imigrantes,
mas turcas, tão turcas como as jovens profissionais de Nişantaşi ou de
Cihangir.
Se Nişantaşi é uma peça de teatro mal escrita, algumas partes de Fatih
não são menos artificiais. Se caminharem pelo bairro de Çarşamba numa
sexta-feira, todos os homens terão barbas e estarão vestidos com longos
capotes, chamados cubbe, e com solidéus brancos. Poderão ter as testas
calejadas das marcas da oração, por isso, subitamente e sem qualquer
transição, o visitante será transportado até aos primeiros dias do islão – com
muitas das influências aqui presentes completamente estranhas à vida turca,
cujas tradições islâmicas diferem muito significativamente das árabes.
Quase todas as lojas servem os fiéis, vendendo Alcorões ricamente
decorados, roupas tradicionais, tapetes de oração e mesmo miswak, um
galho para limpeza dentária preferido pelos fiéis. Existem alfaiates em
Çarşamba que produzem roupas costuradas de acordo com os costumes
praticados no tempo do Profeta. Desnecessário será dizer que as mulheres
da comunidade vestem o charshaff, que deixa apenas os olhos expostos ao
mundo exterior. A Mesquita Ismailaga, mesmo no centro de Çarşamba, é a
sede da ordem religiosa epónima, em que as lutas internas pela liderança
resultaram frequentemente em mortes religiosas. Em 1998, o genro de
Mahmut Ustaosmanoglu, o líder da comunidade, foi esfaqueado na
Ismailaga durante as orações. Em 2006, um ímã retirado foi também lá
apunhalado até à morte, após o que o seu assassino foi linchado logo ali.
Deixemos a Mesquita Ismailaga através da Rua Imam Omer e estaremos
a alguns passos do meu local favorito em Istambul. A experiência de se
chegar pela primeira vez a Çukurbostan não é facilmente captada em
palavras. Estamos a caminhar através de algumas das ruas mais densas de
qualquer cidade do mundo e, subitamente, chegamos a um grande espaço
vazio, enfiado profundamente no chão e ladeado de edifícios que dão para o
vazio. A sua forma é perfeitamente quadrada com lados que medem cerca
de 150 metros, de modo que a área total é quase quádrupla de um campo de
futebol. Dez metros abaixo do nível da rua, este enorme espaço está
ocupado por um par de campos de ténis, campos de futebol, parques
infantis e bancos de piquenique, entre os quais as mulheres –
completamente cobertas de preto – passeiam os seus filhos pequenos.
Ligeiramente desviada do centro, há uma mesquita e o que parece um velho
minarete.
Paramos, olhamos e interrogamo-nos sobre o que poderá aquilo
significar? Porque foi uma linha de edifícios construída de forma cuidadosa
em torno de algo que é tão obviamente mais recente do que aqueles
edifícios? A primeira impressão é estética e traz ao espírito imagens de um
filme de ficção científica, em que a paisagem citadina está marcada por um
poderoso símbolo de um recente desastre ou de um prodígio tecnológico. A
segunda impressão é política, recordando como Erdoğan e o seu Partido da
Justiça e do Progresso redesenharam as cidades turcas para agradar às
classes trabalhadoras e formar um sentido de identidade comunal. A
impressão final é menos imediata mas mais precisa, quando se começa a
suspeitar de que isto deve ser uma porta secreta para o passado, um
daqueles lugares onde a História surge sob a forma de um enigma ou
mistério.
Este enorme espaço vazio foi originalmente uma cisterna, um
reservatório de água ao ar livre, construído por Aspar, um general que
serviu o imperador bizantino Marciano no século V. Na altura em que a
cidade foi conquistada pelos otomanos, a cisterna já estava vazia e era
usada como jardim, daí o nome que ainda hoje ostenta: Çukurbostan, o
Jardim Afundado. Durante o reinado do sultão Solimão, um século mais
tarde, foi construída uma pequena mesquita dentro do reservatório vazio. O
minarete está ainda hoje de pé e é quase de certeza a razão pela qual o nível
inferior foi preservado. Durante os séculos seguintes, a cisterna acolheu
uma pitoresca aldeia rural, cujas casas não atingiam o nível das ruas à sua
volta e que foi ocupada a dada altura por escravos abissínios libertos. Que
lugar extraordinário: íamos a andar pela rua e de repente tínhamos um
telhado aos nossos pés. Existem fotografias muito interessantes da aldeia,
que só foi demolida em 1985, quando deu lugar a um mercado de rua.
Depois do mercado veio um parque de estacionamento e depois o presente
complexo comunitário e desportivo. Talvez seja mais adequado pensar no
espaço vazio como um centro de exposições, onde os diferentes períodos da
História turca foram sucessivamente exibidos.
Quando se olha o horizonte até aos distantes arranha-céus da Avenida
Büyükdere, levanta-se a questão de saber o que virá a seguir. No grande
tabuleiro de xadrez eurasiático nenhuma peça é tão solta e móvel como a
Turquia. Pode deslocar-se qualquer número de casas na vertical, na
horizontal ou na diagonal. Pode ir para oeste, leste, sul ou norte. Não há
sensação de estabilidade, mas de que novas mudanças e revoluções não são
apenas possíveis mas também de algum modo inevitáveis. Isto tornou-se
tangivelmente real na noite de 15 de julho de 2016, quando – enquanto a
maioria dos cidadãos turcos estava sentada a comer um jantar tardio ou a
ver um jogo de futebol na televisão – começaram a surgir notícias de que as
pontes de Istambul sobre o Bósforo tinham sido encerradas e que os jatos
militares turcos estavam a sobrevoar Ancara a baixa altitude.
Quadrado estratégico
Quem esteve por detrás do golpe militar falhado na Turquia nessa noite e
porque é que ocorreu? O único indício seguro acerca das intenções dos
golpistas é, sem dúvida, a declaração lida na televisão na noite do golpe,
mas essa declaração foi cuidadosamente fabricada para ocultar as suas
origens e intenções. Apelava aos valores fundadores da República Turca,
nominalmente partilhados por todos e invocados de forma ritual nos nove
golpes militares, tentativas de golpe e proclamações a que a Turquia assistiu
desde 1960.
A teoria oficial, que depressa passou a ser partilhada por quase toda a
gente na Turquia, é que a culpa deveria ser atribuída ao movimento de
Gülen, dirigido a partir da Pensilvânia, nos Estados Unidos, por um clérigo
retirado, de quem o próprio Erdoğan fora íntimo no passado, mas com
quem se desentendera numa conflagração cada vez mais impiedosa. Gülen
dirige abertamente uma rede vasta de escolas e instituições de caridade, mas
tem uma sólida fama de as combinar com uma rede secreta infiltrada
profundamente no aparelho de Estado da Turquia. Em 1999, a televisão
turca transmitiu um sermão gravado em segredo, no qual Gülen dizia aos
seus seguidores: «Têm de circular pelas artérias do sistema sem ninguém
reparar na vossa existência, até atingirem todos os centros do poder.»
Agirem antes dessa altura em que tivessem tomado todo o poder estatal a
partir do interior «seria demasiado prematuro, como partir um ovo sem ter
esperado os 40 dias para que chocasse. Seria como matar o pinto lá dentro».
Provas conclusivas mostram que a rede trabalhava de facto para se
infiltrar de forma lenta e deliberada em todos os níveis do Estado. Como o
jornalista turco Yıldıray Oğur me disse, esta é a incrível história de um
culto religioso a executar um plano para se apoderar do Estado durante um
período de três ou quatro décadas – matéria para um livro de Dan Brown. É
verdade, mas Oğur consegue fornecer provas sólidas para cada rebuscada
viragem no enredo. Para ocupar as forças armadas turcas com gulenistas, o
exame estatal de acesso à carreira militar era roubado e as respostas
entregues aos candidatos que pertenciam à organização, enquanto
julgamentos viciados, conduzidos por serviços judiciários igualmente
infiltrados, desqualificavam e excluíam alguns dos funcionários colocados
em cargos elevados na hierarquia, abrindo caminho a novos recrutas. Tudo
isto seria executado com o maior nível de dissimulação. Por exemplo, ao
aperceberem-se de que uma tática comum para os identificar no interior dos
serviços militares e de segurança era organizar festas junto às piscinas em
que era suposto os oficiais levarem as esposas, expondo assim
astuciosamente as mulheres religiosas que se recusassem a usar fato de
banho, os gulenistas responderam exibindo-as a usar biquíni.
Gülen é um religioso conservador, mas isso não o impede de estar
alinhado com os Estados Unidos e a União Europeia na política externa. O
gulenismo está muito empenhado no papel da educação e do
empreendedorismo numa economia de mercado. Vê os valores islâmicos e
ocidentais como fundamentalmente compatíveis. A adesão à UE
solidificaria esses elementos do regime turco e ajudaria a coordenação entre
diferentes capítulos da organização através da Europa. O próprio Gülen tem
uma postura crítica dura contra a Rússia e o Irão e tem por vezes apoiado
Israel, falando contra aqueles que adotam uma abordagem de confronto.
Dada a sua mensagem pública de tolerância e de diálogo inter-religioso e os
seus esforços filosóficos para reconciliar o islão com a ciência e a
modernidade, muitos observadores ocidentais têm-no visto como alguém
capaz de desenvolver uma versão moderada do islão e de apontar uma
forma de sair do seu conflito com a sociedade ocidental, algo que o
secularismo tem vindo a ser cada vez menos capaz de fazer. Tem falado
frequentemente contra o terrorismo islâmico e tem sido um apoiante
inequívoco da adesão da Turquia à União Europeia.
Apenas dias depois das acusações oficiais contra Gülen, a trama
adensou-se ainda mais quando Erdoğan declarou, numa entrevista
televisiva, que a derradeira responsabilidade não era de Gülen, mas de um
«espírito superior» que operava acima dele – um código frequentemente
usado no passado como referência ao Ocidente. A perfeita ousadia do que
acontecera parecia requerer o trabalho de uma entidade todo-poderosa e
alguns brincaram, dizendo que talvez o «espírito superior» fosse o próprio
Erdoğan. Na esteira do golpe, as autoridades prenderam 40 mil pessoas e
despediram ou suspenderam 120 mil de um amplo leque de profissões,
incluindo soldados, polícias, professores e funcionários públicos, com base
em alegadas ligações à rede gulenista. Muitos não tinham qualquer ligação.
Na verdade, se todos aqueles que foram presos estivessem envolvidos no
golpe, é difícil ver como poderiam ter falhado.
O gulenismo sublinha a necessidade de esperar pelo momento oportuno
para tomar o poder. Apesar de o facto de ter sido possível executar o golpe
mostrar que a infiltração nas forças armadas tinha progredido, o seu
fracasso é também a prova de que o momento oportuno ainda não tinha
chegado. Mas, com o conflito com Erdoğan a tornar-se cada vez mais mais
veemente, a sensação era a de que se estava a aproximar um confronto final
e os golpistas queriam ser os primeiros a executar a jogada decisiva. É
evidente que os rumores sobre um golpe iminente circulavam intensamente
antes de julho e estava programada uma purga do exército para o fim do
verão. Durante o mesmo período, a Turquia estivera embrenhada em
sucessivas mudanças de direção na sua orientação da política externa,
causando muita angústia e agitação. E é esse o contexto em que o golpe
deve ser interpretado. Uma revolta deste tipo só acontece quando um país
está profundamente dividido, mas as divisões dentro da Turquia eram agora
menos sobre o secularismo do que acerca de um debate ainda mais antigo
sobre a Europa e a Ásia.
As relações com Bruxelas tinham estado a piorar todos os anos desde
meados da década anterior, algo que apenas a necessidade mútua de reagir à
grave crise dos refugiados poderia esconder. Ao nível dos valores políticos
abstratos, a Turquia e a União Europeia poderiam partilhar disposições, mas
a política não é abstrata. Quando se trata de reagir a questões práticas e
urgentes, as duas partes tinham respostas diferentes e as suas relações foram
gradualmente captadas pela lógica sem remorsos da competição. Erdoğan
poderá não ter pretendido tornar-se a principal voz no palco mundial a
desafiar ativamente e a atacar a União Europeia, mas, a partir do momento
em que essa lógica foi estabelecida, o confronto tornou-se inevitável.
Quanto à UE, começou a ver no Presidente turco uma ameaça direta, em
resposta à qual tinha de se tornar mais firme e intransigente. Bruxelas
gostaria que a Turquia fosse uma boa aluna europeia, que mostrasse aos
turcos o que uma Turquia europeia poderia fazer. A Turquia quer fazer as
coisas à sua maneira, algo particularmente urgente numa altura em que
enfrenta um número de desafios e ameaças em relação aos quais os
europeus não podem ajudá-la. Se os turcos têm agora de lidar sozinhos com
os seus problemas, por que razão haveriam de ouvir os europeus sobre
como fazê-lo? A realidade geopolítica recentemente experimentada está na
raiz da fratura entre as duas partes. A União Europeia estava a aprender
depressa que não é possível ser-se amado se não se for temido ao mesmo
tempo.
Depois, houve a questão da Síria. A intenção turca expressa logo no
início da guerra civil síria de depor o Presidente Assad estava a sofrer uma
tensão insuportável. Durante os meses que antecederam o golpe, quando
Washington aceitou a ideia de manter Assad no poder, tornou-se claro que a
Turquia não conseguiria manter a trajetória. Muitas pessoas em Ancara
acharam que a Turquia estava a ser encorajada pelo Ocidente para
confrontar Assad, e depois a Rússia, para depois ser abandonada quando o
fizesse. A debilidade ocidental – ou simplesmente a relutância em projetar o
seu poder – estava a colocar pressão sobre Ancara, de quem agora se
esperava que fizesse aquilo que nem a Europa nem a América tinham
coragem de fazer: derrotar o Estado Islâmico e depor o brutal regime de
Assad. Eram exigências insensatas, que começaram a abrir um cisma entre
os interesses turcos e ocidentais.
O primeiro-ministro Davutoğlu foi substituído no início de maio de
2016, em parte para abrir o caminho para uma completa mudança na
política de Ancara sobre a Síria. Como toda a mudança na política externa,
esta também abria oportunidades. Uma aproximação à Rússia quase
certamente se seguiria se o pomo da discórdia sírio entre elas fosse agora
removido. Davutoğlu, aliás, sempre parecera bastante frio em relação a
Moscovo, o que é ainda mais notável na medida em que é o tipo de
intelectual que gosta de testar todas as possibilidades pelo menos uma vez.
Depois de Davutoğlu ter sido substituído, Erdoğan foi rápido a reatar as
ligações com a Rússia. No final de junho, apresentou desculpas a Putin pelo
abate de um bombardeiro russo por forças turcas sobre a fronteira entre a
Turquia e a Síria, que dera cabo das relações entre os dois países. O pedido
de desculpas apanhou a maioria das pessoas de surpresa, em especial
porque Erdoğan afirmava agora que a Turquia nunca tencionara abater o
avião, embora tivesse anteriormente afirmado que estava pronto para o
fazer de novo e quantas vezes fosse preciso. Para sintetizar, havia pelo
menos dois sinais públicos de que uma importante mudança na política
externa turca estava em andamento: a demissão de Davutoğlu e o pedido de
desculpas de Erdoğan. A estes deverão ser acrescentados numerosos sinais
menos públicos, como as visitas de delegações russas a Ancara e Istambul,
que obviamente não poderiam ter passado despercebidas àqueles com
acesso e conhecimento da política turca.
A questão da Rússia sempre foi importante no interior das forças
armadas turcas. Alguns dos oficiais secularistas e progressistas veem a
Rússia como uma parceira na resistência à hegemonia ocidental global.
Apontam para o início da República Turca e para o apoio que receberam da
União Soviética. Regressar ao espírito original da revolução turca
significaria romper com a ideologia ocidental e virar-se na direção de uma
política económica planeada e socialista, agora segundo o modelo do
Estado desenvolvimentista. O regime de Erdoğan parece ter-se deslocado
alguns passos nessa direção, no que registou a viva oposição de Gülen e os
seus seguidores. Algumas pessoas em Ancara vão ao ponto de advogar a
associação turca à Organização de Cooperação de Xangai – uma
organização intergovernamental fundada em Xangai em 2001 – para
alinharem mais de perto a sua política externa com a Rússia e a China, uma
opção que poderia envolver a retirada da Turquia da OTAN. Muitos outros
recordam a forte rivalidade entre os impérios Otomano e Russo e acham
que, sem o apoio das capitais ocidentais, a Turquia ficaria demasiado
exposta ao poder russo. Os países, em especial os grandes países, deslocam-
se muito devagar quando adaptam a sua política externa a novas
circunstâncias e a intensa rivalidade entre a Turquia e a Rússia tem raízes
profundas na sua competição pelo controlo sobre os Balcãs e os estreitos,
bem como as correspondentes aspirações turcas a um mundo turco
unificado. A aproximação entre os dois países está assim ligada de perto ao
relativo declínio do poder russo. Em termos de alavancagem económica e
de dimensão populacional, a Rússia já não surge como uma ameaça ao
Estado turco, que em qualquer dos casos vê nas grandes minorias tártaras e
muçulmanas dentro da Rússia uma garantia de que Moscovo evitará um
conflito aberto.
Quando o colapso da União Soviética e as reformas económicas radicais
na China abriram a possibilidade de uma novo espaço eurasiático, a Turquia
foi a primeira a abraçar a libertação da velha dicotomia, apressando-se a
desenvolver uma política externa adequada àquilo que o primeiro-ministro
Suleyman Demirel, falando em 1992, chamou «um mundo turco
estendendo-se do Adriático à Grande Muralha da China». A possível
integração na UE já não é vista como uma forma de se juntar à Europa, mas
antes como um passo necessário e significativo no objetivo de tornar a
Turquia uma ponte entre civilizações, a charneira que mantém o
supercontinente unido. A Turquia não está interessada em renunciar à outra
metade da sua identidade histórica – turca, muçulmana, otomana – para se
juntar à UE. Vista de Bruxelas, a adesão turca deveria ser definida da
mesma forma: um primeiro mas vital passo para tornar a União Europeia
uma superpotência eurasiática.
O ressentimento contra a União Europeia e o infindo processo de adesão
– a candidatura da Turquia foi apresentada pela primeira vez em 1987 –
converteu muitos velhos socialistas, nacionalistas e islamistas em
simpatizantes de um profundo realinhamento ideológico e da política
externa. A Turquia sempre esteve inclinada a ver o processo de adesão
como o sacrifício de uma grande parte da sua identidade, algo que poderia
talvez ser tentado se os benefícios fossem substanciais. Esses benefícios
nunca pareceram suficientemente substanciais e agora que alguns deles
foram obtidos através de uma maior integração económica, poderão
começar a parecer insignificantes. Por ironia, se a Rússia foi no passado a
fonte das influências ocidentais dentro do Império Otomano, é agora um
importante agente a afastar a Turquia do Ocidente. Já em 2002 o general
Tuncer Kilinç, do Conselho de Segurança Nacional, sugeria que a Turquia
devia forjar uma nova aliança com a Rússia e o Irão contra a Europa. Nessa
altura, esta era ainda uma ideia nova, difícil de engolir para a maioria, mas
não é já o que hoje acontece. As figuras relativamente marginais que
advogavam então esse realinhamento aproximaram-se da opinião pública
maioritária e, a pouco e pouco, fundiram-se em torno de um movimento
intelectual específico: Avrasyacilik – o Eurasianismo.
Como muitos observaram, isto parece completar o quadrado estratégico
de possibilidades para a Turquia. Tradicionalmente, quando se discutia a
questão da identidade nacional turca, os intelectuais turcos apontavam para
uma de três direções: a Europa a oeste, o islão a sul e as nações turcas no
Cáucaso e na Ásia Central a leste. A discussão remonta ao intelectual tártaro
Yusuf Akçura, o autor de um curto panfleto escrito em 1904, em que três
formas principais de ancorar o Estado otomano numa identidade
permanente são sistematicamente testadas contra possíveis objeções:
primeiro, o conceito político do consentimento derivado da Revolução
Francesa; segundo, uma política de unidade islâmica; e terceiro, uma nação
política turca baseada na raça. Após o final da Guerra Fria, surgiu uma
quarta via, identificando a Rússia a norte como o principal ponto de atração
da geopolítica turca e contemplando o fortalecimento das estruturas estatais
como o projeto ideológico por detrás da opção1.
Entre aqueles que se identificam como eurasianistas, destaca-se um
homem: o presidente do Partido Vatan, Doğu Perinçek. Dedicou toda a sua
vida ao eurasianismo como ideia e projeto político. Passou seis anos na
cadeia, acusado de conspirar para derrubar o regime de Erdoğan, nos
sombrios e venenosos julgamentos de Ergenekon. O tribunal acusou-o de
«estabelecer uma organização terrorista armada para derrubar o Governo»,
mas depois de os gulenistas terem por sua vez caído em desgraça, Perinçek
e outros prisioneiros políticos foram libertados. Nos meses mais recentes,
os seus destinos mudaram abruptamente. Agora, é acusado por alguns na
imprensa turca de ser a eminência parda de Erdoğan e de conspirar para
derrubar um século de orientação turca para a Europa e para a América. É
largamente visto como a mão por detrás dos vastos saneamentos no exército
e nos serviços de segurança que se seguiram ao golpe de julho. O Partido
Vatan, embora recolhendo um apoio negligenciável nas eleições turcas, tem
uma enorme influência dentro dos círculos militares e entre os círculos
intelectuais, representado pelo sucesso do seu jornal diário, do seu canal
televisivo e da sua editora.
Visitei Doğu Perinçek numa sexta-feira de chuva em dezembro de 2016,
um dia depois de atravessar o Túnel Eurásia pela primeira vez. O partido
enviou um carro para me buscar em Beşiktaş. Quando chove, o trânsito em
Istambul torna-se ainda pior do que o habitual. Chegar à sede do partido era
uma tarefa impossível, pois o nosso carro enfiava-se por uma rua estreita
em Beyoğlu e era logo forçado a fazer marcha-atrás quando encontrava
outro carro que tentava descer. Finalmente, o membro do partido que me
escoltava decidiu que tínhamos de ir a pé o resto do caminho. Com uma
hora de atraso, fui recebido por Perinçek à entrada do seu gabinete, cheio de
velhos livros e com vista para o Corno de Ouro.
«Hoje não está muito dourado», observou com um grande sorriso.
Perinçek iniciou rapidamente uma vasta exposição histórica e filosófica
sobre o desafio histórico que o mundo enfrenta. Apontando para mim,
observou que a era da civilização europeia iniciada pelos portugueses e
pelos espanhóis chegara agora ao fim. «É a China que agora lidera a
economia mundial.» As primeiras dores de parto da nova ordem eram para
ele as três revoluções do século XX na Rússia, na Turquia e na China,
quando os herdeiros de três grandes impérios começaram a procurar uma
via nova e independente. Já a encontraram, mas uma aliança estreita entre
as três continua a ser indispensável. «A Turquia tem de se juntar à Ásia.
Esta orientação é irreversível», insistiu Perinçek. Quando lhe perguntei a
razão pela qual o golpe de julho ocorrera, ele não poupou nas palavras: «Foi
uma reação a esta orientação para a Ásia. Foi um golpe instigado pelos
Estados Unidos.»
Perinçek tentou defender que as ligações económicas com a Ásia
estavam a crescer, mas a principal questão para ele é aquilo a que chamou a
«guerra entre os Estados Unidos e a Turquia», que visa apoiar os grupos
terroristas e armados curdos e, eventualmente, fragmentar o país. A Turquia
está portanto à beira de uma resolução histórica, regressando às suas linhas
revolucionárias de desenvolvimento. «Como Atatürk declarou há algum
tempo, a Turquia é uma nação asiática. Rompendo com o sistema atlântico,
ocuparemos o nosso lugar no sistema eurasiático. Todos os equilíbrios no
mundo estão a ser perturbados em resultado disso e a Turquia é um dos
principais atores neste processo pelo qual o mundo está a passar.»
Eu fiquei interessado na citação de Atatürk, o pai fundador da República
Turca, e assim que regressei ao hotel fui investigá-la. Foi proferida num
discurso em março de 1922, acerca das relações entre a Turquia e o
Afeganistão. Atatürk vê os dois países como fortalezas no caminho dos
«invasores ocidentais». Não há qualquer sugestão neste texto, ou noutros
escritos na mesma altura, de que a Turquia tenha qualquer relação com a
Europa que não seja exterior. Uma vez que a Europa está em todo o lado, a
sua política geral diz respeito a todos. Assim, afirma Atatürk, a Turquia está
de olho na Europa, mas permanece um país asiático2.
O Partido Vatan desempenhou um papel considerável na aproximação
entre a Rússia e a Turquia. Ao irmos depois de carro até um restaurante
nessa tarde, Perinçek disse-me que Erdoğan o contactou em março de 2016
para começar a estabelecer contactos preliminares com Moscovo. Como
bom político, Erdoğan talvez não estivesse a fazer mais do que a reagir às
mudanças da opinião pública, mas os crescentes sinais de que estaria a
ponderar uma nova «grande aliança» com Moscovo e Teerão fizeram
disparar os sinais de alarme entre muitos turcos.
Os jornalistas turcos tinham durante alguns meses comentado em
privado que o caça F-16 da Força Aérea Turca que abatera o bombardeiro
russo fazia parte de uma unidade secreta desligada da cadeia de comando.
Foi-lhes dito que se mantivessem calados, mas, na noite do golpe, as
primeiras notícias de que seis F-16 tinham começado a sobrevoar Ancara a
altitude muito baixa e com os seus recetores-transmissores desligados
soaram como uma confirmação. Naquilo que deve ter sido um dos mais
notáveis factos acerca do golpe, sabemos agora que um dos pilotos a bordo
dos caças rebeldes na noite do golpe era de facto o piloto que abatera o
avião russo em novembro de 2015.
A manobra nessa altura interferiu certamente na aproximação entre
Ancara e Moscovo, mas apenas durante alguns meses. Quando foi
retomada, alguns meses antes do golpe, havia uma clara sensação no
interior do movimento gulenista de que um golpe bem-sucedido poderia ser
legitimado, tanto interna como externamente, através de um apelo a uma
política externa mais tradicional. Foi por isso que o comunicado do golpe
insistiu em que, entre as razões para este, estar o facto de «o nosso Estado
ter perdido a reputação que merece na arena internacional», prometendo
simultaneamente que a mudança de regime «recuperaria a reputação
internacional perdida do nosso país e do nosso povo». Com a Europa e os
Estados Unidos cada vez mais incapazes de manterem a Turquia
firmemente sob o seu controlo, o país oscilava entre duas vias opostas, duas
formas de se ver no mundo.
Numa viragem final, houve relatos acerca de um papel direto da Rússia
na noite do golpe fracassado. A Agência Noticiosa Fars, do Irão, próxima do
Governo de Teerão, citou fontes diplomáticas em Ancara como tendo
afirmado que a Organização Nacional de Informações da Turquia recebera
informações secretas da sua homóloga russa que anunciavam um golpe
iminente. A Rússia está singularmente colocada para ter acesso a
comunicações intersetadas, a partir das suas bases de espionagem na
província síria de Latakia. As mesmas fontes diziam que a mudança na
política externa de Erdoğan nas semanas anteriores ao golpe acabou por
salvá-lo, pois não é evidente que os russos, caso contrário, lhe tivessem
transmitido a valiosa informação.
Alguns meses mais tarde, a 20 de novembro de 2016, o Presidente
Erdoğan disse aos jornalistas que viajavam com ele no avião presidencial
que chegara a altura de a Turquia considerar alternativas à União Europeia e
que a Organização de Cooperação de Xangai seria a substituta certa, uma
possibilidade que disse ter sido já discutida com a Rússia e o Cazaquistão.
Um dos ideólogos por detrás da organização, o general Leonid Ivashov,
presidente da Academia dos Assuntos Geopolíticos, de Moscovo, saudou as
suas palavras, dizendo que seria o movimento apropriado para a Turquia e
acrescentando que seria seriamente considerado, desde que Ancara se
retirasse da OTAN. Eu estava em Beijing na altura e fui questionado pela
televisão estatal chinesa sobre se isso seria o anúncio do final da hegemonia
ocidental.
A Turquia não abandonará de forma voluntária a OTAN, mas a questão
do seu papel e obrigações no interior da aliança está agora em aberto. Em
agosto de 2016, pouco depois do golpe falhado, a Turquia iniciou
negociações com o Kremlin para obter sistemas de defesa antimíssil S-400
produzidos na Rússia. A sua liderança da Defesa expressara interesse em
comprar os S-400 desde 2013, quando inicialmente abordara a China. Os
oficiais foram obrigados a cancelar o acordo em novembro de 2015, em
reação à desaprovação da OTAN. Mas agora foi anunciado um acordo de
princípio com a Rússia em abril de 2017, ao mesmo tempo que as tensões
entre a Aliança e o Kremlin atingiam um nível febril. No contexto da
crescente distância entre Ancara e os seus parceiros europeus e norte-
americanos, havia pouco interesse em levantar de novo a questão da OTAN.
Em julho, Erdoğan deu o passo final anunciando que fora assinado um
documento.
Jantei com Doğu Perinçek em Brezza, perto do Aeroporto Atatürk. Foi
quatro dias depois de o embaixador russo na Turquia, Andrey Karlov, ter
sido assassinado, durante a inauguração de uma exposição de arte
contemporânea, por isso a segurança fora previsivelmente reforçada.
Perinçek acha que o assassinato foi mais uma tentativa orquestrada para
afastar a Turquia da Rússia, embora eu esteja convencido de que é uma
reação dos islamitas na Turquia contra a intervenção russa na Síria. Há
ainda outros em Istambul sussurrando que Karlov era o intermediário entre
poderosos grupos de interesses na Rússia e na Turquia e que foi morto por
pessoas desagradadas com os negócios que estavam a ser celebrados para
marcar a amizade recém-descoberta entre os dois países.
A conversa fluiu agradavelmente, apesar de eu ter de adaptar a minha
habitual opinião de que a União Europeia e a Turquia deveriam melhorar a
compreensão que têm uma da outra. O Partido Vatan, afinal de contas, não
está por força desgostoso devido ao facto de a distância e a incompreensão
entre os dois lados continuarem a aumentar. Perinçek estava a ser tão
insistente em que a Turquia deveria virar as costas àquilo a que chama «o
mundo atlântico» que não pude deixar de perguntar-lhe por que razão se
continuava a apelidar «eurasianista» em vez de, por exemplo, «asianista».
Há duas razões, respondeu. Primeiro, uma de ordem prática: a Turquia não
pode simplesmente romper com a União Europeia, com a qual tem
desenvolvido ligações económicas muito profundas. A segunda razão é
mais interessante:
«Consideramo-nos herdeiros da Revolução Francesa. Sem a Europa,
não haveria tradição revolucionária, não haveria iluminismo.»
Quando nos separámos, no final de uma longa noite a beber raki, pedi
mais uma vez desculpa por ter chegado uma hora atrasado ao nosso
encontro. Foi então que descobri que ele esperara duas horas e que a todos
os encontros durante os últimos dias, em vez de ter sido fastidiosamente
pontual, eu chegara com uma hora de atraso, o que fez com que me
interrogasse sobre porque é que ninguém em Istambul mo mostrara ou
exibira o mínimo incómodo. Um ou dois meses antes, a Turquia deveria ter
atrasado os relógios uma hora, mas, por uma decisão governamental, após
uma recomendação do ministro da Energia, mantivera o tempo de poupança
da luz diurna, fazendo com que o país, simbolicamente, ficasse na mesma
zona horária de Moscovo e duplicando a diferença horária em relação a
Paris e Berlim. O meu smartphone ajustara-se à nova zona horária, mas não
às últimas instruções governamentais.
Fez-me pensar nas reformas de modernização impostas por Mustafá
Kemal, mais conhecido por Atatürk. Em 1925, a Turquia mudou
oficialmente para o calendário gregoriano, abandonando os dois calendários
tradicionais muçulmanos, que tinham sido usados durante o domínio
otomano. Tal como em relação à mudança do árabe para um alfabeto latino
modificado três anos depois, o novo calendário produziu um rompimento
com a tradição islâmica e foi fonte de muita confusão. As gerações mais
novas já não conseguem compreender o que significavam expressões como
a «Guerra de 93», ou a «Revolução de 1324», como foi até então conhecida
a revolta dos Jovens Turcos de 1908. Também em 1925, um decreto adotava
a forma ocidental de dividir o tempo do dia, que substituiu os tempos das
orações muçulmanas, marcadas a partir do pôr do sol. Depois, em 1935, o
dia de descanso semanal oficial foi transferido da sexta-feira muçulmana
para o domingo cristão ou ocidental3.
O desejo de mudar a forma como o tempo é medido estar na raiz de
todas as reformas políticas é uma ideia satirizada num maravilhoso romance
turco, O Instituto da Regulação do Tempo, de Ahmet Hamdi Tanpinar, em
que a organização epónima é encarregada de sincronizar todos os relógios
da Turquia com o propósito expresso de terminar com a perda de tempo.
Milhões de segundos estavam a ser perdidos a todas as horas por causa de
relógios desregulados, uma enlouquecedora perda de tempo para a
economia quotidiana do país, um luxo a que a Turquia não se poderia
permitir, se quisesse apanhar a Europa. Depois do estabelecimento do
instituto, toda a gente na Turquia começou a verificar e acertar os seus
relógios de parede e de pulso e uma das inovações introduzidas fazia com
que milhares de mulheres turcas levantassem as saias da forma mais
elegante possível para verificarem os minúsculos relógios que lhes
enfeitavam as ligas.
A PENÍNSULA EUROPEIA
E
m setembro de 2015 os embaixadores da União Europeia de todos os
28 Estados-membros realizaram uma das suas múltiplas reuniões
sobre a crise dos refugiados, que atravessava então um dos seus momentos
mais graves. A principal questão era como lidar com o mecanismo de
realojamento entre os Estados-membros, face à forte oposição a um sistema
de quotas, em particular por parte da Europa Central e Oriental.
Pairara no ar a ideia de que os países poderiam fazer uma contribuição
financeira em vez de serem obrigados a receber refugiados de Estados com
fronteiras sobrecarregadas como a Itália e a Grécia, como era implicado
pelo mecanismo de realojamento. Esta proposta enfrentou uma oposição
natural, por isso foi sugerida uma alternativa: e então se fosse permitido a
um país adiar a sua obrigação de preencher a quota por um período de seis
meses? Era um bom compromisso a que a presidência acrescentou ainda
mais um ajustamento: o limite máximo do número de refugiados cujo
realojamento poderia ser adiado deveria ser fixado em 30 por cento do
número total obtido através da aplicação do algoritmo de realojamento
original. O realojamento de refugiados em clara necessidade de proteção
internacional deveria ocorrer segundo a fórmula de uma chave de
distribuição estabelecida no Anexo III da Proposta. A chave de distribuição
proposta deveria ser baseada em: a) o quantitativo da população (peso de 40
por cento); b) o total do PIB (peso de 40 por cento); c) o número médio de
pedidos de asilo por milhão de habitantes durante o período 2010-2014; e d)
a taxa de desemprego (as últimas duas variáveis com 10 por cento de peso,
com um valor máximo de 30 por cento do efeito da população e do PIB
sobre a chave, para evitar efeitos desproporcionados desse critério sobre a
distribuição total).
Um campo de forças
Em julho de 2016 visitei o Ministério dos Negócios Estrangeiros em Berlim
para discutir estratégia de política externa com um grupo de cerca de 10
funcionários de política de planeamento, incluindo chefes de diferentes
divisões regionais, bem como de unidades especializadas em comércio e
economia do ministério. Estava em particular interessado em saber como a
Alemanha encarava a questão da integração eurasiática e a melhor maneira
de responder aos planos russos e chineses nesta área.
A Alemanha é importante porque tem liderado os esforços europeus
para lidar com o revisionismo russo na Ucrânia, adiantando-se ao mesmo
tempo a outros países da UE no estabelecimento de importantes e
duradouros laços comerciais com a China. Poderia também dizer-se que a
própria Alemanha não é estranha à questão eurasiática. Noutros tempos,
claro, a fronteira entre a Europa e a Ásia coincidia com as terras que
separavam os teutões dos eslavos. A própria Alemanha conservava
profundas dúvidas sobre se pertenceria realmente à civilização ocidental,
uma questão que teve de aguardar pela catástrofe moral do nazismo e pela
destruição nacional para ser finalmente resolvida. Eu queria avaliar se o
aparelho da política externa alemã estava mais sincronizado com a alvorada
do novo supercontinente do que Bruxelas e as outras capitais europeias.
De facto, o ministério financiara um documento do Conselho Europeu
sobre Relações Externas precisamente sobre essa questão, o que parecia
mostrar que havia um interesse crescente sobre como a UE deveria reagir à
integração russa e chinesa na Eurásia. Na reunião, apresentei uma breve
introdução em que sublinhei as três razões pelas quais pensava que a
Europa precisava de ter uma perspetiva eurasiática. Primeiro, porque a
Rússia e a China têm. Segundo, porque muitas, senão todas as grandes
questões de política externa do nosso tempo têm que ver com a forma como
a Europa e a Ásia se poderão ligar: a Ucrânia, a crise dos refugiados, a
energia e o comércio. Terceiro, porque todas as grandes ameaças à
segurança nas próximas décadas se desenvolverão no contexto eurasiático,
repetindo padrões tradicionais: todas as maiores guerras (e muitas das
menores) que ocorreram na Europa e na Ásia entre 1815 e 1945 começaram
por disputas fronteiriças entre dois continentes – o litoral báltico, a fronteira
do Danúbio, a estepe pôntica, o istmo caucasiano, a Ásia Central e o
Extremo Oriente russo.
«Tem razão, a China está a olhar para o Ocidente», respondeu alguém.
«Não tenho a certeza de que a Rússia esteja a olhar para o Oriente. Querem
atrair dinheiro e turistas e é tudo. O que está a dizer é que a China precisa
de uma porta para a Europa e que é por essa razão que se poderá dar um
choque com a Rússia. Isso é muita estratégia. Os chineses são muito
pragmáticos, não têm estratégia.»
Esta advertência em particular seria uma constante na discussão.
Poderia dizer-se que o pensamento geopolítico na Europa está morto, em
particular na Alemanha. A maioria dos processos é analisada ao nível
«micro», através de forças económicas e sociais. Há um papel para os
Governos, claro, mas é sobretudo para acelerar esses processos. Ou antes,
não se encontra uma perspetiva geopolítica, como aconteceu na minha
reunião, a não ser quando se ouve os especialistas russos. A geopolítica é
um método para entender a Rússia, não para desenvolver uma perspetiva e
um curso de ação europeus.
O que deverá fazer a Europa? O Ministério dos Negócios Estrangeiros
alemão acabara de organizar uma conferência sobre conetividade,
convidando funcionários chineses para falarem sobre o «Cintura e Rota» e
funcionários da Comissão Europeia para explicarem algumas das formas
como os planos chineses se podem ligar a plataformas e mecanismos de
financiamento europeus. Este workshop pretendia até certo ponto mostrar
aos russos que estão a ficar de fora por causa das suas ações na Ucrânia e
das sanções económicas que se seguiram. A posição alemã consiste em
encontrar um modus vivendi com a União Económica Eurasiática, mas em
parte a razão para isso é atrair o seu outro membro para mais perto da
Europa. Se a Rússia não contribuir proporcionalmente aos benefícios
económicos do seu modelo de integração, então a União Europeia estará lá
para se aproveitar da inevitável fragmentação. Quando a Rússia acordar terá
de se contentar com aquilo que tinha antes: cooperação política e
económica com a Europa, a única que lhe poderá oferecer perspetivas de
modernização.
Quando defendi que a Rússia talvez já não pense em si própria como um
país europeu, um dos meus interlocutores discordou fortemente, citando
uma recente visita de Putin à Escola Alemã em Moscovo, onde afirmou que
a Europa seria a parceira preferencial da Rússia se abandonasse os seus
compromissos transatlânticos. Para este funcionário, a Rússia continua a ser
europeia, mas não europeia ocidental. A identidade europeia é a sua
primeira escolha. A Rússia tem uma identidade asiática, mas
consideravelmente mais fraca.
«Não devemos ser seduzidos pelo extremismo intelectual», prosseguiu o
funcionário alemão. «Não existe um grande esquema dirigido.» A ideia era
que tínhamos de nos sentir confortáveis com a ambiguidade russa. Assim,
de forma interessante, disseram-me que aquilo que a China e a Rússia estão
a fazer não é muito diferente daquilo que, por exemplo, a Alemanha está a
fazer: diversificar a economia, aumentar as opções. Quanto aos chineses,
estão a construir portos e infraestruturas por todo o lado. É um processo
natural de procurar boas oportunidades económicas. «Podemos desconfiar
sempre, mas porquê? A Alemanha está a olhar para sul, a olhar para leste.
Portugal está a olhar para a Europa, mas também para a América Latina.
Temos de trazer estas coisas não para a concorrência, mas para a sincronia.»
Deveremos nós, enquanto europeus, abraçar a ideia de um
supercontinente asiático? Será isto a forma de o fazer, procurando pontos de
sincronização? Expressei o meu desacordo nestes termos:
«Penso que nós, europeus, tendemos a olhar para o mundo como se o
mundo fosse exatamente a Europa. Temos este martelo e vemos pregos em
todo o lado. Vejo aqui a sugestão de que devemos apenas fazer aquilo que
de qualquer modo fazemos na Europa: cooperar, ligar, conetar, todos esses
verbos. É esta a forma europeia de fazer as coisas. Qual é a alternativa?
Uma abordagem mais estratégica e, sim, mais competitiva. Precisamos de
olhar para o mapa e ver o que é mais importante para nós a cada momento
para aumentar a nossa influência, a nossa alavancagem, pensar em termos
de poder e não apenas em termos de regras, que nem sempre funcionam em
casa, quanto mais no mundo aberto. Primeiro, se a China quer beneficiar do
reconhecimento como uma economia de mercado, precisará de mudar
gradualmente alguns dos elementos fundamentais da sua cultura económica,
em particular aqueles que impedem qualquer distinção significativa entre
poder político e económico. Segundo, a União Europeia deve aumentar a
sua presença em países que desempenham um papel decisivo de portas de
acesso e nós de conexão ao longo das novas rotas que ligam a Europa e a
Ásia. O Azerbaijão e o Cazaquistão, por exemplo. Terceiro, deverá ser
capaz de influenciar os desenvolvimentos na China e na Rússia adiantando-
se com outros acordos comerciais com atores globais como a Índia, o Japão
e os Estados Unidos. Se acharem que a Rússia e a China têm uma
abordagem expansionista, não podem responder com regras.»
A resposta foi vigorosa:
«A nossa civilização baseia-se em regras. É isso que defendemos. E isso
é cada vez mais popular em todo o mundo. As pessoas estão fartas de
decisões arbitrárias. Querem viver sob regras, é por isso que invejam a
Europa e são atraídas por nós.»
«Claro. Com isso não discordo. Mas a questão, em minha opinião, é
prévia a isso. Temos diferentes visões do mundo e temos de fazer com que
encaixem. O problema com a União Europeia é que parece assumir que
existe um padrão neutro de regras, ao passo que o verdadeiro problema
consiste em saber que regras prevalecerão, um problema que nenhuma regra
pode decidir.»
Quando nos voltámos para um exemplo concreto, o problema tornou-se
mais nítido. Os noticiários nessa semana reservavam um espaço
considerável à aquisição da Kuka, uma fabricante de robôs alemã, pela
empresa chinesa de eletrodomésticos Midea. Os políticos na Alemanha
começavam já a expressar preocupações por as empresas de que o país
dependia para conduzir a próxima revolução industrial estarem a ser
perdidas para a China. Durante o ano seguinte, a questão cresceu em
importância e visibilidade. Na altura, já suspeitava de que a Alemanha se
iria sentir cada vez mais ameaçada por estes desenvolvimentos e casos
recentes viriam a confirmá-lo. Embora tivesse por fim sido dada luz verde à
aquisição da Kuka, passados apenas três meses o Governo alemão retirou a
aprovação para a aquisição da fabricante de equipamentos de microchips
Aixstrom por um grupo de investidores chineses, devido ao que foi
transmitido ao público como sendo preocupações de segurança. Em
fevereiro de 2017, a Alemanha juntou-se à França e à Itália incitando a
Comissão Europeia a usar a sua competência para determinar quando
deveria ser bloqueada uma aquisição estrangeira, desta vez não por razões
de segurança nacional, mas económicas. No final de fevereiro, encontrei a
comissária europeia para o Comércio, Cecilia Malmström, em Bruxelas.
Estava confusa acerca de quais poderiam ser essas razões económicas, mas
era claro para ela que o que a Alemanha queria era ter o bolo e comê-lo
também: bloquear a influência chinesa e, ao delegar as decisões específicas
a Bruxelas, preservar as suas boas relações económicas com a China. Os
três países levaram a proposta a um Conselho Europeu em junho de 2017,
mas conheceu a resistência de Portugal e Espanha, bem como dos Estados
bálticos e escandinavos – os primeiros receosos de que os investimentos
chineses secassem, os segundos não estando dispostos a dar cobertura
àquilo que entendiam como medidas descaradamente protecionistas. Como
era esperado, a questão está já a provocar divisões e estas deverão agravar-
se.
Nessa tarde de julho de 2016 no Ministério dos Negócios Estrangeiros
alemão, os funcionários à minha frente estavam ainda completamente
empenhados com a doutrina tradicional. Quando lhes perguntei de que
forma uma abordagem baseada em regras lidaria com uma questão como a
da Kuka, a resposta foi que a Europa devia evitar agir de modo estratégico,
pois caso contrário arriscar-se-ia a ver-se envolvida num grande conflito
que provavelmente perderia. «Temos de ter muito cuidado se começarmos a
exercer pressão. Os chineses compreendem perfeitamente que defendamos
os nossos interesses, esse conceito não lhes é estranho. Mas se for feito de
uma forma desadequada, seremos vítimas do outro lado da Eurásia.»
«Os europeus não têm escolha», tentei argumentar. «Se quiserem
reforçar as regras existentes, então terão de perguntar se o que estão a fazer
países como a China e a Rússia é seguir as regras. O que acontecerá se a
China começar a separar cadeias de valor globais – se, por exemplo, partes
da indústria de fabrico polaca ou turca forem convertidas, deixando de
produzir componentes para a Alemanha e passarem a produzi-los para os
chineses? A determinado ponto, já não estamos a falar de regras…»
«As empresas estão sempre a fazê-lo.»
«Não se trata aqui de empresas, mas sim do Estado chinês. Isto são
investimentos feitos por empresas em resposta a políticas estatais ou
interesses estratégicos. Apenas parecem estar a seguir as regras se limitarem
a vossa análise ao que acontece dentro das fronteiras europeias. Podem
evidentemente bloqueá-los, mas isso não serviria de nada e seria sempre
fútil, uma vez que não é possível cerrar todas as portas e janelas através das
quais a influência chinesa poderia entrar. Não serviria de nada porque o
objetivo devia ser criar um ambiente externo favorável e não construir um
sistema utópico desprovido de ambiente. Os chineses percebem bem isto:
pegam nas regras de mercado europeias e tentam usá-las em seu próprio
proveito, enquanto aumentam a sua presença aqui. Pensem na Eurásia como
um campo de forças. A questão dos diferentes modelos políticos e
económicos apenas poderá ser decidida pelo poder, influência e
alavancagem. Não chega a União Europeia apoiar as suas regras e forma de
vida. Precisa de criar um ambiente mais amplo onde possam funcionar
eficazmente. Há uma palavra para esse tipo de política, um novo tipo de
política.»
«Eurasiática?», foi a previsível sugestão.
A Grande Muralha
A União Europeia reproduz dentro de si algumas contradições e dilemas
que definiram a moderna História europeia. Por um lado, o conceito de
Europa é antitético por natureza. É definido contra outra coisa qualquer. O
polo oposto poderá variar em diferentes períodos históricos, mas como
começámos com uma geografia ideal é em absoluto natural que terminemos
com um conceito geográfico igualmente abstrato: a Europa é definida em
oposição à Ásia, uma Ásia tão mítica como a própria Europa.
Por outro lado, a Europa tem uma vocação universal. Na era dos
impérios, isto significa que as nações europeias tentaram levar a forma de
vida europeia a todo o Planeta. Para a União Europeia, a missão é
certamente diferente, mas não é menos universal. O projeto europeu é,
afinal de contas, fundado com a intenção explícita de ultrapassar divisões e
fronteiras, juntar velhos inimigos e destroçar definições exclusivas de
nacionalidade. É difícil ou impossível recusar traçar linhas vincadas em
torno das velhas nações europeias e, depois, pretender fazer o mesmo em
torno de uma identidade europeia maior. Além disso, se a União Europeia
tentasse atingir uma definição final sobre onde residem essas fronteiras, as
regiões fronteiriças surgiriam subitamente como microcosmos europeus,
mais europeus do que a própria Europa: lugares onde diferentes culturas se
encontram e combinam, onde diferentes formas de vida existem lado a lado
e estão destinadas a partilhar uma existência comum. Este é obviamente o
caso da Turquia, da Bósnia e da Ucrânia. Como excluir da União Europeia
esses países que são, de facto, modelos individuais daquilo que a Europa
aspira ser?
Na prática, essas regiões fronteiriças estão perante um desafio cultural:
uma vez que a sua filiação ao clube europeu é de algum modo duvidosa,
cabe-lhes a elas resolver o problema movendo-se o mais possível em
direção ao centro. Como um funcionário da Comissão Europeia uma vez
me disse, países como a Bósnia e a Ucrânia têm de realizar reformas tão
«perfeitas e impecáveis» que Bruxelas não terá outra alternativa senão
aceitar que são de facto tão europeias como a França ou a Alemanha e
«deixar que entrem». Noutra ocasião, um antigo chefe de Governo disse-
me: «Nós não começamos a pensar nesses países dos Balcãs logo pela
manhãzinha. Eles têm de ganhar a nossa atenção.»
De facto, a contradição entre as duas visões – uma universal, a outra
limitada e demarcada – não é difícil de explicar. O projeto europeu é, pela
sua própria natureza, um projeto de globalização e tem o seu destino preso
ao destino da globalização. Não poderá prosperar se se definir de qualquer
outro modo. Dentro das suas fronteiras tenta conduzir o ideal da
globalização à sua conclusão lógica: a abolição final de fronteiras. Isto
significa ser uma precursora daquilo que acabará por se estender a todo o
Planeta, de acordo com o velho paradigma «primeiro na Europa, depois em
toda a parte». Jean Monnet, um dos pais fundadores do projeto europeu,
concluiu as suas Memórias com uma frase que afirmava que a própria
União Europeia – então Comunidade Europeia – «é o único palco do
caminho do mundo organizado de amanhã». Esta imagem é a de uma União
Europeia como um laboratório onde os métodos de governação para mediar
e ultrapassar os conflitos de todos os géneros são gradualmente aplicados ao
mundo inteiro. Mesmo as fronteiras externas da UE não pretendiam ser
como as fronteiras de um Estado tradicional. Estavam, antes do mais,
sujeitas a expansão, seguindo o velho modelo imperial segundo o qual a
melhor forma de estabilizar as regiões fora das suas fronteiras é trazê-las
para dentro. Mais fundamentalmente, mesmo quando o alargamento não é
considerado, as fronteiras exteriores deverão tornar-se cada vez mais
porosas e abertas ao comércio, às viagens e ao intercâmbio cultural. É neste
ponto que uma fatal incompreensão se imiscui. É esclarecedor examinar a
forma como é apercebido do exterior – em particular, por Beijing.
No final de novembro de 2016 visitei o Centro de Desenvolvimento e
Investigação do Conselho Estatal Chinês, a unidade de investigação da
administração estatal chinesa, sediada num sombrio edifício de escritórios
próximo de Chaoyangmen, em Beijing. Na altura da minha visita, a recente
eleição presidencial americana estava ainda a ser discutida e os cenários da
futura presidência de Trump eram cuidadosamente delineados pelos
funcionários que encontrava, mas a discussão depressa se voltou para as
relações entre a Europa e a China. Em geral, o conhecimento da política
europeia na China e da política chinesa na Europa é muito pobre e as
respetivas culturas políticas estão mais afastadas do que as da China e dos
Estados Unidos. Isto foi reafirmado e adequadamente lamentado por todos
os presentes, mas quando pedi um exemplo a resposta foi, de forma
surpreendente incisiva e esclarecedora. «Veja-se os americanos. Não estão
satisfeitos com a forma como os nossos mercados estão fechados às suas
companhias, por isso querem negociar esse aspeto. Mas os europeus dizem
que já abriram os seus mercados e depois pressionam-nos para que façamos
o mesmo. Isso é unilateral. A Europa tem de compreender que já não
estamos no século XIX.»
A distinção é subtil, mas importante. Poder-se-ia pensar que, ao estar
menos obcecada com a necessidade de reciprocidade, a UE deveria merecer
aplausos, mas de facto isto significa, pelo menos para as autoridades de
Beijing, que os europeus se reservam o direito de definir a estrutura geral e
as regras para a economia global, que apresentam aos outros como
evidentes e inelutáveis. O argumento vindo de Bruxelas é mais ou menos o
seguinte: consideramos que os investimentos externos das companhias
chinesas na UE são bons para ambas as partes; sendo assim porque é que as
autoridades chinesas apresentam uma opinião diferente e porque é que uma
empresa europeia é impedida de fazer investimentos equivalentes na China?
Os chineses, claro, são perfeitamente capazes de ver através do jogo de
fumo e espelhos: a reciprocidade é defendida por referência a uma posição
de políticas definidas unilateralmente por um dos lados.
A abertura e o empenho da Europa em relação à globalização são em
grande parte determinados por uma experiência histórica específica durante
a qual a globalização foi conduzida e definida por países europeus e, mais
tarde, pelos Estados Unidos, ainda em grande parte de acordo com ideias e
interesses europeus. O que acontece quando a globalização começa a ser
percecionada como não sendo necessariamente vantajosa e favorável aos
europeus? Sem surpresa, o empenho numa ordem global aberta começa a
vacilar. Como testemunhámos durante os últimos dois anos, tornou-se
difícil, se não impossível, defender uma maior liberalização comercial na
maioria dos países europeus e certas iniciativas foram postergadas para
limitar o impacto das importações e dos investimentos em aquisições pela
China.
O nosso conforto em relação ao mundo exterior aumenta muito,
evidentemente, quando temos a capacidade de moldar, ou pelo menos de
influenciar, esse mundo. Pelos padrões históricos, a capacidade europeia
para projetar no exterior o seu poder sofreu um acentuado declínio, fazendo
recuar a Europa para uma altura em que o mundo parecia um lugar estranho
e caótico, com a significativa diferença de que nada resta da velha «missão
civilizadora», o impulso para organizar lugares distantes segundo linhas
habituais.
O muro que separa a Europa da Ásia todos os dias recebe novos e
devastadores golpes. Podemos esperar que se desmorone inteiramente
durante o período das nossas vidas, mas ainda não desapareceu do espírito
europeu e poderá de facto ser reforçado aí, enquanto continua a esboroar-se
no mundo real. Nunca o mundo pareceu tanto ser uma fonte de perturbação
e desordem. É menos uma metáfora do que uma descrição exata: a União
Europeia é um mecanismo de precisão que precisa de condições ambientais
perfeitas para funcionar bem; por isso qualquer perturbação significativa
vinda do exterior faz com que comece a avariar-se e pare. A crise da dívida
que ainda afeta os países da periferia meridional foi em grande parte um
produto de fluxos financeiros globais, aliados ao choque sofrido pelos
sectores industriais tradicionais, produzido pelas exportações de produtos
chineses. Da mesma forma, o Brexit está fortemente correlacionado com a
deslocação económica causada pela globalização: as regiões que foram
mais expostas à recente erupção de importações manufaturadas da China,
por causa da sua histórica especialização industrial, apresentaram de modo
sistemático percentagens de voto mais altas a favor da saída da UE1.
Todas as crises europeias durante a última década foram resultado de
um choque externo. Por vezes a origem poderá estar um pouco na sombra,
noutros casos é óbvia. Mas mesmo quando a crise é imposta do exterior,
como aconteceu com a anexação russa da Crimeia e a incursão militar na
Ucrânia Oriental, o impacto foi profundamente sofrido nas estruturas e
instituições europeias, fomentando novas divisões entre os Estados-
membros e o crescente sentimento entre os cidadãos de que a UE não é
capaz de apresentar uma ação rápida e eficaz. Daí a tentação de reconstruir
o grande muro entre a Europa e a Ásia, a separação entre a civilização da
cidade e as estepes a leste – terras que, aos olhos europeus, são uma fonte
de perigo e desordem.
A contradição, portanto, é que os europeus continuam a ver a sua tarefa
como consistindo em levar a sua forma de vida ao resto do mundo, de modo
muito semelhante ao dos navegadores e exploradores há mais de 500 anos.
Estão dispostos a abandonar as suas fronteiras se estiverem convencidos de
que o resto do mundo acabará por se tornar como a Europa. Quando a
influência se desloca em sentido oposto, preferem retirar. Mas a Europa não
pode continuar imune a essas influências. Tem de aprender a projetar as
suas influências para leste, não como profeta de uma civilização mundial,
mas como uma potência eurasiática. A forma de vida europeia não existe
num vácuo, sendo profundamente influenciada e afetada por aquilo que
acontece nas suas fronteiras e para lá delas, forçando os europeus a
encontrarem as instituições e políticas adequadas para encaixar a sua forma
de vida num contexto político mais alargado. Não encontro melhor palavra
para tal projeto do que a que figura no título deste livro. Ser eurasiático
significa, quando aplicado à estratégia e às opções europeias, que se deve
ser europeu, mas não exclusivamente europeu.
Existe uma última razão pela qual a Europa deverá tornar-se mais
ativamente interessada no projeto da integração eurasiática: para combater
as forças da desintegração dentro da própria Europa. A União Europeia tem
uma necessidade desesperada de fortalecer a sua capacidade política, a sua
aptidão para agir coletivamente. Até aqui, isso tem sido defendido através
de um vago apelo à História e ao sentimento, mas, em última análise, a
capacidade política só pode ser fortalecida se houver um objetivo em
virtude do qual seja exercida. A UE precisa de se tornar um agente político
mais forte, não para realizar um mandamento moral ou histórico, mas para
realizar as tarefas que o futuro lhe exigirá: alargar a sua influência para fora
das suas fronteiras, gerir os fluxos entre territórios fronteiriços e trabalhar
por um futuro pacífico na grande Eurásia.
Comparei frequentemente a História recente da União Europeia a um
Bildungsroman, uma clássica história de amadurecimento tratando dos anos
de formação do protagonista. A primeira parte de um Bildungsroman – veja-
se o melhor exemplar do género: Os Anos de Aprendizagem de Wilhelm
Meister, de Goethe – foca-se em geral na infância e no desenvolvimento
inicial da personagem principal. Poderia argumentar-se que a UE já passou
essa fase, que terminou com o Tratado de Lisboa, em que as suas
competências foram expandidas e em que recebeu uma forma institucional
coerente. Na segunda parte, o herói, ou a heroína, sai para o mundo e surge
um momento de crise. É quando o mundo e o protagonista colidem. Parece
haver uma completa incompatibilidade entre os dois e qualquer
comunicação entre eles é praticamente impossível. A incompatibilidade tem
de ser resolvida, mas não se percebe bem como. Irá o mundo ceder perante
a vontade conquistadora do jovem herói, ou o protagonista voltar-se-á para
o seu íntimo e renunciará a qualquer possibilidade de sucesso mundano?
Talvez possa ser alcançado um ponto intermédio com concessões de ambas
as partes.
O ponto que importa aqui relevar é que a UE – tal como num
Bildungsroman – espera que o mundo seja um espelho de si própria, tão
hospitaleiro e conveniente que sair de casa nunca parecerá ser uma partida.
A crise surge porque deixou de ser assim. O mundo mudou. A Europa
detém-se agora nas suas próprias fronteiras e o Sol põe-se diariamente nos
seus próprios domínios.
Num provocador ensaio, dois dos mais lúcidos cientistas políticos que
hoje escrevem, Mark Leonard e Ivan Krastev, compararam o dilema
europeu ao das empresas de telemóveis japonesas há alguns anos. Apesar de
o Japão fazer os melhores telemóveis do mundo, as empresas japonesas não
conseguiam encontrar um mercado global porque o resto do mundo estava
tão atrasado que simplesmente não tinha uso para todas as avançadas
características. De modo semelhante, a ordem política europeia evoluiu
num ecossistema protegido. É agora tão avançada e complexa que perdeu
qualquer pretensão à universalidade e os cidadãos europeus a nada mais
podem aspirar do que preservá-la da perturbação exterior2. Em vez de
aspirar a mudar o mundo e a torná-lo seguro para os valores europeus,
querem agora ser deixados em paz. A grande estratégia de Bruxelas começa
a parecer-se com a da China da dinastia Qing: se tudo o que queremos é que
nos deixem sozinhos, porque é que não hão de conceder-nos isso? Esta
peculiar preferência em lado algum é mais patente do que na trágica história
da crise dos refugiados, durante a qual o facto de a Europa se voltar para
dentro conduziu, primeiro, a um foco exclusivo sobre o significado da
solidariedade entre Estados-membros e, depois, a uma exigência
generalizada de que as fronteiras exteriores fossem seladas e fosse
construída uma nova «fortaleza Europa», alcandorada sobre o caos da
grande massa terrestre eurasiática.
Os jogos da fome
Um rápido relance pelo mapa revelará como poderá vir a tornar-se
importante o nó geográfico de Esendere, na fronteira entre o Irão e a
Turquia. Se alguma vez as novas rotas da seda que ligarem a Europa e a
Ásia se estabelecerem completamente, terão de atravessar esses montes e
montanhas, evitando os perturbados Estados do Iraque e da Síria, a sul, e
beneficiando da curta distância entre as grandes cidades de Urmia e Tabriz,
no Irão, e de Van, na Turquia. Em fevereiro de 2016 atravessei a fronteira
do Irão através de Esendere. A acompanhar-me na travessia pela neve e pelo
frio entre os dois postos fronteiriços havia um grupo de migrantes, mas que
eram azeris do Irão, trabalhadores sazonais igualmente à vontade na
Turquia, cuja cultura e língua partilham em grande medida. Não havia sinal
de migrantes idos do Afeganistão e do Paquistão, duas nacionalidades
próximas do topo da lista de chegadas à Grécia nesse ano.
Após uma curta viagem de minibus, alcançámos a cidade de Yuksekova,
então sob pesada vigilância militar devido ao crescente conflito com os
revoltosos curdos no sudeste, bem como à ameaça terrorista do Iraque. A
pequena cidade vibrava de energia, um contraste notável com Urmia, muito
maior, que eu deixara nessa manhã, onde a sensação predominante era a de
se estar a aguardar uma expansão económica que muitos acham que poderá
nunca chegar. Decidi ficar alguns dias e cedo pude conhecer um dos
passadores que ajudam os migrantes a atingir a fronteira europeia. Disse-me
por que razão não tinha encontrado nenhum dos seus fregueses no posto
fronteiriço de Esendere. Os migrantes ilegais não atravessam a fronteira a
pé. Atravessam-na no interior dos camiões, no fundo de contentores cheios
de legumes podres, agachados no meio do cheiro fétido e de uma completa
escuridão, durante um dia ou dois, ignorando se a única pessoa que sabe
que lá estão irá ter com eles do outro lado. Por vezes, são pagos subornos.
Outras vezes, apenas dependem da sorte.
Em 2011 um passador na Turquia queimou até à morte sete imigrantes
paquistaneses por causa de uma discussão sobre o pagamento. Em 2012,
foram mortos a tiro 11 imigrantes ilegais na área de Pothan, próximo da
fronteira entre o Paquistão e o Irão. O grupo incluía paquistaneses,
usbeques e tajiques. Incidentes semelhantes ocorrem desde então
regularmente. Fazer a longa viagem do Paquistão até à União Europeia é
menos uma grande aventura do que uma corrida de obstáculos, da qual
apenas os muito afortunados sairão sem cicatrizes físicas ou psicológicas.
Um dos cartoons políticos mais brilhantemente corrosivos de que me
consigo lembrar mostra uma família de refugiados a atravessar uma
fronteira invisível para a Europa e a ser detida por um funcionário que guia
uma carrinha com a bandeira da União Europeia. Este começa a erigir uma
cerca e a família de refugiados reage começando a trepá-la o melhor que
pode. Quando finalmente alcançam o outro lado, são calorosamente
abraçados pelo mesmo funcionário, que exclama: «Bem-vindos à Europa!»
Este é o trágico paradoxo da política fronteiriça europeia. No seu todo,
uma sociedade europeia construída segundo a tolerância e os direitos
humanos parece convencida da necessidade moral de ajudar os refugiados a
fugirem da ameaça iminente da morte violenta. Por outro lado, a UE
continua a ser incapaz de criar canais de entrada legais para esses
refugiados e cria mesmo obstáculos que tornam a sua viagem o mais penosa
possível. O resultado assemelha-se a uma versão moralmente catastrófica
de uns Jogos da Fome reais, em que os refugiados são recompensados com
a promessa de generosos benefícios sociais e de segurança se tiverem a
sorte de sobreviver. Como é que chegámos a isto?
Na primeira fase da crise de refugiados em crescendo, a UE focou-se em
conceber um esquema de realojamento para os refugiados que estavam já
dentro das suas fronteiras. Isto foi defendido em nome da solidariedade,
mas claramente o que aqui temos é solidariedade entre os Estados-membros
e não para com os refugiados. Não tem qualquer impacto no número de
mortes sofridas no trânsito para a Europa, que foi o que levou em primeiro
lugar a presente crise à atenção da opinião pública europeia. Contudo, o
«fator de atração» para aqueles que vêm continua a ser enorme, uma vez
que um esquema de realojamento significa que a UE renunciou de facto a
ter uma palavra sobre quantos refugiados receberá, desde que sejam
equitativamente distribuídos.
Houve alguns Estados-membros que se opuseram ao esquema de
realojamento, sobretudo na Europa Central e Oriental e valerá a pena
enumerar quais são os seus argumentos. Primeiro, defendem que uma
decisão deste tipo tem que ser deixada aos próprios Estados-membros. A
razão para isso é clara apenas sob um aspeto: a decisão de alargar alguns
direitos de cidadania a pessoas com necessidade de proteção internacional é
na verdade uma decisão política de extraordinária importância que,
enquanto tal, não deverá ser deixada aos burocratas em Bruxelas. Mas
nunca fiquei convencido pelo argumento de que não pode ser tomada em
comum pelo Conselho Europeu, onde os chefes de Governo de todos os
Estados-membros decidem, como grupo, matérias decisivas.
Outros argumentos são certamente mais ponderosos. Há algo de iliberal
acerca de um mecanismo cuja própria essência é distribuir refugiados por
diversos locais de acordo com um algoritmo fixo. Aqueles que, como eu,
observaram logo que isto tinha poucas hipóteses de resultar ficaram mesmo
assim surpreendidos sobre como até aqui as coisas correram tão mal. Dois
anos mais tarde, cerca de 10 mil refugiados tinham sido transferidos para os
seus novos países dentro da UE. O mecanismo visava 160 mil. Em privado,
os funcionários reconhecem agora que o plano foi um fiasco, apesar de
continuar nominalmente em aplicação.
Alguns países observaram que é da própria natureza de um espaço
comum integrado criar efeitos de aglomeração. Sim, os refugiados tenderão
a aglomerar-se na Alemanha, na Áustria e na Suécia, mas o mesmo
acontece com o capital, o investimento e a tecnologia. Os benefícios vêm
com custos e, de qualquer forma, a tentativa de interferir de propósito em
tais fluxos levar-nos-á no sentido das piores tradições de engenharia social,
em relação à qual a Europa Central e Oriental estão compreensivelmente
mais cientes e preocupadas. Pensem em como o problema seria abordado a
nível nacional. Se os refugiados e os migrantes fluíssem para a capital ou as
principais cidades e a situação se tornasse insustentável, nenhum Governo
nacional os distribuiria por distritos específicos com uma proibição de
atravessarem as fronteiras distritais. Usaria os instrumentos de uma política
social liberal, como subsídios e incentivos de várias espécies, em particular
nas áreas da habitação e da educação. Como alguns foram rápidos a
observar, a política de realojamento culminaria na situação surreal em que
um forte conceito de nacionalidade seria aplicado a refugiados atribuídos a
cada país, mas não aos cidadãos desses países, que se poderiam deslocar
livremente entre fronteiras.
Mais fundamentalmente, nenhuma política com sucesso se pode
permitir lidar com um problema social a um nível tão afastado da causa.
Aqui, como em muitos outros exemplos, a UE arrisca-se a tornar-se uma
comunidade de desordem em vez de uma comunidade de poder. A questão
não reside em partilhar os acasos do destino, mas de exercer uma forma de
poder comum sobre eles. Não deveríamos focar-nos em como distribuir os
refugiados depois de eles estarem já no interior das nossas fronteiras. Moral
e politicamente isto será sempre um desastre em perspetiva. O que
precisamos de fazer é enfrentar de forma decisiva a forma como os
refugiados chegam na verdade à Europa. E de criar um sistema de vistos
humanitários que permita aos potenciais candidatos a asilo entrarem na
Europa por um período limitado, enquanto o seu pedido de asilo é
analisado. Em alternativa, criar centros de processamento de asilo fora das
fronteiras da UE, para que os refugiados se possam candidatar sem
arriscarem as suas vidas em botes improvisados. Se os seus pedidos forem
aprovados, poderão então comprar um bilhete de avião de baixo custo para
a Europa. Se os seus pedidos forem recusados e tentarem atravessar
ilegalmente, poderão ser recambiados com rapidez. A questão seria então
qual o número de vistos que a Europa estaria disposta a emitir, recuperando
uma parte considerável do controlo sobre o processo.
Os canais de entrada legais são uma forma de recuperar o controlo sobre
os fluxos de refugiados. Permitiriam à Europa decidir quantos refugiados
está disposta a acolher e poderão ser usados para saber melhor quem são
esses refugiados, antes de atravessarem as suas fronteiras. Acima de tudo,
desfeririam um golpe mortal no coração das redes de tráfico criminoso em
quem a UE parece ter delegado a sua política fronteiriça – e que tem sido
responsável por tantas mortes no Mediterrâneo.
Os líderes encontram-se
Miro Cerar, primeiro-ministro esloveno, marcou o tom da reunião de
emergência em Bruxelas em outubro de 2015, um mês depois do encontro
dos embaixadores que abriu este capítulo. A ideia das quotas não passava
agora de um arabesco burocrático, deixado para trás pela realidade política
e social. Cerar acabara de receber o último relatório do seu ministro do
Interior: esperavam que 15 mil refugiados cruzassem a fronteira da Croácia,
só nesse dia. Avisou os colegas que o ponto de rutura estava próximo. A
Hungria fora capaz de construir uma cerca para deter o fluxo, mas isso fora
porque mais ninguém fizera o mesmo e, assim, os refugiados foram
desviados para outros sítios. Se todos seguirem o exemplo da Hungria,
«verão violência, tiros. Nada irá deter os refugiados, porque eles não têm
nada a perder. Isto é muito perigoso».
Houve um silêncio na sala. Como acontecia frequentemente nestes
momentos, foi quebrado por Angela Merkel. A chanceler alemã suspirou:
«Wir saufen ab. Estamos a afogar-nos. Tantos refugiados que estamos a
receber hoje vindos da Áustria. Imaginem amanhã.» Observou que vinha de
um país onde outrora haviam tido de viver com muros e não queria ter na
sua biografia que construíra novos muros. «Mas não posso excluir nada, se
a fronteira exterior não for tornada segura.»
O presidente da Comissão Europeia, Jean-Claude Juncker, convocara a
minicimeira a pedido de Angela Merkel para tentar enfrentar a crise de
refugiados ao longo da rota dos Balcãs Ocidentais, que atingira naquele
instante o seu momento mais crítico. Juntou os líderes da Alemanha, da
Áustria, da Bulgária, da Croácia, da Grécia, da Hungria, da Roménia e da
Eslovénia. Convidou também os seus homólogos da Albânia, da Macedónia
e da Sérvia. A reunião começou de uma forma tão caótica que continua a ser
até hoje um dos melhores símbolos de como a crise ameaçava ficar
completamente fora de controlo. A este respeito, espelhava simplesmente o
que estava a acontecer no exterior da sala, onde os diferentes países
tomavam medidas unilaterais, cada um deles empurrando o problema para o
seu vizinho mais próximo, que por sua vez prosseguiria o ciclo com os
vizinhos seguintes. Próximo do início da discussão, Merkel comparou a
situação à captada no livro Os Sonâmbulos, de Christopher Clark: o relato
de como a Europa entrou em guerra em 1914 devido a mútuos mal-
entendidos e à procura de uma definição estreita do interesse nacional. Um
dos primeiros-ministros presentes gravou a discussão e partilhou a
transcrição com um número limitado de pessoas.
O primeiro-ministro Boyko Borissov, da Bulgária, queixou-se de que
era obrigado a viajar até Bruxelas no meio de uma campanha eleitoral no
seu país. «Obrigado pelo convite», disse no final da sua intervenção, «mas
preciso de regressar às minhas eleições e esta é a minha proposta: 150 mil
ou 200 mil polícias para selarem as fronteiras. É disto que precisamos e não
de declarações políticas». Quando a alta representante da União para a
Política Externa, a italiana Federica Mogherini, avisou que o caos na Líbia,
no futuro próximo, era muito possível e que aumentaria os fluxos de
migrantes, Borissov comentou que «vá lá que os chineses ainda não
começaram a migrar para cá». Ele queria ter um rígido limite superior de
refugiados que cada país teria de receber. A isso Merkel respondeu que os
limites são possíveis quando não há fatores externos em jogo, mas
impossíveis quando «a pressão vem de fatores externos». O presidente da
Comissão, Juncker, reforçou este ponto observando que um limite máximo
originaria enormes fluxos de refugiados tentando atravessar a fronteira
antes de o número ser alcançado.
A isto, o primeiro-ministro albanês, Edi Rama, interrogou-se em voz
alta sobre o que os albaneses pensariam se pudessem ouvir a discussão.
Estavam a falar dos refugiados como se fosse uma força natural, uma cheia
ou um tremor de terra, «mas, antes dos números, devemos pensar nos
nossos valores». Neste ponto, Angela Merkel era a única que ainda se
interpunha entre o pânico geral e um encerramento total das fronteiras.
Extraiu a conclusão de que «os nossos valores estão sobre os ombros de
Angela». O tom dela estava já a mudar, claro, mas nesse momento
aproveitou a oportunidade para sublinhar que a Europa tinha de se
empenhar a continuar a receber refugiados, «caso contrário já não é de
Europa que estamos a falar».
Nesta altura, Merkel fez também um comentário que parecia sugerir que
alguns países estavam a tentar extorquir à União Europeia o máximo de
dinheiro que conseguissem. O presidente macedónio, Gjorge Ivanov, sentiu-
se ofendido, sugerindo que a Alemanha deveria enviar os seus serviços
secretos para verificar se cada cêntimo tinha ou não sido gasto com os
refugiados. Tentando desvanecer a tensão que ela própria criara, Merkel
gracejou, dizendo que todos os seus espiões estavam ocupados com a
National Security Agency americana, que como todos sabiam escutara os
seus telefonemas. Desculpou-se vagamente e prometeu que a Macedónia
obteria todo o dinheiro de que necessitasse. Foi nesse momento que a
Macedónia foi recrutada para ajudar a fechar a rota de refugiados que
levava de Esmirna a Munique.
Durante a discussão, foi Werner Faymann, o então chanceler austríaco,
quem continuou a insistir em que tudo o que a Turquia quiser «devemos
dar-lhe». Merkel disse também que, a determinado ponto, «temos de nos
comprometer com o que a Turquia quer». Muitos dos líderes presentes
acabaram por aceitar os elementos essenciais do futuro acordo turco.
Ninguém levantou objeções à oferta da liberalização de vistos para os
nacionais turcos. Apenas Zoran Milanović, da Croácia, sugeriu que a UE
deveria pressionar fortemente a Turquia. Se Ancara estava a abrir as portas
para que os refugiados entrassem na Europa, a Europa devia retaliar.
Poderia, por exemplo, devolver os refugiados à Turquia, usando algumas
das mesmas ações ilegais – ou seja, fora do procedimento de devolução
normal.
A dialética do poder e do caos tem de ser adequadamente compreendida.
No passado, o caos parecia uma matéria disforme para o poder europeu,
mas se o poder se encontra de súbito sem capacidade nem vontade para
expandir a sua própria esfera para os vazios de poder adjacentes e para as
turbulentas zonas fronteiriças, os termos da relação depressa podem ser
invertidos. O caos surge então como uma sobrecarga do sistema, impondo
fardos cada vez mais pesados à capacidade de processamento do sistema,
apesar de todos os esforços para ajustar em alta os algoritmos do
processamento.
Os líderes abandonaram a sua reunião de outubro confusos e
desanimados, mas com um sentimento mais claro de que as soluções do
costume já não resultariam. Passado um período de meses, a União
Europeia acabaria por despertar da paralisia. Aceitou que não poderia
continuar a ignorar o mundo fora das suas fronteiras, como se não tivesse
consequências para os seus interesses e forma de vida, enquanto resistia à
tentadora armadilha de fechar essas fronteiras através de esforços militares
e de policiamento maciçamente reforçados. Houve prudência na via
intermédia que consistia em tentar controlar os fluxos de migração sem
recuar para uma fortaleza inexpugnável, mas esta via intermédia tinha ainda
de ser traçada entre duas alternativas extremas. O acordo com a Turquia, no
ano seguinte, surgiu de um processo de descoberta em que Angela Merkel e
o presidente do Conselho Europeu, Donald Tusk, desempenharam os papéis
decisivos, a primeira abandonando o seu único foco no realojamento e o
segundo recuando em relação ao seu apelo para deter todos os refugiados
que chegassem à Europa.
Em março de 2016, quando bem mais de mil refugiados chegavam às
ilhas gregas todos os dias, a União Europeia alcançou um acordo com a
Turquia, cujo princípio fundamental era o compromisso de devolver todos
os que fossem ilegalmente da Grécia para a Turquia, em troca do que a
União Europeia aceitaria um igual número de sírios que viviam nos campos
turcos para se realojarem na Europa, até um limite de 72 mil. A UE
comprometia-se também a dar um novo ímpeto ao processo turco de adesão
e a pagar a Ancara seis mil milhões de euros para financiar os custos da
grande comunidade de refugiados dentro da Turquia. Havia aqui elementos
de uma abordagem muito mais eficaz. Pela primeira vez foi criado algo
como um canal de entrada legal, com o plano de realojamento dos campos
turcos e o rápido regresso dos que chegassem de forma ilegal, apesar de o
plano ter como limite um número irrisório, que foi depressa ultrapassado
pelo número de chegadas ilegais. A Turquia começou a controlar ativamente
o fluxo de migrantes e refugiados da sua costa, introduzindo patrulhas nas
praias, bloqueios nas estradas e prisões em massa de refugiados, ao mesmo
tempo que tentava dar segurança à sua própria fronteira com a Síria. Os
seus serviços secretos estavam suficientemente bem relacionados com as
redes de tráfico para que a nova política fosse executada com eficácia.
Semanas antes, pressionada por Bruxelas, a Macedónia introduziu
procedimentos semelhantes na sua fronteira com a Grécia e isso parece ter
tido um impacto ainda maior na redução dos fluxos de migrantes. Todos os
indícios apontam para uma conexão entre os dois momentos: assim que a
fronteira da Macedónia foi encerrada, a Turquia apressou-se a obter um
acordo, antes que perdesse a sua vantagem.
O acordo com a Turquia começou a provocar resultados mais depressa
do que a maioria esperara: o número de refugiados que atravessava da
Turquia para a Grécia diminuiu nitidamente e, em consequência, o número
de vidas perdidas no mar Egeu também desceu. Nos meses antes do acordo
de março, todos os dias cerca de 1740 migrantes atravessavam o mar Egeu
para as ilhas gregas. Em junho, o número médio diário de chegadas baixara
para apenas 47. O número de mortes no Egeu diminuiu de 1145 no ano
anterior ao acordo de março para 80 no ano que se seguiu.
Na Turquia e na Macedónia, a União Europeia encontrou híbridos
convenientes, países que estão suficientemente próximos da Europa para
que se alcançasse um acordo deste tipo e suficientemente distantes para se
poder depender deles para usarem os métodos mais vigorosos que os países
europeus não estão dispostos a usar, ou para lidarem com a instabilidade
interna do tipo que a Europa não seria capaz de suportar. Para a Turquia, o
acordo era decerto atraente. Detendo o fluxo, evitava tornar-se uma zona de
trânsito para a crescente imigração do Afeganistão e do Paquistão, ao
mesmo tempo que recebia os fundos necessários para suportar os pesados
custos envolvidos na receção e assimilação de dois a três milhões de sírios.
Além disso, uma nova relação com a União Europeia, agora baseada em
necessidades comuns e urgentes, poderia garantir à Turquia uma mão livre
para a sua política interna e envolvimento na Síria e no Iraque.
Existem problemas, claro. Primeiro, há pouca oferta de países híbridos e
não se encontram simplesmente disponíveis noutros lugares, por exemplo
em África. Os países africanos nem têm estruturas estatais para controlar
eficazmente as suas fronteiras, nem um incentivo para terminar com o
crescente fluxo de remessas da Europa. Mesmo o acordo com a Turquia
assenta em terreno movediço. O número de refugiados nas ilhas gregas
continua a subir, ao passo que o resto da União Europeia sabe que seriam
muito mais difíceis de conter no continente grego. A determinado ponto, a
situação nessas pequenas ilhas tornar-se-á insustentável, mas qualquer
transferência significativa para o continente originaria renovadas tentativas
de atravessar a partir da Turquia, assim que os refugiados e os passadores
sentissem que uma política de devolução se tornava implausível – tentativas
que a guarda fronteiriça turca seria tão incapaz de conter como relutante em
fazê-lo e pela qual poderia culpar a mudança da política grega. Os centros
de receção na Sérvia e na Macedónia, que estavam já a aproximar-se dos
limites da sua capacidade no início de 2017, rapidamente entrariam em
colapso e é provável que o influxo resultante para a Áustria e a Alemanha
fizesse pender os pratos da balança a favor dos partidos e movimentos
políticos radicais.
A nova política pedia uma nova compreensão das motivações dos
refugiados e da lógica que dominava os interesses turcos. Para alguns, na
medida em que permitia a devolução sistemática de refugiados da Grécia
para a Turquia, este esforço era uma traição aos valores europeus, mas
numa era em que a Europa já não é capaz de moldar o mundo inteiro à sua
imagem, uma política externa que lida com o mundo como ele é será
sempre preferível a não ter qualquer tipo de política externa. Os problemas
da política internacional não podem ser resolvidos em casa. Precisam de ser
resolvidos o mais próximo possível da sua origem. No caso da crise dos
refugiados, isto significou que a chave para pôr fim à chegada
descontrolada à União Europeia de centenas de milhares de migrantes e de
candidatos a asilo foi sustida pela Turquia, que por si só podia deter essas
travessias antes de serem tentadas. Ao mesmo tempo, a noção de que a
Turquia faria o esforço se a União Europeia não partilhasse a carga de
receber e integrar ondas sucessivas de refugiados era obviamente falsa à
partida. Finalmente, assim que se tornou claro que a rota através da Grécia
estava fechada e que havia uma perspetiva real de se conseguir entrada
legal na Europa a partir da Turquia, os incentivos para a vasta maioria das
pessoas para pagarem a passadores e arriscarem as suas vidas no mar
desapareceriam3.
O sistema no âmbito do qual o problema estava a ser confrontado tinha
a Turquia no seu centro, com a Grécia e os Balcãs num extremo e o
Paquistão no outro. Ao fechar a sua fronteira com a Grécia, a Turquia
fornecia um alívio bem-vindo à pressão acumulada nas suas próprias
fronteiras orientais. No interior de todo o sistema, a Turquia enfrentava uma
dificuldade específica. Enquanto a Europa esperava controlar a sua fronteira
com a Turquia confiando na cooperação turca, Ancara não tinha essa
esperança em relação ao Irão ou ao Iraque. Assim, tentou controlar as suas
fronteiras orientais fechando o caminho para a Europa àqueles migrantes e
refugiados que vinham do arco de países que se estendia até à fronteira
indiana. Uma compreensão adequada de todo o sistema de relações estava a
fazer um progresso lento e difícil. Isto significava também que os países
europeus tinham de aceitar que os seus destinos estavam agora
inextrincavelmente ligados ao seu vizinho mais volátil e instável. Pela
primeira vez, ao que parecia, a Europa estava a aceitar a existência de um
mundo maior e desregrado à sua porta.
EPÍLOGO
O ano que passei a escrever este livro foi cheio de surpresas na Europa e
nos Estados Unidos. Primeiro veio o Brexit. Tínhamos sido avisados
com bastante antecedência que o resultado do referendo iria ser renhido,
mas todas, ou quase todas, as previsões fundamentadas eram de que o
Reino Unido votaria mesmo assim para ficar na União Europeia. A
alternativa era, sob alguns aspetos, impensável, sobretudo porque muito
poucos tinham pensado seriamente a esse respeito. Quando as primeiras
sondagens à boca das urnas apontaram para uma estreita vitória da
campanha do «Ficar», pareceram ser um sossego: os eleitores queriam
reformas e assim, na sua sabedoria, tinham optado por enviar um recado aos
políticos, mas, como esperado, não estavam prontos para questionar os
aspetos fundamentais da ordem política existente na Europa. Não havia
alternativa.
Uma ou duas horas depois, essas sondagens à boca das urnas mostravam
estar erradas de forma espetacular e começou o questionamento. Muitos
recusavam-se simplesmente a acreditar que o Brexit chegasse a acontecer.
Outros, como o Financial Times, pareciam anunciar o colapso iminente do
sistema político e económico britânico. Se o impensável ocorrera, decerto
se seguiriam consequências impensáveis.
O choque e a surpresa foram ainda maiores quando, alguns meses
depois, Donald Trump foi eleito Presidente dos Estados Unidos. Por um
lado, as sondagens tinham sido ainda mais definitivas a anunciar que um tal
desfecho estava fora de questão. Por outro, era muito mais difícil
argumentar que a ordem global se manteria inalterada quando o país mais
poderoso do mundo decidia eleger um candidato fora de toda a tradição
política do que minimizar a importância do Reino Unido e as suas
ocasionalmente excêntricas decisões.
Grande parte da angústia tinha a ver com o facto de a revolta contra
alguns dos princípios básicos da ordem global não vir da periferia, mas do
próprio centro do poder mundial. Não das províncias distantes, que a
riqueza e as ideias não poderiam alcançar, mas da capital, ou antes, do
palácio imperial erigido no próprio coração da capital. Não era suposto
acontecer uma coisa assim.
O que era notável acerca do referendo do Brexit era que o país que
inventara o comércio livre e o levara aos quatro cantos do mundo estava
agora a recusar-se a fazer parte do maior e mais livre bloco económico
alguma vez criado. Quanto a Trump, simbolizava uma retirada precipitada
do anterior consenso sobre a política externa americana. Por vezes, ele
parecia querer arrasar a ordem liberal mundial existente e substituí-la por
outra coisa, definida em torno de uma forte ideia nacional e apelando a um
mundo de competição desbragada. Tem criticado uma cultura política que
premeia a difusão do poder, na crença de que, sem um Estado forte, os
cidadãos não terão ninguém que os defenda contra os outros países. Parece
entender um firme empenho nos valores liberais como um obstáculo ao
poder americano. Prometeu ir em busca daquilo que acredita serem os
melhores negócios para a América, mesmo que isso signifique livrar-se da
ordem liberal mundial tal como existe no presente. De acordo com Trump,
«o americanismo, e não o globalismo, será o nosso credo».
Comecemos pelo seu discurso inaugural. Foi um discurso estranho,
porque deixava de fora o âmago daquilo que um político americano nos
Estados Unidos normalmente incluiria: um apelo aos princípios universais
da liberdade, da democracia e da igualdade guiando a América na sua ação
no interior e no estrangeiro. Não foi sobre nada disso, mas em grande parte
sobre ser um líder mundial, sobre a lealdade ao país e a construção de novas
infraestruturas. Culminou na mensagem de que «todas as decisões sobre
comércio, impostos, imigração, relações externas, serão tomadas para
beneficiar os trabalhadores americanos e as famílias americanas. Temos de
proteger as nossas fronteiras das devastações dos outros países que fazem
os nossos produtos, roubam as nossas empresas e destroem os nossos
empregos».
Numa reveladora entrevista em fevereiro de 2017, foi perguntado a
Trump se seria capaz de se entender com o Presidente Putin, que o
entrevistador descrevia como um «assassino». Ele pareceu interpretar a
pergunta como fazendo parte de um modelo de imposição de padrões
morais mais severos e de amarras aos Estados Unidos do que aos seus rivais
e apressou-se a pô-los ao mesmo nível. «Nós temos muitos assassinos. O
quê, acha que o nosso país é assim tão inocente?» O método não é
particularmente complicado. Trump percorre a lista dos princípios liberais
e, em cada caso, pergunta se são compatíveis com a continuação da
primazia global americana. Muitos desses princípios chumbam no teste,
segundo a sua opinião: fronteiras abertas, transparência e abertura na
política externa, uma imprensa adversa e uma forte aliança com as
organizações internacionais. Se esta tendência continuar e a política externa
americana vier a adotar um forte conceito de soberania nacional, liberta de
regras e instituições internacionais, terá sido desenvolvida uma
convergência ideológica com a Rússia e a China.
Estas eram algumas das principais linhas ideológicas que emergiram da
sua bem-sucedida campanha, mas, durante os seus primeiros meses na Casa
Branca, Trump prosseguiu-as de uma forma de tal modo errática que
aumentou a convicção de que a sua presidência representaria a destruição
da ordem anterior, mas ainda não a construção da nova. A velha estava a
morrer e a nova não podia nascer. Entretanto, como disse uma vez o
revolucionário marxista italiano Antonio Gramsci, iria haver todo o tipo de
destempero e languidez.
A ordem global criada depois da Segunda Guerra Mundial foi posta em
perigo antes, mas no passado a ameaça viera do exterior. Agora, parecia
correr o perigo de ser abandonada por aqueles que sempre tinham
beneficiado dela. Para alguns, o Brexit e Trump foram simplesmente um
erro de perceção: é verdade que os países no âmago do sistema têm de
restringir o seu poder e não podem sair beneficiados de todas as vezes, mas,
a longo prazo, recolhem os maiores benefícios e têm o maior interesse em
preservar o sistema.
À medida que as divisões na Europa e nos Estados Unidos ficavam cada
vez mais expostas, as relações entre as elites e os descontentes adquiriam
algo da velha e familiar dinâmica entre os europeus e aqueles que habitam o
resto do mundo. Os políticos e os intelectuais agitam-se a explicar o bizarro
comportamento eleitoral através de toda a espécie de teorias económicas e
psicanalíticas, ao mesmo tempo em que insistem em que se tornou urgente
um novo esforço na educação cívica. Essas mensagens não fizeram mais do
que aprofundar as divisões e a alienação.
A verdade é que, para muita gente no Reino Unido e nos Estados
Unidos, já não existia uma ordem liberal a funcionar. Entre as elites
intelectuais e financeiras, as crenças e as práticas adquiridas ao longo de
gerações pareciam tão sólidas como sempre, mas muitas outras pessoas
sofriam o impacto de forças vindas do exterior das suas fronteiras
nacionais, a que o Estado não estava disposto ou não era capaz de
responder. Enquanto as elites viam um sistema internacional bem oleado de
mercados, comércio e livre circulação de pessoas, os que estavam no fundo
apenas descobriam o resultado de forças cegas e Estados em competição
num mundo cada vez mais caótico. As fábricas encerravam por causa da
concorrência oriunda da China e de outros sítios e a mensagem comunicada
aos trabalhadores era a de que o seu país já não era capaz de competir.
Números crescentes de imigrantes tinham um impacto mensurável nos
bairros e no fornecimento de serviços públicos, afetando
predominantemente os pobres. Por fim, os terroristas eram vistos como
sendo capazes de desferir golpes à sua vontade, a partir de bases no
estrangeiro e de células na Europa e nos Estados Unidos.
Num discurso em Varsóvia, em julho de 2017, Trump apresentou uma
imagem radicalmente diferente do Ocidente: não triunfante, mas sob ataque
e capaz de prometer, não a vitória final, mas a vontade de resistir. «A
questão fundamental do nosso tempo é se o Ocidente tem a vontade de
sobreviver. Temos a confiança necessária nos nossos valores para os
defendermos a todo o custo? Temos o respeito suficiente pelos nossos
cidadãos para defendermos as nossas fronteiras? Temos o desejo e a
coragem de preservar a nossa civilização, face àqueles que querem
subvertê-la e destruí-la?» A sua resposta parecia estar colocada entre três
alternativas. A primeira, um regresso aos primeiros princípios, aqueles que
governaram os Estados Unidos na altura do seu maior poder, abandonando
os desvios mais recentes desses princípios fundamentais. A segunda, uma
revisão substancial da tradição política liberal americana, vista como já não
sendo capaz de responder aos desafios e às ameaças globais. A terceira, uma
perspetiva do mundo como um sítio perigoso que deve ser mantido à
distância e de que os americanos precisam de ser protegidos.
Ao escrever este livro, cruzei-me com um fenómeno semelhante nessas
sociedades que sofreram pela primeira vez o impacto da expansão europeia.
Poderia estabelecer-se uma analogia histórica com o impacto da civilização
europeia no mundo muçulmano. Até ao século XVIII, o curso da História
parecia ainda favorecer os grandes impérios muçulmanos e as elites
governantes otomanas, safávidas ou mongóis decerto nunca imaginaram
outra possibilidade. Quando o choque chegou, sob a forma de uma série de
derrotas militares e uma crescente dependência comercial, ninguém estava
preparado e a reação inicial foi esperar que a tempestade passasse,
mantendo-se fiéis aos hábitos e princípios tradicionais. Foram consideradas
duas principais linhas de reação. Primeiro, houve um apelo à purificação da
sociedade muçulmana de posteriores influências e desvios. A origem da
radical reinterpretação vaabita do islão data desse momento. A segunda
reação, movendo-se no sentido oposto, foi tentar reformar a sociedade
muçulmana, enfrentar as suas debilidades percecionadas e integrar algumas
ideias europeias, pelo menos na área da tecnologia militar1.
Um processo semelhante ocorreu na China, cerca de um século depois.
Determinada a abrir os mercados chineses às mercadorias estrangeiras, a
Grã-Bretanha introduziu o hábito de fumar ópio no país e, mais tarde,
defendeu o seu comércio através de meios militares, depressa derrotando a
marinha chinesa fracamente armada. O imperador pediu a paz, abriu cinco
portos aos estrangeiros e cedeu perpetuamente Hong Kong aos britânicos.
Era impossível fingir que a ordem do mundo tal como fora concebida por
Beijing desde tempos imemoriais poderia sobreviver à carnificina, mas os
mandarins passaram a maioria das décadas seguintes a fazê-lo, pois os seus
mais prezados valores proibiam o reconhecimento de qualquer alternativa à
civilização chinesa.
Em ambos os casos, os mundos muçulmano e chinês foram
confrontados com um novo tipo de civilização, contendo todos os segredos
da moderna ciência, que a princípio devem ter parecido poderes
sobrenaturais. O desafio para os europeus e os americanos do nosso tempo é
de natureza diferente. Em primeiro lugar, ocorre na arena da política
democrática, onde toda a mudança no equilíbrio internacional do poder é
sentida mais rápida e mais profundamente. Em segundo, a nova ordem
mundial para a qual nos movemos não possui um centro claro, mas antes
um que se distingue pela procura do equilíbrio entre diferentes polos. E,
contudo, conseguimos ver a semelhança fundamental entre processos que
são, como no passado, acerca das profundas perturbações internas
introduzidas por deslocações na ordem global. As reações podem
tipicamente ser agrupadas sob as duas alternativas principais de tentar
proteger uma forma de vida em perigo das influências externas ou, em
contrapartida, tentar adaptar essa forma de vida a tais influências.
Neste contexto, a perturbação simbolizada pelo Brexit e por Trump
parece mais inteligível e as mudanças que ocorrem tanto na política interna
como externa deixam de parecer tão pouco relacionadas. São o resultado
direto da ascensão de novas fontes de poder global na Ásia, cuja influência
já não poderá ser limitada nem controlada. Não é de surpreender que isto
seja por vezes obscurecido e relacionado com fatores internos muito mais
contingentes. Como vimos, a tentação de ignorar o mundo exterior ou de
negar a sua influência constitui uma primeira reação às deslocações no
poder global.
De vez em quando, contudo, a verdade emerge e torna-se visível para
todos. Um exemplo notável é o debate que agora ocorre na Grã-Bretanha
sobre se o país deverá ou não tomar Singapura como modelo para a vida
depois da União Europeia. O sentido mais imediato do plano seria cortar os
impostos e aliviar a regulamentação para transformar a Grã-Bretanha num
porto de abrigo para o investimento estrangeiro e fornecer compensação
pela perda de acesso ao mercado único. O que é mais significativo, o Reino
Unido estaria a tentar imitar a forma pela qual Singapura depressa foi capaz
de substituir o mercado malaio, com ligações comerciais e financeiras a
mercados mais distantes. Tal como Singapura se tornou um país asiático
mais profundamente ligado à Europa e aos Estados Unidos do que aos seus
vizinhos asiáticos, a Grã-Bretanha poderia tentar, apenas num par de
décadas, expandir as suas ligações com as economias dominantes do século
XXI: a China, a Índia e a Indonésia. Como o editor do Financial Times,
Lionel Barber, disse, numa conferência em Tóquio pouco depois do
referendo, o Brexit oferecerá à Grã-Bretanha novas oportunidades como
uma ágil nação comercial, «uma gigantesca Singapura atlântica»? Estará
uma nova capital eurasiática a nascer nas margens do Tamisa? Seria talvez
um final adequado para a nossa história, o país mais responsável por levar
as ideias europeias para a Ásia tornar-se um novo anfitrião para as ideias
asiáticas na Europa.
NOTAS
PREFÁCIO
1. Alexander von Humboldt, Asie centrale. Recherches sur les chaînes de montagnes et la
climatologie comparée, vol. 1 (Gide, 1843), p. 54.
INTRODUÇÃO
1. Chung Min Lee, Fault Lines in a Rising Asia (Brookings Institution Press, 2016).
2. Charles Kupchan, No One’s World: The West, the Rising Rest, and the Coming Global Turn
(Oxford University Press, 2013), p. 183.
3. Rabindranath Tagore, Imperfect Encounter: Letters of William Rothenstein and Rabindranath
Tagore (Harvard University Press, 1972), p. 238.
4. Walter Lippmann, «The Defense of the Atlantic World», em Force and Ideas: The Early Writings
(Transaction Publishers, 2000).
5. Robert Kaplan, «The Return of Marco Polo’s World and the U.S. Military Response». Center for a
New American Security, www.cnas.org.
6. Steve Tsang, A Modern History of Hong Kong (I.B. Tauris, 2007), p. 167.
7. Ibid., p. 178.
8. Lee Kuan Yew, From Third World to First: The Singapore Story 1965-2000 (HarperCollins, 2000),
p. 50.
1. O MITO DA SEPARAÇÃO
1. Pio II, Opera Omnia, p. 678.
2. Denys Hay, Europe: The Emergence of an Idea (Harper Torchbooks,1966), p. 125.
3. Heródoto, Histórias I, 4-5.
4. Voltaire, History of the Russian Empire under Peter the Great, vol. I (Werner Company, 1906), p.
39.
5. J. Pocock, «Some Europes in Their History», em A. Pagden (coord.), The Idea of Europe: From
Antiquity to the European Union (Cambridge University Press, 2002), p. 58.
6. A.A. Chibilev e S.V. Bogdanov, «The Europe-Asia Border in the Geographical and Cultural-
Historical Aspects», Herald of the Russian Academy of Sciences 81 (2011).
https://doi.org/10.1134/S1019331611050017.
7. W.H. Parker, «Europe: How Far?», Geographical Journal 126 (1960).
8. Marshall Hodgson, Rethinking World History: Essays on Europe, Islam and World History
(Cambridge University Press, 2010 [1993]), p. 39.
9. Henry Kissinger, World Order: Reflections on the Character of Nations and the Course of History
(Allen Lane, 2014), p. 172.
10. Okakura Kakuzo, The Ideals of the East with Special Reference to the Art of Japan (John Murray,
1903), p. 1.
11. Hodgson, Rethinking World History, p. 45.
12. Hegel, Lectures on the Philosophy of History (G. Bell & Sons, 1914), p. 109.
13. Ibid., p. 121.
14. Peter Burke, «Did Europe Exist Before 1700?», History of European Ideas 1 (1980).
15. Wang Hui, The Politics of Imagining Asia (Harvard University Press, 2011), p. 4.
16. Lenine, Collected Works, vol. 18, p. 164.
17. Juliet Bredon, Peking (Kelly & Walsh Ltd, 1922), p. 58.
18. Karl Jaspers, The Origin and Goal of History (Routledge, 2014 [1949]), p. 70.
19. Hermann von Keyserling, Europe, trad. Maurice Samuel (Cape, 1928), pp. 359-61.
20. Hermann von Keyserling, The Travel Diary of a Philosopher, vol. 1 (Harcourt, Brace &
Company, 1925), p. 16.
21. Ibid., p. 273.
22. Victor Lieberman, «Transcending East-West Dichotomies», Modern Asian Studies (1997).
23. H.J. Mackinder, «The Geographical Pivot of History», Geographical Journal 23 (1904): 421-37,
p. 423.
24. Hodgson, Rethinking World History, p. 10.
2. INTEGRAÇÃO COMPETITIVA
1. Vladislav Surkov, discurso num encontro festivo do Rússia Unida, 7 de fevereiro de 2006.
2. Fyodor Lukyanov, «Putin’s Foreign Policy: The Quest to Restore Russia’s Rightful Place»,
Foreign Affairs, maio/junho 2016, p. 34, www.foreignaffairs.com.
3. James Reilly, «China’s Economic Statecraft: Turning Wealth into Power», Lowry Institute
Analysis, novembro de 2013, p. 5.
4. William J. Norris, Chinese Economic Statecraft (Cornell University Press, 2016), pp. 62-3.
5. Anu Bradford, «The Brussels Effect», Northwestern University Law Review (2012).
6. Mark Entin e Ekaterina Entina, «The European Part of Russia’s Geopolitical Project: Correcting
the Mistakes. Part 2», Russian International Affairs Council, 29 de abril de 2016.
7. «Absorb and Conquer: An EU Approach to Russian and Chinese Integration in Eurasia», European
Council on Foreign Relations, junho de 2016.
5 SONHOS CHINESES
1. William Gibson, «Modern Boys and Mobile Girls», Guardian, 31 de março de 2001.
2. Martin Jacques, When China Rules the World (Penguin Press, 2009), p. 107.
3. Estaline, Works, vol. XI, p. 258.
4. Arnold Toynbee, A Study of History, vol. 8 (Oxford University Press, 1954), p. 135.
5. Wang Hui, The End of the Revolution: China and the Limits of Modernity (Verso, 2011).
6. Khurram Husain, «CPEC Master Plan Revealed», Dawn, 15 de maio de 2017.
7. Wang Yiwei, The Belt and Road Initiative: What Will China Offer the World in Its Rise (New
World Press, 2016), pp. 65-70.
8. Valerie Hansen, The Silk Road: A New History (Oxford University Press, 2012).
9. François Jullien, A Treatise on Efficacy: Between Western and Chinese Thinking (University of
Hawai’i Press, 2004), pp. 16-40.
6. A ILHA
1. Alexander Gabuev, «Friends with Benefits? Russian-Chinese Relations after the Ukraine Crisis»,
Carnegie Moscow Center, 2016.
2. Bobo Lo, «A Wary Embrace: What the China-Russia Relationship Means for the World», Lowry
Institute Papers, abril de 2017.
3. Salvatore Babones, «Russia’s Eastern Gambit», Russia in Global Affairs, setembro de 2015, p.
140, eng.globalaffairs.ru/number/Russias-Eastern-Gambit-17704.
8. TÚNEL EURÁSIA
1. Şener Aktürk, «The Fourth Style of Politics: Eurasianism as a pro-Russian rethinking of Turkey’s
geopolitical identity», Turkish Studies 16.1 (2015).
2. Atatürk’ün Bütün Eserleri, 12 (1921-22) (Kaynak Yayınları, 2003), p. 297.
3. M. Şükrü Hanioğlu, Atatürk: An Intellectual Biography (Princeton University Press, 2017 [2013]),
p. 218.
4. Alexander Herzen, A Herzen Reader, trad. e coord. Kathleen Parthé (Northwestern University
Press, 2012), p. 125.
5. Charles Mismer, Souvenirs du monde musulman (Hachette, 1892), p. 110.
6. Cit. em The Modern Middle East: A Sourcebook for History (Oxford University Press, 2006), p.
410.
7. John Stuart Mill, On Liberty (Yale University Press, 2003 [1859]), pp. 135-6. [Ed. portuguesa:
Sobre a Liberdade (Edições 70, 2006).]
8. The Guardian, 3 de abril de 2007.
9. A PENÍNSULA EUROPEIA
1. Italo Colantone e Piero Stanig, «Global Competition and Brexit», BAFFI CAREFIN Centre
Research Paper n.º 2016-44, novembro de 2016.
2. Ivan Krastev e Mark Leonard, «The New European Disorder», European Council of Foreign
Relations, 20 de novembro de 2014.
3. European Stability Initiative, «Why People Don’t Need to Die in the Aegean – a Policy Proposal»,
17 de novembro de 2015.
EPÍLOGO
1. William H. McNeill, The Rise of the West (University of Chicago Press, 1992 [1963]), pp. 694-5.