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© D. R.

Bruno Maçães é presentemente Conselheiro Sénior da Flint Global, em Londres, onde aconselha
companhias sobre política internacional, e Senior Fellow da Universidade de Renmin, em Beijing, e
no Hudson Institute, em Washington. Secretário de Estado dos Assuntos Europeus de Portugal entre
2013 e 2015, foi condecorado pela Espanha e pela Roménia pelos seus serviços aos respetivos
governos. É doutorado em Ciência Política pela Universidade de Harvard e foi professor investigador
no American Enterprise Institute, em Washington, e no Carnegie, em Bruxelas. Tem escrito para os
periódicos Financial Times, Politico, Guardian e Foreign Affairs e aparece regularmente na CNN, na
BBC, na Bloomberg, na CCTV e na Al Jazeera.
Título: The Dawn of Eurasia – On the Trail of the New World Order
1.ª edição em papel: outubro de 2018
Autor: Bruno Maçães
Tradução: Pedro Vidal (João Quina Edições)
Revisão: João Assis Gomes
Capa: Ana Monteiro

© Bruno Maçães, 2018


[Todos os direitos para a publicação desta obra em língua portuguesa, reservados por Círculo de
Leitores e Temas e Debates]

Temas e Debates – Círculo de Leitores


Rua Prof. Jorge da Silva Horta, n.° 1
1500-499 Lisboa
www.temasedebates.pt
www.circuloleitores.pt
Tel. 217 626 000

ISBN: 978-989-644-547-8
Para a Senhora das Sugestões
«A brisa da alvorada tem segredos para te contar.»
Rumi
PREFÁCIO

N
o final de 2015, parti para aquilo que iria ser uma viagem de seis
meses ao longo das fronteiras históricas e culturais entre a Europa e a
Ásia. Durante os dois anos anteriores, o meu trabalho no Governo
português, onde era secretário de Estado para os Assuntos Europeus,
empurrara-me constantemente para essas fronteiras, por vezes por
predileção pessoal, a maior parte delas por necessidade. Isso deverá
significar algo importante quando acontece ao país localizado na ponta mais
ocidental da Europa. Ao ver que tantas das questões mais urgentes que
afetavam a União Europeia tinham que ver com as interações entre os dois
continentes e como a gestão dessas interações exigia uma perspetiva
alargada, comecei a suspeitar de que a História estava a levar-nos cada vez
mais para um mundo em que a fronteira entre a Europa e a Ásia viria a
desaparecer. As livrarias estavam cheias de livros acerca da Rússia
(geralmente, sobre os seus perigos), da China (geralmente, acerca dos seus
milagres) e da União Europeia (geralmente, acerca das suas crises), mas
consideravam-nas de forma isolada. Decidi investigar o que se poderia
aprender acerca da Rússia, da China e da Europa se fossem consideradas
como fazendo parte do mesmo sistema. Existia uma palavra óbvia para
descrever este sistema: Eurásia. É uma palavra relativamente nova, usada
pela primeira vez sob forma nominal pelo geólogo austríaco Eduard Suess,
em 1885. A noção de que a Europa e a Ásia deveriam ser pensadas como
uma única totalidade tem sido a área exclusiva de geólogos e biólogos,
confrontando o facto de que uma fronteira entre os dois continentes
constitui um obstáculo para a compreensão científica. Como o grande
explorador e cientista alemão Alexander van Humboldt disse em 1843, nas
ciências naturais «é preciso começar pela conetividade das grandes divisões
do Velho Mundo1». Mas porquê apenas nas ciências naturais? Porque não
na história, na política e na arte? Foi assim que a ideia deste livro surgiu
pela primeira vez.
A minha viagem eurasiática iria seguir duas regras simples. Primeira,
não seriam permitidos voos, mesmo que fosse para ligar dois pontos ou
suplantar uma dificuldade logística. Segunda, não existiriam planos para lá
da semana corrente. Não fazia ideia do tempo que a viagem iria demorar. A
rota e o calendário estavam ainda por determinar quando aterrei em Astracã,
na Rússia, a 15 de dezembro. Escolhi Astracã como ponto de partida por ser
essa cidade o portão de acesso histórico ao Cáucaso, que estava no topo da
minha lista de áreas de transição, onde a forma do futuro supercontinente
poderia estar já prefigurada. Astracã, outrora uma poderosa cidade, agora
quase esquecida pelo resto do mundo, era, em mais do que um sentido, um
excelente início. Ainda não decidira acerca do fim.
Durante o primeiro mês, errei pelo Cáucaso, acabando por atravessar a
cordilheira montanhosa através da tradicional estrada militar georgiana. Da
Geórgia viajei até à Arménia e depois até ao Irão, antes de virar para
ocidente, para a costa turca do mar Negro. De Trebizonda dirigi-me a
oriente, diretamente para Bacu, no Azerbaijão, onde apanhei um navio de
carga, através do Cáspio e até ao segmento da Ásia Central da minha
viagem. Merv, Bucara, Termez, Samarcanda. Tendo chegado a Andijan, no
vale de Fergana, já próximo da fronteira chinesa, tive a certeza de ter
deixado a Europa para trás, mas então quis ver como esta mesma rota de
transição pareceria vista do outro lado. Dirigi-me a norte, ao Cazaquistão e
à Sibéria, viajando até Vladivostoque, atravessando o lago Baical e
entrando na China no seu ponto mais oriental. Inverti então a minha direção
para a Ásia Central até à nova cidade de referência de Khorgas, que olhara à
distância quando me encontrava, dois ou três meses antes, na fronteira do
Cazaquistão. Ao todo, a viagem demorara exatamente seis meses. A partir
do momento em que entrei a bordo do avião de Ili para Beijing, a 15 de
junho de 2016, a primeira regra ditava que, apesar de continuar a viajar
enquanto efetuava pesquisas para o livro, a viagem eurasiática terminara
efetivamente. De Astracã até Khorgas pela rota mais longa possível.
Vivemos uma era dourada da viagem. A recente tecnologia, como os
mapas e os tradutores digitais, juntamente com toda a informação
constantemente atualizada da internet, elimina quase todas as fontes de
transtornos ou perigo, mas, ao mesmo tempo, o impacto destruidor do
turismo continua limitado aos mesmo locais populares, deixando uma
grande parte do mundo ou como já era há séculos, ou como se tornou em
função da modernização, e ambos os estados são igualmente genuínos e
importantes. Viajar nunca foi tão fácil, mas a literatura de viagem
provavelmente não sobreviverá num mundo em que qualquer pessoa pode
estar em qualquer ponto do mapa em menos de 24 horas. A maioria dos
diários de viagens tentou contornar este problema focando-se na forma e
constituindo o seu próprio género de ficção. Eu faço algo de diferente neste
livro. Uso a viagem para fornecer uma injeção de realidade nas análises
políticas, económicas e históricas.
Em janeiro de 2017 fui viver para Londres, onde seria conselheiro de
empresas de fundos de investimento e tecnológicas para a estratégia
política. O mundo em que operam é o novo mundo eurasiático descrito
neste livro. Os fundos de investimento que tentam lucrar com fusões e
aquisições estão a monitorizar ativamente o influxo de capital chinês na
Europa, mas sabem que isso funciona de acordo com regras muito
diferentes daquelas a que estão habituados e querem compreender a
dinâmica política pela qual dois sistemas de regras diferentes se confrontam
e combinam. As empresas tecnológicas estão a tentar ativamente entrar no
mercado russo, para o qual estão particularmente apetrechadas, mas fazê-lo
numa altura de conflito geopolítico entre o Ocidente e a Rússia significa
que cada movimento tem que ser visto de duas perspetivas opostas ao
mesmo tempo e, por vezes, estas duas perspetivas criam um infindável jogo
de espelhos. Existe a necessidade óbvia de pensar globalmente, mas as
diferenças são mais interessantes do que as semelhanças. Os homens de
negócios sabem isto melhor do que os políticos, os escritores ou os artistas.
Um dos principais objetivos deste livro é mostrar como o mundo é – tal
como sempre foi – um lugar fascinante e estranho. Se mantivermos os olhos
abertos, é fácil, em quase cada curva da estrada, entrar num mundo de pura
imaginação, onde a nossa maneira habitual de olhar e de pensar de repente
nos falha. É por essa razão que, tal como a viagem poderá ajudar uma
análise fundamentada no mundo real, também a análise a um certo nível de
reflexão é indispensável para nos guiar através das muitas formas diferentes
de ver o mundo. Pensamentos sem viagens são vazios; viagens sem
conceitos são cegas.
INTRODUÇÃO

Vivemos um daqueles raros momentos na História em que o eixo


político e económico do mundo se está a deslocar. Durante os últimos
quatro ou cinco séculos, deslocou-se para o Ocidente. A Europa, durante
grande parte da sua História um sossegado lugarejo, passou a dominar
praticamente todo o Globo. Agora, este eixo está a deslocar-se para o
Oriente. Sabemos o que isso significa para a Ásia. Vimos os novos e
majestosos arranha-céus, os comboios-bala e as estações a substituírem
num ápice as velhas rotas dos camelos e os postos das caravanas. Mas o que
significa isso para o Ocidente? Poderá o gigante habituado a provocar a
mudança nos outros ser agora forçado a mudar em resposta aos novos
ventos políticos e económicos que sopram do Oriente? Subitamente, aquilo
que acontece no Extremo Oriente ou na Ásia do Sul, na Rússia ou no Médio
Oriente, afeta toda a gente na Europa e nos Estados Unidos mais
profundamente do que aquilo que os europeus ou os americanos gostariam
de pensar, em especial por sentirem agora que estas influências estão, sob
importantes aspetos, para além do seu controlo. O seu mundo expandiu-se,
mas a expansão deste género nem sempre é bem recebida.
É quase agora um truísmo dizer que o nosso século será um século
asiático. Em apenas uma ou duas décadas, pelo menos três das cinco
maiores economias do mundo serão na Ásia: China, Japão e Índia. O único
ponto incerto acerca deste cálculo é qual dos países ocupará a quinta
posição. Será a Alemanha, a Indonésia, a Rússia ou o Brasil? A minha
expetativa, se estivermos a falar acerca da economia global daqui a 20 anos,
é que será a Indonésia. Só com uma espantosa falta de imaginação se pode
achar que o mundo será mais ou menos o mesmo num momento em que o
poder económico asiático se torna tão visivelmente dominante.
No entanto, se falarem com as pessoas na Ásia, elas não se mostrarão
assim tão entusiásticas. Sabem que as suas sociedades ainda estão, à
exceção do Japão, a perseguir a dura via da modernização e que estão atrás
do Ocidente num número de dimensões cruciais: na vertente da inovação,
no poder «suave» e, claro, no poderio militar. Mais fundamentalmente, a
menção de uma «ordem mundial asiática» ou de um «século asiático» não
leva em consideração que não existe acordo entre as nações asiáticas acerca
do que poderá isso significar e, de facto, as diferenças entre elas constituem,
nalguns casos, sérias ameaças de segurança a uma expansão asiática
continuada. Ao contrário do Ocidente, a Ásia não existe como ator coletivo.
Mais tarde ou mais cedo, essa fragmentação e as crescentes crises de
segurança funcionarão como um poderoso retardador. No passado, a Ásia
poderá ter parecido um oásis de paz e tolerância. Hoje, é o local de Estados
falhados com armas nucleares, lutas abertas pela supremacia militar,
ressentimentos históricos e algumas das disputas territoriais mais intratáveis
do mundo1.
A nova oscilação do pêndulo, como o cientista político Charles Kupchan
defendeu, irá levar a um mundo em que ninguém será dominante. Sob
alguns aspetos, isto será um regresso ao passado. Tivemos períodos na
História em que o poder estava vagamente difundido por diferentes zonas e
diferentes visões da ordem política conviviam lado a lado. Mas o facto de
os Qing, os mughals e os Habsburgo terem opiniões muito diferentes sobre
religião, comércio, hierarquia ou mercados não era muito significativo, pois
viviam as suas próprias vidas em relativo isolamento. O que é diferente no
nosso tempo é que a globalização nos obriga a viver todos juntos, embora
tenhamos visões muito diferentes acerca de como deverá ser este mundo
comum. Escreve Kupchan: «O próximo mundo não será com certeza o
primeiro em que diferentes grandes potências operam segundo diferentes
conceções de ordem. Mas, devido ao surgimento da interdependência
global, será a primeira vez que um tal diversificado conjunto de ordens
interagem intensa e continuamente umas com as outras.2»
Esqueçamos as declarações mais espetaculares e contentemo-nos com
um compromisso: este século não será asiático, mas também não será
europeu nem americano, como foram tão claramente os últimos 300 ou 400
anos. Neste livro, sugiro a alternativa «eurasiático» como forma de
assinalar este novo equilíbrio entre os dois polos. É cada vez mais um
mundo composto – tal como a própria Eurásia é uma palavra composta –
em que visões muito diferentes da ordem política estão misturadas e
obrigadas a viver juntas.
O meu uso da palavra durante o último ano tem sido em geral
confrontado com duas questões. Em primeiro lugar, a minha audiência ou o
meu interlocutor querem saber se «eurasiático» é uma palavra que pretenda
indicar uma identidade particular. A resposta é não. A intenção de usar uma
palavra composta é precisamente recordar que o conflito, e não a harmonia,
é a tendência subjacente ao nosso tempo. As constelações éticas
representadas pelas culturas políticas contemporâneas na Europa e na
China, por exemplo, não apresentam nenhuma via óbvia ou imediata de
convergência, quanto mais de reconciliação. O facto de diferentes conceitos
políticos serem forçados a conviver no mesmo espaço não os torna mais
parecidos. Ao nível do indivíduo, ocorre algo de semelhante. Quaisquer que
sejam os méritos de culturas híbridas, em que diferentes influências se
combinam em novas e originais formas, não é esse o ideal eurasiático. Ser
eurasiático é ser capaz de olhar o mundo de duas ou mais perspetivas
incompatíveis, muitas vezes fazendo-o ao mesmo tempo. Como disse
profeticamente o poeta bengali Rabindranath Tagore, viver entre o Oriente e
o Ocidente é ser «uma ave migratória e atravessar e voltar a atravessar o
mar, tendo dois ninhos, um em cada costa3».
A segunda questão é se a Eurásia deverá ser singularizada ou, por outras
palavras, se a Eurásia é de algum modo especial em comparação ao resto do
mundo. A resposta, neste caso, é sim. A geografia e a história são, até certo
ponto, forças irracionais, no sentido em que nos surgem como factos brutos,
por detrás dos quais, pelo menos para aqueles com inclinações seculares,
não há mais reflexão ou escolha. Acontece que a Eurásia é a maior massa
terrestre da Terra, o local onde se desenvolveu a maioria das grandes
civilizações da História humana, onde dispuseram ao mesmo tempo do
espaço para desenvolver formas autónomas e da continuidade geográfica
que as forçou a entrar em contacto e a competir pelo poder. A política
eurasiática é a política em grande escala. Sempre foi assim. Mesmo a
hegemonia global europeia durante os últimos séculos foi construída em
contacto constante com alternativas asiáticas e estimulada por elas.
Uma das grandes ironias do século XX é que o país mais poderoso da
Terra situa-se pela primeira vez fora da sua maior massa terrestre. E,
contudo, isso pouco mudou a importância central desta última. Foi quase
como se a Eurásia fosse confrontada com um espelho que refletisse as suas
realidades políticas e geográficas, ou como se um observador externo
recém­-chegado conseguisse obter uma perspetiva mais objetiva acerca do
curso dos acontecimentos. Quase tudo o que os Estados Unidos fizeram
durante a Guerra Fria, no pico do seu poderio, foi pensar acerca da Eurásia,
contemplar o seu futuro e tentar determinar a sua forma final. Também hoje,
na era Trump, a Eurásia é a principal questão da vida política americana,
que está a descobrir um mundo em que as relações com a Europa, a Rússia
e a China estão a ser redesenhadas, precisando de ser consideradas como
uma totalidade única.
O Muro de Berlim foi apenas um segmento da Cortina de Ferro que
dividia a Europa ou, mais precisamente, que separava a Europa Ocidental
dos territórios controlados pela União Soviética, e a Cortina de Ferro cedo
seria imitada pela Cortina de Bambu, uma expressão menos utilizada que se
refere à linha de demarcação entre os Estados comunistas e capitalistas da
Ásia. O mapa resultante dessas demarcações apresentava o supercontinente
eurasiático dividido em duas áreas, de acordo com a via de
desenvolvimento histórico percorrido: a via do Ocidente europeu, que seria
replicada em países como o Japão no outro extremo e uma via alternativa e
um ideal, definido em diferentes medidas e diferentes formas por Moscovo
e Beijing, acerca do qual havia muito menos clareza e unidade e que, por
vezes, pouco mais significava do que a negação do anterior. A Guerra Fria
pode ser compreendida como um conflito entre a Europa e a Ásia,
subtilmente ocultada pelas ideologias do capitalismo e do comunismo.
Entender a História do século XX nestes termos faz com que se perceba
que o Muro de Berlim não passava de um pequeno e temporário segmento
de uma muralha civilizacional muito maior e mais permanente, separando a
Europa da Ásia, uma fronteira cuja demarcação precisa foi mudando ao
longo dos séculos e cuja natureza era, em primeiro lugar e sobretudo,
intelectual. Baseou-se, como veremos no Capítulo 1, em diferentes visões
do mundo e numa diferente compreensão do conhecimento humano e da
História humana. Por vezes, durante a era dos impérios europeus globais,
poderá ter parecido que se tornara obsoleta, uma vez que o mundo inteiro
estava em vias de se tornar europeu. Não foi isso que aconteceu.
Durante a Guerra Fria, a União Soviética esteve sempre cercada e
contida pelas cabeças de ponte capitalistas na Europa, Paquistão, Japão e
Coreia do Sul. O fracasso desta última tentativa para romper o cerco
geopolítico – nas montanhas do Afeganistão – tornou-se a declaração do
colapso do sistema soviético. Quando por fim renunciou à sua especial via
revolucionária, parecia que nada se interpunha no caminho para um
supercontinente unificado. Os Estados Unidos estavam já nessa altura a
planear e a trabalhar no sentido de uma Eurásia una e livre, esperando que a
China e a Rússia acabassem por se converter a um modelo ocidental de
democracia. Mais uma vez, tal não iria acontecer.
O que apanhou os observadores de surpresa não foi que o
supercontinente asiático emergisse da Guerra Fria como um espaço cada
vez mais integrado, mas que o fizesse não de acordo com um modelo
ocidental, mas, em vez disso, como palco de muitas ideias políticas
diferentes e conflituantes. Esta situação é completamente nova de um ponto
de vista histórico. Diferentes conceitos políticos partilham o mesmo espaço,
em grande parte como se a era da globalização se tivesse fundido com uma
era mais antiga de diferentes perspetivas de entendimento ou religiosas. A
nova ordem mundial partilha com a última década do século anterior a
crença na inevitabilidade da interdependência e da conetividade, mas
combina-a com o reconhecimento da divisão e do conflito. Entrámos na
segunda era da globalização, em que as fronteiras se tornam crescentemente
difusas, mas as diferenças culturais e civilizacionais não, dando origem a
um composto permanentemente instável de elementos heterogéneos.
Chamo-lhe a era eurasiática.
Quando se trata de entender termos como Eurásia, podemos apelar a
uma anterior recombinação quando, depois da Primeira Guerra Mundial, a
«Europa» deu lugar a uma nova concetualização de «o Ocidente», em que
os Estados Unidos tinham agora um papel proeminente. Isto levanta a
questão de saber qual o papel que os Estados Unidos ocuparão no mundo
eurasiático.
Quando os Estados Unidos se colocaram como chefes e timoneiros da
civilização europeia, sabiam que o mundo era governado pela Europa e
segundo as ideias europeias, e rapidamente as tornaram suas. E, contudo,
essa visão dos Estados Unidos como guardiões dos valores ocidentais não
era coeva da nova república. Aquilo que a nós parece quase natural e
inevitável exigiu uma profunda transformação: o abandono da visão inicial
de uma «cidade no cimo do monte*», protegida do resto do mundo por dois
oceanos e fundamentalmente isolada das suas questões. O Atlântico era uma
barreira, e não uma ponte, e muito menos o mar interior do mundo livre, a
«estrada atlântica» mais tarde louvada por pessoas como o jornalista e
intelectual Walter Lippmann. «Não podemos trair a comunidade atlântica
submetendo-a» à Alemanha, escreveu em 1917, precisamente antes de os
Estados Unidos entrarem na guerra. «Ou então toda a civilização, pelo
menos a nossa civilização, estará em perigo.4» A invenção do Ocidente
estava completada.
Como filha do iluminismo, a nação dos Estados Unidos adotaria os
princípios mais universais e avançados, sem dúvida como forma de
cavalgar a onda para vir a assumir o papel de uma nação poderosa, com o
tempo a nação mais poderosa da Terra. Na altura da sua ascensão, acontecia
que esses princípios eram os europeus. Significará isso que os americanos
tendem a espelhar a ordem global e, assim, numa altura em que a ordem
global já não é inspirada pelos valores europeus, veremos os Estados
Unidos a tornarem-se cada vez menos europeus?
Esse processo não começou com a recente «Viragem para a Ásia», a
iniciativa geopolítica de bandeira através da qual a Administração Obama
tentou recolocar os Estados Unidos mais próximos da Ásia. Começou com
as primeiras fases do recuo europeu global. Após o final da Segunda Guerra
Mundial, todos os Estados europeus foram forçados a reconhecer, de uma
vez por todas, que já não eram potências mundiais e que o seu papel no
palco internacional teria de permanecer à sombra dos Estados Unidos. A
partir desse momento, os destinos dos dois polos ocidentais começaram a
divergir. Depois de a tarefa de manter a ordem em regiões perigosas e
instáveis do mundo – do Extremo Oriente ao Médio Oriente – ter recaído
sobre os Estados Unidos, tornou-se clara uma diferença crucial acerca da
forma como a Europa e os Estados percecionavam o mundo. Claro que não
será inevitável que, para lidar com Estados agressivos, seja necessário
tornarmo-nos semelhantes a eles, mas é verdade que é preciso adaptarmo-
nos à sua existência e não podemos pensar e agir como esses países para os
quais isso simplesmente não constitui um problema. Os Estados Unidos
foram assim forçados a evoluir de uma forma que permitisse lidar com um
mundo que já não estava sob a influência e o controlo das potências
europeias. O seu papel de liderança teria de provocar mudanças – primeiro
de formas subtis, depois mais dramáticas.
Os Estados Unidos poderão ainda revelar uma metamorfose. Este
prodigioso filho do iluminismo poderá não hesitar em livrar-se dos
princípios ocidentais e liberais, se se convencer de que estes foram
desmentidos pelo tempo e pela experiência. Se alguma vez os Estados
Unidos se convencerem de que o Ocidente pertence ao passado, poderão
deixar a Europa a viver nesse passado e não estarem dispostos a permanecer
lá, em especial se tal acarretar o sacrifício daquilo a que está mais
habituado: a primazia global. Se o Ocidente alguma vez vacilar, a América
quererá ser menos ocidental. À medida que o eixo do poder mundial se
afastar do Ocidente, o mesmo acontecerá com a América.
Percebe-se que a vocação universalista da América não é garantir a
prevalência global da civilização ocidental, mas permanecer a única
superpotência global, fiscalizando e espelhando a natureza da ordem global
e os princípios que a governam. Se os Estados Unidos permanecessem
ancorados ao mundo ocidental poderiam passar a não ser mais do que os
líderes da metade ocidental da nova ordem eurasiática. Na realidade, não é
isso que vemos acontecer quando Washington tenta reposicionar-se como a
encarnação do novo mundo eurasiático.
Quando se dirige aos Governos do mundo em desenvolvimento, a China
traz para a mesa um determinado modelo político e económico. É um
modelo que sublinha a capacidade estatal. Beijing promete aos governantes
locais ajudar a aumentar a sua capacidade para desenvolverem políticas e
alcançarem resultados. Na perspetiva desses governantes – ainda que
possamos considerá-la limitada – o Ocidente promete o oposto: um
enfraquecimento generalizado do Estado através de numerosos
constrangimentos ao seu poder. Não é de surpreender que prefiram alinhar
com a China, ou que os Estados Unidos sintam uma pressão considerável
para adotarem uma abordagem mais flexível, que poderia ser encarada
como um equilíbrio entre a rígida ideologia dos europeus e o pragmatismo
sem alma dos chineses.
Calcular o centro de gravidade da economia global fornece mais pistas
para o que se está a passar. Este centro de gravidade é simplesmente a
localização média da atividade económica medida num globo entre as
diferentes geografias. É interessante que, nas três décadas após 1945, esta
se situava algures a meio do Atlântico, refletindo a forma como a Europa e
a América do Norte concentravam uma grande maioria da atividade
económica global. O que se esperava, de um ponto de vista económico, era
que Washington se visse a si própria como liderando um bloco que abarcava
o Atlântico. No virar do século, contudo, o centro de gravidade deslocara-se
de tal modo para oriente que se localizava agora a oriente das fronteiras da
União Europeia. Daqui a 10 anos, encontrá-lo-emos na fronteira entre a
Europa e a Ásia e, em meados do século, provavelmente algures entre a
Índia e a China. Poderíamos quase pensar nos Estados Unidos como um
compasso de alta precisão, concebido para seguir o movimento do centro de
gravidade do mundo e adaptar a sua política externa em conformidade.

Os americanos estão a observar o que se passa no maior e mais antigo


dos palcos mundiais. Veem uma União Europeia que poderá parecer frágil
por vezes, mas que continua a ser um mercado único muitíssimo próspero,
uma economia plenamente madura, rica em capital e conhecimento, e uma
sociedade civil onde a discussão aberta é favorecida e promovida. A União
Europeia está longe das previsões mais pessimistas de rápido declínio e
colapso, e aqueles que apostam nesses resultados mostrarão certamente
estar errados. No entanto, enfrenta um mundo para o qual não está
preparada, um mundo onde tem de enfrentar rivais e concorrentes que, pela
primeira vez na História moderna, se encontram no mesmo nível de
desenvolvimento histórico, sem darem sinais de convergir com os valores
europeus.
A mudança é mais fácil para a China, que está a emergir da sua longa
noite de declínio e não pode deixar de adotar um novo modelo de relações
entre grandes potências, um mundo em que o Oriente e o Ocidente poderão
finalmente encontrar-se. Uma das razões pela qual temos de começar a
pensar acerca da Eurásia é o facto de ser assim que a China cada vez mais
entende a ordem mundial. Na verdade, as autoridades chinesas
desenterraram a imagem histórica da Rota da Seda a ligar a China e a
Europa – o complexo labirinto de rotas de caravanas de camelos
atravessando a Ásia Central há mais de mil anos – e estão a promover
ativamente a sua ressurreição como um enquadramento político e
económico que se espalhe por todo o supercontinente. Apesar de a ideia
estar ainda na sua fase inicial, mostra como a China vive já a era
eurasiática.
Tal como a Rússia. Não é fácil, presentemente, ser otimista em relação à
Rússia. O país parece ter-se perdido no ímpeto eurasiático, rebelando-se
contra qualquer visão de ordem política e consumido por um excesso de
modelos concorrentes, todos travando o passo uns aos outros. Foi tomada a
decisão, tanto pelo Kremlin como pela opinião pública, de que a Rússia não
pertence propriamente ao mundo ocidental e que deixará de tentar tornar-se
um dos seus polos. Essa decisão coincidiu com o declínio do poder
ocidental, evidenciado no desfecho da Guerra do Iraque, mas foi também
precipitada pelo embate entre os princípios e valores ocidentais e uma
cultura política e económica indígena com a qual esses valores se
harmonizavam mal. Nessa altura, a Rússia perdera já a hipótese de
modernizar a sua economia e tirar proveito das correntes de valor global e
das transferências de conhecimento tornadas possíveis pelas novas
tecnologias de informação e comunicação. A crítica russa dos valores
políticos ocidentais não foi certamente seguida pela adoção de uma
alternativa asiática. Poderia ter sido a Rússia, em vez da China, a
revolucionar o capitalismo global. Agora é demasiado tarde para isso, mas
todas essas dificuldades são reveladoras de uma reação genuína aos
desafios contemporâneos. As dúvidas e hesitações russas – o seu excesso de
alternativas – antecipam a nova era eurasiática de integração competitiva
entre diferentes modelos políticos e, assim, a Rússia poderá vir ainda a
mostrar-se especialmente adaptada para ela.
Pensemos em todas as questões importantes e ainda por decidir dos
últimos 10 anos. A segurança energética. O radicalismo islâmico. A
Ucrânia. O futuro da Turquia e a sua posição no sistema global de alianças.
A crise dos refugiados. Todas apontam para as fronteiras que dividem a
Europa e a Ásia e são o resultado direto de fluxos – de pessoas, bens,
energia e conhecimento – tornados possíveis pelo declínio gradual ou pelo
colapso das barreiras que mantêm os dois continentes separados. Além
disso, estes novos fluxos através das fronteiras ocorrem na ausência de
princípios de ordem política que abranjam todo o supercontinente.
Este livro pretende pôr em causa a forma como pensamos o mundo
contemporâneo, tratando a Europa e a Ásia como um espaço político
unificado. É evidente que este espaço político não está organizado. Existem
diferentes projetos e diferentes políticas, existem pessoas já ativamente
empenhadas na tarefa organizadora, mas não existe uma ordem política que
abranja a Europa e a Ásia. Na verdade, foi o desmoronamento da
hegemonia europeia que criou a presente desordem, ao mesmo tempo que
abria caminho a uma perspetiva mais unificada, a um novo supercontinente.
A questão do nosso tempo é como deverá ser organizado este espaço
unificado. Trata-se de um processo necessariamente competitivo entre
diferentes visões do futuro, representadas por diferentes agentes políticos,
todos capazes de se influenciarem uns aos outros e todos eles concordando
fundamentalmente em que a ordem política numa escala mais pequena não
poderá satisfazer de forma adequada os seus propósitos. As divisões nítidas
foram substituídas por um campo unificado de forças, em que a Europa se
dissolverá e só assim será preservada, tal como um corpo decomposto passa
para a composição de novos organismos. Nada se perde, tudo se transforma.
«Quando a Europa desaparece, a Eurásia ganha consistência.5»
O que é novo na era eurasiática não é que essas ligações entre
continentes existam mas que, pela primeira vez, funcionem em ambos os
sentidos, com a Rússia e a China a procurarem a forma de a influência ao
longo da rede ser invertida. Só quando a influência fluir em ambos os
sentidos poderemos falar de um espaço integrado, quando se puder encarar
aquilo que acontece no resto do supercontinente com o mesmo cuidado com
que se encara o que acontece em casa. Durante o período da hegemonia
europeia não havia razão para o fazer: os europeus sabiam que as suas vidas
dependiam apenas das suas decisões e os colonizados, na Ásia e noutros
sítios, nunca poderiam esperar ter qualquer influência acerca daquilo que
acontecia na Europa. O grande jogo de influências centrar-se-á nas
fronteiras entre os principais blocos, que poderão funcionar como condutas
estáveis para o contacto político, económico e cultural, ou tornar-se zonas
disputadas, cindidas pelas tentativas de desestabilização e controlo.
Pelo menos na sua função de nós de transações, as fronteiras
eurasiáticas estão quase inteiramente subdesenvolvidas e não podem sequer
tentar fazer a ponte sobre as diferentes culturas e encorajar o comércio tanto
de bens como de ideias. A interpenetração que virmos acontecer entre a
Europa e a Ásia desenvolver-se-á aí, sem dúvida, através de um processo
civilizacional que poderá ser certamente encorajado e dirigido. Cidades
como Istambul, Bacu ou Kyiv (prefiro a grafia ucraniana ao russo «Kiev»)
veem já o seu futuro desenvolvimento nesses termos. É por isso uma
infelicidade que qualquer das três se encontre mergulhada em diversos
abismos de incerteza política, o que só poderá constituir um obstáculo para
o seu rápido desenvolvimento. No fim, porém, muito mais importante do
que se saber quais serão as cidades a que caberá a responsabilidade do
interface civilizacional, será determinar a forma política dos regimes que as
apoiarem. O interface civilizacional é já o espaço do futuro, o espaço onde
as questões mais importantes serão decididas. Para anteciparmos as suas
futuras características seria sensato considerar essas cidades cujo
espetacular sucesso resultou da sua capacidade para se tornarem exemplos
precoces do novo mundo eurasiático: Hong Kong e Singapura.
O caso de Hong Kong é uma lição sobre contrastes. Através de uma
variedade de circunstâncias, o seu desenvolvimento pós-guerra rapidamente
foi moldado por diferentes influências. Assim que se tornou claro que o
Governo comunista estava firmemente implantado no continente, a
comunidade de imigrantes recentes e refugiados da China continental foi
forçada a pôr a funcionar as suas capacidades e o seu capital. Foi nisso
ajudada por uma administração colonial que não distinguia entre
vencedores e vencidos e que estava concentrada em reduzir os obstáculos
burocráticos e em garantir o Estado de direito. Desenvolveu-se uma relação
simbiótica, pela qual os bancos britânicos forneciam o acesso aos mercados
financeiros internacionais, enquanto os empreendedores locais chineses
sobressaíam na deteção de oportunidades económicas – o que podia ser
produzido, onde podiam ser encontrados os recursos, como organizar
melhor a produção e encontrar as pessoas certas6. Mais tarde, essa relação
foi ainda mais aprofundada quando os empreendedores de Hong Kong se
tornaram os primeiros a fazer um sucesso dos investimentos industriais na
China continental. Foram, de facto, os primeiros eurasiáticos; com um pé na
Ásia e o outro na Europa, o seu sucesso dependia da capacidade para operar
em simultâneo numa economia comandada, em que o domínio do Governo
se sobrepunha às forças de mercado, e um enclave liberal ligado à economia
global e singularmente competitivo na finança e no mercado7. Floresceram
na contradição e na complementaridade entre os dois mundos diferentes e
não no morno universalismo e uniformidade que demasiadas vezes são
identificados com a globalização. A identidade de Hong Kong que emergiu
nas décadas recentes era menos um híbrido de diferentes influências
culturais do que a judiciosa preservação de todas as contradições na raiz da
vida na antiga colónia, essa «maravilhosa ilha de muitos mundos nos braços
do mar», como escreveu a romancista Han Suyin.
Quanto a Singapura, foi sob muitos aspetos um laboratório histórico
ainda mais extraordinário. Sendo a capital administrativa e económica do
Império Britânico no Sudeste Asiático, a sua população era uma coleção
poliglota de migrantes da China, da Índia, da Malásia, da Indonésia e de
outros locais da Ásia. Esta população desenraizada de colonizadores e
migrantes sempre aproveitou ao máximo a troca cultural e a
experimentação. Depois da independência, em 1965, o país encontrou-se
subitamente na desesperada posição de um eixo comercial sem um interior.
O Império Britânico desaparecera e nem a Malásia nem a Indonésia, com as
quais Singapura tinha relações difíceis, o podiam substituir. Lentamente,
um novo e em absoluto surpreendente interior foi descoberto: Singapura
transformar-se-ia num país asiático mais ligado à Europa e à América do
que ao resto da Ásia. Uma ponte entre o Oriente e o Ocidente.
Lee Kuan Yew, o notabilíssimo pai fundador do país, descreve nas suas
memórias um interessante episódio neste processo de descoberta. Apenas
semanas após a independência, o conselheiro económico holandês de Lee
disse-lhe que havia um pré­-requisito para o sucesso de Singapura: não
remover a estátua de Stamford Raffles. Ele não teve problemas em seguir o
conselho. Ao contrário de outras ideias, esta era fácil de realizar e, se
Raffles não tivesse ido para Singapura em 1819 para estabelecer um novo
posto comercial numa sossegada vila piscatória, o bisavô de Lee não teria
podido migrar para lá, ido da província chinesa de Guangdong, escapando
ao caos do final da dinastia Qing. A sugestão não fora originada pelo
respeito pela memória histórica, contudo, mas por uma consideração mais
subtil, que Lee admite francamente que lhe escapara antes. Deixar ficar a
estátua seria um sinal de aceitação pública do legado britânico. Os
investidores da Europa e da América repararam nisso8.

A política eurasiática substituiu a política europeia. Há cem anos todos


os desenvolvimentos globais importantes eram produto da interação entre as
diferentes potências europeias. Muitas vezes, o resto do mundo era
arrastado pela dinâmica da rivalidade entre as grandes potências europeias,
incluindo na questão crucial da guerra e da paz. No interior de cada uma das
nações europeias, as questões mais importantes eram elas próprias um
reflexo da competição ocorrida no palco continental. Hoje, essas dinâmicas
acontecem a um nível diferente, entre várias potências eurasiáticas.
Neste livro, a Eurásia é muito mais do que um termo usado para
descrever uma entidade geográfica. Será usado como um termo descritivo
de uma certa forma de pensar acerca de um novo momento na História
política. É um epíteto adequado para a nova ordem mundial porque
expressa duas ideias essenciais, muitas vezes vistas como contraditórias,
juntando-as numa única palavra. Por um lado, transmite o sentido de que a
ordem mundial europeia chegou ao fim. Este momento, tantas vezes
anunciado, tem sido, pelo contrário, persistentemente esquivado. Quando os
países europeus abandonaram os seus sonhos imperiais, fizeram-no sob a
ilusão de que o resto do mundo já não precisava de orientação porque
adotara voluntariamente as regras e as ideias europeias. Era uma ilusão, mas
uma ilusão que só agora está a ser revelada como tal. Por outro lado, isso
não deverá ser confundido com a crença de que o legado da Europa foi da
mesma forma abandonado. O que observamos é que aqueles que estão a
trabalhar mais ativamente para substituir a velha ordem mundial por algo
novo são apenas os herdeiros das tradições europeias científicas e
revolucionárias. Quando competem com o modelo europeu, tentam
apresentar uma alternativa que é mais moderna, mais racional e mais capaz
de orientar as transformações do futuro. As suas visões são novas e
alternativas em relação àquilo que caracteriza uma sociedade moderna.
Na primeira parte deste livro deveremos examinar as origens da divisão
entre a Europa e a Ásia e as forças agora responsáveis pelo colapso dessa
divisão. Exploraremos depois, em termos gerais, o novo supercontinente
que está a ser construído sobre as ruínas da velha ordem mundial e a forma
que poderá adquirir.
A segunda parte do livro está difusamente organizada como um diário
de viagem geopolítico através da Eurásia, baseado na minha longa viagem
terrestre, bem como em muitas visitas de investigação separadas, depois
disso. Tentei apresentar lugares pouco conhecidos que, por uma ou outra
razão, parecem destinados a desempenhar um importante papel no mundo
de amanhã. Noutros casos, são improváveis recantos do Velho Mundo, onde
princípios por examinar perdem o seu encanto e novas formas de pensar
podem ser exploradas. O livro está povoado de uma vasta coleção de
personagens originais, quase sempre encontradas por acaso durante a minha
viagem: arqueólogos, lutadores de artes marciais, revolucionários,
feiticeiras, agentes dos serviços secretos, réplicas de ministros dos Negócios
Estrangeiros, homens de negócios, engenheiros, políticos, designers de
moda, artistas e fabricantes de mitos de todos os géneros. Falarão pela sua
própria boca.
Os capítulos centrais serão dedicados ao papel desempenhado pela
China e pela Rússia na política e na economia do novo supercontinente. Em
cada um destes casos, existem duas questões principais. Primeiro, que
conceitos de ordem política estão a ser avançados pelos regimes chinês e
russo e em que diferem dos conceitos ainda dominantes desenvolvidos na
tradição política europeia? Segundo, como é que a China e a Rússia
concebem uma integração eurasiática, que modelo têm para um
supercontinente integrado e como estão a seguir os seus planos? A China
organizou estes planos em torno da chamada «Iniciativa Cintura e Rota»,
uma iniciativa de profunda integração económica ligando a Europa, num
dos extremos do supercontinente, à Ásia, no outro. O alcance da iniciativa
parece à primeira vista ilimitado, por isso foi recentemente rebatizado.
Chama-se agora «Cintura e Rota» («Belt and Road») em vez de «Uma
Cintura, Uma Rota« («One Belt, One Road»), para captar o facto de o que
está a ser planeado serem na realidade muitas cinturas envolventes,
estradas, corredores e projetos infraestruturais, abarcando potencialmente
todos os países e regiões entre o Atlântico e o Pacífico. Os planos russos
são, se possível, ainda mais fluidos e preliminares, mas também eles
acabaram por se fundir em torno de um enquadramento institucional e
político, a União Económica Eurasiática. Uma discussão pormenorizada
destes projetos deverá incluir a forma como poderão estar ligados à sua
irmã mais velha, a União Europeia.
O novo mundo eurasiático contém diferenças e contradições. Isto força-
nos a procurar as linhas de conflito e a compreender os diferentes conceitos
políticos nos seus próprios termos e não fazer com que se conformem aos
princípios existentes, ou à atração hegemónica da cultura política europeia.
O meu interesse está focado nos diferentes conceitos políticos que estão a
ser desenvolvidos e aperfeiçoados na Europa, na Rússia e na China.
Juntamente com os Estados Unidos – o espelho do outro lado do mar –
estas continuarão a ser as principais peças da nova ordem mundial, mas a
imagem completa inclui peças mais pequenas, a que também deverá ser
dedicado algum tempo.
Qual foi a última vez em que pensou em si próprio como eurasiático?
Dependendo de onde esteja, talvez apenas ontem, ou talvez nunca. A ideia
poderá mesmo parecer estranha e implausível. Mas chegou a sua hora.
Quanto mais cedo o compreendermos melhor.

* Expressão bíblica identificada com o «excecionalismo» norte-americano. (N. do T.)


PRIMEIRA PARTE

O Mapa
I

O MITO DA SEPARAÇÃO

A querela dos continentes

N
um livro acerca do desaparecimento da distinção entre a Europa e a
Ásia, o ponto de partida óbvio será a origem dessa separação. É uma
dessas questões que parece impossivelmente assustadora; muitos escritores
tentaram tornar clara a história desta distinção e falharam nessa tarefa.
Poderemos talvez esperar que se tenha tornado agora mais fácil, quando a
distinção está prestes a desaparecer, de tal modo que a possamos
compreender olhando para trás.
A minha opinião é que a separação é relativamente recente. Poderá ter
surgido há 400 ou 500 anos, apesar de alguns dos seus elementos se
poderem ter desenvolvido antes disso, embora a consciência do seu exato
significado só se tenha tornado presente mais tarde, provavelmente em
meados do século XVIII. É verdade que as palavras são muito mais antigas,
mas é preciso termos cuidado neste ponto. O estudante de História sabe que
o passado é uma tal congregação confusa de noções e sugestões que
quaisquer ideias que surjam triunfantes podem e irão encontrar as suas
origens mais atrás. Se essas ideias não tivessem emergido, contudo,
ninguém teria visto aí os seus inícios. Iremos portanto tentar evitar a falácia
da projeção retrospetiva.
A data de 29 de maio de 1453 poderá funcionar como um bom símbolo
para começarmos. A queda de Constantinopla e o triunfo dos turcos
otomanos marcou o fim da última linha clara de continuidade com o
Império Romano e instalou o palco para o estabelecimento definitivo do
islão na Europa, permanecendo até ao nosso tempo. Neste sentido, forçou
uma reavaliação dramática da ordem mundial existente. Horripilantes
relatos que chegavam de Veneza e de Roma pormenorizavam todos os
horrores reais e imaginários da conquista e do saque da cidade e exprimiam
o medo de que isso pudesse anunciar uma ameaça para toda a cristandade.
Depois de o choque inicial ter amainado, três dietas imperiais foram
rapidamente realizadas para discutir uma possível cruzada. Em todas as três
o principal orador em nome do sacro imperador romano foi Enea Silvio
Piccolomini, experiente diplomata imperial e bispo de Siena, mais tarde
papa Pio II. A segunda dieta teve lugar em Frankfurt em outubro de 1454.
Aí, Piccolomini pronunciou o discurso De Constantinopolitana Clade,
«Sobre a Queda de Constantinopla», uma das mais salientes peças retóricas
desse período, em que observava: «Na verdade, durante muitos séculos, a
nação cristã nunca sofreu tão grande desgraça como hoje. Os nossos
ancestrais experimentaram muitas vezes reveses na Ásia e em África, ou
seja, noutras regiões, mas nós, hoje, fomos apoucados e atingidos na própria
Europa, na nossa pátria, no nosso lar e sede.1»
É de facto uma espantosa formulação, que deve ter captado como a
ocasião parecia grave. Mas uma leitura mais cuidadosa revela que
Piccolomini faz uma óbvia distinção entre o lar físico, a Europa, e aqueles
que a habitam. Não é aos europeus que ele apela, mas à «nação cristã».
Quando a Europa acaba por emergir como ideia, será para substituir a
cristandade. Em comparação, poderá parecer uma ideia circunscrita pelo
local, uma geografia mais do que um termo religioso, mas – sendo a
História rica em paradoxos – a Europa iria de facto expandir-se por todo o
Planeta de uma forma que se esquivava à cristandade: «O nome de um
continente iria então transformar-se num símbolo de uma forma de vida e
iria mostrar-se capaz, não menos do que a fé que a precedera, de atrair
lealdades e ódios, missionários e mártires.2»
Se nunca se pretendeu que Europa e cristandade fossem sinónimos,
talvez as origens de uma identidade europeia possam ser encontradas noutro
local. Quando perguntei a um grupo de estudantes universitários em Bacu,
no Azerbaijão, se achavam que Bacu fazia parte da Europa ou da Ásia, um
jovem respondeu que deveria ser incluída na Europa porque fizera outrora
parte do Império Romano. Isto é verdade e mais interessante do que se
poderia pensar, uma vez que Bacu, e não as cidades mais centrais da Síria,
era de facto o ponto mais oriental do império. Há uma pequena aldeia
próxima da capital, chamada Ramana, que temos todas as razões para
acreditar que tenha sido fundada pelas legiões romanas que chegavam. É
tentador trepar ao forte medieval que ainda lá se ergue e proclamar que
chegámos ao fim da Europa – só que dificilmente os romanos pensariam em
si próprios como europeus. O seu império estendia-se por três continentes e,
durante longos períodos, o seu fulcro situava-se mais na Ásia do que na
Europa, enquanto o Egito se mantinha como um centro económico da maior
importância e fornecia uma interminável riqueza para o cobrador de
impostos.
Quanto mais enraizada está uma ideia, mais longe no passado se
procurarão as suas origens. No caso da querela entre a Europa e a Ásia, já a
encontramos como figura de narrativa dramática em Heródoto, mas mesmo
o grande historiador clássico sente que tem de a ligar a tempos mais
antigos, inspirando-se para isso nos historiadores persas. E o que dizem
estes historiadores? Admitem que a querela foi iniciada pela Ásia quando os
fenícios, os primeiros a realizarem longas viagens por mar, tendo
desembarcado em Argos, não partiram sem levarem consigo a beldade
local, Io, a filha do rei Ínaco, e mais algumas mulheres que passeavam pela
praia. Mais tarde, depois disto, certos helenos velejaram até Tiro, na
Fenícia, e raptaram a filha do rei, Europa, que iria transmitir o seu nome aos
seus descendentes e, com o tempo, ao novo continente.
Parece que cada geração de helenos e de bárbaros ia cometendo afrontas
semelhantes, encontrando sempre como justificação algo que os outros
tinham feito antes. Até àquele momento, escreve Heródoto, «nada mais
acontecera do que o rapto de mulheres de ambos os lados», mas quando
Páris, filho de Príamo, raptou Helena, os gregos cercaram e saquearam
Troia. De acordo com os persas, foi assim o início dessa grande divisão e
inimizade entre os dois continentes vizinhos3.
Quando tentamos reconstituir essa trágica divisão, a questão mais
interessante é saber onde terá Heródoto obtido uma visão do mundo na qual
a Europa e a Ásia teriam tão importantes papéis centrais e organizadores. O
seminal historiador Arnold Toynbee defendeu que a utilização da Europa e
da Ásia como um par de expressões geográficas antitéticas, mas
mutuamente complementares, foi criação de antigos marinheiros gregos que
navegavam as vias marítimas internas que se estendiam do Egeu até ao mar
de Azov. Encontrar o seu caminho para norte exigia que reunissem a
coragem para atravessar três estreitos sucessivos. Por cada uma dessas
travessias, seriam premiados com o acesso a um novo mar interior, um novo
Egeu. Depois de terem aberto caminho do Egeu ao mar de Mármara, do de
Mármara ao mar Negro e depois ao de Azov, tentariam por fim aceder ao
rio Don e subi-lo até aos míticos montes Rifeus, perpetuamente cobertos de
neve. Aí, a sua rota chegava ao fim. O Don marcaria, durante mais de mil
anos, a fronteira entre os dois continentes, mas, o que talvez fosse mais
importante, esta era uma fronteira e uma distinção existentes apenas para
aqueles marinheiros. Os nómadas a norte teriam achado essa separação
continental simplesmente ininteligível. Além disso, a partir do século XVI, o
conhecimento geográfico da Rússia aumentara o suficiente para se perceber
que o mítico Don era um lodoso e modesto rio, com origem bem a sul de
Moscovo, inteiramente incapaz de constituir a fronteira entre os dois
continentes.

Um código oculto
Como todas as criaturas míticas, a fronteira muda de forma, de lugar e foge
de cada vez que a vemos à distância. Vidas inteiras poderiam ser
desperdiçadas à sua procura, mas isso não quer dizer que não se possam
encontrar muitas outras coisas interessantes durante esse processo. A
fronteira entre a Europa e a Ásia foi sempre instável, insustentável e, na sua
maior parte, ilusória. Será fútil procurar qualquer tipo de mudança visível
ou invisível quando se deixa Ecaterimburgo, a cidade russa na fronteira da
Europa e da Ásia, indo para Omsk ou Novosibirsk, as maiores cidades a
leste dessa fronteira. A Rússia é um bloco e a sensação de se atingir
Vladivostoque na costa do Pacífico é, quanto muito, de ter chegado à
paisagem física e humana de uma cidade europeia clássica – com suaves
colinas, debruçada sobre o oceano, coberta de elegantes avenidas e edifícios
com fachadas de cantaria. No século XVIII, Voltaire disse que, no momento
em que se chegava ao Azov já não era possível dizer onde era a Europa e
onde era a Ásia4. Quanto à orla navegável em torno do mar Negro, esta
tendia a dissolver-se naturalmente à medida que Istambul se tornava o
coração do Império Otomano, constituindo o centro e não um ponto de
fronteira.
Se olharmos para os mapas do Renascimento, podemos ver como os
cartógrafos estavam a tentar empurrar o mais possível o Báltico para leste e
o mar Negro para norte, para que a fronteira oriental da Europa ficasse
parecida com um istmo, tão estreito quanto possível, que pudesse ajudar a
delimitá-la como um continente, uma unidade separada. Mas a Europa não
está ligada à Ásia, sendo antes uma sua extensão, uma grande península, ou
um subcontinente como a Índia. No século XVI estavam em circulação
muitas cópias de um mapa da Europa em forma de uma mulher, cuja cabeça
era a Península Ibérica, o braço esquerdo a Dinamarca e o direito a Itália,
tendo a Sicília na mão. Tudo estava desenhado com precisão, mas entre o
mar Negro e o mar Báltico havia vastas e indeterminadas regiões, sobre as
quais esvoaçavam as fímbrias do seu vestido5. Durante séculos, a fronteira
geográfica entre a Europa e a Ásia continuou a mudar, em geral deslocando-
se cada vez mais para leste, à medida que o conhecimento da Rússia
aumentava e, de modo talvez mais significativo, a própria Rússia abraçava
o projeto de europeização.
Num interessante episódio, um oficial sueco chamado Philip von
Strahlenberg, feito cativo na batalha de Poltava em 1709, teve de passar 13
anos na Rússia, onde se ocupou a estudar a sua geografia. De regresso a
Estocolmo, em 1730, publicou um livro onde defendia que os montes
Urales deveriam tornar-se o limite oriental da Europa. Mais ou menos pela
mesma altura, o estadista e cientista russo Vasily Tatishchev tentou compilar
um número de argumentos decisivos a favor de se traçar a fronteira ao
longo dessas montanhas, observando que são diferentes os peixes nos rios
que correm de cada um dos seus lados e que as baratas são abundantes a
ocidente e anteriormente desconhecidas a oriente6.
Esta é a opinião ainda hoje aceite, mas não devido a qualquer lógica
convincente, como poderá parecer o apelo aos padrões de vida das baratas.
Em 1935 foi distribuído um questionário a importantes geógrafos políticos
na Europa, onde se lhes perguntava onde colocariam a linha de fronteira.
Houve pouco consenso: das 42 respostas, catorze eram a favor da fronteira
ocidental da União Soviética e doze a favor da linha dos Urales, enquanto
as restantes se distribuíam por outras hipóteses ou declinavam escolher
qualquer delas7. Escrevendo em 1944, o historiador Marshall Hodgson
continuava a apelar a que se «evitasse o uso de mapas que estabelecem uma
inútil linha através do meio da Rússia8». Esta vasta área entre a Europa e a
Ásia é de facto um lugar em que todas as fronteiras, geográficas ou
culturais, são essencialmente indeterminadas. E, no entanto, a Europa e a
Ásia adquiriram o estatuto de categorias quase metafísicas. Como é que isto
aconteceu?
Permitam que sugira uma explicação: a divisão entre a Europa e a Ásia
não é uma divisão no espaço, mas no tempo.
A ideia da Ásia não é asiática mas europeia, aglomerando culturas e
civilizações extraordinariamente diferentes, cujo único traço comum parece
ter sido a exclusão coletiva da Europa. Que sentido faz agregar em conjunto
o Japão e a Arábia? Cada uma destas regiões tem laços históricos e culturais
mais fortes com a Europa do que uma com a outra. Do ponto de vista da
afinidade histórica e cultural, há outras divisões que rapidamente se
impõem: o Médio Oriente, a Ásia do Sul, o Extremo Oriente, o Sudeste
Asiático. Mas então porque não incluir a Europa como uma das partes
constituintes do supercontinente combinado, juntamente com a Rússia e a
Ásia Central? Como Henry Kissinger observa, até à chegada das potências
ocidentais nenhuma língua asiática tinha uma palavra para «Ásia» e
nenhum dos povos que ocupava aquilo a que chamamos «continente
asiático» se concebia como fazendo parte de uma única unidade, impondo
obrigações de solidariedade ou o sentimento de se ser conterrâneo9. Foram
as nações europeias que, ao enfatizarem a sua solidariedade, a sua
«europeidade» ao lidarem com os países asiáticos, deram inevitavelmente
lugar a um sentimento comum de «asiaticidade». Antes do final do século
XIX não existia esse sentimento, mas, no início do século XX, encontramos o
grande escritor japonês Okakura Kakuzo – autor de um famoso ensaio que
explica a cultura japonesa por referência ao papel do chá – a abrir um livro
com esta espantosa declaração: «a Ásia é una». A passagem prossegue:

Os Himalaias dividem, para acentuarem ainda mais, duas poderosas


civilizações: os chineses com o seu comunismo confuciano e os
indianos com o seu individualismo dos Vedas. Mas nem mesmo as
barreiras de neve poderão interromper por um momento essa
alargada vastidão de amor pelo Derradeiro e Universal, que é a
herança intelectual comum a toda a raça asiática, permitindo-lhe
produzir todas as grandes religiões do mundo, distinguindo-se desses
povos marítimos do Mediterrâneo e do Báltico, que adoram ocupar-
se do Particular e procurar os meios, e não o fim, da vida.10

Quando era jovem, Okakura fora enviado para o estrangeiro pelo


Governo japonês para estudar a história da arte e os movimentos artísticos
na Europa e nos Estados Unidos, mas regressara das suas viagens com um
profundo apreço pela arte asiática e, em particular, pela japonesa.
A divisão entre os dois continentes não é uma ideia que se imponha
naturalmente. Pelo contrário, resulta de uma certa forma de pensar que
emergiu na Europa num tempo histórico particular. Os dois polos opostos
são produtos históricos da visão iluminista do progresso científico e da sua
gradual aplicação à ordem social.
O encontro entre os impérios europeus e asiáticos na Idade Moderna
teve um sentido muito específico para os envolvidos: a superioridade da
tecnologia europeia. Alguns pensadores asiáticos ou polemistas como
Tagore e Jalal Ahmad foram ao ponto de proferir a intrigante afirmação de
que o encontro não fora entre asiáticos e europeus, mas antes entre asiáticos
e as máquinas europeias. Na origem dessa superioridade encontrava-se um
novo entendimento da ciência em que a natureza era vista como sendo
capaz de uma infinita (ou quase infinita) transformação. Logo desde o
início, os europeus tiveram a noção clara daquilo que era singular na nova
civilização que estavam a construir. Ao longo do século XVIII, o contraste
entre os continentes manteve-se uma potente metáfora, que se esperaria
encontrar em quase toda a biblioteca ou galeria de pintura. A Europa era
frequentemente representada como uma mulher sustendo o Globo e rodeada
por instrumentos matemáticos e científicos. Para dar um exemplo: no teto
da grande escadaria do átrio do palácio da Residência de Würzburg, o
artista veneziano Giambattista Tiepolo representou cada um dos então
quatro continentes, dispostos nas partes laterais do fresco, com Apolo e as
divindades do Olimpo ao centro. A figura alegórica da Ásia é mostrada
sentada num elefante, a África num camelo e a América num crocodilo.
Apenas a Europa se senta num trono e não num animal e apenas a Europa
está rodeada, não por uma paisagem natural, mas pelos produtos do
engenho humano – pelas artes e pelas ciências, incluindo a arte da pintura
que é, evidentemente, a responsável pelo conjunto.
O facto de os europeus se encontrarem em posição de controlar
praticamente o mundo inteiro era resultado direto de uma série de
revoluções na ciência, na produção económica e na sociedade política, cujo
tema subjacente era a exploração sistemática de possibilidades alternativas,
maneiras diferentes e até então desconhecidas de fazer as coisas. Se o poder
é a capacidade de transformar a realidade, os europeus descobriram um
método de provocar as transformações numa escala inteiramente nova. Não
foi apenas o seu poderio militar que cresceu desproporcionalmente, apesar
de estar sempre no centro das relações em todo o mundo; o poder
económico, cultural e até o intangível poder do prestígio cresceram
também. Em resultado disso, como diz Hodgson, todos os povos tiveram de
ajustar os seus Governos à moderna ordem internacional europeia, as suas
economias à competição da Europa industrializada e mesmo a sua atitude
mental à moderna ciência, conforme era estudada e praticada nos países
europeus11. Na raiz de tudo isso estavam os segredos da ciência e as
máquinas que se alimentavam desses segredos.
Na medida em que a ciência era vista como um rompimento decisivo
com o passado, inclusive ao nível da lógica e do método, a sociedade era
entendida como estando a sofrer um processo reorganizativo com um
fundamento racional. Nas obras de Montesquieu, Adam Smith ou Hegel, o
continente asiático surgia como a imagem viva desse passado ancestral do
qual a Europa se estava a desembaraçar. A perspetiva da sociedade asiática
era a de que se tratava de uma sociedade atrasada, que se mantivera estática
desde a Antiguidade e que, se fosse deixada entregue a si mesma,
permaneceria estática para sempre. Como Hegel iria defender, a Europa era
o fim e o destino da mudança histórica e a Ásia o início. «A História do
mundo desloca-se do Oriente para o Ocidente, pois a Europa é
absolutamente o fim da História e a Ásia o começo.12» Com a China
começa a História, pois é o mais antigo império e também, como diz Hegel,
o mais recente; um lugar onde a mudança é excluída «e a fixidez de um
carácter que ocorre perpetuamente toma o lugar daquilo a que chamaríamos
o verdadeiramente histórico13».
Como o filósofo político contemporâneo chinês Wang Hui escreve, essa
divisão tinha um número de características distintivas: os impérios políticos
asiáticos opostos às nações europeias; os tipos sociais agrários e nómadas
em contraste com as sociedades urbanas europeias; o despotismo político
contra os sistemas jurídicos desenvolvidos e a busca da liberdade
individual. Sublinhando tais distinções, havia uma abordagem diferente ao
papel da ciência e do desenvolvimento tecnológico. Enquanto a Europa
parecia adotar a rutura tecnológica, a Ásia parecia destinada à estagnação e
à monotonia histórica, um «continente parado», perene, lento no
movimento. Como a principal personagem de Um Espírito em Descanso, de
Ahmet Hamdi Tanpinar – um romance sobre Istambul enquanto cidade de
dois continentes – reflete para si próprio: «o Oriente é um sítio para estar
sentado e esperar». Não é por coincidência que as referências à palavra
«Europa» apenas começam a multiplicar-se no século XVII, quando as
sociedades europeias começam a transformar-se rapidamente e a
modernizar-se. Pela primeira vez, o termo é usado com tanta frequência que
a sua contagem se torna impossível14. A Europa e a Ásia já não são noções
geográficas. São duas formas distintas de civilização, representando tempos
históricos diferentes15.
Voltando a uma velha questão, Lenine escreveu uma vez que a Rússia
era indubitavelmente um país asiático. Para ele, isso não tinha nada que ver
com geografia e tudo que ver com história, com uma visão da Rússia sob o
domínio dos czares como sendo medieval e «vergonhosamente atrasada16».
A modernidade, ou o capitalismo, ou a industrialização – dependendo da
teoria que se subscreva – eram vistos como originalmente europeus, mas
capazes de se expandirem por todo o mundo. Ao longo do século XIX o
termo «europeu» foi sendo lenta­mente substituído por «ocidental», com a
intenção óbvia de assinalar, ao mesmo tempo, o apelo universal das ideias
modernas e a oposição binária à velha sociedade. Esta oposição foi um
importante alicerce do colonialismo europeu, mas serviu também de
substrato para aqueles que, começando pelo Japão na segunda metade do
século XIX, defendiam que a Ásia podia adotar a modernidade e juntar-se ao
grupo das nações desenvolvidas. Fukuzawa Yukichi celebrizou-se pela sua
defesa de que o Japão deveria evitar o ataque violento da civilização
ocidental partilhando-a, velejando nas mesmas ondas, aproveitando os
mesmos frutos da civilização. E deu a este projeto um estranho nome:
«Separação da Ásia», o título de um editorial que publicou em março de
1885.
A antítese histórica abriu um cisma entre a Europa e a Ásia, o Ocidente
e o Oriente. A distinção entre ambos era agora medida em termos de uma
rutura sem precedentes com toda a História humana anterior, quer esta
rutura tivesse que ver com uma nova abordagem científica às questões
humanas, ou com o avanço do capitalismo. Tudo o que acontecera antes da
Idade Moderna na Europa constituía um mundo completamente diferente,
um mundo em que as sociedades asiáticas viviam ainda. Era isto que
Kipling queria dizer quando escreveu que «o Oriente é o Oriente e o
Ocidente é o Ocidente e nunca este par se encontrará».
Contudo, a distinção era desde o início temporária. Mesmo aqueles que
eram suficientemente ousados para proclamar que as sociedades europeias
eram mais avançadas do que as asiáticas tinham de admitir, devido a essa
mesma distinção, que a Ásia, com o tempo, havia de lá chegar – se não com
todos os frutos das revoluções científica e industrial, pelo menos com os
seus métodos e princípios essenciais. O tempo histórico tinha uma estrutura
simples e peculiar: «primeiro na Europa e depois nos outros sítios».
Escusado será dizer que nenhuma convergência refutaria Kipling, uma vez
que a ideia era precisamente que o Oriente e o Ocidente apenas se
encontrariam quando a Ásia começasse a parecer-se cada vez mais com a
Europa.
Estas reflexões mostram a extensão do problema. Já não podemos falar
da diferença entre a Europa e a Ásia como uma mera diferença de formas
culturais. Os dois continentes parecem existir em planos diferentes e,
quando estes planos se intersetam, levantam questões de absoluta
importância acerca do sentido da vida moderna, acerca de onde vimos e
para onde vamos. Para os europeus, a Ásia foi abordada com uma certa
ambivalência. Por um lado, parecia representar tudo aquilo contra o qual
estava a modernidade, a imagem invertida contra a qual se definiam. Por
outro, era objeto de infinita curiosidade e fascínio. As mentes mais
reflexivas poderiam olhar para a eterna imagem da Ásia como a relíquia
daquilo que a Europa já não podia representar e – se a opção original por
ser moderna tivesse sido errada – a imagem viva do que se perdera. Como a
britânica Juliet Bredon, há muito residente em Beijing, escreveu em 1922, o
visitante europeu poderia encontrar na China «resquícios de um ontem mais
estranhos e fascinantes do que o hoje, um ontem em que não havia fábricas
nem caminhos de ferro para perturbar a paz sonolenta da Ásia17». Mas
reflexões como esta poderiam ser apenas sussurradas ou trocadas
silenciosamente e mesmo assim serem contrariadas por uma ansiedade
diferente: se a Europa se separou da Ásia em determinado momento do
passado, poderia perder-se de novo? Poderia afundar-se de novo na Ásia,
como diz o filósofo Karl Jaspers?
Se a Europa emergiu da matriz da Ásia, isso poderá parecer um ato de
ousadia e libertação, mas acarreta consigo dois perigos. Primeiro, que a
vida europeia se desligue das suas origens. Segundo, existe o perigo
constante de que a Europa possa regressar à Ásia. Colocada nesses termos,
a recombinação dos continentes transforma-se num aterrador espectro, a
destruição completa da Europa como uma identidade distinta. Se essa
recombinação acontecesse, a Ásia revelar-se-ia como o mundo universal e
permanente que sobreviveria à Europa e a conteria. Seria um final
surpreendente para a História dos últimos séculos, sem dúvida alguma. Em
alternativa, se a Ásia emergisse de si mesma como a Europa outrora fez,
algo como a via do desenvolvimento universal e o segredo da História
humana tornar-se-ia finalmente visível. Entendida historicamente, a relação
entre os continentes é um código secreto que explica a História moderna e
muitas coisas que, caso contrário, permaneceriam opacas, surgem à luz
assim que deciframos o código. Segundo Jaspers, «a Eurásia é um
criptograma que acompanha toda a História ocidental18».
É notável como é central a separação entre os dois continentes para a
nossa compreensão política e cultural, embora continue por examinar.
Todos tomam a distinção como garantida, mas ninguém consegue exprimir
os fundamentos em que assenta. Quando o escritor Hermann von
Keyserling perguntou a si próprio a que ponto existe uma coisa como a
Europa, encontrou a resposta numa certa «unidade de estilo». Ele via um
novo estilo europeu a emergir de uma aguda consciência das diferenças
daquilo que ficava a oriente. O que é esta unidade de estilo? O facto de, na
Europa, a ciência e a tecnologia fazerem parte da experiência primitiva e
nativa faz com que possam ser mais completamente adotadas porque nunca
foram sentidas como intrusões, da mesma forma que, na Índia, a religião
entra em toda a esfera de atividade, estendendo-se à comida e à bebida, à
roupa, ao lazer, à lida da casa e a todas as principais ocasiões da vida. Isto
significa que a ciência não apenas ocupa o centro do palco na moderna
sociedade europeia, como algo parecido com o seu espírito original inspira
e guia toda a atividade a partir do seu interior19.
Keyserling (1880-1946) foi um dos grandes viajantes da História porque
compreendia que viajar é criar novos mundos de experiência e nos
transforma para lá do que mesmo a imaginação poderá fazer ou conseguir.
Queria colocar-se em circunstâncias em que, para compreender, teria de
mudar as próprias categorias segundo as quais essa compreensão é exercida.

A Europa já não tem mais nada para me dar. A sua vida é demasiado
familiar para forçar o meu ser a novos desenvolvimentos. Além
disso, está confinada de modo demasiadamente estreito. Toda a
Europa é essencialmente uma só em espírito. Quero ir a latitudes
onde a minha vida tenha de se tornar muito diferente para que a
existência seja possível, onde a compreensão requeira de uma
renovação radical dos meios de entendimento, latitudes em que seja
forçado a esquecer aquilo que até agora sabia e que era o máximo
possível.20

Quando atravessou a Europa até à Índia experimentou essa mudança. O


pensamento indiano parecia situar-se nos exatos antípodas do pensamento
ocidental. O método indiano era adamantino ao afirmar que nenhum grau
de abstração poderia ajudar alguém a alcançar o conhecimento metafísico.
Para se atingir um plano mais elevado era necessário atingir um novo e
mais profundo estado de consciência. Enquanto o pensamento ocidental se
erguia a níveis cada vez mais elevados de abstração – dos conceitos
particulares aos gerais, destes às ideias e das ideias às relações – o
pensamento indiano deslocava-se através de diferentes qualidades de
experiência. Aquilo que Keyserling viu na Índia foi a ascensão da alma de
formas mais baixas a mais elevadas de existência. No Ocidente, a ascensão
é a da mente partindo das formas de pensamento descritivas até às abstratas.
«A absoluta superioridade da Índia sobre o Ocidente depende do
reconhecimento fundamental de que a cultura, no seu sentido real, não é
alcançada pelo alargamento da sua superfície, mas através de uma mudança
de plano em termos de profundidade e que esta profundidade crescente
depende do grau de concentração.21» O sistema ióguico é, afinal de contas,
inteiramente construído a partir do poder de concentração e este parece ser
definido em clara oposição ao poder de abstração. O iogue perfeito deverá
dirigir toda a sua atenção concentrada para um ponto até conseguir saber
tudo acerca dele. A abstração, em contrapartida, é a atenção dirigida para o
máximo possível de objetos, na tentativa de retirar deles uma ideia geral ou
princípio.
Hoje, o viajante não se depararia com essa cisão. Pergunte a si próprio,
da próxima vez que aterrar numa cidade algures do outro lado da fronteira
mítica, se consegue detetar alguma diferença fundamental. Não uma longa
lista de coisas que acontece serem diferentes, mas uma diferença de género.
Na sua maior parte, seria uma tarefa impossível. Existem algumas
diferenças óbvias na extensão do processo de modernização em que um país
ou uma região se encontra, mas a modernização enquanto tal tornou-se um
programa universal, ou quase universal.
A sociedade moderna surge quando aquilo que era anteriormente
entendido como uma ordem natural divinamente ordenada e significativa
passa a ser visto como estando aberto a uma infinita manipulação e
transformação. É esse o espírito da moderna ciência e da moderna
tecnologia, que força a natureza a novas formas e configurações,
provocando algo de novo e inesperado, ao mesmo tempo para tornar a vida
humana mais agradável e para se aproximar mais do núcleo permanente e
imutável do Universo. O progresso científico depende de uma expetativa de
inovação contínua, de ser encorajada uma atitude de vontade de
experimentar, rejeitando a autoridade estabelecida de qualquer tipo,
partindo do princípio de que as novas experiências trarão novas realidades e
forçar-nos-ão a rever o nosso conhecimento.
O eu moderno desenvolve a sua personalidade como um planeador
urbano que cria a grelha vazia para a nova cidade. A forma básica é deixada
vazia, aguardando toda a espécie de conteúdo, que é sempre secundário e
derivado da relação com o princípio organizador. Essa figura, a grelha, é a
garantia da vida contra o mundo ou, melhor dito, contra o mundo tal como
se apresenta em determinado momento, uma garantia de que poderia ser
diferente daquilo que é. Agora, olhem em redor. A grelha está em toda a
parte na vida moderna: nas ruas das cidades modernas, nas fachadas dos
nossos arranha-céus, nos ecrãs de pixéis dos nossos smartphones, nos
circuitos internos dos computadores, nas páginas dos jornais e das revistas,
nas folhas de cálculo onde os negócios são planeados e organizados, nos
porta-contentores que cruzam os oceanos. E a razão, claro, é que a grelha é
um espaço de liberdade a ser preenchido com um conteúdo constantemente
em transformação.
A experimentação é um ideal humano, mas também científico. Mas a fé
num infinito poder para transformar a realidade poderá ser encontrada agora
em qualquer recanto do Planeta. O processo tem um certo carácter negativo:
alguém faz a tentativa de se libertar do modelo existente para depois
perceber que este modelo foi substituído por um conjunto de possibilidades
mais amplo, mas ainda assim limitado, que precisa por sua vez de ser
ultrapassado, e assim por diante, num processo interativo. Talvez ainda
mais importante é que cada sociedade tem a sua própria via de
modernização. Cada sociedade começa por um modelo tradicional e cria
novas abstrações a partir do ponto inicial. À medida que o mundo inteiro se
torna moderno, devemos esperar que se desenvolvam diferentes ou
múltiplas modernidades e não que o programa cultural da modernidade
como se desenvolveu na Europa se torne universal. Esse programa poderá
gozar de uma certa precedência histórica e continuar a ser um ponto de
referência, mas não constitui mais do que um caminho. Regressaremos a
esta questão no próximo capítulo.
Mais uma vez, esta sensibilidade moderna poderá ser completamente
desenvolvida na Europa e, mesmo assim, ser imperfeitamente realizada na
Índia ou no Irão, mas o viajante contemporâneo achará agora estas
diferenças no desenvolvimento menos interessantes do que as diferenças na
via da modernização trilhada por diferentes sociedades. As sociedades
europeias modernas aperfeiçoaram uma série de estruturas para a vida
moderna. Desde os direitos individuais até à economia do dinheiro, ou o
Estado neutro que recusa promover uma forma de vida preferencialmente a
outras, foram destinadas a criar um meio flexível e expansivo para a
experimentação. Quando viajamos até sociedades em rápida modernização
na Ásia e noutros sítios, encontramos mecanismos e estruturas semelhantes,
mas nunca são exatamente os mesmos e o conteúdo que produzem é
também diferente daquilo que as modernas sociedades europeias
produziram no passado.
Em conclusão, a distinção entre a Europa e a Ásia baseava-se em algo
que não era mais sólido do que o facto de, durante um certo número de
séculos, a Europa ser moderna, ao passo que a Ásia se mantinha tradicional.
A distinção não era verdadeiramente acerca da Europa e da Ásia, mas
acerca de dois tipos de sociedade ou, melhor ainda, dois conceitos de
tempo. Com a rápida adoção da modernidade fora da Europa, a distinção
estava destinada a desaparecer.

O regresso da Eurásia
Existe um número de razões para que a abordagem dicotómica à
História e à política eurasiáticas já não faça sentido, mas todas as suas
origens poderão ser encontradas na rápida modernização de países como o
Japão, a Coreia do Sul e a China. Se as duas primeiras ainda podiam ser
vistas como exceções históricas, ou mesmo como testas de ferro americanas
na Ásia, a transformação da China durante as últimas três décadas implodiu
a base tradicional para uma distinção civilizacional e trouxe os dois
continentes para o mesmo plano de existência. Sob alguns aspetos, isto
poderia ser visto como um regresso a tempos mais antigos, antes de a
ascensão da sociedade moderna na Europa ter criado uma separação entre
dois mundos inteiramente diferentes.
A crise da velha dicotomia está agora a ser projetada retroativamente, à
medida que os historiadores compreendem que a distinção que se desfez
talvez não fosse logo à partida assim tão forte ou válida. A História
japonesa revisionista vê no período Tokugawa – a sociedade feudal e
hierárquica que precedeu a modernização – menos uma era de atraso e
inércia do que um terreno fértil para a acumulação de capital e de progresso
tecnológico. Na China, uma nova História defende que o Estado imperial
não reprimia o comércio, as elites literárias participavam em
empreendimentos conjuntos com os mercadores e a produtividade agrária
subiu em regiões avançadas, enquanto a inovação tecnológica prosseguia ao
longo do século XVIII. Esta nova corrente está empenhada em investigar
semelhanças entre a Ásia e a Europa antes de especificar mais graus
matizados de contraste, mas esta correção – uma vez que aceita os
princípios usados para definir a modernidade europeia – desloca meramente
o Japão e a China de um lado para o outro.
Historiadores como Victor Lieberman vão mais longe. Ele propõe que
se utilizem padrões descritivos mais neutros e alargados, como o padrão
entre os séculos XV e XIX, pelo qual sociedades localizadas se fundiram em
unidades maiores, um processo que não se restringiu à Europa e que poderá
mesmo ter encontrado a sua máxima expressão noutras paragens. Assim, na
Europa Ocidental, 500 ou 600 unidades políticas mais ou menos
independentes estavam reduzidas a cerca de 25 no final do século XIX, ao
passo que no Sudeste Asiático continental cerca de 25 Estados
independentes estavam reduzidos a apenas três em 1825: Birmânia, Sião e
Vietname. Desta perspetiva, o desenvolvimento europeu parece uma
variante de padrões eurasiáticos mais gerais22.
O surgimento de um espaço eurasiático está intimamente ligado ao
aumento do conhecimento e da compreensão da História, que nos forçou a
substituir uma visão do mundo como estando dividido entre diferentes
povos e terras por uma visão diferente, em que um sistema mais geral
determina as suas relações. A forma mais promissora é o foco nas relações e
influências mútuas e não no conteúdo cultural partilhado. Halford
Mackinder teve uma vigorosa intuição quando compreendeu que a Europa é
uma ideia a que se chegou e se definiu em contraposição à Ásia.
Escrevendo em 1904, citava aqueles desabridos colonialistas que defendiam
publicamente que a única História que importava era a História europeia,
porque era aí que encontrávamos as nações que se tinham tornado
dominantes em todo o mundo. Ele expressa o seu desacordo não em termos
morais, mas observando que qualquer sentido de identidade coletiva
europeia tem de ser originada sob a pressão da força exterior. Existe um
relato literário de uma História que se foca na cultura e nas ideias e depois
há um relato de forças mais elementares, cuja pressão estimula os esforços
com os quais se alimentam a cultura e as ideias. «Peço-vos», escreve, «que
olheis por um momento para a Europa e para a História europeia como
subordinadas à Ásia e à História asiática, pois a civilização europeia é, num
sentido muito real, o produto da luta secular contra a invasão asiática»23.
Do século V ao XV, a Europa esteve constantemente exposta a uma sucessão
de invasores nómadas vindos dos recessos da Ásia, cavalgando através dos
espaços abertos do Sul da Rússia e penetrando a península europeia do
supercontinente, que se ia lentamente moldando pela necessidade de se lhes
opor. Mais tarde, a era dos Descobrimentos poderia ser vista como uma
tentativa de libertação dessa precária posição, encarcerada entre o mar
ocidental e as estepes orientais, e mais tarde para conquistar o desconhecido
abismo de onde o caos sempre emergira. Isto, em pinceladas muito vagas,
poderia ser uma história do projeto europeu, uma descrição excessivamente
grandiosa, mas de qualquer caso um quadro em cores vivas das ligações
entre a Europa e a Ásia, mais fundamental do que qualquer mito de
separação.
Marshall Hodgson observou em 1963 que, se desejássemos dividir a
Eurásia em duas partes, a divisão menos útil seria aquela em que a Europa
formasse uma parte e a Ásia a outra. Durante a maior parte da História
registada, a clivagem entre aquilo a que chamamos Europa e os seus
vizinhos mais próximos foi extraordinariamente ligeira. Mais óbvio é que o
pensamento grego se tornou um elemento integral da tradição do Médio
Oriente, ao passo que a religião do Médio Oriente – o cristianismo –
ocupou o lugar central da vida europeia. A linha de separação mais clara era
entre a China e o resto da Eurásia, mas, mesmo neste caso, a divisão acaba
por se quebrar, sendo o melhor exemplo de continuidade a expansão do
budismo desde as suas origens na Índia até à China e no seu percurso até ao
Japão. Hodgson conclui: «Todas as regiões formavam em conjunto um
único grande complexo histórico de desenvolvimentos culturais.24» A
Eurásia não era meramente um enquadramento para empréstimos e
influências entre unidades independentes, era em si própria uma unidade
genuína.
Não seria particularmente surpreendente se, tal como aconteceu antes
com a ideia de Europa, acabássemos por projetar a nova ideia de um
supercontinente asiático no passado histórico, descobrindo que, afinal de
contas, sempre existira.
2

INTEGRAÇÃO COMPETITIVA

A terceira via

A
refe Arad é uma artista de Teerão. Constrói corpos cosendo diferentes
pedaços de pano uns aos outros e, se o resultado evoca tipos de
criaturas alienígenas e monstros de tamanho humano, isso é completamente
de propósito. Disse-me que quer criar monstros, modelos em tecido
próximos das personagens míticas, sem qualquer identidade ou
individualidade. Conheci-a na Galeria Etemad, em Teerão Norte, enquanto
passava algumas semanas na cidade, sobretudo entre artistas
contemporâneos e donos de galerias. As suas esculturas são flexíveis,
viscosas, cosidas formando silhuetas disformes, um reflexo – disse-me ela –
da vida quotidiana das mulheres iranianas. Parando na Praça Tajrish,
compreendi de imediato o que Arefe queria dizer. Uma jovem subia as
escadas para a travessia superior destinada aos peões com um lenço negro
que lhe cobria o cabelo por completo – poucas mulheres em Teerão Norte
mostram preferência pelo hijab «apropriado» – mas combinava-o com umas
botas cor de rosa de salto agulha, que lhe chegavam ao joelho. A praça
inteira virou a cabeça para a ver passar.
Estes não são criativos híbridos culturais, mas quimeras distorcidas. As
autoridades pretendem um sinal de sujeição e é por isso que todas as
mulheres no Irão devem envergar o seu lenço na cabeça, onde quer que
seja, como proclamação pública de que as suas escolhas são, no fim,
desprovidas de valor. Para algumas, a humilhação é poderosa e deliberada.
Ao mesmo tempo, respondem borratando de todas as formas que podem os
devaneios quase estéticos que os clérigos desenvolveram para o Irão. O
resultado não é criativo, mas destrutivo, tal como as festas em Teerão Norte
são menos celebrações festivas do que afirmações distorcidas de vontade
contra uma força opressiva.
Quando a arte contemporânea chegou a Teerão nos anos finais do
regime do xá, constituiu uma abertura para os valores e os gostos
ocidentais. De acordo com o fundador e diretor inaugural do Museu de Arte
Contemporânea de Teerão em 1979, dado que o Irão já importava a
tecnologia e a ciência ocidentais, deveria também importar arte ocidental.
Esse projeto de imitação falhou quando o xá foi deposto e ninguém no Irão
o quer repetir. A cena artística representa ainda a ânsia de libertação das
convenções – de se tornar moderna – mas hoje é uma força muito mais
primordial e destrutiva, porque não restou um modelo para ser seguido.
Tornar-se moderno já não equivale a tornar-se ocidental. Ao falar com
jovens artistas iranianos, aprendi uma importante lição. Embora se
rebelassem contra os espaços confinados da vida em Teerão, insistiam
também em que não queriam seguir a mesma via dos europeus ou
americanos. A arte contemporânea ensinara-lhes que há sempre uma
maneira de ver diferente. A arte deve prever outras imagens, outros mundos.
A modernidade ocidental é para eles apenas uma outra forma de tradição
que deverá ser desenraizada e ultrapassada.
Quando hoje se discute política, regressa-se frequentemente a um de
dois modelos. O primeiro, popularizado por Francis Fukuyama, vê o mundo
inteiro a convergir para um padrão político europeu ou ocidental, a partir do
que deixa de ser possível um posterior desenvolvimento histórico. Cada
país ou região é avaliado segundo o tempo que demorará a atingir esse
destino final, mas todas as dúvidas e discussões acerca de para onde nos
dirigimos foram fundamentalmente resolvidas. O outro modelo, defendido
por Samuel Huntington, é cético em relação a um movimento irreversível
como esse. O mundo que retrata é o de um choque entre diferentes
civilizações que têm pouco ou nada em comum, em particular dado que a
cultura política ocidental se manterá geograficamente limitada. Este livro
adota uma terceira perspetiva. Concordo com Fukuyama em que o mundo
inteiro se encaminha para uma sociedade moderna, mas existem inúmeras
vias e, naturalmente, diferentes visões daquilo que será uma sociedade
moderna.
Hoje em dia, o mundo inteiro é moderno, mas existem diferentes
modelos de sociedade moderna. A partir desse facto, os termos essenciais da
nova ordem mundial seguem-se de forma mais ou menos direta. A distinção
nítida entre o moderno e o tradicional quebrou-se, dando lugar a um mundo
profundamente integrado, mas o seu traço mais distintivo é a incessante
competição entre diferentes ideias sobre como as redes mundiais deverão
ser organizadas.

No capítulo anterior olhámos para a lógica e para a história da separação


entre a Europa e a Ásia. Essa separação está profundamente fundida com a
História moderna e subordina-se aos seus ritmos. Durante longos períodos,
simplesmente não existiu e, mesmo quando descobrimos algo que se lhe
assemelha no seu passado, é muitas vezes sob a forma de uma projeção
retrospetiva. Mas raramente os académicos ou os políticos formulam as
questões que poriam em causa muitos dos seus pressupostos e ações. Qual é
a diferença entre a Europa e a Ásia? E onde termina uma e começa a outra?
A partir do momento em que o Japão e a China, seguidos pela maior
parte do Extremo Oriente e da Ásia do Sul, adotaram apaixonadamente a
tecnologia moderna e o capitalismo, a distinção tornou-se difícil ou
impossível de ser feita. É evidente que não se trata já de a Europa abraçar a
novidade e a Ásia permanecer enraizada na tradição. O que se passa agora é
na maior parte das vezes o contrário. Nem ninguém teria grande sucesso se
tentasse fundamentar qualquer distinção viável para tais questões na família
alargada ou na moralidade sexual.
Neste capítulo viramo-nos para o presente: o momento em que a
Eurásia, o supercontinente, entra na fase histó­rica. À medida que as
diferentes civilizações adotam ideias e sensibilidades modernas, não ficam
com um único conjunto de regras, mas com projetos conflituantes, existindo
no mesmo plano. Igualmente modernos mas contudo diferentes – múltiplas
modernidades. Já não somos ingénuos ao ponto de pensarmos que um
conjunto de regras e de instituições possa ser de facto neutro e universal.
Vivemos numa nova era de perturbação, de perspetivas profundamente
contraditórias e conflituantes sobre a ordem mundial. Em nenhum sítio isso
é tão evidente como na Eurásia.

Um choque de visões
Se fosse preciso escolher um momento em que essa perturbação se tornou
evidente para todos, a Cimeira da Associação Oriental, de Vilnius, em
novembro de 2013, sobressairia. Durante 10 anos, a União Europeia
procurara estabelecer contacto com os seus vizinhos do Sul e do Leste,
partindo do princípio de que as suas regras e instituições teriam alguma
força e validade mesmo fora das fronteiras da UE. O método consistia em
definir um conjunto de prioridades, incorporadas em planos de ação
detalhados, cuja aplicação seria recompensada com dinheiro, acesso a
mercados ou facilitação de deslocações para os cidadãos. Nalguns casos
foram negociados ambiciosos acordos políticos e contratos de livre
comércio com os países interessados. A Ucrânia, dada a sua dimensão e
importância geopolítica, era o maior prémio de todos. O acordo a ser
assinado em Vilnius nesse novembro traria o Estado pós-soviético
definitivamente para o interior da órbita europeia. Até que, apenas uma
semana antes da cimeira, tudo desabou.
Na noite de 28 de novembro, o jantar oficial entre os chefes de Estado e
de Governo foi adiado por duas horas enquanto o presidente da Comissão,
José Manuel Barroso, e o presidente do Conselho Europeu, Herman Van
Rompuy, faziam uma última tentativa para convencer o Presidente
ucraniano, Viktor Yanukovych, a mudar de opinião e assinar o acordo de
associação com a União Europeia. Os líderes aguardaram pacientemente,
bebericando vinho georgiano, ele próprio um símbolo do que estava em
jogo – a luta pelas fronteiras orientais. David Cameron acabara de publicar
um artigo de opinião sublinhando as suas perspetivas sobre a imigração e o
Presidente Traian Băsescu, da Roménia, confrontou-o em relação a isso. O
primeiro-ministro húngaro, Viktor Orbán, conversava com alguns dos seus
colegas da Europa Central, dizendo piadas que seriam consideradas de
muito mau gosto a alguns metros de distância, onde Mark Rutte da Holanda
conversava com os três primeiros-ministros escandinavos. São estas as
eternas divisões no coração da União Europeia. Então, subitamente,
Barroso e Van Rompuy regressaram da sua reunião de mãos a abanar. O
Presidente Yanukovych anunciou: «Temos grandes dificuldades com
Moscovo. Durante três anos deixaram-me sozinho a enfrentar a Rússia.
Grandes dificuldades.» Ao regressar a Kyiv nessa noite, o Presidente
ucraniano foi confrontado com os primeiros protestos de rua. Dois dias
mais tarde, uma grande multidão reuniu-se na Praça Maidan. O campeão
mundial de boxe – e uma proeminente figura da oposição – Vitali Klitschko
disse à multidão: «Roubaram o nosso sonho, o nosso sonho de vivermos
num país normal.» Passados menos de três meses, Yanukovych foi forçado
a fugir da Ucrânia e a Rússia iniciou uma longa e destruidora guerra com o
novo regime.
Como representante para a Europa do Governo português, fui envolvido
nos preparativos para a cimeira e pude mesmo representar o meu país na
reunião. Até hoje, continuo muitíssimo impressionado pela forma como a
importância histórica desse momento foi erradamente interpretada e
ignorada. Durante as reuniões preparatórias, era partilhada por todos a
opinião de que o Presidente ucraniano acabaria por aceder ao acordo,
trazendo a Ucrânia para mais perto da União Europeia; por isso, quando ele
ordenou subitamente a suspensão dos preparativos da sua assinatura, muitos
continuaram a acreditar tratar-se de um bluff de final de negociação. Todos
os adiamentos e hesitações eram vistos como uma tática negocial para
extrair de Bruxelas a abordagem mais benéfica possível sobre as reformas
requeridas. A burocracia de Bruxelas tinha uma teoria do mundo muito
simples: os Estados são capturados por interesses específicos, mas poderão
corrigir-se se existir pressão vinda do exterior. E, se o fizerem, de certeza
que se tornarão prósperos.
Em retrospetiva, podemos ver agora como a situação teve um
significado histórico bastante diferente. Por um lado, representou um
empurrão da União Europeia para oriente, a qual estava agora a abrir as
suas asas para lá das próprias fronteiras da Europa. Por outro lado, esse
empurrão estava destinado a entrar em conflito com a Rússia – e a Rússia,
como todos deverão saber, estava também a abrir as suas asas e com muito
maior convicção.
Recuemos um pouco em relação a Vilnius para podermos compreender
melhor a razão pela qual aquilo que aconteceu nessa noite foi ao mesmo
tempo inevitável e surpreendente. A 9 de junho de 2009 foi anunciado em
Moscovo um acordo sobre o estabelecimento de uma união fronteiriça com
dois parceiros, o Cazaquistão e a Bielorrússia, que entraria em vigor a 1 de
janeiro de 2010. Representantes de topo da Rússia e da União Europeia
tinham acabado de se reunir alguns dias antes, mas durante essa reunião em
particular o lado russo não dera quaisquer indicações de que em breve iria
tomar decisões que mudariam fundamentalmente a natureza das relações
bilaterais e regionais. De súbito a Ucrânia, como outros países na região,
era confrontada com uma escolha impossível. A clara expectativa da Rússia
de que se deveria juntar ao projeto económico excluiria o desenvolvimento
de acordos de livre comércio paralelos com Bruxelas; a União Aduaneira, e
não cada um dos países, assinaria todos os futuros acordos comerciais. A
Ucrânia teria de abandonar o processo de negociações já bastante avançado,
iniciado em 2007, para um ambicioso acordo de associação económica,
como preço de poder juntar-se à União Aduaneira que, como a UE não
hesitaria em apontar, fora estabelecida dois anos mais tarde.
Em várias reuniões ministeriais sobre comércio da UE, em 2013,
tivéramos de concordar numa resposta apropriada às medidas impostas pela
Rússia à Ucrânia e à Moldávia como forma de pressionar estes países a
abandonarem as suas negociações com Bruxelas. As suas exportações para
a Rússia estavam a ser embargadas ou retidas na fronteira, com grande
prejuízo económico interno. A UE respondeu tentando recompensá-las com
um acesso mais rápido aos mercados europeus, mas isto obviamente não
aconteceria com rapidez suficiente para poder compensar o prejuízo
económico imediato. Para dar um exemplo, nas minhas visitas à Moldávia
nessa altura, foi-me explicado que as exportações de fruta para a Europa
não acompanhariam o anunciado aumento de quotas, por não existirem os
necessários dispositivos de congelação e embalamento. Além disso, as
medidas adotadas por Moscovo não faziam parte de um jogo económico,
mas de uma escalada muito mais grave, que apenas admitia o triunfo ou a
derrota. Isto não era compreendido por mais do que um ou dois ministros
nessas reuniões.
Como a União Europeia, o Presidente Putin também vê o mundo de
acordo com duas ou três noções muito simples, mas que são quase o oposto
exato daquilo em que os europeus acreditam. Primeiro, a liderança russa
não acredita em regras neutras e universais. A neutralidade, na sua
perspetiva, é apenas uma falsidade destinada a enganar os outros. O poder é
sempre pessoal, mas poderá ser conveniente esconder o poder por detrás de
regras e instituições supostamente neutras. Talvez os russos estejam numa
posição única para enxergar através das ilusões mais ofuscantes da
globalização devido à sua experiência com a utopia soviética. Muito bem,
dirão eles, a troca de bens, conhecimento e cultura é no seu todo muito boa,
mas não há necessidade de assumir que atingimos por isso a «fraternidade
humana universal». Os benefícios da globalização estão desigualmente
distribuídos porque as regras são feitas por aqueles que têm o poder para as
fazer. Em resultado disso, Putin acredita que o mundo da política
internacional é uma arena de rivalidade e competição permanentes. O seu
por vezes ideólogo Vladislav Surkov surgiu com uma esclarecedora
analogia: a soberania é o equivalente político da competitividade
económica. Se levarmos esta analogia à sua conclusão lógica, acabamos
com algo muito próximo daquela que é a visão da ordem mundial hoje
prevalecente em Moscovo: um mundo onde os Estados competem pela sua
quota de soberania de forma muito parecida com as empresas que
competem pela sua quota de mercado na economia global. A soberania, no
nosso tempo, já não se expressa pela imagem da fortaleza inexpugnável. É
aberta ao mundo, tem vontade de participar em todas as trocas globais com
um espírito aberto, mas não exatamente um coração aberto – pelo contrário,
segundo a frase de Surkov, numa «luta aberta1».
Finalmente – e talvez sobretudo – Putin não pensa segundo linhas
nacionais. Pensa em termos de blocos maiores e, em última análise, em
termos de ordem mundial. Talvez seja este o elemento em que as suas
opiniões mais mudaram com o tempo, chegando lentamente à conclusão de
que, se a Rússia quiser preservar a sua ordem política, então essa ordem tem
de adquirir algum tipo de projeção global. Não se pode resistir às pressões
que vêm da ordem mundial. Portanto, ou a ordem mundial espelha alguns
elementos do contemporâneo regime russo, ou a Rússia espelhará a ordem
política liberal e ocidental.
Já em 2005 – um ano depois de a União Europeia lançar a Política de
Vizinhança que acabaria por culminar na Cimeira de Vilnius – Putin
descrevera o desaparecimento da União Soviética como um «determinante
desastre geopolítico». Nem a liderança russa nem as elites russas estavam
dispostas a aceitar a imagem de uma antiga superpotência reduzida a um
papel regional. Mais importante, essa dramática redução de estatuto era
vista em Moscovo como estando diretamente ligada a uma crescente
ambição ocidental, que era entendida como incluindo a tentativa de alterar a
ordem interna de regimes não-amigos através da força ou de revoluções
cuidadosamente geridas. O Kremlin chegou assim à conclusão de que seria
necessária uma abordagem igualmente musculada para pôr fim ao
expansionismo ocidental e projetar o poderio russo a uma escala global2.
Vilnius foi o momento em que essas duas visões do mundo colidiram.
Em termos práticos, nem a Rússia nem a Europa se poderão dar ao luxo de
não pensar em termos da futura organização política de todo o espaço
eurasiático. Ambas deverão estar agora plenamente conscientes da extensão
da interdependência que molda este espaço comum. A globalização é um
processo que começa por baixo, do choque entre diferentes blocos, e não a
partir de um conjunto de regras universais. Livres e soberanos, competem e
cooperam para criar essas regras. Chamo a isto integração competitiva. Mas
também aqui existe uma diferença radical: enquanto Bruxelas vê a
interdependência como um estímulo para criar instituições comuns para a
gerirem, Moscovo vê-a como um conjunto de vulnerabilidades de que é
preciso tirar proveito. Veremos mais tarde como Putin está interessado em
militarizar os canais, redes e nós de interdependência.
Também nos primeiros anos do novo século, como se fosse para coroar
uma total mudança de paradigma, a China passava de um destino quase
exclusivamente de investimento estrangeiro direto para uma fonte
rapidamente crescente de investimento externo, um processo que atinge
agora o seu ponto culminante e que levanta muitas questões acerca do
derradeiro carácter do capital chinês. Estas preocupações incluem o medo
de ceder o controlo sobre tecnologias estratégicas, a luta pelo acesso aos
recursos naturais e a possibilidade de o poder económico chinês se poder
traduzir em influência política, como pode ser evidenciado por múltiplos
exemplos. Depois de o Presidente Nicolas Sarkozy se ter encontrado com o
Dalai-Lama em dezembro de 2008, Beijing reagiu com dureza. Duas
delegações comerciais chinesas riscaram rapidamente a França das suas
agendas e o primeiro-ministro Wen Jiabao observou em público antes de um
périplo pela Europa: «Olhei para um mapa da Europa no avião. A minha
viagem contorna a França. Todos sabemos porquê.» Foi necessária uma
declaração francesa a reconhecer que o Tibete era parte integrante da China
para que uma nova delegação comercial chinesa aterrasse em Paris3.
A estratégia chinesa de usar o poder económico para alcançar objetivos
políticos externos tem algumas vantagens. Primeiro, a China está tão
dependente da sua integração na economia mundial que toda a fonte de
perturbação tem de ser minimizada. Um uso do poder estatal mais direto e
vigoroso acarretaria enormes riscos de perturbação, ou talvez mesmo de
corte, dos laços externos que suportam o crescimento e a estabilidade
chineses. O poder económico, em contrapartida, está incorporado na
economia mundial e fornece às autoridades chinesas um grau muito elevado
de ambiguidade e negação. Segundo, a diplomacia económica é algo para
que a China está particularmente capacitada. Por um lado, a dimensão do
mercado chinês dá-lhe um imenso peso. Por outro, o controlo estatal sobre
os agentes económicos permite ao Estado chinês comandar o sector privado
ao serviço dos seus próprios objetivos estratégicos4. Como veremos na
secção seguinte, a União Europeia não tem essa capacidade e, por isso, a
sua diplomacia económica tem de funcionar de formas ainda mais subtis.

Imperialismo regulador
Ouvimos falar muito da distinção entre poder «duro» e poder «suave» e, em
geral, o primeiro é identificado com o uso da força militar; mas algumas
formas de poder são unilaterais, mesmo que não tenham nada que ver com
força militar. Merecem provavelmente fazer parte daquilo a que
chamaríamos poder «duro», porque não dependem da disponibilidade do
outro lado para alinhar no jogo. Quando se trata das regras a serem
aplicadas numa dada jurisdição, ou jurisdições, é obviamente possível que
os Estados influenciem aquilo que os outros fazem através de um acordo ou
de um tratado internacional em que os seus respetivos interesses sejam
objeto de negociação e debate. Essa é uma forma. Depois temos a forma
como a União Europeia exerce o poder, que é completamente independente
daquilo que a outra parte pretende fazer e, o que é mais intrigante, é de
igual forma independente de algo que se pareça com um plano europeu
consciente.
A erudita jurista Anu Bradford descreve o processo nos termos que se
seguem5. Tudo começa pelo facto indiscutível de a UE possuir o maior
mercado interno do mundo, sujeito a padrões estritos. Se uma empresa
estrangeira quiser fazer negócios aí, então precisará de adaptar a sua
conduta ou processos de produção a esses padrões, determinados pelas
regras e regu­lamentos europeus e aplicados pelas instituições reguladoras
europeias. A única alternativa é renunciar ao mercado único da UE no seu
conjunto. Quase todas as empresas estrangeiras de relevo terão muita
relutância em fazê-lo.
O que acontece a seguir será provavelmente fácil de adivinhar.
Obviamente, a UE regula apenas o seu próprio mercado interno, mas quase
sempre as maiores empresas preferirão padronizar os seus processos de
produção, em vez de terem diferentes processos para diferentes jurisdições.
Isto poderá dever-se à economia de escala associada a um único processo de
produção global ou, em muitos casos, à indivisibilidade legal ou técnica das
suas operações: uma fusão global entre duas empresas, por exemplo, é
válida para todas as jurisdições, o que significa que a jurisdição antitrust
mais limitativa, frequentemente a da União Europeia, será aquela que
determina o destino da transação em qualquer lado. Uma vez que os
padrões europeus são quase sempre os mais estritos, a padronização
significará seguir as regras e regulamentos da UE. Neste ponto, essas regras
são já as regras de facto para essas empresas estrangeiras, mas o que
acontece a seguir não deverá ser menosprezado. Essas empresas encontrar-
se-ão numa situação de desvantagem nos seus mercados internos em
comparação com aquelas que não operem na União Europeia e que,
portanto, não estejam sujeitas aos seus padrões, tendo assim um incentivo
para pressionar os seus Governos para que adotem estes mesmos padrões e
criem um campo competitivo nivelado. Neste ponto, as leis e
regulamentações europeias foram sub-repticiamente inseridas numa
jurisdição estrangeira. É tudo muito inteligente, talvez demasiado
inteligente.
O poder regulador europeu funciona através do Atlântico, claro, mas,
devido a um certo número de razões, o que ocorre nesta ligação não é muito
relevante em termos políticos, apesar de exércitos de advogados estarem
constantemente ocupados com os seus efeitos. A paisagem regulatória é,
sob alguns aspetos bem marcados, muito semelhante e será ainda mais
aproximada, se puder ser negociado um acordo de comércio transatlântico
com os Estados Unidos, focado na coerência regulatória. Nalguns casos, os
padrões são na realidade mais estritos nos Estados Unidos e no Canadá e,
nesse caso, o poder regulador será sentido na Europa. Noutros casos, as
empresas americanas poderão limitar-se ao seu próprio mercado interno,
muito grande, sem se preocuparem com regras e padrões estrangeiros.
Só quando olhamos para a China, a Rússia e a Índia é que percebemos
tudo o que está em jogo. Temos aqui três grandes economias ligadas à
Europa através de laços cada vez mais fortes. Através desse espaço, a
especialização é uma força poderosa: a União Europeia é um enorme
mercado de consumo com uma elevada proporção de consumidores
abastados, o que faz dela um destino de eleição para os exportadores nas
economias asiáticas de rápido crescimento. Além disso, as diferenças nas
regras e nos padrões tendem a ser muito consideráveis e as questões
políticas sobre quais deverão ser as regras a adotar dificilmente poderão ser
evitadas. O mecanismo atrás descrito é assim um poderoso incentivo para
que países como a China adotem grande parte da legislação exigida para
entrar no mercado da UE, oferecendo aos cidadãos e aos decisores políticos
europeus a promessa de que todo o supercontinente poderá, com o tempo,
vir a parecer-se com a União Europeia em aspetos fundamentais.
Depois de a UE ter incluído a aviação no seu esquema de trocas de
emissões, todas as companhias aéreas têm de comprar autorizações de
emissões para os voos que descolem ou aterrem em aeroportos europeus. Se
uma companhia estrangeira se recusar, poderá ser multada e mesmo banida
do espaço aéreo europeu. A única forma de evitar a compra de autorizações
é essas companhias aéreas estarem sujeitas a «medidas equivalentes» na sua
jurisdição doméstica. Em resultado disso, os governos estrangeiros,
preocupados com a competitividade das suas companhias aéreas, têm um
poderoso incentivo para alterar as suas políticas energéticas e ambientais. A
China começou a desenvolver estritos mecanismos de redução de emissões
e pediu à União Europeia que considerasse a sua equivalência. O sistema de
trocas de emissão de carbono para a aviação conheceu inicialmente uma
forte oposição das autoridades chinesas, que congelaram as encomendas de
aeronaves Airbus em retaliação, mas o Presidente Xi Jinping, vendo-se num
beco sem saída, depressa desbloqueou as ordens durante uma visita ao seu
homólogo francês.
Esta história recorda outro episódio das chamadas «guerras da aviação»,
quando as transportadoras aéreas russas, mal informadas ou enganadas
pelas suas próprias autoridades reguladoras, falharam na utilização do
período de adaptação de 10 anos para que as suas frotas estivessem prontas
para uma diretiva da UE que introduzia novas exigências quanto ao ruído
produzido pelos aviões. Quando o prazo-limite expirou, a indústria
aeronáutica russa encontrou-se numa situação desesperada, ameaçada pela
expulsão de um mercado essencial para a sua sobrevivência e forçada a
negociar um período de transição extra, a partir de uma posição de completa
debilidade. Tudo isso ocorreu apenas um par de anos depois de o Presidente
Putin ascender ao poder e diz-se que foi um duro despertar para ele, o
momento em que percebeu que a Rússia corria o perigo de se tornar uma
dependência europeia. De repente, o mercado único europeu parecia aos
russos ser menos um enorme prémio e mais um mecanismo cego que
ameaçava tudo o que fosse russo, invadindo lentamente todos os elementos
da vida russa e reconfigurando-a à sua imagem6.
Mais recentemente, a expansão reguladora europeia tornou-se uma
delicada questão política no contexto do rápido desenvolvimento do sector
indiano do processamento de dados. Os consumidores na Europa esperam
naturalmente que os dados enviados para a Índia para operações de back-
office estejam tão seguros como na sua própria jurisdição. Se as empresas
indianas quiserem ter acesso a esses consumidores estrangeiros, a regulação
na Índia terá de oferecer níveis de proteção e privacidade que se conformem
aos padrões europeus. Neste caso, o objetivo final de alinhar jurisdições
estrangeiras é tornado perfeitamente explícito: a diretiva relevante
determina que uma transferência de dados pessoais para um país terceiro,
ou uma organização internacional, poderá ocorrer desde que a Comissão
Europeia tenha decidido que o país terceiro, ou a organização internacional
em causa, garante um nível adequado de proteção.
Esta é a teoria. O tempo e os processos normais da História resolveriam
o conflito entre normas diferentes. Construir uma ordem liberal a nível
mundial será apenas uma questão de deixar que esses processos funcionem
por si mesmos. Desde que, evidentemente, ocorram no ambiente externo
apropriado. Se a teoria tem uma falha é a de assumir que o resultado será
alcançado dentro das condições necessárias para a sua realização. As
normas liberais vencerão toda a competição, se operarem num ambiente
governado por normas liberais. Caso contrário, como veremos mais adiante
neste livro, o resultado será tudo menos predeterminado.

Um país que não existe


Se quiserem ver como é a luta entre diferentes modelos políticos, tentem a
região dissidente da Transnístria, uma estreita faixa da Moldávia, situada
entre o rio Dniestre e a fronteira com a Ucrânia. Assim que se atravessa o
rio, começa a grande peça teatral. Em vosso redor, os homens e as mulheres
realizam as suas tarefas diárias, sorrindo misteriosamente, como se
conhecessem o segredo de que o poder é uma invenção e que a melhor
opção é desempenharmos o nosso papel com suficiente ironia e genuíno
divertimento. Uma mulher no nightclub Vintage sussurra-me ao ouvido:
«Isto é a Transnístria. Não acredites em nada do que ouvires.»
O país da Transnístria não é reconhecido por ninguém, nem mesmo pela
Rússia, mas funciona com completa autonomia e é capaz de financiar os
serviços públicos, embora com um desproporcionado apoio de Moscovo.
Emite a sua própria moeda, organiza sufrágios eleitorais e paga a sua
própria polícia, serviços de segurança e forças armadas. As estruturas
governamentais e os interesses empresariais entendem-se tão bem que o
novo Presidente é transparentemente anunciado como o candidato da
empresa monopolista Sheriff, ela própria criada por antigos membros da
polícia e da segurança. Tem postos fronteiriços tanto do lado moldavo como
ucraniano, onde os cartões de imigração são rápida e eficientemente
produzidos. Na altura da minha visita, em dezembro de 2016, a moeda local
já não podia ser convertida, reforçando a sensação de que as pessoas vivem
ali no seu próprio mundo. Algumas das moedas são feitas de plástico e
apresentam as efígies de Catarina, a Grande, do conde Pyotr Rumyantsev e
de Aleksandr Suvorov – todos grandes heróis da expansão imperial russa do
século XVIII. O que torna esta experiência surreal possível são os soldados
russos – cerca de dois mil – que permaneceram após um cessar-fogo ter
posto fim ao violento conflito entre a recém-independente Moldávia e a
região separatista. Durante 25 anos nada mudou e a Rússia continua a usar a
região como um brinquedo geopolítico. A sua eventual anexação por
Moscovo criaria um segundo enclave ao longo do istmo eurasiático que se
juntaria a Kalininegrado no norte.
Se atravessar a ponte ferroviária sobre o Dniestre a caminho da capital,
Tiraspol, reparará nas bandeiras da Rússia e da Transnístria pintadas na
grade protetora metálica. As tropas russas estão estacionadas ali perto, nas
encostas da velha fortaleza de Bender, construída pelo sultão otomano
Solimão, o Magnífico, depois de este ter conquistado a cidade em 1538 e a
ter transformado numa praça-forte na fronteira com a cristandade. Mais
tarde, depois de anexada pelo Império Russo, manteve-se na fronteira entre
a Rússia e o Império Otomano. Quando perguntei ao Prof. Nikolay
Babilunga, na Faculdade de Ciências Sociais da Universidade Estatal
Pridnestrovian se a antiga presença turca poderia ser um dos elementos
constitutivos da identidade da Transnístria, ele cofiou a barba por um
momento. No passado, afirmara que elementos das nações românicas,
eslavas orientais e turcas se tinham misturado na Transnístria, mas agora
sente-se atraído por uma história diferente, argumentando que o Dniestre
era – antes de Solimão – a fronteira entre a Europa e as estepes, um espaço
geográfico contínuo desde ali até à fronteira chinesa.
O Prof. Babilunga é um homem atarefado. A sua missão de toda uma
vida é desenvolver o conceito da identidade da Transnístria para
fundamentar as aspirações ou de independência ou de anexação pela Rússia
(alguma oscilação entre as duas ajuda a explicar a razão pela qual as
histórias sobre o passado por vezes mudam). É ele o autor dos manuais
escolares profusamente ilustrados que formam o núcleo do currículo da
escola secundária da Transnístria e alguns dos jovens que conheço nos cafés
locais dizem-me que foi por ali que aprenderam História. De cada vez que
pergunto o nome de uma figura histórica representada numa estátua ou
numa pintura presente nos edifícios da cidade, a resposta surge rapidamente
e com plena segurança, algo que faria com que Babilunga ficasse
orgulhoso. Durante o nosso encontro, observa que as pessoas na
Transnístria se sentem como cossacos, guardas fronteiriços tão afastados do
centro que poderão ser tentados a inventar a sua própria realidade. «O poeta
Batyushkov veio cá no século XIX e disse que nós éramos as pessoas mais
exuberantes (Буйный народ) que alguma vez vira.» A principal questão é
sempre política e não étnica. Eu esperara encontrar no modesto edifício da
universidade um repositório de velhas lendas e mitos ao serviço da criação
de um novo país e identidade, mas os mitos não sobrevivem sem o poder. O
Prof. Babilunga é obcecado com a política e, acima de tudo, com a questão
de quem tem o poder para organizar a realidade social e criar poderosos
mitos políticos. Na Transnístria, o centro do poder político é a Rússia: «O
mundo russo é governado por Moscovo.»
A forma como o mundo vos surge depende do sítio onde estiverem. Até
o nome desta pretensa república segue essa lógica. Para os europeus esta
terra fica para lá do rio Dniestre, daí se chamar Transnístria; mas, para os
russos, é a terra que fica logo antes de se chegar ao Dniestre, por isso
chamam-lhe Pridnestrovie, a partir do prefixo russo para «em direção a».
Na minha conversa com o autodenominado ministro dos Negócios
Estrangeiros, ficou claro que o problema da orientação não é apenas acerca
da língua, mas um problema prático e urgente. Vitaly Ignatiev, ministro dos
Negócios Estrangeiros da República Pridnestroviana, conta-me que aquele é
o local onde dois modelos diferentes se encontram e colidem: os das uniões
Europeia e Eurasiática. Ele acha que a Pridnestrovia poderá desempenhar o
papel de «tubo de ensaio». Se se juntar à União Eurasiática – o projeto
desenvolvido a partir da união aduaneira entre a Rússia, a Bielorrússia e o
Cazaquistão, atrás referida – e se se tornar um Estado com sucesso, poderá
ser capaz de retirar a Moldávia da órbita europeia. «Aquilo que temos»,
conta-me, «é um conflito de ideias, de modelos, e aquele que for mais
atraente será o vencedor. As pessoas aqui apoiam as ideias e o estilo de vida
russos. No final, as pessoas não se importam com coisas materiais. O que
importa é o modelo». Aqueles que tiverem a imaginação mais animada,
mais ativa, serão os vencedores.
De regresso a Chisinau, a capital da Moldávia, almocei numa sala
privada do Hotel Jolly Alon com Mircea Snegur, o primeiro Presidente da
República Moldava. Ele entrega-me um grosso volume das suas Memórias,
que dizem respeito aos cruciais dois primeiros anos após a independência,
incluindo o conflito militar na Transnístria e, instruindo-me cuidadosamente
sobre os objetivos finais que a Rússia tem para a região separatista. Snegur
vê-a como o espelho onde a alma russa surge em toda a verdade da sua
corrupção moral e política. A Transnístria é um local onde os dois lados do
regime russo contemporâneo são claramente visíveis: um sistema
oligárquico que depende da lavagem de dinheiro e umas forças armadas que
fazem planos permanentes para uma conflagração mais geral, durante a qual
a região ocupada poderá servir de guarda avançada. Snegur continua a
esperar por um futuro europeu para a Moldávia, mas a Europa não existe
num vácuo: é uma escolha contra uma tangível e perigosa alternativa.
«Nem a Grande Muralha da China», diz-me quando me preparo para sair,
«é tão alta e impenetrável como a muralha da mente russa».
Em 2003, Dmitry Kozak, um aliado próximo de Vladimir Putin,
apresentou uma proposta de Constituição para uma República Federal da
Moldávia que visava resolver a questão da Transnístria e, de facto,
garantindo o controlo russo sobre a política moldava. A nova federação
consistiria num território federal e em duas repúblicas federais: a
Transnístria e a Gagaúzia, uma região autónoma da Moldávia com uma
composição étnica distinta. Crucialmente, a proposta criava um vasto
número de competências partilhadas entre a federação e as repúblicas
federais. Todas as leis teriam de ser aprovadas numa câmara legislativa
mais elevada, ou Senado, onde a votação estaria desproporcionadamente
desequilibrada a favor da Transnístria e da Gagaúzia, que em conjunto
elegeriam metade do número total de senadores. A integração na União
Europeia poderia ser facilmente bloqueada pela Transnístria e, portanto, por
Moscovo.
O Presidente Voronin, da Moldávia, apoiou inicialmente a proposta, mas
os protestos generalizados em todo o país, especialmente em Chisinau,
combinados com a desaprovação aberta dos Estados Unidos e da União
Europeia, fizeram-no hesitar e acabar por mudar de opinião. Uma visita de
Putin à Moldávia estava programada para o final de dezembro e estava
entendido que a proposta de Kozak seria assinada nessa altura. A visita foi
cancelada. Um ponto particularmente bicudo era se a presença militar russa
permaneceria: isto não era negociável, nem para a Rússia nem para a
Transnístria, mas tal não parecia constituir uma resolução do problema para
a grande parte da opinião pública moldava. Na altura, Mircea Snegur
declarou publicamente que o sistema proposto para o Parlamento
bicamarário transformaria a Moldávia num Estado em desagregação.
A história do memorando de Kozak é particularmente relevante por
fornecer um exemplo daquilo que iria acontecer posteriormente no
permanente conflito ucraniano. Quando, em fevereiro de 2015, foi
alcançado um muito precário e limitado cessar-fogo, o texto final acordado
por ambas as partes falava de um futuro estatuto especial para as duas
repúblicas secessionistas da Ucrânia Oriental, onde os serviços secretos
russos e as tropas regulares têm mantido uma presença constante. O
undécimo ponto do protocolo de Minsk estipula que a Ucrânia deverá
promulgar uma lei que forneça um estatuto especial aos territórios
ocupados. A óbvia diferença entre as situações na Moldávia e na Ucrânia é
que o conflito nesta última continua a causar baixas semanais,
frequentemente diárias, e poderá tornar-se mais intenso, inclusive com
possíveis movimentações que atravessem a linha de conflito, com reduzido
ou nenhum aviso prévio. Nos meus anos no Governo observei o seguinte
padrão: surgia uma ameaça de que o cessar-fogo em breve poderia ser
quebrado, causando chamadas do Kremlin para Berlim, Paris e Bruxelas,
com a mensagem de que Kyiv deveria garantir autonomia política às
regiões ocupadas, ou enfrentar as consequências. Estas chamadas seriam
então relatadas ao Presidente ucraniano, com crescente pressão para que
cedesse às exigências.
Não é uma coincidência que as fronteiras entre a Europa e a Rússia se
assemelhem cada vez mais a áreas de escuridão e caos. São áreas que se
mantêm em equilíbrio entre dois conceitos de ordem política e manterem-se
genuinamente em equilíbrio implica que não incorporem nenhum desses
conceitos, permanecendo amorfas em termos políticos. Com certeza que a
Rússia vê a sua tarefa precisamente nestes termos e está a tentar criar uma
tela em branco como primeiro passo para os seus planos de redesenho. Não
há caminho entre um conceito de ordem política e outro diferente que não
passe antes por um estado de desordem.

As novas guerras
Desapareceram as certezas do passado, quando a rivalidade e o conflito se
baseavam numa clara distinção entre os estados de guerra e paz. O conflito
na nossa época começa com o facto da integração profunda. Os diferentes
lados estão tão profundamente ligados por laços políticos, económicos e
técnicos que não podem ser traçadas fronteiras claras e todos estão, de certa
forma, presentes no interior do campo inimigo e tentarão enfraquecer as
forças deste a partir do seu interior. A imagem do conflito já não é a dos
combatentes no campo de batalha, mas a de espécies competindo pelo
mesmo ecossistema, forças em luta que são ao mesmo tempo parte de um
único sistema. E as armas, tal como no caso das espécies concorrentes,
tendem a ser insidiosas: falsa sinalização, mimetismo, engano, veneno e o
velho favorito da seleção natural, que consiste em corroer a energia do
adversário acedendo diretamente aos seus fluxos vitais ou subvertendo o
seu sistema nervoso. Se os agentes fazem parte do mesmo sistema, se
partilham relações de dependência e influência mútuas, poderá ser muito
mais compensador manipular e debilitar os outros, levá-los a agir de certas
formas, do que confrontá-los abertamente em formas mais destrutivas de
conflito.
O papel dos meios não-militares para alcançar objetivos políticos e
estratégicos cresceu e, em muitos casos, ultrapassou na verdade o poder das
armas na sua eficácia. A maioria consiste em táticas antigas, já testadas, mas
a globalização económica e o desenvolvimento de profundas redes globais
confere-lhes uma maior relevância e eficácia. A utilização da informação
pode agora tirar partido da internet e abrir novas frentes de conflito, como
no caso dos ciberataques e da pirataria de sistemas informáticos para a
recolha e a disseminação de informação. Outras táticas não-militares
incluem a aquisição de infraestruturas noutros Estados, a corrupção ou a
chantagem de funcionários diplomáticos e a manipulação de fluxos de
energia ou dos seus preços, todos eles ampliados numa economia global
integrada. Num raro discurso em dezembro de 2016, o chefe do serviço de
espionagem britânico (MI6) relevou esse ponto fundamental, argumentando
que «a conetividade que está no âmago da globalização pode ser explorada
pelos Estados com intenções hostis para perseguirem os seus objetivos e
poderem negar isso. Fazem-no através de meios tão variados como
ciberataques, propaganda ou subversão do processo democrático».
Alguns meses antes, no pico da crise dos refugiados, o comandante da
OTAN na Europa, Philip Breedlove, fizera a extraordinária declaração de
que a Rússia estava a fomentar um êxodo em massa de refugiados da Síria
como arma contra a União Europeia. A Rússia estava a militarizar
deliberadamente a migração, numa tentativa para esmagar as estruturas
europeias, disse ele na reunião do Senado em Washington em março de
2016. A acusação circulara em privado durante quase um ano. O facto de
estar a ser tornada pública parecia assinalar uma profunda mudança na
forma como deveríamos pensar na segurança desde que a globalização
erodira as fronteiras estabelecidas entre Estados. Havia um número de
factos convergentes: a velocidade das comunicações que produzia um
incremento nos fluxos de refugiados, a cultura dos direitos humanos
universais promovida pela União Europeia e a capacidade que a Rússia
redescobrira para projetar o seu poderio militar no exterior. O nível
acrescido de interação num mundo globalizado tornava muito mais fácil e
mais eficaz tentar enfraquecer o opositor a partir do interior. Neste caso,
mesmo que esse objetivo fosse secundário, a Rússia podia usar o
bombardeamento em massa de áreas civis na Síria para aumentar os fluxos
de refugiados, revelando a divisão entre os países europeus e enfraquecendo
a liderança alemã. A questão, claro está, era tornar mais difícil aos europeus
resistirem à crescente expansão russa junto às fronteiras, em primeiro lugar
na Ucrânia. Os europeus tomaram subitamente consciência de que as crises
sistémicas que abalavam a União Europeia podiam ser fomentadas por
outros Estados. Habituados a pôr em contraste um modelo de Estados
separados envolvidos num conflito e outro em que desenvolvem profundas
formas de integração, percebemos agora que os dois modelos se estão a
fundir num só. A integração é inescapável, mas pode ocorrer de acordo com
diferentes padrões de interação. É essencialmente competitiva e tem de ser
adotada como tal.
Não é apenas a Europa que é colocada entre os dois extremos do
isolacionismo e do universalismo. Estes constituem tendências naturais e
aplicam-se da mesma forma à Rússia e à China. Afinal de contas, se se
torna impossível moldar o mundo à nossa imagem, poderemos contentar-
nos com uma esfera delimitada. Mas nenhuma das tendências pode ser
concretizada; ambas colidem com a realidade política. A noção de que o
mundo inteiro pode ser organizado segundo um único modelo parece agora
implausível até aos europeus, outrora convencidos da sua inevitabilidade.
Inversamente, fechar as fronteiras ao mundo exterior e perseguir um
modelo nacional em isolamento já não é atraente nem para a Rússia nem
para a China, que prosseguiram de forma metódica essa opção durante os
seus anos comunistas. É por isso que a Eurásia não é um termo geográfico
mas político, mostrando uma forma de sair do dilema. Oferece um
compromisso entre agente e estrutura. As duas metades da palavra apontam
para agentes diferentes, ao passo que a síntese das duas conjura o contexto
externo no qual deverão atuar, tentando continuamente moldar esse
enquadramento partilhado à sua própria imagem.
Quando a Rússia e a China desenvolveram os seus novos e gigantescos
projetos de integração, tinham um objetivo subjacente: mostrar aos
europeus que o seu projeto de integração com décadas de antiguidade era
um entre muitos, não beneficiando de quaisquer aspirações especiais à
universalidade. No entanto, se esse objetivo subjacente teve um sucesso
para além das mais otimistas expetativas foi porque a União Europeia
estava já, e em grande parte por sua própria iniciativa, a recuar dentro das
suas próprias fronteiras. A crise da Zona Euro é provavelmente um bom
indicador de tal recuo. Não só forçou os europeus a olhar para dentro e a
focar quase toda a sua atenção na reforma das regras e das instituições da
Zona Euro, como diminuiu grandemente o prestígio e o poder «suave» da
Europa, baseados como estavam numa imagem de prosperidade económica
e de coordenação e realização de políticas eficientes.
Tanto a Rússia como a China estão assim prontas para a próxima fase
dos seus planos. O objetivo já não é apenas remover as pretensões
universais da base do edifício europeu, mas usar essas pretensões na
edificação dos seus próprios projetos. Veja-se o caso da Rússia. Se falarem
com os decisores políticos de Moscovo, dir-vos-ão que é a Rússia, e não a
Europa, que sabe como funciona a política mundial. Os europeus vivem
num mundo imaginário só deles, os russos vivem no mundo real. Os
europeus são paroquiais, os russos respondem às regras mais ou menos
universais da política do poder.
Em Beijing, as pretensões à universalidade não são menos espantosas.
Foi-me dito por decisores políticos que a China quer devolver ao mundo
aquilo que recebeu durante as últimas três décadas e ouvi a académicos que
a China está a desenvolver ativamente valores que possam apelar a todos os
seres humanos: uma versão do desenvolvimento e do bem-estar que possa
ser facilmente compreendida e assimilada por todas as nações do Planeta de
uma forma que não acontece com a democracia, nem com os direitos
humanos.
Em princípio, a União Europeia vê-se a si mesma como um ator global
e, enquanto tal, particularmente pronto para lidar com os desafios da
globalização, em que o multilateralismo e a legitimidade das normas
internacionais se tornaram ferramentas dominantes da política externa.
Como representa o primeiro e mais ambicioso projeto de integração do pós-
guerra, tende também a acalentar uma conceção errada particularmente
perigosa: a noção de que existe apenas um modelo de integração
internacional e que, portanto, qualquer projeto em qualquer parte do mundo
persegue no essencial os mesmos objetivos. Ao exprimirem as suas
iniciativas geopolíticas na linguagem da integração internacional, a Rússia e
a China obterão invariavelmente a reação esperada de Bruxelas. Essas
iniciativas são vistas como compatíveis, ou mesmo idênticas, à própria
lógica de integração da UE e, portanto, nunca entrando em conflito com os
seus interesses geopolíticos. Um recente artigo sobre a integração
eurasiática recomenda que a Europa tente absorver outras iniciativas na sua
própria matriz de processos de mercado e especialização técnica.
«Simplesmente ao empenharem-se em esforços de integração vastos e
multilaterais, os chineses e os russos escolheram competir no terreno da
UE. Os políticos europeus não têm de recear a cooperação com estas
iniciativas.7» A crença implícita é a de que apenas existe a forma europeia
de jogar o jogo da integração.
A tendência oposta é também vigorosa e igualmente enganadora. Os
europeus foram ficando cada vez mais convencidos de que o mundo
exterior é a fonte de todos os seus problemas e que, portanto, uma estratégia
capaz de isolar a política da UE destas perturbações externas é a única
forma de assegurar a estabilidade a longo prazo. Por exemplo, a crise
financeira, que muitos continuam a ver como um fenómeno exclusivamente
americano. De facto, o impacto do excedente comercial chinês e o
correspondente excesso de poupança terá sido provavelmente mais
importante – a expansão da produção na China criou enormes défices
comerciais e de contas-correntes, de tal modo que o crescimento económico
nos Estados Unidos teve de ser sustentado através de uma «bolha» no
crédito. A integração financeira através do Atlântico é tão profunda que a
Europa sofreria inevitavelmente quando essa «bolha» no crédito rebentasse.
Poderia a pior das crises ter sido evitada se a União Europeia tivesse posto
em ação alguma forma de controlo sobre os fluxos financeiros globais? O
mesmo argumento foi depois repetido no caso da Ucrânia, que muitas
pessoas na Europa achavam ter ficado enredada em excesso numa
ambiciosa política externa da UE. Mais claramente, a erupção da chegada
de refugiados da Síria foi atribuída à incapacidade da UE para controlar as
suas próprias fronteiras. Os dois últimos exemplos poderiam parecer provar
o disparate de abrandar a separação tradicionalmente firme entre a Europa e
a Ásia – com o fundamento de que esta última continua a ser, como no
século passado, uma fonte de grande instabilidade e caos.
Existe, como é óbvio, alguma verdade no argumento, mas muito menos
do que se poderia pensar. Se o objetivo é gerir fluxos fronteiriços, não se
pode pensar nas fronteiras como limites fechados. São pontos de transição,
mas a maioria dos fluxos só poderá ser gerida se agirmos sobre a origem e,
portanto, fora do nosso território. Frequentemente, existe uma relação
temporal entre a política externa e a interna, pelo que as crises e os desafios
que não são enfrentados por uma política externa ativa surgem mais tarde
no contexto interno. Se a União Europeia passou nos últimos anos de
exportadora de estabilidade a importadora de instabilidade poderá bem ter
sido por não levar suficientemente a sério o seu anterior papel. Mesmo que
a Europa quisesse repetir o modelo de contenção da Guerra Fria, este já não
seria adequado a um mundo cada vez mais conectado, em que as fronteiras
já não são barreiras à ação estatal e os países de sucesso são perfeitamente
capazes de projetar o seu poder para quase qualquer ponto do Globo.
3

O NOVO SUPERCONTINENTE
EURASIÁTICO

As coisas vistas de cima

O tabuleiro de xadrez eurasiático tem três jogadores, que se encontram a


oeste, a leste e ao centro do tabuleiro. Poderão estes principais
jogadores ser entendidos de forma isolada uns dos outros? A resposta é
claramente negativa. Comecemos pelo jogador do centro, a Rússia.
Ninguém estará em condições de debater a Rússia sem ter em conta a
potente dinâmica que faz com que oscile entre os dois polos gémeos da
Europa e da Ásia – como a águia imperial bicéfala do seu emblema estatal,
olhando ao mesmo tempo em dois sentidos opostos. Poderá a Rússia ser
atraída para a órbita europeia em expansão? A determinado ponto, após a
fragmentação da União Soviética, isso parecia mais ou menos inevitável.
Agora, poderá ter-se tornado uma impossibilidade prática. O cientista
político Serguei Karaganov fala neste contexto de uma possível
transformação civilizacional: «A Ásia, que sempre esteve associada na
mente dos russos ao atraso, à pobreza e ao desgoverno, está a emergir como
um símbolo de sucesso.1» Compare-se esta perspetiva com o que o
marechal de campo Baryatinsky, governador do Cáucaso entre 1856 e 1862,
transmitiu ao czar: que a Rússia se situava em relação à Ásia como a
Europa em relação à Rússia: uma resplandecente fonte de civilização2. Na
atual Moscovo, a ideia provocaria gargalhadas.
E assim as peças começaram a movimentar-se umas contra as outras.
Com Moscovo mais perto de Beijing do que de Berlim, a China adquire
uma enorme profundidade estratégica. Pode aceder aos recursos russos e
projetar o seu poder sobre a Ásia Central e a própria Rússia. O facto de a
China se tornar uma potência hegemónica na Eurásia como um todo
depende muito de como a questão da Rússia – se os russos se pensam a si
próprios como parte da Europa, ou como pertencendo a um mundo e a uma
civilização fundamentalmente diferentes – é em última análise resolvida3.
Um dos argumentos produzidos em Moscovo é que o arco de
instabilidade que ameaça tanto a Rússia como a Europa já não está
especificamente localizado, mas que se estende desde o Afeganistão ao
Norte de África. Desestabilizados durante décadas e sofrendo de uma
explosiva combinação de ameaças à segurança, esses territórios exigem a
criação de uma nova arquitetura da segurança que não seja apenas europeia
ou apenas asiática, mas que englobe os dois continentes. Como Karaganov
diz, «se um problema não pode ser resolvido num dado contexto, é preciso
ir para lá deste contexto4».
Este arco de territórios é mais ou menos coincidente com o cerne do
mundo islâmico, cuja decadência política durante os séculos XVIII e XIX
desencadeou a longa querela entre a Grã-Bretanha e a Rússia pela
supremacia na Ásia. Politicamente anárquico e rico em petróleo, tornou-se
uma fonte de fluxos desestabilizadores atravessando a Eurásia em todas as
direções. As conexões energéticas fornecem as áreas de indústria pesada nas
costas ocidental e oriental do supercontinente, alimentando intensas
rivalidades geopolíticas em relação ao acesso e ao controlo. Guerras civis
extraordinariamente destruidoras e intervenções externas empurraram
milhões de novos refugiados para a Jordânia, o Líbano, a Turquia e a União
Europeia. Por último, poderosas variantes do islão político veem-se
envolvidas numa conflagração global para a qual não contam as fronteiras
nacionais e que vê a Europa como seu principal alvo.
O tabuleiro de xadrez eurasiático é assim composto por três atores
principais e uma zona de fluxos continentais por eles usados para
consolidarem as suas bases de poder e para desestabilizar os outros
jogadores. No entanto, a integração eurasiática adquire diferentes
significados para a China, a Rússia e a União Europeia. Veremos como a
China encara a totalidade do supercontinente como sua natural esfera de
expansão. A Rússia tem sido ainda mais aberta e explícita acerca dos planos
para uma Eurásia Maior. Em junho de 2016, Vladimir Putin regressou a
esses planos, sublinhando numa conferência económica na Rússia que a
visão de uma «Eurásia Maior» suporia a união de importantes Estados
asiáticos, mas explicitamente aberta à Europa também. A Rússia acredita
que o seu maior desafio estratégico é evitar tornar-se naquilo a que o
pensador geoestratégico e antigo diplomata dos EUA, Zbigniew Brzezinski
chamou um «buraco negro» entre a Europa e a China5. Todas as tentativas
para suplantar a distância física e ideológica entre os dois polos forçá-los-ão
a aproximarem-se da Rússia. Moscovo está em particular interessada em
qualquer futura diluição daquilo que considera ser uma interpretação
excessivamente rígida dos valores europeus e acredita que isso poderá ser
alcançado tornando a União Europeia mais vulnerável às influências
políticas e ideológicas vindas do Leste. E se Bruxelas continuar a virar as
costas a uma maior integração eurasiática, o projeto poderá ainda assim
prosseguir, incluindo aqueles países europeus que não são membros da
União Europeia.
Quando se trata da Europa, as coisas talvez possam parecer diferentes.
Afinal de contas, os Estados europeus têm estado durante algumas décadas
empenhados no seu próprio projeto de integração. Significa isto que a
escala fundamental da política europeia seja a própria Europa?
Dificilmente. De cada vez que adotamos uma abordagem estritamente
europeia à União Europeia o projeto entra em tensão. As diferenças entre os
diferentes Estados surgem então como demasiado grandes e a necessidade
de uma abordagem comum demasiado fraca. É quando alargamos a esfera,
por assim dizer, que o projeto europeu se revela como tal. Não era a ameaça
soviética, suspensa de igual modo sobre todos os povos europeus, que fazia
com que os seus desacordos parecessem mesquinhos e artificiais? Por que
razão devemos, afinal, substituir os velhos Estados europeus por uma maior
unidade política e económica? Porque, como Estados nacionais, não podem
competir com os outros principais jogadores no tabuleiro de xadrez
eurasiático, que os excedem em muito em dimensão. Quanto mais nos
movemos para um mundo multipolar constituído por grandes potências,
mais Estados europeus terão de reconhecer que é simplesmente impossível
lidarem em termos de igualdade com países como a China e a Índia. A
Europa consiste apenas em pequenos países. Alguns destes países sabem
isto muito bem, outros ainda não aceitaram esse facto. Como o sociólogo
francês Raymond Aron escreveu pouco depois de 1945, se a Europa
Ocidental quisesse existir à mesma escala dos gigantes do século XX, teria
de se tornar una, pelo menos do Atlântico ao Elba6. Observou também
como o argumento de que maior é melhor acabara de ser usado pela
Alemanha nazi. Isso contém um elemento de verdade, como Aron admite.
Os nazis estavam de facto convertidos a uma forma de geopolítica
eurasiática, que inspirava os seus sonhos de colonizarem as vastas terras e
estepes russas. Poderiam estar convencidos de que nada menos do que um
império a uma escala supercontinental poderia sobreviver numa era
tecnológica, mas os horrores da experiência e o seu fracasso mostraram que
um tal projeto não poderia nem deveria ser tentado numa base nacional ou
étnica7.
É certo que uma das principais razões pela qual a Eurásia está a emergir
como um espaço integrado é a ascensão de novas grandes potências, cujos
ambiciosos interesses vão muito para lá das suas fronteiras e se entrecruzam
em padrões cada vez mais complexos. A ascensão do poder chinês
acompanha as crescentes ambições russas e os hesitantes movimentos em
direção à união política na Europa. A este complexo sistema terá de ser
ainda acrescentada a inevitável constituição da Índia como uma grande
potência mais tarde neste século, adicionando um quarto jogador principal a
sul, sem esquecer o papel do Japão e da crescente capacidade do Irão para
projetar o seu poder no exterior. Aquilo que acontece num extremo do
supercontinente tem um impacto direto no outro extremo. Por exemplo,
pouco depois do deflagrar da crise ucraniana, um general chinês observou
que a Ucrânia estava a oferecer 10 anos extra à China para se preparar para
o seu confronto global com os Estados Unidos. A ideia era que o conflito na
Ucrânia tinha reacendido o confronto histórico entre a Rússia e os Estados
Unidos, forçando estes a distraírem-se com um rival menor. No contexto
das crescentes tensões entre a Rússia e o Ocidente, a primeira poderá
transformar-se na retaguarda de uma base de abastecimento garantida e
fiável para a China – aquilo que o Canadá é para os Estados Unidos. Por
vezes, ouve-se essa analogia nos corredores do poder de Beijing, sempre
feita com evidente regozijo.
Se tanto a Rússia como a Europa, hoje em dia, só podem ser definidas
em relação à Eurásia como um todo, o mesmo parece acontecer também
com a China, embora de uma forma diferente e mais subtil. À medida que a
China continua a ascender – a maioria dos chineses prefere dizer
«recuperar» –, vê inevitavelmente o seu papel global como um condomínio
geopolítico com os Estados Unidos, em que os dois países se aproximam
gradualmente da paridade em todas as dimensões do poder internacional e
começam a partilhar responsabilidades na gestão da ordem global. Esta
imagem de um mundo governado em comum pela China e pela América
tem um corolário óbvio: a China tem de se tornar o poder central dominante
na Eurásia, exercendo uma espécie de hegemonia «suave» sobre o
supercontinente como forma de rivalizar e talvez um dia suplantar a
influência americana. O derradeiro objetivo da China poderia ser descrito
como a diluição do poder americano na Eurásia como um todo. Da
perspetiva do Go chinês, parece o tipo de estratégia que poderia ser adotada
perseguindo as peças mais expostas e isoladas do adversário, antes de um
avanço para a sua fortaleza8. Se isso puder ser conseguido sem dar lugar a
uma Rússia ou a uma Europa mais poderosa, então a China surgirá, ipso
facto, como equivalente à América. Cada momento de recuo americano
aproxima mais a China do seu objetivo. Na realidade, não importa se isso
acontece no Médio Oriente, no mar do Sul da China ou na Ucrânia. A este
respeito, valerá a pena notar que os países do Conselho de Cooperação do
Golfo exportam agora três vezes e meia mais para os mercados japonês,
coreano, indiano e chinês do que para a União Europeia e os Estados
Unidos em conjunto. Os conglomerados indianos e chineses estão também
envolvidos em grandes projetos de infraestruturas, como o comboio de alta
velocidade que irá ligar as cidades santas de Meca e Medina na Arábia
Saudita e a construção de duas das linhas do metro de Riade.
Dentro de 20 anos, os nossos velhos hábitos de nos referirmos à Europa
e à Ásia como entidades separadas terão de ser substituídos pela nova
realidade inescapável da Eurásia como um único espaço político e
económico. O que não posso prever – por estar ainda aberto à decisão e à
ação políticas – é como será este supercontinente asiático. O vento da
unificação soprará do oriente ou do ocidente? Será, pelos menos sob alguns
aspetos fundamentais, uma versão alargada da União Europeia, ou esta será
dramaticamente modificada pela necessidade de se adaptar à ascensão de
novas abstrações políticas, novos valores universais, que tanto a Rússia
como a China estão ativamente a desenvolver e propagar? Os europeus
deveriam ter receio de cair na velha armadilha de pensar que a História está
do seu lado, como os otomanos quando adotaram o mote do «Estado que
durará eternamente» demasiado à letra e cometeram o erro de não
reconhecer a ascensão da moderna sociedade europeia, com o seu
dinamismo superior. O momento é crítico. As placas tectónicas começaram
a mover-se. Precisamos de todos os nossos recursos para equilibrar este
movimento e fazer com que as peças encaixem com o máximo de suavidade
possível.
Além disso, cada um destes três jogadores essenciais é quase forçado
pela sua marca particular de conceitos políticos abstratos a procurar a
aplicação mais alargada possível. Claro que este novo espírito universal não
é o dos filósofos, escritores ou artistas, mas não deixa por isso de ser um
espírito universal, agora igualmente partilhado de Lisboa a Xangai. É o
espírito da economia, da tecnologia e do progresso tecnológico que nos
empurra para escalas cada vez maiores e para fórmulas cada vez mais
impessoais, fazendo praticamente desmoronar qualquer sensação de
distância física.
Cada um dos principais atores desempenha um papel específico no
surgimento da nova ordem mundial. Em princípio, a Rússia beneficia do
facto de possuir uma longa tradição de reflexão intelectual sobre a velha
separação entre a Europa e a Ásia e as formas de poder ser ultrapassada. A
China é a que está sem dúvida a contribuir mais em termos de diminuir
realmente, ou eliminar, os obstáculos físicos a uma maior integração dentro
da Eurásia. Quanto à Europa, o seu papel continua a ser ambíguo. Por um
lado, tem estado ao leme da globalização já há alguns séculos. Por outro,
está profundamente comprometida com uma visão do mundo em que o
continente europeu beneficia de um estatuto privilegiado e tenta resistir a
qualquer tentativa de dissolução das linhas artificiais mas profundas que a
demarcam do resto do supercontinente.
Numa conferência em 2010, Vladimir Putin, então primeiro-ministro
russo, chamou a uma comunidade económica de Lisboa a Vladivostoque,
«uma genuína síntese harmonizada de duas economias», incluindo formas
avançadas de integração e uma política industrial comum. A ideia foi rápida
e previsivelmente mal interpretada por Bruxelas. Até hoje, continuam a
poder ouvir-se as saudades expressas em muitas reuniões do Conselho da
União Europeia da velha proposta de uma área continental de comércio
livre, através da qual Putin se teria aproximado dos ideais da União
Europeia, dos seus métodos e dos seus objetivos. Em Bruxelas, a ideia foi
vista como uma subtil conversão aos valores europeus.
A verdade, evidentemente, é em absoluto o contrário. Esse, afinal de
contas, foi o discurso em que Putin fez a extraordinária afirmação de que os
gasodutos russos do Norte e do Sul permitiriam que a Europa «adquirisse
um sistema de fornecimento de gás natural diversificado e flexível». Como
alguns países europeus tinham aprendido apenas alguns anos antes, os
fornecimentos de gás da Rússia nem eram seguros nem diversificados e os
novos gasodutos, especialmente quando combinados, pareciam um par de
pinças gigantescas prontas para se apertarem sobre a Europa. Ao defender
uma comunidade económica de Lisboa a Vladivostoque, Putin estava
meramente a dar forma à geopolítica russa tradicional e à sua teoria
favorita, segundo a qual a Rússia pode expandir a sua influência sobre toda
a Europa e sobre toda a Ásia apenas se os dois continentes forem pensados
como um só. A Rússia será sempre demasiado europeia para a Ásia e
demasiado asiática para a Europa, mas na Eurásia poderá sentir-se à
vontade. Ou, pelo menos, é a teoria do Kremlin.
Mais recentemente, o ministro dos Negócios Estrangeiros russo decidiu
mudar um pouco as coisas. Nos seus planos estratégicos e declarações
oficiais, tem substituído deliberadamente Vladivostoque por Xangai, ou
mesmo por Jacarta, como o extremo mais oriental do novo supercontinente.
A própria China tem vindo a adotar cada vez mais a integração eurasiática,
sobretudo através de um arrojado plano para ressuscitar a velha Rota da
Seda. Isto é de importância vital para Beijing. A expansão económica
chinesa só poderá ser colocada sobre uma base firme se o acesso às
matérias-primas estiver garantido, o investimento de capital encontrar
novos destinos e o desenvolvimento das províncias centrais e ocidentais for
encorajado. Todos os três objetivos estratégicos serão perseguidos através
da expansão económica para a Ásia Central e a Europa. O processo está
apenas a começar.
Dentro desta enorme massa terrestre, a Europa não passa de uma
península periférica. Este facto está sem dúvida na base dos cálculos tanto
russos como chineses. Têm razão num aspeto crucial: a separação artificial
entre a Europa e a Ásia não pode resistir num mundo globalizado. Halford
Mackinder, o pai da moderna geopolítica, observou em 1919 que as nítidas
fronteiras naturais do Sáara e dos Himalaias não têm equivalente onde a
Ásia se funde com a Europa. De modo bastante intrigante, sugeriu também
que a razão pela qual nunca pensámos na Ásia e na Europa como um único
continente se deve ao facto de os marinheiros não conseguirem fazer a
viagem em seu redor9.

Um conto de dois oceanos


Mackinder tem certamente razão quando diz que as águas geladas do Ártico
ajudaram a moldar algumas das nossas intuições geográficas mais básicas.
O facto de o comércio moderno e as ligações culturais entre a Europa e a
Ásia terem sido estabelecidos em torno do extremo sul de África ajudou a
criar a separação psicológica entre os dois continentes e o facto de ser mais
fácil circum-navegar o Globo do que velejar em torno da Eurásia teve
grandes consequências. Valerá pois a pena considerar que mesmo este
básico facto da geografia está prestes a mudar.
O aquecimento global poderá ser visto como a derradeira ameaça à
existência para a maioria do mundo, mas na região ártica é abertamente
discutido como uma oportunidade para transformar as águas geladas numa
nova e vibrante rota marítima ligando a Europa e a Ásia. Poucas outras
transformações poderiam ser tão radicais e espetaculares. Imagine visitar o
Ártico daqui a 50 anos e encontrar uma cintura de grandes cidades,
densamente povoadas e ligadas por uma das vias marítimas mais
movimentadas do mundo – talvez pontuadas aqui e ali por novas estâncias
turísticas marítimos e praias de veraneio onde os turistas se podem banhar
ao sol 24 horas por dia. A via marítima norte é 37 %, ou 7400 quilómetros,
mais curta do que a via sul através do canal do Suez, oferecendo assim, pelo
menos em teoria, uma alternativa muito tentadora às empresas marítimas
que dominam presentemente o comércio global.
Em 2017, o Christophe de Margerie tornou-se o primeiro cargueiro
quebra-gelos, concebido para romper gelo até dois metros de espessura sem
ajuda, para o transporte de gás natural liquefeito da península de Yamal ao
longo da via marítima norte, através do estreito de Bering e dirigindo-se
para sul, até ao Japão e à China. Já em 2010, o Monchegorsk se tornara o
primeiro navio mercante a percorrer toda a rota sem auxílio de quebra-
gelos. Poderemos estar a aproximar-nos do ponto em que o custo do
investimento extra da capacidade para os navios mercantes poderem
navegar no gelo será mais vantajoso do que uma escolta de quebra-gelos.
Nessa altura, a navegação será apenas mais uma das oportunidades de
negócio abertas pelo aquecimento global. Subitamente, a área de 2,6
milhões de quilómetros quadrados no centro do Ártico, que não se encontra
sob a jurisdição de qualquer país, tornar-se-ia a maior zona de pesca por
explorar do mundo.
Em 2011, Putin disse aos participantes numa conferência na cidade
portuária de Arcangel, no mar Branco, que a Rússia iria investir
maciçamente na região ártica numa aposta ousada de desafio às rotas
comerciais tradicionais. Talvez diferentes países e cidades cedo comecem a
competir para atrair investimento e pessoas para a nova rota comercial.
Haverá uma capital do Ártico? No seu Connectography, Parag Khanna
sugere que Kirkenes, na Noruega, poderá ser a melhor candidata para o
papel, mas Murmansk, na Rússia, apenas 200 quilómetros a sudeste e
fundada em 1916, parte com consideráveis vantagens. É de longe a maior
instalação humana no interior do círculo ártico e, em 2016, o seu porto
geriu mais de 30 milhões de toneladas de mercadorias, um aumento de 50
por cento em relação a 2015.
Ao reunirem-se em Moscovo em julho de 2017, o Presidente chinês Xi
Jinping e o primeiro-ministro russo Dmitry Medvedev anunciaram a sua
intenção de desenvolver a «Rota da Seda do Gelo». Xi incentivou os dois
países a realizarem uma nova secção do «Cintura e Rota» no Ártico,
ecoando os apelos de influentes pensadores estratégicos chineses para
investirem na rota de navegação como forma de evitar o estreito de Malaca,
que pode ser bloqueado por marinhas rivais, em caso de conflito. Uma
empresa estatal chinesa, a Poly Group, estava na altura a finalizar os planos
para investir num porto de águas profundas próximo de Arcangel, o
principal porto marítimo da Rússia medieval e moderna, antes de o país
ganhar acesso às águas mais quentes do Báltico.
Por enquanto, claro, o grande oceano a ligar o supercontinente
eurasiático é o Índico. Muitas das questões mais importantes do nosso
tempo serão decididas neste longo arco de linhas costeiras densamente
povoadas e movimentadas linhas de navegação: a relação entre o islão e os
seus vizinhos na Europa e na Ásia; o crescimento do comércio global e a
luta pela segurança energética; a competição entre a Índia e a China pelo
lugar cimeiro como história de grande sucesso económico do século. A
ocidente, o canal do Suez tem sido visto tradicionalmente como o portão
marítimo para a Europa. A oriente, o estreito de Malaca pode abrir ou fechar
a rota para a China e o Japão. Apesar de se estar a tornar rapidamente a
mais importante massa de água do mundo, o oceano Índico é cada vez mais
o foco de competição entre diferentes atores, nenhum dos quais consegue
desempenhar um papel hegemónico.
É como potência marítima que a Índia se poderá tornar o nó central
entre os extremos do novo supercontinente. Dadas as suas dimensão e
proximidade, a China e a Índia estão destinadas a desenvolver a maior
parceria comercial do mundo e esta terá de se basear em gigantescos planos
de infraestruturas ao longo da linha costeira do oceano Índico. Da mesma
forma, se as próximas décadas assistirem a um conflito naval entre a China
e os Estados Unidos, ele terá maior probabilidade de ocorrer no oceano
Índico do que no Pacífico, devido à sua maior importância estratégica e,
nesse caso, a Índia e a marinha indiana serão fatores decisivos.
Contrariamente ao Atlântico ou ao Pacífico, que se estendem de norte a
sul como grandes estradas abertas, o oceano Índico distingue-se por uma
linha costeira em três dos seus lados, criando inúmeros pontos de
estrangulamento, críticos para o comércio internacional e para a segurança
energética. A doutrina marítima indiana reconhece que estes pontos de
estrangulamento são fontes de perturbação potencial, mas também
ferramentas de controlo. A oriente, os estreitos de Malaca, Sunda e Lombok
criam uma barreira natural contra o poder marítimo chinês. A ocidente, a
via marítima mais intensa passa através do estreito de Ormuz, permitindo o
acesso ao golfo Pérsico e ao seu litoral, a fonte da maioria dos
fornecimentos de petróleo e de gás da Índia e lar de uns calculados sete
milhões de expatriados indianos. Um analista chinês descreve as 244 ilhas
que constituem os arquipélagos de Andamane e Nicobar como uma «rede
metálica» ( ) que poderia fechar a saída ocidental do estreito de
Malaca. Mais geralmente, os observadores chineses preveem o surgimento
de um poderoso rival que pretendesse controlar o oceano Índico, a imagem
reflexa da massa terrestre eurasiática a norte. Para eles, a Índia está a
desenvolver a sua capacidade global para «entrar a oriente» ( ) para o
mar do Sul da China, «sair a ocidente» ( ) através do mar Vermelho e
canal do Suez para o Mediterrâneo e «ir para sul» ( ) em direção ao
cabo da Boa Esperança e ao Atlântico10. Em 2016, surgiram notícias de que
a Índia e o Japão estavam a planear secretamente instalar uma barreira
marítima de hidrofones entre Indira Point, nas ilhas Nicobar, e Banda Aceh,
na ponta norte de Sumatra, na Indonésia, destinada a monitorizar o
movimento subaquático e a efetivamente dificultar a entrada no oceano
Índico aos submarinos chineses.
A que ponto deveremos levar a sério a ideia do oceano Índico como uma
imagem reflexa do novo supercontinente eurasiático? Robert Kaplan
escreveu um livro onde o Índico surge, graças à monção e às rápidas vias
marítimas que fomenta, como uma prefiguração precoce de um
supercontinente unificado, onde as influências culturais se deslocam até
muito longe e podem ser encontradas nos lugares mais inesperados. Em
Omã, por exemplo, os souks de Mascate estão povoados por uma
comunidade hindu do Rajastão e de Haiderabade. Existem duas antigas
fortalezas portuguesas, uma lembrança do tempo em que Portugal
dominava as ondas. As coifas bordadas dos homens apresentam influências
de Zanzibar e do Baluquistão. A loiça chinesa é omnipresente e os padeiros
são iemenitas e iranianos. Na praia, mulheres vestidas com burcas fazem
voar os seus papagaios de papel, como no Afeganistão. Como Kaplan diz,
«o oceano constituía uma rede de rotas comerciais. Parecia-se vagamente
com aquilo com que o nosso mundo atual cada vez mais se parece, com as
suas interligações comerciais e culturais11». A melhor imagem deste mundo
interligado do oceano Índico deve ter sido a de um dos seus portos no
tempo dos mongóis, em que os dhows de velas latinas do mar Vermelho, os
praos da Malásia e da Indonésia e os enormes juncos chineses estariam
amarrados perto uns dos outros. E depois chegaram as caravelas
portuguesas.
No século IX a via comercial entre o golfo Pérsico e Cantão, na China,
estava já bem estabelecida. Continuaria a ser a rota marítima mais longa em
uso regular até aos Descobrimentos portugueses. Os mercadores árabes
atravessavam o oceano até ao porto de Coulão, na costa malabar, antes de
contornarem o extremo sul do subcontinente indiano e se dirigirem ao
estreito de Malaca e ao norte, para a China. Como se poderá talvez inferir a
partir dos factos da geografia, a costa sul indiana era o ponto de
convergência de dois mundos diferentes. O Malabar, a ocidente, tinha uma
afinidade especial com o Médio Oriente. A influência muçulmana era forte
e muitos dos mercadores locais adotavam a cultura e a língua árabes.
Coromandel, a oriente, era principalmente hindu, também com fortes
influências budistas e chinesas. Coulão havia sido um porto de escala para
os navios árabes desde pelo menos o século IX, mas com o tempo tornou-se
também um importante destino para os mercadores chineses. A Mesquita de
Sexta-Feira era um imponente edifício, mas a comunidade residente chinesa
não era insignificante, tendo em certa ocasião ajudado os enviados da corte
imperial chinesa naufragados a prosseguirem a sua viagem de regresso. Em
Calcutá, a uma curta distância a norte, uma persistente tradição afirmava
que os marinheiros locais descendiam de colonos chineses, dando pelo
nome de «filhos da China12».
Desde o início do século XV, testemunhamos esse peculiar ritmo a que
chamamos «globalização», quando a Europa, o Islão e a China começaram
a pensar em si próprios como fazendo parte do mesmo mundo.

Tal como o cavaleiro na estepe levaria consigo no espírito um mapa


cognitivo das pastagens sem fim e o condutor de camelos do deserto
conhecia as rotas mais seguras entre oásis, também o navegador
tinha na memória o comportamento dos ventos, as cruciais marcas
do mar e a série de outros detalhes tão essenciais para regressar a
casa.13

Estas rotas de comunicação são na verdade mais básicas do que as


culturas ou nações que juntaram. Se culturas próprias em recantos distantes
do supercontinente se ergueram a altos níveis de desenvolvimento e
refinamento, foi em consequência de processos de troca cultural,
competição e imitação, aproveitando a vantagem de três geografias ligadas.
A sul, o oceano e a monção. A norte, a estepe, uma estrada natural e
ininterrupta para os cavaleiros, ligando a Manchúria à planície húngara,
uma distância de quase 10 mil quilómetros. Pelo meio, caminhos
serpenteantes atravessando montanhas e desertos, pontuados por paragens
para descanso e lugares de suprimentos para as caravanas, pequenas aldeias
e grandes metrópoles comerciais como Otrar ou Samarcanda.

O mapa e o território
O todo é apenas um todo em relação às suas partes e as partes são apenas
partes em relação ao todo. Quando se trata de política mundial, isto
significa que a perspetiva que tivermos do todo irá sempre influenciar a
nossa compreensão das partes. Se a sua visão da ordem global tiver a
Europa no centro, então o resto do mundo ficará organizado em círculos
que irradiam a partir desse centro. O próprio viajante não encontrará senão
distantes ecos e pálidos reflexos do lugar de onde começou e qualquer
compreensão genuína das diferentes regiões e culturas será tornada
impossível. O objetivo não deveria ser olhar para o todo do ponto de vista
de uma das partes, mas olhar para cada uma das partes do ponto de vista do
todo. Aprendemos este hábito mental com o estudo de atlas e mapas, onde
cada ponto é definido e localizado por referência a todos os outros pontos e
onde somos obrigados a ganhar uma perspetiva externa, mais descolada e
mais objetiva. Ao mesmo tempo, um mapa fica apenas completo quando
regressamos dos lugares que este representa e conseguimos interpretar o
significado completo por detrás de cada pormenor e projetar sobre a
superfície plana as imagens armazenadas na nossa memória.
A História mostra que não existe uma forma natural de as partes do
sistema mundial se organizarem. Nem o sistema possui qualquer propensão
inata para se conservar estático, nem as partes para permanecerem num
determinado padrão. Muitas vezes no passado o pêndulo do poder ficou
exatamente equilibrado entre dois polos no sistema e nenhuma necessidade
histórica inerente ditava que alguém conquistasse uma posição hegemónica.
O facto de a Europa se ter destacado no século XVI, substituindo o Médio
Oriente como o cerne do sistema mundial, não pode ser usado para defender
que apenas a cultura e as instituições europeias poderiam ter tido sucesso.
De facto, como argumenta um historiador, a Europa nem sequer teve de
inventar o sistema, uma vez que o trabalho de base essencial já estava
disponível no século XIII, quando os europeus se encontravam ainda a viver
numa remota periferia14. Bastava mudar as regras e reorganizar as peças.
Em última análise, o facto de Lisboa, Amesterdão e Londres se terem
sucessivamente tornado a pedra angular do sistema foi um facto
contingente. Poderia facilmente ter sido o Cairo, Tabriz ou Hangchou.
Na segunda parte deste livro examinaremos tematicamente as principais
partes ou componentes do novo supercontinente. Esta perspetiva mais
concentrada ajudar-nos-á a compreender alguns dos pontos gerais
abordados neste capítulo, mas sem estes pontos gerais e uma visão a partir
de cima, a visão de cá de baixo permaneceria inacessível. Toda a viagem é
uma espiral. Comece com o conhecimento que já tem e use-o para
interpretar aquilo que descobrir na estrada, mas permaneça igualmente
aberto à revisão do seu conhecimento à medida que prosseguir. Toda a
viagem é uma espiral – e, nesse sentido, toda a viagem é infinda.
O leitor poderá perguntar se o mundo contemporâneo estará tão repleto
de contradição e de diferença como parece neste livro. Eu acredito que sim.
Se o considerar a partir da perspetiva do passado, então o mundo parece
uma totalidade de episódios e de histórias, cada qual movendo-se de acordo
com a sua própria lógica, como se fossem romances ou epopeias em
separado. Acontece o mesmo se considerar a questão a partir da perspetiva
do futuro. Nenhuma sociedade quer pensar em si própria como uma cópia.
Se nos for concedida a liberdade para o fazermos, todos desejamos rasgar
os nossos próprios caminhos na Terra, uma verdade igualmente aplicável
aos indivíduos e às sociedades políticas. Quando as diferenças não
existirem, ou quando tiverem sido perdidas, serão inventadas ou criadas de
novo. De facto, temos todas as razões para pensar que aquilo que mais tarde
se tornariam as vincadamente diferentes antigas civilizações mediterrânicas
e chinesa tiveram a sua origem comum no mundo mesopotâmico, um caso
notável de divergência histórica que contraria a nossa crença na
convergência. Poderá acontecer que, um dia, os seres humanos tenham
experimentado todas as possibilidades e que o seu conhecimento seja
completo, mas esse dia está lá muito longe no futuro.
Embarquemos na viagem, portanto, durante a qual teremos a
oportunidade de regressar a muitas das ideias discutidas na primeira parte
deste livro. Não deixará de ser apropriado que comecemos, não pela Europa
nem pela Ásia, nem por nenhum dos extremos do supercontinente, mas
antes, tanto quanto possível, pelo centro. In media res. No meio das coisas.
SEGUNDA PARTE

A Viagem
4

A PROCURA DO CENTRO

Tribos perdidas do Azerbaijão

O meu vizinho em Bacu combateu em Karabakh há pouco mais de 20


anos, durante os últimos meses do conflito aberto entre o Azerbaijão e a
Arménia pelo controlo da província que, embora incluída por Estaline na
República Socialista Soviética do Azerbaijão, tinha uma maioria de
população arménia. Ambos os países consideravam Karabakh como o
coração vivo das suas histórias nacionais. Quando, nos dias de declínio da
União Soviética, os arménios sentiram uma oportunidade de subtrair o
controlo da província às autoridades do Azerbaijão, a guerra tornou-se
inevitável.
Rustam vivia no apartamento ao lado do meu durante as semanas que
passei na capital do Azerbaijão. Nos últimos dias, recebera persistentes
telefonemas de velhos camaradas do exército que agora lutavam pelo
regime de Assad na Síria em troca de generosos salários. Recentemente
casado com uma ucraniana de Kharkiv e com uma filha bebé, Rustam
descobriu que amava a vida demasiado para considerar sequer a oferta.
Uma noite, talvez incentivado por aqueles telefonemas, recordou
lentamente todos os horrores de uma guerra desenrolada sobretudo a curta
distância, em belas mas traiçoeiras colinas, antes de me contar uma história
que deve ter achado que sintetizava todos aqueles horrores. Depois de terem
capturado três soldados arménios nas montanhas – um pai e dois filhos – e
de lhes ter sido dito pelo seu comandante que poderiam fazer o que
quisessem com eles, ofereceu-se para deixar partir um, desde que todos
concordassem sobre qual deles deveria ser. Os dois irmãos escolheram o
pai, mas o pai não conseguia decidir-se a escolher um dos dois filhos e
ainda menos salvar-se a si próprio.
«O que é que acha que eu fiz?»
Supus que Rustam me quisesse impressionar sobre como, mesmo nas
piores alturas, a humanidade é capaz de sobreviver, por isso respondi-lhe
que devia ter decidido libertar os três.
Rustam ficou a olhar para mim por um momento e riu-se.
«Meu amigo, depois das viagens tem de ir consultar um médico. Os
arménios mataram os meus irmãos e os meus amigos e eu ia deixá-los
partir?»
No final de 1993, tentando recompor-se de uma série de reveses, o
recém-eleito Presidente do Azerbaijão, Heydar Aliyev, ordenou o
recrutamento de dezenas de milhares de adolescentes sem qualquer
experiência militar, entre eles Rustam. Milhares deles foram mortos entre
dezembro e maio de 1994, antes de ser alcançado um cessar-fogo. Até
agora, escaramuças periódicas continuam a causar baixas mortais e, mais
recentemente, houve ameaças de uma guerra renovada. Em abril de 2016,
mais de 200 soldados foram mortos, o pior combate desde o cessar-fogo de
1994.
«Libertou os dois filhos?»
«Não, matei os três. Dei-lhes a oportunidade de escolherem um. Não
aproveitaram.»
Isto é o Azerbaijão, um local de horrores contados e ocultados, como
este arrepiante conto de guerra, ou as memórias de pogrons contra a sua
minoria arménia e as angustiantes histórias de homicídios e violações que,
por seu lado, os refugiados azeris da Arménia traziam consigo. É também
um país onde o horror foi sublimado em canções e poemas que cobrem a
dimensão da vida quotidiana mais completamente do que em qualquer outro
sítio que eu conheça. Pude ver a violência e a poesia a combinarem-se num
concerto de jazz nessa noite, em que Sevda Elekberzade cantou tristemente
sobre um amor perdido em Lachin. Tomada à letra, talvez fosse uma canção
romântica, mas Lachin é também a cidade tomada pela Arménia em 1992,
por isso, quando mencionava como deixara o seu coração em Lachin, isso
causava uma verdadeira mágoa no público, tanto pessoal como política. A
perda romântica significará esconder a perda do território, ou estará o amor
pela cidade perdida destinado a esconder uma questão ainda mais perigosa e
proibida? Como um dos meus mais queridos amigos de Bacu me explicou
nessa noite, todas as canções do Azerbaijão são acerca de duas coisas: amor
e terra.
Se lerem um breve resumo da sua História, pensarão que o Azerbaijão
tem sido o principal palco da História mundial, onde todos os povos e
civilizações fazem uma breve aparição, desaparecendo com a mesma
rapidez: medos, persas, macedónios, romanos, sassânidas, seljúcidas,
mongóis, safávidas, otomanos, russos. Serão parte da História do
Azerbaijão, ou a História azeri será parte da sua? No Azerbaijão, todos são
distantes sucessores de algum mundo perdido, cuja pálida imagem está
encarregado de preservar. O país inteiro parece um museu onde cada objeto
está ali para representar um país perdido em particular.
Uma manhã, apanhei um minibus para Quba, no Norte. A maioria dos
passageiros dirigia-se à fronteira, atravessando em Samur e depois para o
Daguestão, na Rússia, embora Quba não seja de modo algum uma cidade
insignificante. Na pequena paragem de autocarros, apanhei o táxi mais
próximo e pronunciei duas palavras que pareceram funcionar de modo
semelhante a uma palavra-passe: Qirmizi Qesebe. O taxista sorriu com ar
entendido e atravessou a moderna ponte sobre o rio Qudiyalçay. Alguns
minutos mais tarde, deixou-me à porta da sinagoga da aldeia.
O que é notável acerca de Qirmizi Qesebe não é o facto de albergar uma
sinagoga em funcionamento. Bacu tem três e o Azerbaijão orgulha-se da
forma como conseguiu integrar a sua comunidade judaica num país de
maioria muçulmana xiita. Mas Qirmizi Qesebe é supostamente a única
aldeia judaica fora de Israel. Aqui, todos são judeus. A mão-cheia de
exceções são algumas famílias azeris que chegaram depois de alguns
aldeões decidirem partir para Israel, após a União Soviética abrandar as
suas regras de emigração. Não existe mesquita na aldeia e quase todas as
casas têm a estrela de David orgulhosamente exibida. Como centenas ou
talvez milhares de aldeias na velha Zona de Instalação, a região na Rússia
imperial onde se permitia que os judeus vivessem legalmente, esta era e
continua a ser uma aldeia judaica. Todas as outras desapareceram, mas
Qirmizi Qesebe sobreviveu a tudo.
Tem-se uma sensação muito clara da sua ininterrupta história subindo
até ao cemitério judeu na íngreme colina que se alcandora sobre a aldeia.
Alguns dos homens e das mulheres ali enterrados viveram longos anos no
decurso do século XX, mas algumas das sepulturas são muito mais antigas.
Quando perguntei na aldeia quando tinham chegado os judeus a Quba, a
resposta foi há três ou talvez quatro séculos. «Primeiro para as montanhas,
depois descemos.»
Aqui os judeus eram gente da montanha, como todos costumavam ser.
Usavam espada à cintura e uma pistola e cartucheiras cruzadas no peito. Os
hábitos montanheses, mais do que a assimilação cultural, provavelmente
explicarão a razão pela qual senti por um momento, ao entrar na sinagoga,
que estava numa mesquita, com o chão coberto de tapetes e a obrigação de
descalçar os sapatos antes de entrar. Como o rabi da sinagoga de Gorsky,
em Bacu, mais tarde me explicou, com certeza que não desejariam que
entrassem pessoas por ali dentro com as botas cobertas de lama. Em Bacu, a
obrigação foi abandonada, mas os tapetes lá continuam, deixados como
oferendas pela comunidade.
Cheguei a Qirmizi Qesebe no sabat, por isso pude ver as mulheres
vestindo as suas ricas e tradicionais roupas caucasianas: um vestido coberto
por uma magnífica túnica azul conhecida como goba, apertada na cintura e
com uma racha em cada manga, do cotovelo para baixo. Mesmo durante a
semana usam lenços na cabeça.
Os homens estavam reunidos na casa de chá da aldeia, a jogar uma
variante do gamão chamada nard. Na parede, havia uma colagem que
representava os antigos rabis da aldeia, recuando até dois séculos, ao lado
de uma velha fotografia das obras da ponte que liga as duas comunidades,
construída em 1854. Deve ter sido uma ocasião extraordinária, quando os
muçulmanos e os judeus deixaram de estar separados pelo outrora vigoroso
Qudiyalçay.
Mas a aldeia está quase vazia, como eu esperava. Se alguns começaram
a partir durante os anos de Brejnev na década de 70, o êxodo intensificou-se
depois de o Azerbaijão se tornar independente em 1991, com a maioria dos
jovens a partir para Moscovo ou Israel, onde conseguem encontrar bons
empregos. Alguns deles fizeram mesmo fortunas no estrangeiro e
construíram luxuosas mansões aqui em Qirmizi Qesebe, onde regressam
durante um par de meses no verão. O dinheiro de Israel tem afluído,
permitindo a reconstrução da sinagoga mais antiga, que cedo se
transformará num museu, e a construção de um matadouro shechita.
Encontrei um grupo de rapazes adolescentes, divertindo-se a tentarem
esconder-se dos idosos, mas em geral é difícil ou impossível encontrar
jovens. A aldeia tem um ar placidamente belo à luz do sol matinal e poderá
talvez mesmo esperar alguns anos de rápida gentrificação, à medida que o
dinheiro chega do estrangeiro, mas isto é a calma depois da tempestade,
quando a energia do passado foi gasta e todos podem finalmente recompor-
se. Antes da era soviética, a aldeia tinha pelo menos 13 sinagogas em
funcionamento. Agora existem duas, mas são maiores e mais ricas do que
alguma vez antes.
Adequadamente para o local de nascimento da moderna indústria do
petróleo, o Azerbaijão é um país de tesouros soterrados, onde, ao estarem
escondidas da vista, as coisas têm talvez uma maior oportunidade de serem
preservadas. A maioria desses segredos vem à luz em conversas casuais.
Uma noite num bar na velha Bacu alguém me falou de uma segunda tribo
perdida. A uma curta distância de automóvel da importante capital
provincial de Qabala, na pequena aldeia de Nij, vive o mais antigo
assentamento do povo udi. Assim que fecho a porta do carro, estou já a ser
chamado para me juntar a um grupo de homens na casa de chá da aldeia. A
sua hospitalidade é fantástica, mesmo pelos padrões caucasianos. Poderá
ajudar o facto de eu vir de um velho país cristão, porque os udis são
cristãos. Alexandre Dumas, que os visitou no século XIX, chamou-lhes o
povo mais misterioso da Terra. Vivem aqui pelo menos há três mil anos.
Nos séculos mais recentes, o seu número parece ter permanecido mais ou
menos fixo nos três mil. Não existe aqui a sensação, como em Qirmizi
Qesebe, de a aldeia viver sobretudo no passado. É grande porque as casas
estão espalhadas por quilómetros em redor, tal como as igrejas cristãs. Os
udis ocupam-se da criação de vacas e porcos (a existência dos últimos é
anunciada num grande sinal do talhante local), bem como da horticultura.
Fazem vinho – fi em udi – de uva, mas também de groselha preta. E falam a
sua própria língua, claro. Não é invulgar que uma única aldeia no Cáucaso
tenha uma língua distinta, mas o udi parece estar apenas distantemente
relacionado com outras línguas vivas do Cáucaso, por isso as suas ligações
são todas com o passado.
Visitei todas as três igrejas. A Jotari foi lindamente restaurada e
decorada com pinturas e livros religiosos. A Bulun, junto ao cemitério, está
em ruínas, mas é ainda um nobre e imponente edifício, com uma elevada
cúpula no centro. Quando regressei à casa de chá da aldeia e mostrei as
minhas fotografias, um idoso apontou para onde costumavam estar os
murais do arcanjo Miguel, mas já não eram percetíveis para um não-
iniciado. À direita do altar há um pequeno fragmento de um fresco que
representa um profeta de barba. Uma placa sobre a porta principal está
grafada em arménio antigo e tem uma cruz arménia, recordando a altura em
que a Igreja Arménia foi encarregada de todas as igrejas udis pelo Sínodo
Ortodoxo Russo. Finalmente, a Gey é a que se encontra mais afastada do
centro da aldeia. Também ela precisa de restauro. Mesmo ao lado há uma
escola que fornece instrução às crianças locais sobre língua e cultura udis.

Normalmente, há vacas a pastar dentro do pátio da Bulun. A porta da


igreja está fechada mas sem cadeado, por isso pode-se entrar. Onde estava
antes o altar, encontram-se agora duas pequenas caixas de areia. Entre elas,
encontram-se velas e alguns fósforos. As caixas têm sinais escritos em
russo, indicando onde deverá ser acesa a vela. A da esquerda diz «Pela
saúde dos vivos». A da direita diz «Pela paz dos mortos».
O contorno do Azerbaijão é frequentemente descrito como o de uma
águia, com a península de Absheron, projetando-se sobre o Cáspio, como o
seu bico. O palimpsesto religioso não está presente em maior grau em mais
parte alguma do que em Absheron, onde se situa a capital, Bacu. Na minha
visita pela península sou guiado por duas estudantes universitárias. São
irmãs, mas, quanto a matéria de fé, não podiam ser mais diferentes. Uma
delas é uma fiel xiita, que consegue recitar todas as histórias dos velhos
imãs. A outra é uma autoproclamada ateia, que parece ter passado pela
escola religiosa sem ter adquirido o menor vestígio de fé, ou sequer de
instrução. Começámos a nossa visita em Buzovna, no extremo oriental da
península. Aqui se situam algumas das praias mais em voga do Azerbaijão e
as mais tradicionais e fiéis comunidades, como Nardaran, onde as mulheres
envergam xadores e o Irão tem exercido uma crescente influência. De
verão, as filhas dos oligarcas locais, envergando biquínis, têm de ter
cuidado para não se afastarem para o extremo ocidental da praia. Mais para
o interior, encontra-se Sumgayit, onde os salafitas sunitas se tornaram
ultimamente uma força a considerar.
Conforme nos dirigimos ao mar em Buzovna, através de um labirinto de
estreitas ruelas, entramos numa área chamada Nyazaranly, o bairro
nazareno. Os nazarenos formavam uma ligação entre os judeus e os
primeiros cristãos, uma seita de seguidores de Jesus que se encontravam
ainda muito próximos do judaísmo. As minhas guias conduziram-me até um
velho templo, do qual apenas dois arcos restavam. Os aldeões falam ainda
de como uma cruz cristã foi ali encontrada, oculta sob uma desinteressante
cobertura de argamassa. Este é um templo cristão muito antigo, datando de
uma altura em que os judeus e os cristãos de algum modo ainda se
sobrepunham. Quando nos aproximávamos do templo – Tarsa Pir, como é
conhecido – reparei que o chão estava coberto de vidro de garrafas partidas.
As paredes estão perfuradas por pregos dos quais pendem peças de roupa
deixadas pelos peregrinos. E um grupo de duas idosas e uma divertida
rapariga circulam o templo sete vezes, como a tradição prescreve. Todos
estes rituais pretendem curar uma pessoa dos seus medos mais profundos.
Já vi alguns deles sob diferentes formas noutros locais, mas o modo como
tantos rituais se acumularam uns sobre os outros é algo, ao que creio, que
apenas se vê no Azerbaijão. Perdidos entre tantos impérios em guerra, os
azerbaijanos há muito que aprenderam a não aspirar a uma História linear e
progressiva. Tudo deve ser deixado para aqueles que vierem a seguir. Nunca
deverão tentar aprender com o passado mais do que aquilo que o passado
sabia sobre si próprio. E, assim, tudo o que se perdeu poderá acabar por ser
recuperado. Em Nardaran, por exemplo, depois de tantas vagas de guerra,
conquista, exploração petrolífera, redesenvolvimento urbano e violentas
políticas religiosas, a antiga fortaleza de 1301 mantém-se perfeitamente
intacta, abandonada a um canto, sem ninguém dar por ela. No Azerbaijão, a
zona destruída perdura a cada momento, permanece a cada momento.
A mulher encarregada de Tarsa Pir entrega-me uma garrafa de vidro.
Devo esmagá-la contra a pedra no centro do templo em ruínas. Isso torna-se
um pouco mais difícil do que eu supunha. Depois de a minha primeira
tentativa ter sido demasiado débil para quebrar uma robusta garrafa de
refrigerante e a segunda apenas conseguir arranhar a rocha, oiço dizer em
azeri à improvisada sacerdotisa que os meus medos devem ser muito fortes.
Remédio santo. O meu terceiro arremesso esmaga a garrafa em pequenos
estilhaços, que agora se juntam à pilha de vidro partido em Tarsa Pir.
Na Europa, onde a História e o progresso têm marchado à frente durante
meio milénio, as linhas entre o presente e o passado são, quanto muito,
demasiado nítidas e precisas. Na Ásia, que até recentemente viveu fora de
qualquer movimento histórico, a ideia do passado é tão nova que,
paradoxalmente, só agora está a começar a ser construída e pertence
sobretudo ao futuro. Todavia, no Cáucaso o passado faz parte do presente.
As sucessivas vagas de novos povos, religiões e crenças criaram uma
paisagem humana parecida com os sedimentos geológicos em que as
camadas inferiores vêm à superfície sob formas imprevistas e
surpreendentes e onde nunca se tem a certeza de haver alcançado o fundo.
O arquiteto local Pirouz Khanlou acha que «Bacu talvez seja a única
cidade verdadeiramente eurasiática no mapa mundial, não apenas em
termos geográficos mas na sua capacidade única para sintetizar tanto os
estilos europeus como os asiáticos, que são indicativos da síntese mental
que ocorreu tanto nos domínios culturais como sociais1». Se passearem ao
longo da Rua Murtuza Mukhtarov, outrora chamada Persidskaya, ou Persa,
poderão ver o que ele quer dizer. Num dos extremos, encontrarão a Casa
Guliyev, construída em 1899. Agha Bala Guliyev, dono de fábricas de
farinha e empresário do primeiro gasoduto do mundo, parece ter
permanecido durante toda a sua vida desinteressado pelos gostos europeus.
Aquilo que transmitiu ao arquiteto polaco Eugeniusz Skibinski para
desenhar foi uma afirmação do Oriente, com a fachada exterior decorada
com motivos de estalactites e uma escadaria luxuosamente ornamentada
com pinturas evocativas da vida oriental, com os seus bazares, pátios,
minaretes, cúpulas cónicas de mesquitas, camelos e cenas da poesia persa e
árabe. Se caminharem até ao outro extremo da rua, encontrarão o Palácio da
Felicidade, construído pelo barão do petróleo Murtuza Mukhtarov em 1911,
como uma réplica exata de uma igreja gótica francesa que a sua jovem
esposa vira e pela qual se apaixonara durante uma das viagens que fizeram
juntos pela Europa. Quando ficou pronta, Mukhtarov levou-a até lá de
carruagem e disse-lhe que aquele era o seu novo lar.
Depois há a mansão muito especial construída pelo barão do petróleo
Haji Zeynalabdin Taghiyev, ocupando um quarteirão inteiro, perto da costa
do Cáspio. Em lados opostos do edifício encontram-se dois grandes salões
de baile com altas janelas de painéis de vidro e enormes candelabros: um
dos salões chama-se «oriental» e o outro «europeu». São sumptuosamente
decorados como os seus respetivos nomes sugerem, dois mundos diferentes
congelados numa eterna oposição.
A profunda ironia do Azerbaijão é que, embora se situe no centro do
supercontinente eurasiático, está o mais longe possível de qualquer centro.
Pelo próprio facto de ser um cruzamento de diferentes civilizações, um
cruzamento da grande divisão civilizacional entre a Europa e a Ásia, o
Azerbaijão esteve sempre sujeito a múltiplas influências vindas do exterior,
incapaz de formar a sua própria narrativa inclusiva ou grande teoria da
História. É por isso que aqui o tempo histórico assume a forma peculiar em
que diferentes passados convivem lado a lado e nunca podem ser deixados
para trás. Nisto é semelhante a Nova Deli, também uma zona de colisão de
impérios, que o escritor William Dalrymple descreveu como uma cidade
onde «todas as diferentes eras do Homem estavam representadas nas
pessoas» que a habitavam e onde «os diferentes milénios coexistiam lado a
lado»2.

A tentação do Cáucaso

As fronteiras naturais da Europa consistem a norte no mar Polar


Norte, a oeste no oceano Atlântico e a sul no mar Mediterrâneo. A
fronteira oriental da Europa estende-se através do Império Russo, ao
longo das montanhas dos Urales, através do mar Cáspio e da
Transcaucásia. Alguns académicos consideram a área a sul das
montanhas do Cáucaso como pertencendo à Ásia, ao passo que
outros, tendo em conta a evolução cultural da Transcaucásia, acham
que este país deverá ser considerado parte da Europa. Poderá
portanto dizer-se, meus filhos, que é em parte vossa
responsabilidade decidir se a nossa cidade deverá pertencer à
progressista Europa ou à reacionária Ásia.

Assim começa Ali e Nino, o romance de 1937 de Kurban Said, um


pseudónimo ainda de duvidosa atribuição. A primeira cena leva-nos ao
Liceu Humanístico Russo Imperial de Bacu, na província russa da
Transcaucásia, onde 40 alunos assistem a uma aula sobre a extraordinária
posição geográfica da sua cidade. Aquilo que o professor lhes estava a dizer
não era apenas que viviam entre dois continentes, mas também que, através
de um processo de transformação cultural, poderiam saltar sobre a elevada
barreira montanhosa do Cáucaso e juntarem-se à muito cobiçada Europa.
Um dos alunos levanta então a mão e diz:
«Por favor, senhor professor, devíamos ficar antes na Ásia.» Ele não é
capaz de explicar porquê, mas o narrador e protagonista do romance, Ali
Khan Shirvanshir, intervém para o ajudar. Ele gosta da Ásia, mas está
apaixonado por Nino Kipiani, «a mais bela rapariga do mundo», e quando
lhe conta a sua batalha com o velho professor de geografia, Nino não é
muito simpática:
«Ali Khan, és estúpido. Graças a Deus que estamos na Europa. Se
estivéssemos na Ásia, já me tinham obrigado há muito tempo a andar de
véu e não podias ver-me.»
Nino tinha razão.
O romance prossegue neste tom travesso, com diferentes acessos de
ironia em lugares inesperados. É um romance acerca da Europa e da Ásia,
sendo a sua união simbolizada pela história de amor de Ali e Nino, um
muçulmano de Bacu e uma cristã da Geórgia, com as suas divisões e
separações a irem tão longe quanto a alma humana.
A sua vida de casados oscila entre os dois polos da Europa e da Ásia.
Depois de derrotar os dois impérios muçulmanos a sul, a Rússia pode tornar
agora o Cáucaso completamente seu. Ali e Nino fogem para Teerão, mas ela
ali é infeliz, isolada no harém e guardada por um eunuco. Não pode sair à
rua sem usar véu, nem falar com estranhos. Regressam a Bacu, que acaba
de ser libertada e coroada como capital de um novo país. O perigo da
Rússia reaparece e eles têm a oportunidade de começar uma nova vida em
Paris, mas Ali explica que ele seria lá tão infeliz quanto Nino fora na Pérsia.
Em Paris, seria ele a sentir-se constantemente exposto a uma força maligna,
como lhe acontecera a ela em Teerão. Por isso, parece apropriado que
permaneçam em Bacu, onde a Ásia e a Europa se encontram, onde
nasceram e onde o seu amor nasceu. O romance termina quando a cidade é
invadida pela Rússia soviética, sedenta do seu petróleo. Ali é morto e o
novo país do Azerbaijão cedo desaparece.

No Cáucaso, a região entre os mares Negro e Cáspio, cada História


nacional e cada tipo humano foram comprimidos a um espaço mínimo. As
montanhas são inúmeras e as pessoas que vivem nos vales são
frequentemente de raças sem qualquer relação, falando línguas tão
diferentes como as orgulhosas línguas europeias entre si. Montanhas,
ravinas profundas, picos nevados e, entre eles, castelos e aldeias
alcandoradas nas encostas. A visão do viajante perde-se na distância e
sente-se que seria preciso viver pelo menos tantos anos como o mais velho
habitante da mais remota aldeia antes de se começar a perceber o que se
tem pela frente. Em parte, tal deve-se à cordilheira montanhosa, que se
estende sem fim. Os picos separam aldeias e vales, multiplicando a
distância. É também o resultado do facto extraordinário de, durante séculos,
o Cáucaso ter sido o ponto de encontro de três impérios, ou antes, de três
civilizações, beneficiando das três, movendo-se em diferentes direções ao
mesmo tempo. O moderno Cáucaso nunca se tornou verdadeiramente uma
parte nem da Rússia, nem do Irão, nem da Turquia, mas foi profundamente
influenciado pelos três. A cordilheira montanhosa continuou a ser a barreira
entre a civilização e o barbarismo, mesmo apesar de essas forças terem
mudado de lado por algumas vezes.
O Cáucaso é uma terra de contos de fadas. Lembro-me de entrar numa
livraria do outro lado da rua do Hotel Alexandrov­sky, em Vladikavkaz, a
cidade russa à beira das montanhas na estrada para a Geórgia, e de ter
encontrado um velho livro com algumas referências a uma Aldeia dos
Mortos, Дæргъæвсы зæппæдзтæ, no vale de Dargavs. O meu motorista
parecia mais ou menos familiarizado com a região, por isso arrisquei e
partimos, subindo as montanhas a sul da cidade. A estrada é estreita e
serpenteante, mais difícil de percorrer no início de janeiro, mas depois de se
atravessar para o outro lado entra-se num comprido vale com um pequeno
rio. Não havia mais de uma meia dúzia de casas. O motorista parou e
perguntou se alguém ouvira falar de uma Aldeia dos Mortos. Um dos
homens apontou para leste, mas de facto conseguia já ver-se à distância.
Pequenas criptas amarelas com telhados com cumeeiras cobriam uma
encosta, parecendo uma aldeia – só que os habitantes são esqueletos,
perfeitamente preservados, visitantes de uma era distante sobre os quais
quase nada se sabe. Enquanto voltávamos, passando por penhascos cobertos
de neve, a visão daqueles esqueletos tornava-se cada vez mais irreal.
Quantos sítios como aquele esconderia o Cáucaso?
Para aqueles que chegam vindos da Rússia, o Cáucaso é a imagem em si
de uma região fronteiriça: exótico, diferente, nunca completamente
submetido ou absorvido, a linha limítrofe entre norte e sul, mas também
entre ocidente e oriente. Eu chegara a Krasnodar vindo de Volgogrado e
sentia pela primeira vez que não estava já propriamente na Rússia. O clima
era muito mais suave e com o clima mais quente tudo começa a mudar: de
repente, as ruas são construídas para os peões e as praças tornam-se
genuinamente espaços públicos. Os passeios noturnos que as pessoas desde
Lisboa a Istambul tornaram num ritual que faz parte da sua cultura já não
são uma imagem distante. Se a Rússia conseguir transformar a sua costa do
mar Negro num destino turístico internacional, Krasnodar poderá tornar-se
o principal ponto de chegada e, dessa forma, mais uma vez uma espécie de
posto fronteiriço, num sentido diferente em que foi pela primeira vez
fundada, depois de uma doação de terras aos cossacos do mar Negro. Para
um país que sonhou com uma nova capital no sul, banhada pelos mares
quentes, um país que construiu Odessa e se sentiu destinado a conquistar
Constantinopla, Krasnodar poderá ser tudo o que resta do sonho meridional.
Na elegante Rua Krasnaya, as lojas de roupas, os animados cafés e os
restaurantes étnicos internacionais competem para atrair a alegre multidão
de jovens que se apressam passeio acima e abaixo. Numa das lojas, a
designer de moda Susanna Makerova está a lançar a sua nova coleção. Um
pequeno grupo de pessoas juntou-se numa disposição festiva. Três altas
modelos russas exibem alguns dos artigos mais brilhantes da coleção. Nos
seus saltos incrivelmente altos mal conseguem andar e só elas se mantêm
afastadas do prosecco.
«As roupas são neoétnicas, sobretudo circassianas», diz-me Makerova.
Em todo o seu trabalho, Susanna esforça-se por combinar as roupas
nacionais tradicionais com as tendências mais contemporâneas da moda.
Espantosamente, consegue-o, ou pelo menos é o que me parece. E fá-lo
através de uma espécie de minimalismo. A nova coleção nem é obviamente
étnica, nem obviamente contemporânea. Nenhum dos lados da equação
original suspeitaria da presença de elementos estranhos. Susanna diz-me
que a beleza feminina não pertence ao Oriente nem ao Ocidente, mas que os
une numa qualidade comum. A nova coleção tenta combinar temas
circassianos tradicionais – os vestidos circassianos são compridos e direitos,
de modo que as mulheres parecem sempre estar a deslizar sobre o chão –
com a estética do ballet clássico russo e a fotografia do artista americano
contemporâneo Ja’bagh Kaghado.
Já ouviram falar da Circássia? Costumava constituir um grito ouvido na
Europa e na América por volta de meados do século XIX, quando este povo
indígena da região noroeste do Cáucaso lutava até às suas últimas forças
contra a matança militar russa vinda do norte. Houve alguns protestos
diplomáticos e públicos nas capitais ocidentais, mas por razões que por
vezes tinham mais que ver com preocupações geopolíticas acerca do
crescente poder russo e com o início daquilo que viria a ser uma ameaça
direta à Índia Britânica. Ninguém foi capaz de deter a Rússia, que via a
costa do mar Negro como permitindo uma ocupação mais rápida e
permanente do que a região mais montanhosa a oriente. A destruição final e
completa da Circássia, que ocorreu depois de a França e os otomanos terem
concordado que a área a sul do rio Kuban pertencia à Rússia, merece ser
considerada como o primeiro genocídio moderno. Os circassianos foram
deslocados, reinstalados e deportados para o Império Otomano e, em
múltiplos casos, mortos em massa ou à fome. Desde então, vivem dispersos
por uma dúzia de países e o seu número na Turquia provavelmente excede o
da Rússia. Muitas dessas comunidades deslocadas foram capazes de
preservar a sua forma de vida tradicional completamente inalterada, mas os
circassianos são também conhecidos por casar fora do seu grupo.
A migração em massa deixou para trás uma velha cultura, mas que
estava agora quebrada e fragmentada, separada da sua origem e pronta a ser
apropriada sob novas formas estranhas. Esses pensamentos estavam
inevitavelmente no meu espírito enquanto observava as altas modelos
russas, envergando modernos vestidos circassianos como um troféu de
guerra e as roupas por ali penduradas com preços que, fora de Moscovo,
seriam considerados proibitivamente caros.
Makerova tinha de regressar à sua cidade natal de Maykop logo a seguir
ao almoço, por isso fui deixado a conversar com a sua gestora e agente,
Saida Panesh. Ela tem um doutoramento em Linguística, por isso, quando
não está a agendar desfiles de moda na Rússia e na Europa, dá aulas na
Universidade Estatal de Kuban de linguística, história e mitologia.
Questionei-a sobre o seu nome.
«Sou circassiana.»
«A Susanna também é circassiana?»
«Sim».
Enquanto tomávamos um café numa cafetaria de estudantes próxima,
embrenhámo-nos profundamente numa discussão acerca dos diferentes
significados da Europa e da Ásia e das diferenças entre elas.
Panesh acha que a diferença é real. Os circassianos são racialmente
muito próximos ou mesmo semelhantes aos povos europeus, limita-se a
dizer, mas a forma como se relacionam com a vida é muito mais próxima do
modo como os asiáticos vivem: enraizados na tradição, seguindo ou
obedecendo a códigos de honra, que poderão ser diferentes para os homens
e as mulheres e, ainda mais importante, tendo obrigações para com a
família que se sobrepõem a tudo o resto. Quando mencionei que fora uma
infelicidade que a diáspora circassiana terminasse em regiões atingidas pela
guerra como a Síria ou os Balcãs, ela explicou-me que isso não se deve de
forma alguma ao acaso. Os homens circassianos são lutadores, por isso é de
esperar que acabem sempre em lugares onde as suas qualidades sejam
valorizadas. Panesh está claramente interessada na questão de saber se essas
características guerreiras do seu povo são permanentes e se serão
compatíveis com o mundo moderno.
Estou bastante habituado a ver o contraste estabelecido dessa forma, por
isso repito o meu argumento de que essas distinções têm que ver com o
facto de uma sociedade ser moderna ou tradicional e não de ser europeia ou
asiática. Desenho um diagrama num guardanapo com duas linhas
evolucionárias. Estas linhas convergem quando duas sociedades se tornam
completamente modernas? As suas diferenças são o resultado de se
situarem em pontos diferentes das duas linhas? A questão não consiste em
se saber se os dois pontos nas duas linhas são diferentes, pois podemos
sempre encontrar dois pontos desses, mas se as próprias linhas são
diferentes.
A minha interlocutora fica muito séria. Olha para o diagrama e depois
de novo para mim. Acho que compreende o meu ponto, mas há uma ideia
que ela vê imediatamente como repulsiva. Como é que eu posso falar de
linhas evolucionárias, como se uma sociedade moderna fosse mais
avançada do que uma sociedade tradicional? As sociedades europeias não
são certamente mais avançadas, em sua opinião. Acima de tudo, falta-lhes
espírito. Os europeus são fúteis, simplórios, sem profundidade. Panesh está
disposta a abrir uma exceção para os italianos ou para os europeus do Sul
mais em geral, que ela pensa poderem descender diretamente dos povos
caucasianos, mas as ideias preponderantes da Europa contemporânea
limitam-se à redução da vida e do espírito a um esqueleto rígido. E a
pergunta que eu deveria fazer é a seguinte: como é que as opiniões que
reduzem a abundância e empobrecem o mundo se tornaram tão poderosas?
«Os europeus», explica, «só podem dizer-me aquilo que eu não sou.
Podem dizer-me que não sou circassiana, que não sou uma mulher, que eu
nunca devia sentir-me feliz por ser uma mulher circassiana e talvez chegue
um dia em que me digam mesmo que não estou viva e a respirar e que
nunca devia contentar-me em ser simplesmente uma criatura viva. Portanto,
dizem-me o que não sou, mas nunca conseguem dizer-me aquilo que sou».
Panesh tinha razão a respeito de a minha conversa sobre linhas
evolucionárias ser, em última análise, absurda. Para se saber que uma
civilização ou um país é mais avançado que outro, é preciso que se conheça
o ponto de partida e o de chegada do progresso cultural humano, mas não
existe forma de conhecê-los, se não tivermos as linhas evolucionárias já
desenhadas à nossa frente. O círculo lógico não pode ser quebrado.
Há momentos em que se consegue ver o passado tão claramente como
se estivesse à nossa frente, quando a evocação do tempo passado de súbito
desperta aquilo que não sabiam poder recordar. O efeito é mais forte quando
a memória é nova, quando é a primeira vez que recordamos um episódio
passado. E há alturas, evidentemente, em que parece que antecipamos o
futuro com grande certeza, quase como se estivéssemos nós mesmos a criá-
lo. Para mim, todas essas experiências têm um certo padrão, que a minha
conversa em Krasnodar tornou claros. Panesh representava todos esses
movimentos. Aspirava a viver numa sociedade moderna, onde alguém pode
escolher ser o que quiser e viver muitas vidas ao mesmo tempo. Mas
conseguia já ver como esse sonho se esvaziaria no próprio momento em que
se realizasse, pois aqueles que podem ser qualquer coisa não são nada na
sua raiz. Por isso, sentia-se já nostálgica em relação àquilo que era, mesmo
enquanto esperava deixar essa vida para trás. Os mundos europeu e asiático
estavam comprimidos num só.

O centro do mundo
Tive bastante dificuldade em adormecer, por isso pouco depois de o Sol
nascer deixei a minha cabine refrigerada e dirigi-me à ponte, não antes de
deitar a mão a uma fatia de pão no convés. Estávamos mais ou menos no
meio do mar Cáspio, perto do disputado campo petrolífero de Kapaz. O
tempo, encoberto quando partíramos de Alyat, prometia um dia bonito e
claro e a luz da manhã adquiria cores invulgares ao refletir as águas calmas,
muito diferentes das ondas bravas de que me lembrava entre Derbent e
Buzovna. O Cáspio é um lago que foi outrora um mar e mantém nas suas
muitas cores diferentes a memória desta transformação. Imaginem um mar
aberto, sem sinal de terra em nenhum dos lados, mas onde a água, não
limpa e sem cor como a água do oceano, se separa em faixas de infindas
cores em mudança, dependendo da luz e do ângulo das nuvens no
horizonte.
Ao olharmos para o mapa, poderíamos pensar que o Cáspio é um grande
núcleo de transportes, o cruzamento entre a Ásia Central a oriente e a
Europa a ocidente, entre a Rússia a norte e o Irão e o Médio Oriente a sul.
Na realidade, funciona mais como uma barreira do que como uma ponte.
Olhei em volta para o mar vazio em nosso redor. Estava sozinho no meio do
maior lago na maior massa terrestre da Terra e o espaço vazio apenas
poderia ser preenchido com memórias casuais de velhos livros. Pensei em
Stepan Razin, a impossível combinação de um cossaco e um pirata das
Caraíbas, que se lançou à aventura e saqueou o Cáspio, atormentando
ininterruptamente os russos ao longo da costa norte e os persas ao sul, até à
sua sangrenta execução na Praça Vermelha de Moscovo, em 1671. Durante
a sua incursão mais famosa, capturou dois navios de mercadorias que
transportavam puros-sangues persas, uma dádiva do xá ao czar Alexis.
Olhei para leste e pensei em Muhammed, xá da Corásmia, que mudou o
curso da História quando executou os emissários de Gengis Khan, incitando
o grande conquistador a voltar a sua atenção para ocidente, o que resultou
na completa destruição de Samarcanda, Bucara, Otrar e todas as outras
lendárias cidades que eu iria visitar nos meses seguintes. Muhammed
passou os seus últimos dias a fugir das hordas que avançavam e morreu de
pleurisia numa ilha do Cáspio.
Uma vez que não existem navios de passageiros a atravessar o Cáspio, a
nossa única opção é comprar um bilhete para um navio de carga. A maioria
aceita uma mão-cheia de passageiros para fazer algum dinheiro extra, mas
não existem horários fixos. Temos de esperar por um navio que esteja
completamente carregado e pronto para partir. Felizmente, uma prestável
senhora russa que trabalha para a empresa de navegação não se importa de
nos fornecer o seu número de telefone. No entanto, de cada vez que lhe
telefonava, a resposta era sempre a mesma: hoje não há barcos,
provavelmente amanhã também não e se houver algum é com carregamento
de petróleo, por isso não serão permitidos passageiros.
Esta era a empresa pública do Azerbaijão. O Turquemenistão tem um
navio que opera na mesma rota de transporte, o Berkarar. Disseram-me que
era mais moderno, com melhores instalações para os passageiros, mas
ninguém sabia onde estava nem quando partia e a companhia não tinha
escritório em Bacu.
Estava prestes a desistir de alguma vez conseguir fazer a travessia.
Então, subitamente, recebi uma mensagem de Vika, a prestável senhora
russa: acabara de ser feita uma descarga, por isso iria partir um barco dentro
de duas ou três horas. Corri para o porto de Bacu onde era vendido o
bilhete, mas o navio partia na verdade de Alyat, a uma hora de carro mais a
sul, passando por Gobustão, o local de gravuras rupestres com dezenas de
milhares de anos. Os outros passageiros deram-me boleia no seu carro.
Eram jovens turcomanos que regressavam a casa, os quais se lembraram
devidamente de parar num supermercado para adquirirem um verdadeiro
suprimento de álcool. Antecipando uma lauta refeição mais tarde nessa
noite com a tripulação do navio, peguei apenas num pacote de passas para a
sobremesa.
Quando os contentores são transportados para o seu destino final na
Europa ou na Ásia Central, ou na China por via ferroviária, são transferidos
para e do navio diretamente e usam o terminal do novo porto de Alyat em
vez do velho terminal de Bacu. Com a conclusão da primeira fase da
expansão do porto durante o próximo par de anos, todas as operações
intermodais serão feitas aqui. Alyat está bem posicionado para se tornar o
maior e mais moderno porto do Cáspio.
Passar no controlo da imigração foi surpreendentemente fácil, por isso
ficámos completamente instalados nas nossas cabines com tempo livre
antes da partida. Eram as cabines mais nuas que podem imaginar: um
beliche, um colchão velho sem cobertores. Na medida em que a temperatura
rapidamente descerá abaixo de zero e não havendo aquecimento no navio,
aquela irá transformar-se numa longa noite sem dormir. Não havia
tripulação à vista, por isso a ideia de uma refeição quente teria também de
ser revista. Pouco antes de o Sol se pôr, o barco começa a balancear.
Partimos.
Uma ou duas horas após a partida de Alyat, consegui ver as luzes de
Neft Dashlari. Esta é a primeira das cidades imaginárias do Cáspio, lugares
tão implausíveis que temos dificuldade em acreditar que são reais. Neft
Dashlari é uma cidade inteira no meio do mar, com centenas de quilómetros
de estradas ligando diferentes plataformas petrolíferas, edifícios de
apartamentos parcialmente submersos albergando milhares de trabalhadores
do petróleo, escolas e cinemas, hotéis e até um parque com alamedas de
árvores. Foi a primeira plataforma petrolífera off-shore e a sua instalação
central ficou assente num alicerce que consiste em sete navios afundados,
incluindo o primeiro petroleiro do mundo, o Zoroastro, lançado ao mar em
Bacu em 1878. Um velho selo soviético representa a instalação como um
símbolo da conquista da natureza pelo Homem, uma estrada serpenteante
construída sobre as águas e estendendo-se até um brilhante Sol vermelho no
horizonte.
Gosto da história acerca de como o petróleo foi aqui descoberto pela
primeira vez. A tecnologia para identificar os campos petrolíferos off-shore
não existia, mas o conhecimento circulara entre os marinheiros durante
décadas, mesmo séculos, segundo o qual os perigosos escolhos e rochas
nesta área podiam ser evitados confiando no olfato: o cheiro a petróleo
durante uma tempestade era sinal de perigo. Enquanto deixamos Neft
Dashlari para trás, novas luzes de plataformas mais recentes, entrepostos do
império petrolífero do Azerbaijão, brilham em nosso redor: a Chirag, a East
Azeri, a Deepwater Guneshli, a Shah Deniz.
A linha reta que estamos a tomar de Bacu para Turkmenbashi poderá um
dia tornar-se a rota da energia que leve o petróleo e o gás da Ásia Central
para a Europa. Há um projeto para construir um oleoduto transcaspiano
ligando as costas oriental e ocidental, sugerido pela primeira vez há
exatamente 20 anos. Nada de muito especial aconteceu para além dos
habituais estudos de viabilidade e das negociações preliminares, mas a
União Europeia continua a incluí-lo entre os seus projetos de interesse
estratégico vital, mais recentemente nos planos atualizados para o Corredor
de Gás do Sul, que foram publicados em 2016.
Se o Azerbaijão quiser tornar-se não apenas um produtor de energia,
mas também um eixo de energia global, precisa desta crucial peça de
infraestrutura. Para o Turquemenistão, uma ligação de fornecimento para o
Ocidente seria uma via bem-vinda de diversificação energética, uma vez
que se encontra agora inteiramente dependente da China. Neste momento,
existem duas linhas de condutas: uma que vai para a China, com uma
capacidade atual de 55 mil milhões de metros cúbicos por ano, e outra para
a Rússia, com uma capacidade de 80 mil milhões de metros cúbicos. O
gasoduto Turquemenistão-China entra no Usbequistão em Olot e atravessa
o Usbequistão Central e o Sul do Cazaquistão, antes de chegar a Khorgas,
na fronteira chinesa. De acordo com a BP, o Turquemenistão situa-se em
quarto lugar no mundo em termos de volume de reservas de gás. No
entanto, o país enfrenta um certo número de obstáculos que impedem que as
suas reservas atinjam o mercado mundial. Desde o início de 2016, devido a
um desacordo sobre os preços, a Rússia deixou por completo de importar
gás turcomano. Mais tarde, nesse mesmo ano, uma disputa de preços com o
Irão deixou a China como o único mercado de exportação do país.
Previsivelmente, o Irão e a Rússia criticaram o projeto transcaspiano,
que reduziria grandemente a sua pressão sobre a Europa. Em 2011, por
exemplo, quando as conversações para seguir em frente com a construção
da conduta começaram a parecer mais sérias, a Rússia declarou que o
projeto era uma forma de «ingerência» e que aumentaria as tensões na
região. Em 2012 o Irão avisou que o outro nome do mar Cáspio – o mar da
Paz e da Amizade – mudaria se a construção da conduta fosse em frente. A
conduta viria de Turkmenbashi até Bacu, onde iria ligar-se à linha do
Cáucaso do Sul e depois à linha transanatoliana, ligando-se à rede de gás
europeia na Grécia. Esta poderia bem ser a única forma de a Europa
assegurar o acesso à energia na Ásia Central sem ficar dependente nem do
Irão nem da Rússia.
A história geológica do mar Cáspio é uma montanha-russa de
transformações, desde o momento em que ficou isolado do oceano com a
vasta fratura da bacia terrestre, separando-se em massas mais pequenas de
água rodeada de terra, como o Aral e o mar Negro. A sua história
geopolítica é igualmente convulsa. Antes da queda da União Soviética, o
Cáspio era partilhado por apenas dois Estados, a URSS e o Irão. Há cem
anos, era essencialmente um lago russo, com o Norte da Pérsia em grande
parte sob controlo russo. Hoje, estes dois países olham para os seus três
novos vizinhos – o Azerbaijão, o Turquemenistão e o Cazaquistão – com
um menosprezo mal disfarçado, à medida que a cada ano ganham um novo
grau de independência que aumenta a complexidade geopolítica da região.
Na verdade, a política do gasoduto eurasiático é uma ciência oculta. Os
projetos são anunciados e cancelados múltiplas vezes. Veja-se o recente
exemplo do TurkStream, que pretende ligar a Rússia à Turquia sob o mar
Negro e que é supostamente capaz de substituir o projetado Oleoduto
Transcaspiano. O Turk­Stream começou a ser considerado depois de a União
Europeia bloquear o avanço do desenvolvimento do South Stream, uma
conduta concebida para transportar o gás natural russo da região de
Krasnodar através do mar Negro até à Bulgária e, em seguida, para a
Europa Central e Ocidental. Nessa altura, a Turquia exibiu um alto nível de
subtileza diplomática e inteligência: conseguiu negociar um entendimento
com a Rússia, ao mesmo tempo que a pressionava suavemente para que
abandonasse o South Stream, ganhando assim também o aplauso da União
Europeia. Mais tarde, o projeto TurkStream conheceu dificuldades e foi
abandonado depois de um bombardeiro russo ter sido abatido em 2015 pela
Força Aérea Turca e as relações entre os dois países terem azedado.
Mais recentemente, o acordo reemergiu e foi assinado a 10 de outubro
de 2016, durante uma reunião em Istambul entre os presidentes Erdoğan e
Putin. Sem dúvida que as dificuldades técnicas e financeiras persistem. Foi-
me dito durante uma visita ao ministro dos Negócios Estrangeiros búlgaro
em 2015 que o tipo de compressores necessários para bombear gás no leito
do mar Negro já não pode ser obtido pela Rússia junto da União Europeia
nem dos Estados Unidos, uma vez que caem sob a alçada do regime de
sanções em vigor, deixando apenas o Japão como possível, mas relutante,
fornecedor. Em termos mais gerais, o investimento no novo traçado seria
considerável e poderá tornar-se proibitivo se não houver uma garantia firme
de o gás poder ser vendido na Europa, bem como na Turquia. Uma vez que
as mesmas regras de concorrência da União Europeia que condenaram o
South Stream continuam em vigor, essa garantia é difícil de obter. Contudo,
seria um erro pensar que nenhum destes projetos será alguma vez
completado. O mundo precisa de petróleo e de gás, por isso acabará por
existir um vencedor, depois de Governos e multinacionais se debaterem
sabotando-se uns aos outros e influenciando futuros projetos com as armas
cortantes da confiança dos investidores. Os pipelines são a continuação da
guerra por outros meios.
Não há melhor símbolo do mundo de interdependência e competição do
que este mar interior, lar de algumas das maiores reservas de energias
fósseis do mundo e, contudo, um sítio onde as regras do jogo político se
mantêm visivelmente indefinidas. Ser o centro do mundo é, ao mesmo
tempo, uma maldição e uma bênção: as fontes energéticas do Cáspio são de
grande interesse para a Europa, a China e a Rússia, mas a questão de como
as levar até ao seu destino, ou talvez até ao mar aberto, continua a ser
extremamente complexa. Vejo o Cáspio como um excelente exemplo de
integração competitiva. Junta inextrincavelmente os cinco países costeiros,
cria inumeráveis variáveis de interdependência e força-os a cooperar,
enquanto ao mesmo tempo eleva a competição a um alto nível e estabelece
a plataforma para essa intensificada competição. Desempenha papéis de
ligação e de divisão.
Não admira que os cinco países estejam a construir as suas armadas
caspianas, antecipando um momento de crescente competição pelos
recursos e talvez imitando um jogo de computador com um estranho vírus,
que força os jogadores a acumularem um número cada vez maior de navios
num mar interior, o que não deixa de ser um local um pouco estranho. Em
outubro de 2015, uma fragata e três contratorpedeiros da Esquadra do
Cáspio russa lançaram 26 mísseis de cruzeiro Kalibr 3M-14T sobre 11 alvos
na Síria. Percorreram 1 600 quilómetros através dos espaços aéreos iraniano
e, depois, iraquiano, antes de atingirem locais nas províncias de Raqqa,
Alepo e Idlib. Foi uma impressionante ilustração de como o Cáspio ocupa
de facto uma posição central e estratégica. Tornou também evidente que o
alcance de uma marinha moderna não se confina necessariamente à sua
zona operacional. Finalmente, foi uma mensagem para os Estados do
Cáspio de que a Rússia goza de uma considerável superioridade na área,
sendo capaz de escolher alvos à sua vontade e com impunidade. Foi esse o
verdadeiro início da intervenção russa na Síria e a Esquadra do Cáspio tem
continuado a desempenhar um papel estratégico no conflito. Os navios
armados com mísseis Kalibr usados no mar Cáspio foram enviados uma
série de vezes em auxílio das Forças de Defesa Aeroespacial do país.
Deve ter sido por volta do meio-dia que avistámos a segunda cidade
imaginária. A princípio, Avaza parece uma ilha, porque os edifícios altos,
marmóreos e brancos estão ainda completamente rodeados por água na
linha do horizonte. O que será aquela ilha? Os edifícios parecem demasiado
imaculados para fazerem parte de uma plataforma industrial, o contraste
perfeito com a cidade negra de Neft Dashlari. Quando o Azerbaijão, o
nosso navio – uma beleza enferrujada construída nos estaleiros Pula da
antiga Jugoslávia em 1985 – guina para sul para a última etapa da travessia,
a ilha branca desaparece e quase me convenço de que fora uma espécie de
miragem aquática, talvez provocada pelos desertos que circundam o Cáspio
como um oceano exterior.
Quando a cidade branca reaparece, estamos a aproximar-nos de
Turkmenbashi; já não é uma ilha, mas mesmo assim os seus edifícios fazem
parecer pequenos os da cidade, incluindo o grande hotel em que fiquei.
Turkmenbashi é uma cidade maravilhosamente pitoresca, aninhada entre o
mar e as baixas montanhas rochosas, ainda bem preservada como o posto
avançado colonial russo que outrora foi, a primeira estação do caminho de
ferro transcaspiano, seguindo o percurso da velha Rota da Seda até Andijã,
no vale de Fergana, local de nascimento do conquistador Babur. Se
visitarem o pequeno museu local ouvirão uma sucessão de histórias onde o
distante e o próximo são misturados, histórias dos operários turcomanos que
remaram numa canoa de Turkmenbashi até Astracã e pelo Volga acima, ou
das tribos do deserto de antanho, que plantavam sempre uma árvore
próximo das suas iurtes, para que a geração seguinte tivesse a madeira
necessária para construir as suas próprias iurtes. Eu iria apanhar o comboio
da noite para a capital, Asgabate, daí a dois dias, mas por enquanto a tarefa
seria passar pela imigração e pela alfândega, o que levaria três ou quatro
horas, mesmo sendo eu o único estrangeiro a chegar nesse dia, ou, mais
provavelmente, nesse mês, a Turkmenbashi. Consegui também ver a carga
que tínhamos transportado: tubagens de petróleo usadas que a tripulação,
que por fim aparecera, me disse virem originalmente da Geórgia.
Fora de Asgabate, os estrangeiros têm de ser acompanhados por um guia
oficial. Isso tem as suas vantagens, pois cedo pude fazer perguntas acerca
daquela visão a norte.
Visitámos a cidade branca no dia seguinte. Avaza é a estância turística
mais improvável do mundo. Compreende um total de 30 ou 40 hotéis, um
clube naval e um salão de congressos, tudo construído num imaculado
mármore branco. Não existem iates à vista nem certamente eventos no salão
de congressos. Naquele dia não havia uma única pessoa em toda a estância.
O Turquemenistão concede menos de mil vistos por ano e a população local
vive numa absoluta pobreza. O meu guia observa que, na estação alta,
alguns dos hotéis enchem, pois são oferecidas estadias gratuitas como
prémios aos funcionários públicos mais dedicados do país. Outros hotéis
funcionam como casas de saúde para os doentes. E talvez o clube naval
venha a acolher a elite se, um dia, esta for impedida de sair do país. O
Presidente Gurbanguly Berdymukhamedov vem mesmo de vez em quando
a Avaza, posando para fotografias no seu iate, batizado Galkynysh numa
referência ao gigantesco campo de gás. Quando a Rússia cortou relações
com o Egito e com a Turquia em 2015, disse-se que Avaza poderia ocupar o
lugar de Sharm El Sheikh e de Mármara como destino dos turistas russos.
Quando me dizem que um bungalow aqui pode custar 500 euros por noite,
isso parece ser exagerado.

Então, qual é o propósito de Avaza? Para quê construí-la se ninguém lá


vai? Pretende certamente mostrar que o Turquemenistão também pode ter
uma estância marinha de classe mundial. Se o mar Cáspio é uma poça de
petróleo, também poderá vir a ser uma poça com um clube naval e o
visitante vindo das costas ocidentais poderá pensar que, afinal de contas,
nunca deixou a Europa. É também um sofisticado mecanismo para
redistribuir o dinheiro do petróleo entre a elite e passar algum para o
exterior do país. Acima de tudo, Avaza é um monumento a tudo o que é
novo.
Por que razão todos os importantes novos edifícios no Turquemenistão
são construídos em mármore branco? Em Asgabate, deverão andar agora à
volta de mil, as instituições físicas de um moderno Estado platónico – as
únicas coisas que não são construídas em mármore branco são as estátuas
douradas do anterior e do atual Presidentes. O meu guia diz-me que o
mármore passou a definir uma era. Houve uma altura antes do mármore
branco e outra depois dele. Há 20 anos esses edifícios significavam uma
nova era de pureza e prosperidade. Nos velhos tempos, quando uma iurte
ficava negra por causa do fumo da cozinha e da lareira, havia outra que era
mantida sem uso, no seu branco original, para os hóspedes ou os recém-
casados. Continuaria a chamar-se aq oy, «casa branca», até um filho nascer
do casal, mesmo que os panos já não estivessem brancos3. Numa das
histórias do Livro de Dede Korkut, relatando as gloriosas façanhas dos
turcos oguzes numa altura em que dominavam a Ásia Central, ouvimos
dizer como o khan dos khans, Bayindir Khan, deu uma festa em honra dos
nobres, colocando uma tenda branca num sítio, uma vermelha noutro e uma
negra noutro. A negra estava reservada aos nobres que não tivessem filhos
nem filhas. Devia ser colocado um pano preto por debaixo deles e devia ser-
lhes servido guisado de carneiro, confecionado com ovelhas de lã negra.
«Põe aquele que teve um filho na tenda branca, o que teve uma filha na
tenda vermelha. Mas aquele que nenhum filho teve foi humilhado por Deus
o Mais Alto e também nós o humilharemos.»
As pedreiras do Norte do Vietname fornecem a esmagadora maioria do
mármore para as novas cidades brancas. O sector da construção turcomano
consome anualmente um milhão de metros quadrados de mármore e só o
revestimento de mármore custa ao país cerca de 120 milhões de dólares por
ano. O preço do metro quadrado de mármore vietnamita varia entre os 50 e
os 70 dólares. Portanto, em média, um edifício de 12 andares, com uma área
exterior de 14 mil metros quadrados, poderá custar ao Governo entre 700
mil e 980 mil dólares só em revestimento de mármore. O mármore italiano
de elevado custo pode ser encontrado nos edifícios governamentais mais
importantes do país. Outros fornecedores localizam-se em Espanha, Turquia
e China. O mármore branco converge para Asgabate, um centro de uma
nova estrada do mármore. Parece que a economia global preencheu o
tradicional sonho turcomano de transmutar o negro em branco, o petróleo
em mármore – talvez o exemplo mais simples e óbvio de transmutações
semelhantes que ocorrem por toda a parte.
Quase poderia sentir-me desculpado por sentir nessa manhã, a meio do
Cáspio, que tinha passado da Europa para a Ásia, mas eu não andava à
procura de uma fronteira. Assumira já que tal fronteira não existia e aquilo
que atraía a minha curiosidade era uma busca menos ilusória. Onde era o
centro do Velho Mundo? Onde é que me sentiria tão próximo da Europa
como da Ásia? Mais importante, onde está esse ponto mágico que pertence
igualmente a toda a civilização e não totalmente a nenhuma? Em As Rotas
da Seda, o historiador Peter Frankopan recorda-nos o velho mito segundo o
qual Zeus, o pai dos deuses, libertou duas águias nos extremos do mundo e
ordenou-lhes que voassem em direção uma da outra. No sítio em que se
encontraram, foi colocada uma pedra sagrada. Frankopan confessa que
costumava passar muitas horas a olhar para um mapa na parede do seu
quarto a tentar calcular onde poderia ser esse ponto4. É uma obsessão que
posso compreender bem.
Suspeito que, se encontrasse o centro, conseguiria libertar-me das
distorções de todas as geografias particulares. O centro oferecer-me-ia uma
perspetiva a partir de lado nenhum, nem da Europa, nem da Ásia. Pois sei já
que a Europa e a Ásia contêm em si um grande paradoxo: dois mundos
separados por uma geografia comum. O Oriente e o Ocidente têm de
encontrar-se num sítio qualquer. O que faltava apenas era encontrar esse
ponto.
A partir daqui, do meio do Cáspio, podemos olhar para ocidente e
encontrar o Azerbaijão e a Geórgia, uma rota que percorri recentemente
desde Trebizonda até à Turquia. Da costa norte, seria fácil navegar Volga
acima até ao Báltico, uma rota descoberta há milhares de anos e usada por
múltiplas vagas de mercadores e conquistadores. Para leste, depois de se
deixar Turkmenbashi, o comboio levar-me-ia pela borda do deserto, onde os
camelos gostam de pastar ao longo das linhas férreas e aterros de
construções de barro destruídas a intervalos regulares indicam onde as
velhas torres de vigia da Rota da Seda antes se erguiam. Nos subúrbios de
Asgabate, iria visitar a Mesquita Seyit Jamal-ad-Din, parcialmente
arruinada desde um terramoto em 1948, mas cujo portal costumava ostentar
dois dragões em mosaico guardando o arco central. Há uma lenda local
acerca destes dragões, mas a verdade, claro está, reside na influência
cultural chinesa. A nossa geografia política engana-nos, mas a distância do
Cáspio até à fronteira chinesa, ou mesmo até Kashgar, é menos de metade
da distância de Kashgar até Xangai e esta é uma viagem onde tudo faz parte
do mesmo mundo ogúzico – os ancestrais das nações contemporâneas da
Turquia, do Cáucaso e da Ásia Central – em grande parte ainda o mesmo
das velhas lendas contadas e recontadas ao longo das gerações e postas por
escrito em obras como o Livro de Dede Korkut. Se nos dirigíssemos a sul,
desembarcaríamos nas modernas cidades das praias da costa iraniana e uma
curta viagem de carro levar-nos-ia a Teerão e a Isfahã e ao oceano Índico. O
Cáspio é como uma bússola, onde os quatro pontos cardeais nos guiam até
aos quatro cantos do Velho Mundo.

O antigo geógrafo e astrónomo Ptolomeu fala, na sua discussão da


dimensão longitudinal do mundo, de um ponto médio na rota comercial
entre a Europa e a China, a que chama Torre de Pedra. Menciona que certo
mercador grego, uma alma aventureira, fez todo o caminho até à Torre de
Pedra, onde encontraria mercadores vindos da China, ou enviaria os seus
próprios agentes à capital chinesa, «a metrópole de Seres5». A partir do seu
relato, é claro que ninguém faria a viagem inteira, mas era mesmo assim
possível juntar diferentes distâncias e calcular algo como a extensão total do
mundo conhecido, desde o Atlântico à China. Num ponto central adequado,
os mercadores que viajassem em direções opostas encontrar-se-iam e
trocariam as suas mercadorias.
Só nos falta encontrar a localização da Torre de Pedra. Procurei-a por
todo o lado. Na fronteira entre o Usbequistão e o Afeganistão, um lavrador
levou-me a visitar um templo budista onde uma stupa mais pequena,
preservada no interior de uma maior, estava coberta com uma misteriosa
inscrição. Na estrada de Tashkent para o vale de Fergana, uma fértil planície
escondida entre algumas das mais altas montanhas do mundo, passa-se
através da Kalmchik, uma passagem na montanha, fortemente guardada,
que separa dois mundos. Em Osh, do outro lado da fronteira, há uma
montanha sagrada chamada Sulaiman, uma marca na terra facilmente
identificável e permanente, que alguns acham corresponder aos critérios
requeridos por um ponto de encontro para mercadores. Outros, começando
pelo viajante e arqueólogo Aurel Stein, defendem que a Torre de Pedra de
Ptolomeu deverá localizar-se em Daroot-Korgon, no vale Alai do
Quirguistão, que se estende por uma longa distância e fornece pastagem
abundante, fazendo dele uma linha de tráfego privilegiada para as
caravanas.
Nenhuma dessas possibilidades me parece especialmente convincente,
quando comparadas com o Tashkurgan. A estrada é difícil. Isso mudará à
medida que a China for continuando a desenvolver as suas ligações
estratégicas com o Paquistão e o porto de Gwadar, mas por enquanto é um
extenuante exercício conduzir pela estrada do Caracórum acima até à
fronteira em Khunjerab, agora tornada ainda mais difícil pelo ciclópicos
trabalhos de construção que estão a ser finalizados do lado chinês. Duas ou
três horas antes da fronteira, encontra-se a cidade de Tashkurgan, aninhada
num amplo vale, onde muitos viajantes pernoitam, para poderem passar a
fronteira para o Paquistão com luz do dia. A velha fortaleza está no alto de
um penhasco, tornada minúscula pela forma dos altos picos em seu redor e,
a partir desse penhasco, podemos caminhar até ao vale, coberto de
luxuriante erva, a que os locais chamam a praia da erva dourada e onde
deixam os seus rebanhos de iaques e vacas a pastar, de tal modo irrigado
que um complexo labirinto de passadiços em madeira elevados teve de ser
construído por cima dele. Daqui, há uma estrada que conduz diretamente ao
vale Hunza no Paquistão, enquanto um caminho antes de Tashkurgan nos
leva até ao outro lado do corredor Wakhan – o velho amortecedor entre os
territórios da Índia Britânica e da Rússia e a rota tomada por Marco Polo –
prolongando-se até à famosa metrópole comercial de Bactro. Mesmo numa
era de fronteiras nacionais com uma segurança reforçada, sente-se que este
é um local para descansar da rudeza da estrada da montanha e de encontrar
as caravanas vindas da Índia, da Ásia Central e da China.
O primeiro europeu a viajar da Índia para a China por terra foi um
jesuíta português dos Açores, Bento de Góis. Sabemos, pela sua narrativa,
que passou por Tashkurgan em 1603, a caminho de Lahore. No aspeto dos
habitantes notou uma semelhança com «o povo dos Países Baixos6». O
povo do Tashkurgan é constituído por uma incrível mistura de raças.
Quando visitei a fortaleza conheci duas irmãs – com pele clara, cabelo louro
escuro e olhos verdes – que se apresentaram como chinesas tajiques,
descendentes diretas de Alexandre, o Grande.
A experiência das montanhas Pamir é a do infinitamente pequeno, não
do infinitamente grande. Quando se olha para a curva seguinte da estrada, o
conhecido dissolve-se lentamente no desconhecido e as grandes distâncias
do Globo não poderiam estar mais afastadas do nosso espírito. Conceitos
como Europa e Ásia tornam-se absurdos porque tudo à nossa volta é
formado por pequenas gradações e viajar torna-se um exercício lento –
ainda a cavalo e através das passagens montanhosas mais difíceis do
mundo. Mas seria errado supor que uma unidade mais elevada do
continente se revelaria aqui – e, de facto, tal não aconteceu também com os
mercadores da velha Rota da Seda, que comerciavam os seus bens ao longo
do caminho, nunca abandonando as suas casas por mais do que algumas
semanas. Os elementos da vida nas Pamir são a terra das montanhas e os
fogos acesos no interior dos iurtes tajiques e quirguizes. A experiência de
um mundo onde a divisão entre a Europa e a Ásia já não existe é a de um
espaço vazio no meio do Cáspio, onde se iniciou a minha busca do centro.
O Grande Hotel Eurásia
Há uma popular corrente de opinião em Beijing de acordo com a qual a
concentração dos esforços chineses e a sua atenção às zonas costeiras tem
sido resultado de um padrão de relações impostas pelos impérios marítimos
ocidentais e japoneses. Se fosse deixada ao seu movimento natural e às suas
inclinações, a China estaria virada e a avançar para ocidente, estendendo a
sua influência a esses pontos centrais do supercontinente onde as
civilizações se encontram e onde a Rota da Seda foi forjada. De acordo com
o Prof. Wang Jisi, um dos problemas é que o Ocidente está interessado em
fixar a China na categoria de uma nação do Extremo Oriente, «o que, por
seu lado, facilmente torna o limite da China na sua própria configuração7».
Escrevi neste capítulo sobre a busca do centro. A China não está imune
a isso. Escuta o apelo do centro com grande acuidade e gostaria de remover
as algemas que a impedem de o seguir. A China gostaria de se tornar um
legítimo «país do meio», para ligar o oriente ao ocidente e o norte ao sul.
Talvez agora venha a haver uma espécie de vindicação retrospetiva da
descrição de Xinjiang, as «regiões ocidentais», feita outrora por Owen
Lattimore: «um novo centro de gravidade no mundo». No século XVIII,
quando a Rússia e a Grã-Bretanha iniciaram a sua expansão pela Ásia
Central, a China fez o mesmo movimento, com a dinastia manchu Qing a
invadir Xianjiang. «Este triplo processo», escreveu Lattimore, «marca a
confluência da História mundial moderna», com todas as principais forças a
convergirem para o centro de gravidade8. Depois de Xianjiang ter sido
perdida no século XIX, surgiu uma discussão em Beijing sobre se o
enfraquecido – como agora sabemos, o moribundo – império Qing deveria
gastar os seus limitados recursos na recuperação do território a Yakub Beg e
ao seu bando de rebeldes. Para alguns, Xianjiang era uma estéril terra de
ninguém, exigindo subsídios anuais do orçamento central e desprovida de
qualquer valor estratégico ou militar. Contra isto, o famoso general Zuo
Zongtang argumentava que defender Xianjiang era mais crítico para a
China do que construir mais barcos, ou tentar defender a costa contra
qualquer forma de penetração ocidental ou japonesa. As incursões
britânicas e russas a partir do coração da Eurásia acabavam por ser mais
perigosas, defendia Zuo. Prevaleceu ele9.
Hoje, Xianjiang oferece algumas das mais surpreendentes primeiras
visões do «Cintura e Rota». Se guiarmos de Turfan até Urumqi pelas
encostas da cordilheira Bogda, a estrada corre paralelamente a uma ponte
elevada para o comboio-bala e, mais próximo da cordilheira montanhosa, a
via-férrea de mercadorias. E, contudo, se quiserem tornar-se céticos acerca
do projeto, a viagem por Xianjiang poderá consegui-lo. Centenas morreram
em anos recentes em perturbações atribuídas por Beijing aos militantes
islamitas, ao que tem respondido com medidas de segurança e de vigilância
invasivas cada vez maiores. A questão não é tanto a de a situação da
segurança na província se manter difícil, o que acontece, mas o facto de a
China estar a ser empurrada em direções opostas.
Nas minhas viagens por Xianjiang, fui detido em bloqueios de estradas
dezenas de vezes e questionado nas ruas por polícias uniformizados e
militares com a mesma frequência. Assim que deixamos as grandes cidades
de Urumqi e Kashgar, as medidas de vigilância tornam-se um teste à nossa
resistência. Em particular, durante um passeio vespertino em Aksu, no
limite norte do deserto de Taklamakan, fui parado sete vezes em sucessivas
esquinas. Nenhum dos agentes achou ser demasiado, pois cada um deles só
me tinha abordado uma vez, ou pelo menos foi essa a explicação. Noutra
altura, num autocarro de Aksu para Ili, um bloqueio na estrada obrigou-nos
a esperar um dia inteiro à entrada de uma passagem na montanha, sem
comida nem acesso a uma casa de banho. Não poderá haver segmento
terrestre do «Cintura e Rota» sem Xianjiang, mas, ao mesmo tempo, é
difícil ver como a China será capaz de resolver a contradição entre o desejo
de facilitar o comércio e o movimento e, ao mesmo tempo, fechar as
fronteiras e submeter toda a gente a uma permanente vigilância. Acabamos
inevitavelmente por nos interrogar se a iniciativa «Cintura e Rota» não será
um conceito muito além daquilo que a realidade social e política possa
oferecer. Uma espécie de utopismo, neste sentido.
Do outro lado da fronteira, no Cazaquistão, a questão tem cambiantes
semelhantes. Quando o visitei, em 2016, o Governo confrontava-se com
crescentes protestos populares contra uma recente lei de reforma agrária.
Embora os meios de comunicação ocidentais falassem de insatisfação com
a falta de direitos civis e políticos, era claro para qualquer pessoa
familiarizada com os protestos que a raiz do descontentamento se prendia
com outra coisa, ou seja, o receio generalizado de que permitir que
empresas estrangeiras possuíssem terra no Cazaquistão fosse sinónimo de
atribuir o futuro controlo do país à China. De facto, a lei de reforma não
fazia mais do que prolongar o período máximo de arrendamento para 25
anos, acima dos presentes dez, mas fora sem dúvida uma reação ao
interesse da China em desenvolver a agricultura no Cazaquistão e
estabelecer parcerias no país para processar produtos agrícolas. O
Cazaquistão possui uma riqueza agrícola enorme, por isso a ideia fazia
sentido. Atrairia um significativo investimento estrangeiro, forneceria um
ímpeto imediato à economia local durante uma recessão causada pelos
baixos preços da energia, ao mesmo tempo que diversificaria a economia
em relação ao petróleo e ao gás. Se uma extensão do período máximo de
arrendamento era inaceitável para o público, que esperança poderia haver
para os ambiciosos planos que, no contexto do «Cintura e Rota», prometiam
desenvolver novas «correntes de valores» operando através das fronteiras?
Os receios da crescente migração chinesa para o Cazaquistão são
generalizados entre o público, com números muito exagerados a circular e o
fosso de salários entre os trabalhadores locais e os migrantes chineses – em
especial na indústria petrolífera – a continuar a provocar ressentimento e
mesmo conflito aberto e revolta. Os estereótipos negativos dos chineses,
bem como a sinofobia, encontram-se com facilidade na imprensa cazaque10.
Foi revelador que o Presidente Nazarbayev, que dispõe de uma forma de
poder pessoal quase ilimitado, fosse forçado pelos protestos a colocar uma
moratória na reforma agrária.
Enquanto povo historicamente nómada, os cazaques conservam uma
relação íntima e pessoal com aquilo que consideram ser a sua terra. Leonid
Brezhnev recordou num pequeno livrinho como, durante os seus anos de
guerra, os soldados e os oficiais cazaques cantavam tristemente, não acerca
das mulheres ou das namoradas deixadas para trás, mas sobre a sua estepe,
tão diferente da ucraniana. Como secretário-geral do Partido Comunista da
República Soviética do Cazaquistão, 10 anos mais tarde, Brezhnev foi
encarregado de tornar aquelas vastas extensões agricolamente produtivas.
De modo bastante implausível, prossegue a memória evocativa dos seus
camaradas soldados com a afirmação de que «o povo local tinha a sabedoria
e a coragem para desempenhar um papel ativo e heróico no desbravamento
das terras virgens. O povo cazaque ergueu-se à altura das exigências da
História. Compreendeu as necessidades de todo o país e exibiu as suas
qualidades revolucionárias e internacionalistas». No seu gabinete do Comité
Central em Almaty, tinha um grande mapa do Cazaquistão na parede.

Tal como nos velhos tempos na frente costumava marcar as posições


das unidades do exército, as suas zonas de operação e linhas de
ataque, também agora marcava no mapa a localização de centenas de
herdades e centros operacionais. Os círculos indicavam as principais
bases a partir das quais a ofensiva teria de ser lançada: as cidades
mais próximas das áreas de cultivo e os acampamentos perdidos nas
infindas vastidões da estepe.11

Na cultura nómada tradicional, cada aul, ou clã, detinha o controlo de


uma determinada área, que habitava durante o verão, e de outra, que
habitava durante o inverno. Se lerem o romance clássico cazaque A Estepe
Silenciosa, de Mukhamet Shayakhmetov, não encontram quase nada acerca
de como a terra é usada. A terra é o mundo em que os nómadas vivem.
Rodeia-nos em todas as direções a partir do momento em que nascemos e
estende-se até aos trilhos deixados pelos nossos antepassados, quando se
deslocavam entre os pastos, ou a recordação dos guerreiros, que
derramaram o seu sangue para impedir os invasores de se aproximarem. As
herdades são praticamente uma invenção dos sovietes que pretendiam
extrair cereais aos nómadas, que olhavam para a terra com olhos diferentes:
«O tapete verde dos prados estende-se à nossa frente quando chegamos ao
nosso lugar de permanência no verão, com o inesquecível odor das flores
silvestres e o esplendor de cor que criam à nossa volta e a brisa fresca e
impoluta que sopra dos picos nevados.12» Nestas partes, a distância não
pode ser medida em relação a quaisquer pontos de referência que
conheçamos noutro local. O nosso olhar vagueia irresistivelmente para o
céu lá em cima, que surge profundo e infinito na estepe, onde não existem
montes nem árvores para nos ligarem à Terra.
Por vezes, podemos encontrar portas de traseiras para partes distantes do
nosso universo cultural, como se diz que são os buracos negros: talvez a
vida nómada e a moderna sejam um desses casos, na medida em que a
cultura moderna partilha tão obviamente o desenraizamento que
caracterizava os nossos distantes antepassados nómadas. O temperamento
nómada invade a vida cazaque, mas, quando se combina com a vida
moderna, o resultado é uma maravilhosa resistência a estar confinado
dentro de limites. Acostumados desde tempos imemoriais a uma vida de
liberdade e de ar livre e espaços abertos, talvez não seja de surpreender que
os cazaques não mostrem interesse em ter uma identidade geográfica clara.
A Eurásia torna-se atrativa por ser vista como uma combinação de
diferentes civilizações. O nome está presente por toda a parte na capital,
Astana, e em Almaty: Banco Eurásia, Grande Hotel Eurásia, Fórum
Mediático Eurasiático, Universidade Nacional Eurasiática. É como se a
cultura nómada fosse a chave para uma Pré-História arcaica da
Humanidade, cuja reconstrução permitisse que todas as civilizações fossem
vistas como primordialmente relacionadas.

Duas amigas
Num livro publicado pela primeira vez em 1990, Aleksandr Soljenítsin
defendia que as quatro repúblicas centro-asiáticas – Turquemenistão,
Usbequistão, Quirguistão e Tajiquistão – poderiam ser inequívoca e
irreversivelmente «separadas», mas que o caso do Cazaquistão era
completamente diferente. «O seu presentemente enorme território»,
escreveu, «foi cosido pelos comunistas de uma forma completamente
casual: onde quer que os rebanhos fizessem uma passagem anual chamava-
se Cazaquistão». Os cazaques estavam concentrados nos seus ancestrais
domínios ao longo de um arco de terras a sul, desde a fronteira chinesa
quase até ao Cáspio. «A população aqui é na realidade predominantemente
cazaque.» Se quiserem separar-se, terão de fazê-lo, concluía Soljenítsin,
«dentro desses limites»13. O sentimento teve eco na atual liderança russa,
com Putin a sugerir em determinada ocasião que o Cazaquistão nunca foi
um país antes do colapso da União Soviética.
«O Cazaquistão é independente há quase 30 anos. Estamos bem.
Queremos ser independentes. Por que razão haveríamos de perder isso?»,
perguntou-me uma jovem cazaque chamada Maria, explicando-me o que
pensava sobre aqueles que questionam se o Cazaquistão devia ser um país
independente.
Conheci Maria Voronina e a sua amiga, Leila Tyulebayeva, num café da
moda no centro de Almaty, mesmo por detrás do edifício da ópera clássica.
Fiquei imediatamente surpreendido pelo contraste. Maria é eslava. A sua
família mudou-se da Ucrânia para Kentau, uma cidade no Sul do país, há
três ou quatro gerações. Leila é metade cazaque e metade tártara. Nasceu
em Almaty. Ambas têm vinte e muitos anos, embora Maria seja um pouco
mais velha.
Kentau dista apenas 20 minutos da tradicional cidade de Turquestão, lar
do santuário assombradamente inacabado de Qoja Ahmet Yasawi,
construído pelo conquistador Timur sobre o túmulo de um dos maiores
líderes espirituais do islão. Ainda hoje, muitos em toda a Ásia Central
consideram que três visitas ao santuário são equivalentes a uma
peregrinação a Meca. Eu visitara Turquestão, ficando impressionado com a
sua profunda religiosidade e o modo de vida tradicional na cidade, mas
Turquestão e Kentau são afinal muito diferentes. Esta última é uma cidade
nova, um lugar de imigrantes e deportados. Foi fundada pelos gregos
deportados da costa do mar Negro durante a Segunda Guerra Mundial e a
sua população original era uma mistura de gregos, ucranianos, coreanos,
alemães e judeus, muitas das nacionalidades reprimidas da União Soviética.
Os coreanos chegaram pela primeira vez ao Cazaquistão em 1937,
deportados de Vladivostoque por Estaline, que os achava uma ameaça à
segurança. Falavam um dialeto coreano que há muito desaparecera da
península, misturado com algumas palavras russas e, nalguns casos,
ensinaram a agricultura aos cazaques locais, que ainda eram nómadas.
Quanto aos alemães, os primeiros colonos chegaram à fértil estepe do Volga
na segunda metade do século XVIII. Poderá ter havido um total de perto de
dois milhões de alemães na Rússia quando, depois do ataque alemão à
União Soviética, em 1941, Estaline decidiu deportá-los para o Ártico, para a
Sibéria e, no caso dos mais afortunados, para o Cazaquistão.
Kentau situa-se no sopé das montanhas Karatau, local de muitas lendas
e lugares secretos que prometem a vida eterna ou uma numerosa prole
àqueles que conseguem encontrá-los, mas a cidade é absolutamente
moderna, um centro industrial e mineiro construído para o mundo moderno.
Existem muitos lugares como Kentau espalhados por toda a velha União
Soviética, claro, mas no escassamente povoado Cazaquistão poderão ter
sido capazes de moldar mais profundamente a cultura nacional.
«Em Turquestão toda a gente fala cazaque», explica Maria, «mesmo os
russos. Kentau é diferente. Em Turquestão, as pessoas esperam que se fale
cazaque. Turquestão é uma Meca religiosa. O mausoléu é um local sagrado.
Mas Kentau é diferente. Era uma cidade industrial com muitas
nacionalidades diferentes. Na minha escola deviam existir umas 10
nacionalidades diferentes».
Agora, isso mudou. Maria diz-me que a «comunidade internacional»
partiu quase toda, rindo-se do uso dessa expressão aplicada a uma cidade
construída por deportados. As suas primeiras memórias são de 1992. Do
outro lado da sua casa havia uma padaria e, da janela, ela conseguia ver
uma longa linha de pessoas a fazerem fila para o pão, estendendo-se por
centenas de metros. «Costumavam chamar-lhe uma pequena Suíça em flor,
mas Kentau estava a transformar-se numa dessas cidadezinhas onde o
sentimento de desespero enche o ar.» Fazia tanto frio dentro das casas que,
de noite, a cidade enchia-se do fumo dos troncos a arderem em fogareiros
improvisados, chamados burzhuika. Como em quase toda a parte na antiga
União Soviética, esses foram os anos em que a sociedade se dividiu em dois
grupos: aqueles que lutavam por ganhar dinheiro de qualquer forma
possível, legal ou ilegal, e aqueles que esperavam que o Estado tomasse
conta de tudo, numa altura em que o Estado mal conseguia tomar conta de
si próprio.
Maria não tinha um desses fogareiros em casa, porque a avó achava que
a casa ficaria suja. A limpeza era a única forma de controlo que conhecia e
apresentar uma casa limpa e comida a única forma de afeto que
compreendia. Quando apanhavam Maria a beber ou a fumar, a mãe e a avó
batiam-lhe e chamavam-lhe nomes, mas ela recorda esses momentos como
a única altura em que estavam verdadeiramente próximas umas das outras,
«partilhando emoções e sentimentos de uma forma bastante pervertida».
Quando cresceram, tanto Maria como Leila tiveram namorados de todos
os grupos étnicos. Maria namorou tártaros, cazaques e um russo que era na
realidade alemão, um dos alemães do Volga que acabaram no Cazaquistão
depois das deportações de Estaline. Quanto a Leila, a sua família nunca
mostrou qualquer preferência pelos rapazes com quem namorasse. Embora
os seus pais não fossem muçulmanos particularmente devotos, os seus avós
eram aparentemente ainda menos. Afinal de contas, se recuarmos três ou
quatro gerações, não acabamos por nos encontrar num ambiente de tradição
primordial, mas mesmo no meio do entusiasmo revolucionário soviético.
Uma vez que o russo é a sua primeira língua, poderá ser considerada por
alguns uma «shala Kazakh», um termo pejorativo que significa «meia
cazaque». Ela já não se considera muçulmana e na realidade passou algum
tempo a estudar a religião mórmon e pensou em tornar-se mórmon.
Maria fala melhor o cazaque, embora, sendo etnicamente eslava, não se
esperasse que isso acontecesse. Perguntei a mim mesmo se não estariam
ambas a ser projetadas por histórias que recuam a décadas ou séculos: a
eslava exilada que se torna um pouco mais asiática à medida que o tempo
passa e a turca ou cazaque desenraizada que, lentamente, perde todos os
vestígios do mundo original. Olho para as duas amigas à minha frente como
duas histórias que se movem em sentidos opostos e que se intersetam, por
acaso, no seu caminho.
Conheceram-se no primeiro dia da universidade e têm sido as melhores
amigas desde então, mas as suas vidas têm propósitos cruzados sob aspetos
interessantes. Foram admitidas na universidade com as notas mais altas nos
exames e sabiam uma da outra mesmo já antes do primeiro dia, como
possíveis rivais, mas também como objeto de curiosidade. Maria é
etnicamente ucraniana, mas parece não ter qualquer interesse pela Europa,
nem pela cultura europeia. «Costumava ler alguns filósofos alemães, como
Nietzsche, mas é tudo. Claro que um dia gostaria de ir à Europa, para ver
alguns dos edifícios, mas não há nada no meu coração que me atraia. O meu
coração leva-me para a China, para o Japão, para a Turquia. Gostaria
mesmo de visitar o Usbequistão, o Irão, o Iraque, mais do que a Europa. Eu
pareço europeia. Seria demasiado confortável, não seria um grande
desafio.»
Leila, por outro lado, tem um interesse óbvio pela Europa, dizendo-me
que gostaria de viver na Europa durante algum tempo e visitar os sítios
todos, um a um. Quando lhes pergunto em que cidade ou país gostariam
mais de viver, as respostas correspondem aos seus caracteres. Maria
gostaria de viver na Turquia, ou talvez na Tailândia. Leila escolhe
Amesterdão e a Califórnia, os lugares onde toda a gente anda ocupada a
inovar e a quebrar as convenções. A única coisa em comum entre as suas
escolhas é despreocupadamente revelado por Maria: «Tem de ser um país
com praia, claro.»
Leila costumava pensar que o Cazaquistão era um país asiático e, por
vezes, continua a referir-se a ele nesses termos, mas, depois de viver um
ano na Coreia, já não está tão convencida. Agora, mesmo indo ao vizinho
Usbequistão, sente-se num mundo diferente, «cheio de exotismo» e nada
como aqui. Numa altura em que todas as grandes potências querem
deslocar-se para o centro do supercontinente, o Cazaquistão desfruta da
sorte de já lá se encontrar.
Pergunto-lhes com quem acham que o Cazaquistão tem maior afinidade:
a Rússia, a Turquia, a China, a Europa ou a América? Onde está o coração
cazaque? Tanto Maria como Leila me dizem que os cazaques tomam como
garantido o facto de estarem no meio e de que sempre estarão no meio.
Talvez o seu coração esteja na costa e no distante oceano. Como se fosse
para confirmar a minha teoria, nessa noite iria à Ópera de Almaty para ver
uma representação de Os Pescadores de Pérolas, de Bizet, cuja ação
decorre na praia em Ceilão e cuja principal personagem é uma sacerdotisa
brâmane, chamada Leila.
5

SONHOS CHINESES

Orientalismo techno

«M asreconhecimento
é preciso um algoritmo para o inglês e outro para o chinês no
do discurso, por isso as máquinas terão a sua
própria identidade nacional.»
O meu interlocutor sorriu.
«Nada disso. O algoritmo é bastante universal.»
«O que quer dizer?»
«Aprender a reconhecer o discurso e o processo de aprendizagem
funciona de igual modo para todas as línguas. Se for alimentado com os
dados, aprenderá latim ou sânscrito. Alguns algoritmos inventaram mesmo
as suas próprias línguas.»
Tinha ido ao Parque Tecnológico de Baidu, no Distrito Haidian de
Beijing, para me encontrar com Yuanqing Lin, diretor do Instituto de
Aprendizagem Profunda de Baidu. O complexo consiste em cinco edifícios
distintos, ligados por pontes cobertas, sobre um jardim botânico central,
onde pequenos cursos de água e árvores recém-plantadas revelam
gradualmente uma cápsula espacial no centro. É fácil perdermo-nos aqui.
Haidian alberga vários parques tecnológicos, cada um com dezenas ou
centenas de empresas já estabelecidas e de start-ups, numa escala talvez de
metade de Silicon Valley, mas aproximando-se rapidamente deste. A
comparação impõe-se ao visitante de Baidu, que é recebido no jardim e
depois no átrio por enormes rampas que ligam os pisos superiores, o
símbolo das velozes empresas de internet em todo o mundo.
O Instituto de Aprendizagem Profunda é uma das formas através das
quais Baidu, o gigante da investigação chinesa, está a tentar manter-se na
vanguarda da inovação, nomeadamente certificando-se de que os mais
recentes avanços tecnológicos podem ser usados com rapidez entre
diferentes empresas, incluindo o algoritmo de pesquisa essencial. A
aprendizagem profunda é uma velha ideia da inteligência artificial e muitos
pensam que é a nossa melhor aposta na criação de software que nos
transportará até muito perto – e, em muitos casos, para lá – das capacidades
humanas. Baseia-se em duas ideias. Primeiro, que as máquinas inteligentes
têm de ser capazes de aprender por si mesmas como desempenhar tarefas
complexas. Se tivermos quantidades suficientes de dados e de poder
computacional, deverá ser possível alimentar uma máquina com pares de
input e output do mundo real e deixar que ela desenvolva a melhor equação
para obter um a partir do outro. Por exemplo, fornecido enorme número de
fotografias de cães, um computador descobrirá por si os traços
identificativos mais fiáveis de um cão. Isto conduz-nos à segunda ideia
principal: os dados têm de ser organizados em camadas estruturadas
complexas, para poderem simular objetos do mundo real que são
igualmente complexos. O termo «aprendizagem profunda» refere-se à
forma como cada unidade de computação recebe informação de uma
unidade de computação anterior em padrões cada vez mais abstratos e
generalizados. Cada unidade da camada inferior recebe dados externos,
como pixéis numa imagem, e depois distribui essa informação a algumas ou
a todas as unidades na camada seguinte. Cada unidade nessa segunda
camada integra então as suas informações vindas da primeira camada e
passa o resultado mais para cima. Eventualmente, a camada superior
fornece o resultado: uma correspondência do cão no exemplo acima. Neste
aspeto, a inteligência de máquina acaba por se parecer com a forma como
uma grande série de neurónios trabalha no cérebro humano.
O reconhecimento do discurso e da imagem encontram-se entre as
aplicações mais imediatas da aprendizagem profunda. Yuanqing contou-me
como o Baidu conseguira desenvolver aplicações de reconhecimento de
discurso praticamente infalíveis, mesmo que o utilizador opte por sussurrar
para o seu dispositivo, em vez de falar normalmente. Estão agora a
concentrar os seus esforços sobre a forma de aplicar a aprendizagem
profunda à condução automatizada. Aplicá-la a sistemas de previsão ainda
está consideravelmente longe no futuro, mas o futuro aproxima-se a cada
dia.
«Como descreveria aquilo que é diferente na forma como os chineses
abordam a tecnologia?», perguntei-lhe. «Não apenas aqui no laboratório,
mas também lá fora na rua.»
«A intensidade da interação social. Os chineses veem-se em termos
coletivos.»
Yuanqing trabalhara nos Estados Unidos durante alguns anos. Ao
regressar à China, a principal necessidade de reajustamento cultural foi
corrigir a severa privacidade de Silicon Valley. Seria impensável, por
exemplo, alguém na Califórnia ligar-lhe para o telefone, sem antes avisar.
Na China, toda a gente telefonava, sem aviso, a toda a hora.
Parece estranho levantar esta questão quando se fala de tecnologia, mas
de facto não poderia ser mais relevante e esclarecedor. A tecnologia está,
em toda a parte, dependente de processos de interação social, desde o
trabalho de equipa no laboratório até às formas pelas quais as diferentes
tecnologias são difundidas através da sociedade. Diferentes soluções
precisam de ser testadas contra todas as alternativas disponíveis. Este é um
processo social. Mesmo as formas pelas quais os consumidores finais
comunicam entre si acerca dos novos dispositivos são, no final,
determinadas pela profundidade e diversidade destes padrões numa
determinada sociedade. É certamente plausível pensar que as intensas
formas de interação social têm sido responsáveis por processos de
desenvolvimento e difusão mais eficientes na China. Seja como for, o ponto
servirá para ilustrar como duas civilizações científicas podem diferir
substancialmente. Os padrões e as regras ditados por uma cultura científica
estão ainda dependentes do mundo de todos os dias, do qual são abstraídos.
Se andarem hoje em dia por uma cidade chinesa, as aplicações da
aprendizagem profunda poderão ser observadas por todo o lado à vossa
volta. O software de reconhecimento de discurso é tão fiável que muitos
jovens agora ditam os seus ensaios universitários. Se tirarem uma fotografia
de um objeto qualquer de que gostaram, um software especial poderá
encaminhar-vos diretamente para um site que o vende. Se tiverem um
acidente rodoviário, é fácil puxarem do vosso smartphone, tirarem uma
fotografia e usarem o reconhecimento de imagem para determinar os danos
e preencherem uma participação do seguro. Um professor universitário em
Chengdu usa a tecnologia de reconhecimento de rosto não apenas para
registar a frequência, mas também para ajudar a determinar os níveis de
aborrecimento entre os seus alunos. As aplicações de tradução tornam fácil
aos locais e aos turistas terem longas conversas falando as suas próprias
línguas. Uma aplicação desenvolvida no Baidu usa a visão do computador
para ajudar os invisuais, dizendo-lhes o que está à sua frente, desde
informações simples mas importantes como o valor das notas, até factos
mais complicados, como a idade de um interlocutor. O Baidu tem também
parcerias com uma rede global de restauração para abrir um novo
restaurante «inteligente» em Beijing, que emprega o reconhecimento facial
para fazer recomendações sobre o que os clientes poderiam pedir, com base
em fatores como a idade, género e expressão facial. O hardware de
reconhecimento de imagem instalado no restaurante percorre os rostos dos
clientes, procurando inferir disposições e extrair outra informação,
incluindo o género e a idade, para compor a sua recomendação.
A China parece ter entrado numa nova fase no desenvolvimento da
internet em que os mundos digital e físico ficaram mais estreitamente
ligados. Um dispositivo móvel na China é acima de tudo uma ligação e um
índice do mundo físico. Existem explicações plausíveis para isto, tal como a
alta densidade populacional, ou o facto de, na China, o primeiro dispositivo
computacional da maioria das pessoas ter sido um smartphone e não um
computador pessoal: sempre ligado e sempre fácil de deslocar. Suspeito,
contudo, que a principal razão é uma abordagem filosófica diferente à
internet. Os chineses veem a internet como uma ferramenta para agir no
mundo e talvez mesmo para o modificar e não como uma forma de
interpretá-lo. Os usos mais inovadores da internet estão a ser desenvolvidos
não por empresas de internet, mas por promotores imobiliários, bancos e
companhias de seguros e grandes herdades industriais. As empresas
chinesas estão apostadas em ser as primeiras a levar a internet para os
sectores menos sofisticados da economia real.
As aplicações de mensagens para dispositivos móveis, como a WeChat,
podem ser usadas para pagar a renda ou um café, para encontrar lugares de
estacionamento, para obter direções, para trocar contactos após uma
reunião, chamar veículos das empresas de táxis tradicionais, marcar uma
consulta médica, fazer doações, enviar dinheiro para os amigos ou para a
família, ou assistir em direto a uma aula universitária. Há dois anos, o
serviço lançou uma campanha do «pacote vermelho», em que os
utilizadores podiam enviar dinheiro digital para os amigos e a família para
celebrar o Novo Ano Chinês, em vez de enviarem notas num envelope
vermelho, como é habitual. Um inquérito ao comportamento dos
utilizadores de 2017 verificou que 87,7 por cento dos utilizadores da
WeChat usam a aplicação para a comunicação no trabalho diário. Os
telefones, as mensagens de texto e os aparelhos de fax eram usados por 59,5
por cento e o correio eletrónico por 22,6 por cento. Até os roubos dos
carteiristas foram digitalmente transformados: os larápios colam os seus
próprios códigos de resposta rápida sobre os originais, enganando os
utilizadores que acabam por fazer pagamentos para as suas contas, ou
roubando-lhes a sua informação pessoal. Aquilo a que Yuanqing chamava
«a natureza coletiva da China» está presente em tudo isto. Ao contrário da
página do Facebook, com o seu claro preenchimento e padrões de
assinatura, um grupo de WeChat é desorganizado; toda a informação é
igual, surgindo e deslocando-se para o fundo como se fosse produzida por
um único autor.
Regressar à Europa após uma visita à China é semelhante a regredir no
tempo, a um mundo em que as notas, o correio eletrónico e os cartões
profissionais ainda estão em uso. Os europeus acostumaram-se a novas
formas de conservadorismo social e tecnológico, uma resistência
generalizada à mudança que em toda a parte ergue a cabeça, muitas vezes
sob uma severa inquisição reguladora, ao passo que a Ásia parece viciada
na mudança, muitas vezes por si só. Este é o caso em particular do Extremo
Oriente, onde uma paixão pela tecnologia parece ter a sua própria lógica,
desligada do uso prático. Quem visite o Japão achará porventura esse o seu
traço mais característico, mais visível do que o cuidadoso protocolo e os
rituais ainda mais ou menos preservados num lugar como Quioto. Parece
que, na Europa ou nos Estados Unidos, não é permitido que a tecnologia
cresça com demasiado vigor, nem com demasiado destaque. No Japão não
existem limites, de modo que as pessoas se podem encantar com excessos
mais ou menos inúteis, como a porta do táxi que abre automaticamente, o
tampo da sanita equipado com múltiplas funções, ou o elevador que se
aproxima da velocidade de cruzeiro de uma pequena aeronave. Ao escrever
em 2001, o autor de ficção científica William Gibson tentava explicar o seu
fascínio pelo Japão. A resposta que deu foi que o Japão se tornara «o
cenário de fundo da imaginação global para o futuro». Os japoneses
pareciam viver alguns passos à frente na linha do tempo, «um mundo
reflexo, um planeta alienígena com o qual podemos na realidade interagir,
um futuro1».
Porque é que as coisas levaram este rumo? O jornalista e académico
britânico Martin Jacques sugere que o elemento crucial é a velocidade da
transformação. Como as sociedades do Extremo Oriente foram forçadas a
ombrear com o Ocidente num curto período de tempo, desenvolveram uma
experiência de mudança que é estruturalmente diferente daquela que se tem
na Europa ou nos Estados Unidos2. Aí, a experiência individual foi de
algum modo isolada das grandes mudanças históricas, que nalguns casos
ocorreram de facto para além do período de vida de uma única pessoa. No
Japão, na Coreia, ou agora na China, a mudança histórica é quase síncrona
com o ritmo de uma vida individual. A experiência de regressar a uma
cidade como Beijing após uma ausência de 10 anos é uma boa ilustração
disto, enquanto lutamos para encontrar as nossas referências em lugares que
não têm quase nada em comum com as nossas recordações deles.
No passado, as tentativas para ombrear com o Ocidente pareciam
sempre ter uma falha em relação a algum aspeto crucial. Por vezes,
falhavam quase imediatamente por se limitarem à última vaga de produtos
ou invenções ocidentais, geralmente no campo militar, esquecendo que,
para os usar, é preciso adotar certos comportamentos e práticas. Mesmo
quando penetram mais fundo no organismo social, as reformas de
modernização ou colidem com outros elementos na sociedade que estão por
reformar, ou reproduzem meramente uma fase anterior de desenvolvimento
no Ocidente, sendo rapidamente suplantadas pela fase seguinte. As últimas
décadas em países como o Japão, a Coreia e a China parecem ter sido
estruturalmente diferentes, na medida em que estas sociedades captam o
espírito da sociedade e da tecnologia modernas de uma forma muito mais
direta, fazendo-nos interrogar se não a terão de facto interiorizado com
menos restrições do que o próprio Ocidente. Irá a China parar quando sentir
que finalmente apanhou a Europa e os Estados Unidos, ou prosseguirá em
frente, em direção a novas tecnologias com poderosas consequências
sociais, políticas e humanas? No presente momento, os fabricantes na China
estão a planear introduzir a robótica e a automatização a uma escala sem
precedentes, esperando criar «fábricas escuras», em que as luzes poderão
ser desligadas, porque só lá estarão máquinas. A fratura nos hábitos sociais
e nas estruturas é óbvia, mas muitos veem isto como a primeira revolução
tecnológica a ser conduzida pela China, que lhe dará um ímpeto que falta à
Alemanha ou aos Estados Unidos, países que já tiveram a sua era na ribalta.
A grande divisão entre a Europa e a Ásia baseava-se na noção de que a
Europa se tinha deslocado para uma era histórica diferente, ela própria
marcada pelo progresso e pela contínua mudança, ao passo que a Ásia se
mantivera prisioneira da tradição, em que qualquer mudança, a acontecer,
não passaria de um movimento circular. Os europeus viajavam até ao Irão, à
Índia ou à China à procura dessa variedade do exótico que identificavam
com o seu próprio passado histórico e encontrariam aí um aviso silencioso
acerca do mundo a que poderiam regressar se alguma vez abandonassem a
sua fé nos valores modernos. É interessante observar como essa forma de
olhar o mundo – em que o mundo inteiro é obrigado a encaixar-se nas
categorias do desenvolvimento histórico europeu – foi agora virada de
cabeça para baixo. Não sendo já a terra da eterna estagnação, a Ásia parece
agora ter uma pretensão especial acerca do futuro. Se alguma cidade parece
ter realizado a estética de Blade Runner, simultaneamente escura e
brilhante, essa cidade é certamente Beijing. Isto é ainda uma distorção de
como o Ocidente olha para a China, mas de sinal oposto. O esforço para se
ser inteiramente moderno poderá agora ser uma ansiedade que afete a
Europa mais do que qualquer outro sítio. Neste processo, os europeus
projetam sobre as sociedades asiáticas a tarefa de viver, não no passado,
mas no mundo da ficção científica, onde nada é muito real durante muito
tempo. Mudaram de sociedades que se deslocavam muito devagar para
sociedades que se movem demasiado depressa.
Com isso, a grande divisão terminou.

A questão ocidental
Desde a ascensão da moderna Europa nos séculos XVI e XVII, o sistema do
mundo preservou a mesma forma essencial. Os Estados fora do núcleo
central eram confrontados com a opção de adotar as ideias e a prática
europeias, ou de serem soterrados pela civilização europeia, representada
por um dispositivo económico e tecnológico que assegurava, entre outras
coisas, uma supremacia militar sem paralelo, mas também por uma
ideologia iluminista que visava diretamente o cerne de todas as formas
tradicionais de pensamento. Países como o Japão, a Turquia e a Rússia
destacam-se devido ao esforço concentrado que dedicaram a resolver este
dilema. No caso da Rússia, a resposta teve um nome: o comunismo. Como
ideologia, o comunismo marxista ou ocidental está tão intimamente ligado à
dinâmica interna da «Questão Ocidental» que se poderá justificadamente
concluir que não desempenhou outro papel histórico.
Todos os ramos do totalitarismo do século XX, com todas as suas
diferenças e complexidade, poderão ser melhor interpretados como uma
reação particular à Questão Ocidental. A Alemanha – no seu vacilante e
tortuoso movimento em direção ao Ocidente –, o Japão e a União Soviética
viam-se como tendo de reagir à opressora dominação das ideias ocidentais,
representadas pela simbiose do comércio britânico e da liberdade francesa,
mais tarde assumidos a uma escala continental pelos Estados Unidos. Por
um lado, essas eram ideias estrangeiras, quase instintivamente declaradas
inferiores e decadentes. Por outro, o seu poder era inegável. A sua
capacidade para produzir as máquinas mais avançadas e aumentar a
produção industrial, alimentando assim grandes estruturas estatais, colocava
uma ameaça para todos aqueles que se atravessassem no seu caminho. A
solução que tanto o fascismo como o comunismo desenvolveram foi a de
extrair das sociedades ocidentais apenas aqueles elementos que estavam
diretamente ligados a esse elemento de poder. A sua forma de poder era a da
veneração e as sociedades totalitárias vieram a ser fundadas sobre essa
veneração. Como Mussolini escreveu na sua Doutrina do Fascismo, de
1932, «o Estado fascista expressa a vontade de exercer o poder e de
comandar».
Isso é muito bem dramatizado no romance Naomi, de Junichiro
Tanizaki, escrito em 1924. O protagonista do romance está apaixonado pelo
Ocidente, simbolizado pela jovem Naomi. Ela é, claro, japonesa – tal como
a imagem do Ocidente que o seu admirador persegue é japonesa –, mas
tanto o seu nome como os seus traços têm em si algo de distintamente
ocidental. «Pareces a Mary Pickford», diz-lhe ele, pouco depois de se
conhecerem. «Todos dizem que pareço eurasiática», responde ela. Num
momento crucial da história, o jovem compreende subitamente que não há
nada de espiritual no seu amor. Como ele diz, acaba por ter de reconhecer
que Naomi não era tão inteligente como ele esperara e que nunca poderá
tornar-se no seu modelo de mulher perfeita e sofisticada. «Má educação é
má educação.» E a sua paixão desaparece então? Nada disso. Da mesma
maneira que o seu espírito deixara de exercer qualquer atração, o seu corpo
atraía-o ainda mais poderosamente. Era a sua pele, os seus dentes, o seu
cabelo, os seus olhos que o atraíam. Não havia nisso nada de espiritual. Ela
traíra as suas expetativas em relação ao seu espírito, mas o seu corpo
ultrapassava agora o seu ideal.
Não é de surpreender que, a partir desse momento, a história conheça
uma viragem negativa, do mesmo modo que Tanizaki receava que a política
japonesa sofresse um desvio perigoso quando viesse a incorporar uma
atração desesperada pelo poder material do Ocidente, divorciada da forma
de vida que lhe dava um significado mais profundo. O Japão estava em vias
de criar uma sociedade espiritualmente vazia, sugere, porque estava a tentar
copiar o Ocidente no sentido muito limitado de copiar o seu poder físico e
material.
Para os nacionalistas russos, o aparelho ideológico do comunismo
oferecia um número de vantagens ou possibilidades. Num mundo cultural
fortemente exposto à influência ocidental já durante dois séculos, havia
poucas hipóteses de qualquer ideologia interna poder ser tomada a sério em
termos de desafio ao Ocidente. O comunismo, por outro lado, era uma
importação do Ocidente e transportava consigo todo o prestígio intelectual
dos produtos ocidentais. Ao mesmo tempo, não fazia parte do aparelho de
Estado ideológico do Ocidente. Formado como uma ideologia
revolucionária destinada a derrubar a sociedade ocidental na sua presente
forma, o comunismo poderia ser facilmente apropriado pelos nacionalistas
russos na sua luta global contra o Ocidente. A imitação só por si nunca
funciona, mas se imitarmos aquilo que o nosso objeto de imitação está a
tentar reprimir quanto a si próprio, talvez consigamos ter êxito. Talvez
consigamos derrubar enquanto estamos a imitar. O melhor de dois mundos,
ou é pelo menos o que deve ter parecido.
Os nacionalistas russos perceberam claramente que a supremacia
ocidental se baseava numa visão científica do mundo, um sistema coerente
de ideias e tecnologia, ao qual não se poderia resistir apenas através da
tecnologia. O comunismo existia no mesmo plano e, assim, poderia oferecer
o mesmo valor propagandístico do que o liberalismo ocidental. Oferecia,
em qualquer dos casos, uma outra poderosa vantagem. Era uma ideologia
que sublinhava os aspetos materiais e económicos da sociedade acima de
todos os outros e poderia assim ser usada pela Rússia para concentrar a sua
energia precisamente nessa área onde precisava de recuperar em relação ao
Ocidente. Num discurso em 1928, Estaline dizia:

Temos de suplantar e exceder a avançada tecnologia dos países


capitalistas desenvolvidos. Suplantámos e excedemos os países
capitalistas avançados na medida em que estabelecemos um novo
sistema político, o sistema soviético. Isso é bom. Mas não é
suficiente. Para garantirmos a vitória final do socialismo no nosso
país, temos também de suplantar e exceder estes países técnica e
economicamente. Ou fazemos isso, ou ficamos encostados à
parede.3

Ele estava convencido de que Pedro, o Grande, com todos os seus


esforços para eliminar o atraso russo – construindo febrilmente manufaturas
e fábricas para fornecer o exército – estava destinado a falhar. Esse atraso
apenas poderia ser vencido se o proletariado trabalhasse sob um sistema
inteiramente novo. «Só nós, os bolcheviques, conseguiremos fazê-lo.» Este
era um vigoroso mote consciente e subconsciente – mas que trágico e
absurdo é todo o empreendimento, quando Lenine, de alma ardendo numa
profunda revolta contra a hegemonia ocidental, procura em seu redor e a
única ideologia que consegue encontrar é importada em segunda mão de
Marx, um filósofo alemão4.
A situação contemporânea da China repete alguns dos elementos do
esquema histórico, algo que se deveria esperar se considerarmos que o seu
ponto de partida é o comunismo ocidental. Em primeiro lugar, a China
aprendeu com o movimento internacional comunista que qualquer desafio
ao Ocidente deve ser levado a cabo em termos ocidentais. Talvez já não no
sentido de um sistema ideológico existente ter de ser importado do
Ocidente, mas certamente no sentido de um sistema capaz de rivalizar com
a moderna sociedade ocidental ter de partilhar o seu traço crucial: o poder
de manipular a natureza. Aqui, Mao estava apenas a construir sobre o
anterior Movimento de 4 de Maio, com a sua rejeição dos tradicionais
valores confucianos a favor de uma cultura moderna e científica. Durante a
Revolução Cultural, Mao incitava o povo chinês a «esmagar os quatro
velhos»: velhos trajes, velha cultura, velhas ideias e velhos hábitos. À
medida que a revolução se deslocava das cidades para o campo, a reforma
agrária eliminava os bens privados da propriedade transmitida por herança.
Os edifícios e estruturas de veneração dos antepassados foram convertidos
em escolas e outros locais públicos. Os templos foram arrasados ou
convertidos em símbolos de um Estado moderno: escolas, hospitais,
quartéis e edifícios de administração local. Este é ainda um traço visível da
paisagem numa cidade como Beijing, mas também no campo.
Em segundo lugar, os líderes chineses estão ainda convencidos da
utilidade do materialismo marxista, mesmo apesar de a predominância das
forças da produção sobre os valores políticos e culturais poder basear-se
agora em argumentos diferentes: nas minhas conversas com responsáveis
políticos chineses, essa predominância era quase sempre justificada pela
referência ao tradicional pragmatismo chinês, ou à economia neoclássica.
No entanto, com tudo isso, a China contemporânea, uma das sedes do
capitalismo global, rompeu com o comunismo ocidental em busca de uma
via diferente. Eventualmente, viu no colapso da União Soviética a
derradeira prova de que o comunismo era ao mesmo tempo uma ideologia
ocidental e reacionária, mas uma análise profundamente crítica da linha
soviética foi apresentada muito antes. De facto, a necessidade de preparar
quadros partidários para o conflito ideológico com Moscovo depois de 1960
ajudou a plantar as sementes da dissidência, mesmo através de publicações
restritas – os famosos livros de «capa amarela» e de «capa cinzenta» –
incitando a sociedade chinesa a uma mudança ainda mais radical. Se o
comunismo fora derrotado na dialética interna da política ocidental, então
era inevitável que viesse a ser derrotado na dialética externa da Guerra Fria
e não valeria a pena passar pelo mesmo processo uma terceira vez.
Um exemplo essencial deste processo foi o desaparecimento do conceito
de «luta de linhas». Originalmente, o conceito referia-se ao conflito político
entre duas orientações que, a dado momento, representavam dois sistemas
de crenças e de métodos em conflito, concebidos para alcançar objetivos
específicos. Um conceito formal que pode ser preenchido com diferentes
conteúdos, mas ainda assim incompletamente formal e abstrato, porque é
criado de forma deliberada para evitar o desenvolvimento de um sistema
mais abstrato que reconcilie os opostos. Uma das linhas, uma das crenças, é
entendida a priori como estando correta, sendo a outra errada. Isto é
suficiente para distinguir o conceito da divisão ocidental entre a esquerda e
a direita, por exemplo.
Com o desaparecimento da «luta de linhas», o abandono do comunismo
revolucionário estava completo e a paisagem política na China tornou-se de
quase completa neutralização do domínio político, que já não representa
uma escolha em particular contra as outras alternativas, mas que tenta
abranger o máximo possível de interesses e opiniões. Wang Hui observou
que a fronteira entre a elite política e os detentores do capital tende a
desaparecer, tornando a primeira mais ou menos incapaz de fazer frente aos
últimos. As divisões tornam-se questões de regateio ou de ajustamento
técnico e já não tendem a ser vistas como irreconciliáveis5.
Em novembro de 2012, duas semanas depois de ser eleito secretário-
geral do Comité Central do Partido Comunista da China, Xi Jinping visitou
«A Estrada para a Renovação», uma exposição no Museu Nacional da
China, em Beijing. Aí, na companhia de outros membros do Politburo,
proferiu um discurso celebrando as lutas por que o país passara ao longo da
sua História e as suas esperanças de um futuro brilhante. Culminou com a
frase: «Acredito firmemente que o grande sonho da renovação da nação
chinesa será realidade.»
Isso foi o suficiente para um frenesim especulativo acerca da ideia de
um «sonho chinês» e do que isso poderia significar. O próprio Xi regressou
frequentemente a esse tópico, tentando articular o conceito original, nem se
desviando dele nem lhe dando grande conteúdo. Mas, quando dizemos às
pessoas que tivemos um sonho e que acreditamos que se tornará realidade, é
natural que nos perguntem que sonho foi esse e, se não houver resposta,
muitas concluirão que, por uma razão ou por outra, o sonho deverá ser
mantido secreto.
O sonho é, primeiro que tudo, o da renovação ou rejuvenescimento
nacional, talvez também da recuperação. Não há dúvida de que a imagem
do sonho pretende remeter-nos para o longo período histórico conhecido
pelos chineses como «o século da humilhação», quando o país sucumbiu ao
controlo e ao domínio ocidentais, depois de ter sido militarmente derrotado
nas Guerras do Ópio (ainda mais traumatizante, porque o Japão deverá ser
aqui incluído entre as potências ocidentais). Durante esse período, era
apenas possível sonhar com um regresso ao glorioso passado da civilização
chinesa. Agora o sonho, parece estar Xi a dizer, começa a tornar-se
verdadeiro. Poderá mesmo dizer-se que o sonho chinês desempenha o
mesmo papel que o marxismo costumava desempenhar, tendo levado a
imagem da vitória sobre o domínio ocidental a um novo e original nível. A
China sente-se agora tão confiante nas suas próprias capacidades que já não
precisa de revestir a sua trajetória histórica com a linguagem da revolta ou
da revolução. Pode agora aspirar à nobre e romântica postura do sonhador,
da mesma forma que os Estados Unidos foram capazes de desenvolver a
noção do «sonho americano» quando estavam no seu caminho para a
dominação do mundo.
Contudo, não esqueçamos, a questão mantém-se: qual é exatamente o
sonho? Ou, por outras palavras, o que é que a China e a sua liderança
querem tanto ter que consideram terminado o período de humilhação
nacional? Isso Xi não diz. Mas também não o dizem os líderes políticos da
Europa ou dos Estados Unidos, quando apresentam as suas visões políticas.
Uma grande sociedade não pode confinar as suas energias e esforços apenas
a uma via. Tem de abarcar as possibilidades do futuro no seu movimento
crescente e expansivo. Este, pelo menos, é o carácter da vida moderna e a
China poder ser agora chamada uma sociedade moderna depende na
verdade da sua capacidade para manter o seu próprio futuro em suspenso.
Contrariamente aos anteriores slogans políticos na China, o «sonho chinês»
tem camadas múltiplas, é ambíguo e abstrato. Como qualquer outro
conceito político moderno, mantém-se em aberto.
Que orientação oferece? Se deixarmos o conteúdo do sonho indefinido,
seguem-se mesmo assim um número de importantes consequências. Note-
se, primeiro, que o sonho chinês é de rejuvenescimento nacional. Uma
diferença óbvia entre as mitologias do sonho chinês e do americano é que o
primeiro é visto como coletivo. Numa campanha de cartazes, omnipresentes
em grandes e pequenas cidades, desde Beijing a Urumqi, e que se deveriam
basear no conceito original, o sonho chinês é variadamente apresentado
como a realização de objetivos como a saúde, a prosperidade, a beleza e a
devoção filial. Nenhum destes objetivos pode ser atingido através do
esforço individual. São apresentados como um conjunto de possibilidades
que um Estado forte pode realizar. Xi tornou isto absolutamente claro no
seu discurso no Museu Nacional, falando do sonho chinês em relação aos
objetivos políticos – e politicamente situados – de «construir uma sociedade
moderadamente próspera» em 2021, quando o Partido Comunista celebra o
seu centenário, e de transformar a China num «país moderno» quando a
República Popular assinala o seu próprio centénio em 2049.
Embora o método utilizado seja semelhante ao usado no pensamento
político ocidental, as conclusões não poderiam ser mais diferentes. Pois o
que se segue desta premissa inicial é perguntar quais são as condições para
que o sonho da força do Estado ou da capacidade do Estado se realize.
Mesmo abstraindo de qualquer conteúdo ou objetivo específico, continua a
ser possível obter – como se fosse por dedução transcendental – uma
doutrina política plenamente desenvolvida.
Menos de seis meses depois do discurso que esboçava o conceito do
«sonho chinês», um documento confidencial do Gabinete Geral circulava
dentro do Partido Comunista. Delineava os principais perigos políticos
contra os quais se incitava a liderança do partido a tomar cuidado, todos
eles localizados dentro da «esfera ideológica» e pedindo uma resposta
ideológica. O documento começava por denunciar aqueles que substituem o
sonho chinês de rejuvenescimento nacional por um oposto «sonho
constitucional», importado do Ocidente e que afirma que a China deve lutar
para apanhar o Ocidente adotando uma forma de Governo constitucional e
seguindo os modelos políticos ocidentais. Ligada a esta, uma segunda falsa
tendência tenta promover os valores ocidentais como «universais»,
pretendendo que o sistema de valores ocidental «desafia o tempo e o
espaço, transcende a nação e a classe e aplica-se a toda a Humanidade». O
documento prossegue depois para completar uma total condenação das
ideias políticas ocidentais, incluindo a sociedade civil independente, o
liberalismo económico e a liberdade de imprensa. O Gabinete Geral insiste
particularmente no princípio de que «os meios de comunicação devem estar
impregnados do espírito do Partido». As críticas dos meios de comunicação
devem ser geridas e a supervisão supervisionada. Aqueles que negam este
princípio estão a procurar usar a liberdade dos meios de comunicação para
«abrir uma fenda para infiltrar a nossa ideologia». Permitindo a circulação
de ideias erradas, as críticas abalarão o consenso existente sobre o caminho
a seguir e os objetivos a perseguir e «perturbarão o estável progresso da
nossa nação em matéria de reforma e desenvolvimento». Neste ponto, o
documento dá a volta completa ao círculo para regressar à ideia de não-
interferência, mas significando o oposto daquilo que significa no Ocidente.
O tipo de interferência de que nos deveríamos proteger não é o da
capacidade do indivíduo para perseguir os seus próprios sonhos, mas antes
a capacidade do Estado para perseguir o sonho chinês.
O Gabinete Geral não acredita numa esfera pública de debate público
livre. Tudo é visto sob o prisma da luta ideológica. As tensões tornaram-se
mais óbvias e as ideias na sociedade são diversas, variáveis e mutáveis.
Internacionalmente, a competição não poderia ser mais intensa entre
diferentes sistemas de valores e as forças hostis não diminuíram nas
conspirações de ocidentalização e divisão dirigidas contra a China. O statu
quo é um Ocidente forte e uma China fraca. A liberdade dos meios de
comunicação beneficiaria apenas quem é mais forte no presente momento.
Os jornais oficiais e as redes de rádio e televisão são os meios de
comunicação em que o Partido confia e deverão desempenhar o papel a que
a burocracia de controlo dos meios de comunicação chama o principal tema
positivo e correto ( ), eliminando o impacto negativo da estática e do
ruído ( ), para formar uma vontade política organizada e orientada
que não deixa nada ao acaso.
Essa constelação de valores políticos faz parte daquilo a que se
poderiam chamar «valores políticos modernos». São abstratos e formais,
baseados no poder e na capacidade para obter resultados. Revelam a
organização e a gestão numa base científica, ou quase científica. Mas pouca
semelhança têm com os valores políticos ocidentais. Quando a divisão entre
o moderno e o tradicional por fim estalou, ficámos não com uma
modernidade mas várias, não uma única civilização ocidental cobrindo todo
o Globo, mas uma luta pelo domínio na Eurásia – a geografia política onde
diferentes modelos vivem lado a lado.
Escrevi a expressão «luta pelo domínio» com uma referência irónica a
uma geopolítica mais antiga, uma vez que de facto a situação é
completamente nova. Sob condições modernas, um sistema internacional de
regras e de instituições é sempre um dado. Um mundo de modernidades
diferentes ou alternativas não muda isso, embora introduza de facto um
velho elemento de luta e poder. Em resultado disso, os Estados rivais usarão
frequentemente o sistema internacional uns contra os outros, ao mesmo
tempo que tentam colocar-se em posição de moldá-lo de acordo com os
seus próprios valores.
Durante um seminário sobre segurança nacional em fevereiro de 2017,
Xi Jinping defendeu pela primeira vez que a China devia guiar o mundo na
formação de uma nova ordem mundial: «A tendência generalizada de
multipolaridade mundial, a globalização económica e a democratização das
relações internacionais mantêm-se inalteradas. Devemos guiar a
comunidade internacional para que construa conjuntamente uma nova
ordem mundial mais justa e racional.» Os órgãos de comunicação estatais
observaram que uma pesquisa dos seus anteriores discursos não mostrava
uma linguagem equivalente. No passado, a pretensão fora a de que a China
deveria desempenhar um papel na futura transformação e não liderá-la. A
mudança deveria chegar sem surpresa. O projeto geopolítico mais
ambicioso da China, o «Cintura e Rota», foi lançado há quatro anos
precisamente com essa intenção. Agora, em outubro de 2017, foi
consagrado na Constituição do Partido Comunista com uma nova frase
incitando a nação a «prosseguir a Iniciativa “Cintura e Rota”».

A ponte da China para a Europa


As cidades perdidas do mundo foram todas desenterradas. O seu
equivalente nos tempos modernos – preenchendo um antiquíssimo desejo
de estar num sítio desconhecido por completo dos outros – é uma cidade
construída tão recentemente que poucos ouviram falar dela.
A cidade chinesa de Khorgas, na fronteira com o Cazaquistão, não se
encontra na maioria dos mapas. Construída a partir do zero durante os
últimos três anos, depressa se transformou numa ampla rede de avenidas
largas dando a sensação de uma cidade californiana. As ruas ladeadas de
árvores têm passeios largos e imaculados. As equipas de construção
trabalham azafamadamente. Olhando de longe – de preferência, da fronteira
do Cazaquistão – vê-se uma linha nascente de arranha-céus. A maioria dos
semáforos ainda não está operacional, mas grandes ecrãs vídeo nas esquinas
de algumas ruas projetam mapas da nova infraestrutura, planeada para ligar
a Eurásia, com luminosas setas a atravessarem as estepes como cometas.
Como as condições de vida estão estabelecidas, a população ronda já as 200
mil pessoas.
Os chineses encaram Khorgas como uma cidade que ligue o Oriente e o
Ocidente e um primeiro vislumbre do seu projeto económico global, o
«Cintura e Rota», que pretende ligar a China à Ásia Central e à Europa
através de uma infraestrutrura de transportes rápidos, comércio, finança e
intercâmbio cultural. Os jovens têm acorrido em massa, não apenas da
província chinesa ocidental de Xinjiang, mas também de mais longe. Uma
loja que vende vinho georgiano numa rua comercial lateral tem letreiros em
cinco grafias diferentes: chinesa, cirílica, latina, georgiana e árabe – usada
no uigur, a língua do grupo étnico dominante na província.
Penso que isto deva constituir um recorde mundial. Jantei no Fuyun, um
novo restaurante movimentado que serve caros peixes e mariscos. Quando
uma cidade chinesa abre o seu primeiro restaurante de marisco, sabemos
que está a arrancar. Os empresários encontram-se em cabines privadas, para
concluir negócios. Os empregados aproveitam a minha visita para aprender
algumas palavras inglesas novas e eu faço o meu pedido clicando as
imagens numa ementa eletrónica. O lugar está fremente e essa sensação
espelha a da cidade. No Fuyun conheci um funcionário da Boshihao
Electronic, uma empresa registada numa cidade do Sul, Shenzen, que está a
planear abrir a sua fábrica de produção de robôs em Khorgas e espera
começar a exportar robôs de serviço para a Europa em 2017. Toda a gente
está demasiado ocupada a tentar fazer fortuna para se preocupar em seguir
muito estritamente as regras: talvez os semáforos nunca sejam ligados. A
mais jovem cidade da China reluz de ambição. Este é o novo Oeste
Selvagem – mesmo literalmente, devido aos jovens que se aglomeram a vir
para Khorgas das grandes megacidades chinesas do Leste.
Quando se atravessa a fronteira para o lado cazaque, as coisas são mais
calmas. A Khorgos cazaque (o nome da cidade é o mesmo, mas há uma
diferença na pronunciação) está mais ou menos como sempre foi: uma
dúzia de casas velhas congregadas em torno de uma bonita mesquita e uma
estrada que se prolonga até ao posto fronteiriço. Mas não se deixem
enganar. Numa visita posterior, quando saí do comboio noturno na nova
estação de Altynkol, a sensação de estar no Oeste Selvagem regressou. Os
20 ou 30 passageiros desapareceram rapidamente e fiquei sozinho no meio
de inóspitas dunas de areia e um rebanho de ovelhas a pastar. Isto é
literalmente o meio do nada, mas então porque estou dentro de uma nova e
imponente estação e por que razão está ali a autoestrada com duas faixas de
rodagem, em fase final de construção?
Ao abandonar a estação, depois de uma curva da estrada, surgem
subitamente: três gigantescas gruas amarelas, brilhando à luz da aurora.
Este é o novo porto seco de Khorgos, um novo projeto ambicioso para
construir um dos maiores portos do mundo naquele que é possivelmente o
lugar na Terra mais afastado de qualquer oceano. Tais são as ironias da
globalização. Depois de ter sido recebido por Karl Gheysen, presidente-
executivo da Porta de Khorgos, sentamo-nos à volta de um mapa do
tamanho de uma mesa e consideramos a revolução que ali está a acontecer.
A China e a União Europeia são já as maiores economias mundiais,
juntamente com os Estados Unidos, e pode-se esperar que o comércio entre
elas continue a crescer e a diversificar-se. Suponhamos que se constrói um
porto precisamente a meio-caminho entre as duas, onde os comboios de
carga podem convergir, descarregar os seus contentores e a partir do qual
outros comboios, reagrupados de acordo com o seu destino, partirão com
rapidez (as gruas gigantescas que eu vi conseguem transferir a carga entre
comboios em apenas 47 minutos). No entanto, isto será apenas o início. A
partir do momento em que o porto esteja completamente operacional, é de
esperar que novas áreas industriais e novas cidades comecem a emergir ao
longo das rotas comerciais, aproveitando a nova infraestrutura, os baixos
custos de trabalho e a crescente especialização industrial em diferentes
regiões económicas. Os fabricantes chineses em particular serão certamente
atraídos pela possibilidade de entrar no mercado russo sem pagar quaisquer
taxas – se se instalarem do outro lado da fronteira, podem beneficiar do
facto de a Rússia e o Cazaquistão serem membros da União Económica
Eurasiática, uma união alfandegária. A antiga Rota da Seda a ligar o Oriente
e o Ocidente poderá regressar com um sabor a vingança.
Gheysen trabalhava no Dubai antes de vir para aqui e a visão que tem
para Khorgos inspira-se em grande parte no conceito do Dubai de ter um
porto e uma zona económica conjugados. Como a zona económica se
desenvolveu, o porto começou a desenvolver-se e, como o porto cresceu, a
zona cresceu. A interação é necessária quando se quer criar algo com uma
tal dimensão praticamente a partir do nada.
Mais do que uma barreira logística, diz-me Gheysen, é uma barreira
psicológica que todos estão a ajudar a derrubar – uma barreira psicológica
entre o Oriente e o Ocidente, entre a Europa e a Ásia, uma barreira em torno
da qual os Governos e as empresas organizaram as suas atividades. Se a
Toyota quiser entregar carros de uma das suas fábricas japonesas ou
chinesas no Cazaquistão, pede à sua subsidiária europeia que se encarregue
da logística e as pessoas em Bruxelas ou em Roterdão pensam então no
caminho mais curto, não entre o Japão ou a China e o Cazaquistão, mas
entre a Holanda e o Cazaquistão. É difícil imaginar a que profundidade
estas distinções vão e a que ponto interferem naquilo a que se chamaria uma
logística eficiente. A determinado ponto, esta barreira cairá e isso mudará
tudo. Deixaremos de ter a Ásia de um lado e a Europa do outro, mas um
único continente, crescentemente interconetado.
Em comparação com mais de um mês para o transporte marítimo dos
portos da China para a Europa, os serviços ferroviários de carga ao longo
destas novas rotas terrestres podem em breve levar apenas 10 dias para
atingir a Europa Ocidental. Caso se vá de porto marítimo para porto
marítimo, o frete é sempre mais barato. Mas as mercadorias não são
produzidas no porto e as pessoas não vivem no porto. De facto, à medida
que as fábricas chinesas se deslocam para o interior, respondendo à
congestão ambiental nas áreas costeiras e procurando custos de trabalho
inferiores, deixa de fazer sentido transportar as mercadorias pelo mundo
através do mar. Veja-se Chongqing, onde grande parte da indústria tem
estado concentrada. Se se tiverem em conta apenas os segmentos terrestres
da viagem, de Chongqing para a costa chinesa e depois de Roterdão para
uma cidade como Kyiv, estes aproximar-se-ão da distância ao longo da rota
terrestre direta entre as duas cidades.
Face a isto, uma nova rede de ferrovias, estradas e infraestruturas
energéticas e digitais ligando a Europa e a China através da rota mais curta
e mais direta faz imenso sentido. A iniciativa tem a ambição de criar o
maior corredor económico do mundo, ligando o polo económico do
Pacífico asiático, na extremidade leste da Eurásia, ao polo europeu, na sua
extremidade oeste. Juntaria dois centros económicos altamente dinâmicos e,
entre eles, algumas das regiões do mundo – da Ásia Central ao Paquistão e
ao Cáspio – com o mais elevado potencial económico por realizar. Khorgas
é uma ideia inspiradora porque se está rapidamente a tornar a fronteira entre
a China e a Europa – afinal de contas, o Cazaquistão é um país europeu,
segundo o critério bem testado de ter parte do seu território dentro dos
limites geográficos da Europa. Mas o «Cintura e Rota» é muito mais do que
um conceito meramente logístico. Acarreta enormes riscos, agitando velhas
realidades geopolíticas e evocando um mundo do século XIX com a
rivalidade entre grandes potências, uma corrida pelo poder no coração da
maior massa terrestre do Globo.
Começando pela logística, depressa nos encontraremos confrontados
com questões muito mais delicadas. Mesmo na sua forma incipiente, o
projeto está a criar consideráveis riscos geopolíticos. No final de 2016, o
fundador da empresa de segurança militar Blackwater, associada à invasão
do Iraque, anunciou que a sua nova companhia iria estabelecer uma base
operacional em Xinjiang, para apoiar o «Cintura e Rota» no Paquistão,
Cazaquistão, Usbequistão e Afeganistão. No Cazaquistão, o projeto suscitou
receios de uma presença chinesa acrescida e estes receios provocaram
protestos públicos que estão a lançar dúvidas sobre a estabilidade do regime
de Nazarbayev. No Paquistão, o corredor económico que liga a fronteira
chinesa ao porto de Gwadar, no oceano Índico, precisará de ser vigiado por
meios militares e o Paquistão estabeleceu uma força de segurança com essa
finalidade de 15 mil reservistas militares e polícias, para proteger os
calculados sete mil cidadãos chineses que trabalham atualmente nos novos
projetos infraestruturais. Em abril de 2017, um cidadão indiano preso no
Paquistão foi sentenciado à morte por acusações de espionagem e
terrorismo que visavam destruir o Cintura e Rota. Na Rússia, o projeto foi
acolhido com crescentes preocupações. Alguns sugeriram mesmo que a
crise da Ucrânia fora, em última análise, um produto das ansiedades russas
em relação ao crescente poderio chinês. Se Moscovo quiser confrontar
Beijing na Ásia, precisará da Ucrânia como parte do projeto de integração
rival, a União Económica Eurasiática.
Em maio de 2017, a China juntou cerca de 30 líderes nacionais na sua
primeira cimeira dedicada a promover a orientação para o Cintura e Rota. A
ocasião foi usada para promover a iniciativa no exterior com um
bombardeamento de programas televisivos e entrevistas, cobertura
jornalística generalizada, vídeos musicais e até histórias infantis para
adormecer. Pela primeira vez, o «Cintura e Rota» era a história principal na
maioria dos produtos mediáticos internacionais e muitas pessoas na Europa
e nos Estados Unidos tiveram então oportunidade de conhecer o conceito.
Talvez não seja de surpreender que esses momentos iniciais de fama
internacional fossem também marcados por uma exibição bastante pública
das dificuldades geopolíticas e dos perigos enfrentados pelo «Cintura e
Rota». Os países da União Europeia presentes na cimeira declinaram a
assinatura de uma declaração conjunta sobre comércio, desconfortáveis com
a sua omissão de sustentabilidade social e ambiental, bem como requisitos
de transparência imperfeitos, em particular na área dos orçamentos
públicos. Quanto à Índia, anunciou apenas um dia antes do evento que não
participaria, explicando que, na sua presente forma, do Cintura e Rota
criaria volumes de dívida insustentáveis, ao mesmo tempo que um dos seus
segmentos, o corredor económico que ligaria a China e o Paquistão,
atravessa as áreas em disputa de Gilgit e do Baltistão na Caxemira, ocupada
pelo Paquistão, ignorando assim as preocupações centrais indianas sobre
soberania e integridade territorial. O jornalista Ashok Malik, do Times of
India, chamou ao boicote a terceira decisão mais significativa da história da
política externa indiana, depois da decisão de 1971 de apoiar a
independência do Bangladesh e dos testes nucleares de 1998.
A rejeição pela Índia dos projetos do «Cintura e Rota» e a sua oposição
aos planos chineses poderão ter desencadeado o confronto que se
desenvolveu mais tarde no verão no planalto de Doklam, aninhado entre o
Butão e o estado indiano de Sikkim. A 16 de junho, um mês após a cimeira
de Beijing, as tropas chinesas foram descobertas a prolongar uma estrada
através de um pedaço de terra disputado entre a China e o Butão. A Índia
entendeu isso como uma mudança inaceitável do statu quo e atravessou a
sua própria fronteira – neste caso, perfeitamente estabelecida – para
bloquear esses trabalhos. As encostas do planalto de Doklam descem até à
passagem de Siliguri, uma estreita faixa de território indiano que liga o
centro continental da Índia aos estados da região do Nordeste. Se a China
pudesse bloquear a passagem isso isolaria a região do Nordeste, um cenário
devastador em caso de guerra. No início de agosto de 2017, o especialista
militar Lu Fuqiang (possivelmente um pseudónimo) foi citado pelos meios
de comunicação social chineses como tendo dito que, se eclodisse uma
guerra, a Índia arriscava-se a ficar dividida sob um pesado bombardeamento
da passagem de Siliguri. Beijing estava a mostrar músculo numa tentativa
para forçar a Índia a reconsiderar tornar-se um obstáculo ao poder chinês.
Neste caso, a jogada – uma competição geopolítica sob o disfarce de uma
disputa de fronteiras – suscitou o perigo muito real de conflito armado nos
Himalaias.
Um documento preparado pela Comissão de Desenvolvimento e
Reforma Nacionais e pelo Banco de Desenvolvimento da China fornece um
sentido claro à escala e à ambição do «Cintura e Rota» no Paquistão,
compreensivelmente aquilo que está no centro das preocupações indianas.
O plano visa uma profunda e larga penetração de quase todos os sectores da
economia paquistanesa pelas empresas da China e a sua reorganização
generalizada para se adaptar às cadeias de produção chinesas. Um elemento
essencial é o desenvolvimento de novos parques industriais, rodeados pela
infraestrutura e uma política ambiental de apoio. Os planos chineses para o
Paquistão focam-se na agricultura e na indústria de baixa tecnologia,
avançando um padrão de especialização em que a China se poderá deslocar
para sectores e segmentos de valor mais elevado. É apenas na agricultura
que o plano apresenta o estabelecimento de cadeias de valor inteiramente
paquistanesas, incluindo o fornecimento de sementes e pesticidas. O
mecanismo de fomento favorecido é o crédito, em que às companhias
interessadas no sector agrícola é oferecido capital sem restrições e
empréstimos do Governo chinês e do Banco de Desenvolvimento da China.
O plano mostra também interesse na indústria têxtil, mas o seu foco está
voltado para a produção de fio e o tecido primário, que poderão servir de
matéria-prima para os segmentos de valor mais elevado do sector do
vestuário desenvolvido em Xinjiang. É sugerido que alguma da força de
trabalho excedentária chinesa possa deslocar-se para o Paquistão, ao passo
que o estabelecimento de cadeias de valor internacionais é descrito como
«introduzindo capital estrangeiro e estabelecendo conexões internas com
um cruzamento do Ocidente e do Oriente». Finalmente, a conetividade de
fibra ótica entre a China e o Paquistão preparará o terreno para os novos
serviços de televisão digital que disseminem a cultura chinesa e a
monitorização electrónica e os sistemas de controlo que garantam a
segurança do projeto. O plano é colocado cuidadosamente sob a orientação
política: «A cooperação comercial internacional com o Paquistão deverá ser
sobretudo conduzida tendo o Governo como apoio, os bancos como agentes
intermediários e as empresas como os pilares.6»
A China adotou um gigantesco projeto de engenharia política
internacional. Os benefícios são potencialmente muito grandes, mas os
riscos também – afetando toda a gente – e isto levanta a questão de saber a
razão pela qual a União Europeia, até aqui, se tem mantido à margem. Seria
de pensar que o projeto histórico de reanimar as rotas terrestres entre a
Europa e a Ásia fosse algo em que a Europa deveria ter um papel ativo.
Apesar de o foco inicial do «Cintura e Rota» estar naturalmente na
periferia imediata da China, a Europa é o seu objetivo final e principal
justificação. Isso foi evocado por repetidas referências à Rota da Seda, cujas
associações nos levam às velhas redes comerciais que ligavam o Atlântico
ao Pacífico. Entre aqueles que o defendem, o meu anfitrião na Universidade
de Renmin, no Distrito Haidian de Beijing, Wang Yiwei, tem sido dos mais
enfáticos. Argumenta que o «Cintura e Rota» é tão significativo para a
Europa como para a China, oferecendo uma oportunidade favorável para
enfrentar os desafios que poderão, caso contrário, afligir os europeus
durante muito tempo. Há dois exemplos que sobressaem. Primeiro, em
relação à crise ucraniana que apanhou a Europa de surpresa, Wang escreve:
«Parece que, para fortalecer a integração europeia, as ações já não se podem
confinar à presente União.» Neste contexto, poderia também mencionar a
Síria, um segundo aviso de que a Europa precisa de olhar para oriente se
quiser sobreviver e prosperar. Segundo, o «Cintura e Rota» oferece à União
Europeia uma oportunidade evidente para se empenhar no seu próprio
«Pivô para a Ásia», tornado urgente pelos presentes esforços americanos
nesta área7.
Recentemente, tem havido um número de historiadores que defenderam
que a antiga Rota da Seda tinha menos importância como comércio de
mercadorias do que como troca cultural, movimento de ideias, religiões e
pessoas. A primeira sempre foi limitada em dimensão e sobretudo local. A
última mudou o curso da História mundial, não uma única, mas muitas
vezes seguidas8.
Isso, no final, será também o que irá passar-se com o Cintura e Rota. Os
reflexos da infraestrutura e do comércio na política, na cultura e na
segurança não são um obstáculo ao projeto, mas a sua característica mais
fundamental. Sob a nova liderança de Xi Jinping, a China compreendeu que
poderá correr o risco de se tornar uma gigantesca Singapura ou Hong Kong,
uma central de energia económica ligada ao resto do mundo por laços
comerciais, mas, para além disso, uma ilha política, incapaz de oferecer ao
mundo exterior a sua própria visão de uma cultura universal e de valores
universais e, em última análise, dependente de um sistema global que não
criou e não consegue controlar. Agora que a China é, de acordo com a
maioria das estimativas, já a maior economia do mundo, sente que a sua
influência política e cultural precisa de crescer proporcionalmente,
começando pela sua periferia, na Ásia Central e do Sudoeste. Nas minhas
conversas com estudantes chineses em Beijing, todos repetiam que a China
quer devolver ao mundo tudo aquilo que recebeu desde a Reforma e
Abertura de Deng Xiaoping, há quase 40 anos.
Com o «Cintura e Rota», as autoridades chinesas pretendem deslocar o
país da imagem de uma participante empenhada na economia global para
uma nova fase, como um Estado com responsabilidades na sua organização
e modelagem. Expandindo a sua influência para fora das suas fronteiras, a
China será chamada a desenvolver novos conceitos políticos que rivalizem
com as abstrações ocidentais dos direitos humanos e da democracia liberal.
Zhang Yansheng, da Comissão de Desenvolvimento e Reforma Nacionais, o
órgão governativo encarregado da iniciativa, disse-me que se pretende que
o projeto «ligue os espíritos dos nossos povos». Quando um país se atribui a
tarefa de juntar o mundo inteiro, poderão ter a certeza de que tem
consciência das dificuldades, mas também que decidiu abraçá-las.
No passado, as estepes da Ásia Central eram o local onde nasciam novas
civilizações e onde as velhas iam por vezes morrer. Há muita História em
Khorgas. Mas não há passado. Não existem ruínas, nem sepulturas, nem
velhos minaretes. O que se verá aqui é o futuro.

A prática é o teste da verdade


«Já sabíamos quais eram as suas ideias e discordamos.»
Eu acabara de fazer uma curta apresentação sobre o «Cintura e Rota» no
Instituto Chongyang para os Serviços Financeiros na Universidade de
Renmin, mas o reitor executivo do influente centro de reflexão, Wang Wen,
explicou que já conhecia bem as minhas ideias. Depois de as ter
apresentado na noite anterior num seminário na Universidade de Pequim,
tinham sido discutidas por todos os especialistas da área através da sua
habitual aplicação de mensagens. Ou antes, já tinham sido completamente
criticadas e invalidadas.
«Para si, a geopolítica é a coisa mais importante. Mas deixe que lhe
pergunte: já leu o documento estratégico oficial sobre o “Cintura e Rota”?
Há lá uma geopolítica mundial?»
Wang Wen estava a referir-se a um documento governamental chinês
publicado em março de 2015, com o título «Visão e Ações sobre a
Construção Conjunta da Cintura Económica da Rota da Seda e da Rota da
Seda Marítima do Século XXI». A Cintura Económica da Rota da Seda foca-
se em juntar a China, a Ásia Central, a Rússia e a Europa através da massa
terrestre eurasiática. Não é por coincidência que a componente terrestre se
chama «cintura económica»: uma estrada é apenas uma ligação de
transporte entre dois pontos, uma cintura é um corredor económico
densamente ocupado para comércio, indústria e pessoas. A Rota da Seda
marítima é concebida para ir da costa da China até à Europa através do mar
do Sul da China e do oceano Índico, por uma rota, da costa da China através
do mar do Sul da China para o Pacífico Sul, por outra. No mar, a iniciativa
focar-se-á na construção de rotas de transporte regulares, seguras e
eficientes, que liguem importantes portos marítimos. Em conjunto, as
componentes terrestre e marítima procurarão ligar cerca de 65 países. A
abreviatura preferida na China para o projeto combinado é – sem surpresa –
a Cintura e a Rota, .
O documento oferece uma visão de maior integração económica entre
economias mutuamente complementares. Pretende promover o ordenado e
livre fluxo de fatores económicos, uma alocação mais eficiente de recursos
e uma integração de mercados mais profunda. Um fator importante é que a
iniciativa deverá respeitar as regras dos mercados. Não existe na realidade
menção de considerações geopolíticas. Ou nunca foram consideradas, ou
tudo foi cuidadosamente verificado e revisto para parecer um plano de
negócios. Wang Wen insistiu que a minha maneira ocidental de pensar
sublinhava distinções e oposições, ao passo que os chineses, pelo menos
aqueles que não tinham sido contagiados pelas mesmas doutrinas, estavam
interessados na cooperação e no acordo. Não há hipótese de os outros países
virem a aceitar os valores e as ideias ocidentais, disse ele, mas aceitarão as
estradas e as centrais elétricas chinesas.
«Pensa que isto é apenas a doutrina pública? Pensa que existe uma
doutrina secreta que não está no documento? Isso é impossível. A China é
um país muito grande, com muitos governos regionais e locais. Imagine a
confusão se lhes dissessem uma coisa e esperassem que fizessem outra.»
Voltei a sentar-me na cadeira. Claro que não havia uma doutrina secreta.
Aceitava que as autoridades chinesas não tivessem interesse em geopolítica,
mas e se as considerações geopolíticas acabassem por ser decisivas, quer
quisessem, quer não? Fiz notar a Wang Wen que o pensamento geopolítico
no Ocidente se desenvolveu como uma espécie de compreensão profunda.
Como a psicanálise, não se espera que descreva uma aparência
imediatamente acessível, mas o jogo de forças em grande parte exteriores à
consciência e exigindo um treino especial para se tornarem acessíveis.
O documento «Visão e Ações» não fala de geopolítica, mas nalgumas
das secções mais interessantes desenvolve uma teoria de integração
económica que depende fortemente do poder político. As declarações mais
ambiciosas do documento dirão provavelmente respeito à política de
coordenação económica: «Os países ao longo do “Cintura e Rota” poderão
coordenar completamente as suas estratégias e políticas de desenvolvimento
económico, estabelecer planos e medidas para a cooperação regional e
projetos de larga escala.» As autoridades chinesas, alicerçadas na teoria
marxista, estão familiarizadas com a ideia de um sistema mundial que
articula as relações do poder económico e da dependência económica no
âmago da economia global. Os padrões de especialização e a vantagem
comparativa determinam o lugar que cada país assume na economia global
e, em resultado disso, os níveis de prosperidade absoluta e relativa que
poderá esperar alcançar. A economia global é menos um campo de jogos
nivelado e mais um sistema organizado em que alguns países ocupam
posições privilegiadas e outros, como a China, tentam ascender a esses
patamares de comando.
Os decisores chineses partilham com os seus homólogos ocidentais a
premissa de que a globalização económica e financeira tornou difícil que
um único país persiga uma visão económica específica. Mas os chineses
estão menos inclinados a renunciar a todas as formas de planeamento
económico do que a redefinir as regras do jogo da globalização. Uma das
prioridades identificada no documento «Visão e Ações» é melhorar a
«divisão do trabalho e a distribuição das redes industriais». Quando se trata
da divisão do trabalho ao longo das cadeias de valor da produção industrial,
as posições e as preferências que refletem os interesses nacionais dos países
nas regiões do «Cintura e Rota» poderão diferir, ou mesmo entrar em
contradição uns com os outros. Em tais casos, os observadores não deverão
ter ilusões de que a China, como promotora da iniciativa, se encontre numa
posição única para perseguir os seus interesses.
Os padrões de especialização e divisão do trabalho internacionais são
particularmente relevantes na era de cadeias de valor globais. Hoje, muito
poucos produtos são fabricados num único país. As importações de
produtos de um país serão provavelmente de bens intermédios, ou seja,
mercadorias, peças ou componentes, ou produtos semiacabados, que usa
para fazer os seus próprios produtos. Com o surgimento de cadeias de valor
globais, a abordagem mercantilista que vê as exportações como boas e as
importações como más começa a parecer contraproducente e mesmo
contraditória. Se um país impuser tarifas altas e obstáculos às importações
de bens intermédios, as suas exportações serão as primeiras a sofrer. As
empresas nacionais precisam portanto de acesso fiável a importações de
bens e serviços a nível mundial para melhorar a sua produtividade e
capacidade de exportação. Nesta nova era, compensa pensar para lá das
fronteiras nacionais. Quando os produtos intermédios tendem a atravessar
as fronteiras muitas vezes, mesmo as pequenas taxas e engarrafamentos
alfandegários têm um efeito cumulativo e as medidas protetoras contra as
importações aumentam os custos da produção e reduzem a competitividade
das exportações.
Estes são todos bons argumentos a favor da liberalização comercial, mas
o que acontecerá à nossa capacidade para organizar a produção ao longo de
linhas mais eficientes? Se os bens forem produzidos inteiramente dentro de
um país, este terá controlo completo sobre todo o processo. A partir do
momento em que sejam produzidos no mundo, o resultado combinado de
uma intricada divisão do trabalho dentro de cada cadeia de valor, as coisas
tornam-se mais complicadas. O que se pretende é selecionar e escolher os
melhores segmentos dentro de cada cadeia de valor. A política industrial
visa cada vez mais tarefas e não indústrias, mas, para isso, é preciso obter
acesso às alavancas da política industrial dentro dos outros países, para
conseguirmos organizar a produção ao longo de toda a cadeia de valor. Um
país tem muito mais a ganhar deslocando-se para os segmentos de valor
mais elevado numa cadeia de fornecimento do que aumentando a
produtividade num segmento já ocupado.
Assim, se a China se quiser focar em determinados segmentos de uma
dada cadeia de valor, precisará de elevados níveis de complementaridade
nos outros países. Isso só irá avançar se as infraestruturas de transporte e
comunicação adequadas forem construídas e se esses países adotarem as
decisões certas de política económica. Um especialista chinês disse-me que
a iniciativa «Cintura e Rota» é o primeiro exemplo de política industrial
«transnacional». «Anteriormente, toda a política industrial era nacional»,
disse-me. E tem alguma razão, pois até a União Europeia, quando criou um
ambicioso quadro transnacional de regras e instituições, tendeu a abandonar
a política industrial, com a justificação de que uma tal política não poderia
ser reproduzida a um nível transnacional. Isto aponta para o choque entre
diferentes modelos de integração.
As redes de transporte e comunicação são sem dúvida um requisito para
o desenvolvimento de correntes de valor globais, mas o elemento crucial é o
conjunto de decisões de política industrial através das quais os diferentes
países se esforçam por se deslocar para novos segmentos dentro de uma
cadeia de valor já ocupada. Para não se ver apanhado numa armadilha de
rendimento médio – uma situação em que um país fica preso ao seu anterior
modelo de crescimento, depois de atingir um determinado nível de
rendimento – e acelerar o processo de se deslocar para segmentos de valor
mais elevado, a China quer que a sua política industrial fique
suficientemente articulada com os outros países que ocupem outros
segmentos e cadeias. Em contrapartida, poderá oferecer um financiamento
barato e a sua experiência de um modelo económico que se mostrou
bastante bem-sucedido no fomento da industrialização e da urbanização
numa escala temporal de uma rapidez sem precedentes.
Na prática, a indústria chinesa poderá necessitar de fornecedores fiáveis
de peças ou mercadorias intermédias, ou poderá tentar construir as fábricas
de montagem no estrangeiro para evitar taxas de importação, ao mesmo
tempo que conservará o grosso da cadeia da produção na China. Poderá
tentar criar novas oportunidades para exportar matérias-primas ou bens
intermédios produzidos na China ou, inversamente, assegurar as matérias-
primas numa base estável para a sua própria indústria.
Poder político e económico: não é difícil passar de um para o outro
indistintamente. Faço uma nota mental de que, mesmo que o «Cintura e
Rota» seja só sobre economia, isso não significa que não seja também só
sobre política. Antes de partir, preciso que Wang Wen me responda a uma
pergunta:
«A sua descrição do Cintura e Rota é inteiramente baseada no valor
económico. Não há nada sobre valores políticos ou culturais. Porquê? Por
que razão acha que os valores económicos têm uma capacidade de se tornar
universais e agradar a diferentes povos de uma forma inexistente nos
valores políticos?»
Wang Wen sorriu e desatou numa explicação apaixonada:
«Deng Xiaoping disse que a prática é o teste da verdade.
.» Voltou-se para o seu assistente,
discutindo rapidamente qual seria a melhor palavra em inglês: test,
criterion? Concordaram com «teste», mostrando inadvertidamente que as
palavras exatas do mestre tinham de permanecer inalteradas.
«Portanto, é a prática que nos deve conduzir. Procuramos a verdade a
partir dos factos, partimos da realidade e não de teorias.»
A verdade é que existe uma diferença radical entre os esquemas de ação
europeus e chineses, que se vai revelando lentamente ao viajante. Os
europeus concebem um modelo ideal nas suas mentes, que depois tentam
executar, transformando a realidade de modo a fazer com que se pareça com
o modelo planeado. A filosofia europeia, a começar por Platão, focou-se em
encontrar uma forma de transpor a distância entre o modelo e a realidade.
Para o pensamento tradicional chinês, isso nunca foi um problema. Em vez
de estabelecerem um plano para a ação, os chineses inclinam-se a
considerar o curso dos acontecimentos de que fazem parte, deixando-se
levar pela propensão das coisas e retirando o máximo das suas
consequências. Enquanto os europeus veem nas circunstâncias externas
obstáculos capazes de arruinar o plano melhor delineado, os chineses
querem aproveitá-los, usando os fatores favoráveis implícitos na situação,
explorando-os constantemente e permitindo que se desenvolvam, de tal
modo que, por exemplo, quando uma pessoa se empenha finalmente na
batalha o adversário já se tenha rendido. As tropas vitoriosas começam por
ganhar e só depois é que se lançam na batalha; os derrotados começam por
se lançar na batalha e só depois é que a tentam ganhar9. Inspirando-se nessa
tradição, a China moderna está a desenvolver uma nova constelação de
valores políticos centrados na capacidade e na eficiência do Estado: uma
vez que os objetivos políticos são obtidos a partir da situação prática e não
de uma imagem idealizada, a sua realização é tida como inevitável. Os
diferentes esquemas de ação parecem assim estar completamente
preservados nas variantes europeia e chinesa da política moderna.
Nessa tarde, iria regressar a Renmin para proferir uma palestra no
seminário Cintura e Rota, orientado pelo Prof. Wang Yiwei. É um sinal de
como as coisas se estão a desenvolver depressa o facto de poder haver um
seminário inteiro dedicado à iniciativa e Yiwei é também o autor do
primeiro livro em inglês sobre o «Cintura e Rota». Enviou um estudante
para me receber na Porta Ocidental de Renmin e jantámos no restaurante da
universidade com um grupo de académicos europeus e membros dos grupos
de reflexão associados à universidade. Começo a minha palestra com uma
referência velada à minha conversa com Wang Wen nessa manhã:
«Foi-me dito esta manhã por um influente pensador desta universidade
que o meu hábito de pensar em termos geopolíticos se deve às minhas
origens europeias e que, na China, ninguém pensa assim. Estou disposto a
concordar que a geopolítica não é a forma de considerar o “Cintura e Rota”.
Terão de me perdoar se os meus pensamentos vos parecerem estrangeiros,
embora saibam que estou a tentar aprender convosco e que com certeza são
já menos estrangeiros do que eram ontem.»
Não se poderia chamar à intensa troca de ideias «livre» no sentido pleno
da palavra. Sou extremamente cuidadoso, por exemplo, a responder à
pergunta de um estudante sobre as pretensões territoriais chinesas no mar
do Sul da China, muito mais cuidadoso do que alguma vez fui como
político a falar de questões igualmente fraturantes. A repressão não é óbvia,
mas isso acontece porque todos se sentem responsáveis por patrulhar aquilo
que acontece sob a sua guarda. Se determinada aula da universidade, ou
galeria de arte, ou jornal local permitir que venha a público uma mensagem
proibida ou inconveniente, a pessoa encarregada ficará com a culpa não
tanto por causa de uma falha política, mas por uma falha intelectual, uma
falha de julgamento e de antecipação que só poderá vir a prejudicar a sua
carreira. Por outro lado, as ideias parecem circular rapidamente e ser
levadas a sério e isso marca um contraste bem-vindo com a indiferença
generalizada que tantas vezes encontrei nas universidades e nos centros de
reflexão na Europa e nos Estados Unidos. Bem cedo na manhã seguinte,
essa impressão é confirmada quando recebo um email de um dos estudantes
do seminário. Diz:

Sendo estudante de política, vejo a iniciativa Cintura e Rota mais politicamente. A


China está a enfrentar uma série de problemas fronteiriços, desde o mar Oriental
até ao mar do Sul, para além das questões do Tibete e de Xinjiang. As dificuldades
em resolvê-las vêm da religião, da história, da política, dos aliados políticos e da
pressão dos EUA. A procura do lucro, a insegurança em relação à ascensão da
China e a pressão americana tornaram-se todos catalisadores de conflitos. A
China quer um ambiente relativamente pacífico para se desenvolver e os primeiros
dois problemas podem ser resolvidos ou reduzidos estabelecendo uma nova
relação próxima com outros países. Se procurarmos o lucro, deverá ser possível
cooperar. O último problema é complicado e perigoso, que apenas poderá ser
resolvido procurando uma nova forma de desenvolvimento, de cooperar com os
outros países. A China tem sido aceite por causa da sua dimensão económica,
mas não bem recebida ou compreendida por causa do seu pensamento. Se
sempre foi um problema ser compreendida pelos outros países não é por causa
de qualquer beligerância da natureza chinesa. O pensamento da China é decidido
pelo povo da China e o povo chinês é sempre trabalhador, pragmático, moderado,
habituado a evitar conflitos e gosta da reconciliação. No nosso espírito, uma boa
relação com outro povo consiste na cooperação e em ganhar dinheiro em
conjunto. Eu aprendi a «teoria do jogo da soma nula». Claro que é muito realista,
mas este tipo de pensamento pouco diz aos chineses, na maioria das vezes
detestamos a desordem e a luta renhida, mesmo que nos traga lucro. Como
exemplo, apreciamos mais aqueles que «submetem o inimigo sem luta» do que
um general que surge vitorioso em todas as batalhas. Os chineses gostam de
considerar as coisas a longo prazo. Para a cultura chinesa, desenvolver e mudar é
a única coisa que é eterna, a fusão é inclusiva e continuar a aprender está de
acordo com a natureza. Acharão sempre os chineses ridículos, a falarem de
coisas como a cooperação do mundo inteiro e do desenvolvimento conjunto. Bem,
é assim que pensam. Sabem logicamente que poderá ser impossível, mas vem
das suas emoções. Os chineses percebem a rejeição que lhes chega da cultura
ocidental. Se quiserem saber qual é o sonho chinês, então deverá ser o sonho de
ser aceite, apreciado e admirado por todos os outros países do mundo. Isto é
diferente do chamado «sistema de tributo», mas existe um sentimento de
identidade psicológica na cultura chinesa. A forma de pensar chinesa só pode ser
entendida através da História. Talvez mesmo a identidade nacional seja diferente
do que é na Europa.

A referência ao sistema de tributo é curiosa. Durante um período de dois


mil anos, os governantes chineses desenvolveram um sistema de relações
internacionais baseado no reconhecimento por parte dos governantes
estrangeiros do seu direito à supremacia, expresso no dever de pagar um
tributo ritual ao imperador. Esta perceção centrada do mundo inteiro como
uma única unidade política estava ligada à disposição de uma residência
tradicional chinesa: a própria China era o salão central, as dependências
interiores eram as portas e as janelas e as dependências exteriores eram as
cercas. O sistema definiu as relações com os outros Estados desde a aurora
da civilização chinesa até ao seu colapso sob o peso da política imperial
europeia, uma «grande perturbação sem precedentes durante vários
milhares de anos», segundo a frase famosa de um dos mais proeminentes
funcionários do Império Qing, durante a segunda metade do século XIX.
É possível argumentar que esse sistema tributário era acima de tudo
prático. Em vez de estabelecer relações legais abstratas entre Estados,
assumia que deveriam estabelecer laços entre si através de rituais práticos,
que eram repetidos e renovados. O sistema era também em grande parte
uma extensão das práticas quotidianas de uma ordem social e política
confuciana: hierárquica, tradicional, ritualizada. Para o imperador chinês, o
sistema internacional consistia na prática de receber tributo, ao mesmo
tempo que oferecia àqueles que o pagavam objetos imperiais que
frequentemente suplantavam as dádivas do tributo.
Essas crenças partilhadas evocadas pelo estudante de Renmin não são
estranhas: respeito mútuo, confiança mútua, reciprocidade, igualdade e uma
cooperação proveitosa para ambas as partes. Mas incluem também uma
atração implícita pelas ideias chinesas de um sistema hierárquico em que a
China goza de um lugar especial: a diplomacia periférica, afinal de contas,
assume um centro. Uma noção moralizada da política internacional
significará que os valores como a lealdade, a gratidão e a amizade podem
facilmente traduzir-se em relações de dependência e em que as represálias
por trilhar um caminho independente fazem parte da política externa
chinesa. Em dezembro de 2016, por exemplo, a China fechou uma
passagem fronteiriça essencial com a Mongólia, uma semana depois de o
líder espiritual tibetano, o Dalai­-Lama, ter visitado o país. Centenas de
camionistas do conglomerado mineiro Rio Tinto ficaram parados na
passagem de Gants Mod, no Sudeste da Mongólia, com temperaturas
gélidas. Em resposta às sanções, o Governo mongol viu-se forçado a emitir
um conjunto de declarações públicas ambíguas, concebidas para serem
tomadas como uma expulsão do Dalai­-Lama, ao mesmo tempo que levavam
a que a própria Mongólia achasse apenas que as organizações locais não
voltariam por acaso a convidá-lo.

Do outro lado do espelho


Temos uma poderosa imagem da velha Rota da Seda nos nossos espíritos:
uma fila de camelos a desaparecerem por detrás de uma duna de areia
algures na Ásia Central, talvez aproximando-se de um caravançarai. E sobre
o «Cintura e Rota»? Que imagem mental poderemos formar da iniciativa?
Irei apresentar duas possibilidades extremas. A primeira é do romance
de ficção científica, de 2006, O Dia do Oprichnik, do escritor russo
Vladimir Sorokin. Eis uma descrição daquilo a que ele chama «A Estrada»:

É uma coisa espantosa. Vem através da China desde Cantão, depois


serpenteia pelo Cazaquistão, entra pelos portões da nossa Muralha
Sul e depois atravessa toda a amplitude da Mãe Rússia até Brest. Daí
– direta a Paris. A Estrada Cantão-Paris. Uma vez que o fabrico de
todos os bens necessários brotava da Grande China, construíram esta
Estrada para ligar a China à Europa.

Com dez faixas e quatro linhas subterrâneas para os comboios-bala, não


seria uma pequena obra de engenharia, mas, como talvez não seja de
surpreender, orgulha-se também de invulgares medidas de segurança contra
sabotadores de toda a espécie. A nova infraestrutura de transportes que está
a ser planeada como parte da Cintura Económica da Rota da Seda poderia,
em princípio, desenvolver-se em linhas semelhantes. Quanto mais
importante se tornar, mais se poderá tornar um alvo para terroristas e
revoltosos, forçando os seus promotores a adotarem todas a medidas
necessárias para reduzir os riscos a proporções controláveis. O resultado
seria um projeto que ligasse dois extremos, ao mesmo que se manteria
inteiramente isolado das regiões que atravessasse. O porto seco de Khorgos
poderia encaixar neste modelo: só o atravessariam as pessoas que lá
tivessem assuntos a tratar.
O outro modelo é a «cintura de cidades» que, no início da era moderna,
ligava a Itália aos Países Baixos, os dois centros do capitalismo comercial
na Europa. Essas cidades eram pontos de convergência para o comércio e a
finança, bem como escalas para as viagens e o intercâmbio cultural. Poderá
o modelo ser replicado na Ásia Central, onde, de qualquer forma,
constituiria uma nova e melhorada versão da velha Rota da Seda? Não é
impossível. Curiosamente, é de novo em Khorgas que se pode encontrar
uma imagem inicial, muito inicial, desta via de desenvolvimento.
Apenas a algumas centenas de metros do posto fronteiriço, desta vez do
lado chinês, há um grande muro com uma longa fila de pessoas formada cá
fora. Poder-se-ia pensar a princípio que fosse a fronteira e de facto os
procedimentos, uma vez lá dentro, não são diferentes dos de uma alfândega
fronteiriça e de uma inspeção da imigração. Quando nos fazem sinal para
passar, não nos encontramos no Cazaquistão, mas no Centro Internacional
para a Cooperação Fronteiriça.
O conceito é notavelmente simples, mas é na realidade a primeira vez
que é tentado. Imaginem uma área onde as pessoas podem circular
livremente e atravessar as fronteiras nacionais sem terem de mostrar
qualquer identificação e onde o comércio é livre de taxas ou de quaisquer
outras barreiras. A União Europeia é o exemplo perfeito desta visão. Agora,
considere dois países como a China e o Cazaquistão. Decerto que não
desejam nem podem criar o mesmo tipo de área de livre movimento e
trocas. O que podem fazer, no entanto, é definirem uma pequena porção dos
seus territórios fronteiriços e criar essa área numa escala limitada. Quando
entramos no Centro Internacional ainda estamos na China. Não são
permitidos carros particulares lá dentro, mas podemos deslocar-nos de táxi,
carrinhos de golfe individuais e tróleis maiores. Desde as filas da entrada
até aos carrinhos de golfe e à sensação de excitação e divertimento que
existe no ar, tudo aquilo parece um parque de diversões. Quando se chega
realmente à fronteira entre os dois países, há apenas um portão simbólico.
Se continuarmos a andar acabaremos por alcançar o limite entre o Centro
Internacional e o Cazaquistão. Aí, temos de voltar para trás, mas dentro dos
limites exteriores podemos atravessar a fronteira interna as vezes que
quisermos, como se estivéssemos a circular, digamos, entre a Alemanha e a
França. O objetivo principal do exercício é descobrir bons negócios isentos
de taxas entre uma impressionante variedade de vendedores. Há um limite
para a quantidade de bens que se podem levar, mas é bastante generoso e
provavelmente será aumentado ou eliminado com o tempo. Toda a área é,
por enquanto, não muito maior do que um grande centro comercial: a
secção chinesa inclui uma série de mercados independentes abastecidos
com todo o tipo de mercadorias e embora a secção cazaque seja mais
pequena e esteja apenas nas fases iniciais de desenvolvimento, os seus
planos parecem na verdade muito mais sofisticados, prometendo uma maior
experiência etnográfica. Há um hotel muito bom do lado chinês, mas talvez
apenas alguns dos donos das lojas queiram lá ficar. Não consegui encontrar
nenhum restaurante que fizesse jus ao nome, não existiam opções de
entretenimento e nem sequer muito espaço para se dar um passeio
sossegado. Mas, se isso mudar e a área, já considerável, for expandida,
poderemos ver a ideia transformada numa cidade transnacional, onde as
pessoas poderão viver e trabalhar entre dois países, com acesso livre a tudo
o que houver para oferecer. É um modelo para aquilo em que a região
poderá esperar transformar-se.
Quando as pessoas se preparam para partir após um longo dia, os
cidadãos chineses têm de fazê-lo através do lado chinês e os cazaques
através da sua própria secção. Todos eles transportam consigo pesadas
malas de mercadorias. Faz sentido que pequenos negociantes cazaques
venham aqui para comprar mercadorias chinesas isentas de taxas. Na
verdade, alguns deles viajaram comigo no comboio noturno de Almaty e
houve um autocarro especial na estação de Altynkol para os levar
diretamente ao Centro Internacional. Para os chineses, não parece tão
tentador. Não há muitos produtos cazaques à venda, mas os preços dos
produtos chineses são mais baixos e a experiência deve ter os seus próprios
encantos. Só na China alguém escaparia de uma cidade construída para os
negócios e o comércio para um parque fechado onde poderão ser
experimentados mais intensamente.

Sonhos na terra dos brinquedos


«Olá, passageiro! Bem-vindo à Cidade Comercial Internacional de Yiwu.»
Vou sentado no banco de trás do táxi, saudado por uma mensagem
gravada em inglês, ainda com a imagem na minha mente do passageiro que
saiu quando eu abri a porta. Na mão, levava descontraidamente um grande
saco de plástico cheio de notas verdes de dólar. Tudo nesta cidade cada vez
mais famosa – a duas horas de comboio de Xangai – é bastante tosco. Os
comerciantes que vêm a Yiwu são sobretudo do Paquistão, do Médio
Oriente e de África. Alguns deles continuam a preferir negociar em dinheiro
vivo e evitam os bancos. Outros nem sequer têm uma conta bancária. Há
muito poucos europeus ou americanos. Como alguém me explica, os
ocidentais preferem ir para Cantão, onde tudo é feito em maior escala e de
acordo com uma lógica mais fria de capitalismo impessoal.
Vim ao mercado de Yiwu Futian para me encontrar com Sahil Mansoor,
um indiano muçulmano de Nova Deli que se mudou para Cantão depois de
terminar o seu curso de engenharia de software na Índia, mas que
rapidamente percebeu as oportunidades do negócio da exportação em Yiwu.
Criou agora a sua marca de materiais em vidro, algo invulgar para um
estrangeiro nestas paragens. Fala um rapidíssimo mandarim coloquial, que
aprendeu a fazer negócios no mercado, sem ajuda de livros nem de
professores.
Enquanto espero por Sahil na sua lojinha, converso brevemente com um
potencial freguês do Senegal. Este pergunta à empregada se uma peça de
vidro em particular existe numa determinada dimensão. Não existe e ele
vai-se embora, indo tentar a sua sorte numa das outras lojas – centenas ou
mesmo milhares – que vendem peças de vidro baratas. Em Cantão seria
possível comprar segundo especificações, mas os comerciantes aqui estão a
comprar fornecimentos para os seus pequenos supermercados na África ou
na Ásia rurais e não para as grandes cadeias à escala mundial. Ao andarmos
pela cidade encontramos dezenas de milhares de visitantes em negócios,
uma mistura heterogénea de personagens garridas, criadas na vertente
menos sofisticada do capitalismo global.
Existe um bairro árabe e um bairro turco e um bairro indiano em Yiwu.
Com tantos empresários a chegarem constantemente, uma população fixa
foi-se instalando gradualmente, com necessidades de acomodação e
alimentação e de alguns serviços essenciais como traduções e seguros. Uma
mão-cheia de hotéis de luxo abriu recentemente, mas estes são para os
industriais chineses que vêm aqui vender os seus produtos e não para os
estrangeiros, que ficam em locais mais baratos, cercados pelas famílias e
pelos compatriotas. Uma tarde estou a tomar café e baclavá na Cafetaria
Saray, em Chouzhou Bei Lu. O dono diz-me que o bairro turco está menos
cheio do que antes e que poderão estar a chegar alguns chineses. A razão é a
incerteza política e económica na Turquia, que atingiu fortemente as
ligações comerciais. No dia seguinte, Sahil leva-me ao bairro indiano, onde
nos sentamos para beber um chá com leite num restaurante local e visitar o
templo hindu improvisado no piso superior de um modesto edifício de
apartamentos. O primeiro-ministro indiano Modi acabou de anunciar a
retirada de circulação das notas bancárias de 500 e 1000 rupias, travando a
economia indiana. O impacto faz-se já sentir em Yiwu. O próprio Sahil está
disponível para me mostrar o bairro porque os negócios com a Índia, que
representam uma parte considerável das suas vendas, foram subitamente
congelados. Antes das notícias da ocorrência da enormidade terem sido
registadas pelos meios de comunicação ocidentais, esta está a ser discutida
por excitados grupos de pessoas nas esquinas de Yiwu.
Durante as semanas seguintes, passarei a usar estes dois exemplos para
contrariar os argumentos sobre o recuo da globalização. A globalização
conforme definida e conduzida pelo Ocidente poderá ter conhecido
melhores dias, mas Yiwu é um exemplo notável de uma cidade, pequena
pelos padrões chineses, tão intimamente ligada ao resto do mundo que
qualquer perturbação produzida a um continente de distância é
imediatamente registada aqui, onde o seu sistema nervoso central integra
informações de infindos locais de toda a parte. Há um terceiro exemplo,
também muito discutido durante a minha visita, menos de uma semana
depois de Donald Trump ter sido eleito Presidente dos Estados Unidos. Em
entrevistas à televisão chinesa e a websites, um número de fabricantes e
vendedores de bandeiras de Yiwu tinha comentado que as encomendas
vindas dos Estados Unidos de bandeiras de Trump ultrapassavam em muito
as de bandeiras de Hillary Clinton. Alguns estavam tão confiantes numa
vitória de Trump que começaram a fabricar apenas bandeiras de Trump e,
uma vez que Yiwu controla uma proporção muito elevada das encomendas
de bandeiras de todo o mundo, esse facto pareceu a muitos subtis
observadores políticos chineses ser de importância decisiva.
Sahil guia-me pelo mercado. Estima-se que existam 100 mil lojas no
mercado de Futian, por isso mesmo Sahil, que cá vem desde que abriu, em
2002, só conhece bem algumas das suas secções. Um simples cálculo
poderá dar-vos uma ideia do seu tamanho: se levarem apenas cinco minutos
a visitar cada uma das lojas, com os intervalos normais para dormir e
comer, precisariam quase de dois anos para visitar o mercado inteiro. Sahil
diz-me que, se evitassem todas as lojas e apenas percorressem os
corredores, mesmo assim levariam uma semana. Cada uma das lojas ou
cubículos está ligada a uma rede de fornecedores na região de Yiwu, e mais
afastados, e vende quase inteiramente para mercados estrangeiros através de
uma rede igualmente rica de clientes que chegam todos os dias para
inspecionar os produtos e negociar o melhor preço possível. Assim que a
encomenda é feita, poderá ser entregue numa das duas grandes áreas de
armazenamento em Yiwu, onde múltiplas encomendas são combinadas em
contentores e rapidamente embarcadas para o mundo inteiro, sobretudo
através do porto de Ningbo, a poucos mais de 150 quilómetros. Em
dezembro de 2014, uma nova rede de comboios diretos entre Yiwu e
Madrid foi estabelecida. A sua pretensão à fama reside no facto de ser agora
a mais longa rota ferroviária do mundo, cobrindo uma distância de
aproximadamente 13 mil quilómetros, mais do que a linha transiberiana.
Quando o presidente da Câmara de Yiwu me leva a visitar o terminal
ferroviário, há um número de caixotes a serem descarregados. Abrimos dois
ou três. Lá dentro vêm garrafas de Rioja, óleo de girassol espanhol e água
mineral. Apropriadamente, o primeiro comboio levou decorações de Natal
para Espanha.
O Distrito Um, a secção mais antiga do mercado, é largamente dedicado
aos brinquedos. Dizem-me que cerca de um quarto dos brinquedos e dois
terços das decorações natalícias vendidos em todo o mundo vão de Yiwu.
Os brinquedos são especiais porque são fabricados na região de Yiwu,
garantindo que se obtêm os preços mais baixos da China – e, portanto, do
mundo – no mercado de Futian. Existem com certeza alguns milhares de
lojas inteiramente dedicadas aos brinquedos, fantasmagorias de todas as
cores, melodias que entram no ouvido, animatrónica e vozes de boneca
gravadas. Enquanto andamos pelos corredores fortemente iluminados, toda
a sensação de tempo e de espaço desaparece. Os rostos dos empregados,
confinados aos seus garridos cubículos durante os dias inteiros, parecem
assombrados, por vezes gelados e vagamente insanos, a princípio
indistinguíveis de uma multidão de outros rostos que espreitam: palhaços,
ursos pandas e sorrisos amarelos. De vez em quando, surge uma loja
completamente diferente, especializada em recordações turísticas vendidas
aos comerciantes egípcios, por exemplo, pois estão cheias de pirâmides de
plástico em miniatura, semelhantes às que se encontrariam no aeroporto do
Cairo. Uma loja poderá estar cheia de bonecas que dizem «mamã» e a
seguinte cheia de bonecas que dizem «papá». Talvez o mercado de Yiwu
pretenda ser um modelo dramatizado da vida no novo milénio: a
organização do excesso.
Voltando à sua banca, Sahil apresenta-me à sua esposa, a jovem chinesa
que eu vira de manhã a atender o freguês do Senegal. Conheceram-se no
mercado, evidentemente, e têm uma filha pequena – «um produto da
colaboração indiana e chinesa» – que se exprime numa precária
combinação de três línguas. Quando lhe pergunto acerca dos seus sonhos
para o futuro, Sahil descreve-os segundo o esquema cuidadosamente
delineado típico do engenheiro de software que continua a ser. A curto
prazo, quer finalizar um conjunto de novos produtos da sua marca de peças
de vidro, melhorando a sua qualidade. Daqui a alguns anos, quer seguir o
exemplo de todos os empreendedores de sucesso da China e colocar a
empresa no mercado de ações. Depois disso, quer reformar-se e mudar-se
para o Dubai com a sua família. Porquê o Dubai? Sahil é um fiel
muçulmano e não se vê a viver o resto dos seus dias fora de um país
muçulmano, mas também não se vê a levar a esposa para a Índia ou o
Paquistão. Ela está demasiado habituada à vida moderna. O Dubai é o único
lugar, diz-me, onde ambos se poderão sentir em casa. Quando lhe pergunto
acerca das diferenças entre a Índia e a China, ele pensa durante um
momento e depois contenta-se com uma única diferença: «Aqui enriquece-
se ajudando todos ao longo da cadeia produtiva a ganharem dinheiro.
Precisamos da cadeia produtiva para aqui estarmos amanhã. Na Índia,
ninguém se pode dar ao luxo de pensar no amanhã e, portanto, ninguém
pensa nas outras pessoas ao longo da cadeia.»
Quando pedi recomendações, duas ou três pessoas disseram-me que
experimentasse um restaurante em Chouzhou Bei Lu, mencionado em
discursos pelo Presidente Xi Jiping. Parece-me estranho que um restaurante
seja destacado nesses discursos altamente planeados e, a princípio, não
consigo sequer imaginar qual seja a razão. Quando lá chego, no início da
noite, o restaurante está vazio. Sou recebido por dois jovens, Abdul e
Mohammed. São da Síria. Mohammed chegou apenas há três ou quatro
anos e é um refugiado da guerra da Síria. Abdul chegou antes. Parecem ser
os encarregados do restaurante, ajudados por um número de mulheres
muçulmanas huis com véu. Uma das coisas mais surpreendentes em relação
a Yiwu é a forma como os muçulmanos chineses se encontram aqui com a
comunidade comerciante árabe e da Ásia Central, uma réplica do
movimento de pessoas e crenças no próprio início do islão.
De frente para a rua, há uma grande fotografia de Xi Jinping,
juntamente com um excerto de um dos seus discursos:
Há um jordano, Muhannad, em Yiwu, com quem os homens de
negócios árabes se encontram. Ele inaugurou um restaurante árabe e
prosperou juntamente com a cidade. Casou com uma mulher chinesa
e instalou-se na China. Um jovem árabe vulgar, entretecendo o seu
sonho de vida com o Sonho Chinês de busca da felicidade, acabou
por alcançar o sucesso através do trabalho dedicado. Este é o melhor
exemplo do encontro do Sonho Chinês com o Sonho Árabe.

Muhannad não está no restaurante no dia em que o visito, por isso faço
questão em voltar no dia seguinte, mas talvez tenha voltado a chegar
demasiado cedo. Abdul aponta para o carro estacionado lá fora, onde o seu
patrão está profundamente adormecido.
Por fim, à medida que o restaurante começa a encher, decidimos acordá-
lo e sentamo-nos a tomar uma chávena de forte café turco. Muhannad
conta-me a história de como veio a acabar em Yiwu. É uma história de
crescente presença chinesa e de poder «suave». Seguiu um tio até à
Tailândia, onde abriu um restaurante, mas a grande parte dos clientes, tanto
turistas como homens de negócios, eram chineses e tão maravilhosas eram
as histórias de dinheiro e sucesso que contavam que Muhannad cedo se
mudou para Cantão e de Cantão para a nova jóia da coroa do comércio
internacional em Yiwu, com as suas profundas ligações árabes. Perguntei-
lhe como é que Xi tinha sabido do restaurante. Alguma vez lá comera?
Muhannad não o confirma, mas certamente quer que eu acredite nisso. O
«sonho chinês» é bom para o negócio.
Depois, após a conversa amainar um pouco, voltamo-nos para a tragédia
na Síria. Os negociantes da Síria têm vindo para Yiwu desde que a cidade
começou a tornar-se um moderno centro comercial há 50 anos, mas agora o
influxo é de jovens que fogem da guerra, mesmo que oficialmente
continuem a chegar com vistos de negócios – como todos os que aqui estão
– e não como requerentes de asilo. Muhannad mostra-me fotografias de
recentes reuniões da comunidade num grande salão decorado com balões
vermelhos, brancos e verdes, as cores da bandeira da Síria. Não posso
deixar de pensar que todos aqueles balões devem ter ido do mercado.
Existem agora perto de mil sírios em Yiwu. Com a sua grande mesquita
e o seu infinito mercado, um bazar da era espacial, a cidade oferece-se, nos
corações destes homens e destas mulheres, como uma reprodução industrial
das cidades que deixaram para trás.
6

A ILHA

Um jogo de todos contra todos

O
s funcionários russos nunca o dirão em público, mas em privado
confessam as crescentes preocupações com o cerco chinês. Isto tem
que ver com a luta pelo poder e pela influência na Ásia Central, mas
também com uma clara inversão de papéis. Até agora, a Rússia sempre
desempenhou o papel central do poder tecnológico e industrial na Ásia, ao
passo que a China continuava a ser uma economia de mercadorias, talvez
uma fonte de produtos alimentares para os países industriais. As
infraestruturas eram um exemplo óbvio do domínio económico russo e, pelo
menos durante um século, a via-férrea transiberiana constituía a ligação
inevitável entre os oceanos, ajudando a Rússia como um todo a definir-se
como a conexão entre o Oriente e o Ocidente. Essa infraestrutura corre
agora o perigo mortal de se tornar obsoleta, por causa da ausência de
manutenção e de modernização e, mais decisivamente, devido a duas ou
três alternativas que estão agora a ser desenvolvidas a sul. «Estão
preocupados com o Cintura e Rota?», perguntei a um diplomata russo no
Cazaquistão. «Claro que estamos», foi a resposta. «Não somos parvos.»
Xinjiang pode orgulhar-se de ter fronteiras com oito países diferentes,
da Mongólia à Índia, ao passo que a Rússia é agora uma presença muito
mais distante, como era antes da expansão a sul no século XIX. O
Cazaquistão ainda tem alguns milhões de pessoas de etnia russa entre a sua
população, mas estão concentradas próximo da fronteira russa, e a
influência económica, medida em fluxos de investimento e controlo sobre
as indústrias estratégicas, está a ser rapidamente transferida para a China,
um processo que será completado e tornado irreversível pela Cintura
Económica da Rota da Seda. Para mim é claro que, se a Rússia tentasse
reintegrar o Cazaquistão dentro da sua esfera de influência, como está a
tentar fazer no caso da Ucrânia, a China não ficaria a assistir. O Cazaquistão
tornou-se demasiado importante.
A fronteira entre a Rússia e a China tornou-se provavelmente a mais
pacífica da História da Rússia e nada nos permite supor que isso venha a
mudar. Pelo contrário, as tensões crescentes entre a Rússia e o Ocidente em
resultado da crise da Ucrânia forçaram-na a virar-se mais para a China, uma
fonte de investimento alternativa, que financia e expande o mercado para as
exportações de petróleo e gás. Três meses após o início da crise da Ucrânia,
a Gazprom assinou um acordo avaliado em 400 mil milhões de dólares para
fornecer gás natural à China por um período de 30 anos. A construção do
gasoduto, o «Energia da Sibéria», foi devidamente iniciada tanto na Rússia
como na China, incluindo a secção que cruza a fronteira, uma ligação
subterrânea que atravessa o rio Amur.
Se uma das razões pela qual a Rússia se tornou receosa da crescente
influência chinesa foi o relativo subdesenvolvimento das suas regiões
orientais, poderá ser possível reagir a esse risco cooptando o poderio
económico chinês e usando-o para planear um novo ímpeto económico para
a Sibéria e o Extremo Oriente. As barreiras políticas informais limitando o
investimento chinês na Rússia foram atenuadas. Por exemplo, em fevereiro
de 2015, o vice-primeiro-ministro Arkady Dvorkovich anunciou que as
empresas chinesas seriam agora bem-vindas na compra de bens no sector
dos recursos naturais e na participação em contratos de infraestruturas. Por
vezes, isso é levado ainda mais longe, sendo feita a sugestão de que, se a
Rússia e a China fossem capazes de chegar a um entendimento estratégico,
poderiam formar uma nova entente, moldando decisivamente a geopolítica
eurasiática a seu favor. Outros comentadores falaram acerca de novas
relações entre os dois gigantes como não tendo sido nada de premeditado. A
Rússia encontrou-se de súbito numa situação em que não poderia dar-se ao
luxo de abrir simultaneamente duas frentes de conflito. Pelo contrário, o
sentimento de isolamento internacional depois da anexação da Crimeia
talvez tenha feito com que as elites russas ficassem ansiosas por estabelecer
novas alianças com parceiros que pudessem partilhar o seu sentimento de
alienação dos valores ocidentais. Quanto à China, parece claro que o seu
esquema de política externa foi apanhado desprevenido pelos
acontecimentos na Ucrânia. Quando finalmente se decidiu como haveria de
lidar com a Rússia, as instruções foram no sentido de encorajar uma
reaproximação que, em si mesma, prometia criar oportunidades comerciais
e políticas interessantes1.
Os receios e as esperanças ocidentais, por vezes combinados, de que a
Rússia e a China pudessem formar uma aliança permanente com pretensões
hegemónicas ou, em alternativa, que uma tal aliança pudesse ser quebrada
sob o peso das rivalidades passadas e presentes, são igualmente errados.
Existe muito nas novas relações entre os dois países que é de natureza
estrutural e que apenas reproduz padrões igualmente observados nas suas
relações com a União Europeia. Relevantes entre aquelas são as relações de
interdependência, decorrente da aposta que todos os atores fazem num
sistema comum de regras e instituições. Mas, por outro lado, esse sistema
está aberto a mudanças, as suas regras podem ser influenciadas ou
determinadas por opções e ações dos diferentes participantes e, em
resultado disso, inclinadas mais a favor de um ou de outro e não de todos. É
um jogo competitivo e um jogo de todos contra todos. Além disso, a noção
de que a Rússia e a China partilham ideias políticas e económicas
semelhantes é uma falácia resultante do tradicional dualismo entre a
liberdade ocidental e a ditadura oriental, juntando todas as variantes da
última por não se encaixarem na primeira. Como Bobo Lo defende num
recente livro, a crítica russa aos valores políticos ocidentais não é
certamente equivalente à adoção de uma alternativa asiática. Talvez o
Kremlin se converta um dia a uma versão chinesa de capitalismo
autoritário, mas até aqui isso ainda não aconteceu e uma reforma na Rússia
segundo linhas chinesas envolveria mudanças tão drásticas que há todas as
razões para duvidar da possibilidade da sua concretização: a completa
diversificação da economia, afastando-a do gás e do petróleo, o crescimento
e o fortalecimento exponenciais das pequenas e médias empresas e uma
significativa devolução do poder às regiões e aos municípios2.
A Rússia poderá escorregar para uma relação de dependência acrescida,
mas, se essa for a melhor de todas as alternativas disponíveis, poderá
mesmo assim achar que está a ganhar algo de volta, em especial se a China
tiver a sua atenção focada no confronto mais importante com os Estados
Unidos, um confronto com o qual a Rússia poderá sentir alguma afinidade.
Mas, enquanto a dependência estiver a ser trocada por benefícios tangíveis,
o sistema continuará a adaptar-se à mudança e sem dúvida Moscovo
continuará a tentar ativamente criar as condições para uma influência
crescente sobre Beijing.
O jogo poderá por vezes tornar-se extremamente complexo. Nos anos
anteriores à anexação da Crimeia, a China enviou pessoal militar para a
Ucrânia para aprender como o país treinava os seus pilotos dos porta-
aviões, a preparar a constituição do seu primeiro grupo de combate. A base
aérea de Novofedorivka, na Crimeia, é um dos muito limitados lugares no
mundo onde isso pode ser feito, o único desses complexos alguma vez
construído em toda a União Soviética. A Ucrânia estava a planear arrendar o
complexo à China, por isso a anexação da península da Crimeia tinha o
benefício acrescido de transformar a Rússia num parceiro indispensável
naquilo que é admissivelmente o tabuleiro central na expansão militar da
China, à medida que se desloca da pura defesa costeira para uma projeção
do seu poder através dos oceanos Pacífico e Índico. Os planos chineses para
uma nova geração de porta-aviões baseiam-se na conceção e tecnologia
russas, uma opção que remonta à sua aquisição do Varyag ucraniano em
1998, supostamente através de uma companhia de Hong Kong que
tencionaria convertê-lo num casino. O porta-aviões, construído em 1985
para a Marinha Soviética e lançado à água em 1988, foi rapidamente
reequipado e requisitado pela Marinha Chinesa.
A imagem de uma Rússia passiva forçada a seguir o domínio da China
sofre de uma série de falácias. Mesmo que fosse verdade que a Rússia se
sente agora vulnerável ao poder chinês, a experiência ensina que, em tais
casos, tentará corrigir o desequilíbrio através de diferentes medidas de
improvisação e surpresa táticas, procurando formas de tirar partido do
crescimento da ambição da China. Há ainda tanto para determinar na
natureza da relação entre os dois países que quaisquer planos caem
redondamente no domínio da geopolítica e da teoria política fantasiosas,
atraindo aqueles que possuem uma ativa imaginação política. Depois das
minhas viagens pelo Extremo Oriente e pela Manchúria, fiquei a pensar que
a fronteira entre a Rússia e a China se aproxima mais do nosso conceito
ideal de fronteira do que em qualquer outro caso. O simples ato de
atravessar uma linha arbitrária é aqui equivalente a entrar num mundo
cultural separado, sem gradações nem transição, e o facto de a fronteira não
ter nem uma história rica nem acidentada é certamente o resultado de
ambos os países terem até agora vivido de costas voltadas.
No variável e complexo jogo de xadrez eurasiático, talvez não haja um
vetor com maiores consequências como o que é representado pela opinião
da Rússia sobre a China. Estas opiniões estão a mudar rapidamente, à
medida que a China se ergue e a Rússia se vai sentindo cada vez mais
afastada da Europa. Como poderá a Rússia definir-se hoje em dia como um
país europeu? Os seus exércitos são mais temidos do que necessários, o seu
investimento é malvisto, as suas exportações, para além do gás natural, já
não têm impacto. A China terá de surgir agora como a verdadeira questão
para a Rússia, que não tem nada a ganhar nem a perder na Europa, mas
muito a ganhar e tudo a perder na Ásia3.
Mesmo antes da Ucrânia, uma profunda e contínua reflexão sobre a
China tem produzido uma vibrante literatura, com muitos dos melhores
romancistas russos contemporâneos a escolherem a China e as relações
entre a Rússia e a China como um dos seus temas principais. Nalguns casos,
como A Dentada de Um Anjo, de Pável Krusánov, é-nos oferecida uma
visão aterradora de uma nova cultura poderosa fundindo elementos chineses
e russos, apostada em conquistar o mundo e inteiramente livre das tentações
ocidentais: o general, e mais tarde imperador, Ivan Nekitaev, a
personificação da malignidade política, é meio manchu e meio russo. «O
seu sangue é muito raro, é o sangue de dois impérios eurasiáticos.»
Nekitaev vê a sua governação como fazendo parte de uma linhagem que
remonta a Gengis Khan: «Se um homem é culpado, castigo a companhia, e
se uma companhia é culpada, castigo o batalhão.» A mensagem é bastante
simples: na crueldade asiática a Rússia encontrou finalmente a arma
decisiva contra o Ocidente.
Outros romances recentes movem-se em sentido contrário, retratando a
China como uma influência liberalizadora sobre a Rússia. Projetando o
futuro para os dois países e as duas culturas, poderá parecer plausível que a
adoção por parte da China do rápido crescimento económico e da
transformação social será acompanhada na Rússia por uma inflexão para a
tradição e a tradição agora na Rússia tem uma forma de adquirir um
significado histórico cada vez mais profundo, remontando aos heróis
medievais que resistiram aos primeiros movimentos de ocidentalização. Em
Gordura Azul, um romance de Vladimir Sorokin, os protagonistas bebem
cocktails chineses e parecem fascinados pela sofisticação da vida chinesa –
num século em que tudo funciona em proveito dos chineses, tal como em
séculos passados as coisas funcionavam em proveito dos americanos, dos
franceses ou dos britânicos. Em A Tempestade, também de Sorokin, os
chineses têm todas as características que estamos habituados a encontrar
nas críticas ao Ocidente, incluindo as críticas russas: não têm alma, são
materialistas, mecânicos, mas a sua capacidade para penetrar a Rússia e
remodelá-la à sua imagem é inquestionável e mesmo as palavras chinesas
são vulgarmente usadas pelos russos. O último exemplo antes de
regressarmos às minhas próprias histórias da fronteira é Clorofilia, de
Andrei Rubanov. Aqui, os chineses foram para a Sibéria para fugir ao
aquecimento global e quase todos os russos estão concentrados em
Moscovo, onde podem viver confortavelmente com o arrendamento das
terras da Sibéria, mas as suas vidas tornam-se progressivamente menos
humanas e até a luz do sol é apenas acessível àqueles que vivem nos pisos
do topo dos arranha-céus, construídos por toda a capital. Uma vez que esses
arranha-céus foram construídos por companhias chinesas, com dinheiro
chinês e cimento chinês, ninguém fica surpreendido por esses pisos
superiores serem arrendados por ricos empresários chineses. «Mesmo os
patriotas locais mais fervorosos têm de aceitá-lo.»

Sinais e símbolos
Há uma ilha, proibida e desabitada, oculta de olhares curiosos. Só que neste
caso a ilha não se situa no oceano, mas num rio – ou antes, na confluência
de dois importantes e quase míticos rios asiáticos, o Amur e o Ussuri, muito
perto da grande cidade de Khabarovsk, no extremo oriental da Rússia. A
ilha está dividida em duas secções quase iguais entre a Rússia e a China. A
União Soviética ocupou outrora a totalidade da ilha Bolshoy Ussuriysky –
conhecida como Heixiazi, ou Urso Preto, em chinês – mas, num acordo
verdadeiramente histórico em 2004, a Rússia concordou em devolver à
China metade. A transferência ocorreu em 2008. Desde então, a ilha no
Ussuri tornou-se um símbolo em miniatura das vastas regiões asiáticas
divididas entre os dois gigantes geopolíticos.
A história é interessante: depois do Tratado de Beijing, em 1860, ter
estabelecido a nova fronteira ao longo do Amur e do Ussuri, o principal
negociador russo da fronteira persuadiu de algum modo o seu homólogo
chinês a assinar um minúsculo mapa que, supostamente, dava expressão
visível aos termos do tratado. A fronteira deveria, evidentemente, percorrer
a confluência dos dois rios, mas Kazakevich – era esse o nome do
negociador – desenhou-a através de um pequeno canal que ligava os rios a
cerca de 50 quilómetros antes do ponto onde as principais correntes se
fundem. A ilha criada por este canal era assim deixada completamente do
lado russo da fronteira. Lentamente, foi sendo ocupada por colonos russos,
que a encaravam como um posto avançado da cidade de Khaba­rovsk,
particularmente a pequena aldeia e o cais no seu extremo oriental, fundados
em 1895.
Visitar a ilha e as aldeias em seu redor é do mais difícil que se possa
imaginar. Somos acompanhados por guardas fronteiriços russos e, antes de
tudo o mais, há uma longa entrevista com um agente dos serviços secretos.
Perguntaram-me todos os pormenores possíveis da minha vida e todos os
documentos que tinha comigo foram examinados e fotografados. A
entrevista em si foi também bastante instrutiva. A primeira pergunta que me
fizeram foi porque é que alguém de um país inimigo queria visitar a
fronteira entre a Rússia e a China.
Fiquei surpreendido ao ouvir Portugal e Rússia a serem descritos como
inimigos, por isso tateei um pouco. O que é que ele queria dizer?
«Portugal é membro da OTAN, não é?»
«Sim, mas não tenho a certeza se chamaria à Rússia e à OTAN
inimigos. Talvez nos tempos soviéticos, mas a Rússia e a União Soviética
não são a mesma coisa.»
O agente – cujo nome nunca fiquei a saber – ficou em silêncio por um
momento e depois disse: «Isso seria uma discussão filosófica muito
interessante.» Embora os estrangeiros o possam entender como um
cumprimento, os russos interpretarão frequentemente a rejeição do passado
soviético como uma rejeição do seu estatuto como superpotência global.
Depois da minha entrevista, que por vezes se parecia mais com uma
conversa, ocorreu-me que atualmente na Rússia ser agente dos serviços
secretos poderá ser o equivalente aspiracional a um empreendedor
tecnológico no Ocidente. Afinal de contas, o próprio Putin foi agente
secreto e a sua Administração irradia a cultura, a influência e a sofisticação
do Federalnaya Sluzhba Bezopasnosti (FSB). O meu interlocutor imitava os
modos que é suposto um agente secreto exibir, tentando apanhar-me em
contradições com perguntas inesperadas, enquanto examinava os meus
documentos e fotografias à procura de pormenores reveladores. Se
encontrasse algo interessante e importante, quem sabe se não seria
promovido e colocado em Moscovo? Iria pensar de novo acerca do nosso
encontro um ano depois, quando li as notícias sobre um ataque terrorista à
sede regional do FSB em Khabarovsk. Duas pessoas foram mortas,
incluindo um funcionário local, quando um adolescente armado entrou no
edifício e abriu fogo na área da receção, antes de passar pelo controlo de
segurança. O ataque foi rapidamente reclamado pelo Estado Islâmico, mas
isso não foi confirmado pelas autoridades russas. Nas fotografias, o agente
morto parecia-se com o jovem que eu conhecera, mas fora há muito tempo.
Não consegui ter a certeza.
Encontrar-me e falar com este agente e com os guardas fronteiriços no
posto de Kazakevichevo – a aldeia foi batizada, evidentemente, com o
nome do ardiloso negociador – abriu-me uma boa janela sobre como o
dispositivo de segurança pensa e como essas ideias se difundem pelos
funcionários de baixa patente nas províncias. Disseram-me como a Europa
era demasiado branda com o terrorismo. Devia lidar com os terroristas na
Bélgica como Moscovo lidou com eles no Cáucaso. Quando o
interrogatório terminou, perguntei ao meu interlocutor se ficara convencido
de que eu não era um espião nem um terrorista.
«Se pensasse que era um espião ou um terrorista, com certeza que nunca
sairia desta ilha.»
Os guardas fronteiriços eram menos faladores e certamente menos
sofisticados. Um deles perguntou-me se seria possível trabalhar no exército
português. «É difícil», disse-lhe. «Podemos ser inimigos.» O agente dos
serviços secretos tinha uma enorme autoridade sobre eles, apesar de ser
mais novo e de se vestir de forma casual, com um blusão justo de cabedal
preto.
Havia um ponto acerca do qual os guardas fronteiriços e o agente
estavam claramente em desacordo. Que iria ser da ilha? Uma das razões
para a divisão fora a promessa implícita de que a China ajudaria a
desenvolver a área fronteiriça com investimento e milhões de turistas. A
ilha Bolshoy Ussuriysky seria a ponta de lança deste esforço, um paraíso de
natureza intocada transformada numa florescente zona turística e um eixo
de laços transfronteiriços entre a Rússia e a China. Como vimos, as sanções
ocidentais ajudaram a expandir a noção de que o futuro da Rússia reside no
desenvolvimento de laços mais estreitos com a China. Bolshoy Ussuriysky
é um dos três ou quatro locais onde isto está a ser testado. Enquanto os
guardas fronteiriços e as pessoas nas aldeias fronteiriças levam os planos
mais ou menos a sério, o agente não tinha escrúpulos em dizer-me que
aquilo era um disparate e que por vezes não percebia as pessoas em
Moscovo.
Na fantástica visão de Vladimir Sorokin acerca da Rússia, O Dia do
Oprichnik, 28 milhões de chineses vivem na Sibéria e alguns funcionários
resmungam que a Rússia tem de «rastejar curvada perante o Reino
Celestial». Outros percebem que não existe alternativa a partir do momento
em que tudo de que a Rússia precisa, incluindo as camas e as sanitas, é
fabricado na China. Sorokin colocou o dedo numa dialética já poderosa. A
Rússia é atraída para a China, com a sua promessa de infindas
possibilidades económicas, mas ao mesmo tempo receia a sua própria
atração e recua. Os russos sentir-se-ão enganados se a China não lhes
expandir o seu poder económico e sentir-se-ão ameaçados se isso acontecer.
Deste dilema há pouca ou nenhuma fuga. Talvez a Rússia deseje que a sua
crescente dependência económica da China seja tão subtil que ninguém –
nem os próprios russos – dela se aperceba. Isso agradará também a Beijing,
que certamente tentará evitar criar a impressão de que algo como uma
entente entre os dois países esteja a ser concretizado.
Até agora, no seu lado da fronteira no Ussuri e no Amur, a Rússia deu
apenas um passo. Há um par de anos, construiu uma dispendiosa ponte, a
primeira a ligar Bolshoy Ussuriysky à margem sul do rio, mas a estrada
pavimentada termina passados poucos quilómetros depois de se atravessar.
Isto é bastante típico dos chamados projetos estratégicos na Rússia. É
rapidamente construído um símbolo, antes que alguém se esqueça do
projeto, mas depois não acontece mais nada.
A ilha está quase completamente deserta. Há uma mão-cheia de quintas
abandonadas, algumas estradas de terra batida e nenhuma fauna de que
valha a pena falar. Tinha sido avisado acerca dos ursos selvagens que
vagueavam pela ilha, mas parecia improvável que algum urso, quanto mais
um turista chinês, ali sobrevivesse.
As coisas não poderiam ser mais diferentes do lado chinês da fronteira.
Demos a volta e regressámos pela ponte sobre o Ussuri até Kazakevichevo.
A aldeia localiza-se numa posição privilegiada, do outro lado do Ussuri,
tanto em relação à linha da fronteira em Ussuriysky como à península
chinesa que se destaca a sul. Uma vez que se situa dentro do perímetro de
segurança da fronteira, não se pode entrar nem sair da aldeia sem se passar
por um controlo de segurança e apresentar uma autorização especial. Os
habitantes parecem bastante à vontade com esse facto. Poucos outros
lugares na Rússia serão tão bem guardados e tão seguros.
A partir de Kazakevichevo, podemos olhar para o outro lado do Ussuri e
comparar facilmente os dois lados da fronteira. Do lado russo, apenas a
alguns metros da nova linha de fronteira, pode ver-se a pequena mas
elegante Capela de São Vítor, construída em 1999 para homenagear
soldados russos que morreram a defender as fronteiras no Extremo Oriente,
desde que a Rússia consolidou o seu controlo sobre a região no século XIX.
Alguns deles morreram defendendo aquelas fronteiras contra os chineses,
claro. A linha de fronteira foi desenhada mesmo a oeste, para que a capela
pudesse continuar na Rússia.
Se olharem para a esquerda, em direção à China, logo a sul da ilha
Bolshoy Ussuriysky, a primeira coisa que verão será uma escultura gigante
daquilo que, à primeira vista, parece ser uma figura humana, tornando anã a
pequena capela ortodoxa. É de facto uma representação do ideograma
chinês para «oriente», o Sol a surgir por detrás dos ramos de uma árvore,
como acontece quando nasce e ainda está baixo no horizonte. Alguns dias
mais tarde, em Dalian, lembrei-me de perguntar a uma amiga chinesa, um
pouco maliciosamente, por que razão o ideograma para «ocidente» não é o
mesmo. Afinal de contas, o sol também fica por detrás das árvores quando
se põe a oeste. Ela abriu o Shuowen jiezi ( ) – um dicionário de
ideogramas chineses da dinastia Han – no seu telemóvel e explicou-me que
o ideograma para «ocidente» representa uma ave no seu ninho, porque
quando o Sol se põe a oeste, as aves regressam aos seus ninhos.

O que se verifica quando se olha para um mapa é que esta estátua está
colocada no ponto mais oriental da China, exatamente no primeiro lugar em
que na China se vê o Sol todas as manhãs. Uma das ironias da geografia
política nestas partes é que a China, o império mais oriental, fica a ocidente
e que a Rússia, uma potência europeia, a confronta pelo oriente. Uma faixa
de território russo corta a província chinesa de Heilongjiang até ao mar do
Japão. Olhando de novo, com mais cuidado, verão a razão pela qual tantas
pessoas em Beijing consideram o território do Extremo Oriente russo como
o último vestígio do colonialismo europeu nas terras chinesas. Será este
monumento um símbolo, uma proclamação de que o Oriente é chinês?
O ideograma gigantesco tem 49 metros de altura, uma alusão à data da
fundação da República Popular. Na praça envolvente, há também um mapa
da China desenhado no chão e um número de pavilhões.
Os guardas fronteiriços de Kazakevichevo, embora tenham tido o
cuidado de não discordar com a partilha da ilha, expressaram preocupações
óbvias acerca de como mudou a situação da segurança em Khabarovsk, a
segunda cidade no Extremo Oriente russo depois de Vladivostoque. No
caso de um conflito militar entre a China e a Rússia, a ilha poderia servir de
base de assalto para a rápida captura de Khabarovsk. O aeroporto da
próxima Fuyuan poderia facilmente ser usado para finalidades militares e a
monumental praça com o ideograma gigante e os pavilhões – já reforçada
com lajes de cimento – poderia receber baterias de artilharia.
De facto, a decisão de transferir metade da ilha para a China defrontou-
se originalmente com significativos protestos. Membros da Câmara
Municipal de Khabarovsk insistiram em que Bolshoy Ussuriysky era de
vital importância para defender a cidade em caso de agressão chinesa. Em
2005, dezenas de milhares de assinaturas contra a transferência foram
rapidamente recolhidas e enviadas para Moscovo, mas a decisão estava
tomada. Existem relatos de negociações secretas de último minuto em que a
Rússia tentou salvar toda a ilha com a oferta de fornecer à China, em troca e
sem custos, um número de contratorpedeiros. A China respondeu que
poderia concordar mas que, em vez dos contratorpedeiros, pedia uma
pequena fatia de território em redor dos primeiros afluentes do Tumen, onde
a Rússia se une à Coreia do Norte, o que permitiria finalmente o acesso
chinês ao mar do Japão.
Depois da minha entrevista com o agente dos serviços secretos, ele foi
fazer um telefonema e eu fiquei sozinho a conversar com a intérprete,
Galina. Ela confidenciou-me que, como eu, fora professora universitária,
tendo estudado Linguística em Leninegrado, sob a influência do linguista
pioneiro Roman Jakobson. Não pude deixar de ficar impressionado por os
serviços secretos russos usarem linguistas de tal calibre para simples tarefas
de tradução, mas, em retrospetiva, a associação parece sinistramente
apropriada. Quem melhor do que uma linguista estruturalista para ajudar a
navegar a espessa floresta de símbolos da ilha Bolshoy Ussuriysky?
Descobri um último símbolo nessa noite, enquanto pesquisava no
Google o terreno da ilha. Vista de cima, a praça da península que albergava
o gigantesco ideograma chinês, apontada a Khabarovsk, parecia-se
inconfundivelmente com um navio de guerra – um contratorpedeiro
chamado Oriente.

Oriente, Ocidente
O comboio noturno de Khabarovsk para Vladivostoque é o último segmento
da via-férrea transiberiana, por isso talvez seja compreensível que a
disposição no vagão-restaurante se torne festiva ao jantar, com a televisão a
berrar música rock e as últimas garrafas de vodca a serem rapidamente
esvaziadas. O comboio irá deixar-nos na bela estação mesmo no meio da
cidade, onde podemos tomar uma passagem de peões elevada até às
traseiras e olhar sobre o porto, tendo por fim alcançado o Pacífico.
Vladivostoque significa, em russo, «senhor do Oriente». É para
Vladivostoque que o ideograma chinês sobre o Ussuri está apontado,
lembrando que, até ao Tratado de Beijing, todo o território a sul do Amur no
mar do Japão era considerado chinês e Vladivostoque ainda era conhecida
como Haischenwai. Hoje, quase não sobram chineses, mas mesmo há cem
anos talvez um terço da população fosse chinês, concentrado em Millionka,
um bairro de alguns quarteirões a norte da estação ferroviária, transformada
agora num centro de moda e vida de café.
Hoje Millionka é um nome mítico, como a Atlântida, uma palavra
mantida viva depois de o local ter desaparecido sem deixar rasto. Mas o
local de Millionka não é menos lendário, um denso bairro de edifícios de
três pisos abrindo para pátios secretos, uma pequena área de apenas alguns
quarteirões onde viviam talvez cem mil migrantes chineses, de entre os
quais apenas alguns registados junto das autoridades. A população russa só
lá entrava à procura de ópio ou a fugir à polícia. A vida ali era como em
casa, na China: o mesmo sistema rígido de desigualdade social, as mesmas
guildas e sociedades secretas, o mesmo consolo taoista para os aflitos. Era
possível viver em Millionka sem nunca de lá sair: havia antros de ópio,
tabernas, bordéis, lavandarias, banhos, uma farmácia chinesa,
estabelecimentos de adivinhação e até um teatro, construído em 1899 e
aberto ao público um mês antes do teatro russo da cidade, com um
espetáculo de seis peças e acrobacia circense. Em 1936, Estaline ordenou
que o que restava de Millionka desaparecesse e os chineses fossem
deportados, alguns para cidades como Kentau, no Cazaquistão. Uma
testemunha contemporânea descreve a visita a casas de jogo em Millionka,
as entradas obstruídas por lixo e excrementos humanos. Lá dentro, as
janelas enfarruscadas não admitiam praticamente qualquer luz. Pares de
jogadores sentavam-se à mesa e ao longo de bancos, rodeados por curiosos.
Ocasionalmente, os empregados distribuíam pequenos copos de vodca
chinesa aos jogadores. Um jogo em particular para ocasiões especiais
consistia em determinar quem, de entre vários competidores, conseguia
estar mais tempo pendurado pelo pescoço e o método era brutalmente
simples: os que morriam perdiam.
Hoje, não resta nada. Millionka não passa de um rumor. Se visitarem o
museu da cidade, que por acaso está localizado no limite daquilo que foi
outrora Millionka, há uma sala exibindo luxuosas caixas de majongue,
deixadas para trás ou vendidas pelos antigos habitantes chineses. Dois ou
três dos pátios estão ainda mais ou menos na mesma do que os pátios nas
velhas fotografias, rodeados por compridas e contínuas varandas, com
cercaduras de ferro forjado. Subi a uma das varandas e uma mulher idosa
veio cá fora, para ver quem era o intruso. «Millionka?», perguntei. Ela
apontou para trás das costas e, por um momento, pensei que quisesse guiar-
me até um segundo pátio, mais interior.
Ela queria dizer que Millionka desaparecera, perdida no passado
distante.
7

A RÚSSIA VOLTA-SE
PARA ORIENTE

A última cidade perdida da Europa

N
uma fria manhã de dezembro de 2015, encontrei-me a bordo de uma
jangada de madeira, rebocada ao longo do Volga por um pequeno
barco de pesca. Estava ali à procura dos vestígios de uma poderosa e quase
esquecida metrópole medieval. Outrora uma lendária capital de enorme
riqueza, situava-se nos cruzamentos da antiga Rota da Seda, mas continua a
ser um mistério exatamente onde. Um homem – com a ajuda de uma
dedicada equipa de estudantes – poderá ter descoberto a peça que faltava no
puzzle.
Todas as descobertas arqueológicas importantes ou confirmam ou
desafiam as histórias que os russos gostam de contar acerca do seu lugar no
mundo. Algumas pessoas veem a Rússia como uma criação dos eslavos que
viviam nas terras russas desde tempos pré-históricos. Outras olham para
oriente, para os mongóis e a Horda Dourada, indo ao ponto de afirmar que o
Estado russo é o herdeiro do legado imperial de Genghis Khan. O que
emerge inevitavelmente destas discussões é a ideia da Rússia como uma
ponte entre o Oriente e o Ocidente, um caldo de cultura de tribos e
religiões.
Astracã, no Sul da Rússia, manteve parte da sua identidade como a
ligação entre grandes civilizações. Quando foi incorporada no Império
Russo, no século XVI, a cidade foi destinada a um glorioso papel como
segunda capital no Sul e, no século XVII, os mercadores da Índia
estabeleceram aqui residência permanente. O edifício de dois andares está
ainda de pé, com a sua antiga função indicada numa pequena placa. Se o
contornarmos até às traseiras, veremos algumas das estruturas de tijolo
originais.
Hoje, Astracã é igualmente cosmopolita: cristãos, muçulmanos e
budistas coexistem pacificamente e mais de cem diferentes grupos étnicos
misturam-se no azafamado bazar tártaro, alguns quarteirões a sul das
paredes brancas de neve do Kremlin.
«Professor Dmitry Viktorovitch Vassilyev, Universidade Estatal de
Astracã.» A voz do outro lado da linha diz-me que nos encontremos no
laboratório arqueológico, mas deve ter pensado se eu seria capaz de
encontrar o local, por isso enviou a sua assistente, Dinara, para me esperar à
porta. Afinal de contas, Dmitry ainda estava a dar aula, por isso parámos
junto ao auditório a tempo de ouvir as suas palavras finais aos alunos.
«Encontrámos artefactos do Irão e da Rússia», dizia. «Da Alemanha e
da China, de Espanha e de Itália. Astracã costumava ser o centro do mundo.
O nosso continente tem quatro cantos: Europa, Irão, Índia e China. Astracã
está no centro. Foi aqui que o capitalismo começou. Explicar-vos-ei isso na
próxima semana.»
O laboratório arqueológico da Universidade Estatal de Astracã localiza-
se na cave do edifício principal da universidade, no fundo de uma série de
escadas em espiral. Isolado do piso superior, o espaço a abarrotar serve
simultaneamente de biblioteca, de área de armazenamento, de sala de
reuniões e de depósito. Para todo o lado para onde se olhe veem-se
maquetas arquitetónicas da velha fortaleza de Sarkel, esboços de crânios
humanos, mapas desenhados à mão da região do Volga, inúmeras pedras
preciosas e mesmo alguns quilos de chumbo, que podem ter feito parte do
tesouro do banco central cazar.
Todos os verões, Vassilyev leva uma equipa de estudantes até um campo
de escavação na vizinha Samosdelka. A vida no campo alterna entre o
trabalho duro, mergulhos no Volga e canções em redor da lareira à noite. No
final de agosto, regressam a Astracã com milhares de artefactos acabados de
descobrir. Os artefactos são então classificados e arquivados no museu da
cidade, longe da vista dos visitantes por falta de espaço de exposição ou,
talvez mais provavelmente, por falta de interesse oficial no projeto.
«Estamos sentados sobre moedas de ouro, mas deixamo-las na terra», diz
Vassilyev. Dmitry gosta de usar factos como metáforas. De facto, descobriu
muitas moedas de ouro e jóias em Samosdelka. Esta é uma das principais
razões para estar tão confiante em ter encontrado Itil, a capital do império
cazar, a última cidade perdida da Europa. No dia seguinte, o chefe da
administração local de Samosdelka confidencia-me que, quando era
criança, costumava brincar nos campos sem saber o que estava escondido lá
no fundo. Um dia um dos seus amigos descobriu um pote cheio até às
bordas de moedas de ouro. Não consegue lembrar-se do que lhes aconteceu,
ou pelo menos não diz.
Durante mais de três séculos, começando por volta de meados do século
VII, os cazares comandaram um vasto império que se estendia desde as
estepes setentrionais até ao Cáucaso e à Crimeia. Situava-se na Rota da
Seda, beneficiando do intenso comércio entre o Oriente e o Ocidente e
servia de amortecedor entre as terras cristãs e o Califado Árabe em
expansão, para leste e sul. Sobretudo, era o posto final antes da estepe, o
último Estado organizado antes do perigo e da ausência de lei das hordas
nómadas que deambulavam a oriente.
Uma das estradas levava os viajantes desde Espanha e França, através
de Praga e de Cracóvia até Kyiv e, depois, a Sarkel e a Itil, a capital cazar.
O império era, sob todos os aspetos, uma sociedade notavelmente tolerante:
o sistema judicial atendia às práticas e costumes de judeus, muçulmanos,
cristãos e pagãos, de formas que pressagiavam o futuro sistema de millets
dos otomanos.
No século X o império conheceu um fim abrupto, substituído por um
florescente principado de Kyiv e, mais tarde, com os Grandes Príncipes de
Moscovo, no século XV, pelo Império Russo. As causas do colapso
continuam desconhecidas. A Cazária tinha poderosos inimigos e as suas
próprias divisões internas poderão ter enfraquecido o Estado e o exército.
Por volta de 965, o governante do Rus de Kyiv, Sviatoslav, conquistou e
destruiu Itil. Um visitante escreveu pouco depois que nem uma passa ou
uma uva foi deixada na terra.
«Tem a certeza de que Itil era em Samosdelka?», pergunto a Vassilyev,
quando deixamos Astracã, seguindo para sul.
«Tenho a certeza absoluta», responde. Depois, acrescenta: «Mas claro
que há outros arqueólogos que discordam e há pessoas em Moscovo que
pensam que é em Sarkel, ou que desapareceu debaixo do Cáspio. Mas eu
tenho a certeza.»
Vassilyev trabalha no projeto arqueológico de Samosdelka desde o
início. Quando, há 25 anos, os camponeses em Samosdelka começaram a
abrir regos para as pastagens dos animais, encontraram estranhos artefactos,
sobretudo olaria. Levaram os seus achados ao professor primário local, que
chamou a atenção para eles à universidade em Astracã. Vassilyev começou
a escavar 10 anos depois.
Pela sua natureza, o trabalho dos arqueólogos é, evidentemente, lento.
Mas aqui as coisas são ainda mais lentas, devido à pesada burocracia e a
uma persistente ausência de fundos. Até agora, o trabalho tem estado
limitado a duas pequenas escavações, ambas com cerca de três metros de
profundidade.
A região do delta do Volga contém uma extraordinária mistura de
línguas, raças e religiões. O poeta russo Velimir Khlebnikov descreveu-a
como o triângulo de Cristo, Buda e Maomé. Pude ver o que queria dizer
enquanto nos dirigíamos para sul e Vassilyev traduzia os nomes das aldeias
que atravessávamos, umas tártaras, outras calmucas. Os calmucos são os
budistas mais antigos da Europa, tendo migrado da sua pátria ancestral dos
pastos da Mongólia, no século XVII, e a República da Calmúquia, mesmo a
oeste de Astracã, é o único lugar na Europa onde o budismo é praticado pela
maioria da população. Depressa chegámos a uma colina, que Vassilyev
explicou que era considerada sagrada pelos budistas na Rússia, os quais
acreditavam que, caso fosse destruída, o mundo chegaria ao seu fim.
Preocupante é parecer que metade da colina já terá desabado.
Neste ponto, estamos profundamente imersos na região do delta do
Volga, onde este se divide em múltiplos braços antes de desaguar no mar
Cáspio. Atravessamos dois destes braços antes de chegarmos ao local da
escavação. A ausência de pontes na área significa que temos de atravessar
em locais selecionados, onde foi estabelecido um improvisado serviço de
travessias – daí a jangada de madeira rebocada por um pequeno barco de
pesca.
Este é um país assente em fortes capacidades de organização. As
infraestruturas estão a desmoronar-se ou nunca foram desenvolvidas, mas as
coisas funcionam com precisão mecânica. Se isto parece contraditório,
talvez seja uma das contradições que melhor explique a Rússia. Como os
comboios russos: são desesperadamente lentos, mas chegam à hora.
Na fase final da nossa viagem, passamos por algumas explorações de
camelos, prodigiosos camelos bactrianos a pastarem ao longe. Assistir a
uma das corridas de camelos organizadas em Astracã, o único lugar na
Europa onde ocorrem, é estar preparado para estar cara a cara com o poder
indomado da natureza. Estes animais correm a velocidades próximas dos 60
quilómetros por hora e são reconhecidamente difíceis de domesticar.
Quando finalmente chegamos ao local da escavação, sinto-me aliviado,
mesmo exultante. As terras aluviais do Volga são neste sítio completamente
despojadas de vegetação, um facto que deverá ter que ver com aquilo que lá
está mesmo sob a superfície. Há tijolos vermelhos por todo o lado.
Toneladas e toneladas de tijolos primitivos, certamente mais primitivos do
que os tijolos que os mongóis trouxeram consigo no século XIII. Mais tarde,
quando mostro às pessoas fotografias deste local, dizem que parece Marte:
sem vegetação, o terreno cor de tijolo, uma velha carrinha russa, ou
tabletka, em vez do módulo de aterragem. É fácil acreditar que existiu aqui
outrora uma grande cidade.
Por um breve momento, esta planície vazia deixou o mundo conhecido
para se tornar o centro das suas profundezas desconhecidas, a maior cidade
soterrada do mundo. A Cazária estava ameaçada por todos os lados:
Bizâncio, os abássidas, os povos das estepes a leste e o cada vez mais
importante Rus de Kyiv a oeste. Um dia desapareceu, quase sem um
suspiro. Há aqui algo mais comum com os nossos destinos individuais do
que a ascensão e queda de outros grandes impérios. Mas não se deixem
enganar; a Cazária foi um grande império. Um outro cronista conta-nos
como o xá sassânida gostava de manter três cadeiras douradas junto ao seu
trono, para o caso de três convidados muito especiais o visitarem. Uma
estava reservada para o rei da China, a outra para o rei de Bizâncio e a
terceira para o rei da Cazária. Todo o potencial local de escavação de Itil
tem de passar por um simples teste: poderá ser esta a capital do grande
império?
No regresso a Astracã, verifico que as velhas categorias de oriente e
ocidente se acabaram por confundir. As imponentes muralhas brancas do
Kremlin de Astracã já não parecem tão belas nem tão altas, em comparação
com as muralhas vermelhas de Itil, apenas visíveis na imaginação.
Geograficamente, Astracã é uma cidade mesmo à ponta da Europa, a 300
quilómetros a oeste do rio Ural, mas o conceito de Europa parecia aqui
estranho e irrelevante. Europa e Ásia são conceitos exibidos para
determinados fins. Aqui, em Astracã, não têm qualquer propósito e ninguém
os leva a sério. Quando perguntei a Dinara se ela achava que Astracã era
uma cidade europeia, ela respondeu que duvidada se entendia a pergunta. O
que quer que a Europa possa ser, é também uma terra – uma terra de fadas
oriental – de estepes, camelos, templos budistas e potes de moedas de ouro.
Vassilyev regressa ao seu laboratório arqueológico. É um homem em
perseguição de um sonho, um homem cuja vida foi empregada nessa busca,
mas persegue o seu sonho de uma forma tão suave e discreta que, por isso,
esse sonho torna-se ainda mais precioso. Aquilo que me impressiona,
depois de ter tido tempo para recuperar, é a pura discrepância entre as duas
escavações que Dmitry completou até agora – pequenas, mas profundas – e
a dimensão da planície, que se estende até ao horizonte, onde Itil deverá ter
existido. Há trabalho em Samosdelka para durar cem anos. Conseguirá
arranjar o dinheiro para perseguir o seu sonho até ao fim? Duvido. O
arqueólogo é, sob certo aspeto, a melhor imagem do aventureiro, pois
quando se lança ao trabalho nunca sabe o que irá encontrar e que ideias
recebidas as suas descobertas o obrigarão a abandonar. É isso que o torna
tão excitante, é por isso que tantos de nós sonharam tornar-se arqueólogos
na nossa infância, mas a Rússia atual não é um lugar onde o passado e o
futuro possam ser deixados em aberto para novas descobertas.
As apostas são demasiado elevadas. A História é cada vez mais vista
pelo Estado russo como uma arma geopolítica e a Cazária continua a ser
uma ideia ambígua, mesmo perigosa. Deixem que vos dê um exemplo. Tive
pela primeira vez contacto com o enigma de Itil num curto ensaio de Lev
Gumilev, que deverá ser o maior historiador e filósofo da História russa do
século XX, cuja estatura era já lendária durante a sua acidentada vida,
grande parte dela passada no Gulag. Agora, 25 anos após a sua morte,
Gumilev é frequente e aprovativamente citado pelo Presidente Putin – mais
à frente veremos porquê – e uma prestigiada universidade no Cazaquistão
ostenta o seu nome. O seu interesse pela Cazária constitui uma das
passagens mais sombrias da sua biografia intelectual. Gumilev não era
simplesmente atraído pelo destino deste misterioso império. Recorrendo a
fontes que apontam para a conversão da elite governante cazar ao judaísmo,
ele vê no encontro russo com a Cazária um episódio do confronto global
entre russos e judeus, baseado numa oposição fundamental de traços de
carácter entre os dois povos. O desaparecimento da Cazária, para Gumilev,
foi um momento decisivo na emancipação da Rússia como uma civilização
da estepe, essencialmente rural e tradicional, em oposição ao capitalismo
ocidental1.
Estaline proibiu qualquer investigação sobre a cidade e os cazares,
receando que isso provasse que a Rússia descendia de um Estado judaico.
Mais recentemente, o facto de a Cazária poder ter sido o único Estado
judaico a erguer-se entre a queda do Segundo Templo e a formação de Israel
tem suscitado um interesse considerável. O Congresso Judaico Russo
financiou parte das escavações em Samosdelka, mas Dmitry não conseguiu
encontrar nenhum indício de uma presença judaica e o financiamento secou.
Quem controla o passado controla o futuro. Quem controla o presente
controla o passado. Este famoso ditado ilustra a relação entre a política e a
História na Rússia. Durante o seu conflito com a Ucrânia, foram debatidos
distantes acontecimentos históricos tão ferozmente como as mais recentes
notícias. Uma decisão das autoridades da região de Oryol, no Ocidente da
Rússia, de erigir uma estátua ao czar do século XVI, Ivan, o Terrível, tornou-
se matéria de debate aceso, com um jornal de negócios a chamar-lhe «o
disparo de uma salva nas guerras da memória e uma declaração numa
discussão política do direito do Governo a usar a força internamente». O
controlo estatal sobre a História do país parece agora tão importante como o
controlo do petróleo e do gás. Despojadas das aparências, toda a discussão
russa e toda a divisão na sociedade constituem mais uma discussão e uma
divisão sobre a História do que sobre a política.

A batalha pela História


Serguei Lavrov, ministro dos Negócios Estrangeiros russo desde 2004,
gosta de pensar em si próprio como um homem de ideias, cuja contribuição
para a moldagem da política externa do seu país deriva da capacidade de a
colocar num contexto histórico longo. Nisto ele é sem dúvida invulgar entre
os seus colegas ministros, a vasta maioria dos quais assimilou a noção de
que entrámos numa nova era histórica, de facto tão nova que talvez a
História se tenha tornado desnecessária ou mesmo, até certo ponto, uma
guia pouco fiável.
Dito isto, Lavrov preocupa-se pouco com a História devidamente
entendida. Usa-a para defender determinados pontos e estes são quase
sempre do que há de mais corrente e mesmo polémico. O seu último ensaio,
dedicado a clarificar a posição internacional da Rússia em relação àquilo a
que chama «alguns exemplos da História», começa por realçar que a Rússia
não pode ser vista como estando sempre a tentar apanhar o Ocidente, uma
vez que originalmente gozava de «um nível cultural e espiritual com
frequência mais elevado do que o dos Estados ocidentais europeus2». Aqui,
o exemplo histórico é, claro, o do Rus de Kyiv, antes das invasões mongóis.
Lavrov observa que, numa altura em que os casamentos reais eram a melhor
bitola para avaliar o lugar de um país no sistema internacional, as filhas do
Grande Príncipe Jaroslav – que governou Kyiv de 1019 a 1054 – se
tornaram rainhas da Noruega e da Dinamarca, da Hungria e da França. A
sua filha Ana casou com Henrique I de França e, mais tarde, escreveu ao pai
que o seu novo país era «um lugar bárbaro, onde as casas são sombrias, as
igrejas são feias e os hábitos revoltantes».
Ao argumentar que o Rus de Kyiv faz parte da História russa, Lavrov
mostra que fraco estudante de História realmente é. Lê-a da frente para trás.
Se a lesse da forma correta – do passado para o futuro – talvez estivesse
mais inclinado a ver o Rus de Kyiv como parte da História viquingue. O
príncipe Vladimiro – o pai de Jaroslav – estava, afinal de contas, ainda tão
intimamente ligado à sua casa ancestral que passou cinco anos na
Escandinávia antes de regressar a Kyiv para reclamar o trono – trazendo
consigo um novo exército viquingue.
Tudo isto são até certo ponto ninharias, mais ou menos provocações
infantis que Lavrov exibe, sabendo perfeitamente como são irritantes para
os ucranianos. Até certo ponto justificam os clérigos ucranianos que em
1944 – em acontecimentos ainda longe de estarem elucidados – levaram os
restos mortais de Jaroslav para Manhattan, onde foram localizados pouco
tempo depois. Tinham medo da apropriação física e cultural por parte dos
soviéticos que avançavam. Em novembro de 2016, um monumento de
bronze com 16 metros de altura de Vladimiro foi inaugurado em Moscovo.
Está localizado mesmo junto às muralhas do Kremlin e, num nítido
contraste com a sua estátua em Kyiv, erigida em 1853, o Vladimiro de
Moscovo é representado com uma espada na mão esquerda – um guerreiro
antes de tudo o mais.
Lavrov está aqui empenhado no mesmo tipo de apropriação, mas não
está de modo algum sozinho e a verdadeira questão é saber como, no fim,
regressa da sua exploração histórica até ao presente e ao estatuto da Rússia
no sistema internacional. Ao fazê-lo, sublinha um número de pontos
importantes.
Ainda dentro da órbita da analogia histórica, Lavrov começa por
observar que a Rússia é de facto a criação política de Alexandre Nevski,
que tomou a opção fundacional de resistir a toda e qualquer tentativa de
assimilação vinda do Ocidente, mesmo que isso tenha significado a
aceitação de uma espécie de sujeição temporária ao Império Mongol. Para
Lavrov, o verdadeiro perigo para o papel especial e a missão da Rússia vem
do Ocidente. Tudo – e ao referir-se ao «jugo mongol» parece implicar
literalmente tudo – é preferível à assimilação pelo Ocidente. Aqui não tenho
a certeza de Lavrov ter ido buscar a sua inspiração a Gumilev e outros
historiadores, ou a uma famosa cena do filme de Serguei Eisenstein de
1938, Alexandre Nevski. Quando um velho pergunta ao príncipe quando
vingarão os seus antepassados e expulsarão os mongóis das terras russas,
Nevski responde que os mongóis podem esperar. «Enfrentamos inimigos
mais perigosos», diz, antes de se voltar para a câmara, ou antes, esperando
por um grande plano, e soltando uma contida e despeitada exclamação: «Os
germanos!»
A partir desse momento, quando Nevski soltou o seu brado, o destino da
Rússia ficou traçado, por assim dizer. Nos séculos seguintes, desenvolver-
se-ia aquilo a que Lavrov chama «um tipo original de espiritualidade». Esta
ideia talvez seja a própria definição de lugar-comum na Rússia de hoje. Nas
viagens que lá fiz durante os últimos três anos ouvi-a a toda a gente, desde
Saida Panesh, a professora universitária circassiana em Krasnodar, até ao
sacerdote meio louco nas margens do lago Baical. Lavrov é um político.
Sempre que possível, apela ao mínimo denominador comum.
O que é então esse tipo de espiritualidade russo? Todo o ensaio de
Lavrov é uma defesa da «mudança evolucionária». Isto é particularmente
óbvio nas passagens que dedica à União Soviética, que culminam numa
completa reabilitação das suas assinaláveis contribuições para a História
humana e para o bom governo, mas isto é realizado menos em nome de
princípios revolucionários do que como um corolário da «continuidade da
História russa, que deverá incluir todos os períodos históricos sem
exceção». Se achássemos que a Rússia czarista era a preservadora do trono
e do altar depois do caos napoleónico, Lavrov desilude-nos dessa noção,
observando que Alexandre I e Nicolau I eram protótipos do projeto
cosmopolita a longo prazo de subordinar os interesses nacionais ao bem da
Humanidade. O liberalismo contemporâneo estava já presente na velha
autocracia e a velha autocracia está com certeza presente nos nossos ideais
liberais. Toda a História flui em círculos, mais do que numa linha reta.
Uma vez que a via especial russa não se coaduna com o modelo de
modernização ocidental, o conflito entre a Rússia e o Ocidente tornou-se
uma espécie de dado histórico adquirido. A segunda vaga de globalização –
a primeira culminou com a Primeira Guerra Mundial – é para Lavrov em
grande parte uma confirmação da pretensão russa de que existem muitos
modelos diferentes de desenvolvimento, «o que elimina a monotonia da
existência dentro da uniformidade do padrão de referência europeu». Louva
o milagre económico chinês como tendo resolvido a questão de uma vez
por todas. Tenta também defender que o ímpeto revolucionário ocidental
resulta da sua crença num único modelo que deverá ser imposto à realidade
política e social. A Rússia, em contrapartida, acredita que a mudança deverá
ser realizada sob formas e à velocidade adequadas às tradições de uma
sociedade.
Tendo estabelecido essas duas visões do mundo opostas, Lavrov traça a
conclusão política que lhe interessa sobremaneira: a necessidade de
estabelecer um novo e melhorado sistema internacional – «sem linhas
divisórias». Em que consistiria essa nova arquitetura? Aqui, Lavrov não é
muito explícito nem muito original. Apela à criação de um guarda-chuva de
segurança comum, menos afetado pelas marcas ideológicas de uma era
passada. Na prática, isso envolveria o abandono ocidental de alguns dos
princípios mais básicos da sua cultura política, começando pela ideia de que
a opinião pública deverá ter acesso às ferramentas essenciais do poder
político. Isso, para Lavrov, é apenas uma visão da política entre muitas, que,
portanto, não poderá fornecer uma base viável para o sistema internacional
como um todo. Deixarão de existir revoluções «coloridas» – que serão
substituídas, talvez, por «uma base moral formada pelos valores tradicionais
que são largamente partilhados pelas principais religiões do mundo».
Sobre o fim da Guerra Fria e do sistema internacional que se seguiu,
Lavrov tece mais duas – e bastante reveladoras – considerações. Primeiro,
argumenta contra a noção popular de que a dissolução da União Soviética
marcou uma vitória ocidental. Para Lavrov, foi o resultado de um certo
desejo de mudança da própria União Soviética, «acrescido de uma infeliz
cadeia de acontecimentos». A última referência é importante porque parece
sugerir que não houve nada de necessário, inevitável ou permanente nessa
dissolução. Segundo, Lavrov tenta livrar-se do outro pressuposto
justificador da presente ordem mundial: os valores da liberdade individual e
da governação coletiva. Isso, para ele, é uma desculpa esfarrapada: os
novos membros da OTAN não são mais livres do que antes. Eles
confessam-lhe – à porta fechada, evidentemente – que não podem tomar
qualquer decisão significativa sem a luz verde de Washington e Bruxelas.
A História seguiu um caminho diferente. Para Lavrov, o erro fatal foi
cometido pelos «nossos parceiros ocidentais» quando decidiram expandir a
OTAN para leste, em vez de aproveitarem uma oportunidade única para
criar um novo sistema internacional «incluindo todas as cores do mundo
moderno». Assim, Lavrov acaba por nos oferecer a excêntrica visão de um
sistema internacional moldado numa política eleitoral pluralista. Quer traçar
um papel para um partido evolucionário que acompanhe o partido
revolucionário do Ocidente, tão empenhado na «tecnologia da revolução»
que não consegue oferecer quaisquer soluções viáveis para problemas
comuns como o terrorismo global, ou a degradação ambiental. Neste ponto,
Lavrov ecoa como ninguém Nikita Krutchev: o Ocidente quer estrangular a
Rússia como, no passado, os capitalistas – grandes e pequenos – quiseram
silenciar aqueles que lutavam por uma sociedade diferente e mais justa.
Deverá isto ser levado a sério? Sob alguns aspetos, a resposta terá de ser
«não». Com Krutchev, tratava-se de propaganda e de falsa consciência. Isso
não mudou fundamentalmente, mas depois Lavrov apresenta-nos de facto a
inevitável imagem do mundo da nossa era e isso terá de ser reconhecido: o
sistema internacional está agora fragmentado em diferentes e, em última
análise, irreconciliáveis visões do todo. Nisso acabou por vir a parecer-se
com a política democrática numa sociedade aberta. Infelizmente, Lavrov
parece cego à amarga ironia de estar a defender uma espécie de pluralismo
para a política mundial que o seu país persiste em não oferecer aos seus
próprios cidadãos.
O terceiro continente
O ensaio de Lavrov regressa à questão da relação entre a Rússia e a Europa.
A expansão ocidental coloca naturalmente, para todas as outras regiões do
mundo, a difícil questão de saber se hão de adotar de forma voluntária a
cultura e a tecnologia ocidentais, ou se a via para a independência apenas
será encontrada repudiando o Ocidente sob todas as suas formas. Como
vimos, esta era uma questão comum a diferentes Estados e impérios na
Ásia, onde as unidades políticas existentes haviam atingido um nível muito
elevado de desenvolvimento, mas na Rússia o dilema tornou-se
particularmente agudo por duas razões principais, bem identificadas pelo
historiador Perry Anderson: a sua contiguidade geográfica com países
europeus e a sua carência de recursos naturais que lhe permitam enfrentar a
ameaça de subjugação pelo Ocidente3. A gravidade da ameaça, obrigando
escritores e artistas a refletirem profundamente acerca das fontes da sua
identidade nacional e da sua criatividade, resultou num súbito florescimento
cultural durante o século XIX.
No final desse ajustamento ao Ocidente, ergue-se um extraordinário
ensaio escrito por Dostoiévski em 1881 e sugestivamente intitulado «O Que
É a Ásia para Nós?». Aí, produz a afirmação de que, se a Rússia tivesse
sido capaz de ultrapassar o seu fascínio pela Europa, teria podido chegar a
um simples acordo com Napoleão: a Rússia ficaria com o Oriente e ele com
o Ocidente. Um império sem igual desde o de Gengis Khan que teria
incluído Constantinopla e a Índia Britânica – talvez, com o tempo, mesmo a
China; mas, de acordo com o grande romancista, «deitámos tudo isso a
perder em troca de uma bela imagem», a de salvar a Europa de si mesma e,
nesse processo, tornarem-se europeus a longo prazo. E o que aconteceu?
Nada; ou seja, os europeus continuaram a olhar a Rússia com desconfiança
ou mesmo ódio, incapaz de participar na civilização europeia, com a qual se
relacionavam como terra de imitadores e impostores. Dostoiévski defendia
que a Rússia teria de se voltar para a Ásia para encontrar uma missão
compatível com a sua dimensão. «Pois, na verdade, a Ásia para nós é
precisamente essa América que ainda não descobrimos.» Enquanto que a
Europa faz sobressair o pior nos russos, argumenta, a Ásia encorajá-los-á:
na Ásia, são europeus. Paradoxalmente pois, não é na Europa mas na Ásia
que a Rússia poderá cumprir o seu sonho europeu: «Na Europa, somos
tártaros», escreveu Dostoiévski, «ao passo que na Ásia somos europeus»4.
Pouco mais de 50 anos antes, no início deste longo processo de procura
da alma nacional, o filósofo russo Pyotr Chaadayev escrevera na sua
primeira «Carta Filosófica» que a Rússia «não pertence nem ao Ocidente
nem ao Oriente». «Inclinada com um cotovelo apoiado na China e o outro
na Alemanha», mantinha-se intocada pelo desenvolvimento cultural das
grandes famílias alternativas da Humanidade. Vive sem regras nem
princípios, «na fermentação caótica das coisas»: «Em terras estrangeiras,
especialmente no sul, onde as fisionomias são tão vivas e expressivas,
comparei frequentemente os rostos dos habitantes com os dos meus
compatriotas e fiquei estarrecido com a má catadura dos nossos.» Na
Rússia, tudo é individual, volátil, momentâneo, «nem uma ideia útil
germinou no solo estéril da nossa pátria». «O silogismo ocidental não nos é
familiar»5. Por causa desta espantosa condenação de todas as coisas russas,
Chaadayev foi mais tarde declarado clinicamente louco, o primeiro caso de
uma longa tradição da utilização da psiquiatria para suprimir a dissensão
política e intelectual. No entanto, os seus argumentos tiveram um efeito tão
forte nos seus contemporâneos que esse curto texto é largamente
considerado como a salva de abertura da longa controvérsia entre os
ocidentalizadores e os eslavófilos, que ocuparia os espíritos russos ao longo
de todo o século XIX. O jovem Aleksandr Herzen – o brilhante precursor de
tantas ideias políticas progressivas e radicais – descreveu a carta como «um
tiro de pistola ressoando no silêncio da noite».
Tradicionalmente, poderemos encontrar três escolas principais de
pensamento cultural russo: os ocidentalizadores, os eslavófilos e os
eurasianistas. Os ocidentalizadores encaram a Rússia como parte da
comunidade europeia histórica, ainda que a sua completa integração na
cultura política europeia possa ter sido por vezes lamentavelmente
postergada por certos fatores peculiares do desenvolvimento russo, algo
que, em qualquer dos casos, é comum a muitas outras regiões das periferias
europeias.
Os eslavófilos constituem um caso curioso. Toda a sua visão do mundo
era baseada na tentativa de libertar a Rússia da influência ocidental e
regressar a um primordial e puro mundo da cultura e do espírito, oposto ao
moderno racionalismo, mas esse regresso teria de seguir tendências
europeias mais amplas, que substituíssem os valores universais do
iluminismo por um sistema de nações independentes. A eslavofilia tinha os
seus equivalentes na Alemanha e na França e deverá ser colocada, em
última análise, no contexto das lutas intelectuais e políticas europeias da
altura. Ao afirmarem a singularidade da cultura russa, os eslavófilos
estavam a defender uma visão da História europeia em que cada povo
particular tinha o seu lugar único. Certamente, a Rússia devia separar-se de
todos os modelos importados, mas apenas na medida em que as próprias
nações de onde esses modelos eram importados seguissem os requisitos do
seu desenvolvimento interno e estivessem em harmonia com o seu carácter.
Se a Rússia quisesse encontrar o seu lugar no concerto das nações livres,
teria de fazer o mesmo. Mesmo a crítica das ideias racionalistas e
materialistas do Ocidente estava em perfeita sintonia com o movimento
romântico na Europa Ocidental. Como Tomáš Masaryk, o filósofo checo
que se tornou primeiro Presidente da Checoslováquia, escreveu em 1913 no
seu enciclopédico livro O Espírito da Rússia, o movimento era «em larga
medida europeu e desenvolveu-se sob influências europeias, tal como
aconteceu com o movimento oposto do ocidentalismo6».
Os eurasianistas eram completamente diferentes. Os primeiros
eurasianistas, ao escreverem logo após a Revolução Russa, eram bastante
claros acerca do seu desejo de acabarem com a hegemonia cultural do
Ocidente e da História política ocidental. Gostavam de chocar a sua
audiência afirmando que «em cada russo há uma gota de sangue amarelo».
Isto encontrava-se em nítida contradição com a imagem que os russos
tinham de si mesmos como povo europeu e, ao mesmo tempo, era
politicamente adequado, permitindo a negação de uma fronteira oriental
natural para a Rússia e eliminando a necessidade de pensar nos seus
domínios asiáticos como colónias segundo o padrão europeu7. O príncipe
Nikolai Sergueyevich Trubetzkoy, o fundador intelectual do eurasianismo,
nunca se cansou de chamar a atenção para a sua rutura radical com o
pensamento anterior e para a dificuldade que tinha em fazer-se
compreender, na medida em que os seus interlocutores estavam presos a
preconceitos psicológicos inflexíveis, tornando as suas teorias
visceralmente inaceitáveis. Apenas a Grande Guerra e a Revolução Russa
foram capazes de abalar de algum modo esses preconceitos.
Trubetzkoy, o descendente de uma velha família aristocrática, foi um
académico precoce, publicando artigos em revistas etnográficas aos 15 anos
e mostrando um interesse precoce pelas línguas e mitologia do Cáucaso.
Passara vários verões a estudar os contos e os cantares circassianos próximo
de Kislovodsk e soubera da revolução bolchevique quando lá se encontrava
a fazer um tratamento termal. Juntamente com a esposa e a filha pequena,
passaria os três anos seguintes a deslocar-se entre Tbilissi, Bacu e Rostov,
antes de ser evacuado para Ialta e depois, quando os exércitos brancos
começaram a perder terreno, para Istambul. Nunca regressaria à Rússia,
onde o seu nome aristocrático o teria certamente condenado à morte,
ocupando um prestigiado lugar no ensino em Viena, em 1922. Trubetzkoy
formulou as suas ideias sobre o eurasianismo cedo na sua carreira e estas
amadureceram por completo num fascinante livrinho publicado em 1925,
intitulado O Legado de Genghis Khan. Era uma tentativa original de olhar
para a História e para a psicologia russas a partir da perspetiva do Oriente.
Trubetzkoy observa que a massa terrestre que se espraia de um lado pela
Europa Ocidental e Central e, do outro, pela Ásia Oriental e Meridional,
tem um número de características peculiares: falta-lhe acesso ao mar aberto
e a linha de costa rendilhada dessas outras regiões. A partir deste facto
geográfico, segue-se necessariamente um número de diferenças, marcando-
o como um continente separado, que – em contraste com a Europa e a Ásia
– ele considera que se poderá chamar «Eurásia». A população deste novo
continente não é, evidentemente, homogénea, mas Trubetzkoy pensa que o
aspeto antropológico crucial é que todas as diferenças que existem, por
exemplo, entre os russos e os buriatas, são esbatidas por uma série de laços
intermédios e transitórios. Isso não impede a realização daquilo que, pela
própria natureza da Eurásia, é o seu destino comum de «incluir uma única
entidade estatal». Genghis Khan foi o primeiro a alcançar essa unificação e,
portanto, o Estado russo, que tem lutado e continua a lutar para recriar a
unidade quebrada, «é o descendente de Genghis Khan, o herdeiro e sucessor
das suas façanhas históricas8».
Todos os alunos do ensino primário na Rússia continuam a ouvir falar
do «jugo tártaro», dos séculos de subjugação que se seguiram à conquista
mongol, ela própria colorida com histórias de brutalidade e destruição sem
paralelo. A identidade nacional russa tem como premissa a lenta mas
contínua rebelião contra os mongóis, a partir do que poderemos concluir ou
que tiveram um papel involuntariamente positivo na génese da unidade
nacional russa, ou que o «jugo» esteve entre as principais razões pelas quais
a Rússia se tornou um país atrasado em comparação com os países da
Europa Ocidental. Alguns historiadores culparam mesmo a influência
mongol por aquilo que descrevem como os traços menos atraentes do
carácter russo. Púchkin chamou celebremente aos mongóis «árabes sem
Aristóteles nem álgebra».
Aquilo que Trubetzkoy fez foi virar de cabeça para baixo esse núcleo de
identidade nacional. Ele aponta alguns factos intrigantes. Por exemplo, não
poderá haver grande dúvida de que o novo Estado criado em Moscovo no
século XV não se via a si mesmo como querendo libertar a Rússia do
controlo mongol, mas antes querendo estender o seu poder a uma parte
muito maior do Império Mongol, acabando por substituir o khan tártaro
pelo czar moscovita. A ideologia estatal russa não via a separação da Rússia
em relação à Horda como sendo suficiente. Exigia a unificação da Rússia e
da Horda sob o poder de Moscovo9. Trubetzkoy vê o sistema estatal
moscovita como o sucessor, o herdeiro do sistema mongol em relação ao
território e às formas do Estado, mas também no seu conteúdo ideológico,
expresso na crença num mundo do bem e do mal, em grande parte oposto
ao do Ocidente. A defesa contra o Ocidente cedo se tornou um grande
problema confrontando o Estado moscovita, um problema desconhecido do
Império Mongol. A Polónia católica, a Suécia e o comércio marítimo com
os Estados europeus ocidentais colocavam todos ameaças distintas. Sem a
tecnologia bélica e industrial ocidental, Moscovo podia ser simplesmente
conquistada, mas a tecnologia importada poderia trazer consigo o espírito
da Europa e da civilização europeia. «A contaminação por este espírito era
um perigo muito grande.10»
Agora, embora Trubetzkoy – com referência às condições geográficas –
prefira falar da Eurásia como um terceiro continente, as suas conclusões
políticas deslocam a Rússia decisivamente na direção da Ásia. Ele achava
que a Rússia deveria ver-se a si própria como a aliada natural dos países da
Ásia na sua luta contra a civilização europeia. O seu principal louvor do
novo regime soviético era o de ter começado a falar com os asiáticos como
iguais, apesar de na maioria dos outros aspetos os soviéticos se terem
revelado agentes conscientes da mesma europeização perversa levada a
cabo pelos czares depois de Pedro, o Grande (a quem chama «zelota»), ter
colocado a Rússia nessa via. Numa espantosa declaração, conclui que o
verdadeiro inimigo da Europa não é o comunismo, que, afinal de contas,
nasce da civilização europeia, mas a Rússia histórica, ou seja, a Eurásia.
Naquilo que deve ter sido uma inversão deliberada, o mesmo Trubetzkoy
que tinha menosprezado o «jugo tártaro» apela agora ao estabelecimento de
um Governo que consiga libertar a Rússia do «jugo da civilização
europeia11».
Trubetzkoy gostava de se ver como uma espécie de profeta e uma
justiça elementar obriga-nos a conceder-lhe pelo menos algum sucesso
nessa tarefa. Ele não poderia saber que a União Soviética viria a durar tanto
quanto durou, mas viu algo importante quando defendeu que, depois de se
desmoronar, como estava destinado a acontecer, haveria uma muito maior
possibilidade de a Rússia se afastar da civilização europeia do que de ser
abraçada por ela. Se o eurasianismo se deslocou para o centro da política
russa contemporânea, não foi por os políticos andarem a vasculhar velhos
livros à procura de inspiração, mas simplesmente porque esses livros e
ideias apresentavam uma certa situação objetiva perante os políticos, uma
situação a que esses políticos estão agora a reagir.
Lev Gumilev partilhava a maior parte da visão do mundo eurasianista.
Ele foi muito obviamente influenciado por Trubetzkoy, nalguns casos dando
às ideias originais uma base mais científica. Estipula, por exemplo, que a
especificidade do terceiro continente pode ser derivada de um facto natural
– a isotérmica positiva de janeiro, a linha que demarca aquelas regiões em
que a temperatura média de janeiro é positiva. As terras onde a média é
negativa estão sujeitas a duras e permanentes geadas, separando-as tanto da
Europa Ocidental como dos férteis campos da China. Fiel à sua
interpretação determinista, Gumilev sugere que a Grande Muralha da China
pretendia marcar esta fronteira climática e que os persas tentaram algo
semelhante em torno do Derbent, nas costas do mar Cáspio. Existem três
continentes e os dois dos extremos – a Europa e a Ásia – construíram
muralhas para se protegerem do vital centro eurasiático.
Gumilev sempre se considerou um eurasianista, o último dos
eurasianistas clássicos, cuja história temos seguido. Tanto a sua admiração
por Genghis Khan como a denúncia do «jugo tártaro» como um mito sem
fundamento fazem parte de um substrato de ideias que o liga a Trubetzkoy,
apesar de ele as poder ter desenvolvido independentemente, uma vez que o
acesso às fontes eurasianistas era, durante os anos de Estaline, difícil ou
impossível de obter. Numa entrevista perto do fim da sua vida, Gumilev
refere-se aprovadoramente à convicção de Trubetzkoy de que o mais
importante para a Rússia seria não acabar feita escrava da Europa. O que é
importante é encontrar aliados genuínos, pelo que a Rússia deverá olhar
para os turcos e os mongóis, sabendo que os ingleses, os franceses e os
alemães «apenas poderão ser astutos exploradores». E depois conclui:
«Estou doente há muito tempo, tive um enfarte e não sei o que está a
acontecer no mundo. Sei uma coisa e vou dizer-lha em segredo: se a Rússia
quiser salvar-se, só o poderá fazer como uma potência eurasiática e apenas
através do eurasianismo.12»
O termo «Eurásia» expressa uma ambiguidade fundamental, bem
captada pelos eurasianistas originais e pelos seus seguidores
contemporâneos. Por um lado, refere-se a um terceiro continente,
incrustado na grande massa terrestre entre a Europa e a Ásia. Por outro,
significa o supercontinente que abrange a Europa, a Ásia e tudo o que está
pelo meio. Os eurasianistas têm consciência deste facto. Quando
inventaram o conceito de Eurásia em sentido estrito, tinham em vista a
reorganização da Grande Eurásia, o supercontinente. Queriam fazer
explodir a velha ordem da Eurásia dividida entre a Europa e a Ásia e criar
uma nova geografia com peças diferentes, em que a Rússia desempenhasse
um papel dominante. O terceiro continente desfruta de uma posição
privilegiada. Para alguns eurasianistas, isso deve-se ao facto de ocupar o
centro civilizacional e de se poder relacionar tanto com a Europa como com
a Ásia de uma forma através da qual estas duas nunca se poderão relacionar.
O crítico e historiador Vadim Kozhinov achava que a cultura russa
representava uma ponte espiritual entre a Europa e a Ásia13. Para outros, a
Rússia é o vasto e inacessível âmago do supercontinente, protegido da
invasão e das debilitadoras influências do comércio e do cosmopolitanismo,
um reservatório interno de força primitiva, destinado a conquistar o mundo.
Os eurasianistas originais estavam a escrever depois da revolução
bolchevique, quando a perspetiva da desintegração do Império Russo
parecia muito real e ainda mais na medida em que os exemplos dos
multinacionais impérios Otomano e dos Habsburgo pareciam ditar um
destino inevitável. O eurasianismo oferecia uma saída: uma nova ideologia
que avisava contra o nacionalismo russo e a transformação da Rússia num
Estado-nação homogéneo segundo o modelo europeu. As figuras mais
importantes do movimento, incluindo evidentemente Trubetz­koy,
defendiam a existência de uma afinidade subterrânea de almas entre os
russos e os povos turcos das estepes que poderia fornecer a base para uma
iniciativa política comum e a preservação da unidade do espaço eurasiático,
algo que, pelo menos para Trubetzkoy, tinha um estatuto quase científico.
Gumilev, por seu lado, gostava de observar que o facto de os mongóis terem
sido capazes de dominar a Rússia por tanto tempo e, em seguida, o Império
Russo ter mantido o controlo sobre os domínios dos khans conquistados
durante séculos, mostra esta unidade e afinidade. A Rússia e a Europa, em
contrapartida, repelem-se uma à outra, como os polos de dois ímanes.
Nem todos os eurasianistas eram tão rígidos na sua tentativa de definir a
Eurásia como um terceiro continente. O que todos partilhavam, no entanto,
era a firme intenção de proteger a Rússia da influência europeia e isso,
provavelmente, é que torna a ideia tão poderosa hoje em dia, quando a
Rússia sente que a União Europeia está lentamente a usurpar a sua esfera de
influência e a enredar a sua economia e a sua sociedade com toda a espécie
de laços visíveis e invisíveis. Além disso, aquilo que, para os eurasianistas
originais, era um problema limitado ao Ocidente, foi agora replicado no
Oriente, na medida em que a China está bem a caminho de criar um
segundo polo de crescimento económico e de integração no
supercontinente. Desta perspetiva, poderá parecer uma feliz coincidência
que os eurasianistas, apesar de toda a sua atração sentimental pela Ásia,
tivessem decidido não dever chocar as consciências mais do que já tinham
feito ao identificarem simplesmente a Rússia como um país asiático. «Nem
europeia, nem asiática» é uma ideia perfeitamente adequada para a difícil
situação russa de hoje. Com receio de ser pressionada de ambos os lados, a
liderança russa tem tentado transformar a sua mais visível vulnerabilidade
na sua maior força: «A única opção que resta é a formação de uma ponte
entre duas grandes zonas de integração.14» Desta forma, o eurasianismo é
transformado de uma teoria do centro numa teoria do todo.

A Rússia e a União Eurasiática


Em outubro de 2011, uma semana após anunciar que se candidataria a um
terceiro mandato presidencial, Vladimir Putin publicou um longo artigo no
jornal russo Izvestya, anunciando a criação de «um novo projeto de
integração para a Eurásia» – uma União Eurasiática. A primeira grande
iniciativa russa de política externa desde o final da Guerra Fria ostentava
assim no seu nome uma palavra rica de sentido político e imediatamente
reconhecível pelas elites políticas e intelectuais russas.
Aquilo que o uso desse termo faz é deslocar a discussão para o nível
daqueles poucos princípios universais da ordem política, as grandes
alternativas em confronto pelo reconhecimento universal. Se falar apenas
pela Rússia, Putin não poderá aspirar a constituir um desafio direto aos
princípios políticos ocidentais, com a sua pátina de apelo e validade
universais. Ao nível das teorias e dos símbolos políticos, ser capaz de falar
em nome de uma unidade maior significa também que se foi elevado a um
nível superior, onde os princípios relevantes podem, por definição, ser
aplicados em diferentes lugares e a diferentes pessoas. E a Eurásia foi um
termo político inventado para pôr diretamente em causa a Europa, como a
maioria deverá saber. Conjurava a imagem de uma batalha de gigantes pela
futura forma do sistema internacional, que o artigo afirmava «estar a nascer
hoje».
Putin descrevia o projeto como «uma poderosa associação
supranacional, capaz de se tornar um dos polos no mundo moderno e servir
como uma ponte eficiente entre a Europa e a dinâmica região Ásia-
Pacífico». Não implicava, argumentava, uma ressuscitação da União
Soviética, apesar de certamente tentar recolher algo do que ficara para trás:
redes de produção regional e um espaço comum de língua e cultura.
Sublinhava também que os países que aderissem à União Eurasiática
continuariam a poder integrar a Europa e talvez fazerem-no mais cedo, ao
mesmo tempo que tornava claro que o fariam no contexto das iniciativas de
integração entre a União Europeia e a União Eurasiática e não por sua
própria deliberação. «Ao construírem a cooperação segundo os princípios
das regras do comércio livre e de sistemas de regulação compatíveis, ficam
em posição de disseminar esses princípios, incluindo através de terceiras
partes e instituições regionais desde o oceano Atlântico ao Pacífico.»
Quando o acordo de fundação acabou por ser assinado, a União
Eurasiática concebida por Putin fora rebatizada União Económica
Eurasiática, respeitando os desejos da Bielorrússia e, especialmente, do
Cazaquistão, para evitar quaisquer passos conducentes à integração política,
como uma moeda comum ou um Parlamento comum. Apesar de existir um
corpo supranacional dotado de poderes relacionados com a integração
económica, os mecanismos de execução estão ausentes, o que significa que
as disputas têm de ser abordadas ao nível político e, em muitos casos, ser
resolvidas pelos próprios líderes. Mais do que se poderia pensar, isso
poderá ser menos um fracasso e mais uma característica deliberada. A
cultura política nos Estados-membros não é certamente de molde a deixar
decisões importantes nas mãos de corpos técnicos independentes. Mesmo as
questões técnicas são sujeitas a uma avaliação geopolítica. Desde que a
União Económica Eurasiática substituiu os regimes tarifários individuais
por um imposto externo único, países como o Quirguistão ou o Cazaquistão
tiveram com efeito de aumentar as suas tarifas sobre os produtos chineses,
para convergirem com as tarifas russas, mais elevadas. Além disso, os
controlos mais apertados nas fronteiras externas da União parecem ter
aumentado o tempo de travessia dos camiões que entram no Cazaquistão
vindos da China. Mais uma vez, isso parece menos uma consequência
inesperada das disciplinas comerciais e mais uma jogada deliberada de
Moscovo para restringir o crescente poder económico chinês na Ásia
Central. Quando, em resposta às sanções resultantes das suas ações na
Ucrânia, a Rússia impôs um embargo aos produtos agrícolas da União
Europeia, os outros Estados-membros eurasiáticos não a seguiram e, de
facto, procuraram formas de aproveitar a remoção de controlos
alfandegários: subitamente, a Bielorrússia tornou-se uma importante
exportadora de caro queijo francês, introduzido ilegalmente no mercado
russo. Num sentido óbvio, o projeto não funciona nem eficaz nem
suavemente, mas também nunca foi planeado para funcionar como a União
Europeia. É mais um conjunto de ferramentas para serem usadas do que um
conjunto de regras.
Depois do acordo de fundação original, dois novos membros foram com
rapidez acrescentados. O Quirguistão não estava certamente em posição de
se isolar do Cazaquistão e recebeu generosas promessas de ajuda financeira.
Quanto à Arménia, o processo que conduziu à sua adesão marca uma
história de intriga, diplomacia e força bruta ao serviço de objetivos de
política externa. O Governo de Erevan sempre afirmou que não estaria
interessado em aderir, mas depois de o Presidente arménio Serzh Sargsyan
se ter encontrado com Putin em Moscovo em setembro de 2013,
subitamente mudou de caminho, anunciando que a Arménia, afinal de
contas, se iria juntar à União Aduaneira e, mais tarde, à União Económica
Eurasiática. A Arménia planeava assinar um Acordo de Associação com a
União Europeia daí a menos de dois meses depois, em Vilnius. Em vez
disso, tornou-se até aqui o único caso de um país que abandona a via de
uma maior integração europeia e se junta à nova União Económica
Eurasiática. Fê-lo depois de Moscovo tornar muito claro que não tinha outra
opção. De facto, apenas alguns dias antes da reunião de setembro de 2013,
o primeiro-secretário da embaixada russa em Erevan ameaçara a Arménia
com um «Outono quente» se assinasse o Acordo de Associação com a
União Europeia15. O país tem consciência de que os seus laços estreitos
com a Rússia lhe permitiram sobreviver na conturbada paisagem da
segurança na região. Conseguiu manter o território ocupado de Karabakh e
as suas áreas adjacentes, enquanto via o Azerbaijão a usar a sua riqueza
petrolífera para construir o tipo de vantagem militar que deixaria a Arménia
numa situação desesperada se a Rússia se afastasse.
Poderia ser tentador encarar a União Económica Eurasiática como um
mecanismo que permita à Rússia retomar o controlo sobre uma grande parte
da antiga União Soviética. É claro que a presente liderança no Kremlin
sempre encarou o colapso soviético como uma catástrofe geopolítica.
Talvez a União Económica Eurasiática pudesse oferecer ao mesmo tempo a
justificação e o mecanismo para reconstruir essas vastas extensões
imperiais. Ela sublinha a existência de algo como um destino comum entre
a Rússia e muitas das nacionalidades na sua periferia e cria um mapa que
leva da crescente integração económica até alguma forma de união política
ainda por determinar.
Contudo, não é esse o objetivo. Está a ser prosseguida, evidentemente,
uma forma de integração regional, mas isso significa mais um meio do que
um fim. O que preocupa genuinamente a Rússia não é o seu estatuto como
potência regional, de que já desfruta, mas a sua relação com os centros de
poder globais. Se a globalização vier a implicar a era da formação de
grandes zonas geopolíticas, a Rússia não poderá sobreviver como um país
completamente soberano a menos que se torne uma dessas zonas, ou pelo
menos o seu centro. É por isso que uma qualquer forma de integração
eurasiática com um conjunto de vizinhos se torna uma prioridade absoluta.
A alternativa é tornar-se uma zona limítrofe entre a Europa e a Ásia, dois
blocos independentes dirigidos – acredita o Kremlin – pela Alemanha e pela
China, respetivamente. Na verdade, é a partir desta dimensão que o sucesso
da União Económica Eurasiática deverá ser medido. Terá tornado a Rússia
mais capaz de competir com a União Europeia e a China em termos de
igualdade? Até agora, os resultados sugerem que sim. Não há muito, a UE
estava ainda a tentar desenvolver o enquadramento para um acordo de
comércio livre com a Rússia, que correria em paralelo com outras
negociações comerciais com os seus vizinhos orientais e que pressupunha a
aceitação e a transposição para lei interna, por parte de Moscovo, de regras
e padrões básicos europeus. A discussão deslocou-se agora para uma nova
opção estratégica de alongar as negociações entre as duas uniões. Embora
seja muito pouco provável que progridam presentemente, a noção de uma
parceria com a qual cada uma das partes tenha de se comprometer está a
ganhar terreno. Em novembro de 2015, o presidente da União Europeia,
Juncker, escreveu uma curta carta ao Presidente russo referindo-se a uma
reunião entre os dois, dias antes da Cimeira do G20 em Antália, na Turquia.
A carta afirmava que Juncker pedira aos seus serviços para «analisar
possíveis opções para uma maior aproximação da União Europeia e da
União Económica Eurasiática». Acrescentava que «sempre achei a ideia de
uma área comercial integrada ligando Lisboa a Vladivostoque um objetivo
importante e valioso».
De modo semelhante, a Rússia parece ter ganhado um novo ascendente
sobre a China. A união económica com os países da Ásia Central faz mais
do que remover barreiras entre eles e desviar o comércio para a Rússia.
Nalguns casos, como vimos, acaba por aumentar os obstáculos ao comércio
entre a China e países como o Cazaquistão. No mínimo, atrasa o ritmo da
expansão económica chinesa para oeste, o que parecia – e poderá ainda
tornar-se – imparável.
A União Económica Eurasiática surge assim como um projeto que visa
estabelecer e incrementar o papel da Rússia como participante nos
contínuos processos de remodelação da ordem global. Mais decisivamente,
este papel está ancorado no sentido histórico e nos valores políticos
extraídos de uma civilização específica, uma жизненный стандарт ou, no
mínimo, de uma forma específica de fazer política. Tal é perfeitamente
compreendido pelos críticos russos contemporâneos do eurasianismo, que
afirmam que a prosperidade da Rússia sempre lhe adveio de líderes que
olhavam para ocidente e não daqueles que encontram a sua alma nos
invasores das estepes orientais. Para Vladimir Lukin, «a Rússia não faz
parte de nenhum centro do mundo que não seja a Europa», mas parte de um
centro europeu que assenta em três pernas: Paris, Berlim e Moscovo. Ele vê
a alternativa eurasiática como estando condenada a uma arcaica «adoração
do Estado» e a sonhos da criação de gigantescas estruturas estatais, que
pressupõe uma fusão mítica de religião e território, sonhos cuja
probabilidade de tomarem forma se aproximam do zero16. Mas Lukin é
também o representante de uma raça em extinção de liberais russos, antigo
embaixador nos Estados Unidos e comissário dos Direitos Humanos.
Recordo bem como os ministros dos Negócios Estrangeiros da União
Europeia, reunidos em Bruxelas durante uma das suas reuniões mensais do
Conselho, aplaudiram a sua escolha como enviado russo para tentar mediar
as conversações entre o anterior Presidente ucraniano e a oposição. Essas
conversações não levaram a nada. Pouco depois, Yanukovych fugiu do país
e a Crimeia foi ilegalmente anexada.

A gestão do caos
Tudo gira em volta da velha questão: a europeização da Rússia. O
historiador Norman Davies observa argutamente que enquanto os
bolcheviques eram descritos no estrangeiro como «um bando de asiáticos
selvagens semeando a morte e a destruição como Átila ou Genghis Khan»,
a sua própria perceção era muito diferente. A revolução foi realizada em
nome da doutrina política mais progressista na Europa da altura: o
marxismo revolucionário. Os bolcheviques achavam que estavam a levar as
realizações da Revolução Francesa ao seu nível histórico seguinte e as suas
raízes situavam-se no movimento revolucionário alemão, ao qual
esperavam regressar quando a Alemanha unisse forças com a Rússia
provocando uma revolução proletária mundial17. Como já vimos num
capítulo anterior, a União Soviética poderá ser melhor entendida como uma
versão voluntariamente deformada de um Estado europeu moderno, um
Estado do qual fora extraído tudo o que não estivesse diretamente
relacionado com o poder estatal, a tecnologia e a capacidade industrial. O
Ocidente era tido como perigoso porque estava melhor organizado. Mas se
o Ocidente ultrapassara a Rússia em virtude da sua organização superior,
não seria possível desenvolver um foco exclusivo na organização, eliminar
tudo o resto que a detivesse e tornar assim os Estados ocidentais, por sua
vez, historicamente atrasados? A sociedade soviética era o triunfo da
organização sobre a vida.
Uma vez que os elementos do poder estatal e da industrialização
estavam, em última análise, enraizados em formas culturais muito mais
profundas e já não podiam produzir os desejados resultados quando eram
separados delas, o resultado estava destinado a ser o derradeiro colapso do
projeto revolucionário. Foi como se a União Soviética tivesse tomado todos
os elementos da vida europeia que considerava ameaças e, para se defender
deles, construísse um mundo onde nada mais existisse a não ser a lógica da
ameaça elevada a forma de vida.
Com o colapso do projeto comunista, o longo processo histórico através
do qual o resto do mundo alcançou a civilização europeia estava quase
completo. Em cada um dos casos, as forças que se revoltavam contra o
comunismo faziam-no com a esperança de uma nova vida, tão moderna
como as formas de vida europeias ou americanas, mas já não, como antes,
unicamente baseada na negação de tudo o que fosse ocidental. Muitos
pensavam que essa nova vida poderia ser importada do Ocidente,
esquecendo que, após um século ou mais de rápida modernização, nem a
China nem a Rússia, para tomar os exemplos mais óbvios, se encontravam
agora na vulnerável posição de imitadores culturais. Se aceitarmos que, à
luz das diferenças históricas e culturais que a separam dos seus vizinhos a
oeste, a Rússia não deveria ser vista como um país europeu, um facto de
grande significado surge de imediato: a Rússia é o único Estado fora da
Europa que sempre foi capaz de se manter genuinamente soberano e
independente dos grandes impérios europeus modernos.
É a partir dessa perspetiva que o interesse russo na questão eurasiática
deve ser compreendido. As grandes potências não integram, como o antigo
ministro dos Negócios Estrangeiros, Igor Ivanov, disse uma vez. Se a União
Europeia e a Rússia representam duas civilizações diferentes, as relações
entre as duas realizam-se a uma escala maior, que abrange diferentes polos
em Bruxelas, Moscovo e talvez Beijing. Por outras palavras, durante as
últimas duas décadas foi-se tornando cada vez mais claro para a liderança
russa que a integração com a Europa teria de ser multipolar e que a União
Europeia não deveria aspirar a ser mais do que um polo num projeto de
integração muito maior. A assimilação da Rússia na ordem europeia já não
era uma possibilidade, não apenas porque uma grande potência como a
Rússia não se integra, mas também porque o livre desenvolvimento da
sociedade russa após o colapso do comunismo revelou um profundo fosso
de diferenças culturais e políticas entre a Rússia e a União Europeia. A
Eurásia tornou-se para a Rússia uma forma de assegurar o espaço
necessário para desenvolver a sua própria civilização única, evitando o
cenário em que ficaria confinada pela China a oriente e sujeita à gradual
invasão de uma União Europeia em expansão a ocidente. Entretanto, a
União Europeia continua a propor um modelo de integração em que o poder
emana de Bruxelas e o progresso político está altamente correlacionado
com a distância a esse centro.
O modelo para as relações entre Bruxelas e Moscovo adotado pouco
depois do colapso da União Soviética pareceu assumir que a Rússia
convergiria gradualmente para as normas e valores europeus. Não foi o que
aconteceu. Para a liderança russa, a europeização da Rússia tinha um
significado muito diferente; a criação de «uma casa europeia comum», a ser
construída de novo com iguais contribuições de ambas as partes. Levada à
sua conclusão lógica, isso poderia resultar em algo semelhante à proposta
outrora apresentada pelo intelectual e personalidade televisiva Vitaly
Tretyakov: a criação de duas uniões em solo europeu, uma ocidental, outra
oriental, abrangendo a Europa Central e dirigida pela Rússia18. Muitas das
presentes incompreensões têm aqui as suas raízes, uma vez que a criação de
um novo sistema não é, do ponto de vista da União Europeia – vivendo no
final da História – uma tarefa nem realizável, nem sequer inteligível. A
Rússia, em contrapartida, «não entende a União Europeia como a forma
final da ordem política e económica da Europa19».
Por vezes pergunto-me se as diferenças entre a União Europeia e a
Rússia não poderão ser compreendidas em termos da oposição entre valores
e soberania. O facto é que a cultura política ocidental está sempre a uma
certa distância da noção de que as regras fundamentais da vida política são
criadas sem limitações por atores soberanos, ao passo que na Rússia isto
surge de forma tão natural que dizer o contrário é sempre visto como uma
marca de dissimulação e cinismo. A política em geral tem, em termos
relativos, baixos níveis de tolerância à reflexão teórica mas,
significativamente, isso quer dizer que um certo número de políticos
depressa acabará a apelar a uns quaisquer princípios indiscutíveis que os
poupem a uma reflexão intelectual cada vez mais difícil. Acontece que os
políticos europeus tendem a apelar a regras e valores aos quais o poder
político se deverá submeter, ao passo que na Rússia é muito mais comum e
natural apelar, não a regras, mas a um poder capaz de estabelecê-las e impô-
las.
Significativamente, mesmo quando a União Europeia expressa o desejo
de tratar a Rússia como um parceiro igual, isto significa algo inteiramente
diferente daquilo que a liderança russa entende. Para os europeus, significa
que a Rússia subscreverá os mesmos valores e regras que são aceites na
Europa, algo nitidamente distinto daquilo que Moscovo de facto exige:
partilhar o poder para criar ou estabelecer as regras no coração da ordem
mundial20.
A Rússia não quer substituir a ordem mundial liberal por um mundo
sem regras, mas acredita que um tal mundo seja o estado natural da
Humanidade e, portanto, esse caos só poderá ser evitado através do
exercício criativo do poder por um soberano forte. E isto não se aplica
menos às relações internacionais do que à política interna. O caos nunca é
completamente ultrapassado. Continua a existir mesmo por debaixo do
verniz da civilização e o papel do soberano consiste na sua gestão
adequada, para que não possa atingir a superfície. Putin sempre pensou que
uma democracia genuína não é possível na Rússia porque os que estão no
poder nunca sobreviveriam se fossem despojados dele. Os seus anos de
aprendizagem foram menos durante o último período soviético do que
durante a brutal política da era Iéltsin, em que o Presidente teve de lutar
duas ou três vezes pela sua sobrevivência física. Como o jornalista
britânico, nascido na Rússia, Arkady Ostrovsky mostra no seu livro A
Invenção da Rússia, até a televisão acabou por absorver a dialética do poder
e do caos, com novos programas em que Putin projeta uma imagem de
estabilidade e calma, enquanto os violentos dramas criminosos criam uma
imagem de desordem total. Como um antigo general dos serviços de
segurança explica, «este dilúvio de violência explícita não foi uma resposta
à intensa procura dos espectadores, mas uma política consciente forjada nos
níveis superiores da estrutura de poder russa, para criar a impressão de que
apenas o Estado forte retratado nas notícias poderia proteger a população
vulnerável da violência que aparece nos ecrãs21».
Uma das consequências, claro, é que, uma vez que o poder necessita da
presença latente do caos como fonte de legitimação, então o próprio caos é
legitimado e, ironicamente, poderá mesmo ser celebrado. Quando a Rússia
prossegue ativamente a desestabilização de países como a Ucrânia, isso é
em parte para apelar a uma hierarquia do poder bastante grosseira, entre
aqueles Estados que conseguem criar a ordem no interior das suas fronteiras
e aqueles que falham nesta tarefa básica. Na mesma linha, a multiplicação
de polos de conflito e de conflitos congelados aumenta o poder daqueles
únicos Estados que podem resolver tais questões. Para começar, o Ocidente
tem uma aversão tão profunda a lidar com a instabilidade e o conflito que a
forma segura de repelir o seu avanço sobre o «exterior próximo» russo é
instrumentalizar conflitos por resolver e disputas fronteiriças. Na verdade,
dos seis países que formam a Parceria Oriental – a iniciativa da União
Europeia que orienta as relações com os vizinhos orientais – apenas um, a
Bielorrússia, não se encontra atingido por um conflito interno por resolver,
com envolvimento russo militar e político. Segundo, dado que a
perturbação é criada por Moscovo, a ordem apenas poderá ser restabelecida
por Moscovo. O nível de conflito e de caos pode ser diretamente
correlacionado com o poder necessário para os gerir.
Putin gosta de colocar a questão acerca de quais deverão ser as regras a
reger o sistema global, não em relação aos valores morais e políticos –
como os líderes ocidentais gostam de fazer – mas quanto ao caso extremo
em que simplesmente não existem regras. Num discurso proferido no Clube
de Debate Internacional Valdai em 2014, perguntou, de forma algo astuta:
«Então, o que nos estará reservado se escolhermos viver não por regras,
mas sem quaisquer regras? E esse cenário é inteiramente possível; não
podemos descartá-lo, dadas as tensões na situação global.» Obviamente,
não é essa a via que está a recomendar, mas o contraste com as ideias
ocidentais não deixa por isso de ser nítido: a ordem é criada a partir do caos
e não a partir de valores e regras universais que o Ocidente proclama como
válidos e bons para todos, mas que são meramente o exercício unilateral de
legislar o poder através do soberano em funções.
Há na Rússia uma notável continuidade entre a política externa e a
interna e, de facto, existem desenvolvimentos recentes que poderão apontar
para uma completa fusão. A princípio, poderia pensar-se que é nos assuntos
internacionais que o caos e a força estarão sempre presentes, na ausência de
um poder comum organizado, mas a inércia é também aí uma força
poderosa e, na Rússia, pelo menos o Estado não está constrangido por
regras e procedimentos estritos, nem sequer na sua conduta interna. Receia-
se que a repressão organizada comece a parecer-se com uma guerra contra
um inimigo externo. Ao escrever em 1990, o poeta russo Joseph Brodsky
conseguia já ver como a década seguinte seria de caos e contradições, mas
compreendia também a relação próxima entre o caos e o poder político,
pelo menos na Rússia: «Este caos e estas contradições são, de facto, uma
garantia da estabilidade de um poder que está a tentar criar a ordem a partir
do caos e a encontrar soluções para os problemas.22» Observava também
que os últimos dias da União Soviética não poderiam deixar de se tornar um
objeto de fascínio universal pela forma como evidenciavam uma verdade
existencial. Num mundo privado do poder da religião revelada, temos de
encarar o facto de que ninguém sabe como viver. Alguns contentar-se-ão
com uma rotina ou outra e nunca perguntarão como deverão passar os seus
anos limitados neste planeta. O regime político sob o qual vivem, incluindo
o democrático, se for esse o caso, empurrá-los-á ou arrastá-los-á em
determinada direção e fornecer-lhes-á o consolo de que, qualquer que seja a
vida que levem, será o mais próxima possível do ideal. Brodsky pensava
que teria de dar o crédito ao moribundo Governo soviético de nem sequer
tentar evitar, simplificar ou disfarçar a questão. Não havia resposta, não
havia sentido para a vida e as pessoas tinham simplesmente de aceitar isso.
Conforme o romancista Victor Pelevin escreve em O Livro Sagrado do
Lobisomem, a substância da vida humana na verdade varia muito pouco de
cultura para cultura, mas os seres humanos exigem uma bela cobertura para
a tapar. A cultura russa, singularmente, não a fornece e chama a este estado
de coisas «espiritualidade».
Gleb Pavlovsky, um estudante dissidente dos tempos soviéticos que se
tornou um dos principais conselheiros de Putin na gestão da opinião pública
russa, observa num livro recente que o fundador do presente sistema russo,
Boris Iéltsin, era alguém psicologicamente predisposto a adorar surpresas e,
o que talvez seja mais importante, a aproveitar-se delas23. Esta
característica tornou-se uma peça mais ou menos permanente do sistema. O
seu sucessor, cuidadosamente escolhido, embora desenvolvendo toda uma
tecnologia para gerir surpresas, sabe que estas são indispensáveis. Toda a
ação rápida e inesperada deixa o público espantado e reforça a distinção
entre os governantes e os governados, uma distinção que as democracias
europeias têm tentado dispensar durante muito tempo. A hierarquia é
definida por referência a regras, mas não é definida pelas regras. Aquilo que
estabelece uma posição no sistema é a forma como nos relacionamos com
as regras: se as seguimos todas as vezes, se temos liberdade para as infringir
e, finalmente, se podemos agir com total indiferença pelas regras. Em geral,
as decisões não são tomadas sob uma norma, mas dizem respeito ao que
fazer com uma norma.
No topo da pirâmide situam-se aqueles que fazem as regras. Na Rússia,
por muito estranho que isso possa parecer aos olhos ocidentais, aqueles que
fazem as regras não sobreviveriam se não lhes fosse permitido infringi-las –
e, se não sobrevivessem, não haveria qualquer espécie de regras. No fundo
da pirâmide, ou melhor, por baixo dela, encontra-se algo infinitamente mais
interessante do que os reguladores ou as regras visíveis. As democracias
europeias baseiam-se num sistema de regras e estas formam uma membrana
impenetrável, de modo que nos encontramos sempre sob uma regra
qualquer. O sistema russo baseia-se no caso extremo; quando a regra deixa
de se aplicar, a cortina da ordem é afastada para o lado e o espetáculo nu do
poder que faz as regras torna-se súbita e inesperadamente visível. «O
Ocidente é governado por regras, a Rússia faz as regras. Logo, a Rússia
devia governar o Ocidente.» Foi assim que Vladislav Surkov – que é,
juntamente com Pavlovsky, uma das duas metades da famosa máquina
política do Kremlin – me explicou um dia a sua visão do mundo.
Pavlovsky observa que o Kremlin não tem de esperar por que estas
condições extremas se materializem. Pode organizá-las ou fabricá-las. O
caso clássico, explorado na literatura política desde os gregos, é o de um
príncipe que organiza uma conspiração contra si próprio, para poder expor
os seus inimigos e destruí-los numa exibição pública da inutilidade de
alguém se revoltar contra o Estado. De uma forma mais geral, se o poder
floresce ao vencer a oposição e se, como o corpo humano, precisa de ser
exercitado, seria perigoso entregarmo-nos em demasia a uma vida ociosa. O
poder nasce do esforço para criar ordem a partir do caos e, se houver falta
de caos, o próprio poder deverá fornecê-lo em doses adequadas. Sabemos
que Putin pensa assim porque, pelo menos numa ocasião, não se coibiu de
proclamá-lo. Dirigindo-se à multidão durante um concerto festivo na praça
moscovita Vasilyevsky Spusk, que marcava o primeiro aniversário da
anexação russa da Crimeia, reafirmou a sua opinião de que a Rússia e a
Ucrânia são um só povo, antes de se voltar para os desafios enfrentados
pela Rússia. Depois, acrescentou: «Nós continuaremos a avançar.
Fortaleceremos o nosso Estado e o nosso país. Ultrapassaremos as
dificuldades que tão facilmente nós próprios criámos durante estes tempos
recentes.»
Aqueles que, como Pavlovsky, conhecem a partir de dentro como o
sistema funciona, aqueles que viram a besta de perto, regressam
impressionados com a sua natureza caótica. É evidente que o Presidente
Putin não estabeleceu um claro canal de poder através do qual as decisões
sejam transmitidas até aos níveis mais inferiores do Estado. Não tem
incentivo para o fazer. Todas as decisões são reféns do destino: quanto mais
claras forem, mais fácil será mostrar que estavam erradas, quando as coisas
dão para o torto. Putin prefere enviar mensagens ambíguas. Põe toda a
gente a adivinhar o significado das suas palavras. No caso de as coisas
correrem mal, foi apenas porque esse significado não foi corretamente
interpretado. Sob estas condições, o caos está destinado a crescer, mas é
entendido como produtivo e capaz de reforçar o poder estatal.
O sistema russo orgulha-se de se sentir confortável com a ambiguidade
e isto significa também que as linhas que separam diferentes esferas há
muito que foram esborratadas, num sentido muito mais profundo do que
poderá parecer à primeira vista. Por exemplo, embora sendo óbvio que os
financiamentos e favorecimentos estatais são abundantemente utilizados
para enriquecer empresários e empreendimentos privados, é contudo difícil
dizer se o Estado foi capturado pelos oligarcas, ou se é o contrário que
acontece. Esses financiamentos, uma vez em mãos privadas, não são apenas
usados para comprar mansões e iates, mas são frequentemente canalizados
para a realização de objetivos importantes mas secretos do Estado russo, na
sua tentativa de aumentar o controlo sobre Governos estrangeiros. Para dar
um exemplo, a Marshall Capital, uma empresa de participações privada
dirigida por Konstantin Malofeyev, não beneficiou apenas de contratos
governamentais e informação privilegiada. Também reinvestiu alguns dos
lucros no financiamento da guerra na Ucrânia.
Parte do problema é que um país sujeito a uma forma forte de
governação pessoal não pode confiar num enquadramento estável e
previsível. Está refém dos variáveis estados de alma do seu líder ou líderes.
Como o romancista Vladimir Sorokin escreve, «a roda da imprevisibilidade
rodou; as regras do jogo foram estabelecidas». Putin tornou-se a
«caprichosa e imprevisível Rainha de Espadas»24. Mais importante, um
sistema que não conseguisse incorporar uma dimensão do caos, que
empurrasse para o exterior a irracionalidade do mundo, tornar-se-ia
vulnerável a esse próprio caos que irrompesse do exterior. Finalmente, o
poder não é poder se não for exercido e o maior dos poderes tem de ser
exercido contra a maior das oposições, a maior ameaça à ordem política. O
poder torna-se o mais aterrador possível se for capaz de assegurar a
permanente ameaça de caos, caso aqueles que estão sob ele saibam que, se
esse poder for afastado, o mundo entraria de imediato numa era de agitação
e tumulto.
É por essa razão que a política na Rússia pode ser precisamente definida
como a gestão do caos.

O Natal em Grozny
Em 1999, quando era primeiro-ministro, Putin disse numa entrevista
televisiva: «Falando metaforicamente, a Chechénia está em todo o lado.
Não apenas no Cáucaso do Norte.» Queria dizer que o caos e a desordem
estavam presentes em toda a parte na Rússia, com a Chechénia a representar
apenas a sua manifestação mais extrema e visível. Hoje, Putin poderia
repetir a frase «A Chechénia está em todo o lado», mas com um significado
diferente. Agora, é um símbolo de estabilidade nacional, embora a
estabilidade não tenha substituído o caos, mas antes se tenha sobreposto a
ele. Tal como durante os anos de Iéltsin, o sistema russo encontra aqui a sua
forma mais pura, que bem nos poderá fornecer uma antevisão daquilo em
que a Rússia se tornará no futuro. Se o poder estatal da Rússia usa por vezes
o caos ao mesmo tempo que o mantém à distância, na Chechénia essa
distância desapareceu. Se, na Rússia, o Estado nunca permite que a
possibilidade do caos desapareça do espírito das pessoas, aqui nunca
desaparece da sua própria experiência. Àqueles que possam sonhar em
perturbar a ordem existente responde oferecendo como ordem estável
apenas as súbitas e espetaculares ações do aparelho de Estado, que se
parece e atua mais como uma força revoltosa do que como um órgão de
execução da lei e da segurança. É como se o poder estatal, tradicionalmente
definido como o baluarte da ordem, tivesse decidido lutar contra o caos
absorvendo-o em si, tornando-se a sua única morada e, por último, o seu
pátio de recreio. O Estado não aspira a vencer e substituir o caos, mas a
nacionalizá-lo ou, por outras palavras, a adquiri-lo e desfrutar do seu
monopólio.
Em 2003, as Nações Unidas chamaram a Grozny, a capital da
Chechénia, a cidade mais destruída da Terra, o resultado de duas guerras
extraordinariamente brutais. Na primeira (1994­-1996), a Rússia perdeu
mais tanques do que durante a batalha de Berlim, na Segunda Guerra
Mundial. A segunda (1999­-2000), sob a liderança do recém-nomeado
Vladimir Putin, devia ser o derradeiro ajuste de contas com as aspirações
independentistas da Chechénia. A cidade foi arrasada e Putin, deleitando-se
na glória militar, ungiu Akhmad Kadyrov como o seu homem em Grozny.
Depois de o anterior Mufti Supremo ter sido assassinado em 2004, o seu
filho Ramzan levou a cabo a tarefa de desenraizar a revolta nas montanhas e
começar a reconstrução.
«Gostaria de determinar oficialmente», anunciara o todo-poderoso
Presidente da Chechénia, Ramzan Kadyrov, às suas forças no início de
2015, «que abram fogo se alguém de Moscovo ou de Stavropol – não
interessa de onde – aqui aparecer sem o vosso conhecimento». Eu sabia que
ele estava a referir-se a um oficial da segurança ou a um soldado armado,
mas mesmo assim tornou a minha chegada ao hotel de Grozny ligeiramente
mais enervante. Assim que entrei no átrio dei de caras com dois homens
com uniformes pretos justos, cada um com um revólver à cintura e sem
qualquer insígnia militar ou policial a não ser duas bandeiras bordadas nas
mangas: a chechena na direita e a russa na esquerda.
Iria ouvir falar muitas vezes destes agentes com ar de ninjas durante os
dias seguintes. Suscitam uma mistura de admiração e terror entre as pessoas
de Grozny. Houve um homem que me disse preferir evitar qualquer
contacto com eles, porque depois iria ficar enervado durante duas semanas.
É melhor não brincar ao pé deles e nem sequer os fitar. Outros descrevem-
nos apenas com objetividade científica como «homens muito fortes».
Ninguém tem a certeza absoluta se serão polícias ou militares. Oficialmente
pelo menos, o uniforme preto não é fornecido com base em qualquer
regulamento militar ou policial. «São mais do que polícias» é a melhor
explicação que oiço.
Por toda a parte em Grozny encontramos a todo o momento polícias
fortemente armados, pessoal militar e paramilitar – patrulhando as estradas
e as ruas, ou guardando locais sensíveis como centros comerciais ou a
recém-reconstruída Igreja do Arcanjo Miguel. Há mais agentes armados nas
ruas do que fregueses. Mas as Forças Especiais que encontrei à chegada são
de uma classe à parte: não sabemos onde estarão porque não parecem ter
uma tarefa definida. Estão sempre ocupados, como se estivessem numa
missão ou num serviço e podem ser subitamente vistos num sítio qualquer:
no bar do nosso hotel, correndo direito a nós, quase escorregando no
pavimento gelado, subindo as escadas de uma galeria comercial na Avenida
Putin, no centro da cidade. Um par de repórteres dos meios de comunicação
ocidentais escreveu que estão por todo o lado. Isso não é simplesmente
verdade. São mesmo difíceis de localizar, uma certa espécie de rara avis, de
ave rara. Mas o facto de poderem estar em qualquer lado em qualquer altura
cria uma impressão de ubiquidade que é mais forte do que a realidade. São
dirigidos por um homem a quem todos chamam o «Patriota» – o segundo
homem mais poderoso da Chechénia, mas cuja única posição oficial parece
ser a de presidente vitalício do Clube de Luta de Akhmat.
É 6 de janeiro, véspera de Natal na Rússia e fui assistir a uma das
sessões de treino do Clube de Luta. Realiza-se no Coliseu de Grozny, um
complexo desportivo novo em folha, com arquitetura de ponta, sobretudo
dedicado às Mixed Martial Arts – o desporto com o crescimento mais
rápido do mundo –, ao boxe e à luta. Quando foi construído, houve vozes na
Rússia, e mesmo na Chechénia, que apontaram rapidamente para os
perturbantes ecos da antiga Roma, pelo menos na versão de Hollywood,
com as suas arenas, gladiadores e acima de tudo – oferecendo circenses às
massas – Nero, o imperador. A comparação está carregada de perigo
político, mas não é a primeira vez que encontramos utilizações da cultura
popular em Grozny, uma capital pós-moderna no coração do Cáucaso russo.
Os jovens que conheci na sessão de treino são muito diferentes dos
membros das Forças Especiais que formaram o núcleo original do Clube de
Luta. São jovens gentis oriundos de círculos vulneráveis, que foram
receber-me educadamente quando cheguei e ouvem as instruções técnicas
do treinador com imensa atenção. Um deles contou-me mais tarde que está
a tentar deixar de fumar. É muito mais difícil fazê-lo na Chechénia do que
na Europa, explica. «Na Europa, anda-se sempre descontraído, mas aqui
nunca estamos à vontade, na presença da família ou de pessoas mais velhas,
ou das raparigas. Tem de se estar sempre apresentável e a tensão acumula-
se.» No balneário, talvez consiga encontrar relaxamento com uma
fotografia de parede a parede de Ramzan Kadyrov, flanqueado pelo seu
primo – o lutador Abdul-Kerim Edilov – e o «Patriota», Abuzayd
Vismuradov.
Não existem discotecas nem bares em Grozny. O único sítio onde o
álcool pode ser legalmente vendido é o Grozny City Hotel, onde estou
hospedado, um arranha-céus coberto de néon, de cinco estrelas e 32 pisos,
que parece não ter mais de 10 ou 20 hóspedes de cada vez. Em vez disso, os
cafés da baixa anunciam «saudáveis cocktails de fruta». Este é o islão pós-
moderno, onde tudo é dito e feito com um piscar de olho. O meu anfitrião
nessa noite tenta explicar-me essas contradições observando que os
chechenos vivem dentro de um quadrado cujos quatro cantos são: a cultura
tradicional chechena, a cultura russa, o islão e, em último lugar mas não
menos importante, o Ocidente – que adotam muito mais entusiasticamente
do que a Rússia, um resultado das experiências que os refugiados da guerra
trouxeram consigo ao regressarem da Europa e da América, mas também
uma forma de resistir à assimilação cultural russa.
O reforço da moral faz parte das incumbências das Forças Especiais do
Presidente, os homens de uniforme preto que vi a beberem refrigerantes de
laranja por uma palhinha no bar do hotel. É tanto um símbolo do seu
estatuto secreto como das contradições culturais da Chechénia
contemporânea aquilo que oiço nos diferentes testemunhos nesta área, com
alguns a afirmarem que as Forças Especiais espancaram mulheres por não
usarem lenços na cabeça, enquanto outros contam histórias sobre como
arrancaram brutalmente os lenços às mulheres e às raparigas mais
radicalizadas. Todas as mulheres em Grozny usam lenço, mas as mais novas
combinam-no com saltos altos e roupas justas. Também elas vivem dentro
do quadrado cultural checheno.
Hoje em dia já não se vê quase nada da velha Grozny. Ainda é um local
muito perigoso, claro – uma cidade onde uma das atividades mais lucrativas
é raptar russos e estrangeiros e pedir um resgate. Também se tornou numa
das maiores fontes da Europa de combatentes estrangeiros que vão para a
Síria juntar-se às fileiras do Estado Islâmico. Mas, se treparem ao bar
Kupol, no topo do Grozny City Hotel, o que veem é uma imitação do
Dubai, cheia de impressionantes arranha-céus, centros comerciais, uma
orquestra filarmónica tirada dos livros e a maior mesquita da Europa – e
também uma das mais belas. Um grande globo com as palavras «Grozny é
o centro do mundo» decora a rotunda à entrada da cidade.
Houve muitas poupanças indevidas nessas obras, financiadas sobretudo
através do orçamento federal russo. Testemunhas locais contam-me como o
globo já foi duas vezes deslocado da sua base pelos ventos fortes, rolando
estrada abaixo. Na minha última noite em Grozny, o Presidente Kadyrov foi
ao meu hotel para se dirigir a um batalhão de trabalhadoras beneficentes da
Fundação Akhmad Kadyrov, uma organização dirigida pela sua mãe. Peço
na receção que me façam sinal quando o Presidente chegar, mas eles
respondem secamente que sem dúvida irei notar quando isso acontecer. E,
de facto, é verdade. Juntamente com as cem jovens de uniformes verdes e
as Forças Especiais de Kadyrov de preto, dezenas de bombeiros irrompem
de súbito pelo átrio. Há um incêndio num dos pisos, nada de muito
surpreendente numa cidade onde materiais e revestimentos adulterados são
constantemente utilizados.

Kadyrov já conseguiu consolidar por completo o seu domínio. Ele e os


seus homens aperfeiçoaram uma forma de controlo político reminiscente de
um filme de gangsters. Poucos se atrevem a sussurrar sequer a mínima
crítica ao Governo. Na véspera de Natal sou convidado para jantar com um
velho engenheiro civil em Germenchuk, na estrada que leva de Grozny às
montanhas. Viveu na Turquia muitos anos, mas regressou à sua aldeia natal,
vivendo junto a um canal escavado pelo seu avô. Ele e a esposa trazem uma
garrafa de whisky para a mesa e ele desculpa-se com o feriado religioso, que
não lhe permite que se junte a mim. A conversa flui mais ou menos
livremente para Putin e a política russa, incluindo as suas muito
dispendiosas aventuras na Ucrânia e na Síria. Putin está muito longe. Não
lhe importa o que um velho engenheiro nos arredores de Grozny pensa
sobre ele, o mal que pensa dele. Mas Kadyrov está próximo, ou antes, em
todo o lado, e para ele tudo é pessoal. Existe uma regra não­-expressa para
que não se mencione o seu nome e claro que respeito suficientemente o meu
companheiro de jantar para não tentar quebrá-la.
Quando se sabe que alguém criticou Kadyrov ou a sua entourage,
poderá sofrer um destino semelhante ao do cantor Khusein Betelgeriev. Na
noite de 31 de março de 2016, dois homens em uniformes pretos não
identificados chegaram num carro preto a sua casa em Grozny. Ordenaram-
lhe que os acompanhasse e, quando a esposa tentou ligar-lhe para o
telemóvel 15 minutos mais tarde, ninguém respondeu. Nos 10 dias
seguintes ninguém soube nada sobre o seu destino ou paradeiro. Sobreviveu
ao suplício, mas foi gravemente espancado. Dois outros chechenos, Rizvan
Ibraghimov e Abubakar Didiev, desapareceram a 1 de abril em
circunstâncias semelhantes e reapareceram alguns dias mais tarde, depois
de um encontro com Kadyrov – durante o qual, como o Presidente relatou
na sua conta do Instagram, os dois apresentaram desculpas pelas suas
publicações. Em novembro de 2015 as forças de segurança cercaram toda
uma vila chechena de mais de 17 mil pessoas, depois de alguém ter
alegadamente queimado uma bandeira com a fotografia de Kadyrov ou da
sua mãe. Até os culpados terem sido descobertos, não foi permitido que
ninguém entrasse ou saísse da vila. Mais recentemente, em abril de 2017,
organizações dos direitos humanos começaram a receber mensagens
segundo as quais as forças de segurança da república estavam a deter
homens suspeitos de serem homossexuais. À medida que chegava mais
informação, tornava-se claro que estas detenções eram uma ocorrência em
massa e que muitas das vítimas estavam a ser torturadas e executadas. Os
seus corpos foram atirados para os pátios das suas famílias e, nalguns casos,
os corpos ficaram a apodrecer porque, segundo algumas interpretações do
islão, os homossexuais não devem ser enterrados.
O culto da personalidade é tão extravagante, os poderes pessoais de
Kadyrov são objeto de tanta adulação, que toda a cidade desenvolveu uma
fixação pelo fitness e pelo body-building, respondendo ao gosto do líder por
essas atividades. Algumas das maiores e mais movimentadas lojas da cidade
vendem infindas variedades de equipamento desportivo. Um jovem
pensativo que conheci quando visitava o Coliseu perguntou-me de repente
se o mesmo mecanismo poderia ser usado para criar uma sociedade
devotada não à força física mas à inteligência e ao conhecimento. Podia,
respondi, recordando como a tirania e a filosofia andavam juntas no antigo
pensamento grego. Ele quer saber por onde se deveria começar e quais os
primeiros passos a dar. O seu plano parece ser o de levar a ideia às pessoas
próximas de Kadyrov.
À meia-noite, paro junto à Igreja do Arcanjo Miguel. Sou revistado por
uma unidade paramilitar à entrada, o que parece justificar-se, pois este seria
um alvo potencial na véspera de Natal: as pessoas em Grozny disseram-me
que no passado nenhum ataque teria um alvo puramente religioso, mas a
revolta armada contra o Estado russo está a mudar depressa e tem agora
uma base muito mais obviamente religiosa. A igreja estava toda preparada
para a data, mas, quando entrei, esperando encontrar uma pequena
multidão, havia apenas duas pessoas de pé junto ao ícone da Natividade,
duas sombras na escuridão. Grozny poderá ter sido reconstruída na íntegra,
mas é claro que os russos não regressaram. A cidade está agora mais
homogénea – étnica e religiosamente – do que em qualquer outra altura da
sua conturbada história.
No dia seguinte regresso uma última vez à mesquita de Akhmad
Kadyrov. Comecei a gostar muito das suas linhas austeras e do sossego lá
dentro, mesmo podendo albergar 10 mil fiéis de cada vez. Uma longa fila
de homens perfeitamente alinhados executa a prostração. Fico de pé alguns
metros atrás, perguntando a mim próprio se alguma coisa em Grozny
poderá ser apelidada natural ou espontânea. Na grande praça cá fora há um
pequeno e bastante maltrapilho circo, vindo da distante Chelyabinsk para a
época dos feriados. Há mulheres e crianças a fazer fila para comprar
bilhete. Os homens ainda estão na mesquita, mas suspeito que, de qualquer
modo, nunca viriam.
Talvez não haja nada como um pequeno circo russo de província para
vos recordar a tristeza da condição humana. Até os pequeninos macacos e
poodles parecem estar desesperados, executando os seus truques sem
esperança nem convicção. Decidi esperar pelo equilibrista, que pelo menos
corre algum perigo. O arame não está a mais de dois ou três metros do chão,
por isso é bastante aborrecido até que ele decide percorrê-lo coberto por um
longo pano negro e segurando uma haste metálica para ganhar equilíbrio
que facilmente poderia trespassar os que estão cá em baixo. Não posso
deixar de me perguntar se pretende exibir um grande ato de coragem, ou
apenas assustar o público. Por vezes, isso parece um símbolo apropriado a
Grozny.
8

TÚNEL EURÁSIA

Rainha da Eurásia

A
experiência de atravessar o Bósforo é sempre singular. Os
romancistas contemporâneos turcos que escrevem sobre Istambul
reservam invariavelmente algumas páginas para descrever a poderosa
sensação de tomar um dos ferries e ser transportado para um mundo onírico
povoado por petroleiros, gaivotas e o forte ímpeto da corrente lá em baixo.
Os livros mais antigos falam sobre como a vida na cidade foi mudada com a
chegada dos primeiros ferries a vapor no século XIX, acrescentando o fumo
negro das suas chaminés ao magnífico horizonte de Istambul. Depois
chegou a era das maciças pontes sobre o Bósforo, quando a cidade
descobriu como era realmente gigantesca. Em ambos os casos, continua a
haver uma vívida experiência de atravessar a antiga separação entre os dois
continentes. No final de 2016, aconteceu eu estar em Istambul no dia em
que o novo túnel que ligaria os lados europeu e asiático da cidade ia ser
inaugurado, por isso fiz questão em acordar muito cedo para estar entre os
primeiros a atravessar. O meu percurso de cinco minutos de táxi através do
Túnel Eurásia iluminado a néon – cem metros abaixo da superfície – foi
diferente, como se a distância tivesse sido anulada e o próprio Bósforo
tivesse desaparecido da vista.
Os turistas em Istambul não se conseguem conter: perguntam
constantemente se este ou aquele lugar é do lado europeu ou do lado
asiático do Bósforo, ficam maravilhados com os residentes da cidade que
viajam diariamente para o trabalho entre os dois continentes e especulam
acerca das profundas diferenças culturais entre os bairros dos dois lados. A
realidade, claro, é mais complicada. Todos os lugares em Istambul têm dois
lados. O turismo está concentrado na costa europeia, mas o mesmo acontece
com a maioria dos bairros tradicionais e devotos de Istambul. O meu
favorito é Fatih. Toda a raça humana se junta em Fatih: mulheres cobertas
por xadores negros, pequenos negociantes, prostitutas, vendedores
ambulantes, estudantes, imigrantes recentes e refugiados da Síria ou do
Afeganistão. Muitas lojas de rua têm tabuletas em árabe, nalguns casos
porque os proprietários são árabes, noutros em sinal de respeito pela
tradição e pela religião.
O Presidente Recep Tayyip Erdoğan é enormemente popular nestas ruas.
A sua imagem está por todo o lado em Fatih, desde grandes cartazes que
cobrem edifícios inteiros até pequenas fotografias nas montras ou nas
barbearias. Para as pessoas daqui, Erdoğan é responsável por ter reposto o
lugar da religião na esfera pública. Os fiéis turcos explicarão como antes de
ele se encarregar da política turca, há 15 anos, a religião era algo de que
deviam ter vergonha e que estava estritamente reservado à esfera privada.
Agora é possível uma mulher usar um lenço de cabeça com orgulho e não
se sentir relegada para um estatuto de segunda classe. Na sociedade turca, a
religião e a classe social estão intimamente ligadas, mas no final a classe é
mais importante (a Turquia e a Grã-Bretanha são os dois países que
conheço onde a classe de algum modo está sempre presente no espírito de
toda a gente). As divisões são profundas, mas são divisões sociais e
políticas. É revelador que a bandeira verde do Califado Otomano não se
encontre em lado nenhum em Fatih – o lugar onde poderia talvez ter
sobrevivido ou conhecido um regresso –, ao passo que a bandeira vermelha
do Estado turco está por todo o lado.
A estrutura social existente é ferozmente defendida pelas classes
superiores turcas, educadas segundo modelos imaginários da vida europeia
civilizada. É preciso atravessar o Corno de Ouro e passear pelas ruas de
Nişantaşi para as ver no seu habitat natural. Fatih e Nişantaşi ficam ambos
do lado europeu do Bósforo, mas não poderiam ser mais diferentes.
Parecem também um pouco artificiais, precisamente porque todos nestes
dois mundos tentam apresentar uma imagem mais pura do que a
desordenada realidade da vida humana permite.
A maioria das pessoas em Nişantaşi vota ao desprezo a gente de Fatih.
Para elas, a classe trabalhadora pertence a um mundo diferente: pobre,
primitivo, sujo, irracional, talvez até violento ou perigoso. Para as elites, os
últimos 15 anos têm sido um perfeito pesadelo. Tiveram de assistir à forma
como o lado reprimido da vida turca veio à superfície em erupções cada vez
mais violentas, ameaçando inverter o curso do progresso e, talvez com
maior prejuízo, expondo o oásis de Nişantaşi como uma espécie de farsa.
Secretamente, odeiam Erdoğan. Em público, têm de se reconciliar com ele.
É difícil ter uma carreira com sucesso na Turquia se se odiar o todo-
poderoso Presidente e como é que alguém jovem e completamente
europeizada poderia não ter uma carreira de sucesso? Mas isso é apenas
metade do problema. Como hão de convencer os seus amigos europeus de
que a Turquia é tão europeia com a Alemanha ou a França, se todas aquelas
velhotas cobertas de xadores já não ficam em casa e se sentem à vontade
para andar pelas ruas de Istambul? Afinal de contas, não são imigrantes,
mas turcas, tão turcas como as jovens profissionais de Nişantaşi ou de
Cihangir.
Se Nişantaşi é uma peça de teatro mal escrita, algumas partes de Fatih
não são menos artificiais. Se caminharem pelo bairro de Çarşamba numa
sexta-feira, todos os homens terão barbas e estarão vestidos com longos
capotes, chamados cubbe, e com solidéus brancos. Poderão ter as testas
calejadas das marcas da oração, por isso, subitamente e sem qualquer
transição, o visitante será transportado até aos primeiros dias do islão – com
muitas das influências aqui presentes completamente estranhas à vida turca,
cujas tradições islâmicas diferem muito significativamente das árabes.
Quase todas as lojas servem os fiéis, vendendo Alcorões ricamente
decorados, roupas tradicionais, tapetes de oração e mesmo miswak, um
galho para limpeza dentária preferido pelos fiéis. Existem alfaiates em
Çarşamba que produzem roupas costuradas de acordo com os costumes
praticados no tempo do Profeta. Desnecessário será dizer que as mulheres
da comunidade vestem o charshaff, que deixa apenas os olhos expostos ao
mundo exterior. A Mesquita Ismailaga, mesmo no centro de Çarşamba, é a
sede da ordem religiosa epónima, em que as lutas internas pela liderança
resultaram frequentemente em mortes religiosas. Em 1998, o genro de
Mahmut Ustaosmanoglu, o líder da comunidade, foi esfaqueado na
Ismailaga durante as orações. Em 2006, um ímã retirado foi também lá
apunhalado até à morte, após o que o seu assassino foi linchado logo ali.
Deixemos a Mesquita Ismailaga através da Rua Imam Omer e estaremos
a alguns passos do meu local favorito em Istambul. A experiência de se
chegar pela primeira vez a Çukurbostan não é facilmente captada em
palavras. Estamos a caminhar através de algumas das ruas mais densas de
qualquer cidade do mundo e, subitamente, chegamos a um grande espaço
vazio, enfiado profundamente no chão e ladeado de edifícios que dão para o
vazio. A sua forma é perfeitamente quadrada com lados que medem cerca
de 150 metros, de modo que a área total é quase quádrupla de um campo de
futebol. Dez metros abaixo do nível da rua, este enorme espaço está
ocupado por um par de campos de ténis, campos de futebol, parques
infantis e bancos de piquenique, entre os quais as mulheres –
completamente cobertas de preto – passeiam os seus filhos pequenos.
Ligeiramente desviada do centro, há uma mesquita e o que parece um velho
minarete.
Paramos, olhamos e interrogamo-nos sobre o que poderá aquilo
significar? Porque foi uma linha de edifícios construída de forma cuidadosa
em torno de algo que é tão obviamente mais recente do que aqueles
edifícios? A primeira impressão é estética e traz ao espírito imagens de um
filme de ficção científica, em que a paisagem citadina está marcada por um
poderoso símbolo de um recente desastre ou de um prodígio tecnológico. A
segunda impressão é política, recordando como Erdoğan e o seu Partido da
Justiça e do Progresso redesenharam as cidades turcas para agradar às
classes trabalhadoras e formar um sentido de identidade comunal. A
impressão final é menos imediata mas mais precisa, quando se começa a
suspeitar de que isto deve ser uma porta secreta para o passado, um
daqueles lugares onde a História surge sob a forma de um enigma ou
mistério.
Este enorme espaço vazio foi originalmente uma cisterna, um
reservatório de água ao ar livre, construído por Aspar, um general que
serviu o imperador bizantino Marciano no século V. Na altura em que a
cidade foi conquistada pelos otomanos, a cisterna já estava vazia e era
usada como jardim, daí o nome que ainda hoje ostenta: Çukurbostan, o
Jardim Afundado. Durante o reinado do sultão Solimão, um século mais
tarde, foi construída uma pequena mesquita dentro do reservatório vazio. O
minarete está ainda hoje de pé e é quase de certeza a razão pela qual o nível
inferior foi preservado. Durante os séculos seguintes, a cisterna acolheu
uma pitoresca aldeia rural, cujas casas não atingiam o nível das ruas à sua
volta e que foi ocupada a dada altura por escravos abissínios libertos. Que
lugar extraordinário: íamos a andar pela rua e de repente tínhamos um
telhado aos nossos pés. Existem fotografias muito interessantes da aldeia,
que só foi demolida em 1985, quando deu lugar a um mercado de rua.
Depois do mercado veio um parque de estacionamento e depois o presente
complexo comunitário e desportivo. Talvez seja mais adequado pensar no
espaço vazio como um centro de exposições, onde os diferentes períodos da
História turca foram sucessivamente exibidos.
Quando se olha o horizonte até aos distantes arranha-céus da Avenida
Büyükdere, levanta-se a questão de saber o que virá a seguir. No grande
tabuleiro de xadrez eurasiático nenhuma peça é tão solta e móvel como a
Turquia. Pode deslocar-se qualquer número de casas na vertical, na
horizontal ou na diagonal. Pode ir para oeste, leste, sul ou norte. Não há
sensação de estabilidade, mas de que novas mudanças e revoluções não são
apenas possíveis mas também de algum modo inevitáveis. Isto tornou-se
tangivelmente real na noite de 15 de julho de 2016, quando – enquanto a
maioria dos cidadãos turcos estava sentada a comer um jantar tardio ou a
ver um jogo de futebol na televisão – começaram a surgir notícias de que as
pontes de Istambul sobre o Bósforo tinham sido encerradas e que os jatos
militares turcos estavam a sobrevoar Ancara a baixa altitude.

Quadrado estratégico
Quem esteve por detrás do golpe militar falhado na Turquia nessa noite e
porque é que ocorreu? O único indício seguro acerca das intenções dos
golpistas é, sem dúvida, a declaração lida na televisão na noite do golpe,
mas essa declaração foi cuidadosamente fabricada para ocultar as suas
origens e intenções. Apelava aos valores fundadores da República Turca,
nominalmente partilhados por todos e invocados de forma ritual nos nove
golpes militares, tentativas de golpe e proclamações a que a Turquia assistiu
desde 1960.
A teoria oficial, que depressa passou a ser partilhada por quase toda a
gente na Turquia, é que a culpa deveria ser atribuída ao movimento de
Gülen, dirigido a partir da Pensilvânia, nos Estados Unidos, por um clérigo
retirado, de quem o próprio Erdoğan fora íntimo no passado, mas com
quem se desentendera numa conflagração cada vez mais impiedosa. Gülen
dirige abertamente uma rede vasta de escolas e instituições de caridade, mas
tem uma sólida fama de as combinar com uma rede secreta infiltrada
profundamente no aparelho de Estado da Turquia. Em 1999, a televisão
turca transmitiu um sermão gravado em segredo, no qual Gülen dizia aos
seus seguidores: «Têm de circular pelas artérias do sistema sem ninguém
reparar na vossa existência, até atingirem todos os centros do poder.»
Agirem antes dessa altura em que tivessem tomado todo o poder estatal a
partir do interior «seria demasiado prematuro, como partir um ovo sem ter
esperado os 40 dias para que chocasse. Seria como matar o pinto lá dentro».
Provas conclusivas mostram que a rede trabalhava de facto para se
infiltrar de forma lenta e deliberada em todos os níveis do Estado. Como o
jornalista turco Yıldıray Oğur me disse, esta é a incrível história de um
culto religioso a executar um plano para se apoderar do Estado durante um
período de três ou quatro décadas – matéria para um livro de Dan Brown. É
verdade, mas Oğur consegue fornecer provas sólidas para cada rebuscada
viragem no enredo. Para ocupar as forças armadas turcas com gulenistas, o
exame estatal de acesso à carreira militar era roubado e as respostas
entregues aos candidatos que pertenciam à organização, enquanto
julgamentos viciados, conduzidos por serviços judiciários igualmente
infiltrados, desqualificavam e excluíam alguns dos funcionários colocados
em cargos elevados na hierarquia, abrindo caminho a novos recrutas. Tudo
isto seria executado com o maior nível de dissimulação. Por exemplo, ao
aperceberem-se de que uma tática comum para os identificar no interior dos
serviços militares e de segurança era organizar festas junto às piscinas em
que era suposto os oficiais levarem as esposas, expondo assim
astuciosamente as mulheres religiosas que se recusassem a usar fato de
banho, os gulenistas responderam exibindo-as a usar biquíni.
Gülen é um religioso conservador, mas isso não o impede de estar
alinhado com os Estados Unidos e a União Europeia na política externa. O
gulenismo está muito empenhado no papel da educação e do
empreendedorismo numa economia de mercado. Vê os valores islâmicos e
ocidentais como fundamentalmente compatíveis. A adesão à UE
solidificaria esses elementos do regime turco e ajudaria a coordenação entre
diferentes capítulos da organização através da Europa. O próprio Gülen tem
uma postura crítica dura contra a Rússia e o Irão e tem por vezes apoiado
Israel, falando contra aqueles que adotam uma abordagem de confronto.
Dada a sua mensagem pública de tolerância e de diálogo inter-religioso e os
seus esforços filosóficos para reconciliar o islão com a ciência e a
modernidade, muitos observadores ocidentais têm-no visto como alguém
capaz de desenvolver uma versão moderada do islão e de apontar uma
forma de sair do seu conflito com a sociedade ocidental, algo que o
secularismo tem vindo a ser cada vez menos capaz de fazer. Tem falado
frequentemente contra o terrorismo islâmico e tem sido um apoiante
inequívoco da adesão da Turquia à União Europeia.
Apenas dias depois das acusações oficiais contra Gülen, a trama
adensou-se ainda mais quando Erdoğan declarou, numa entrevista
televisiva, que a derradeira responsabilidade não era de Gülen, mas de um
«espírito superior» que operava acima dele – um código frequentemente
usado no passado como referência ao Ocidente. A perfeita ousadia do que
acontecera parecia requerer o trabalho de uma entidade todo-poderosa e
alguns brincaram, dizendo que talvez o «espírito superior» fosse o próprio
Erdoğan. Na esteira do golpe, as autoridades prenderam 40 mil pessoas e
despediram ou suspenderam 120 mil de um amplo leque de profissões,
incluindo soldados, polícias, professores e funcionários públicos, com base
em alegadas ligações à rede gulenista. Muitos não tinham qualquer ligação.
Na verdade, se todos aqueles que foram presos estivessem envolvidos no
golpe, é difícil ver como poderiam ter falhado.
O gulenismo sublinha a necessidade de esperar pelo momento oportuno
para tomar o poder. Apesar de o facto de ter sido possível executar o golpe
mostrar que a infiltração nas forças armadas tinha progredido, o seu
fracasso é também a prova de que o momento oportuno ainda não tinha
chegado. Mas, com o conflito com Erdoğan a tornar-se cada vez mais mais
veemente, a sensação era a de que se estava a aproximar um confronto final
e os golpistas queriam ser os primeiros a executar a jogada decisiva. É
evidente que os rumores sobre um golpe iminente circulavam intensamente
antes de julho e estava programada uma purga do exército para o fim do
verão. Durante o mesmo período, a Turquia estivera embrenhada em
sucessivas mudanças de direção na sua orientação da política externa,
causando muita angústia e agitação. E é esse o contexto em que o golpe
deve ser interpretado. Uma revolta deste tipo só acontece quando um país
está profundamente dividido, mas as divisões dentro da Turquia eram agora
menos sobre o secularismo do que acerca de um debate ainda mais antigo
sobre a Europa e a Ásia.
As relações com Bruxelas tinham estado a piorar todos os anos desde
meados da década anterior, algo que apenas a necessidade mútua de reagir à
grave crise dos refugiados poderia esconder. Ao nível dos valores políticos
abstratos, a Turquia e a União Europeia poderiam partilhar disposições, mas
a política não é abstrata. Quando se trata de reagir a questões práticas e
urgentes, as duas partes tinham respostas diferentes e as suas relações foram
gradualmente captadas pela lógica sem remorsos da competição. Erdoğan
poderá não ter pretendido tornar-se a principal voz no palco mundial a
desafiar ativamente e a atacar a União Europeia, mas, a partir do momento
em que essa lógica foi estabelecida, o confronto tornou-se inevitável.
Quanto à UE, começou a ver no Presidente turco uma ameaça direta, em
resposta à qual tinha de se tornar mais firme e intransigente. Bruxelas
gostaria que a Turquia fosse uma boa aluna europeia, que mostrasse aos
turcos o que uma Turquia europeia poderia fazer. A Turquia quer fazer as
coisas à sua maneira, algo particularmente urgente numa altura em que
enfrenta um número de desafios e ameaças em relação aos quais os
europeus não podem ajudá-la. Se os turcos têm agora de lidar sozinhos com
os seus problemas, por que razão haveriam de ouvir os europeus sobre
como fazê-lo? A realidade geopolítica recentemente experimentada está na
raiz da fratura entre as duas partes. A União Europeia estava a aprender
depressa que não é possível ser-se amado se não se for temido ao mesmo
tempo.
Depois, houve a questão da Síria. A intenção turca expressa logo no
início da guerra civil síria de depor o Presidente Assad estava a sofrer uma
tensão insuportável. Durante os meses que antecederam o golpe, quando
Washington aceitou a ideia de manter Assad no poder, tornou-se claro que a
Turquia não conseguiria manter a trajetória. Muitas pessoas em Ancara
acharam que a Turquia estava a ser encorajada pelo Ocidente para
confrontar Assad, e depois a Rússia, para depois ser abandonada quando o
fizesse. A debilidade ocidental – ou simplesmente a relutância em projetar o
seu poder – estava a colocar pressão sobre Ancara, de quem agora se
esperava que fizesse aquilo que nem a Europa nem a América tinham
coragem de fazer: derrotar o Estado Islâmico e depor o brutal regime de
Assad. Eram exigências insensatas, que começaram a abrir um cisma entre
os interesses turcos e ocidentais.
O primeiro-ministro Davutoğlu foi substituído no início de maio de
2016, em parte para abrir o caminho para uma completa mudança na
política de Ancara sobre a Síria. Como toda a mudança na política externa,
esta também abria oportunidades. Uma aproximação à Rússia quase
certamente se seguiria se o pomo da discórdia sírio entre elas fosse agora
removido. Davutoğlu, aliás, sempre parecera bastante frio em relação a
Moscovo, o que é ainda mais notável na medida em que é o tipo de
intelectual que gosta de testar todas as possibilidades pelo menos uma vez.
Depois de Davutoğlu ter sido substituído, Erdoğan foi rápido a reatar as
ligações com a Rússia. No final de junho, apresentou desculpas a Putin pelo
abate de um bombardeiro russo por forças turcas sobre a fronteira entre a
Turquia e a Síria, que dera cabo das relações entre os dois países. O pedido
de desculpas apanhou a maioria das pessoas de surpresa, em especial
porque Erdoğan afirmava agora que a Turquia nunca tencionara abater o
avião, embora tivesse anteriormente afirmado que estava pronto para o
fazer de novo e quantas vezes fosse preciso. Para sintetizar, havia pelo
menos dois sinais públicos de que uma importante mudança na política
externa turca estava em andamento: a demissão de Davutoğlu e o pedido de
desculpas de Erdoğan. A estes deverão ser acrescentados numerosos sinais
menos públicos, como as visitas de delegações russas a Ancara e Istambul,
que obviamente não poderiam ter passado despercebidas àqueles com
acesso e conhecimento da política turca.
A questão da Rússia sempre foi importante no interior das forças
armadas turcas. Alguns dos oficiais secularistas e progressistas veem a
Rússia como uma parceira na resistência à hegemonia ocidental global.
Apontam para o início da República Turca e para o apoio que receberam da
União Soviética. Regressar ao espírito original da revolução turca
significaria romper com a ideologia ocidental e virar-se na direção de uma
política económica planeada e socialista, agora segundo o modelo do
Estado desenvolvimentista. O regime de Erdoğan parece ter-se deslocado
alguns passos nessa direção, no que registou a viva oposição de Gülen e os
seus seguidores. Algumas pessoas em Ancara vão ao ponto de advogar a
associação turca à Organização de Cooperação de Xangai – uma
organização intergovernamental fundada em Xangai em 2001 – para
alinharem mais de perto a sua política externa com a Rússia e a China, uma
opção que poderia envolver a retirada da Turquia da OTAN. Muitos outros
recordam a forte rivalidade entre os impérios Otomano e Russo e acham
que, sem o apoio das capitais ocidentais, a Turquia ficaria demasiado
exposta ao poder russo. Os países, em especial os grandes países, deslocam-
se muito devagar quando adaptam a sua política externa a novas
circunstâncias e a intensa rivalidade entre a Turquia e a Rússia tem raízes
profundas na sua competição pelo controlo sobre os Balcãs e os estreitos,
bem como as correspondentes aspirações turcas a um mundo turco
unificado. A aproximação entre os dois países está assim ligada de perto ao
relativo declínio do poder russo. Em termos de alavancagem económica e
de dimensão populacional, a Rússia já não surge como uma ameaça ao
Estado turco, que em qualquer dos casos vê nas grandes minorias tártaras e
muçulmanas dentro da Rússia uma garantia de que Moscovo evitará um
conflito aberto.
Quando o colapso da União Soviética e as reformas económicas radicais
na China abriram a possibilidade de uma novo espaço eurasiático, a Turquia
foi a primeira a abraçar a libertação da velha dicotomia, apressando-se a
desenvolver uma política externa adequada àquilo que o primeiro-ministro
Suleyman Demirel, falando em 1992, chamou «um mundo turco
estendendo-se do Adriático à Grande Muralha da China». A possível
integração na UE já não é vista como uma forma de se juntar à Europa, mas
antes como um passo necessário e significativo no objetivo de tornar a
Turquia uma ponte entre civilizações, a charneira que mantém o
supercontinente unido. A Turquia não está interessada em renunciar à outra
metade da sua identidade histórica – turca, muçulmana, otomana – para se
juntar à UE. Vista de Bruxelas, a adesão turca deveria ser definida da
mesma forma: um primeiro mas vital passo para tornar a União Europeia
uma superpotência eurasiática.
O ressentimento contra a União Europeia e o infindo processo de adesão
– a candidatura da Turquia foi apresentada pela primeira vez em 1987 –
converteu muitos velhos socialistas, nacionalistas e islamistas em
simpatizantes de um profundo realinhamento ideológico e da política
externa. A Turquia sempre esteve inclinada a ver o processo de adesão
como o sacrifício de uma grande parte da sua identidade, algo que poderia
talvez ser tentado se os benefícios fossem substanciais. Esses benefícios
nunca pareceram suficientemente substanciais e agora que alguns deles
foram obtidos através de uma maior integração económica, poderão
começar a parecer insignificantes. Por ironia, se a Rússia foi no passado a
fonte das influências ocidentais dentro do Império Otomano, é agora um
importante agente a afastar a Turquia do Ocidente. Já em 2002 o general
Tuncer Kilinç, do Conselho de Segurança Nacional, sugeria que a Turquia
devia forjar uma nova aliança com a Rússia e o Irão contra a Europa. Nessa
altura, esta era ainda uma ideia nova, difícil de engolir para a maioria, mas
não é já o que hoje acontece. As figuras relativamente marginais que
advogavam então esse realinhamento aproximaram-se da opinião pública
maioritária e, a pouco e pouco, fundiram-se em torno de um movimento
intelectual específico: Avrasyacilik – o Eurasianismo.
Como muitos observaram, isto parece completar o quadrado estratégico
de possibilidades para a Turquia. Tradicionalmente, quando se discutia a
questão da identidade nacional turca, os intelectuais turcos apontavam para
uma de três direções: a Europa a oeste, o islão a sul e as nações turcas no
Cáucaso e na Ásia Central a leste. A discussão remonta ao intelectual tártaro
Yusuf Akçura, o autor de um curto panfleto escrito em 1904, em que três
formas principais de ancorar o Estado otomano numa identidade
permanente são sistematicamente testadas contra possíveis objeções:
primeiro, o conceito político do consentimento derivado da Revolução
Francesa; segundo, uma política de unidade islâmica; e terceiro, uma nação
política turca baseada na raça. Após o final da Guerra Fria, surgiu uma
quarta via, identificando a Rússia a norte como o principal ponto de atração
da geopolítica turca e contemplando o fortalecimento das estruturas estatais
como o projeto ideológico por detrás da opção1.
Entre aqueles que se identificam como eurasianistas, destaca-se um
homem: o presidente do Partido Vatan, Doğu Perinçek. Dedicou toda a sua
vida ao eurasianismo como ideia e projeto político. Passou seis anos na
cadeia, acusado de conspirar para derrubar o regime de Erdoğan, nos
sombrios e venenosos julgamentos de Ergenekon. O tribunal acusou-o de
«estabelecer uma organização terrorista armada para derrubar o Governo»,
mas depois de os gulenistas terem por sua vez caído em desgraça, Perinçek
e outros prisioneiros políticos foram libertados. Nos meses mais recentes,
os seus destinos mudaram abruptamente. Agora, é acusado por alguns na
imprensa turca de ser a eminência parda de Erdoğan e de conspirar para
derrubar um século de orientação turca para a Europa e para a América. É
largamente visto como a mão por detrás dos vastos saneamentos no exército
e nos serviços de segurança que se seguiram ao golpe de julho. O Partido
Vatan, embora recolhendo um apoio negligenciável nas eleições turcas, tem
uma enorme influência dentro dos círculos militares e entre os círculos
intelectuais, representado pelo sucesso do seu jornal diário, do seu canal
televisivo e da sua editora.
Visitei Doğu Perinçek numa sexta-feira de chuva em dezembro de 2016,
um dia depois de atravessar o Túnel Eurásia pela primeira vez. O partido
enviou um carro para me buscar em Beşiktaş. Quando chove, o trânsito em
Istambul torna-se ainda pior do que o habitual. Chegar à sede do partido era
uma tarefa impossível, pois o nosso carro enfiava-se por uma rua estreita
em Beyoğlu e era logo forçado a fazer marcha-atrás quando encontrava
outro carro que tentava descer. Finalmente, o membro do partido que me
escoltava decidiu que tínhamos de ir a pé o resto do caminho. Com uma
hora de atraso, fui recebido por Perinçek à entrada do seu gabinete, cheio de
velhos livros e com vista para o Corno de Ouro.
«Hoje não está muito dourado», observou com um grande sorriso.
Perinçek iniciou rapidamente uma vasta exposição histórica e filosófica
sobre o desafio histórico que o mundo enfrenta. Apontando para mim,
observou que a era da civilização europeia iniciada pelos portugueses e
pelos espanhóis chegara agora ao fim. «É a China que agora lidera a
economia mundial.» As primeiras dores de parto da nova ordem eram para
ele as três revoluções do século XX na Rússia, na Turquia e na China,
quando os herdeiros de três grandes impérios começaram a procurar uma
via nova e independente. Já a encontraram, mas uma aliança estreita entre
as três continua a ser indispensável. «A Turquia tem de se juntar à Ásia.
Esta orientação é irreversível», insistiu Perinçek. Quando lhe perguntei a
razão pela qual o golpe de julho ocorrera, ele não poupou nas palavras: «Foi
uma reação a esta orientação para a Ásia. Foi um golpe instigado pelos
Estados Unidos.»
Perinçek tentou defender que as ligações económicas com a Ásia
estavam a crescer, mas a principal questão para ele é aquilo a que chamou a
«guerra entre os Estados Unidos e a Turquia», que visa apoiar os grupos
terroristas e armados curdos e, eventualmente, fragmentar o país. A Turquia
está portanto à beira de uma resolução histórica, regressando às suas linhas
revolucionárias de desenvolvimento. «Como Atatürk declarou há algum
tempo, a Turquia é uma nação asiática. Rompendo com o sistema atlântico,
ocuparemos o nosso lugar no sistema eurasiático. Todos os equilíbrios no
mundo estão a ser perturbados em resultado disso e a Turquia é um dos
principais atores neste processo pelo qual o mundo está a passar.»
Eu fiquei interessado na citação de Atatürk, o pai fundador da República
Turca, e assim que regressei ao hotel fui investigá-la. Foi proferida num
discurso em março de 1922, acerca das relações entre a Turquia e o
Afeganistão. Atatürk vê os dois países como fortalezas no caminho dos
«invasores ocidentais». Não há qualquer sugestão neste texto, ou noutros
escritos na mesma altura, de que a Turquia tenha qualquer relação com a
Europa que não seja exterior. Uma vez que a Europa está em todo o lado, a
sua política geral diz respeito a todos. Assim, afirma Atatürk, a Turquia está
de olho na Europa, mas permanece um país asiático2.
O Partido Vatan desempenhou um papel considerável na aproximação
entre a Rússia e a Turquia. Ao irmos depois de carro até um restaurante
nessa tarde, Perinçek disse-me que Erdoğan o contactou em março de 2016
para começar a estabelecer contactos preliminares com Moscovo. Como
bom político, Erdoğan talvez não estivesse a fazer mais do que a reagir às
mudanças da opinião pública, mas os crescentes sinais de que estaria a
ponderar uma nova «grande aliança» com Moscovo e Teerão fizeram
disparar os sinais de alarme entre muitos turcos.
Os jornalistas turcos tinham durante alguns meses comentado em
privado que o caça F-16 da Força Aérea Turca que abatera o bombardeiro
russo fazia parte de uma unidade secreta desligada da cadeia de comando.
Foi-lhes dito que se mantivessem calados, mas, na noite do golpe, as
primeiras notícias de que seis F-16 tinham começado a sobrevoar Ancara a
altitude muito baixa e com os seus recetores-transmissores desligados
soaram como uma confirmação. Naquilo que deve ter sido um dos mais
notáveis factos acerca do golpe, sabemos agora que um dos pilotos a bordo
dos caças rebeldes na noite do golpe era de facto o piloto que abatera o
avião russo em novembro de 2015.
A manobra nessa altura interferiu certamente na aproximação entre
Ancara e Moscovo, mas apenas durante alguns meses. Quando foi
retomada, alguns meses antes do golpe, havia uma clara sensação no
interior do movimento gulenista de que um golpe bem-sucedido poderia ser
legitimado, tanto interna como externamente, através de um apelo a uma
política externa mais tradicional. Foi por isso que o comunicado do golpe
insistiu em que, entre as razões para este, estar o facto de «o nosso Estado
ter perdido a reputação que merece na arena internacional», prometendo
simultaneamente que a mudança de regime «recuperaria a reputação
internacional perdida do nosso país e do nosso povo». Com a Europa e os
Estados Unidos cada vez mais incapazes de manterem a Turquia
firmemente sob o seu controlo, o país oscilava entre duas vias opostas, duas
formas de se ver no mundo.
Numa viragem final, houve relatos acerca de um papel direto da Rússia
na noite do golpe fracassado. A Agência Noticiosa Fars, do Irão, próxima do
Governo de Teerão, citou fontes diplomáticas em Ancara como tendo
afirmado que a Organização Nacional de Informações da Turquia recebera
informações secretas da sua homóloga russa que anunciavam um golpe
iminente. A Rússia está singularmente colocada para ter acesso a
comunicações intersetadas, a partir das suas bases de espionagem na
província síria de Latakia. As mesmas fontes diziam que a mudança na
política externa de Erdoğan nas semanas anteriores ao golpe acabou por
salvá-lo, pois não é evidente que os russos, caso contrário, lhe tivessem
transmitido a valiosa informação.
Alguns meses mais tarde, a 20 de novembro de 2016, o Presidente
Erdoğan disse aos jornalistas que viajavam com ele no avião presidencial
que chegara a altura de a Turquia considerar alternativas à União Europeia e
que a Organização de Cooperação de Xangai seria a substituta certa, uma
possibilidade que disse ter sido já discutida com a Rússia e o Cazaquistão.
Um dos ideólogos por detrás da organização, o general Leonid Ivashov,
presidente da Academia dos Assuntos Geopolíticos, de Moscovo, saudou as
suas palavras, dizendo que seria o movimento apropriado para a Turquia e
acrescentando que seria seriamente considerado, desde que Ancara se
retirasse da OTAN. Eu estava em Beijing na altura e fui questionado pela
televisão estatal chinesa sobre se isso seria o anúncio do final da hegemonia
ocidental.
A Turquia não abandonará de forma voluntária a OTAN, mas a questão
do seu papel e obrigações no interior da aliança está agora em aberto. Em
agosto de 2016, pouco depois do golpe falhado, a Turquia iniciou
negociações com o Kremlin para obter sistemas de defesa antimíssil S-400
produzidos na Rússia. A sua liderança da Defesa expressara interesse em
comprar os S-400 desde 2013, quando inicialmente abordara a China. Os
oficiais foram obrigados a cancelar o acordo em novembro de 2015, em
reação à desaprovação da OTAN. Mas agora foi anunciado um acordo de
princípio com a Rússia em abril de 2017, ao mesmo tempo que as tensões
entre a Aliança e o Kremlin atingiam um nível febril. No contexto da
crescente distância entre Ancara e os seus parceiros europeus e norte-
americanos, havia pouco interesse em levantar de novo a questão da OTAN.
Em julho, Erdoğan deu o passo final anunciando que fora assinado um
documento.
Jantei com Doğu Perinçek em Brezza, perto do Aeroporto Atatürk. Foi
quatro dias depois de o embaixador russo na Turquia, Andrey Karlov, ter
sido assassinado, durante a inauguração de uma exposição de arte
contemporânea, por isso a segurança fora previsivelmente reforçada.
Perinçek acha que o assassinato foi mais uma tentativa orquestrada para
afastar a Turquia da Rússia, embora eu esteja convencido de que é uma
reação dos islamitas na Turquia contra a intervenção russa na Síria. Há
ainda outros em Istambul sussurrando que Karlov era o intermediário entre
poderosos grupos de interesses na Rússia e na Turquia e que foi morto por
pessoas desagradadas com os negócios que estavam a ser celebrados para
marcar a amizade recém-descoberta entre os dois países.
A conversa fluiu agradavelmente, apesar de eu ter de adaptar a minha
habitual opinião de que a União Europeia e a Turquia deveriam melhorar a
compreensão que têm uma da outra. O Partido Vatan, afinal de contas, não
está por força desgostoso devido ao facto de a distância e a incompreensão
entre os dois lados continuarem a aumentar. Perinçek estava a ser tão
insistente em que a Turquia deveria virar as costas àquilo a que chama «o
mundo atlântico» que não pude deixar de perguntar-lhe por que razão se
continuava a apelidar «eurasianista» em vez de, por exemplo, «asianista».
Há duas razões, respondeu. Primeiro, uma de ordem prática: a Turquia não
pode simplesmente romper com a União Europeia, com a qual tem
desenvolvido ligações económicas muito profundas. A segunda razão é
mais interessante:
«Consideramo-nos herdeiros da Revolução Francesa. Sem a Europa,
não haveria tradição revolucionária, não haveria iluminismo.»
Quando nos separámos, no final de uma longa noite a beber raki, pedi
mais uma vez desculpa por ter chegado uma hora atrasado ao nosso
encontro. Foi então que descobri que ele esperara duas horas e que a todos
os encontros durante os últimos dias, em vez de ter sido fastidiosamente
pontual, eu chegara com uma hora de atraso, o que fez com que me
interrogasse sobre porque é que ninguém em Istambul mo mostrara ou
exibira o mínimo incómodo. Um ou dois meses antes, a Turquia deveria ter
atrasado os relógios uma hora, mas, por uma decisão governamental, após
uma recomendação do ministro da Energia, mantivera o tempo de poupança
da luz diurna, fazendo com que o país, simbolicamente, ficasse na mesma
zona horária de Moscovo e duplicando a diferença horária em relação a
Paris e Berlim. O meu smartphone ajustara-se à nova zona horária, mas não
às últimas instruções governamentais.
Fez-me pensar nas reformas de modernização impostas por Mustafá
Kemal, mais conhecido por Atatürk. Em 1925, a Turquia mudou
oficialmente para o calendário gregoriano, abandonando os dois calendários
tradicionais muçulmanos, que tinham sido usados durante o domínio
otomano. Tal como em relação à mudança do árabe para um alfabeto latino
modificado três anos depois, o novo calendário produziu um rompimento
com a tradição islâmica e foi fonte de muita confusão. As gerações mais
novas já não conseguem compreender o que significavam expressões como
a «Guerra de 93», ou a «Revolução de 1324», como foi até então conhecida
a revolta dos Jovens Turcos de 1908. Também em 1925, um decreto adotava
a forma ocidental de dividir o tempo do dia, que substituiu os tempos das
orações muçulmanas, marcadas a partir do pôr do sol. Depois, em 1935, o
dia de descanso semanal oficial foi transferido da sexta-feira muçulmana
para o domingo cristão ou ocidental3.
O desejo de mudar a forma como o tempo é medido estar na raiz de
todas as reformas políticas é uma ideia satirizada num maravilhoso romance
turco, O Instituto da Regulação do Tempo, de Ahmet Hamdi Tanpinar, em
que a organização epónima é encarregada de sincronizar todos os relógios
da Turquia com o propósito expresso de terminar com a perda de tempo.
Milhões de segundos estavam a ser perdidos a todas as horas por causa de
relógios desregulados, uma enlouquecedora perda de tempo para a
economia quotidiana do país, um luxo a que a Turquia não se poderia
permitir, se quisesse apanhar a Europa. Depois do estabelecimento do
instituto, toda a gente na Turquia começou a verificar e acertar os seus
relógios de parede e de pulso e uma das inovações introduzidas fazia com
que milhares de mulheres turcas levantassem as saias da forma mais
elegante possível para verificarem os minúsculos relógios que lhes
enfeitavam as ligas.

Onde a Europa acaba


A diferença temporal entre o Oriente e o Ocidente é o emblema no centro
da moderna História mundial. Como o filósofo russo Aleksandr Herzen
disse um dia, o amor pela pátria, pela forma de vida russa e pela forma de
pensar russa tomam duas formas básicas: a «recordação» e a «profecia».
Como Jano, os patriotas russos olham em duas direções diferentes, embora
o seu coração bata como um só. Alguns olham para um passado mítico,
independente de influências exteriores; outros colocam todas as suas
esperanças num futuro feliz em que a Rússia teria alcançado finalmente o
progresso europeu4.
Para aqueles cuja experiência foi a de tentar acompanhar um centro
mais avançado, tudo foi recebido em segunda mão, conforme fora
experimentado por outros. O tempo parecia estar contra a maioria da
Humanidade, que chegava tarde onde aqueles que viviam em Londres,
Berlim e Nova Iorque já tinham estado. Fuad Pasha, cinco vezes ministro
dos Negócios Estrangeiros turco entre 1852 e a sua morte, em 1869, disse
uma vez ao editor francês de La Turquie; «O islão foi durante séculos, no
seu ambiente, um maravilhoso instrumento de progresso. Hoje é um relógio
que está atrasado e que precisa de ser acertado.5» Namik Kemal, um
proeminente intelectual e reformador turco, concluiu o seu ensaio de 1872,
«Progresso» («Terakki») com as esperançosas palavras:

Bem, sabemos que é impossível fazermos em poucos anos com que


Istambul se pareça com Londres, ou a Romélia com a França. Mas,
tal como a Europa chegou a essa condição em dois séculos, e
tiveram de descobrir os meios para o progresso, enquanto nós
encontramos esses meios já nas nossas mãos, se o trabalho for
adequadamente executado, não há dúvida de, em dois séculos, no
máximo, sermos capazes de chegar a uma condição que possa ser
considerada a de uma das nações mais civilizadas. E, em relação aos
dois séculos, não passam eles de um piscar de olhos na vida de uma
comunidade?6

Surpreendentemente, as nações mais avançadas ou civilizadas cedo


começaram elas próprias a ter as suas ansiedades. Como poderiam ter a
certeza de que estavam no caminho certo do desenvolvimento histórico, se
não havia alternativa com a qual se pudessem comparar? Afinal de contas,
todas as outras as seguiam logo atrás. A única resposta para tais ansiedades
era acelerar no mesmo caminho, apesar de as suas possibilidades
começarem a parecer cada vez mais esgotadas. O principal problema
daqueles que chegam em primeiro lugar é que chegam ao fim do seu tempo
antes de todos os outros e a Europa cedo começou a mostrar uma inveja mal
disfarçada daqueles que tinham ainda uma grande tarefa pela frente, ao
passo que os europeus, tendo terminado, ficavam sem nada para fazer.
Hegel foi o primeiro a considerar que os europeus poderiam de facto ser
capazes de realizar o milagre de atingir o fim do desenvolvimento histórico.
Para John Stuart Mill isto já parecia menos um sonho e mais um pesadelo.
Receava que a Europa estivesse prestes a ser reabsorvida pela Ásia. Como
diz no seu clássico de 1859, Sobre a Liberdade, havia uma possibilidade
real de a Europa poder tornar-se como a China. Temos um sinal de aviso na
China, escrevia: ficou imobilizada e manteve-se assim durante milhares de
anos.
Conseguiram, para lá de qualquer esperança, aquilo em que os
filantropos tão azafamadamente trabalham – tornar todas as pessoas
iguais, todas governando os seus pensamentos e as suas condutas
pelas mesmas máximas e regras; e são estes os frutos. O moderno
régime da opinião pública é, de forma desorganizada, aquilo que os
sistemas educacionais e políticos são de forma organizada; e, a
menos que a individualidade seja capaz de se afirmar com sucesso
contra este jugo, a Europa, apesar dos seus nobres antecedentes e do
seu professado cristianismo, tenderá a tornar-se outra China.7

Enquanto a China existiu fora do progresso e do movimento histórico


porque nunca fizera parte deles, a Europa estava agora muito perto de sair
do túnel da História pela outra extremidade. Aleksandr Herzen, escrevendo
pouco depois, fez uma descoberta bastante espantosa: a grandeza da cultura
europeia estava destinada a desaparecer porque todas as suas realizações
tinham sido já concluídas e já não havia nada para fazer. Grandeza? Só se
significasse destruir o que a grandeza passada construíra. Claro que as
pessoas continuarão atarefadas. Dançarão, beberão, trabalharão e apaixonar-
se-ão, ao mesmo tempo que passarão uma parte desproporcionada do seu
tempo a ensinar os filhos a conservarem o mesmo estilo de vida, que é
exatamente o que Herzen está a defender: não haverá nada para fazer,
porque a vida será a mesma para sempre. A mesma opinião foi apresentada
por Nietzsche no prólogo a Assim Falava Zaratustra. Ele via uma época,
prestes a chegar, em que a Humanidade já não se desprezaria. Ironicamente,
esse seria o estado mais desprezível da História humana, quando mais
nenhum movimento poderia ser concebido, quanto mais tentado, quando os
homens e as mulheres se divertissem até à morte, na crença de que,
finalmente, tinham descoberto a felicidade. «Ainda se trabalha, mas como
um passatempo». A política desapareceu: «Quem quer ainda governar?
Quem quer ainda obedecer? Ambas as coisas são demasiado fatigantes.» A
Humanidade vive no fim da História, quando tudo é tão perfeito quanto
pode ser e todo o passado parece um manicómio: «Antigamente, todo o
mundo era louco.»
No seu livro extraordinariamente popular, O Fim da História e o Último
Homem, Francis Fukuyama defendia o argumento de que o desejo de viver
numa sociedade moderna é universal e que a sociedade moderna assume em
todo o lado a forma de uma economia de mercado e um sistema político
democrático. A política externa que resultaria desta tese permanecia incerta.
Em 2007, 15 anos após a primeira edição do livro, ao ser acusado de
fornecer cobertura intelectual à ocupação americana do Iraque, Fukuyama
sentiu a necessidade de se desassociar de qualquer tentativa para acelerar os
estádios históricos através dos quais uma sociedade terá de passar no seu
caminho para a modernização. Querendo estabelecer de uma vez por todas
a sua distância em relação aos princípios básicos da política externa
americana, acrescentava que «a União Europeia reflete mais
adequadamente aquilo que o mundo será no final da História do que os
Estados Unidos contemporâneos8». Os americanos, afinal de contas, com a
sua contínua crença em Deus e na soberania nacional, não mostram
qualquer gosto profundo e afinidade com um mundo pós-histórico, onde
todos estejam perfeitamente satisfeitos com as coisas como estão e tenham
abandonado a luta para as transformarem.
A regulação do tempo, tal como originalmente concebida, mostrou ser
um fracasso. Uma nova conceção do tempo estendeu-se de facto a todo o
Globo e, nessa base, a vida moderna tornou-se igualmente acessível a todos,
mas não se seguiu a sincronização. Hoje, todos os países marcham em
frente, de acordo com as suas próprias ideias de progresso e movimento.
Existem agora tantos futuros e tantos passados que poderemos perder toda a
noção do tempo. Como nunca antes, o futuro parece estar em aberto.
9

A PENÍNSULA EUROPEIA

A regra das regras autónomas

E
m setembro de 2015 os embaixadores da União Europeia de todos os
28 Estados-membros realizaram uma das suas múltiplas reuniões
sobre a crise dos refugiados, que atravessava então um dos seus momentos
mais graves. A principal questão era como lidar com o mecanismo de
realojamento entre os Estados-membros, face à forte oposição a um sistema
de quotas, em particular por parte da Europa Central e Oriental.
Pairara no ar a ideia de que os países poderiam fazer uma contribuição
financeira em vez de serem obrigados a receber refugiados de Estados com
fronteiras sobrecarregadas como a Itália e a Grécia, como era implicado
pelo mecanismo de realojamento. Esta proposta enfrentou uma oposição
natural, por isso foi sugerida uma alternativa: e então se fosse permitido a
um país adiar a sua obrigação de preencher a quota por um período de seis
meses? Era um bom compromisso a que a presidência acrescentou ainda
mais um ajustamento: o limite máximo do número de refugiados cujo
realojamento poderia ser adiado deveria ser fixado em 30 por cento do
número total obtido através da aplicação do algoritmo de realojamento
original. O realojamento de refugiados em clara necessidade de proteção
internacional deveria ocorrer segundo a fórmula de uma chave de
distribuição estabelecida no Anexo III da Proposta. A chave de distribuição
proposta deveria ser baseada em: a) o quantitativo da população (peso de 40
por cento); b) o total do PIB (peso de 40 por cento); c) o número médio de
pedidos de asilo por milhão de habitantes durante o período 2010-2014; e d)
a taxa de desemprego (as últimas duas variáveis com 10 por cento de peso,
com um valor máximo de 30 por cento do efeito da população e do PIB
sobre a chave, para evitar efeitos desproporcionados desse critério sobre a
distribuição total).

Eu estava a ler a ata da reunião no meu gabinete quando subitamente


percebi. A União Europeia não pretende tomar decisões políticas. O que
tenta fazer é desenvolver um sistema de regras para serem aplicadas mais
ou menos autonomamente a uma realidade política e social altamente
complexa. Uma vez aplicadas, tais regras podem ser deixadas a operar por
si só sem intervenção humana. Claro que o sistema necessitará de
manutenção regular e periódica, da mesma forma que um robô precisa de
reparações, mas o objetivo é criar um sistema de regras que possa funcionar
por si só. Entrámos no fim da História no sentido em que a aplicação
repetitiva e monótona de um sistema de regras terá substituído a decisão
humana.
Os seus defensores argumentarão que, com uma forma de inteligência
artificial agora encarregada da nossa política, a arbitrariedade foi eliminada.
Em vez de termos as decisões políticas sujeitas às emoções daqueles que as
tomam, podemos depender da aplicação uniforme e regular – a mesma para
todos – de regras, tão perfeitamente desenvolvidas que conseguem ter todas
as circunstâncias em consideração e, portanto, serem deixadas a operar
inteiramente por si próprias. Por norma, se deixarmos que uma regra opere
de forma autónoma, ela criará uma nova situação em que deixa de funcionar
bem, mas olhem de novo para a proposta dos embaixadores: está
cuidadosamente calibrada para se corrigir e adaptar por si própria no
decurso da sua aplicação. Esta forma de controlo, com base no desempenho
real e não no desempenho esperado, é conhecida como feedback. É função
destes mecanismos de feedback controlar a tendência puramente mecânica
para a desorganização.
A automatização é o genuíno núcleo da União Europeia. Se alguma vez
a inteligência artificial se tornar a regra não apenas para a nova economia
digital mas também para a política, então a UE, retrospetivamente, surgirá
como o início da maior inovação política desde a Grécia Clássica. O
exemplo anterior é notável porque mostra como o ideal da automatização
pode ser estendido a uma área como a política para os refugiados. No
funcionamento da Zona Euro, essa automatização está completamente
institucionalizada e a sua história remonta à criação do Pacto de
Estabilidade e Crescimento, que, no plano proposto pelo ministro das
Finanças alemão Theo Weigel, em 1995, incluía já um procedimento para
uma política de vigilância acrescida, penalizações específicas a serem
impostas aos países com défices excessivos e a imposição automática
dessas penalizações. Todas as tentativas para melhorar a governação da
Zona Euro desde então foram progressos altamente técnicos do algoritmo
nuclear, incluindo, mais recentemente, as novas linhas de orientação para
«fazer o melhor uso da flexibilidade dentro das regras existentes do Pacto
de Estabilidade e Crescimento».
Durante os últimos anos, contudo, o ideal de automatização tornou-se
bastante difícil de defender. A União Europeia tem sido confrontada com
uma sucessão de crises sem fim aparente à vista, todas elas exigindo uma
difícil escolha entre alternativas e não a mera obediência a procedimentos
de rotina. Parece o regresso triunfante da História ao continente de que
partira depois da Segunda Guerra Mundial, mas a História é um fenómeno,
não natural, mas humano, exigindo que abandonemos algumas
possibilidades e criemos outras novas, através de atos de escolha política.
Caso contrário, os acontecimentos assemelhar-se-ão cada vez mais ao caos
e à desordem.
No sistema da UE, as questões políticas muitas vezes não andam para
lado nenhum. São enfrentadas menos com a intenção de alcançar uma
solução do que a de limitar o seu impacto no sistema de regras existente ou,
idealmente, adaptar o sistema para que possa lidar de forma mais ou menos
rotineira com a nova questão. Quando a crise da dívida grega começou, em
2009, houve pouca disposição para fazer escolhas fundamentais que
poderiam ter resolvido de uma vez por todas os problemas que aquela
levantara. A própria crise foi incorporada como uma característica
permanente do processo político normal e, nesta altura, parecia poder
manter-se assim por um tempo indefinido.
A autoimagem da Europa, pelo menos desde o início da Idade Moderna,
era a de um continente de mudança e movimento, em contraste com o resto
do mundo – em particular, com a Ásia – onde tudo permanecia mais ou
menos quieto. Essas posições parecem ter-se agora invertido. Esta é uma
das razões para o mal-estar em diferentes graus de todos os países da UE.
Está a tornar-se também causa de preocupação para os decisores políticos, à
medida que parece cada vez mais evidente que o sistema se está a debater
para lidar com níveis extraordinariamente elevados de volatilidade e
mudança, vindos do exterior.
Durante a última década, a política da União Europeia seguiu um padrão
muito simples. Início a partir de uma situação normal: reuniões de rotina e
debates sem incidentes, na maioria das vezes sobre o futuro distante,
enquanto o resto do mundo passa pelas suas habituais convulsões. Depois,
chega um grande choque. De forma surpreendente, vem do exterior, que
agora parece ser capaz de ter um imoderado impacto na Europa. Os
primeiros sinais de aviso são devidamente registados e pequenos
ajustamentos à política ou são ensaiados a medo, ou prometidos para o
futuro próximo. As ondas de choque reverberam e depressa se torna óbvio
que o sistema poderá deixar de responder e mesmo desmoronar-se sob uma
pressão extrema. Segue-se o pânico e os líderes políticos são forçados a
intervir – não para substituir a regra das regras autónomas, mas para reparar
o sistema, antes de se afastarem de novo. Por temperamento e treino, os
líderes alemães são perfeitamente adequados para a engenharia deste papel.
Estávamos todos a perguntar se a situação presente poderia ser mantida,
quando aconteceu o referendo do «Brexit» do Reino Unido. Aqui, a
incursão de um acontecimento imprevisível parecia vir do interior. O campo
do «Sair» insistia numa ideia, que se tornou num incessante slogan:
Recuperar o Controlo. Foi como se alguns dos passageiros de um veículo
automatizado comum tivessem decidido tomar o controlo do volante. A
reação foi uma mistura de horror e alegria. Para alguns, parecia ser a
própria definição de loucura política. Tínhamos aqui um sistema
automatizado que fornecia elevados níveis de segurança e bem-estar. Fora
desenvolvido durante muitas gerações, ao ponto de trabalhar com suavidade
e quase sem intervenção humana. Pior do que isso: o sistema estava agora
automatizado a tal ponto que quase toda a gente deixara de saber e de ser
capaz de dirigir verdadeiramente acontecimentos políticos. Como
compreender, então, que um grupo de pessoas tivesse de súbito agarrado o
volante e ameaçasse desativar todo o software e maquinaria da UE? Se
deixarmos pessoas encarregadas do volante, seriam capazes de nos levar
para um lado qualquer. Em vez do sistema humano e racional que
aperfeiçoámos, o Reino Unido poderia agora dirigir-se para vizinhanças
políticas menos desejáveis ou, se os novos condutores começassem a lutar
entre si, de encontro a uma parede.
O lado «Ficar», entretanto, não conseguia esconder a sua frustração por
o argumento económico ter tão pouco efeito sobre os eleitores, que estavam
claramente persuadidos pelo argumento contra as regras da UE sobre a livre
circulação de pessoas. Mas o padrão implícito que aqui se encontra é o de
que a UE oferece as melhores soluções económicas, sobre o qual as dúvidas
têm vindo a crescer. A defesa do Brexit provavelmente fez consideráveis
progressos entre os eleitores com preocupações económicas. Houve um
crescente sentimento de que uma mudança de direção era necessária e a UE
simplesmente não é flexível, rápida ou suficientemente oportunista para
procurar a melhor hipótese, quer seja no mercado global ou na regulação
inteligente, em especial naquilo que diz respeito à economia digital. No
final, retomar o controlo constituía também uma proposta válida sobre
política económica. Estava alguém na verdade a testar e a avaliar a política
económica da UE? E, se tal acontecia, poderíamos confiar em que estaria a
fazer o mais certo? Estas eram preocupações válidas.
Sobre a imigração, existiam poucas dúvidas. Durante os últimos anos,
foi-se tornando cada vez mais fácil defender que ninguém se encarregava da
imigração. O público britânico queixava-se muito de que o controlo sobre a
política de imigração se deslocara para Bruxelas, onde ninguém se
encarregava na realidade dela. Havia uma regra ou princípio que operava
automaticamente, sem intervenção humana: livre movimento. Os números
da imigração que o princípio produz todos os anos são impossíveis de
conhecer ou controlar, porque o princípio não se preocupa de todo com
números. De facto, introduzir qualquer consideração desse tipo é por
definição uma violação do princípio. Num caso extremo, podiam ver-se
milhões a chegar ao Reino Unido num único ano. Recuperar o controlo
significa em primeiro lugar colocar alguém no comando. Significa também
fazer baixar os números, mas nas minhas conversas com eleitores e
funcionários governamentais no Reino Unido parecia sempre que o
sentimento de controlo era mais importante do que a política específica que
pudesse ser implementada. Recordo em particular uma conversa em
Manchester com Ed Llewellyn, o chefe de gabinete de David Cameron, em
que testámos diferentes formas de reduzir os números da imigração,
algumas delas bastante concretizáveis. Isto ocorreu durante o processo de
renegociação que conduziu ao referendo. Llewellyn pareceu esperançado
por um momento, mas depois abanou a cabeça: «Estas são formas de
reduzir os números. Do que precisamos é de formas para aumentar a
sensação de controlo.»
Se pensarmos na União Europeia como um programa de computador,
surge a questão de se saber a que ponto esse programa é universal. Os
algoritmos operam num ambiente controlado e executam um conjunto de
tarefas limitadas. As informações que chegam do ambiente externo têm de
ser reconhecidas pelo programa e, portanto, o ambiente precisa de ser
moldado e organizado para fornecer essas informações no formato
adequado. Um programa de computador corre por si, por isso não importa
de facto quem está a utilizá-lo, por oposição às profissões tradicionais ou a
qualquer empreendimento criativo. Este é o universalismo do código, mas
há um outro sentido em que poderá não ser nada universal. Será o sistema
de regras automatizadas capaz de lidar com todos os acontecimentos
contingentes e imprevisíveis que vêm do exterior, de um ambiente para o
qual o código não está preparado e ao qual não consegue responder? Poderá
responder a novas informações que não sejam em rigor aquelas para as
quais foi concebido? E como é que o sistema responde quando algumas das
suas partes foram destruídas, degradadas, ou quando estão sobrecarregadas
por um ambiente caótico? Poderia dizer-se que mesmo um programa de
computador precisa de uma política externa – um dos principais desafios na
robótica avançada é conceber algoritmos de controlo que permitam que os
robôs funcionem adaptativamente em ambientes desestruturados,
dinâmicos, apenas em parte observáveis, e incertos – mas, acima de tudo, o
entendimento de que o mundo fora da Europa funciona de acordo com
diferentes regras reabre a questão da História e poderá forçar-nos a
abandonar a fé em regras autónomas.
Como veremos, a nova dicotomia entre sistema e ambiente imita quase
exatamente a velha dicotomia entre um civilização europeia supostamente
racional e ordenada e o caos das estepes asiáticas.

Um campo de forças
Em julho de 2016 visitei o Ministério dos Negócios Estrangeiros em Berlim
para discutir estratégia de política externa com um grupo de cerca de 10
funcionários de política de planeamento, incluindo chefes de diferentes
divisões regionais, bem como de unidades especializadas em comércio e
economia do ministério. Estava em particular interessado em saber como a
Alemanha encarava a questão da integração eurasiática e a melhor maneira
de responder aos planos russos e chineses nesta área.
A Alemanha é importante porque tem liderado os esforços europeus
para lidar com o revisionismo russo na Ucrânia, adiantando-se ao mesmo
tempo a outros países da UE no estabelecimento de importantes e
duradouros laços comerciais com a China. Poderia também dizer-se que a
própria Alemanha não é estranha à questão eurasiática. Noutros tempos,
claro, a fronteira entre a Europa e a Ásia coincidia com as terras que
separavam os teutões dos eslavos. A própria Alemanha conservava
profundas dúvidas sobre se pertenceria realmente à civilização ocidental,
uma questão que teve de aguardar pela catástrofe moral do nazismo e pela
destruição nacional para ser finalmente resolvida. Eu queria avaliar se o
aparelho da política externa alemã estava mais sincronizado com a alvorada
do novo supercontinente do que Bruxelas e as outras capitais europeias.
De facto, o ministério financiara um documento do Conselho Europeu
sobre Relações Externas precisamente sobre essa questão, o que parecia
mostrar que havia um interesse crescente sobre como a UE deveria reagir à
integração russa e chinesa na Eurásia. Na reunião, apresentei uma breve
introdução em que sublinhei as três razões pelas quais pensava que a
Europa precisava de ter uma perspetiva eurasiática. Primeiro, porque a
Rússia e a China têm. Segundo, porque muitas, senão todas as grandes
questões de política externa do nosso tempo têm que ver com a forma como
a Europa e a Ásia se poderão ligar: a Ucrânia, a crise dos refugiados, a
energia e o comércio. Terceiro, porque todas as grandes ameaças à
segurança nas próximas décadas se desenvolverão no contexto eurasiático,
repetindo padrões tradicionais: todas as maiores guerras (e muitas das
menores) que ocorreram na Europa e na Ásia entre 1815 e 1945 começaram
por disputas fronteiriças entre dois continentes – o litoral báltico, a fronteira
do Danúbio, a estepe pôntica, o istmo caucasiano, a Ásia Central e o
Extremo Oriente russo.
«Tem razão, a China está a olhar para o Ocidente», respondeu alguém.
«Não tenho a certeza de que a Rússia esteja a olhar para o Oriente. Querem
atrair dinheiro e turistas e é tudo. O que está a dizer é que a China precisa
de uma porta para a Europa e que é por essa razão que se poderá dar um
choque com a Rússia. Isso é muita estratégia. Os chineses são muito
pragmáticos, não têm estratégia.»
Esta advertência em particular seria uma constante na discussão.
Poderia dizer-se que o pensamento geopolítico na Europa está morto, em
particular na Alemanha. A maioria dos processos é analisada ao nível
«micro», através de forças económicas e sociais. Há um papel para os
Governos, claro, mas é sobretudo para acelerar esses processos. Ou antes,
não se encontra uma perspetiva geopolítica, como aconteceu na minha
reunião, a não ser quando se ouve os especialistas russos. A geopolítica é
um método para entender a Rússia, não para desenvolver uma perspetiva e
um curso de ação europeus.
O que deverá fazer a Europa? O Ministério dos Negócios Estrangeiros
alemão acabara de organizar uma conferência sobre conetividade,
convidando funcionários chineses para falarem sobre o «Cintura e Rota» e
funcionários da Comissão Europeia para explicarem algumas das formas
como os planos chineses se podem ligar a plataformas e mecanismos de
financiamento europeus. Este workshop pretendia até certo ponto mostrar
aos russos que estão a ficar de fora por causa das suas ações na Ucrânia e
das sanções económicas que se seguiram. A posição alemã consiste em
encontrar um modus vivendi com a União Económica Eurasiática, mas em
parte a razão para isso é atrair o seu outro membro para mais perto da
Europa. Se a Rússia não contribuir proporcionalmente aos benefícios
económicos do seu modelo de integração, então a União Europeia estará lá
para se aproveitar da inevitável fragmentação. Quando a Rússia acordar terá
de se contentar com aquilo que tinha antes: cooperação política e
económica com a Europa, a única que lhe poderá oferecer perspetivas de
modernização.
Quando defendi que a Rússia talvez já não pense em si própria como um
país europeu, um dos meus interlocutores discordou fortemente, citando
uma recente visita de Putin à Escola Alemã em Moscovo, onde afirmou que
a Europa seria a parceira preferencial da Rússia se abandonasse os seus
compromissos transatlânticos. Para este funcionário, a Rússia continua a ser
europeia, mas não europeia ocidental. A identidade europeia é a sua
primeira escolha. A Rússia tem uma identidade asiática, mas
consideravelmente mais fraca.
«Não devemos ser seduzidos pelo extremismo intelectual», prosseguiu o
funcionário alemão. «Não existe um grande esquema dirigido.» A ideia era
que tínhamos de nos sentir confortáveis com a ambiguidade russa. Assim,
de forma interessante, disseram-me que aquilo que a China e a Rússia estão
a fazer não é muito diferente daquilo que, por exemplo, a Alemanha está a
fazer: diversificar a economia, aumentar as opções. Quanto aos chineses,
estão a construir portos e infraestruturas por todo o lado. É um processo
natural de procurar boas oportunidades económicas. «Podemos desconfiar
sempre, mas porquê? A Alemanha está a olhar para sul, a olhar para leste.
Portugal está a olhar para a Europa, mas também para a América Latina.
Temos de trazer estas coisas não para a concorrência, mas para a sincronia.»
Deveremos nós, enquanto europeus, abraçar a ideia de um
supercontinente asiático? Será isto a forma de o fazer, procurando pontos de
sincronização? Expressei o meu desacordo nestes termos:
«Penso que nós, europeus, tendemos a olhar para o mundo como se o
mundo fosse exatamente a Europa. Temos este martelo e vemos pregos em
todo o lado. Vejo aqui a sugestão de que devemos apenas fazer aquilo que
de qualquer modo fazemos na Europa: cooperar, ligar, conetar, todos esses
verbos. É esta a forma europeia de fazer as coisas. Qual é a alternativa?
Uma abordagem mais estratégica e, sim, mais competitiva. Precisamos de
olhar para o mapa e ver o que é mais importante para nós a cada momento
para aumentar a nossa influência, a nossa alavancagem, pensar em termos
de poder e não apenas em termos de regras, que nem sempre funcionam em
casa, quanto mais no mundo aberto. Primeiro, se a China quer beneficiar do
reconhecimento como uma economia de mercado, precisará de mudar
gradualmente alguns dos elementos fundamentais da sua cultura económica,
em particular aqueles que impedem qualquer distinção significativa entre
poder político e económico. Segundo, a União Europeia deve aumentar a
sua presença em países que desempenham um papel decisivo de portas de
acesso e nós de conexão ao longo das novas rotas que ligam a Europa e a
Ásia. O Azerbaijão e o Cazaquistão, por exemplo. Terceiro, deverá ser
capaz de influenciar os desenvolvimentos na China e na Rússia adiantando-
se com outros acordos comerciais com atores globais como a Índia, o Japão
e os Estados Unidos. Se acharem que a Rússia e a China têm uma
abordagem expansionista, não podem responder com regras.»
A resposta foi vigorosa:
«A nossa civilização baseia-se em regras. É isso que defendemos. E isso
é cada vez mais popular em todo o mundo. As pessoas estão fartas de
decisões arbitrárias. Querem viver sob regras, é por isso que invejam a
Europa e são atraídas por nós.»
«Claro. Com isso não discordo. Mas a questão, em minha opinião, é
prévia a isso. Temos diferentes visões do mundo e temos de fazer com que
encaixem. O problema com a União Europeia é que parece assumir que
existe um padrão neutro de regras, ao passo que o verdadeiro problema
consiste em saber que regras prevalecerão, um problema que nenhuma regra
pode decidir.»
Quando nos voltámos para um exemplo concreto, o problema tornou-se
mais nítido. Os noticiários nessa semana reservavam um espaço
considerável à aquisição da Kuka, uma fabricante de robôs alemã, pela
empresa chinesa de eletrodomésticos Midea. Os políticos na Alemanha
começavam já a expressar preocupações por as empresas de que o país
dependia para conduzir a próxima revolução industrial estarem a ser
perdidas para a China. Durante o ano seguinte, a questão cresceu em
importância e visibilidade. Na altura, já suspeitava de que a Alemanha se
iria sentir cada vez mais ameaçada por estes desenvolvimentos e casos
recentes viriam a confirmá-lo. Embora tivesse por fim sido dada luz verde à
aquisição da Kuka, passados apenas três meses o Governo alemão retirou a
aprovação para a aquisição da fabricante de equipamentos de microchips
Aixstrom por um grupo de investidores chineses, devido ao que foi
transmitido ao público como sendo preocupações de segurança. Em
fevereiro de 2017, a Alemanha juntou-se à França e à Itália incitando a
Comissão Europeia a usar a sua competência para determinar quando
deveria ser bloqueada uma aquisição estrangeira, desta vez não por razões
de segurança nacional, mas económicas. No final de fevereiro, encontrei a
comissária europeia para o Comércio, Cecilia Malm­ström, em Bruxelas.
Estava confusa acerca de quais poderiam ser essas razões económicas, mas
era claro para ela que o que a Alemanha queria era ter o bolo e comê-lo
também: bloquear a influência chinesa e, ao delegar as decisões específicas
a Bruxelas, preservar as suas boas relações económicas com a China. Os
três países levaram a proposta a um Conselho Europeu em junho de 2017,
mas conheceu a resistência de Portugal e Espanha, bem como dos Estados
bálticos e escandinavos – os primeiros receosos de que os investimentos
chineses secassem, os segundos não estando dispostos a dar cobertura
àquilo que entendiam como medidas descaradamente protecionistas. Como
era esperado, a questão está já a provocar divisões e estas deverão agravar-
se.
Nessa tarde de julho de 2016 no Ministério dos Negócios Estrangeiros
alemão, os funcionários à minha frente estavam ainda completamente
empenhados com a doutrina tradicional. Quando lhes perguntei de que
forma uma abordagem baseada em regras lidaria com uma questão como a
da Kuka, a resposta foi que a Europa devia evitar agir de modo estratégico,
pois caso contrário arriscar-se-ia a ver-se envolvida num grande conflito
que provavelmente perderia. «Temos de ter muito cuidado se começarmos a
exercer pressão. Os chineses compreendem perfeitamente que defendamos
os nossos interesses, esse conceito não lhes é estranho. Mas se for feito de
uma forma desadequada, seremos vítimas do outro lado da Eurásia.»
«Os europeus não têm escolha», tentei argumentar. «Se quiserem
reforçar as regras existentes, então terão de perguntar se o que estão a fazer
países como a China e a Rússia é seguir as regras. O que acontecerá se a
China começar a separar cadeias de valor globais – se, por exemplo, partes
da indústria de fabrico polaca ou turca forem convertidas, deixando de
produzir componentes para a Alemanha e passarem a produzi-los para os
chineses? A determinado ponto, já não estamos a falar de regras…»
«As empresas estão sempre a fazê-lo.»
«Não se trata aqui de empresas, mas sim do Estado chinês. Isto são
investimentos feitos por empresas em resposta a políticas estatais ou
interesses estratégicos. Apenas parecem estar a seguir as regras se limitarem
a vossa análise ao que acontece dentro das fronteiras europeias. Podem
evidentemente bloqueá-los, mas isso não serviria de nada e seria sempre
fútil, uma vez que não é possível cerrar todas as portas e janelas através das
quais a influência chinesa poderia entrar. Não serviria de nada porque o
objetivo devia ser criar um ambiente externo favorável e não construir um
sistema utópico desprovido de ambiente. Os chineses percebem bem isto:
pegam nas regras de mercado europeias e tentam usá-las em seu próprio
proveito, enquanto aumentam a sua presença aqui. Pensem na Eurásia como
um campo de forças. A questão dos diferentes modelos políticos e
económicos apenas poderá ser decidida pelo poder, influência e
alavancagem. Não chega a União Europeia apoiar as suas regras e forma de
vida. Precisa de criar um ambiente mais amplo onde possam funcionar
eficazmente. Há uma palavra para esse tipo de política, um novo tipo de
política.»
«Eurasiática?», foi a previsível sugestão.
A Grande Muralha
A União Europeia reproduz dentro de si algumas contradições e dilemas
que definiram a moderna História europeia. Por um lado, o conceito de
Europa é antitético por natureza. É definido contra outra coisa qualquer. O
polo oposto poderá variar em diferentes períodos históricos, mas como
começámos com uma geografia ideal é em absoluto natural que terminemos
com um conceito geográfico igualmente abstrato: a Europa é definida em
oposição à Ásia, uma Ásia tão mítica como a própria Europa.
Por outro lado, a Europa tem uma vocação universal. Na era dos
impérios, isto significa que as nações europeias tentaram levar a forma de
vida europeia a todo o Planeta. Para a União Europeia, a missão é
certamente diferente, mas não é menos universal. O projeto europeu é,
afinal de contas, fundado com a intenção explícita de ultrapassar divisões e
fronteiras, juntar velhos inimigos e destroçar definições exclusivas de
nacionalidade. É difícil ou impossível recusar traçar linhas vincadas em
torno das velhas nações europeias e, depois, pretender fazer o mesmo em
torno de uma identidade europeia maior. Além disso, se a União Europeia
tentasse atingir uma definição final sobre onde residem essas fronteiras, as
regiões fronteiriças surgiriam subitamente como microcosmos europeus,
mais europeus do que a própria Europa: lugares onde diferentes culturas se
encontram e combinam, onde diferentes formas de vida existem lado a lado
e estão destinadas a partilhar uma existência comum. Este é obviamente o
caso da Turquia, da Bósnia e da Ucrânia. Como excluir da União Europeia
esses países que são, de facto, modelos individuais daquilo que a Europa
aspira ser?
Na prática, essas regiões fronteiriças estão perante um desafio cultural:
uma vez que a sua filiação ao clube europeu é de algum modo duvidosa,
cabe-lhes a elas resolver o problema movendo-se o mais possível em
direção ao centro. Como um funcionário da Comissão Europeia uma vez
me disse, países como a Bósnia e a Ucrânia têm de realizar reformas tão
«perfeitas e impecáveis» que Bruxelas não terá outra alternativa senão
aceitar que são de facto tão europeias como a França ou a Alemanha e
«deixar que entrem». Noutra ocasião, um antigo chefe de Governo disse-
me: «Nós não começamos a pensar nesses países dos Balcãs logo pela
manhãzinha. Eles têm de ganhar a nossa atenção.»
De facto, a contradição entre as duas visões – uma universal, a outra
limitada e demarcada – não é difícil de explicar. O projeto europeu é, pela
sua própria natureza, um projeto de globalização e tem o seu destino preso
ao destino da globalização. Não poderá prosperar se se definir de qualquer
outro modo. Dentro das suas fronteiras tenta conduzir o ideal da
globalização à sua conclusão lógica: a abolição final de fronteiras. Isto
significa ser uma precursora daquilo que acabará por se estender a todo o
Planeta, de acordo com o velho paradigma «primeiro na Europa, depois em
toda a parte». Jean Monnet, um dos pais fundadores do projeto europeu,
concluiu as suas Memórias com uma frase que afirmava que a própria
União Europeia – então Comunidade Europeia – «é o único palco do
caminho do mundo organizado de amanhã». Esta imagem é a de uma União
Europeia como um laboratório onde os métodos de governação para mediar
e ultrapassar os conflitos de todos os géneros são gradualmente aplicados ao
mundo inteiro. Mesmo as fronteiras externas da UE não pretendiam ser
como as fronteiras de um Estado tradicional. Estavam, antes do mais,
sujeitas a expansão, seguindo o velho modelo imperial segundo o qual a
melhor forma de estabilizar as regiões fora das suas fronteiras é trazê-las
para dentro. Mais fundamentalmente, mesmo quando o alargamento não é
considerado, as fronteiras exteriores deverão tornar-se cada vez mais
porosas e abertas ao comércio, às viagens e ao intercâmbio cultural. É neste
ponto que uma fatal incompreensão se imiscui. É esclarecedor examinar a
forma como é apercebido do exterior – em particular, por Beijing.
No final de novembro de 2016 visitei o Centro de Desenvolvimento e
Investigação do Conselho Estatal Chinês, a unidade de investigação da
administração estatal chinesa, sediada num sombrio edifício de escritórios
próximo de Chaoyangmen, em Beijing. Na altura da minha visita, a recente
eleição presidencial americana estava ainda a ser discutida e os cenários da
futura presidência de Trump eram cuidadosamente delineados pelos
funcionários que encontrava, mas a discussão depressa se voltou para as
relações entre a Europa e a China. Em geral, o conhecimento da política
europeia na China e da política chinesa na Europa é muito pobre e as
respetivas culturas políticas estão mais afastadas do que as da China e dos
Estados Unidos. Isto foi reafirmado e adequadamente lamentado por todos
os presentes, mas quando pedi um exemplo a resposta foi, de forma
surpreendente incisiva e esclarecedora. «Veja-se os americanos. Não estão
satisfeitos com a forma como os nossos mercados estão fechados às suas
companhias, por isso querem negociar esse aspeto. Mas os europeus dizem
que já abriram os seus mercados e depois pressionam-nos para que façamos
o mesmo. Isso é unilateral. A Europa tem de compreender que já não
estamos no século XIX.»
A distinção é subtil, mas importante. Poder-se-ia pensar que, ao estar
menos obcecada com a necessidade de reciprocidade, a UE deveria merecer
aplausos, mas de facto isto significa, pelo menos para as autoridades de
Beijing, que os europeus se reservam o direito de definir a estrutura geral e
as regras para a economia global, que apresentam aos outros como
evidentes e inelutáveis. O argumento vindo de Bruxelas é mais ou menos o
seguinte: consideramos que os investimentos externos das companhias
chinesas na UE são bons para ambas as partes; sendo assim porque é que as
autoridades chinesas apresentam uma opinião diferente e porque é que uma
empresa europeia é impedida de fazer investimentos equivalentes na China?
Os chineses, claro, são perfeitamente capazes de ver através do jogo de
fumo e espelhos: a reciprocidade é defendida por referência a uma posição
de políticas definidas unilateralmente por um dos lados.
A abertura e o empenho da Europa em relação à globalização são em
grande parte determinados por uma experiência histórica específica durante
a qual a globalização foi conduzida e definida por países europeus e, mais
tarde, pelos Estados Unidos, ainda em grande parte de acordo com ideias e
interesses europeus. O que acontece quando a globalização começa a ser
percecionada como não sendo necessariamente vantajosa e favorável aos
europeus? Sem surpresa, o empenho numa ordem global aberta começa a
vacilar. Como testemunhámos durante os últimos dois anos, tornou-se
difícil, se não impossível, defender uma maior liberalização comercial na
maioria dos países europeus e certas iniciativas foram postergadas para
limitar o impacto das importações e dos investimentos em aquisições pela
China.
O nosso conforto em relação ao mundo exterior aumenta muito,
evidentemente, quando temos a capacidade de moldar, ou pelo menos de
influenciar, esse mundo. Pelos padrões históricos, a capacidade europeia
para projetar no exterior o seu poder sofreu um acentuado declínio, fazendo
recuar a Europa para uma altura em que o mundo parecia um lugar estranho
e caótico, com a significativa diferença de que nada resta da velha «missão
civilizadora», o impulso para organizar lugares distantes segundo linhas
habituais.
O muro que separa a Europa da Ásia todos os dias recebe novos e
devastadores golpes. Podemos esperar que se desmorone inteiramente
durante o período das nossas vidas, mas ainda não desapareceu do espírito
europeu e poderá de facto ser reforçado aí, enquanto continua a esboroar-se
no mundo real. Nunca o mundo pareceu tanto ser uma fonte de perturbação
e desordem. É menos uma metáfora do que uma descrição exata: a União
Europeia é um mecanismo de precisão que precisa de condições ambientais
perfeitas para funcionar bem; por isso qualquer perturbação significativa
vinda do exterior faz com que comece a avariar-se e pare. A crise da dívida
que ainda afeta os países da periferia meridional foi em grande parte um
produto de fluxos financeiros globais, aliados ao choque sofrido pelos
sectores industriais tradicionais, produzido pelas exportações de produtos
chineses. Da mesma forma, o Brexit está fortemente correlacionado com a
deslocação económica causada pela globalização: as regiões que foram
mais expostas à recente erupção de importações manufaturadas da China,
por causa da sua histórica especialização industrial, apresentaram de modo
sistemático percentagens de voto mais altas a favor da saída da UE1.
Todas as crises europeias durante a última década foram resultado de
um choque externo. Por vezes a origem poderá estar um pouco na sombra,
noutros casos é óbvia. Mas mesmo quando a crise é imposta do exterior,
como aconteceu com a anexação russa da Crimeia e a incursão militar na
Ucrânia Oriental, o impacto foi profundamente sofrido nas estruturas e
instituições europeias, fomentando novas divisões entre os Estados-
membros e o crescente sentimento entre os cidadãos de que a UE não é
capaz de apresentar uma ação rápida e eficaz. Daí a tentação de reconstruir
o grande muro entre a Europa e a Ásia, a separação entre a civilização da
cidade e as estepes a leste – terras que, aos olhos europeus, são uma fonte
de perigo e desordem.
A contradição, portanto, é que os europeus continuam a ver a sua tarefa
como consistindo em levar a sua forma de vida ao resto do mundo, de modo
muito semelhante ao dos navegadores e exploradores há mais de 500 anos.
Estão dispostos a abandonar as suas fronteiras se estiverem convencidos de
que o resto do mundo acabará por se tornar como a Europa. Quando a
influência se desloca em sentido oposto, preferem retirar. Mas a Europa não
pode continuar imune a essas influências. Tem de aprender a projetar as
suas influências para leste, não como profeta de uma civilização mundial,
mas como uma potência eurasiática. A forma de vida europeia não existe
num vácuo, sendo profundamente influenciada e afetada por aquilo que
acontece nas suas fronteiras e para lá delas, forçando os europeus a
encontrarem as instituições e políticas adequadas para encaixar a sua forma
de vida num contexto político mais alargado. Não encontro melhor palavra
para tal projeto do que a que figura no título deste livro. Ser eurasiático
significa, quando aplicado à estratégia e às opções europeias, que se deve
ser europeu, mas não exclusivamente europeu.
Existe uma última razão pela qual a Europa deverá tornar-se mais
ativamente interessada no projeto da integração eurasiática: para combater
as forças da desintegração dentro da própria Europa. A União Europeia tem
uma necessidade desesperada de fortalecer a sua capacidade política, a sua
aptidão para agir coletivamente. Até aqui, isso tem sido defendido através
de um vago apelo à História e ao sentimento, mas, em última análise, a
capacidade política só pode ser fortalecida se houver um objetivo em
virtude do qual seja exercida. A UE precisa de se tornar um agente político
mais forte, não para realizar um mandamento moral ou histórico, mas para
realizar as tarefas que o futuro lhe exigirá: alargar a sua influência para fora
das suas fronteiras, gerir os fluxos entre territórios fronteiriços e trabalhar
por um futuro pacífico na grande Eurásia.
Comparei frequentemente a História recente da União Europeia a um
Bildungsroman, uma clássica história de amadurecimento tratando dos anos
de formação do protagonista. A primeira parte de um Bildungsroman – veja-
se o melhor exemplar do género: Os Anos de Aprendizagem de Wilhelm
Meister, de Goethe – foca-se em geral na infância e no desenvolvimento
inicial da personagem principal. Poderia argumentar-se que a UE já passou
essa fase, que terminou com o Tratado de Lisboa, em que as suas
competências foram expandidas e em que recebeu uma forma institucional
coerente. Na segunda parte, o herói, ou a heroína, sai para o mundo e surge
um momento de crise. É quando o mundo e o protagonista colidem. Parece
haver uma completa incompatibilidade entre os dois e qualquer
comunicação entre eles é praticamente impossível. A incompatibilidade tem
de ser resolvida, mas não se percebe bem como. Irá o mundo ceder perante
a vontade conquistadora do jovem herói, ou o protagonista voltar-se-á para
o seu íntimo e renunciará a qualquer possibilidade de sucesso mundano?
Talvez possa ser alcançado um ponto intermédio com concessões de ambas
as partes.
O ponto que importa aqui relevar é que a UE – tal como num
Bildungsroman – espera que o mundo seja um espelho de si própria, tão
hospitaleiro e conveniente que sair de casa nunca parecerá ser uma partida.
A crise surge porque deixou de ser assim. O mundo mudou. A Europa
detém-se agora nas suas próprias fronteiras e o Sol põe-se diariamente nos
seus próprios domínios.
Num provocador ensaio, dois dos mais lúcidos cientistas políticos que
hoje escrevem, Mark Leonard e Ivan Krastev, compararam o dilema
europeu ao das empresas de telemóveis japonesas há alguns anos. Apesar de
o Japão fazer os melhores telemóveis do mundo, as empresas japonesas não
conseguiam encontrar um mercado global porque o resto do mundo estava
tão atrasado que simplesmente não tinha uso para todas as avançadas
características. De modo semelhante, a ordem política europeia evoluiu
num ecossistema protegido. É agora tão avançada e complexa que perdeu
qualquer pretensão à universalidade e os cidadãos europeus a nada mais
podem aspirar do que preservá-la da perturbação exterior2. Em vez de
aspirar a mudar o mundo e a torná-lo seguro para os valores europeus,
querem agora ser deixados em paz. A grande estratégia de Bruxelas começa
a parecer-se com a da China da dinastia Qing: se tudo o que queremos é que
nos deixem sozinhos, porque é que não hão de conceder-nos isso? Esta
peculiar preferência em lado algum é mais patente do que na trágica história
da crise dos refugiados, durante a qual o facto de a Europa se voltar para
dentro conduziu, primeiro, a um foco exclusivo sobre o significado da
solidariedade entre Estados-membros e, depois, a uma exigência
generalizada de que as fronteiras exteriores fossem seladas e fosse
construída uma nova «fortaleza Europa», alcandorada sobre o caos da
grande massa terrestre eurasiática.

Os jogos da fome
Um rápido relance pelo mapa revelará como poderá vir a tornar-se
importante o nó geográfico de Esendere, na fronteira entre o Irão e a
Turquia. Se alguma vez as novas rotas da seda que ligarem a Europa e a
Ásia se estabelecerem completamente, terão de atravessar esses montes e
montanhas, evitando os perturbados Estados do Iraque e da Síria, a sul, e
beneficiando da curta distância entre as grandes cidades de Urmia e Tabriz,
no Irão, e de Van, na Turquia. Em fevereiro de 2016 atravessei a fronteira
do Irão através de Esendere. A acompanhar-me na travessia pela neve e pelo
frio entre os dois postos fronteiriços havia um grupo de migrantes, mas que
eram azeris do Irão, trabalhadores sazonais igualmente à vontade na
Turquia, cuja cultura e língua partilham em grande medida. Não havia sinal
de migrantes idos do Afeganistão e do Paquistão, duas nacionalidades
próximas do topo da lista de chegadas à Grécia nesse ano.
Após uma curta viagem de minibus, alcançámos a cidade de Yuksekova,
então sob pesada vigilância militar devido ao crescente conflito com os
revoltosos curdos no sudeste, bem como à ameaça terrorista do Iraque. A
pequena cidade vibrava de energia, um contraste notável com Urmia, muito
maior, que eu deixara nessa manhã, onde a sensação predominante era a de
se estar a aguardar uma expansão económica que muitos acham que poderá
nunca chegar. Decidi ficar alguns dias e cedo pude conhecer um dos
passadores que ajudam os migrantes a atingir a fronteira europeia. Disse-me
por que razão não tinha encontrado nenhum dos seus fregueses no posto
fronteiriço de Esendere. Os migrantes ilegais não atravessam a fronteira a
pé. Atravessam-na no interior dos camiões, no fundo de contentores cheios
de legumes podres, agachados no meio do cheiro fétido e de uma completa
escuridão, durante um dia ou dois, ignorando se a única pessoa que sabe
que lá estão irá ter com eles do outro lado. Por vezes, são pagos subornos.
Outras vezes, apenas dependem da sorte.
Em 2011 um passador na Turquia queimou até à morte sete imigrantes
paquistaneses por causa de uma discussão sobre o pagamento. Em 2012,
foram mortos a tiro 11 imigrantes ilegais na área de Pothan, próximo da
fronteira entre o Paquistão e o Irão. O grupo incluía paquistaneses,
usbeques e tajiques. Incidentes semelhantes ocorrem desde então
regularmente. Fazer a longa viagem do Paquistão até à União Europeia é
menos uma grande aventura do que uma corrida de obstáculos, da qual
apenas os muito afortunados sairão sem cicatrizes físicas ou psicológicas.
Um dos cartoons políticos mais brilhantemente corrosivos de que me
consigo lembrar mostra uma família de refugiados a atravessar uma
fronteira invisível para a Europa e a ser detida por um funcionário que guia
uma carrinha com a bandeira da União Europeia. Este começa a erigir uma
cerca e a família de refugiados reage começando a trepá-la o melhor que
pode. Quando finalmente alcançam o outro lado, são calorosamente
abraçados pelo mesmo funcionário, que exclama: «Bem-vindos à Europa!»
Este é o trágico paradoxo da política fronteiriça europeia. No seu todo,
uma sociedade europeia construída segundo a tolerância e os direitos
humanos parece convencida da necessidade moral de ajudar os refugiados a
fugirem da ameaça iminente da morte violenta. Por outro lado, a UE
continua a ser incapaz de criar canais de entrada legais para esses
refugiados e cria mesmo obstáculos que tornam a sua viagem o mais penosa
possível. O resultado assemelha-se a uma versão moralmente catastrófica
de uns Jogos da Fome reais, em que os refugiados são recompensados com
a promessa de generosos benefícios sociais e de segurança se tiverem a
sorte de sobreviver. Como é que chegámos a isto?
Na primeira fase da crise de refugiados em crescendo, a UE focou-se em
conceber um esquema de realojamento para os refugiados que estavam já
dentro das suas fronteiras. Isto foi defendido em nome da solidariedade,
mas claramente o que aqui temos é solidariedade entre os Estados-membros
e não para com os refugiados. Não tem qualquer impacto no número de
mortes sofridas no trânsito para a Europa, que foi o que levou em primeiro
lugar a presente crise à atenção da opinião pública europeia. Contudo, o
«fator de atração» para aqueles que vêm continua a ser enorme, uma vez
que um esquema de realojamento significa que a UE renunciou de facto a
ter uma palavra sobre quantos refugiados receberá, desde que sejam
equitativamente distribuídos.
Houve alguns Estados-membros que se opuseram ao esquema de
realojamento, sobretudo na Europa Central e Oriental e valerá a pena
enumerar quais são os seus argumentos. Primeiro, defendem que uma
decisão deste tipo tem que ser deixada aos próprios Estados-membros. A
razão para isso é clara apenas sob um aspeto: a decisão de alargar alguns
direitos de cidadania a pessoas com necessidade de proteção internacional é
na verdade uma decisão política de extraordinária importância que,
enquanto tal, não deverá ser deixada aos burocratas em Bruxelas. Mas
nunca fiquei convencido pelo argumento de que não pode ser tomada em
comum pelo Conselho Europeu, onde os chefes de Governo de todos os
Estados-membros decidem, como grupo, matérias decisivas.
Outros argumentos são certamente mais ponderosos. Há algo de iliberal
acerca de um mecanismo cuja própria essência é distribuir refugiados por
diversos locais de acordo com um algoritmo fixo. Aqueles que, como eu,
observaram logo que isto tinha poucas hipóteses de resultar ficaram mesmo
assim surpreendidos sobre como até aqui as coisas correram tão mal. Dois
anos mais tarde, cerca de 10 mil refugiados tinham sido transferidos para os
seus novos países dentro da UE. O mecanismo visava 160 mil. Em privado,
os funcionários reconhecem agora que o plano foi um fiasco, apesar de
continuar nominalmente em aplicação.
Alguns países observaram que é da própria natureza de um espaço
comum integrado criar efeitos de aglomeração. Sim, os refugiados tenderão
a aglomerar-se na Alemanha, na Áustria e na Suécia, mas o mesmo
acontece com o capital, o investimento e a tecnologia. Os benefícios vêm
com custos e, de qualquer forma, a tentativa de interferir de propósito em
tais fluxos levar-nos-á no sentido das piores tradições de engenharia social,
em relação à qual a Europa Central e Oriental estão compreensivelmente
mais cientes e preocupadas. Pensem em como o problema seria abordado a
nível nacional. Se os refugiados e os migrantes fluíssem para a capital ou as
principais cidades e a situação se tornasse insustentável, nenhum Governo
nacional os distribuiria por distritos específicos com uma proibição de
atravessarem as fronteiras distritais. Usaria os instrumentos de uma política
social liberal, como subsídios e incentivos de várias espécies, em particular
nas áreas da habitação e da educação. Como alguns foram rápidos a
observar, a política de realojamento culminaria na situação surreal em que
um forte conceito de nacionalidade seria aplicado a refugiados atribuídos a
cada país, mas não aos cidadãos desses países, que se poderiam deslocar
livremente entre fronteiras.
Mais fundamentalmente, nenhuma política com sucesso se pode
permitir lidar com um problema social a um nível tão afastado da causa.
Aqui, como em muitos outros exemplos, a UE arrisca-se a tornar-se uma
comunidade de desordem em vez de uma comunidade de poder. A questão
não reside em partilhar os acasos do destino, mas de exercer uma forma de
poder comum sobre eles. Não deveríamos focar-nos em como distribuir os
refugiados depois de eles estarem já no interior das nossas fronteiras. Moral
e politicamente isto será sempre um desastre em perspetiva. O que
precisamos de fazer é enfrentar de forma decisiva a forma como os
refugiados chegam na verdade à Europa. E de criar um sistema de vistos
humanitários que permita aos potenciais candidatos a asilo entrarem na
Europa por um período limitado, enquanto o seu pedido de asilo é
analisado. Em alternativa, criar centros de processamento de asilo fora das
fronteiras da UE, para que os refugiados se possam candidatar sem
arriscarem as suas vidas em botes improvisados. Se os seus pedidos forem
aprovados, poderão então comprar um bilhete de avião de baixo custo para
a Europa. Se os seus pedidos forem recusados e tentarem atravessar
ilegalmente, poderão ser recambiados com rapidez. A questão seria então
qual o número de vistos que a Europa estaria disposta a emitir, recuperando
uma parte considerável do controlo sobre o processo.
Os canais de entrada legais são uma forma de recuperar o controlo sobre
os fluxos de refugiados. Permitiriam à Europa decidir quantos refugiados
está disposta a acolher e poderão ser usados para saber melhor quem são
esses refugiados, antes de atravessarem as suas fronteiras. Acima de tudo,
desfeririam um golpe mortal no coração das redes de tráfico criminoso em
quem a UE parece ter delegado a sua política fronteiriça – e que tem sido
responsável por tantas mortes no Mediterrâneo.

Os líderes encontram-se
Miro Cerar, primeiro-ministro esloveno, marcou o tom da reunião de
emergência em Bruxelas em outubro de 2015, um mês depois do encontro
dos embaixadores que abriu este capítulo. A ideia das quotas não passava
agora de um arabesco burocrático, deixado para trás pela realidade política
e social. Cerar acabara de receber o último relatório do seu ministro do
Interior: esperavam que 15 mil refugiados cruzassem a fronteira da Croácia,
só nesse dia. Avisou os colegas que o ponto de rutura estava próximo. A
Hungria fora capaz de construir uma cerca para deter o fluxo, mas isso fora
porque mais ninguém fizera o mesmo e, assim, os refugiados foram
desviados para outros sítios. Se todos seguirem o exemplo da Hungria,
«verão violência, tiros. Nada irá deter os refugiados, porque eles não têm
nada a perder. Isto é muito perigoso».
Houve um silêncio na sala. Como acontecia frequentemente nestes
momentos, foi quebrado por Angela Merkel. A chanceler alemã suspirou:
«Wir saufen ab. Estamos a afogar-nos. Tantos refugiados que estamos a
receber hoje vindos da Áustria. Imaginem amanhã.» Observou que vinha de
um país onde outrora haviam tido de viver com muros e não queria ter na
sua biografia que construíra novos muros. «Mas não posso excluir nada, se
a fronteira exterior não for tornada segura.»
O presidente da Comissão Europeia, Jean-Claude Juncker, convocara a
minicimeira a pedido de Angela Merkel para tentar enfrentar a crise de
refugiados ao longo da rota dos Balcãs Ocidentais, que atingira naquele
instante o seu momento mais crítico. Juntou os líderes da Alemanha, da
Áustria, da Bulgária, da Croácia, da Grécia, da Hungria, da Roménia e da
Eslovénia. Convidou também os seus homólogos da Albânia, da Macedónia
e da Sérvia. A reunião começou de uma forma tão caótica que continua a ser
até hoje um dos melhores símbolos de como a crise ameaçava ficar
completamente fora de controlo. A este respeito, espelhava simplesmente o
que estava a acontecer no exterior da sala, onde os diferentes países
tomavam medidas unilaterais, cada um deles empurrando o problema para o
seu vizinho mais próximo, que por sua vez prosseguiria o ciclo com os
vizinhos seguintes. Próximo do início da discussão, Merkel comparou a
situação à captada no livro Os Sonâmbulos, de Christopher Clark: o relato
de como a Europa entrou em guerra em 1914 devido a mútuos mal-
entendidos e à procura de uma definição estreita do interesse nacional. Um
dos primeiros-ministros presentes gravou a discussão e partilhou a
transcrição com um número limitado de pessoas.
O primeiro-ministro Boyko Borissov, da Bulgária, queixou-se de que
era obrigado a viajar até Bruxelas no meio de uma campanha eleitoral no
seu país. «Obrigado pelo convite», disse no final da sua intervenção, «mas
preciso de regressar às minhas eleições e esta é a minha proposta: 150 mil
ou 200 mil polícias para selarem as fronteiras. É disto que precisamos e não
de declarações políticas». Quando a alta representante da União para a
Política Externa, a italiana Federica Mogherini, avisou que o caos na Líbia,
no futuro próximo, era muito possível e que aumentaria os fluxos de
migrantes, Borissov comentou que «vá lá que os chineses ainda não
começaram a migrar para cá». Ele queria ter um rígido limite superior de
refugiados que cada país teria de receber. A isso Merkel respondeu que os
limites são possíveis quando não há fatores externos em jogo, mas
impossíveis quando «a pressão vem de fatores externos». O presidente da
Comissão, Juncker, reforçou este ponto observando que um limite máximo
originaria enormes fluxos de refugiados tentando atravessar a fronteira
antes de o número ser alcançado.
A isto, o primeiro-ministro albanês, Edi Rama, interrogou-se em voz
alta sobre o que os albaneses pensariam se pudessem ouvir a discussão.
Estavam a falar dos refugiados como se fosse uma força natural, uma cheia
ou um tremor de terra, «mas, antes dos números, devemos pensar nos
nossos valores». Neste ponto, Angela Merkel era a única que ainda se
interpunha entre o pânico geral e um encerramento total das fronteiras.
Extraiu a conclusão de que «os nossos valores estão sobre os ombros de
Angela». O tom dela estava já a mudar, claro, mas nesse momento
aproveitou a oportunidade para sublinhar que a Europa tinha de se
empenhar a continuar a receber refugiados, «caso contrário já não é de
Europa que estamos a falar».
Nesta altura, Merkel fez também um comentário que parecia sugerir que
alguns países estavam a tentar extorquir à União Europeia o máximo de
dinheiro que conseguissem. O presidente macedónio, Gjorge Ivanov, sentiu-
se ofendido, sugerindo que a Alemanha deveria enviar os seus serviços
secretos para verificar se cada cêntimo tinha ou não sido gasto com os
refugiados. Tentando desvanecer a tensão que ela própria criara, Merkel
gracejou, dizendo que todos os seus espiões estavam ocupados com a
National Security Agency americana, que como todos sabiam escutara os
seus telefonemas. Desculpou-se vagamente e prometeu que a Macedónia
obteria todo o dinheiro de que necessitasse. Foi nesse momento que a
Macedónia foi recrutada para ajudar a fechar a rota de refugiados que
levava de Esmirna a Munique.
Durante a discussão, foi Werner Faymann, o então chanceler austríaco,
quem continuou a insistir em que tudo o que a Turquia quiser «devemos
dar-lhe». Merkel disse também que, a determinado ponto, «temos de nos
comprometer com o que a Turquia quer». Muitos dos líderes presentes
acabaram por aceitar os elementos essenciais do futuro acordo turco.
Ninguém levantou objeções à oferta da liberalização de vistos para os
nacionais turcos. Apenas Zoran Milanović, da Croácia, sugeriu que a UE
deveria pressionar fortemente a Turquia. Se Ancara estava a abrir as portas
para que os refugiados entrassem na Europa, a Europa devia retaliar.
Poderia, por exemplo, devolver os refugiados à Turquia, usando algumas
das mesmas ações ilegais – ou seja, fora do procedimento de devolução
normal.
A dialética do poder e do caos tem de ser adequadamente compreendida.
No passado, o caos parecia uma matéria disforme para o poder europeu,
mas se o poder se encontra de súbito sem capacidade nem vontade para
expandir a sua própria esfera para os vazios de poder adjacentes e para as
turbulentas zonas fronteiriças, os termos da relação depressa podem ser
invertidos. O caos surge então como uma sobrecarga do sistema, impondo
fardos cada vez mais pesados à capacidade de processamento do sistema,
apesar de todos os esforços para ajustar em alta os algoritmos do
processamento.
Os líderes abandonaram a sua reunião de outubro confusos e
desanimados, mas com um sentimento mais claro de que as soluções do
costume já não resultariam. Passado um período de meses, a União
Europeia acabaria por despertar da paralisia. Aceitou que não poderia
continuar a ignorar o mundo fora das suas fronteiras, como se não tivesse
consequências para os seus interesses e forma de vida, enquanto resistia à
tentadora armadilha de fechar essas fronteiras através de esforços militares
e de policiamento maciçamente reforçados. Houve prudência na via
intermédia que consistia em tentar controlar os fluxos de migração sem
recuar para uma fortaleza inexpugnável, mas esta via intermédia tinha ainda
de ser traçada entre duas alternativas extremas. O acordo com a Turquia, no
ano seguinte, surgiu de um processo de descoberta em que Angela Merkel e
o presidente do Conselho Europeu, Donald Tusk, desempenharam os papéis
decisivos, a primeira abandonando o seu único foco no realojamento e o
segundo recuando em relação ao seu apelo para deter todos os refugiados
que chegassem à Europa.
Em março de 2016, quando bem mais de mil refugiados chegavam às
ilhas gregas todos os dias, a União Europeia alcançou um acordo com a
Turquia, cujo princípio fundamental era o compromisso de devolver todos
os que fossem ilegalmente da Grécia para a Turquia, em troca do que a
União Europeia aceitaria um igual número de sírios que viviam nos campos
turcos para se realojarem na Europa, até um limite de 72 mil. A UE
comprometia-se também a dar um novo ímpeto ao processo turco de adesão
e a pagar a Ancara seis mil milhões de euros para financiar os custos da
grande comunidade de refugiados dentro da Turquia. Havia aqui elementos
de uma abordagem muito mais eficaz. Pela primeira vez foi criado algo
como um canal de entrada legal, com o plano de realojamento dos campos
turcos e o rápido regresso dos que chegassem de forma ilegal, apesar de o
plano ter como limite um número irrisório, que foi depressa ultrapassado
pelo número de chegadas ilegais. A Turquia começou a controlar ativamente
o fluxo de migrantes e refugiados da sua costa, introduzindo patrulhas nas
praias, bloqueios nas estradas e prisões em massa de refugiados, ao mesmo
tempo que tentava dar segurança à sua própria fronteira com a Síria. Os
seus serviços secretos estavam suficientemente bem relacionados com as
redes de tráfico para que a nova política fosse executada com eficácia.
Semanas antes, pressionada por Bruxelas, a Macedónia introduziu
procedimentos semelhantes na sua fronteira com a Grécia e isso parece ter
tido um impacto ainda maior na redução dos fluxos de migrantes. Todos os
indícios apontam para uma conexão entre os dois momentos: assim que a
fronteira da Macedónia foi encerrada, a Turquia apressou-se a obter um
acordo, antes que perdesse a sua vantagem.
O acordo com a Turquia começou a provocar resultados mais depressa
do que a maioria esperara: o número de refugiados que atravessava da
Turquia para a Grécia diminuiu nitidamente e, em consequência, o número
de vidas perdidas no mar Egeu também desceu. Nos meses antes do acordo
de março, todos os dias cerca de 1740 migrantes atravessavam o mar Egeu
para as ilhas gregas. Em junho, o número médio diário de chegadas baixara
para apenas 47. O número de mortes no Egeu diminuiu de 1145 no ano
anterior ao acordo de março para 80 no ano que se seguiu.
Na Turquia e na Macedónia, a União Europeia encontrou híbridos
convenientes, países que estão suficientemente próximos da Europa para
que se alcançasse um acordo deste tipo e suficientemente distantes para se
poder depender deles para usarem os métodos mais vigorosos que os países
europeus não estão dispostos a usar, ou para lidarem com a instabilidade
interna do tipo que a Europa não seria capaz de suportar. Para a Turquia, o
acordo era decerto atraente. Detendo o fluxo, evitava tornar-se uma zona de
trânsito para a crescente imigração do Afeganistão e do Paquistão, ao
mesmo tempo que recebia os fundos necessários para suportar os pesados
custos envolvidos na receção e assimilação de dois a três milhões de sírios.
Além disso, uma nova relação com a União Europeia, agora baseada em
necessidades comuns e urgentes, poderia garantir à Turquia uma mão livre
para a sua política interna e envolvimento na Síria e no Iraque.
Existem problemas, claro. Primeiro, há pouca oferta de países híbridos e
não se encontram simplesmente disponíveis noutros lugares, por exemplo
em África. Os países africanos nem têm estruturas estatais para controlar
eficazmente as suas fronteiras, nem um incentivo para terminar com o
crescente fluxo de remessas da Europa. Mesmo o acordo com a Turquia
assenta em terreno movediço. O número de refugiados nas ilhas gregas
continua a subir, ao passo que o resto da União Europeia sabe que seriam
muito mais difíceis de conter no continente grego. A determinado ponto, a
situação nessas pequenas ilhas tornar-se-á insustentável, mas qualquer
transferência significativa para o continente originaria renovadas tentativas
de atravessar a partir da Turquia, assim que os refugiados e os passadores
sentissem que uma política de devolução se tornava implausível – tentativas
que a guarda fronteiriça turca seria tão incapaz de conter como relutante em
fazê-lo e pela qual poderia culpar a mudança da política grega. Os centros
de receção na Sérvia e na Macedónia, que estavam já a aproximar-se dos
limites da sua capacidade no início de 2017, rapidamente entrariam em
colapso e é provável que o influxo resultante para a Áustria e a Alemanha
fizesse pender os pratos da balança a favor dos partidos e movimentos
políticos radicais.
A nova política pedia uma nova compreensão das motivações dos
refugiados e da lógica que dominava os interesses turcos. Para alguns, na
medida em que permitia a devolução sistemática de refugiados da Grécia
para a Turquia, este esforço era uma traição aos valores europeus, mas
numa era em que a Europa já não é capaz de moldar o mundo inteiro à sua
imagem, uma política externa que lida com o mundo como ele é será
sempre preferível a não ter qualquer tipo de política externa. Os problemas
da política internacional não podem ser resolvidos em casa. Precisam de ser
resolvidos o mais próximo possível da sua origem. No caso da crise dos
refugiados, isto significou que a chave para pôr fim à chegada
descontrolada à União Europeia de centenas de milhares de migrantes e de
candidatos a asilo foi sustida pela Turquia, que por si só podia deter essas
travessias antes de serem tentadas. Ao mesmo tempo, a noção de que a
Turquia faria o esforço se a União Europeia não partilhasse a carga de
receber e integrar ondas sucessivas de refugiados era obviamente falsa à
partida. Finalmente, assim que se tornou claro que a rota através da Grécia
estava fechada e que havia uma perspetiva real de se conseguir entrada
legal na Europa a partir da Turquia, os incentivos para a vasta maioria das
pessoas para pagarem a passadores e arriscarem as suas vidas no mar
desapareceriam3.
O sistema no âmbito do qual o problema estava a ser confrontado tinha
a Turquia no seu centro, com a Grécia e os Balcãs num extremo e o
Paquistão no outro. Ao fechar a sua fronteira com a Grécia, a Turquia
fornecia um alívio bem-vindo à pressão acumulada nas suas próprias
fronteiras orientais. No interior de todo o sistema, a Turquia enfrentava uma
dificuldade específica. Enquanto a Europa esperava controlar a sua fronteira
com a Turquia confiando na cooperação turca, Ancara não tinha essa
esperança em relação ao Irão ou ao Iraque. Assim, tentou controlar as suas
fronteiras orientais fechando o caminho para a Europa àqueles migrantes e
refugiados que vinham do arco de países que se estendia até à fronteira
indiana. Uma compreensão adequada de todo o sistema de relações estava a
fazer um progresso lento e difícil. Isto significava também que os países
europeus tinham de aceitar que os seus destinos estavam agora
inextrincavelmente ligados ao seu vizinho mais volátil e instável. Pela
primeira vez, ao que parecia, a Europa estava a aceitar a existência de um
mundo maior e desregrado à sua porta.
EPÍLOGO

O ano que passei a escrever este livro foi cheio de surpresas na Europa e
nos Estados Unidos. Primeiro veio o Brexit. Tínhamos sido avisados
com bastante antecedência que o resultado do referendo iria ser renhido,
mas todas, ou quase todas, as previsões fundamentadas eram de que o
Reino Unido votaria mesmo assim para ficar na União Europeia. A
alternativa era, sob alguns aspetos, impensável, sobretudo porque muito
poucos tinham pensado seriamente a esse respeito. Quando as primeiras
sondagens à boca das urnas apontaram para uma estreita vitória da
campanha do «Ficar», pareceram ser um sossego: os eleitores queriam
reformas e assim, na sua sabedoria, tinham optado por enviar um recado aos
políticos, mas, como esperado, não estavam prontos para questionar os
aspetos fundamentais da ordem política existente na Europa. Não havia
alternativa.
Uma ou duas horas depois, essas sondagens à boca das urnas mostravam
estar erradas de forma espetacular e começou o questionamento. Muitos
recusavam-se simplesmente a acreditar que o Brexit chegasse a acontecer.
Outros, como o Financial Times, pareciam anunciar o colapso iminente do
sistema político e económico britânico. Se o impensável ocorrera, decerto
se seguiriam consequências impensáveis.
O choque e a surpresa foram ainda maiores quando, alguns meses
depois, Donald Trump foi eleito Presidente dos Estados Unidos. Por um
lado, as sondagens tinham sido ainda mais definitivas a anunciar que um tal
desfecho estava fora de questão. Por outro, era muito mais difícil
argumentar que a ordem global se manteria inalterada quando o país mais
poderoso do mundo decidia eleger um candidato fora de toda a tradição
política do que minimizar a importância do Reino Unido e as suas
ocasionalmente excêntricas decisões.
Grande parte da angústia tinha a ver com o facto de a revolta contra
alguns dos princípios básicos da ordem global não vir da periferia, mas do
próprio centro do poder mundial. Não das províncias distantes, que a
riqueza e as ideias não poderiam alcançar, mas da capital, ou antes, do
palácio imperial erigido no próprio coração da capital. Não era suposto
acontecer uma coisa assim.
O que era notável acerca do referendo do Brexit era que o país que
inventara o comércio livre e o levara aos quatro cantos do mundo estava
agora a recusar-se a fazer parte do maior e mais livre bloco económico
alguma vez criado. Quanto a Trump, simbolizava uma retirada precipitada
do anterior consenso sobre a política externa americana. Por vezes, ele
parecia querer arrasar a ordem liberal mundial existente e substituí-la por
outra coisa, definida em torno de uma forte ideia nacional e apelando a um
mundo de competição desbragada. Tem criticado uma cultura política que
premeia a difusão do poder, na crença de que, sem um Estado forte, os
cidadãos não terão ninguém que os defenda contra os outros países. Parece
entender um firme empenho nos valores liberais como um obstáculo ao
poder americano. Prometeu ir em busca daquilo que acredita serem os
melhores negócios para a América, mesmo que isso signifique livrar-se da
ordem liberal mundial tal como existe no presente. De acordo com Trump,
«o americanismo, e não o globalismo, será o nosso credo».
Comecemos pelo seu discurso inaugural. Foi um discurso estranho,
porque deixava de fora o âmago daquilo que um político americano nos
Estados Unidos normalmente incluiria: um apelo aos princípios universais
da liberdade, da democracia e da igualdade guiando a América na sua ação
no interior e no estrangeiro. Não foi sobre nada disso, mas em grande parte
sobre ser um líder mundial, sobre a lealdade ao país e a construção de novas
infraestruturas. Culminou na mensagem de que «todas as decisões sobre
comércio, impostos, imigração, relações externas, serão tomadas para
beneficiar os trabalhadores americanos e as famílias americanas. Temos de
proteger as nossas fronteiras das devastações dos outros países que fazem
os nossos produtos, roubam as nossas empresas e destroem os nossos
empregos».
Numa reveladora entrevista em fevereiro de 2017, foi perguntado a
Trump se seria capaz de se entender com o Presidente Putin, que o
entrevistador descrevia como um «assassino». Ele pareceu interpretar a
pergunta como fazendo parte de um modelo de imposição de padrões
morais mais severos e de amarras aos Estados Unidos do que aos seus rivais
e apressou-se a pô-los ao mesmo nível. «Nós temos muitos assassinos. O
quê, acha que o nosso país é assim tão inocente?» O método não é
particularmente complicado. Trump percorre a lista dos princípios liberais
e, em cada caso, pergunta se são compatíveis com a continuação da
primazia global americana. Muitos desses princípios chumbam no teste,
segundo a sua opinião: fronteiras abertas, transparência e abertura na
política externa, uma imprensa adversa e uma forte aliança com as
organizações internacionais. Se esta tendência continuar e a política externa
americana vier a adotar um forte conceito de soberania nacional, liberta de
regras e instituições internacionais, terá sido desenvolvida uma
convergência ideológica com a Rússia e a China.
Estas eram algumas das principais linhas ideológicas que emergiram da
sua bem-sucedida campanha, mas, durante os seus primeiros meses na Casa
Branca, Trump prosseguiu-as de uma forma de tal modo errática que
aumentou a convicção de que a sua presidência representaria a destruição
da ordem anterior, mas ainda não a construção da nova. A velha estava a
morrer e a nova não podia nascer. Entretanto, como disse uma vez o
revolucionário marxista italiano Antonio Gramsci, iria haver todo o tipo de
destempero e languidez.
A ordem global criada depois da Segunda Guerra Mundial foi posta em
perigo antes, mas no passado a ameaça viera do exterior. Agora, parecia
correr o perigo de ser abandonada por aqueles que sempre tinham
beneficiado dela. Para alguns, o Brexit e Trump foram simplesmente um
erro de perceção: é verdade que os países no âmago do sistema têm de
restringir o seu poder e não podem sair beneficiados de todas as vezes, mas,
a longo prazo, recolhem os maiores benefícios e têm o maior interesse em
preservar o sistema.
À medida que as divisões na Europa e nos Estados Unidos ficavam cada
vez mais expostas, as relações entre as elites e os descontentes adquiriam
algo da velha e familiar dinâmica entre os europeus e aqueles que habitam o
resto do mundo. Os políticos e os intelectuais agitam-se a explicar o bizarro
comportamento eleitoral através de toda a espécie de teorias económicas e
psicanalíticas, ao mesmo tempo em que insistem em que se tornou urgente
um novo esforço na educação cívica. Essas mensagens não fizeram mais do
que aprofundar as divisões e a alienação.
A verdade é que, para muita gente no Reino Unido e nos Estados
Unidos, já não existia uma ordem liberal a funcionar. Entre as elites
intelectuais e financeiras, as crenças e as práticas adquiridas ao longo de
gerações pareciam tão sólidas como sempre, mas muitas outras pessoas
sofriam o impacto de forças vindas do exterior das suas fronteiras
nacionais, a que o Estado não estava disposto ou não era capaz de
responder. Enquanto as elites viam um sistema internacional bem oleado de
mercados, comércio e livre circulação de pessoas, os que estavam no fundo
apenas descobriam o resultado de forças cegas e Estados em competição
num mundo cada vez mais caótico. As fábricas encerravam por causa da
concorrência oriunda da China e de outros sítios e a mensagem comunicada
aos trabalhadores era a de que o seu país já não era capaz de competir.
Números crescentes de imigrantes tinham um impacto mensurável nos
bairros e no fornecimento de serviços públicos, afetando
predominantemente os pobres. Por fim, os terroristas eram vistos como
sendo capazes de desferir golpes à sua vontade, a partir de bases no
estrangeiro e de células na Europa e nos Estados Unidos.
Num discurso em Varsóvia, em julho de 2017, Trump apresentou uma
imagem radicalmente diferente do Ocidente: não triunfante, mas sob ataque
e capaz de prometer, não a vitória final, mas a vontade de resistir. «A
questão fundamental do nosso tempo é se o Ocidente tem a vontade de
sobreviver. Temos a confiança necessária nos nossos valores para os
defendermos a todo o custo? Temos o respeito suficiente pelos nossos
cidadãos para defendermos as nossas fronteiras? Temos o desejo e a
coragem de preservar a nossa civilização, face àqueles que querem
subvertê-la e destruí-la?» A sua resposta parecia estar colocada entre três
alternativas. A primeira, um regresso aos primeiros princípios, aqueles que
governaram os Estados Unidos na altura do seu maior poder, abandonando
os desvios mais recentes desses princípios fundamentais. A segunda, uma
revisão substancial da tradição política liberal americana, vista como já não
sendo capaz de responder aos desafios e às ameaças globais. A terceira, uma
perspetiva do mundo como um sítio perigoso que deve ser mantido à
distância e de que os americanos precisam de ser protegidos.
Ao escrever este livro, cruzei-me com um fenómeno semelhante nessas
sociedades que sofreram pela primeira vez o impacto da expansão europeia.
Poderia estabelecer-se uma analogia histórica com o impacto da civilização
europeia no mundo muçulmano. Até ao século XVIII, o curso da História
parecia ainda favorecer os grandes impérios muçulmanos e as elites
governantes otomanas, safávidas ou mongóis decerto nunca imaginaram
outra possibilidade. Quando o choque chegou, sob a forma de uma série de
derrotas militares e uma crescente dependência comercial, ninguém estava
preparado e a reação inicial foi esperar que a tempestade passasse,
mantendo-se fiéis aos hábitos e princípios tradicionais. Foram consideradas
duas principais linhas de reação. Primeiro, houve um apelo à purificação da
sociedade muçulmana de posteriores influências e desvios. A origem da
radical reinterpretação vaabita do islão data desse momento. A segunda
reação, movendo-se no sentido oposto, foi tentar reformar a sociedade
muçulmana, enfrentar as suas debilidades percecionadas e integrar algumas
ideias europeias, pelo menos na área da tecnologia militar1.
Um processo semelhante ocorreu na China, cerca de um século depois.
Determinada a abrir os mercados chineses às mercadorias estrangeiras, a
Grã-Bretanha introduziu o hábito de fumar ópio no país e, mais tarde,
defendeu o seu comércio através de meios militares, depressa derrotando a
marinha chinesa fracamente armada. O imperador pediu a paz, abriu cinco
portos aos estrangeiros e cedeu perpetuamente Hong Kong aos britânicos.
Era impossível fingir que a ordem do mundo tal como fora concebida por
Beijing desde tempos imemoriais poderia sobreviver à carnificina, mas os
mandarins passaram a maioria das décadas seguintes a fazê-lo, pois os seus
mais prezados valores proibiam o reconhecimento de qualquer alternativa à
civilização chinesa.
Em ambos os casos, os mundos muçulmano e chinês foram
confrontados com um novo tipo de civilização, contendo todos os segredos
da moderna ciência, que a princípio devem ter parecido poderes
sobrenaturais. O desafio para os europeus e os americanos do nosso tempo é
de natureza diferente. Em primeiro lugar, ocorre na arena da política
democrática, onde toda a mudança no equilíbrio internacional do poder é
sentida mais rápida e mais profundamente. Em segundo, a nova ordem
mundial para a qual nos movemos não possui um centro claro, mas antes
um que se distingue pela procura do equilíbrio entre diferentes polos. E,
contudo, conseguimos ver a semelhança fundamental entre processos que
são, como no passado, acerca das profundas perturbações internas
introduzidas por deslocações na ordem global. As reações podem
tipicamente ser agrupadas sob as duas alternativas principais de tentar
proteger uma forma de vida em perigo das influências externas ou, em
contrapartida, tentar adaptar essa forma de vida a tais influências.
Neste contexto, a perturbação simbolizada pelo Brexit e por Trump
parece mais inteligível e as mudanças que ocorrem tanto na política interna
como externa deixam de parecer tão pouco relacionadas. São o resultado
direto da ascensão de novas fontes de poder global na Ásia, cuja influência
já não poderá ser limitada nem controlada. Não é de surpreender que isto
seja por vezes obscurecido e relacionado com fatores internos muito mais
contingentes. Como vimos, a tentação de ignorar o mundo exterior ou de
negar a sua influência constitui uma primeira reação às deslocações no
poder global.
De vez em quando, contudo, a verdade emerge e torna-se visível para
todos. Um exemplo notável é o debate que agora ocorre na Grã-Bretanha
sobre se o país deverá ou não tomar Singapura como modelo para a vida
depois da União Europeia. O sentido mais imediato do plano seria cortar os
impostos e aliviar a regulamentação para transformar a Grã-Bretanha num
porto de abrigo para o investimento estrangeiro e fornecer compensação
pela perda de acesso ao mercado único. O que é mais significativo, o Reino
Unido estaria a tentar imitar a forma pela qual Singapura depressa foi capaz
de substituir o mercado malaio, com ligações comerciais e financeiras a
mercados mais distantes. Tal como Singapura se tornou um país asiático
mais profundamente ligado à Europa e aos Estados Unidos do que aos seus
vizinhos asiáticos, a Grã-Bretanha poderia tentar, apenas num par de
décadas, expandir as suas ligações com as economias dominantes do século
XXI: a China, a Índia e a Indonésia. Como o editor do Financial Times,
Lionel Barber, disse, numa conferência em Tóquio pouco depois do
referendo, o Brexit oferecerá à Grã-Bretanha novas oportunidades como
uma ágil nação comercial, «uma gigantesca Singapura atlântica»? Estará
uma nova capital eurasiática a nascer nas margens do Tamisa? Seria talvez
um final adequado para a nossa história, o país mais responsável por levar
as ideias europeias para a Ásia tornar-se um novo anfitrião para as ideias
asiáticas na Europa.
NOTAS

PREFÁCIO
1. Alexander von Humboldt, Asie centrale. Recherches sur les chaînes de montagnes et la
climatologie comparée, vol. 1 (Gide, 1843), p. 54.

INTRODUÇÃO
1. Chung Min Lee, Fault Lines in a Rising Asia (Brookings Institution Press, 2016).
2. Charles Kupchan, No One’s World: The West, the Rising Rest, and the Coming Global Turn
(Oxford University Press, 2013), p. 183.
3. Rabindranath Tagore, Imperfect Encounter: Letters of William Rothenstein and Rabindranath
Tagore (Harvard University Press, 1972), p. 238.
4. Walter Lippmann, «The Defense of the Atlantic World», em Force and Ideas: The Early Writings
(Transaction Publishers, 2000).
5. Robert Kaplan, «The Return of Marco Polo’s World and the U.S. Military Response». Center for a
New American Security, www.cnas.org.
6. Steve Tsang, A Modern History of Hong Kong (I.B. Tauris, 2007), p. 167.
7. Ibid., p. 178.
8. Lee Kuan Yew, From Third World to First: The Singapore Story 1965-2000 (HarperCollins, 2000),
p. 50.

1. O MITO DA SEPARAÇÃO
1. Pio II, Opera Omnia, p. 678.
2. Denys Hay, Europe: The Emergence of an Idea (Harper Torchbooks,1966), p. 125.
3. Heródoto, Histórias I, 4-5.
4. Voltaire, History of the Russian Empire under Peter the Great, vol. I (Werner Company, 1906), p.
39.
5. J. Pocock, «Some Europes in Their History», em A. Pagden (coord.), The Idea of Europe: From
Antiquity to the European Union (Cambridge University Press, 2002), p. 58.
6. A.A. Chibilev e S.V. Bogdanov, «The Europe-Asia Border in the Geographical and Cultural-
Historical Aspects», Herald of the Russian Academy of Sciences 81 (2011).
https://doi.org/10.1134/S1019331611050017.
7. W.H. Parker, «Europe: How Far?», Geographical Journal 126 (1960).
8. Marshall Hodgson, Rethinking World History: Essays on Europe, Islam and World History
(Cambridge University Press, 2010 [1993]), p. 39.
9. Henry Kissinger, World Order: Reflections on the Character of Nations and the Course of History
(Allen Lane, 2014), p. 172.
10. Okakura Kakuzo, The Ideals of the East with Special Reference to the Art of Japan (John Murray,
1903), p. 1.
11. Hodgson, Rethinking World History, p. 45.
12. Hegel, Lectures on the Philosophy of History (G. Bell & Sons, 1914), p. 109.
13. Ibid., p. 121.
14. Peter Burke, «Did Europe Exist Before 1700?», History of European Ideas 1 (1980).
15. Wang Hui, The Politics of Imagining Asia (Harvard University Press, 2011), p. 4.
16. Lenine, Collected Works, vol. 18, p. 164.
17. Juliet Bredon, Peking (Kelly & Walsh Ltd, 1922), p. 58.
18. Karl Jaspers, The Origin and Goal of History (Routledge, 2014 [1949]), p. 70.
19. Hermann von Keyserling, Europe, trad. Maurice Samuel (Cape, 1928), pp. 359-61.
20. Hermann von Keyserling, The Travel Diary of a Philosopher, vol. 1 (Harcourt, Brace &
Company, 1925), p. 16.
21. Ibid., p. 273.
22. Victor Lieberman, «Transcending East-West Dichotomies», Modern Asian Studies (1997).
23. H.J. Mackinder, «The Geographical Pivot of History», Geographical Journal 23 (1904): 421-37,
p. 423.
24. Hodgson, Rethinking World History, p. 10.

2. INTEGRAÇÃO COMPETITIVA
1. Vladislav Surkov, discurso num encontro festivo do Rússia Unida, 7 de fevereiro de 2006.
2. Fyodor Lukyanov, «Putin’s Foreign Policy: The Quest to Restore Russia’s Rightful Place»,
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3. James Reilly, «China’s Economic Statecraft: Turning Wealth into Power», Lowry Institute
Analysis, novembro de 2013, p. 5.
4. William J. Norris, Chinese Economic Statecraft (Cornell University Press, 2016), pp. 62-3.
5. Anu Bradford, «The Brussels Effect», Northwestern University Law Review (2012).
6. Mark Entin e Ekaterina Entina, «The European Part of Russia’s Geopolitical Project: Correcting
the Mistakes. Part 2», Russian International Affairs Coun­cil, 29 de abril de 2016.
7. «Absorb and Conquer: An EU Approach to Russian and Chinese Integration in Eurasia», European
Council on Foreign Relations, junho de 2016.

3. O NOVO SUPERCONTINENTE EURASIÁTICO


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2015, p. 16, eng.globalaffairs.ru/pubcol/ Eurasian-Way­-Out-of-the-European-Crisis-17505.
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5. Zbigniew Brzezinski, The Grand Chessboard (Basic Books, 1997), p. 87.
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Century (Basic Books, 2002), p. 46.
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12. K.N. Chaudhuri, Trade and Civilisation in the Indian Ocean (Cambridge University Press, 2014
[1985]), pp. 99, 154-5.
13. Barry Cunliffe, By Steppe, Desert, and Ocean: The Birth of Eurasia (Oxford University Press,
2015), p. 25.
14. Janet L. Abu-Lughod, Before European Hegemony (Oxford University Press, 1991), pp. 354-61.
4. A PROCURA DO CENTRO
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2. William Dalrymple, City of Djinns: A Year in Delhi (HarperCollins, 1993), p. 9.
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5. Ptolomeu, Geographia 1.11.
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2020 According to China, coord. Shao Binhong (Brill Online, 2014), p. 134.
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Press, 1975), p. 16
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10. Aziz Burkhanov e Yu-Wen Chen, «Kazakh perspective on China, the Chinese, and Chinese
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11. Leonid Brezhnev, The Virgin Lands (Progress Publishers, c.1978), pp. 14-17.
12. Mukhamet Shayakhmetov, The Silent Steppe, trad. Jan Butler (Stacey International, 2006), p. 31.
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8. Valerie Hansen, The Silk Road: A New History (Oxford University Press, 2012).
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Hawai’i Press, 2004), pp. 16-40.
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3. Salvatore Babones, «Russia’s Eastern Gambit», Russia in Global Affairs, setembro de 2015, p.
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7. A RÚSSIA VOLTA-SE PARA ORIENTE


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1993-94 [escrito orig. 1873-81]), p. 1374.
5. Raymond McNally e Richard Tempest (coords.), Philosophical Works of Pyotr Chaadayev
(Kluwer Academic Publishers, 1991), pp. 23-4.
6. Tomáš Masaryk, The Spirit of Russia, vol. 1 (Allen & Unwin, 1919 [1913]), p. 331.
7. Marlène Laruelle, Russian Eurasianism: An Ideology of Empire (Johns Hopkins University Press,
2008), pp. 38-9.
8. Nikolai Sergeyevich Trubetzkoy, The Legacy of Genghis Khan and Other Essays on Russia’s
Identity, coord. Anatoly Liberman (Michigan Slavic Publications 1991 [1925]), p. 167.
9. Ibid., pp. 183-4.
10. Ibid., p. 198.
11. Ibid., p. 220.
12. Igor Davkin, «“If Russia is to be saved, it will only be through Eurasianism”, An Interview with
L.N. Gumilev», Russian Studies in Philosophy (inverno de 1995-96), p. 76.
13. Mark Bassin, Sergey Glebov e Marlène Laruelle (coords.), Between Europe and Asia: The
Origins, Theories, and Legacies of Russian Eurasianism (University of Pittsburgh Press, 2015), p.
193.
14. Fyodor Lukyanov, «Building Eurasia and Defining Russia», em Russia’s “Pivot” to Eurasia
(European Council on Foreign Relations, 2014), p. 22.
15. Armen Grigoryan, «Armenia: Joining under the Gun», em Putin’s Grand Strategy: The Eurasian
Union and its Discontents (Central Asia-Caucasus Institute and Silk Road Studies Programme,
2014).
16. Vladimir Lukin, «Looking West from Russia: The Eurasianist Folly», The National Interest,
novembro-dezembro 2015.
17. Norman Davies, Europe: A History (Oxford University Press, 1996), p. 11.
18. Vitaly Tretyakov, Rossiiskaya Gazeta, 2 de junho de2005.
19. Fyodor Lukyanov, «Russia-EU: The Partnership that Went Astray», Europe­-Asia Studies 60
(2008): 1107-19, p. 1117.
20. Kadri Liik, «How to Talk with Russia», European Council on Foreign Relations, 18 de dezembro
de 2015, p. 2, http://www.ecfr.eu/article/commentary_how_to_talk_to_russia505.
21. Arkady Ostrovsky, The Invention of Russia (Atlantic Books, 2015), p. 318.
22. Joseph Brodsky, «The View from the Merry-Go-Round», UNESCO Courier, junho de 1990.
23. Gleb Pavlovsky, The Russian System: A View from the Inside (Europe, 2015).
24. Vladimir Sorokin, «Let the Past Collapse on Time!», New York Review of Books, 8 de maio de
2014.

8. TÚNEL EURÁSIA
1. Şener Aktürk, «The Fourth Style of Politics: Eurasianism as a pro-Russian rethinking of Turkey’s
geopolitical identity», Turkish Studies 16.1 (2015).
2. Atatürk’ün Bütün Eserleri, 12 (1921-22) (Kaynak Yayınları, 2003), p. 297.
3. M. Şükrü Hanioğlu, Atatürk: An Intellectual Biography (Princeton University Press, 2017 [2013]),
p. 218.
4. Alexander Herzen, A Herzen Reader, trad. e coord. Kathleen Parthé (Northwestern University
Press, 2012), p. 125.
5. Charles Mismer, Souvenirs du monde musulman (Hachette, 1892), p. 110.
6. Cit. em The Modern Middle East: A Sourcebook for History (Oxford University Press, 2006), p.
410.
7. John Stuart Mill, On Liberty (Yale University Press, 2003 [1859]), pp. 135-6. [Ed. portuguesa:
Sobre a Liberdade (Edições 70, 2006).]
8. The Guardian, 3 de abril de 2007.

9. A PENÍNSULA EUROPEIA
1. Italo Colantone e Piero Stanig, «Global Competition and Brexit», BAFFI CAREFIN Centre
Research Paper n.º 2016-44, novembro de 2016.
2. Ivan Krastev e Mark Leonard, «The New European Disorder», European Council of Foreign
Relations, 20 de novembro de 2014.
3. European Stability Initiative, «Why People Don’t Need to Die in the Aegean – a Policy Proposal»,
17 de novembro de 2015.

EPÍLOGO
1. William H. McNeill, The Rise of the West (University of Chicago Press, 1992 [1963]), pp. 694-5.

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