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EUROCENTRISMO

Nas últimas décadas, a palavra “eurocentrismo” vem sendo usada com bastante
frequência por sociólogos, antropólogos, filósofos, pedagogos, ensaístas, críticos literários e
historiadores. Apesar dessa ampla difusão na literatura contemporânea, não é sempre que a
palavra vem acompanhada de uma definição ou de uma matização teórica. Parte-se do
princípio que todos sabem seu significado, ainda que suas consequências, seu alcance ou, até
mesmo, a veracidade de sua existência sejam alvo de acalorados debates. A ausência de uma
descrição mais precisa pode fazer com que “eurocentrismo” seja facilmente confundido com
“etnocentrismo”1, fator que limita o poder explicativo que pode ser vinculado ao primeiro
termo. Um exemplo disso é a definição bastante sintética do dicionário de antropologia de
Mike Morris, onde o eurocentrismo é caracterizado como uma noção básica que defende que
os valores europeus são naturalmente superiores aos de outros povos, postura que pode ser
facilmente descrita como etnocêntrica2.
Um entendimento um pouco mais refinado desta temática é esboçado no verbete do
New Dictionary of the History of Ideas, no qual “eurocentrismo” é apresentado como uma
“tendência discursiva para interpretar as histórias e culturas das sociedades não ocidentais a
partir de uma perspectiva europeia (ou ocidental) [tradução livre]”3. O verbete identifica
como traço comum do eurocentrismo a superestimação das sociedades não europeias, atitude

1
O dicionário de conceitos históricos, de Kalina Vanderlei Silva e Maciel Henrique Silva, define
“etnocentrismo” como: “uma visão de mundo fundamentada rigidamente nos valores e modelos de uma dada
cultura; por ele, o indivíduo julga e atribui valor à cultura do outro a partir de sua própria cultura.” (p. 127). Os
autores também destacam que o etnocentrismo é antiguíssimo e pode ser encontrado em diversas culturas. No
âmbito do dicionário, não é demarcada uma diferença significativa entre etnocentrismo e eurocentrismo que é
definido tal qual a “atitude das diversas nações europeias de impor seus valores e de se considerarem superiores
aos povos autóctones da África, da Ásia e da América.” SILVA, Kalina Vanderlei; SILVA, Maciel Henrique.
Dicionário de conceitos históricos. São Paulo: Contexto, 2009. p. 129.
2
MORRIS, Mike. Concise dictionary of social and cultural anthropology. Chichester: Wiley-Blackwell, 2012.
p. 88.
3
No original: “discusive tendency to interpret the histories and cultures of non-european (or Western)
perspective”. HOROWITZ, Maryanne Cline (ed.). New dicionary of the history of ideas (vol. 2). New York:
Charles Scribner's Sons, 2005. p. 737.

1
que poderia ser facilmente descrita como etnocêntrica. Todavia, o texto vai adiante e realça
um elemento que será particularmente relevante para a reflexão historiográfica sobre o
assunto, qual seja: a prática eurocêntrica de instituir uma visão das trajetórias históricas das
sociedades não europeias, a partir de pressupostos unicamente europeus. Um desdobramento
dessa prática seria a interpretação das histórias das “outras” partes do mundo como partes
complementares da grande narrativa da expansão da Europa e de sua influência civilizatória
sobre o globo.
Uma reflexão bastante instrutiva4 sobre o tema do eurocentrismo pode ser
encontrada no livro do economista Samir Amin, Eurocentrism. Na obra, Amin chama nossa
atenção sobre a importância de diferenciar eurocentrismo de etnocentrismo. Isto porque,
ainda que não possa ser considerado estritamente uma teoria, o eurocentrismo não é uma
simples forma de etnocentrismo, este sim uma manifestação que pode ser encontrada em
diversas culturas ao longo do tempo e do espaço, não sendo, portanto, uma exclusividade
europeia5. O eurocentrismo, por outro lado, seria uma “construção relativamente moderna”
[tradução livre]6, um fenômeno que pode ser considerado vigente do século XVIII, em diante.
Para o autor, mais do que um conjunto de erros, preconceitos e enganos que os ocidentais
possam ter cometido ao observar e interagir com outras culturas, o eurocentrismo implica em
uma teoria da história mundial que, a seu turno, pode ser empregada como instrumento de
determinados projetos políticos.
O exame da produção dessa metanarrativa da superioridade europeia deveria
interessar mais à comunidade historiográfica, até porque tal metanarrativa constitui um
enorme obstáculo para uma compreensão mais adequada do passado da Europa, bem como
das “outras” partes do mundo, mas também das relações entre as diferentes sociedades e
culturas. Em certo sentido, essa é uma das críticas presentes na obra do antropólogo Jack
Goody que recebeu o sugestivo título de O Roubo da História. No livro, publicado pela

4
Ainda que o próprio autor a considere um tanto simplista, o que nos serve de alerta para a complexidade do
fenômeno que estamos abordando. Nas palavras de Amin: “The composite Picture of Eurocentrism presented
here is, by force of circumstances, simplistic, since it only retains the common denominator of varied and
sometimes contradictory opinions.” AMIN, Samir. Eurocentrism; modernity, religion, and democracy; a critique
of eurocentrism and culturalism. (Second edition). New York: Monthly review press, 2009. p. 181.
5
Que o etnocentrismo seja uma postura que pode ser encontrada em diversas sociedades é um argumento com o
qual parece concordar outro autor que é geralmente discutido quando o tema é eurocentrismo, Jack Goody.
Contudo, a opinião do autor é de que o eurocentrismo é uma mera variante do etnocentrismo: “Todas as
sociedades humanas exibem um certo etnocentrismo que, em parte, é um requisito do qual eurocentrismo e
orientalismo são variantes, não é uma doença exclusiva da Europa.” GOODY, Jack. O roubo da História; como
os europeus se apropriaram das ideias e das invenções do Oriente. São Paulo: Editora Contexto, 2008. E-book.
6
“relatively modern construct”. In: AMIN, Op. cit., p.178.
WILLIAMS, Rachel. "Eurocentrismo". In: Abecedário da Descolonização. Vol.1 2023. Rio de
Janeiro: Universidade do Estado do Rio de Janeiro, Departamento de História. Disponível em:
https://www.descolonizandoconhecimentouerj.com/in%C3%ADcio/revista-on-line-abced%C3
%A1rio-da-descoloniza%C3%A7%C3%A3o/arquivo/e-f-g-h . ISSN 2764-9393
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primeira vez em 2007, Goody produz uma contundente crítica, não isenta de fragilidades7, ao
que ele classificou como “a dominação da história pelo Ocidente”8, e que corresponde à
apresentação e à conceituação do passado global em conformidade com a lógica, restrita e
provincial, da Europa Ocidental. Argumento semelhante, porém, com desenvolvimento
bastante distinto, é esboçado no livro do geógrafo James Blaut, no qual o autor afirma que o
eurocentrismo, muito mais que um conjunto de preconceitos contra povos não-europeus, é
um problema que concerne à ciência e à produção de conhecimento especializado.
Aprofundando a reflexão sobre o tema, Blaut afirma que é um problema central para a
historiografia e para a história das ideias compreender como o discurso histórico ocidental
assimilou – creio ser acertado acrescentar que tal discurso não apenas assimilou, bem como
produziu e difundiu – afirmações eurocêntricas que, todavia, são frágeis do ponto de vista
metodológico9. Acerca da centralidade desse problema, creio ser difícil divergir do autor.
O sociólogo Immanuel Wallerstein, reconhecido principalmente pelo sólido e
amplamente difundido trabalho acerca do sistema mundial moderno, refletiu em diferentes
escritos a respeito do arcabouço teórico das ciências sociais, e de suas relações com os
desafios colocados pelas transformações das estruturas políticas e sociais globais, no final do
século XX. Após analisar a história social da epistemologia das ciências sociais, o autor
defendeu, ainda em 1998, que muitas das suposições e princípios que servem como base para
as ciências sociais, além de serem enganosos, representam verdadeiras amarras ao
pensamento crítico. A origem de tais amarras e enganos pode ser encontrada, muitas vezes,
na lógica eurocêntrica que acompanhou o momento de fundação das ciências humanas,
deixando marcas significativas também em seu arcabouço teórico10.
Importa registrar, como nos recorda Wallerstein, que a crítica ao eurocentrismo
ganha força em 1945, nos quadros dos movimentos de descolonização da África e da Ásia,
cenário no qual as denúncias e críticas efetivadas pelos discursos anticoloniais – nas vozes de

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Uma boa apreciação crítica está na resenha da obra escrita por Jacques Revel. Ver: REVEL, Jacques. A história
redescoberta? In: BOUCHERON, Patrick; DELALANDE, Nicolas. Por uma história-mundo. Belo Horizonte:
Editora Autêntica, 2015. p. 21-28.
8
GOODY, Op. cit.
9
Cf. BLAUT, Op. cit., p. 9.
10
A explicação, para essa contaminação do eurocentrismo no cerne das ciências sociais, é na verdade bastante
simples, pois, de acordo com Wallerstein, tais ciências são um produto do sistema mundo moderno e, por sua
vez, o eurocentrismo é constitutivo da geocultura desse sistema. Assim, nada mais natural do que imaginar que
as ciências sociais, conforme a formatação que receberam na Europa do século XIX, fossem buscar soluções
para os problemas relacionados ao universo europeu da época, momento no qual algumas entidades políticas
europeias exerciam um forte domínio imperialista em diversas áreas da África e da Ásia.
WILLIAMS, Rachel. "Eurocentrismo". In: Abecedário da Descolonização. Vol.1 2023. Rio de
Janeiro: Universidade do Estado do Rio de Janeiro, Departamento de História. Disponível em:
https://www.descolonizandoconhecimentouerj.com/in%C3%ADcio/revista-on-line-abced%C3
%A1rio-da-descoloniza%C3%A7%C3%A3o/arquivo/e-f-g-h . ISSN 2764-9393
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autores como Aimé Césaire11 e Franz Fanon12, para citar dois exemplos emblemáticos –
ocuparam um lugar preponderante. Também não custa assinalar que a perspectiva teórica
pós-colonial, em alguma dimensão herdeira do discurso anticolonial13, se afirma no cenário
intelectual como crítica ferrenha ao eurocentrismo, para tanto, basta lembrar de uma das
referências mais elementares dessa perspectiva, o livro Orientalismo de Edward Said.
No entanto, dentre as muitas reflexões de Immanuel Wallerstein sobre o
eurocentrismo, a que nos interessa é aquela que poderá nos auxiliar a compreender o que o
autor denominou de “avatares do eurocentrismo”. Tais avatares seriam uma espécie de
encarnação do eurocentrismo, em outras palavras, as formas através das quais o
eurocentrismo se manifesta no mundo. Wallerstein enumera cinco campos de ação dos
avatares do eurocentrismo: historiografia, universalismo, civilização, orientalismo e
progresso14. O exame das categorias, em que são agrupados os avatares do eurocentrismo, é
uma operação particularmente importante para o campo das humanidades, tendo em vista que
a bibliografia e as fontes primárias com as quais operamos regularmente estão apinhadas de
manifestações diretas e indiretas destes avatares. Assim, por exemplo, o termo civilização é
usualmente empregado em contraposição às noções de primitivo ou bárbaro, concepções já
francamente contestadas pela antropologia15. Já a noção de progresso, que em muitos casos
serviu como um substituto para civilização, forneceu o fundamento racional das teses que
descrevem as sucessivas etapas de desenvolvimento das sociedades que, por sua vez,
embasam as teorias de modernização, também já amplamente criticadas16. Em linhas
muitíssimo gerais, as teorias de modernização e as formas etapistas de compreensão da
história acabam sendo eurocêntricas porque supõem, declarada ou implicitamente, que a
trajetória histórica europeia não é apenas o modelo, mas, também, a meta a ser alcançada no
final da corrida pelo desenvolvimento.

11
Ver: CÉSAIRE, Aimé. Discurso sobre o colonialismo. São Paulo: Veneta, 2020.
12
FANON, Frantz. Os condenados da terra. São Paulo: Zahar, 2022.
13
Para uma genealogia bastante elucidativa da perspectiva teórica pós-colonial, ver a síntese apresentada pelo
especialista em Franz Fanon, Deivison Mendes Faustino. Ver: FAUSTINO, Deivison. A disputa em torno de
Frantz Fanon; a teoria e a política dos fanonismos contemporâneos. São Paulo: Intermeios, 2020.
14
WALLERSTEIN, Immanuel. El eurocentrismo y sus avatares: los dilemas de las ciencias sociales. Revista de
Sociologia, n°. 15, 2001, pp. 27 - 39.
15
Ver: CLASTRES, Pierre. A sociedade contra o Estado; pesquisas de antropologia política. São Paulo: Ubu
Editora, 2017.
16
Ver GOODY, Op. cit.; GRAEBER, David; WENGROW, David. O despertar de tudo; uma nova história da
humanidade. São Paulo: Companhia das letras, 2022. E-book.
WILLIAMS, Rachel. "Eurocentrismo". In: Abecedário da Descolonização. Vol.1 2023. Rio de
Janeiro: Universidade do Estado do Rio de Janeiro, Departamento de História. Disponível em:
https://www.descolonizandoconhecimentouerj.com/in%C3%ADcio/revista-on-line-abced%C3
%A1rio-da-descoloniza%C3%A7%C3%A3o/arquivo/e-f-g-h . ISSN 2764-9393
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Aqui reside uma das muitas armadilhas da lógica eurocêntrica, ela se encontra tão
impregnada nos valores e concepções majoritárias do mundo contemporâneo que corre o
risco de passar desapercebida. O problema ainda é mais profundo do que aparenta, uma vez
que mesmo aqueles pesquisadores que estão compromissados em identificar e combater o
eurocentrismo, podem eles mesmos continuar perpetuando sua lógica através da adoção de
premissas eurocêntricas para criticar o eurocentrismo, uma armadilha descrita por Wallerstein
como “anti-eurocentrismo eurocêntrico”.
Assim, é possível perceber que muito mais do que uma atitude etnocêntrica por parte
de europeus em relação a outros povos, é recomendável entender o eurocentrismo como uma
lógica discursiva que governou, e em alguns casos ainda governa, os protocolos
epistemológicos de produção das ciências humanas na sociedade ocidental17.

Data de Publicação: 05/09/2023

Autoria: Rachel Williams

Bibliografia

AMIN, Samir. Eurocentrism; modernity, religion, and democracy; a critique of eurocentrism


and culturalism. (Second edition). New York: Monthly review press, 2009.
CÉSAIRE, Aimé. Discurso sobre o colonialismo. São Paulo: Veneta, 2020.
CLASTRES, Pierre. A sociedade contra o Estado; pesquisas de antropologia política. São
Paulo: Ubu Editora, 2017.
FANON, Frantz. Os condenados da terra. São Paulo: Zahar, 2022.
FAUSTINO, Deivison. A disputa em torno de Frantz Fanon; a teoria e a política dos
fanonismos contemporâneos. São Paulo: Intermeios, 2020.
FERDINAND, Malcom. Uma ecologia decolonial; pensar a partir do mundo caribenho. São
Paulo: Ubu editora, 2022.
GOODY, Jack. O roubo da História; como os europeus se apropriaram das ideias e das
invenções do Oriente. São Paulo: Editora Contexto, 2008. E-book.
GRAEBER, David; WENGROW, David. O despertar de tudo; uma nova história da
humanidade. São Paulo: Companhia das letras, 2022. E-book.
HOROWITZ, Maryanne Cline (ed.). New dicionary of the history of ideas (vol. 2). New
York: Charles Scribner's Sons, 2005.
17
Atualmente, outros ramos de conhecimento têm se preocupado com as consequências do eurocentrismo em
suas áreas. Um bom exemplo desse movimento é o livro de Malcom Ferdinand recentemente publicado em
português. Ver: FERDINAD, Malcom. Uma ecologia decolonial; pensar a partir do mundo caribenho. São
Paulo: Ubu editora, 2022.
WILLIAMS, Rachel. "Eurocentrismo". In: Abecedário da Descolonização. Vol.1 2023. Rio de
Janeiro: Universidade do Estado do Rio de Janeiro, Departamento de História. Disponível em:
https://www.descolonizandoconhecimentouerj.com/in%C3%ADcio/revista-on-line-abced%C3
%A1rio-da-descoloniza%C3%A7%C3%A3o/arquivo/e-f-g-h . ISSN 2764-9393
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MORRIS, Mike. Concise dictionary of social and cultural anthropology. Chichester:
Wiley-Blackwell, 2012.
REVEL, Jacques. A história redescoberta? In:BOUCHERON, Patrick; DELALANDE,
Nicolas. Por uma história-mundo. Belo Horizonte: Editora Autêntica, 2015. p. 21-28.
SAID, Edward. Orientalismo; o Oriente como invenção do Ocidente. São Paulo: Companhia
de bolso, 2007.
SILVA, Kalina Vanderlei; SILVA, Maciel Henrique. Dicionário de conceitos históricos. São
Paulo: Contexto, 2009. p. 129.
WALLERSTEIN, Immanuel. El eurocentrismo y sus avatares: los dilemas de las ciencias
sociales. Revista de Sociologia, n°. 15, 2001, pp. 27 - 39.

WILLIAMS, Rachel. "Eurocentrismo". In: Abecedário da Descolonização. Vol.1 2023. Rio de


Janeiro: Universidade do Estado do Rio de Janeiro, Departamento de História. Disponível em:
https://www.descolonizandoconhecimentouerj.com/in%C3%ADcio/revista-on-line-abced%C3
%A1rio-da-descoloniza%C3%A7%C3%A3o/arquivo/e-f-g-h . ISSN 2764-9393
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