Ficha Técnica
Europa Trágica e Magnífica
Edição
Público – Comunicação Social, S.A.
www.publico.pt
Textos
Teresa de Sousa
Design e Paginação
Teresa Cadoso Bastos – Design
Tel.: 218 400 858
Revisão
Laurinda Brandão
Impressão
Printer Portuguesa, S.A.
Fotografias
REUTERS
Representação da Comissão Europeia e do Gabinete
de Informação do Parlamento Europeu em Portugal
Imagem de capa: Vincent Kessler / Reuters
Com o apoio de
Representação da Comissão Europeia e do Gabinete
de Informação do Parlamento Europeu em Portugal
ISBN
978-989-619-233-4
Depósito Legal
374668/14
TERESA DE SOUSA
INTRODUÇÃO
23-O4-2014
ANTÓNIO VITORINO
PREFÁCIO
Diz-me quem citas, dir-te-ei quem és! Este aforismo popular (adaptado) bem
se poderia aplicar ao presente volume de escritos de Teresa de Sousa. A esco-
lha como título de uma frase emblemática de Jacques Delors define, por si só,
um posicionamento e encerra toda uma orientação. Escolha feliz, portanto,
na medida em que o jornalismo de opinião não tem que ser aparentemente
neutral ou asséptico para ser credível. Pelo contrário, Teresa de Sousa, pela
escolha que fez quanto ao título da obra, diz logo ao leitor ao que vem… Num
resumo muito sintético da escolha de um tal título podemos dizer que vamos
penetrar num conjunto de escritos (publicados entre 2006 e 2014) que têm
como eixo fundamental agregador «a Europa», numa relação de tensão per-
manente entre a tragédia e a magnificência.
Publicar em livro escritos jornalísticos, forçosamente datados e centrados
em acontecimentos circunstanciais, constitui, sem dúvida, um risco para o au-
tor. Desde logo porque o leitor percorrerá os textos com a valia acrescida de
os poder pôr em perspectiva em função dos acontecimentos subsequentes,
do que hoje sabemos e conhecemos e que, no momento da escrita, era apenas
mera hipótese ou simples conjectura. Mas também porque, em bom rigor, a
análise (forçosamente pontual) dos acontecimentos sobre que versam os es-
critos ora publicados exprime uma leitura e um entendimento do processo
de construção europeia que foi sofrendo, ao longo deste período de oito anos,
inúmeras vicissitudes, evoluções e involuções, que nos permitem reconstruir
os passos de uma fase de profunda mutação das condições, se não mesmo da
própria natureza, da União Europeia.
E embora o volume não esteja organizado por ordem cronológica, os seus
vários capítulos permitem-nos identificar os grandes esteios da construção
europeia e as opções essenciais com que os decisores políticos foram confron-
tados no período sobre o qual versa o livro.
Teresa de Sousa é uma europeia convicta, como não esconde em nenhum
dos seus textos. Justamente considerada a mais reputada jornalista portugue-
sa em temas europeus, a sua reflexão e a sua opinião contam e fazem a diferen-
ça, não apenas no debate público entre nós, mas também no quadro europeu.
Prefácio 9
pre fez e ainda mais justificadamente agora, num mundo globalizado, onde
pela primeira vez na História a riqueza criada nos países menos desenvolvidos
ultrapassou em 2012 a riqueza criada nos países desenvolvidos.
A justificação da integração europeia, seja do ponto de vista funcional, seja
inclusive do ponto de vista da sua legitimação aos olhos dos cidadãos dos Es-
tados-membros, reside não apenas na forma de convívio pacífico e negociado
entre povos e países que conheceram conflitos sangrentos no século passado
(e isso, por si só, já não seria pouco!), mas também no contributo que esta Eu-
ropa «unida na diversidade» pode e deve dar para uma ordem mundial mais
justa, equilibrada e preservadora da paz e da negociação multilateral. Neste
aspecto, a Europa representa também um farol de esperança perante o avo-
lumar de uma «nova (des)ordem mundial» de que Teresa de Sousa nos fala.
Ora, é neste capítulo que o seu desencanto com os recentes rumos europeus
mais se manifesta. Com efeito, tal como a autora, também o prefaciador havia
acreditado que, uma vez reguladas as questões internas com a adopção do Tra-
tado de Lisboa, que pôs fim a um longo período de mais de dez anos de nego-
ciação institucional e de alargamento no plano continental, estariam criadas
as condições necessárias para que a União Europeia assumisse plenamente
o seu papel no mundo, contrariasse os sinais de declínio e de relativa margi-
nalização e pudesse contribuir para a definição de uma «governance global»
assente em valores e princípios conformes com uma visão democrática e hu-
manista. A crise financeira global, que teve o seu epicentro nos Estados Unidos
da América, e as ondas de choque que desencadearam a crise do euro vieram,
de certo modo, ocupar o centro da agenda política europeia, com todo o seu
caudal de dramatismo, emergência e novas clivagens internas (mesmo aquelas
que pensávamos há muito superadas…), relegando para um plano secundário
a assumpção das responsabilidades globais europeias.
Teresa de Sousa insiste, uma e outra vez, na relevância central da aliança
transatlântica, seja no plano económico e financeiro, seja no plano da paz
e da segurança internacionais. E não deixa de registar, com justificável
preocupação, a desvalorização dessa relação transatlântica por parte da Ad-
ministração americana, mesmo da liderada por Barack Obama em quem os
europeus haviam depositado tantas expectativas. A translação para a Ásia do
centro de gravidade da política externa americana ainda não foi integralmente
compreendida e integrada pelos decisores políticos europeus e é com razão
que Teresa de Sousa reiteradamente chama a atenção para a necessidade de
a Europa assumir as suas responsabilidades para evitar que essa translação
se traduza numa progressiva marginalizarão do Velho Continente numa pos-
sível nova ordem mundial emergente. Mas, para tanto, as ambiguidades e as
divisões internas europeias em relação à própria relação transatlântica e em
relação a alguns parceiros terceiros e essenciais (como a China, a Rússia e a
Turquia) exigem, da parte da União Europeia, uma clarificação estratégica que
tarda e que, ao tardar, abre espaço para a proliferação de actuações unilaterais
Prefácio 13
para a crise financeira iniciada em 2008, que acabem por merecer a confiança
dos cidadãos e não as alternativas socialistas e social-democratas que, à parti-
da, poderiam apresentar um rumo de acção mais diferenciado? São vários os
escritos que dedica às vicissitudes do pensamento socialista e social-democra-
ta europeu no contexto da crise. Mas fá-lo sempre em função (e, por vezes, em
contraponto), quer da orientação liberal-conservadora dominante na última
década tanto no Conselho Europeu como no próprio Parlamento Europeu,
quer perante o crescimento dos extremismos (por vezes de sinal contrário) na
cena europeia. O crescente eurocepticismo no plano europeu e entre nós não
constitui apenas uma sequela colateral das agruras da crise, mas também da
tibieza e das contradições da própria construção europeia, com responsabili-
dades partilhadas, neste ponto, pelas duas grandes famílias políticas europeias
que historicamente foram os esteios do projecto de vida em comum, os demo-
cratas cristãos e os sociais-democratas.
Colocando a questão do âmago da construção europeia, mais do que pro-
curar respostas em arquétipos globais de inspiração federal, Teresa de Sousa
procura delimitar com exactidão e rigor as vantagens do método comunitário,
os riscos e as armadilhas das derivas intergovernamentais e da consequente
reinstauração de uma hierarquia de Estados que constitui a própria negação
do projecto dos «pais fundadores» e procura sempre libertar-se do equívoco
do «mais Europa» ou «menos Europa», tantas vezes dominante no debate no
espaço público, para centrar a sua análise (e crítica) nas concretas soluções
adoptadas ou em falta e na precisa medida em que umas e outras correspon-
dem às responsabilidades colectivas dos europeus. Por isso, as pertinentes
análises de Teresa de Sousa sobre as instituições europeias e os seus protago-
nistas não decorrem de uma leitura dogmática de um arquétipo «ideal» (do
tipo federal), mas antes de uma visão realista da relação de forças, dos con-
tributos dos vários stakeholders para a consolidação do projecto comum, das
respostas ao distanciamento e alheamento (crescentes) das opiniões públicas,
das lacunas detectadas em termos de responsabilidade política e respectiva
efectivação (o denominado «défice democrático»), da maior ou menor fideli-
dade das decisões tomadas em relação aos princípios norteadores afirmados
há mais de sessenta anos.
A autora demonstra nestes escritos que há um europeísmo cosmopolita
e solidário que espera urgentemente respostas à altura, para além dos com-
promissos ambíguos ou da frieza inóspita da racionalidade tecnocrática, por
detrás da qual se escondem várias vezes opções contrárias aos valores e prin-
cípios de um projecto europeu inclusivo e sustentável.
Na segunda vertente, a do nosso debate doméstico sobre a Europa, Tere-
sa de Sousa demonstra com sagacidade a vacuidade das alternativas à anco-
ragem do nosso país no projecto europeu. Com efeito, durante demasiado
tempo (e até ainda hoje…), vivemos dilacerados por alternativas que se apre-
sentavam como excluindo-se mutuamente entre uma «vocação europeia»
Prefácio 15
CAPÍTULO I
DA EUROPA
MAGNÍFICA
À NOVA
(DES)ORDEM
MUNDIAL
REUTERS/Thomas Peter
Da Europa magnífica à nova (des)ordem mundial 17
A OPORTUNIDADE
DE UM PRÉMIO
12-10-2012
«EUROPA TRÁGICA
E MAGNÍFICA»
20-03-2007
num modelo para o mundo. Tem uma moeda única capaz de ombrear com
o dólar e dá os primeiros passos na construção de uma política externa e de
segurança comum. Respondeu ao fim da Guerra Fria transformando a sua po-
lítica de alargamento numa poderosa máquina de transformação democrática
e levando até às fronteiras do continente a mesma paz e estabilidade que ga-
rantiu para si própria antes da queda do Muro de Berlim. O seu soft power pro-
jecta-se muito para além das suas fronteiras. Como perguntava recentemente
o Financial Times, que organização multilateral neste mundo pode apresentar
os mesmos resultados e reclamar o mesmo sucesso?
E, no entanto, em Berlim o receio do declínio e da perda de influência esta-
rão presentes, se não em palavras pelo menos em espírito, e o risco de desa-
gregação figura entre os cenários possíveis para aquela que muitas pessoas
consideram a maior crise da sua história.
Os desafios que enfrenta são outros e não têm a dimensão trágica daqueles
que enfrentou no pós-guerra. Vêm hoje da globalização económica, com os
seus novos protagonistas e o seu impacte sobre as sociedades europeias, mas
também de uma profunda crise da Aliança Atlântica, que garantiu durante os
últimos cinquenta anos a segurança indispensável ao seu tremendo sucesso
político, económico e social.
O que lhe falta, hoje, mais do que qualquer outra coisa, é o sentimento de
pertença e de solidariedade que se foi perdendo de uma forma alarmante nos
últimos tempos perante novas dificuldades e uma muito maior diversidade.
Falta-lhe, no fundo, uma nova narrativa, como escreveu também Timothy Gar-
ton Ash, que faça com que a ideia de pátria europeia volte a fazer sentido aos
olhos dos europeus.
Provavelmente nos dias que faltam para o 50.º aniversário vão ser publica-
das muitas sondagens sobre o estado de espírito dos europeus. Há uma, recen-
te, publicada pelo FT, que, sem ser muito representativa (foi feita apenas nos
cinco maiores países), traduz de algum modo esta necessidade de encontrar
uma história que volte a fazer sentido.
A paz, tal como a democracia, são hoje dadas como garantidas e isso faz com
que apenas uma minoria de inquiridos identifique a ideia de Europa com estes
valores fundamentais.
Em França apenas 15 por cento mencionam a paz, e na Alemanha apenas 9
por cento. Pelo contrário, o mercado interno ou a burocracia parecem traduzir
hoje uma ideia negativa da Europa que muitos europeus têm. Evidentemente
que, para uma maioria, a União continua a ser uma coisa boa (a excepção é o
Reino Unido), mas é uma maioria minguante.
Quanto ao que os europeus esperam que a Europa faça, os resultados vêm,
de algum modo, dar razão a algumas das escolhas do presidente da Comissão,
Durão Barroso, para fazer avançar a sua «Europa dos resultados». Mais de 70
por cento entendem que a União devia fazer ainda mais pelo ambiente e pelas
Da Europa magnífica à nova (des)ordem mundial 21
UM COLOSSO
À PROCURA
DE UM DESTINO
05-03-2011
A «digestão» de 1989
No dia 11 de Novembro de 2009 os líderes europeus reuniram-se em Berlim
para celebrar os vinte anos da queda do Muro. A face tranquila da primeira
chanceler da Alemanha que veio do Leste era o símbolo vivo e a prova derra-
deira do enorme sucesso europeu.
Fora uma longa e tortuosa caminhada.
Se o fim da Guerra Fria significou para a América a ilusão do «fim da Histó-
ria», para a Europa significou o seu inesperado e perturbador regresso. Tinha
a forma de uma grande Alemanha que reemergia como a «potência central»
do Velho Continente, trazendo consigo a memória da tragédia europeia. Foi
ainda a necessidade de contrariar a História que esteve na base de Maastricht.
O Tratado que fundou a União Europeia e estabeleceu o calendário da união
monetária tinha um objectivo político imediato: «amarrar» a Alemanha reuni-
ficada ao seu destino europeu exigindo-lhe a partilha do marco, o mais forte
símbolo do seu poder e soberania. O euro será a grande realização europeia
da década de 1990. A Europa ainda se pensa como Ocidental, adiando para a
década seguinte o desafio estratégico da unificação do continente.
A primeira década do novo século será marcada pela tensão constante entre
o alargamento aos países da Europa Central e de Leste — «o supremo interesse
alemão», segundo Joschka Fischer — e a necessidade de arrumar a casa. Suce-
dem-se as reformas institucionais.
A reforma de Nice coloca em cima da mesa a questão, até aí tabu, do novo
lugar da Alemanha. Berlim reivindica pela primeira vez um peso equivalente
à sua dimensão. A França ainda não está em condições de ceder. Em Maio de
2004 a União abre as portas a dez novos países da antiga Europa de Leste.
A grande reforma constitucional é lançada um ano antes. A Europa acredita,
por instantes, que pode ter a sua Convenção de Filadélfia. Sonha com o seu
George Washington. O sonho morre contra a inesperada rejeição da Constitui-
ção europeia em dois países fundadores: a França e a Holanda. Renasce sob a
forma de Tratado de Lisboa em 2007. Tem de vencer a desconfiança dos elei-
Da Europa magnífica à nova (des)ordem mundial 25
A última desilusão
No Inverno de 2008, Álvaro de Vasconcelos, director do Instituto de Estudos
de Segurança da UE, escrevia: «A União Europeia vai ter de adaptar rapida-
mente a sua política externa ao estatuto de grande potência.» Mas terá de
fazê-lo numa altura em que o ambiente internacional mudou radicalmen-
te num sentido que deixou de lhe ser favorável. Terá de conviver com um
mundo «marcado pelo regresso à política de potência que é, se não hostil,
pelo menos adverso ao modelo multilateral representado e defendido pela
Europa».
Ainda é um imenso reservatório de soft power. Mas o «poder de atracção»
que exerceu à sua volta esgotou-se contra as fronteiras instáveis do continente
A «fadiga do alargamento» — a indefinição sobre o que fazer à Ucrânia ou à
Turquia — não é mais do que o reflexo da indefinição estratégica sobre o papel
que quer ter no mundo. A eleição de Obama retirou-lhe o argumento da «su-
perioridade moral». «George W. Bush intimidou os líderes europeus com o seu
unilateralismo. Obama intimida-os com o seu multilateralismo», diz Richard
Gowan do European Council on Foreign Relations (ECFR).
É um gigante à procura de um propósito estratégico num mundo que, entre-
tanto, não ficou à sua espera.
«No mundo multipolar que está a emergir quais serão as potências que vão
contar?», interroga-se Charles Grant. Os EUA e a China, sem dúvida. A Índia,
a Rússia. Provavelmente o Brasil, o Japão. E a Europa? Visitem Pequim, Nova
Deli, Brasília, desafia do director do CER num ensaio a que chama Is Europe
doomed to fail as a power? Já ninguém a leva muito a sério. Se fosse precisa uma
prova, a cimeira de Copenhaga forneceu-a. A Europa convenceu-se que lhe
bastava a autoridade moral do seu exemplo. Quando chegou a hora da verda-
de, ninguém a convidou para se sentar à mesa. As novas potências «realistas»
respeitam a força mas aproveitam a fraqueza.
Tem 35 mil homens no Afeganistão. Missões militares nos quatro cantos do
mundo. Não consegue pesar em qualquer uma das questões vitais da seguran-
ça mundial. De novo Grant: «Quando se trata dos problemas mais urgentes,
como o Afeganistão, o Paquistão, a Coreia do Norte, o Médio Oriente, a Europa
ou é invisível ou está ausente.»
Está sobrerrepresentada no G20. Seria muito mais forte se apenas tivesse
um lugar.
26 Europa Trágica e Magnífica
A última oportunidade
Está confrontada com o risco de falhar a sua grande oportunidade: a feliz con-
jugação que poderia resultar da entrada em vigor do Tratado de Lisboa e da
eleição de Obama.
O Tratado devia ter sido o ponto de viragem. Ameaça transformar-se numa
enorme decepção. «A ideia de que, no fundo, a Europa prefere a comodidade
de ser uma Grande Suíça ao esforço de ser uma potência mundial ganhou ter-
reno no dia em que os líderes europeus escolheram segundas figuras para os
representar», escreve Tony Barber no Financial Times. A Alemanha vê-se cada
vez mais como Alemanha. A França e o Reino Unido nunca deixaram de se ver
como potências com influência mundial.
A crise do euro expõe as debilidades de uma união monetária que, contra-
riando os seus fundadores, não conseguiu fazer a Europa evoluir para uma
união política.
A eleição de Obama ofereceu-lhe o Presidente americano com que sempre
sonhou. «Os europeus não têm um objectivo para a aliança transatlântica, a
não ser a ideia de que dependem dela. Não conseguem aceitar que o mundo
mudou», avisam os autores de um estudo do ECFR sobre o que pode ser a Eu-
ropa no mundo pós-americano. Obama não terá, provavelmente, a Europa de
que precisa.
A questão é simples. A América não poderá liderar sozinha a tremenda
transformação do mundo a que assistimos, conduzindo-o para uma ordem
capaz de integrar pacificamente a ascensão da China e a ascensão «do resto».
Precisa de aliados. Precisa de uma Europa que esteja disposta a pagar o preço
da sua relevância. Mas a América sobreviverá à desordem de um mundo ad-
verso. O projecto europeu, tal como o conhecemos, não sobreviverá.
Da Europa magnífica à nova (des)ordem mundial 27
28 Europa Trágica e Magnífica
CAPÍTULO II
HISTÓRIAS
DA HISTÓRIA
RECENTE:
PEQUENOS
RETRATOS
AVULSO
REUTERS/Tobias Schwarz
Histórias da História recente: pequenos retratos avulso 29
HÁ VINTE ANOS
O EURO NASCIA
DA VONTADE
POLÍTICA CONTRA
OS MERCADOS
19-07-2011
Mitterrand retorquiu: «Apenas uma vontade política implacável pode pôr ter-
mo à especulação.»
A vontade do chanceler da Alemanha foi suficiente para levar o Bundesbank
a comprar maciçamente francos e a descer a sua taxa de juro. O braço-de-ferro
com os mercados durou quase um ano. A política venceu. A contagem decres-
cente para o euro atravessou outras tormentas mas nunca se afastou do cami-
nho. Foi o resultado da vontade política de dois estadistas. Está aí a sua força,
mas também parte das suas fraquezas.
Em 1989, ano em que o Muro de Berlim caiu e a Europa se confrontou com a
inevitabilidade da unificação alemã, a união monetária já era uma velha ideia.
Remonta à década de 1970 e ao célebre Relatório Werner (o nome do primei-
ro-ministro luxemburguês, Pierre Werner, que coordenou a sua elaboração),
encomendado pelos líderes de uma comunidade ainda a seis que, pela primei-
ra vez, decidiram fixar o objectivo de uma união monetária. Mas a ideia de
«desnacionalizar» um símbolo de soberania tão forte como a moeda ainda não
era politicamente viável. Sobretudo para a Alemanha Ocidental, que fizera do
marco o símbolo possível do seu orgulho nacional. Em vez disso, e por inicia-
tiva franco-alemã, a Comunidade decidiu criar em 1979 o Sistema Monetário
Europeu, assente na paridade fixa das moedas europeias.
Com o objectivo do Mercado Único fixado pelo Acto Único Europeu de 1986,
a ideia regressou à agenda europeia. Tratava-se ainda de levar a lógica do mer-
cado único até ao fim, eliminando as barreiras cambiais e explorando todo
o seu potencial. Em Junho de 1988, num Conselho Europeu em Hanôver, os
líderes decidiram relançar o projecto da UEM, encomendando ao presidente
da Comissão, Jaques Delors, um estudo pormenorizado sobre a sua realização.
O Relatório Delors já previa as grandes etapas e os principais critérios que de-
veriam levar à união monetária. Ficaria pronto em Abril de 1989.
A aceleração da História
Tudo mudou quando, no dia 9 de Novembro de 1989, o Muro caiu e o mundo
assistiu a essa «súbita aceleração da História», nas palavras de Jacques Delors
perante o Parlamento Europeu, que haveria de mudar a face política da Euro-
pa e abalar os fundamentos da integração europeia. A perspectiva da unifica-
ção alemã começou por ser recebida em França como um regresso da História
em forma de pesadelo. O instinto de Mitterrand, que vivera a Segunda Guerra
Mundial e conhecia a História, foi de rejeição. A reacção de Margaret Thatcher
foi ainda mais vigorosa. «Derrotámos os alemães por duas vezes e agora eles
voltaram.» Poucas semanas antes da queda do Muro, quando as manifestações
se sucediam nas praças de Leipzig e de Berlim Oriental, visitou Mikhail Gor-
batchov para lhe garantir que a Alemanha nunca se reunificaria. O Presidente
soviético estava de acordo.
A diferença entre o líder francês e a primeira-ministra britânica foi que, para
o primeiro, a Europa teria de continuar a ser a resposta a este súbito «regresso
Histórias da História recente: pequenos retratos avulso 31
Obra «imperfeita»?
Em Setembro de 2010, a académica americana Mary Elise Sarotte publicava na
revista americana Foreign Affairs um longo ensaio sobre a crise do euro «en-
quanto legado histórico». Começava com uma citação do antigo secretário de
Estado americano James Baker: «Quase todas as grandes realizações contêm
no seu êxito as sementes de problemas futuros.» O euro «fornece um exemplo
impressionante deste fenómeno». A sua tese está hoje muito difundida entre
32 Europa Trágica e Magnífica
BERLIM,
ALEXANDERPLATZ
10-11-2009
Muitos. A liberdade é hoje dada como garantida de Tallin a Lisboa. Como é que
alguém ainda se pode lembrar disto?
Aprendi outra lição nesses dias fantásticos de Berlim. Que há uma categoria
rara de políticos que compreendem o sentido dos acontecimentos e têm a cora-
gem de fazer as escolhas a que toda a gente se opõe. Um marco ocidental por um
oriental? Os tecnocratas demonstraram a irracionalidade da decisão. Os intelec-
tuais rejeitam a sua simplicidade linear. Os economistas previram a ruína. Hel-
mut Kohl preferiu ouvir o que lhe diziam os cidadãos da RDA, a quem a queda
do Muro abrira todas as esperanças. «Se o marco não vier até nós, iremos nós ter
com ele.» Achei nessa altura que o chanceler tinha razão. Não por uma especial
presciência, mas porque Willy Brandt estava do seu lado. Como esteve quase
sempre. Contra o seu próprio partido, que se opunha à reunificação económica,
argumentando com os custos elevados que traria (como trouxe) à economia da
RFA. A unificação da Alemanha contra a prosperidade intocável dos cidadãos da
sua metade rica. O SPD só recuperaria do seu erro histórico dez anos mais tarde.
A história da queda do Muro que acabámos de celebrar é a história emocio-
nante das pessoas comuns que estão fartas de aceitar a tirania e a estupidez.
Mas é também, como lembrava o historiador britânico Timothy Garton Ash, a
prova incontestável da importância dos indivíduos para decidir o seu curso.
Na segunda-feira, olhando para as celebrações em Berlim, houve uma ima-
gem que sobressaiu de todas as outras. Angela Merkel a passear pelas ruas
chuvosas ladeada por dois homens cujas escolhas corajosas foram determi-
nantes para que a História não se fizesse em tragédia mas em alegria. Mikhail
Gorbatchov e Lech Walesa. Com todos os seus defeitos, os seus enganos e as
suas ilusões, o que os distinguiu dos outros foi que tiveram a coragem de tomar
decisões que a maioria considerava loucas ou impossíveis.
Voltei muitas vezes a Berlim nos últimos vinte anos. Tive de beliscar-me para
acreditar na velocidade das transformações que a cidade sofreu. Nunca mais
tive um problema com os telefones.
Compreendo a nostalgia do passado. Quando o presente frustra as nossas ex-
pectativas é quase irresistível idealizarmos o tempo que passou. Ouço as pessoas
falarem do sentimento de entreajuda e de comunidade que havia quando a vida
era penosa e triste do lado de lá da cortina de ferro. Um dia, em Agosto de 1991,
quando estava em Moscovo para cobrir o golpe comunista que tentou travar o
curso imparável dos acontecimentos, fui jantar a casa de um casal de académicos
russos, dispostos a compartilhar comigo os momentos que estavam a viver. Mora-
vam numa daquelas torres cinzentas e degradas num bairro triste dos arredores
de Moscovo. Naquela altura faltava tudo — o que nunca houvera e o que já hou-
vera — e a minha anfitriã tinha mobilizado a vizinhança para me fazer um bolo.
Ovos no terceiro andar, farinha no quinto, iogurte um pouco acima. Pode ter-se
saudades deste espírito altruísta e solidário que, de resto, anima todas as mudan-
ças libertadoras. Mas a verdade é que aquele bolo só existiu porque já havia liber-
dade. Antes, receber um estrangeiro em casa, com bolo ou sem bolo, era crime.
Histórias da História recente: pequenos retratos avulso 35
OS «TRÊS GRANDES»
E A HISTÓRIA
08-04-2008
De Gaulle tinha a sua própria ideia da Europa, diferente da dos seus cinco
parceiros da altura e curiosamente muito mais próxima do que se conven-
cionou ser a visão britânica da integração. A sua era a «Europa das Pátrias»,
oposta à visão supranacional dos fundadores, incluindo os franceses, de uma
Comunidade construída como uma «extensão da França» e ao serviço da
grandeza da França. Daqui nasceu um equívoco. «Gostávamos da concepção
gaullista da Europa das Pátrias, não gostávamos da sua concepção da Europa
antiamericana.» Boa parte da ambivalência britânica em relação à Europa nas-
ce também daqui.
Os velhos hábitos custam a morrer. Ainda hoje a França se debate por vezes
com este sentimento de incomodidade face a uma Europa que deixou de ser à
sua imagem e semelhança, porque se alargou à dimensão do continente e por-
que passou a integrar uma Alemanha reunificada e plenamente soberana.
A ambivalência britânica permanece. Nas elites ou na opinião pública. Com
uma agravante. A imprensa tablóide e a conservadora transformaram o trau-
ma numa mistura de nacionalismo anacrónico e de antieuropeísmo militante
que contrasta vivamente com um país aberto ao mundo e aos outros, descom-
plexado e seguro de si que, apesar de tudo, Tony Blair deixou como herança.
Um problema que os políticos, sejam eles trabalhistas ou conservadores,
ainda não conseguiram resolver.
CAPÍTULO III
A POTÊNCIA
RELUTANTE
REUTERS/Laurent Dubrule
A potência relutante 39
AS
INTERPRETAÇÕES
DE MERKEL
AINDA ALGUÉM
SE ATREVE A
SUBESTIMÁ-LA?
04-12-2007
para a política externa alemã desde o pós-guerra mas que Gerhard Schröder
pusera dramaticamente em causa com a «normalização» alemã e a aliança
com Jacques Chirac e Vladimir Putin contra a guerra no Iraque. Distanciou-se
da Rússia o suficiente para repor alguma decência em Berlim face à deriva au-
toritária do Kremlin. Recolocou os direitos humanos na agenda externa alemã
e na agenda europeia.
Tudo isto sem nunca abandonar o sorriso meio tímido, a discrição e a suavi-
dade. Afinal, uma armadilha que esconde uma determinação de ferro e, como
hoje muitas pessoas reconhecem, uma grande habilidade política.
alemã. Do mesmo modo, aliás, que Schröder, com o seu «novo centro», fora
apelidado de «Blair» na campanha eleitoral que lhe deu a primeira vitória em
1998. Tudo isto é, naturalmente, relativo. A Alemanha não é o Reino Unido,
com a sua tradição de liberalismo económico e de flexibilidade social, como
não é a França, onde as reformas se fazem ou morrem na rua. O consenso
entre partidos, sindicatos e empresários foi a fórmula que permitiu à Repúbli-
ca Federal vencer os traumas do pós-guerra e transformar-se de novo numa
poderosa economia. Qualquer agenda reformista tem de levar em conta esta
realidade se quer ter algum sucesso.
Merkel aprendeu que é esse o caminho. Como ainda não desistiu da «coliga-
ção» que prefere, com os liberais do FDP, e que pode levar para a frente uma
agenda mais ambiciosa. Até lá, só tem de continuar a empunhar as bandeiras
que retirou à esquerda, como o ambiente e os direitos humanos, esperar que
as reformas que já foram feitas permitam que a economia continue a crescer
(a taxa de emprego acaba de atingir o valor mais alto desde o pós-guerra) e
que o SPD continue a afastar-se do centro. E, naturalmente, a brilhar na cena
internacional, provando que não tem medo de levar por diante as suas convic-
ções, deixando ao novo vice-chanceler e chefe da diplomacia de Berlim, Frank-
-Walter Steinmeier, o papel pouco feliz de amigo do líder russo e do chinês.
Já ninguém se atreve a subestimá-la. A não ser, talvez, o SPD. Um erro que
pode acabar por lhe ser fatal.
42 Europa Trágica e Magnífica
O QUE QUER
A ALEMANHA
DA EUROPA?
16-03-2010
É esse o problema com que hoje nos confrontamos e que devemos enfrentar
em conjunto. Por isso, Lagarde teve razão em colocar a questão alemã. Por
isso, é preocupante a forma como a Alemanha está a reagir a esta primeira
crise do euro. O que o seu ministro das Finanças, Wolfgang Schäuble, propõe
é um Fundo Monetário Europeu que até poderia ser uma boa ideia se não fos-
se mais do mesmo: penalizar fortemente os incumpridores retirando-lhes o
direito de voto no Conselho, o acesso aos fundos ou prevendo, no limite, a sua
expulsão da zona euro e ignorando qualquer ideia de coordenação económica
que facilitasse a convergência real das economias.
O que querem os alemães? Wolfgang Münchau escrevia no Financial Times
de segunda-feira passada que só lhe parecia haver dois caminhos para sair des-
ta confusão: o primeiro é avançar a 16 para mais integração política e económi-
ca, e segundo é que uma união monetária apenas assente em regras (do PEC)
44 Europa Trágica e Magnífica
A RELEVÂNCIA
EUROPEIA E O RUMO
SOLITÁRIO DA
ALEMANHA
21-03-2011
De uma coisa não restam grandes dúvidas: a França e o Reino Unido conse-
guiram restaurar a relevância da Europa na cena internacional. Coube-lhes
a condução política do processo que permitiu ao Conselho de Segurança da
ONU deliberar de forma determinada e a tempo de impedir um massacre na
Líbia. Cabe-lhes a primeira responsabilidade da condução das operações mi-
litares, mesmo que a participação americana seja crucial nesta fase inicial da
missão. Caber-lhes-á a liderança política de uma missão que comporta riscos
e dificuldades, cujo êxito está longe de ser garantido mas que se tornou indis-
pensável para impedir que um novo «muro do medo» se erguesse no meio das
revoluções democráticas do mundo árabe.
«A França, com a Grã-Bretanha e o apoio mais distante dos EUA, está a cor-
rer um risco inegável», escrevia ontem o analista francês Dominique Moisi.
«Mas é um risco que vale a pena. O custo da não intervenção, de permitir a
Khadafi esmagar o seu próprio povo e, dessa forma, mostrar que uma cam-
panha de terror doméstico é aceitável, seria muito mais ameaçador.» Paris e
Londres acabam de provar que o tratado militar que recentemente assinaram
tinha um real significado europeu.
O fácil entendimento entre a França e o Reino Unido deve-se, em boa medi-
da, à decisão de Nicolas Sarkozy de reaproximar a França dos Estados Unidos.
Essa aproximação foi fundamental para dissipar desconfianças mútuas sobre
qual deve ser o papel da Europa no mundo, permitindo, ao mesmo tempo, ao
Presidente americano confiar na capacidade europeia de liderar a resposta a
uma crise que os EUA consideram da sua responsabilidade. Estas são as boas
notícias sobre a crise líbia e o papel da Europa.
tal. Seria mais fácil que fosse a União Europeia a assumir o comando (mesmo
que tomando de empréstimo os meios da NATO), garantindo o quadro multi-
lateral que muitos aliados exigem. A desunião europeia impede uma solução
deste tipo, arriscando-se a pôr de novo em evidência a sua eterna irrelevância.
A primeira responsabilidade cabe, naturalmente, à Alemanha. A mesma Ale-
manha que reivindica na Europa o estatuto de «país normal» e que se acha
com direito a um assento permanente no Conselho de Segurança, escolheu
esse mesmo Conselho de Segurança para se dissociar dos seus aliados euro-
peus e votar ao lado da China e da Rússia, dois membros permanentes que não
se incluem entre as democracias, e de duas grandes democracias emergentes
— a Índia e o Brasil. O chefe da diplomacia alemã não se cansa de falar dos
«riscos» da missão na Líbia sem, todavia, acrescentar uma palavra convincente
sobre as consequências da não intervenção. Ontem foi a Bruxelas exibir a sua
posição perante as primeiras dificuldades da coligação. Tratava-se de uma de-
cisão política da maior importância para a Europa, face à qual a Alemanha não
hesitou em seguir o seu caminho solitário. Sem um entendimento entre Paris,
Londres e Berlim, nem vale a pena pensar num entendimento europeu.
Curiosamente, a Alemanha tende a comportar-se na cena internacional
como uma «potência emergente» e não como uma potência ocidental que é
membro da União e da NATO. Como o Brasil, reivindica o seu enorme poder
económico para exigir um lugar de primeiro plano no G20 ou na ONU. Como o
Brasil, não quer assumir as responsabilidades inerentes. Compreende-se que
o Brasil (como a Índia ou a Turquia) queira afirmar-se perante aquilo que res-
sente como a hegemonia ocidental. É difícil de entender que a Alemanha se
comporte da mesma maneira.
O problema, escrevia Nick Witney do European Council on Foreign Rela-
tions, é que «desta vez, se o Ocidente falhar na Líbia, isso será em primeiro
lugar um fracasso da Europa».
A potência relutante 47
A CHANCELER
QUE TEMOS E A
QUE GOSTARÍAMOS
DE TER
24-06-2011
Mais um Conselho Europeu sobre a crise da dívida soberana. Mais uma de-
claração garantindo que tudo será feito para manter a «estabilidade do euro».
Mais uma promessa de um segundo pacote de ajuda financeira à Grécia com
o indispensável «ultimato» aos gregos para que se portem bem. Nada de novo,
portanto, na reunião de líderes europeus da semana passada. E a pergunta
continua a ser: por quanto tempo mais vai a União Europeia adiar uma solu-
ção suficientemente forte e clara para a crise da dívida e para a crise do euro,
capaz de pôr cobro às dúvidas dos mercados e mostrar ao resto do mundo que
consegue tratar dos seus próprios problemas?
O resto do mundo, entretanto, está cada vez mais impaciente.
Na segunda-feira passada a imprensa dava conta da «reprimenda» do FMI à
União Europeia sobre a sua incapacidade para resolver uma crise que, se não
for contida, acabará por contaminar a economia mundial ainda em fase de
convalescença. O relatório do FMI sobre a zona euro atrevia-se a ir um pouco
mais longe e a dar alguns conselhos à União Europeia. O diário francês Le Figa-
ro citava um diplomata europeu acusando John Lipsky, o director americano
do FMI (interino entre dois europeus), de «representar o Tesouro americano e
estar a defender no Luxemburgo [durante a última reunião dos ministros das
Finanças para tratar da crise grega] os interesses americanos».
O que o relatório do FMI diz de tão «susceptível» é que «a incapacidade [eu-
ropeia] de agir de forma decisiva pode atingir rapidamente o coração da zona
euro e contagiar a economia global». Recomenda aos europeus uma «aborda-
gem mais cooperativa e coesa». Aconselha-os a abandonarem a discussão «im-
produtiva» sobre a reestruturação da dívida grega. Conclui dizendo que «mais
integração económica e financeira é essencial para uma união monetária di-
nâmica e estável» e que a Europa precisa de maior união política. Limita-se a
verificar o óbvio e a traduzir uma enorme preocupação que não se limita ao
FMI. Na véspera da cimeira europeia, Ben Bernanke, o chefe da Reserva Fede-
ral, falava na «importância enorme de resolver a situação grega». Sob pena de
se transformar «numa ameaça para o sistema financeiro europeu e mundial e
para a unidade da Europa». Timothy Geithner, o chefe do Tesouro americano,
48 Europa Trágica e Magnífica
foi mais sintético: nada se resolverá se a Europa não conseguir agir «com uma
só voz, e uma voz clara, sobre uma estratégia».
Esta preocupação é generalizada. Escrevia o Monde também na semana pas-
sada que a China olha com a mesma preocupação crescente para a Europa.
A vice-ministra dos Negócios Estrangeiros de Pequim, Fu Ying, disse a 17 de
Junho que «é de uma importância vital» para a China que os Estados europeus
consigam resolver as suas dificuldades.
A mensagem é simples: como é possível que o maior boco económico do
mundo não consiga lidar com a crise da dívida soberana de duas ou três peque-
nas economias periféricas que não representam mais do que 5 ou 6 por cento do
seu PIB? E, se é possível, porque parece que é, então como interpretá-lo?
Ninguém pode pretender ignorar o que pensa a opinião pública alemã so-
bre a Grécia ou Portugal ou mesmo sobre a actual configuração da zona euro.
O governo alemão, como todos os governos da União Europeia, presta contas
perante o seu eleitorado e é perante ele que é responsável. O problema é que
também os governos da Grécia ou de Portugal têm de responder perante as
suas opiniões públicas. A democracia é uma componente essencial da União
Europeia e não pode ser espezinhada em Atenas apenas para ser louvada em
Berlim.
Não é apenas o euro que está em causa, dizia há dias o Nobel da Econo-
mia Amartya Sen. «É também a democracia europeia.» Maria João Rodrigues
chamava a atenção para o mesmo problema na TSF, no próprio dia em que
começou o Conselho Europeu. O que disse foi mais ou menos isto: se a Europa
começa a ser olhada pelos cidadãos de um determinado país, não como uma
alavanca para promover a prosperidade, mas como um colete de forças que
limita a possibilidade de escolha, então é o próprio projecto europeu que está
em causa.
O problema, dizia recentemente Jacques Delors, é que estamos a lidar com
duas crises. A primeira é a crise da dívida. A segunda, bastante mais perigosa,
é a crise do «significado» da Europa, o que ela representa hoje, ou não repre-
senta, para os europeus.
Angela Merkel tem de usar a sua autoridade e legitimidade política para ex-
plicar claramente aos alemães que a Europa não se resume aos erros da Grécia
ou de Portugal. A Europa foi o que permitiu à Alemanha integrar-se entre as
nações civilizadas, reunificar-se em paz, e é o que lhe permite hoje sustentar a
sua economia. É por isso que vale a pena salvar a Grécia mesmo que custe algu-
ma coisa aos contribuintes alemães. Não é uma explicação muito difícil. Basta
ter a coragem para a fazer. Do mesmo modo que a Europa tem de perceber que
não se resolve a crise da Grécia apenas «esmagando» o povo grego. Os sacrifí-
cios fazem sentido se valerem a pena no longo prazo. Não podem ser impostos
por ultimatos ou por soluções de recurso. Também para isto é fundamental
uma nova estratégia europeia que, como diz Sen, compatibilize ajustamento
financeiro com crescimento económico.
A tudo isto chama-se política e exige políticos. Sem isso, a Europa arrisca-se
a confrontar-se com uma crise muito maior do que aquela que hoje enfrenta:
a contradição indissolúvel entre a necessidade de avançar para maior coesão
política, económica e social e a oposição dos cidadãos europeus, cada vez mais
conquistados pelos velhos demónios do populismo e da xenofobia que ciclica-
mente a vêm ensombrar. Aí sim, estaria tudo perdido.
50 Europa Trágica e Magnífica
DEMASIADO GRANDE
E, NO ENTANTO,
DEMASIADO
PEQUENA
25-10-2011
«Em Maio, durante a crise da Grécia, quando todos os olhos se viraram para
a Alemanha, a Alemanha reagiu de forma distante, sem vontade de liderar a
Europa», escreveu Ulrike Guérot, directora da secção de Berlim do European
Council on Foreign Relations, em Novembro de 2010. «A percepção em muitos
países europeus foi que a Alemanha queria seguir sozinha o seu próprio cami-
nho (…).» Vinte anos depois da reunificação, escreveu ainda Guérot, «a relação
da Alemanha com a Europa mudou profundamente». “(…) Deixou de querer
uma Europa a qualquer preço e não está mais disposta a pagar um qualquer
novo compromisso europeu.» A Europa deixou de ser a sua «raison d’État»
— quando o interesse alemão e o interesse europeu se confundiam. Gerhard
Schröder, o chanceler social-democrata que sucedeu a Helmut Kohl em 1998,
A potência relutante 51
Viragem?
«Desde o Verão que houve um sobressalto», diz Céline-Agathe Caro, da Fun-
dação Adenauer, citada pela AFP. A chanceler viu-se fortemente criticada pela
sua condução da crise. A estratégia de se vergar ao eurocepticismo não deu
bons resultados (a CDU perdeu todas as eleições regionais). «O vento mudou
de direcção.» Berlim percebeu que tinha de salvar a Grécia e que o euro cor-
respondia ao seu mais profundo interesse nacional. Os termos dessa viragem
ainda não estão definidos.
«Está lentamente a reconstituir-se um novo e amplo consenso europeu, mas
ao qual ainda chamaria de mole», diz Anne-Marie Le Gloannec, uma das maio-
res especialistas francesas da Alemanha. «É uma espécie de coligação informal
que vai dos “Verdes” a grande parte da CDU, incluindo o SPD, que é fortemente
favorável à Europa, que ainda não se exprime politicamente, mas pode tradu-
zir-se numa nova coligação política nas próximas eleições.»
A investigadora de Sciences Po insurge-se contra as interpretações «simplis-
tas» do poder alemão. «Esse grande poder que atribuem a Merkel não existe.»
Porque o sistema de decisão europeu está profundamente fragmentado — «en-
tre o Governo alemão, o eixo franco-alemão, os outros governos, o BCE, os
mercados, as agências de rating». Mas, sobretudo, porque a chanceler está, ela
própria, «encurralada num sistema de decisão interna igualmente fragmenta-
52 Europa Trágica e Magnífica
MUTTI OU
MERKEAVELLI?
21-09-2013
Ninguém nunca teve tanto poder sobre os destinos da União Europeia. Tem
quatro anos para salvar o euro. Só isso lhe garantirá um lugar na História.
Antes da crise
No dia 17 de Dezembro de 2005 os líderes europeus, reunidos em Bruxelas, es-
peravam a sua estreia com enorme expectativa. Vinha de um moroso processo
de negociação com o SPD para a «grande coligação», depois de uma vitória
mínima da CDU. Com o seu fato preto, apenas iluminado pelos cabelos louros
e por uma fiada de pérolas, estreou-se da melhor maneira. Gerhard Schröder,
o seu antecessor, tinha anunciado que a Alemanha era agora «um país nor-
mal», com o mesmo direito a defender os seus interesses que a França ou o
Reino Unido. Tão normal que decidiu pôr em causa um dos dois pilares da
República Federal desde o pós-guerra: a aliança com os Estados Unidos (o ou-
tro é a relação com a França), opondo-se frontalmente à segunda guerra no
Iraque e criando uma duvidosa parceria com Vladimir Putin que enregelava
o sangue das jovens democracias da Europa Central e Oriental. Merkel chegou
a Bruxelas numa Europa em plena crise. A rejeição da Constituição europeia
pela França e pela Holanda fora um choque inesperado e brutal. A presidên-
cia britânica revelava-se incapaz de negociar um acordo sobre as perspectivas
financeiras da União para 2007-2013. A guerra entre Londres e Paris por cau-
sa da «rebate» britânica e da agricultura francesa parecia não ter fim à vista.
Havia uma diferença de 20 mil milhões. Merkel chegou, deu 10 mil milhões a
cada um e comprometeu-se a encontrar mais alguns milhões para a Polónia,
nem que tivesse de ir buscá-los aos fundos destinados aos Lander de Leste.
A potência relutante 55
A boa velha Alemanha estava de volta, ainda que com um livro de cheques
bastante menos generoso.
A sua segunda grande missão europeia foi resolver da melhor maneira o
trauma da rejeição da Constituição na qual a Alemanha tinha posto todo o seu
empenho, porventura pela última vez. Empenhou-se a fundo nas negociações
de um novo tratado, finalizado em Lisboa em Outubro de 2007. «Ela foi bri-
lhante nas suas primeiras cimeiras, conseguiu unir toda a gente, actuou como
uma pacificadora, conseguiu resolver os problemas», diz Charles Grant, direc-
tor do Centre for European Reform.
Não houve outra cimeira com Putin em que a chanceler não denunciasse
o abuso dos direitos humanos na Rússia. O caminho para Moscovo deixava
de passar por cima da Polónia. Recebeu o Dalai Lama ignorando as ameaças
chinesas. Fez o que estava ao seu alcance para reparar os estragos causados
pelo seu antecessor na relação com a América de George W. Bush. A crise fi-
nanceira mundial que se abateu com grande violência sobre a Europa havia de
lhe mudar o destino. A crise da dívida grega apanhou-a de surpresa. Começou
por negar qualquer responsabilidade, lembrando que as regras da união mo-
netária incluíam uma cláusula de não intervenção (no bailout). Com um coro
de vozes a gritar que, se a Grécia caísse, o euro ficaria em xeque, hesitou até
ao último instante. Agiu quando viu o abismo debaixo dos pés. Seguiram-se a
Irlanda e Portugal. A crise tornou-se sistémica. Merkel reagiu com relutância
e engendrou uma estratégia assente na punição dos países do euro que não
tinham sabido gerir as suas economias. A «austeridade» tornou-se o seu único
programa para a Europa. Levou algum tempo a decidir que salvar o euro era
do interesse vital da Alemanha.
O seu método de decisão exasperou os seus parceiros: minucioso, lento,
cauteloso, vago. «O seu processo de decisão é o de uma cientista», diz a Spiegel.
«Quer resolver problemas.» Com o mínimo de custos possível. «Passo a passo» é
o seu lema. O futuro do euro ou a sua «depuração» estiveram em cima da mesa
ao longo de 2011. Sucederam-se os Conselhos Europeus «da última oportunida-
de». Para os outros. Não para ela. Nicolas Sarkozy conseguiu manter a ilusão de
que o motor franco-alemão continuava a funcionar. Rendeu-se depressa à sua
força. «Despachou» primeiros-ministros como George Papandreou ou Silvio
Berlusconi. Deixou-se amarrar pela opinião pública alemã ao dizer-lhe o que ela
queria ouvir: que a Alemanha não ia gastar tempo e dinheiro com os «ociosos»
do Sul ou com a mania das grandezas da França. Continua presa a esse discurso.
Justificou-o com a necessidade de impedir o aparecimento de um partido an-
tieuropeu à sua direita. A «Alternativa para a Alemanha», pequeno partido que
diz que é preciso acabar com o euro e manter a União Europeia, como se isso
fosse possível, ainda pode baralhar o jogo eleitoral alemão.
Passeia-se nos palcos do mundo com um sorriso enganador. Obama, que
lhe deu a Medalha da Liberdade, a mais alta condecoração que um Presidente
americano pode dar a um estrangeiro, tentou demovê-la em vão da sua receita
56 Europa Trágica e Magnífica
AS VICISSITUDES
DE FRANÇA
SARKOZY E MERKEL
RETOMAM EM
BERLIM A AMIZADE
FRANCO-ALEMÃ
Maio de 2007
MERKOZY
OU MERKOLLANDE:
DESCUBRA
AS DIFERENÇAS
14-04-2012
ção parcial da dívida, pelo recurso aos chamados project bonds para financiar
grandes investimentos europeus indutores de algum estímulo às economias
e pela aceitação de uma taxa sobre as transacções financeiras. Hollande tam-
bém quer a revisão do estatuto do BCE, aproximando-o do estatuto da Reserva
Federal e transformando-o em credor de último recurso. A questão-chave é o
apoio do SPD. Alguns analistas sublinham, no entanto, que os sociais-demo-
cratas alemães não têm grande margem para contestar as insuficiências de um
Tratado que a opinião pública do seu país apoia porque vê nele a disciplina
germânica imposta aos parceiros mal-comportados. «Não se trata propria-
mente de renegociar o Tratado», diz Anne-Marie Le Gloannec, investigadora
de Sciences Po, em Paris. «Trata-se de acrescentar alguma coisa sobre a qual
quase toda a gente está hoje de acordo — espanhóis, italianos, economistas, in-
cluindo na Alemanha. A Europa precisa de dispor de alguns mecanismos para
o crescimento.» A investigadora lembra que este é também o discurso do SPD,
que tem grande probabilidade de integrar uma «grande coligação» em Berlim,
depois das eleições do próximo ano.
A reunião de Paris cumpriu o seu propósito de atenuar o isolamento eu-
ropeu de Hollande e de alimentar uma alternativa às receitas conservadoras
para a crise. O problema central com que se defrontará em caso de vitória
mantém-se: como redefinir a relação franco-alemã com uma Alemanha que se
tornou, indiscutivelmente, a potência económica e, cada vez mais, a potência
política liderante da Europa. A maioria das suas propostas europeias não di-
verge daquelas que Nicolas Sarkozy defendeu perante a chanceler ao longo da
crise e que foi deixando cair pelo caminho. «Claramente, a Alemanha é hoje o
líder político e económico da zona euro e da Europa continental e isso é uma
questão muito preocupante para a França», diz ao Financial Times o ensaísta
francês Nicolas Baverez. Charles Grant, o director do Centre for European Re-
form, resume da mesma forma o grande dilema francês: «Pela primeira vez na
história da União Europeia, a Alemanha é o líder inquestionável e a França o
número dois.» A crise acentuou dramaticamente as fragilidades económicas
da França, que acabaram por fundamentar aquilo a que Hollande chama de
«rendição» do seu adversário: os níveis de endividamento público, o desequi-
líbrio da balança comercial, os custos crescentes de financiamento (a perda
do triplo AAA). O actual Presidente tentou compensar a fraqueza económica
com um desempenho no palco internacional com que a França, desde que se
entenda com o Reino Unido e com os Estados Unidos (duas coisas que o actual
Presidente tratou de garantir), pode ainda marcar a diferença em relação a
Berlim. No Irão ou na Líbia. O que faria Hollande em idênticas circunstâncias
é ainda uma incógnita relativa. O único sinal que deu foi a sua intenção de
retirar imediatamente do Afeganistão. «Não há uma ideia de política externa,
de posicionamento mundial da França e da Europa nesta campanha», diz Le
Gloannec.
62 Europa Trágica e Magnífica
O dia seguinte
É com esta realidade que qualquer Presidente da França vai ter de lidar no
dia seguinte ao da sua eleição. Escreve o Monde que «a austeridade será o
verdadeiro teste europeu de quem vier a ganhar as eleições». Lembra que
a Comissão deve apresentar no fim de Maio as suas recomendações anuais (…)
sobre os equilíbrios das contas públicas e as reformas estruturais. «A realidade
entrará pela porta da frente, seja quem for o ocupante do Eliseu.» Vai ser pre-
ciso um novo plano de austeridade, desta vez a sério. Num editorial publicado
na Le Point e intitulado «O Rigor é Agora», Baverez traduziu em números esta
realidade. «O declínio da França nunca foi tão acentuado desde os anos 30.
O crescimento potencial da economia situa-se abaixo de 1 por cento (…). O dé-
fice comercial recorde é de 70 mil milhões de euros. A dívida chegará aos 90
por cento do PIB em 2012, limiar a partir do qual destrói actividade e emprego.
O desemprego atinge 10 por cento da população activa há três décadas (…).»
Para concluir: «A degradação financeira da França acelera a perda do controlo
do seu destino por um país que se encontra colocado sob a tutela dos mer-
cados financeiros e da Alemanha.» «Será o epicentro do próximo choque da
zona euro.» É o que em Berlim mais se teme. «Se a França quebrar, a Europa
quebra», diz a investigadora de Sciences Po.
Nicolas Sarkozy entra na recta final da campanha, alimentando o medo do
caos. «Ou eu ou… a Espanha.» O que fará Hollande de diferente? Que alian-
ças poderá privilegiar? A sua derrota seria um tremendo golpe para o centro-
-esquerda. «Se for eleito, a sua responsabilidade será imensa porque será o
líder europeu da esquerda», comenta David Miliband, antigo chefe do Foreign
Office e candidato derrotado à liderança do Labour britânico. A sua vitória
é ainda uma carta fechada. Com uma certeza: a França acabará sempre por
entender-se com a Alemanha. Noutros termos? Nos mesmos? Ulrike Guérot e
François Godement também notam que a campanha não trouxe «um debate
sério sobre as questões europeias». «Nada comparável à intensa reflexão que
decorre na Alemanha sobre qual é o melhor funcionamento institucional da
União Europeia.»
A potência relutante 63
GANHOU
A «FRANÇA DO NÃO»
21-04-2012
HOLLANDE FOI
TOMAR CHÁ COM
A RAINHA E ISSO
SIGNIFICA ALGUMA
COISA
03-07-2012
Na semana passada, François Hollande foi a Londres tomar chá com a rainha
e confirmar, para lá de qualquer dúvida, que não é sua intenção alterar os ter-
mos em que Nicolas Sarkozy colocou a velha entente cordiale. O Presidente
francês e o primeiro-ministro britânico, que estiveram reunidos hora e meia
em Downing Street, procuraram publicamente atenuar as principais diver-
gências que os separam em matéria europeia — e não são poucas — e apagar
qualquer sinal da crispação deixado pela última visita de Hollande a Londres
ainda como candidato presidencial. Viajou no Eurostar, foi apenas recebido
por Ed Miliband e ouviu David Cameron dizer publicamente que não só apoia-
va Sarkozy como não o receberia no n.º 10 de Downing Street. O Presidente
francês não parece ser pessoa de ressentimentos. Já tinha perdoado a Angela
Merkel a mesmíssima atitude. Agora, tudo leva a crer que perdoou a Cameron.
Seja como for, um e outra têm de lidar com ele e ele tem o máximo interesse
em entender-se com ambos. A níveis diferentes, claro está, mas igualmente
importantes.
tem futuro com um avanço para uma «união política» europeia. «Ela quer um
projecto que possa mostrar aos alemães antes das eleições do próximo ano.
Precisa de alguma coisa depressa», disse à Reuters um alto diplomata francês.
Hollande colocou provavelmente as suas dificuldades para avançar nesse sen-
tido e perguntou o que é que a Alemanha estaria disposta a dar em troca. «Nós
acabámos de chegar. Não temos necessidade de colocar um grande projecto
na mesa, sobretudo porque ainda não existe um amplo consenso em França
ou no resto da Europa. Uma Europa mais integrada é óptimo, mas apenas com
mais solidariedade e a possibilidade de mutualizar a dívida», disse o mesmo
diplomata.
De alguma maneira, renovam-se os termos do grande acordo que esteve na
origem de Maastricht entre Kohl e Mitterrand: o euro em troca da unificação
alemã. Os dois protagonistas actuais são dois discípulos dos dois velhos esta-
distas (um mais fiel do que a outra). A crise existencial que ameaça seriamente
a integração europeia torna mais urgente a mesma união política que o chan-
celer alemão propôs a Mitterrand para completar a UEM e que o Presidente
francês recusou ou, pelo menos, adiou.
Desta vez, Merkel e Hollande voltam a ter nas suas mãos o destino da Eu-
ropa. Sem um novo «grande compromisso» entre Paris e Berlim será prova-
velmente impossível ao euro sobreviver a esta crise. É disso que se trata em
primeiro lugar. E por maiores que sejam as dificuldades em forjar esse com-
promisso — incluindo a sua aceitação pelas respectivas opiniões públicas —, os
dois protagonistas têm consciência disso mesmo. A França, muito mais do que
a Alemanha, tem dificuldade em aceitar a perda de soberania que essa união
política acabará por implicar. Mas está numa posição de suficiente fraqueza
económica para não se poder dar ao luxo de a afastar do caminho. Terá de ser
o resultado de uma negociação que lhe traga manifestas vantagens na afirma-
ção do seu estatuto europeu.
Em Reims, nas celebrações do 50.º aniversário do Tratado do Eliseu que
selou a reconciliação histórica entre a França e a Alemanha, Hollande recebeu
Merkel com todas as honras. Um beijo substitui o frio aperto de mão dos pri-
meiros encontros. «A amizade franco-alemã esteve na base de cada passo da
construção europeia. Proponho-lhe que abramos uma nova porta para uma
amizade ainda mais forte», disse o Presidente. Mas também falou da necessi-
dade de «combinar a soberania nacional — à qual estamos apegados aqui em
França, como na Alemanha — com os nossos compromissos europeus».
peia e internacional de Paris. Com Tony Blair, mantê-la era mais fácil. A po-
lítica de defesa europeia nasceu verdadeiramente em St. Malo, em 1999, de
um acordo entre Jacques Chirac e o antigo primeiro-ministro britânico. Blair
entendia que a influência do Reino Unido na Europa se fazia por dentro. Ver-
dade seja dita que a sua política teve uma assinalável eficácia na forma como
moldou os destinos europeus. Sarkozy explorou-a até ao limite. Em Londres, o
seu sucessor tratou de dizer que «a relação entre a França e a Grã-Bretanha é
fundamental não apenas para a Europa, como para o mundo». Hollande terá
de preservá-la em condições muito mais difíceis.
Por um lado, a deriva britânica, que inclui o risco de um referendo para de-
cidir se o Reino Unido corta ou não os laços com a União Europeia, retira a
Londres margem de manobra para continuar a pesar nas decisões europeias.
A tentativa de vetar o «tratado orçamental», em Dezembro passado, não le-
vou Cameron a lado nenhum; pelo contrário, deixou o Reino Unido isolado
(o tratado acabou por ser subscrito por 25 países). Por outro, a França entre-
gue a uma união política continental sem o contrapeso britânico no domínio
da política externa e de defesa fica mais vulnerável. Quando Berlim fala em
união política também costuma falar em exército europeu. Alguém lembrava
recentemente que, um dia destes, a Alemanha pede à França que coloque a
sua force de frappe sob controlo europeu e abdique do seu lugar no Conselho
de Segurança.
Hollande foi a Londres renovar o acordo de defesa e dizer que uma Europa
a diferentes velocidades tem um lugar para o Reino Unido. Mas também terá
ouvido Cameron expor-lhe a possibilidade de uma ruptura europeia, que ele
não quer mas que ganha cada vez mais força dentro do seu próprio partido.
Para uma maioria, incluindo membros do seu próprio governo, a crise euro-
peia é uma excelente oportunidade para negociar uma participação britânica
mais «leve» e mais barata a troco de abdicar do veto contra uma zona euro
politicamente mais integrada. Para uma linha dura minoritária mas cada vez
mais audível, nem sequer o Mercado Único chega para justificar a permanên-
cia do Reino Unido na União, bastando um simples acordo de comércio livre.
São os defensores de uma «Grande Suíça com armas nucleares» e, como dizem
alguns analistas, nem sequer conhecem os enormes constrangimentos a que
a Suíça tem de se sujeitar para beneficiar do Mercado Único. Cameron tenta
manter alguma ambiguidade. Terá de acabar por apresentar com maior clare-
za a visão que tem para o papel do seu país no mundo.
Mas uma coisa é certa: uma renovação do compromisso franco-alemão que
é vital para o futuro da Europa também passa pela forma como se resolverem
os equilíbrios com Londres. Para Paris, como para Lisboa ou para Roma.
68 Europa Trágica e Magnífica
A ESCOLHA
DOS OUTROS
A EUROPA EM
ESTADO DE NEGAÇÃO
30-06-2009
Há dez anos, quando António Guterres lançou a sua iniciativa para dotar a Eu-
ropa de uma estratégia de desenvolvimento que lhe permitisse adaptar-se à
nova era da globalização e da Internet, o mundo era completamente diferente.
Concluída com êxito a união monetária, a Europa olhava à sua volta para ve-
rificar até que ponto a América conseguia tirar proveito da globalização dos
mercados e da revolução das novas tecnologias que, aliás, liderava. A estraté-
gia de Lisboa, aprovada em Março de 2000 durante a presidência portuguesa
da União, visava precisamente emular a América, importando aquilo que a
sua economia tinha de dinâmico e tentando preservar, ao mesmo tempo, o
seu modelo social. A receita era apostar no conhecimento como a principal
vantagem competitiva. O objectivo era desenvolver uma espécie de «híbrido»
entre o modelo escandinavo e o americano, com o que de melhor um e outro
continham.
Diga-se o que se disser da sorte da agenda de Lisboa, a verdade é que teve
uma influência determinante nas políticas europeias e hoje, mesmo que mui-
tas das suas ambiciosas metas ainda não tenham sido cumpridas, as suas ideias
fundamentais continuam tão válidas como há dez anos. A Europa continua a
ter de apostar fortemente no conhecimento e na inovação, precisa de gerar
mais empregos e de empregar mais pessoas, de desenvolver a aprendizagem
ao longo da vida e criar as condições para compatibilizar as suas vantagens
sociais com a maior flexibilidade dos mercados e o envelhecimento da sua po-
pulação. Tem de reforçar ainda mais a componente «verde» da sua economia.
A Comissão já começou a preparar o pós-2010 e a sua ideia é que a estratégia
de Lisboa, devidamente adaptada aos novos tempos, é a melhor «estratégia de
A potência relutante 69
saída» para esta crise mundial. Tudo isto foi alvo de um interessante debate
na semana passada, organizado pelo gabinete do Coordenador Nacional da
Estratégia de Lisboa, que trouxe até cá representantes das duas próximas pre-
sidências da UE, a sueca e a espanhola, e da Comissão Europeia.
Como é que os europeus olham para isto tudo? Temo que com uma auto-
complacência e uma falta de visão que lhes podem vir a ser fatais.
Uma das intervenções mais curiosas do seminário de Lisboa sobre o pós-
-2010 foi a do representante da Comissão, Tonnie de Koster. Em brevíssimas
palavras, o que ele disse foi que União liderou o combate à crise mundial (já
ouvimos o mesmo a Sarkozy, pelo que se desculpa o manifesto exagero), que
o seu modelo social minorou os efeitos da crise e é um exemplo para todas as
pessoas e que a sua liderança no combate às alterações climáticas dá-lhe uma
vantagem adicional. Fica-se com a sensação de que Bruxelas não vê aquilo que
se passa à sua volta. Que reage como se Barack Obama não existisse e a China
continuasse a fabricar camisolas.
Ora, o essencial do programa de Obama de resposta à crise é precisamente
transformá-la numa oportunidade para mudar a América no sentido de um
70 Europa Trágica e Magnífica
modelo social e ambiental mais sustentável. É isso que está a fazer. Está a com-
petir no mesmo terreno da Europa. Tem atrás de si dinamismo, capacidade
científica e tecnológica e a capacidade de inovação da América. E, que se saiba,
não tenciona pagar à Europa direitos de autor.
Ora, o essencial é que, com todas as suas fragilidades, a China tem consci-
ência da importância da sustentabilidade social e ambiental do seu colossal
desenvolvimento e está a subir rapidamente na cadeia de valor do que produz.
O que isto quer dizer é que as regras para uma globalização mais social e
mais verde vão ter de ser discutidas nos fora mundiais já não numa lógica de
imposição mas de negociação.
É aqui que a Europa tem um problema: a falta de uma visão estratégica que
possa dar sentido, de facto, às medidas com que quer construir o pós-crise no
pós-2010. E ainda outro, pelo menos tão sério, para o qual também não tem
uma resposta: a sua demografia.
O que é dramático não é tanto a falta de recursos. A Europa ainda dispõe de
uma população educada, de um modelo social, de uma economia poderosa.
O que é dramático é o seu autoconvencimento e a falta de uma liderança forte.
Precisa urgentemente de um abanão.
Talvez Maria João Rodrigues, outra das participantes no seminário de Lis-
boa, tenha razão quando defende que esta crise e as suas implicações só po-
dem ter uma resposta europeia: um novo patamar da sua integração política.
A potência relutante 71
O QUE TORNA
A EUROPA
DISPENSÁVEL
AOS OLHOS DOS
EUROPEUS
07-09-2010
«A União Europeia está a morrer — não de uma morte súbita e dramática, mas
de uma morte tão lenta e contínua que um dia destes podemos olhar para o
lado de lá do Atlântico e verificar que o projecto de integração europeia que
tínhamos como garantido ao longo do último meio século já não existe.» Quem
escreveu esta palavras e as publicou muito recentemente no Washington Post
foi um académico americano, Charles Kupchan (Council on Foreign Relations),
de cuja pena saíram algumas das mais veementes defesas da integração euro-
peia e da sua importância estratégica, inclusivamente como equilibrador da
hegemonia americana. O título da peça que assinou é ainda uma interrogação:
«Irá o nacionalismo dissolver a União Europeia?» Toca no ponto crucial. As
razões que Kupchan aponta para esta morte lenta de um dos mais belos pro-
jectos políticos do século XX são, em primeiro lugar, económicas, atribuindo-
-as à crise financeira e à forma como acelerou o declínio económico europeu.
Mas também acrescenta que os efeitos da crise apenas aceleram um outra ten-
dência, essa verdadeiramente perigosa — se não fatal. «De Londres a Berlim,
passando por Varsóvia, a Europa está a viver a renacionalização da sua vida
política com países reclamando de novo uma soberania que antes estavam dis-
postos a sacrificar na busca de um ideal colectivo.»
Claro que nem todas as capitais se comportam da mesma forma nem o seu
comportamento tem o mesmo efeito no futuro europeu. Londres é Londres e,
mesmo assim, o novo governo liderado pelo conservador David Cameron em
coligação com os liberais-democratas tem-se revelado mais cooperante do que
as previsões iniciais. É o resultado de uma geração mais jovem mas também de
um certo sentimento de que há coisas que o Reino Unido, depois desta crise,
deixou de poder fazer sozinho e que pode ter interesse em fazer com a Europa
se quer manter um papel relevante no mundo. Em Varsóvia os sinais também
não seriam de grande desânimo se as coisas, no geral, não fossem tão desani-
madoras. O actual governo e o actual Presidente corrigiram a deriva naciona-
72 Europa Trágica e Magnífica
lista dos gémeos Kaczynski e a Polónia apresenta-se hoje, cada vez mais, nas
instituições europeias com uma atitude positiva, com ideias e propostas, como
deve caber a um país que é o sexto maior da EU e para o qual a Europa é o des-
tino estratégico. Os ventos gelados da renacionalização das políticas sopram
infelizmente das capitais que sempre foram centrais ao projecto europeu.
É no coração da Europa que encontramos, porventura, os sinais mais preo-
cupantes dos riscos de morte que Kupchan anuncia. A deriva alemã, que cor-
responde a uma visão diferente do que é hoje o seu interesse nacional, é talvez
o factor de incerteza mais forte sobre o futuro do projecto europeu e da sua
capacidade de renovação. A desorientação da França é a pior das respostas.
O velho Benelux deu lugar a dois países mergulhados em crises nacionais que
vão muito além da crise económica. Em Haia, a ascensão eleitoral de uma for-
te corrente populista anti-imigrantes impede há meses a simples constituição
de um governo. Em Bruxelas, o crescente antagonismo entre a comunidade
flamenga e a francófona está a ter o mesmo resultado. A doença é a mesma.
O Sul, enfraquecido pela crise das dívidas soberanas, deixou de ter margem de
manobra ou ânimo para exercer um papel mais activo. E, talvez pior do que
tudo, as instituições europeias, independentemente dos seus representantes,
desaparecem de cena, abdicando, voluntariamente ou não, de um papel que
seria hoje verdadeiramente crucial.
A JANGADA,
O HELICÓPTERO
E O DESTINO
DA EUROPA
23-11-2010
porque não é isso, ou pelo menos não é só isso, que os acalmará. A decisão é
política.
Se não, de crise em crise, de pânico em pânico, de intervenção in extremis
em intervenção in extremis, a Europa não sobreviverá.
Os países do Sul podem ficar à deriva na tempestade, como o quadro que
inspira a capa da revista britânica (Le Radeau de la Méduse), e Merkel pode ser
salva do naufrágio pelo helicóptero do BCE. Para quê? A Alemanha será uma
média potência económica com meia dúzia de países na sua órbita e as regras
do jogo serão ditadas noutros sítios. Em Washington e em Pequim.
A potência relutante 77
Mario Draghi, ao fazer a sua parte, nunca deixou de advertir os líderes euro-
peus de que apenas estava a permitir-lhes ganharem tempo para que pudes-
sem tomar rapidamente as decisões políticas indispensáveis para garantir a
sustentabilidade da união monetária no longo prazo. Foi este sentimento de
urgência que ficou definitivamente adiado na cimeira da semana passada.
nuar à espera. Para Berlim, a primeira etapa de uma futura união bancária
e mais uma almofada financeira para a Grécia chegam e bastam para manter
as coisas como estão. Aparentemente tranquilas. A crise entrou, portanto, em
modo de «intervalo». Rompuy terá de continuar a negociar o seu «roteiro»,
agora até à cimeira de Junho do próximo ano. Os mercados deverão continuar
a acreditar em Mario Draghi e na sua promessa de que «fará o que for preciso».
As divisões europeias continuarão a aumentar. Os países do Sul, «mergulhados
na recessão e com taxas de desemprego impossíveis» como escrevia a Reuters,
só muito dificilmente conseguirão cumprir as metas do défice que lhes são
impostas. Ninguém sabe o que acontecerá em Portugal ou na Grécia. Aumen-
tará o risco político em países como a Itália, que terá eleições em Fevereiro, ou
em Espanha, às voltas com a necessidade de um resgate. Não são as melhores
perspectivas para o próximo ano.
80 Europa Trágica e Magnífica
AS ILUSÕES
DA FRANÇA
E AS DO REINO
UNIDO
10-12-2011
Sobre a decisão de David Cameron de fazer aquilo que nem a Dama de Fer-
ro alguma vez se atreveu a fazer — são os próprios britânicos que, com o seu
pragmatismo, já estão a tirar as devidas lições. Margaret Thatcher ameaçava os
seus pares com a sua famosa mala de mão. Nunca usou o seu veto. Como es-
creveu ontem o historiador britânico Timothy Garton Ash num texto que deve
ser lido, «depois de ter falhado o início [do projecto europeu], a Grã-Bretanha
decidiu que tinha de estar presente “na mesa principal” para defender os seus
interesses, tradicionalmente entendidos como incluindo a preservação de um
equilíbrio de poder no continente». Durante quase quarenta anos, incluindo
com Margaret Thatcher, «foi isso que o governo procurou fazer dentro da
Europa». Prossegue o historiador que Cameron pode ter tido a ilusão de pre-
servar os interesses britânicos de curtíssimo prazo. «No longo prazo, até uma
criança de 5 anos percebe que é o contrário.»
Nunca, talvez, como hoje seria tão importante a Londres manter-se no cen-
tro das decisões europeias. A opção pela aliança privilegiada com os Estados
Unidos — que sempre marcou a política externa britânica desde a Guerra, seja
quem for que ocupe o n.º 10 de Downing Street — está hoje posta à prova pela
82 Europa Trágica e Magnífica
nova realidade americana e mundial. Pode haver uma nostalgia. Há laços cul-
turais e económicos profundos. Uma língua comum. A América vira-se cada
vez mais para o Pacífico, adapta o exercício do seu poder mundial aos cons-
trangimentos económicos e à emergência de novas potências que não são oci-
dentais. Se já antes via, vê agora muito mais a importância do velho aliado em
função da sua capacidade de influenciar a Europa. Como toda a gente, olha
com particular atenção para a Alemanha.
Sozinhas no meio do Atlântico, as Ilhas já não podem dizer que o nevoeiro
no canal deixa o continente isolado. Mais cedo ou mais tarde, os britânicos
terão de rever as suas posições e corrigir uma trajectória que se arrisca a isolá-
-los e a prejudicar a Europa.
Voltando a Garton Ash, «seja o que for que aconteça a partir de agora, a
União Europeia não voltará a ser a mesma». Mesmo que se venha a provar
«que este foi apenas o momento de viragem histórica que afinal a História não
conseguiu virar».
84 Europa Trágica e Magnífica
CAPÍTULO IV
A EUROPA
E O MUNDO:
ACTOR
PRINCIPAL OU
SECUNDÁRIO?
REUTERS/Mark Ralston/Pool
A Europa e o mundo: actor principal ou secundário? 85
O MULTILATERALISMO
ESTÁ DE REGRESSO,
FALTA SABER QUAL
23-09-2009
De um lado, uma instituição multilateral com 64 anos de vida que deveria ser
o pilar da governação mundial mas que, nos últimos dez anos, foi deslizan-
do progressivamente para a irrelevância. Do outro, um recém-nascido fórum
informal que emergiu da crise económica global para funcionar como uma
espécie de governo económico mundial.
A uni-los está a oportunidade de criar as bases de uma nova arquitectura
mundial capaz de responder aos desafios do século XXI e de reflectir os novos
equilíbrios de poder.
O desafio é tremendo. A novidade, que pode fazer a diferença, passa pela
nova liderança americana.
A entrada em cena de Barack Obama gerou uma enorme expectativa à es-
cala mundial. Ontem, o Presidente americano foi à Assembleia Geral da ONU
anunciar uma «nova era de cooperação internacional». Obama quer restaurar
o multilateralismo e colocar a América de novo no seu centro. Prometeu «re-
dobrar esforços» para fortalecer as Nações Unidas. Invocou Roosevelt em abo-
no da sua determinação mas também da magnitude da tarefa. «Não será fácil
nem será rápido», advertiu recentemente a embaixadora americana na ONU,
Susan Rice. Falta dizer como e quando os Estados Unidos tencionam jogar o
seu peso na reforma mais difícil mas também mais decisiva para restaurar a
legitimidade da organização — do seu Conselho de Segurança. Constituído pe-
las potências vitoriosas da Segunda Guerra Mundial, há muito que deixou de
reflectir a realidade mundial. Tornou-se um ponto de bloqueio. A sua reforma
está na agenda internacional desde 2000. Enfrenta resistências tremendas.
Os países com assento permanente defendem com unhas e dentes o status
quo. Os candidatos ao mesmo estatuto enfrentam a contestação regional. Só a
América estará em condições de quebrar o impasse.
Pode começar por aqui a breve mas promissora história do G20. Bastaram
200 dias e duas cimeiras para fazerem dele uma instituição que parece desti-
nada a perdurar. A sua génese remonta às últimas reuniões do G8, o selectivo
clube das democracias mais ricas do mundo e da Rússia, que não tiveram outra
alternativa senão passar a contar com alguns convidados permanentes para o
café. A crise mundial transformou-o numa necessidade. Tem a seu crédito ter
86 Europa Trágica e Magnífica
A EUROPA
E O «RESTO»,
INCLUINDO A CHINA
14-09-2010
décadas é a China. Como integrá-la e ao, mesmo tempo, contê-la. Como fazer
com que a sua emergência espectacular não faça explodir a ordem multilateral
construída pelo Ocidente, gerando um mundo de antagonismo entre pólos de
poder.
Na Europa as coisas ainda estão a um nível muito diferente. Os think-tanks
só agora começam a olhar com a devida atenção para a emergência da China
e as suas consequências mundiais e europeias. O foco ainda está no comércio
e cada governo ainda tende a olhar para Pequim como um parceiro económi-
co cada vez mais importante, onde se podem vender Airbus, fechar grandes
contratos ou deslocalizar empresas, mas não com uma visão estratégica sobre
a sua integração numa ordem mundial que continue a ser conveniente para a
Europa. Até agora, a Europa baseava o seu relacionamento com a China numa
vaga «estratégia» que valorizava uma «agenda global», incluindo as alterações
climáticas, a liberalização do comércio, os direitos humanos e o bom governo.
Copenhaga foi apenas o mais óbvio dos exemplos da distância entre as boas
intenções europeias e a dura realidade das negociações internacionais.
O que os europeus têm de fazer é uma abordagem estratégica, capaz de in-
tegrar o comércio mas também o Irão, as alterações climáticas mas também
a segurança mundial, a partilha de lugares no FMI ou no G20 mas também a
aceitação de um multilateralismo que continue a valorizar os direitos huma-
nos e o bom governo.
Para isso, a primeira coisa a fazer é precisamente convencer Pequim que
existe, de facto, uma Europa, com a sua (ainda) poderosa economia e 500 mi-
lhões de cidadãos, a sua moeda e interesses comuns, e não apenas Berlim ou
Londres ou Paris ou Roma. É esta, de resto, a linguagem que a China entende.
Basta prestar um pouco de atenção ao debate interno em Pequim para perce-
ber que as autoridades chinesas ainda não decidiram em definitivo se devem
considerar a Europa um dos actores globais do futuro com o qual é preciso
contar. Na Primavera, quando a União Europeia esteve à beira do abismo por
causa da crise da Grécia e da crise do euro, Pequim ainda apostou a favor do
euro (e da Europa), comprando títulos de dívida gregos e espanhóis. Interessa-
-lhe poder lidar com outra moeda além do dólar. Mas, em Pequim, entendem-
-se os factos e as palavras quando são sustentados por factos.
A EUROPA
RETIRA-SE
05-11-2011
A Europa retira-se. Poderá voltar dentro de uns dez anos. Regressará a uma
realidade internacional completamente diferente, na qual estará provavel-
mente destinada a representar o papel de um actor secundário. Poderia ser
esta a conclusão mais importante da cimeira do G20 que terminou na sexta-
-feira em Cannes, sob presidência francesa.
Alguns dos seus protagonistas podem continuar convencidos de que a reti-
rada da Europa da cena mundial pode não querer dizer necessariamente a sua
própria retirada. A Alemanha ainda é a quarta economia do mundo. Talvez se
acredite invulnerável à ruína que progressivamente a rodeia. Ou talvez não.
A França pode continuar a exibir o seu poder nuclear e um assento perma-
nente no Conselho de Segurança. Treme de medo perante a eventualidade
de perder o seu triplo A. Abraça-se à Alemanha para continuar a partilhar a
liderança europeia. Está, finalmente, disposta a fazer sacrifícios. Ontem, David
Cameron avisou os britânicos de que a incapacidade europeia para resolver a
crise do euro lhes poderia custar muito caro. Percebeu, talvez, até que ponto
o destino do seu país está ligado ao destino da Europa. Teme pela perda de
influência britânica do lado de lá (de cá) da Mancha, o que não quer dizer que
esteja a seguir a melhor estratégia. Mas nada disto apaga o «filme de terror»
europeu exibido durante dois dias em Cannes. A Europa comprometeu-se a
chegar à cimeira do G20 com a casa arrumada. A cimeira foi o palco da grande
desordem europeia. Em vez de um plano para resgatar o euro, houve uma tra-
gédia grega e uma triste «comédia» italiana. O espectáculo foi suficientemente
assustador para ter dissuadido os outros líderes mundiais a comprometerem-
-se a dar uma ajuda.
Esta foi também a cimeira em que a sua muito controversa liderança eu-
ropeia falhou rotundamente. Não são apenas os seus parceiros europeus
que começam a contestá-la. Os seus parceiros mundiais também não acre-
ditam nela. «Se quiseram demonstrar que continuam a liderar a Europa, a
sua intenção revelou-se absolutamente frustrada», escreve o Financial Times.
O Presidente francês e a chanceler alemã «ficaram na posição humilhante
de serem os primeiros líderes europeus obrigados a pedir a ajuda de outros
países do G20 — que, ainda por cima, se mostraram todos indisponíveis em
comprometer-se na ausência de um plano convincente sobre como a Europa
tenciona ultrapassar os seus problemas». Os membros do G20 nem sequer
quiseram comprometer-se imediatamente com um reforço da capacidade
financeira do FMI para poder vir em socorro das economias europeias a bra-
ços com a crise da dívida.
No final, houve palavras de compreensão e de incentivo sobre a capacidade
europeia de ultrapassar as dificuldades. Foram mais uma formalidade neces-
sária ou a manifestação de um desejo do que uma crença efectiva. Quando o
Presidente americano ou o primeiro-ministro britânico tentam convencer a
chanceler alemã de que o euro só se salva se o BCE se comportar como a Re-
serva Federal ou o Banco de Inglaterra, o que lhe estão a dizer é muito simples:
vocês são uma união monetária, comportem-se como tal. Quando o Presiden-
te chinês ou a Presidente do Brasil recuam perante um possível apoio, estão a
dizer outra coisa: se a Alemanha não quer investir num fundo que serve para
salvar a sua própria moeda, por que razão nós havemos de o fazer?
A crise da Europa é uma crise de confiança. Era preciso que os parceiros
internacionais acreditassem que a Alemanha fará mesmo tudo o que for pre-
ciso para garantir a sobrevivência do euro. Não saíram de Cannes com essa
convicção. Os mercados reagiram rapidamente e em conformidade. As bolsas
e o euro caíram e subiu ainda mais o custo da dívida italiana. Quem estará
em condições de resgatar a terceira economia do euro e a oitava economia
mundial? A crise ganhou uma nova e assustadora dimensão. Merkel continua
a dizer que se vai resolver «passo a passo».
O G20 foi a resposta política a uma crise financeira global de uma dimen-
são gigantesca que pôs em evidência as profundas mudanças geoeconómicas
mundiais. O simples facto de existir é importante para gerir uma turbulenta
«fase de transição» da política mundial para uma nova ordem de contornos
ainda indefinidos. Corresponde ao recuo deliberado dos Estados Unidos, en-
fraquecidos pela crise económica e pelas guerras de Bush, e ao reconhecimen-
to do papel crescente de países da dimensão da China, Índia ou Brasil ou até de
médias potências como a Turquia, Indonésia ou África do Sul. As (médias) po-
tências europeias tinham uma escolha a fazer: ou reforçar o estatuto político
e económico da Europa ou tentar jogar, cada uma, o seu próprio jogo mesmo
que em nome da Europa.
92 Europa Trágica e Magnífica
É isto que também está em causa com esta tremenda crise europeia. O euro,
que é hoje a segunda moeda internacional, só se reforça se representar um
poder político capaz de agir à escala mundial. Mantê-lo exige que a Europa se
consolide. Desmantelá-lo é, efectivamente, o fim do projecto europeu, prova-
velmente quando mais seria preciso. Os EUA já não estão disponíveis para fun-
cionar como o garante da segurança europeia. Lançar-se nos braços da China
é a mais perigosa das tentações. A Alemanha terá de clarificar as suas escolhas.
Seguir o seu próprio caminho ou liderar uma nova Europa «global». Isso tem
um preço. Que não pode ser o G20 a pagar.
JÁ NEM
O PAPA É EUROPEU
16-03-2013
Que me lembre, houve nos últimos anos dois momentos em que os experi-
mentados e cépticos jornalistas europeus (e de outras paragens) bateram
palmas no fim de uma conferência de imprensa. Espontaneamente e sem re-
morso. Na primeira conferência de imprensa do Presidente Obama, quando,
em Abril de 2009, veio a Londres participar na sua primeira cimeira do G20.
Ontem, no final do encontro do novo Papa com os jornalistas que cobriam os
últimos acontecimentos do Vaticano. Obama era uma tremenda lufada de ar
fresco e uma fonte de inspiração onde cada um podia projectar as suas expec-
tativas, ao ponto de fazer esquecer que era, antes de mais, o Presidente dos
Estados Unidos da América. A eleição do Papa Francisco transformou-se num
acontecimento inspirador, ao ponto de fazer esquecer que é, acima de tudo, o
chefe da Igreja Católica. Com Obama, a América provou a sua extraordinária
capacidade de renovação. Com Francisco, a Igreja Católica mostrou que
compreende o mundo em que vive e está disposta a mudar. O novo Papa vai
acabar por desiludir muitas pessoas. Reformar uma Cúria em decadência,
maioritariamente europeia, fechada sobre os seus privilégios e entretida em
lutas de poder muito pouco cristãs, é uma tarefa hercúlea. Teve um poderoso
aliado em Bento XVI, cuja renúncia não vai permitir que tudo fique exacta-
mente na mesma.
Obama foi o primeiro Presidente negro dos Estados Unidos. Francisco é o
primeiro Papa que veio «do fim do mundo» e é jesuíta. São sinais poderosos
que nos interpelam. São acontecimentos vividos à escala global e em directo,
graças a cobertura mediática. O novo Papa mostrou que compreende a função
dos media, oferecendo uma sucessão de gestos simples que pretenderam mos-
trar ao que vinha e o que queria: «Uma Igreja pobre e dos pobres.» É impossível
ficar-lhe indiferente. É impossível não reflectir sobre o significado político da
sua escolha. Que nasce de uma nova ruptura. A primeira foi a escolha do pri-
meiro Papa não italiano, que veio do Leste e precedeu a queda do Muro de
Berlim e a unificação da Europa. «Com João Paulo II a Santa Sé deixou de pare-
cer um clube de italianos», escreve a Economist. A segunda ruptura começou
com a resignação de Ratzinger, que não desistiu apenas de mudar a Cúria, da
qual fez parte quase toda a sua vida, mas desistiu também de uma Europa que
via como cada vez mais desprovida de valores. Com o seu gesto abriu as portas
à escolha, pela primeira vez em mais de mil anos, de um Papa que não é
europeu. Este é mais um sinal indesmentível de que o Velho Continente está
94 Europa Trágica e Magnífica
a ver o mundo passar-lhe ao lado sem sequer dar por isso, mesmo quando os
sinais vêm da cidade onde foi assinado o Tratado de Roma.
Enquanto olhávamos para Roma e para o seu novo Bispo, os líderes europeus
reuniam-se mais uma vez no tristonho edifício Justus Lipius de Bruxelas para
uma cimeira que não gerou qualquer expectativa. Com a Europa em recessão,
com os países do Sul mergulhados numa crise económica e social que não pára
de se agravar, com as eleições italianas a constituírem o último e mais sério
aviso do preço político que está a ser pago pelos programas de austeridade, a
cimeira foi um não acontecimento. Serviu para mais do mesmo. Ou seja, para
mais um exercício de retórica sobre a necessidade de conciliar austeridade
e crescimento, absolutamente vazio no que toca à segunda parte da equação.
Já se sabia que iria ser assim. Berlim já tinha avisado que não haveria qualquer
alteração real de estratégia. Reconhecer que os programas de ajustamento es-
tão a falhar clamorosamente em Portugal ou na Grécia e que a austeridade está
a penalizar brutalmente a Itália e a Espanha não é coisa que as autoridades de
Berlim e os seus amigos do Norte tencionam fazer, pelo menos no curto prazo.
As gesticulações de Christine Lagarde ou de Durão Barroso sobre os resultados
desta estratégia, por enquanto não passam disso. Nem sequer têm o mínimo
efeito nas avaliações da troika aos países intervencionados, cujos representan-
tes continuam diligentemente a debitar o mesmo discurso e as mesmas recei-
tas. E nem vale a pena deitar foguetes com a possibilidade de prolongar por
mais um ano o cumprimento das metas do défice ou alguma abertura para alar-
gar os prazos de pagamento dos empréstimos. Isso não significa uma mudança
política, mas apenas a verificação de que o cumprimento nas datas previstas
era pura e simplesmente impossível graças aos erros clamorosos dos próprios
programas e ao total falhanço das suas previsões. Nem o tempo a mais chega
para resolver alguma coisa, nem a mesma política dará diferentes resultados.
«Os factos são muito teimosos. Quando os factos mudam, ou se tornam mais
claros, as políticas têm de ser ajustadas», escrevia Timothy Garton Ash na sua
última coluna do Guardian, que é também um apelo à Alemanha para que faça
alguma coisa em nome do seu próprio interesse.
Podemos não estar de acordo com tudo aquilo que Jean-Claude Juncker
disse na entrevista à Spiegel da semana passada quando comparou a actual
situação da Europa com 1913. Mas o historiador britânico, embora um pouco
mais optimista, não resistiu à mesma comparação. «É pura coincidência que
a Alemanha enfrente este desafio quando nos aproximamos do centésimo
aniversário de 1914; mas é uma coincidência que revela uma histórica oportu-
nidade (…). Vá lá, Alemanha, agarra aquilo que Fritz Stern chamou uma vez a
tua histórica segunda oportunidade e utiliza-a bem.»
Já nem Vítor Gaspar parece acreditar no que está a fazer. Imagina-se o que
lhe terá custado apresentar, na sexta-feira, os resultados da sétima avaliação e
A Europa e o mundo: actor principal ou secundário? 95
OS NEGÓCIOS
E A GEOPOLÍTICA
07-12-2013
que toca aos negócios, a lógica que prevalece é a de cada um por si. Quanto à
geopolítica, a Europa agradece que os americanos tratem dela.
Não é uma posição sustentável por muito tempo. Que a Alemanha, que re-
presenta 40 por cento do comércio entre os dois gigantes económicos, veja as
coisas nesta perspectiva «geoeconómica» (mesmo que alguém tenha de man-
ter as rotas do comércio seguras para os seus produtos) ainda se entende. Que
o primeiro-ministro do Reino Unido, que é membro permanente do Conselho
de Segurança, esqueça o seu estatuto ao ponto de não ter emitido um comu-
nicado sobre a «zona de identificação de defesa aérea» (assinou o que foi feito
por Ashton em nome da Europa, que afinal lhe dá bastante jeito), é que é uma
novidade desagradável.
O receio maior dos EUA e dos seus aliados regionais é que a China adopte
a mesma atitude para o mar da China do Sul, onde está em conflito com as
Filipinas igualmente por razões territoriais. Esse receio foi ontem justificado
quando a diplomacia chinesa recusou submeter-se ao julgamento da comis-
são criada pela ONU para resolver o conflito. O novo líder chinês Xi Jinping
quer abrir ainda mais a economia chinesa às regras dos mercados, ao mesmo
tempo que utiliza uma retórica mais nacionalista que agrada aos chineses, ví-
timas da brutalidade japonesa antes da Segunda Guerra Mundial. O Japão é o
maior investidor na economia chinesa, tem uma marinha poderosa e decidiu
aumentar o orçamento de defesa. A China, que investe cada vez mais na defe-
sa, só tem um velho porta-aviões ucraniano que modernizou. A sua aviação
está muito longe de ter o treino da japonesa ou da coreana, sem falar dos EUA.
Os dois países só têm a ganhar com a paz. O problema é que nunca sabemos
quando uma tartaruga numa ilha deserta pode incendiar um oceano. A His-
tória ensina-nos, quase sempre da maneira mais trágica, que o nacionalismo
cega as nações ao ponto de ignorarem o seu próprio interesse. No meio disto
tudo, o que é que a Europa pensa? Em negócios. Habituou-se mal com a Guerra
Fria e custa-lhe perceber que o mundo, entretanto, mudou.
A Europa e o mundo: actor principal ou secundário? 99
100 Europa Trágica e Magnífica
REUTERS/Alexander Demianchuk
CAPÍTULO V
A RÚSSIA,
A UCRÂNIA,
A TURQUIA
E O PREÇO
DA AUSENTE
POLÍTICA
EXTERNA
EUROPEIA
A Rússia, a Ucrânia, a Turquia e o preço da ausente política externa europeia 101
TRISTES
TEMPOS PARA
A DEMOCRACIA
Outubro de 2006
viver da melhor maneira possível com os hábitos cada vez mais «soviéticos»
do Presidente russo.
O que a Europa diz todos os dias, para se convencer a si própria, é que preci-
sa de uma Rússia estável e cooperante. Evidentemente que a sua preocupação
quanto à dependência energética da Rússia aumenta na proporção directa do
endurecimento do regime. Evidentemente que as manifestações mais mediá-
ticas e mais intoleráveis da brutalidade do regime são um embaraço. Mas, nos
pratos da balança, a Europa e as suas potências preferem, como quase sempre,
a conciliação ao risco de uma atitude firme. O contrário exigiria que a Europa
quisesse jogar todo o seu peso económico e político para forçar a mão de Pu-
tin e dizer-lhe que não vale tudo. Exigia união de propósitos e uma estratégia
comum. Nada disto existe.
A administração americana responde com tímidos protestos e com cada vez
mais declarações envergonhadas de que, feitas bem as contas, ainda tem espe-
rança de que a Rússia vai na boa direcção. A anos-luz da doutrina da expansão
da democracia de Bush.
A crescente desordem mundial parece empurrar inelutavelmente as demo-
cracias para um pragmatismo cada vez mais destituído de quaisquer princí-
pios. Como escrevia também Anne Applebaum, «com as crises no Iraque, no
Irão e na Coreia do Norte, poucos terão tempo para se dar conta da recente es-
calada entre a Rússia e a Geórgia ou para meditar nas consequências políticas
da crescente dependência europeia do gás russo ou para se preocupar com
questões menores como a deterioração da liberdade de imprensa na Rússia».
No tempo da União Soviética não havia liberdade de imprensa nem sequer
imprensa digna desse nome. É assim nos regimes totalitários e as pessoas que
resistem habituam-se a recorrer aos mais variados estratagemas, todos eles ar-
riscados, para fazerem circular a informação. São estas as regras do jogo. Na
Rússia de Vladimir Putin ainda é preciso fazer de conta que há um certo grau
de liberdade de imprensa. Quanto mais não seja para que o Presidente possa
dizer meia dúzia de banalidades sobre a sua «democracia» à maneira russa
que não façam corar de vergonha os seus pares do Ocidente quando figura
com eles nos grandes eventos internacionais.
Tristes tempos para a democracia.
104 Europa Trágica e Magnífica
DE QUE RIEM OS
LÍDERES EUROPEUS?
27-11-2006
Neste enredo de John le Carré que traz por demais à mente as sombras da
Guerra Fria e que dá toda a força às palavras de Fischer, a Polónia desempe-
nhou também o papel de mau da fita que, como escreveu a imprensa europeia
mais prestigiada, ainda não percebeu as regras do jogo da União. Pode ser ver-
dade que a dupla de gémeos que governa a Polónia tem muito que se lhe diga
em matéria de nacionalismo e de fraco europeísmo. O problema é que os po-
lacos, e os checos, húngaros e bálticos, ainda têm uma memória fresca do que
significou a Guerra Fria e do que significa uma política imperial de Moscovo.
Compreendem talvez melhor do que ninguém que é preciso, de uma maneira
ou de outra, deixar muito claro a Putin os limites do seu poder. E Varsóvia terá
alguma razão quando diz que o embargo russo às suas exportações de carne
é uma questão política e não uma mera questão técnica, a alegada qualidade
da carne polaca, que dificilmente se imagina como uma grande preocupação
do regime russo. Mais uma vez, com a Polónia o Presidente russo está a testar
a vontade europeia.
tecimento. Mas não a qualquer custo. O problema é que, além dos esforços de
Barroso em lançar as negociações de um novo quadro legal para as relações
com a Rússia (era o que estava em causa em Helsínquia e o que falhou), a União
ainda não conseguiu encontrar uma política coerente baseada nos seus inte-
resses comuns e nos seus valores.
Jacques Chirac sorri para Putin porque vê nele, de vez em quando, um par-
ceiro ideal para a sua política anti-Bush. Tony Blair sorri para Putin porque,
tal como Bush, decidiu que a Rússia era um parceiro fundamental na guer-
ra ao terror. Merkel sorri um pouco menos para Putin — não é por acaso que
vem de um antigo satélite soviético —, mas que ninguém se iluda: a Alemanha
quer garantir o seu abastecimento energético a qualquer custo, como o prova
a construção de um gasoduto a ligar os dois países, circundando a Polónia e
os Bálticos.
No início deste ano, quando Moscovo decidiu fechar a torneira do seu gás à
Ucrânica evocando uma questão de preço, pareceu a certa altura que a União
tinha finalmente tomado consciência do que estava em jogo. Hoje, quando a
Rússia continua a usar os seus recursos energéticos para ameaçar os vizinhos e
fazer pairar uma leve ameaça de chantagem sobre a própria União, a resposta
europeia continua a ser manifestamente insuficiente. E a Rússia continua con-
vencida de que pode ditar a Bruxelas os termos da sua relação. Não é necessá-
rio um grande esforço para entender que a Europa, se quiser, dispõe de armas
convincentes para estabelecer as regras do jogo com Putin.
O petróleo e o gás e o seu preço actual muito conveniente não chegam para
a Rússia se desenvolver e afirmar o seu estatuto de potência mundial. Precisa
de investimento, de mercados, de tecnologia. Tudo o que a Europa tem em
grande escala. Falta-lhe apenas decidir agir a sério e a uma só voz. Nesse caso,
até a Polónia se comportaria de outra maneira.
A Rússia, a Ucrânia, a Turquia e o preço da ausente política externa europeia 107
A CRISE TURCA E A
RESPONSABILIDADE
EUROPEIA
01-05-2007
Teria sido mais avisado, como escreveram muitos editorialistas mesmo pró-
ximos do AKP, que Erdogan tivesse optado por escolher um candidato de ou-
tro partido ou do seu, mas mais distante do poder e mais consensual. Sabendo
como sabe que as suas credenciais democráticas e laicas ainda estão à prova,
uma escolha diferente teria sido um sinal de tranquilização e anularia qual-
quer pretensão dos militares.
Não foi este, infelizmente, o caminho que escolheu. Preferiu uma prova de
força que lhe está a sair mal. Agora, como escrevem também muitos jornais,
só lhe resta a antecipação das eleições legislativas (previstas para Novembro),
que é a forma mais usual a que recorrem as democracias para resolverem cri-
ses sérias como esta e que será também a oportunidade para um debate demo-
crático e aberto sobre o Islão e o secularismo.
Se escolher a via da imposição do seu candidato, por mais legítima que seja,
só irá exacerbar a crise e afastar a Turquia da democracia e da Europa. E demo-
cracia e Europa têm sido o programa dos islamistas moderados desde que che-
garam ao poder há cinco anos. É essa a sua força e é isso que têm de preservar.
Por mais que nos possa irritar o facto da mulher de Gül exibir o véu, por
mais que possamos compreender os receios de muitas mulheres turcas, habi-
tuadas a viver como nós, que vêem no véu (ou melhor, no fim da proibição do
seu uso em lugares públicos) um sinal preocupante, a verdade é que foi o AKP
(que se apresenta a si próprio como um partido conservador de raízes muçul-
manas, comparando-se à democracia-cristã europeia) que levou a cabo a mais
profunda revisão constitucional e legislativa de que a Turquia tem memória
para a aproximar das exigências democráticas da União Europeia.
Como também é verdade que foi este governo que levou mais a sério e mais
consequentemente a prioridade estratégia europeia da Turquia. Pelo contrá-
rio, é nos sectores secularistas que encontramos o nacionalismo mais arrei-
gado.
A Rússia, a Ucrânia, a Turquia e o preço da ausente política externa europeia 109
DA GUERRA FRIA
À PAZ GELADA
05-06-2007
Sabe-se como é. Mas sabe-se também que, sem liberdade de imprensa, o ca-
minho para o autoritarismo entra na via rápida para não mais travar.
o grupo dos países mais desenvolvidos do mundo ao qual a Rússia foi simpa-
ticamente convidada a entrar na década de 90. Provavelmente, Bush, Merkel,
Blair ou Sarkozy vão fingir que o seu parceiro se sabe portar à mesa. Mas Putin
chegará com o propósito de estragar a festa. Aliás, já a estragou, ao anunciar
há três dias que a Rússia pode de novo apontar os seus mísseis às principais
cidades europeias caso Bush insista no seu sistema de defesa antimíssil. Assim,
uma cimeira que Merkel quis focar em duas grandes questões globais que são
importantes para a agenda europeia — as alterações climáticas e a ajuda a Áfri-
ca — vai ver-se totalmente desfigurada pela retórica bélica do Presidente russo.
O clima, na Europa como nos EUA, continua a ser o de salvar as aparências.
Bush vai convidar o seu homólogo russo para a sua casa de família em Kenne-
bunkport, no Maine. Sócrates tenciona receber Putin com todas as honras em
Mafra. Mas alguém tem de descobrir urgentemente uma nova estratégia para
lidar com a nova-velha Rússia, que tem de ser concertada entre os dois lados
do Atlântico.
Tal como antes o poder soviético, o objectivo de Putin com o escudo anti-
míssil é simples: dividir a Europa e dividir a NATO. Será isso, precisamente,
que o Ocidente não pode deixar que aconteça. Pode dialogar, estender a mão,
convidar, apaziguar. Desde que a Europa perceba com toda a clareza que a sua
segurança está ligada aos EUA e que esse é o único domínio onde não pode
ceder. E que seguirá um caminho errado se, na sua política externa, começar a
separar os seus interesses imediatos dos seus valores.
A Rússia, a Ucrânia, a Turquia e o preço da ausente política externa europeia 113
O OCIDENTE
DESISTIU
DA UCRÂNIA?
15-01-2010
A EUROPA JOGA
O SEU DESTINO
NA CRIMEIA
Março de 2014
Escrevi muitas vezes que a Europa, distraída com a sua crise existencial e (mal)
habituada a ter a sua segurança garantida pelos EUA, passou os últimos anos
a ignorar as enormes mudanças do mundo à sua volta. Não viu chegar as Pri-
maveras árabes, não definiu uma estratégia para influenciar a sua evolução,
ignorou a ameaça terrorista que se instalava nos Estados-falhados na região
do Sahel. E nem sequer se deu ao trabalho de rever a sua «estratégia de segu-
rança» de 2003, já largamente ultrapassada pelas mudanças internacionais.
Apesar da Líbia ou do Mali, não fez qualquer esforço para se adaptar à nova
doutrina de Washington que lhe atribuiu muito mais responsabilidade pela
segurança regional. Confesso que nunca pensei que a crise que se trava hoje
na Ucrânia nos entrasse pela porta dentro numa dimensão e numa gravidade
para a qual essa ausência de estratégia se torna dramaticamente visível. É, já
ninguém tem dúvida, a maior crise vivida na Europa desde a queda do Muro.
Que põe em causa as fronteiras estabelecidas desde o fim da Guerra Fria (e
a Europa sabe, melhor do que ninguém, o que que isso significa) e apanhou
os europeus absolutamente de surpresa. Desta vez, não vai ser fácil resolvê-la
apenas pelo método preferido: deixar andar.
Em boa verdade, esta distracção traz consigo um profundo ensinamento.
Apesar da estratégia de Putin para a reconstituição de um novo «império
russo», capaz de apagar as consequências da implosão da União Soviética («a
maior tragédia geopolítica do século XX», nas suas próprias palavras), a União
foi fechando os olhos. Primeiro, apostou numa «pareceria estratégica» com
Moscovo assente nos «valores comuns», indiferente ao endurecimento do re-
gime. Putin chegou a ser um «democrata» quando Jacques Chirac e Gerhard
Schröder caíram na asneira de o incluir num chamado «eixo da paz» em oposi-
ção à guerra de Bush no Iraque (2003). Mudou de agulha para uma abordagem
mais realista. Os direitos humanos e a democracia foram guardados na gaveta.
Os negócios subiram para o topo da lista de prioridades dos países europeus,
grandes ou pequenos. Obama, chegado à Casa Branca, carregara no botão do
«reset», pondo termo a um período de maior hostilidade entre Washington
e Moscovo. O parênteses Medvedev permitiu realizar uma «histórica» cimeira
da NATO em Lisboa (2010) que, como muitas pessoas escreveram, era o ver-
dadeiro fim da Guerra Fria. Já tinha ficado para trás a estratégia americana
116 Europa Trágica e Magnífica
Até agora, a Europa e os Estados Unidos estão a agir em uníssono face à ofen-
siva de Putin. Há muito tempo que um comunicado no final de um Conselho
Europeu sobre um problema internacional não era tão claro e tão conciso.
O palavreado habitual, capaz de dizer tudo e o seu contrário, deu lugar a uma
avaliação comum e a medidas concretas. Não importa se a reunião foi «tem-
pestuosa», como disse o primeiro-ministro polaco. A coordenação transatlân-
tica está a fazer-se. É a mais eficaz forma de pressão sobre Putin, que está a
desafiar Obama e a contar com a habitual fraqueza dos europeus, que não sa-
bem falar a linguagem da força nem estão preparados para pagar o preço que
a segurança sempre custa.
Mas estamos ainda muito longe do fim da crise. Os EUA e a Europa têm um
espaço de tempo muito curto para definirem o passo seguinte, face à convo-
A Rússia, a Ucrânia, a Turquia e o preço da ausente política externa europeia 117
cação de um referendo na Crimeia para o próximo dia 16, que Putin quer que
seja um facto consumado, para lhe mostrarem que só tem a perder (o que é
verdade) se insistir na sua anexação.
Dizem os analistas, por necessidade de simplificação, que Kiev se transfor-
mou no lugar geométrico de um novo confronto Leste-Oeste. Não é totalmente
verdade. O que está em causa neste braço-de-ferro entre Putin e Obama é pre-
cisamente a Europa: a sua unidade enquanto entidade política e o futuro da
própria aliança transatlântica. O problema é saber se, em Berlim, também se
pensa assim. A Alemanha comporta-se um pouco como uma «potência emer-
gente» que, além da sua capacidade económica, ainda não se adaptou às novas
responsabilidades políticas que a liderança europeia também lhe exige. É um
desafio para o qual a chanceler pode não estar preparada. O SPD, seu parcei-
ro de coligação, tem historicamente uma corrente que privilegia as relações
com a Rússia em detrimento da velha aliança com os EUA. Berlim pode ter um
papel decisivo na procura de uma solução que leve em conta os interesses da
Rússia, mas também pode inviabilizar qualquer estratégia de médio prazo que
defina as bases de uma relação com Moscovo assente no respeito pelo direito
internacional e pela independência dos países que se situam no seu «estran-
geiro próximo». A presença de Iulia Timochenko em Dublin (no Congresso do
PPE) ou o convite ao primeiro-ministro do governo provisório de Kiev para ir a
Bruxelas no dia do Conselho Europeu extraordinário, traduzem firmeza políti-
ca. Mas não é de mais lembrar que o que está em jogo nesta crise é o futuro da
Europa e o futuro da relação transatlântica.
Judy Dempsey, analista do Carnegie, fazia uma simples pergunta: «Putin vai
finalmente fazer a Europa despertar?» É esta a questão fundamental.
118 Europa Trágica e Magnífica
CAPÍTULO VI
BUSH E
OBAMA:
A RELAÇÃO
INDISPEN-
SÁVEL
REUTERS/Saul Loeb/Pool
Bush e Obama: A relação indispensável 119
AS OUTRAS FACES
DA GLOBALIZAÇÃO
OU A ASCENSÃO
DO «RESTO»
13-06-2008
Rachman alertava também para outra coisa para a qual a maioria dos res-
ponsáveis ocidentais não tem prestado a necessária atenção. Escrevia ele que,
por toda a parte por onde viajou nos últimos seis meses, pôde testemunhar
que o preço da comida era o tema central de conversa entre as pessoas co-
muns. No Paquistão explicaram-lhe que, por mais que o mundo ocidental se
preocupasse com a liberdade de movimentos da Al-Qaeda, as pessoas estavam
muito mais preocupadas com o preço do trigo. Um exemplo entre muitos
para indicar até que ponto temos dificuldade em perceber os problemas dos
outros e como os outros nos vêem a nós, às nossas preocupações e ao nosso
modo de vida. E como, por vezes, se ofendem com a nossa abundância, tirando
qualquer valor às nossas prelecções. Sejam elas sobre a democracia ou sobre
o combate às alterações climáticas ou sobre a integração dos mercados e as
negociações de Doha.
Não é tanto aquilo que propomos, que basicamente está certo, mas a forma
como o fazemos.
Citando um comentador brasileiro seu amigo, o colunista do FT voltava a
dar um exemplo que vale por mil palavras. Durante dois séculos a industria-
lização ocidental ajudou a dar cabo do planeta. Agora, «é como se os meus
vizinhos ricos dessem um grande banquete, me convidassem para o café e, no
final, quisessem dividir a conta comigo». Poderia ser chinês ou indiano.
Bush e Obama: A relação indispensável 121
Quer isto dizer que os nossos valores e o nosso modo de vida não são aque-
les que mais convêm aos outros? Pode isto legitimar governos corruptos ou
autoritários ou ditatoriais? Certamente que não. O que quer dizer é que temos
de encontrar novas formas políticas, mais democráticas e, consequentemente,
mais legítimas, de lidar com as consequências da globalização económica e
geri-las em favor do maior número.
Para isso, talvez o bem com mais escassez nos mercados mundiais seja lide-
rança política.
POR FAVOR,
SENADOR OBAMA,
REFREIE O NOSSO
ENTUSIASMO.
OU TALVEZ NÃO...
24 de Julho de 2008
Lendo a imprensa europeia dos últimos dias, a ideia de que a Europa está
demasiado entusiasmada com Barack Obama e que isso pode abrir as portas
a uma crise transatlântica de tipo novo, nascida das frustrações subsequen-
tes, é praticamente incontornável. Uma parte do título desta coluna foi, aliás,
tomado de empréstimo ao do último comentário de Jonathan Freedland no
Guardian a propósito da visita do candidato democrata à Europa. O senador
chega a Berlim amanhã, passará por Paris e por Londres e, como escrevia o
colunista britânico, a oportunidade de ver Obama e, se possível, ficar a seu
lado na fotografia, transformou-se na mais «escaldante» procura de bilhetes
do ano, independentemente da cor política dos governos ou das oposições.
Percebe-se porquê.
A Europa está mergulhada numa autêntica «Obamamania». O mesmo Guar-
dian publicava na semana passada uma sondagem na qual o candidato demo-
crata vencia o seu rival republicano John McCain na preferência dos britâni-
cos numa proporção de cinco para um. Curiosamente, a sua «vitória» era mais
acentuada no eleitorado tory porque, aparentemente, o centro-esquerda terá
sido fiel até mais tarde a Hillary Clinton. Na Alemanha, todos os inquéritos de
opinião apontam para uma vantagem ainda maior — se os alemães pudessem
votar, Obama ganharia por 72 por cento. E nem vale a pena falar da França onde
a escolha de Obama se revela ainda mais esmagadora, ultrapassando os 80 por
cento. O fenómeno não é só europeu, mas atinge na Europa a sua expressão
mais forte. Obama é a face da América que os europeus gostam de amar como
George W. Bush, justa ou injustamente, foi aquela que adoraram odiar.
Em Berlim, a cidade que acolheu JFK em triunfo há 45 anos, Obama deverá
atrair multidões. É lá que tenciona fazer o seu discurso fundamental sobre as
relações transatlânticas. Avisam os analistas de que, provavelmente, os gover-
nantes europeus não gostarão de tudo o que terá a dizer. Voltemos, pois, ao
ponto de partida. Precisamos nós, europeus, de refrear realmente o nosso en-
tusiasmo por Obama?
Bush e Obama: A relação indispensável 123
Houve, no entanto, nos Açores uma voz que contrariou esta percepção um
pouco fatalista. A de Mário Soares. Para o antigo Presidente, não é nada disto
que se trata. O que se trata é que Barack Obama representa uma revolução
cultural tremenda para a América e para o mundo, incluindo a Europa. Que
estamos perante um aqueles momentos da história em que a América se pode
voltar a erguer, com todo o seu poder e dinamismo, a favor do bem, como
aconteceu com a eleição de Roosevelt quando o mundo viva os dias negros
que se sucederam à crise de 29 para lançar o New Deal e liderar o combate
contra o fascismo. Que em Obama repousa, de algum modo, a esperança de
que o Ocidente possa inverter a tendência para o declínio e a perda de influên-
cia num mundo conturbado e perigoso que se inclina em sentido contrário ao
124 Europa Trágica e Magnífica
dos seus valores e dos seus interesses. Que Obama será afinal a única esperan-
ça possível para um Velho Continente sem lideranças e sem ânimo para fazer
o que é preciso fazer.
Foi muito bom ter escutado Mário Soares. Pode ou não partilhar-se do seu
entusiasmo e das suas teses sobre o candidato democrata. O seu maior mérito
é chamar a atenção para que não temos todos de pensar a mesma coisa, fata-
listicamente. Nem sobre os EUA nem sobre a própria Europa. E que a História
nos oferece exemplos magníficos de como um líder pode fazer, afinal, toda a
diferença.
E uma coisa é desde logo positiva nesta «Obamamania» que nos invade.
A reconciliação transatlântica, que hoje a maioria dos líderes europeus vê
como indispensável, não se pode construir sobre uma opinião pública euro-
peia que, porventura injustamente, via na América de Bush um dos principais
factores de instabilidade e de insegurança mundiais. Obama ajudaria a dissipar
boa parte deste sentimento antiamericano, que nunca foi tão profundo, nem
nos tempos de Nixon e do Vietname ou de Reagan e da Guerra das Estrelas.
O candidato democrata começou o seu até agora mais importante discurso
sobre política externa invocando a memória de George Marshall para explicar
a sua própria visão do mundo. Como escrevia Philip Stevens no Financial Ti-
mes, pode estar aí a mais importante mensagem que traz para a Europa. Que
o Ocidente prosperou e venceu a Guerra Fria porque soube construir um sis-
tema internacional assente em regras, ao mesmo tempo que se dotava de uma
poderosa capacidade militar.
É este o desafio que os europeus podem e devem entender. Em vez de que-
rerem antecipar a sua própria derrota.
Bush e Obama: A relação indispensável 125
O OCIDENTE E OS
NOVOS ACTORES
MUNDIAIS: COMO
PARTILHAR
RESPONSABILIDADES
13-11-2008
O LEGADO
DA DÉCADA
15-12-2009
Tudo isto não quer dizer que o mundo vá regressar ao que era antes desta
década «infernal». Quer apenas dizer que há uma possibilidade real de gerir as
mudanças globais através da cooperação e não através do confronto. A Amé-
rica terá mais uma vez um papel decisivo. A poderosa economia americana
começa a dar sinais de retoma. Barack Obama, apesar de não fazer milagres,
não desistiu da sua ideia de mudar os fundamentos da sociedade americana
e mundial.
Mas há algumas coisas que mudaram para sempre. E essas mudaram por-
que mudou o resto do mundo.
Vista de Brasília ou de Pequim, a década que passou está longe de ser
«infernal». Pelo contrário. O Brasil continuou a cumprir com distinção o seu
novo destino de país do presente. A China registou uma década de cresci-
mento económico verdadeiramente alucinante, que nem a crise mundial
conseguiu travar, e a guindou inexoravelmente ao estatuto de grande po-
tência mundial. Nos dois casos, apesar da diferença abissal entre os siste-
mas políticos, milhões de cidadãos saíram da pobreza e encontraram uma
perspectiva de futuro melhor. É óbvio que a China ou o Brasil continuam a
ser sociedades mais pobres e menos justas que as sociedades ocidentais.
É óbvio que terão de continuar a crescer a um ritmo acelerado para alcança-
rem a prosperidade individual de que usufruem os cidadãos das democra-
cias ricas do Ocidente. A grande diferença é que, para eles, o futuro só pode
ser melhor e para nós, cidadãos ocidentais, o futuro está ensombrado pela
incerteza e o pessimismo. No fundo, a grande questão que se coloca hoje às
democracias ocidentais é saber se o grau elevado de riqueza e de bem-estar
de que desfrutam e a sua coesão social são sustentáveis no longo prazo. E a
que preço.
OBAMA
E A EUROPA
13-02-2013
«HELLO, BERLIN»
22-06-2013
Na cidade que conta a história da Europa do século XX através das suas me-
mórias mais negras, o simbolismo ainda é uma moeda política com algum va-
lor. Obama não deixou uma frase que ficará para a História como aquela que
JFK pronunciou junto do Muro, ou a que Ronald Reagan disse no mesmo local
quando desafiou Gorbatchov a descongelar o mundo. As circunstâncias são
tão diferentes que talvez isso fosse impossível. O Muro caiu, a União Soviética
implodiu, a Europa unificou-se sob a égide da democracia, Berlim já não é a
fronteira da liberdade diante dos 4000 tanques soviéticos que estacionavam à
sua porta. Mas foi ainda desse passado que Obama e Merkel falaram. A chance-
ler que veio do Leste sabe perfeitamente aquilo que deve aos americanos para
estar hoje onde está. O Presidente, que tende a olhar para o mundo para lá da
velha perspectiva transatlântica, sabe que há laços indestrutíveis entre a Euro-
pa e a América, que a História forjou e a democracia e a liberdade consolida-
ram. Sabe que esses laços já não comandam muitas das opções da Alemanha.
E sabe também que, na paisagem política europeia em grande mutação, Ber-
lim é o seu interlocutor privilegiado.
Foram precisos cinco anos de mandato para Obama regressar à Alemanha,
numa visita oficial que os alemães esperavam há muito. Desta vez, com direito
a falar na Porta de Brandemburgo. Tinha vários desafios a vencer, e não ape-
nas a inevitável comparação com JFK e Reagan. Em 2008, quando era apenas
senador do Illinois e candidato à Casa Branca, a chanceler recusou-lhe o direi-
to a falar naquele mesmo local carregado de simbolismo. Mas os berlinenses
ofereceram-lhe uma audiência gigantesca e rendida que, desta vez, não existiu.
Há cinco anos era um símbolo global onde cada um podia projectar todos os
seus sonhos. Desta vez, é apenas o Presidente dos EUA, com tudo o que isso
acarreta. Não fechou Guantánamo, embora não por culpa própria. Os seus ser-
viços secretos espiam muitas pessoas, como sempre espiaram. O recurso aos
drones para eliminar terroristas não é pacífico. A sua relativa desistência das
questões climáticas não é bem vista na Alemanha. O seu «pivô» para a Ásia-
-Pacífico é sentido na Europa como um abandono. O que não quer dizer que
tenha deixado de ser olhado pelos europeus como um símbolo da América
de que eles gostam. Mais de 70 por cento dos alemães continuam a avaliá-lo
de forma positiva. Num inquérito feito na véspera da sua visita, que pergunta-
va qual a liderança melhor — a dele ou a de Merkel —, a resposta pendeu cla-
ramente para o seu lado, apesar da popularidade da chanceler. A própria não
terá desdenhado o «banho de ouro» que Obama lhe proporcionou a poucos
meses das eleições legislativas.
Bush e Obama: A relação indispensável 137
A SUPERPOTÊNCIA
QUE CONTINUA A
SER INDISPENSÁVEL
09-11-2013
europeia. Mesmo assim, Obama deu-lhe a mais alta condecoração que um Pre-
sidente pode dar a um líder estrangeiro. Hoje, é cada vez mais difícil de enten-
der em Washington para onde vai a Alemanha, quando se mostra disposta a
fazer de Edward Snowden um herói.
Obama anunciou desde o início do seu mandato que levaria a cabo uma
viragem estratégica que ficou conhecida como o «pivô» para a Ásia-Pacífico.
Anunciou-a formalmente em Novembro de 2011. Hillary Clinton executou esta
estratégia com mestria. Hoje, os jornais americanos fazem títulos com o can-
celamento da viagem de seis dias do Presidente à Ásia, no final do mês pas-
sado, por culpa do shutdown. Obama quer virar a América para a região do
mundo onde se concentra cada vez mais a riqueza e onde a emergência de
uma nova «grande potência» pode desestabilizar a ordem internacional que
os EUA construíram depois da Segunda Guerra Mundial e que ainda hoje pre-
valece. Disse que o século XXI seria definido pelas relações entre os Estados
Unidos e a China, o que dificilmente alguém poderá contestar. Falou-se muito
do G2, quando se estava a lançar o G20. Essa moda não pegou. Os chineses não
a queriam e a Europa também não. Dizem os analistas americanos, talvez com
um pouco de exagero, que a sua ausência apenas serviu ao novo Presidente
chinês, Xi Jinping, para ocupar o espaço deixado vazio pelos Estados Unidos.
«Era preciso tranquilizar os nossos aliados, depois de dez anos de concen-
tração no grande Médio Oriente, de que a América não os abandonaria», expli-
ca hoje Hillary Clinton. E era preciso, ao mesmo tempo, explicar à China que
um entendimento estratégico entre os dois países era do seu interesse mútuo.
Foi ela que conseguiu acrescentar o «estratégico» ao Diálogo Económico. Mas
também foi ela que foi dar garantias a todos os países da região, aliados ou não
dos EUA, de que a sua segurança continuaria a ser uma prioridade. «Quería-
mos que a China compreendesse que estávamos lá para ficar.»
A China cooperou com os EUA no G20 para impedir que a crise financeira
se transformasse numa Grande Depressão, alastrando ao mundo inteiro. Mas
a política americana ainda é vista em Pequim «como parte de uma sofistica-
da conspiração para frustrar a ascensão da China», escreve a Foreign Affairs.
Os países mais vulneráveis à pressão chinesa, do Vietname às Filipinas, querem
a América presente desde que isso não os obrigue a terem de escolher entre
Pequim e Washington. O Japão conta com a América para gerir a sua relação
com a China. Seria sempre um exercício difícil. A crise económica e política
em Washington tornaram-no mais complicado. As duas maiores economias do
mundo estabeleceram entre si uma espécie de MAD (Mutual Assured Destruc-
tion) económico. A China possui mais de três triliões da dívida americana e a
América é o maior importador de bens chineses. De cada vez que o Congresso
ameaça Obama com o risco de default, Pequim sustém a respiração. «Vocês vão
pôr a vossa casa em ordem, não vão? Vão garantir que o nosso investimento na
vossa dívida é bom, não vão?», conta a antiga secretária de Estado a partir da
142 Europa Trágica e Magnífica
sua própria experiência. Obama tem todas as razões para se virar para a Ásia.
Mas terá, algum dia, de começar a resolver o problema da dívida.
CAPÍTULO VII
A NOVA
PAISAGEM
POLÍTICA
REUTERS/Vincent Kessler
A nova paisagem política 145
A SOCIAL-
-DEMOCRACIA E…
ENCORE
UN EFFORT…
24-4-2007
ças sociais operadas nas sociedades modernas dos nossos dias e a necessidade
de renovar as formas de representação democrática.
Blair foi o percursor. Inspirou-se em Clinton e teve Thatcher para fazer o
trabalho mais difícil. Acabou por fazer escola nos partidos sociais-democratas
europeus que, uns mais que outros, todos fazem blairismo por linhas tortas.
A excepção era precisamente a França.
voltar a ser ela própria. Livre da obsessão de evitar o destino de Jospin. Livre
de seguir as suas intuições. Livre para apresentar um verdadeiro programa.
Só esta liberdade lhe pode garantir a possibilidade da vitória. Uma estratégia
do tout sauf Sarko revelar-se-ia fatal.
O seu discurso da noite eleitoral, ao tentar disparar em todos os sentidos,
ainda não é isto.
AS ATRIBULAÇÕES
DA ESQUERDA
EUROPEIA
06-09-2008
(em termos de política interna) do SPD ganhou sobre a sua facção mais esquer-
dista. Que a tentação de uma aliança eleitoral ao nível federal com o Partido
da Esquerda de Oskar Lafontaine (outro antigo líder do SPD que se associou
com os pós-comunistas da antiga RDA) está mais distante. Que o sentido das
reformas introduzidas pelo anterior governo de Schröder (das leis laborais e
das regalias sociais) se manterá, mais ou menos, no próximo combate eleitoral.
Mas isso não impediu a mesma imprensa de comentar que o melhor que
Steinmeier pode fazer é ser um «perdedor decente» em 2009.
Aliás, igualmente reveladoras do estado a que chegou o SPD alemão na sua
luta contra os ventos da história são as notícias recentes sobre a possibilidade
de uma coligação «Jamaica» (democratas-cristãos, liberais e verdes) para subs-
tituir a actual «grande coligação» no caso altamente provável de nova vitória
da CDU de Merkel. O simples facto de ser mais fácil a Merkel admitir trabalhar
com os verdes alemães diz muito do que se passa na cena política alemã e re-
corda-nos o papel de Joschka Fischer na sua qualidade de vice-chanceler e de
chefe da diplomacia dos governos de Schröder entre 1998 e 2005. Foi ele quem
conduziu a Alemanha reunificada na transição difícil entre a sua «menorida-
de» internacional e a sua condição de país «normal», capaz de assumir as suas
responsabilidades internacionais. Foi ele quem impediu que se rompessem
completamente as pontes entre Berlim e Washington, na tremenda crise do
Iraque, quando assistimos a uma mudança profunda num dos pilares da po-
lítica federal deste o pós-guerra: a inquestionável aliança com os EUA. Foi ele
quem conduziu uma política europeia sem verdadeira ruptura com a era Kohl,
mantendo a Alemanha no coração da integração europeia. Se acrescentarmos
a esta realidade a maior abertura de espírito dos verdes para encararem os
desafios da globalização, não chega a admirar que a CDU de Merkel possa con-
siderar a hipótese de os ter como parceiros.
Sabendo nós quão a Alemanha é fundamental para a Europa, é caso para
dizer que a Europa dispensa bem um governo social-democrata em Berlim.
A ESQUERDA
EUROPEIA ENTRE
O PASSADO
E O FUTURO
21-03-2009
Regresso ao passado?
A Europa passou as últimas décadas a «americanizar-se». À sua maneira, con-
verteu-se ao liberalismo, procurando copiar da América o dinamismo que lhe
permitia tirar melhor proveito da globalização. A «terceira via» de Tony Blair
abriu as portas a uma paisagem política «pós-ideológica». Com muitos segui-
dores e um enorme sucesso.
Com o fim abrupto do ciclo neoliberal, vamos assistir ao regresso das velhas
ideologias? As respostas variam.
António Vitorino, o homem que liderou o movimento das «Novas Fron-
teiras» do PS, crê que isso não será possível. «A diferença entre esta crise e a
crise dos anos 30 é que hoje não existe qualquer modelo alternativo à eco-
nomia de mercado.» Foi esse o legado da queda do Muro que ainda perdura.
Ivan Krastev, director do Centre for Liberal Strategies de Sofia, argumenta
que «a noção da política em que todos ganhavam, que era própria da “ter-
ceira via”, foi derrotada» e que vamos provavelmente regressar a uma «visão
mais confrontacional da política». Que será, no entanto, muito diferente da
divisão direita/esquerda dos anos 70. João Cardoso Rosas, professor de Filo-
sofia Política da Universidade do Minho, admite «o regresso ao estatismo que
sempre marcou tanto o conservadorismo como a social-democracia tradi-
cionais». Nota, no entanto, que os primeiros beneficiários da crise parecem
ser as forças de extrema-esquerda.
Há um paralelismo com o debate americano?
O ponto de partida europeu é diferente. Apesar das reformas, a Europa pre-
servou o essencial do seu Estado social. Mas a questão do aumento das de-
sigualdades no novo paradigma da economia global está também presente.
Nenhuma resposta anterior conseguiu resolvê-la. A crise e o fim abrupto do
dinheiro fácil tornam-na de repente (como na América) muito mais visível.
Se a «terceira via» não conseguiu ser a resposta, como muitas pessoas con-
cluem, também não poderá ser a social-democracia tradicional, que criou as
suas raízes sociais quando o mundo se reduzia às ricas economias ocidentais
e a pressão sobre os salários não vinha da metade leste da Alemanha ou da
massa gigantesca de mão-de-obra que a emergência da China integrou no mer-
cado mundial.
A nova paisagem política 153
A paisagem pós-crise
Compatibilizar a justiça social com a globalização continua a ser o grande
desafio por resolver da esquerda europeia. O problema não é a relação entre
Estado e mercado que, à direita e à esquerda, já está a ser posta de outra ma-
neira. A questão, como a Economist resume, «é a globalização e como resistir
ou abraçar a concorrência entre diferentes países». O manifesto eleitoral do
PSE aprovado em Madrid «dança à volta do problema mas é incapaz de o en-
carar de frente». Fala de gerir a globalização em benefício de todos e de usar
a dimensão europeia para defender os padrões sociais elevados, mas não diz
como.
«O grande teste vai ser, para a Europa e para os EUA, a capacidade para
multilateralizar a resposta aos problemas que esta crise veio colocar de for-
ma brutal», diz António Vitorino. Não querendo ser catastrófico, «na pior das
hipóteses, o reajuste pode não ser à esquerda, pode até não ser um reajuste
democrático».
A esquerda europeia será, porventura, mais desafiada pela sua capacidade
de ser aberta e plural do que pela sua capacidade de ser intervencionista ou
igualitária.
154 Europa Trágica e Magnífica
O PS E A CRISE
NACIONAL
01-10-2011
escolha, a não ser fazer o que os nossos credores nos pedem e o que a Europa
hoje nos exige.
O governo tem um guião que é perceptível pela maioria das pessoas, por
mais doloroso ou até injusto que seja. Passos Coelho pode ter dito muitas coi-
sas que não devia durante a campanha eleitoral (já todos sabemos quais fo-
ram), mas tem o mérito agora de dizer a verdade e de não mudar de discurso.
Não há reformas de Estados falidos nem serviços públicos que não tenham de
levar em conta o que podem gastar. Tudo está em tentar equilibrar os sacrifí-
cios, em proteger os mais fracos e, sobretudo, em ter a coragem de enfrentar os
interesses instalados, sejam eles as pequenas e grandes benesses que usufrui
quem trabalha nas empresas públicas ou os poderosos lobbies que dominam
alguns sectores ou as rendas de que vivem algumas grandes empresas no mer-
cado interno. A intervenção externa a que estamos sujeitos tem pelo menos
essa grande vantagem. A Madeira é certamente o melhor exemplo.
O que nos acontecer dependerá da nossa capacidade de corrigir os enormes
desequilíbrios externos e internos e do que acontecer na Europa. Mas, tam-
bém aqui, o PS tem uma responsabilidade muito maior do que proclamar o
seu «federalismo» ou acusar o primeiro-ministro de subserviência em relação
a Merkel. Essa é a parte mais fácil mas também não tem qualquer consequên-
cia senão desviar o debate daquilo que interessa. Na frente europeia as coisas
também estão a mudar lentamente e é preciso sabermos acompanhar essa
mudança. Todo um programa, se o PS quisesse mesmo ter um.
A nova paisagem política 157
A SOCIAL-
-DEMOCRACIA
EM TEMPOS
DE MUDANÇA
25-05-2013
Essa foi a altura em que o centro-esquerda reinou pela última vez na União
Europeia, de Lisboa a Estocolmo. A ideia de que era possível compatibilizar a
justiça social com os mercados globalizados, centrando as políticas na «capa-
citação» das pessoas através da educação e da formação, parecia ainda uma
aposta com probabilidade de sucesso. Nessa altura, o objectivo europeu era,
como todos ainda nos lembramos graças à estratégia de Lisboa, emular a ca-
pacidade competitiva da economia americana por via das novas tecnologias,
da inovação e do conhecimento. Os novos caminhos que a globalização sofreu
e que o fim a Guerra Fria permitiu, mais uma tremenda crise financeira que
abalou os pilares das economias ocidentais, voltaram, de algum modo, a deixá-
-lo sem resposta.
É nessa fase que ainda estamos. O centro-esquerda europeu tem dificuldade
em elaborar uma doutrina que permita responder ao choque profundo
nas economias ocidentais que representa a entrada das potências emer-
gentes no mercado mundial. O centro-direita, que não aspira a mudar o
mundo, percebe, pelo menos, que mudaram radicalmente as condições da
competitividade das economias ricas e tenta pragmaticamente adaptar-se
a elas. Mesmo que custem alguma coisa (ou muita coisa) ao Estado de bem-
-estar que ainda faz a inveja do mundo e que prevaleceu na Europa depois da
Segunda Guerra Mundial, graças em boa medida à influência da social-demo-
cracia e à protecção americana. Esse tempo passou. Agarrar-se à mera defesa
do Estado social já não é possível. Hoje há uma nova realidade, com novos
problemas, muito complexos, que emergem nas democracias europeias: do
aumento das desigualdades ao envelhecimento das populações, da crescente
imigração e dos problemas de integração que ela coloca à sustentabilidade das
políticas sociais, ou à necessidade de reverter o caminho da desindustrializa-
ção. A crise exacerba todos estes problemas, tornando as respostas ainda mais
difíceis.
Vale a pena olhar para aquilo que se passou em Leipzig na semana passada.
Os sociais-democratas alemães decidiram, provavelmente bem, que a Interna-
cional Socialista estava velha e adulterada. Deixara de lado o seu ideário demo-
crático para abrir as portas a partidos de regimes corruptos e/ou ditatoriais,
conforme as «amizades» e os interesses de alguns países europeus (Portugal
incluído), para albergar os representantes das suas ex-colónias ou das suas ve-
lhas zonas de influência. De Eduardo dos Santos a Ben Ali, passou a caber lá
tudo, mesmo que com o estatuto de observador. Sem este passado «imperial»,
os alemães decidiram dizer basta. A sua ideia é agora criar uma Aliança Pro-
A nova paisagem política 159
gressista à escala mundial em que cada parte tem de fazer a sua confirmação
democrática. A ideia não é nova. A diferença está em quem a lidera.
No final dos anos 90 do século passado, Bill Clinton e Tony Blair lançaram a
primeira tentativa de uma «Progressive Alliance», mas isso era quando o mun-
do ainda parecia estar a chegar ao fim da História por via da integração dos
mercados e pela expansão da democracia. A saída de Clinton da Casa Branca,
o 11 de Setembro (e a reacção americana), a emergência das grandes potências
asiáticas, alteraram radicalmente o cenário, matando a iniciativa. Que agora
parece ser retomada pelo SPD alemão. Há aqui pelo menos um sinal de aber-
tura ao mundo que pode ser interessante e há também a confirmação de que
hoje a Alemanha e os seus principais partidos são, porventura, a fonte de ins-
piração que antes pertenceu a Londres.
Porque a social-democracia europeia tem um grave problema. Não é capaz
de se adaptar a um mundo onde se alteraram radicalmente os termos de troca
internacionais em desfavor dos países desenvolvidos, mas que também permi-
tiram tirar da pobreza milhões e milhões de pessoas, na China ou no Brasil, na
Índia, na Indonésia. Não há apenas a tragédia do Bangladesh, que corresponde
ainda ao velho padrão de domínio das grandes empresas ocidentais. Há a cada
vez maior capacidade das sociedades emergentes de subirem rapidamente na
cadeia de valor, desafiando directamente os países ricos. Há uma classe média
em ascensão à escala mundial, que constitui um novo mercado e pode reforçar
as aspirações à liberdade e à democracia. Há uma classe média cada vez mais
«espremida» nos países desenvolvidos, que precisa de uma resposta política.
A velha tentação do proteccionismo, que começa a contaminar alguns parti-
dos socialistas, sobretudo no Sul, não é certamente a receita, que tem de pas-
sar por regras claras verificadas e impostas por instituições multilaterais. É a
partir daqui que o centro-esquerda europeu tem de construir novas respostas
que sejam percebidas como credíveis. Caso contrário, só lhes resta ser a «so-
cial-democracia do medo», como escreveu Tony Judt, tentando convencer os
cidadãos de que é a única barreira que resta para defender o Estado social.
Esta estratégia meramente defensiva não é com certeza o caminho.
160 Europa Trágica e Magnífica
A SOCIAL-
-DEMOCRACIA
DO MEDO
30-11-2013
Quem, na década de 80, não andou com o livro de Pierre Rosanvallon sobre «a
crise do Estado-providência» (1981) debaixo do braço? Nessa altura, a questão
da reforma inevitável do Estado de bem-estar europeu não se colocava ainda
nos termos em que hoje a colocamos. A globalização ainda não tinha feito o
seu caminho, a Guerra Fria ainda não tinha acabado e a revolução das novas
tecnologias ainda não reduzia a distância ao tempo de um clique. Os «trinta
gloriosos» que se seguiram ao pós-guerra tinham chegado ao fim, na sequên-
cia dos dois choques petrolíferos do início e do fim da década de 70. O cresci-
mento desacelerava. As democracias europeias começavam a perceber que o
modelo social que criaram depois da guerra teria, mais tarde ou mais cedo, de
ser reformado. Nessa altura, não tanto por causa da sustentabilidade, mas pela
necessidade de rever alguns excessos que tinham levado as pessoas a uma ati-
tude passiva perante a responsabilidade sobre as suas próprias vidas. Foi Bill
Clinton quem deu o pontapé de saída para esta transformação com o progra-
ma dos «Novos Democratas», que tirava as conclusões certas da revolução libe-
ral de Reagan e de Thatcher. A ideia resumia-se numa frase: «From the welfare
to the workfare.» Era preciso «libertar» as pessoas da armadilha dos subsídios,
levando-as a assumirem mais responsabilidades e criando incentivos para que
entrassem no mercado de trabalho. A «terceira via» de Blair, hoje tão despre-
zada, foi a continuação deste movimento que depois se alargou ao continente
europeu, incluindo a Alemanha ou Portugal. A ideia era que os países euro-
peus se tinham de adaptar ao desafio da globalização económica, tornando
as suas economias mais amigas dos mercados e mais ágeis na adaptação às
novas circunstâncias da concorrência mundial. A questão central da igualdade
de oportunidades só podia ser resolvida, dizia-se então, através da qualificação
das pessoas, ou seja, da educação. O problema já era diferente: tratava-se de
garantir a sustentabilidade a prazo dos sistemas de segurança social europeus
por via da capacitação dos cidadãos e da aposta na inovação científica e tec-
nológica, capaz de sustentar uma «economia do conhecimento». Na década
de 90 e nos anos iniciais deste século, esta fórmula parecia possível. A Europa
passou a última década a tentar adaptar-se a esta nova realidade. Começou em
2000 com a «estratégia de Lisboa», uma iniciativa de Blair e de Guterres para
adaptar a economia europeia à era da Internet e da globalização dos merca-
A nova paisagem política 161
A crise financeira de 2008 acabou por expor em toda a sua extensão as debi-
lidades das economias europeias (e americana) para competirem nesse novo
mundo. Alguns países europeus (os nórdicos ou a Alemanha) foram mais rápi-
dos a adaptar-se às novas circunstâncias. A «terceira via» teve o seu papel, não
apenas no Reino Unido mas também na Alemanha, onde o chanceler Gerhard
Schröder levou a cabo um conjunto de reformas do mercado de trabalho e da
segurança social que lhe permitiram passar de «doente da Europa» a uma das
economias mais competitivas.
Sobrou um problema que a social-democracia ainda não conseguiu resol-
ver: como travar o aumento brutal das desigualdades sociais sem recorrer a
um aumento acentuado dos impostos? Esta desigualdade não ocorreu apenas
ou em maior grau nas democracias ricas, mas também nas economias «emer-
gentes». Podemos dizer que Portugal está hoje muito mais desigual do que
no início da crise. Nada se compara com a desigualdade em que vivem países
como a China ou o Brasil. Mas é este o maior problema que o centro-esquerda
europeu enfrenta, sem grande capacidade de conseguir uma resposta que não
seja a defesa crítica e impossível do Estado social tal como existiu nas últimas
décadas. Até à crise financeira, a estagnação dos rendimentos das classes mé-
dias foi politicamente sustentada pelo acesso ao crédito fácil. Hoje, o problema
ficou à vista desarmada. A questão central da esquerda é esta. Quando está na
oposição, grita pela defesa do Estado social. Quando está no governo, faz mais
ou menos o mesmo que o centro-direita. Acresce que a almofada que lhe res-
tava, o projecto de integração europeu, está em vias de mudar profundamente
a sua natureza.
vivência nem sequer está assegurada. Chamou a atenção para uma nova cliva-
gem, decorrente da globalização, entre as pessoas muito educadas e cosmopo-
litas (os «viajantes frequentes») e as que chamou de «comunitários nacionais»,
os perdedores da globalização, concluindo que sobrava pouca coisa para o
centro-esquerda, que estava a perder aceleradamente a sua base popular para
os partidos de extrema-direita. É o que vemos hoje, com um problema novo e
preocupante: o da «geração perdida». Merkel lembrava o último livro de Tony
Judt, no qual o grande historiador dizia que só restava a «social-democracia do
medo». Medo de perder tudo.
Hoje, a social-democracia europeia está mais preocupada com o passado do
que com o futuro. O SPD quer fazer «esquecer» Schröder. O Labour quer fazer
«esquecer» Blair. O PS quer fazer «esquecer» Sócrates. E, já agora, também Gu-
terres. Os Estados-Gerais que organizou em 1995 já iam muito mais longe na
necessidade de reformar o Estado social.
Muitas pessoas acreditaram que a chegada de François Hollande ao Eliseu
alteraria os desequilíbrios políticos na Europa, claramente a favor da Alema-
nha e da sua receita para a crise. Vemos como está hoje Hollande. Depois, acre-
ditou-se que a entrada dos sociais-democratas alemães no governo de Merkel
podia significar alguma coisa. Quem ouviu Peer Steinbrück apelar a um Plano
Marshall para os países do Sul, cujo sofrimento era inadmissível, não acredita
que o SPD tenha assinado de cruz a política europeia da chanceler. O chefe do
Eurogrupo é um trabalhista holandês que consegue ser mais radical do que
Berlim. A clivagem aqui não é ideológica, é geográfica e cultural — atravessa a
Europa a meio. É, portanto, bastante mais perigosa.
António Costa dizia na última «Quadratura do Círculo» que as coisas só mu-
dariam quando, em França, a Frente Nacional de Marine Le Pen ganhasse as
eleições europeias, no próximo mês de Maio. Toda a gente levaria um grande
susto. Levaria?
A nova paisagem política 163
A HORA
DOS EXTREMOS
AS «AULAS
PRÁTICAS»
QUE NOS VÊM
DA SUÉCIA
21-09-2010
Primeiro foi a tempestade provocada pela forma como Nicolas Sarkozy deci-
diu fazer dos ciganos um expediente para recuperar a sua popularidade per-
dida. Depois, a súbita entrada no Parlamento de Estocolmo de um partido de
direita populista que baralhou as contas da paisagem política sueca. E isto foi
apenas na última semana. Antes, já sabíamos que a Holanda continua sem go-
verno desde as eleições legislativas de Junho porque o partido populista de
Geert Wilders teve um resultado eleitoral suficientemente alto para se tornar
indispensável a uma coligação de centro-direita que, mesmo assim, hesita em
aceitá-lo. Como assistíamos incrédulos à impossibilidade belga de constituir
um governo, graças a outra forma de nacionalismo — o separatismo flamengo.
Já quase nos habituámos aos métodos com que Silvio Berlusconi governa a Itá-
lia, apoiado na Liga Norte, que não gosta de imigrantes nem gosta dos italianos
que vivem abaixo de Roma. Quase não prestámos atenção ao regresso da direi-
ta nacionalista em Budapeste. Nem ligámos ao facto de o governo de Copenha-
ga se manter no poder há anos graças ao apoio de um partido de direita popu-
lista anti-imigrante, cuja líder reivindica a Dinamarca para os dinamarqueses.
Nas últimas eleições para o Parlamento Europeu, em 2009, vimos emergir
em países tão improváveis como o Reino Unido partidos nacionalistas e xe-
nófobos sem expressão parlamentar que, no entanto, mereceram um apoio
popular significativo e estão hoje em Estrasburgo. O fenómeno Haider na Áus-
164 Europa Trágica e Magnífica
tria, que provocou em 2000 uma tremenda crise na União Europeia (por sinal
sob presidência portuguesa), parece-nos hoje uma história banal. É impossível
não ver que a Europa atravessa uma profunda crise existencial, porventura
acelerada pela crise económica mas prévia aos seus efeitos, que nos força a
uma profunda reflexão.
Há dois problemas (há certamente muitos mais) que contribuem para ali-
mentar esta tendência para o fechamento e a xenofobia na Europa. O primeiro
é demográfico. As sociedades europeias estão envelhecidas e cada vez mais
o voto conservador (em todos os sentidos da palavra) pesará mais nas esco-
lhas políticas. Há aqui um círculo vicioso difícil de romper. Mas há também
uma responsabilidade política. Enquanto Sarkozy utiliza sem o menor pudor
os ciganos para inverter a sua sorte eleitoral, do outro lado do Atlântico o seu
homólogo americano não teme envolver-se na polémica (politicamente arris-
cada) da construção de uma mesquita junto do «ground zero» e combate com
todas as armas legais de que dispõe as leis abusivas do Arizona contra os imi-
grantes. E fá-lo dizendo simplesmente que o faz em nome da América.
166 Europa Trágica e Magnífica
O MUNDO
DE ONTEM
26-04-2011
Os polacos não são tunisinos mas os holandeses também não gostam deles.
Os Verdadeiros Finlandeses, agora também a terceira força na Finlândia, não
gostam de portugueses (e imagina-se que também não gostem de gregos). Qua-
druplicaram o número de votos nas eleições da semana passada elegendo a
oposição à ajuda financeira a Portugal como tema central da campanha. Tam-
bém não gostam de imigrantes.
Já não é a primeira vez que Nicolas Sarkozy elege a carta dos imigrantes
como a melhor forma de recuperar apoio eleitoral. Desta vez, a tarefa está a
revelar-se muito mais difícil. A versão modernizada e rejuvenescida da Frente
Nacional, corporizada por Marine Le Pen (a filha), continua a somar apoios.
A França para os franceses, fora do euro e pronta a renegociar os termos da
integração europeia. Em Itália, o discurso xenófobo já faz parte do quotidia-
no do governo, também em queda livre, de Silvio Berlusconi. Já sabemos que
uma vaga de populismo antieuropeu e anti-imigrantes varre hoje a maioria
dos países ricos da Europa do Norte. Em quase todos eles, os partidos que a
representam tornaram-se incontornáveis para a governação.
Estamos perante um fenómeno novo. Já não se trata, como há dez anos, de
olhar de forma mais realista para as cada vez maiores comunidades de imi-
grantes vindos de fora da Europa, tentando compreender o sentimento de re-
jeição de sectores normalmente menos ricos e menos educados da população
de origem europeia e procurando novas formas, mais efectivas, de integração.
Agora, é uma doença que se alimenta da rejeição do outro, do fechamento em
relação ao mundo exterior, que vai muito além das comunidades islâmicas e é
reveladora de uma mudança política muito mais funda.
Não é por acaso que os partidos populistas ganham terreno nos países mais
ricos, com a economia a crescer mais e o desemprego abaixo da média euro-
peia (na Holanda ronda os 4 por cento). E também não é por acaso que esse
sentimento contra os outros, que podem ser tunisinos, portugueses ou polacos,
se mistura com um crescente sentimento antieuropeu. Ser «PIG» (Portugal, Ir-
landa e Grécia) ou ser tunisino começa a não fazer muita diferença aos olhos
de um finlandês, de um alemão, de um sueco ou de um holandês. Da mesma
maneira que o euro deve ser «purificado» dos irresponsáveis do Sul, também as
fronteiras devem ser de novo erigidas, quando se trata de impedir os polacos
de trabalharem na Holanda ou os tunisinos de passarem de Itália para França.
O euro e Schengen foram os dois mais fortes símbolos da União Europeia.
Sobre a moeda única, ninguém está ainda em condições de garantir com segu-
rança qual será o seu futuro. Sarkozy transforma-se no paladino do regresso
a fronteiras. Em Bruxelas, saúdam-se com palavras grandiosas as revoluções
árabes, desde que fiquem à porta e não incomodem. Prometem-se milhões à
Tunísia, que nunca chegam, mas arranjam-se biliões para ajudar países «po-
bres» como a Itália a lidar com a «vaga» de imigrantes tunisinos.
O problema desta vaga populista e xenófoba não é apenas o seu peso eleito-
ral. O problema é que a sua ideologia se está a transformar numa forte condi-
168 Europa Trágica e Magnífica
cionante da política dos governos europeus e, por via deles, da própria União
Europeia. Era preciso combatê-los politicamente em vez de se deixar contami-
nar por eles. Não é isso que acontece.
A EUROPA TEM
FINALMENTE
DIREITO AO SEU
PRÓPRIO TEA PARTY
14-04-2011
AS NOVAS
E AS VELHAS
CLASSES MÉDIAS
20-08-2011
A chuva é apenas o menor dos males deste estranho mês de Agosto. Passam
vinte anos sobre o último estertor do comunismo (Agosto de 1991) que ia dei-
tando tudo a perder na Perestroika. Comemoram-se os cinquenta anos da
tentativa historicamente falhada de erguer um muro a separar Berlim. Gor-
batchov é, de novo, o homem do momento. Berlim volta a estar no centro da
Europa. Mas tudo isto nos parece longínquo, parte de um outro mundo que
não é já o nosso, quando a vitória do Ocidente e da liberdade fazia despertar
todas as esperanças. O mais próximo deste Verão tempestuoso é, infelizmente,
o fatídico mês de Setembro de 2008 que assistiu à queda do Lehman Brothers,
desencadeando a maior recessão mundial desde a crise de 1929. Da queda do
Muro à queda das Torres Gémeas e, depois, à queda do velho banco de inves-
timento americano que deitou abaixo Wall Street, o mundo virou-se de pernas
para o ar. De novo «esta foi a semana em que os investidores abandonaram
qualquer esperança», escreve o Financial Times. Já ninguém acredita na reto-
ma nos países ricos. Ainda estamos a tentar perceber o que nos aconteceu.
A nós, ocidentais, vencedores da Guerra Fria e modelo de desenvolvimento
para o mundo. Talvez seja esse o nosso maior problema: recusarmo-nos a en-
tender até que ponto o mundo está a mudar. Isso implicaria extrair da crise
— desta crise da dívida, dos bancos, do modelo de crescimento e da sociedade
— novas ideias, novas políticas, novas propostas, não necessariamente destina-
das a operar revoluções mas a encontrar formas de impedir que a «ascensão
do resto» seja necessariamente a nossa «queda». Não do Ocidente hegemónico,
mas do Ocidente enquanto modelo de sociedade — nacional e internacional.
Há tanta coisa para reflectir que construir um puzzle que faça sentido torna-
-se uma tarefa impossível. Juntemos, no entanto, algumas peças.
O risco maior que corremos não são, provavelmente, os tumultos dos jo-
vens marginais de Londres ou de Paris. O risco que corremos tem a ver com as
classes médias e com os seus valores. Num artigo publicado recentemente no
El País, Moisés Naím chamava a atenção para um fenómeno que temos debai-
xo dos olhos mas que muitas vezes não avaliamos no seu conjunto. Por toda
a parte nos países emergentes, da China ao Chile, passando pela Índia, Brasil
ou Tunísia, as novas classes médias que começam a surgir não hesitam em to-
mar para si os velhos valores democráticos ocidentais para reivindicarem mais
justiça, mais liberdade, menos corrupção, mais igualdade de oportunidades.
Oprimidas pela estagnação dos seus rendimentos, ameaçadas pelas incertezas
económicas, envelhecidas, cheias de medo do mundo lá fora, as classes mé-
dias dos países ricos parecem mover-se em sentido contrário. Fecham-se sobre
si próprias, respondem aos cantos de sereia do nacionalismo e da xenofobia,
aspiram a um beck to basics que se afigura demasiado assustador. A dureza do
discurso de Cameron alimenta esses sentimentos. Mas também sabemos — e
174 Europa Trágica e Magnífica
CAPÍTULO VIII
PORTUGAL
RESISTE AO
VENDAVAL?
NÃO TEM
OUTRO
REMÉDIO
REUTERS/Rafael Marchante
Portugal resiste ao vendaval? Não tem outro remédio 177
A VIA EUROPEIA
PARA A NOVA
ECONOMIA
Março de 2000
E A ESPANHA
AQUI TÃO PERTO
30-10-2006
A BANDEIRA
DA EUROPA PERDEU
O SEU BRILHO
04-06-2009
«Programa comum»
A Europa já foi bandeira eleitoral e «programa comum». Serviu, desde 1974,
para definir o perfil ideológico e político dos partidos que entraram em cena
com a democracia. O PS de Mário Soares fez da «Europa connosco» a sua prin-
cipal definição ideológica e programática. Nessa altura, Europa queria dizer
democracia parlamentar e inclusão no Ocidente. A Europa foi também uma
espécie de «programa comum da democracia» para o leque de forças políti-
cas portuguesas que, nos anos em que se discutiu o destino da revolução, se
opunham à deriva comunista ou à tentação terceiro-mundista. Do PS ao CDS.
«Foi o símbolo a que as elites democráticas recorreram para legitimar a nova
ordem interna depois da batalha da transição», escreve António Costa Pinto.
184 Europa Trágica e Magnífica
De Thatcher a Kohl
Cavaco Silva, que geriu os primeiros dez anos da integração europeia, perce-
beu imediatamente a integração europeia como a alavanca da modernização
do país. Levou mais tempo a perceber a importância da integração política.
Começou por alinhar com a Inglaterra de Margaret Thatcher, cuja concepção
da Europa se limitava a um grande mercado gerido por uma associação de
Estados soberanos. Percebeu mais depressa do que a líder britânica que uma
moeda única era o corolário do mercado único. A «súbita aceleração da his-
tória» desencadeada pela queda do Muro de Berlim, a difícil negociação do
Tratado de Maastricht, concluída em Dezembro de 1991, e finalmente o pri-
meiro exercício da presidência portuguesa da UE em 1992, levaram à rápida
deslocação do alinhamento português para o eixo Paris-Bona.
A Europa política que se desenhava em Maastricht era a outra face da moe-
da da união económica e monetária. Contrariando a cultura do establishment
diplomático e militar, educado a «votar com a Inglaterra em caso de dúvida»
Portugal resiste ao vendaval? Não tem outro remédio 185
Do federalismo ao pragmatismo
O federalismo inicial dos pais fundadores da democracia, cuja raiz ideológica
estava nas duas grandes famílias europeias que fundaram a Europa — a social-
-democracia e a democracia-cristã —, foi dando lugar a uma atitude muito mais
pragmática que acabará por desenhar o perfil europeu do país. «No processo
de aprendizagem política das elites na negociação e nas reformas europeias,
a questão do tamanho vai assumir cada vez maior relevância, afastando o dis-
curso federalista», resume António Costa Pinto. «O receio da satelização e o
complexo do directório» transforma-se num dos eixos fundamentais do de-
bate europeu e uma condicionante de todas as negociações em Bruxelas, diz
António Vitorino.
Durante as negociações do Tratado de Nice (2000) o governo português
lidera a frente dos «pequenos países» contra a tentativa dos «grandes» de au-
mentarem o seu peso relativo no processo de decisão da União Europeia. Em
Lisboa, é o fantasma do «directório» que polariza o debate. Na Convenção que
preparou a já defunta Constituição europeia, os representantes portugueses
vão ainda agarrar-se ao status quo institucional. A reivindicação de um comis-
sário por país, a relutância perante a figura do novo presidente do Conselho
Europeu, a desconfiança das «cooperações reforçadas», são as manifestações
mais visíveis desta preocupação fundamental. O consenso entre os dois gran-
des partidos mantém-se, mas torna-se defensivo.
186 Europa Trágica e Magnífica
Do euro-entusiasmo à apatia
Mas há uma mudança sensível na forma como hoje a Europa é sentida pela
opinião pública. Os analistas atribuem-na ao período de estagnação económi-
ca que o país tem vivido praticamente desde a passagem do século. O facto de,
pela primeira vez desde a adesão, Portugal estar a divergir da média de riqueza
europeia depois de mais de quinze anos de convergência acelerada, começa a
minar as bases do euro-entusiasmo português. Nas eleições europeias de 2004
a taxa de abstenção registada em Portugal é muito elevada (61 por cento), so-
bretudo se comparada com a que se verifica nos países da «velha» Europa.
O fraco crescimento económico somado ao medo de perda de influência numa
Europa alargada à dimensão do continente traduzem-se num decréscimo de
confiança europeia. «Uma conjuntura de estagnação económica aumenta o
eurocepticismo», diz Costa Pinto. «Que está adormecido politicamente mas
que existe.»
A bandeira europeia perde o brilho. «Os europeístas arriscam-se a pagar o
preço da sua preguiça europeia», diz António Vitorino. «Se há dinheiro, para
quê fazer a pedagogia da Europa?» O consenso entre PS e PSD, muitas vezes
assente num silêncio tácito, alimentou esta preguiça. «Os partidos só têm in-
teresse em produzir ideias se tirarem vantagem disso», acrescenta Poiares Ma-
duro. «O facto de não haver correntes antieuropeias a sério não os levou a esse
esforço.»
Regressamos à casa de partida. Como interpretar os sinais desta estranha
campanha europeia sem Europa? Paulo Rangel declara-se federalista, o que
não o impede de investir contra a sugestão de um imposto europeu. A recandi-
datura de Barroso é usada intermitentemente pelos socialistas numa tentativa,
que não passa disso, de antecipar uma Europa que será mais «ideológica» e
mais política no futuro.
O que significa isto? Está o consenso europeu prestes a chegar ao seu fim,
antecipando novas clivagens europeias e nacionais?
António Vitorino confessa não ter ainda resposta para essa questão. «A tra-
dicional cultura europeia dos dois partidos mantém-se sólida.» Admite que,
Portugal resiste ao vendaval? Não tem outro remédio 187
Consenso estratégico
A Europa funcionou como uma espécie de «programa comum» entre o PS e
o PSD que permitiu tirar partido da nossa integração, colocar o país no seu
núcleo duro e fazer valer os seus interesses. Poderá continuar a ser assim?
Álvaro Vasconcelos lembra que esse «consenso estratégico» só foi possível
porque assentava num enorme consenso da sociedade portuguesa em relação
à Europa que hoje está enfraquecido. «Temo que possam aparecer forças polí-
ticas tentadas a explorar essa fragilidade.»
António Vitorino chama a atenção para as franjas nacionalistas que existem
nos dois partidos. «Elas são já visíveis há vários anos e admito que aproveitem
a crise para alimentar essa pulsão.»
Braga de Macedo considera que o «chamado consenso PS/PSD sobre a Euro-
pa sempre foi mais defensivo do que cooperativo». Conseguiu assegurar «ob-
jectivos muito gerais, que devem passar a ser agora mais específicos».
O ponto fraco do consenso europeu continua a ser, como sublinha Vitorino,
a forma como as elites portuguesas olham para a opção europeia como um
dado adquirido. O novo ciclo será, porventura, muito mais exigente.
Portugal resiste ao vendaval? Não tem outro remédio 191
A ÚLTIMA
OPORTUNIDADE
E O RISCO
DE A PERDERMOS
03-05-2011
A situação em que estamos hoje também não se deve apenas à incúria dos
nossos governantes, que teriam escolhido sempre as políticas erradas. Seria
demasiado fácil se tudo se resumisse a isso.
Antes da crise internacional e dos seus efeitos sobre a União Europeia, o
contexto em que definíamos as nossas políticas era outro. Tínhamos um défice
externo elevado (10 por cento, praticamente desde que aderíramos ao euro),
mas sustentávamo-lo através de um endividamento externo que nos custava
quase o mesmo que aos alemães. A ideologia dominante no mundo desenvol-
vido não era a da poupança mas a do endividamento. A globalização, alterando
os termos de troca mundiais, comprimia os salários da classe média europeia
e americana (aumentando acentuadamente as desigualdades de rendimento)
e esse efeito era compensado graças ao crédito fácil e barato, que permitia
manter quase todas as pessoas felizes. A moeda única era a última rede de
segurança que nos permitia singrar tranquilamente no clube dos países de-
senvolvidos sem termos de fazer demasiados sacrifícios. Era esta a verdade de
então que poucos contestavam, mesmo que hoje toda a gente diga que já sabia
que era uma verdade insustentável. A mesma verdade que nos aconselhava a
emular o «milagre» irlandês, a invejar o crescimento espanhol ou a aproximar-
mo-nos do «modelo anglo-saxónico» e a afastarmo-nos do modelo continental
(leia-se, Alemanha).
A crise financeira desfez num sopro as montanhas de dinheiro acumulado
em operações de alto risco sustentadas pelo credo absoluto na sabedoria dos
mercados, gerando um clima de desconfiança generalizado. Na Europa, uns
salvaram-se. Outros não. Cabe integralmente ao governo português a respon-
sabilidade de não ter visto a tempestade chegar ou ter acreditado que podia
enfrentá-la de outra forma e sem custos políticos. Cabe à Europa a responsa-
bilidade de não ter conseguido enfrentar a crise com uma visão política con-
sistente e global.
Foi também tudo isto que nos trouxe até aqui. É daqui que temos de partir.
Gastámos como um país rico, mesmo que ainda fôssemos (relativamente) po-
bres. Acumulámos maus hábitos. Teremos agora de mudar de vida. O que não
seria impossível, não fora o facto de termos chegado ao grau zero da política
exactamente no momento em que mais precisávamos dela.
Temos um primeiro-ministro que elegeu a defesa do Estado social com
bandeira eleitoral, o que até seria aceitável se se desse ao trabalho de dizer
onde estamos e como saímos daqui. O que sabemos é que o Estado social não
é compatível com um Estado que é um «albergue espanhol» de interesses e de
clientelas, que gasta o dinheiro onde deve mas sobretudo onde não deve, que
tem de ser reformado de alto a baixo para poder ter o papel que lhe cabe nas
sociedades desenvolvidas e civilizadas. Também sabemos que não foi apenas o
PS que alimentou este monstro e é preciso um poder político forte para poder
reformá-lo. Do outro lado, temos um PSD que nos diz todos os dias que Portu-
Portugal resiste ao vendaval? Não tem outro remédio 193
PORTUGAL
E A NOVA
«POTÊNCIA
EMERGENTE»
11-11-2012
A EUROPA VISTA
DE LISBOA
E DE BERLIM
26-01-2013
ses do Sul — austeridade e reformas. António Vitorino lembrou que não se trata
apenas das medidas que os alemães decidiram tomar para resolver a crise e
consolidar o euro, que podem ser discutíveis mas que, em boa parte, foram
adequadas. Trata-se também da narrativa com que as apresentaram. Só por
isso, este Fórum valeu a pena.
Foi, de resto, um académico alemão, Werner Weidenfeld, quem colocou a
questão essencial da natureza da integração europeia de uma forma simples
e profundamente verdadeira. A diversidade europeia, que é também a sua
maior riqueza, cria uma tensão permanente entre diferentes culturas, diferen-
tes olhares e diferentes interesses. O segredo tem sido a transformação dessas
tensões num resultado que foi, e espera-se que continue a ser, vantajoso para
o conjunto. Dois dias antes do Fórum, os embaixadores da França e da Ale-
manha em Lisboa tinham organizado um debate para assinalar os 50 anos do
Tratado do Eliseu, assinado por De Gaulle e Adenauer, que criou as bases da
aliança franco-alemã. Uma revisão da história da integração europeia, desde
essa altura até hoje, mostra até que ponto foram sempre divergentes as pers-
pectivas de Berlim (e, antes, de Bona) e de Paris sobre quase tudo e como a Eu-
ropa se construiu a partir da capacidade dos dois países de encontrarem um
compromisso europeu. É essa capacidade que está hoje de novo posta à prova.
O FMI E OS
CABELEIREIROS
02-11-2013
Numa semana cheia de más notícias, podemos começar cá por casa. O relató-
rio do FMI sobre a oitava e a nona avaliação do programa de ajustamento veio
relançar o debate sobre os (baixos) salários em Portugal, que a instituição de
Washington quer ver ainda mais baixos. Um amigo que acompanha de mui-
to perto as negociações com a troika dizia-me há dias, meio a brincar, meio a
sério, que «eles ainda acham que as portuguesas continuam a ir demasiadas
vezes ao cabeleireiro e os restaurantes e pastelarias continuam demasiado
cheios à hora do almoço». Apesar da caricatura, há muito de verdade nisto.
Não por causa dos cabeleireiros, mas por causa da incompreensão da reali-
dade que partilham entre si os tecnocratas da troika. Deixem-me, então, ten-
tar explicar o fenómeno dos cabeleireiros, que é exactamente ao contrário.
A razão pela qual ainda é possível frequentar os cabeleireiros (apesar da que-
da acentuada de clientes) está nos baixos salários dos seus trabalhadores e é
ainda um reflexo do relativo atraso económico do país. Em Portugal é possível
lavar e secar, com direito a escolher o champô e a usar um spray para levantar
as raízes, e pagar por isso 14 euros. Porquê? Não é porque o serviço é mau, mas
porque o salário mínimo é tão baixo. Quando, por razões profissionais, tenho
de ir ao cabeleireiro em Paris ou Berlim, só o sorriso da menina que me atende
e me pendura o casaco já vale mais do que 14 euros. A partir daqui é sempre a
contar. Quando chegarmos aí, iremos menos ao cabeleireiro e podemos con-
siderar-nos um país rico. A lógica dos restaurantes é mais ou menos a mesma
e a conclusão também: quando todos levarmos marmitas para o trabalho, aí
sim, seremos ricos.
Mas esta realidade não encaixa nos modelos do FMI ou na cabeça dos ale-
mães e, portanto, lá vamos nós na onda dos salários baixos, agora para o sector
privado. Puro engano se tivermos em consideração que as empresas privadas
ajustaram pelo desemprego, a coisa mais trágica que uma família pode enfren-
tar, e também pela flexibilização dos salários. Dizia recentemente João César
das Neves que, mais uma vez, a economia portuguesa revelava uma grande
capacidade de ajustamento e de flexibilidade. É verdade. Mas não sairemos da
crise se as instituições que nos aplicam a austeridade continuarem a insistir
que ganhamos competitividade e disciplina por via dos cortes de rendimentos
que já são muito baixos. Esse não é o modelo que nos serve (nunca consegui-
remos competir com os salários da China ou de Marrocos) e não foi para isso
que passámos os últimos anos a qualificar os jovens para podermos dar o sal-
200 Europa Trágica e Magnífica
TODAS AS CRIANÇAS
VÃO À ESCOLA COM
SAPATOS
08-02-2014
Esta história leva-me a outra, que também tem a ver com a imagem que da-
mos de nós próprios. Veio a Lisboa na semana passada uma equipa da France
Culture para fazer uma série de programas sobre os 40 anos do 25 de Abril.
A jornalista era jovem, competente, procurou informar-se antes de fazer as
perguntas. Creio que fui a última entrevista que fez antes de regressar a Paris.
204 Europa Trágica e Magnífica
Sabemos que a esquerda francesa sempre teve uma visão «romântica» da revo-
lução portuguesa. Mas foi de uma extrema dificuldade explicar-lhe duas ideias
feitas que trazia provavelmente de Paris e que viu confortadas pela maioria
das entrevistas que fez. A primeira era que estávamos hoje pior do que no 25
de Abril por causa da crise. Para ela, e para muita gente por cá, o país anterior
à queda da ditadura é uma projecção que nunca foi vivida e que, portanto, só
pode ser feita com os olhos de hoje. Quem tem menos de 50 anos não tem a
memória viva das coisas. Não era apenas a falta de liberdade. Portugal era um
país muito, muito pobre, pouco escolarizado, sem saneamento básico, onde
numa qualquer aldeia do interior as crianças iam para a escola descalças, in-
dependente do frio ou do calor, e as suas barrigas eram anormalmente gran-
des. Os liceus eram um privilégio para as classes médias mais privilegiadas das
cidades. A saúde estava acessível a poucos. E lá tive eu de explicar que o nosso
Serviço Nacional de Saúde, com crise ou sem crise, estava ao nível dos me-
lhores europeus. Os números não deixam mentir. Que a taxa de mortalidade
infantil, que era uma das piores da Europa, estava hoje abaixo da média euro-
peia. Que, apesar de todas as dificuldades, a esperança de vida das mulheres
aproximava-se a passos largos da recordista França. E que isto não se devia
a um milagre de Nossa Senhora de Fátima. Quarenta anos depois, este país
está irreconhecível. A crise está a empobrecer-nos de uma maneira que nunca
pensaríamos possível. O governo não respeita nada nem ninguém quando se
trata de arrecadar. A classe média está a pagar a crise praticamente sozinha e
a «compressão» dos seus rendimentos é brutal. Tudo isto é verdade, mas todas
as crianças vão para a escola com sapatos. A segunda ideia feita: 2014 seria um
ano marcado pela violência nas ruas. Tentei convencê-la de que isso era muito
pouco provável, mas acabámos por fazer uma aposta: daqui a um ano venha
cá e vamos ver. Entretanto, seria útil que começássemos rapidamente a acredi-
tar que pode haver — que tem de haver — um futuro para além da troika. Será
austero, disso ninguém duvida. Mas dependerá sobretudo das escolhas que
fizermos para nós próprios. Discutimos furiosamente os Mirós, como se deles
dependesse o futuro da pátria. Era bom que discutíssemos com o mesmo vigor
o que queremos que a pátria seja.
Portugal resiste ao vendaval? Não tem outro remédio 205
206 Europa Trágica e Magnífica
ANEXOS
A Comissão Europeia apoia diversas redes de informação que vão desde a informação
sobre questões relacionadas com a UE até questões mais específicas como o apoio às
empresas, aos consumidores ou aos jovens.
Team Europe
Conferencistas independentes disponíveis para fazer apresentações sobre os domínios
de actividade da UE: ec.europa.eu/portugal/redes/teameuropa/index_pt.htm
Espaço Europa
Local de informação e debate sobre a Europa, aberto a visitas escolares e a qualquer ci-
dadão que procure informação sobre a UE, no Largo Jean Monnet, em Lisboa: ec.europa.
eu/portugal/espacoeuropa/index_pt.htm
Parlamento Europeu
a voz do Cidadão na UE
2014 é ano de eleições para o Parlamento Europeu (PE), a única instituição europeia
eleita directamente desde 1979.
Nos próximos cinco anos, serão estes 751 eurodeputados, organizados em grupos
políticos transnacionais com base em afinidades políticas, que vão representar 500
milhões de cidadãos europeus. Actualmente, o PE é constituído por sete grupos po-
líticos, que representam mais de 160 partidos políticos nacionais, e por deputados
«não-inscritos».
Num momento crucial para a Europa a 28, as eleições de 25 de Maio têm um cunho
especial; pela primeira vez, o PE terá um papel decisivo na eleição do presidente da
Comissão Europeia.