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Ficha Técnica
Europa Trágica e Magnífica

Edição
Público – Comunicação Social, S.A.
www.publico.pt

Textos
Teresa de Sousa

Design e Paginação
Teresa Cadoso Bastos – Design
Tel.: 218 400 858

Revisão
Laurinda Brandão

Impressão
Printer Portuguesa, S.A.

Fotografias
REUTERS
Representação da Comissão Europeia e do Gabinete
de Informação do Parlamento Europeu em Portugal
Imagem de capa: Vincent Kessler / Reuters

Com o apoio de
Representação da Comissão Europeia e do Gabinete
de Informação do Parlamento Europeu em Portugal

ISBN
978-989-619-233-4

Depósito Legal
374668/14

É expressamente proibido reproduzir esta obra, no seu todo ou em parte,


sob qualquer forma ou meio, nomeadamente fotocópia. As transgressões serão
passíveis das penalizações previstas na legislação em vigor.
4 INTRODUÇÃO 6 PREFÁCIO (AN-
TÓNIO VITORINO) 14 CAPÍTULO I
DA EUROPA MAGNÍFICA À NOVA
(DES)ORDEM MUNDIAL 26 CAPÍTU-
LO II HISTÓRIAS DA HISTÓRIA RE-
CENTE: PEQUENOS RETRATOS AVUL-
SO 36 CAPÍTULO III A POTÊNCIA
RELUTANTE 37 AS INTERPRETAÇÕES
DE MERKEL 55 AS VICISSITUDES DE
FRANÇA 66 A ESCOLHA DOS OUTROS
82 CAPÍTULO IV A EUROPA E O MUN-
DO: ACTOR PRINCIPAL OU SECUN-
DÁRIO? 98 CAPÍTULO V A RÚSSIA,
A UCRÂNIA, A TURQUIA E O PREÇO
DA AUSENTE POLÍTICA EXTERNA
EUROPEIA 116 CAPÍTULO VI BUSH
E OBAMA: A RELAÇÃO INDISPEN-
SÁVEL 142 CAPÍTULO VII A NOVA
PAISAGEM POLÍTICA 143 A SOCIAL-
-DEMOCRACIA E… 161 A HORA DOS
EXTREMOS 174 CAPÍTULO VIII POR-
TUGAL RESISTE AO VENDAVAL? NÃO
TEM OUTRO REMÉDIO
6 Europa Trágica e Magnífica

TERESA DE SOUSA

INTRODUÇÃO

Há uma velha máxima segundo a qual «o jornalismo é, simplesmente, o pri-


meiro esboço da História», a que podemos sempre recorrer para justificar os
muitos erros que cometemos, quando descrevemos e comentamos os acon-
tecimentos. Tudo o que podemos fazer é seguir o nosso instinto e utilizar da
melhor maneira os nossos conhecimentos. Escrevi milhares de textos sobre
a Europa, sobre o seu lugar no mundo e sobre Portugal europeu. Pude agora
verificar, quando tive de seleccionar aqueles que fazem parte deste livro, as
muitas vezes que me enganei. Não lhes alterei uma vírgula. Procurei apenas
que projectassem um retrato, mesmo que muito parcelar, da grande aventura
europeia e da forma como nós, portugueses, a vivemos.
Os amigos que sempre me acompanharam neste debate constante e apai-
xonado sobre a Europa perguntam-me insistentemente se virei eurocéptica.
Respondo-lhes que mantenho intacta a minha profunda convicção de que a
Europa é a mais extraordinária demonstração de que é possível alterar o curso
dos acontecimentos e transformar um continente de guerras num continente
de paz. Se, por vezes, desespero da Europa é apenas porque não posso igno-
rar as profundas mudanças políticas que a abalaram até aos alicerces, quando
uma «súbita aceleração da História» alterou radicalmente as condições geopo-
líticas da sua integração. Nada poderia ser igual, depois da unificação alemã e
depois da implosão do império soviético, mesmo que quiséssemos acreditar
que sim. Ainda hoje, os europeus andam às voltas com o seu lugar neste novo
mundo que emergiu com o fim da Guerra Fria, a globalização dos mercados e
a entrada em cena – numa cena que o Ocidente dominou nos últimos quinhen-
tos anos – de novas potências, nem todas democráticas, que reclamam o seu
quinhão de poder. O mundo que via a integração europeia como o exemplo a
seguir já deixou de existir. A Europa, envolvida nos seus próprios problemas,
lenta e hesitante nas suas decisões, incapaz de se entender sobre uma visão
estratégica comum, não conseguiu acompanhar essa mudança. As suas ins-
tituições continuam a falar numa linguagem que não tem nada a ver com a
realidade. Nas suas capitais, os interesses imediatos parecem esmagar qual-
quer sentido europeu. O regresso de uma Alemanha unificada e poderosa ao
Da Europa magnífica à nova (des)ordem mundial 7

23-O4-2014

centro do continente é o principal factor de perturbação. Renascem os velhos


nacionalismos e os novos. É difícil ser optimista nestas circunstâncias.
De resto, há uma frase de Jean Monnet que me recuso a abandonar: por que
razão alguém que está do lado de lá de uma linha imaginária a que chamamos
fronteira há-de ser diferente de mim? E há, também, a profunda convicção de
que, neste mundo que emerge em relativa desordem, a Europa só pode evi-
tar a irrelevância se se mantiver unida e perceber que a relação transatlântica
pode voltar a fazer tanto sentido como durante os anos ameaçadores da Guer-
ra Fria. Quanto a nós, portugueses, por mais voltas que dermos à vida, o nosso
melhor destino é ainda o destino europeu.
Apenas três agradecimentos. Ao jornal onde trabalho, que me oferece condi-
ções que, creio, não teria em mais nenhum sítio. Ao António Vitorino, a quem
pude sempre recorrer para me ajudar a compreender a Europa. Aos meus co-
legas do PÚBLICO que aturam as minhas discussões e as minhas paixões com
uma bonomia admirável.
8 Europa Trágica e Magnífica

ANTÓNIO VITORINO

PREFÁCIO

Diz-me quem citas, dir-te-ei quem és! Este aforismo popular (adaptado) bem
se poderia aplicar ao presente volume de escritos de Teresa de Sousa. A esco-
lha como título de uma frase emblemática de Jacques Delors define, por si só,
um posicionamento e encerra toda uma orientação. Escolha feliz, portanto,
na medida em que o jornalismo de opinião não tem que ser aparentemente
neutral ou asséptico para ser credível. Pelo contrário, Teresa de Sousa, pela
escolha que fez quanto ao título da obra, diz logo ao leitor ao que vem… Num
resumo muito sintético da escolha de um tal título podemos dizer que vamos
penetrar num conjunto de escritos (publicados entre 2006 e 2014) que têm
como eixo fundamental agregador «a Europa», numa relação de tensão per-
manente entre a tragédia e a magnificência.
Publicar em livro escritos jornalísticos, forçosamente datados e centrados
em acontecimentos circunstanciais, constitui, sem dúvida, um risco para o au-
tor. Desde logo porque o leitor percorrerá os textos com a valia acrescida de
os poder pôr em perspectiva em função dos acontecimentos subsequentes,
do que hoje sabemos e conhecemos e que, no momento da escrita, era apenas
mera hipótese ou simples conjectura. Mas também porque, em bom rigor, a
análise (forçosamente pontual) dos acontecimentos sobre que versam os es-
critos ora publicados exprime uma leitura e um entendimento do processo
de construção europeia que foi sofrendo, ao longo deste período de oito anos,
inúmeras vicissitudes, evoluções e involuções, que nos permitem reconstruir
os passos de uma fase de profunda mutação das condições, se não mesmo da
própria natureza, da União Europeia.
E embora o volume não esteja organizado por ordem cronológica, os seus
vários capítulos permitem-nos identificar os grandes esteios da construção
europeia e as opções essenciais com que os decisores políticos foram confron-
tados no período sobre o qual versa o livro.
Teresa de Sousa é uma europeia convicta, como não esconde em nenhum
dos seus textos. Justamente considerada a mais reputada jornalista portugue-
sa em temas europeus, a sua reflexão e a sua opinião contam e fazem a diferen-
ça, não apenas no debate público entre nós, mas também no quadro europeu.
Prefácio 9

Não poucas vezes, em areópagos europeus, ouvi citar a opinião de «Teresa de


Susa» (sabida a dificuldade dos estrangeiros com o nosso tão português diton-
go «ou»…) como referência, quer de uma reflexão apurada sobre os principais
temas europeus, quer de uma opinião consistente e fundamentada.
Nesse plano a autora não dissimula quais as suas opções e em todos os seus
escritos aqui recolhidos transparece claramente a tensão (por vezes angus-
tiada, por vezes severamente julgada) entre a vontade e a realidade, entre o
que pode justamente ser considerada uma realização magnífica com quase
sessenta anos e a exasperação e a frustração provocadas pelas indecisões, pe-
los desvios, pelas roturas que volta e meia parecem projectar essa construção
magnífica na senda da tragédia!
Alicerçada num profundo conhecimento histórico do processo de cons-
trução europeia e numa reflexão aturada sobre as opções e os dilemas dessa
construção, Teresa de Sousa não hesita nunca em criticar, denunciar, verberar
mesmo, opções erradas, desvios intoleráveis, desrespeito pelos princípios que
presidiram a um projecto de paz, de prosperidade e de solidariedade que per-
mitiu a reconstrução da Europa após o flagelo da Segunda Guerra Mundial.
A natureza única do projecto europeu, o seu significado à escala global, o
bem fundado das opções dos «pais fundadores», que foram sendo progressi-
vamente aprofundados e adaptados em função da evolução do mundo e da di-
nâmica própria do processo de integração, todos esses elementos enquadram
permanentemente as análises e as reflexões de Teresa de Sousa. A natureza
forçosamente sintética de escritos destinados a serem publicados num jornal
não prejudica em nada a detecção desses grandes fios condutores que encon-
tramos presentes em cada um deles.
Como «obra inacabada», a construção europeia vive permanentemente di-
lacerada entre a grandiosidade dos seus objectivos e os inúmeros obstáculos
e pesadas dificuldades na sua concretização. A leitura dos escritos ora aqui
recolhidos permite também ao leitor acompanhar a evolução do pensamento
e da reflexão da autora neste período de tempo onde a União Europeia se con-
frontou com as novas regras ditadas pela globalização, o aprofundamento do
10 Europa Trágica e Magnífica

Mercado Único, a criação da moeda única, a crise financeira global e os seus


impactos no Velho Continente. Neste percurso, o que mais ressalta dos textos
em causa é a fidelidade da autora aos valores e princípios fundadores da inte-
gração europeia e, progressivamente, uma certa exasperação, um crescente
tom crítico e preocupado com as insuficiências e as incapacidades da União
Europeia em encontrar respostas à altura dos propósitos enunciados.
Em nenhum momento Teresa de Sousa vacila na defesa desses valores e
princípios matriciais. Mas fá-lo sempre sem transigir nem ocultar os erros, os
paradoxos, as contradições e as dificuldades do processo de integração euro-
peia, quer no plano europeu propriamente dito quer também no nosso plano
nacional.
Na minha leitura, as reflexões de Teresa de Sousa articulam-se em torno de
cinco eixos fundamentais: as vicissitudes da denominada «crise do euro», o
comportamento dos principais protagonistas (em especial, o relacionamen-
to entre a França, a Alemanha e o Reino Unido), o papel da Europa no mun-
do globalizado em que vivemos, os dilemas e insuficiência da «democracia
europeia» e, last but not the least, o posicionamento de Portugal no contexto
europeu.
Em torno destes cinco eixos podemos reconstruir, com clareza e minúcia,
o percurso do projecto europeu nestes últimos oito anos, desde o difícil con-
fronto com a globalização financeira e tecnológica até às lacunas do projecto
de União Económica e Monetária, as quais explicam, em certa medida, as agru-
ras da denominada «crise do euro». Afirmando com firmeza que o projecto
de construção europeia não constitui uma forma de «proteccionismo conti-
nental» de tipo defensivo, mas antes um instrumento essencial da presença
económica e financeira dos interesses europeus na economia global, Teresa
de Sousa marca claramente uma linha de aposta no aprofundamento da inte-
gração como condição essencial para que a regulação da globalização possa
prosperar em linha com os valores do multilateralismo, do respeito pelo di-
reito internacional, pela negociação e concertação pacífica, valores esses que
constituem a matriz da posição política europeia. Para seguir e observar uma
tal linha de conduta, nenhum país europeu isoladamente estará em condições
nem tem a força ou a capacidade de afirmar tais valores na cena internacional.
Nessa dimensão, uma «tragédia europeia» seria sempre, a prazo, uma «tra-
gédia global» em relação a um mundo em que vivamos em paz, que respeite
os direitos fundamentais das pessoas, combata as desigualdades e defina um
marco futuro de convívio entre diferentes percepções histórico-culturais e en-
tre interesses económicos e financeiros contraditórios.
A autora estabelece, ao longo dos textos seleccionados , o traço de união en-
tre o grande projecto do mercado interno de Jacques Delors e o corolário que
representa a criação da moeda única europeia. Dessa relação estreita resulta,
como consequência, que as dificuldades e os revezes da União Económica e
Monetária não poderão deixar de ter impacto na própria consolidação do Mer-
Prefácio 11

cado Único, a verdadeira plataforma de integração económica que congrega


todos os vinte e oito Estados-membros da União Europeia.
Neste plano, merecem especial atenção o protagonismo de três dos parcei-
ros fundamentais do projecto europeu: a Alemanha, a França e o Reino Unido.
O pensamento de Teresa de Sousa assenta – e correctamente, no meu enten-
der – no pressuposto de que, se é verdade que historicamente o entendimento
franco-alemão tem constituído o eixo motor da integração europeia, o projec-
to europeu não pode dispensar o papel do Reino Unido, quer enquanto factor
condicionador da bipolaridade franco-alemã, quer enquanto força motriz do
Mercado Interno, quer como parceiro indispensável de uma política externa,
de segurança e de defesa credível.
Dos vários textos que equacionam o papel destes três parceiros essenciais,
muito em especial no quadro da resposta à crise da zona euro, Teresa de
Sousa assinala a progressiva afirmação do peso relativo alemão, das suas vir-
tualidades mas também dos seus riscos inerentes, e analisa a estratégia alemã
na indispensável procura desse difícil ponto de equilíbrio entre a defesa do
natural e legítimo interesse nacional germânico e a necessidade de encontrar
soluções que correspondam ao interesse comum europeu, aquele onde todos
os Estados-membros, independentemente do seu nível de desenvolvimento
económico e social, se encontrem em posição confortável e capazes de benefi-
ciarem do processo de integração económica. Uma Europa onde não haja ga-
nhadores e perdedores, mas onde a negociação e a cedência mútuas em nome
do interesse colectivo prevalece afinal!
Em paralelo, Teresa de Sousa não esconde o seu desapontamento para com
as posições francesas e a perda relativa de peso deste país, que afecta de so-
bremaneira o equilíbrio global, bem como as dúvidas e preocupações perante
a deriva centrífuga do Reino Unido, acentuada nestes anos mais recentes pela
liderança do Partido Conservador britânico.
Da prosa de Teresa de Sousa emerge a consciência aguda de que os equilí-
brios clássicos, com base nos quais se construiu o projecto europeu ao longo
destas décadas, estão a ser postos em causa e o seu processo de transforma-
ção ainda não desembocou numa nova plataforma estabilizada. Estes anos de
crise são, assim, também, anos de transição, que exigem de todos os Estados-
-membros uma atenção redobrada e uma vontade política de participação,
não apenas em nome da salvaguarda dos legítimos interesses nacionais de to-
dos eles, mas também (diria sobretudo) em nome de um compromisso político
que esteja em linha e seja fiel aos valores fundadores desta «Europa Magnífica»
de que fala Jacques Delors.
O que caracteriza muito particularmente o pensamento da autora é a sua
reflexão sobre a Europa, os seus dilemas e o seu destino, nunca se revestir de
um carácter endógeno. Isto é, não será possível abranger a complexidade e a
amplitude do processo de construção europeia se não o colocarmos na pers-
pectiva mais ampla do papel da Europa no mundo. O que Teresa de Sousa sem-
12 Europa Trágica e Magnífica

pre fez e ainda mais justificadamente agora, num mundo globalizado, onde
pela primeira vez na História a riqueza criada nos países menos desenvolvidos
ultrapassou em 2012 a riqueza criada nos países desenvolvidos.
A justificação da integração europeia, seja do ponto de vista funcional, seja
inclusive do ponto de vista da sua legitimação aos olhos dos cidadãos dos Es-
tados-membros, reside não apenas na forma de convívio pacífico e negociado
entre povos e países que conheceram conflitos sangrentos no século passado
(e isso, por si só, já não seria pouco!), mas também no contributo que esta Eu-
ropa «unida na diversidade» pode e deve dar para uma ordem mundial mais
justa, equilibrada e preservadora da paz e da negociação multilateral. Neste
aspecto, a Europa representa também um farol de esperança perante o avo-
lumar de uma «nova (des)ordem mundial» de que Teresa de Sousa nos fala.
Ora, é neste capítulo que o seu desencanto com os recentes rumos europeus
mais se manifesta. Com efeito, tal como a autora, também o prefaciador havia
acreditado que, uma vez reguladas as questões internas com a adopção do Tra-
tado de Lisboa, que pôs fim a um longo período de mais de dez anos de nego-
ciação institucional e de alargamento no plano continental, estariam criadas
as condições necessárias para que a União Europeia assumisse plenamente
o seu papel no mundo, contrariasse os sinais de declínio e de relativa margi-
nalização e pudesse contribuir para a definição de uma «governance global»
assente em valores e princípios conformes com uma visão democrática e hu-
manista. A crise financeira global, que teve o seu epicentro nos Estados Unidos
da América, e as ondas de choque que desencadearam a crise do euro vieram,
de certo modo, ocupar o centro da agenda política europeia, com todo o seu
caudal de dramatismo, emergência e novas clivagens internas (mesmo aquelas
que pensávamos há muito superadas…), relegando para um plano secundário
a assumpção das responsabilidades globais europeias.
Teresa de Sousa insiste, uma e outra vez, na relevância central da aliança
transatlântica, seja no plano económico e financeiro, seja no plano da paz
e da segurança internacionais. E não deixa de registar, com justificável
preocupação, a desvalorização dessa relação transatlântica por parte da Ad-
ministração americana, mesmo da liderada por Barack Obama em quem os
europeus haviam depositado tantas expectativas. A translação para a Ásia do
centro de gravidade da política externa americana ainda não foi integralmente
compreendida e integrada pelos decisores políticos europeus e é com razão
que Teresa de Sousa reiteradamente chama a atenção para a necessidade de
a Europa assumir as suas responsabilidades para evitar que essa translação
se traduza numa progressiva marginalizarão do Velho Continente numa pos-
sível nova ordem mundial emergente. Mas, para tanto, as ambiguidades e as
divisões internas europeias em relação à própria relação transatlântica e em
relação a alguns parceiros terceiros e essenciais (como a China, a Rússia e a
Turquia) exigem, da parte da União Europeia, uma clarificação estratégica que
tarda e que, ao tardar, abre espaço para a proliferação de actuações unilaterais
Prefácio 13

que, sendo em si mesmas pouco produtivas, em regra se traduzem no enfra-


quecimento do todo europeu.
Mas não é apenas no plano político-diplomático que o juízo de Teresa de
Sousa se mostra severo em relação ao adquirido europeu desta última década.
Em coerência com a sua linha de reflexão quanto à natureza determinante da
relação transatlântica (e ao papel da NATO neste contexto), a autora manifesta
também com iniludível clareza o seu desapontamento perante a timidez e as
insuficiências do protagonismo europeu no plano da segurança e da defesa.
Numa conjuntura particularmente conturbada na vizinhança próxima, desde
as revoluções árabes à guerra civil na Síria, desde o afundamento da Líbia até
à anexação da Crimeia à crise ucraniana, a Europa da segurança e da defesa
mostra-se incapaz de assumir a sua quota-parte de responsabilidade perante
a evolução dos acontecimentos e sobretudo diante de protagonistas terceiros
que, não só se apercebem, como sabem jogar habilmente com o desfasamento
entre as declarações políticas grandiloquentes e as vulnerabilidades eviden-
ciadas no plano da sua concretização prática. O vazio europeu em matéria de
segurança e defesa tem não apenas um custo político-diplomático mas tam-
bém, a prazo, um custo económico e financeiro que não nos podemos dar ao
luxo de ignorar.
E como se posiciona Portugal neste contexto?
Como já se disse, Teresa de Sousa é uma autora que não esconde o seu eu-
ropeísmo mas também não se esconde por detrás desse europeísmo para se
eximir à reflexão (e à tomada de posição) sobre o que se passa no nosso país.
Diferentemente de outros especialistas em política internacional que conside-
ram as «questões domésticas» menores perante a grandeza dos temas globais
a que se dedicam, Teresa de Sousa compreende melhor do que ninguém que o
debate sobre o nosso devir colectivo está tão dependente dos rumos europeus
que não é possível extirpar da cena política interna as opções estruturantes em
matéria de política europeia e que as omissões, ambiguidades ou hesitações
no plano interno acabam sempre por ter um preço a pagar no posicionamento
de Portugal no contexto europeu.
Neste plano, duas dimensões merecem especialmente a sua atenção. Por
um lado, a evolução do posicionamento dos socialistas e sociais-democratas
europeus (e portugueses) e, por outro, as vicissitudes da nossa vida política in-
terna naquilo que mais directamente tem a ver com as condições necessárias
à participação de pleno direito na construção europeia.
Na primeira vertente, Teresa de Sousa chama a atenção, com inteira razão,
aliás, para a crise da social-democracia europeia. Com efeito, no momento em
que a Europa em geral (e a zona euro em particular) conhecem a mais profun-
da crise económica desde a Grande Depressão dos anos 30 do século passado,
como explicar que, no plano político, sejam os partidos do centro-direita e da
direita, sejam as correntes de pensamento de inspiração liberal, em grande
medida as mais próximas das orientações desreguladoras que contribuíram
14 Europa Trágica e Magnífica

para a crise financeira iniciada em 2008, que acabem por merecer a confiança
dos cidadãos e não as alternativas socialistas e social-democratas que, à parti-
da, poderiam apresentar um rumo de acção mais diferenciado? São vários os
escritos que dedica às vicissitudes do pensamento socialista e social-democra-
ta europeu no contexto da crise. Mas fá-lo sempre em função (e, por vezes, em
contraponto), quer da orientação liberal-conservadora dominante na última
década tanto no Conselho Europeu como no próprio Parlamento Europeu,
quer perante o crescimento dos extremismos (por vezes de sinal contrário) na
cena europeia. O crescente eurocepticismo no plano europeu e entre nós não
constitui apenas uma sequela colateral das agruras da crise, mas também da
tibieza e das contradições da própria construção europeia, com responsabili-
dades partilhadas, neste ponto, pelas duas grandes famílias políticas europeias
que historicamente foram os esteios do projecto de vida em comum, os demo-
cratas cristãos e os sociais-democratas.
Colocando a questão do âmago da construção europeia, mais do que pro-
curar respostas em arquétipos globais de inspiração federal, Teresa de Sousa
procura delimitar com exactidão e rigor as vantagens do método comunitário,
os riscos e as armadilhas das derivas intergovernamentais e da consequente
reinstauração de uma hierarquia de Estados que constitui a própria negação
do projecto dos «pais fundadores» e procura sempre libertar-se do equívoco
do «mais Europa» ou «menos Europa», tantas vezes dominante no debate no
espaço público, para centrar a sua análise (e crítica) nas concretas soluções
adoptadas ou em falta e na precisa medida em que umas e outras correspon-
dem às responsabilidades colectivas dos europeus. Por isso, as pertinentes
análises de Teresa de Sousa sobre as instituições europeias e os seus protago-
nistas não decorrem de uma leitura dogmática de um arquétipo «ideal» (do
tipo federal), mas antes de uma visão realista da relação de forças, dos con-
tributos dos vários stakeholders para a consolidação do projecto comum, das
respostas ao distanciamento e alheamento (crescentes) das opiniões públicas,
das lacunas detectadas em termos de responsabilidade política e respectiva
efectivação (o denominado «défice democrático»), da maior ou menor fideli-
dade das decisões tomadas em relação aos princípios norteadores afirmados
há mais de sessenta anos.
A autora demonstra nestes escritos que há um europeísmo cosmopolita
e solidário que espera urgentemente respostas à altura, para além dos com-
promissos ambíguos ou da frieza inóspita da racionalidade tecnocrática, por
detrás da qual se escondem várias vezes opções contrárias aos valores e prin-
cípios de um projecto europeu inclusivo e sustentável.
Na segunda vertente, a do nosso debate doméstico sobre a Europa, Tere-
sa de Sousa demonstra com sagacidade a vacuidade das alternativas à anco-
ragem do nosso país no projecto europeu. Com efeito, durante demasiado
tempo (e até ainda hoje…), vivemos dilacerados por alternativas que se apre-
sentavam como excluindo-se mutuamente entre uma «vocação europeia»
Prefácio 15

ou uma «vocação atlântica», esta tantas vezes apresentada como baseada na


(re)criação de um «mundo lusófono» alternativo à integração europeia. A res-
posta da autora é inequívoca: a Europa é o terreno primacial de inserção e
afirmação internacional de Portugal! E uma tal opção, tomada quando do fim
do Império e da reinstauração da democracia entre nós, há quarenta anos, não
exclui, antes beneficia e pode beneficiar da pluralidade de ligações históricas,
culturais, linguísticas e hoje, cada vez mais, até económicas, com outros espa-
ços geopolíticos, do Atlântico ao mundo de expressão portuguesa. É mais do
que tempo para operarmos uma síntese das diferentes valências que podemos
encontrar no nosso posicionamento internacional em vez de nos escudarmos
nas desculpas fáceis de dilemas que apenas justificam a inacção e o fechamen-
to sobre nós próprios. Mas essa síntese tem que assumir prioridades claras,
desde logo no plano europeu, onde as mutações em curso, provocadas em
parte pelas sequelas da crise, vão impor a Portugal uma atenção redobrada
e as necessárias adaptações da sua estratégia de participação no processo de
construção europeia.
A consciência de que o futuro do projecto europeu assentará cada vez mais
naquele conceito de «diferenciação» que foi formulado por Jacques Delors
há mais de vinte anos e que a zona euro constituirá o centro de gravidade do
aprofundamento da integração futura impõe um debate aberto e franco en-
tre nós, sobre os objectivos que enquanto país pretendemos alcançar e sobre
o significado do contributo que enquanto portugueses podemos dar para a
«obra colectiva europeia», para a «Europa Magnífica» de que nos fala a autora.
Este debate já não pode bastar-se nem com a passividade dos europeístas
que achavam que a «chuva de fundos» seria suficiente para garantir o com-
promisso europeu de Portugal, nem com as simplificações eurocépticas do
tipo «sair do euro e recuperar a soberania resolve todos os nossos problemas
nacionais».
Para esse debate inadiável, para esse reencantamento com uma Europa que
afaste de vez o espectro da tragédia e nos coloque a todos no caminho do futu-
ro, poderemos continuar a contar com a voz informada, sabedora e realista da
Teresa de Sousa, como abundantemente demonstram os escritos em boa hora
agora coligidos neste livro!
16 Europa Trágica e Magnífica

CAPÍTULO I

DA EUROPA
MAGNÍFICA
À NOVA
(DES)ORDEM
MUNDIAL

REUTERS/Thomas Peter
Da Europa magnífica à nova (des)ordem mundial 17

A OPORTUNIDADE
DE UM PRÉMIO
12-10-2012

Já no fim da vida, Jean Monnet chamou-lhe uma «obra-prima inacabada». Cel-


so Lafer, grande sociólogo brasileiro e antigo chefe do Itamaraty, declarou-a
«um bem comum da Humanidade». Fernando Henrique Cardoso dizia numa
entrevista recente ao PÚBLICO que a União Europeia «é uma conquista da ci-
vilização». Pertence a todos. Destruí-la representaria um enorme retrocesso.
Ontem o presidente do Conselho Europeu, Herman Van Rompuy, descreveu-
-a como «a maior instituição jamais criada na História do mundo para fazer
a paz». É esse o seu maior legado. Comprovado nos últimos cinquenta anos,
aqueles que se seguiram ao fim de um dos mais negros períodos da História da
Europa, por duas vezes destruída por duas «guerras civis» que contaminaram
o mundo inteiro e tiveram origem no nacionalismo extremo que a habitou du-
rante a primeira metade do século XX.
A Comunidade Europeia nasceu para tornar a guerra impossível entre as
potências europeias. Por isso, a primeira grande iniciativa para pôr em comum
os instrumentos com que as nações fazem a guerra foi a Comunidade Europeia
de Defesa (1954), que a França haveria de rejeitar, obrigando os pais fundado-
res a virarem-se para a economia. Primeiro com a comunidade que colocou as
indústrias do carvão e do aço sob tutela de uma autoridade supranacional eu-
ropeia. Depois, com a criação da Comunidade Económica Europeia. O objecti-
vo foi sempre o mesmo: avançar, passo a passo, para uma integração cada vez
mais sólida e mais profunda, unificando o destino dos povos europeus. Não
apagou a História, que é inapagável, mas conseguiu dar-lhe um novo sentido.

A União sobreviveu ao fim do império soviético que, durante os anos da


Guerra Fria, constituiu a principal ameaça às democracias europeias e foi um
tremendo incentivo para a sua unidade. Sobreviveu à reunificação da Alema-
nha — a potência central do continente europeu que esteve na origem de duas
guerras mundiais. Fez do euro a amarra para prender a Alemanha à integração
europeia. A Alemanha deixou-se amarrar. Ontem, Angela Merkel repetiu aqui-
lo que esteve na mente dos homens que criaram a união monetária: «O euro
é mais do que uma moeda porque, no fim, ela é sobre a ideia original de uma
união de paz e de valores comuns.»
Não abdicou da sua missão de paz quando soube responder ao maior de-
safio estratégico que o fim da ordem de Ialta lhe colocou: abriu as portas aos
países da Europa Central e de Leste que, no fim da Segunda Guerra Mundial,
18 Europa Trágica e Magnífica

tinham ficado do lado errado da História e reclamavam o seu «regresso à Euro-


pa». Foi a perspectiva de se juntarem à União Europeia que derrotou os surtos
nacionalistas, as hesitações democráticas ou a desagregação étnica. Falhou
nos Balcãs, permitindo que a violência se instalasse o tempo suficiente para
fazê-la confrontar-se com as imagens de um passado que nunca mais queria
reviver. Findos os conflitos, a União Europeia é hoje o mais poderoso incentivo
à transformação democrática e à convivência pacífica nos Balcãs Ocidentais.
Alguém disse uma vez que a sua capacidade para fazer «mudar os regimes po-
líticos» no sentido da democracia era mil vezes superior à força militar ameri-
cana. Tornou-se um modelo de integração regional que o mundo se habituou
a admirar. Da Ásia à América Latina.
É preciso mais alguma razão para justificar o Prémio Nobel da Paz? Prova-
velmente, não. «Transformou a Europa de um continente da guerra num con-
tinente da paz», resume o comunicado que justifica a atribuição do prémio.

A questão é o momento escolhido. Quando a Europa atravessa a sua maior


crise de sempre e o mundo começa a deixar de acreditar nas suas extraordiná-
rias virtualidades. «Devem estar todos a celebrar nas ruas de Atenas», comen-
tam os cínicos. Os mais optimistas são obrigados a admitir o regresso do vírus
nacionalista que se manifesta hoje nos preconceitos, nas divisões e nos velhos
egoísmos nacionais que pensávamos, ingenuamente, definitivamente enterra-
do. E não se trata apenas dos partidos populistas e nacionalistas a que a crise
europeia veio dar novo alimento. A própria narrativa oficial com que a crise é
descrita não consegue reflectir esse legado que agora a atribuição do Prémio
Nobel vem repentinamente recordar. Hoje, para os europeus, a paz é um bem
adquirido que ninguém julga ameaçado. A democracia é um sistema enraiza-
do no nosso modo de vida. E ainda não foi possível encontrar outra narrativa
ou outro bem colectivo que prove aos europeus que o destino comum que
partilham e que fez da Europa o mais tranquilo, mais democrático e mais justo
de todos os continentes, ainda vale a pena ser preservado.
É por isso que a decisão do Comité Nobel de Oslo não poderia ser mais opor-
tuna. Helmut Kohl classificou-a de «sábia e arrojada». Porque surge num mo-
mento, porventura o primeiro desde a sua fundação, em que a própria ideia
de Europa está a ser rudemente posta à prova e a possibilidade da desinte-
gração nunca foi tão grande. O prémio convida a olhar para trás e a lembrar o
que a Europa conseguiu de extraordinário nas últimas décadas. E é, ao mesmo
tempo, um aviso a quem a dirige sobre a responsabilidade que tem em não
destruir esse legado.
Da Europa magnífica à nova (des)ordem mundial 19

«EUROPA TRÁGICA
E MAGNÍFICA»
20-03-2007

Em Berlim, no próximo fim-de-semana, a União Europeia vai comemorar o


seu 50.º aniversário. A anfitriã, a chanceler Angela Merkel, e os seus 26 par-
ceiros europeus vão esforçar-se por deitar para trás das costas as dúvidas e os
desentendimentos, para sublinhar aquilo que verdadeiramente a Europa tem
de único e de extraordinário. Muitas vezes esquecido entre as peripécias do
quotidiano, a passagem do tempo, as dificuldades do presente e, sobretudo, a
imensidão dos desafios do futuro. Haverá fogo-de-artifício, música e festivais
da juventude numa cidade que é, afinal de contas, o mais belo e simbólico ce-
nário das celebrações. Berlim, há apenas vinte anos o símbolo da Guerra Fria e
da Europa dividida. Berlim, a capital exultante da Europa reunificada. Berlim,
de novo, a capital de um país onde mais uma vez se joga em boa medida o
futuro da Europa.
Há cinquenta anos, com o Tratado de Roma, a unificação europeia nasceu
da necessidade de integrar a jovem República Federal da Alemanha no mundo
das democracias ocidentais, retirando-a do centro de um continente em que
as suas ambições hegemónicas por duas vezes devastaram no século XX. Hoje,
como ontem, a Europa manter-se-á unida se a Alemanha continuar a ser es-
sencialmente europeia. «Ocidental.» Como escreveu Timothy Garton Ash, «ro-
deada de ocidente por todos os lados», solidamente integrada numa Europa
unida nas novas condições geopolíticas do pós-Guerra Fria, como ontem nas
condições do pós-guerra.

Há cinquenta anos, como de novo hoje, a Europa confrontava-se dramati-


camente com o seu declínio, arruinada por uma «guerra civil» que se traduziu
em 50 milhões de mortos, afastada do centro do mundo pela emergência de
duas superpotências — dependente de uma delas para garantir a sua unidade
e segurança, ameaçada pela outra. Transformada em linha da frente da Guerra
Fria e prestes a perder os seus impérios coloniais. A Comunidade Europeia foi
também a melhor resposta política para contrariar o declínio e a irrelevância.
Com os resultados extraordinários de que hoje, em Berlim, a Europa se pode
orgulhar.
Em cinquenta anos, passou dos seus seis membros fundadores para os 27
actuais e uma razoável fila de candidatos a bater-lhe à porta. Sejam quais fo-
rem as suas dificuldades económicas, é um dos espaços mais prósperos e so-
cialmente mais justos do mundo. Vive em liberdade e em paz. Transformou-se
20 Europa Trágica e Magnífica

num modelo para o mundo. Tem uma moeda única capaz de ombrear com
o dólar e dá os primeiros passos na construção de uma política externa e de
segurança comum. Respondeu ao fim da Guerra Fria transformando a sua po-
lítica de alargamento numa poderosa máquina de transformação democrática
e levando até às fronteiras do continente a mesma paz e estabilidade que ga-
rantiu para si própria antes da queda do Muro de Berlim. O seu soft power pro-
jecta-se muito para além das suas fronteiras. Como perguntava recentemente
o Financial Times, que organização multilateral neste mundo pode apresentar
os mesmos resultados e reclamar o mesmo sucesso?
E, no entanto, em Berlim o receio do declínio e da perda de influência esta-
rão presentes, se não em palavras pelo menos em espírito, e o risco de desa-
gregação figura entre os cenários possíveis para aquela que muitas pessoas
consideram a maior crise da sua história.
Os desafios que enfrenta são outros e não têm a dimensão trágica daqueles
que enfrentou no pós-guerra. Vêm hoje da globalização económica, com os
seus novos protagonistas e o seu impacte sobre as sociedades europeias, mas
também de uma profunda crise da Aliança Atlântica, que garantiu durante os
últimos cinquenta anos a segurança indispensável ao seu tremendo sucesso
político, económico e social.
O que lhe falta, hoje, mais do que qualquer outra coisa, é o sentimento de
pertença e de solidariedade que se foi perdendo de uma forma alarmante nos
últimos tempos perante novas dificuldades e uma muito maior diversidade.
Falta-lhe, no fundo, uma nova narrativa, como escreveu também Timothy Gar-
ton Ash, que faça com que a ideia de pátria europeia volte a fazer sentido aos
olhos dos europeus.

Provavelmente nos dias que faltam para o 50.º aniversário vão ser publica-
das muitas sondagens sobre o estado de espírito dos europeus. Há uma, recen-
te, publicada pelo FT, que, sem ser muito representativa (foi feita apenas nos
cinco maiores países), traduz de algum modo esta necessidade de encontrar
uma história que volte a fazer sentido.
A paz, tal como a democracia, são hoje dadas como garantidas e isso faz com
que apenas uma minoria de inquiridos identifique a ideia de Europa com estes
valores fundamentais.
Em França apenas 15 por cento mencionam a paz, e na Alemanha apenas 9
por cento. Pelo contrário, o mercado interno ou a burocracia parecem traduzir
hoje uma ideia negativa da Europa que muitos europeus têm. Evidentemente
que, para uma maioria, a União continua a ser uma coisa boa (a excepção é o
Reino Unido), mas é uma maioria minguante.
Quanto ao que os europeus esperam que a Europa faça, os resultados vêm,
de algum modo, dar razão a algumas das escolhas do presidente da Comissão,
Durão Barroso, para fazer avançar a sua «Europa dos resultados». Mais de 70
por cento entendem que a União devia fazer ainda mais pelo ambiente e pelas
Da Europa magnífica à nova (des)ordem mundial 21

questões energéticas (é preciso levar em conta que a sondagem foi realizada


nos dias em que decorreria a cimeira da Primavera sobre estes dois temas),
seguindo-se o combate ao crime organizado e, naturalmente, as questões de
segurança e as de imigração. Outro dado que pode dar que pensar. Quando
se pergunta qual dos «três grandes» tem maior influência no mundo, em todos
os países, à excepção da França (que escolhe a Alemanha), a resposta maiori-
tária vai para o Reino Unido.
Há, todavia, um dado animador nesta sondagem que nos leva de volta ao
ponto de partida. Os inquiridos escolheram o antigo chanceler alemão Helmut
Kohl como a personalidade europeia que associam mais positivamente ao de-
senvolvimento da União.
A sua batalha foi por uma Alemanha europeia fortemente ancorada numa
Europa forte. A sua visão e força vinham-lhe de algumas convicções muito sim-
ples e muito profundas, a primeira das quais a de que a Europa devia servir
para tornar a guerra impensável. E tornou (com a única excepção dos Balcãs e
nas circunstâncias da desagregação do regime comunismo). De tal forma que
já ninguém parece pensar na paz como um valor essencial e isso é, ao mesmo
tempo, um tremendo êxito mas uma nova debilidade.
A Europa não é nem nunca foi um caminho fácil e tranquilo, lembra Jacques
Delors, também ele um dos últimos grandes europeus, no seu livro A Euro-
pa Trágica e Magnífica. Mas se a memória não chega para garantir o futuro,
também não pode haver futuro sem memória. É este o grande desafio que se
coloca aos líderes que vão celebrar o passado em Berlim no próximo domingo.
Poucos terão a dimensão de um Kohl.
22 Europa Trágica e Magnífica

UM COLOSSO
À PROCURA
DE UM DESTINO
05-03-2011

Chegou a alimentar o sonho de vir a ser uma superpotência. Integrou um con-


tinente. Criou uma moeda. Mas hoje o mundo corre contra ela. É um colosso
que não se consegue transformar em poder. Estará a Europa condenada à ir-
relevância?
Um globo terrestre preenche a capa da mais recente edição da revista Time
americana. À primeira vista, é um globo como qualquer outro. Um olhar mais
atento depressa revela algo de anormal. Acima de África e à direita da Ásia, falta
a Europa. Ou melhor, falta a União Europeia. O azul do Atlântico banha tranqui-
lamente as costas da Turquia, Ucrânia e Bielorrússia, alinhadas com a face oci-
dental da Rússia. O título explica o enigma. «Para onde foi a Europa?» Não «para
onde vai?» «A UE precisa de decidir se quer ser uma potência mundial.» Quantas
vezes já lemos a mesma pergunta impressa em letra de forma, formulada desta
ou de outra maneira? Obsessão americana? Mania de quem não percebe a natu-
reza única da construção europeia? Má vontade dos seus detractores?
Como se pode apagar do mapa uma realidade de 500 milhões de pessoas?
A maior potência comercial do mundo? O lugar do planeta que goza dos mais
elevados padrões de vida e de justiça social? Que atrai para as suas cidades
magníficas o maior número de turistas? Um colosso?
E, no entanto, a pergunta é recorrente. Persegue a história da integração
europeia dos últimos vinte anos. É feita com maior ou menor ansiedade, maior
ou menor insistência, conforme as circunstâncias mundiais. A resposta tor-
nou-se hoje muito mais urgente.
Vinte anos depois da queda do Muro de Berlim — «de crise em crise», como
dizia Jacques Delors —, a Europa transformou-se ao ponto de hoje ser quase
irreconhecível. Cumpriu o seu desígnio histórico. Sobreviveu à gigantesca
transformação geopolítica que alterou radicalmente as condições da sua gé-
nese. Abriu as portas aos países da sua metade leste que tinham ficado do lado
errado da História depois da Segunda Guerra Mundial. Adquiriu uma dimen-
são política. Dotou-se de uma moeda única. Projectou a sua influência muito
para lá das suas fronteiras. Sobreviveu ao fim da União Soviética, à unificação
da Alemanha, à unificação do continente. Ainda está à procura de um desígnio
estratégico. O seu maior drama é que o mundo está a mudar mais depressa do
que a Europa. Corre contra o tempo.
Da Europa magnífica à nova (des)ordem mundial 23

«Bem público internacional»


Na Primavera de 1999 o economista americano Fred Bergsten publicava um
ensaio na revista Foreign Affairs prevendo um novo «choque de titãs». A sua
ideia era que o lançamento do euro (a moeda única nasceu a 1 de Janeiro de
1999 e ganhou forma física a 1 de Janeiro de 2002) iria mudar para sempre
a relação transatlântica ao elevar a Europa ao nível do poderio económico
dos EUA. «O lançamento do euro oferece a perspectiva de uma nova ordem
económica que pode substituir a hegemonia americana desde a II Guerra.»
A Eurolândia levaria a Europa «a falar a uma só voz» nos fóruns internacionais.
Desafiaria o domínio internacional do dólar. O fim da Guerra Fria, que «redu-
ziu drasticamente a importância do poder militar dos EUA para a Europa»,
deu-lhe maior autonomia estratégica. Estava encontrada uma resposta sobre
o nome a dar ao século seguinte. «Ainda há bem pouco tempo estávamos a
debater se o século XXI seria japonês ou asiático.» «Hoje, a maior probabilidade
é que venha a ser o século europeu.» A boa alternativa seria um século «transa-
tlântico» para uma «verdadeira liderança global».
O académico americano não estava sozinho nas suas reflexões. Nunca nos
Estados Unidos se produziram tantas obras sobre a futura «superpotência»
mundial. Faziam sentido.
A partir de meados da última década do século passado a Europa parecia
lançar-se na grande aventura de se tornar uma «superpotência», embora de
tipo diferente. O debate europeu era sobre saber se seria «rival» ou «aliada»
da América. Integrada num mundo unipolar liderado pela América, ou pólo
autónomo de um mundo que se adivinhava cada vez mais multipolar?
Claro que havia o fracasso nos Balcãs: humilhação suficiente para arrefecer
as ambições europeias. A União fora incapaz de evitar o regresso do nacio-
nalismo extremo ao território europeu. Dividira-se quanto à solução política
para a desagregação da Jugoslávia. Depois de ter proposto aos EUA que se sen-
tassem no banco de trás da condução diplomática da crise, tivera de recorrer
humildemente aos seus «serviços» para travar a barbárie. As grandes procla-
mações sobre a sua política externa enfrentavam o duro teste da realidade.
Tirou as lições da derrota. Em 1999 a França de Jacques Chirac e a Grã-Bretanha
de Tony Blair perceberam que tinham de se entender para lançar as bases de uma
defesa europeia. A reforma de Amesterdão (1997) criara a figura de um alto repre-
sentante para a Política Externa. Em 1999, Javier Solana, que fora o secretário-geral
da NATO durante os conflitos da Bósnia e do Kosovo, tinha o perfil para fazer a
Europa ser levada a sério. Nesse mesmo ano o euro ganhava forma, impondo-se
aos sucessivos ataques dos especuladores. A política vencia os mercados.
Faltava apenas emular o dinamismo da economia americana, aprendendo
com ela a tirar partido da revolução tecnológica e da globalização. Em 2000 a
União adoptava em Lisboa uma ambiciosa estratégia económica e social. Apos-
tar no conhecimento, reformar o modelo social, transformar-se na economia
mais competitiva do mundo em dez anos.
24 Europa Trágica e Magnífica

O mundo olhava-a com admiração.


O seu modelo de integração era visto na América Latina, na Ásia ou em Áfri-
ca como o exemplo a seguir. Celso Lafer, antigo chefe da diplomacia brasileira,
definiu-a como um «bem público internacional». A China via nela o parceiro
ideal para equilibrar o poderio americano e um aliado preferencial da sua es-
tratégia de desenvolvimento económico. A Europa liderava o mundo no com-
bate às alterações climáticas ou na construção de um sistema penal internacio-
nal para julgar os responsáveis pelos crimes contra a Humanidade. A Bósnia e
o Ruanda não ficariam impunes.
O 11 de Setembro haveria de pôr cobro ao seu idílio com o mundo. O Iraque
partiu-a ao meio. O globo começava a girar a grande velocidade mas em sen-
tido contrário.

A «digestão» de 1989
No dia 11 de Novembro de 2009 os líderes europeus reuniram-se em Berlim
para celebrar os vinte anos da queda do Muro. A face tranquila da primeira
chanceler da Alemanha que veio do Leste era o símbolo vivo e a prova derra-
deira do enorme sucesso europeu.
Fora uma longa e tortuosa caminhada.
Se o fim da Guerra Fria significou para a América a ilusão do «fim da Histó-
ria», para a Europa significou o seu inesperado e perturbador regresso. Tinha
a forma de uma grande Alemanha que reemergia como a «potência central»
do Velho Continente, trazendo consigo a memória da tragédia europeia. Foi
ainda a necessidade de contrariar a História que esteve na base de Maastricht.
O Tratado que fundou a União Europeia e estabeleceu o calendário da união
monetária tinha um objectivo político imediato: «amarrar» a Alemanha reuni-
ficada ao seu destino europeu exigindo-lhe a partilha do marco, o mais forte
símbolo do seu poder e soberania. O euro será a grande realização europeia
da década de 1990. A Europa ainda se pensa como Ocidental, adiando para a
década seguinte o desafio estratégico da unificação do continente.
A primeira década do novo século será marcada pela tensão constante entre
o alargamento aos países da Europa Central e de Leste — «o supremo interesse
alemão», segundo Joschka Fischer — e a necessidade de arrumar a casa. Suce-
dem-se as reformas institucionais.
A reforma de Nice coloca em cima da mesa a questão, até aí tabu, do novo
lugar da Alemanha. Berlim reivindica pela primeira vez um peso equivalente
à sua dimensão. A França ainda não está em condições de ceder. Em Maio de
2004 a União abre as portas a dez novos países da antiga Europa de Leste.
A grande reforma constitucional é lançada um ano antes. A Europa acredita,
por instantes, que pode ter a sua Convenção de Filadélfia. Sonha com o seu
George Washington. O sonho morre contra a inesperada rejeição da Constitui-
ção europeia em dois países fundadores: a França e a Holanda. Renasce sob a
forma de Tratado de Lisboa em 2007. Tem de vencer a desconfiança dos elei-
Da Europa magnífica à nova (des)ordem mundial 25

tores europeus. A narrativa europeia forjada desde a Segunda Guerra Mundial


começa a não fazer sentido. Mas está finalmente concluída a resposta ao desa-
fio de 1989. «Será o último grande tratado para uma geração», escreve Charles
Grant, director do Centre for European Reform de Londres. A Europa «perdeu
demasiado tempo e energia na reforma institucional, os líderes europeus terão
agora de concertar-se nos desafios reais de um mundo real», acrescenta. Esse
mundo era, agora, irreconhecível.

A última desilusão
No Inverno de 2008, Álvaro de Vasconcelos, director do Instituto de Estudos
de Segurança da UE, escrevia: «A União Europeia vai ter de adaptar rapida-
mente a sua política externa ao estatuto de grande potência.» Mas terá de
fazê-lo numa altura em que o ambiente internacional mudou radicalmen-
te num sentido que deixou de lhe ser favorável. Terá de conviver com um
mundo «marcado pelo regresso à política de potência que é, se não hostil,
pelo menos adverso ao modelo multilateral representado e defendido pela
Europa».
Ainda é um imenso reservatório de soft power. Mas o «poder de atracção»
que exerceu à sua volta esgotou-se contra as fronteiras instáveis do continente
A «fadiga do alargamento» — a indefinição sobre o que fazer à Ucrânia ou à
Turquia — não é mais do que o reflexo da indefinição estratégica sobre o papel
que quer ter no mundo. A eleição de Obama retirou-lhe o argumento da «su-
perioridade moral». «George W. Bush intimidou os líderes europeus com o seu
unilateralismo. Obama intimida-os com o seu multilateralismo», diz Richard
Gowan do European Council on Foreign Relations (ECFR).
É um gigante à procura de um propósito estratégico num mundo que, entre-
tanto, não ficou à sua espera.
«No mundo multipolar que está a emergir quais serão as potências que vão
contar?», interroga-se Charles Grant. Os EUA e a China, sem dúvida. A Índia,
a Rússia. Provavelmente o Brasil, o Japão. E a Europa? Visitem Pequim, Nova
Deli, Brasília, desafia do director do CER num ensaio a que chama Is Europe
doomed to fail as a power? Já ninguém a leva muito a sério. Se fosse precisa uma
prova, a cimeira de Copenhaga forneceu-a. A Europa convenceu-se que lhe
bastava a autoridade moral do seu exemplo. Quando chegou a hora da verda-
de, ninguém a convidou para se sentar à mesa. As novas potências «realistas»
respeitam a força mas aproveitam a fraqueza.
Tem 35 mil homens no Afeganistão. Missões militares nos quatro cantos do
mundo. Não consegue pesar em qualquer uma das questões vitais da seguran-
ça mundial. De novo Grant: «Quando se trata dos problemas mais urgentes,
como o Afeganistão, o Paquistão, a Coreia do Norte, o Médio Oriente, a Europa
ou é invisível ou está ausente.»
Está sobrerrepresentada no G20. Seria muito mais forte se apenas tivesse
um lugar.
26 Europa Trágica e Magnífica

A última oportunidade
Está confrontada com o risco de falhar a sua grande oportunidade: a feliz con-
jugação que poderia resultar da entrada em vigor do Tratado de Lisboa e da
eleição de Obama.
O Tratado devia ter sido o ponto de viragem. Ameaça transformar-se numa
enorme decepção. «A ideia de que, no fundo, a Europa prefere a comodidade
de ser uma Grande Suíça ao esforço de ser uma potência mundial ganhou ter-
reno no dia em que os líderes europeus escolheram segundas figuras para os
representar», escreve Tony Barber no Financial Times. A Alemanha vê-se cada
vez mais como Alemanha. A França e o Reino Unido nunca deixaram de se ver
como potências com influência mundial.
A crise do euro expõe as debilidades de uma união monetária que, contra-
riando os seus fundadores, não conseguiu fazer a Europa evoluir para uma
união política.
A eleição de Obama ofereceu-lhe o Presidente americano com que sempre
sonhou. «Os europeus não têm um objectivo para a aliança transatlântica, a
não ser a ideia de que dependem dela. Não conseguem aceitar que o mundo
mudou», avisam os autores de um estudo do ECFR sobre o que pode ser a Eu-
ropa no mundo pós-americano. Obama não terá, provavelmente, a Europa de
que precisa.
A questão é simples. A América não poderá liderar sozinha a tremenda
transformação do mundo a que assistimos, conduzindo-o para uma ordem
capaz de integrar pacificamente a ascensão da China e a ascensão «do resto».
Precisa de aliados. Precisa de uma Europa que esteja disposta a pagar o preço
da sua relevância. Mas a América sobreviverá à desordem de um mundo ad-
verso. O projecto europeu, tal como o conhecemos, não sobreviverá.
Da Europa magnífica à nova (des)ordem mundial 27
28 Europa Trágica e Magnífica

CAPÍTULO II

HISTÓRIAS
DA HISTÓRIA
RECENTE:
PEQUENOS
RETRATOS
AVULSO
REUTERS/Tobias Schwarz
Histórias da História recente: pequenos retratos avulso 29

HÁ VINTE ANOS
O EURO NASCIA
DA VONTADE
POLÍTICA CONTRA
OS MERCADOS
19-07-2011

Quando a figura imponente do chanceler alemão entrou no grande salão do


Palácio do Eliseu, o Presidente da França estava furioso. Pálido e enfraqueci-
do, François Mitterrand recuperava de uma cirurgia a que fora submetido no
início de Setembro e do tremendo susto do referendo ao Tratado de Maas-
-tricht, realizado dois dias antes. Vencera-o por uma unha negra. Nesse dia 22
de Setembro de 1992 os mercados atacavam furiosamente o franco pondo em
causa a sua paridade com o marco, que estava no centro do Mecanismo das
Taxas de Câmbio (MTC) do Sistema Monetário Europeu (SME). O chumbo do
Tratado na Dinamarca, em Junho desse mesmo ano, e a incerteza em torno
do resultado do referendo francês, que prevaleceu até ao fim, alimentavam
uma furiosa especulação dos mercados cambiais contra as moedas europeias.
A libra caíra a 16 de Setembro, numa célebre «quarta-feira negra», forçando o
governo de Margaret Thatcher a retirá-la do MTC. A lira e a peseta seguiram
o mesmo destino. Em Washington, os chefes dos bancos centrais da França e
da República Federal e os respectivos ministros das Finanças, que participa-
vam na conferência anual do FMI, não se entendiam. Ou melhor, o lado ale-
mão recusava-se a agir para salvar o franco da débacle. Os mercados continua-
vam a vender furiosamente a moeda francesa e a comprar a moeda alemã.
Como se a Europa não tivesse decidido há menos de um ano lançar o grande
projecto da moeda única. Desta vez, com data marcada: o mais tardar no dia
1 de Janeiro de 1999.
O Presidente francês foi directo ao assunto: a França está na iminência de
ter de sair do MTC e desvalorizar a sua moeda. «A especulação é desenfreada
(…). Tenho consciência da independência do Bundesbank, mas o que é que
eles querem? Ficar sozinhos no meio de um campo de ruínas? Porque será
um campo de ruínas!» Kohl garantiu-lhe que não estava a par da gravidade
da situação, referiu-lhe o problema da estrita independência do Banco Cen-
tral alemão, mas disse-lhe que ia fazer imediatamente uns telefonemas para
Washington. «Eles tinham-me dito que a situação não era assim tão grave.»
30 Europa Trágica e Magnífica

Mitterrand retorquiu: «Apenas uma vontade política implacável pode pôr ter-
mo à especulação.»
A vontade do chanceler da Alemanha foi suficiente para levar o Bundesbank
a comprar maciçamente francos e a descer a sua taxa de juro. O braço-de-ferro
com os mercados durou quase um ano. A política venceu. A contagem decres-
cente para o euro atravessou outras tormentas mas nunca se afastou do cami-
nho. Foi o resultado da vontade política de dois estadistas. Está aí a sua força,
mas também parte das suas fraquezas.
Em 1989, ano em que o Muro de Berlim caiu e a Europa se confrontou com a
inevitabilidade da unificação alemã, a união monetária já era uma velha ideia.
Remonta à década de 1970 e ao célebre Relatório Werner (o nome do primei-
ro-ministro luxemburguês, Pierre Werner, que coordenou a sua elaboração),
encomendado pelos líderes de uma comunidade ainda a seis que, pela primei-
ra vez, decidiram fixar o objectivo de uma união monetária. Mas a ideia de
«desnacionalizar» um símbolo de soberania tão forte como a moeda ainda não
era politicamente viável. Sobretudo para a Alemanha Ocidental, que fizera do
marco o símbolo possível do seu orgulho nacional. Em vez disso, e por inicia-
tiva franco-alemã, a Comunidade decidiu criar em 1979 o Sistema Monetário
Europeu, assente na paridade fixa das moedas europeias.
Com o objectivo do Mercado Único fixado pelo Acto Único Europeu de 1986,
a ideia regressou à agenda europeia. Tratava-se ainda de levar a lógica do mer-
cado único até ao fim, eliminando as barreiras cambiais e explorando todo
o seu potencial. Em Junho de 1988, num Conselho Europeu em Hanôver, os
líderes decidiram relançar o projecto da UEM, encomendando ao presidente
da Comissão, Jaques Delors, um estudo pormenorizado sobre a sua realização.
O Relatório Delors já previa as grandes etapas e os principais critérios que de-
veriam levar à união monetária. Ficaria pronto em Abril de 1989.

A aceleração da História
Tudo mudou quando, no dia 9 de Novembro de 1989, o Muro caiu e o mundo
assistiu a essa «súbita aceleração da História», nas palavras de Jacques Delors
perante o Parlamento Europeu, que haveria de mudar a face política da Euro-
pa e abalar os fundamentos da integração europeia. A perspectiva da unifica-
ção alemã começou por ser recebida em França como um regresso da História
em forma de pesadelo. O instinto de Mitterrand, que vivera a Segunda Guerra
Mundial e conhecia a História, foi de rejeição. A reacção de Margaret Thatcher
foi ainda mais vigorosa. «Derrotámos os alemães por duas vezes e agora eles
voltaram.» Poucas semanas antes da queda do Muro, quando as manifestações
se sucediam nas praças de Leipzig e de Berlim Oriental, visitou Mikhail Gor-
batchov para lhe garantir que a Alemanha nunca se reunificaria. O Presidente
soviético estava de acordo.
A diferença entre o líder francês e a primeira-ministra britânica foi que, para
o primeiro, a Europa teria de continuar a ser a resposta a este súbito «regresso
Histórias da História recente: pequenos retratos avulso 31

ao passado». Quando, a 28 de Novembro, Helmut Kohl anunciou o seu plano


em dez pontos para a unificação sem ter informado Paris, o Presidente francês
percebeu que o processo seria imparável. Elaborou a sua estratégia: encontrar
uma forma de ligar a unificação da Alemanha à renovação irreversível do com-
promisso alemão com a unificação europeia. Thatcher pensava o contrário.
Não acreditava na Europa. Escreveu na altura que «os problemas não seriam
resolvidos reforçando a Comunidade». «As ambições alemãs tornar-se-iam no
factor dominante.» Acabou por ficar sozinha.
Mitterrand e Kohl negociaram o acordo político que o Tratado de Maastricht
haveria de consagrar dois anos mais tarde. Dito de forma simples: o marco ale-
mão em troca da unificação. Não haveria prova mais sólida do compromisso
da Alemanha com a integração europeia.
Kohl ofereceu o bem-amado marco. Mas foi a Alemanha que impôs as con-
dições de funcionamento da união monetária. O BCE seria tão independente
como o Bundesbank. Os critérios de convergência tão duros como a ortodoxia
monetária alemã. O euro seria construído à imagem e semelhança do marco.
Em Dezembro de 1989, o Conselho Europeu de Estrasburgo subscrevia este
acordo anunciando uma conferência intergovernamental (CIG) para reformar
os tratados que incluiria as disposições necessárias a uma união monetária,
retomando o Relatório Delors. A CIG teve início oficial em Dezembro de 1990,
durante uma cimeira em Roma. Na mesma altura, os líderes europeus deci-
diam organizar uma segunda conferência para preparar a união política euro-
peia. Era de novo uma iniciativa conjunta de Kohl e Mitterrand, expressa numa
carta à presidência irlandesa da Comunidade em Abril de 1990. «Acreditamos
que chegou o momento de transformar as relações entre os Estados-membros
numa União Europeia.»
A 9 e 10 de Dezembro de 1991, no termo de um ano de negociações intensas,
os líderes europeus reunidos na cidade holandesa de Maastricht aprovavam
o Tratado da União Europeia. Houve cedências a Londres, que garantiu para
si o direito a ficar de fora da união monetária. O pilar político da nova União
ficou muito aquém das ambições iniciais, sobretudo da Alemanha e dos países
do Benelux. Mas as bases da moeda única europeia estavam lançadas. Vítor
Constâncio, hoje vice-presidente do BCE, chamou na altura ao resultado «uma
decepção com futuro». Os europeístas mais convictos acreditavam que a inte-
gração monetária acabaria por trazer a inevitável integração política.

Obra «imperfeita»?
Em Setembro de 2010, a académica americana Mary Elise Sarotte publicava na
revista americana Foreign Affairs um longo ensaio sobre a crise do euro «en-
quanto legado histórico». Começava com uma citação do antigo secretário de
Estado americano James Baker: «Quase todas as grandes realizações contêm
no seu êxito as sementes de problemas futuros.» O euro «fornece um exemplo
impressionante deste fenómeno». A sua tese está hoje muito difundida entre
32 Europa Trágica e Magnífica

os analistas europeus: a crise do euro pôs em evidência as imperfeições do


Tratado de Maastricht sobre a União Económica e Monetária. Em primeiro lu-
gar, porque o Tratado não continha os mecanismos suficientes para fazer face
a uma crise. «Havia excessiva confiança na omnipotência e na omnisciência
dos mercados financeiros.» Além disso, escreve ainda Sarotte, «as esperanças
de que os critérios [de convergência macroeconómica] de Maastricht podiam
governar, por si sós, uma área monetária comum em vez de um efectivo gover-
no económico, provaram ser falsas».
Na altura as coisas não eram tão claras. A insuspeita Economist, que nunca
foi grande adepta da UEM, escrevia na véspera do nascimento do euro, a 1 de
Janeiro de 1999: «A união monetária europeia não está destinada a ter sucesso
nem condenada a falhar. A combinação entre liderança, circunstâncias e sorte
ditará o seu destino.»
O que é extraordinário, escreve ainda a académica americana, é «como estes
dois homens [Mitterrand e Kohl] decidiram um dos maiores feitos da história
da moeda». «Nenhum tinha conhecimentos ou até interesse pelas questões
económicas e monetárias, a não ser sobre o seu impacte político.»
A questão é que na altura isso não era o mais importante. Uma imperfeição
pode sempre corrigir-se. A unificação da Alemanha noutros termos que não o
aprofundamento da União Europeia teria sido, se não impossível, pelo menos
muito mais traumática. A política esteve sempre no posto de comando. Agora
estão os mercados.
Histórias da História recente: pequenos retratos avulso 33

BERLIM,
ALEXANDERPLATZ
10-11-2009

Dos acontecimentos extraordinários que abalaram o mundo há vinte anos, há


um momento que retive na memória para sempre. A chuva brilhante de moe-
das quase sem peso lançadas por uma multidão eufórica contra o céu azul-es-
curo de uma noite cálida de Berlim. Eram zero horas de 1 de Julho de 1990 — a
noite em que a RDA avançou quarenta anos no tempo. Na gigantesca e ainda
desencantada Alexanderplatz, as sucursais dos grandes bancos alemães — os da
RFA, entenda-se — abriam as suas portas para receberem os milhares de cida-
dãos da RDA a quem era oferecida a oportunidade miraculosa de trocarem os
seus marcos sem qualquer valor pelo poderoso símbolo da prosperidade oci-
dental na paridade de um para um. O momento zero da unificação económica.
Em Checkpoint Charlie havia ainda dois países. Mas os soldados que olhavam
para os passaportes já tinham perdido qualquer capacidade de intimidação.
Era o seu último dia ao serviço. A cerveja corria. Um cartaz gigantesco dizia:
«O governo da RDA anuncia a entrada na economia social de mercado»...

As pessoas já sabiam que em breve seriam todas cidadãs da mesma Alema-


nha. Só eu ainda vivia o drama dos dois países. Eu, entre os jornalistas das
grandes cadeias e dos grandes jornais americanos e europeus. Eu, desprovida
de um telemóvel do tamanho de um tijolo que quase todos eles exibiam, na
busca desesperada de qualquer coisa que se assemelhasse a um telefone e me
permitisse ditar a reportagem para Lisboa. Voltei a saber que estava do lado
«errado» de Berlim. Cabinas? Nenhuma funcionava. Cafés? Hotéis? Telefonar?
Não, isso não é possível. Tem de ir ao outro lado. A minha mente ocidental
não tinha sido capaz de prever o problema. Fui salva por um velho Wartburg
verde-alface, cujo taxista me deixou à porta do primeiro café ocidental que
encontrámos. Posso telefonar para Lisboa? Faz favor.
Não era só a triste mediocridade da privação e da monotonia — o paraíso so-
cialismo sem telefones. Era o império do absurdo que mais perturbava. Havia
um restaurante chamado Ópera numa esquina da Unter den Linden onde nos
disseram que se podia almoçar razoavelmente. Fila à porta. Meia hora de espe-
ra. «É obrigatório deixar os casacos ali.» Subir as escadas. Entrar numa enorme
sala de jantar igual à de qualquer filme de espiões dos anos 50 onde apenas
três mesas — haveria umas trinta — estavam ocupadas. Porquê a espera? Por-
que sim. Era assim que se dobravam os espíritos. Meticulosamente. Através de
actos cuja racionalidade discutível não era permitido discutir. Passaram anos.
34 Europa Trágica e Magnífica

Muitos. A liberdade é hoje dada como garantida de Tallin a Lisboa. Como é que
alguém ainda se pode lembrar disto?
Aprendi outra lição nesses dias fantásticos de Berlim. Que há uma categoria
rara de políticos que compreendem o sentido dos acontecimentos e têm a cora-
gem de fazer as escolhas a que toda a gente se opõe. Um marco ocidental por um
oriental? Os tecnocratas demonstraram a irracionalidade da decisão. Os intelec-
tuais rejeitam a sua simplicidade linear. Os economistas previram a ruína. Hel-
mut Kohl preferiu ouvir o que lhe diziam os cidadãos da RDA, a quem a queda
do Muro abrira todas as esperanças. «Se o marco não vier até nós, iremos nós ter
com ele.» Achei nessa altura que o chanceler tinha razão. Não por uma especial
presciência, mas porque Willy Brandt estava do seu lado. Como esteve quase
sempre. Contra o seu próprio partido, que se opunha à reunificação económica,
argumentando com os custos elevados que traria (como trouxe) à economia da
RFA. A unificação da Alemanha contra a prosperidade intocável dos cidadãos da
sua metade rica. O SPD só recuperaria do seu erro histórico dez anos mais tarde.
A história da queda do Muro que acabámos de celebrar é a história emocio-
nante das pessoas comuns que estão fartas de aceitar a tirania e a estupidez.
Mas é também, como lembrava o historiador britânico Timothy Garton Ash, a
prova incontestável da importância dos indivíduos para decidir o seu curso.
Na segunda-feira, olhando para as celebrações em Berlim, houve uma ima-
gem que sobressaiu de todas as outras. Angela Merkel a passear pelas ruas
chuvosas ladeada por dois homens cujas escolhas corajosas foram determi-
nantes para que a História não se fizesse em tragédia mas em alegria. Mikhail
Gorbatchov e Lech Walesa. Com todos os seus defeitos, os seus enganos e as
suas ilusões, o que os distinguiu dos outros foi que tiveram a coragem de tomar
decisões que a maioria considerava loucas ou impossíveis.
Voltei muitas vezes a Berlim nos últimos vinte anos. Tive de beliscar-me para
acreditar na velocidade das transformações que a cidade sofreu. Nunca mais
tive um problema com os telefones.
Compreendo a nostalgia do passado. Quando o presente frustra as nossas ex-
pectativas é quase irresistível idealizarmos o tempo que passou. Ouço as pessoas
falarem do sentimento de entreajuda e de comunidade que havia quando a vida
era penosa e triste do lado de lá da cortina de ferro. Um dia, em Agosto de 1991,
quando estava em Moscovo para cobrir o golpe comunista que tentou travar o
curso imparável dos acontecimentos, fui jantar a casa de um casal de académicos
russos, dispostos a compartilhar comigo os momentos que estavam a viver. Mora-
vam numa daquelas torres cinzentas e degradas num bairro triste dos arredores
de Moscovo. Naquela altura faltava tudo — o que nunca houvera e o que já hou-
vera — e a minha anfitriã tinha mobilizado a vizinhança para me fazer um bolo.
Ovos no terceiro andar, farinha no quinto, iogurte um pouco acima. Pode ter-se
saudades deste espírito altruísta e solidário que, de resto, anima todas as mudan-
ças libertadoras. Mas a verdade é que aquele bolo só existiu porque já havia liber-
dade. Antes, receber um estrangeiro em casa, com bolo ou sem bolo, era crime.
Histórias da História recente: pequenos retratos avulso 35

OS «TRÊS GRANDES»
E A HISTÓRIA
08-04-2008

No espaço de uma semana, quem porventura estivesse interessado em per-


ceber melhor como as coisas funcionam na União Europeia, como a História
muitas vezes as determina e como é preciso ter consciência disso para conse-
guir superá-la, teria tido duas excelentes oportunidades para o fazer.
A primeira, na semana passada, foi a conferência de Stephen Wall, antigo
embaixador britânico em Lisboa, proferida no gabinete da Comissão em Por-
tugal e propiciada pelo actual embaixador Alexander Ellis. Sir Stephen Wall,
um dos mais respeitados diplomatas britânicos, veio falar das relações entre
o seu país e a Europa, aliás o tema que hoje investiga para o Foreign Office
depois de uma carreira que o colocou não apenas como embaixador do Rei-
no Unido em Bruxelas mas como conselheiro «europeu» de James Callaghan,
John Major e, finalmente, de Tony Blair.
Sabe do que fala e é um europeísta convicto (há muitos no seu país, apesar
de tudo). O que nos disse, mesmo para aqueles que pensam já ter compre-
endido o essencial sobre as atribuladas relações entre o continente e as Ilhas
Britânicas, foi de enorme interesse para compreender por onde andamos nos
dias que correm.
Duas coisas vale a pena reter. Quando, no início da década de 1960, o Reino
Unido percebeu finalmente que o seu destino era ser «uma potência europeia»
e se candidatou à adesão à Comunidade Económica Europeia para ver a sua
candidatura vetada liminarmente por Charles de Gaulle, os dois grandes parti-
dos britânicos eram maioritariamente pró-europeus, como a generalidade da
opinião pública e da imprensa. A profunda humilhação sentida pela rudeza
do veto, que se manteve como uma ameaça durante os dez anos que De Gaul-
le esteve no poder depois do seu regresso em 1958, alimentou e, porventura,
alimenta a desconfiança que hoje continua a dominar a opinião pública britâ-
nica. Também ajudou a empurrar os britânicos para mais próximo dos EUA.
E é fácil de perceber porquê.
Quem se deu ao trabalho de ler a imprensa britânica durante os dois dias da
visita de Nicolas Sarkozy a Londres no final de Março, verificou que vários co-
mentadores mencionavam o facto de ter sido o primeiro chefe de Estado fran-
cês a agradecer de forma humilde e veemente (no seu discurso de Westmins-
ter) as vidas britânicas que se perderam para libertar a França. O que também
alguns ainda lembravam é que a paga que o Reino Unido teve da França foi,
precisamente, o veto de De Gaulle. A História, sobretudo a deste terrível século
36 Europa Trágica e Magnífica

XX europeu em que os britânicos estiveram sempre do lado certo, não se apaga


facilmente.

De Gaulle tinha a sua própria ideia da Europa, diferente da dos seus cinco
parceiros da altura e curiosamente muito mais próxima do que se conven-
cionou ser a visão britânica da integração. A sua era a «Europa das Pátrias»,
oposta à visão supranacional dos fundadores, incluindo os franceses, de uma
Comunidade construída como uma «extensão da França» e ao serviço da
grandeza da França. Daqui nasceu um equívoco. «Gostávamos da concepção
gaullista da Europa das Pátrias, não gostávamos da sua concepção da Europa
antiamericana.» Boa parte da ambivalência britânica em relação à Europa nas-
ce também daqui.
Os velhos hábitos custam a morrer. Ainda hoje a França se debate por vezes
com este sentimento de incomodidade face a uma Europa que deixou de ser à
sua imagem e semelhança, porque se alargou à dimensão do continente e por-
que passou a integrar uma Alemanha reunificada e plenamente soberana.
A ambivalência britânica permanece. Nas elites ou na opinião pública. Com
uma agravante. A imprensa tablóide e a conservadora transformaram o trau-
ma numa mistura de nacionalismo anacrónico e de antieuropeísmo militante
que contrasta vivamente com um país aberto ao mundo e aos outros, descom-
plexado e seguro de si que, apesar de tudo, Tony Blair deixou como herança.
Um problema que os políticos, sejam eles trabalhistas ou conservadores,
ainda não conseguiram resolver.

A segunda conferência, já esta semana, trouxe a Lisboa um dos maiores his-


toriadores da relação franco-alemã, Alfred Grosser. Cidadão francês, nascido
em Frankfurt para fugir em 1934 à ascensão do nazismo, nome incontornável
para quem quiser compreender o processo de unificação alemã e as relações
entre os dois países sobre cuja reconciliação se construiu a Europa, Alfred
Grosser aconselhou quase todos os Presidentes franceses e os chanceleres ale-
mães do pós-guerra. Veio falar precisamente das relações entre os dois países
no quadro da construção europeia, das suas origens quando a guerra ainda
devastava a Europa, da sua evolução até aos dias de hoje. No fundo, de como a
história de cada um deles determina as respectivas idiossincrasias europeias.
Grosser começou por lembrar que a Europa é uma construção «moral»
antes de ser económica, como temos tendência para pensar. E como há uma
«moral» que deve ser preservada se queremos que ela continue a viver. A mo-
ral da reconciliação e da superação das identidades nacionais, a capacidade
de entender o outro, o dever de entender que a Europa, que começou a seis,
cresceu por via da «extensão da liberdade». A Portugal como à metade Leste
da Alemanha, como aos outros países que se libertaram do jugo comunista.
O que nos reconduz à questão dos valores comuns europeus (que partilha-
mos com a América, com ou sem Guantánamo, o que convém também nunca
Histórias da História recente: pequenos retratos avulso 37

esquecer). «O olhar comum sobre o homem que sofre», de crentes e de não


crentes. «O direito de falar dos crimes dos outros e o dever de falar dos seus
próprios crimes.» A capacidade de nos libertarmos da nossa condição de fran-
ceses ou de alemães ou de portugueses para abraçarmos a condição dos ou-
tros. Hoje, a nossa capacidade para integrar os que vêm de fora.
A dada altura, quando estabeleceu a diferença entre a RFA e a França, lem-
brando que a República Federal não nasceu sobre uma ideia (proibida) de
nação mas sobre uma «ética política», percebemos porque é que a Alema-
nha consegue aceitar mais facilmente que os outros grandes países a ideia de
identidade europeia e de interesse europeu. E como duas nações tão distintas
conseguem encontrar, muitas vezes contra a sua própria «natureza», o terreno
comum europeu.
Não havia duas pessoas mais diferentes do que Kohl e Mitterrand. Isso não
os impediu de fazerem o que fizeram pela Europa.
Conclusão? Se é possível uma, sobre a relação entre os três grandes, foi o
próprio Grosser quem a tirou quando lembrou que já lá vai o tempo em que,
quando Paris ia a Moscovo, isso enervava Berlim, ou vice-versa. Hoje, Sarko
pode ir a Londres que isso apenas pode ser bom.
38 Europa Trágica e Magnífica

CAPÍTULO III

A POTÊNCIA
RELUTANTE

REUTERS/Laurent Dubrule
A potência relutante 39

AS
INTERPRETAÇÕES
DE MERKEL

AINDA ALGUÉM
SE ATREVE A
SUBESTIMÁ-LA?
04-12-2007

Há um mês, a Newsweek dedicava-lhe a capa. A preto e branco, uma Angela


Merkel cabisbaixa sublinhava a ideia de que a chanceler se tinha perdido no
labirinto das reformas económicas e sociais e nos constrangimentos impostos
pela «grande coligação» que fora obrigada a formar há dois anos com o SPD.
A revista americana interrogava-se mesmo sobre se ela alguma vez tivera uma
agenda reformista.
Muitas pessoas subestimaram-na quando era apenas a «rapariga» que viera
do Leste e que o antigo chanceler Helmut Kohl apadrinhara e catapultara para
a ribalta política. Quando formou governo, depois de eleições antecipadas em
que a vitória democrata-cristã ficou tão além das expectativas que foi obrigada
a coligar-se com os sociais-democratas, poucos acreditavam, na Alemanha e
na Europa, que a mulher loura e discreta com dificuldade em electrizar um
comício ou fazer uma prestação indiscutível na televisão, conseguisse ir muito
longe. Muito pouco tempo depois, era incensada na Europa como uma verda-
deira salvadora e elevada ao cume das sondagens pela opinião pública alemã.
Na Europa, sabe-se o que fez. Resolveu a questão do orçamento, retirou a
União do estado comatoso em que a deixara a crise constitucional, negociou
o novo tratado, abrindo as portas para o acordo de Lisboa, recolocou a Alema-
nha no centro da integração europeia. Muita gente escreveu que foi a melhor
coisa que aconteceu à Europa nos últimos tempos.
George W. Bush abriu-lhe as portas da Casa Branca com passadeira verme-
lha quando percebeu que tencionava restaurar uma relação que foi central
40 Europa Trágica e Magnífica

para a política externa alemã desde o pós-guerra mas que Gerhard Schröder
pusera dramaticamente em causa com a «normalização» alemã e a aliança
com Jacques Chirac e Vladimir Putin contra a guerra no Iraque. Distanciou-se
da Rússia o suficiente para repor alguma decência em Berlim face à deriva au-
toritária do Kremlin. Recolocou os direitos humanos na agenda externa alemã
e na agenda europeia.
Tudo isto sem nunca abandonar o sorriso meio tímido, a discrição e a suavi-
dade. Afinal, uma armadilha que esconde uma determinação de ferro e, como
hoje muitas pessoas reconhecem, uma grande habilidade política.

Então porquê a capa da Newsweek?


No mês passado, assinalando o meio do seu mandato, a imprensa alemã re-
conheceu-lhe os méritos mas preveniu que as maiores dificuldades internas
começam agora. Poucos dias antes, a viragem à esquerda do SPD no Congresso
de Hamburgo acelerara a demissão do vice-chanceler e ministro do Trabalho,
Franz Müntefering, fazendo abalar a coligação. Müntefering, que negociara
com Merkel a «grande coligação» em 2005, representava a ponte com as refor-
mas levadas a cabo pelo antigo chanceler Gerhard Schröder que, para muitos
economistas, explicam em boa parte o boom económico e a redução do de-
semprego cujos frutos políticos a chanceler se limitou a colher.
Mas os sociais-democratas estão a ficar nervosos com as perdas eleitorais
que as sondagens lhes prognosticam. Espartilhados entre a enorme popula-
ridade da chanceler e a subida do novo partido «Esquerda», uma conspícua
aliança entre o antigo líder social-democrata Oskar Lafontaine e o que sobrou
dos comunistas da Alemanha de Leste, acharam que o melhor caminho não
seria o lógico. Em vez de reivindicarem os méritos das reformas do seu próprio
governo, resolveram fazer tábua rasa com o passado e regressar às velhas polí-
ticas da «justiça social» à moda antiga.
É difícil imaginar como é que, a partir daqui, a coligação pode funcionar,
quanto mais levar a cabo uma agenda reformista.
Como é que Merkel responde à situação? Com as duas palavras inscritas no
fundo do palco do Congresso da CDU, em Hanôver: «Die Mitte.» O centro. Ou
seja, que a campanha eleitoral para 2009 (se não for antes) já começou. «Nós,
e só nós, estamos no centro», palavras da chanceler. «Com a força que emana
do centro, ao qual o SPD renunciou.»
Quer tudo isto dizer que a chanceler, como escrevia a Newsweek, não tem
qualquer agenda reformista? Quer dizer apenas que Angela Merkel é pragmá-
tica, sabe adaptar-se às circunstâncias e sabe esperar.
Apresentou-se na campanha eleitoral para as eleições de 2005 com um
discurso liberal que cortava com a velha tradição social-cristã do seu partido,
prometendo reformas radicais, pelo menos para os padrões alemães, a que
muitos, até dentro do seu próprio partido, responsabilizaram pela escassa vi-
tória eleitoral da CDU. Nessa altura era olhada como a candidata a «Thatcher»
A potência relutante 41

alemã. Do mesmo modo, aliás, que Schröder, com o seu «novo centro», fora
apelidado de «Blair» na campanha eleitoral que lhe deu a primeira vitória em
1998. Tudo isto é, naturalmente, relativo. A Alemanha não é o Reino Unido,
com a sua tradição de liberalismo económico e de flexibilidade social, como
não é a França, onde as reformas se fazem ou morrem na rua. O consenso
entre partidos, sindicatos e empresários foi a fórmula que permitiu à Repúbli-
ca Federal vencer os traumas do pós-guerra e transformar-se de novo numa
poderosa economia. Qualquer agenda reformista tem de levar em conta esta
realidade se quer ter algum sucesso.
Merkel aprendeu que é esse o caminho. Como ainda não desistiu da «coliga-
ção» que prefere, com os liberais do FDP, e que pode levar para a frente uma
agenda mais ambiciosa. Até lá, só tem de continuar a empunhar as bandeiras
que retirou à esquerda, como o ambiente e os direitos humanos, esperar que
as reformas que já foram feitas permitam que a economia continue a crescer
(a taxa de emprego acaba de atingir o valor mais alto desde o pós-guerra) e
que o SPD continue a afastar-se do centro. E, naturalmente, a brilhar na cena
internacional, provando que não tem medo de levar por diante as suas convic-
ções, deixando ao novo vice-chanceler e chefe da diplomacia de Berlim, Frank-
-Walter Steinmeier, o papel pouco feliz de amigo do líder russo e do chinês.
Já ninguém se atreve a subestimá-la. A não ser, talvez, o SPD. Um erro que
pode acabar por lhe ser fatal.
42 Europa Trágica e Magnífica

O QUE QUER
A ALEMANHA
DA EUROPA?
16-03-2010

Numa entrevista ao Financial Times de segunda-feira passada, a ministra das Fi-


nanças francesa disse em voz alta aquilo que muitas pessoas andavam a escre-
ver nos jornais ou a dizer em voz baixa: que a Alemanha tinha de fazer alguma
coisa pela recuperação económica dos seus parceiros europeus, além de lhes
impor a disciplina financeira exigida na criação da moeda única. Bastava-lhe
consumir um pouco mais para que os outros exportassem também um pouco
mais. Christine Lagarde lembrava ainda que a Europa não é apenas uma união
monetária, é também uma comunidade que partilha um destino comum.
Martin Wolf já tinha colocado as coisas no mesmo pé. Sem os cuidados polí-
ticos da ministra francesa, o colunista do Financial Times lembrara oportuna-
mente que «os alemães pensam, erradamente, que a solução [para a crise do
euro] consistiria em que cada membro da zona euro se parecesse mais com
eles». Ora, prossegue o analista, «a Alemanha só pode ser Alemanha — uma
economia que mantém a disciplina orçamental, fraca procura interna e um
excedente externo enorme — apenas porque os outros não são». A sua ideia é
simples: se países com grandes poupanças começassem a consumir, poderiam
ajudar os grandes gastadores a reduzir as suas despesas e começar a viver den-
tro das suas posses sem condenar a Europa a anos de estagnação. Tal como
existe hoje, este desequilíbrio não é sustentável e, em última análise, acabará
por prejudicar a própria Alemanha, que vende metade das suas exportações
na zona euro e não ganhará grande coisa em termos estritamente económicos
(mas também em termos políticos) com uma economia europeia sem capaci-
dade de crescimento.
A França, naturalmente, pensa que esta crise mundial somada à crise do
euro é a oportunidade para que a União possa fazer duas coisas: criar as bases
de um «governo económico europeu», capaz de harmonizar melhor as políti-
cas orçamentais dos Estados-membros e coordenar melhor as suas políticas
económicas; rever os objectivos do Banco Central Europeu, hoje fixados es-
tritamente no controlo da inflação, de tal forma que levem em consideração
o crescimento.
São duas visões em confronto (e que sempre estiveram em confronto) entre
Paris e Berlim que a crise volta a colocar na agenda europeia. Só que desta vez
em termos muito mais dramáticos.
A potência relutante 43

Esta é a questão económica. Mas há a questão política. Que Europa é esta


em que apenas um país dita as regras do jogo económico, de acordo com o seu
interesse próprio, como se a Europa fosse um somatório de rivalidades em que
manda quem pode?
Não se trata de desculpar os gregos, que tiveram uma política irresponsável
e, ainda por cima, traíram a confiança europeia com um inadmissível excesso
de «criatividade» das suas contas públicas. Nem sequer de beneficiar os «in-
fractores» do Sul que não cuidaram devidamente das suas economias. Trata-se
de perceber que a Europa é um «destino comum», como disse Largarde, em
que as realidades e os interesses dos seus membros devem contar de forma
equilibrada para que todas as pessoas possam ganhar alguma coisa.
A Europa sofreu uma duríssima recessão no início da década de 1990, pro-
vocada pelos custos brutais da unificação alemã. Nessa altura ninguém se
queixou de estar a pagar demasiado caro um desígnio político alemão que a
Europa tomou como seu. A Alemanha pagou esse sacrifício aceitando o com-
promisso da moeda única, mas impôs à Europa as regras do Bundesbank.
Durante a caminhada para a materialização da união monetária todos assis-
timos ao debate, por vezes feio de ser ver, entre os países ricos do Norte e os
menos ricos do Sul sobre quem tinha o direito de entrar no euro na primeira
leva. No fim, o que contou foram os critérios definidos em Maastricht. As re-
gras prevaleceram sobre os estados de espírito dos seus membros. A Alema-
nha de Kohl teve um comportamento exemplar.
Mas isso não eliminou as diferenças entre as economias europeias. Há umas
mais ricas e outras mais pobres, como há algumas que levaram mais a sério as
reformas estruturais que era preciso fazer e outras que não foram suficiente-
mente longe. A crise económica global veio de novo pôr em evidência estas
disparidades. E revelou também que, se houve convergência macroeconómi-
ca, não houve a convergência real que seria conveniente para a zona euro fun-
cionar de forma mais equilibrada.

É esse o problema com que hoje nos confrontamos e que devemos enfrentar
em conjunto. Por isso, Lagarde teve razão em colocar a questão alemã. Por
isso, é preocupante a forma como a Alemanha está a reagir a esta primeira
crise do euro. O que o seu ministro das Finanças, Wolfgang Schäuble, propõe
é um Fundo Monetário Europeu que até poderia ser uma boa ideia se não fos-
se mais do mesmo: penalizar fortemente os incumpridores retirando-lhes o
direito de voto no Conselho, o acesso aos fundos ou prevendo, no limite, a sua
expulsão da zona euro e ignorando qualquer ideia de coordenação económica
que facilitasse a convergência real das economias.
O que querem os alemães? Wolfgang Münchau escrevia no Financial Times
de segunda-feira passada que só lhe parecia haver dois caminhos para sair des-
ta confusão: o primeiro é avançar a 16 para mais integração política e económi-
ca, e segundo é que uma união monetária apenas assente em regras (do PEC)
44 Europa Trágica e Magnífica

só é possível entre um grupo de países similares quanto ao desenvolvimento


económico e atitudes políticas face à economia. «Só um número pequeno de
países está em condições de manter uma união monetária com a Alemanha,
política e economicamente.» Münchau pensa que o establishment conservador
em Berlim gostaria desta última alternativa. Mas avisa de que deve ter cuidado
com o que deseja, não vá o desejo transformar-se em realidade.
A Alemanha só ganha força se for o coração de uma Europa unida, coesa
e capaz de crescer económica e politicamente. Isso não se consegue alimen-
tando divisões que rondam por vezes a «xenofobia» nas respectivas opiniões
públicas (a ideia dos PIG não anda muito longe disso). Se os alemães se conven-
cerem de que não precisam da Europa nem querem pagar um tostão por ela,
então estaremos todos muito mal.
Resta-nos acreditar que os bons instintos de Merkel prevalecerão.
A potência relutante 45

A RELEVÂNCIA
EUROPEIA E O RUMO
SOLITÁRIO DA
ALEMANHA
21-03-2011

De uma coisa não restam grandes dúvidas: a França e o Reino Unido conse-
guiram restaurar a relevância da Europa na cena internacional. Coube-lhes
a condução política do processo que permitiu ao Conselho de Segurança da
ONU deliberar de forma determinada e a tempo de impedir um massacre na
Líbia. Cabe-lhes a primeira responsabilidade da condução das operações mi-
litares, mesmo que a participação americana seja crucial nesta fase inicial da
missão. Caber-lhes-á a liderança política de uma missão que comporta riscos
e dificuldades, cujo êxito está longe de ser garantido mas que se tornou indis-
pensável para impedir que um novo «muro do medo» se erguesse no meio das
revoluções democráticas do mundo árabe.
«A França, com a Grã-Bretanha e o apoio mais distante dos EUA, está a cor-
rer um risco inegável», escrevia ontem o analista francês Dominique Moisi.
«Mas é um risco que vale a pena. O custo da não intervenção, de permitir a
Khadafi esmagar o seu próprio povo e, dessa forma, mostrar que uma cam-
panha de terror doméstico é aceitável, seria muito mais ameaçador.» Paris e
Londres acabam de provar que o tratado militar que recentemente assinaram
tinha um real significado europeu.
O fácil entendimento entre a França e o Reino Unido deve-se, em boa medi-
da, à decisão de Nicolas Sarkozy de reaproximar a França dos Estados Unidos.
Essa aproximação foi fundamental para dissipar desconfianças mútuas sobre
qual deve ser o papel da Europa no mundo, permitindo, ao mesmo tempo, ao
Presidente americano confiar na capacidade europeia de liderar a resposta a
uma crise que os EUA consideram da sua responsabilidade. Estas são as boas
notícias sobre a crise líbia e o papel da Europa.

Agora, as más. Ontem, em duas reuniões cruciais da União Europeia e da


NATO, as divisões europeias e a sua incapacidade de agir como um actor es-
tratégico voltaram abruptamente ao de cima. A França e (em boa medida) os
Estados Unidos têm razão ao quererem evitar que o comando da operação mi-
litar na Líbia seja entregue à NATO. Isso dificultaria o apoio árabe e daria a uma
intervenção feita em nome das Nações Unidas um carácter demasiado ociden-
46 Europa Trágica e Magnífica

tal. Seria mais fácil que fosse a União Europeia a assumir o comando (mesmo
que tomando de empréstimo os meios da NATO), garantindo o quadro multi-
lateral que muitos aliados exigem. A desunião europeia impede uma solução
deste tipo, arriscando-se a pôr de novo em evidência a sua eterna irrelevância.
A primeira responsabilidade cabe, naturalmente, à Alemanha. A mesma Ale-
manha que reivindica na Europa o estatuto de «país normal» e que se acha
com direito a um assento permanente no Conselho de Segurança, escolheu
esse mesmo Conselho de Segurança para se dissociar dos seus aliados euro-
peus e votar ao lado da China e da Rússia, dois membros permanentes que não
se incluem entre as democracias, e de duas grandes democracias emergentes
— a Índia e o Brasil. O chefe da diplomacia alemã não se cansa de falar dos
«riscos» da missão na Líbia sem, todavia, acrescentar uma palavra convincente
sobre as consequências da não intervenção. Ontem foi a Bruxelas exibir a sua
posição perante as primeiras dificuldades da coligação. Tratava-se de uma de-
cisão política da maior importância para a Europa, face à qual a Alemanha não
hesitou em seguir o seu caminho solitário. Sem um entendimento entre Paris,
Londres e Berlim, nem vale a pena pensar num entendimento europeu.
Curiosamente, a Alemanha tende a comportar-se na cena internacional
como uma «potência emergente» e não como uma potência ocidental que é
membro da União e da NATO. Como o Brasil, reivindica o seu enorme poder
económico para exigir um lugar de primeiro plano no G20 ou na ONU. Como o
Brasil, não quer assumir as responsabilidades inerentes. Compreende-se que
o Brasil (como a Índia ou a Turquia) queira afirmar-se perante aquilo que res-
sente como a hegemonia ocidental. É difícil de entender que a Alemanha se
comporte da mesma maneira.
O problema, escrevia Nick Witney do European Council on Foreign Rela-
tions, é que «desta vez, se o Ocidente falhar na Líbia, isso será em primeiro
lugar um fracasso da Europa».
A potência relutante 47

A CHANCELER
QUE TEMOS E A
QUE GOSTARÍAMOS
DE TER
24-06-2011

Mais um Conselho Europeu sobre a crise da dívida soberana. Mais uma de-
claração garantindo que tudo será feito para manter a «estabilidade do euro».
Mais uma promessa de um segundo pacote de ajuda financeira à Grécia com
o indispensável «ultimato» aos gregos para que se portem bem. Nada de novo,
portanto, na reunião de líderes europeus da semana passada. E a pergunta
continua a ser: por quanto tempo mais vai a União Europeia adiar uma solu-
ção suficientemente forte e clara para a crise da dívida e para a crise do euro,
capaz de pôr cobro às dúvidas dos mercados e mostrar ao resto do mundo que
consegue tratar dos seus próprios problemas?
O resto do mundo, entretanto, está cada vez mais impaciente.
Na segunda-feira passada a imprensa dava conta da «reprimenda» do FMI à
União Europeia sobre a sua incapacidade para resolver uma crise que, se não
for contida, acabará por contaminar a economia mundial ainda em fase de
convalescença. O relatório do FMI sobre a zona euro atrevia-se a ir um pouco
mais longe e a dar alguns conselhos à União Europeia. O diário francês Le Figa-
ro citava um diplomata europeu acusando John Lipsky, o director americano
do FMI (interino entre dois europeus), de «representar o Tesouro americano e
estar a defender no Luxemburgo [durante a última reunião dos ministros das
Finanças para tratar da crise grega] os interesses americanos».
O que o relatório do FMI diz de tão «susceptível» é que «a incapacidade [eu-
ropeia] de agir de forma decisiva pode atingir rapidamente o coração da zona
euro e contagiar a economia global». Recomenda aos europeus uma «aborda-
gem mais cooperativa e coesa». Aconselha-os a abandonarem a discussão «im-
produtiva» sobre a reestruturação da dívida grega. Conclui dizendo que «mais
integração económica e financeira é essencial para uma união monetária di-
nâmica e estável» e que a Europa precisa de maior união política. Limita-se a
verificar o óbvio e a traduzir uma enorme preocupação que não se limita ao
FMI. Na véspera da cimeira europeia, Ben Bernanke, o chefe da Reserva Fede-
ral, falava na «importância enorme de resolver a situação grega». Sob pena de
se transformar «numa ameaça para o sistema financeiro europeu e mundial e
para a unidade da Europa». Timothy Geithner, o chefe do Tesouro americano,
48 Europa Trágica e Magnífica

foi mais sintético: nada se resolverá se a Europa não conseguir agir «com uma
só voz, e uma voz clara, sobre uma estratégia».
Esta preocupação é generalizada. Escrevia o Monde também na semana pas-
sada que a China olha com a mesma preocupação crescente para a Europa.
A vice-ministra dos Negócios Estrangeiros de Pequim, Fu Ying, disse a 17 de
Junho que «é de uma importância vital» para a China que os Estados europeus
consigam resolver as suas dificuldades.
A mensagem é simples: como é possível que o maior boco económico do
mundo não consiga lidar com a crise da dívida soberana de duas ou três peque-
nas economias periféricas que não representam mais do que 5 ou 6 por cento do
seu PIB? E, se é possível, porque parece que é, então como interpretá-lo?

No início de Junho, o Presidente Obama estendeu a passadeira vermelha e


exibiu a sua melhor baixela para receber Angela Merkel na Casa Branca. Deu-
-lhe a Medalha da Liberdade, apenas atribuída a vultos mundiais de dimen-
são excepcional como João Paulo II, Nelson Mandela ou Helmut Kohl. Alguns
analistas interrogaram-se sobre as razões para uma tal distinção quando a
chanceler não se tem mostrado muito cooperativa nas questões da economia
mundial ou da segurança internacional (veja-se a Líbia ou o G20) e parece nem
sequer conseguir resolver de uma vez por todas a crise do euro. Comentava
David Ignatius no Washington Post que Obama saudou a chanceler alemã que
gostaria de ter e não aquela que realmente existe. «O parceiro que queria, não
o parceiro que tem.» Como disse o Presidente americano durante a recepção à
chanceler alemã, «a Alemanha é o país-chave». «Não pode haver recuperação
sustentável nos EUA enquanto os mercados se mantiverem na incerteza sobre
o destino da segunda mais importante moeda mundial», escreve a Brookings.
Nada disto parece razão suficiente para fazer a chanceler decidir-se. Tam-
bém os europeus gostariam de ter outra Angela Merkel mas são obrigados a
contentar-se com aquela que têm neste momento.
Em mais uma das suas crónicas notáveis no Guardian, Timothy Garton Ash
resumiu o dilema que paralisa a chanceler. «Há já mais de um ano que Merkel
tenta encontrar a estreita — talvez inexistente — linha onde o mínimo que pode
ser feito para salvar a periferia da zona euro se cruza com o máximo que ela
pensa que a opinião pública alemã pode suportar.» Até agora a receita não fun-
cionou. O historiador britânico também sabe que chanceler gostaria de ter.
«Agora, ela precisa de começar pelo outro lado: definir, com o BCE e os outros
parceiros da zona euro, qual é o acordo melhor e mais credível e, a partir daí,
utilizar toda a sua autoridade para persuadir o público alemão de que isso cor-
responde ao interesse nacional da Alemanha no longo prazo.»
Costuma ser para isso que servem os líderes políticos. Mas isso também nos
conduz a outro problema grave que a Europa tem de enfrentar, sob pena de
subverter a própria essência do projecto europeu, precisamente quando o
mundo mais o reclama e mais o justifica.
A potência relutante 49

Ninguém pode pretender ignorar o que pensa a opinião pública alemã so-
bre a Grécia ou Portugal ou mesmo sobre a actual configuração da zona euro.
O governo alemão, como todos os governos da União Europeia, presta contas
perante o seu eleitorado e é perante ele que é responsável. O problema é que
também os governos da Grécia ou de Portugal têm de responder perante as
suas opiniões públicas. A democracia é uma componente essencial da União
Europeia e não pode ser espezinhada em Atenas apenas para ser louvada em
Berlim.
Não é apenas o euro que está em causa, dizia há dias o Nobel da Econo-
mia Amartya Sen. «É também a democracia europeia.» Maria João Rodrigues
chamava a atenção para o mesmo problema na TSF, no próprio dia em que
começou o Conselho Europeu. O que disse foi mais ou menos isto: se a Europa
começa a ser olhada pelos cidadãos de um determinado país, não como uma
alavanca para promover a prosperidade, mas como um colete de forças que
limita a possibilidade de escolha, então é o próprio projecto europeu que está
em causa.
O problema, dizia recentemente Jacques Delors, é que estamos a lidar com
duas crises. A primeira é a crise da dívida. A segunda, bastante mais perigosa,
é a crise do «significado» da Europa, o que ela representa hoje, ou não repre-
senta, para os europeus.
Angela Merkel tem de usar a sua autoridade e legitimidade política para ex-
plicar claramente aos alemães que a Europa não se resume aos erros da Grécia
ou de Portugal. A Europa foi o que permitiu à Alemanha integrar-se entre as
nações civilizadas, reunificar-se em paz, e é o que lhe permite hoje sustentar a
sua economia. É por isso que vale a pena salvar a Grécia mesmo que custe algu-
ma coisa aos contribuintes alemães. Não é uma explicação muito difícil. Basta
ter a coragem para a fazer. Do mesmo modo que a Europa tem de perceber que
não se resolve a crise da Grécia apenas «esmagando» o povo grego. Os sacrifí-
cios fazem sentido se valerem a pena no longo prazo. Não podem ser impostos
por ultimatos ou por soluções de recurso. Também para isto é fundamental
uma nova estratégia europeia que, como diz Sen, compatibilize ajustamento
financeiro com crescimento económico.
A tudo isto chama-se política e exige políticos. Sem isso, a Europa arrisca-se
a confrontar-se com uma crise muito maior do que aquela que hoje enfrenta:
a contradição indissolúvel entre a necessidade de avançar para maior coesão
política, económica e social e a oposição dos cidadãos europeus, cada vez mais
conquistados pelos velhos demónios do populismo e da xenofobia que ciclica-
mente a vêm ensombrar. Aí sim, estaria tudo perdido.
50 Europa Trágica e Magnífica

DEMASIADO GRANDE
E, NO ENTANTO,
DEMASIADO
PEQUENA
25-10-2011

Wolfgang Münchau escreveu um dia na sua coluna semanal do Financial Times


que a crise europeia, apesar das extremas dificuldades e incertezas, acabaria
provavelmente por se resolver na 25.ª hora. Afinal, argumentava ele, Angela
Merkel não vai querer ficar na História como a chanceler que veio do Leste
para acabar com o projecto europeu. A história desta crise europeia é tam-
bém a história das hesitações da Alemanha sobre a melhor forma de a resolver.
A questão alemã voltou a instalar-se no coração da Europa com uma força in-
contornável. Pelas melhores e pelas piores razões.
Nos países em crise de endividamento, sujeitos a duros programas de aus-
teridade, o ressentimento contra Berlim não pára de crescer. Na Grécia, as re-
ferências a um passado que a integração europeia devia ter enterrado para
sempre, multiplicam-se. Em Portugal as acusações à chanceler alemã tendem
a subir de tom. Na Europa já não são disfarçáveis os anticorpos gerados pela
forma como Merkel tem liderado (ou abdicado de liderar) esta crise.
Para lá deste coro de descontentamento e de algum receio, é necessário
tentar compreender as razões desta transformação do país que já foi o mais
pró-europeu entre as grandes potências num outro, cujo empenho na Europa
é hoje de outra natureza. Em torno de uma pergunta: o que quer a Alemanha
hoje da Europa?

«Em Maio, durante a crise da Grécia, quando todos os olhos se viraram para
a Alemanha, a Alemanha reagiu de forma distante, sem vontade de liderar a
Europa», escreveu Ulrike Guérot, directora da secção de Berlim do European
Council on Foreign Relations, em Novembro de 2010. «A percepção em muitos
países europeus foi que a Alemanha queria seguir sozinha o seu próprio cami-
nho (…).» Vinte anos depois da reunificação, escreveu ainda Guérot, «a relação
da Alemanha com a Europa mudou profundamente». “(…) Deixou de querer
uma Europa a qualquer preço e não está mais disposta a pagar um qualquer
novo compromisso europeu.» A Europa deixou de ser a sua «raison d’État»
— quando o interesse alemão e o interesse europeu se confundiam. Gerhard
Schröder, o chanceler social-democrata que sucedeu a Helmut Kohl em 1998,
A potência relutante 51

proclamou-a um país «normal», com o mesmo direito que os outros a defender


o seu interesse nacional. «Hoje é uma nação normal, mas falta-lhe ainda uma
visão estratégica para uma Europa global», acrescentava a investigadora ale-
mã. «Falta-lhe ainda decidir se quer seguir o seu caminho sozinha ou se quer
liderar uma Europa global para o século XXI.»
Depois disso muita coisa aconteceu. Num ensaio muito mais recente (Prima-
vera de 2011), Guérot e Mark Leonard, director do mesmo think-tank europeu,
juntam mais alguns elementos a esta indefinição de Berlim. «Um ano depois
da crise grega, Berlim lançou uma nova onda de perplexidade ao distanciar-se
dos seus aliados na crise da Líbia.» Houve outros sintomas. Abandonou a ener-
gia nuclear depois de Fukushima, sem dar uma palavra nem à França nem a
Bruxelas. Prossegue as suas próprias relações com a Rússia e com a China. «Al-
guns europeus temem agora que ela veja o seu futuro como uma potência glo-
bal», mais interessada nos BRIC do que nos PIG. As exportações para a China
aumentaram de 70 por cento do início de 2009 a meados de 2010 (represen-
tam metade do total europeu). Ainda assim, mais de 60 por cento continuam a
ser para o mercado europeu. «A maior tentação do unilateralismo alemão é no
palco mundial, de tal forma o poder económico alemão se distancia de todos
os outros Estados-membros», escrevem os investigadores do ECFR.
O problema é que essa dimensão não lhe dá acesso ao G2. Integrada numa
Europa global poderia dar. «A Alemanha tem de transformar o seu poder eco-
nómico actual numa estratégia europeia.»

Viragem?
«Desde o Verão que houve um sobressalto», diz Céline-Agathe Caro, da Fun-
dação Adenauer, citada pela AFP. A chanceler viu-se fortemente criticada pela
sua condução da crise. A estratégia de se vergar ao eurocepticismo não deu
bons resultados (a CDU perdeu todas as eleições regionais). «O vento mudou
de direcção.» Berlim percebeu que tinha de salvar a Grécia e que o euro cor-
respondia ao seu mais profundo interesse nacional. Os termos dessa viragem
ainda não estão definidos.
«Está lentamente a reconstituir-se um novo e amplo consenso europeu, mas
ao qual ainda chamaria de mole», diz Anne-Marie Le Gloannec, uma das maio-
res especialistas francesas da Alemanha. «É uma espécie de coligação informal
que vai dos “Verdes” a grande parte da CDU, incluindo o SPD, que é fortemente
favorável à Europa, que ainda não se exprime politicamente, mas pode tradu-
zir-se numa nova coligação política nas próximas eleições.»
A investigadora de Sciences Po insurge-se contra as interpretações «simplis-
tas» do poder alemão. «Esse grande poder que atribuem a Merkel não existe.»
Porque o sistema de decisão europeu está profundamente fragmentado — «en-
tre o Governo alemão, o eixo franco-alemão, os outros governos, o BCE, os
mercados, as agências de rating». Mas, sobretudo, porque a chanceler está, ela
própria, «encurralada num sistema de decisão interna igualmente fragmenta-
52 Europa Trágica e Magnífica

do» — «entre as exigências dos pró-europeus, como Wolfgang Schaüble [o seu


ministro das Finanças], dos eurocépticos da CSU ou do FDP, dos patrões que
reclamam mais Europa e os que reclamam menos».
Qual pode ser, então, o novo consenso europeu? «Um consenso que pode le-
var a Alemanha a reclamar de novo um caminho federal. Nessa altura, ver-se-á
qual é a resposta dos outros e, sobretudo, da França», diz a académica francesa.
«Se formos outra vez para um sim, não, talvez, é provável que a Alemanha siga
por outro caminho.» O problema, acrescenta, é que «toda a gente pede tudo
aos alemães — mais liderança e mais garantias financeiras». «E eles pensam
que não têm ombros suficientemente fortes para arcar com tudo sozinhos.»
É o eterno dilema da Alemanha: «Demasiado grande e, no entanto, demasiado
pequena.»
A potência relutante 53

MUTTI OU
MERKEAVELLI?
21-09-2013

Ninguém nunca teve tanto poder sobre os destinos da União Europeia. Tem
quatro anos para salvar o euro. Só isso lhe garantirá um lugar na História.

Já não é a «filha do pastor» e, muito menos, a «rapariga de Kohl» ou apenas a


mulher que veio do Leste para liderar a Alemanha. A figura de Angela Merkel
deixou de precisar de referências, mesmo que não seja indiferente a vida que
viveu do outro lado do Muro durante 35 anos. Aprendeu a não dar nas vistas.
Habituou-se a ser feliz com pouco. Estudou Física porque era difícil e exigia
rigor. No dia 9 de Novembro de 1989 não alterou a sua rotina diária: quando
saiu do laboratório da Academia das Ciências de Berlim, foi aos banhos turcos
antes de ir verificar com os próprios olhos que, simbolicamente, o Muro dei-
xara de existir.
Angela passou discretamente ao lado do Partido Comunista e da Stasi. En-
quanto o regime se desfazia, juntou-se a um grupo próximo da CDU de Helmut
Kohl. Foi porta-voz de Lothar de Maizière, o chefe do único governo da RDA elei-
to democraticamente para durar menos de um ano. Com ele, e por causa do
seu domínio perfeito do russo e do inglês, acompanhou as intensas negociações
que precederam a unificação. «Por favor, alguém lhe diga para não aparecer com
as sandálias à Jesus Cristo e para arranjar uma roupa melhor», pediu De Mai-
zière antes de partir para Moscovo ao encontro de Gorbatchov. Quando Kohl
lhe pediu alguém, de preferência uma mulher, para integrar o primeiro governo
da Alemanha unificada, foi ela a escolhida. Viu-lhe as qualidades. Promoveu-a.
Quando, depois da derrota eleitoral de 1998, o chanceler da unificação foi acusa-
do de ter recebido financiamentos ilícitos para o partido e se recusou a denun-
ciar quem lhos dera, a «rapariga de Kohl» mostrou a sua outra face. Aquela que a
levaria directamente ao poder. No dia 22 de Dezembro de 1999 fez publicar um
artigo na primeira página do respeitável Frankfurter Allgemeine Zeitung dizendo
que não poderia haver contemplações: a CDU tinha de cortar com o passado
e, para isso, Kohl tinha de se ir embora. No ano seguinte foi eleita líder da CDU,
aproveitando a desorientação provocada pela saída do «bom gigante» alemão.
Protestante, prussiana, mulher, Angela tomava conta do partido mais conserva-
dor, mais católico e mais masculino da cena política alemã. Em 2005 ganhou as
eleições ao SPD por menos de um por cento dos votos. Simples, pouco carismáti-
ca, má oradora, ainda não sabia bem o que fazer às mãos quando estava em cima
de um palco. Ninguém lhe previa uma longa carreira política.
54 Europa Trágica e Magnífica

«Merkel é a mensagem», escreveu a Economist durante a campanha eleito-


ral de Setembro de 2009. Sorridente. Benévola. Maternal. Não tem uma ideolo-
gia e é difícil saber se tem convicções. Os alemães gostam disso. «Ela só perderá
as eleições se for apanhada a roubar num supermercado», escreveu na altura
o jornal de esquerda Die Tagezeitung. Hoje, bastam as suas mãos para preen-
cher um cartaz. As mãos da «mulher mais poderosa do mundo»? As mãos da
«Mutti» de uma nação que se volta a ver como a mais poderosa da Europa e
ainda não sabe o que fazer com isso? Ou «Merkeavelli», capaz de tudo para
ganhar o poder? Vai arrebatar hoje, nas urnas, o seu terceiro mandato, entran-
do num clube restrito ao qual apenas pertencem Helmut Kohl e Konrad Ade-
nauer. «É menos audaciosa que Schröder, menos europeísta que Kohl, menos
visionária que Helmut Schmidt, menos carismática que Willy Brandt», escreve
o correspondente do Monde. «O único problema é que esta mulher, que parece
não estar à altura dos que a precederam, goza de uma popularidade muito
superior às deles.» Coube-lhe presidir ao «momento unipolar» da Alemanha.
Dita o destino da Europa como nenhum dos seus predecessores. Falta-lhe ain-
da a derradeira prova que lhe poderá garantir um lugar na História próximo
daquele onde estão os líderes que presidiram à reabilitação da Alemanha de-
mocrática e ocidental e à sua unificação. Tem quatro anos para salvar o euro
e salvar a integração europeia. Ganhou junto dos alemães aquilo que perdeu
junto dos europeus. O desafio é conseguir conciliar as duas coisas.

Antes da crise
No dia 17 de Dezembro de 2005 os líderes europeus, reunidos em Bruxelas, es-
peravam a sua estreia com enorme expectativa. Vinha de um moroso processo
de negociação com o SPD para a «grande coligação», depois de uma vitória
mínima da CDU. Com o seu fato preto, apenas iluminado pelos cabelos louros
e por uma fiada de pérolas, estreou-se da melhor maneira. Gerhard Schröder,
o seu antecessor, tinha anunciado que a Alemanha era agora «um país nor-
mal», com o mesmo direito a defender os seus interesses que a França ou o
Reino Unido. Tão normal que decidiu pôr em causa um dos dois pilares da
República Federal desde o pós-guerra: a aliança com os Estados Unidos (o ou-
tro é a relação com a França), opondo-se frontalmente à segunda guerra no
Iraque e criando uma duvidosa parceria com Vladimir Putin que enregelava
o sangue das jovens democracias da Europa Central e Oriental. Merkel chegou
a Bruxelas numa Europa em plena crise. A rejeição da Constituição europeia
pela França e pela Holanda fora um choque inesperado e brutal. A presidên-
cia britânica revelava-se incapaz de negociar um acordo sobre as perspectivas
financeiras da União para 2007-2013. A guerra entre Londres e Paris por cau-
sa da «rebate» britânica e da agricultura francesa parecia não ter fim à vista.
Havia uma diferença de 20 mil milhões. Merkel chegou, deu 10 mil milhões a
cada um e comprometeu-se a encontrar mais alguns milhões para a Polónia,
nem que tivesse de ir buscá-los aos fundos destinados aos Lander de Leste.
A potência relutante 55

A boa velha Alemanha estava de volta, ainda que com um livro de cheques
bastante menos generoso.
A sua segunda grande missão europeia foi resolver da melhor maneira o
trauma da rejeição da Constituição na qual a Alemanha tinha posto todo o seu
empenho, porventura pela última vez. Empenhou-se a fundo nas negociações
de um novo tratado, finalizado em Lisboa em Outubro de 2007. «Ela foi bri-
lhante nas suas primeiras cimeiras, conseguiu unir toda a gente, actuou como
uma pacificadora, conseguiu resolver os problemas», diz Charles Grant, direc-
tor do Centre for European Reform.
Não houve outra cimeira com Putin em que a chanceler não denunciasse
o abuso dos direitos humanos na Rússia. O caminho para Moscovo deixava
de passar por cima da Polónia. Recebeu o Dalai Lama ignorando as ameaças
chinesas. Fez o que estava ao seu alcance para reparar os estragos causados
pelo seu antecessor na relação com a América de George W. Bush. A crise fi-
nanceira mundial que se abateu com grande violência sobre a Europa havia de
lhe mudar o destino. A crise da dívida grega apanhou-a de surpresa. Começou
por negar qualquer responsabilidade, lembrando que as regras da união mo-
netária incluíam uma cláusula de não intervenção (no bailout). Com um coro
de vozes a gritar que, se a Grécia caísse, o euro ficaria em xeque, hesitou até
ao último instante. Agiu quando viu o abismo debaixo dos pés. Seguiram-se a
Irlanda e Portugal. A crise tornou-se sistémica. Merkel reagiu com relutância
e engendrou uma estratégia assente na punição dos países do euro que não
tinham sabido gerir as suas economias. A «austeridade» tornou-se o seu único
programa para a Europa. Levou algum tempo a decidir que salvar o euro era
do interesse vital da Alemanha.
O seu método de decisão exasperou os seus parceiros: minucioso, lento,
cauteloso, vago. «O seu processo de decisão é o de uma cientista», diz a Spiegel.
«Quer resolver problemas.» Com o mínimo de custos possível. «Passo a passo» é
o seu lema. O futuro do euro ou a sua «depuração» estiveram em cima da mesa
ao longo de 2011. Sucederam-se os Conselhos Europeus «da última oportunida-
de». Para os outros. Não para ela. Nicolas Sarkozy conseguiu manter a ilusão de
que o motor franco-alemão continuava a funcionar. Rendeu-se depressa à sua
força. «Despachou» primeiros-ministros como George Papandreou ou Silvio
Berlusconi. Deixou-se amarrar pela opinião pública alemã ao dizer-lhe o que ela
queria ouvir: que a Alemanha não ia gastar tempo e dinheiro com os «ociosos»
do Sul ou com a mania das grandezas da França. Continua presa a esse discurso.
Justificou-o com a necessidade de impedir o aparecimento de um partido an-
tieuropeu à sua direita. A «Alternativa para a Alemanha», pequeno partido que
diz que é preciso acabar com o euro e manter a União Europeia, como se isso
fosse possível, ainda pode baralhar o jogo eleitoral alemão.
Passeia-se nos palcos do mundo com um sorriso enganador. Obama, que
lhe deu a Medalha da Liberdade, a mais alta condecoração que um Presidente
americano pode dar a um estrangeiro, tentou demovê-la em vão da sua receita
56 Europa Trágica e Magnífica

da austeridade. Os seus parceiros europeus (Monti, Rajoy, Hollande) aprende-


ram à própria custa que forçar-lhe a mão era uma impossibilidade. Tem uma
vontade férrea.
Ainda pode ficar nos livros de História como a chanceler que salvou o euro.
Mas não olha para a moeda única nem para a Europa com os olhos de Helmut
Kohl. Para ele, a moeda única era o compromisso político de uma Alemanha
europeia. Para ela, é um instrumento fundamental do poder económico da
Alemanha. Os seus críticos dizem que lhe falta uma visão de longo prazo. Que
é uma hábil tacticista mas uma péssima estratega. Porventura, nenhum dos
chanceleres que a precederam alguma vez teve tanto poder sobre a Europa.
O número de telefone que Kissinger reivindicava está na sua secretária.
Ganhou na Alemanha o que perdeu entre os europeus. Ressuscitou fantas-
mas que se criam definitivamente enterrados. «Na verdade, foi a crise que a
tornou forte. Sem ela, teria sido apenas mais uma chanceler na corrente da
História. Ainda tem um desafio tremendo pela frente», escreve o jornalista e
biógrafo Stefan Kornelius na BBC. A operação de resgate do euro ainda não
terminou. «O que faz a Alemanha tão forte é a fraqueza dos outros», escreve
outro jornalista alemão, Alan Posener.
Hoje talvez já se perceba melhor a razão pela qual tem um pequeno retrato
de Catarina, a Grande, a princesa da Saxónia que governou a Rússia, na sua
secretária. Há quem lhe chame «a rainha da Alemanha e a czarina da Europa».
A potência relutante 57

AS VICISSITUDES
DE FRANÇA

SARKOZY E MERKEL
RETOMAM EM
BERLIM A AMIZADE
FRANCO-ALEMÃ
Maio de 2007

O Presidente francês chamou-lhe sagrada. A chanceler alemã


classificou-a de milagre
Jacques Chirac costumava beijar-lhe a mão. Nicolas Sarkozy abraçou e beijou
efusivamente a sua anfitriã. Ontem, à chegada ao moderno edifício da chance-
laria de Berlim, com a cúpula de vidro do Reischtag em fundo, os dois líderes
da França e da Alemanha não foram parcos em gestos e palavras de amizade.
Mais vibrante ele, mais discreta ela, numa encenação cuidadosamente prepa-
rada para atingir um só objectivo: recomeçar com o pé direito a velha relação
franco-alemã que foi o motor da Europa. Angela Merkel, lembrando a História,
classificou-a de «milagre». Nicolas Sarkozy respondeu-lhe que, para a França,
«continua a ser sagrada e nada a poderá pôr em causa».
O novo Presidente da França, como todos os seus predecessores da V Repú-
blica, sabe que o destino do seu país continua a passar por Berlim e, como é
do seu estilo, não deixou para amanhã o que poderia fazer ontem. Terminada
a posse, voou para a capital da Alemanha. Guarda de Honra na chancelaria.
Dois breves discursos a reafirmar a importância da amizade franco-alemã para
os dois países, para a Europa e para o mundo. E a promessa de que acabou
o tempo da espera e da paralisia. «É urgente agir para fazer a Europa sair da
paralisia. (…) A política da França não será marcada pelo selo do esperar para
ver (…). Vim como europeu e como amigo, com a clara consciência de que são
58 Europa Trágica e Magnífica

precisos resultados.» E terminou: «Cara Angela, tenho grande confiança em ti e


muita amizade por ti.» Ao trabalho, pois, «imediatamente». E foi com um jantar
de trabalho que terminou em Berlim o dia da tomada de posse do Presidente
da França.
Antes dele, Merkel agradeceu o gesto e recordou o seu objectivo principal:
dar à Europa até 2009 «uma nova base», forma eufemística de dizer que é
preciso resolver quanto antes a questão constitucional, até agora à espera da
França.
Não foi certamente por acaso que a chanceler da Alemanha escolheu a pa-
lavra «milagre» para saudar a amizade franco-alemã. Ouviu-a da boca de Ni-
colas Sarkozy algumas horas antes num dos momentos mais simbólicos das
celebrações da sua posse em Paris. Quando depôs uma flor no memorial do
Bosque de Bolonha onde 35 jovens resistentes franceses tombaram fuzilados
por soldados alemães, em Agosto de 1944. Saudou o espírito da resistência e
disse que ajudava a explicar «a razão pela qual a reconciliação franco-alemã
foi uma espécie de milagre». Foi dali que partiu em direcção ao aeroporto para
voar para Berlim.
Nada na coreografia política do dia da posse do novo Presidente francês foi
deixado ao acaso. Nem foi esta a primeira vez que Sarkozy recordou de que
lado esteve a França. Durante a campanha, lembrou que os franceses não têm
qualquer razão para não exibir o seu orgulho patriótico porque «não foram
eles a levar a cabo um genocídio nem a inventar a solução final». Palavras du-
ras, mesmo que ditas no calor de uma campanha, que foram certamente regis-
tadas em Berlim, onde se espera um parceiro activo mas «difícil».
Dizem, por isso, muitos observadores de ambos os lados do Reno que Sar-
kozy, o primeiro Presidente da França a ter nascido muito depois do fim da
guerra, terá uma interpretação diferente da relação franco-alemã. Menos ex-
clusiva e, sempre que possível, enquadrada numa coligação dos grandes, in-
cluindo o Reino Unido. Se Sarkozy rumou a Berlim no dia da sua posse, Tony
Blair foi o primeiro líder europeu que recebeu depois de ser eleito.
Mas ontem foram apenas as primeiras salvas e foram para recordar a inevi-
tabilidade do eixo Paris-Berlim.
A potência relutante 59

MERKOZY
OU MERKOLLANDE:
DESCUBRA
AS DIFERENÇAS
14-04-2012

É a segunda economia do euro e está habituada a liderar a Europa. A crise


revelou as suas fraquezas perante uma Alemanha cada vez mais forte.
O dilema francês interpretado por Sarkozy ou por Hollande terá consequências
para o destino próximo da União Europeia.

Bastaria o facto de a França ser a segunda maior economia do euro e, por


tradição, um país habituado a liderar politicamente a Europa, para que a esco-
lha presidencial francesa fosse de uma enorme importância. A crise europeia
encarregou-se de torná-la ainda mais decisiva. A questão que os analistas co-
locam é a de saber se a vitória do candidato socialista François Hollande pode
afectar os equilíbrios políticos que hoje determinam as principais decisões
europeias. Por outras palavras, até que ponto a França ainda tem margem de
manobra para «reequilibrar» a sua relação com a Alemanha. Merkollande seria
diferente de Merkozy? O debate eleitoral tem sido pouco clarificador. O candi-
dato socialista cultiva a ambiguidade. O actual Presidente mudou de guião a
meio da campanha.
Quando anunciou oficialmente a sua candidatura, em meados de Fevereiro,
Nicolas Sarkozy pronunciou oito vezes a palavra Alemanha e outras tantas o
nome da chanceler alemã. Nessa altura, a sua estratégia eleitoral era simples:
apresentar-se como o co-salvador do euro e da Europa e mostrar que o único
caminho para a França manter o seu estatuto de país líder do projecto euro-
peu era seguir o «modelo» alemão. A chanceler foi convidada a participar na
campanha, coisa inédita. Chegou a dar uma conferência de imprensa conjun-
ta com o Presidente candidato que levantou um coro de críticas na própria
Alemanha. Ela própria avisara no congresso do seu partido em Novembro:
«Nós somos parte da política interna dos nossos parceiros.» Em 2007 recebeu
em Berlim a então candidata socialista que corria contra o actual Presidente,
Ségolène Royal. Desta vez a imprensa alemã noticiou, sem desmentido, uma
«conspiração» entre os principais líderes conservadores europeus para não
receberem Hollande. Aos olhos de Angela Merkel, o candidato socialista tinha
cometido o sacrilégio de fazer da renegociação do novo Tratado Orçamental
uma das principais bandeiras da sua campanha presidencial.
60 Europa Trágica e Magnífica

Quinze dias depois o guião mudou abruptamente. A 15 de Março, no mega-


comício de Villepinte, Nicolas Sarkozy despiu as vestes do amigo indefectível
da chanceler alemã e envergou as vestes que lhe tinham garantido a vitó-
ria há cinco anos, fazendo-se de novo o intérprete dos medos profundos da
França em relação a uma Europa demasiado aberta e a uma globalização de-
masiado ameaçadora. Merkel foi «desconvidada». O modelo alemão deixou
de figurar como meta, mesmo que continue presente no discurso Presidente
em comparação com o destino alternativo da França, no caso de não vir a ser
reeleito: a Espanha ou mesmo Grécia. A «Europa fortaleza» de que os france-
ses gostam regressou em força, muitas vezes sob a forma de promessas que
deixaram os seus parceiros europeus, no mínimo, perplexos. A França está
disposta a abandonar unilateralmente o Tratado de Schengen caso a Europa
não deixe de ser um «passador» para os imigrantes ilegais. A França adoptará
as suas próprias medidas unilaterais para privilegiar as empresas europeias
caso a Europa não exija aos seus grandes parceiros «emergentes» a recipro-
cidade no acesso aos mercados públicos. «A beleza da fórmula de Sarkozy
é que ele capta os argumentos antiglobalização e anti-Europa, tornando-os
uma agenda europeia», escrevem Ulrike Guérot e François Godement, inves-
tigadores do European Council on Foreign Relations. A tragédia de Toulou-
se foi apenas a grande oportunidade para acentuar a viragem. A questão da
segurança juntou-se à imigração para ocupar, pelo menos durante algum
tempo, o lugar dos problemas económicos e sociais sobre os quais Hollande
tencionava assentar a sua campanha. O candidato socialista perdeu momen-
taneamente o pé.
Os dois investigadores do ECFR admitem que, em caso de vitória, o Presi-
dente pode vir a revelar-se um parceiro «menos dócil» de Angela Merkel. Bru-
xelas lembra que as suas «ameaças» sobre Schengen ou sobre a «reciprocida-
de» já fazem parte da agenda da Comissão. Alguns analistas notam que a visão
mais proteccionista da França em termos de comércio internacional não tem
grandes adeptos entre os seus parceiros europeus.

A margem de manobra de Hollande


François Hollande tem sido mais constante na sua política europeia. Começou
por ter de provar que não estava sozinho no palco europeu na sua intenção de
exigir a renegociação do Tratado Orçamental para lhe acrescentar uma nova
dimensão de crescimento. Em Paris, no dia 17 de Março, conseguiu ter ao seu
lado os líderes do Partido Social Democrata alemão, do Partido Democrático
italiano e do Parlamento Europeu, respectivamente Sigmar Gabriel, Pier Lui-
gi Bersani e Martin Shulz (dispensou os líderes socialistas perdedores, como
o espanhol ou português) para aplaudirem o seu principal discurso sobre a
Europa e se comprometerem com uma espécie de programa mínimo euro-
peu que recebeu o título grandioso de «Renascimento para a Europa — uma
visão comum progressista». O terreno de entendimento passa pela mutualiza-
A potência relutante 61

ção parcial da dívida, pelo recurso aos chamados project bonds para financiar
grandes investimentos europeus indutores de algum estímulo às economias
e pela aceitação de uma taxa sobre as transacções financeiras. Hollande tam-
bém quer a revisão do estatuto do BCE, aproximando-o do estatuto da Reserva
Federal e transformando-o em credor de último recurso. A questão-chave é o
apoio do SPD. Alguns analistas sublinham, no entanto, que os sociais-demo-
cratas alemães não têm grande margem para contestar as insuficiências de um
Tratado que a opinião pública do seu país apoia porque vê nele a disciplina
germânica imposta aos parceiros mal-comportados. «Não se trata propria-
mente de renegociar o Tratado», diz Anne-Marie Le Gloannec, investigadora
de Sciences Po, em Paris. «Trata-se de acrescentar alguma coisa sobre a qual
quase toda a gente está hoje de acordo — espanhóis, italianos, economistas, in-
cluindo na Alemanha. A Europa precisa de dispor de alguns mecanismos para
o crescimento.» A investigadora lembra que este é também o discurso do SPD,
que tem grande probabilidade de integrar uma «grande coligação» em Berlim,
depois das eleições do próximo ano.
A reunião de Paris cumpriu o seu propósito de atenuar o isolamento eu-
ropeu de Hollande e de alimentar uma alternativa às receitas conservadoras
para a crise. O problema central com que se defrontará em caso de vitória
mantém-se: como redefinir a relação franco-alemã com uma Alemanha que se
tornou, indiscutivelmente, a potência económica e, cada vez mais, a potência
política liderante da Europa. A maioria das suas propostas europeias não di-
verge daquelas que Nicolas Sarkozy defendeu perante a chanceler ao longo da
crise e que foi deixando cair pelo caminho. «Claramente, a Alemanha é hoje o
líder político e económico da zona euro e da Europa continental e isso é uma
questão muito preocupante para a França», diz ao Financial Times o ensaísta
francês Nicolas Baverez. Charles Grant, o director do Centre for European Re-
form, resume da mesma forma o grande dilema francês: «Pela primeira vez na
história da União Europeia, a Alemanha é o líder inquestionável e a França o
número dois.» A crise acentuou dramaticamente as fragilidades económicas
da França, que acabaram por fundamentar aquilo a que Hollande chama de
«rendição» do seu adversário: os níveis de endividamento público, o desequi-
líbrio da balança comercial, os custos crescentes de financiamento (a perda
do triplo AAA). O actual Presidente tentou compensar a fraqueza económica
com um desempenho no palco internacional com que a França, desde que se
entenda com o Reino Unido e com os Estados Unidos (duas coisas que o actual
Presidente tratou de garantir), pode ainda marcar a diferença em relação a
Berlim. No Irão ou na Líbia. O que faria Hollande em idênticas circunstâncias
é ainda uma incógnita relativa. O único sinal que deu foi a sua intenção de
retirar imediatamente do Afeganistão. «Não há uma ideia de política externa,
de posicionamento mundial da França e da Europa nesta campanha», diz Le
Gloannec.
62 Europa Trágica e Magnífica

O dia seguinte
É com esta realidade que qualquer Presidente da França vai ter de lidar no
dia seguinte ao da sua eleição. Escreve o Monde que «a austeridade será o
verdadeiro teste europeu de quem vier a ganhar as eleições». Lembra que
a Comissão deve apresentar no fim de Maio as suas recomendações anuais (…)
sobre os equilíbrios das contas públicas e as reformas estruturais. «A realidade
entrará pela porta da frente, seja quem for o ocupante do Eliseu.» Vai ser pre-
ciso um novo plano de austeridade, desta vez a sério. Num editorial publicado
na Le Point e intitulado «O Rigor é Agora», Baverez traduziu em números esta
realidade. «O declínio da França nunca foi tão acentuado desde os anos 30.
O crescimento potencial da economia situa-se abaixo de 1 por cento (…). O dé-
fice comercial recorde é de 70 mil milhões de euros. A dívida chegará aos 90
por cento do PIB em 2012, limiar a partir do qual destrói actividade e emprego.
O desemprego atinge 10 por cento da população activa há três décadas (…).»
Para concluir: «A degradação financeira da França acelera a perda do controlo
do seu destino por um país que se encontra colocado sob a tutela dos mer-
cados financeiros e da Alemanha.» «Será o epicentro do próximo choque da
zona euro.» É o que em Berlim mais se teme. «Se a França quebrar, a Europa
quebra», diz a investigadora de Sciences Po.
Nicolas Sarkozy entra na recta final da campanha, alimentando o medo do
caos. «Ou eu ou… a Espanha.» O que fará Hollande de diferente? Que alian-
ças poderá privilegiar? A sua derrota seria um tremendo golpe para o centro-
-esquerda. «Se for eleito, a sua responsabilidade será imensa porque será o
líder europeu da esquerda», comenta David Miliband, antigo chefe do Foreign
Office e candidato derrotado à liderança do Labour britânico. A sua vitória
é ainda uma carta fechada. Com uma certeza: a França acabará sempre por
entender-se com a Alemanha. Noutros termos? Nos mesmos? Ulrike Guérot e
François Godement também notam que a campanha não trouxe «um debate
sério sobre as questões europeias». «Nada comparável à intensa reflexão que
decorre na Alemanha sobre qual é o melhor funcionamento institucional da
União Europeia.»
A potência relutante 63

GANHOU
A «FRANÇA DO NÃO»
21-04-2012

Já não há grandes dúvidas: a partir desta noite, Nicolas Sarkozy e François


Hollande estarão frente-a-frente na segunda volta das eleições presidenciais
francesas. Terão de adaptar as respectivas estratégias levando em conta os
outros resultados da primeira volta. A Frente de Esquerda de Jean-Luc Mélen-
chon e a Frente Nacional de Marine Le Pen podem conseguir dois resultados
históricos que, somados, representam um terço do eleitorado francês. Estão
em pólos opostos do espectro político mas têm em comum a rejeição da globa-
lização e da Europa. «Fizeram uma campanha de ódio e de rejeição do mundo
que nos rodeia», escreveu Pierre-Antoine Delhommais na revista Le Point. «Do
euro, da Alemanha, dos patrões, do CAC 40, dos imigrantes, do lucro, das for-
tunas, dos chineses.» Os respectivos programas acabaram por marcar o debate
político, deixando um imenso espaço vazio entre os ziguezagues de Nicolas
Sarkozy e a ambiguidade de François Hollande. O «terceiro homem» destas
eleições, o centrista François Bayrou, que ousou dizer algumas verdades sobre
a realidade económica e financeira da França, será provavelmente remetido
para um quinto lugar.
«O debate político decorreu praticamente sob a ditadura dos extremos», dis-
se ao PÚBLICO o académico francês Pierre Hassner. A questão que fica para a
segunda volta é a de saber como os dois principais candidatos vão conseguir
libertar-se do que sobrou da primeira.
A França viveu os últimos vinte anos a tentar adaptar-se ao fim de uma era
em que a «excepção» francesa ainda fazia sentido. Com a queda do Muro de
Berlim e a unificação da Alemanha, teve de aprender que a Europa construída
à sua imagem e semelhança e ao serviço da sua grandeza estava cada vez mais
longe. Com a globalização económica viu o seu modo de vida posto em causa.
Ameaçada pela crise, desprovida de um «grande destino», profundamente de-
siludida com o seu Presidente, está a viver uma profunda recaída. O medo aca-
bou por ser o grande denominador comum da campanha. Nenhum dos dois
principais candidatos conseguiu fazer retroceder esta onda que os extremos
souberam alimentar. Pelo contrário, deixaram-se aprisionar por ela.

O segundo factor que pesa sobre o resultado destas eleições é a profun-


da desilusão dos franceses com o seu Presidente. A crise seria sempre uma
enorme dificuldade para Sarkozy. A rejeição vai além de um mero julgamento
político. Tem a ver com o seu carácter e o seu comportamento. O que era em
64 Europa Trágica e Magnífica

2007 um atractivo — a sua natureza de outsider e a sua promessa de ruptura


—, transformou-se num pecado que os franceses parecem cansados de descul-
par. François Hollande pode construir a sua estratégia eleitoral a partir desta
rejeição: apresentou-se como o anti-Sarkozy. Transformou a sua maior desvan-
tagem na corrida ao Eliseu na sua maior vantagem: oferecer aos franceses a
possibilidade de elegerem um «tipo normal».
Sarkozy mergulhou na campanha disposto a fazer o que fosse preciso para
ganhar: mudar de estratégia, radicalizar o discurso, alimentar o medo dos
franceses para depois lhes oferecer segurança. Hollande manteve a ambigui-
dade em quase todas as suas promessas. Não pintou a crise com as cores duras
da realidade mas também não prometeu amanhãs que cantam. Em França,
denunciou o sistema financeiro como o seu principal inimigo. Mas foi à City
garantir que não era «perigoso» para os mercados. A subida vertiginosa de
Jean-Luc Mélenchon foi a única surpresa a que teve de se adaptar. Cedeu na
«caça aos ricos». Deixou pairar a dúvida em relação ao proteccionismo. No úl-
timo dia da campanha, admitiu a possibilidade de uma «pequena subida do
salário mínimo». Mélenchon prometeu elevá-lo para 1700 euros.

De uma maneira ou de outra, os dois principais candidatos acabaram por


render-se à «França do não». Preferiram falar do preço que os jovens pagam
pela carta de condução em vez de explicar como reduzir uma dívida que se
aproxima da linha vermelha, como combater uma economia anémica ou uma
balança externa altamente deficitária. Em vez de mudar a França, preferiram
prometer que mudariam a Europa. Sarkozy regressou à velha ideia da «Euro-
pa-fortaleza» de que os franceses sempre gostaram: mais fechada ao comércio
e às pessoas, mais protectora das suas empresas. «Se nada mudar, os povos da
Europa não suportarão muito tempo as consequências de um laissez-faire de-
vastador.» «Um país sem fronteiras é um país sem identidade», escreveu na sua
«carta aos franceses». Hollande seguiu por outro caminho: mudar o «tratado
orçamental» para mudar a forma como a Europa lida com a crise da dívida e
da competitividade. Com outra política europeia, a França pode equilibrar as
contas públicas sem ter de recorrer às dores da austeridade.
Será diferente a segunda volta? Sarkozy aposta no confronto directo com o
seu adversário para recuperar terreno. Hollande terá de ser um pouco mais do
que o anti-Sarkozy. É aqui que entra o eleitorado do centro. «Esta França que
teme a globalização é real, mas há uma outra França que os candidatos e a im-
prensa estrangeira ignoraram», escreve Sylvie Kauffmann, editora do Monde, no
Financial Times. «É uma França que, longe de rejeitar a globalização, sabe tirar
vantagem dela, que é criativa, dinâmica, diversa e aventureira.» «Quem ganhar
as eleições a 6 de Maio tem de reconciliar estas duas Franças.» Será possível?
Muita coisa dependerá da forma como os dois candidatos disputarem a segunda
volta. As perspectivas não são as melhores. A Europa sustém a respiração.
A potência relutante 65

HOLLANDE FOI
TOMAR CHÁ COM
A RAINHA E ISSO
SIGNIFICA ALGUMA
COISA
03-07-2012

Na semana passada, François Hollande foi a Londres tomar chá com a rainha
e confirmar, para lá de qualquer dúvida, que não é sua intenção alterar os ter-
mos em que Nicolas Sarkozy colocou a velha entente cordiale. O Presidente
francês e o primeiro-ministro britânico, que estiveram reunidos hora e meia
em Downing Street, procuraram publicamente atenuar as principais diver-
gências que os separam em matéria europeia — e não são poucas — e apagar
qualquer sinal da crispação deixado pela última visita de Hollande a Londres
ainda como candidato presidencial. Viajou no Eurostar, foi apenas recebido
por Ed Miliband e ouviu David Cameron dizer publicamente que não só apoia-
va Sarkozy como não o receberia no n.º 10 de Downing Street. O Presidente
francês não parece ser pessoa de ressentimentos. Já tinha perdoado a Angela
Merkel a mesmíssima atitude. Agora, tudo leva a crer que perdoou a Cameron.
Seja como for, um e outra têm de lidar com ele e ele tem o máximo interesse
em entender-se com ambos. A níveis diferentes, claro está, mas igualmente
importantes.

Comecemos pela relação Paris-Berlim e pela sua centralidade. Na véspera


da última cimeira europeia, no dia 27 de Junho, Merkel visitou Hollande no
Palácio do Eliseu. As crónicas mais bem informadas descrevem um longo pas-
seio pelos jardins do palácio, seguido de uma boa conversa à mesa do jardim.
O encontro teve a coreografia oposta àquela que definia as cimeiras Mer-
kozy que precediam as cimeiras europeias. E, no entanto, o que os dois líderes
definiram acabou por marcar, provavelmente mais do que o que pareceu, o
resultado do Conselho Europeu do dia seguinte. Os dois entenderam-se sobre
o «pacto para o crescimento», o que não deve ter sido muito difícil — Hollan-
de precisava dele para a ratificação parlamentar do «tratado orçamental».
Merkel precisa dele para obter os votos do SPD e dos Verdes no Bundestag
para o mesmíssimo efeito. O essencial da conversa foi, no entanto, sobre outra
coisa. A chanceler colocou sobre a mesa do jardim a sua ideia de que o euro só
66 Europa Trágica e Magnífica

tem futuro com um avanço para uma «união política» europeia. «Ela quer um
projecto que possa mostrar aos alemães antes das eleições do próximo ano.
Precisa de alguma coisa depressa», disse à Reuters um alto diplomata francês.
Hollande colocou provavelmente as suas dificuldades para avançar nesse sen-
tido e perguntou o que é que a Alemanha estaria disposta a dar em troca. «Nós
acabámos de chegar. Não temos necessidade de colocar um grande projecto
na mesa, sobretudo porque ainda não existe um amplo consenso em França
ou no resto da Europa. Uma Europa mais integrada é óptimo, mas apenas com
mais solidariedade e a possibilidade de mutualizar a dívida», disse o mesmo
diplomata.
De alguma maneira, renovam-se os termos do grande acordo que esteve na
origem de Maastricht entre Kohl e Mitterrand: o euro em troca da unificação
alemã. Os dois protagonistas actuais são dois discípulos dos dois velhos esta-
distas (um mais fiel do que a outra). A crise existencial que ameaça seriamente
a integração europeia torna mais urgente a mesma união política que o chan-
celer alemão propôs a Mitterrand para completar a UEM e que o Presidente
francês recusou ou, pelo menos, adiou.
Desta vez, Merkel e Hollande voltam a ter nas suas mãos o destino da Eu-
ropa. Sem um novo «grande compromisso» entre Paris e Berlim será prova-
velmente impossível ao euro sobreviver a esta crise. É disso que se trata em
primeiro lugar. E por maiores que sejam as dificuldades em forjar esse com-
promisso — incluindo a sua aceitação pelas respectivas opiniões públicas —, os
dois protagonistas têm consciência disso mesmo. A França, muito mais do que
a Alemanha, tem dificuldade em aceitar a perda de soberania que essa união
política acabará por implicar. Mas está numa posição de suficiente fraqueza
económica para não se poder dar ao luxo de a afastar do caminho. Terá de ser
o resultado de uma negociação que lhe traga manifestas vantagens na afirma-
ção do seu estatuto europeu.
Em Reims, nas celebrações do 50.º aniversário do Tratado do Eliseu que
selou a reconciliação histórica entre a França e a Alemanha, Hollande recebeu
Merkel com todas as honras. Um beijo substitui o frio aperto de mão dos pri-
meiros encontros. «A amizade franco-alemã esteve na base de cada passo da
construção europeia. Proponho-lhe que abramos uma nova porta para uma
amizade ainda mais forte», disse o Presidente. Mas também falou da necessi-
dade de «combinar a soberania nacional — à qual estamos apegados aqui em
França, como na Alemanha — com os nossos compromissos europeus».

É aqui que entra o Reino Unido e a sua perigosa deriva antieuropeia.


Hollande precisa de Londres para o difícil exercício de equilíbrio político que
representa para a França um salto no sentido de maior integração política.
A sua visita oficial foi também para demonstrar que a velha entente, que hoje
tem a sua expressão mais recente no Tratado de Defesa que Nicolas Sarkozy e
Cameron assinaram, continua a ser uma pedra fundamental da política euro-
A potência relutante 67

peia e internacional de Paris. Com Tony Blair, mantê-la era mais fácil. A po-
lítica de defesa europeia nasceu verdadeiramente em St. Malo, em 1999, de
um acordo entre Jacques Chirac e o antigo primeiro-ministro britânico. Blair
entendia que a influência do Reino Unido na Europa se fazia por dentro. Ver-
dade seja dita que a sua política teve uma assinalável eficácia na forma como
moldou os destinos europeus. Sarkozy explorou-a até ao limite. Em Londres, o
seu sucessor tratou de dizer que «a relação entre a França e a Grã-Bretanha é
fundamental não apenas para a Europa, como para o mundo». Hollande terá
de preservá-la em condições muito mais difíceis.
Por um lado, a deriva britânica, que inclui o risco de um referendo para de-
cidir se o Reino Unido corta ou não os laços com a União Europeia, retira a
Londres margem de manobra para continuar a pesar nas decisões europeias.
A tentativa de vetar o «tratado orçamental», em Dezembro passado, não le-
vou Cameron a lado nenhum; pelo contrário, deixou o Reino Unido isolado
(o tratado acabou por ser subscrito por 25 países). Por outro, a França entre-
gue a uma união política continental sem o contrapeso britânico no domínio
da política externa e de defesa fica mais vulnerável. Quando Berlim fala em
união política também costuma falar em exército europeu. Alguém lembrava
recentemente que, um dia destes, a Alemanha pede à França que coloque a
sua force de frappe sob controlo europeu e abdique do seu lugar no Conselho
de Segurança.
Hollande foi a Londres renovar o acordo de defesa e dizer que uma Europa
a diferentes velocidades tem um lugar para o Reino Unido. Mas também terá
ouvido Cameron expor-lhe a possibilidade de uma ruptura europeia, que ele
não quer mas que ganha cada vez mais força dentro do seu próprio partido.
Para uma maioria, incluindo membros do seu próprio governo, a crise euro-
peia é uma excelente oportunidade para negociar uma participação britânica
mais «leve» e mais barata a troco de abdicar do veto contra uma zona euro
politicamente mais integrada. Para uma linha dura minoritária mas cada vez
mais audível, nem sequer o Mercado Único chega para justificar a permanên-
cia do Reino Unido na União, bastando um simples acordo de comércio livre.
São os defensores de uma «Grande Suíça com armas nucleares» e, como dizem
alguns analistas, nem sequer conhecem os enormes constrangimentos a que
a Suíça tem de se sujeitar para beneficiar do Mercado Único. Cameron tenta
manter alguma ambiguidade. Terá de acabar por apresentar com maior clare-
za a visão que tem para o papel do seu país no mundo.
Mas uma coisa é certa: uma renovação do compromisso franco-alemão que
é vital para o futuro da Europa também passa pela forma como se resolverem
os equilíbrios com Londres. Para Paris, como para Lisboa ou para Roma.
68 Europa Trágica e Magnífica

A ESCOLHA
DOS OUTROS

A EUROPA EM
ESTADO DE NEGAÇÃO
30-06-2009

Há dez anos, quando António Guterres lançou a sua iniciativa para dotar a Eu-
ropa de uma estratégia de desenvolvimento que lhe permitisse adaptar-se à
nova era da globalização e da Internet, o mundo era completamente diferente.
Concluída com êxito a união monetária, a Europa olhava à sua volta para ve-
rificar até que ponto a América conseguia tirar proveito da globalização dos
mercados e da revolução das novas tecnologias que, aliás, liderava. A estraté-
gia de Lisboa, aprovada em Março de 2000 durante a presidência portuguesa
da União, visava precisamente emular a América, importando aquilo que a
sua economia tinha de dinâmico e tentando preservar, ao mesmo tempo, o
seu modelo social. A receita era apostar no conhecimento como a principal
vantagem competitiva. O objectivo era desenvolver uma espécie de «híbrido»
entre o modelo escandinavo e o americano, com o que de melhor um e outro
continham.
Diga-se o que se disser da sorte da agenda de Lisboa, a verdade é que teve
uma influência determinante nas políticas europeias e hoje, mesmo que mui-
tas das suas ambiciosas metas ainda não tenham sido cumpridas, as suas ideias
fundamentais continuam tão válidas como há dez anos. A Europa continua a
ter de apostar fortemente no conhecimento e na inovação, precisa de gerar
mais empregos e de empregar mais pessoas, de desenvolver a aprendizagem
ao longo da vida e criar as condições para compatibilizar as suas vantagens
sociais com a maior flexibilidade dos mercados e o envelhecimento da sua po-
pulação. Tem de reforçar ainda mais a componente «verde» da sua economia.
A Comissão já começou a preparar o pós-2010 e a sua ideia é que a estratégia
de Lisboa, devidamente adaptada aos novos tempos, é a melhor «estratégia de
A potência relutante 69

saída» para esta crise mundial. Tudo isto foi alvo de um interessante debate
na semana passada, organizado pelo gabinete do Coordenador Nacional da
Estratégia de Lisboa, que trouxe até cá representantes das duas próximas pre-
sidências da UE, a sueca e a espanhola, e da Comissão Europeia.

O que é que mudou, entretanto?


Em 2000 a globalização era vista ainda por muitas pessoas, aliás com um olhar
crítico, como a «americanização» da economia mundial. Verificou-se que as
coisas não eram bem assim. Mesmo que se possa dizer que a globalização foi
vantajosa para muitos países, é fácil de verificar que o foi em primeiro lugar
para as grandes economias emergentes, a começar pela China. Isto tem conse-
quências que a crise mundial tornou ainda mais claras. A América e a Europa
já não são os «únicos miúdos do bairro». Deixaram de poder ditar as regras do
jogo económico. Terão de fazê-lo daqui para a frente partilhando o poder com
os outros pólos económicos que entretanto emergiram. É este o significado do
G20 e a crescente irrelevância do G8.
E é neste novo contexto que a UE tem de se adaptar ao pós-2010. Sabendo
que também os outros — a China, a Índia, o Brasil ou a Coreia do Sul — apos-
tam no conhecimento e no up-grading da sua especialização económica. Que
as condições de concorrência serão muito mais duras. Que exigem estratégias
mais determinadas.
O que esta crise também tornou evidente é que não há desenvolvimento
que não seja socialmente sustentável (a crise resultou também dos profundos
desequilíbrios de riqueza à escala global e nacional) e que o futuro da produ-
ção e do consumo tem de ser «verde» se a Humanidade ainda quer ir a tempo
de inverter os efeitos das alterações climáticas. A sustentabilidade social tem
de ser negociada à escala global. Quem for capaz de liderar a nova vaga de
tecnologias verdes será provavelmente um dos grandes ganhadores da nova
fase da globalização.

Como é que os europeus olham para isto tudo? Temo que com uma auto-
complacência e uma falta de visão que lhes podem vir a ser fatais.
Uma das intervenções mais curiosas do seminário de Lisboa sobre o pós-
-2010 foi a do representante da Comissão, Tonnie de Koster. Em brevíssimas
palavras, o que ele disse foi que União liderou o combate à crise mundial (já
ouvimos o mesmo a Sarkozy, pelo que se desculpa o manifesto exagero), que
o seu modelo social minorou os efeitos da crise e é um exemplo para todas as
pessoas e que a sua liderança no combate às alterações climáticas dá-lhe uma
vantagem adicional. Fica-se com a sensação de que Bruxelas não vê aquilo que
se passa à sua volta. Que reage como se Barack Obama não existisse e a China
continuasse a fabricar camisolas.
Ora, o essencial do programa de Obama de resposta à crise é precisamente
transformá-la numa oportunidade para mudar a América no sentido de um
70 Europa Trágica e Magnífica

modelo social e ambiental mais sustentável. É isso que está a fazer. Está a com-
petir no mesmo terreno da Europa. Tem atrás de si dinamismo, capacidade
científica e tecnológica e a capacidade de inovação da América. E, que se saiba,
não tenciona pagar à Europa direitos de autor.
Ora, o essencial é que, com todas as suas fragilidades, a China tem consci-
ência da importância da sustentabilidade social e ambiental do seu colossal
desenvolvimento e está a subir rapidamente na cadeia de valor do que produz.
O que isto quer dizer é que as regras para uma globalização mais social e
mais verde vão ter de ser discutidas nos fora mundiais já não numa lógica de
imposição mas de negociação.
É aqui que a Europa tem um problema: a falta de uma visão estratégica que
possa dar sentido, de facto, às medidas com que quer construir o pós-crise no
pós-2010. E ainda outro, pelo menos tão sério, para o qual também não tem
uma resposta: a sua demografia.
O que é dramático não é tanto a falta de recursos. A Europa ainda dispõe de
uma população educada, de um modelo social, de uma economia poderosa.
O que é dramático é o seu autoconvencimento e a falta de uma liderança forte.
Precisa urgentemente de um abanão.
Talvez Maria João Rodrigues, outra das participantes no seminário de Lis-
boa, tenha razão quando defende que esta crise e as suas implicações só po-
dem ter uma resposta europeia: um novo patamar da sua integração política.
A potência relutante 71

O QUE TORNA
A EUROPA
DISPENSÁVEL
AOS OLHOS DOS
EUROPEUS
07-09-2010

«A União Europeia está a morrer — não de uma morte súbita e dramática, mas
de uma morte tão lenta e contínua que um dia destes podemos olhar para o
lado de lá do Atlântico e verificar que o projecto de integração europeia que
tínhamos como garantido ao longo do último meio século já não existe.» Quem
escreveu esta palavras e as publicou muito recentemente no Washington Post
foi um académico americano, Charles Kupchan (Council on Foreign Relations),
de cuja pena saíram algumas das mais veementes defesas da integração euro-
peia e da sua importância estratégica, inclusivamente como equilibrador da
hegemonia americana. O título da peça que assinou é ainda uma interrogação:
«Irá o nacionalismo dissolver a União Europeia?» Toca no ponto crucial. As
razões que Kupchan aponta para esta morte lenta de um dos mais belos pro-
jectos políticos do século XX são, em primeiro lugar, económicas, atribuindo-
-as à crise financeira e à forma como acelerou o declínio económico europeu.
Mas também acrescenta que os efeitos da crise apenas aceleram um outra ten-
dência, essa verdadeiramente perigosa — se não fatal. «De Londres a Berlim,
passando por Varsóvia, a Europa está a viver a renacionalização da sua vida
política com países reclamando de novo uma soberania que antes estavam dis-
postos a sacrificar na busca de um ideal colectivo.»

Claro que nem todas as capitais se comportam da mesma forma nem o seu
comportamento tem o mesmo efeito no futuro europeu. Londres é Londres e,
mesmo assim, o novo governo liderado pelo conservador David Cameron em
coligação com os liberais-democratas tem-se revelado mais cooperante do que
as previsões iniciais. É o resultado de uma geração mais jovem mas também de
um certo sentimento de que há coisas que o Reino Unido, depois desta crise,
deixou de poder fazer sozinho e que pode ter interesse em fazer com a Europa
se quer manter um papel relevante no mundo. Em Varsóvia os sinais também
não seriam de grande desânimo se as coisas, no geral, não fossem tão desani-
madoras. O actual governo e o actual Presidente corrigiram a deriva naciona-
72 Europa Trágica e Magnífica

lista dos gémeos Kaczynski e a Polónia apresenta-se hoje, cada vez mais, nas
instituições europeias com uma atitude positiva, com ideias e propostas, como
deve caber a um país que é o sexto maior da EU e para o qual a Europa é o des-
tino estratégico. Os ventos gelados da renacionalização das políticas sopram
infelizmente das capitais que sempre foram centrais ao projecto europeu.
É no coração da Europa que encontramos, porventura, os sinais mais preo-
cupantes dos riscos de morte que Kupchan anuncia. A deriva alemã, que cor-
responde a uma visão diferente do que é hoje o seu interesse nacional, é talvez
o factor de incerteza mais forte sobre o futuro do projecto europeu e da sua
capacidade de renovação. A desorientação da França é a pior das respostas.
O velho Benelux deu lugar a dois países mergulhados em crises nacionais que
vão muito além da crise económica. Em Haia, a ascensão eleitoral de uma for-
te corrente populista anti-imigrantes impede há meses a simples constituição
de um governo. Em Bruxelas, o crescente antagonismo entre a comunidade
flamenga e a francófona está a ter o mesmo resultado. A doença é a mesma.
O Sul, enfraquecido pela crise das dívidas soberanas, deixou de ter margem de
manobra ou ânimo para exercer um papel mais activo. E, talvez pior do que
tudo, as instituições europeias, independentemente dos seus representantes,
desaparecem de cena, abdicando, voluntariamente ou não, de um papel que
seria hoje verdadeiramente crucial.

O que é interessante e mereceria alguma reflexão é que nem a cedência ao


populismo nem o recurso ao nacionalismo conseguem fazer algum bem aos
líderes europeus, embora consigam fazer muito mal à Europa. Angela Merkel
não consegue recolher o menor rendimento da retoma da economia alemã ou
da sua dureza contra os PIG durante a crise grega. Continua em queda. Nicolas
Sakozy encontrou nos ciganos a derradeira bóia de salvação contra uma impo-
pularidade crescente, numa remake que é quase patética das políticas securitá-
rias que lhe deram a vitória em 2007. Os franceses, como é costume, voltaram
à rua. Um pouco por todo o lado, em Espanha ou na Grécia, em Paris, Berlim
ou Londres, as medidas de austeridade estão a provocar uma onda de greves.
Os números do último Eurobarómetro sobre a valorização que os europeus
fazem da União deviam fazer tocar todas as sirenes de alarme.
Ontem, Durão Barroso, no seu primeiro discurso do Estado da União, de
alguma forma reflectiu esta tragédia europeia. «Este é o momento da verda-
de. A Europa precisa de mostrar que é mais do que 27 soluções nacionais dife-
rentes. Ou nadamos juntos ou afundamo-nos separadamente.» Como diag-
nóstico está perfeito. O problema é que o presidente da Comissão passou o resto
do seu discurso a «desdramatizar» as suas próprias palavras. Ou regozijando-se
com a forma como a Europa conseguiu vencer a crise ou enumerando uma sé-
rie de objectivos que, em si próprios, estão certos mas já soam demasiado a re-
petição para conseguirem mobilizar alguém. É esta distância entre o discurso e a
realidade que tornam a Europa cada vez mais dispensável aos olhos dos europeus.
A potência relutante 73

Em 2007 os líderes europeus encarregaram um «grupo de sábios» presidi-


do por Felipe González de preparar um relatório sobre os desafios da Europa
no médio/longo prazo. O trabalho ficou concluído em Junho deste ano e foi
entregue aos líderes europeus. Nele, González propõe justamente aquilo que
pode ser considerado a nova narrativa que dê à Europa um novo propósito
num mundo que, em termos económicos e geopolíticos, está virado de pernas
para o ar. Alguém o leu? Alguém lhe ligou? Nem a imprensa europeia, também
ela fechada no imediatismo das pequenas crises e dramas nacionais, nem os
líderes europeus responsáveis pela sua encomenda.
Num dos seus primeiros discursos na qualidade de presidente do Conselho
Europeu, no Colégio de Bruges, Herman Van Rompuy fez o diagnóstico lúcido
e sem contemplações dos desafios europeus do médio e longo prazo. Como
González, colocou a Europa no novo mapa mundial, analisou as suas fraquezas
e forças e apontou o caminho, estreito, que a pode afastar do declínio irre-
versível. Alguém lhe ligou? É certo que a Europa terá na sua próxima cimeira
dois temas da maior importância: o governo económico europeu (vamos ver
até onde a Alemanha está disposta a ir) e as relações com os grande parceiros
estratégicos da União (EUA, China, Japão, Índia). Esse é o caminho. O problema
é outro.
Quase no final do seu artigo, Kupchan menciona o que lhe disse recente-
mente um político europeu sobre o estado actual da Europa. «A União Euro-
peia está apenas a tentar manter a máquina a funcionar. A esperança é que isso
permita ganhar algum tempo até à emergência de novos líderes com vontade
de reclamar o projecto europeu.» A questão é saber se a Europa ainda terá
esse tempo.
74 Europa Trágica e Magnífica

A JANGADA,
O HELICÓPTERO
E O DESTINO
DA EUROPA
23-11-2010

Herman Van Rompuy, o circunspecto presidente do Conselho Europeu que


Angela Merkel escolheu, disse no dia 16 de Novembro uma verdade inques-
tionável. «Temos todos de trabalhar para que a zona euro sobreviva. Porque,
se não conseguimos sobreviver com o euro, não sobreviveremos como União
Europeia.» Disse em voz alta aquilo que muitas pessoas pensam mas só se atre-
vem a dizer em voz baixa. Foi discretamente aconselhado a voltar com a pala-
vra atrás e lá veio dizer, dois dias depois, que confiava plenamente na capaci-
dade da Europa para «sobreviver» a esta crise. Retrato perfeito da forma como
a União Europeia funciona. Apesar do Tratado de Lisboa, apesar de retórica
oficial de Bruxelas, é difícil acreditar nela.
Esta história traz-me à memória uma imagem que alguém, por sinal um pro-
fundo conhecedor das questões europeias, usou recentemente num debate
sobre a União Europeia (no caso, sobre a sua relação com a NATO). Henry Kis-
singer queria um número de telefone para poder ligar quando precisasse de
falar com a Europa. A Europa já tem um número de telefone. O problema é
que se trata de um atendedor automático onde (ainda) se ouve uma gravação
a dizer: se quer falar com Herman Van Rompuy, marque 1; se prefere Durão
Barroso, marque 2; para Catherine Ashton, marque 3… Poder-se-ia acrescen-
tar: se quer, mesmo, falar com quem decide, então ligue directamente para a
chancelaria de Berlim. «Os mercados apenas ouvem o que se diz em Berlim»,
escrevia o Charlemagne da Economist no seu bloco de notas.

Não há aqui qualquer intenção de apontar o dedo à Alemanha, acusando-a


de querer mandar. Não é essa a questão. A questão é que as decisões que toma
ou as que não toma estão a ter um efeito devastador sobre o euro e a União
Europeia. A Alemanha assume-se hoje como o país que lidera a Europa. O pro-
blema é que ainda não decidiu assumir as responsabilidades inerentes. Fabio
Liberti, do Institut de Relations Internationales et Stratégiques (IRIS) de Paris,
descrevia esta situação, de forma bastante compreensiva, para o Monde. «Ape-
sar de tudo, esta assunção de poder da Alemanha está a fazer-se por defeito,
sobretudo por causa do seu peso económico. Berlim ainda não está à vonta-
A potência relutante 75

de neste papel de liderança europeia, um pouco por causa do seu passado, e


não assume verdadeiramente a ideia de uma Europa liderada pela Alemanha.»
É como um adolescente que cresceu muito depressa e não sabe o que fazer ao
seu corpo.
É uma explicação possível, que ajuda a entender a crise tremenda em que
a Europa está mergulhada mas não iliba a Alemanha da sua quota-parte de
responsabilidade. A crise da dívida soberana está em Atenas, Dublin, Lisboa
ou Madrid. Cada um dos países do Sul tem os seus problemas e culpas. Pode
dizer-se até à saciedade que são eles que têm de fazer todos os sacrifícios que
forem precisos para pôr as suas contas em ordem. É, aliás, o que estão a fazer.
Pode dizer-se que os alemães não têm culpa pela má gestão e a insanidade dos
outros. A crise só é estancável se a Alemanha decidir de uma vez por todas
que o seu interesse vital ainda está na União Europeia. Não apenas nos 100
mil milhões de euros que os seus bancos possuem em títulos de obrigações da
Irlanda, mas na União Europeia, política e economicamente falando.

Em Maio, durante a crise grega e quando a chanceler viu finalmente o abis-


mo, a União dotou-se de uma «bazuca» de 750 mil milhões de euros para so-
corro dos países em dificuldades que deixou todas as pessoas de boca aberta.
Hoje, parece uma fisga contra os mercados. Ontem a Grécia, hoje a Irlanda,
amanhã Portugal, depois de amanhã a Espanha. Até ao dia, escreviam ontem
alguns analistas e ilustrava magistralmente, como é seu costume, a última capa
da Economist, em que a própria Alemanha saia do euro. Não porque tenha de-
cidido deliberadamente que o euro não lhe interessa, mas porque não teve
força política para salvá-lo a tempo e horas.
O que esta crise também revela é quanto pode ser frágil uma união monetá-
ria sem uma união económica. A Irlanda baseou o seu miraculoso crescimento
económico da última década em impostos muito baixos para as empresas. Por-
tugal no consumo interno. Madrid no boom imobiliário. A Alemanha na com-
petitividade da sua indústria. A «harmonização» limitava-se às regras do Pacto
de Estabilidade e Crescimento, aliás várias vezes violadas por todos os países.
A crise mundial e o seu impacte brutal fez explodir um modelo que sobrevivia
graças à prosperidade mundial e ao dinheiro barato. Diz de novo Fabio Liberti:
«[para a Europa voltar a encontrar uma convergência de interesses] é preciso
aumentar o peso da União Europeia na gestão dos orçamentos nacionais (…).
Porque hoje temos uma moeda única mas não temos uma política económica
convergente. A zona euro tem de se dotar dos instrumentos para relançar o
crescimento interno (…). A criação de um fundo de socorro europeu é um pri-
meiro passo. Mas podia também encarar-se a transformação de uma parte das
dívidas nacionais em dívida europeia, cujas taxas de juro seriam menores».
Impossível? É esta precisamente a questão. Não se pode continuar nesta
espiral de loucura, exigindo aos países endividados que aprovem programas
de austeridade sobre programas de austeridade para acalmar os mercados,
76 Europa Trágica e Magnífica

porque não é isso, ou pelo menos não é só isso, que os acalmará. A decisão é
política.
Se não, de crise em crise, de pânico em pânico, de intervenção in extremis
em intervenção in extremis, a Europa não sobreviverá.
Os países do Sul podem ficar à deriva na tempestade, como o quadro que
inspira a capa da revista britânica (Le Radeau de la Méduse), e Merkel pode ser
salva do naufrágio pelo helicóptero do BCE. Para quê? A Alemanha será uma
média potência económica com meia dúzia de países na sua órbita e as regras
do jogo serão ditadas noutros sítios. Em Washington e em Pequim.
A potência relutante 77

A CRISE FOI PARA


«INTERVALO»
15-12-2012

O Financial Times escolheu-o para «homem do ano», o que é óbvio. Se houve


alguém que conseguiu travar a corrida europeia em direcção ao abismo, que
marcou a primeira metade do ano, foi ele. Com uma simples frase, que nem
sequer estava inscrita no texto que leu numa conferência na qual participou
em Londres, no final de Julho. «Whatever it takes.» O BCE fará «o que for preci-
so para preservar o euro». Seguiu-se um pequeno silêncio, como que a deixar
assentar o impacto das suas palavras. «E, acreditem em mim, será mesmo o
suficiente.» Com estas duas frases mais as decisões subsequentes que o BCE
tomou em Setembro sobre a compra «ilimitada» de títulos de dívida de Es-
panha ou de Itália, o presidente do BCE conseguiu garantir uma acalmia nos
mercados que perdura até hoje. Estas decisões foram tomadas com um único
voto contrário no Conselho de Governadores: o do presidente do Bundesbank.
Mas puderam contar com o apoio discreto da chanceler alemã, que contribuiu
para o efeito prolongado do remédio e permitiu que o Conselho Europeu que
se realizou na semana passada em Bruxelas pudesse ser uma cimeira quase
sem história. Onde tudo começou e acabou mais ou menos a horas e apenas
serviu para que os líderes carimbassem publicamente o acordo obtido pelos
seus ministros das Finanças para a primeira etapa da futura união bancária
da zona euro, dessem luz verde a uma nova almofada financeira para ajudar
Atenas e adiassem para melhores dias um «grande plano» apresentado pelo
presidente do Conselho Europeu e destinado a completar a arquitectura insti-
tucional da União Económica Monetária para que possa funcionar como uma
união monetária a sério. Foi este o tema da sua discussão em privado que se
prolongou noite dentro apenas para confirmar as profundas divergências que
ainda subsistem, sobretudo entre Paris e Berlim. Este «grande plano» inclui
um conjunto vasto de medidas de médio e longo prazo que implicam mais
transferências de soberania para Bruxelas que alguns países, como a França e
a Holanda, ainda têm dificuldade em aceitar. Que pressupõem mais solidarie-
dade entre os países do euro, que a Alemanha ainda não está disposta sequer
a considerar. Mas que apontariam uma direcção e um caminho que funciona-
riam como um sinal muito forte para os mercados sobre a solidez do euro e
um estímulo muito importante para os países que estão hoje a fazer esforços
brutais para garantir a sua presença no euro e que precisam de ver alguma
luz ao fundo do túnel para justificar as tremendas consequências sociais da
austeridade.
78 Europa Trágica e Magnífica

Mario Draghi, ao fazer a sua parte, nunca deixou de advertir os líderes euro-
peus de que apenas estava a permitir-lhes ganharem tempo para que pudes-
sem tomar rapidamente as decisões políticas indispensáveis para garantir a
sustentabilidade da união monetária no longo prazo. Foi este sentimento de
urgência que ficou definitivamente adiado na cimeira da semana passada.

Herman Van Rompuy, que preside ao Conselho Europeu, passou os últimos


meses num labor incansável para negociar «um novo quadro institucional e
político para a UEM, destinado a colmatar as suas deficiências e a garantir a sua
resistência a crises como aquela que estamos a viver nos últimos anos». Fê-lo
com a colaboração dos presidentes das outras instituições europeias — Comis-
são, Parlamento Europeu e Eurogrupo. E fê-lo, sobretudo, porque recebeu um
mandato explícito para apresentar «um roteiro pormenorizado e calendari-
zado» na cimeira europeia de 28 e 29 de Junho, que devia ser aprovado em
Dezembro. Cumpriu esse mandato. Apresentou aos líderes europeus um do-
cumento pormenorizado sobre como e quando pôr de pé as quatro «uniões»
que devem sustentar a zona euro no futuro: união bancária, união orçamental,
união económica e união política. A versão final que levou à cimeira já estava
devidamente depurada dos aspectos que podiam incomodar a chanceler. Des-
de a ideia de um «orçamento» específico para a zona euro até à inevitável mu-
tualização parcial da dívida. Nada disto contou alguma coisa para demover a
chanceler. Não que a Alemanha não queira aprofundar a integração dos países
do euro, sujeitando-os a uma muito maior disciplina financeira e garantindo
que as suas economias alinham pelo modelo da economia alemã. Mas não é
este o seu timing. Como a própria chanceler disse no final do Conselho, a Euro-
pa ainda tem pela frente um «período difícil» durante o qual não pode «abran-
dar as reformas que tem de fazer para equilibrar as contas públicas e melhorar
a competitividade económica». Neste caso, «Europa» significa os países do
Sul em dificuldades, sujeitos ou não à intervenção da troika, e pode também
significar um desafio directo à França para que alinhe a sua economia pelos
parâmetros de exigência que a Alemanha quer ver aceites por todos os países
do euro. François Hollande quis passar a mensagem oposta: que o pior já ficou
para trás. «A Europa já saiu deste período em que se interrogava sobre o seu
próprio futuro, sobre o seu destino», disse o Presidente francês. Esta foi apenas
uma pequena demonstração da distância que ainda separa os dois países de
um compromisso sobre a Europa que deve sair desta crise. Nesse sentido, a
falta de pressa da chanceler juntou-se à falta de pressa do Presidente.

«Avançou-se alguma coisa», como disse o presidente da Comissão, Durão


Barroso, no final da cimeira. Mas, como ele também disse, não se avançou no
essencial. «Há uma diferença quanto ao sentido de urgência nalguns países e
isso, mais uma vez, ficou claro [na cimeira]. Os países que estão a sentir maior
pressão querem, obviamente, decisões mais ambiciosas.» Vão ter de conti-
A potência relutante 79

nuar à espera. Para Berlim, a primeira etapa de uma futura união bancária
e mais uma almofada financeira para a Grécia chegam e bastam para manter
as coisas como estão. Aparentemente tranquilas. A crise entrou, portanto, em
modo de «intervalo». Rompuy terá de continuar a negociar o seu «roteiro»,
agora até à cimeira de Junho do próximo ano. Os mercados deverão continuar
a acreditar em Mario Draghi e na sua promessa de que «fará o que for preciso».
As divisões europeias continuarão a aumentar. Os países do Sul, «mergulhados
na recessão e com taxas de desemprego impossíveis» como escrevia a Reuters,
só muito dificilmente conseguirão cumprir as metas do défice que lhes são
impostas. Ninguém sabe o que acontecerá em Portugal ou na Grécia. Aumen-
tará o risco político em países como a Itália, que terá eleições em Fevereiro, ou
em Espanha, às voltas com a necessidade de um resgate. Não são as melhores
perspectivas para o próximo ano.
80 Europa Trágica e Magnífica

AS ILUSÕES
DA FRANÇA
E AS DO REINO
UNIDO
10-12-2011

Esta foi uma cimeira que invoca profundamente a História. A História da


Europa e a história da União Europeia. A História da Europa não deve levar-
-nos a estigmatizar países, a desenterrar fantasmas, a tirar lições precipitadas
que não fazem sentido num mundo e num velho continente que mudaram
radicalmente desde a trágica primeira metade do século XX. Mas deve ensi-
nar-nos algumas coisas que são perenes. A história da União Europeia deve
lembrar-nos a génese do projecto europeu — que não nasceu por acaso, desta
ou daquela maneira, mas assentou em princípios extremamente importantes
para permitir uma unidade entre Estados soberanos com histórias e culturas
distintas, entre os quais aquele que todos os tratados, de revisão em revisão,
sempre consagraram: o princípio da igualdade entre os Estados.
Podemos começar por aqui. Este princípio nasceu com um objectivo fun-
damental: fazer com que os pequenos países limitassem o poder dos gran-
des, obrigando os grandes a entender-se entre si. Continua a fazer todo o
sentido. O contrário é o regresso à «balança de poder» que nunca sustentará
a ideia de uma Europa unida e integrada. A segunda grande característica
genética fundamental do projecto europeu é o papel único e insubstituível
da Comissão Europeia — uma instituição central destinada a garantir o equi-
líbrio na definição do interesse geral. Convém lembrar tudo isto quando a
União se prepara para dar um passo de gigante no sentido da sua integração
económica e política: o «tratado orçamental». O maior risco de se ter seguido
a via intergovernamental, fora da União Europeia e dos tratados, para dar
esse salto é deixar de fora ou atropelar estes princípios fundadores e cair
numa lógica da negociação estrita entre governos, uns com mais poder do
que outros.
Nicolas Sarkozy pode gabar-se de ter conseguido impor uma via que pra-
ticamente mais ninguém queria e da qual a França da velha tradição gaullis-
ta quase sempre gostou. Jacques Chirac, antes de Nice, imaginava um núcleo
duro europeu em redor do eixo franco-alemão — a que chamava vanguarda
—, dispensando a Comissão ou reduzindo-a a um mero papel administrativo.
Mas este desejo francês era sempre compensado por duas coisas positivas: a
A potência relutante 81

influência da Alemanha, que sempre preferiu seguir o caminho das institui-


ções europeias, e a velha pulsão europeia da própria França.
Curiosamente, o Presidente francês deve a sua vitória (a única) ao Reino Uni-
do. Pode gabar-se de ter realizado dois sonhos que povoam a história europeia
da França: uma vanguarda intergovernamental e uma Europa sem a Inglater-
ra. A Reuters dava-o como um dos grandes vencedores da cimeira. «Napoleão
sonhou com isso, De Gaulle lutou por isso, mas Nicolas Sarkozy talvez o te-
nha conseguido — uma Europa das nações com a França na liderança e a Grã-
-Bretanha de fora», escrevia o analista da Reuters, Paul Taylor. Porventura com
algum exagero.
A História das duas grandes nações europeias é a história das suas rivali-
dades mas também das suas alianças. Sarkozy pode imaginar-se um novo
Napoleão (era com Napoleão que a imprensa europeia o comparava quando
chegou ao poder, ainda que mais pelo estilo e pela figura), finalmente vinga-
do de Trafalgar. Devia, antes, manter presente a história da Segunda Guerra
Mundial e o seu dever de gratidão para com o aliado britânico. Ele próprio o
foi dizer a Westminster pouco depois de ter entrado no Eliseu. Ou lembrar-se
do interesse francês numa cooperação militar (selado num Tratado de Defesa
que não tem mais de um ano) que estará sempre na base de uma defesa euro-
peia. Provavelmente, esta será uma vitória de Pirro. A via intergovernamental
rapidamente revelará as suas limitações e, mais tarde ou mais cedo, a Europa,
se conseguir sobreviver a esta crise, recuperará as componentes fundamentais
do método comunitário e da igualdade entre os Estados. Como diz António Vi-
torino na entrevista que dá ao PÚBLICO nesta edição, o único capaz de atenuar
as diferenças de tamanho ou de riqueza.

Sobre a decisão de David Cameron de fazer aquilo que nem a Dama de Fer-
ro alguma vez se atreveu a fazer — são os próprios britânicos que, com o seu
pragmatismo, já estão a tirar as devidas lições. Margaret Thatcher ameaçava os
seus pares com a sua famosa mala de mão. Nunca usou o seu veto. Como es-
creveu ontem o historiador britânico Timothy Garton Ash num texto que deve
ser lido, «depois de ter falhado o início [do projecto europeu], a Grã-Bretanha
decidiu que tinha de estar presente “na mesa principal” para defender os seus
interesses, tradicionalmente entendidos como incluindo a preservação de um
equilíbrio de poder no continente». Durante quase quarenta anos, incluindo
com Margaret Thatcher, «foi isso que o governo procurou fazer dentro da
Europa». Prossegue o historiador que Cameron pode ter tido a ilusão de pre-
servar os interesses britânicos de curtíssimo prazo. «No longo prazo, até uma
criança de 5 anos percebe que é o contrário.»
Nunca, talvez, como hoje seria tão importante a Londres manter-se no cen-
tro das decisões europeias. A opção pela aliança privilegiada com os Estados
Unidos — que sempre marcou a política externa britânica desde a Guerra, seja
quem for que ocupe o n.º 10 de Downing Street — está hoje posta à prova pela
82 Europa Trágica e Magnífica

nova realidade americana e mundial. Pode haver uma nostalgia. Há laços cul-
turais e económicos profundos. Uma língua comum. A América vira-se cada
vez mais para o Pacífico, adapta o exercício do seu poder mundial aos cons-
trangimentos económicos e à emergência de novas potências que não são oci-
dentais. Se já antes via, vê agora muito mais a importância do velho aliado em
função da sua capacidade de influenciar a Europa. Como toda a gente, olha
com particular atenção para a Alemanha.
Sozinhas no meio do Atlântico, as Ilhas já não podem dizer que o nevoeiro
no canal deixa o continente isolado. Mais cedo ou mais tarde, os britânicos
terão de rever as suas posições e corrigir uma trajectória que se arrisca a isolá-
-los e a prejudicar a Europa.

Voltamos ao projecto de integração europeia. Se assentou na aliança franco-


-alemã para evitar a guerra entre as duas potências centrais do continente,
evoluiu para um equilíbrio a três no qual o Reino Unido tinha um papel decisi-
vo a desempenhar. A sua presença tornava mais fácil a aliança transatlântica e
permitia um alargamento que criava espaço a países com uma visão dos seus
interesses mais atlantista, facilitando os consensos. Claro que quando se vê a
Europa apenas como uma realidade económica e não como uma realidade
política e estratégica, dispensar os britânicos parece mais fácil. A Europa não é
só isso e, se for só isso, estará condenada.
Hoje, quando o exercício do poder da Alemanha e a sua posição domi-
nante na União corre o risco de criar ressentimentos e desenterrar velhos
fantasmas, o equilíbrio entre Paris, Berlim e Londres deveria ser preservado.
A História não é tudo mas também não é nada. E que não haja ilusões. Se
todos resolveram seguir a liderança franco-alemã e subscrever a declaração
dos 17 para um novo tratado fora da União, fizeram-no mais por medo e por
incerteza do que por convicção — embora a convicção de que uma Europa
integrada e unida corresponde cada vez mais aos seus interesses possa ter
sido um factor importante na sua decisão. O ministro polaco dos Negócios
Estrangeiros, Radoslaw Sikorski, no seu já célebre discurso de Berlim, disse
uma coisa que nunca imaginaríamos possível na boca de um polaco — que
a maior ameaça à Europa não vinha do poder alemão mas da inactividade
alemã. Não disse só isso. Também desafiou o Reino Unido a decidir-se so-
bre o seu lugar e o seu papel na Europa. Isto não significa que países como
a Polónia ou a Holanda, ou a Dinamarca ou Portugal, não se sintam muito
mais confortáveis com os britânicos dentro do que fora. Tanto mais que os
Estados Unidos tenderão, provavelmente, a abandonar progressivamente o
seu papel de «potência europeia», garante da segurança, da paz e da própria
integração no Velho Continente. Finalmente, não é muito difícil de perceber
que uma União sem o Reino Unido também significará uma Europa que pode
não parecer mais faca quando olhada de dentro, mas que o será aos olhos da
China ou dos Estados Unidos.
A potência relutante 83

Voltando a Garton Ash, «seja o que for que aconteça a partir de agora, a
União Europeia não voltará a ser a mesma». Mesmo que se venha a provar
«que este foi apenas o momento de viragem histórica que afinal a História não
conseguiu virar».
84 Europa Trágica e Magnífica

CAPÍTULO IV

A EUROPA
E O MUNDO:
ACTOR
PRINCIPAL OU
SECUNDÁRIO?

REUTERS/Mark Ralston/Pool
A Europa e o mundo: actor principal ou secundário? 85

O MULTILATERALISMO
ESTÁ DE REGRESSO,
FALTA SABER QUAL
23-09-2009

De um lado, uma instituição multilateral com 64 anos de vida que deveria ser
o pilar da governação mundial mas que, nos últimos dez anos, foi deslizan-
do progressivamente para a irrelevância. Do outro, um recém-nascido fórum
informal que emergiu da crise económica global para funcionar como uma
espécie de governo económico mundial.
A uni-los está a oportunidade de criar as bases de uma nova arquitectura
mundial capaz de responder aos desafios do século XXI e de reflectir os novos
equilíbrios de poder.
O desafio é tremendo. A novidade, que pode fazer a diferença, passa pela
nova liderança americana.
A entrada em cena de Barack Obama gerou uma enorme expectativa à es-
cala mundial. Ontem, o Presidente americano foi à Assembleia Geral da ONU
anunciar uma «nova era de cooperação internacional». Obama quer restaurar
o multilateralismo e colocar a América de novo no seu centro. Prometeu «re-
dobrar esforços» para fortalecer as Nações Unidas. Invocou Roosevelt em abo-
no da sua determinação mas também da magnitude da tarefa. «Não será fácil
nem será rápido», advertiu recentemente a embaixadora americana na ONU,
Susan Rice. Falta dizer como e quando os Estados Unidos tencionam jogar o
seu peso na reforma mais difícil mas também mais decisiva para restaurar a
legitimidade da organização — do seu Conselho de Segurança. Constituído pe-
las potências vitoriosas da Segunda Guerra Mundial, há muito que deixou de
reflectir a realidade mundial. Tornou-se um ponto de bloqueio. A sua reforma
está na agenda internacional desde 2000. Enfrenta resistências tremendas.
Os países com assento permanente defendem com unhas e dentes o status
quo. Os candidatos ao mesmo estatuto enfrentam a contestação regional. Só a
América estará em condições de quebrar o impasse.

Pode começar por aqui a breve mas promissora história do G20. Bastaram
200 dias e duas cimeiras para fazerem dele uma instituição que parece desti-
nada a perdurar. A sua génese remonta às últimas reuniões do G8, o selectivo
clube das democracias mais ricas do mundo e da Rússia, que não tiveram outra
alternativa senão passar a contar com alguns convidados permanentes para o
café. A crise mundial transformou-o numa necessidade. Tem a seu crédito ter
86 Europa Trágica e Magnífica

conseguido evitar os erros que levaram à Grande Depressão. As grandes eco-


nomias emergentes, sem as quais seria impossível conter a crise, obtiveram o
estatuto de igualdade que reivindicavam.
Obama foi a estrela da cimeira de Londres. Será hoje, em Pittsburgh, o an-
fitrião da terceira reunião do G20. «Os líderes mundiais esperam que o Presi-
dente Obama estabeleça o caminho, não só em termos de agenda mas também
de estrutura», lê-se numa análise do Center for Strategic and International Stu-
dies. Há uma oportunidade para substituir o velho «consenso de Washington»,
que a crise enterrou, por um novo «consenso global». Se era precisa uma prova
do empenhamento americano na continuidade do novo clube dos mais po-
derosos do mundo, ela está feita. A Europa ainda resiste. Teme o G2 (EUA e
China), sonha com um G3, não está preparada para abdicar da sobrerrepresen-
tação que teima em manter no G20. As grandes potências emergentes ainda
pesam os prós e os contras. Terão de aceitar uma nova lógica de partilha do
poder mundial que deixe de ser apenas reivindicativa. Esperam pela reforma
do FMI e do Banco Mundial, que mantêm intacta a sua estrutura de poder oci-
dental, para ganharem confiança. O passo seguinte, admitem alguns analistas,
será o alargamento da sua agenda às outras questões urgentes da agenda mun-
dial. Do clima à segurança alimentar, passando pela não proliferação.

A questão seguinte está em saber como articular a reforma da ONU com a


emergência de centros de poder informais que, de resto, não se limitam ao
G20. Risto Pentilla, do Centre for European Reform de Londres, considera que
este novo «multilateralismo light», assente numa «geometria variável», pode
ajudar a estabelecer a confiança, criando as condições para a reforma do sis-
tema das Nações Unidas. António Guterres prefere chamar-lhe, de forma um
pouco mais crítica, «multilateralismo dos grandes». Esta tendência, que não
tem a sua expressão apenas na emergência do G20 mas na própria evolução
da integração europeia, comporta riscos.
Será preciso mais para construir uma nova arquitectura mundial capaz de
garantir que a multipolaridade emergente será cooperativa e não competitiva
ou, no pior dos cenários, confrontacional. Obama já disse em que termos os
Estados Unidos estão dispostos a voltar a liderar. Resta saber qual a resposta
dos outros.
A Europa e o mundo: actor principal ou secundário? 87

A EUROPA
E O «RESTO»,
INCLUINDO A CHINA
14-09-2010

Os líderes europeus reúnem-se amanhã em Bruxelas para uma cimeira que


terá (também) na agenda as relações da União Europeia com os grandes par-
ceiros mundiais, focada sobretudo nas grandes potências emergentes. Não se
sabe até que ponto o debate vai ser a sério ou apenas uma formalidade desti-
nada a encobrir com o manto diáfano das palavras as várias estratégias que
cada um dos «grandes» europeus e alguns dos menos grandes mantêm com
a China, a Rússia, a Índia, o Japão ou o Brasil. Para já não falar da parceria das
parcerias — com os Estados Unidos da América. Aquela que, de resto, devia ser
um factor determinante de todas as outras.
Joshua Chaffin, do Financial Times, escrevia no seu blogue que esta corria
o risco de ser mais uma cimeira para nada. Talvez sirva para alguma coisa se
conseguir colocar na agenda europeia com muito maior ênfase um tema que
não podia ser mais importante para o futuro da União. Se hoje há uma razão es-
tratégica para preservar o projecto de integração europeia e dar-lhe um novo
sentido, ela está na necessidade de recolocar a Europa num mapa-múndi que
mudou dramaticamente. Desta vez os líderes tencionam dedicar duas horas
e meia ao assunto, a partir de exposições e contribuições de Catherine Ashton
e de Durão Barroso. Em cimeiras anteriores, as chamadas «estratégias» para os
grandes «parceiros» da União costumavam ser aprovadas de forma burocrá-
tica e incluídas como apêndices das conclusões do Conselho Europeu, a que
normalmente pouca gente ligava. Já é um avanço. E é também uma oportuni-
dade criada pelo Tratado de Lisboa e os seus novos instrumentos de política
externa. O novo serviço diplomático europeu deve servir, justamente, para dar
substância e coerência às prioridades externas da União e esta é certamente
uma delas. Dar ao Conselho Europeu, como pretende o seu novo presidente,
um papel central na política externa é outro dos requisitos fundamentais para
que ela possa existir e exercer-se de uma forma credível.

A China é, talvez, o caso mais paradigmático quando se trata de avaliar as


consequências da ausência de uma política europeia para lidar com as novas
potências emergentes. Se prestarmos atenção à imprensa americana e visi-
tarmos regularmente os think-tanks americanos, não restam quaisquer dúvi-
das de que, para Washington, o grande desafio estratégico para as próximas
88 Europa Trágica e Magnífica

décadas é a China. Como integrá-la e ao, mesmo tempo, contê-la. Como fazer
com que a sua emergência espectacular não faça explodir a ordem multilateral
construída pelo Ocidente, gerando um mundo de antagonismo entre pólos de
poder.
Na Europa as coisas ainda estão a um nível muito diferente. Os think-tanks
só agora começam a olhar com a devida atenção para a emergência da China
e as suas consequências mundiais e europeias. O foco ainda está no comércio
e cada governo ainda tende a olhar para Pequim como um parceiro económi-
co cada vez mais importante, onde se podem vender Airbus, fechar grandes
contratos ou deslocalizar empresas, mas não com uma visão estratégica sobre
a sua integração numa ordem mundial que continue a ser conveniente para a
Europa. Até agora, a Europa baseava o seu relacionamento com a China numa
vaga «estratégia» que valorizava uma «agenda global», incluindo as alterações
climáticas, a liberalização do comércio, os direitos humanos e o bom governo.
Copenhaga foi apenas o mais óbvio dos exemplos da distância entre as boas
intenções europeias e a dura realidade das negociações internacionais.
O que os europeus têm de fazer é uma abordagem estratégica, capaz de in-
tegrar o comércio mas também o Irão, as alterações climáticas mas também
a segurança mundial, a partilha de lugares no FMI ou no G20 mas também a
aceitação de um multilateralismo que continue a valorizar os direitos huma-
nos e o bom governo.
Para isso, a primeira coisa a fazer é precisamente convencer Pequim que
existe, de facto, uma Europa, com a sua (ainda) poderosa economia e 500 mi-
lhões de cidadãos, a sua moeda e interesses comuns, e não apenas Berlim ou
Londres ou Paris ou Roma. É esta, de resto, a linguagem que a China entende.
Basta prestar um pouco de atenção ao debate interno em Pequim para perce-
ber que as autoridades chinesas ainda não decidiram em definitivo se devem
considerar a Europa um dos actores globais do futuro com o qual é preciso
contar. Na Primavera, quando a União Europeia esteve à beira do abismo por
causa da crise da Grécia e da crise do euro, Pequim ainda apostou a favor do
euro (e da Europa), comprando títulos de dívida gregos e espanhóis. Interessa-
-lhe poder lidar com outra moeda além do dólar. Mas, em Pequim, entendem-
-se os factos e as palavras quando são sustentados por factos.

Há certamente uma «linguagem» que os governos europeus entendem e


pode ajudar a fazê-los compreender que precisam da Europa se querem pre-
servar o seu estatuto e prosperidade.
«A França deseja um Airbus da ferrovia», dizia ontem o ministro francês
dos Transportes, de visita a Xangai. Porquê? Porque a França já não conse-
gue concorrer com a China nos comboios de alta velocidade, vulgo TGV. «Seria
lamentável que o país que inventou o TGV já não o conseguisse exportar», la-
mentava-se o ministro, que viajava a bordo de um «TGV» fabricado na China e
certamente ouviu o governador da Califórnia, também de visita a Xangai, desa-
A Europa e o mundo: actor principal ou secundário? 89

fiar os chineses a apresentarem uma proposta de financiamento e construção


de uma rede de comboios de alta velocidade no seu Estado. Convém lembrar
que, há não muito tempo, a França tinha rejeitado a ideia de uma fusão entre a
Alstom e a Siemens para fortalecer o sector. Hoje apela à cooperação europeia.
A verdade é que a China está a subir muito depressa na cadeia de valor da-
quilo que produz. Chegou o momento de a Europa olhar para ela de outra
forma. De exigir reciprocidade em vez de recorrer ao proteccionismo e de ne-
gociar unida em vez de competir entre si por um lugar ao sol em Pequim, como
basicamente tem feito até agora.
Matéria mais do que suficiente para um bom debate em Bruxelas. Um teste
para saber se a cimeira serviu, afinal, para alguma coisa.
90 Europa Trágica e Magnífica

A EUROPA
RETIRA-SE
05-11-2011

A Europa retira-se. Poderá voltar dentro de uns dez anos. Regressará a uma
realidade internacional completamente diferente, na qual estará provavel-
mente destinada a representar o papel de um actor secundário. Poderia ser
esta a conclusão mais importante da cimeira do G20 que terminou na sexta-
-feira em Cannes, sob presidência francesa.
Alguns dos seus protagonistas podem continuar convencidos de que a reti-
rada da Europa da cena mundial pode não querer dizer necessariamente a sua
própria retirada. A Alemanha ainda é a quarta economia do mundo. Talvez se
acredite invulnerável à ruína que progressivamente a rodeia. Ou talvez não.
A França pode continuar a exibir o seu poder nuclear e um assento perma-
nente no Conselho de Segurança. Treme de medo perante a eventualidade
de perder o seu triplo A. Abraça-se à Alemanha para continuar a partilhar a
liderança europeia. Está, finalmente, disposta a fazer sacrifícios. Ontem, David
Cameron avisou os britânicos de que a incapacidade europeia para resolver a
crise do euro lhes poderia custar muito caro. Percebeu, talvez, até que ponto
o destino do seu país está ligado ao destino da Europa. Teme pela perda de
influência britânica do lado de lá (de cá) da Mancha, o que não quer dizer que
esteja a seguir a melhor estratégia. Mas nada disto apaga o «filme de terror»
europeu exibido durante dois dias em Cannes. A Europa comprometeu-se a
chegar à cimeira do G20 com a casa arrumada. A cimeira foi o palco da grande
desordem europeia. Em vez de um plano para resgatar o euro, houve uma tra-
gédia grega e uma triste «comédia» italiana. O espectáculo foi suficientemente
assustador para ter dissuadido os outros líderes mundiais a comprometerem-
-se a dar uma ajuda.

Angela Merkel e Nicolas Sarkozy tinham um «grande plano» para salvar o


euro que passava por convencer as grandes economias emergentes ou as ve-
lhas potências económicas a ajudarem a financiar o fundo de resgate euro-
peu. Vieram de mãos vazias. Não lhes valeu de nada terem chamado à ordem
o primeiro-ministro grego, ameaçando-o com a saída do euro. Valeu-lhes ainda
menos terem posto a Itália sob vigilância. Nada disto convenceu os seus par-
ceiros mundiais de que o seu plano é suficientemente credível para restituir a
confiança dos mercados e encontrar um caminho de saída que não leve direc-
tamente a economia europeia à recessão.
A Europa e o mundo: actor principal ou secundário? 91

Esta foi também a cimeira em que a sua muito controversa liderança eu-
ropeia falhou rotundamente. Não são apenas os seus parceiros europeus
que começam a contestá-la. Os seus parceiros mundiais também não acre-
ditam nela. «Se quiseram demonstrar que continuam a liderar a Europa, a
sua intenção revelou-se absolutamente frustrada», escreve o Financial Times.
O Presidente francês e a chanceler alemã «ficaram na posição humilhante
de serem os primeiros líderes europeus obrigados a pedir a ajuda de outros
países do G20 — que, ainda por cima, se mostraram todos indisponíveis em
comprometer-se na ausência de um plano convincente sobre como a Europa
tenciona ultrapassar os seus problemas». Os membros do G20 nem sequer
quiseram comprometer-se imediatamente com um reforço da capacidade
financeira do FMI para poder vir em socorro das economias europeias a bra-
ços com a crise da dívida.
No final, houve palavras de compreensão e de incentivo sobre a capacidade
europeia de ultrapassar as dificuldades. Foram mais uma formalidade neces-
sária ou a manifestação de um desejo do que uma crença efectiva. Quando o
Presidente americano ou o primeiro-ministro britânico tentam convencer a
chanceler alemã de que o euro só se salva se o BCE se comportar como a Re-
serva Federal ou o Banco de Inglaterra, o que lhe estão a dizer é muito simples:
vocês são uma união monetária, comportem-se como tal. Quando o Presiden-
te chinês ou a Presidente do Brasil recuam perante um possível apoio, estão a
dizer outra coisa: se a Alemanha não quer investir num fundo que serve para
salvar a sua própria moeda, por que razão nós havemos de o fazer?
A crise da Europa é uma crise de confiança. Era preciso que os parceiros
internacionais acreditassem que a Alemanha fará mesmo tudo o que for pre-
ciso para garantir a sobrevivência do euro. Não saíram de Cannes com essa
convicção. Os mercados reagiram rapidamente e em conformidade. As bolsas
e o euro caíram e subiu ainda mais o custo da dívida italiana. Quem estará
em condições de resgatar a terceira economia do euro e a oitava economia
mundial? A crise ganhou uma nova e assustadora dimensão. Merkel continua
a dizer que se vai resolver «passo a passo».

O G20 foi a resposta política a uma crise financeira global de uma dimen-
são gigantesca que pôs em evidência as profundas mudanças geoeconómicas
mundiais. O simples facto de existir é importante para gerir uma turbulenta
«fase de transição» da política mundial para uma nova ordem de contornos
ainda indefinidos. Corresponde ao recuo deliberado dos Estados Unidos, en-
fraquecidos pela crise económica e pelas guerras de Bush, e ao reconhecimen-
to do papel crescente de países da dimensão da China, Índia ou Brasil ou até de
médias potências como a Turquia, Indonésia ou África do Sul. As (médias) po-
tências europeias tinham uma escolha a fazer: ou reforçar o estatuto político
e económico da Europa ou tentar jogar, cada uma, o seu próprio jogo mesmo
que em nome da Europa.
92 Europa Trágica e Magnífica

É isto que também está em causa com esta tremenda crise europeia. O euro,
que é hoje a segunda moeda internacional, só se reforça se representar um
poder político capaz de agir à escala mundial. Mantê-lo exige que a Europa se
consolide. Desmantelá-lo é, efectivamente, o fim do projecto europeu, prova-
velmente quando mais seria preciso. Os EUA já não estão disponíveis para fun-
cionar como o garante da segurança europeia. Lançar-se nos braços da China
é a mais perigosa das tentações. A Alemanha terá de clarificar as suas escolhas.
Seguir o seu próprio caminho ou liderar uma nova Europa «global». Isso tem
um preço. Que não pode ser o G20 a pagar.

O segundo desafio europeu é o da mudança do seu próprio modo de vida.


Está à vista na Grécia ou em Portugal mas é um problema de todos. Há uma
contradição insanável entre o modelo social europeu e a necessidade de pedir
ajuda a países muito mais pobres. «A rica Europa dirige-se à China para obter
liquidez (…) Muitos, aqui, não conseguem compreender isso», escrevia o Glo-
bal Times, quotidiano «autorizado» em língua inglesa. Lembrava que a China
figura na 95.ª posição em relação ao rendimento per capita e a Grécia na 30.ª.
Duzentos milhões de chineses ainda vivem com menos de dois dólares por
dia enquanto a Europa representa o modelo social mais avançado do mundo.
Mais tarde ou mais cedo a Europa tem de olhar para si própria, fazer as contas
ao seu empobrecimento real e renegociar um novo contrato social em função
desta nova realidade. Pode fazê-lo em conjunto. Só é preciso que, em cada país,
se refaça um novo consenso político europeu.
A Europa retira-se? Não é inevitável. O problema é que parece cada vez mais
provável.
A Europa e o mundo: actor principal ou secundário? 93

JÁ NEM
O PAPA É EUROPEU
16-03-2013

Que me lembre, houve nos últimos anos dois momentos em que os experi-
mentados e cépticos jornalistas europeus (e de outras paragens) bateram
palmas no fim de uma conferência de imprensa. Espontaneamente e sem re-
morso. Na primeira conferência de imprensa do Presidente Obama, quando,
em Abril de 2009, veio a Londres participar na sua primeira cimeira do G20.
Ontem, no final do encontro do novo Papa com os jornalistas que cobriam os
últimos acontecimentos do Vaticano. Obama era uma tremenda lufada de ar
fresco e uma fonte de inspiração onde cada um podia projectar as suas expec-
tativas, ao ponto de fazer esquecer que era, antes de mais, o Presidente dos
Estados Unidos da América. A eleição do Papa Francisco transformou-se num
acontecimento inspirador, ao ponto de fazer esquecer que é, acima de tudo, o
chefe da Igreja Católica. Com Obama, a América provou a sua extraordinária
capacidade de renovação. Com Francisco, a Igreja Católica mostrou que
compreende o mundo em que vive e está disposta a mudar. O novo Papa vai
acabar por desiludir muitas pessoas. Reformar uma Cúria em decadência,
maioritariamente europeia, fechada sobre os seus privilégios e entretida em
lutas de poder muito pouco cristãs, é uma tarefa hercúlea. Teve um poderoso
aliado em Bento XVI, cuja renúncia não vai permitir que tudo fique exacta-
mente na mesma.
Obama foi o primeiro Presidente negro dos Estados Unidos. Francisco é o
primeiro Papa que veio «do fim do mundo» e é jesuíta. São sinais poderosos
que nos interpelam. São acontecimentos vividos à escala global e em directo,
graças a cobertura mediática. O novo Papa mostrou que compreende a função
dos media, oferecendo uma sucessão de gestos simples que pretenderam mos-
trar ao que vinha e o que queria: «Uma Igreja pobre e dos pobres.» É impossível
ficar-lhe indiferente. É impossível não reflectir sobre o significado político da
sua escolha. Que nasce de uma nova ruptura. A primeira foi a escolha do pri-
meiro Papa não italiano, que veio do Leste e precedeu a queda do Muro de
Berlim e a unificação da Europa. «Com João Paulo II a Santa Sé deixou de pare-
cer um clube de italianos», escreve a Economist. A segunda ruptura começou
com a resignação de Ratzinger, que não desistiu apenas de mudar a Cúria, da
qual fez parte quase toda a sua vida, mas desistiu também de uma Europa que
via como cada vez mais desprovida de valores. Com o seu gesto abriu as portas
à escolha, pela primeira vez em mais de mil anos, de um Papa que não é
europeu. Este é mais um sinal indesmentível de que o Velho Continente está
94 Europa Trágica e Magnífica

a ver o mundo passar-lhe ao lado sem sequer dar por isso, mesmo quando os
sinais vêm da cidade onde foi assinado o Tratado de Roma.

Enquanto olhávamos para Roma e para o seu novo Bispo, os líderes europeus
reuniam-se mais uma vez no tristonho edifício Justus Lipius de Bruxelas para
uma cimeira que não gerou qualquer expectativa. Com a Europa em recessão,
com os países do Sul mergulhados numa crise económica e social que não pára
de se agravar, com as eleições italianas a constituírem o último e mais sério
aviso do preço político que está a ser pago pelos programas de austeridade, a
cimeira foi um não acontecimento. Serviu para mais do mesmo. Ou seja, para
mais um exercício de retórica sobre a necessidade de conciliar austeridade
e crescimento, absolutamente vazio no que toca à segunda parte da equação.
Já se sabia que iria ser assim. Berlim já tinha avisado que não haveria qualquer
alteração real de estratégia. Reconhecer que os programas de ajustamento es-
tão a falhar clamorosamente em Portugal ou na Grécia e que a austeridade está
a penalizar brutalmente a Itália e a Espanha não é coisa que as autoridades de
Berlim e os seus amigos do Norte tencionam fazer, pelo menos no curto prazo.
As gesticulações de Christine Lagarde ou de Durão Barroso sobre os resultados
desta estratégia, por enquanto não passam disso. Nem sequer têm o mínimo
efeito nas avaliações da troika aos países intervencionados, cujos representan-
tes continuam diligentemente a debitar o mesmo discurso e as mesmas recei-
tas. E nem vale a pena deitar foguetes com a possibilidade de prolongar por
mais um ano o cumprimento das metas do défice ou alguma abertura para alar-
gar os prazos de pagamento dos empréstimos. Isso não significa uma mudança
política, mas apenas a verificação de que o cumprimento nas datas previstas
era pura e simplesmente impossível graças aos erros clamorosos dos próprios
programas e ao total falhanço das suas previsões. Nem o tempo a mais chega
para resolver alguma coisa, nem a mesma política dará diferentes resultados.
«Os factos são muito teimosos. Quando os factos mudam, ou se tornam mais
claros, as políticas têm de ser ajustadas», escrevia Timothy Garton Ash na sua
última coluna do Guardian, que é também um apelo à Alemanha para que faça
alguma coisa em nome do seu próprio interesse.
Podemos não estar de acordo com tudo aquilo que Jean-Claude Juncker
disse na entrevista à Spiegel da semana passada quando comparou a actual
situação da Europa com 1913. Mas o historiador britânico, embora um pouco
mais optimista, não resistiu à mesma comparação. «É pura coincidência que
a Alemanha enfrente este desafio quando nos aproximamos do centésimo
aniversário de 1914; mas é uma coincidência que revela uma histórica oportu-
nidade (…). Vá lá, Alemanha, agarra aquilo que Fritz Stern chamou uma vez a
tua histórica segunda oportunidade e utiliza-a bem.»

Já nem Vítor Gaspar parece acreditar no que está a fazer. Imagina-se o que
lhe terá custado apresentar, na sexta-feira, os resultados da sétima avaliação e
A Europa e o mundo: actor principal ou secundário? 95

as previsões subsequentes. O primeiro-ministro, que continua a falar como se


fosse o chefe de uma empresa, só se lembrou de dizer que é preciso derrotar
as previsões. Como? Há formas de o fazer. Mas não, certamente, aquelas que
ele tem defendido.
O problema é que, às vezes, as coisas têm mesmo que mudar, como o prova
a escolha do novo Papa. E o que foi exposto pelo ministro das Finanças sobre a
realidade portuguesa mais a pobreza do Conselho Europeu podem acabar por
abrir as portas a uma crise política de resultados imprevisíveis. As autárquicas
estão à porta e os partidos da coligação que nos governam ficarão cada dia
mais nervosos. António José Seguro resolveu anunciar que «rompia» com o go-
verno, numa súbita radicalização do discurso cuja lógica só pode estar na sua
própria fraqueza. O que havia de dizer no mesmo dia em que uma sondagem
(da Católica para o DN, a Antena 1 e a RTP) revelava um empate técnico entre
PSD e PS, mesmo que a favor do segundo? Outras sondagens dão resultados
diferentes, é verdade. Mas quase todas mostram uma verdade incontornável:
o PS não consegue ser percebido pelos eleitores como uma alternativa. As pes-
soas estão a precisar urgentemente de alguma coisa que lhes devolva a espe-
rança e não há o mais ligeiro sinal de que isso possa acontecer. Aqui ou em
Bruxelas. Mesmo para uma Europa desenvolvida e laica, o Papa Francisco é
mais inspirador do que qualquer líder europeu.
96 Europa Trágica e Magnífica

OS NEGÓCIOS
E A GEOPOLÍTICA
07-12-2013

Uma curiosa sucessão de visitas de líderes ocidentais a Pequim na semana pas-


sada ofereceu-nos inesperadamente o retrato quase perfeito da estratégia, ou
da sua ausência, que os Estados Unidos e a Europa têm em relação à «super-
potência emergente». A semana começou com David Cameron, que decidiu
fazer do seu país o «melhor amigo da China» na Europa, depois de dois anos
de mal-estar na relação entre Pequim e Londres, pelas razões do costume: a
visita do Dalai Lama ao n.º 10 de Downing Street e o dedo apontado à violação
dos direitos humanos. Terminou com o primeiro-ministro francês Jean-Marc
Ayrault. Entre as suas visitas, o vice-presidente americano, Joe Biden, também
passou por Pequim, depois de ter estado em Tóquio e de partida para Seul.
Imagina-se facilmente que a sua visita, ao contrário das outras duas, não teve
os negócios como ponto único da agenda.
Comecemos por Cameron. A imprensa britânica, sem pôr em causa a
importância de uma boa relação com a China, critica a súbita mudança de
agulha do primeiro-ministro britânico sem qualquer aviso prévio. Antes de
partir, Cameron prometeu que defenderia em Bruxelas a negociação de um
acordo de comércio livre com a China, como aquele que está a ser negociado
com os Estados Unidos. Bruxelas franziu o sobrolho e os analistas britânicos
trataram de lembrar que o primeiro-ministro não pode falar com tanta facili-
dade em nome da Europa quando se comprometeu com um referendo para
decidir se o Reino Unido fica dentro ou fora da União Europeia. Os chineses
sabem disso. Prestam muito maior atenção às suas relações com a França
ou com a Alemanha, aperfeiçoando a sua estratégia de «dividir para reinar»,
enquanto esperam que a Europa fale a uma só voz. Desafiam os países de
Leste para uma relação especial. Aproveitam a fragilidade das economias do
Sul, como a nossa, para investir. Desdenham da Grã-Bretanha como um país
em decadência onde só vale a pena fazer turismo ou enviar estudantes para
as universidades. Cameron levou mais de cem empresários e fechou alguns
belos negócios. O Tibete já ficou para trás e os direitos humanos são para se
falar baixinho.
Poucos dias depois, foi a vez do primeiro-ministro francês. A França tam-
bém já foi posta de quarentena, quando Sarkozy recebeu o Dalai Lama.
As relações melhoraram. Ayrault conseguiu garantir a cooperação entre a
Renault e a Dongfeng para uma fábrica de construção da marca na China.
A imprensa francesa congratulou-se com a abertura do mercado chinês à
A Europa e o mundo: actor principal ou secundário? 97

sofisticada charcuterie francesa, impedida de entrar por razões de «seguran-


ça alimentar».
Todos os países europeus querem uma «relação especial» com a China para
atrair investimento e conquistar mercados, o que é absolutamente natural.
Vão a Pequim por sua conta e risco e em competição uns com os outros. Mes-
mo os pequenos, como Portugal, querem garantir a sua fatia do bolo. O proble-
ma é que não há qualquer visão europeia de longo prazo para a relação com
a China. E é aí que entra a visita de Biden e do seu dificílimo jogo diplomático
para manter as coisas calmas por ali.

Enquanto Cameron e Ayrault faziam os seus negócios, os Estados Unidos


enviavam dois B 52 atravessar a novíssima «zona de identificação de defesa
aérea» que a China decretou unilateralmente no mar da China Oriental, in-
cluindo o espaço que se situa sobre a ilha que hoje está no centro de um pe-
rigoso braço-de-ferro entre a China e o Japão. Os japoneses ficaram furiosos.
Os sul-coreanos também. São os dois principais aliados dos Estados Unidos na
região. Olham para a China com cada vez maior desconfiança. A visita de Biden
serviu para «travar uma perigosa escalada em torno da disputa marítima entre
as duas grandes potências asiáticas», escreve o Washington Post. Começou por
Tóquio para travar o ímpeto nacionalista de Shinzo Abe e recomendar que se
estabelecessem vias de contacto directo entre o primeiro-ministro japonês e o
novo Presidente chinês. Seguiu para Pequim para tentar convencer os chine-
ses de que não é do seu interesse agitar demasiado as águas.
Ninguém pode ignorar o facto de que se multiplicam os «gestos» chineses
destinados a testar o seu poder na região e questionar a presença americana
no Pacífico. O maior desafio que o Ocidente hoje enfrenta é conseguir integrar
pacificamente a nova «superpotência em ascensão» na ordem internacional
que emergiu depois da Segunda Guerra Mundial. A história mostra que rara-
mente essa inclusão é pacífica. A globalização económica pode ser uma opor-
tunidade, na medida em que a interdependência económica torna os países
mais dependentes dos outros: a América como a China. É este o objectivo de
Obama com o seu «pivô» para a Ásia-Pacífico: manter o status quo na região
sem ter de hostilizar Pequim. O dificílimo exercício diplomático de Washing-
ton, apoiado numa presença militar enorme, é convencer a China de que a sua
política asiática não é de «contenção» do seu poder (a China não está conven-
cida), ao mesmo tempo que garante aos aliados regionais, do Japão à Coreia
passando pelos pequenos países que rodeiam o gigante chinês, que não os
abandonará. Ou seja, estamos aqui e vamos continuar aqui.

Já aprendemos que, quando os europeus não se conseguem entender sobre


uma questão importante, elaboram uma «estratégia comum» com muitas pá-
ginas mas sem qualquer conteúdo. Já existe uma «parceria estratégica» com a
China mas o seu efeito prático é mais ou menos igual a zero. Por enquanto, no
98 Europa Trágica e Magnífica

que toca aos negócios, a lógica que prevalece é a de cada um por si. Quanto à
geopolítica, a Europa agradece que os americanos tratem dela.
Não é uma posição sustentável por muito tempo. Que a Alemanha, que re-
presenta 40 por cento do comércio entre os dois gigantes económicos, veja as
coisas nesta perspectiva «geoeconómica» (mesmo que alguém tenha de man-
ter as rotas do comércio seguras para os seus produtos) ainda se entende. Que
o primeiro-ministro do Reino Unido, que é membro permanente do Conselho
de Segurança, esqueça o seu estatuto ao ponto de não ter emitido um comu-
nicado sobre a «zona de identificação de defesa aérea» (assinou o que foi feito
por Ashton em nome da Europa, que afinal lhe dá bastante jeito), é que é uma
novidade desagradável.

O receio maior dos EUA e dos seus aliados regionais é que a China adopte
a mesma atitude para o mar da China do Sul, onde está em conflito com as
Filipinas igualmente por razões territoriais. Esse receio foi ontem justificado
quando a diplomacia chinesa recusou submeter-se ao julgamento da comis-
são criada pela ONU para resolver o conflito. O novo líder chinês Xi Jinping
quer abrir ainda mais a economia chinesa às regras dos mercados, ao mesmo
tempo que utiliza uma retórica mais nacionalista que agrada aos chineses, ví-
timas da brutalidade japonesa antes da Segunda Guerra Mundial. O Japão é o
maior investidor na economia chinesa, tem uma marinha poderosa e decidiu
aumentar o orçamento de defesa. A China, que investe cada vez mais na defe-
sa, só tem um velho porta-aviões ucraniano que modernizou. A sua aviação
está muito longe de ter o treino da japonesa ou da coreana, sem falar dos EUA.
Os dois países só têm a ganhar com a paz. O problema é que nunca sabemos
quando uma tartaruga numa ilha deserta pode incendiar um oceano. A His-
tória ensina-nos, quase sempre da maneira mais trágica, que o nacionalismo
cega as nações ao ponto de ignorarem o seu próprio interesse. No meio disto
tudo, o que é que a Europa pensa? Em negócios. Habituou-se mal com a Guerra
Fria e custa-lhe perceber que o mundo, entretanto, mudou.
A Europa e o mundo: actor principal ou secundário? 99
100 Europa Trágica e Magnífica

REUTERS/Alexander Demianchuk

CAPÍTULO V

A RÚSSIA,
A UCRÂNIA,
A TURQUIA
E O PREÇO
DA AUSENTE
POLÍTICA
EXTERNA
EUROPEIA
A Rússia, a Ucrânia, a Turquia e o preço da ausente política externa europeia 101

TRISTES
TEMPOS PARA
A DEMOCRACIA
Outubro de 2006

O assassínio da jornalista russa Anna Politkovskaia, em circunstâncias brutais,


significa duas coisas novas. Primeiro, que a desfaçatez do Kremlin é total e já
pouco ou nada há para disfarçar. Segundo, que o regime de Vladimir Putin, do
qual gostamos de dizer delicadamente que segue uma «perigosa deriva auto-
ritária», criou na Rússia um clima de impunidade e brutalidade em que tudo
passou a ser permitido.
Pouco importa quem pagou a quem para premir o gatilho. Anna Politko-
vskaia tinha de ser silenciada da maneira mais definitiva porque todas as ou-
tras formas de a silenciar a que um regime autoritário pode recorrer tinham
falhado. Chantagem, ameaça, tentativa de envenenamento, fosse o que fosse.
Não estamos, naturalmente, a falar de uma jornalista normal. Era uma figura
conhecida de muitas pessoas dentro e fora da Rússia. Premiada internacional-
mente, publicada internacionalmente. Ameaçada há muito. Correndo contra
o tempo, saltando sobre as armadilhas e as provocações. Era uma mulher com
uma coragem quase ilimitada, que sabia os riscos que corria e teimava em di-
zer que apenas fazia o seu trabalho, como o músico faz música e o médico cura
doentes. E que trabalho era esse?
A sua fama, que acabou por torná-la uma afronta aos olhos do regime, nas-
ceu da forma como descreveu as guerras na Chechénia, a «guerra suja» como
lhe chamava, com o seu cortejo de trágicas consequências. Para os chechenos,
para os soldados russos mal preparados, mal equipados, mal chefiados, para a
perversão antidemocrática do próprio regime russo.
Como escrevia ontem na Economist um jornalista que a conheceu, tornou-
-se insuportável porque o seu jornalismo era «distinto». Não fazia parte do
selecto círculo dos comentadores. «Ela escrevia sobre as cidades e aldeias ar-
ruinadas, responsabilizando todos os lados envolvidos com uma paciência e
uma determinação sem limites.» Sem sentimentalismos para com os rebeldes
chechenos, sem demonizar os soldados russos, implacável para com a bruta-
lidade dos generais ou a corrupção dos governos-fantoches de Moscovo, mas
também para com os extremistas islâmicos. Falava das mães russas à procura
dos corpos dos seus filhos mortos ou dava conta das descrições terríveis das
famílias dos desaparecidos nas prisões, torturados nas prisões, mutilados e
violados nas prisões. Ia onde tinha de ir. Onde muito poucos jornalistas russos
102 Europa Trágica e Magnífica

e muito menos ocidentais se atreviam a ir. Contava minuciosamente as suas


tentativas vãs de obter respostas. Descrevia com factos o regime de Putin.
Muitos acusavam-na de pintar uma paisagem demasiado negra do seu país.
De carregar excessivamente nas cores com que denunciava a perversão do
regime. De ser demasiado teimosa, quase obsessiva. Talvez agora ela tenha
marcado o seu ponto.

Anna Politkovskaia não foi a primeira jornalistas a ser assassinada a sangue-


-frio na Rússia. De acordo com o Comité russo para a Protecção dos Jornalistas,
pelo menos doze outros já foram vítimas fatais do mesmo tipo de «assassínio
contratado» só nos últimos seis anos. Ou seja, desde que Putin chegou ao po-
der. Até hoje, ninguém foi preso ou levado a julgamento. Nem sequer são os
jornalistas as únicas vítimas do seu regime. Os partidos políticos, os tribunais,
os governos regionais e locais, os grandes negócios, praticamente todos os
sectores da sociedade foram sendo sistematicamente postos na linha. Desde
a prisão e julgamento do magnata Mikhail Khodorkovski, em 2003, que mais
nenhum oligarca ousou levantar a voz para criticar Putin ou, muito menos,
desafiá-lo. Nos media, o ataque começou com as televisões, hoje praticamen-
te todas sob controlo do Kremlin, mas havia ainda algum espaço de manobra
para a imprensa escrita respirar.
O seu assassínio tem a marca indelével do aviso. Como escrevia também
ontem a colunista do Washington Post e autora de Goulag, Anne Applebaum,
«depois do assassínio de Anna Politkovskaia é difícil imaginar muitos jornalis-
tas russos a seguirem os seus passos em direcção a Grozni. Cada jornalista vai
pensar duas vezes antes de criticar Putin sobre seja o que for».
Os custos internacionais também podem não ser grandes. É provável que,
durante alguns dias, a imprensa internacional transforme o seu nome numa
acusação. As organizações que defendem os direitos e as liberdades inscreve-
rão o seu nome na lista das suas violações. Mas outras formas de repressão,
mais brandas mas menos exemplares, teriam provavelmente para o regime de
Putin um custo muito maior. Prender jornalistas, como é uso fazer nos regimes
autocráticos, implicaria longas e persistentes campanhas a exigir a sua liberta-
ção. Obrigaria cada chefe de Estado europeu ou americano que fosse recebido
no Kremlin a uma palavra, mais ou menos audível, sobre o assunto. Três balas
disparadas à luz do dia e à porta de casa por um desconhecido que desaparece
no vento num país onde a violência é banal, remete a responsabilidade para
uma zona cinzenta onde cabe tudo, da máfia aos terroristas, das polícias se-
cretas ao exército ou às forças em confronto no Cáucaso. E será infinitamente
mais dissuasor. É mais fácil arriscar a prisão, mesmo nas cadeias da Rússia, do
que arriscar a morte.

Putin está à vontade. De um modo ou de outro, o Ocidente já interiorizou


a ideia de que perdeu a batalha pela democratização da Rússia e que tem de
A Rússia, a Ucrânia, a Turquia e o preço da ausente política externa europeia 103

viver da melhor maneira possível com os hábitos cada vez mais «soviéticos»
do Presidente russo.
O que a Europa diz todos os dias, para se convencer a si própria, é que preci-
sa de uma Rússia estável e cooperante. Evidentemente que a sua preocupação
quanto à dependência energética da Rússia aumenta na proporção directa do
endurecimento do regime. Evidentemente que as manifestações mais mediá-
ticas e mais intoleráveis da brutalidade do regime são um embaraço. Mas, nos
pratos da balança, a Europa e as suas potências preferem, como quase sempre,
a conciliação ao risco de uma atitude firme. O contrário exigiria que a Europa
quisesse jogar todo o seu peso económico e político para forçar a mão de Pu-
tin e dizer-lhe que não vale tudo. Exigia união de propósitos e uma estratégia
comum. Nada disto existe.
A administração americana responde com tímidos protestos e com cada vez
mais declarações envergonhadas de que, feitas bem as contas, ainda tem espe-
rança de que a Rússia vai na boa direcção. A anos-luz da doutrina da expansão
da democracia de Bush.
A crescente desordem mundial parece empurrar inelutavelmente as demo-
cracias para um pragmatismo cada vez mais destituído de quaisquer princí-
pios. Como escrevia também Anne Applebaum, «com as crises no Iraque, no
Irão e na Coreia do Norte, poucos terão tempo para se dar conta da recente es-
calada entre a Rússia e a Geórgia ou para meditar nas consequências políticas
da crescente dependência europeia do gás russo ou para se preocupar com
questões menores como a deterioração da liberdade de imprensa na Rússia».
No tempo da União Soviética não havia liberdade de imprensa nem sequer
imprensa digna desse nome. É assim nos regimes totalitários e as pessoas que
resistem habituam-se a recorrer aos mais variados estratagemas, todos eles ar-
riscados, para fazerem circular a informação. São estas as regras do jogo. Na
Rússia de Vladimir Putin ainda é preciso fazer de conta que há um certo grau
de liberdade de imprensa. Quanto mais não seja para que o Presidente possa
dizer meia dúzia de banalidades sobre a sua «democracia» à maneira russa
que não façam corar de vergonha os seus pares do Ocidente quando figura
com eles nos grandes eventos internacionais.
Tristes tempos para a democracia.
104 Europa Trágica e Magnífica

DE QUE RIEM OS
LÍDERES EUROPEUS?
27-11-2006

No final da cimeira UE-Rússia, na sexta-feira passada, Durão Barroso exibe um


sorriso confiante. Sorrir é normalmente a palavra de ordem entre os líderes
europeus, pelo menos quando se trata de Vladimir Putin, sócio indispensável
da União. Está escrito que é do interesse da União estabelecer uma parceria es-
tratégica com a Rússia e, portanto, mesmo que as coisas corram mal, é preciso
continuar a sorrir. A sombra da Guerra Fria pairou sobe a cimeira? Os resulta-
dos foram escassos? Talvez, mas é preciso continuar a sorrir.
Não dá qualquer vontade de sorrir, no entanto, a timidez com que a União
Europeia evitou ferir a susceptibilidade do seu convidado de Helsínquia com
pequenas coisas insignificantes. Morreu um ex-espião russo em Londres, en-
venenado da forma mais incrível e na altura mais adequada — precisamente
quando andava a meter o nariz no assassínio de Anna Politkovskaia, a indó-
mita e incómoda jornalista russa que viu em Outubro passado a sua corrida
desesperada para revelar os podres do regime russo definitivamente parada
por três balas à porta da sua casa em Moscovo? Pequenos pormenores numa
relação mais vasta e muito mais importante.

O antigo chefe da diplomacia alemã Joschka Fischer, que veio recentemen-


te ao Porto fazer uma conferência sobre as novas fronteiras da Europa, disse
duas ou três coisas muito importantes sobre a forma como a União e os seus
líderes assumiam ou não as suas responsabilidades mundiais. Uma delas foi
precisamente sobre a Rússia de Putin. O que Fischer disse foi que, por mais im-
portante que seja estabelecer uma relação estratégica com a Rússia, a Europa
não deve permitir que sejam ultrapassados alguns limites, sob pena de vir a
pagar um preço muito alto no longo prazo. Esta linha vermelha, disse Fischer,
deve ter como objectivo impedir que a Rússia regresse a uma política imperial
em relação à sua vizinhança. Fischer deu como exemplo a forma como a União
soube pôr de pé uma política eficaz aquando da Revolução Laranja de Kiev,
em Dezembro de 2004. Nessa altura, os europeus impediram que Moscovo
pura e simplesmente ignorasse o resultado de eleições democráticas num país
independente, que teima em continuar a olhar como estando na sua esfera de
influência.
Curiosamente, o Presidente ucraniano Viktor Yushchenko venceu nessa al-
tura as eleições com a cara desfigurada por uma estranha «doença» que se
veio a saber ser o resultado de envenenamento por tálio. Foi esta a primeira
A Rússia, a Ucrânia, a Turquia e o preço da ausente política externa europeia 105

suspeita dos médicos britânicos quando receberam o ex-espião do KGB, Ale-


xander Litvinenko, num hospital de Londres para assistirem à sua lenta mas
inexorável agonia. Desta vez, contudo, o método de envenenamento foi apa-
rentemente mais sofisticado: plutónio-210, segundo os peritos apenas acessí-
vel a instituições muito poderosas e de vastíssimos recursos. Ninguém pode
apontar o dedo directamente ao Kremlin. Mas vale a pena ler o relato do co-
lunista do Observer, Henry Porter, da última vez que ouviu o ex-espião russo
falar em Londres, no Frontline Club, perante muitos jornalistas. «Anna veio
ter comigo para perguntar-me coisas sobre o FSB (Serviço Federal de Segu-
rança). Depois do seu livro A Rússia de Putin ter sido publicado, recebeu vá-
rias ameaças directamente do Kremlin. Perguntou-me: eles podem matar-me?
E eu respondi-lhe com toda a franqueza: podem. E aconselhei-a a sair do país,
pelo menos durante algum tempo. Putin fez-lhe chegar ameaças através de um
dos seus amigos (…). Estou absolutamente convencido de que só uma pessoa
na Rússia podia mandar matar Anna, com toda a sua fama e o seu estatuto:
Putin.»
São simples alegações. Outras haverá igualmente procedentes. Mas, como
diz Porter, a verdade é simples: dois dos mais veementes críticos de Putin fo-
ram assassinados no último mês. E isto diz muitíssimo sobre o que é a Rússia
hoje.

Neste enredo de John le Carré que traz por demais à mente as sombras da
Guerra Fria e que dá toda a força às palavras de Fischer, a Polónia desempe-
nhou também o papel de mau da fita que, como escreveu a imprensa europeia
mais prestigiada, ainda não percebeu as regras do jogo da União. Pode ser ver-
dade que a dupla de gémeos que governa a Polónia tem muito que se lhe diga
em matéria de nacionalismo e de fraco europeísmo. O problema é que os po-
lacos, e os checos, húngaros e bálticos, ainda têm uma memória fresca do que
significou a Guerra Fria e do que significa uma política imperial de Moscovo.
Compreendem talvez melhor do que ninguém que é preciso, de uma maneira
ou de outra, deixar muito claro a Putin os limites do seu poder. E Varsóvia terá
alguma razão quando diz que o embargo russo às suas exportações de carne
é uma questão política e não uma mera questão técnica, a alegada qualidade
da carne polaca, que dificilmente se imagina como uma grande preocupação
do regime russo. Mais uma vez, com a Polónia o Presidente russo está a testar
a vontade europeia.

A importância da Rússia para a Europa é enorme, não vale a pena subesti-


má-la. É o seu maior e mais poderoso vizinho. E não se trata apenas da estabi-
lidade da vizinhança europeia, ou seja, da vasta zona cinzenta que fica entre
os limites da União e as fronteiras da Rússia, da Ucrânia à Geórgia. Trata-se
também da segurança energética, num contexto de crescente instabilidade no
Médio Oriente e no Golfo, que faz com que a Rússia seja vital para o seu abas-
106 Europa Trágica e Magnífica

tecimento. Mas não a qualquer custo. O problema é que, além dos esforços de
Barroso em lançar as negociações de um novo quadro legal para as relações
com a Rússia (era o que estava em causa em Helsínquia e o que falhou), a União
ainda não conseguiu encontrar uma política coerente baseada nos seus inte-
resses comuns e nos seus valores.
Jacques Chirac sorri para Putin porque vê nele, de vez em quando, um par-
ceiro ideal para a sua política anti-Bush. Tony Blair sorri para Putin porque,
tal como Bush, decidiu que a Rússia era um parceiro fundamental na guer-
ra ao terror. Merkel sorri um pouco menos para Putin — não é por acaso que
vem de um antigo satélite soviético —, mas que ninguém se iluda: a Alemanha
quer garantir o seu abastecimento energético a qualquer custo, como o prova
a construção de um gasoduto a ligar os dois países, circundando a Polónia e
os Bálticos.
No início deste ano, quando Moscovo decidiu fechar a torneira do seu gás à
Ucrânica evocando uma questão de preço, pareceu a certa altura que a União
tinha finalmente tomado consciência do que estava em jogo. Hoje, quando a
Rússia continua a usar os seus recursos energéticos para ameaçar os vizinhos e
fazer pairar uma leve ameaça de chantagem sobre a própria União, a resposta
europeia continua a ser manifestamente insuficiente. E a Rússia continua con-
vencida de que pode ditar a Bruxelas os termos da sua relação. Não é necessá-
rio um grande esforço para entender que a Europa, se quiser, dispõe de armas
convincentes para estabelecer as regras do jogo com Putin.
O petróleo e o gás e o seu preço actual muito conveniente não chegam para
a Rússia se desenvolver e afirmar o seu estatuto de potência mundial. Precisa
de investimento, de mercados, de tecnologia. Tudo o que a Europa tem em
grande escala. Falta-lhe apenas decidir agir a sério e a uma só voz. Nesse caso,
até a Polónia se comportaria de outra maneira.
A Rússia, a Ucrânia, a Turquia e o preço da ausente política externa europeia 107

A CRISE TURCA E A
RESPONSABILIDADE
EUROPEIA
01-05-2007

Quando estive, no Outono passado, em Istambul para participar numa confe-


rência do EuroMesco, a questão das eleições presidenciais já se colocava como
um teste decisivo à democracia e à sociedade turcas. As armadilhas e os riscos
já eram visíveis e a escolha recente de um novo chefe do Estado-Maior das
Forças Armadas indicava já um possível endurecimento dos militares.
Na altura, as vozes mais avisadas alertavam para o risco de o partido islamis-
ta moderado no poder (AKP) não resistir à tentação de fazer eleger o seu líder
e primeiro-ministro, Recep Tayyip Erdogan, como Presidente da República.
Não que a sua eleição não fosse legítima. O AKP detém uma vasta maioria no
Parlamento que lhe garantiria sem dificuldade a eleição de Erdogan. A ques-
tão era política. A concentração do poder executivo, legislativo e presidencial
nas mãos do AKP suscitaria inevitavelmente reacções negativas na sociedade
turca e daria um óptimo pretexto aos militares, em perda de influência graças
à europeização acelerada do regime, para regressarem à cena.
Erdogan resistiu à tentação mas não pelas melhores razões nem da melhor
forma. A candidatura de Abdullah Gül, chefe da diplomacia turca e número
dois do partido, não representa nada de significativamente diferente da do
próprio primeiro-ministro. E os cenários mais negativos previstos nessa altura
aí estão, com todos os seus ingredientes, mergulhando a Turquia numa séria
crise política.
Os militares vieram à ribalta evocar o seu estatuto de «guardiões absolutos»
do secularismo turco, num tom de ameaça inadmissível em qualquer demo-
cracia. Gigantescas manifestações, convocadas por centenas de ONG, enche-
ram as ruas de Ancara e de Istambul para pacificamente defenderem o mesmo
secularismo que os militares invocam.

Mas é preciso não nos enganarmos na compreensão do debate político tur-


co. As duas manifestações representam tendências diametralmente opostas
que apenas uma gestão desastrada da crise pelo governo pode vir a juntar.
Os militares, que no passado nunca hesitaram em intervir na vida política para
derrubar governos (a última vez foi apenas há dez anos), vêem nesta crise uma
oportunidade para recuperar o poder que foram perdendo em proporção
inversa à consolidação gradual de uma democracia liberal. Não foi por acaso
que a reacção oficial da Comissão e da presidência da União Europeia à crise
108 Europa Trágica e Magnífica

incidiu exclusivamente sobre o comportamento dos militares, inadmissível


numa democracia que se quer europeia.
Os manifestantes, expressando embora as mais variadas sensibilidades, tra-
duzem uma realidade completamente diferente. Muita gente esteve presente
para manifestar a sua desconfiança, perfeitamente razoável, em relação a uma
hipotética tentação islamista (alguns falam em agenda escondida) do AKP que
vêem expressar-se, por exemplo, no facto de as mulheres de Erdogan e de Gül
fazerem questão de usar o véu islâmico.
«Não queremos uma mulher de véu no palácio de Ataturk», foi precisamen-
te um dos slogans mais ouvidos nas manifestações. Outro dizia: «Nem sharia
nem golpe de Estado, por uma Turquia democrática.» Os partidos seculares e
nacionalistas na oposição sabem utilizar esta corda particularmente sensível
para uma classe média cosmopolita e ocidentalizada para enfraquecer o go-
verno. Mas o governo também não pode ignorar esta mensagem.

Teria sido mais avisado, como escreveram muitos editorialistas mesmo pró-
ximos do AKP, que Erdogan tivesse optado por escolher um candidato de ou-
tro partido ou do seu, mas mais distante do poder e mais consensual. Sabendo
como sabe que as suas credenciais democráticas e laicas ainda estão à prova,
uma escolha diferente teria sido um sinal de tranquilização e anularia qual-
quer pretensão dos militares.
Não foi este, infelizmente, o caminho que escolheu. Preferiu uma prova de
força que lhe está a sair mal. Agora, como escrevem também muitos jornais,
só lhe resta a antecipação das eleições legislativas (previstas para Novembro),
que é a forma mais usual a que recorrem as democracias para resolverem cri-
ses sérias como esta e que será também a oportunidade para um debate demo-
crático e aberto sobre o Islão e o secularismo.
Se escolher a via da imposição do seu candidato, por mais legítima que seja,
só irá exacerbar a crise e afastar a Turquia da democracia e da Europa. E demo-
cracia e Europa têm sido o programa dos islamistas moderados desde que che-
garam ao poder há cinco anos. É essa a sua força e é isso que têm de preservar.
Por mais que nos possa irritar o facto da mulher de Gül exibir o véu, por
mais que possamos compreender os receios de muitas mulheres turcas, habi-
tuadas a viver como nós, que vêem no véu (ou melhor, no fim da proibição do
seu uso em lugares públicos) um sinal preocupante, a verdade é que foi o AKP
(que se apresenta a si próprio como um partido conservador de raízes muçul-
manas, comparando-se à democracia-cristã europeia) que levou a cabo a mais
profunda revisão constitucional e legislativa de que a Turquia tem memória
para a aproximar das exigências democráticas da União Europeia.
Como também é verdade que foi este governo que levou mais a sério e mais
consequentemente a prioridade estratégia europeia da Turquia. Pelo contrá-
rio, é nos sectores secularistas que encontramos o nacionalismo mais arrei-
gado.
A Rússia, a Ucrânia, a Turquia e o preço da ausente política externa europeia 109

Finalmente, a responsabilidade europeia. Para se entender o que se passa


hoje na Turquia é preciso começar por entender que a questão europeia é o
tema central da política interna turca. «O que acontece na Europa sobre a Tur-
quia, o que se decide em Bruxelas sobre a Turquia, tem consequências imedia-
tas aqui, positivas e negativas», disse-me em Istambul Atila Eralp, do Center for
European Studies de Ancara. A mensagem foi, aliás, repetida por quase todas
as pessoas com quem falei. Já nessa altura eram visíveis os efeitos das hesita-
ções europeias em relação ao destino europeu da Turquia. E a questão não é
apenas, ou principalmente, sobre as exigências da Europa em relação a Chipre
ou aos requisitos democráticos que Ancara tem de cumprir para ser membro
do clube. O que os turcos verdadeiramente ressentem é a mensagem, cada vez
mais audível, de que a União Europeia é um clube cristão sem lugar para um
país muçulmano.
A multiplicação de sinais negativos acabou por romper o consenso europeu
e isso deixa não apenas o partido islamista moderado que governa a Turquia
sem programa, como alimenta de novo as tentações nacionalistas dos partidos
seculares, a ambição dos militares e, em última análise, radicaliza a própria
sociedade civil.
O pior que poderia acontecer à Europa e à Turquia seria que os responsá-
veis europeus utilizassem esta crise, não para emendarem alguns dos seus
clamorosos erros dos últimos anos, mas para encontrarem o argumento que
lhes faltava para justificar a rejeição da Turquia. Se somarmos a isso o risco de
desagregação do Iraque, que faz regressar à agenda política turca o separatis-
mo curdo, dando aos militares nova razão para intervirem, então temos um
cenário deveras preocupante.
110 Europa Trágica e Magnífica

DA GUERRA FRIA
À PAZ GELADA
05-06-2007

Já não ia a Moscovo desde 1999, quando fui entrevistar o principal inspirador da


perestroika, Alexandre Iakovlev, amigo de Gorbatchov, quando a Europa cele-
brava os dez anos da queda do Muro. Nessa altura, apesar das extremas dificul-
dades em criar um Estado de direito, da miséria ao lado do luxo mais acintoso,
dos acessos de mau humor de Boris Ieltsin, dos abusos da polícia e dos serviços
secretos, ainda se respirava um clima de efectiva liberdade. Não que os tiques
de um país que viveu séculos sob o czarismo e transitou directamente para o
totalitarismo comunista tivessem desaparecido. Mas a imprensa era livre, os
jornais pululavam, as televisões também. Respirava-se, em suma, com bastante
liberdade, mesmo que fosse urgente encontrar alguma ordem no meio do caos.
Desta vez, bastou pôr o pé no aeroporto especial onde aterrou o avião do
primeiro-ministro português para ter aquela sensação imediata de que se
acaba de chegar a uma terra em que jornalista é persona non grata. Linhas
imaginárias que só os seguranças vêem que não se podem transpor. Subir um
degrau para ver melhor as tropas em passo de ganso a desfilar diante de Sócra-
tes é, vá-se lá saber porquê, estritamente proibido. Como é dar três passos na
direcção errada para desentorpecer as pernas. Vai ser sempre assim durante
toda a visita. Passos controlados, horas de espera, olhar gelado dos seguranças,
hostilidade. Sente-se na pele que não existe o hábito de respeitar a imprensa.
É esta a Rússia de hoje, como denunciavam os participantes no congresso
da Federação Internacional de Jornalistas, a decorrer em Moscovo, onde ser
jornalista deve ser a profissão mais perigosa do mundo.
Dois dias depois da chegada, escutar Vladimir Putin discorrer longamen-
te sobre os defeitos das democracias ocidentais, tentando provar que é tudo
exactamente a mesma coisa, é uma experiência quase irreal. Mas, enfim, não
é surpresa. Putin tem o discurso bem estudado para todas as conferências de
imprensa onde estão presentes jornalistas ocidentais com as suas aborrecidas
perguntas sobre a democracia na Rússia.
Aliás, Putin responde longamente e com inúmeros argumentos a todas
as questões internas ou internacionais. Entretanto, na Rússia, a imprensa
tem dois caminhos à escolha: ou se comporta de acordo com os ditames do
Kremlin, ou tem problemas sérios. Isto quer dizer que, cada vez mais, os rus-
sos não têm direito à verdade dos factos. A Economist descrevia, por exemplo,
como as declarações mais incómodas de Angela Merkel na cimeira de Samara
tinham sido habilmente montadas para parecerem absolutamente inócuas.
A Rússia, a Ucrânia, a Turquia e o preço da ausente política externa europeia 111

Sabe-se como é. Mas sabe-se também que, sem liberdade de imprensa, o ca-
minho para o autoritarismo entra na via rápida para não mais travar.

Na Europa há duas correntes em relação à melhor maneira de se lidar com


Moscovo. Simplificando um pouco as coisas, há os que pensam, como Merkel
ou Barroso em Samara, que é preciso traçar algumas linhas vermelhas, insistir
sobre os direitos e as liberdades e denunciar os abusos e os comportamentos
inadmissíveis do Kremlin, mesmo que isso não implique pôr em causa o objec-
tivo final de procurar uma parceria com a Rússia. E os que, neste exercício de
equilíbrio que é, não tenhamos dúvida, muito difícil, se inclinam para o outro
prato da balança, Que é preciso condescender, dialogar, mostrar-se compreen-
sivo e evitar o paternalismo. Olhar, como disse Sócrates, para o médio e longo
prazo e não se fixar apenas nos pormenores de curto prazo. O primeiro-mi-
nistro não chegou naturalmente ao extremo de chamar a Putin um «democra-
ta» como fez, por exemplo, Gerhard Schröder. Mas a diplomacia portuguesa,
sempre tentada pela realpolitik, inclina-se claramente para este lado, como foi
patente durante a visita oficial de dois dias a Moscovo na semana passada.
São muitos e até aparentemente bastante razoáveis os argumentos dos que
privilegiam a necessidade de contemporizar. Que é preciso compreender o
que aconteceu à Rússia nos últimos quinze anos: o colapso de um império, a
passagem ao estatuto de potência de segunda linha, a desorganização interna,
o paternalismo ocidental, a revolta das antigas colónias soviéticas, o alarga-
mento da NATO até às suas fronteiras e a inclusão na União Europeia de partes
do seu antigo território, a agitação democrática na Ucrânia, na Geórgia, etc.,
etc., etc.
O erro está em que nada disso é incompatível com a ideia de democracia e,
sobretudo, que não há contradição entre duas ideias fundamentais: a ideia de
uma Rússia forte e a ideia de uma Rússia democrática. O que, pelo contrário,
se sabe de ciência certa é que uma Rússia autoritária pode não ser compatí-
vel com a ideia de uma Rússia cooperante com o Ocidente na resolução das
grandes questões internacionais, como infelizmente se tem visto todos os dias.
Quanto mais Putin reprime internamente, mais hostiliza externamente.

De resto, o Ocidente está perante um problema muito sério. A Rússia não


quer cooperar. Quer impor a sua vontade, reconquistar a sua zona de influên-
cia, tratar as antigas colónias como tais, impor a sua vontade. E está a fazê-lo
pela via da intimidação, mesmo que os contemporizadores teimem em enten-
der outra coisa.
Kroutchev batia com o sapato em cima da mesa da Assembleia Geral da
ONU. Putin resolveu passar a bater com o sapato em todas as mesas para as
quais o Ocidente o convidou a estar presente, ameaçando a torto e a direito
com uma nova Guerra Fria. É provavelmente o que fará quando chegar hoje a
Heiligendamm, na antiga Alemanha de Leste, para participar na cimeira do G8,
112 Europa Trágica e Magnífica

o grupo dos países mais desenvolvidos do mundo ao qual a Rússia foi simpa-
ticamente convidada a entrar na década de 90. Provavelmente, Bush, Merkel,
Blair ou Sarkozy vão fingir que o seu parceiro se sabe portar à mesa. Mas Putin
chegará com o propósito de estragar a festa. Aliás, já a estragou, ao anunciar
há três dias que a Rússia pode de novo apontar os seus mísseis às principais
cidades europeias caso Bush insista no seu sistema de defesa antimíssil. Assim,
uma cimeira que Merkel quis focar em duas grandes questões globais que são
importantes para a agenda europeia — as alterações climáticas e a ajuda a Áfri-
ca — vai ver-se totalmente desfigurada pela retórica bélica do Presidente russo.
O clima, na Europa como nos EUA, continua a ser o de salvar as aparências.
Bush vai convidar o seu homólogo russo para a sua casa de família em Kenne-
bunkport, no Maine. Sócrates tenciona receber Putin com todas as honras em
Mafra. Mas alguém tem de descobrir urgentemente uma nova estratégia para
lidar com a nova-velha Rússia, que tem de ser concertada entre os dois lados
do Atlântico.
Tal como antes o poder soviético, o objectivo de Putin com o escudo anti-
míssil é simples: dividir a Europa e dividir a NATO. Será isso, precisamente,
que o Ocidente não pode deixar que aconteça. Pode dialogar, estender a mão,
convidar, apaziguar. Desde que a Europa perceba com toda a clareza que a sua
segurança está ligada aos EUA e que esse é o único domínio onde não pode
ceder. E que seguirá um caminho errado se, na sua política externa, começar a
separar os seus interesses imediatos dos seus valores.
A Rússia, a Ucrânia, a Turquia e o preço da ausente política externa europeia 113

O OCIDENTE
DESISTIU
DA UCRÂNIA?
15-01-2010

O Ocidente desistiu da Ucrânia? Ou foi a Ucrânia que desistiu de si própria?


A questão pode encontrar um princípio de resposta já hoje, quando os ucra-
nianos foram escolher o seu novo Presidente nas primeiras eleições presiden-
ciais depois da Revolução Laranja.
Há cinco anos, quando os ucranianos ocuparam as ruas de Kiev sob um
frio glaciar para dizerem que o seu destino era a democracia e o Ocidente, a
trajectória do país parecia definitivamente traçada. O comboio partia a toda
a velocidade em direcção à UE e à NATO. Parou na primeira estação. A Re-
volução Laranja chegou a ser vista como a precursora da segunda vaga de
democratização europeia: depois dos países da Europa Central e de Leste, a
poderosa máquina de «regime change» da UE chegava agora às antigas repú-
blicas da União Soviética. A Europa envolveu-se de alma e coração para que a
democracia vencesse. A Ucrânia foi, durante algum tempo, a «preferida» de
Bruxelas, provocando os ciúmes de Ancara. Hoje, é um pesadelo. «Há dois ou
três anos ainda havia uma larga maioria de países [da UE] favoráveis à ideia de
lhe oferecer uma perspectiva de adesão», escreve Tomas Valasek, do Centre
for European Reform de Londres. «Hoje caiu em desgraça.»
Como é que se chegou aqui? Qualquer diplomata europeu tem a respos-
ta na ponta da língua. A classe política ucraniana, em vez de aproveitar a
oportunidade, passou cinco anos a digladiar-se pelo poder, as reformas não
foram feitas, as instituições não funcionam, a economia mergulhou no caos.
«Nem sequer temos com quem falar quando vamos a Kiev», queixa-se um
alto funcionário do FMI, citado pela Reuters. O Fundo viu-se obrigado a
suspender o empréstimo de emergência (16,4 mil milhões de dólares) para
ajudar o país a enfrentar os efeitos devastadores da crise mundial porque
em Kiev ninguém se preocupa em cumprir no mínimo que seja as condições
estabelecidas.
«Os governos europeus têm razão para estar desiludidos», admite o analista
de Londres. O facto não iliba a UE da responsabilidade. «O Ocidente não se
pode dar ao luxo de se pôr de lado e ficar a ver», diz Samuel Charap do Center
for American Progress. O país é demasiado importante. «Como plataforma de
trânsito para o abastecimento energético da Europa, como ponte entre o Oci-
dente e a Rússia, como Estado do mar Negro.»
114 Europa Trágica e Magnífica

Do ponto de vista burocrático, as relações entre Bruxelas e Kiev seguiram os


trâmites normais. Estão em curso as negociações para um ambicioso Acordo
de Associação, normalmente reservado aos países que podem vir a aderir ao
clube. A Ucrânia é um dos seis países da nova «Parceria para o Leste», lançada
pela UE em Maio passado e especialmente destinada às seis antigas repúblicas
europeias da União Soviética. As duas partes cumprem o ritual das cimeiras
anuais. Mas, sob as resmas de relatórios, não há qualquer movimento. «As re-
lações entre Kiev e Bruxelas estão bloqueadas por um círculo vicioso: a UE
desistiu de ver mudanças em Kiev; os políticos de Kiev desculpam-se com a
falta de incentivos europeus para não enfrentarem o caos em que vive o país»,
diz, de novo, Tomas Valasek.
As eleições representam «uma oportunidade para quebrar este círculo vi-
cioso». Se os seus resultados forem vistos como legítimos, interna e externa-
mente, a UE deve rever as suas posições e oferecer de novo algo de palpável
aos ucranianos. Se não, a Rússia não ficará à espera.

Vladimir Putin aprendeu alguma coisa com a derrota sofrida na Revolução


Laranja. Mudou de táctica. Desta vez, manteve as distâncias. Mas a Rússia não
alterou um milímetro os seus objectivos estratégicos. Passou a recorrer à arma
do gás para manter a Ucrânia na ordem e a Europa sob chantagem (80 por cen-
to do gás natural russo que abastece a Europa passa por território ucraniano).
A guerra na Geórgia, em Agosto de 2008, foi um aviso à navegação. A ideia de
ver a Ucrânia sair da sua «zona de influência» continua a não ser admissível.
A instabilidade política e económica é o cenário que mais lhe convém para
convencer os ucranianos de que a «democracia é o caos».
Em Kiev aprendeu-se a lição. Todos os candidatos, incluindo o pró-russo,
exibem a integração europeia como o seu grande objectivo político. Já nin-
guém duvida de que será preciso encontrar um modus vivendi com Moscovo.
Até que a Ucrânia tenha força para andar pelos seus próprios pés em direcção
ao seu destino ocidental — este é o melhor dos cenários. No pior, para evitar
um golpe de força ou a desintegração.
É este o drama maior da Ucrânia: um país que está sobre a falha tectóni-
ca que separa o Ocidente do Leste, onde se cruzam duas concepções opostas
da ordem europeia. Com os Estados Unidos mais distantes de um envolvi-
mento directo e mais dispostos a atrasar o alargamento da NATO, o seu des-
tino depende em larga medida da relação entre a Rússia e a União Europeia.
O Kremlin joga o seu jogo: dividir os europeus e dividir a comunidade tran-
satlântica. Enquanto a União Europeia não tiver uma estratégia comum para
a sua relação com a Rússia, a Ucrânia terá boa parte do seu destino em jogo.
A Rússia, a Ucrânia, a Turquia e o preço da ausente política externa europeia 115

A EUROPA JOGA
O SEU DESTINO
NA CRIMEIA
Março de 2014

Escrevi muitas vezes que a Europa, distraída com a sua crise existencial e (mal)
habituada a ter a sua segurança garantida pelos EUA, passou os últimos anos
a ignorar as enormes mudanças do mundo à sua volta. Não viu chegar as Pri-
maveras árabes, não definiu uma estratégia para influenciar a sua evolução,
ignorou a ameaça terrorista que se instalava nos Estados-falhados na região
do Sahel. E nem sequer se deu ao trabalho de rever a sua «estratégia de segu-
rança» de 2003, já largamente ultrapassada pelas mudanças internacionais.
Apesar da Líbia ou do Mali, não fez qualquer esforço para se adaptar à nova
doutrina de Washington que lhe atribuiu muito mais responsabilidade pela
segurança regional. Confesso que nunca pensei que a crise que se trava hoje
na Ucrânia nos entrasse pela porta dentro numa dimensão e numa gravidade
para a qual essa ausência de estratégia se torna dramaticamente visível. É, já
ninguém tem dúvida, a maior crise vivida na Europa desde a queda do Muro.
Que põe em causa as fronteiras estabelecidas desde o fim da Guerra Fria (e
a Europa sabe, melhor do que ninguém, o que que isso significa) e apanhou
os europeus absolutamente de surpresa. Desta vez, não vai ser fácil resolvê-la
apenas pelo método preferido: deixar andar.
Em boa verdade, esta distracção traz consigo um profundo ensinamento.
Apesar da estratégia de Putin para a reconstituição de um novo «império
russo», capaz de apagar as consequências da implosão da União Soviética («a
maior tragédia geopolítica do século XX», nas suas próprias palavras), a União
foi fechando os olhos. Primeiro, apostou numa «pareceria estratégica» com
Moscovo assente nos «valores comuns», indiferente ao endurecimento do re-
gime. Putin chegou a ser um «democrata» quando Jacques Chirac e Gerhard
Schröder caíram na asneira de o incluir num chamado «eixo da paz» em oposi-
ção à guerra de Bush no Iraque (2003). Mudou de agulha para uma abordagem
mais realista. Os direitos humanos e a democracia foram guardados na gaveta.
Os negócios subiram para o topo da lista de prioridades dos países europeus,
grandes ou pequenos. Obama, chegado à Casa Branca, carregara no botão do
«reset», pondo termo a um período de maior hostilidade entre Washington
e Moscovo. O parênteses Medvedev permitiu realizar uma «histórica» cimeira
da NATO em Lisboa (2010) que, como muitas pessoas escreveram, era o ver-
dadeiro fim da Guerra Fria. Já tinha ficado para trás a estratégia americana
116 Europa Trágica e Magnífica

de alargar continuamente a NATO, incluindo a Ucrânia e a Geórgia. A Alema-


nha foi fundamental para convencer George W. Bush, na cimeira de Bucares-
te (2008), de que era preciso levar em conta os interesses russos e a sua per-
cepção de «cerco». A União Europeia era vista como a via preferencial para
integrar progressivamente esses países, na medida em que não aparecia aos
olhos dos russos como uma instituição militar. O mundo, entretanto, mudava
a uma grande velocidade. A China emergiu como a principal candidata a «su-
perpotência», tirando todo o proveito da globalização. Obama definiu a sua
integração na ordem internacional como o maior desafio estratégico dos EUA.
A União Europeia mergulhou na crise mais grave da sua história, isolando-
-se ainda mais do mundo à sua volta. A burocracia de Bruxelas e as relações
bilaterais dos grandes países europeus não permitiram uma visão global do
relacionamento com a Rússia, capaz de integrar a economia e a segurança.
O aparente sucesso da «revolução laranja» (2004) tinha convencido a Europa
de que tudo estava bem na «frente leste» e nem sequer a invasão da Geórgia
em 2008 e a eleição de um Presidente pró-russo na Ucrânia em 2010 a fez
parar para pensar.
Vladimir Putin engoliu o revés ucraniano mas não abandonou a sua estra-
tégia de reconquista das zonas de influência russas (na Europa, no Cáucaso
e na Ásia Central). Desta vez, parece não estar disposto a recuar à espera de
melhor oportunidade. A criação da União Euroasiática como um pólo de po-
der ao nível do Ocidente e da China só faz sentido se tiver lá dentro os países
europeus, dividindo a Europa em duas, ainda que um pouco mais a leste do
que a antiga Cortina de Ferro. Nunca lidou bem com a perda de influência
sobre os antigos satélites europeus, que trataram de se integrar nas institui-
ções ocidentais (União e NATO) antes que fosse tarde de mais. A Europa não
levou em conta a sua especial sensibilidade face a Moscovo. Ouvi muitas vezes
altos responsáveis queixarem-se da obsessão desses países em continuarem a
olhar para a Rússia como uma ameaça. Agora, foi a Europa que apanhou um
grande susto.

Até agora, a Europa e os Estados Unidos estão a agir em uníssono face à ofen-
siva de Putin. Há muito tempo que um comunicado no final de um Conselho
Europeu sobre um problema internacional não era tão claro e tão conciso.
O palavreado habitual, capaz de dizer tudo e o seu contrário, deu lugar a uma
avaliação comum e a medidas concretas. Não importa se a reunião foi «tem-
pestuosa», como disse o primeiro-ministro polaco. A coordenação transatlân-
tica está a fazer-se. É a mais eficaz forma de pressão sobre Putin, que está a
desafiar Obama e a contar com a habitual fraqueza dos europeus, que não sa-
bem falar a linguagem da força nem estão preparados para pagar o preço que
a segurança sempre custa.
Mas estamos ainda muito longe do fim da crise. Os EUA e a Europa têm um
espaço de tempo muito curto para definirem o passo seguinte, face à convo-
A Rússia, a Ucrânia, a Turquia e o preço da ausente política externa europeia 117

cação de um referendo na Crimeia para o próximo dia 16, que Putin quer que
seja um facto consumado, para lhe mostrarem que só tem a perder (o que é
verdade) se insistir na sua anexação.
Dizem os analistas, por necessidade de simplificação, que Kiev se transfor-
mou no lugar geométrico de um novo confronto Leste-Oeste. Não é totalmente
verdade. O que está em causa neste braço-de-ferro entre Putin e Obama é pre-
cisamente a Europa: a sua unidade enquanto entidade política e o futuro da
própria aliança transatlântica. O problema é saber se, em Berlim, também se
pensa assim. A Alemanha comporta-se um pouco como uma «potência emer-
gente» que, além da sua capacidade económica, ainda não se adaptou às novas
responsabilidades políticas que a liderança europeia também lhe exige. É um
desafio para o qual a chanceler pode não estar preparada. O SPD, seu parcei-
ro de coligação, tem historicamente uma corrente que privilegia as relações
com a Rússia em detrimento da velha aliança com os EUA. Berlim pode ter um
papel decisivo na procura de uma solução que leve em conta os interesses da
Rússia, mas também pode inviabilizar qualquer estratégia de médio prazo que
defina as bases de uma relação com Moscovo assente no respeito pelo direito
internacional e pela independência dos países que se situam no seu «estran-
geiro próximo». A presença de Iulia Timochenko em Dublin (no Congresso do
PPE) ou o convite ao primeiro-ministro do governo provisório de Kiev para ir a
Bruxelas no dia do Conselho Europeu extraordinário, traduzem firmeza políti-
ca. Mas não é de mais lembrar que o que está em jogo nesta crise é o futuro da
Europa e o futuro da relação transatlântica.
Judy Dempsey, analista do Carnegie, fazia uma simples pergunta: «Putin vai
finalmente fazer a Europa despertar?» É esta a questão fundamental.
118 Europa Trágica e Magnífica

CAPÍTULO VI

BUSH E
OBAMA:
A RELAÇÃO
INDISPEN-
SÁVEL

REUTERS/Saul Loeb/Pool
Bush e Obama: A relação indispensável 119

AS OUTRAS FACES
DA GLOBALIZAÇÃO
OU A ASCENSÃO
DO «RESTO»
13-06-2008

Enquanto andávamos entretidos com o preço dos combustíveis, com o comba-


te às alterações climáticas e com a crise dos mercados financeiros, uma outra
crise, de consequências imediatas muito mais graves, entrou-nos sorrateira-
mente pela porta adentro: a subida dos preços das matérias-primas, sobretudo
alimentares. Estranhamente ninguém a previu, nem os grandes países nem
as instituições internacionais. Nem Washington nem Bruxelas. Nem o Banco
Mundial nem o FMI. É, talvez, a crise das crises. A mais paradigmática. E aquela
que ameaça empurrar de novo para a pobreza extrema mais de 100 milhões
de seres humanos num estalar de dedos. Exige medidas de auxílio humanitá-
rio urgentíssimas para que não se transforme numa tragédia. É motivo para
a transformação de uma banal reunião da FAO numa cimeira mundial (que
decorre desde ontem em Roma, entre o lamentável folclore político da pre-
sença dos Presidentes do Zimbabwe e do Irão, Robert Mugabe ou Mahmoud
Ahmadinejad, e os debates em torno de diferentes visões sobre as suas causas
e as melhores soluções para enfrentá-la). É, enfim, a última peça de um puzzle,
ou melhor, de uma confluência de crises que, subitamente, revela que estamos
a mudar de mundo e estamos a mudar de vida. Que estamos a entrar em águas
nunca dantes navegadas que exigem outra responsabilidade, outro olhar e ou-
tras políticas.
Como escrevia recentemente Philip Stephens no Financial Times, o que nos
perturba hoje, mais do que qualquer outra coisa, é a descoberta (tardia) de que
«as políticas da globalização estão muito longe de acompanhar a economia
globalizada». Poderíamos dizer, de outro modo, que faltam lideranças, nacio-
nais e internacionais, para guiar o mundo nesta curva apertada em que tudo
parece mudar.

Mas o que é talvez mais interessante e, porventura, mais perturbador para


nós, cidadãos privilegiados do mundo ocidental, é que a globalização econó-
mica, que alguns chegaram a pensar que era sinónimo de «americanização»
ou de «ocidentalização», acabou por produzir efeitos que a América e o Oci-
dente deixaram de controlar. A China e a Índia e outras economias e regiões
120 Europa Trágica e Magnífica

do mundo acabaram por tornar-se as grandes beneficiárias da integração e da


liberalização dos mercados mundiais. Bastou-lhes para isso aprenderem com
os modelos de desenvolvimento ocidentais. Isso permitiu que, nesses países,
milhões e milhões de pessoas saíssem da pobreza extrema (só na China foram
400 milhões na última década) e que outras tantas tivessem a possibilidade de
aspirar a um modo de vida idêntico aos das classes médias dos países desen-
volvidos.
Já tínhamos aprendido que a sede de energia da China tinha um efeito dra-
mático sobre o preço dos combustíveis e a geopolítica mundial. Aprendemos
agora que o facto de milhões de chineses ou de indianos passarem a comer
carne e leite como nós tem um efeito ainda mais dramático no preço dos
bens alimentares, com inesperadas consequências políticas e sociais à escala
global.
Como escrevia Gideon Rachman no Financial Times de ontem, «tudo isto
nos parece muito estranho». Quando subitamente nos damos conta do que
pode acontecer quando «as novas classes médias [da China e da Índia] tam-
bém querem ter acesso a tudo aquilo que nós temos: carros, máquinas de la-
var, e até carne».
E claro que a nossa resposta não pode ser o contrário daquilo que andá-
mos a pregar nas últimas décadas. Não lhes podemos dizer: «Parem. Afinal
não podem viver como nós. O planeta não o suportaria. Já viram o preço do
petróleo?!»

Rachman alertava também para outra coisa para a qual a maioria dos res-
ponsáveis ocidentais não tem prestado a necessária atenção. Escrevia ele que,
por toda a parte por onde viajou nos últimos seis meses, pôde testemunhar
que o preço da comida era o tema central de conversa entre as pessoas co-
muns. No Paquistão explicaram-lhe que, por mais que o mundo ocidental se
preocupasse com a liberdade de movimentos da Al-Qaeda, as pessoas estavam
muito mais preocupadas com o preço do trigo. Um exemplo entre muitos
para indicar até que ponto temos dificuldade em perceber os problemas dos
outros e como os outros nos vêem a nós, às nossas preocupações e ao nosso
modo de vida. E como, por vezes, se ofendem com a nossa abundância, tirando
qualquer valor às nossas prelecções. Sejam elas sobre a democracia ou sobre
o combate às alterações climáticas ou sobre a integração dos mercados e as
negociações de Doha.
Não é tanto aquilo que propomos, que basicamente está certo, mas a forma
como o fazemos.
Citando um comentador brasileiro seu amigo, o colunista do FT voltava a
dar um exemplo que vale por mil palavras. Durante dois séculos a industria-
lização ocidental ajudou a dar cabo do planeta. Agora, «é como se os meus
vizinhos ricos dessem um grande banquete, me convidassem para o café e, no
final, quisessem dividir a conta comigo». Poderia ser chinês ou indiano.
Bush e Obama: A relação indispensável 121

Quer isto dizer que os nossos valores e o nosso modo de vida não são aque-
les que mais convêm aos outros? Pode isto legitimar governos corruptos ou
autoritários ou ditatoriais? Certamente que não. O que quer dizer é que temos
de encontrar novas formas políticas, mais democráticas e, consequentemente,
mais legítimas, de lidar com as consequências da globalização económica e
geri-las em favor do maior número.
Para isso, talvez o bem com mais escassez nos mercados mundiais seja lide-
rança política.

Falta, naturalmente, a liderança americana num momento em que mais se-


ria precisa (é esse o pesadíssimo legado de George W. Bush e o maior desafio
para o próximo Presidente). Falta liderança europeia, que seja capaz de ver um
pouco mais além do que o seu próprio umbigo ou o umbigo do vizinho. Falta
a liderança das instituições multilaterais, a começar pelo sistema das Nações
Unidas, que não se reformou a tempo de poder lidar com o mundo que está
a emergir e hoje não dispõe da autoridade necessária (mais do que dos meios
necessários) para poder ajudar a desatar este nó de crises e de desafios. Mais
uma vez, a responsabilidade não é apenas mas é também das democracias oci-
dentais, incapazes de se empenharem a sério numa reforma que passa por
uma distribuição mais equitativa de um poder que lhes escapa mas do qual
não querem abdicar.
Fareed Zakaria, o editor da Newsweek internacional, encontra para título do
seu mais recente livro a fórmula que resume a encruzilhada em que nos en-
contramos: The Post-American World: The Rise of the Rest. Nele descreve com
uma enorme lucidez o que tem de mudar na forma como a América lida com o
mundo se quer continuar, para bem de todos nós, a liderar o mundo.
Mário Soares, que há muito vem a alertar para a inevitabilidade desta con-
jugação de crises e sabe melhor que ninguém que é nos valores democráticos
que é possível encontrar as melhores soluções, dizia recentemente que seria
preciso um novo Franklin Delano Roosevelt na Casa Branca.
Curiosamente, ambos olham para a América. Pode ser que, mais uma vez,
seja da América que surja uma nova liderança que esteja à altura das tremen-
das mutações que atravessamos. Deve ser também por isso que o mundo está
com os olhos pregados nas eleições americanas.
122 Europa Trágica e Magnífica

POR FAVOR,
SENADOR OBAMA,
REFREIE O NOSSO
ENTUSIASMO.
OU TALVEZ NÃO...
24 de Julho de 2008

Lendo a imprensa europeia dos últimos dias, a ideia de que a Europa está
demasiado entusiasmada com Barack Obama e que isso pode abrir as portas
a uma crise transatlântica de tipo novo, nascida das frustrações subsequen-
tes, é praticamente incontornável. Uma parte do título desta coluna foi, aliás,
tomado de empréstimo ao do último comentário de Jonathan Freedland no
Guardian a propósito da visita do candidato democrata à Europa. O senador
chega a Berlim amanhã, passará por Paris e por Londres e, como escrevia o
colunista britânico, a oportunidade de ver Obama e, se possível, ficar a seu
lado na fotografia, transformou-se na mais «escaldante» procura de bilhetes
do ano, independentemente da cor política dos governos ou das oposições.
Percebe-se porquê.
A Europa está mergulhada numa autêntica «Obamamania». O mesmo Guar-
dian publicava na semana passada uma sondagem na qual o candidato demo-
crata vencia o seu rival republicano John McCain na preferência dos britâni-
cos numa proporção de cinco para um. Curiosamente, a sua «vitória» era mais
acentuada no eleitorado tory porque, aparentemente, o centro-esquerda terá
sido fiel até mais tarde a Hillary Clinton. Na Alemanha, todos os inquéritos de
opinião apontam para uma vantagem ainda maior — se os alemães pudessem
votar, Obama ganharia por 72 por cento. E nem vale a pena falar da França onde
a escolha de Obama se revela ainda mais esmagadora, ultrapassando os 80 por
cento. O fenómeno não é só europeu, mas atinge na Europa a sua expressão
mais forte. Obama é a face da América que os europeus gostam de amar como
George W. Bush, justa ou injustamente, foi aquela que adoraram odiar.
Em Berlim, a cidade que acolheu JFK em triunfo há 45 anos, Obama deverá
atrair multidões. É lá que tenciona fazer o seu discurso fundamental sobre as
relações transatlânticas. Avisam os analistas de que, provavelmente, os gover-
nantes europeus não gostarão de tudo o que terá a dizer. Voltemos, pois, ao
ponto de partida. Precisamos nós, europeus, de refrear realmente o nosso en-
tusiasmo por Obama?
Bush e Obama: A relação indispensável 123

A dúvida só me ficou a pairar no espírito depois de ter participado no I Fó-


rum Açoriano Franklin D. Roosevelt, que decorreu na semana passada por
iniciativa da Fundação Luso-Americana (FLAD) e do governo regional e levou
ao Teatro Micaelense de Ponta Delgada muitas pessoas ligadas às relações
transatlânticas. Passavam exactamente 90 anos sobre a passagem do então
subsecretário da Marinha pelo arquipélago a caminho de uma Europa onde
ainda estavam milhares de soldados americanos a travar os combates finais e
decisivos da Primeira Guerra Mundial. A figura do antigo Presidente america-
no não podia ter sido mais inspiradora, lembrando-nos a grandeza da América
e a eterna dívida dos europeus para com ela. A iniciativa, que decorreu sob o
tema geral das relações transatlânticas na opinião pública europeia e america-
na, não podia ter vindo mais a propósito. Tal como muitos analistas europeus,
muitos dos intervenientes (incluindo eu própria) chamaram a atenção para
este excesso de entusiasmo, advertindo para a factura que Obama pode apre-
sentar à Europa a troco da sua vontade de imprimir à política externa norte-
-americana uma mudança que, em muitos aspectos, vai ao encontro daquilo
que a Europa deseja.
O candidato democrata diz sobre o Iraque aquilo que muitos europeus que-
rem ouvir: que foi um colossal erro estratégico. Mas diz também, no passo se-
guinte, que a guerra ao terror, que é impossível perder, se trava no Afeganistão
e espera dos aliados europeus um esforço militar e financeiro maior se que-
rem dar sentido à NATO e à renovação dos laços transatlânticos. Desafia-os, em
suma, como já fizeram outros Presidentes, a partilharem de uma forma mais
equitativa as responsabilidades pela segurança mundial.
Estará a Europa em condições de responder positivamente? Os mais cínicos
dirão que Obama levará os europeus a terem saudades de Bush muito mais
cedo do que se poderia imaginar. Poucos parecem acreditar que a Europa es-
tará à altura do desafio.
As coisas não são assim tão simples, mas dão a dimensão do que se quer
dizer quando se fala da próxima crise das relações transatlânticas como sendo
uma «crise de excesso de expectativas».

Houve, no entanto, nos Açores uma voz que contrariou esta percepção um
pouco fatalista. A de Mário Soares. Para o antigo Presidente, não é nada disto
que se trata. O que se trata é que Barack Obama representa uma revolução
cultural tremenda para a América e para o mundo, incluindo a Europa. Que
estamos perante um aqueles momentos da história em que a América se pode
voltar a erguer, com todo o seu poder e dinamismo, a favor do bem, como
aconteceu com a eleição de Roosevelt quando o mundo viva os dias negros
que se sucederam à crise de 29 para lançar o New Deal e liderar o combate
contra o fascismo. Que em Obama repousa, de algum modo, a esperança de
que o Ocidente possa inverter a tendência para o declínio e a perda de influên-
cia num mundo conturbado e perigoso que se inclina em sentido contrário ao
124 Europa Trágica e Magnífica

dos seus valores e dos seus interesses. Que Obama será afinal a única esperan-
ça possível para um Velho Continente sem lideranças e sem ânimo para fazer
o que é preciso fazer.
Foi muito bom ter escutado Mário Soares. Pode ou não partilhar-se do seu
entusiasmo e das suas teses sobre o candidato democrata. O seu maior mérito
é chamar a atenção para que não temos todos de pensar a mesma coisa, fata-
listicamente. Nem sobre os EUA nem sobre a própria Europa. E que a História
nos oferece exemplos magníficos de como um líder pode fazer, afinal, toda a
diferença.
E uma coisa é desde logo positiva nesta «Obamamania» que nos invade.
A reconciliação transatlântica, que hoje a maioria dos líderes europeus vê
como indispensável, não se pode construir sobre uma opinião pública euro-
peia que, porventura injustamente, via na América de Bush um dos principais
factores de instabilidade e de insegurança mundiais. Obama ajudaria a dissipar
boa parte deste sentimento antiamericano, que nunca foi tão profundo, nem
nos tempos de Nixon e do Vietname ou de Reagan e da Guerra das Estrelas.
O candidato democrata começou o seu até agora mais importante discurso
sobre política externa invocando a memória de George Marshall para explicar
a sua própria visão do mundo. Como escrevia Philip Stevens no Financial Ti-
mes, pode estar aí a mais importante mensagem que traz para a Europa. Que
o Ocidente prosperou e venceu a Guerra Fria porque soube construir um sis-
tema internacional assente em regras, ao mesmo tempo que se dotava de uma
poderosa capacidade militar.
É este o desafio que os europeus podem e devem entender. Em vez de que-
rerem antecipar a sua própria derrota.
Bush e Obama: A relação indispensável 125

O OCIDENTE E OS
NOVOS ACTORES
MUNDIAIS: COMO
PARTILHAR
RESPONSABILIDADES
13-11-2008

Pierre Hassner, o famoso académico francês das relações internacionais, abriu


os trabalhos com um toque pessimista. As crises multiplicam-se, algumas po-
dem ter consequências catastróficas (da implosão do Paquistão às alterações
climáticas), todas exigem soluções urgentes. As estruturas de governo global
são deficientes. O Ocidente ainda pensa que pode resolver tudo «dando um
lugarzinho aos outros». Os «outros» também não são «particularmente multi-
lateralistas», agora que são independentes e têm poder. Se há uma esperança,
está na dimensão colossal dos desafios: «Algo vai mesmo ter de mudar.»
Álvaro Vasconcelos, director do Instituto de Estudos de Segurança da União
Europeia (IES), o anfitrião do encontro, haveria de concluir com uma nota um
pouco mais optimista. Não há alternativa a um «multilateralismo efectivo» que
convença as grandes potências, velhas e novas, a agirem num quadro de insti-
tuições e de regras globais para resolver os problemas.
Entre o início dos trabalhos da conferência anual do IES e a sua conclusão,
académicos, diplomatas e jornalistas vindos dos quatro cantos do mundo cru-
zaram opiniões e olhares sobre o que pode vir a ser uma nova ordem mundial
que seja capaz de gerir as crises internacionais em cooperação e não em con-
fronto. Em torno de uma questão central, a mesma que hoje estará à mesa dos
líderes do G20, reunidos em Washington, com a ambição de lançar as bases
para uma nova ordem económica: como integrar as potências emergentes?
Entre a relativa modéstia da China, que ainda se vê a si própria como «po-
tência relutante», e a autoconfiança do Brasil, houve talvez duas conclusões
possíveis e só aparentemente contraditórias. A primeira, que o Ocidente ainda
não está preparado para partilhar o seu poder mundial. A segunda, que a lide-
rança americana não tem alternativa à vista.
A conferência do IES realizou-se na véspera das eleições americanas, em
Paris.
Pierre Hassner, confiante na vitória de Barack Obama, desejou-lhe que fosse
capaz de se elevar acima dos problemas internos que tem de resolver para
126 Europa Trágica e Magnífica

estar à altura dos tremendos desafios que definem a encruzilhada em que o


mundo se encontra. Álvaro Vasconcelos lembrou que a sua eleição pode cons-
tituir uma «extraordinária oportunidade» para o regresso do multilateralismo
americano.
Mas estas são duas visões ocidentais. Interessa ver o que pensam os «ou-
tros».

Zhong-Ping Feng, director do Instituto de Estudos Europeus de Pequim,


começou por avisar que a China ainda precisa de tempo. Continua a ser um
país em desenvolvimento. Estará na cimeira do G20 porque «a maioria dos
seus dirigentes percebe que vivemos hoje num mundo cada vez mais inter-
dependente». «A China precisa do Ocidente e o Ocidente precisa da China.»
Mas defendeu que as suas capacidades não devem ser sobrestimadas. A China,
concluiu Feng, está pronta para desempenhar o papel de supporting power,
ainda não está pronta para o de leading power.
O facto não a impede de ter um olhar crítico da visão ocidental. «Os Estados
Unidos e a União Europeia pedem à China que partilhe o fardo das responsa-
bilidades mundiais.» No Darfur ou na Birmânia, na gestão da presente crise
financeira ou no combate às alterações climáticas. «E a China reconhece que
precisa de fazer mais.» Mas o Ocidente «ainda não está preparado para parti-
lhar o poder com as potências emergentes».
Apenas um exemplo. Quando, face à crise internacional, o FMI pede a Pe-
quim e aos países do Golfo um contributo financeiro para aumentar os seus
fundos, qual é a legitimidade de uma instituição onde a China dispõe de menos
votos do que a Bélgica e a Holanda juntas?
A crítica seria comum a quase todos os oradores — do Brasil ou da Índia, da
Rússia ou da África do Sul.

A questão seguinte foi a de saber se pode haver convergência entre a visão


tendencialmente «multipolar» das potências emergentes, o multilateralismo
europeu e a liderança americana.
Robert Hutchings, antigo embaixador americano e académico de Princeton,
defendeu a oportunidade de uma «grande negociação global» para uma nova or-
dem mundial, liderada pela América. O que é que os Estados Unidos e o Ocidente
podem ganhar com a cedência do poder aos outros e o que podem perder? Feitas
as contas, o saldo seria globalmente positivo. «Os EUA têm de mostrar rapida-
mente que estão dispostos a isso, dando alguns sinais claros nesse sentido.» Em
relação à reforma do Conselho de Segurança da ONU ou das instituições de Bret-
ton Woods (FMI e Banco Mundial), mas também com novos sinais de abertura
da NATO em relação à Rússia (o que implicaria uma revisão da defesa antimíssil).
Ou ainda na determinação em fechar rapidamente as negociações de Doha.
A oportunidade nasce da convicção de uma forte interdependência. Nada
poderia ser pior para as grandes economias emergentes do que uma recessão
Bush e Obama: A relação indispensável 127

prolongada nas economias desenvolvidas somada a uma provável tentação


proteccionista. E quem está interessado num Irão nuclear? É essa interdepen-
dência que hoje impede uma ordem meramente multipolar com o regresso à
«balança de poderes».
Mas há também diferentes visões sobre o que deve ser essa ordem mun-
dial interdependente. A China continua a dar-se bem com o status quo. A Índia
mantém um comportamento internacional hesitante e reactivo. Ambas valo-
rizam a «soberania nacional» como um princípio sacrossanto. A Rússia insiste
em «fazer músculo», alimentando a ilusão de que «poderá ainda vencer a se-
gunda guerra fria». A Europa quer fazer do seu próprio exemplo de integração
a defesa do «multilateralismo efectivo».
As mesmas palavras significam ainda coisas diferentes. «Para a Ásia, o mul-
tilateralismo significa contenção [dos problemas] através de uma diplomacia
soft; para a Europa significa a sua resolução», resumiu Radha Kumar, da Uni-
versidade de Nova Deli.
Regressemos a Hassner. O académico francês lembrou que o mundo se vê
hoje confrontado com duas forças contraditórias igualmente fortes: a glo-
balização e as identidades. Entre estas duas tendências, «os homens de boa
vontade devem tentar pôr alguma racionalidade». A cimeira de hoje será um
primeiro teste.
128 Europa Trágica e Magnífica

O LEGADO
DA DÉCADA
15-12-2009

A revista americana Time da semana passada fazia o balanço da última década,


a primeira do século XXI e do terceiro milénio, não hesitando em classificá-la
de infernal. Do ponto de vista da América, foi de facto uma década tremenda.
Começou com algo de absolutamente impensável — a 11 de Setembro de 2001
a América viu a sua invulnerabilidade desfeita sob os escombros das Torres
Gémeas de Nova Iorque. Terminou com a maior crise financeira e económica
mundial desde a Grande Depressão, pondo em causa o seu domínio global.
Passou por duas guerras — travadas a longa distância, é verdade —, uma qua-
se perdida e outra por ganhar. Pelo Katrina, que desvendou um país incapaz
de prover à segurança dos seus próprios cidadãos. Viu o prestígio da América
desfazer-se no mundo e os seus valores serem questionados por inimigos e
aliados. Terminou, no entanto, com um forte sinal de esperança. A eleição de
Barack Obama foi o sinal de que a América estava longe de se render à adversi-
dade e pronta para se reinventar uma vez mais. Terá de o fazer em condições
muito diferentes daquelas de que usufruiu durante quase todo o século passa-
do. Porque esta também foi a década que anunciou sem margem para dúvida
uma profunda alteração da geopolítica mundial, com a transferência de rique-
za e de poder do Ocidente para as grandes economias emergentes, com tudo
o que isso implica para a ordem global e com tudo o que isso implica para os
cidadãos do Ocidente.

Apesar de tudo, muitas das previsões mais catastróficas sobre os efeitos


da crise mundial acabaram por não se cumprir. A recessão não teve o efeito
devastador que alguns anunciavam ainda bem recentemente. As economias
emergentes reagiram bem melhor do que o previsto. Os governos dos países
ricos não hesitaram em intervir maciçamente para evitar o pior. E, talvez ainda
mais importante, foi possível enfrentá-la através de uma nova forma de gover-
no mundial, consagrado no G20.
Fareed Zakaria lembrava recentemente que a coordenação da resposta à
crise se deveu a uma circunstância que muitas vezes não valorizamos: a rela-
ção pacífica entre as grandes potências mundiais. «Algo de extremamente raro
na História.» E lembrava também um dos lados mais positivos da globalização
para a estabilidade do sistema internacional: a difusão do saber e da informa-
ção à escala global, permitindo um consenso relativamente amplo sobre aqui-
lo que significa o bem-estar e a riqueza.
Bush e Obama: A relação indispensável 129

Tudo isto não quer dizer que o mundo vá regressar ao que era antes desta
década «infernal». Quer apenas dizer que há uma possibilidade real de gerir as
mudanças globais através da cooperação e não através do confronto. A Amé-
rica terá mais uma vez um papel decisivo. A poderosa economia americana
começa a dar sinais de retoma. Barack Obama, apesar de não fazer milagres,
não desistiu da sua ideia de mudar os fundamentos da sociedade americana
e mundial.

Mas há algumas coisas que mudaram para sempre. E essas mudaram por-
que mudou o resto do mundo.
Vista de Brasília ou de Pequim, a década que passou está longe de ser
«infernal». Pelo contrário. O Brasil continuou a cumprir com distinção o seu
novo destino de país do presente. A China registou uma década de cresci-
mento económico verdadeiramente alucinante, que nem a crise mundial
conseguiu travar, e a guindou inexoravelmente ao estatuto de grande po-
tência mundial. Nos dois casos, apesar da diferença abissal entre os siste-
mas políticos, milhões de cidadãos saíram da pobreza e encontraram uma
perspectiva de futuro melhor. É óbvio que a China ou o Brasil continuam a
ser sociedades mais pobres e menos justas que as sociedades ocidentais.
É óbvio que terão de continuar a crescer a um ritmo acelerado para alcança-
rem a prosperidade individual de que usufruem os cidadãos das democra-
cias ricas do Ocidente. A grande diferença é que, para eles, o futuro só pode
ser melhor e para nós, cidadãos ocidentais, o futuro está ensombrado pela
incerteza e o pessimismo. No fundo, a grande questão que se coloca hoje às
democracias ocidentais é saber se o grau elevado de riqueza e de bem-estar
de que desfrutam e a sua coesão social são sustentáveis no longo prazo. E a
que preço.

Nesta perspectiva, a paisagem europeia não é animadora. A Europa pode


não ter vivido a mesma década «infernal» da América. Mas andou lá próximo.
Sofreu as ondas de choque do 11 de Setembro e do unilateralismo imperial da
administração Bush. Não ficou imune ao terrorismo islâmico. Gastou quase
uma década para negociar um novo tratado capaz de lhe dar os instrumen-
tos para funcionar à dimensão do continente e agir de forma mais eficaz num
mundo que, entretanto, não ficou à sua espera. As suas economias foram dura-
mente afectadas, as perspectivas de crescimento são tímidas e o desemprego
veio para se instalar nos próximos anos.
O que se passa na Grécia, não apenas com as contas públicas mas com a
agitação social, é um sinal de alerta. Em Itália podemos estar a começar a ver
onde nos leva a crispação social quando a política é exercida com total au-
sência de valores. A xenofobia suíça, mesmo que não possa ser generalizada,
é um aviso para a incapacidade europeia de integrar o número crescente de
imigrantes de que necessita para sobreviver.
130 Europa Trágica e Magnífica

No fundo, a questão que se põe — e ainda mais depois da crise — é simples:


com que vantagens as economias ricas do Ocidente ainda poderão contar para
continuarem a crescer e poderem manter a coesão das suas democracias?
A resposta é que não é simples. E só poderá ser encontrada com líderes políti-
cos de outra natureza. Capazes de perceberem o mundo actual e de apresen-
tarem aos seus cidadãos uma visão moral do seu próprio destino. É por isso
que os discursos de Obama são tão importantes. É porque traduzem um novo
equilíbrio moral entre o que deve ser feito e o que pode ser feito. Sem isso será
difícil explicar aos cidadãos das democracias europeias que o seu futuro, para
ser melhor, exigirá um preço. E que deve ser alcançado em função do futuro
de todos.
Bush e Obama: A relação indispensável 131

SE OBAMA NÃO FOR


APLAUDIDO, QUEM
PASSARÁ A SER?
24-09-2011

Dei comigo a reler compulsivamente A Toupeira, de John le Carré, agora ree-


ditada pela D. Quixote, sem conseguir pôr de lado a alma torturada de George
Smiley e a macabra dança de vaidades do Circus, com os seus personagens
demasiado humanos e, consequentemente, todos presumíveis suspeitos. Nin-
guém como ele capta através do mundo secreto da espionagem, aquele em
que os limites da lei e da decência são mais ténues, a complexidade da alma
humana e as múltiplas gradações de cinzento que separam o bem e o mal.
Tudo isto se passa num mundo que já não conhecemos, extremamente sim-
ples na sua lógica bipolar, onde no grande tabuleiro do poder mundial (quase)
não havia terreno neutro. Mas não vale a pena ter saudades desses tempos em
que o mundo vivia sob o equilíbrio do terror. Ninguém com o mínimo de sani-
dade mental pode dizer que era mais fácil e mais seguro enfrentar o totalita-
rismo soviético do que viver neste mundo fluido e cheio de incertezas que nos
escapa constantemente das mãos, mas onde não há (por enquanto) o risco de
um confronto aberto entre grandes potências e onde cresce a adesão aos va-
lores da democracia e dos direitos humanos. Gostamos de Le Carré, não pela
nostalgia do mundo de Smiley, mas pela sua escrita admirável. Breve intróito
para uma semana em que se multiplicaram os sinais de risco inerentes à passa-
gem de um mundo que conhecíamos para outro que apenas podemos desejar.
De Washington, para onde convergem os responsáveis pela economia mun-
dial (há reuniões do FMI e do Banco Mundial), chegou um coro de alertas para
o risco de nova crise económica mundial e sucederam-se os apelos cada vez
mais dramáticos aos líderes dos países desenvolvidos para que ajam enquan-
to é tempo. «O tempo é a questão essencial», voltou a dizer Christine Lagar-
de. Citando Platão: «Trata-se de elevar a política até ao seu nível mais alto.
E a política é sobre como representar os interesses de toda a gente na cidade.»
O seu apelo ecoou o de Robert Zoellick, o director do Banco Mundial, menos
«platónico» mas igualmente convincente: «O mundo entrou na zona de perigo.
Em 2008 muita gente disse que não tinha visto a turbulência chegar. Hoje, os
líderes mundiais deixaram de ter essa desculpa.»
Não é preciso acrescentar que o epicentro da crise, e também da inacção,
continua a chamar-se Europa. A pressão sobre os líderes europeus aumenta
a cada minuto que passa. O maior risco para a economia americana e para a
132 Europa Trágica e Magnífica

economia mundial é que «a situação europeia entre numa espiral descontro-


lada», diz Edwin Truman do Peterson Institute for International Economics.
«A Europa não vai salvar a economia americana, mas é a palha na engrenagem
que a pode quebrar.» Um cenário de recessão antes das eleições americanas
seria um desastre para o Presidente Obama, lembra Kenneth Rogoff. Os ape-
los convergem todos na mesma direcção: a zona euro tem de pôr de lado a
sua estratégia de viver um dia de cada vez à espera que as coisas se resolvam
para tomar as medidas drásticas que são necessárias para recuperar a con-
fiança dos mercados. Entretanto, a Grécia continua às voltas com a eminência
de um default. A confiança nos bancos europeus esfumou-se. O crescimento
estagnou. A teimosia persiste. Os sinais são contraditórios. Falta saber como é
que tudo isto se encaixa numa estratégia de longo prazo para a zona euro, que
elimine os elementos de incerteza e afaste ao mesmo tempo a sombra de uma
nova recessão.
Seja qual for a resposta, os termos do debate sobre a economia mundial
alteram-se radicalmente num espaço de tempo curtíssimo. Sobre quem pode
arrastar a economia mundial para o abismo, a resposta ainda é fácil. Sobre
quem tem condições para puxar por ela, é mais difícil. A China? As economias
emergentes? Ninguém sabe ao certo, como acontece quando se navega em
águas nunca dantes navegadas.

Há, naturalmente, uma correspondência entre o que se passa na economia


mundial e o que se passa na política mundial. Basta mudar de cenário — de
Washington para Nova Iorque. Em Setembro do ano passado, apesar da crise,
o encontro anual dos líderes mundiais para a Assembleia Geral da ONU ain-
da reflectia um mundo em acelerada transformação que poderia ser ordeira.
As novas potências emergentes reivindicavam, com toda a justiça, o seu lugar
à mesa do Conselho de Segurança e dispunham-se a fazer pagar caro ao Oci-
dente a sua relativa perda de influência. Já se sabia que Obama não caminhava
sobre as águas, mas ainda preservava boa parte da sua capacidade mobiliza-
dora. A Europa, já a braços com a crise da dívida mas ainda não com a da sua
própria impotência, merecia ainda alguma credibilidade.
Um ano bastou para que o quadro pareça hoje completamente desfocado.
Se há uma imagem que capta esta mudança, é a do Presidente Obama a dirigir-
-se durante quase uma hora à Assembleia Geral sem ser interrompido uma
única vez por um aplauso. Sabe-se porquê. Por efeito da Primavera Árabe, a
Palestina tomou conta da sessão plenária de Nova Iorque. Obama não tinha
nada a dizer sobre a Palestina, mas apenas sobre Israel. «O discurso do Cairo
do Presidente Obama, há dois anos, criou enormes expectativas, mas poucas
ou nenhumas foram concretizadas», escreve Joschka Fischer, o antigo chefe
da diplomacia alemã. Pelo contrário, os EUA permitiram que se instalasse um
vazio político que resultou da ausência do mais ligeiro movimento por par-
te do governo de Israel. O vazio foi agora ocupado pelas revoltas árabes que,
Bush e Obama: A relação indispensável 133

como qualquer movimento popular, encerram inúmeras incertezas. «Obama


está a jogar à defesa na política externa, procurando não cometer erros que
lhe saiam caros», escreve David Ignatius no Washington Post. «Como uma equi-
pa de futebol tentando proteger a sua escassa vantagem, quer evitar qualquer
passo em falso que lhe custe o jogo.» O jogo é a recandidatura. A equipa ad-
versária, a versão mais radical do Partido Republicano. O árbitro, a economia
e os empregos. Os riscos que enfrenta na cena internacional são múltiplos.
O problema é que o mundo ainda precisa desesperadamente da liderança
americana.

Pode a Europa ocupar algum espaço? Dificilmente. A iniciativa de Sarkozy


para aliviar a tensão em torno do reconhecimento do Estado palestiniano só
teria força se fosse apoiada em Londres e em Berlim, para que pudesse surgir
como uma iniciativa europeia. Nada é menos garantido. Se alguém prestou
atenção ao discurso de Herman Van Rompuy em Nova Iorque (a União Euro-
peia tem o estatuto do Vaticano mas com direito à palavra), ouviu uma longa
lista de boas intenções e de autoconvencimento que soam cada vez mais a fal-
so, de tal modo estão longe da realidade. Apresentou a Europa como «o cam-
peão dos direitos humanos, do combate à pobreza e ao aquecimento global».
Elaborou poeticamente sobre a Primavera Árabe. Exibiu a liderança europeia
na Líbia, esquecendo as divisões. Garantiu, pela enésima vez, que a Europa
fará o que for necessário para «garantir a estabilidade da zona euro». Nada
que transmitisse um assomo de verosimilhança ou sequer de utilidade. Pura
ficção, enquanto as peças do xadrez mundial se movem em ordem dispersa
mas a grande velocidade. A Turquia, a que a Europa bateu com a porta, quer
afirmar-se como a nova potência regional no Médio Oriente e não esconde as
suas ambições mundiais. O Brasil exibe legitimamente as suas ambições re-
gionais e internacionais. São duas grandes democracias cuja influência regio-
nal só pode ser positiva. A China, que joga já na primeira e restrita liga do G2,
tenta alargar a sua influência regional em detrimento dos EUA, do Japão e em
confronto com a Índia. As placas tectónicas continuam a mover-se. A questão
é que, enquanto se espera que voltem a assentar, não se sabe se as velhas es-
truturas aguentarão o abalo. É este o risco. Se Obama não for aplaudido, quem
passará a ser?
134 Europa Trágica e Magnífica

OBAMA
E A EUROPA
13-02-2013

Não fora o discurso do estado da União do Presidente Obama, na segunda-feira


à noite, e pouca atenção teria merecido uma parte substancial das conclusões
da cimeira europeia da semana passada. Por razões óbvias, quase todo o esfor-
ço dos líderes europeus e quase toda a atenção dos media estiveram mobiliza-
dos pelo acordo sobre o novo quadro financeiro plurianual da União Europeia,
que acabou por ser «arrancado» depois de 24 horas de intensas negociações.
Numa perspectiva europeia foi um mau acordo, como muitas pessoas já disse-
ram, que revelou uma ambição igual a zero e uma visão sobre o futuro da Euro-
pa abaixo de zero. O que Obama disse no seu discurso, mesmo que numa breve
passagem, faz-nos voltar a essas mesmas conclusões. «E, esta noite, anuncio
que vamos dar início a conversações sobre uma ampla Parceria Transatlântica
para o Comércio e o Investimento com a União Europeia — porque o comér-
cio livre e justo através do Atlântico é fundamental para milhões de empregos
americanos bem pagos.» É esta pequena frase do longo discurso de Obama,
virado para a economia e sobretudo para o papel fundamental da classe média
para restaurar a força da economia, que nos remete para a primeira parte das
conclusões da cimeira europeia, dedicada aos acordos de comércio bilaterais
com as grandes economias desenvolvidas. A prioridade é, precisamente, dada
aos Estados Unidos. A iniciativa de criar uma gigantesca área de comércio livre
entre as duas margens do Atlântico coube, aliás, à Europa. A Alemanha fala
dela desde 2007. Bruxelas está a tentar criar as bases para essa negociação
desde 2011, mesmo que tenha esbarrado com alguma falta de interesse em
Washington. Obama acaba de dar-lhe uma nova prioridade na agenda ameri-
cana. O resultado que se pretende é a criação de um mercado de mais de 800
milhões de pessoas, que representa ainda hoje metade da riqueza mundial.
E que ganha uma relevância nova, num mundo cujo centro de gravidade eco-
nómica está a transferir-se muito rapidamente do Atlântico para o Pacífico.
A crise financeira global, com todas as suas consequências económicas, fra-
gilizou as democracias ricas do Ocidente, denegriu a reputação do seu modelo
económico, que foi durante as últimas décadas o exemplo que o resto do mun-
do queria seguir para enriquecer, deixando-as mais vulneráveis. Se tivermos
em atenção que o poder hegemónico do Ocidente assentou em boa medida
na capacidade incomparável da sua economia, é fácil de perceber que chegou
a hora de americanos e europeus convergirem para restabelecerem um novo
equilíbrio global que lhes permita melhorar a sua capacidade competitiva
Bush e Obama: A relação indispensável 135

face às potências emergentes. As transacções comerciais entre os dois lados


do Atlântico representam já hoje 2,7 mil milhões de dólares por dia. Estudos
da Comissão indicam que a liberalização do comércio e a adopção de regras
comuns poderiam significar um ganho de 275 mil milhões por ano e a cria-
ção de mais 2 milhões de empregos. As negociações não serão fáceis. Terão de
contrariar a tentação proteccionista que está instalada no Congresso america-
no e que atrai algumas capitais europeias. O resultado será fundamental. Pelo
menos neste campo, a Europa conseguiu revelar alguma ambição. Falta agora
começar a pô-la em prática.
136 Europa Trágica e Magnífica

«HELLO, BERLIN»
22-06-2013

Na cidade que conta a história da Europa do século XX através das suas me-
mórias mais negras, o simbolismo ainda é uma moeda política com algum va-
lor. Obama não deixou uma frase que ficará para a História como aquela que
JFK pronunciou junto do Muro, ou a que Ronald Reagan disse no mesmo local
quando desafiou Gorbatchov a descongelar o mundo. As circunstâncias são
tão diferentes que talvez isso fosse impossível. O Muro caiu, a União Soviética
implodiu, a Europa unificou-se sob a égide da democracia, Berlim já não é a
fronteira da liberdade diante dos 4000 tanques soviéticos que estacionavam à
sua porta. Mas foi ainda desse passado que Obama e Merkel falaram. A chance-
ler que veio do Leste sabe perfeitamente aquilo que deve aos americanos para
estar hoje onde está. O Presidente, que tende a olhar para o mundo para lá da
velha perspectiva transatlântica, sabe que há laços indestrutíveis entre a Euro-
pa e a América, que a História forjou e a democracia e a liberdade consolida-
ram. Sabe que esses laços já não comandam muitas das opções da Alemanha.
E sabe também que, na paisagem política europeia em grande mutação, Ber-
lim é o seu interlocutor privilegiado.
Foram precisos cinco anos de mandato para Obama regressar à Alemanha,
numa visita oficial que os alemães esperavam há muito. Desta vez, com direito
a falar na Porta de Brandemburgo. Tinha vários desafios a vencer, e não ape-
nas a inevitável comparação com JFK e Reagan. Em 2008, quando era apenas
senador do Illinois e candidato à Casa Branca, a chanceler recusou-lhe o direi-
to a falar naquele mesmo local carregado de simbolismo. Mas os berlinenses
ofereceram-lhe uma audiência gigantesca e rendida que, desta vez, não existiu.
Há cinco anos era um símbolo global onde cada um podia projectar todos os
seus sonhos. Desta vez, é apenas o Presidente dos EUA, com tudo o que isso
acarreta. Não fechou Guantánamo, embora não por culpa própria. Os seus ser-
viços secretos espiam muitas pessoas, como sempre espiaram. O recurso aos
drones para eliminar terroristas não é pacífico. A sua relativa desistência das
questões climáticas não é bem vista na Alemanha. O seu «pivô» para a Ásia-
-Pacífico é sentido na Europa como um abandono. O que não quer dizer que
tenha deixado de ser olhado pelos europeus como um símbolo da América
de que eles gostam. Mais de 70 por cento dos alemães continuam a avaliá-lo
de forma positiva. Num inquérito feito na véspera da sua visita, que pergunta-
va qual a liderança melhor — a dele ou a de Merkel —, a resposta pendeu cla-
ramente para o seu lado, apesar da popularidade da chanceler. A própria não
terá desdenhado o «banho de ouro» que Obama lhe proporcionou a poucos
meses das eleições legislativas.
Bush e Obama: A relação indispensável 137

Mas cinco anos na Casa Branca a gerir um mundo em profunda transfor-


mação e, cada vez mais, em desordem, também permitiram a Obama com-
preender melhor o valor das velhas alianças. O Presidente chegou ao poder
anunciando uma nova forma de liderança americana no mundo. Avisou que
os EUA já não tinham força suficiente para moldar, sozinhos, a ordem interna-
cional que está a nascer em consequência da globalização e da emergência de
novas potências não ocidentais. Esse mundo desafia os Estados Unidos a partir
da Ásia, com a ascensão da China. Mas esse novo mundo também põe em evi-
dência a importância da aliança transatlântica, mesmo que os desafios sejam
outros. Muita coisa passa pela economia, cuja superioridade esteve na base da
hegemonia ocidental mas que sofre os efeitos da crise financeira global e se vê
desafiada por outros modelos.
Obama sabe que a Alemanha é favorável a uma grande parceria económica
entre os dois blocos, que são ainda os mais ricos do mundo, e que pode ser
o passo estratégico essencial para reequilibrar a favor do Ocidente os dese-
quilíbrios económicos mundiais. Mas veio lembrar-lhe também que o poder
não se reduz à economia e a liderança alemã tem de aceitar uma partilha do
fardo da segurança mundial, no mínimo, um pouco mais empenhada. Tudo
isso está nas entrelinhas do seu discurso. Desafiou os alemães a olharem para
lá das suas próprias fronteiras e das fronteiras da Europa. Disse-lhes que, se a
receita para resolver a crise europeia revela maus resultados, então talvez seja
o momento de começar a mudá-la. «Todos nós temos de garantir que os nossos
orçamentos não estejam fora de controlo. Todos nós temos de fazer reformas
estruturais para nos adaptarmos a uma maior competição económica. Mas te-
mos de nos concentrar no crescimento e as políticas de longo prazo não nos
devem deixar perder de vista o nosso principal objectivo: melhorar as vidas
dos nossos povos.»

Antes da curta visita a Berlim, o Presidente americano esteve reunido com


os seus sete parceiros do G8 na Irlanda do Norte. É preciso conquistar as
boas graças de Putin para uma solução política para a Síria que não incluísse
Assad. É urgente pôr cobro à tragédia dos milhares de mortos e dos milhões
de refugiados que pressionam cada vez mais a América a ter de fazer alguma
coisa. Mas a questão mais interessante da reunião poderá ter sido a sua própria
realização, diz Gideon Rachman no Financial Times. Muitas pessoas ter-se-ão
perguntado: mas, afinal, o G8 ainda existe? Não era para ser o G20? Quando a
primeira reunião do G20 foi convocada para Washington, imediatamente de-
pois da queda do Lehman Brothers, foi saudada como um novo figurino de
governança global mais adequado ao tempo presente. A reunião de Londres,
em Abril de 2009, permitiu uma resposta à crise financeira global mais co-
ordenada, evitando as tentações proteccionistas e coordenando medidas de
emergência dos Estados de modo a estancar os efeitos devastadores de uma
recessão mundial em larga escala. O colunista do Financial Times lembra que,
138 Europa Trágica e Magnífica

na cimeira seguinte, em Pittsburgh, a ideia de dissolver o G8 no G20 parecia ga-


nhar adeptos. O então primeiro-ministro britânico Gordon Brown disse mes-
mo que «o velho sistema de cooperação económica internacional chegou ao
fim, o novo começou a partir de hoje». O que explica, então, a surpreendente
resistência do velho G8, além dos hábitos que são difíceis de perder? Rachman
tem uma explicação: «A verdadeira razão para a sua sobrevivência é outra.
A mais importante é a redescoberta da noção de Ocidente.» Os líderes dos
países mais desenvolvidos precisam de, em conjunto, encontrar formas de re-
cuperar o dinamismo das suas economias mas também precisam de revalori-
zar o valor das suas democracias.
É por isso que uma nova parceria transatlântica para uma zona de comércio
livre pode ser vital. É também por isso que os EUA continuam a contar com os
seus aliados europeus. E é isto que a Europa deve perceber como o seu grande
desafio estratégico para combater o declínio e a irrelevância. Ou os europeus
se habituam a pensar em conjunto e a longo prazo sobre o que querem fazer,
ou a «recaída» americana pela relação transatlântica é apenas isso mesmo:
uma recaída que passará depressa. Negociar este novo acordo vai ser difícil
e vai exigir concessões de ambos os lados. Também no Financial Times, Phi-
lip Stephens comenta: «Os europeus apenas podem desejar que os políticos
consigam reconhecer as faces mais duras da nova vida geopolítica e ponham
a luta contra os frangos americanos em perspectiva.» Ou, já agora, a excepção
cultural francesa.
Bush e Obama: A relação indispensável 139

A SUPERPOTÊNCIA
QUE CONTINUA A
SER INDISPENSÁVEL
09-11-2013

Se a avaliação da política externa de Barack Obama um ano depois da sua


reeleição dependesse dos acontecimentos dos últimos meses, chegar-se-ia
rapidamente à conclusão que tudo lhe corre mal. Será assim? Provavelmente
não. Obama não só foi reeleito (o único objectivo do Partido Republicano era
fazer dele um Presidente de um só mandato), como a política externa do seu
primeiro mandato foi um dos factores que pesou a seu favor na avaliação dos
americanos. Havia razões para isso. Obama recebeu uma herança que os ana-
listas de quase todas as cores consideraram anormalmente pesada: uma crise
financeira de dimensões catastróficas, duas guerras para acabar, o soft power
americano danificado e um mundo em acelerada mudança. Na economia, evi-
tou o pior. Acabou com guerra no Iraque e estabeleceu um calendário de saída
para a do Afeganistão, revendo os objectivos da intervenção ocidental em bai-
xa. «No more regime change.» No Afeganistão ou no Irão. Bastou a sua eleição
para restituir o brilho à América como a terra em que tudo ainda era possível.
Pôs fim à «guerra ao terror» mas capturou o «inimigo número um» da América
numa operação arriscada e eficaz. Os americanos reelegeram-no também por-
que estão muito fartos de guerras para resolver os problemas dos outros. Rea-
giram mal perante a simples hipótese de uma intervenção «cirúrgica» na Síria,
anunciada pelo Presidente depois dos ataques químicos do regime de Assad.
Então, porque é que tudo parece estar a correr mal agora? Do shutdown à
NSA, passando pela gestão da crise síria, Obama parece não conseguir evi-
tar que as suas dificuldades internas se projectem na sua estratégia interna-
cional. Criou um enorme problema com a Alemanha, quando as revelações
de Edward Snowden apontaram para o telemóvel da chanceler. O shutdown
obrigou-o a anular uma importante viagem de seis dias à Ásia, incluindo as
cimeiras da ASEAN e da APEC, e a cancelar mais uma sessão de negociações
com a Europa para a criação de uma zona de livre comércio e investimento
transatlântica que é, provavelmente, a maior decisão estratégica do Ocidente
para evitar o declínio. Viu os seus principais aliados no Médio Oriente, Israel
e a Arábia Saudita, rebelarem-se contra a ausência americana na crise síria e a
inesperada «janela de oportunidade» para um acordo com Teerão. «Os últimos
meses sujeitaram a estratégia internacional de Obama a um teste duríssimo e o
seu comportamento suscitou as mais negativas avaliações da sua presidência»,
140 Europa Trágica e Magnífica

diz E. J. Dionne, colunista do Washington Post geralmente bastante favorável ao


Presidente.
Já não se trata da questão das expectativas demasiado altas que suscitou um
pouco por toda a parte quando foi eleito, renovando a esperança de «todos
os homens de boa vontade», na expressão feliz do grande sociólogo francês
Pierre Hassner. Obama teve de reconciliar a sua visão idealista do mundo com
«o seu realismo inato e a sua prudência política», escreve a Foreign Affairs.
«O pragmatismo dominou.» Isso seria provavelmente inevitável e mereceu-lhe
a compreensão dos americanos. Trata-se agora do seu legado. «Em qualquer
administração, o primeiro mandato é sobre a reeleição e o segundo é sobre o
legado», escreve P. J. Crowley, antigo porta-voz do Departamento de Estado.
E conclui: «Obama não quer ficar conhecido apenas pelos drones e pela espio-
nagem.» Terá de fazer alguma coisa e já não tem muito tempo.

Comecemos pela Europa. Obama prometeu reparar as relações com os alia-


dos europeus, contando com o entusiasmo da opinião pública pela sua elei-
ção. As revelações sobre a actividade da NSA e o telemóvel de Angela Merkel
provocaram um enorme mal-estar na capital europeia que Obama mais tem
cultivado: Berlim. Alguns analistas dizem que é uma guerra passageira. Outros
começam a dizer que atingiu o bem mais precioso que é a confiança. A ques-
tão pode ser mais funda. Judy Dempsey, do Carnegie Endowment, defende
que o problema maior está na diferente percepção do mundo por parte das
duas margens do Atlântico. «O facto da maioria dos líderes europeus não sen-
tir qualquer necessidade de elaborar uma estratégia de segurança europeia
mostra que não querem discutir nem a ideia das ameaças, nem como lidar
com elas ou, muito menos, antecipá-las.» A analista previne que esta situação
levará ao desinteresse americano. O problema é que a Europa não consegue
libertar-se da crise existencial em que está mergulhada. Reagiu mal ao «pivô»
para a Ásia. Quando prestou atenção à Líbia, percebeu que o modelo anterior
de «intervencionismo humanitário» tinha mudado. Washington apoiava mas
«liderando do banco de trás». «Os europeus vieram e disseram: temos de fazer
alguma coisa. A Liga Árabe chegou e disse: temos de fazer alguma coisa. A nos-
sa resposta foi: bem, o que é que pretendem fazer? E eles disseram: mas nós
estamos aqui para vos perguntar o que é que tencionam fazer.» A descrição é
de Hillary Clinton, durante o debate que a Chatham House promoveu recente-
mente em Londres quando lhe atribuiu o seu prémio anual.
Os europeus não deixaram, no entanto, de ser um firme aliado nas nego-
ciações com o Irão. Ajudaram ao «reset» com a Rússia, que era também do
seu interesse, e que permitiu a Obama a aprovação de um novo START para
a redução das armas nucleares estratégicas (um dos seus grandes objectivos).
O maior choque acabou por ser em torno das políticas de austeridade impos-
tas por Berlim para resolver a crise europeia. Angela Merkel manteve-se surda
aos constantes apelos de Obama para liderar de forma ousada a recuperação
Bush e Obama: A relação indispensável 141

europeia. Mesmo assim, Obama deu-lhe a mais alta condecoração que um Pre-
sidente pode dar a um líder estrangeiro. Hoje, é cada vez mais difícil de enten-
der em Washington para onde vai a Alemanha, quando se mostra disposta a
fazer de Edward Snowden um herói.

Obama anunciou desde o início do seu mandato que levaria a cabo uma
viragem estratégica que ficou conhecida como o «pivô» para a Ásia-Pacífico.
Anunciou-a formalmente em Novembro de 2011. Hillary Clinton executou esta
estratégia com mestria. Hoje, os jornais americanos fazem títulos com o can-
celamento da viagem de seis dias do Presidente à Ásia, no final do mês pas-
sado, por culpa do shutdown. Obama quer virar a América para a região do
mundo onde se concentra cada vez mais a riqueza e onde a emergência de
uma nova «grande potência» pode desestabilizar a ordem internacional que
os EUA construíram depois da Segunda Guerra Mundial e que ainda hoje pre-
valece. Disse que o século XXI seria definido pelas relações entre os Estados
Unidos e a China, o que dificilmente alguém poderá contestar. Falou-se muito
do G2, quando se estava a lançar o G20. Essa moda não pegou. Os chineses não
a queriam e a Europa também não. Dizem os analistas americanos, talvez com
um pouco de exagero, que a sua ausência apenas serviu ao novo Presidente
chinês, Xi Jinping, para ocupar o espaço deixado vazio pelos Estados Unidos.
«Era preciso tranquilizar os nossos aliados, depois de dez anos de concen-
tração no grande Médio Oriente, de que a América não os abandonaria», expli-
ca hoje Hillary Clinton. E era preciso, ao mesmo tempo, explicar à China que
um entendimento estratégico entre os dois países era do seu interesse mútuo.
Foi ela que conseguiu acrescentar o «estratégico» ao Diálogo Económico. Mas
também foi ela que foi dar garantias a todos os países da região, aliados ou não
dos EUA, de que a sua segurança continuaria a ser uma prioridade. «Quería-
mos que a China compreendesse que estávamos lá para ficar.»
A China cooperou com os EUA no G20 para impedir que a crise financeira
se transformasse numa Grande Depressão, alastrando ao mundo inteiro. Mas
a política americana ainda é vista em Pequim «como parte de uma sofistica-
da conspiração para frustrar a ascensão da China», escreve a Foreign Affairs.
Os países mais vulneráveis à pressão chinesa, do Vietname às Filipinas, querem
a América presente desde que isso não os obrigue a terem de escolher entre
Pequim e Washington. O Japão conta com a América para gerir a sua relação
com a China. Seria sempre um exercício difícil. A crise económica e política
em Washington tornaram-no mais complicado. As duas maiores economias do
mundo estabeleceram entre si uma espécie de MAD (Mutual Assured Destruc-
tion) económico. A China possui mais de três triliões da dívida americana e a
América é o maior importador de bens chineses. De cada vez que o Congresso
ameaça Obama com o risco de default, Pequim sustém a respiração. «Vocês vão
pôr a vossa casa em ordem, não vão? Vão garantir que o nosso investimento na
vossa dívida é bom, não vão?», conta a antiga secretária de Estado a partir da
142 Europa Trágica e Magnífica

sua própria experiência. Obama tem todas as razões para se virar para a Ásia.
Mas terá, algum dia, de começar a resolver o problema da dívida.

O problema é que, ao contrário do que desejaria, o Médio Oriente não o


larga. O discurso do Cairo foi levado a peito pelos jovens árabes que desen-
cadearam as Primaveras para exigir liberdade. Nem a Europa nem os Estados
Unidos estavam preparados para esta súbita aceleração dos acontecimentos.
O Egipto seria sempre a questão fundamental. Abandonar Mubarak não era
uma decisão fácil. Obama, seguindo o que disse — que cabia, em primeiro lugar,
aos povos encontrarem o seu próprio caminho para a liberdade e a dignidade
—, incentivou as revoltas mas não se envolveu nas transições. Facilitou a queda
de Mubarak. Recebeu na Casa Branca Mohamed Morsi, o Presidente eleito da
Irmandade Muçulmana que está hoje preso à ordem do novo poder militar.
Perdeu a democracia e perderam os liberais egípcios, incapazes de escolher
entre o islamismo e as fardas. John Kerry anda a apagar os fogos no Cairo, em
Riade ou em Telavive.
Washington tentou ficar longe da guerra civil na Síria. Obama marcou uma
linha vermelha. Quando foi ultrapassada, com a utilização das armas quími-
cas pelo regime de Damasco, decidiu agir. O Irão não lhe permitiria fazer ou-
tra coisa. Vladimir Putin ofereceu-lhe um caminho para evitar a intervenção
e ganhar a cobertura da ONU. O desmantelamento do arsenal químico está
a ser feito mas a guerra continua e Assad mantém-se. Foram muitas as críticas
à forma como Obama geriu esta crise. Mas acabou por ser a conjugação entre a
situação na Síria e a eleição de um Presidente moderado no Irão, Hassan Roha-
ni, que abriu inesperadamente a porta a uma solução negociada para o proble-
ma nuclear iraniano. Seria um enorme sucesso da política da mão estendida
do Presidente. E, sobretudo, o resultado das sanções económicas que os EUA
impuseram a Teerão e cujos efeitos começam a ser dramáticos, bem como a
capacidade de Obama de isolar o regime na arena internacional.
E. J. Dionne sublinha o paradoxo: «Tendo anunciado o “pivô” do Médio
Oriente para a Ásia, [Obama] foi dizer [nas Nações Unidas em Setembro passa-
do] que as suas principais iniciativas diplomáticas envolverão o Irão e o con-
flito israelo-palestiniano.» «A América não vai escapar facilmente dos fogos do
Médio Oriente», escreve Philip Stephens no Financial Times.

No fundo, o mundo anda todo às voltas com a questão da liderança ameri-


cana. Tanto os aliados como os inimigos. Não sabem o que fazer sem ela nem
há qualquer candidato preparado para ocupar o espaço vazio. «O mundo sen-
tirá a falta do polícia americano», escrevia recentemente Gideon Rachman na
sua coluna do Financial Times. Do Japão a Israel ou à Polónia e ao Vietname.
Mas também a Arábia Saudita, que se rebela contra a política de Obama na
Síria (demasiado fraca e tardia), temendo que um «meio acordo» com o Irão
altere os equilíbrios de poder na região a favor dos xiitas. O Presidente turco
Bush e Obama: A relação indispensável 143

Abdullah Gül disse que a ausência da América «permitiu transformar a Síria


num paraíso para jihadistas». É uma partida de xadrez muito difícil de jogar, e
ainda mais quando Washington se quer libertar do Médio Oriente, agora que
está a oito anos da sua total independência energética. «Não podemos passar
24 horas por dia e sete dias por semana a ocupar-nos de uma só região», disse
Susan Rice, conselheira nacional de Segurança de Obama, ao New York Times.
O mesmo não se passa com a Europa e a China, que terão de olhar com mais
atenção para uma região da qual dependem para o seu abastecimento ener-
gético.
Presidir a uma transição mundial desta dimensão seria sempre um desa-
fio enorme. Obama ainda está em condições de tentar fazê-lo, em nome da
«humanidade comum» que prometeu há cinco anos. Na sua mais recente in-
tervenção nas Nações Unidas, o Presidente deixou um aviso: «Os americanos
estão cansados de serem criticados por se envolverem demasiado e por se em-
penharem demasiado pouco (…). Se eles se cansarem, o perigo virá do vazio de
liderança que nenhuma outra nação está preparada para ocupar.»
Quando foi eleito, a sua maior preocupação era «reconstruir a América» de-
pois de muitos anos a «construir outras nações». Isso pressupunha um menor
envolvimento no mundo. Muitas pessoas falam em «retraimento estratégico».
O mundo é que não deixa a América em paz. Por mais que Merkel e Dilma se
enfureçam, que Xi Jinping desconfie e Putin gesticule, a América continuará
por mais algum tempo a ser a potência indispensável. É isto que Obama tem
de garantir nos próximos três anos.
144 Europa Trágica e Magnífica

CAPÍTULO VII

A NOVA
PAISAGEM
POLÍTICA

REUTERS/Vincent Kessler
A nova paisagem política 145

A SOCIAL-
-DEMOCRACIA E…

ENCORE
UN EFFORT…
24-4-2007

«Que ironia! No preciso momento em que Blair abandona o palco na Grã-


-Bretanha, o blairismo chega a França.» É com esta observação que Timothy
Garton Ash começa a sua última crónica no Guardian, datada de antes da
segunda volta das presidenciais francesas. Ele, historiador brilhante da Eu-
ropa, sabe melhor do que ninguém que a França não é a Inglaterra. Não são
as ideias de Blair para o Reino Unido que pretende comparar com as dos dois
principais candidatos que, felizmente, vão disputar a segunda volta, no dia
6 de Maio.
Aliás, mesmo que fosse essa a sua intenção, não diria nada de realmente ex-
traordinário. Basta recuar no tempo e recordar o início das duas campanhas,
quando Ségolène Royal marcava a sua diferença da velha esquerda francesa
confessando a sua admiração por um político que era capaz de perceber as
mudanças e de enfrentar os desafios. Sarkozy também nunca escondeu o seu
fascínio pelas coisas que resultam — a integração dos imigrantes na América ou
as baixas taxas de desemprego do lado de lá da Mancha.
Mas esse sinal foi-se perdendo no calor de uma campanha que acabou por
ser muito «franco-francesa» e derivar para os temas da identidade nacional, da
autoridade e da segurança.
O que Garton Ash viu bem foi que os dois candidatos representam uma ver-
dadeira ruptura na forma como encaram a política. Fala de blairismo como
uma forma «pós-ideológica» e «pós-doutrinária» de fazer política, que não tem
problemas em ir buscar ideias à esquerda como à direita, que é pragmática e
visa sobretudo os resultados. Libertada dos velhos dogmas que formataram a
esquerda ou a direita, com um olhar capaz de entender as profundas mudan-
146 Europa Trágica e Magnífica

ças sociais operadas nas sociedades modernas dos nossos dias e a necessidade
de renovar as formas de representação democrática.
Blair foi o percursor. Inspirou-se em Clinton e teve Thatcher para fazer o
trabalho mais difícil. Acabou por fazer escola nos partidos sociais-democratas
europeus que, uns mais que outros, todos fazem blairismo por linhas tortas.
A excepção era precisamente a França.

Vem isto a propósito da segunda volta das eleições presidenciais e do tipo de


combate político a que se pode assistir nos próximos dias.
Os dois candidatos que passaram à segunda volta apresentaram-se como
candidatos de ruptura em relação aos respectivos campos políticos. Ruptura
geracional, mas também ruptura de atitude e de pensamento. Aliás, tiveram de
impor-se aos seus partidos como candidatos de ruptura. Ségo cercando de fora
os elefantes do velho PS francês, eternamente incapaz de fazer o seu aggiorna-
mento social-democrata, como já fizeram a maioria dos seus pares europeus.
Sarko dinamitando a «chiraquia» por via da simpatia popular e da heterodoxia
radical de algumas das suas propostas.
Quem votou neles, à direita ou à esquerda, optou pela mudança. E esta foi,
de uma maneira ou de outra, a escolha de quase 60 por cento do eleitorado.
O voto em Bayrou, por mais simpático que fosse, funcionou mais como voto de
refúgio para o status quo ou, então, foi um voto de protesto.
O problema é que, por força das agruras da campanha ou por fraqueza dos
dois candidatos — agora se verá —, a sua natureza pós-ideológica se foi perden-
do num debate que acabou por centrar-se mais na crise identitária da França —
quem vai ou não vai às banlieues ou quem canta melhor a Marselhesa — do que
nas soluções para os problemas concretos. A economia, o social, a Europa, o
mundo, ficaram enterrados sob a cacofonia em torno dos valores e dos medos,
da nação, do hino e da bandeira.
Sarko radicalizou à direita e contrariou muitas das suas propostas económi-
ca e socialmente mais liberais. Ségo teve de seguir um caminho muito esteiro,
imposto pela necessidade de fixar os votos da extrema-esquerda e do núcleo
duro socialista. Entre a lista infindável e incoerente das medidas do seu pro-
grama e o seu discurso sobre os valores do respeito, da família, da ordem justa.
Contados os votos da primeira volta, nada agora impede os candidatos de
voltarem a ser eles próprios e dizerem claramente que mudança propõem.
Já não basta a Ségo dizer que a França pode ser reformada «sem brutalidade».
Nem a Sarko refugiar-se no seu amor à «França que se levanta cedo e que tra-
balha».
Os jornais, e certamente os respectivos quartéis-generais, já se entregaram
furiosamente à aritmética do voto para saberem onde cada um pode ir buscar
os apoios que lhes faltam. Sendo o elo mais fraco da corrida, é Ségolène quem
tem mais a perder nesta lógica de somar e diminuir e, pelo contrário, tudo ou
quase tudo a ganhar se se libertar dos constrangimentos da primeira volta e
A nova paisagem política 147

voltar a ser ela própria. Livre da obsessão de evitar o destino de Jospin. Livre
de seguir as suas intuições. Livre para apresentar um verdadeiro programa.
Só esta liberdade lhe pode garantir a possibilidade da vitória. Uma estratégia
do tout sauf Sarko revelar-se-ia fatal.
O seu discurso da noite eleitoral, ao tentar disparar em todos os sentidos,
ainda não é isto.

No fundo, como escrevia o Financial Times no seu editorial de ontem, os


dois candidatos vão ter de demonstrar que sabem capitalizar o facto de a Fran-
ça ter deixado de dizer que não, para descobrir de novo o poder de dizer sim.
Não apenas quanto à economia e às reformas, não apenas quanto à integração
dos imigrantes, mas em relação à Europa e em relação ao mundo. Uma coisa e
outra estão intimamente interligadas.
A França, como escreveu alguém, tem sistematicamente utilizado o seu
peso de país central da integração europeia e de 5.ª potência mundial para
dizer não. Mais de 60 por cento dos franceses dizem ter medo da globalização.
Uma maioria disse não à Constituição, que foi a forma de dizer não à Europa.
Não à estratégia de Lisboa, não ao mercado único, não ao alargamento, não à
Turquia. Não às negociações de Doha, não aos acordos com o Mercosul. Mais
de 70 por cento consideram que a França está em declínio.
É este o maior desafio dos dois candidatos da mudança. Contrariar este es-
pírito e mostrar que há um caminho para reconciliar a França com o mundo,
que esse caminho nem sempre é fácil e já não passa pelos velhos tiques do pas-
sado e pelas velhas respostas. Não é também por acaso que 60 por cento dos
franceses dizem não acreditar nos dois partidos que têm governado a França.
Para Ségo, este é o único caminho que ainda a pode levar até ao Eliseu. Ser
realmente blairiana, no sentido de Garton Ash. Ou «hipermoderna» como os
franceses preferem dizer e que é mais ou menos a mesma coisa. Se não, mais
vale que Sarkozy «brutalize» a França… se é que é capaz realmente de o fazer.
148 Europa Trágica e Magnífica

AS ATRIBULAÇÕES
DA ESQUERDA
EUROPEIA
06-09-2008

Chris Patten, o actual reitor de Oxford e antigo comissário britânico em Bruxe-


las, comentava, durante a longa entrevista que concedeu ao PÚBLICO na sua
recente passagem por Lisboa, o estranho comportamento do SPD alemão. Um
partido com a sua história e os seus pergaminhos (o partido de Willy Brandt
e de Helmut Schmidt), que parecia ter posto de lado qualquer preocupação
ética na forma como via a política internacional ou como parecia aceitar como
um facto da vida o desrespeito pelos direitos humanos na Rússia e na China
ou a forma como Vladimir Putin tentava impor na Europa a lógica das esferas
de influência.
As suas observações vieram a propósito do papel crucial da Alemanha na
formulação de uma estratégia europeia para lidar com a Rússia e das evidentes
contradições entre a chanceler Angela Merkel e o seu chefe da diplomacia, o
social-democrata Frank-Walter Steinmeier, agora promovido a candidato ofi-
cial do SPD à chancelaria de Berlim (ou seja, a principal rival de Merkel) nas
eleições do próximo ano.
Patten que, como quase toda a gente, reconhece os méritos da chanceler,
lembrou como ela manteve uma posição firme ao longo da crise do Cáucaso,
contrariando a forte tendência do mundo dos negócios (com enormes inte-
resses na Rússia) e do seu parceiro menor da «grande coligação» que governa
em Berlim. Não é só o facto de Gerhard Schröder «estar hoje na folha de paga-
mentos de Putin». Trata-se de uma questão mais séria para a Europa: a velha
tendência suicidária dos sociais-democratas alemães de quererem colocar o
seu país numa posição «equidistante» entre Washington e Moscovo.
Felizmente a chanceler parece estar para lavar e durar, com a totalidade das
sondagens a garantirem-lhe uma vitória segura nas eleições do ano que vem.
O que são excelentes notícias para a Europa, independentemente de se ser de
esquerda ou de direita.

Vale a pena reflectir um pouco sobre o que se passa na Alemanha. A escolha


de Steinmeier, um burocrata muito eficiente mas sem qualquer carisma, que
nunca se sujeitou a uma eleição e fez a sua carreira política à sombra do ante-
rior chanceler (chefiou o seu gabinete), foi saudada na imprensa alemã, apesar
de tudo, como uma boa notícia. Significa que, por agora, a facção moderada
A nova paisagem política 149

(em termos de política interna) do SPD ganhou sobre a sua facção mais esquer-
dista. Que a tentação de uma aliança eleitoral ao nível federal com o Partido
da Esquerda de Oskar Lafontaine (outro antigo líder do SPD que se associou
com os pós-comunistas da antiga RDA) está mais distante. Que o sentido das
reformas introduzidas pelo anterior governo de Schröder (das leis laborais e
das regalias sociais) se manterá, mais ou menos, no próximo combate eleitoral.
Mas isso não impediu a mesma imprensa de comentar que o melhor que
Steinmeier pode fazer é ser um «perdedor decente» em 2009.
Aliás, igualmente reveladoras do estado a que chegou o SPD alemão na sua
luta contra os ventos da história são as notícias recentes sobre a possibilidade
de uma coligação «Jamaica» (democratas-cristãos, liberais e verdes) para subs-
tituir a actual «grande coligação» no caso altamente provável de nova vitória
da CDU de Merkel. O simples facto de ser mais fácil a Merkel admitir trabalhar
com os verdes alemães diz muito do que se passa na cena política alemã e re-
corda-nos o papel de Joschka Fischer na sua qualidade de vice-chanceler e de
chefe da diplomacia dos governos de Schröder entre 1998 e 2005. Foi ele quem
conduziu a Alemanha reunificada na transição difícil entre a sua «menorida-
de» internacional e a sua condição de país «normal», capaz de assumir as suas
responsabilidades internacionais. Foi ele quem impediu que se rompessem
completamente as pontes entre Berlim e Washington, na tremenda crise do
Iraque, quando assistimos a uma mudança profunda num dos pilares da po-
lítica federal deste o pós-guerra: a inquestionável aliança com os EUA. Foi ele
quem conduziu uma política europeia sem verdadeira ruptura com a era Kohl,
mantendo a Alemanha no coração da integração europeia. Se acrescentarmos
a esta realidade a maior abertura de espírito dos verdes para encararem os
desafios da globalização, não chega a admirar que a CDU de Merkel possa con-
siderar a hipótese de os ter como parceiros.
Sabendo nós quão a Alemanha é fundamental para a Europa, é caso para
dizer que a Europa dispensa bem um governo social-democrata em Berlim.

O rosto de Steinmeier figurava na capa da última edição da Newsweek in-


ternacional para chamar a atenção para um artigo sobre o destino incerto da
esquerda europeia. Além do caso alemão, a Newsweek passava em revista as
atribulações dos socialistas franceses, o ocaso dos trabalhistas britânicos, a re-
cente derrota dos democratas italianos contra um líder tão improvável como
Berlusconi, para só mencionar alguns. Para concluir que provavelmente uma
boa parte da desorientação da velha e fiável social-democracia europeia se de-
via à emergência de uma nova geração de líderes de centro-direita que lhes
roubaram algumas das suas principais bandeiras (do ambiente à desigualda-
de social), ou que governam descomplexadamente ao centro e parecem mais
determinados em enfrentar as turbulências mundiais da mesma maneira que
procuram algumas soluções novas (mesmo que nem sempre boas) para os no-
vos problemas sociais (da imigração ao islamismo, passando pela segurança
150 Europa Trágica e Magnífica

ou pelas reformas económicas). Merkel e Sarkozy são, naturalmente, os dois


exemplos testados. Cada um no seu estilo, são os grandes responsáveis pela
desorientação dos seus adversários. David Cameron é apresentado como
uma promessa de líder do mesmo tipo. Estabelecendo um inevitável traço de
união com o que se passa na América, a revista lembrava que, assim como a
era Clinton chegou ao fim, dando lugar à geração Obama, também a «terceira
via» que colheu a sua inspiração nos Novos Democratas do antigo Presidente
se esgotou.
Será assim?
Cada caso é um caso, naturalmente. Mas é verdade que alguns dos líderes
que chegaram, entretanto, ao poder representam um corte significativo com
a velha direita europeia. Em França, Nicolas Sarkozy cortou com Chirac em
todos os domínios da política interna e internacional. A forma como derrubou
os velhos muros ideológicos que (ainda) distinguiam a direita da esquerda,
como foi buscar ao lado de lá algumas figuras carismáticas mas rebeldes em
relação ao status quo, ou como constituiu um governo com o maior número
de mulheres e de representantes de minorias étnicas da história do seu país,
não é tudo mas é o bastante para ter deixado os adversários socialistas sem a
mínima capacidade de resposta. Estão agora mergulhados numa luta fratrici-
da pelo poder interno que, à falta de ideias, se esgota na intriga e nos golpes
baixos. No Reino Unido as coisas talvez também não sejam muito diferentes.
É verdade que onze anos de poder (bem-sucedido) do New Labour favorecem
necessariamente o líder conservador, David Cameron. Mas isso não invalida o
facto de ele ter «blairizado» o seu partido, trazendo-o para o centro político e
colocando-o sem complexos como o verdadeiro herdeiro da revolução da «ter-
ceira via». São apenas alguns exemplos que servem, no entanto, para reflectir.
Quanto à esquerda europeia, e regressando ao ponto de partida, o que lhe
parece faltar e o que terá de fazer (seguindo Obama) é encontrar uma nova
forma de idealismo. Do idealismo que perdeu, incluindo na forma como olha
para os problemas internacionais.
A nova paisagem política 151

A ESQUERDA
EUROPEIA ENTRE
O PASSADO
E O FUTURO
21-03-2009

«O New Labour acabou, bem-vinda a social-democracia», escreveu Polly Toyn-


bee no Guardian quando a crise se abateu sobre o Reino Unido. Não foi a única.
Por toda a Europa, a social-democracia europeia sentiu-se liberta do «colete-
-de-forças» que teve de vestir para se adaptar à vaga de liberalismo que varreu
o mundo a partir dos anos 80. Proclamou a sua hora. A reabilitação da inter-
venção do Estado na economia punha fim à vantagem ideológica da direita nas
últimas décadas.
Era preciso dar sentido a uma nova geografia política que estava a emergir
desta crise e, também na Europa, os termos do debate político começaram a
mudar. A primeira tentação foi de um simples regresso ao passado.
O SPD alemão, parceiro menor na «grande coligação» que governa a Alema-
nha, foi o primeiro a proclamar o seu regresso à ribalta. E, no entanto, continua
a ver o seu eleitorado fugir para o partido de extrema-esquerda Der Link.
Em Paris, Ségolène Royal anunciava uma espécie de «viva a crise» para ten-
tar retomar a iniciativa no plano das ideias: «A crise representa uma ocasião
histórica para definir o modelo social que ambicionamos.» Mas isso foi antes
do Congresso de Reims, em Novembro, que dividiu ainda mais os socialistas.
O PSF não consegue capitalizar o descontentamento das ruas. Uma recente
sondagem publicada no diário Le Figaro indicava que os dois políticos mais
«credíveis» para governarem a França eram Nicolas Sarkozy e Olivier Besan-
cenot, o jovem carteiro trotskista que acaba de fundar um novo partido «an-
ticapitalista».
Em Fevereiro, Poul Nyrup Rasmussen, o eurodeputado dinamarquês que
lidera o Partido Socialista Europeu (PSE), proclamou em Madrid que a ideo-
logia do mercado livre estava morta e as respostas à crise estavam à esquerda.
No mesmo dia, Walter Veltroni, o líder que foi a grande esperança da esquerda
moderada de Itália, demitia-se. O Partido Democrata não conseguiu abrir uma
simples brecha na muralha inexpugnável do populismo de Silvio Berlusconi.
Os líderes de centro-esquerda que estão no governo, como Gordon Brown,
justificam os instrumentos e o dinheiro público com que tentam salvar os
bancos e as empresas da falência com velhas ideias de esquerda que estavam
152 Europa Trágica e Magnífica

há muito no baú. Mas pouco se diferenciam dos seus parceiros da direita,


nem quanto às medidas nem quanto ao desgaste político provocado pela
crise.
A revista britânica The Economist registava o aparente «paradoxo», dizendo
que ele está a ser visto à esquerda quase como uma «uma injustiça». «A esquer-
da pergunta-se: o capitalismo financeiro está a sofrer a sua maior humilhação
e nós continuamos a perder?»
A explicação não é simples nem sequer uniforme. Mas, como na América, os
termos do debate mudaram.

Regresso ao passado?
A Europa passou as últimas décadas a «americanizar-se». À sua maneira, con-
verteu-se ao liberalismo, procurando copiar da América o dinamismo que lhe
permitia tirar melhor proveito da globalização. A «terceira via» de Tony Blair
abriu as portas a uma paisagem política «pós-ideológica». Com muitos segui-
dores e um enorme sucesso.
Com o fim abrupto do ciclo neoliberal, vamos assistir ao regresso das velhas
ideologias? As respostas variam.
António Vitorino, o homem que liderou o movimento das «Novas Fron-
teiras» do PS, crê que isso não será possível. «A diferença entre esta crise e a
crise dos anos 30 é que hoje não existe qualquer modelo alternativo à eco-
nomia de mercado.» Foi esse o legado da queda do Muro que ainda perdura.
Ivan Krastev, director do Centre for Liberal Strategies de Sofia, argumenta
que «a noção da política em que todos ganhavam, que era própria da “ter-
ceira via”, foi derrotada» e que vamos provavelmente regressar a uma «visão
mais confrontacional da política». Que será, no entanto, muito diferente da
divisão direita/esquerda dos anos 70. João Cardoso Rosas, professor de Filo-
sofia Política da Universidade do Minho, admite «o regresso ao estatismo que
sempre marcou tanto o conservadorismo como a social-democracia tradi-
cionais». Nota, no entanto, que os primeiros beneficiários da crise parecem
ser as forças de extrema-esquerda.
Há um paralelismo com o debate americano?
O ponto de partida europeu é diferente. Apesar das reformas, a Europa pre-
servou o essencial do seu Estado social. Mas a questão do aumento das de-
sigualdades no novo paradigma da economia global está também presente.
Nenhuma resposta anterior conseguiu resolvê-la. A crise e o fim abrupto do
dinheiro fácil tornam-na de repente (como na América) muito mais visível.
Se a «terceira via» não conseguiu ser a resposta, como muitas pessoas con-
cluem, também não poderá ser a social-democracia tradicional, que criou as
suas raízes sociais quando o mundo se reduzia às ricas economias ocidentais
e a pressão sobre os salários não vinha da metade leste da Alemanha ou da
massa gigantesca de mão-de-obra que a emergência da China integrou no mer-
cado mundial.
A nova paisagem política 153

«O debate é complexo», diz Vitorino. «A globalização é predadora do em-


prego. A grande questão que se coloca à esquerda, mesmo antes da crise, é a
de resolver o problema desse efeito predador.» «A “terceira via”, que aceitou
o legado do neoliberalismo, deixou crescer as desigualdades com a argumen-
tação de que o importante era a inclusão através do acesso ao emprego e não
o aumento da diferença entre os que têm mais e os que tem menos», diz João
Cardoso Rosas.
António Vitorino acrescenta outra face ao mesmo problema: a moderação
salarial imposta pela concorrência mundial. «O crédito fácil acabou por supe-
rar este problema em sociedades em que o estatuto social era cada vez mais
definido pelo seu padrão de consumo. Quando a crise faz soar o fim do dinhei-
ro fácil, o problema vai apresentar-se em toda a sua clareza.»

A paisagem pós-crise
Compatibilizar a justiça social com a globalização continua a ser o grande
desafio por resolver da esquerda europeia. O problema não é a relação entre
Estado e mercado que, à direita e à esquerda, já está a ser posta de outra ma-
neira. A questão, como a Economist resume, «é a globalização e como resistir
ou abraçar a concorrência entre diferentes países». O manifesto eleitoral do
PSE aprovado em Madrid «dança à volta do problema mas é incapaz de o en-
carar de frente». Fala de gerir a globalização em benefício de todos e de usar
a dimensão europeia para defender os padrões sociais elevados, mas não diz
como.
«O grande teste vai ser, para a Europa e para os EUA, a capacidade para
multilateralizar a resposta aos problemas que esta crise veio colocar de for-
ma brutal», diz António Vitorino. Não querendo ser catastrófico, «na pior das
hipóteses, o reajuste pode não ser à esquerda, pode até não ser um reajuste
democrático».
A esquerda europeia será, porventura, mais desafiada pela sua capacidade
de ser aberta e plural do que pela sua capacidade de ser intervencionista ou
igualitária.
154 Europa Trágica e Magnífica

O PS E A CRISE
NACIONAL
01-10-2011

Numa coluna de opinião publicada ontem no El País, Rodriguez Ibarra, que é


membro do Conselho de Estado e foi presidente do governo da Extremadura,
dava-se ao trabalho de citar o longo primeiro parágrafo do manifesto eleitoral
que o PSOE submeteu a debate. «A crise económica que vivemos é, ao mesmo
tempo, o anúncio e a consequência de uma grande transição histórica: o início
de uma nova era na história da Humanidade. Uma mudança tão transcendente
como foi a passagem da sociedade agrária e rural para a sociedade industrial e
urbana, mas muito mais rápida do que esta ou do que qualquer outra mudan-
ça que até agora ocorreu.» O articulista diz que as 143 páginas seguintes não
estavam à altura desta grandiosa abertura. De algum modo, esta pequena his-
tória reflecte as extremas dificuldades com que a social-democracia europeia
se confronta hoje, tentando adaptar-se aos tempos de tremenda crise econó-
mica e social que varrem as sociedades europeias. Não apenas por causa da
crise da dívida mas também pelas «mudanças transcendentais» de que fala o
manifesto dos socialistas espanhóis. Na Espanha, a era do PSOE estará prestes
a acabar. Zapatero decidiu, de resto, pôr-lhe um ponto final, antecipando o ca-
lendário eleitoral. Se ganhasse as eleições, o PSOE apenas poderia continuar a
fazer aquilo que tem feito até agora: programas de austeridade sobre progra-
mas de austeridade.
No Reino Unido, a conferência anual do New Labour na semana passada
registava o mesmo sentimento de impotência. Lá, como em Espanha ou em
Portugal, a crise do endividamento do Estado somada à crise generalizada das
economias desenvolvidas que têm de se adaptar às novas condições de com-
petitividade mundiais, torna difícil encontrar um programa que possa fazer
sentido. Ed Miliband, eleito líder do New Labour há pouco mais de um ano
(depois de derrotar o seu irmão David, bastante mais moderado), continua à
procura de uma fórmula que lhe permita projectar a sua liderança para lá das
paredes do seu próprio partido. O seu discurso «de esquerda» pode ser recon-
fortante para as almas perdidas que ainda não se recompuseram do blairismo
ou que vêem nele a origem de todos os seus males. Não trouxe grande coisa de
novo ou de muito diferente da determinação do governo conservador-liberal
em endireitar as contas públicas custe o que custar, incluindo o crescimento
mais do que anémico da economia. Miliband reconheceu a necessidade de re-
duzir o défice (brutalmente aumentado quando Gordon Brown teve de ir em
socorro do gigantesco sector financeiro britânico para evitar a bancarrota dos
A nova paisagem política 155

bancos). Deixou claro que um governo trabalhista não reverteria — ou sequer


estaria em condições de o fazer — muitos dos cortes aplicados pelo governo de
David Cameron, mostrando que o caminho não seria o do regresso ao Velho
Labour. «É uma forma de realismo hoje amplamente partilhado», escreve o
Independent. Mas não eliminou o dilema central: o que faria de radicalmen-
te diferente. Criticou Cameron por se preocupar sobretudo com as grandes
empresas e defendeu o squeezed middle, as classes médias «esmagadas» pela
queda contínua dos seus rendimentos. Bradou contra o aumento das propi-
nas nas universidades (foi Blair quem acabou com a gratuitidade). Defendeu
um capitalismo mais justo que não privilegie os «predadores» mas os «produ-
tores», que recompense a responsabilidade e não o abuso. Propôs um «novo
compromisso» aos britânicos que é pouco mais do que um conjunto de vir-
tudes morais que foi buscar à velha tradição da cultura trabalhista britânica.
O Guardian chama-lhe «socialismo ético». «É o regresso de Ed, o Vermelho, ain-
da que numa versão gentil», escreve Julian Grover. Uma crença mais do que
uma lista de políticas e de prioridades. Resta saber se os eleitores o ouvem.

Em Portugal as coisas não são fundamentalmente diferentes. O Partido So-


cialista também está «entalado» entre a percepção de que as coisas mudaram
profundamente e a dificuldade em formular uma doutrina que não se limite à
invocação de um legado histórico e de um conjunto de valores bem-intencio-
nados. Foi patética, por exemplo, a mudança da rosa para o punho, durante o
Congresso que consagrou a nova liderança de António José Seguro. Como o La-
bour, o PS quer demarcar-se de um passado recente mas não sabe bem como
fazê-lo. A história do PS enquanto partido de governo não é muito distante da
do Labour nas mesmas circunstâncias: governar ao centro e tentar adaptar a
economia às novas condições da globalização. A crise tornou esse processo
muito mais difícil. O que sobra é um discurso vago, inconsistente, assente em
slogans. Em circunstâncias que são, apesar de tudo, distintas.
O PS pode querer discutir o peso do Estado na economia ou defender a
preservação do modelo social. Pode chamar a atenção para decisões sobre
a redução da despesa pública feita através de cortes cegos que acabam por
não resolver os problemas de fundo da reforma do Estado. Tudo isso é legí-
timo. Não pode resumir a sua política à estranha defesa do programa da troi-
ka, como se fosse apenas uma espécie de «fiscal de obra», retirando-o do seu
contexto e destituindo-o de qualquer virtude. É uma desculpa que se esgotará
rapidamente. Porque as circunstâncias variam, porque ir além da troika é uma
atitude prudente do governo, como a realidade se tem encarregue de demons-
trar todos os dias. Porque o país não se pode dar ao luxo de falhar. O PS, aliás,
podia e devia ajudar a explicar porquê. Foi esse o compromisso que assumiu
quando negociou com a União e o FMI as condições do empréstimo. Não teria
nada a perder se assumisse que estamos num momento de «salvação nacio-
nal» e se adaptasse a sua oposição a essa realidade. Infelizmente não temos
156 Europa Trágica e Magnífica

escolha, a não ser fazer o que os nossos credores nos pedem e o que a Europa
hoje nos exige.
O governo tem um guião que é perceptível pela maioria das pessoas, por
mais doloroso ou até injusto que seja. Passos Coelho pode ter dito muitas coi-
sas que não devia durante a campanha eleitoral (já todos sabemos quais fo-
ram), mas tem o mérito agora de dizer a verdade e de não mudar de discurso.
Não há reformas de Estados falidos nem serviços públicos que não tenham de
levar em conta o que podem gastar. Tudo está em tentar equilibrar os sacrifí-
cios, em proteger os mais fracos e, sobretudo, em ter a coragem de enfrentar os
interesses instalados, sejam eles as pequenas e grandes benesses que usufrui
quem trabalha nas empresas públicas ou os poderosos lobbies que dominam
alguns sectores ou as rendas de que vivem algumas grandes empresas no mer-
cado interno. A intervenção externa a que estamos sujeitos tem pelo menos
essa grande vantagem. A Madeira é certamente o melhor exemplo.
O que nos acontecer dependerá da nossa capacidade de corrigir os enormes
desequilíbrios externos e internos e do que acontecer na Europa. Mas, tam-
bém aqui, o PS tem uma responsabilidade muito maior do que proclamar o
seu «federalismo» ou acusar o primeiro-ministro de subserviência em relação
a Merkel. Essa é a parte mais fácil mas também não tem qualquer consequên-
cia senão desviar o debate daquilo que interessa. Na frente europeia as coisas
também estão a mudar lentamente e é preciso sabermos acompanhar essa
mudança. Todo um programa, se o PS quisesse mesmo ter um.
A nova paisagem política 157

A SOCIAL-
-DEMOCRACIA
EM TEMPOS
DE MUDANÇA
25-05-2013

François Hollande foi a Leipzig demonstrar a sua admiração pelas reformas


levadas a cabo pelo chanceler social-democrata Gerhard Schröder entre 2002
e 2005, e que todas as pessoas consideram decisivas para a competitividade
da economia alemã. E, consequentemente, para a afirmação da Alemanha
como o país incontornável da União Europeia. É um sinal de que o Presiden-
te francês não precisou de mais do que um ano no Eliseu para perceber que
as reformas de que a França necessita são vastas e profundas. Como escrevia
a Economist, Hollande tem de fazer das fraquezas forças, porque reformar a
França é uma espécie de «missão impossível». A chanceler alemã, que também
esteve em Leipzig para a abertura das cerimónias de celebração dos 150 anos
do SPD, gostou certamente de ouvir as suas palavras. Hollande teve ainda o
cuidado de não apoiar directamente o candidato social-democrata à chance-
laria de Berlim, Peer Steinbrück, que, de resto, tem uma escassa possibilidade
de vitória. Mas, como muita gente na Europa, também ele não desdenharia um
governo de «grande coligação».
O SPD tem uma longuíssima história na resistência ao nazismo e um con-
junto de líderes que todo o mundo respeita e foram fundamentais nos anos da
Guerra Fria. De Willy Brandt, o maior de todos, a Helmut Schmidt que, aliás,
esteve presente em Leipzig. No célebre congresso de Bad-Godsberg, em 1959,
e depois de duas derrotas consecutivas contra a CDU de Adenauer, fez o seu
primeiro grande aggiornamento, abandonando a vulgata marxista e adoptan-
do um programa reformista que acabaria por influenciar toda a social-demo-
cracia europeia, à excepção, provavelmente, da França. Com o fim da Guerra
Fria e a unificação alemã, o SPD atravessou um período controverso e difícil ao
não perceber o sentido da História e a sua súbita aceleração. Oskar Lafontaine
disputou as primeiras eleições gerais depois da queda do Muro, opondo-se à
reunificação por razões ideológicas e, sobretudo, por razões de custo muito
pouco social-democratas. Sofreu uma dura derrota às mãos de Helmut Kohl, o
chanceler da «reunificação». Em 1998, depois de um período difícil de sucessão
de lideranças e de derrotas, Gerhard Schröder, inspirado pela «terceira via» de
Tony Blair, venceu as eleições com um programa de «novo meio», virado para
158 Europa Trágica e Magnífica

as reformas económicas e sociais que, progressivamente, a globalização torna-


va necessárias. A França continuava distante deste percurso modernizador da
social-democracia alemã. Leonel Jospin ainda falava da «esquerda plural», que
hoje faz dores de cabeça a Hollande.

Essa foi a altura em que o centro-esquerda reinou pela última vez na União
Europeia, de Lisboa a Estocolmo. A ideia de que era possível compatibilizar a
justiça social com os mercados globalizados, centrando as políticas na «capa-
citação» das pessoas através da educação e da formação, parecia ainda uma
aposta com probabilidade de sucesso. Nessa altura, o objectivo europeu era,
como todos ainda nos lembramos graças à estratégia de Lisboa, emular a ca-
pacidade competitiva da economia americana por via das novas tecnologias,
da inovação e do conhecimento. Os novos caminhos que a globalização sofreu
e que o fim a Guerra Fria permitiu, mais uma tremenda crise financeira que
abalou os pilares das economias ocidentais, voltaram, de algum modo, a deixá-
-lo sem resposta.
É nessa fase que ainda estamos. O centro-esquerda europeu tem dificuldade
em elaborar uma doutrina que permita responder ao choque profundo
nas economias ocidentais que representa a entrada das potências emer-
gentes no mercado mundial. O centro-direita, que não aspira a mudar o
mundo, percebe, pelo menos, que mudaram radicalmente as condições da
competitividade das economias ricas e tenta pragmaticamente adaptar-se
a elas. Mesmo que custem alguma coisa (ou muita coisa) ao Estado de bem-
-estar que ainda faz a inveja do mundo e que prevaleceu na Europa depois da
Segunda Guerra Mundial, graças em boa medida à influência da social-demo-
cracia e à protecção americana. Esse tempo passou. Agarrar-se à mera defesa
do Estado social já não é possível. Hoje há uma nova realidade, com novos
problemas, muito complexos, que emergem nas democracias europeias: do
aumento das desigualdades ao envelhecimento das populações, da crescente
imigração e dos problemas de integração que ela coloca à sustentabilidade das
políticas sociais, ou à necessidade de reverter o caminho da desindustrializa-
ção. A crise exacerba todos estes problemas, tornando as respostas ainda mais
difíceis.

Vale a pena olhar para aquilo que se passou em Leipzig na semana passada.
Os sociais-democratas alemães decidiram, provavelmente bem, que a Interna-
cional Socialista estava velha e adulterada. Deixara de lado o seu ideário demo-
crático para abrir as portas a partidos de regimes corruptos e/ou ditatoriais,
conforme as «amizades» e os interesses de alguns países europeus (Portugal
incluído), para albergar os representantes das suas ex-colónias ou das suas ve-
lhas zonas de influência. De Eduardo dos Santos a Ben Ali, passou a caber lá
tudo, mesmo que com o estatuto de observador. Sem este passado «imperial»,
os alemães decidiram dizer basta. A sua ideia é agora criar uma Aliança Pro-
A nova paisagem política 159

gressista à escala mundial em que cada parte tem de fazer a sua confirmação
democrática. A ideia não é nova. A diferença está em quem a lidera.
No final dos anos 90 do século passado, Bill Clinton e Tony Blair lançaram a
primeira tentativa de uma «Progressive Alliance», mas isso era quando o mun-
do ainda parecia estar a chegar ao fim da História por via da integração dos
mercados e pela expansão da democracia. A saída de Clinton da Casa Branca,
o 11 de Setembro (e a reacção americana), a emergência das grandes potências
asiáticas, alteraram radicalmente o cenário, matando a iniciativa. Que agora
parece ser retomada pelo SPD alemão. Há aqui pelo menos um sinal de aber-
tura ao mundo que pode ser interessante e há também a confirmação de que
hoje a Alemanha e os seus principais partidos são, porventura, a fonte de ins-
piração que antes pertenceu a Londres.
Porque a social-democracia europeia tem um grave problema. Não é capaz
de se adaptar a um mundo onde se alteraram radicalmente os termos de troca
internacionais em desfavor dos países desenvolvidos, mas que também permi-
tiram tirar da pobreza milhões e milhões de pessoas, na China ou no Brasil, na
Índia, na Indonésia. Não há apenas a tragédia do Bangladesh, que corresponde
ainda ao velho padrão de domínio das grandes empresas ocidentais. Há a cada
vez maior capacidade das sociedades emergentes de subirem rapidamente na
cadeia de valor, desafiando directamente os países ricos. Há uma classe média
em ascensão à escala mundial, que constitui um novo mercado e pode reforçar
as aspirações à liberdade e à democracia. Há uma classe média cada vez mais
«espremida» nos países desenvolvidos, que precisa de uma resposta política.
A velha tentação do proteccionismo, que começa a contaminar alguns parti-
dos socialistas, sobretudo no Sul, não é certamente a receita, que tem de pas-
sar por regras claras verificadas e impostas por instituições multilaterais. É a
partir daqui que o centro-esquerda europeu tem de construir novas respostas
que sejam percebidas como credíveis. Caso contrário, só lhes resta ser a «so-
cial-democracia do medo», como escreveu Tony Judt, tentando convencer os
cidadãos de que é a única barreira que resta para defender o Estado social.
Esta estratégia meramente defensiva não é com certeza o caminho.
160 Europa Trágica e Magnífica

A SOCIAL-
-DEMOCRACIA
DO MEDO
30-11-2013

Quem, na década de 80, não andou com o livro de Pierre Rosanvallon sobre «a
crise do Estado-providência» (1981) debaixo do braço? Nessa altura, a questão
da reforma inevitável do Estado de bem-estar europeu não se colocava ainda
nos termos em que hoje a colocamos. A globalização ainda não tinha feito o
seu caminho, a Guerra Fria ainda não tinha acabado e a revolução das novas
tecnologias ainda não reduzia a distância ao tempo de um clique. Os «trinta
gloriosos» que se seguiram ao pós-guerra tinham chegado ao fim, na sequên-
cia dos dois choques petrolíferos do início e do fim da década de 70. O cresci-
mento desacelerava. As democracias europeias começavam a perceber que o
modelo social que criaram depois da guerra teria, mais tarde ou mais cedo, de
ser reformado. Nessa altura, não tanto por causa da sustentabilidade, mas pela
necessidade de rever alguns excessos que tinham levado as pessoas a uma ati-
tude passiva perante a responsabilidade sobre as suas próprias vidas. Foi Bill
Clinton quem deu o pontapé de saída para esta transformação com o progra-
ma dos «Novos Democratas», que tirava as conclusões certas da revolução libe-
ral de Reagan e de Thatcher. A ideia resumia-se numa frase: «From the welfare
to the workfare.» Era preciso «libertar» as pessoas da armadilha dos subsídios,
levando-as a assumirem mais responsabilidades e criando incentivos para que
entrassem no mercado de trabalho. A «terceira via» de Blair, hoje tão despre-
zada, foi a continuação deste movimento que depois se alargou ao continente
europeu, incluindo a Alemanha ou Portugal. A ideia era que os países euro-
peus se tinham de adaptar ao desafio da globalização económica, tornando
as suas economias mais amigas dos mercados e mais ágeis na adaptação às
novas circunstâncias da concorrência mundial. A questão central da igualdade
de oportunidades só podia ser resolvida, dizia-se então, através da qualificação
das pessoas, ou seja, da educação. O problema já era diferente: tratava-se de
garantir a sustentabilidade a prazo dos sistemas de segurança social europeus
por via da capacitação dos cidadãos e da aposta na inovação científica e tec-
nológica, capaz de sustentar uma «economia do conhecimento». Na década
de 90 e nos anos iniciais deste século, esta fórmula parecia possível. A Europa
passou a última década a tentar adaptar-se a esta nova realidade. Começou em
2000 com a «estratégia de Lisboa», uma iniciativa de Blair e de Guterres para
adaptar a economia europeia à era da Internet e da globalização dos merca-
A nova paisagem política 161

dos, tentando tirar de ambas os mesmos benefícios que, na altura, os Estados


Unidos tiravam. Ninguém ainda pensava na China. Mas não foi preciso muito
tempo para se perceber que a principal consequência da era da globalização
era a entrada das economias emergentes nos mercados mundiais, alterando
profundamente os termos de troca internacionais, ao mesmo tempo que per-
mitia tirar da miséria centenas de milhões de pessoas.

A crise financeira de 2008 acabou por expor em toda a sua extensão as debi-
lidades das economias europeias (e americana) para competirem nesse novo
mundo. Alguns países europeus (os nórdicos ou a Alemanha) foram mais rápi-
dos a adaptar-se às novas circunstâncias. A «terceira via» teve o seu papel, não
apenas no Reino Unido mas também na Alemanha, onde o chanceler Gerhard
Schröder levou a cabo um conjunto de reformas do mercado de trabalho e da
segurança social que lhe permitiram passar de «doente da Europa» a uma das
economias mais competitivas.
Sobrou um problema que a social-democracia ainda não conseguiu resol-
ver: como travar o aumento brutal das desigualdades sociais sem recorrer a
um aumento acentuado dos impostos? Esta desigualdade não ocorreu apenas
ou em maior grau nas democracias ricas, mas também nas economias «emer-
gentes». Podemos dizer que Portugal está hoje muito mais desigual do que
no início da crise. Nada se compara com a desigualdade em que vivem países
como a China ou o Brasil. Mas é este o maior problema que o centro-esquerda
europeu enfrenta, sem grande capacidade de conseguir uma resposta que não
seja a defesa crítica e impossível do Estado social tal como existiu nas últimas
décadas. Até à crise financeira, a estagnação dos rendimentos das classes mé-
dias foi politicamente sustentada pelo acesso ao crédito fácil. Hoje, o problema
ficou à vista desarmada. A questão central da esquerda é esta. Quando está na
oposição, grita pela defesa do Estado social. Quando está no governo, faz mais
ou menos o mesmo que o centro-direita. Acresce que a almofada que lhe res-
tava, o projecto de integração europeu, está em vias de mudar profundamente
a sua natureza.

Regressando a Rosanvallon, as suas últimas obras são dedicadas à questão


da desigualdade e da sua compatibilidade com a democracia. É possível que
um CEO de uma grande empresa ganhe 500 vezes mais do que os trabalha-
dores menos bem pagos? Foi essa a herança dos trinta anos de «capitalismo
de casino». O neoliberalismo de Thatcher e de Reagan não nasceu por acaso.
Nasceu dos excessos do estatismo económico e do Estado-providência. Como
é que se faz o pêndulo virar agora na direcção contrária, quando a globalização
dita regras de concorrência muito mais apertadas?
Há já alguns anos entrevistei o sociólogo alemão Wolfgang Merkel (conse-
lheiro de Schröder, Blair e Zapatero) sobre esta questão da sobrevivência dos
partidos de centro-esquerda. As respostas não são simples, disse ele, e a sobre-
162 Europa Trágica e Magnífica

vivência nem sequer está assegurada. Chamou a atenção para uma nova cliva-
gem, decorrente da globalização, entre as pessoas muito educadas e cosmopo-
litas (os «viajantes frequentes») e as que chamou de «comunitários nacionais»,
os perdedores da globalização, concluindo que sobrava pouca coisa para o
centro-esquerda, que estava a perder aceleradamente a sua base popular para
os partidos de extrema-direita. É o que vemos hoje, com um problema novo e
preocupante: o da «geração perdida». Merkel lembrava o último livro de Tony
Judt, no qual o grande historiador dizia que só restava a «social-democracia do
medo». Medo de perder tudo.
Hoje, a social-democracia europeia está mais preocupada com o passado do
que com o futuro. O SPD quer fazer «esquecer» Schröder. O Labour quer fazer
«esquecer» Blair. O PS quer fazer «esquecer» Sócrates. E, já agora, também Gu-
terres. Os Estados-Gerais que organizou em 1995 já iam muito mais longe na
necessidade de reformar o Estado social.
Muitas pessoas acreditaram que a chegada de François Hollande ao Eliseu
alteraria os desequilíbrios políticos na Europa, claramente a favor da Alema-
nha e da sua receita para a crise. Vemos como está hoje Hollande. Depois, acre-
ditou-se que a entrada dos sociais-democratas alemães no governo de Merkel
podia significar alguma coisa. Quem ouviu Peer Steinbrück apelar a um Plano
Marshall para os países do Sul, cujo sofrimento era inadmissível, não acredita
que o SPD tenha assinado de cruz a política europeia da chanceler. O chefe do
Eurogrupo é um trabalhista holandês que consegue ser mais radical do que
Berlim. A clivagem aqui não é ideológica, é geográfica e cultural — atravessa a
Europa a meio. É, portanto, bastante mais perigosa.
António Costa dizia na última «Quadratura do Círculo» que as coisas só mu-
dariam quando, em França, a Frente Nacional de Marine Le Pen ganhasse as
eleições europeias, no próximo mês de Maio. Toda a gente levaria um grande
susto. Levaria?
A nova paisagem política 163

A HORA
DOS EXTREMOS

AS «AULAS
PRÁTICAS»
QUE NOS VÊM
DA SUÉCIA
21-09-2010

Primeiro foi a tempestade provocada pela forma como Nicolas Sarkozy deci-
diu fazer dos ciganos um expediente para recuperar a sua popularidade per-
dida. Depois, a súbita entrada no Parlamento de Estocolmo de um partido de
direita populista que baralhou as contas da paisagem política sueca. E isto foi
apenas na última semana. Antes, já sabíamos que a Holanda continua sem go-
verno desde as eleições legislativas de Junho porque o partido populista de
Geert Wilders teve um resultado eleitoral suficientemente alto para se tornar
indispensável a uma coligação de centro-direita que, mesmo assim, hesita em
aceitá-lo. Como assistíamos incrédulos à impossibilidade belga de constituir
um governo, graças a outra forma de nacionalismo — o separatismo flamengo.
Já quase nos habituámos aos métodos com que Silvio Berlusconi governa a Itá-
lia, apoiado na Liga Norte, que não gosta de imigrantes nem gosta dos italianos
que vivem abaixo de Roma. Quase não prestámos atenção ao regresso da direi-
ta nacionalista em Budapeste. Nem ligámos ao facto de o governo de Copenha-
ga se manter no poder há anos graças ao apoio de um partido de direita popu-
lista anti-imigrante, cuja líder reivindica a Dinamarca para os dinamarqueses.
Nas últimas eleições para o Parlamento Europeu, em 2009, vimos emergir
em países tão improváveis como o Reino Unido partidos nacionalistas e xe-
nófobos sem expressão parlamentar que, no entanto, mereceram um apoio
popular significativo e estão hoje em Estrasburgo. O fenómeno Haider na Áus-
164 Europa Trágica e Magnífica

tria, que provocou em 2000 uma tremenda crise na União Europeia (por sinal
sob presidência portuguesa), parece-nos hoje uma história banal. É impossível
não ver que a Europa atravessa uma profunda crise existencial, porventura
acelerada pela crise económica mas prévia aos seus efeitos, que nos força a
uma profunda reflexão.

Embora se expresse politicamente de formas distintas, de acordo com as


culturas nacionais existentes, o padrão é sensivelmente o mesmo em toda a
parte. A nova ou a velha extrema-direita europeia encontrou no apelo à identi-
dade nacional e no combate à imigração, sobretudo com origem islâmica, uma
nova e muito eficaz bandeira política. Este é o primeiro grande problema que a
Europa enfrenta. Porque há hoje mais de 20 milhões de europeus (imigrantes
ou não) que são islâmicos. Porque a Europa confina com o mundo islâmico e
a geografia não se muda. Porque a realidade económica europeia e mundial
abre as portas a fluxos migratórios que não são estancáveis. Porque as socieda-
des culturalmente homogéneas são hoje uma realidade do passado.
O segundo grande problema é que se passou do «politicamente correcto» da
esquerda para o «politicamente incorrecto» da direita sem se ter conseguido
reflectir sobre o problema a sério. Há alguns anos, quando a Frente Nacional
ou a Liga Norte faziam as suas incursões na política francesa ou italiana, as
críticas mais lúcidas dirigiam-se sobretudo para uma certa cultura dos parti-
dos de centro-esquerda que, pura e simplesmente, ignoravam a dificuldade
de integração de comunidades com hábitos e culturas distintas, limitando-se
a debitar princípios que, em si próprios, são indiscutíveis mas que têm de ser
confrontados com novas realidades. Foi por essa altura que vimos o voto nos
partidos de esquerda imigrar com uma facilidade enorme para os partidos de
extrema-direita. Foi ainda nesse ambiente que a Europa reagiu ferozmente à
chegada do partido de Jörg Haider ao poder em Viena, pela mão dos conserva-
dores, levando o Conselho Europeu a «suspender» a Áustria de uma série de
direitos políticos.

Hoje defrontamo-nos com outro fenómeno porventura mais grave e mais


preocupante, embora não generalizável a todos os países da União. Os partidos
de centro-direita cedem à propaganda populista e anti-imigrante, integrando
no seu discurso, se não também na sua prática governativa, algumas das medi-
das que os fizeram populares junto do eleitorado. O caso mais paradigmático
é, talvez, o de França, mas não é único. Nicolas Sarkozy ganhou as eleições
de 2007 com uma espécie de parler vrai sobre os imigrantes, sobretudo os de
origem magrebina e africana nos banlieues das grandes cidades francesas e,
com isso, esvaziando a Frente Nacional de Jean-Marie Le Pen. O facto foi, aliás,
louvado por muitas pessoas, admitindo que a velha direita gaullista francesa
nunca ultrapassaria uma certa linha vermelha. O problema agora é que essa
linha acaba de ser ultrapassada pelo Presidente francês no caso dos ciganos.
A nova paisagem política 165

Com duas consequências imediatas. O problema tornou-se europeu e provo-


cou um debate como raramente se viu ao mais alto nível na Europa. E isso é
bom. Os índices de popularidade de Sarkozy subiram, como era sua intenção,
o que é o pior dos sinais.
O problema é mais fundo do que a crise económica. E aí estão as eleições
suecas para o provar. A Suécia, que pensávamos um mundo à parte, acaba de
nos dar várias «aulas práticas» sobre as tendências da política europeia. A pri-
meira é o fim de um longo ciclo de hegemonia social-democrata, que gerou
o invejado «modelo sueco». Hoje, os eleitores suecos parecem mais interes-
sados na eficácia com que o essencial desse «modelo» deve ser preservado
mantendo uma economia aberta ao mundo e altamente competitiva, do que
com velhos discursos ideológicos em torno do Estado social. Sinal dos tempos.
A outra lição é bastante mais preocupante. Mesmo com um modelo social que
funciona bem, uma taxa de crescimento que faz inveja a qualquer país ociden-
tal, o segundo lugar entre os países mais competitivos do mundo, o discurso
contra os imigrantes e o seu alegado «assalto» aos benefícios sociais e aos bons
costumes foi suficientemente eficaz para dar aos «Democratas» vinte lugares
no Parlamento e retirar ao governo o merecido prémio da boa governação.

Há dois problemas (há certamente muitos mais) que contribuem para ali-
mentar esta tendência para o fechamento e a xenofobia na Europa. O primeiro
é demográfico. As sociedades europeias estão envelhecidas e cada vez mais
o voto conservador (em todos os sentidos da palavra) pesará mais nas esco-
lhas políticas. Há aqui um círculo vicioso difícil de romper. Mas há também
uma responsabilidade política. Enquanto Sarkozy utiliza sem o menor pudor
os ciganos para inverter a sua sorte eleitoral, do outro lado do Atlântico o seu
homólogo americano não teme envolver-se na polémica (politicamente arris-
cada) da construção de uma mesquita junto do «ground zero» e combate com
todas as armas legais de que dispõe as leis abusivas do Arizona contra os imi-
grantes. E fá-lo dizendo simplesmente que o faz em nome da América.
166 Europa Trágica e Magnífica

O MUNDO
DE ONTEM
26-04-2011

Holandeses preparam-se para expulsar imigrantes polacos desempregados.


Pequeno título na primeira página do Financial Times de segunda-feira pas-
sada. A notícia, desenvolvida na página 4, diz que a mais recente campanha
do partido populista de Geert Wilders contra os imigrantes polacos (150
mil) está prestes a transformar-se numa política do governo de coligação
entre liberais e centristas democratas. Serão expulsos caso estejam desem-
pregados por mais de três meses. Bruxelas já protestou, acrescenta o jornal.
O partido de Wilders, que é hoje a terceira força política na Holanda, já não
se limita a combater a imigração de origem islâmica, a sua grande bandeira.
A Holanda abriu as suas fronteiras aos países da Europa de Leste em 2007.
Vieram 200 mil. Trabalham na agricultura de estufas, fazendo o que os ho-
landeses já não querem fazer. São europeus, membros da União, fazem os
seus descontos. Wilders diz que estão a sobrecarregar a segurança social,
que fazem muito barulho e bebem em demasia. Pelos vistos, o governo está
de acordo. Afinal, o que interessa a liberdade de circulação no espaço euro-
peu? Cada vez menos. Ontem, numa cimeira em Roma, o Presidente Nicolas
Sarkozy e o primeiro-ministro Silvio Berlusconi esforçaram-se por produzir
uma nova teoria sobre os inconvenientes de Schengen e a necessidade de
rever as regras de livre circulação na União Europeia. O motivo não eram
os polacos, mas os tunisinos ou outros potenciais imigrantes e refugiados
da África do Norte que atravessam o Mediterrâneo até Lampedusa, muitos
deles com o objectivo de entrar em França onde têm família e dominam a
língua.
Nas últimas semanas sucederam-se as «escaramuças» políticas entre Roma
e Paris, incluindo a paragem de comboios na fronteira e a reposição dos con-
trolos fronteiriços entre os dois países por causa dos tunisinos a quem os ita-
lianos estão a fornecer um passe de livre circulação provisório. Ao todo, os que
vieram depois da queda do regime de Ben Ali e da guerra na Líbia não chegam
aos 25 mil. Muitos mais estão a chegar da Líbia a território tunisino. Até agora,
a mais forte, mais visível e mais e constante reacção europeia às revoltas de-
mocráticas no mundo árabe foi o pânico perante uma «invasão» de imigrantes
e de refugiados. Já ouvimos de tudo, incluindo um ministro italiano (da Liga
Norte) a dizer que esta «invasão» é uma ameaça e que as ameaças se resolvem
com armas. E já vimos tudo, incluindo a falta de solidariedade dos outros paí-
ses europeus face ao problema.
A nova paisagem política 167

Os polacos não são tunisinos mas os holandeses também não gostam deles.
Os Verdadeiros Finlandeses, agora também a terceira força na Finlândia, não
gostam de portugueses (e imagina-se que também não gostem de gregos). Qua-
druplicaram o número de votos nas eleições da semana passada elegendo a
oposição à ajuda financeira a Portugal como tema central da campanha. Tam-
bém não gostam de imigrantes.
Já não é a primeira vez que Nicolas Sarkozy elege a carta dos imigrantes
como a melhor forma de recuperar apoio eleitoral. Desta vez, a tarefa está a
revelar-se muito mais difícil. A versão modernizada e rejuvenescida da Frente
Nacional, corporizada por Marine Le Pen (a filha), continua a somar apoios.
A França para os franceses, fora do euro e pronta a renegociar os termos da
integração europeia. Em Itália, o discurso xenófobo já faz parte do quotidia-
no do governo, também em queda livre, de Silvio Berlusconi. Já sabemos que
uma vaga de populismo antieuropeu e anti-imigrantes varre hoje a maioria
dos países ricos da Europa do Norte. Em quase todos eles, os partidos que a
representam tornaram-se incontornáveis para a governação.
Estamos perante um fenómeno novo. Já não se trata, como há dez anos, de
olhar de forma mais realista para as cada vez maiores comunidades de imi-
grantes vindos de fora da Europa, tentando compreender o sentimento de re-
jeição de sectores normalmente menos ricos e menos educados da população
de origem europeia e procurando novas formas, mais efectivas, de integração.
Agora, é uma doença que se alimenta da rejeição do outro, do fechamento em
relação ao mundo exterior, que vai muito além das comunidades islâmicas e é
reveladora de uma mudança política muito mais funda.
Não é por acaso que os partidos populistas ganham terreno nos países mais
ricos, com a economia a crescer mais e o desemprego abaixo da média euro-
peia (na Holanda ronda os 4 por cento). E também não é por acaso que esse
sentimento contra os outros, que podem ser tunisinos, portugueses ou polacos,
se mistura com um crescente sentimento antieuropeu. Ser «PIG» (Portugal, Ir-
landa e Grécia) ou ser tunisino começa a não fazer muita diferença aos olhos
de um finlandês, de um alemão, de um sueco ou de um holandês. Da mesma
maneira que o euro deve ser «purificado» dos irresponsáveis do Sul, também as
fronteiras devem ser de novo erigidas, quando se trata de impedir os polacos
de trabalharem na Holanda ou os tunisinos de passarem de Itália para França.
O euro e Schengen foram os dois mais fortes símbolos da União Europeia.
Sobre a moeda única, ninguém está ainda em condições de garantir com segu-
rança qual será o seu futuro. Sarkozy transforma-se no paladino do regresso
a fronteiras. Em Bruxelas, saúdam-se com palavras grandiosas as revoluções
árabes, desde que fiquem à porta e não incomodem. Prometem-se milhões à
Tunísia, que nunca chegam, mas arranjam-se biliões para ajudar países «po-
bres» como a Itália a lidar com a «vaga» de imigrantes tunisinos.
O problema desta vaga populista e xenófoba não é apenas o seu peso eleito-
ral. O problema é que a sua ideologia se está a transformar numa forte condi-
168 Europa Trágica e Magnífica

cionante da política dos governos europeus e, por via deles, da própria União
Europeia. Era preciso combatê-los politicamente em vez de se deixar contami-
nar por eles. Não é isso que acontece.

Há um livro de Stefan Zweig que, sem querer dramatizar demasiado, é uma


leitura recomendável para estes dias que correm. Chama-se O Mundo de Ontem
e nele o escritor austríaco descreve o mundo maravilhoso em que cresceu na
capital do Império Austro-Húngaro antes da Primeira Guerra Mundial. Parece-
-lhe o melhor dos mundos, o mais civilizado, o mais culto, o mais humano, o
mais aberto. É esse mundo que vai desfazer-se num instante diante dos seus
olhos, iniciando uma terrível descida aos infernos. O livro, que Zweig começou
a escrever em 1934, só foi concluído pouco antes do seu suicídio no Brasil, em
1942. Estamos, felizmente, muito longe destes tempos. Mas, a menos que haja
um sobressalto político forte e clarificador, a Europa pode desfazer-se com a
mesma velocidade, destruindo quase sem se dar conta o que levou cinco dé-
cadas a construir para evitar de uma vez por todas que a história da primeira
metade do século passado alguma vez se pudesse repetir.
A nova paisagem política 169

A EUROPA TEM
FINALMENTE
DIREITO AO SEU
PRÓPRIO TEA PARTY
14-04-2011

É muito pouco provável que as eleições na Finlândia se traduzam num veto à


ajuda europeia a Portugal. Os Verdadeiros Finlandeses, o partido nacionalista
que fez da recusa dessa ajuda o tema da última semana da campanha, não
terá provavelmente a força suficiente para influenciar o próximo governo de
Helsínquia. E mesmo que isso viesse a acontecer, haveria formas de a União
Europeia contornar esse impedimento. Não é esse o problema. O problema
é que a forma como decorreu a campanha eleitoral na Finlândia, levando os
sociais-democratas a adoptarem, também eles, uma posição ambígua sobre o
resgate aos países periféricos da zona euro ou os partidos do governo a uma
posição defensiva, não é um fenómeno isolado. Reflecte o estado de espírito e
a indefinição que domina hoje o debate político em muitos países europeus.
O eurocepticismo e a rejeição dos imigrantes têm sido as duas faces de uma
mesma moeda, que está a alimentar o sucesso eleitoral de partidos populistas
e nacionalistas um pouco por toda a Europa. Na Suécia, isso aconteceu nas
últimas eleições. O padrão já era comum à Holanda, à Dinamarca, à França ou
à Áustria. Ninguém ignora a forma como a opinião pública alemã reage mal a
qualquer espécie de ajuda aos países periféricos, a braços com as suas crises
da dívida soberana, e como isso tem limitado a vontade e a capacidade de Ber-
lim para liderar de forma inequívoca a resposta europeia à crise. Muito mais
preocupante que um eventual veto finlandês é a queixa apresentada por um
grupo de economistas alemães ao Tribunal Constitucional pela violação dos
tratados europeus que proíbem a ajuda financeira a países em dificuldades.
Na Alemanha não há um partido gémeo dos Verdadeiros Finlandeses. Mas há
o mesmo sentimento de rejeição.

A pergunta que alimenta as opiniões públicas dos países europeus que


pagam a ajuda aos incumpridores é quase sempre a mesma. Por que razão
o dinheiro dos contribuintes desses países, que são ricos mas fizeram sacrifí-
cios para ter as suas contas em dia, há-de ser usado para salvar da bancarrota
parceiros que se revelaram incapazes de cumprir com as obrigações próprias
da união monetária? Desde a crise da Grécia, em Maio de 2010, que líderes
170 Europa Trágica e Magnífica

europeus têm tentado contrariar esta lógica, argumentado de forma mais


ou menos convincente com a necessidade de preservar o euro e a Europa.
A imposição aos países infractores de duríssimos pacotes de austeridade, se é
uma necessidade que decorre das próprias regras de funcionamento de união
monetária, também tem sido apresentada como um «castigo» destinado a fa-
zer pagar caro essa ajuda e a tentar justificá-la aos olhos dos contribuintes.
O problema é que esta espécie de justificação acaba por alimentar a lógica que
anima os partidos eurocépticos em lugar de contrariá-la.
O reverso da medalha é o sentimento de humilhação que hoje é visível nos
países «ajudados», alimentando a mesma lógica perversa que corre o risco de
minar a integração europeia. Também nesses países os partidos eurocépticos
não vão deixar passar a oportunidade de regressar à defesa da «soberania
nacional» contra a condenação ao estatuto de «protectorado». O terreno será
mais fértil para o populismo e o nacionalismo.

A crise da moeda única, com as suas consequências, é apenas um dos sin-


tomas da doença. A França está disposta a não respeitar Schengen e a repor
as suas fronteiras com a Itália caso os imigrantes tunisinos que desembarcam
na ilha de Lampedusa tentem alcançar o seu território. A Itália responde da
mesma moeda à falta de solidariedade europeia, pondo em causa os méritos
da própria União. Os analistas advertem para que a próxima grande crise eu-
ropeia pode será a crise dos boat-people, enquanto a Europa teima em não
encontrar uma resposta comum para o fenómeno, que faça sentido numa es-
tratégia comum para lidar com as revoltas árabes. Os exemplos podem multi-
plicar-se indefinidamente.
Alguém escrevia recentemente que os europeus têm finalmente o direito ao
seu próprio Tea Party. O problema é que os seus efeitos serão, por força das
circunstâncias, muito mais devastadores.
A nova paisagem política 171

AS NOVAS
E AS VELHAS
CLASSES MÉDIAS
20-08-2011

A chuva é apenas o menor dos males deste estranho mês de Agosto. Passam
vinte anos sobre o último estertor do comunismo (Agosto de 1991) que ia dei-
tando tudo a perder na Perestroika. Comemoram-se os cinquenta anos da
tentativa historicamente falhada de erguer um muro a separar Berlim. Gor-
batchov é, de novo, o homem do momento. Berlim volta a estar no centro da
Europa. Mas tudo isto nos parece longínquo, parte de um outro mundo que
não é já o nosso, quando a vitória do Ocidente e da liberdade fazia despertar
todas as esperanças. O mais próximo deste Verão tempestuoso é, infelizmente,
o fatídico mês de Setembro de 2008 que assistiu à queda do Lehman Brothers,
desencadeando a maior recessão mundial desde a crise de 1929. Da queda do
Muro à queda das Torres Gémeas e, depois, à queda do velho banco de inves-
timento americano que deitou abaixo Wall Street, o mundo virou-se de pernas
para o ar. De novo «esta foi a semana em que os investidores abandonaram
qualquer esperança», escreve o Financial Times. Já ninguém acredita na reto-
ma nos países ricos. Ainda estamos a tentar perceber o que nos aconteceu.
A nós, ocidentais, vencedores da Guerra Fria e modelo de desenvolvimento
para o mundo. Talvez seja esse o nosso maior problema: recusarmo-nos a en-
tender até que ponto o mundo está a mudar. Isso implicaria extrair da crise
— desta crise da dívida, dos bancos, do modelo de crescimento e da sociedade
— novas ideias, novas políticas, novas propostas, não necessariamente destina-
das a operar revoluções mas a encontrar formas de impedir que a «ascensão
do resto» seja necessariamente a nossa «queda». Não do Ocidente hegemónico,
mas do Ocidente enquanto modelo de sociedade — nacional e internacional.
Há tanta coisa para reflectir que construir um puzzle que faça sentido torna-
-se uma tarefa impossível. Juntemos, no entanto, algumas peças.

Quando David Cameron veio prometer mão duríssima contra os «puros e


simples criminosos» que puseram Londres a ferro e fogo durante quatro dias,
a reacção normal das pessoas normais foi aplaudi-lo. É assustador ver jovens
de cara encoberta a incendiarem lojas e carros e a roubarem toda a espécie de
«objectos de desejo» perante uma polícia aparentemente impotente para os
travar. Muitas das coisas que disse sobre a moral e a responsabilidade estavam
certas. Não resistiu à tentação de enveredar por um «regresso ao passado»
172 Europa Trágica e Magnífica

esgrimindo contra os benefícios sociais das famílias desses jovens, ameaçan-


do tirar-lhes as casas, voltando à carga com as famílias monoparentais, com a
«cultura do vale tudo», como se tudo na vida resultasse apenas da livre escolha
de indivíduos e não existisse a responsabilidade colectiva que está na base do
contrato social em que assentam as nossas democracias. Thatcher dizia que
não havia «essa coisa a que chamam de sociedade, apenas indivíduos». Came-
ron, quando ainda aspirava a Downing Street, teve o cuidado de dizer preci-
samente o contrário: «Há uma coisa chamada sociedade.» Quando apelou ao
back to basics, muitas pessoas terão certamente sorrido. John Major fez o mes-
mo discurso em 1993 para ver o seu governo envolvido em escândalos (alguns
de natureza «familiar») no dia seguinte. Como muito bem lembrava a Econo-
mist, a frase que realmente conta e da qual é preciso partir é aquela que fez de
um ainda relativamente obscuro ministro-sombra trabalhista chamado Tony
Blair um potencial candidato à liderança do New Labour e do país: «Temos de
ser duros com o crime e duros com as causas do crime.» Não tenho grandes
dúvidas que será essa a via que o Reino Unido acabará por seguir, apesar do
excesso de linguagem de Cameron ou das penas demasiado pesadas aplicadas
hoje pelos tribunais aos infractores. Mas não é certamente ignorando «as cau-
sas do crime» que o problema se resolve. Até porque ele é muito mais vasto.

A sociedade precisa de um conjunto de valores éticos que a mantenha


coesa e pacífica e deve proteger aqueles que obedecem à lei. Mas é igualmente
inadmissível um escândalo como aquele que envolveu há dois anos os depu-
tados britânicos, que se acharam com direito a utilizar dinheiro público para
os seus pequenos e grandes confortos privados, ou o convívio entre a classe
política britânica (Cameron e Blair incluídos) com o universo mediático de
Murdoch, numa conivência indecente e perigosa entre dinheiro, poder, polícia
e informação onde qualquer ética ou responsabilidade cívica passou ao lado.
Tudo isto faz porventura parte do «declínio moral» denunciado por Cameron
na sua ânsia de justificar os tumultos de Londres. Pode dizer-se que os jovens
que roubaram as lojas não passam necessidades, antes não cumprem os seus
deveres. Também se pode acrescentar que o Reino Unido é o país da Europa
mais rica em que os jovens estão mais cedo e em maior número ausentes do
ensino. Ou que é o país mais desigual da União Europeia, com a triste excepção
de Portugal.
Claro que não é «politicamente correcto» relacionar tudo isto. Ou, muito me-
nos, juntar ao quadro geral a impunidade com que os «senhores do universo»
que dominavam a finança mundial recuperaram o seu estatuto. O problema é
que falar de responsabilidade das pessoas, das famílias, das instituições, come-
ça justamente aqui, e só se começar aqui pode chegar aos bairros onde as con-
dições de vida são mais duras, as perspectivas de melhorar a vida mais difusas,
mas que nenhum muro separa da realidade que mora ao lado.
A nova paisagem política 173

A questão dos valores é hoje, para as sociedades ocidentais, muito mais


ampla do que o bom comportamento dos jovens das periferias. É como man-
ter as nossas sociedades, afectadas pelas consequências de uma globalização
económica que não é favorável ao Ocidente, suficientemente coesas para pre-
servarem o seu modelo democrático e os fundamentos da sua justiça social.
A globalização não pode servir apenas para dizer que as novas condições de
competitividade das economias ocidentais mudaram radicalmente, e que isso
justifica (impõe) os bónus ofensivos dos CEO, a redução até níveis nunca vistos
dos impostos sobre o capital e as empresas ou a «compressão» crescente dos
rendimentos da vasta classe média que foi o sustentáculo do modelo de de-
senvolvimento económico e social do Ocidente. Competir com os outros não
pode querer dizer apenas aumentar as desigualdades, desmantelar a protec-
ção social e, sobretudo, pôr em causa a base do contrato social que permitiu o
extraordinário desenvolvimento ocidental. A resposta à crise de 29 foi o New
Deal. Não basta, desta vez, dizer que é preciso fazer sacríficos e que vamos pas-
sar muitos anos a pagar o excesso de endividamento dos últimos vinte. A ques-
tão é: como se renova o contrato social nas novas condições da globalização.
Como escreveu Jeffrey Sachs no Financial Times, boas políticas sociais não
significam aumentar os défices ou a dívida. Mas significam certamente «um
equilíbrio completamente diferente entre os cortes nos serviços sociais e o
aumento dos impostos sobre os mais ricos». Não, não é um sacrilégio. Warren
Buffett disse-o por outras palavras e pôs toda a gente a fazer contas nos Esta-
dos Unidos. E não vale a pena dizer que isso é impossível por causa da concor-
rência mundial. Primeiro, a competitividade dos países desenvolvidos nunca
será ganha reduzindo salários. Segundo, nas economias emergentes a necessi-
dade de encontrar formas muito mais avançadas de justiça social não vai parar
de crescer. E isso leva-nos à questão final.

O risco maior que corremos não são, provavelmente, os tumultos dos jo-
vens marginais de Londres ou de Paris. O risco que corremos tem a ver com as
classes médias e com os seus valores. Num artigo publicado recentemente no
El País, Moisés Naím chamava a atenção para um fenómeno que temos debai-
xo dos olhos mas que muitas vezes não avaliamos no seu conjunto. Por toda
a parte nos países emergentes, da China ao Chile, passando pela Índia, Brasil
ou Tunísia, as novas classes médias que começam a surgir não hesitam em to-
mar para si os velhos valores democráticos ocidentais para reivindicarem mais
justiça, mais liberdade, menos corrupção, mais igualdade de oportunidades.
Oprimidas pela estagnação dos seus rendimentos, ameaçadas pelas incertezas
económicas, envelhecidas, cheias de medo do mundo lá fora, as classes mé-
dias dos países ricos parecem mover-se em sentido contrário. Fecham-se sobre
si próprias, respondem aos cantos de sereia do nacionalismo e da xenofobia,
aspiram a um beck to basics que se afigura demasiado assustador. A dureza do
discurso de Cameron alimenta esses sentimentos. Mas também sabemos — e
174 Europa Trágica e Magnífica

a Europa sabe-o melhor do que ninguém — que as ideologias matam. «A lição


da tragédia na Noruega é que as palavras podem matar e que as ideologias de
extrema-direita podem levar a consequências terríveis», escreve Dominique
Moisi, lembrando-nos de outra tragédia de dimensões muito maiores que mar-
cou este Verão.
Talvez não fosse mau pensarmos sobre isto tudo em vez de papaguearmos
velhas receitas, velhos cânones e velhas verdades. Precisamos de ideias novas
e não apenas de líderes corajosos. Obama ainda não está derrotado.
A nova paisagem política 175
176 Europa Trágica e Magnífica

CAPÍTULO VIII

PORTUGAL
RESISTE AO
VENDAVAL?
NÃO TEM
OUTRO
REMÉDIO
REUTERS/Rafael Marchante
Portugal resiste ao vendaval? Não tem outro remédio 177

A VIA EUROPEIA
PARA A NOVA
ECONOMIA
Março de 2000

O problema austríaco ainda pode ensombrar um Conselho Europeu com o


qual Portugal deseja marcar a sua presidência e abrir uma nova era na cons-
trução da Europa. A França de Jacques Chirac quer aproveitar o encontro dos
líderes da UE para exibir a sua hostilidade ao governo de Viena, ameaçando
perturbar o clima de uma cimeira que Guterres quer que seja a rampa de lan-
çamento da Nova Economia europeia. Uma aposta difícil e um «risco calcula-
do» que Portugal quis assumir, mas cujo resultado é ainda uma incógnita.
O primeiro-ministro português, António Guterres, apresenta hoje e amanhã
aos seus pares europeus as bases de uma ambiciosa estratégia destinada a fa-
zer da União Europeia em dez anos o espaço económico mais dinâmico e mais
competitivo do mundo, com crescimento, emprego, mas também com mais
coesão social.
Esperam-no dois dias de trabalho difíceis, durante os quais terá de vencer
ainda muitas objecções e divergências, ultrapassar velhos tiques ideológicos
e rivalidades enquistadas, para conseguir comprometer todos os governos da
UE com um conjunto de conclusões que tenham significado para os mercados
e os cidadãos europeus. Mas, seja qual for o resultado do encontro, a presidên-
cia portuguesa da UE já conseguiu averbar uma assinalável vitória: ter trans-
formado um debate sobre o emprego, travado até agora nos parâmetros ideo-
lógicos e políticos tradicionais da velha economia, numa reflexão global sobre
os novos factores competitivos da sociedade do conhecimento e da inovação,
marcando simbolicamente a viragem da agenda europeia pós-euro para a era
da globalização e das tecnologias de informação.
Encerrado o capítulo da estabilidade macroeconómica indispensável ao
lançamento da moeda única, a pergunta que desencadeou todo este processo,
lançado por Guterres em Maio do ano passado, era simples: como é que a Eu-
ropa se vai preparar para uma economia baseada no conhecimento e na inova-
ção, vencendo as debilidades e os atrasos que a distanciam do dinamismo da
América, mas seguindo uma via própria de sociedades mais preocupadas com
a justiça social e a igualdade?
A resposta será dada a partir de hoje em Lisboa, num encontro de líderes
europeus que a presidência quer dedicar exclusivamente ao assunto, mas que
pode vir ainda a ser perturbado pelo desejo de alguns países, como a França,
178 Europa Trágica e Magnífica

Bélgica ou própria Áustria, de colocarem em cima da mesa a questão austríaca


e todo o seu potencial perturbador.

Os três objectivos da presidência


Espantando-se com a ousadia portuguesa, um analista britânico resumia o
que se vai passar nestes dois dias escrevendo que «a agenda da cimeira de Lis-
boa poderia ter sido preparada na Havard Business School». Descontando o
exagero, os líderes da velha Europa vão tentar olhar com outros olhos para
o sucesso da economia americana, reflectir em conjunto sobre as próprias mu-
danças económicas e sociais que se verificam também na Europa a uma velo-
cidade alucinante (muitas delas induzidas pelo euro), encarar as debilidades
e as fraquezas da Europa para enfrentar os desafios de um novo paradigma
económico assente no conhecimento e na inovação tecnológica e tentar traçar
uma via europeia para conseguir acelerar essas mudanças com benefício para
o maior número.
Ontem, António Guterres precisou os seus objectivos para o encontro de Lis-
boa, delimitando-os a três decisões concretas: sobre uma nova estratégia, um
novo método de trabalho e um conjunto de medidas concretas que avalizem
o carácter irreversível do processo e o compromisso de todos os governos da
União.
Guterres fez assentar a estratégia de reformas que quer ver aprovada em
quatro pilares fundamentais: a economia e a sociedade do conhecimento e
da informação; as reformas económicas para a competitividade e o emprego;
uma coordenação das políticas macroeconómicas que levem em conta a esta-
bilidade do euro mas também o crescimento; a renovação do modelo social
europeu a partir do investimento nas pessoas e da afirmação de políticas de
combate à exclusão social.
Quanto ao método político, a presidência aposta no chamado «método de
coordenação aberta», um método essencialmente intergovernamental que
pretende combinar «a coerência europeia com a diversidade nacional». As
prioridades e as linhas de orientação são definidas em comum mas a sua tra-
dução prática é da responsabilidade nacional. O primeiro-ministro quer ainda
ver reforçado o papel do Conselho Europeu como «centro coordenador de to-
das as políticas económicas e sociais», propondo aos seus pares uma reunião
anual apenas destinada à avaliação e ao exame dos resultados dessas políticas.
Aliás, Guterres já «infringiu» as regras tradicionais de preparação das ci-
meiras (em que a Comissão e o Conselho preparam as decisões que vão ser
adoptadas) assumindo integralmente o processo de elaboração das propostas
que vão ser hoje discutidas, em articulação directa com os outros primeiros-
-ministros e o presidente da Comissão.
A presidência portuguesa tem tido também o cuidado de insistir em que
não se trata de querer lançar novas políticas comuns com novos financiamen-
tos. Maria João Rodrigues, a conselheira do primeiro-ministro a quem coube a
Portugal resiste ao vendaval? Não tem outro remédio 179

coordenação de todos os trabalhos preparatórios da cimeira, esclareceu que o


financiamento das medidas que podem vir a ser aprovadas em Lisboa não diz
respeito ao Orçamento comunitário (definido até 2006 na Agenda 2000), mas
antes aos orçamentos nacionais e à mobilização de recursos privados que a
Europa possui em abundância.
Haverá apenas uma proposta do BEI (Banco Europeu de Investimento)
«muito importante e inovadora» que «envolve somas avultadas». Admite-se
que essa proposta vise sobretudo a disponibilização de capital de risco às PME,
um dos principais entraves à inovação e à criação de emprego que se verifica
na Europa, em contraste com o que se passa nos EUA.

A misteriosa lista de medidas concretas


Finalmente, o terceiro objectivo ontem assumido por Guterres é fazer aprovar
em Lisboa «uma lista de medidas concretas» que constituam um sinal claro
para os cidadãos e os mercados da irreversibilidade do processo de reformas
económicas e sociais que os Quinze querem lançar nos próximos dez anos.
Esta lista é o segredo mais bem guardado desta cimeira, mas Maria João Ro-
drigues deixou ontem algumas pistas sobre a natureza dos domínios a que
se pode referir. Acelerar a aprovação do «pacote» de incentivos ao comércio
electrónico; avançar na liberalização total das telecomunicações (é urgente a
redução dos custos de acesso à Internet, por exemplo); garantir a coordenação
das políticas nacionais de I&D; acelerar a aprovação do «estatuto da socieda-
de europeia» e os programas de incentivo às PME de alta tecnologia; lançar
o processo de reforma dos sistemas educativos nacionais para os adaptar às
necessidades da formação ao longo da vida e das novas competências básicas
da sociedade da informação.
«Gostaríamos de decidir algumas medidas concretas que podem ser emble-
máticas e que expressem o consenso indispensável a esta viragem», esclareceu
o primeiro-ministro. «Não precisamos de decidir sobre tudo, mas tem de resul-
tar claro que estamos a falar a sério», acrescentou.
Se não for possível nada disto, restará à presidência ter conseguido uma as-
sinalável mudança de atitude dos governos dos Quinze e ter consagrado a nível
europeu uma linguagem mais reformista e conforme com os tempos actuais,
ajudando a sintonizar a agenda política europeia com a era da globalização e
da Nova Economia.
180 Europa Trágica e Magnífica

E A ESPANHA
AQUI TÃO PERTO
30-10-2006

Fernando Neves, o embaixador português que exerceu até Julho passado as


responsabilidades de secretário de Estado dos Assuntos Europeus e que, há
quase trinta anos, levou a Bruxelas a carta formal com o pedido de adesão de
Portugal à então CEE, recordou uma velha história das negociações dos dois
países ibéricos que reflecte bem o modo como cada um se vê a si próprio e
aos outros.
Pouco depois dos pedidos formais, uma delegação da Comissão Europeia
veio a Madrid e a Lisboa para elaborar o chamado «fresco» da situação dos dois
países — primeiro passo para determinar a estratégia negocial. Quando aterrou
em Lisboa, vinda de Madrid, a primeira coisa que um dos seus membros disse
aos portugueses foi o seguinte: «Acabámos de chegar da primeira sessão das
negociações de adesão das Comunidades Europeias à Espanha.»
Fernando Neves contou esta história em Cáceres, na semana passada, du-
rante uma conferência organizada pela Junta da Extremadura com o lema
«A Casa Comum Europeia, 20 anos que mudaram Espanha e Portugal». Pouco
depois, o seu parceiro de debate, o embaixador Javier Elorza, certamente um
dos diplomatas espanhóis com mais experiência europeia, confirmaria, pro-
vavelmente sem querer, a moral desta história. Sem sequer pestanejar, Elorza,
que esteve em Bruxelas à frente da representação espanhola durante muitos
anos, explicou como foram os dois países ibéricos (foi simpático, mas esta-
va certamente a pensar na Espanha) que ofereceram à Europa uma política
externa. O mais interessante é que isto nem sequer soa a arrogância, parece
apenas reflectir uma ilimitada autoconfiança de um país que, ao libertar-se do
franquismo e ao integrar-se na Europa e na NATO, não mais deixou de se sentir
determinado, seguro e confiante.

A economia corre-lhe bem. Bem de mais, quase me atreveria a dizer, depois


de ouvir, na mesma conferência de Cáceres, José Luís Malo de Molina, direc-
tor-geral do Gabinete de Estudos do Banco de Espanha, explicar as razões do
longo ciclo de expansão económica da Espanha, que soma e segue. Com um
excedente orçamental e uma dívida a rondar os 40 por cento, muito abaixo da
média europeia, a economia espanhola está a crescer duas vezes mais do que
a média da zona euro, graças sobretudo ao investimento. A redução acentuada
do desemprego (que foi muito alto nos anos 90 graças aos ajustamentos estru-
turais da economia) andou a par com um crescimento muito forte da popula-
Portugal resiste ao vendaval? Não tem outro remédio 181

ção, devido sobretudo à imigração (a Espanha passou de 40 para 44 milhões


de habitantes entre 1999 e 2005), que representa hoje cerca de 10 por cento
da população activa. Como sublinhou o economista do Banco de Espanha, a
emigração ajudou a criar emprego e a aumentar a flexibilidade do mercado de
trabalho, reduzindo acentuadamente a taxa de desemprego. O reverso da me-
dalha é um crescimento moderado da produtividade que exigirá agora novas
prioridades políticas.
Há sempre um reverso da medalha, mas há medalhas melhores que outras,
e a grande conclusão que se pode tirar da exposição de Malo de Molina, mas
também da de Felipe González que, com Mário Soares, abriu os trabalhos da
conferência, é muito simples: a Espanha soube lucrar enormemente com o
euro porque se preparou para ele flexibilizando a sua economia. Colocado
perante uma pergunta sobre as razões do sucesso económico prolongado de
Espanha, Malo de Molina apontou razões das quais todos nós já suspeitáva-
mos. A continuidade das políticas económicas dos governos González, Aznar
e Zapatero e, sobretudo, a continuidade das reformas. «O que foi fundamental,
foram as transformações das estruturas económicas de Espanha para se adap-
tar. Em Portugal foi mais lento», diria também Felipe.
Foi isso precisamente que nos faltou, prepararmo-nos para o euro. «Portu-
gal não interiorizou as exigências da moeda única. Nem o Estado, nem os sindi-
catos, nem as empresas», como disse Francisco Sarsfield Cabral, a quem coube
a ingrata tarefa de contrapor a situação económica portuguesa à espanhola.
E o problema é que continua a ser muito difícil fazer mudanças em Portugal.
O debate é pobre, o Estado é omnipresente e paternalista, a sociedade civil
fraca.

A conferência foi organizada no âmbito da Ágora, uma iniciativa anual da


Junta da Extremadura que só por si reflecte o dinamismo de uma região espa-
nhola que é das menos ricas mas percebe que tem tudo a ganhar abolindo a
fronteira que a separa de Portugal. A ideia era justamente comparar os cami-
nhos percorridos pelos dois países — divergências e convergências — e ver se
entre ambos havia interesses comuns suficientes e uma visão partilhada para
poderem pesar positivamente numa Europa hoje mergulhada numa profunda
crise de destino.
Em muitas coisas, os dois países convergem. Para começar, nalgumas das
suas prioridades externas e na vontade de levar a Europa a agir de forma mais
convincente e unida no Mediterrâneo ou na América Latina. Ambos têm o
mesmo interesse vital em se manterem no «centro» da construção europeia,
seja qual for o domínio da integração, da economia à defesa. Ambos procura-
ram (com a excepção, em parte, de Aznar) alinhar as suas políticas europeias
pelo eixo franco-alemão, pelo menos enquanto funcionou como o motor da
Europa, ou pela Alemanha, que funciona agora e cada vez mais como o pólo
da integração. Mário Soares juntou a este património europeu comum a con-
182 Europa Trágica e Magnífica

vergência das políticas internas, graças à identificação ideológica entre os dois


primeiros-ministros socialistas, Sócrates e Zapatero, para defender em Bruxe-
las uma União Política assente na coesão do seu modelo social.
Há muito de comum entre os dois países ibéricos na forma como vêem a Eu-
ropa, que radica precisamente na sua experiência feliz de integração europeia.
Como sublinhou Álvaro de Vasconcelos, também em Cáceres, ao contrário do
que se passa em muitos outros países, não estamos a sofrer dos males da xe-
nofobia e do nacionalismo, não tememos os alargamentos, não somos contra
a Turquia, acreditamos na força dos valores europeus. Mas esta crise europeia,
como muitos participantes também sublinharam, de Felipe a Carlos Gaspar ou
a Gil Robles, não é uma crise como as outras. Nem é, muito menos, apenas uma
crise constitucional. A Constituição era boa, disse Felipe, mas não resolveria
os problemas de fundo. Que estão mais na «agenda de Lisboa», ou melhor, no
relativo fracasso de um bom diagnóstico e de uma boa estratégia, do que nas
soluções institucionais.
António Vitorino colocaria as coisas do mesmo modo. O problema maior é
que não há um acordo sobre o que deve ser a Europa no século XXI. Há duas
visões da identidade europeia — uma com Turquia e outra sem Turquia. Há
duas visões da Europa sobre a sua relação com o mundo globalizado — uma
que a vê como um projecto que nos protege dos ventos da globalização e trans-
põe para a União Europeia o velho proteccionismo nacional. Outra que só vê
um novo sentido para a Europa se nos permitir agir globalmente, económica e
politicamente, com todas as consequências que isso tem nas políticas internas.
Europa fortaleza ou Europa aberta? Eis o dilema europeu.
Vitorino deixou também um bom conselho: «A melhor maneira de se ser
optimista hoje, na Europa, é começar por ser pessimista.»
Portugal resiste ao vendaval? Não tem outro remédio 183

A BANDEIRA
DA EUROPA PERDEU
O SEU BRILHO
04-06-2009

O que pode explicar a ausência da Europa nas eleições europeias? A Europa


deixou de render votos? O consenso europeu entre os dois maiores partidos
portugueses vai sobreviver? A ausência de debate europeu é também um sin-
toma da crise. Nacional e europeia.

É um lugar-comum. Se houve assunto ausente da campanha para as eleições


europeias, foi precisamente a Europa. Procuram-se explicações para este apa-
rente paradoxo. Porque a Europa já se nos entranhou na pele ao ponto de es-
bater a fronteira entre o que é nacional e o que é europeu? Porque os dois
maiores partidos são tão iguais nas suas opções europeias que evitam falar de-
las? Porque a dureza da crise prevalece sobre qualquer tema? Ou simplesmen-
te porque a própria Europa, enquanto espera pelo Tratado que tem o nome de
Lisboa, está especada em frente do seu próprio futuro?
Há, naturalmente, uma explicação imediata que se sobrepõe a todas as ou-
tras. O ciclo eleitoral alucinante de que as eleições europeias foram o tiro de
partida é considerado pela maioria dos analistas uma razão forte para que a
Europa tenha ficado à margem dos debates da campanha. O consenso assina-
lável entre os dois maiores partidos, que são também os dois maiores rivais
das sucessivas batalhas eleitorais, pode ser parte da explicação. Este consenso
tem uma história que se confunde com a história da integração europeia de
Portugal. Vai prevalecer?

«Programa comum»
A Europa já foi bandeira eleitoral e «programa comum». Serviu, desde 1974,
para definir o perfil ideológico e político dos partidos que entraram em cena
com a democracia. O PS de Mário Soares fez da «Europa connosco» a sua prin-
cipal definição ideológica e programática. Nessa altura, Europa queria dizer
democracia parlamentar e inclusão no Ocidente. A Europa foi também uma
espécie de «programa comum da democracia» para o leque de forças políti-
cas portuguesas que, nos anos em que se discutiu o destino da revolução, se
opunham à deriva comunista ou à tentação terceiro-mundista. Do PS ao CDS.
«Foi o símbolo a que as elites democráticas recorreram para legitimar a nova
ordem interna depois da batalha da transição», escreve António Costa Pinto.
184 Europa Trágica e Magnífica

Foi esse o motivo determinante do pedido formal de adesão à Comunida-


de Europeia que o primeiro governo constitucional de Mário Soares enviou
para Bruxelas em Março de 1977. A Europa transformou-se nesse momento na
opção estratégica que haveria de estruturar a democracia portuguesa. Seria
precisa a força um governo de coligação entre o PS e o PSD (1983-1985) para
concluir as negociações de adesão.
A Europa continuou a ser a sua bandeira política. Contra os velhos saudo-
sismos «africanos» ou «atlânticos». Contra o receio da Espanha. Para lá das di-
vergências partidárias.
Com a adesão, a 1 de Janeiro de 1986, e com o fim do ciclo político que cul-
minou com a eleição de Soares para Belém e a de Cavaco Silva para São Bento,
resolvida a questão do nosso destino europeu, a Europa passou a ser sinónimo
de desenvolvimento. Confundiu-se, na opinião pública e em parte das elites,
com os fundos comunitários de Bruxelas e as normas e regras que impunham
de fora a modernização do país.
Foi a época de ouro do euro-entusiasmo lusitano. De 23 por cento em 1980,
o apoio popular à Europa passa para mais de 65 por cento entre a data de
adesão e o fim da década de 80. Ultrapassará os 70 por cento nos anos 90.
O antieuropeísmo remanescente em algumas franjas da direita desfaz-se pe-
rante este muro inexpugnável da euforia europeia. O próprio Partido Comu-
nista, cuja oposição à Europa é ideológica, deixa cair o discurso da rejeição
da Comunidade. «A Europa passou a ser associada, e ainda é hoje associada, à
ideia de benefícios materiais», diz António Costa Pinto.
«O europeísmo em Portugal encontra nas vantagens económicas o seu prin-
cipal motor», considera o embaixador Francisco Seixas da Costa.
Mas foi também a época em que as visões europeias do PS e do PSD mais se
afastaram. Por pouco tempo.

De Thatcher a Kohl
Cavaco Silva, que geriu os primeiros dez anos da integração europeia, perce-
beu imediatamente a integração europeia como a alavanca da modernização
do país. Levou mais tempo a perceber a importância da integração política.
Começou por alinhar com a Inglaterra de Margaret Thatcher, cuja concepção
da Europa se limitava a um grande mercado gerido por uma associação de
Estados soberanos. Percebeu mais depressa do que a líder britânica que uma
moeda única era o corolário do mercado único. A «súbita aceleração da his-
tória» desencadeada pela queda do Muro de Berlim, a difícil negociação do
Tratado de Maastricht, concluída em Dezembro de 1991, e finalmente o pri-
meiro exercício da presidência portuguesa da UE em 1992, levaram à rápida
deslocação do alinhamento português para o eixo Paris-Bona.
A Europa política que se desenhava em Maastricht era a outra face da moe-
da da união económica e monetária. Contrariando a cultura do establishment
diplomático e militar, educado a «votar com a Inglaterra em caso de dúvida»
Portugal resiste ao vendaval? Não tem outro remédio 185

e a ver no continente europeu e, em primeiro lugar, na Espanha, o inimigo


nacional, Durão Barroso, que era então o chefe da diplomacia, assumirá essa
mudança ao afirmar pela primeira vez que a segurança nacional se defende
na Bósnia e não em Angola. Será preciso esperar pelo governo seguinte, de
António Guterres, para que a teoria se transforme em política.
O país ganhou os seus primeiros galões europeus como o «bom aluno» da
Europa. A opinião pública começou a sentir-se europeia. «Da Europa verdadei-
ra, de além-Pirenéus», como disse Eduardo Lourenço.
A era da maturidade europeia chegaria com Guterres. Consolidada em torno
da batalha do euro e da batalha da Bósnia. Quando o então primeiro-ministro
português formula em 1999 a sua teoria sobre a necessidade de Portugal «que-
rer estar no centro político da construção europeia» como a forma mais eficaz
de combater a marginalidade histórica, geográfica e económica — do euro a
Schengen, passando pela defesa —, a solidez do consenso europeu fica esta-
belecida. Ainda hoje é este o móbil que conduz a política europeia de Lisboa.
A segunda presidência portuguesa da UE e a iniciativa da estratégia de Lis-
boa significam que Portugal passa a envolver-se em todos e em cada um dos
temas europeus.
Cumpre-se a previsão de Lucas Pires: «Nenhuma questão essencial portu-
guesa é indiferente ao futuro da UE.»
A Europa continua a ser uma bandeira que rende votos.

Do federalismo ao pragmatismo
O federalismo inicial dos pais fundadores da democracia, cuja raiz ideológica
estava nas duas grandes famílias europeias que fundaram a Europa — a social-
-democracia e a democracia-cristã —, foi dando lugar a uma atitude muito mais
pragmática que acabará por desenhar o perfil europeu do país. «No processo
de aprendizagem política das elites na negociação e nas reformas europeias,
a questão do tamanho vai assumir cada vez maior relevância, afastando o dis-
curso federalista», resume António Costa Pinto. «O receio da satelização e o
complexo do directório» transforma-se num dos eixos fundamentais do de-
bate europeu e uma condicionante de todas as negociações em Bruxelas, diz
António Vitorino.
Durante as negociações do Tratado de Nice (2000) o governo português
lidera a frente dos «pequenos países» contra a tentativa dos «grandes» de au-
mentarem o seu peso relativo no processo de decisão da União Europeia. Em
Lisboa, é o fantasma do «directório» que polariza o debate. Na Convenção que
preparou a já defunta Constituição europeia, os representantes portugueses
vão ainda agarrar-se ao status quo institucional. A reivindicação de um comis-
sário por país, a relutância perante a figura do novo presidente do Conselho
Europeu, a desconfiança das «cooperações reforçadas», são as manifestações
mais visíveis desta preocupação fundamental. O consenso entre os dois gran-
des partidos mantém-se, mas torna-se defensivo.
186 Europa Trágica e Magnífica

As sondagens feitas na altura revelam que a opinião pública portuguesa vê


como o aspecto mais negativo da pertença à UE o facto de os «pequenos» de-
penderem das decisões dos «grandes». Curiosamente, sublinha o embaixador
Francisco Seixas da Costa, «a moeda única e a defesa passam ao lado da polé-
mica, não obstante representarem o hard core da soberania nacional».
Será de novo o consenso entre PS e PSD que permite levar a bom porto a
negociação do Tratado de Lisboa. O capítulo da reforma institucional é encer-
rado. Talvez por isso, diz hoje Miguel Poiares Maduro, os dois maiores partidos
tenham tido o cuidado de evitar trazê-lo de novo à praça pública nesta campa-
nha. «Não quiseram deixar que o génio voltasse a sair da garrafa.» A ausência
de debate pode encontrar-se também neste entendimento tácito.

Do euro-entusiasmo à apatia
Mas há uma mudança sensível na forma como hoje a Europa é sentida pela
opinião pública. Os analistas atribuem-na ao período de estagnação económi-
ca que o país tem vivido praticamente desde a passagem do século. O facto de,
pela primeira vez desde a adesão, Portugal estar a divergir da média de riqueza
europeia depois de mais de quinze anos de convergência acelerada, começa a
minar as bases do euro-entusiasmo português. Nas eleições europeias de 2004
a taxa de abstenção registada em Portugal é muito elevada (61 por cento), so-
bretudo se comparada com a que se verifica nos países da «velha» Europa.
O fraco crescimento económico somado ao medo de perda de influência numa
Europa alargada à dimensão do continente traduzem-se num decréscimo de
confiança europeia. «Uma conjuntura de estagnação económica aumenta o
eurocepticismo», diz Costa Pinto. «Que está adormecido politicamente mas
que existe.»
A bandeira europeia perde o brilho. «Os europeístas arriscam-se a pagar o
preço da sua preguiça europeia», diz António Vitorino. «Se há dinheiro, para
quê fazer a pedagogia da Europa?» O consenso entre PS e PSD, muitas vezes
assente num silêncio tácito, alimentou esta preguiça. «Os partidos só têm in-
teresse em produzir ideias se tirarem vantagem disso», acrescenta Poiares Ma-
duro. «O facto de não haver correntes antieuropeias a sério não os levou a esse
esforço.»
Regressamos à casa de partida. Como interpretar os sinais desta estranha
campanha europeia sem Europa? Paulo Rangel declara-se federalista, o que
não o impede de investir contra a sugestão de um imposto europeu. A recandi-
datura de Barroso é usada intermitentemente pelos socialistas numa tentativa,
que não passa disso, de antecipar uma Europa que será mais «ideológica» e
mais política no futuro.
O que significa isto? Está o consenso europeu prestes a chegar ao seu fim,
antecipando novas clivagens europeias e nacionais?
António Vitorino confessa não ter ainda resposta para essa questão. «A tra-
dicional cultura europeia dos dois partidos mantém-se sólida.» Admite que,
Portugal resiste ao vendaval? Não tem outro remédio 187

apesar de tudo, a necessidade de estar no centro da integração vai prevalecer.


«Vamos ter de continuar a lutar com todas as forças para evitar que o país mer-
gulhe num novo ciclo de periferização», considera Francisco Seixas da Costa.
Miguel Poiares Maduro atribuiu à falta de politização do debate europeu a apa-
tia nacional e europeia. Os três admitem que serão outros os temas e os termos
do debate futuro. «Já não se trata de dizer que estar na Europa é bom. Trata-se
de debater as políticas europeias.»
Que Europa nos convém daqui para a frente?
Podia ter sido este o debate. Devia ter sido este o debate. Seja qual for o re-
sultado das eleições, a oportunidade perdeu-se.
188 Europa Trágica e Magnífica

VINTE CINCO ANOS


DEPOIS DA ADESÃO
À COMUNIDADE
EUROPEIA,
PORTUGAL
PREPARA-SE
PARA UMA
MUDANÇA DE CICLO
10-06-2010

Encerrámos um ciclo europeu e estamos a abrir outro, disse em Janeiro o


chefe da diplomacia portuguesa. Numa entrevista ao PÚBLICO, Luís Amado
definiu esse novo ciclo numa ideia: daqui para a frente, seremos na Europa
aquilo que conseguirmos ser fora dela. De alguma maneira, Luís Amado ante-
cipou o espírito que parece marcar a passagem dos 25 anos da assinatura do
Tratado de Adesão de Portugal e da Espanha à então Comunidade Europeia
que, a partir de hoje, se celebram no Mosteiro dos Jerónimos. Há 25 anos, a
adesão de Portugal significava um novo «destino estratégico» que encerrava
definitivamente o ciclo do Império. Hoje, continuam a ser raras as vozes que se
atrevem a dar nota negativa à integração europeia. A Europa foi «uma aposta
ganha» (Miguel Relvas, dirigente do PSD), «deu-nos um projecto, uma ambição
e uma esperança» (Paulo Rangel, eurodeputado social-democrata). «Temos
todas as razões para nos congratularmos com o que foi conseguido nestes 25
anos graças à integração», diz António Vitorino, antigo ministro socialista e an-
tigo comissário europeu.
Hoje, Portugal é já um «velho» membro da União Europeia, um português
preside à Comissão de Bruxelas e outro é vice-presidente do Banco Central
Europeu. A Europa a que queríamos «regressar» transformou-se na nossa se-
gunda pele.
A outra face da moeda é que desapareceu o entusiasmo dos primeiros anos
da integração, apagado por uma década de relativa estagnação económica.
Portugal voltou a ver-se como mais periférico e mais vulnerável. A crise ali-
Portugal resiste ao vendaval? Não tem outro remédio 189

menta a procura de bodes expiatórios, sendo a Europa e o euro os mais apete-


cíveis. Olhar de novo para fora, na direcção do Atlântico, volta a ser uma tenta-
ção. Real ou imaginária?

Olhar para fora?


António Vitorino adverte para os riscos que esta mudança de ciclo comporta.
«Não vale a pena voltarmos ao velho tripé — se é o Atlântico, a África ou a
Europa. Somos um país europeu, a Europa é a nossa principal zona de in-
serção estratégica.» O risco é ficarmos «prisioneiros dos fantasmas do pas-
sado». A alternativa passa pela capacidade de definir «uma nova forma de
participação de Portugal na UE» que não deve significar uma ruptura. Deve
manter-se «o objectivo de estarmos nos núcleos duros da integração, porque
essa foi e continua a ser uma condição fundamental para um país com a nos-
sa dimensão e o nosso posicionamento». Mas há interesses que estão para
além da Europa, que podem ser complementares à Europa, e já estão a ser
«antecipados» pelo novo perfil do crescimento das exportações. «Há aí um
sinal claro de que, estando na Europa, continuando a apostar na Europa, nós
temos alavancas que podemos e devemos utilizar e que só reforçam a nossa
posição na Europa.»
Álvaro de Vasconcelos, director do Instituto de Estudos de Segurança da
UE, vai no mesmo sentido. Porventura com ainda menos ilusões. «O mundo
mudou, a Europa mudou, mas continuo convencido de que é na Europa, em
primeiro lugar, que se joga o nosso destino europeu.» Por uma razão simples:
«Se as coisas acabarem por correr mal na Europa, se o caminho for o da frag-
mentação, o preço que pagaremos por isso será enorme.» Incluindo lá fora.
«Não somos só nós a fazer esse discurso da necessidade de reforçar as re-
lações com os EUA ou a China», adverte o director do ISS. «Todos fazem e é
um pouco ingénuo pensarmos que temos melhores condições para o pôr em
prática.» Há, contudo, uma excepção que se chama Brasil. «Não há dúvida de
que há uma oportunidade que resulta de o Brasil estar a emergir como uma
potência que conta.» E há uma «forte uma relação humana» que as elites bra-
sileiras continuam a valorizar. «Devemos aproveitar essa relação como uma
mais-valia, que deve ser desenvolvida não apenas no quadro bilateral mas tam-
bém no quadro europeu.»
Vasco Rato, professor de Relações Internacionais próximo da nova lide-
rança do PSD, reflecte outra maneira de olhar para o mesmo desafio. Sem
pôr em causa o sustentáculo europeu, entende que o país «não deve colocar
todos os ovos no mesmo cesto». Critica a orientação inicial do anterior go-
verno de José Sócrates, «Espanha, Espanha, Espanha». Considera que, aos
dois pilares fundamentais da inserção estratégica do país (a UE e a NATO),
se devem somar um terceiro e um quarto — o espaço lusófono e o Magrebe.
As prioridades que aponta não andam, todavia, longe das que têm sido as dos
governos socialistas.
190 Europa Trágica e Magnífica

«Portugal, tal como os outros Estados-membros, esteve sempre a ajustar a


sua política europeia», responde Jorge Braga de Macedo, académico e antigo
ministro social-democrata. A novidade está em que «a crise abriu brechas
antes nunca vistas e o ajustamento deve agora incluir uma dimensão extra-
-europeia».

Consenso estratégico
A Europa funcionou como uma espécie de «programa comum» entre o PS e
o PSD que permitiu tirar partido da nossa integração, colocar o país no seu
núcleo duro e fazer valer os seus interesses. Poderá continuar a ser assim?
Álvaro Vasconcelos lembra que esse «consenso estratégico» só foi possível
porque assentava num enorme consenso da sociedade portuguesa em relação
à Europa que hoje está enfraquecido. «Temo que possam aparecer forças polí-
ticas tentadas a explorar essa fragilidade.»
António Vitorino chama a atenção para as franjas nacionalistas que existem
nos dois partidos. «Elas são já visíveis há vários anos e admito que aproveitem
a crise para alimentar essa pulsão.»
Braga de Macedo considera que o «chamado consenso PS/PSD sobre a Euro-
pa sempre foi mais defensivo do que cooperativo». Conseguiu assegurar «ob-
jectivos muito gerais, que devem passar a ser agora mais específicos».
O ponto fraco do consenso europeu continua a ser, como sublinha Vitorino,
a forma como as elites portuguesas olham para a opção europeia como um
dado adquirido. O novo ciclo será, porventura, muito mais exigente.
Portugal resiste ao vendaval? Não tem outro remédio 191

A ÚLTIMA
OPORTUNIDADE
E O RISCO
DE A PERDERMOS
03-05-2011

Portugal enfrenta hoje o seu Dia D. Os chefes de missão da Comissão, do BCE


e do FMI, que há três semanas analisam à lupa a economia portuguesa, vão
divulgar o pacote de medidas que são exigidas a Portugal a troco de um em-
préstimo de 78 mil milhões de euros que nos permitirá evitar a bancarrota.
Ontem, o primeiro-ministro adiantou as suas linhas muito gerais. Será um pa-
cote semelhante ao PEC IV, provavelmente com o agravamento de algumas das
medidas previstas para a redução das despesas do Estado, e incluirá também
um vasto conjunto de reformas estruturais muito mais pormenorizadas que as
do pacote anterior. Como muitas pessoas têm dito, este pacote de medidas é
semelhante a um programa de governo que vai ter de ser aplicado depois das
eleições, seja quem for que as ganhe e seja qual for a configuração do poder
que delas emergir (é por isso que teria sido tão importante uma convergência
entre as principais forças políticas prévia à sua negociação). Mas é mais do que
isso. É a última oportunidade de que o país dispõe para garantir a sua presença
no euro, com tudo o que isso significa.
Helena Garrido, no último editorial do Jornal de Negócios, definia esta opor-
tunidade de forma lapidar: só ela nos pode poupar ao destino de país subde-
senvolvido e marginal. Não vale a pena ter ilusões. É isto que, neste momento,
está em causa. Podemos aceitar esta imposição externa como um estímulo
para arrepiar caminho e fazer em pouco tempo (e necessariamente de forma
mais dolorosa) aquilo que já devíamos ter feito e sempre fomos adiando, apro-
veitando esta última oportunidade que temos ao nosso alcance para evitar o
empobrecimento e a marginalidade política.

Quando aderimos à Comunidade Europeia, em 1986, muitas pessoas diziam


que Portugal precisava do «chicote» europeu para integrar normas e padrões
de funcionamento a que não estava habituado. A Europa funcionaria como
modernizador e, ao mesmo tempo, como o novo «ouro do Brasil», financiando
essa modernização. Em larga medida, esse objectivo foi cumprido. Somos hoje
um país mais europeu e mais moderno, com um grau de desenvolvimento em
quase todas as áreas que não teria sido possível sem a Europa.
192 Europa Trágica e Magnífica

A situação em que estamos hoje também não se deve apenas à incúria dos
nossos governantes, que teriam escolhido sempre as políticas erradas. Seria
demasiado fácil se tudo se resumisse a isso.
Antes da crise internacional e dos seus efeitos sobre a União Europeia, o
contexto em que definíamos as nossas políticas era outro. Tínhamos um défice
externo elevado (10 por cento, praticamente desde que aderíramos ao euro),
mas sustentávamo-lo através de um endividamento externo que nos custava
quase o mesmo que aos alemães. A ideologia dominante no mundo desenvol-
vido não era a da poupança mas a do endividamento. A globalização, alterando
os termos de troca mundiais, comprimia os salários da classe média europeia
e americana (aumentando acentuadamente as desigualdades de rendimento)
e esse efeito era compensado graças ao crédito fácil e barato, que permitia
manter quase todas as pessoas felizes. A moeda única era a última rede de
segurança que nos permitia singrar tranquilamente no clube dos países de-
senvolvidos sem termos de fazer demasiados sacrifícios. Era esta a verdade de
então que poucos contestavam, mesmo que hoje toda a gente diga que já sabia
que era uma verdade insustentável. A mesma verdade que nos aconselhava a
emular o «milagre» irlandês, a invejar o crescimento espanhol ou a aproximar-
mo-nos do «modelo anglo-saxónico» e a afastarmo-nos do modelo continental
(leia-se, Alemanha).
A crise financeira desfez num sopro as montanhas de dinheiro acumulado
em operações de alto risco sustentadas pelo credo absoluto na sabedoria dos
mercados, gerando um clima de desconfiança generalizado. Na Europa, uns
salvaram-se. Outros não. Cabe integralmente ao governo português a respon-
sabilidade de não ter visto a tempestade chegar ou ter acreditado que podia
enfrentá-la de outra forma e sem custos políticos. Cabe à Europa a responsa-
bilidade de não ter conseguido enfrentar a crise com uma visão política con-
sistente e global.

Foi também tudo isto que nos trouxe até aqui. É daqui que temos de partir.
Gastámos como um país rico, mesmo que ainda fôssemos (relativamente) po-
bres. Acumulámos maus hábitos. Teremos agora de mudar de vida. O que não
seria impossível, não fora o facto de termos chegado ao grau zero da política
exactamente no momento em que mais precisávamos dela.
Temos um primeiro-ministro que elegeu a defesa do Estado social com
bandeira eleitoral, o que até seria aceitável se se desse ao trabalho de dizer
onde estamos e como saímos daqui. O que sabemos é que o Estado social não
é compatível com um Estado que é um «albergue espanhol» de interesses e de
clientelas, que gasta o dinheiro onde deve mas sobretudo onde não deve, que
tem de ser reformado de alto a baixo para poder ter o papel que lhe cabe nas
sociedades desenvolvidas e civilizadas. Também sabemos que não foi apenas o
PS que alimentou este monstro e é preciso um poder político forte para poder
reformá-lo. Do outro lado, temos um PSD que nos diz todos os dias que Portu-
Portugal resiste ao vendaval? Não tem outro remédio 193

gal só tem um problema: o primeiro-ministro. E o que também sabemos é que


é demasiado simples dizer que o fundamental é criar as condições ideais para
as empresas (outra entidade abstracta onde cabe tudo) poderem gerar riqueza
para que o país resolva milagrosamente os seus problemas, mesmo que acres-
cente uma atenção particular com os «pobres».
Um deles — José Sócrates ou Passos Coelho — vai ter de aplicar o programa
da troika, mobilizando ao mesmo tempo os portugueses para as profundas
e dolorosas mudanças que vão ser necessárias. É difícil acreditar que sejam
capazes. É caso para dizer que ainda bem que temos o programa da troika e a
fiscalização trimestral da União Europeia sobre o seu cumprimento. De novo
precisamos do «chicote» europeu, só que desta vez já não há o «ouro do Bra-
sil».
194 Europa Trágica e Magnífica

PORTUGAL
E A NOVA
«POTÊNCIA
EMERGENTE»
11-11-2012

Em Berlim, ninguém consegue perceber a má vontade de um país que tanto


deve à Alemanha e com o qual a Alemanha sempre manteve boas relações. Em
Lisboa, o rosto da chanceler transformou-se no símbolo de uma austeridade
que foi imposta ao país, que o atirou para o empobrecimento acelerado e lhe
recusa qualquer porta de saída. O debate público está prisioneiro de uma ló-
gica de «maus e bons» que impede qualquer compreensão da realidade. Que
perdeu a perspectiva europeia e ignora o passado recente. A culpa é de ambos
os lados.
A Alemanha foi decisiva no caminho para a democracia e a Europa que
Portugal escolheu depois da revolução. Sobre isso, ninguém de boa memória
pode ter alguma dúvida. Ajudou a consolidar os partidos políticos democrá-
ticos. Mobilizou a Europa Ocidental a favor da revolução portuguesa quando
o seu destino ainda estava a ser decidido. Foi fundamental na organização do
grande empréstimo internacional que permitiu ao país evitar a bancarrota.
Nas grandes reformas europeias, de Maastricht ao Tratado de Lisboa, a Ale-
manha já reunificada continuou a ser o mais «europeísta» dos grandes países
da União. E não só por estar disponível para «passar o cheque» quando desse
cheque dependia a unidade da «família europeia», mas porque via ainda a Eu-
ropa como a primeira condição do seu destino. Apagar este passado recente e
simplesmente demonizar Alemanha não serviria de nada.

Em Berlim conhece-se bem esta história e não se compreende a revolta dos


portugueses contra a chanceler alemã. Esquece-se o outro lado da moeda. An-
gela Merkel começou por lidar com a crise europeia, quando esta ainda só se
chamava «Grécia», da pior maneira possível: distanciando-se da sua resolução
e lembrando que o Tratado não a obrigava a agir. Permitiu e alimentou toda a
espécie de preconceitos na opinião pública alemã em relação aos portugueses,
gregos ou italianos e espanhóis, abrindo feridas e acordando fantasmas que se
pensavam enterrados para sempre. Quando, finalmente, decidiu que era do
interesse alemão salvar a união monetária na sua integridade, viu-se confron-
tada com o clima de eurocepticismo que ela própria ajudou a criar.
Portugal resiste ao vendaval? Não tem outro remédio 195

As responsabilidades de Lisboa neste clima de animosidade mútua também


são grandes. Ao abdicar da formulação de uma política europeia que excedes-
se a simples obediência ao programa de ajustamento negociado com a União e
o FMI, o governo contribuiu para alimentar toda a espécie de ressentimentos
contra o país que mandava. Ao acreditar com uma verdadeira fé ideológica
nas virtudes da receita alemã para «endireitar» as economias do Sul, deixou-se
enredar na própria armadilha de um programa de ajustamento que não é exe-
quível na forma como está desenhado e está a destruir qualquer perspectiva
para a saída da crise. A Europa não é só Berlim. Berlim não é o único credor.
Eleger a Alemanha como o «aliado preferencial» de Portugal estaria certo se
não significasse apenas a adesão acrítica à sua estratégia mas estivesse inscrita
uma visão das decisões e das reformas de que a Europa precisa de levar a cabo
para salvar o projecto europeu da única maneira que pode ser salvo: indo ao
encontro do interesse de todos.

A Alemanha de hoje já não é a Alemanha de Willy Brandt e de Helmut Sch-


midt que ajudou Portugal a consolidar a democracia. Não é também a Europa
de Helmut Kohl, o chanceler da reunificação, que esteve disposto a abdicar do
marco alemão para garantir que a Europa não seria alemã mas a Alemanha
continuaria a ser europeia. É uma Alemanha à procura do seu lugar no mundo
globalizado. «Normal», disse Gerhard Schröder quando chegou ao poder em
1998. Capaz de bater o pé aos americanos na guerra do Iraque, como a França.
De se demarcar do «Ocidente» e alinhar com os BRIC, como na Líbia. De pros-
seguir as suas relações com a Rússia ou a China de forma unilateral. Predispos-
ta a fazer do seu enorme poder económico um instrumento para redesenhar
o euro e a própria União Europeia de acordo com os seus interesses. Tentada a
ver-se a si própria como uma «potência global». «Alguns europeus temem que
ela veja o seu futuro como uma potência global» mais interessada nos BRIC
do que nos PIG, escreveu há um ano Ulrike Guérot, directora do European
Council on Foreign Relations de Berlim. Merkel inscreve-se nesta mudança
que a tremenda crise europeia veio tornar mais visível mas também muito
mais complexa. Vem a Lisboa, como foi a Atenas e a Madrid, para demonstrar
que quer manter a «família europeia» unida, como todos os seu antecessores.
Colocou em cima da mesa do Conselho Europeu um novo guião para a UEM
que prevê muito mais integração económica e política, para demonstrar que a
Alemanha ainda aposta na Europa.
O que a chanceler devia perceber em Lisboa, como em Roma ou em Paris, é
que uma Alemanha que veja na Europa apenas um instrumento do seu poder
mundial acabará isolada. A outra opção, certamente muito mais interessante
do que ser mais uma «potência emergente», é liderar uma Europa global.
196 Europa Trágica e Magnífica

A EUROPA VISTA
DE LISBOA
E DE BERLIM
26-01-2013

A Europa e o mundo são vistos de maneira diferente conforme se olhe de Lis-


boa ou de Berlim. E não apenas por causa da História e da Geografia. Também
por causa do tamanho. Os grandes países europeus têm sempre mais dificul-
dade em olhar com atenção para lá das suas fronteiras. Os pequenos têm a
vantagem de perceberem melhor os grandes porque são obrigados a prestar-
-lhes mais atenção. Um dos maiores méritos da integração europeia foi, preci-
samente, criar as condições para que os pequenos pudessem, de facto, condi-
cionar o comportamento dos grandes. Hoje, com as profundas mudanças que
ocorreram na Europa desde a queda do Muro de Berlim e a unificação alemã
e europeia, os antigos equilíbrios entre pequenos e grandes foram postos em
causa e é preciso encontrar os novos. Isso implica que não se perca de vista o
velho e sólido princípio da igualdade entre os Estados, mesmo aceitando que
há Estados mais iguais do que outros.
Vem isto a propósito da realização do primeiro Fórum Luso-Alemão, que
decorreu na Gulbenkian nos dias 24 e 25 de Abril, que envolveu o trabalho de
dois think-tanks (o IPRI e o Instituto de Política Europeia de Berlim), o patro-
cínio dos dois chefes da diplomacia (Paulo Portas e Guido Westerwelle) e que
permitiu uma longa conversa entre políticos, intelectuais e empresários dos
dois países. Foi útil porque contribuiu (esperamos) para um conhecimento
maior da forma como em Berlim se olha para a Europa e para a crise que está a
abalar alguns dos seus fundamentos. Mas também porque os participantes ale-
mães puderam ter uma ideia mais clara do que se pensa em Portugal sobre a
Alemanha e a Europa. Como disseram vários dos intervenientes portugueses,
Portugal está agradecido à solidariedade alemã, que permitiu a ajuda que hoje
recebemos da União Europeia e do FMI. Mas isso não nos impede de termos
a nossa própria visão da Europa e do seu futuro, que terá de pesar na forma
como a integração europeia vier a sair desta crise. Por outras palavras, mais
directas — como aquelas que utilizaram alguns dos participantes portugueses
—, a Alemanha deve perceber que o seu «momento unipolar» tem limites. «Não
há memória de um tempo em que um só Estado-membro tenha tido tanto po-
der», lembrou José Amaral. Mesmo em Portugal, mesmo com o programa de
ajustamento, mesmo com uma razoável compreensão da estratégia que Ber-
lim adoptou para resolver o problema do excesso de endividamento dos paí-
Portugal resiste ao vendaval? Não tem outro remédio 197

ses do Sul — austeridade e reformas. António Vitorino lembrou que não se trata
apenas das medidas que os alemães decidiram tomar para resolver a crise e
consolidar o euro, que podem ser discutíveis mas que, em boa parte, foram
adequadas. Trata-se também da narrativa com que as apresentaram. Só por
isso, este Fórum valeu a pena.
Foi, de resto, um académico alemão, Werner Weidenfeld, quem colocou a
questão essencial da natureza da integração europeia de uma forma simples
e profundamente verdadeira. A diversidade europeia, que é também a sua
maior riqueza, cria uma tensão permanente entre diferentes culturas, diferen-
tes olhares e diferentes interesses. O segredo tem sido a transformação dessas
tensões num resultado que foi, e espera-se que continue a ser, vantajoso para
o conjunto. Dois dias antes do Fórum, os embaixadores da França e da Ale-
manha em Lisboa tinham organizado um debate para assinalar os 50 anos do
Tratado do Eliseu, assinado por De Gaulle e Adenauer, que criou as bases da
aliança franco-alemã. Uma revisão da história da integração europeia, desde
essa altura até hoje, mostra até que ponto foram sempre divergentes as pers-
pectivas de Berlim (e, antes, de Bona) e de Paris sobre quase tudo e como a Eu-
ropa se construiu a partir da capacidade dos dois países de encontrarem um
compromisso europeu. É essa capacidade que está hoje de novo posta à prova.

Num outro ponto fundamental, esta conversa «luso-alemã» também con-


vergiu. Se salvar o euro implica uma maior integração económica e política
dos países que o partilham, alguma coisa é preciso fazer — a nível europeu e
a nível nacional — para garantir a legitimidade desse caminho aos olhos dos
cidadãos. O discurso sobre a Europa de David Cameron e as suas implicações
estiveram presentes em muitas das intervenções. O referendo que o primeiro-
-ministro prometeu aos britânicos sobre o lugar do Reino Unido dentro ou fora
da União Europeia é uma aposta de alto risco que terá consequências pesadas
para o Reino Unido e para a Europa. Mas também poucas pessoas terão dúvi-
das de que, para muitos países europeus, mais tarde ou mais cedo, a Europa
terá de ir a votos. E ninguém pode garantir em que país chumbará primeiro.
Em 2005 também se olhava para a Inglaterra e para os riscos de um referendo
à Constituição europeia que Tony Blair chegou a prometer mas nunca teve de
fazer, porque a França e Holanda se encarregaram de eliminar o problema,
rejeitando em referendo o novo tratado constitucional no qual a Alemanha
punha todo o seu empenho. De alguma maneira, os povos europeus terão de
participar na decisão sobre o seu destino. O que quer dizer, como foi lembrado
nos debates, que os parlamentos nacionais vão ter de desempenhar um papel
muito mais activo na legitimação europeia. E, mais uma vez, o problema é que
não é só o Bundastag e o Tribunal Constitucional alemão que existem para le-
gitimar as decisões europeias da chanceler. São os parlamentos e os tribunais
constitucionais de todos os países do euro.
198 Europa Trágica e Magnífica

O papel e o lugar da Europa num mundo que se desloca do Atlântico para


o Pacífico foi outra das dimensões que o Fórum discutiu. E aqui, também, é
distinta a forma como de Lisboa ou de Berlim se olha para fora e para o futuro.
É fácil para a Alemanha sentir-se bem num novo mundo emergente que se
tornou cliente da sua poderosa indústria. Os alemães vêem sobretudo mer-
cados e interessa-lhes a garantia de que as suas exportações cheguem a toda
a parte. O «momento unipolar» alemão também resulta da sua nova relação
com o mundo globalizado e emergente. Mas esse não é exactamente o mundo
que se vê de Lisboa ou de Amesterdão. São países europeus que dificilmente
prescindem da sua dimensão atlântica. Que vêem com maior apreensão a pre-
visível ausência americana e a imprevisível deriva britânica. São países que
também devem ser capazes de fazer as suas contas e de lutar pela Europa que
mais lhes interessa. É este o debate que ainda está por fazer. Portugal tem inte-
resse, como a Alemanha, numa Europa forte e aberta ao mundo, e não fecha-
da sobre si própria. Mas não numa Europa apenas continental construída em
torno da Alemanha. O centro de gravidade da globalização está a deslocar-se
do Atlântico para o Pacífico — e esta é uma realidade que hoje praticamente
ninguém contesta. A emergência da China como candidata a superpotência
mundial é o grande acontecimento deste século. Os Estados Unidos viram-se
para o Pacífico e esperam que a Europa se ocupe da sua própria segurança e,
cada vez mais, da segurança regional. O desafio é como vão os europeus reagir
a esta mudança e isso depende, em última análise, do novo equilíbrio que for
possível estabelecer entre Berlim, Londres e Paris. Mas não vale a pena ter ilu-
sões. Vista de dentro, a Europa tem países pequenos e grandes. Vista de fora,
são todos pequenos.
Portugal resiste ao vendaval? Não tem outro remédio 199

O FMI E OS
CABELEIREIROS
02-11-2013

Numa semana cheia de más notícias, podemos começar cá por casa. O relató-
rio do FMI sobre a oitava e a nona avaliação do programa de ajustamento veio
relançar o debate sobre os (baixos) salários em Portugal, que a instituição de
Washington quer ver ainda mais baixos. Um amigo que acompanha de mui-
to perto as negociações com a troika dizia-me há dias, meio a brincar, meio a
sério, que «eles ainda acham que as portuguesas continuam a ir demasiadas
vezes ao cabeleireiro e os restaurantes e pastelarias continuam demasiado
cheios à hora do almoço». Apesar da caricatura, há muito de verdade nisto.
Não por causa dos cabeleireiros, mas por causa da incompreensão da reali-
dade que partilham entre si os tecnocratas da troika. Deixem-me, então, ten-
tar explicar o fenómeno dos cabeleireiros, que é exactamente ao contrário.
A razão pela qual ainda é possível frequentar os cabeleireiros (apesar da que-
da acentuada de clientes) está nos baixos salários dos seus trabalhadores e é
ainda um reflexo do relativo atraso económico do país. Em Portugal é possível
lavar e secar, com direito a escolher o champô e a usar um spray para levantar
as raízes, e pagar por isso 14 euros. Porquê? Não é porque o serviço é mau, mas
porque o salário mínimo é tão baixo. Quando, por razões profissionais, tenho
de ir ao cabeleireiro em Paris ou Berlim, só o sorriso da menina que me atende
e me pendura o casaco já vale mais do que 14 euros. A partir daqui é sempre a
contar. Quando chegarmos aí, iremos menos ao cabeleireiro e podemos con-
siderar-nos um país rico. A lógica dos restaurantes é mais ou menos a mesma
e a conclusão também: quando todos levarmos marmitas para o trabalho, aí
sim, seremos ricos.
Mas esta realidade não encaixa nos modelos do FMI ou na cabeça dos ale-
mães e, portanto, lá vamos nós na onda dos salários baixos, agora para o sector
privado. Puro engano se tivermos em consideração que as empresas privadas
ajustaram pelo desemprego, a coisa mais trágica que uma família pode enfren-
tar, e também pela flexibilização dos salários. Dizia recentemente João César
das Neves que, mais uma vez, a economia portuguesa revelava uma grande
capacidade de ajustamento e de flexibilidade. É verdade. Mas não sairemos da
crise se as instituições que nos aplicam a austeridade continuarem a insistir
que ganhamos competitividade e disciplina por via dos cortes de rendimentos
que já são muito baixos. Esse não é o modelo que nos serve (nunca consegui-
remos competir com os salários da China ou de Marrocos) e não foi para isso
que passámos os últimos anos a qualificar os jovens para podermos dar o sal-
200 Europa Trágica e Magnífica

to para um padrão de desenvolvimento assente em mão-de-obra muito mais


qualificada.

Dito isto, os sinais que chegam de Bruxelas, de Berlim ou de Paris (Hollande


tem de fazer rapidamente qualquer coisa) foram, nestes últimos dias, bastante
preocupantes. Os mais preocupantes vieram justamente de Berlim. Demons-
tram uma vez mais que o empenho europeu de Angela Merkel é um empenho
muito relativo, acentuando a deriva alemã no sentido de uma «interpretação
britânica» dos seus interesses, como escrevia a Reuters numa análise recente.
Ora, com muito mais poder do que o Reino Unido para ditar o nosso futuro,
a «britanização» da Alemanha (ou seja, aproveitar da Europa o que interessa
e alijar o que não lhe interessa) teria (terá?) um efeito muito mais destruidor
para o projecto europeu.
As negociações para a «grande coligação», que devem estar concluídas no
final do mês, não perspectivam nada de bom. Merkel está irredutível quanto à
união bancária e quanto à rigidez da austeridade. O SPD pode cair na tentação
de ceder na Europa (contrariando o seu discurso) para ganhar alguma coisa
na política interna. Se não conseguir um salário mínimo nacional ou qualquer
coisa que possa apresentar aos militantes como verdadeiramente «de esquer-
da», arrisca-se a ver o acordo chumbar num referendo interno que, em má
hora, prometeu.
Na semana passada a Comissão viu-se obrigada a abrir um «processo de ave-
riguação» a Berlim por causa do superávite da balança corrente, acima dos
6 por cento. A Comissão teve de agir porque o Tesouro americano divulgou
um relatório denunciando a situação e os seus riscos para a Europa e para o
mundo. Barroso disse, com muito jeitinho, que não se tratava de pôr em causa
o modelo alemão mas de saber se a Alemanha queria fazer alguma coisinha
pela economia europeia. O excedente alemão é de 7 por cento e já superou o
da China. A decisão da Comissão já mereceu a resposta do costume. «Então
nós somos bons e ainda nos criticam por cima?» Os cinco sábios que aconse-
lham o governo já exortaram Merkel a não alterar a sua política. Há razões de
peso que por vezes não levamos em conta para apostar na poupança e não
no investimento e no consumo. Uma delas é o envelhecimento rápido da po-
pulação alemã. O problema é que aquilo que os alemães conhecem não cor-
responde a toda a verdade. Se as exportações alemãs não param de crescer
(mesmo que mais para fora da Europa), isso também se deve ao euro, que é
uma moeda mais fraca do que seria o marco nos dias de hoje. A Alemanha tira
um enorme proveito deste factor. O problema é que o excedente alemão tende
a valorizar o euro, aumentando ainda mais as dificuldades dos países como
Portugal, França e Itália para relançarem a sua economia. Angela Merkel, de
cuja boa vontade ninguém duvida mas da qual continuamos à espera, perdeu
a sua margem de manobra para convencer os alemães do interesse que têm no
euro e na Europa quando dedicou o primeiro ano da crise a dizer-lhes que os
Portugal resiste ao vendaval? Não tem outro remédio 201

países cá de baixo passavam demasiado tempo na praia (ou no cabeleireiro),


que eram indisciplinados e não gostavam de trabalhar. Caiu numa armadilha
da qual agora não consegue libertar-se. E esta é apenas a versão mais benévola
do que se passa em Berlim.
Finalmente, em matéria de más notícias, o simples facto de a CSU da Baviera
e o próprio SPD admitirem que se possa recorrer ao referendo para questões
como uma maior transferência de soberania para Bruxelas, o alargamento da
União ou novas ajudas financeiras, é um sinal do qual não estávamos à espera.
A Alemanha declara-se hoje um país normal, o que quer que seja que isto sig-
nifique. Não está garantido, nem de perto nem de longe, que esta normalidade,
somada à crise europeia, à descrença na Europa que se generaliza e alimenta
os partidos extremistas e às feridas abertas na coesão e na solidariedade do
projecto europeu, não venha a acabar bastante mal. Para todos, incluindo a
Alemanha.

Em pano de fundo, as perspectivas para a economia europeia foram revistas


em baixa pela Comissão. A Alemanha desacelera, a França cai, a Itália também,
provando que a receita aplicada aos países com ajuda, mais a persistência nas
políticas de austeridade em toda a parte, está a impedir a economia europeia
de descolar desta estagnação envergonhada. A receita da senhora Merkel pode
ser óptima para o longo prazo. Mas, como já avisava Keynes, no longo prazo es-
tamos todos mortos. No curto prazo, o que verificamos é que a economia britâ-
nica começou a descolar de tal forma que o Banco de Inglaterra já admite subir
as taxas de juro num futuro próximo. A economia americana crescerá este ano
2,8 por cento. Resta o BCE, que não tem de se preocupar com a inflação mas
com a deflação (à japonesa), que vai ter de fazer ainda mais para estimular
algum crescimento. Há um ano, Draghi salvou temporariamente o euro para
dar tempo aos governos para fazerem o trabalho que era preciso para resolver
a crise. Há um ano que estamos à espera de Merkel. Vai ser preciso começar a
fazer qualquer coisa rapidamente.
202 Europa Trágica e Magnífica

TODAS AS CRIANÇAS
VÃO À ESCOLA COM
SAPATOS
08-02-2014

Depois de uma breve interrupção, desculpem-me os leitores se esta crónica


fugir ao habitual e avançar em ordem dispersa. Mesmo assim, começo pela
Europa. A calma parece instalar-se sobre a crise, os mercados mostram-se
mais confiantes, o dramatismo que envolvia cada decisão desapareceu, e até
o Tribunal de Karlsruhe quis contribuir para este clima de apaziguamento.
Convenhamos que tem sido este o padrão habitual das suas decisões, reve-
lando um razoável bom senso político. O acórdão é também inédito: mes-
mo que lhes pareça que o BCE ultrapassou os limites legais do seu mandato,
decidiram que o melhor seria enviar a questão para o Tribunal Europeu de
Justiça para que decida se houve ou não violação dos tratados. Uma decisão
contrária teria efeitos desastrosos. Basta lembrar que a acalmia de que esta-
mos a usufruir deve-se, em primeiro lugar, às declarações de Mario Draghi
no Verão de 2012 (o BCE fará «tudo, insisto, tudo» para defender o euro) e a
sua decisão de criar um instrumento de barragem contra os mercados (OMT)
caso algum país tivesse dificuldade em financiar-se. Qualquer machadada so-
bre esta poderosa arma dissuasora teria um efeito muito negativo.
Dito isto, a crise não acabou. A economia europeia continua a crescer mui-
to menos do que as suas equivalentes anglo-saxónicas. O desemprego é ainda
demasiado alto. E falta, naturalmente, uma visão de conjunto para o pós-crise,
que pode estar na cabeça da chanceler mas terá de ser discutida com os ou-
tros. E o momento para o fazer até pode ser particularmente favorável, quando
os governos nacionais precisam de apresentar uma visão positivada da Europa
que ajude a esvaziar a vaga nacionalista e xenófoba das forças extremistas que
reemergem em quase toda a parte. Quanto a nós, estamos a discutir qual é a
melhor fórmula para sair do programa no próximo mês de Maio. Uma saída
«limpa» daria muito jeito ao governo para efeitos eleitorais (Portas poderia
continuar a usar as suas tiradas «patrióticas», como se estivéssemos prestes
a libertar-nos da ocupação espanhola). Mas interessa-nos jogar pelo seguro.
Qualquer turbulência cambial num «emergente» pode ter consequências so-
bre nós. Qualquer problema em Itália também. Uma linha de crédito seria mais
vantajosa caso os juros da dívida voltassem a subir.
Mudemos, então, de assunto. De repente, a discussão sobre a «saída limpa»
dá lugar à saída aparentemente obscura dos 80 Mirós com que o Estado ficou
Portugal resiste ao vendaval? Não tem outro remédio 203

quando nacionalizou o BPN. Só olho para os museus do ponto de vista do uti-


lizador medianamente informado. Mas há duas coisas que não se entendem
neste debate enfurecido sobre o resgate dos Mirós. Primeiro, que «o Miró é
nosso». O que isto quer dizer, não sei bem. Apenas verifico que vem na linha
da «Maternidade Alfredo da Costa é nossa». A segunda coisa é a maneira ataba-
lhoada com que o governo geriu esta venda, mostrando mais uma vez que não
é propriamente um perito em matéria da legalidade.
Para mim, o Miró é o seguinte. Quando começámos a viajar pela Europa
com os nossos filhos (ainda adolescentes), incluindo sempre um programa de
museus a troco de outras coisas mais divertidas, resolvemos começar por Bar-
celona. Adoraram o museu Miró e o museu Picasso («afinal ele também sabe
desenhar»). Depois, ficámos estoicamente horas e horas na fila do Vaticano em
pleno mês de Agosto até conseguirmos chegar à Capela Sistina. A teimosia da
minha filha mais nova, que decidiu que queria ver a Gioconda, obrigou-nos a
entrar numa fila que dava duas voltas ao Louvre, entre bandos de americanos
e de japoneses ruidosos. Para que ela descobrisse que a Gioconda afinal era
uma coisa pequena e o que valia mesmo a pena era a Vitória de Samotrácia.
Não sei bem porquê, mas o caso Miró trouxe-me isto tudo à memória. Hoje,
o papel das cidades como grandes pólos de atracção tornou-se fundamental
para a competitividade da economia. Essa capacidade de atracção passa por
colocá-las na rota dos grandes eventos culturais, quer sejam museus, orques-
tras ou inovação. Lisboa tinha esse desafio a vencer e convenhamos que, nos
últimos tempos, a oferta cultural ou universitária já começa aproximar-se do
circuito europeu. Sem perceber nada do assunto, a única questão que coloco
é esta: o Miró pode ser olhado deste ponto de vista? É a melhor forma de en-
contrar uma resposta razoável. Percebe-se a necessidade de reduzir despesa.
Essa é, aliás, a única razão do primeiro-ministro para justificar a venda. É legí-
tima mas não pode ser aceite sem discussão. Os Mirós não são nossos, como
diz alguma esquerda. Mas a urgência do momento deve ser confrontada com
os eventuais ganhos futuros. É bom que haja muitos europeus que queiram
trazer os seus filhos a Lisboa também por este tipo de oferta. Que não é uma
questão bizantina. Ainda me lembro das discussões sobre a vinda para cá da
Ford-Volkswagen e sobre se devíamos utilizar fundos europeus para a incen-
tivar a instalar-se aqui. Da parte dos alemães havia uma série de critérios de
escolha. Um deles era saber se havia Ópera em Lisboa. Parece mentira, mas
é verdade. Já superámos essa fase. Mas continuamos a ter de valorizar o que
temos de bom, incluindo a cultura e o património.

Esta história leva-me a outra, que também tem a ver com a imagem que da-
mos de nós próprios. Veio a Lisboa na semana passada uma equipa da France
Culture para fazer uma série de programas sobre os 40 anos do 25 de Abril.
A jornalista era jovem, competente, procurou informar-se antes de fazer as
perguntas. Creio que fui a última entrevista que fez antes de regressar a Paris.
204 Europa Trágica e Magnífica

Sabemos que a esquerda francesa sempre teve uma visão «romântica» da revo-
lução portuguesa. Mas foi de uma extrema dificuldade explicar-lhe duas ideias
feitas que trazia provavelmente de Paris e que viu confortadas pela maioria
das entrevistas que fez. A primeira era que estávamos hoje pior do que no 25
de Abril por causa da crise. Para ela, e para muita gente por cá, o país anterior
à queda da ditadura é uma projecção que nunca foi vivida e que, portanto, só
pode ser feita com os olhos de hoje. Quem tem menos de 50 anos não tem a
memória viva das coisas. Não era apenas a falta de liberdade. Portugal era um
país muito, muito pobre, pouco escolarizado, sem saneamento básico, onde
numa qualquer aldeia do interior as crianças iam para a escola descalças, in-
dependente do frio ou do calor, e as suas barrigas eram anormalmente gran-
des. Os liceus eram um privilégio para as classes médias mais privilegiadas das
cidades. A saúde estava acessível a poucos. E lá tive eu de explicar que o nosso
Serviço Nacional de Saúde, com crise ou sem crise, estava ao nível dos me-
lhores europeus. Os números não deixam mentir. Que a taxa de mortalidade
infantil, que era uma das piores da Europa, estava hoje abaixo da média euro-
peia. Que, apesar de todas as dificuldades, a esperança de vida das mulheres
aproximava-se a passos largos da recordista França. E que isto não se devia
a um milagre de Nossa Senhora de Fátima. Quarenta anos depois, este país
está irreconhecível. A crise está a empobrecer-nos de uma maneira que nunca
pensaríamos possível. O governo não respeita nada nem ninguém quando se
trata de arrecadar. A classe média está a pagar a crise praticamente sozinha e
a «compressão» dos seus rendimentos é brutal. Tudo isto é verdade, mas todas
as crianças vão para a escola com sapatos. A segunda ideia feita: 2014 seria um
ano marcado pela violência nas ruas. Tentei convencê-la de que isso era muito
pouco provável, mas acabámos por fazer uma aposta: daqui a um ano venha
cá e vamos ver. Entretanto, seria útil que começássemos rapidamente a acredi-
tar que pode haver — que tem de haver — um futuro para além da troika. Será
austero, disso ninguém duvida. Mas dependerá sobretudo das escolhas que
fizermos para nós próprios. Discutimos furiosamente os Mirós, como se deles
dependesse o futuro da pátria. Era bom que discutíssemos com o mesmo vigor
o que queremos que a pátria seja.
Portugal resiste ao vendaval? Não tem outro remédio 205
206 Europa Trágica e Magnífica

ANEXOS

© União Europeia 2014 – Parlamento Europeu


Anexos 207
208 Europa Trágica e Magnífica

Questões sobre a União Europeia (UE)?

A Comissão Europeia apoia diversas redes de informação que vão desde a informação
sobre questões relacionadas com a UE até questões mais específicas como o apoio às
empresas, aos consumidores ou aos jovens.

Número Verde Europeu: 00 800 6 7 8 9 10 11


Uma chamada telefónica gratuita, em português, para esclarecer dúvidas sobre qualquer
aspecto da UE. O centro de contacto Europe Direct está disponível todos os dias úteis, das
8h00 às 17h30, ou em: ec.europa.eu/europedirect

A Sua Europa: os seus direitos e oportunidades na UE


Informações práticas sobre os seus direitos, as oportunidades que a UE tem para si:
ec.europa.eu/youreurope

A rede Europe Direct em Portugal


Informações, orientação, assistência e respostas sobre a UE, as suas instituições, activi-
dades e possibilidades de financiamento. Encontre um Centro de Informação Europe Di-
rect perto de si: Açores (Angra do Heroísmo), Alentejo Central e Litoral (Évora), Algarve
(Faro), Alta Estremadura (Leiria), Alto Alentejo (Elvas), Aveiro, Baixo Alentejo (Mértola),
Barcelos, Beira Interior Sul (Castelo Branco), Bragança, Cova da Beira (Fundão), Lamego,
Madeira (Câmara de Lobos), Oeste (Cadaval), Península de Setúbal (Palmela), Ponte de
Lima, Porto, Santarém e Tâmega e Sousa (Paços de Ferreira): ec.europa.eu/portugal/re-
des/ced/index_pt.htm

Centros de Documentação Europeia


Nos Açores, Algarve, Aveiro, Beira Interior, Coimbra, Évora, Lisboa, Madeira, Minho e Por-
to; assim como nos politécnicos de Beja e Leiria e no Instituto Nacional de Administração,
ec.europa.eu/portugal/redes/ced/index_pt.htm

Team Europe
Conferencistas independentes disponíveis para fazer apresentações sobre os domínios
de actividade da UE: ec.europa.eu/portugal/redes/teameuropa/index_pt.htm

Espaço Europa
Local de informação e debate sobre a Europa, aberto a visitas escolares e a qualquer ci-
dadão que procure informação sobre a UE, no Largo Jean Monnet, em Lisboa: ec.europa.
eu/portugal/espacoeuropa/index_pt.htm

Centro de Informação Europeia Jacques Delors


Serviço público criado para transmitir aos cidadãos informação sobre a União Europeia,
tem as suas instalações no Palácio da Cova da Moura: www.eurocid.pt

Publicações gratuitas sobre a UE: booksbop.europa.eu


Comissão Europeia – Representação em Portugal:
Largo Jean Monnet, 1 -10° P-1269-068 Lisboa comm-rep-lisbonne@ec.europa.eu

Lista detalhada das redes de informação europeia em Portugal: ec.europa.eu/portugal/


redes/index pŁhtm
Anexos 209

Parlamento Europeu
a voz do Cidadão na UE

2014 é ano de eleições para o Parlamento Europeu (PE), a única instituição europeia
eleita directamente desde 1979.

Em Portugal, 25 de Maio é dia de ir às urnas escolher os 21 eurodeputados que vão


fazer parte dos 751 parlamentares eleitos nos 28 Estados-membros.

Nos próximos cinco anos, serão estes 751 eurodeputados, organizados em grupos
políticos transnacionais com base em afinidades políticas, que vão representar 500
milhões de cidadãos europeus. Actualmente, o PE é constituído por sete grupos po-
líticos, que representam mais de 160 partidos políticos nacionais, e por deputados
«não-inscritos».

Num momento crucial para a Europa a 28, as eleições de 25 de Maio têm um cunho
especial; pela primeira vez, o PE terá um papel decisivo na eleição do presidente da
Comissão Europeia.

A par desta novidade, com o Tratado de Lisboa, o PE ganhou poder em importantes


domínios – como a agricultura, a política comercial, as liberdades cívicas, a pro-
teção dos consumidores ou ainda os transportes e a investigação – com impacto
direto na vida dos cidadãos.

A 25 de Maio de 2014, ESCOLHA QUEM DECIDE NA EUROPA


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