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“Uma definiçã o de critérios variá veis”, Henry Rousso, in La Dernière Catastrophe.

L’histoire,
le présent, le contemporain. Paris: Gallimard, 2012

Regra geral, os principais períodos histó ricos consagrados pela prá tica giram em torno de
momentos fundadores: a queda do Império Romano do Ocidente (476), a tomada de
Constantinopla (1453), a Revoluçã o Francesa (1789). Apesar da crítica à histó ria política e à
histó ria "orientada por eventos", e apesar dos desenvolvimentos científicos ou das relaçõ es
estreitas que a histó ria mantém com as outras ciências, sã o menos importantes as mudanças
econó micas, sociais ou culturais que ainda estruturam os eventos "oficiais" tempo histó rico –
dos programas escolares e universitá rios – do que eventos no sentido mais tradicional do
termo. Nã o é a primeira revoluçã o industrial que inaugura a era contemporâ nea na tradiçã o
francesa, mas a Revoluçã o Francesa, ainda que a cronologia hoje seja menos rígida do que antes.
A fronteira entre a histó ria moderna (final do século XV-final do século XVIII) e a histó ria
contemporâ nea deu origem a muitas divergências. Para ser mais preciso, é o nascimento da
segunda que é mais problemá tica do que o fim da primeira: há pouca discussã o sobre a rutura
representada pela queda do Antigo Regime na França. Se sempre existiram divergências para
estabelecer os limites entre a Antiguidade, a Idade Média e a Idade Moderna conforme se
favoreça este ou aquele acontecimento, as divergências relativas ao início da histó ria
contemporâ nea apresentam entre elas amplitudes que podem chegar a cento e cinquenta anos
entre os vá rias escolas e assim modificar profundamente o significado da palavra
"contemporâ neo". Apresento aqui alguns exemplos, entre os mais significativos, seguindo a
ordem em que os marcos inaugurais para definir a época contemporâ nea ainda em uso
apareceram sucessivamente a longo de um século e meio.

1789 – Revoluçã o Francesa, a Queda da Bastilha

A data mais antiga também pertence, logicamente, à tradiçã o mais antiga de todas as que ainda
persistem. O ano de 1789 e o evento revolucioná rio em sentido amplo constituem um marco
inaugural da era contemporâ nea desde o final do século XIX. Na época, essa forma de dividir o
tempo correspondia a uma realidade intelectual e política em muitos países europeus. A
sobrevivência, hoje, dessa tradiçã o é, por outro lado, uma singularidade bastante francesa,
apesar dos desdobramentos histó ricos subsequentes, das profundas mudanças na historiografia
no século XX, ou mesmo da releitura do pró prio evento revolucioná rio. Embora os historiadores
franceses tenham protagonizado todas essas transformaçõ es, essa divisã o nã o foi realmente
questionada, pelo menos até o surgimento, na década de 1980, da noçã o de histó ria do tempo
presente, rompendo justamente com essa tradiçã o. Se os pais fundadores da Repú blica tiveram
todas as razõ es para situar sua açã o na tradiçã o da Revoluçã o (…) e se a França de hoje, como
boa parte da Europa, permanece dependente do longo efeito do termo desta grande rutura na
histó ria, o que significa hoje uma definiçã o tã o extensa de contemporaneidade? Que um
acontecimento recuado no tempo continue a viver ou a reviver no imaginá rio presente, na
memó ria nacional ou global, nas tradiçõ es, no patrimô nio político ou cultural, é uma evidência
antropoló gica. Isso nã o é suficiente para continuar afirmando que um evento de quase um

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século e meio continua sendo o ponto de virada decisivo do "nosso tempo", muito menos para
mantê-lo artificialmente como um facto contemporâ neo, especialmente nas divisõ es vigentes no
ensino superior quando, ao mesmo tempo, as divisõ es histó ricas do ensino secundá rio se
mostram mais racionais ao limitar efetivamente o período contemporâ neo ao século XX,
recorrendo assim a um critério mais aceitá vel.
Também podemos notar que a distinçã o usada pelos historiadores entre os adjetivos “moderno”
e “contemporâ neo” já nã o tem muito sentido. Os dois termos pertencem a registros diferentes e
nã o devem, logicamente, designar sucessivas sequências histó ricas: um designa o advento de
uma nova ordem em relaçã o a uma velha ordem, o outro designa aqui sobretudo o que pertence
à mesma época. A modernidade é tanto uma questã o de nosso tempo como tem sido desde a
Renascença uma forma de marcar uma mudança. A contemporaneidade carrega tanto o
moderno quanto o antigo. Melhor ou pior ainda, parte da reflexã o epistemoló gica
contemporâ nea faz do século XVIII e do momento revolucioná rio o início – e nã o o fim – de uma
modernidade que confere à historicidade a consciência de que a condiçã o humana é parte de um
devir, um lugar decisivo. E essa modernidade teria murchado no ú ltimo terço do século XX com
a crise do futuro. Além disso, nã o só é absurdo considerar que a Revoluçã o Francesa pertença ao
"mesmo tempo" que o início do século XXI, como, sobretudo, esse corte negligencia o fato de que
outros eventos subsequentes igualmente importantes tiveram efeitos notá veis e duradouros
tanto “modernidade” como sobre o modo de conceber a “contemporaneidade”.

1917

Uma revolução expulsa a outra. Entre as datas que constituíram outro marco inaugural do
mundo contemporâneo e que continua a ser por vezes utilizada está o ano de 1917, ou
melhor, a sequência 1917-1918. Essa divisão apareceu sobretudo na historiografia alemã após
a Segunda Guerra Mundial e a queda do Terceiro Reich (…) com os escritos de Hans
Rothfels e a criação do Institut for Zeitgeschichte. Essa divisão associa num único
movimento a Revolução Russa, a entrada na guerra dos Estados Unidos, uma grande potência
nascente, e o fim da Grande Guerra - e não seu ponto de partida - que constitui uma derrota
pesada de consequências para a história da Alemanha e da Europa. Valoriza a emergência de
uma primeira forma de globalização, não sem argumentos reais, mas constitui também uma
forma de minimizar a importância do critério nacional num momento em que a historiografia
alemã, como o resto da sociedade, deve lidar com o terrível balanço do nazismo. Aliás, esta
divisão foi abandonada pelas gerações seguintes em favor de uma periodização mais fluida e
centrada na história e na pré-história do nazismo, com outro inconveniente, alvo de
acalorados debates nos anos 1980: o de isolar, de destacar a sequência de 1933-1945 a ponto
de lhe atribuir uma espécie de status de extraterritorialidade histórica.

1945 – fim da 2ª Guerra Mundial

Se 1789 ou 1917 remetem a tradiçõ es historiográ ficas específicas, tanto marcadas por um forte
sentimento de excecionalidade nacional como no caso da "exceçã o francesa" ou do Sonderweg

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alemã o, há outros marcos inaugurais do mundo contemporâ neo que se impõ em de forma mais
simples ou mais "naturalmente", pelo menos na aparência. É o caso do ano de 1945, que
encontramos em grande parte da historiografia inglesa dos anos 1980, em particular com a
criaçã o do Centro de Histó ria Britâ nica Contemporâ nea (CCBH), em 1986, e cujo campo de
investigaçã o começa com o fim da Segunda Guerra Mundial. Sem surpresa, encontramos
divisõ es semelhantes na historiografia americana, estando a rutura entre "histó ria moderna" e
"histó ria contemporâ nea" quase ausente no mundo de língua inglesa, por razõ es que sã o quase
ó bvias no caso americano, incluindo a sua histó ria nacional pouco mais mais de dois séculos, e
por razõ es pragmá ticas no caso britâ nico (…). A mesma rutura aparece, por exemplo, nos
programas de final de primeiro ciclo na França, promulgados em 1957 e modificados em 1959.
enquanto no ú ltimo ano os alunos sã o convidados a estudar a histó ria das “civilizaçõ es”: os
mundos soviético, muçulmano, do Extremo Oriente, do Sudeste Asiá tico e da Á frica Negra. Por
um lado, o ensino médio mostra (como o primá rio) um certo avanço sobre a pesquisa no que diz
respeito ao lugar dado à histó ria recente, mas, por outro, cria uma estranha separaçã o entre o
essencial da histó ria abordado de forma tradicional, pelos factos, os acontecimentos, a
cronologia e, por outro lado, um “mundo contemporâ neo” que surge em 1945 e para o qual se
privilegia o espaço, a cultura, o longo tempo. Permanecemos assim implicitamente na ideia de
que o recuo nã o é suficiente para estudar, por exemplo, a Revoluçã o Chinesa como fazemos para
a Primeira Guerra Mundial. Este programa também suscita muitas controvérsias, menos sobre o
corte de 1945 do que sobre a questã o das civilizaçõ es. Será , no entanto, necessá rio esperar pelas
reformas de 1981-1982 para que este conceito seja definitivamente abandonado em favor de
uma divisã o que se reconete com a cronologia e coloque a Segunda Guerra Mundial em bom
lugar, pois a partir desta data, o programa do ú ltimo ano abrange o período de “1939 aos dias de
hoje”, fruto tanto da emergência de um debate pú blico sobre a memó ria desta guerra como dos
primeiros resultados de uma histó ria ressurgente do tempo presente.
À primeira vista, como para outras denominaçõ es, o ano de 1945 inaugura claramente o
nascimento de um novo mundo, marcado em particular a nível internacional pelo fim da
dominaçã o europeia, o desaparecimento gradual dos ú ltimos impérios coloniais, o surgimento
de novas grandes potências, o nascimento da tecnologia nuclear com implicaçõ es militares e
civis considerá veis. Constitui, portanto, um marco “natural” para os historiadores, como foi para
muitos contemporâ neos. No entanto, iniciar o mundo contemporâ neo apó s a Segunda Guerra
Mundial é tanto uma escolha quanto um ponto de vista sobre o significado desse evento. Isso
supõ e, pelo menos na ordem das representaçõ es, virar a pá gina da guerra mais mortífera da
histó ria da humanidade. Isso requer retornar a um passado que é considerado como sendo o
“primeiro” século 20, o do fascismo, do nazismo e dos crimes em massa soviéticos. Enfatizar
essa rutura é sublinhar o triunfo - pelo menos parcial - da ideia democrá tica com o advento na
esteira do pó s-guerra da construçã o europeia, do crescimento econó mico - também
essencialmente ocidental -, de um Estado de Bem-Estar que se impô s por um tempo como um
modelo universal. Esta é uma visã o totalmente otimista da histó ria do século XX que pressupõ e
que as geraçõ es posteriores a 1945 teriam superado física e mentalmente os efeitos deletérios
das décadas anteriores, marcadas por extrema violência bélica e política.
Toda uma historiografia foi desenvolvida apó s 1989 contra esta visã o por vezes tranquilizadora,
propondo um olhar mais "pessimista" e, sem dú vida, mais pró ximo da experiência dos europeus
sobre a histó ria apó s 1945. Em 2005, data do sexagésimo aniversá rio do fim da Segunda Guerra
Mundial, o historiador britâ nico Tony Judt publicou uma histó ria da Europa que identifica nã o
como o triunfo gradual do modelo ocidental, mas como uma saída interminá vel da guerra que

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nunca terminou apenas apó s a queda do Muro de Berlim. Tal como outros historiadores
desejosos de adotar um ponto de vista cujo centro de gravidade já nã o seja a Europa Ocidental,
sublinha o quanto para milhõ es de europeus de Leste, o ano de 1945 foi antes de mais o ano de
uma nova catá strofe coletiva e individual, o ponto de partida de uma escravizaçã o que nada
poderia deixar prever que terminaria dentro de duas geraçõ es. Em 2010, pouco antes de sua
morte, implorando por uma nova histó ria europeia, Tony Judt chegou a fazer esta
surpreendente observaçã o:

Nã o está claro como será essa nova histó ria. Nã o podemos sequer dizer com certeza
em que consistirá a sua periodizaçã o. As questõ es que hoje nos preocupam nem
sempre serã o o foco de nossa atençã o. A histó ria europeia, mesmo no nosso tempo,
nã o é apenas sobre colaboraçã o, resistência, crime em massa, retribuiçã o, justiça
política e a memó ria de tudo isso. Mas até que tenhamos integrado com sucesso
essas e outras questõ es relacionadas à nossa compreensã o do passado recente da
Europa, nã o seremos capazes de avançar. A histó ria da Europa desde 1945 até ao
presente começa com a necessidade de repensar a guerra e as suas consequências, e
ainda estamos apenas no início.
(…)

1914 – Início da Grande Guerra

(…) O século das trevas nã o começou nem em 1939-1940, nem mesmo em 1933 com a ascensã o
de Hitler ao poder, nem em 1917-1918, mas no início - e nã o no fim - da Grande Guerra, ou
talvez um pouco antes, com as guerras balcâ nicas de 1912-1913 que constituem uma espécie de
prelú dio à catá strofe de 1914. Aqui prevalece o mesmo raciocínio que o mobilizado para a outra
grande guerra. Nunca antes tantas pessoas (quase 10 milhõ es) morreram em tã o pouco tempo
num conflito. Quase nunca antes uma guerra ultrapassou tal limiar de violência no campo de
batalha, e nunca sociedades beligerantes estiveram tã o envolvidas na totalizaçã o da guerra. O
fato é enorme, quase ofuscante uma vez declarado. Mas, embora a primeira grande guerra possa
ter dado origem a importantes obras no passado, constituindo mesmo um campo inicial de
estudo da histó ria contemporâ nea na Europa, a memó ria dela viu-se relegada para segundo
plano pelo impacto da segunda, como mostra, por exemplo, a ignorâ ncia recíproca que
prevaleceu durante muito tempo entre os respetivos especialistas das duas guerras mundiais,
como se os dois acontecimentos nã o estivessem ligados. Na década de 1990, ocorreu uma
mudança crucial na historiografia. A Grande Guerra nã o só deu origem a uma nova onda de
estudos dedicados à s sociedades em guerra, à condiçã o material e psicoló gica dos soldados, ao
estudo de formas específicas e diferenciadas de violência, mas o lugar do evento na histó ria do
século muda a sua natureza. Pertencente desde a eclosã o da Segunda Guerra Mundial a um
passado algo distante, eis que a Primeira Guerra Mundial reintegra subitamente o passado mais
pró ximo, tanto ao nível historiográ fico como ao nível comemorativo: basta observar o
investimento espetacular de políticas pú blicas na memó ria desde 1998 e o septuagésimo
aniversá rio do armistício, particularmente em França, Alemanha, Grã -Bretanha, Austrá lia, na
manutençã o da memó ria da Grande Guerra, ou mesmo no interesse renovado que muitos
escritores ou cineastas europeus ou americanos lhe dedicaram há duas décadas - ainda que esse

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interesse nã o se compare em intensidade ao da Segunda Guerra Mundial. Aqui encontramos
mais uma vez a ilustraçã o de que o significado de um evento histó rico nã o depende de sua
proximidade temporal.
Muitas razõ es podem explicar esse desenvolvimento. Em primeiro lugar, a queda do Muro de
Berlim trouxe de volta problemas nacionais, étnicos ou fronteiriços que nã o haviam sido
totalmente extintos em 1918, apó s o deslocamento das Potências Centrais, e congelados apó s
1945 pela Guerra Fria e a dominaçã o comunista, como o violento desmembramento da ex-
Jugoslá via ilustra. O colapso um tanto inesperado do sistema soviético exigiu uma releitura da
histó ria do século 20, tomada até entã o com a ideia de que o comunismo europeu estava
destinado a durar, e que o mundo seria por muito tempo dividido em dois blocos. O fim abrupto
da URSS obrigou os historiadores a repensar a pró pria natureza do sistema soviético, voltando
assim à fonte de uma revoluçã o que eclodiu no coraçã o da Primeira Guerra Mundial, um ponto
já mencionado. Noutro registro, o foco por vezes excessivo dos historiadores do mundo
contemporâ neo no nazismo deu origem a críticas legítimas à s origens da violência extrema que
se desenrolou na Europa nas décadas de 1930 e 1940. A nova historiografia da Grande Guerra
questiona indiretamente o dogma da singularidade da Shoah sem, no entanto, contestar seu
cará ter inédito. Faz isso insistindo no fato de que um primeiro limiar de violência, uma violência
de outra natureza, foi cruzado em 1914-1918. Fá -lo mostrando implicitamente que a violência
sem precedentes em que toda a Europa foi mergulhada durante quatro anos de uma guerra
muito longa pode ter influenciado diretamente a natureza da violência da outra guerra, trinta
anos depois, inclusive no curso da Soluçã o Final. Se os historiadores da Segunda Guerra Mundial
já haviam aberto o caminho para uma leitura pessimista da histó ria recente, os historiadores da
Primeira acusam a tendência, mostrando em que medida a guerra constituiu o horizonte do
continente europeu durante grande parte do século XX. O sucesso tardio e pó stumo do
historiador George Mosse, inventor do controverso mas estimulante conceito de "brutalizaçã o",
é um indício disso: graças a ele, os historiadores compreenderam melhor que o impacto de uma
guerra nã o se limita aos contributos humanos, à destruiçã o material, à s dificuldades de
reconstruçã o, e que nã o "nos libertamos" de uma guerra, ideia que tomo emprestada de
Stéphane Audoin-Rouzeau, porque foi assinado um armistício ou um tratado de paz. Muito pelo
contrá rio, a violência da guerra, seja ela sofrida, infligida, observada ou evitada, pode marcar os
espíritos por muito tempo. Mas os efeitos posteriores da violência da Grande Guerra pareciam
apagados pelo fato de que, em 1939, a humanidade cruzou outro limiar apocalíptico. E essa
violência, nó s a redescobrimos nos anos 1990-2000.
Além da queda do Muro de Berlim e do progresso da historiografia, é possível que o
renascimento gradual do pacifismo na Europa ou na América do Norte tenha despertado um
interesse renovado por esse conflito, ao mesmo tempo em que a sequência de 1933-1945
monopolizou ainda toda a atençã o das sociedades ocidentais e mobiliza políticas de memó ria,
particularmente na luta contra o "esquecimento" dos crimes nazistas. Quase universalmente, a
guerra total travada contra as potências do Eixo tem sido constantemente percebida desde 1945
– nã o sem razõ es ó bvias – como uma guerra necessá ria, uma guerra vital para a sobrevivência
da humanidade, uma “boa guerra”. Foi o pró prio exemplo de uma "guerra justa", um precedente
muitas vezes invocado para justificar a posterior intervençã o militar das potências ocidentais,
seja a de Suez em 1956 ou a da Sérvia em 1999, tendo Nasser e Milosevic o ponto comum de
terem sido comparados, algo apressadamente, a Hitler. Este precedente é implicitamente aceite
por todos os movimentos ligados à tradiçã o do antifascismo, incluindo os movimentos da
extrema esquerda europeia dos anos 70, hostis à guerra do Vietname e que se apresentam como

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herdeiros da resistência, já que o “fascismo” só poderia ser esmagado pelo uso da força militar
mais brutal e extrema. Em 1990-2000, o reaparecimento do espectro da guerra no horizonte
ocidental num contexto completamente diferente do da Guerra Fria com a primeira Guerra do
Golfo, a guerra na ex-Jugoslá via, os atentados de 11 de setembro, as intervençõ es no Afeganistã o
e Iraque, deram origem a formas de oposiçã o e ao renascimento de movimentos e sentimentos
pacifistas. Assim que se tratou de denunciar novamente a guerra, os seus horrores, as suas
vítimas civis, a referência à Segunda Guerra Mundial e à sua memó ria tornaram-se menos
eficazes, até mesmo contraproducentes. Daí a renovada atençã o que muitos atores sociais
(políticos, ativistas, escritores) dedicaram nos ú ltimos dez anos à Primeira Guerra Mundial,
sobre que estamos redescobrindo, graças à historiografia, em que medida foi uma "má guerra",
portanto uma "boa" referência histó rica utilizá vel para as lutas pacifistas de hoje. Nesta ló gica,
nã o é de estranhar que no plano ideoló gico (…) as teses defendidas por parte desta nova
historiografia europeia que põ e diante do consenso massivo de “combatentes engajados na
frente como um grande argumento para explicar sua resistência ou seu há bito a níveis de
violência sem precedentes têm despertado reaçõ es indignadas diante do que foi percebido
como um questionamento da figura do soldado-vítima e, aliá s, a perda de substâ ncia de um
argumento histó rico tanto mais conveniente quanto há hoje um consenso da direita para a
esquerda, em toda a Europa, para denunciar a futilidade desta guerra.

1989, 2001?

A queda do Muro de Berlim ou os ataques de 11 de setembro, por sua vez, podem constituir
marcos para um novo período contemporâ neo? É muito cedo para dizer – e esta observaçã o nã o
é de forma alguma contraditó ria em relaçã o à demonstraçã o aqui feita. Se os ataques em solo
americano inauguram uma sequência na histó ria da violência da guerra e produziram
importantes consequências internacionais, nã o é certo que constituam uma catá strofe do tipo
inaugural. Por outro lado, a sequência 1989-1991 tem toda a aparência de um evento no sentido
forte do termo, que consagra o desaparecimento de um velho mundo, nascido em 1917 com a
revoluçã o leninista e cristalizado em 1945 com a dominaçã o do estalinismo em metade da
Europa. Mas se nada nos impede de fazer uma histó ria do tempo presente destes ú ltimos vinte
anos tendo em conta o impacto desta rutura, nada obriga o historiador a perturbar as
cronologias estabelecidas em cada rutura importante na histó ria da humanidade. A título de
exemplo, o “Zentrum fü r zeithistorische Forschung” (ZZF) em Potsdam, criado em 1996, para
fazer face ao desafio de uma histó ria do tempo presente cujo centro de gravidade já nã o é o do
nazismo, realizou sobretudo um trabalho sobre a histó ria comparada das duas Alemanhas no
contexto das ditaduras comunistas da Europa Central e Oriental, dando origem a pesquisas
significativas sobre a Guerra Fria, ou seja, o período anterior de 1945 a 1989. É difícil de definir
por falta de retrospetiva suficiente: a possibilidade de escrever sobre o passado pró ximo nã o
significa ter a ú ltima palavra sobre a questã o, mas na melhor das hipó teses, a segunda ou a
terceira depois de jornalistas e testemunhas. Além disso, correndo o risco de me repetir, deve-se
ter em mente que a histó ria do tempo presente, quaisquer que sejam suas singularidades, como
qualquer outra forma de histó ria, aproxima-se de duraçõ es histó ricas suficientemente
significativas para merecer atençã o especial. Nem o período “de 1989 aos nossos dias”, nem a
fortiori o que abrange “de 2001 aos nossos dias” podem, por agora, ser qualificados com alguma
relevâ ncia, além do conveniente conceito de “pó s-comunismo” ou “pó s-Guerra Fria”. Além disso,

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mesmo que a histó ria contemporâ nea possa ter começado em 1914, 1940, 1945 ou 1989, é
difícil imaginar, em resultado, a inversã o dos respetivos períodos anteriores na chamada
histó ria moderna. Se, portanto, mantivermos o termo "histó ria moderna" para o período que
termina com a Revoluçã o Francesa, incluindo as guerras napoleó nicas, e se reservarmos o
termo "tempo presente" ou "contemporâ neo" para uma sequência iniciada em 1945 ou 1989,
como vamos qualificar o período que vai de 1815 até essas respetivas datas?

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