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‭Alfredo Floristán‬

‭História Moderna Universal‬

‭Tradução de Juliana Moreira‬


‭Introdução‬
‭O que queremos dizer com a Idade Moderna?‬

‭Qualquer periodização histórica é passível de críticas. Para além de critérios objetivos, existem por‬
v‭ ezes critérios de designação. Um estudioso alemão em meados do século XVII considerou que ele estava‬
‭vivendo em tempos "modernos". Um pouco mais tarde, alguns intelectuais franceses modernos acreditavam‬
‭que eles eram pelo menos tão bons quanto os clássicos gregos antigos ou romanos. O tempo histórico foi‬
‭dividido em três grandes etapas: o mundo antigo, os tempos modernos, e entre eles uma "idade média" que‬
‭durante o século XVIII foi vista como um <<tempo sombrio".‬
‭Depois do ano 2000, que sentido faz chamar os séculos XVI, XVII e XVIII de Idade Moderna? Os‬
‭historiadores franceses chamam a Idade Contemporânea de etapa histórica que começou com a Revolução‬
‭Francesa. Obviamente, não somos contemporâneos de Robespierre e Napoleão. Para os historiadores‬
‭anglo-saxónicos, a história moderna remonta aos nossos tempos, ou pelo menos à Primeira ou Segunda‬
‭Guerra Mundial, à bomba de Hiroshima, segundo critérios.‬
‭Idade Moderna é certamente uma denominação convencional. Assim é a Idade Média, termo que perde o‬
‭sentido se houver quatro fases, com a inclusão da Idade Contemporânea. Por outro lado, tanto o‬
‭substantivo como o adjetivo derivado, medieval, ganharam uma carta de natureza na linguagem falada,‬
‭mesmo que seja para desqualificar comportamentos ou ideias como "medievais", ou seja, ultrapassados, ou‬
‭como atração turística na organização de jantares e espetáculos medievais. Por outro lado, ninguém‬
‭organiza um jantar "moderno", ambientado no reinado de Luís XIV, ou um espetáculo "contemporâneo"‬
‭ambientado nos dias de Napoleão Bonaparte.‬
‭Mas esqueçamos se o adjetivo “moderno" é o mais adequado. Os séculos XVI a XVIII têm alguma‬
‭entidade que permita caracterizá-los como um período histórico? As datas convencionais de início e fim do‬
‭período são, respectivamente, a conquista de Constantinopla pelos turcos (1453) e a Revolução Francesa‬
‭(1789). Cada país oferece as suas próprias variantes. Em Espanha, o reinado dos Reis Católicos foi‬
‭escolhido, ou ainda mais, a data de 1492, que separa o reinado em dois, e a Guerra da Independência‬
‭contra Napoleão (1808).‬
‭Juntamente com a conquista de Constantinopla (atual Istambul), os historiadores referem-se a um‬
‭conjunto mais amplo de processos históricos: os primórdios da expansão colonial europeia, sua chegada à‬
‭América e à Ásia e as consequências econômicas e sociais dessas grandes explorações. Na ordem política,‬
‭o feudalismo da Idade Média é considerado substituído pelo "nascimento‬
‭do Estado moderno". No plano cultural e religioso, o Renascimento e a Reforma marcaram a divisão.‬
‭No final, a Revolução Francesa constitui a primeira etapa, na Europa, da Revolução Liberal, isto é,‬
‭do estabelecimento de uma nova ordem política, baseada numa nova ordem social: a da igualdade dos‬
‭cidadãos perante a lei. Essa transformação sócio-política foi acompanhada por uma Revolução Industrial,‬
‭iniciada na Inglaterra, que provocou mudanças consideráveis nas formas de organização do trabalho e nas‬
‭relações sociais. Iniciou-se um processo de aumento da produção agrícola, acompanhado por uma‬
‭diminuição da população empregada na agricultura, realidade que sempre foi considerada impensável.‬
‭Do ponto de vista das estruturas económicas e sociais, parece que o conjunto de acontecimentos que‬
‭puseram fim à Idade Moderna são qualitativamente mais importantes do que aqueles que marcam o seu‬
‭início.Em ambos os lados, no entanto, reconhece-se que os séculos "<modernos" são distintos dos‬
‭anteriores e dos seguintes. Os historiadores anglo-saxónicos qualificam esta diferença com o adjetivo‬
‭<<cedo", prefixado para <<História Moderna" (este adjetivo dá origem a traduções erradas, quando se‬
‭escreve <<início da idade moderna", onde se deve simplesmente dizer <<idade moderna"). Por outro lado,‬
‭os historiadores marxistas consideram que o feudalismo remonta à Revolução Liberal, mas admitem que foi‬
‭um "feudalismo tardio" que coexistiu, talvez já no século XIV, com um "capitalismo mercantil" (e ainda não‬
‭industrial).‬
‭É claro que o conceito da Idade Moderna, tal como o da Idade Média, foi elaborado com base na‬
‭experiência histórica européia. Isso não quer dizer que o período em questão não seja significativo para a‬
‭história de outras sociedades. No início do século XVI, a dinastia xiita dos Safewi começou a reinar na‬
‭Pérsia, os turcos estabeleceram sua soberania sobre o Egito e, um pouco mais tarde, o império muçulmano‬
‭chamado Grande Mughal foi estabelecido na Índia. Mas no Extremo Oriente, por exemplo, os grandes‬
‭ritmos históricos eram diferentes. A dinastia Ming foi estabelecida na China no século 14 e foi substituída no‬
‭século 17 pelos manchus, que governaram até a queda do último imperador em 1912. No Japão, o domínio‬
‭ o xogum, ou generais da dinastia Tokugawa, durou desde os primeiros anos do século XVII até a chamada‬
d
‭“Revolução Meiji" em 1868. Mas a Idade Moderna corresponde a uma primeira fase do colonialismo‬
‭europeu, da relação desigual da Europa com outras sociedades. Nos últimos anos do século 15, os‬
‭espanhóis (e em 1500 os portugueses) chegaram à América. O comércio ou tráfico de escravos foi‬
‭desenvolvido pelas potências coloniais europeias para fornecer mão de obra para as plantações que haviam‬
‭estabelecido nas Américas.‬
‭De fato, o colonialismo europeu nas Américas durante a Idade Moderna era diferente daquele‬
‭praticado na Ásia. As populações indígenas eram exterminadas, direta ou indiretamente, se fossem fracas,‬
‭ou subjugadas se fossem mais numerosas. Os europeus tentaram criar no que viam como o Novo Mundo‬
‭uma sociedade semelhante ou melhor do que a europeia, para alguns deles mais livre e equilibrada. Por‬
‭isso, nas diversas áreas culturais dos colonizadores, foram propostos novos territórios ou cidades. O México‬
‭era a Nova Espanha, e a atual Colômbia foi por muito tempo chamada de Nova Granada. Os ingleses‬
‭chamavam Nova Iorque a cidade a que os holandeses tinham anteriormente chamado Nova Amesterdão.‬
‭Os franceses fundaram Nova Orleans e nomearam suas possessões no Canadá, onde também há‬
‭uma Nova Escócia, Nova França. Este primeiro colonialismo europeu nas Américas terminou de forma‬
‭singular com a independência ou emancipação da própria população de origem europeia, no final do século‬
‭XVIII e início do século XIX. Este movimento foi provocado pelo desdobramento de ideias da velha Europa,‬
‭que não tinha sido capaz de se desenvolver plenamente lá. Uma tradição republicana" atravessa a história‬
‭da Europa moderna, desde as cidades italianas do Renascimento até as Treze Colônias Britânicas na‬
‭América do Norte que se declararam independentes em 4 de julho de 1776. Os insurgentes da América‬
‭espanhola, uma geração mais tarde, inspiraram-se nas ideias da Revolução Francesa, mas também nas‬
‭doutrinas da Companhia de Jesus, baseadas afinal na escolástica medieval, de que o poder chega aos reis‬
‭pelo consentimento do povo, e que o povo recupera a capacidade de iniciativa em caso de vacância na‬
‭soberania. O Parlamento inglês era no início do século XIX uma instituição a ser reformada, dominada pela‬
‭aristocracia, mas ainda assim aprovou a abolição do tráfico de escravos, uma prática da qual os‬
‭comerciantes e investidores britânicos haviam se beneficiado tanto. Através de muitos desequilíbrios e‬
‭contradições, a sociedade europeia (que é a que conhecemos melhor) vivia um pouco melhor em 1500 do‬
‭que em 1800, a cultura material tinha progredido de acreditar numa Era de Ouro, estabelecida no passado,‬
‭para confiar nas possibilidades do conhecimento para melhorar a sociedade.‬
‭Capítulo 02‬

‭Humanismo e Renascimento Cultural‬


‭1. Humanismo e o Renascimento‬

‭1.1 O renascimento como recriação de uma idade de ouro‬

‭Embora a terminologia académica tenda a clarificar e simplificar ao mesmo tempo, não há dúvida‬
s‭ obre a fortuna alcançada por alguns conceitos históricos como o Renascimento. No inconsciente pessoal,‬
‭esta palavra evoca uma recriação pletórica da Antiguidade Clássica na literatura, no pensamento, na arte,‬
‭nas atitudes e nos comportamentos em lugares e épocas específicas, nomeadamente em Itália. E é este‬
‭projeto de reviver a Antiguidade, de a transformar nos moldes de um mundo novo, que empresta a sua‬
‭fisionomia mais definida ao chamado renascimento. Os problemas surgem ao alargar o seu significado à‬
‭totalidade histórica de uma época e ao tentar transferi-lo das minorias cultas para o todo social. Neste‬
‭sentido, o Renascimento insere-se nas periodizações estruturais, que desenharam etapas definidas e‬
‭caracterizadas para a cultura, a fisiologia, as mentalidades, a expressão e os estilos de vida.‬
‭Pois bem, se quisermos aplicar o termo com esta nuance de cultura de época temos de a situar,‬
‭para fins puramente pedagógicos e numa primeira tentativa, entre o século XV e meados do século XVI,‬
‭com antecedentes, alcance e sobrevivência variáveis consoante o país, dependendo do país. Por outro‬
‭lado, as suas criações devem estar ligadas às minorias urbanas em contraponto com as maiorias baseadas‬
‭na tradição medieval.‬
‭Além disso, há que distinguir entre os conceitos de Renascimento e de Humanismo. O primeiro é‬
‭mais amplo e tende a abarcar a diversidade de perspectivas e de atitudes perante a vida, enquanto o‬
‭Humanismo se refere mais diretamente ao renascimento da cultura. O Humanismo refere-se mais‬
‭diretamente à recuperação das letras clássicas antigas e dos valores culturais a que deram origem e os‬
‭valores culturais a que deram origem.‬
‭Note-se, no entanto, que a precisão desta terminologia tem vindo a cristalizar-se ao longo de um‬
‭longo processo cristalizado durante um longo período de tempo. Em termos gerais, o interesse pelo‬
‭Renascimento como cultura de época começou em meados do século XIX, após um período de admiração‬
‭medieval, característico do Romantismo. O autor mais significativo foi Jakob Burckhardt, cuja Cultura do‬
‭Renascimento em Itália (1860) se centra na individualidade e no espírito secular da época. Para este autor,‬
‭a rutura entre a Idade Média e o Renascimento é evidente e dá-se em meados do século XV. Burckhardt‬
‭contrapõe a afirmação individual renascentista aos valores colectivos medievais, com os seus laços de‬
‭sangue, família e território. Assim, o Renascimento seria sinónimo de Modernidade, e a Itália seria o foco de‬
‭difusão das novas atitudes. As hipóteses de Burckhardt tinham precedentes em alguns académicos e‬
‭artistas italianos dos séculos XIV-XVI, como Giorgio Vasari, que falavam do "despertar" do seu tempo, de‬
‭uma nova "idade de ouro" em contraste com a "idade das trevas" da Idade Média.‬
‭No primeiro quarto do século XX os medievalistas tendem a rejeitar as fáceis contraposições entre a‬
‭Idade Média e o Renascimento; e autores como C. H. Haskins,‬‭O Renascimento do século XI‬‭(1927),‬
‭levantam a diversidade na própria Idade Média, já que desde o século XI se apreciam claras renovações‬
‭educacionais e interesse manifesto pelos autores clássicos. Outros, inclusive, remontam um primeiro‬
‭renascimento à etapa de Carlos Magno (século VII), com suas realizações artísticas e literárias. Da mesma‬
‭forma, estudiosos como E. Gilson negou originalidade à filosofia renascentista, e a interpretou como uma‬
‭mera implantação evolutiva de escolas anteriores, considerando que aspectos de racionalismo e‬
‭individualismo poderiam ser encontrados ao longo do Medievo tardio.‬
‭Uma vez apagadas as diferenças nítidas entre a Idade Média e o Renascimento, houve estudiosos‬
‭que consideraram este como um declínio ou epílogo daquele. J Huizinga, em‬‭O Outono da Idade Média‬
‭(1919), apresenta os Países Baixos e a França do norte dos séculos XIV e XV como uma sociedade de‬
‭tradição cavalheiresca, mas com peculiaridades urbanas e capitalistas definidas que anunciam os novos‬
‭tempos.‬
‭Por outro lado, diante de Burckhardt, que tinha centrado o verdadeiro Renascimento na Itália, foi‬
‭configurando-se a consciência de um Renascimento nórdico, não paganizante, mas cristã, uma de cujas‬
‭figuras mais significativas seria Erasmo. Desta forma, foram estabelecidas pontes entre o Renascimento e‬
‭as Reformas religiosas, num panorama de imbricações ao longo dos séculos XV e XVI. No entanto, a‬
‭fecundidade evidente do Renascimento italiano contava a seu favor com o substrato cultural e até material‬
‭da velha Romanidade, enquanto tradições culturais distintas em outros países europeus poderiam oferecer‬
‭certas resistências e reelaborações.‬
‭Entre os autores do final do século XX, Peter Burke sublinhou a necessidade de considerar o‬
‭ enascimento não como um período concreto, mas como uma dinâmica expansiva em amplo contexto. O‬
R
‭que aconteceu no século XVI em Florença, e em xv no conjunto da Itália e no XVI por toda a Europa, deve‬
‭situar-se e numa trajetória de câmbios a longo prazo, entre o ano 1000 e 1800. Os europeus destes‬
‭séculos, uma vez superado o parêntese ruralizante da Alta Idade Média, redescobriram problemas vitais já‬
‭levantados na cultura greco-romana. Neste quadro geral, o Renascimento clássico corresponderia à‬
‭sequência temporal intermediária. Para esses homens, as letras clássicas e os modelos antigos‬
‭representavam a possibilidade de novas atitudes diante do mundo. Posteriormente, os séculos XVI e XVII‬
‭trariam outras questões e parecidos problemas.‬
‭Em relação ao Renascimento espanhol, deve-se indicar que já desde o século xix não foi‬
‭reconhecido pela historiografia alemã dependente de Burckhardt. A sua alegada existência foi contestada‬
‭pelas raízes judaicas e muçulmanas da Península, assim como a lenda negra sobre a Inquisição, Filipe I e a‬
‭Contra-Reforma. O próprio Ortega y Gasset, pensador de impressão germânica, negou a possível‬
‭existência de um Renascimento espanhol. No entanto, a historiografia liberal o reivindicou, embora‬
‭encurtando a sua duração no tempo. E assim, Marcel Bataillon em seu estudo sobre o erasmismo (1937)‬
‭demonstrou a plena adscrição da Espanha ao Renascimento europeu, até a década de trinta e quinhentos.‬
‭Na segunda metade do século XX, autores como Miguel Batllori tendem a ligar estreitamente o‬
‭Renascimento com o movimento intelectual dos humanistas. Neste sentido, poderia-se falar de uma‬
‭corrente hispânica, já desde o final do século XVI na Coroa de Aragão e ao longo do século XVI.‬

‭1.2. Características do humanismo renascentista‬

‭O Humanismo, com a nossa nova vivência e atitude perante o mundo, características da fase‬
r‭ enascentista, tentará libertar-se dos constrangimentos éticos e religiosos próprios da cultura eclesiástica da‬
‭Idade Média. Comportava uma revalorização da nobreza do humano propriamente dito, seus valores e‬
‭capacidades, bem como uma aposta de inserção na «cidade terrena». E isto, frente à exaltação dos valores‬
‭últimos, a «fuga mundi» monástica, a «cidade de Deus» ou os esforços de salvação radicalmente‬
‭manifestados em séculos anteriores. No entanto, convém especificar que não houve uma contraposição‬
‭entre Antiguidade e Cristianismo, mas tentativas de concordância e síntese, como as de Nicolau de Cusa‬
‭(1401-1464) ou Pico della Mirandola (1463-1494). Os clássicos greco-romanos tornam-se modelos‬
‭universais, que devem ser incorporados à herança cristã. Porque não se deve esquecer que «armonía» e‬
‭«unidade» serão referências-chave da cosmovisão humanista.‬
‭Sim que o Humanismo, ao mesmo tempo que pelo seu interesse erudito nas letras clássicas e na‬
‭filologia, deve ser entendida como um novo modo de viver, que sublinha a inserção do homem no mundo, a‬
‭atitude estética, a ética e a cortesia social. Procura-se conciliar ação e contemplação, ao mesmo tempo que‬
‭um ideal de homem completo e polivalente. Portanto, outros traços importantes da atitude humanista serão‬
‭o «virtus» (valor, energia, ousadia viril, integridade), a preocupação com a fama, e o «amor» como‬
‭progressiva transposição de níveis para a beleza em si. Ao mesmo tempo, no humanismo percebe-se um‬
‭sentido aristocrático, minoritário, de hierarquias intelectuais o de círculos iniciados. É caracterizado por um‬
‭certo distanciamento e uma contenção intelectual, perante o clima apaixonado, emotivo e vitalista da‬
‭chamada cultura popular.‬
‭Estes postulados adquiriram uma expressão evidente nas artes plásticas, com seus ideais de‬
‭proporção e harmonia. Manifestações visíveis e caras, urbanas e monumentais, que não podem ser‬
‭entendidas sem o mecenato. Em geral, os artistas plásticos italianos tenderão a idealizar e a expressar‬
‭arquetipicamente o humano, numa espécie de sacralização do belo. É o equilíbrio sereno do espírito‬
‭clássico que caracteriza o primeiro Renascimento. A concepção heróica e divinizada do homem é patente‬
‭em obras como a Criação de Adão (1508-1512) de Michelangelo na Capela Sistina. E, no mesmo sentido,‬
‭não convém esquecer a música, valorizada como cifra pitagórica da ordem cósmica e, ao mesmo tempo,‬
‭alto embelezado e ornamento da vida. Assim, devem ser interpretadas as aparições de Davi tocando a‬
‭harpa, que são reiteradas pelas fachadas e claustros de cidades renascentistas como Salamanca.‬
‭O Humanismo também será estimulado e favorecido pela nova «cultura da imprensa», que aumenta‬
‭a possibilidade de informação, amplia os horizontes mentais, favorece a reflexão individual e,‬
‭consequentemente, uma maior atitude crítica perante os estilos de vida tradicionais e as autoridades‬
‭constituídas.‬
‭Na sua atitude perante os poderes instituídos, os humanistas também se voltaram para os‬
‭classicistas. O modelo era o cidadão ativo e independente de uma república. Tratava-se de um humanismo‬
‭civil, com ecos nas cidades livres da Itália ou da Alemanha. Cícero era, aqui, uma figura que combinava‬
‭qualidades de político, humanista e filósofo. O próprio Erasmo era partidário das repúblicas e era crítico dos‬
‭príncipes, aos quais chegou a comparar as aves gananciosas. No entanto, a Monarquia era uma instituição‬
c‭ aracterística nos países europeus. Diante das arbitrariedades possíveis, muitos humanistas retomaram‬
‭diante delas os modelos estóicos do senequismo: serenidade e integridade perante a tirania, como virtudes‬
‭mais próprias de súditos do que de cidadãos.‬
‭Finalmente, o Renascimento humanista também teve um lado sombrio, e alguns de seus‬
‭representantes entraram em terrenos do marginal, do supersticioso e do (hermético). Em certos casos,‬
‭esses aspectos não ficavam longe da filosofia natural e dos balbucios científicos.‬

‭1.3. Ciencia e tecnica no Renascimento‬

‭O Humanismo cultural renascentista apresentou um certo desfasamento criativo nos aspectos‬


c‭ ientíficos. O paradigma aristotélico é mantido em Filosofia Natural (Física), com amplas concessões à‬
‭astrologia de previsões, alquimia e mentalidades mágicas. Em princípio, durante a fase renascentista são‬
‭descobertos novos escritos de ciências e técnicas da Antiguidade: Arquimedes, Plínio, Vitrúvio etc; ao‬
‭mesmo tempo que se depuram outros conhecidos de Hipócrates, Galeno ou Ptolomeu. Vale a pena‬
‭referir-se, no entanto, a algumas inovações de importância.‬
‭Em Matemática, a Geometria de Euclides é difundida desde a segunda metade do século XV. O‬
‭italiano Luca Pacioli escreve uma Summa de aritmética, geometria e proporções (1494), que resume os‬
‭conhecimentos matemáticos e estabelece as bases da «divina proporção», aplicável às artes visuais. Em‬
‭1533 foi publicada a trigonometria de Johann Müller ou Regiomontano (1436-1476). Em álgebra‬
‭destacam-se também os italianos Tartaglia (+ 1557) e Jerónimo Cardano († 1576). A importância destes‬
‭saberes matemáticos e geométricos reside na sua aplicação a muitos dos ofícios e técnicas da época. Em‬
‭Medicina destaca-se o empirismo anatômico do flamenco Andrés Vesalio (1514-1564). Foi professor em‬
‭Pádua e Pisa. Em 1543 publicou o seu‬‭De humani corporis‬‭fábrica,‬‭que assentava as bases de uma nova‬
‭anatomia de observação.‬
‭Em Astronomia o‬‭De revolutionibus orbium caelestium‬‭(aparecido também em 1543) de Nicolau‬
‭Copérnico (1473-1543) significará a longo prazo uma verdadeira mudança do paradigma cosmológico,‬
‭embora a sua assimilação seja lenta. Nicolau defendeu, como hipótese, a teoria heliocêntrica do universo,‬
‭contra a tradicional geocêntrica sustentada por Ptolomeu. Para ele, os movimentos aparentes do Sol e das‬
‭estrelas poderiam ser explicados admitindo um duplo movimento da Terra: sua rotação sobre o eixo e sua‬
‭translação anual em torno do Sol. Lutero, Calvino e os teólogos católicos se oporiam a ele, alegando textos‬
‭bíblicos.‬
‭Diante do desenvolvimento relativo da atividade científica, generalizaram-se durante o‬
‭Renascimento as aplicações e invenções técnicas, que vinham se desenvolvendo desde a Baixa Idade‬
‭Média. Aparece a figura peculiar do engenheiro-artista, um homem que possuía ao mesmo tempo prática de‬
‭ofício, curiosidade e sensibilidade estética. O exemplo mais conhecido é o do florentino Leonardo da Vinci‬
‭(1452-1519), uma inteligência enciclopédica que reflete sobre aspectos da física, anatomia, ciência‬
‭experimental e artifícios mecânicos.‬
‭As inovações técnicas ocorreram em várias áreas. Assim, por exemplo, na arte da guerra em tudo‬
‭relacionado com a náutica e a navegação; na arquitetura e na edificação; ou no aproveitamento energético‬
‭da água e do vento através de moinhos de papel, de farinha, ferragens e batanes. Alcançaram também a‬
‭agricultura e a rega; a mineração e a metalurgia; a medida do tempo e outros usos cotidianos. Um exemplo‬
‭deste desenvolvimento são os Vinte e um livros dos engenhos e máquinas, realizado entre 1564 e 1574‬
‭pelo aragonês Pedro Juan de Lastanosa, por ordem de Felipe II, e que teve ampla difusão através de cópias‬
‭manuscritas.‬
‭Bem, as técnicas da guerra, a engenharia e a arquitetura militar tiveram uma notável expansão e,‬
‭muitas vezes, marchavam na vanguarda das inovações. Por volta de 1450. tinham aparecido as armas de‬
‭fogo individuais: e o aperfeiçoamento dos canhões durante os séculos xv e xvi levou a transformações‬
‭significativas nas técnicas metalúrgicas de fundição.‬
‭Junto às Artes de Navegar, como a do sevilhano Pedro de Medina (1545), foi-se consolidando uma‬
‭nova cartografia, estimulada pelas descobertas geográficas. Destacam-se os trabalhos do geógrafo‬
‭flamengo Gerhard Kresser (1512-1594), conhecido como Mercador. Começou seu trabalho cartográfico em‬
‭1537, e em 1569 aplicou a projeção cilíndrica de seu nome a um mapa mundial geral, para uso de‬
‭navegantes. Em 1585 publicou uma grande obra geográfica que apareceu com o título de‬‭Atlas, sive‬
‭cosmographicae meditationes.‬‭As técnicas tiveram‬‭uma importante aplicação às explorações mineiras, como‬
‭descrito no livro De re metallica (1556) do alemão Georg Bauer, mais conhecido pelo seu apelativo latino de‬
‭«Agrícola». E, finalmente, as invenções alcançaram os objetos de uso cotidiano. Por exemplo, as lentes‬
‭para corrigir os defeitos de visão, que se generalizaram desde o século XIV. Ou a redução dos aparelhos‬
‭cronométricos mecânicos a tamanhos manejáveis, o que possibilitou a difusão dos relógios e influenciou‬
‭que a vida renascentista assumisse ritmos mais medidos e racionais.‬
‭2. Humanismo e cultura renascentista na Itália‬

‭2.1 Cenário e personagens‬

‭A eclosão da cultura renascentista pode situar-se nos territórios do centro e norte da Itália entre os‬
s‭ éculos XIV e XV. O momento cronológico coincide com a afirmação das cidades-estado de certa‬
‭importância e com pujantes intercâmbios comerciais com o Mediterrâneo oriental. Neste quadro, as cidades‬
‭livres italianas ocupavam espaços intermediários nas esferas de influência do Papado e do Império. Embora‬
‭não se deva pensar em causalidades mecânicas, e o desenvolvimento económico não implica‬
‭necessariamente efervescência cultural: a enriquecida república de Gênova não parece situar-se nas‬
‭correntes particularmente inovadoras dos séculos XV e XVI.‬
‭O Renascimento cultural de novas atitudes também não constituiu um movimento rural, mas‬
‭claramente urbano. Interessou três minorias cidadãs definidas. Primeiro às oligarquias dirigentes, que‬
‭agiram como mecenas: príncipes, prelados eclesiásticos e patrícios. Segundo a intelectuais, estudiosos,‬
‭secretários, escribas e pedagogos. Terceiro artistas plásticos, recrutados entre o artesanato gremial.‬
‭Famílias de banqueiros e comerciantes encontram-se na origem do estímulo cultural renascentista: os‬
‭Médicis de Florença, o Papado patrício de Roma, as aristocracias venezianas. Posteriormente, em sua‬
‭expansão, a cultura renascentista e humanista se espalhará entre os dignitários civis e eclesiásticos das‬
‭Monarquias emergentes; e, da mesma forma, será ligada a cortes, cenários e academias.‬
‭O retorno ao romano clássico encontra-se na base dos interesses renascentistas, de imitação da‬
‭Antiguidade. O romano mais do que o grego, porque na Itália a tradição clássica se apresentava como algo‬
‭próximo, e os humanistas redescobriram nos romanos os seus antepassados. Por isso, para alguns‬
‭humanistas, a recuperação literária e artística fazia parte da empresa de maior alcance: a restauração‬
‭global da Roma antiga. No entanto, ao situar-se num sistema socioeconómico e político substancialmente‬
‭diverso do romano, a «restauração» não podia abandonar o âmbito do ilusório. Petrarca, Valla ou Ficino, e‬
‭os humanistas dos séculos XIV e XV, não deixam de se colocar de fato mais perto da cultura baixo-medieval‬
‭do que da Roma antiga. A realidade contemporânea resistiu a deixar-se ajustar ao molde clássico.‬
‭A ambiguidade dos humanistas é evidente em matérias de religião, pois na maior parte pretendiam‬
‭transformar-se em romanos antigos sem deixar de ser cristãos. Neste sentido, não se pode admitir a‬
‭interpretação do século XIX do carácter pagão do Humanismo italiano. A imbricação entre Antiguidade e‬
‭Cristianismo deu origem a verdadeiros híbridos culturais. E, assim, não é fácil determinar se o sincretismo‬
‭de Marsilio Ficino sombreou o platonismo de teologia ou a teologia de platonismo. Os humanistas do‬
‭Renascimento pertenceram a duas culturas e colocaram seus pés em duas margens.‬
‭Em muitas atitudes dos humanistas descobrem-se, também, estas dualidades, modernas e‬
‭medievais ao mesmo tempo. Uma obra tão característica como‬‭O Cortesão‬‭(1528) de Baltasar Castiglione‬
‭(1478-1529) evoca-nos por um lado os textos clássicos de‬‭O banquete de Platão‬‭, mas também as tradições‬
‭medievais do amor cortés. E, desta forma, se conciliam mundos diferentes: o cavalheiresco e o humanismo.‬
‭Mas a obra é também um exemplo do desenvolvimento do autocontrole e da boa educação (a «cortesia»)‬
‭em círculos sociais selecionados.‬
‭As novas sensibilidades cristalizaram, originalmente, em territórios da Itália onde o legado da cultura‬
‭clássica se manifestava de forma evidente. Acosta de Simplificar, pode-se referir a quatro centros‬
‭especialmente dinâmicos. O primeiro deles a cidade de Florença, que vive momentos de esplendor sob‬
‭Cosmede Médi Cis (1434-1464) e Lourenço, o Magnífico (1469-1492). É aqui que aparece a Academia‬
‭neoplatônica presidida por Marsilio Ficino, e onde se desenvolve um Humanismo cívico que pretende a‬
‭salvaguarda das liberdades republicanas da cidade. Mas este apogeu foi quebrado por volta de 1494,‬
‭quando os valores da república se mostraram ineficazes diante da invasão de Carlos VIII da França. Caíram‬
‭os Médicis, e produziu o contraponto austero e radical das pregações apocalípticas do dominicano‬
‭Savonarola, um interregno político-religioso contrário ao «paganismo» renascentista.‬

‭2.2 Os Studia Humanitatis‬

‭A pedagogia humanista pretendia, como vimos, todo um ideal de homem em plenitude física, ética,‬
‭ stética, intelectual e religiosa. E os saberes que levaram a este ideal (os que lhe possibilitaram maior‬
e
‭humanidade) receberam o nome de‬‭Studia humanitatis.‬‭Tratava-se das cinco disciplinas clássicas de‬
‭gramática, retórica, poética, história e filosofia moral; e o professor destes estudos era chamado (desde o‬
‭século XV) «humanista» ou «gramático». Que as letras antigas tornariam a humanidade mais nobre e mais‬
‭feliz é uma afirmação que já se encontra em Francisco Petrarca (1304-1374). Em princípio, e diante da‬
‭tradição racionalista da lógica formal medieval, incide-se agora nos valores da linguagem: a gramática e a‬
r‭ etórica são desafios como formas de expressão do homem no tempo. Da intelectualidade abstrata e as‬
‭imutáveis verdades lógicas e passa-se um maior interesse pelas realidades práticas, no âmbito de novas‬
‭sociedades urbanas que colocam maior ênfase no comunicativo cotidiano. Os‬‭Studia humanitatis et‬
‭litterarum‬‭aperfeiçoaram o homem, pois este se diferenciava dos animais dada a sua capacidade de falar e‬
‭de distinguir o bem e o mal. Os estudos tendiam, portanto, a concentrar-se nas artes da palavra e numa‬
‭ética aplicada.‬
‭Isso explica a preocupação formal com o latim, a língua em que aparecem encriptadas as‬‭bonae‬
‭litterae‬‭da Antiguidade ressurgida, que, deste modo, se torna um instrumento franco da cosmópolis‬
‭humanista. Mas não o latim vulgar e degradado da Idade Média, mas com polimento e estilização,‬
‭preferencialmente sobre modelos ciceronianos. Este retorno ao latim clássico já se encontra em Petrarca,‬
‭ansioso por constituir uma biblioteca pessoal de códices latinos. Outros estudiosos, como o florentino‬
‭Leonardo Bruni (1369-1444), continuarão nesta linha, afirmando que o estudo dos antigos «perfecciona‬
‭yadorna». Pelo seu domínio latino, os humanistas serão empregados como secretários dos príncipes e‬
‭papas, de senhores e cidades livres.Va desa- rrollando-se, assim, uma literatura neolatina que tentará‬
‭aproximar-se de todos os gêneros literários de Roma: a poesia pastoral à maneira das Éclogas de Virgílio e‬
‭a épica ao modo de sua Eneida; Horácio para as Odes; as comédias como Plauto ou Terêncio; nas‬
‭tragédias, Séneca; e a história ao Tito Lívio. Plutarco será o modelo para a biografia, um gênero ligado ao‬
‭desenvolvimento do individualismo renascentista. Para 1500 ainda se concedia mais importância e‬
‭dignidade à literatura neolatina do que à vernácula.‬
‭Da mesma forma, revitaliza-se o conhecimento da língua grega, que começou a cultivar-se em‬
‭aulas particulares na Florença do final dos quatrocentos. Alguns códices foram introduzidos ao latim, e o‬
‭interesse aumentou com a participação de teólogos gregos no Concílio de Florença (1439) e pela emigração‬
‭de intelectuais à Itália após a queda de Constantinopla no poder dos turcos em 1453.‬
‭A preocupação com a linguagem se estende ao hebraico e ao aramaico, necessários para a‬
‭interpretação do Antigo Testamento e vinculados a interesses cabalísticos: assim o entendia Pico della‬
‭Mirandola, seguindo o ensinamento do cardeal Giles de Viterbo. Tudo isso, e o colecionismo de códices‬
‭esquecidos e curiosos, culminará na criação de importantes bibliotecas privadas. A primeira biblioteca‬
‭pública foi inaugurada por Cosme de Médicis em Florença.‬
‭A recuperação dos textos clássicos originais possibilitará maior precisão nas edições do que a‬
‭oferecida pelas traduções medievais, fragmentárias, incorretas e, às vezes, interpoladas. Lorenzo Valla‬
‭(1407-1457) pode ser considerado como o introdutor da crítica filológica, que terá por objetivo a depuração‬
‭das versões latinas e a proposta de se aproximar de uma imitação do estilo dos antigos:‬
‭Elegantiarum linguae latinae.‬‭Valla, aplicando a crítica filológica, demonstra a falsidade de escritos e‬
‭documentos medievais da chancelaria pontifícia como a suposta «Doação de Constantino». Esta orientação‬
‭será desenvolvida por Poliziano (1454-1494), atendendo à paleografia, à ortografia e ao usus scribendi dos‬
‭autores, e dando origem à crítica textual, necessária para tentar fixar, entre as várias cópias existentes, o‬
‭texto mais provavelmente autêntico.‬
‭O Humanismo levou, finalmente à recuperação de textos antigos sobre medicina, matemática e‬
‭astrologia, o que servirá de canal para novos interesses científicos (a filosofia natural), técnicos e‬
‭hermético/mágicos‬

‭2.3 Pensamento Filosófico‬

‭Na base mantém-se o aristotelismo medieval de São Tomás de Aquino, conciliando revelação e‬
r‭ azão. Afirmava-se a possibilidade de elaborar, a partir da experiência do mundo sensível, por analogia e‬
‭abstração, um conhecimento conceitual do mundo que teria correspondência com as realidades essenciais‬
‭(«realismo»). Este aristotelismo tomista do século XI rebria com força durante o século XVI, no âmbito da‬
‭Reforma Católica.‬
‭Guilherme de Ockam, no século XIV, tinha complicado o panorama ao negar a possibilidade de um‬
‭conhecimento racional das verdades da revelação. As observações sensíveis permitiam o acesso a uma‬
‭ciência experimental, mas que não precisava corresponder às realidades divinas. Os conceitos seriam‬
‭meros nomes («nominalismo») das espécies, sem necessária relação com as essências. A dialética‬
‭torna-se formalismo técnico e silogístico, que irradia das universidades do século XV.‬
‭A vertente do aristotelismo averroísta separava também a filosofia da fé e formulava a doutrina da‬
‭dupla verdade, científica e religiosa. Esta atitude foi ensinada nas universidades italianas de Pádua e‬
‭Bolonha por Nifo, Pomponazzi (1462-1525) e alguns discípulos. No‬‭Tractatus de immortalitate animae‬
‭(1516) Pomponazzi defende que a imortalidade não era demonstrável, e que possivelmente a alma seria‬
‭extinta com o corpo. Em‬‭De fato libero arbitrio et praedestinatione‬‭(1520) tentou provar a contradição‬
‭existente entre o livre arbítrio e a onipotência divina.‬
‭A segunda corrente filosófica de destaque no Renascimento será constituída pelo platonismo.‬
‭ eve-se notar que durante a Idade Média o conhecimento dos escritos de Platão foi muito reduzido. E,‬
D
‭desta forma, o platonismo chegava interpretado pelas escolas místicas e espirituais do Pseudo-Dionísio e‬
‭Santo Agostinho. Diante destas doutrinas fragmentárias são agora redescobertos os textos originais de‬
‭Platão na sua variedade, e em 1421, Leonardo Bruni traduziu os‬‭Diálogos para o latim.‬‭A este corpus‬
‭juntar-se-á a estima de textos neoplatônicos ou escritos herméticos de Hermes Trimegisto.‬
‭Marsilio Ficino (1433-1499) foi o difusor das doutrinas neoplatônicas. Desde Florença traduz as‬
‭obras completas de Platão e Plotino, e reúne na sua Academia uma minoria aristocrática de conversadores‬
‭interessados. Ficino vai tentar conciliar a linha espiritualista Platão com Aristóteles. Em sua Theologia‬
‭platônica concebe o universo em níveis de pureza emanados do Um ou Deus. O homem deve acender por‬
‭escala amorosa das aparências sensíveis, e da razão escrutadora, para a contemplação dos arquétipos‬
‭divinos. Ficino, neo platonicamente, reivindica a identidade do belo e do bom, e à unidade de todo amor‬
‭como desejo do bem. Este pensamento dará origem a toda uma estética de concordâncias e simpatias.‬
‭Discípulo de Ficino foi Pico della Mirandola (1463-1494) que aumenta a incidência de teorias‬
‭cabalísticas e mágicas no neoplatonismo de seu mestre. Sua pesquisa de uma síntese filosófica, religiosa e‬
‭moral se reflete em suas conclusões‬‭philosophicae,‬‭cabalisticae et theologicae‬‭(1486). Como espírito‬
‭inquieto consagrar-se-á à erudição e à piedade religiosa, contando-se entre os seguidores do dominicano‬
‭Savonarola na Florença do final dos quatrocentos. Pode ser considerado como um dos protótipos do‬
‭homem universal renascentista, pela sua variedade de interesses em línguas, filosofia, religião e astrologia.‬
‭Em suma, o Renascimento em filosofia não foi tanto um sistema fechado quando uma aspiração e‬
‭um ânimo. E, para fazer justiça aos seus dois grandes correntes, Rafael de Urbino colocaria Platão e‬
‭Aristóteles no meio de sua Escola de Atenas (1509-1511) no Vaticano, o primeiro apontando para o céu e‬
‭este para a terra, como centro e glorificação de toda a filosofia antiga recuperada.‬

‭2.4 Inovações artísticas‬

‭As tentativas entusiastas de imitar os antigos alcançaram as artes plásticas que, pela sua‬
‭monumentalidade, constituem um dos aspectos mais visíveis do Renascimento.‬
‭Na arquitetura, a recuperação das formas clássicas era estimulada pela existência de ruínas e‬
‭edifícios em muitas das principais cidades italianas, assinalada em Roma. Além disso, os Dez livros sobre‬
‭arquitetura de Vitruvio, reeditados em 1486, plasmaram a trajetória das proporções e das ordens colunares.‬
‭Pelo seu parte, Leon Batista Alberti (1404-1472) consolida os princípios teóricos das artes visuais, liga-as à‬
‭gramática e à retórica, ao mesmo tempo que postula as suas mesmas qualidades de ritmo e harmonia. O‬
‭conhecimento da matemática e da geometria aplica-se à arquitetura e à perspectiva. Procura-se a unidade‬
‭espacial e a simetria traduz a aspiração comum à ordem. Entre os arquitetos mais destacados cabereferseal‬
‭fiorentino Filippo Brunelleschi (1377-1446) e a Donato Bramante (1444-1514). Brunelleschi restaura a‬
‭proporção, os ritmos, simetrias e formas puras dos antigos em obras como a igreja do Santo Spirito em‬
‭Florença, iniciada em 1436. Ao mesmo tempo, introduziu o uso formal da cúpula ao conceber em 1420 uma‬
‭dupla casca complexa que terminasse a catedral de Santa Mariadei Fiori na mesma Florença. Por sua‬
‭parte, Bramante realiza em 1502 o templo de San Pietro in Montorio de Roma, síntese e expressão da‬
‭linguagem arquitetônica mais clássica. E, a partir de 1506, começam os trabalhos da nova Basílica de São‬
‭Pedro, projetada como estrutura centralizada. Seria Miguel Angel (1475-1564) quem completaria a basílica,‬
‭hierarquizando o conjunto em uma grande cúpula sobre tambor (1557), que levaria ao limite as‬
‭possibilidades do formalismo clássico em dinâmicas tensões pré-barrocas.‬
‭A recriação artística da Antiguidade também é uma escultura. O coleccionismo de obras originais se‬
‭estende entre os magnatas, papas, príncipes e eruditos. Fazem a sua aparição novas peças como o‬‭Apolo‬
‭Del Belvedere‬‭, o‬‭Laoconte‬‭ou a‬‭Vênus de Médicis‬‭. E estas colecções incitam à imitação dos temas: bustos,‬
‭representações mitológicas, heróis e cavaleiros. Donatello (1386-1466) será o escultor de maior‬
‭personalidade neste período, ao recuperar o estilo e a gravidade da estatuária clássica em obras como o‬
‭David ou o Condottiero Gattamelata.‬
‭No início do século XVI a linguagem clássica nas artes visuais alcançou seu apogeu. Afirma-se a‬
‭potência escultórica de Michelangelo (1475-1564), grandioso e dramático. Suas obras tendem a uma‬
‭glorificação heróica do humano.‬‭Seu David‬‭(1504) de Florença funde a perfeição formal com a tensão‬
‭interior, ao mesmo tempo que‬‭o Moisés‬‭(1515) realiza a síntese visual do mundo classicista com a tradição‬
‭religiosa. Os túmulos da Capela Médicis em Florença (1524-1534) constituem um dos seus conjuntos‬
‭escultóricos mais completos, e uma alegoria da vida (ativa e contemplativa) nos círculos solventes do‬
‭tempo. Refiramos, finalmente, a Leão Leoni (1509-1590), milanês, bronzista excepcional e virtuoso do‬
‭mármore. Realizou uma importante série de retratos dos Habsburgos espanhóis, entre os quais se destaca‬
‭o seu bronze de‬‭Carlos V dominando al Furor,‬‭executado‬‭entre 1549 e 1564.‬
‭Mais dificuldades os artistas encontraram com a pintura, e que os restos antigos conservados eram‬
‭ scassos. Para a imitação foi necessário recorrer a descrições literárias, ou à transposição de poses‬
e
‭escultóricas. Foi assim que o retrato foi estimulado como um gênero independente. E, nesta busca,‬
‭acabaram por descobrir-se em quatrocentos as leis da perspectiva linear, que centrará a preocupação‬
‭pictórica na aparência das coisas. Desta forma, a pintura avançou desde os elementos góticos tradicionais‬
‭para a representação naturalista de corpos e espaços.‬
‭Um forte interesse pela perspectiva pictórica se encontra em: Paolo Uccello (1397-1475), Andrea‬
‭Mantegna(1431-1506) desenvolve a espacialidade. Piero della Francesca (1420-1492) consegue suas‬
‭composições límpidas de rigor simétrico e equilíbrio sem emotividade. Com Leonardo da Vinci (1452-1519)‬
‭introduz-se a perspectiva aérea nas gradações de luz e sombra do sfumato. O mistério e a doçura dos‬
‭volumes são conseguidos em obras como a Virgem das Rochas (1483) ou a Gioconda (1503) do Louvre.‬
‭Em Veneza, Jacobo Bellini e seus filhos iniciaram uma escola caracterizada por atmósferas coloristas,‬
‭sensualidade e luz, que atingiram seu culminar em Ticiano (1485-1576). Este pintor consegue misturar a‬
‭gradação sensorial com a erudição humanista em seus quatro mitológicos, ao mesmo tempo que como‬
‭retratista oficial da Monarquia espanhol alcança composições do relevo de Carlos V em Mühlberg (1548).‬
‭Deste modo, durante os séculos XVI, foram produzidas importantes inovações artísticas na Itália.‬
‭Trabalhava-se em pequenos grupos ou oficinas, embora se destacaram claramente numerosas‬
‭individualidades criativas. Deve-se ter em conta, que as artes plásticas não tinham o prestígio das artes‬
‭liberais, porque na sensibilidade da época correspondiam a trabalhos mecânicos.‬

‭2.5 Difusão do Humanismo‬

‭A expansão do Humanismo terá muito a ver com uma nova pedagogia e renovação do ensino. A‬
‭ ducação é projetada como formação geral, que integra atividades físicas, intelectuais e espirituais. E no‬
e
‭fundo, bate a consciência idealista de um homem concebido como criatura divina e perfeccionista, desde a‬
‭selvageria da infância às sutilezas da cortesão humanista. E, para isso, os autores antigos forneceriam bons‬
‭modelos para imitar.‬
‭Mais do que as universidades tradicionais, na renovação humanista contribuíram as fundações de‬
‭nova cunho. Surgiram academias de letras clássicas, como as de Nápoles (1440), Florença, Roma ou‬
‭Veneza. A florentina (1468) foi plantonista e minoritária, com encontros selecionados e comentários de‬
‭obras de Platão em torno de Ficino. A romana esteve ligada à Cúria, e o seu período de esplendor coincide‬
‭com o papado de Leão X (1513-1521). A Academia veneziana, presidida por Aldo Manuzio, estava‬
‭fundamentalmente interessada nos autores gregos; e entre 1494 e 1515, foram feitas impressões de quase‬
‭trinta deles.‬
‭Bem, tradicionalmente tem sido considerado que estes usos culturais italianos do chamado‬
‭Renascimento foram posteriormente exportados e «difundidos» para o resto da Europa Ocidental. No‬
‭entanto, as novas interpretações colocam maior ênfase nos aspectos da «recepção»; ou seja, nos‬
‭processos e condições de recriação e transformação de influências. Ao mesmo tempo que os italianos‬
‭recriam à sua medida a Antiguidade clássica e faziam «propostas», os europeus os imitavam,‬
‭reinterpretando por sua vez os modelos, de acordo com as suas necessidades, circunstâncias e‬
‭possibilidades de recepção. Quebra-se, desta forma, a dualidade estabelecida entre uma Itália inovadora e‬
‭uma Europa receptiva de forma meramente passiva e subordinada.‬
‭Dito isto, pode-se agora referir aos canais pelos quais ocorreu a difusão cultural anteriormente‬
‭considerada. Em primeiro lugar, as viagens e visitas à península italiana. Neste sentido continuaram os de‬
‭clérigos, peregrinos e comerciantes, característicos da Baixa Idade Média. Os de soldados e diplomáticos‬
‭aumentaram. Continuaram os de universitários especializados, que frequentavam os estudos jurídicos de‬
‭Bolonha ou a medicina de Pádua. Antonio de Nebrija recebeu formação humanística em Bolonha (1460).‬
‭Copérnico, proveniente da Polónia, estudou direito, matemática, astronomia e grego nas universidades de‬
‭Bolonha (1496), Pádua e Ferrara. E Andrés Vesalio, originário de Flandres, foi a Pádua (1539) para estudar‬
‭anatomia. Fizeram-no também outros estudiosos e intelectuais, por diversos motivos. O holandês Justo‬
‭Lipsio chegou a Roma em 1567, entre o séquito de seu mecenas, o cardeal Granvela. Em 1580 visita Roma‬
‭Michel de Montaigne, onde consulta manuscritos clássicos da Biblioteca Vaticana. Da mesma forma, a‬
‭atração da Itália condicionou a viagem de artistas como Alberto Durero, que visitou Veneza em 1505 para‬
‭estudar novos estilos pictóricos. Mesmo as guerras da Itália, com incursões de soldadesca, saques e‬
‭rapinas, acabaram favorecendo o fascínio e a difusão do Renascimento.‬
‭Notável foi também a emigração contrária, para territórios europeus, de humanistas e artistas‬
‭italianos, especialmente entre 1430 e 1520. e com forte intensidade a finais de quatrocentos. Entre as‬
‭causas podem encontrar-se de todo o tipo: atividades diplomáticas, convites e mecenato, busca de‬
‭promoção ou simplesmente curiosidade e aventura, quando não há fugas e cílios políticos e religiosos. A‬
‭ migração e o acolhimento foram favorecidos pela escassez de humanistas autóctones, situação que se foi‬
e
‭atenuando com o tempo, ao receber formação clássica das novas gerações. Esta situação já tornou‬
‭desnecessários os italianos que, até então, tinham ido para França, Inglaterra, Espanha, Portugal, Hungria e‬
‭Polónia.‬
‭A impressão de tipos móveis fundidos não foi inventada até a década de 1440 pelo alemão de‬
‭Mainz Juan Gutenberg. Por isso, não exerceu influência nos inícios do Renascimento; mas sim, e de forma‬
‭muito acusada, em sua difusão. A imprensa colocou em relação o projeto de recriar a Antiguidade com a‬
‭possibilidade pública e individual de dispor de edições impressas e circulantes dos autores clássicos. Com‬
‭ela, os humanistas fixaram e espalharam a crítica textual. Por volta de 1467 já encontramos impressoras em‬
‭Roma. Em 1500 aparecem instaladas em cerca de 236 cidades, com densidades acentuadas no‬
‭centro-norte da Itália e no centro-sul da Alemanha, e com focos principais em Veneza, Basileia, Paris e‬
‭Antuérpia. Parece que entre 1450 e 1500 chegaram a ser impressos na Europa quase 15.000 textos, em‬
‭edições diversas. Neste tempo, 80% da produção ainda era em latim, e metade dela de tema religioso. Em‬
‭1539 a imprensa chegava a Veracruz, no Novo Mundo; em 1557 a Goa, nas Índias Orientais; em 1564 à‬
‭Rússia. Editores importantes, muitas vezes verdadeiros estudiosos, como Aldo Manuzio em Veneza ou‬
‭Frobens em Basileia, serviram de intermediários entre os humanistas e o público culto, contribuindo para o‬
‭sucesso e a fama de alguns, como a que Erasmo desfrutou de vida. Deste modo, a difusão dos livros (no‬
‭novo nível do escrito) foi capaz de ampliar os círculos minoritários de humanistas de transmissão oral, como‬
‭a primitiva Academia Platônica de Florença. Outros impressores proeminentes foram os irmãos Estienne em‬
‭Paris e Plantin em Antuérpia (desde 1549).‬
‭Juntamente com os livros, não vale a pena esquecer também o desenvolvimento do gênero‬
‭epistolar na difusão do Humanismo. Aumenta consideravelmente a escrita de cartas, muitas vezes um dos‬
‭ou os poucos procedimentos de intercâmbio e relação entre amigos e estudiosos. E faz isso com peças‬
‭cultas, redigidas em latim elegante, que muitas vezes acabam chegando às impressoras.‬
‭Neste processo de difusão cultural, pelo menos nas origens, não tiveram muita importância as‬
‭universidades de raízes medievais, configuradas como guildas de especialistas técnicos (juristas, teólogos,‬
‭médicos) com funções e interesses concretos. O latim clássico recuperado dos humanistas enfrentou o latim‬
‭escolástico das universidades. Estas, após dúvidas e hesitações, incorporaram às suas faculdades algumas‬
‭cátedras de línguas clássicas, significativamente do grego no final do século XV. O que não quer dizer que‬
‭seja impregnado do talento humanista, fora de alguns estudiosos singulares ou de fundações renovadas.‬
‭Antonio De Nebrija, por exemplo, será forçado a abandonar a Salamanca renascentista, em 1513, e a se‬
‭mudar para a atmosfera intelectual, mais renovadora, de Alcalá de Henares. É por isso que as novas‬
‭instituições colegiais, abertas aos novos saberes letrados, adquiriram um papel de destaque. Assim os‬
‭colégios trilíngues de Lovaina ou Alcalá, o «Corpus Christi College» de Oxford, ou «Collège de lecteurs‬
‭royales» (futuro «Collège de France») de Paris. Da mesma forma, a inovação cultural e tecnológica da‬
‭imprensa transbordou o âmbito propriamente universitário.‬
‭No entanto, também houve uma expansão das instituições universitárias ao longo do século XVI na‬
‭Europa. Duas causas principais devem ser apontadas. Por um lado, os conflitos religiosos e as‬
‭controvérsias confessionais entre católicos e protestantes, que multiplicaram as universidades e as‬
‭transformaram em baluartes ideológicos enfrentados. Por outro lado, a necessidade política dos novos‬
‭Estados e Monarquias de se estruturar através de uma burocracia jurídica e administrativa eficiente,‬
‭formada no direito romano ministrado nas universidades tradicionais.‬

‭3. Humanismo e Renascimento na Europa‬

‭3.1 Países e figuras: Espanha e França‬

‭ Renascimento cultural italiano estende-se ao resto da Europa ligado a círculos eclesiásticos, impressores,‬
O
‭artistas, universitários e estudiosos. Vale ressaltar a importância das Monarquias e suas cortes, que‬
‭estavam interessadas no movimento, encomendaram obras de arte, e realizaram fundações e patrocínios.‬
‭Há que referir-se aos Reis Católicos e Carlos I de Espanha; Margarida de Navarra e Francisco I de França;‬
‭Henrique VII e VIII de Inglaterra; Maximiliano I na Alemanha; Matías Corvino da Hungria; ou Sigismundo I da‬
‭Polônia. O patrocínio também foi exercido destacadas dignidades eclesiásticas e matriciais dos urbanos.‬
‭Esta eclosão do Renascimento por toda a Europa localiza-se nas décadas finais do século XV e no início do‬
‭século XVI.‬
‭Na Espanha, a influência do Humanismo Italiano é detectada ao longo do Quatro Centenas, e‬
‭irradia por Aragão para Castela. Na Universidade de Salamanca é ensinado o Grego, desde‬
‭aproximadamente 1495, pelo português Arias Barbosa, ao qual sucederá Hernán Núñez desde 1523. A‬
‭figura mais proeminente é Antonio de Nebrija (1444-1522), que recebeu uma formação em línguas clássicas‬
‭ o colégio de São Clemente de Bolonha. Foi catedrático de latinidade e retórica em Salamanca (1475-1487)‬
n
‭(1505-1512), de onde se mudou para a recentemente inaugurada Universidade de Alcalá, dadas as‬
‭resistências tradicionalistas e a hostilidade que encontrava na cidade de Tormes. Entre as suas obras cabe‬
‭referir-se às‬‭Introductiones latinae (‬‭1481), livro de texto para o ensino do latim, e à‬‭Gramática castellana‬
‭(1492), a primeira em seu género para uma língua vulgar.‬
‭Na mesma Espanha, e no quadro renovador da Universidade de Alcalá (1508), serão implantadas‬
‭faculdades de artes liberais e teologia abertas aos saberes humanísticos. Lá aflui uma equipe de estudiosos‬
‭para o projeto cisneriano de uma «Bíblia Poliglota» nas suas línguas originais: latim, grego, hebraico e‬
‭aramaico. Os trabalhos começaram por volta de 1502. Nos textos semíticos trabalharam os convertidos‬
‭Alonso De Zamora e Pablo Coronel. Nos gregos, Demetrios Dukas, Hernán Núñez, Diego López de Zúñiga‬
‭e Juan de Vergara. Nebrija deveria cuidar da correção da Vulgata latina, mas chocou com os teólogos da‬
‭equipe, contrários a introduzir emendas nos textos. O impressor Arnao Guillén de Brocar fundiu os‬
‭caracteres gregos, hebreus e caldeus. A Bíblia começou a ser impressa em 1514, embora sua‬
‭comercialização e venda fosse adiada até 1522.‬
‭Por outro lado, em Espanha terão acusado influência nas obras de Erasmo. O Enquirídio tinha sido‬
‭publicado em Alcalá (1526) em pura prosa castelhana, com tradução do arcediano de Alcor. Mas a agitação‬
‭protestante perturbava as coisas, culminando com as opiniões a favor e contra Erasmo na conferência de‬
‭teólogos de Valladolid (1527). A partir dos anos 30, os intelectuais Erasmianos foram objeto de uma‬
‭perseguição aberta. A vida da classe média Erasmiana foi tachada de filo-luterana e os seus apoiantes‬
‭foram hostilizados em relação às posições tradicionalistas.‬‭O Diálogo de Mercúrio e Carão‬‭(1529) de‬
‭Alfonso de Valdés constitui uma obra significativa daquelas sensibilidades. O autor, proveniente dos círculos‬
‭do Imperador, realiza uma aguda crítica à sociedade da época de acordo com postulados erasmistas. Cabe‬
‭referir-se, também, a Juan de Vergara (1492-1557), secretário de Cisneros e de Alonso Fonseca, humanista‬
‭trilíngue e colaborador na Políglota de Alcalá. Acabará processado pela Inquisição.‬
‭Na Monarquia da França o Humanismo teve um desenvolvimento tardio, apesar de alguns fatos‬
‭significativos, como a transferência para Fontainebleau por Luís XII da biblioteca privada dos Sforza de‬
‭Milão. Em muitos aspectos, o Renascimento francês apresenta uma cortesão colorido, sobretudo no‬
‭ambiente de Francisco I e da sua irmã Margarida de Navarra. Mas não vale a pena esquecer que os‬
‭filósofos e teólogos escolásticos da Universidade de Sorbonne mantiveram-se cautelosos perante as‬
‭novidades intelectuais da Itália. Apesar disso, o Humanismo gaulês cristalizou em duas figuras principais:‬
‭Lefèvre d'Etaples e Bude.‬
‭Lefèvre d'Étaples (1450-1537) foi um clérigo de existência retirada e consagrada à erudição clássica‬
‭e aos estudos teológicos e exegéticos. Realizou, no entanto, diversas viagens para a Itália. Possuía uma‬
‭profunda sensibilidade, que o inclina ao misticismo, e situa-se na linha de um humanismo cristão evangélico‬
‭e interiorizante. Em 1512 elabora um comentário às Epístolas de São Paulo, e posteriormente (1530), traduz‬
‭o Novo Testamento grego para o francês.‬
‭Guillaume Budé(1467-1540) é a segunda figura notável. De erudição enciclopédica, destaca-se‬
‭como especialista em latim e grego. Segundo a fundação do «Collège de France» e foi diretor da biblioteca‬
‭de Fontainebleau.‬

‭3.2 Inglaterra, Alemanha e Países Baixos‬

‭Na Inglaterra, a própria Corte serviu de acolhimento aos humanistas italianos, e a quatrocentos‬
‭ escobrimos a sua presença em Londres. Mas os novos saberes também encontraram acolhimento nas‬
d
‭universidades, jurídicas e escolásticas, de Oxford E Cambridge. Em 1505 foi fundado em Cambridge o‬
‭«Christ's College», com cátedras trilíngues; e entre 1511 e 1514 permanece na referida universidade‬
‭Erasmo. Em Oxford o estudo do grego começou em 1517, com a criação do colégio trilíngue do «Corpus‬
‭Christi». O que não será feito sem confrontos com os teólogos mais conservadores. Entre os humanistas‬
‭ingleses destacam-se Colet e Moro. John Colet (1467-1519), professor de Oxford, aparece influenciado por‬
‭Marsilio Ficino e Pico della Mirandola. Este é um humanista cristão, que aborda estudos filológicos e‬
‭históricos dos escritos de São Paulo. Terá incidência em Erasmo e Moro. Em Tomás Moro (1478-1536)‬
‭descobrimos um erudito amador, que ostenta dignidades cortesãs como o cargo de chanceler e que possui‬
‭formação jurídica. Não obstante, trata-se de um neoplatônico de vasta cultura, conhecedor do latim e do‬
‭grego, íntimo amigo de Erasmo, e autor de uma obra tão irônica e visionária como‬‭Utopia‬‭(1516). Nela,‬
‭Moro evoca uma sociedade ideal organizada sobre princípios de razão natural, comunitária e sem‬
‭propriedade privada. Seu confronto com o rei Henrique VIII, e posterior condenação, situam a Moro como‬
‭exemplo do humanista ético, defensor da dignidade da consciência individual frente ao despotismo do‬
‭poder.‬
‭No âmbito do Império Alemão o projeto de restauração da Antiguidade Romana não foi introduzido‬
s‭ em fricções. Para muitos, era uma cultura allegada, de certa forma estranha ao germânico. Finalmente,‬
‭provocou reações e favoreceu a tomada de consciência de uma cultura própria na língua, na história e até‬
‭mesmo no Direito. No entanto, também na Alemanha ocorreram as trocas de eruditos italianos e viajantes‬
‭curiosos, que foram espalhando as atitudes humanistas. Encontramos sociedades e academias‬
‭estabelecidas em Estrasburgo, Colônia, Augsburgo, Nuremberg ou Viena. Algumas destas comunidades de‬
‭amigos das letras («sodalitates litterariae») criadas em diferentes cidades foram devidas à iniciativa de‬
‭Conrad Celtis (1459-1508), viajante e poeta lírico. Ao mesmo tempo, uma poderosa imprensa‬
‭desenvolve-se em Basileia, com uma qualidade na edição dos clássicos semelhante à de Aldo Manuzio em‬
‭Veneza. Figura destacada do Humanismo alemão da época foi Johan Reuchlin (1455-1522), professor em‬
‭Heidelberg, especialista em hebraico, preocupado com problemas teológicos e tio de Melanchthon. As‬
‭Reformas religiosas que se originaram por esta época na Alemanha constituíram um obstáculo para uma‬
‭fácil difusão dos modelos clássicos do Humanismo italiano. Vale a pena matizar, no entanto, que Lutero,‬
‭apesar de suas polêmicas com Erasmo, não pode ser considerado um inimigo estrito dos humanistas, já‬
‭que não se opôs aos programas pedagógicos projetados por Melanchthon. Mais próximo do Humanismo‬
‭estava Zwinglio.‬
‭Na corte da Hungria, o Humanismo gozou do favor e do patronato de Matias Corvino (1458-1490),‬
‭que chegou a reunir uma importante biblioteca, remodelou o palácio de Buda e fundou a Universidade de‬
‭Bratislava. Na formação da biblioteca Corvina colaborou Janos Pannonius, filólogo e neoplatônico. Nos‬
‭Países Baixos, o Renascimento adquire nuances peculiares. Por um lado, desenvolve-se neles uma nova‬
‭sensibilidade religiosa, a «devotiomoderna», intimista e emocional. Neste sentido, os chamados Irmãos da‬
‭Vida Comum, pertencentes a esta corrente, fomentam um trabalho pedagógico e de transcrição de‬
‭manuscritos, bem como a publicação de gramáticas e textos clássicos através da imprensa. O Humanismo,‬
‭propriamente dito, pode ser apreciado na segunda metade do século XV, com figuras como Rodolfo‬
‭Husmann Agrícola (1443-1485) e Cristofel De Longuei (1484-1522), de destacado estilo ciceroniano. Na‬
‭Universidade de Lovaina, por sua vez, começa a ser ensinada retórica humanista por estas datas, e em‬
‭1517 é fundado nela um Colégio Trilíngue.‬
‭No entanto, deve-se ter em mente que algumas inovações próprias do Renascimento não partiram‬
‭da Itália, mas se recriaram nos Países Baixos. Foram maestros flamengos, como Jan van Eyck (1390-1441)‬
‭ou Roger van der Weyden, os que configuraram as novas técnicas da pintura a óleo, dentro de uma escola‬
‭própria de tradição gótica, caracterizada pelo realismo minucioso e pela observação empírica. Outro âmbito‬
‭cultural preeminente era o da música, com nomes como Ockeghem Ou Josquin des Prés. Johannes‬
‭Ockeghem (1430-1496) foi um Flamengo contratado pelos reis da França. Mestre de polifonia vocal‬
‭contrapontística, influenciou destacadamente na formação dos músicos do primeiro renascimento.‬

‭3.3 Recepções fragmentais‬

‭ udo o que se recebe é reinterpretado, e assim aconteceu com a nova cultura do Renascimento‬
T
‭italiano na sua difusão pela Europa. Vamos colocar alguns exemplos das artes plásticas. Em arquitetura, e‬
‭apesar dos livros teóricos e modelos ao alcance dos arquitetos, numerosas variantes regionais são‬
‭difundidas. Assim como na sua interpretação do antigo a arquitetura florentina e toscana tinha alcançado‬
‭soluções matizadas em relação à lombarda ou veneziana, essas mesmas variantes foram exportadas para‬
‭a Europa. A arquitetura francesa tendia para modelos lombares; a alemã assumiu estilos venezianos; e os‬
‭húngaros imitaram mais diretamente o toscano.‬
‭Além disso, a arquitetura italiana não foi difundida em sua configuração global, mas de forma‬
‭fragmentária, às vezes com sobrevivências góticas. Muitos elementos italianizantes incorporaram-se,‬
‭meramente, às estruturas arquitetônicas de tradição local. Circunstância em que influenciaram‬
‭condicionantes climáticos e ambientais, não sempre apropriados para modelos concebidos dentro do clima‬
‭mediterrâneo. Telhados, chaminés e pátios tiveram de sofrer transformações notáveis. Por outro lado, não‬
‭se pode esquecer os artesãos locais, imbuídos de suas próprias tradições. Nos castelos franceses do vale‬
‭do Loire fundem-se a tradição gótica com as formas decorativas e arquitetônicas italianas. Assim acontece‬
‭em Chenonceau (1515) ou Azay-le-Rideau (1518). O mesmo acontece no castelo de Chambord, projetado‬
‭1519 para Francisco I de França por um arquiteto italiano, mas construído por albañiles franceses, e que‬
‭combina as ideias de castelo medieval e palácio renascentista. Em Espanha as tradições artesanais‬
‭mudéjares continuam enraizadas, e uma novidade, uma vez que a fachada renascentista da universidade‬
‭de Salamanca é nada mais nada menos do que uma tapeçaria sobreposta, por volta de 1529, a um edifício‬
‭de estruturas góticas. Mas às vezes, como no palácio de Carlos V de Granada, projetado por Pedro‬
‭Machuca e começado em 1527, foram transplantadas morfologias puramente italianas. Outros arquitetos,‬
‭como Rodrigo Gil de Hontañón (1500-1577), são um claro exemplo de oscilação de estilos. Se na catedral‬
‭ e Segóvia (1525) Rodrigo Gil dá testemunho da sobrevivência do gótico, no entanto realiza com linguagem‬
d
‭clássica a imponente fachada da Universidade de Alcalá de Henares (1537). O mesmo acontece em outros‬
‭países. No castelo real de Wawel, em Cracóvia, um artista italiano remodelou durante a primeira metade de‬
‭quinhentos o edifício pré-existente, com «loggias» e pátios de novo estilo. Em Inglaterra se mantém a‬
‭continuidade gótica da arquitetura. E é preciso referir-se ao transcoro da capela do King 's College de‬
‭Cambridge (1533-1535) como uma obra chave nas origens do renascimento inglês.‬
‭A arte funerária cortesia foi uma das primeiras vias de introdução escultórica das novas técnicas e‬
‭motivos da Itália. Assume-se na França com os túmulos de Luís XII, Francisco I ou Henrique Il; e na‬
‭Inglaterra com o de Henrique VII em Westminster. Na escultura espanhola acontece o próprio com o‬
‭mausoléu do príncipe Juan em Ávila, que data de 1515. Por sua vez, Alonso Berruguete (1490-1561)‬
‭transfere a Castilla a influência de Miguel Angel, enquanto que em Aragón Damián Forment (1480-1540)‬
‭mantém sobrevivências góticas. Na Alemanha, a escultura gótica em madeira acusa a sua resistência ao‬
‭classicismo.‬
‭Em toda a Europa, o Renascimento está ligado a uma progressiva revitalização das línguas e‬
‭literaturas vernáculas, para o que contribuíram os próprios humanistas e os reformadores religiosos. No‬
‭entanto, os livros em latim continuaram a manter a sua dignidade peculiar. Os novos gêneros aclimatados‬
‭em Itália se espalham: e assim acontece- de com a poesia épica e lírica, o conto, e os romances cavalheiros‬
‭ou sentimentais. A poesia petrarquista e platonizante encontrará cultivadores na França (Margarita de‬
‭Navarra) e Inglaterra (Henry Howard, * 1547) e seu representante em Castela será Garcilaso de la Vega‬
‭(1501-1536). O romance pastoral idílico partirá da Arcádia (1502) do italiano Jacopo Sannazaro‬
‭(1456-1530). A ficção de cavalaria exercerá influência acentuada, com títulos como o Orlando furioso‬
‭(1516), poema épico de Ludovico Ariosto (1474-1533), baseado nas lendas de Carlos Magno; ou o Amadís‬
‭de Gaula (1508) de Rodríguez de Montalvo, vizinho de Medina del Campo. Em Portugal, deve-se a Luís de‬
‭Camões (1524-1580) o poema épico Os Lusíadas (1572), sobre as navegações e descobertas portuguesas,‬
‭numa tentativa de emular a Eneida de Virgílio. Em Castela, narrações modernas de singular difusão são La‬
‭Celestina (1499) e El Lazarillo de Tormes (1554), entre dramáticas e costumbristas. Na França, vale‬
‭ressaltar a originalidade jocosa, satírica e mordaz da narrativa de François Rabelais (1494-1553) em seus‬
‭Pantagruel e Gargantua. Por sua vez, a história transborda as limitações das crônicas e mergulha na‬
‭análise crítica dos fatos, ao modo da História Florentina (1532) de Maquiavel ou a História da Itália (1540)‬
‭de Guicciardini.‬

‭3.4 Humanistas Singulares‬

‭ historiografia tradicional tem vindo a apontar a existência de dois renascimentos humanistas: o‬


A
‭italiano, mais spaganizante, e outro nórdico, ligado às figuras de Erasmo e Vives. Embora simultaneamente‬
‭os conhecedores tenham difuminado as diferenças entre os dois, considerando que o Humanismo italiano‬
‭não perdeu de vista a tradição cristã e os Padres da Igreja, é verdade que o Humanismo norte-alpino esteve‬
‭mais comprometido com as letras sagradas e, neste sentido, pode ser caracterizado como um «Humanismo‬
‭cristão». Ou seja, no norte da Europa o movimento humanista tende a coincidir com um esforço‬
‭generalizado de reforma da Igreja, e isso antes e depois de Lutero. Pelo contrário, na Itália, o Renascimento‬
‭apresenta aspectos de maior preocupação formalista e estética.‬
‭O modelo do humanista do Norte é Desidério Erasmo, que viveu entre 1469 e 1536. Nasceu em‬
‭Roterdão (Holanda) e foi educado nos círculos de Irmãos da Vida Comum. Foi cânone de Santo Agostinho,‬
‭mas em 1493 abandonaria a vida conventual como secretário do bispo de Cambrai. Completou estudos em‬
‭Paris a partir de 1495 e em Oxford fez amizade com Colet e Moro. Viajou por uma Europa sem fronteiras,‬
‭ao calor de suas preocupações eruditas e das possibilidades de uma cosmopolita república das letras:‬
‭Oxford (1499-1500) (1505-1506); Cambridge (1509-1514): Ita- lia (1506-1509); Flandres e Lovaina‬
‭(1502-1504) (1517-1521). De 1521 a 1529, no meio do conflito luterano, estabelece-se em Basiléia, onde‬
‭morrerá em 1536, depois de ter passado alguns anos em Friburgo. Por assinalar algum ano, podemos‬
‭escolher 1516 como significativo da influência de Erasmo em toda a Europa: em Espanha, Cisneros‬
‭pretende associá-lo aos trabalhos da Poliglota de Alcalá; e em Roma o Papa Leão X aceitará a sua‬
‭dedicatória do Novo Testamento.‬
‭Entre as obras de Erasmo destacam-se‬‭Os Adágios‬‭(1500), provérbios clássicos explicados, com‬
‭diversas edições, adições e revisões contínuas. Em 1503 publicou em Lovaina o‬‭Manual do Cavaleiro‬
‭Cristão‬‭, uma das obras mais lidas do primeiro quarto do século XVI. De 1516 data a edição bilíngue do‬
‭Novo Testamento‬‭, já que o domínio linguístico de Erasmo, embora fosse prioritariamente latino, alcançava‬
‭também o grego. Neste sentido, Erasmo dedicou boa parte do seu tempo à crítica textual e à edição de‬
‭Padres da Igreja. Desta forma, difundiu o método crítico-filológico aplicado a textos clássicos, à Sagrada‬
‭ scritura e aos Padres. Em 1524 lançou contra o pessimismo luterano todo um manifesto do otimismo‬
E
‭humanista‬‭, do livre arbítrio‬‭, ao qual Lutero responderia‬‭com o irado‬‭do arbítrio escravo‬‭.‬
‭Erasmo não ou foi um homem de ação, mas de pensamento. É nos apresentado sempre como uma‬
‭inteligência com capacidade de ironia, ambígua, insinuante e sofisticada. Independente, indeciso e‬
‭complexo, suas nuances temperadas o afastam de qualquer extremismo simplificador. A elegância e fluidez‬
‭de seu idioma latino o tornou famoso, e a imprensa contribuiu de forma notável para isso. Ele tentou‬
‭harmonizar a fé cristã com o mundo da Antiguidade clássica na linha de um Humanismo cristão. Pretendia‬
‭uma religiosidade depurada, aberta a todos os estados, preocupada com os aspectos morais e distantes de‬
‭rituais excessivos e demasiado externos. A sua posição resulta Cristocêntrica e evangélica, com críticas à‬
‭escolástica («áridas e estéreis sutilezas»), ao monacato formal e às superstições populares. Propende,‬
‭neste sentido, a uma simplificação da dogmática. Nunca quebrou os seus laços com as hierarquias‬
‭eclesiásticas estabelecidas, pois como ele próprio disse «suportava a Igreja».‬
‭A morte de Erasmo em 1536 é uma data simbólica após a qual o Renascimento cosmopolita,‬
‭conciliador e pacifista vai dando lugar às divisões confessionais e religiosas da segunda metade dos‬
‭quinhentos. A terceira via erasmiana cedeu no Norte o Protestantismo radical, que o acusou de covarde, e‬
‭foi sobrecarregada no Sul pela reafirmação de aspectos tradicionais de um Catolicismo que incluiu suas‬
‭obras no Índice. O grande humanista não teve a «velhidade tranquila» que Luis Vives lhe desejasse em‬
‭1534. Ao não tomar um partido claro pelos católicos, teve de deixar Lovaina para defender a sua‬
‭independência. E em 1529 será obrigado a exilar-se à Basileia, ao implantar-se nesta cidade a reforma‬
‭protestante. Doente e velho, mais desiludido, assistiu impotente ao desmantelamento dos seus ideais de‬
‭concórdia e tolerância. Os tempos áureos do Humanismo pareciam ter desaparecido.‬

‭4. Disgregação do Renascimento‬

‭4.1 As letras e as Artes‬

‭ em, o Renascimento, um movimento de restauração da Antiguidade clássica, minoritário em suas‬


B
‭origens, se propaga e se expande, vai perdendo unidade e se dissolvendo gradualmente. Vale a pena falar,‬
‭neste sentido, de um Renascimento tardio que alguns autores chamaram de Maneirismo e outros‬
‭interpretaram como um primeiro Barroco. O quadro geral foi alterado, e a Europa da segunda metade do‬
‭século XVI aparece dividida em blocos confessionais confrontados, que são salpicados de antagonismos‬
‭políticos. Seja qual for a periodização que adotamos, já haviam sido atenuadas, de maneira evidente, as‬
‭melhores harmonias do sonho do Humanismo.‬
‭Entre os homens de letras e os pensadores, algumas tendências são acusadas. As guerras civis e‬
‭religiosas impulsionaram o retorno para atitudes racionais de retirada e resistência, favorecendo o próspero‬
‭ressurgimento do estoicismo. Isso acontece com Justus Lipsius (1547-1606), humanista flamengo, cujo‬
‭estoicismo cristão assume a influência de Erasmo para os novos tempos agitados. Houve também os que‬
‭se entregaram à erudição crítica, e outros procuraram novos caminhos e certezas nas ciências ocultas, na‬
‭tradição hermética e nos estudos de filosofia natural. A ambiguidade desta fase pode ser refletida,‬
‭singularmente, no caso de Michel de Montaigne (1533-1592), que foi considerado renascentista, maneirista‬
‭e até barroco. Parece ser um Epígono Renascentista, mas que acentua o seu distanciamento cético diante‬
‭de muitos dos valores e garantias do primeiro Humanismo triunfante.‬
‭Na Itália, e no que diz respeito às artes plásticas, o trânsito do alto Renascimento para o‬
‭Maneirismo parece marcar-se a partir da década de 1520. as circunstâncias políticas e sociais alteraram-se‬
‭e a liberdade das cidades-estado foi substituída por um clima aristocrático e principesco. Por isso, nos‬
‭encontramos agora com um Renascimento mais sofisticado, mais caprichoso, estilizado e cortesão. Por‬
‭outro lado, dentro da dinâmica dos estilos artísticos, reage-se diante da perfeita correção acadêmica da‬
‭etapa anterior. As normas clássicas são transgredidas, e fazem a sua aparição na originalidade, o capricho‬
‭lúdico, a fantasia e as incorreções. Atitudes que não se generalizaram em outros países até os anos oitenta‬
‭de quinhentos.‬
‭Na arquitetura abre o caminho para a «maneira» pessoal na interpretação da linguagem formal‬
‭clássica. Jacopo Sansovino (1486-1570) realiza, entre as suas obras, a Biblioteca de São Marcos‬
‭(1536-1553). Trata-se de um rico edifício de lojas abertas com arcos dóricos, jônicos e fusão de arquitetura‬
‭e escultura, tendendo a um certo maneirismo decorativo. Por sua vez, Miguel Anjo, já na sua ancião, revela‬
‭ordens e elementos do classicismo com liberdade e fantasia, por exemplo, na Porta Pie de Roma (1561).‬
‭4.2 Impressões da europa católica‬

‭Para a segunda metade de quinhentos, a cultura cosmopolita do Humanismo foi reinterpretada no‬
c‭ aldeirão das Reformas religiosas enfrentadas: Luteranismo, Calvinismo, Catolicismo. Nos países católicos,‬
‭o renascimento tardio que temos vindo a considerar sobrepõe-se ao que se designa por cultura barroca‬
‭inicial. Fernand Braudel ligou estreitamente esta cultura barroca ao mundo do Mediterrâneo, através da‬
‭irradiação da Roma Católica e da Monarquia Hispánica, valedora política da Contra-Reforma. A‬
‭periodização restrita situa-o, frequentemente, entre 1600-1620 e 1680; mas, num sentido amplo, o Barroco‬
‭pode colorir a segunda metade do século XVI, tudo depende do ponto de vista que adotamos. Para o‬
‭conjunto de quinhentos, Bartolomé Bennassar propôs a contraposição entre a primeira metade, expansiva e‬
‭humanista («o belo século XVI»), e a segunda metade, crispada e conflituosa ao quebrar os equilíbrios‬
‭(«época dos distúrbios»). Neste sentido, o Concílio de Trento (1545-1563) marca um marco na‬
‭reestruturação cultural e religiosa desta Europa católica.‬
‭Em Espanha, por exemplo, e para efeitos pedagógicos, os quinhentos poderiam ser divididos em‬
‭duas metades separadas pelo mítico ano de 1559. Nessa data concorrem os autos de fé de Valladolid, o‬
‭índice de livros proibidos do inquisidor Valdés, e a proibição dos estudos em universidades estrangeiras. Na‬
‭primeira metade do século XVI, em contraste com o estilo liberal Erasmista da primeira metade, reafirma-se‬
‭na segunda metade do século XVI um estilo neoescolástico de cariz tradicional. Embora seja conveniente‬
‭matizar as polarizações valorativas entre antigos e modernos, que tendem a desvalorizar o conjunto da‬
‭neoescolástica como supostamente conservadora. Figuras como Frei Luís de León (1527-1591) ou San‬
‭Juan de la Cruz (1542-1591) testemunham o peculiar «Renascimento tardio» da segunda metade dos‬
‭quinhentos espanhóis, no qual vai produzir um verdadeiro apogeu da literatura religiosa. A partir de 1570‬
‭talvez se possa falar em Espanha de um Barroco precoce. Na Itália, nesta época, autores como Torquato‬
‭Tasso (1544-1595), com seu poema épico sobre Jerusalém libertada (1575), são também exemplo das‬
‭novas conciliações entre classicismo e poesia cristã.‬
‭Neste contexto, os novos humanistas católicos da Contra-Reforma serão os jesuítas, com as suas‬
‭redes colegiais de ensino concebidas para a reconquista da Europa. O novo programa pedagógico é‬
‭organizado desde 1586 na «Ratio studiorum». Este humanismo jesuíta incorporou o ensino dos autores‬
‭clássicos à formação cristã e escolástica, e também deu espaço aos conhecimentos científicos relacionados‬
‭com as novas descobertas e a matemática.‬

‭Epílogo‬

‭Para toda a Europa, há autores que tendem a fechar o pleno Renascimento no primeiro quarto do‬
s‭ éculo xvi, ou na sua metade, antes do Concílio de Trento; outros remontam-no até 1600 e até 1620. Tudo‬
‭depende dos aspetos e territórios que consideramos.‬
‭Talvez, uma mudança de paradigma em relação às atitudes do Renascimento e do Humanismo só‬
‭ocorreu com a progressiva implantação da chamada Revolução Científica do século XVII, através da obra‬
‭de autores como Galileu, Descartes e Newton. Diante dos textos escritos e das referências de autoridade,‬
‭dá-se lugar à experiência e à observação sistemática. Uma nova imagem do universo é imposta, com uma‬
‭terra descentralizada e movimentos celestes sujeitos às leis da mecânica. E neste quadro, a nova cultura‬
‭está se afastando das referências da Antiguidade Clássica.‬
‭Capítulo 03‬

‭Reformas religiosas‬
‭A cristandade ocidental dividiu-se em várias igrejas inglesas, cada uma das quais se considerava‬
‭ utêntica e herética em relação às outras. Imbuídas de zelo reformador e estimuladas pela sua rivalidade‬
a
‭mútua, as diferentes confissões, a partir dos seus fundamentos dogmáticos particulares, procuraram moldar‬
‭a vida dos seus fiéis em todos os seus aspectos. A família, as relações económicas e de poder, as‬
‭manifestações festivas e artísticas, etc. Em todos estes aspectos, católicos e luteranos, calvinistas e‬
‭anglicanos, para citar apenas as confissões majoritárias no final do século XVI, acabaram por se diferenciar‬
‭umas das outras. No seu antagonismo mútuo, mais expansivo entre calvinistas e católicos do que entre‬
‭calvinistas e católicos do que entre luteranos e anglicanos, todas as confissões recorreram à ajuda das‬
‭autoridades seculares. Formaram-se assim territórios ingleses territoriais, num processo de‬
‭"confessionalização" que, por sua vez, serviu para reforçar e definir os novos Estados da era moderna.‬

‭1. Reforma e contra-reforma - A fragmentação religiosa do Ocidente‬

‭No início do século XVI, muitos reclamavam uma profunda reforma da Igreja. Como em ocasiões‬
‭ recedentes, isso pediu a purificação dos abusos e o aperfeiçoamento da vida cristã através do retorno à‬
p
‭doutrina primitiva, mas mantendo a unidade e a continuidade na fé. No entanto, logo resultou-se que Lutero,‬
‭Zwinglio e Calvino, entre outros, tinham iniciado mudanças profundas que rompiam com Roma e que‬
‭propunham novidades radicais. Eles o fizeram convencidos de que era preciso retificar velhos erros em que‬
‭o papado insistia, ao voltar ao autêntico ensinamento de Jesus Cristo, adulterado por adição que nada‬
‭tinham a ver com o evangelho.‬
‭Por isso, chamavam-se a si próprios "reformados" ou "evangélicos" e, desde o século XIX, o termo‬
‭"reformado" tem sido utilizado univocamente para englobar todos estes movimentos que formaram a nova‬
‭Inglaterra desde 1517. Os "luteranos", designados como "protestantes", constituíram o grupo maioritário‬
‭inicial, mas em poucas décadas os "zwinglianos", os "anabatistas", os "anglicanos" e os "calvinistas" foram‬
‭claramente diferenciados deles e uns dos outros. E, ao longo do tempo, a fragmentação da reforma e a sua‬
‭adaptação em diferentes países enriqueceram as denominações com novas nuances: "puritanos" em‬
‭Inglaterra, "presbiterianos" na Escócia, "huguenotes" em França.‬
‭Pelo contrário, a parte da cristandade que permaneceu unida em torno do papado preferiu‬
‭reconhecer-se como católica, proclamando assim a sua universalidade missionária expansiva, mesmo que‬
‭os seus inimigos lhes chamassem "papistas". Também empreendeu a sua reforma interna e tentou‬
‭reconquistar por todos os meios, mesmo violentos, o terreno ocupado por aqueles que, do seu ponto de‬
‭vista, eram meros hereges. Para dominar este processo complexo, que incluía tanto a renovação interna do‬
‭catolicismo como a sua reação político-militar, o termo "Contra-Reforma" foi cunhado na Alemanha do‬
‭século XIX.‬
‭Alguns autores católicos, no entanto, consideram esse conceito insuficiente e enganador e preferem‬
‭o termo "Reforma Católica" para sublinhar que foi muito além de uma simples reação negativa‬
‭antiprotestante. A reforma católica foi uma "pré-reforma" e, durante algum tempo, decorreu em simultâneo‬
‭com a reforma luterana. No entanto, também é verdade que o Concílio de Trento se desenvolveu tendo em‬
‭consideração o estabelecimento das igrejas protestantes contra as quais a sua ortodoxia tinha de ser‬
‭afirmada. Do mesmo modo, as igrejas protestantes inglesas acabaram também por se definir "a contrario"‬
‭umas contra as outras ou contra o catolicismo, que combatiam com armas e violências semelhantes no‬
‭tabuleiro de xadrez da política.‬
‭Foi um século de renovações e reações religiosas, de reformas e contrarreformas, que se‬
‭sedimentaram em várias etapas. Não foi até a década de 1540 que as posições foram completamente‬
‭bloqueadas, e esperava-se que as propostas ousadas de Lutero pudessem ser redirecionadas em um‬
‭concílio ao qual muitos sinceramente apelaram. O fracasso do Colóquio de Ratisbona (1541) e a‬
‭convocação do Concílio de Trento‬
‭(1545) mostrou que a reunificação era impossível. Até então, a Reforma havia conquistado grande parte da‬
‭Europa Central e do Norte. A partir da década de 1560, a reação católica e a disseminação do calvinismo‬
‭como uma segunda Reforma levaram a uma série de guerras religiosas, principalmente na Holanda, na‬
‭França e no Império, que só foram resolvidas em 1648.‬
‭2. A necessidade, os desejos e o interesse das reformas religiosas‬
‭As causas que levaram à desagregação da cristandade não são hoje, como há um século, objeto de‬
‭polémicas ideológicas. A corrupção de Roma ou as obsessões pessoais de Lutero já não são aceitáveis na‬
‭historiografia protestante ou católica. No entanto, as deficiências morais e eclesiásticas encorajaram e‬
‭exacerbaram os apelos a uma reforma "in capite et in membris", tanto em Roma como entre os‬
‭eclesiásticos.‬

‭2.1 Abusos morais e eclesiásticos‬

‭ s males da Igreja eram muitos e antigos, e foram talvez mais conscientemente denunciados do‬
O
‭que nunca. Nas paróquias rurais, o clero carecia de preparação intelectual e de autoridade moral (20% de‬
‭concubinas no Império) para doutrinar e admoestar os seus paroquianos; incapaz de responder às suas‬
‭preocupações espirituais mais profundas, limitava-se a administrar uma série de ritos, muitas vezes mal‬
‭compreendidos e vividos. Muitos regulares eram negligentes na vivência das regras das suas ordens, não‬
‭conseguindo viver a vida comunitária em pobreza, obediência e castidade. Mais graves eram as falhas dos‬
‭bispos, muitos dos quais estavam ausentes das dioceses que deveriam pastorear, empenhados em‬
‭acumular lucros para aumentar os seus rendimentos e em viver vidas mundanas nas lutas políticas da‬
‭época. E, no topo, os papas tinham perdido a sua autoridade ao ponto de se tornarem uma fonte de‬
‭escândalo. A voracidade fiscal e a arbitrariedade da Cúria Romana eram queixas comuns em todas as‬
‭igrejas. A Sé de Pedro era ocupada por papas mais preocupados com as belas-artes, a defesa dos seus‬
‭Estados ou a prosperidade dos seus sobrinhos do que com a condução de reformas.‬
‭reforma.‬
‭A cristandade medieval tinha provavelmente passado por períodos de padrões morais e intelectuais‬
‭mais baixos do clero, e de maiores abusos de todos os tipos, sem se quebrar. Críticos tão severos como‬
‭Erasmo permaneceram ligados à Igreja de Roma e, no entanto, quando os abusos foram corrigidos, os que‬
‭tinham saído não regressaram. Lutero e os reformadores protestantes responderam a uma preocupação‬
‭religiosa profunda: precisamente aquela que tornou a situação de laxismo disciplinar e moral mais dolorosa‬
‭do que nunca. Não impugnou os maus costumes", escreveu Lutero a Leão X (1520), "mas as doutrinas‬
‭ímpias". Parece evidente que uma "revolução religiosa" deve ser explicada por causas religiosas (L.‬
‭Febvre), que se somam numa crise espiritual tardo-medieval alimentada por diversos elementos, na qual a‬
‭personalidade excecional de Martinho Lutero atuou como precipitante (J. Lortz).‬

‭2.2 Anseios religiosos‬

‭A sociedade reclamava uma religiosidade mais autêntica e Lutero antecipou-se a Roma na resposta‬
(‭ J. Delumeau). Roma em dar uma resposta (J. Delumeau). A piedade popular do final da Idade Média‬
‭exagerava ao extremo os sentimentos de culpa perante o pecado, de impotência perante o demónio e o‬
‭mal, e de medo perante a justiça intransigente de Deus. O medo, evocado pelos ritos cristãos mas vivido‬
‭numa religiosidade natural, deu origem a comportamentos mais pagãos do que evangélicos, como todos os‬
‭reformadores tinham denunciado desde a antiguidade. A excitação perante certos profetismos apocalípticos,‬
‭visões e milagres; as manifestações trágicas de piedade (via-sacra, crucifixos); o medo do Purgatório e do‬
‭Inferno, que se procurava evitar com uma devoção desordenada a todo o tipo de relíquias, com a‬
‭intercessão especializada dos santos, através de indulgências e ritos penitenciais (procissões,‬
‭peregrinações, disciplinantes), favoreceram os abusos. Aproveitando esta procura popular de segurança‬
‭espiritual, estabeleceram-se negócios ilícitos, por exemplo, em torno das indulgências, e atitudes‬
‭supersticiosas.‬
‭Todos estes desvios da religiosidade popular foram fortemente denunciados pelos humanistas,‬
‭como Erasmo de Roterdão, mas sem oferecer uma alternativa acessível. Em certos meios urbanos, entre a‬
‭burguesia culta e abastada da Renânia, da Borgonha e do Norte de França, tinha-se enraizado uma‬
‭piedade pessoal muito diferente. A "devotio moderna" deveu-se muito a certos autores dos séculos XIV e‬
‭XV, como Tomás de Kempis, a quem se atribui uma Imitatio Christi muito difundida. As escolas promovidas‬
‭pelos "Irmãos da vida comum" e certas instituições religiosas contribuíram para a difusão de uma piedade‬
‭mais íntima do que externa, mais pessoal do que comunitária, mais direta e espontânea do que subordinada‬
‭às mediações eclesiais e aos moldes litúrgicos. Centrava-se na figura de Cristo, era otimista quanto às‬
‭possibilidades do homem no mundo e baseava-se na leitura da Bíblia e de livros de piedade.‬
‭O desenvolvimento da imprensa facilitou a difusão da Bíblia, tanto em latim como em edições‬
‭vernáculas. O desenvolvimento da crítica filológica de Lorenzo Valla e um melhor conhecimento das línguas‬
‭bíblicas (grego, latim, hebraico e aramaico) permitiram aos humanistas reler com novos olhos, sobretudo as‬
‭cartas de São Paulo, grande testemunha e teórico do cristianismo primitivo. São muitos os que, como‬
‭ utero, pensam que as fórmulas humanas devem ser derrubadas e que é necessário regressar a uma‬
L
‭religião mais autêntica. "Não procurei difundir a verdade evangélica contra as opiniões supersticiosas da‬
‭tradição humana", confessou Lutero ao imperador em 1520. A teologia do final da Idade Média, que se‬
‭refugiava na rivalidade estéril das escolas ("escolasticismo" de Tomistas, Escoceses, Nominalistas, etc.),‬
‭não servia para apoiar a fé, e havia um desprezo generalizado entre os reformadores e humanistas pelos‬
‭"teologastros" que semeiam confusão.‬

‭2.3 Interesses sociais e políticos‬

‭As propostas de Lutero foram concretizadas - e ele não foi queimado como herege como João Huss‬
‭ m século antes em Constança - porque se enraizaram num meio social e político que estava interessado‬
u
‭nas suas aplicações práticas.‬
‭Huss, um século antes, em Constança - porque se enraizaram num meio social e político que estava‬
‭interessado nas suas aplicações práticas. O desenvolvimento alcançado nesta época pelas novas forças‬
‭económicas (capitalismo) e sociais (burguesia) determinaria mudanças na ordem ideológica (religião),‬
‭dependente das duas anteriores, segundo a teoria marxista. Embora existam circunstâncias mais concretas‬
‭que explicam o sucesso ou o fracasso da Reforma.‬
‭O luteranismo era alimentado por um vivo nacionalismo anti-romano. O "germanismo" dos seus‬
‭humanistas, reavivando a resistência contra o Império Romano agressor, reforçou o sentimento de‬
‭indignação contra o despotismo exercido pelo papado no domínio da fiscalidade e dos benefícios. As‬
‭"Gravamina", ou queixas da "nação alemã", tantas vezes reclamadas pelo Imperador e pelos Dietas,‬
‭facilitaram a rutura com uma Roma sentida como "um pântano inesgotável de males" (U. von Hutten).‬
‭Lutero, que encarnou este espírito e procurou uma Reforma fundamentalmente alemã, tornou-se um‬
‭verdadeiro pai da pátria.‬
‭A implantação da Reforma numa cidade ou num território trouxe consigo mudanças de poder e de‬
‭riqueza, e foram muitos os que aproveitaram a oportunidade. A supressão das ordens religiosas (conventos‬
‭e mosteiros) e das confrarias que acompanhou a Reforma significou a transferência de muitos bens‬
‭imobiliários e rendas, que passaram para a posse ou gestão de outras mãos, e que foram utilizados para‬
‭diferentes fins. Não é de estranhar que os príncipes e os nobres tenham procurado enriquecer e, ao mesmo‬
‭tempo, aumentar o seu poder, controlando a nova igreja. O patriciado urbano adquiriu o controlo das antigas‬
‭instituições sociais e educativas de gestão privada.‬
‭É evidente que a Reforma triunfou com o apoio da autoridade secular, e que fracassou por causa da‬
‭sua oposição. No Império, embora o édito de Worms (1521) condenasse a heresia de Lutero, não havia‬
‭quem o fizesse cumprir; em Espanha, pelo contrário, Filipe II, apoiado pela Inquisição, reprimiu sem grande‬
‭dificuldade os primeiros surtos protestantes (1559).‬
‭(1559) sem grandes dificuldades. O anglicanismo foi iniciado e promovido pelos reis de Inglaterra, tal como‬
‭na Dinamarca e na Suécia foi a coroa que viu as vantagens de aceitar o luteranismo. Em muitas ocasiões, a‬
‭revolução política andou de mãos dadas com a mudança religiosa, como na Escócia, em 1560, ou em‬
‭França, entre 1559 e 1589.‬
‭Em ambos os casos, o poder das autoridades seculares sobre as respectivas Igrejas aumentou,‬
‭embora de formas diferentes nas esferas católica e protestante. Os reis de Espanha adquiriram um controlo‬
‭alargado da fé, com tudo o que isso implicava em termos de dominação social e cultural, através da‬
‭Inquisição (1478); graças ao "regio patronato", asseguraram a submissão do episcopado; e, através de‬
‭concessões pontifícias, beneficiaram largamente dos dízimos e de outras rendas eclesiásticas, sem‬
‭necessidade de chegar ao extremo da desamortização.‬

‭3. Denominações protestantes‬


‭De qualquer forma, a Reforma não pode ser compreendida sem a extraordinária personalidade de‬
‭Martinho Lutero, que condicionou os contornos essenciais da Reforma alemã, ou de outros reformadores‬
‭como Zwinglio - o Calvino. Mesmo que tenham tentado manter a unidade, os "protestantes" não tardaram a‬
‭dividir-se em igrejas inglesas diferentes e até rivais.‬

‭3.1 Lutero e o Luteranismo‬

‭ artinho Lutero (Eisleben, 1483-1546) nasceu no seio de uma família de camponeses abastados da‬
M
‭região da Turíngia; estudou filosofia nominalista na Universidade de Erfurt, antes de professar no convento‬
‭agostiniano dessa cidade (1505). Estudou teologia em Wittenberg, mas preferiu as línguas clássicas e‬
‭ensinou a Sagrada Escritura. É um homem apaixonado, por vezes exaltado; de extrema sensibilidade e‬
‭propenso à melancolia, mas também empreendedor e determinado. Identificou-se melhor com a sua missão‬
‭ rofética, como pregador popular de enorme sucesso, do que com a sua atividade de professor, embora‬
p
‭tenha produzido uma obra escrita. Mais do que um planejador sistemático ou um homem de consenso‬
‭diplomático, Lutero sentiu o carisma profético para interpretar as necessidades espirituais do seu tempo e‬
‭da sua nação.‬
‭Nem os arquétipos confessionais de Lutero como santo (protestante) ou como frade indigno‬
‭(católico), nem os argumentos psicológicos (falta de afeto familiar, libido excessiva, etc.) parecem explicar a‬
‭transformação que sofreu por volta de 1513-1516. Ele próprio, nas suas memórias, narra uma misteriosa‬
‭"experiência da torre" como o momento decisivo da sua conversão. Angustiado pelo problema da sua‬
‭própria salvação, com os escrúpulos de um homem sensível e exigente, desejoso de uma reforma na sua‬
‭Ordem e escandalizado após a sua viagem a Roma em 1511, parece ter sofrido uma profunda crise de‬
‭vocação e de fé. As epístolas de S. Paulo que explicava nas aulas, nomeadamente a carta aos Romanos,‬
‭deram-lhe a resposta: "O justo viverá pela fé" (Rm 1,17). Em contraste com o rigor da lei judaica -‬
‭semelhante à intransigência do ocamismo em que tinha sido formado, que exige o esforço do cumprimento‬
‭para merecer a salvação - Lutero descobriu o dom da graça, da gratuidade absoluta da misericórdia com‬
‭que Deus redime o pecador em Cristo.‬
‭Forjou então o núcleo da sua doutrina: a salvação "só pela graça" e o valor salvífico nulo das obras.‬
‭O homem é simultaneamente justo, porque os méritos do sangue de Cristo lhe são diretamente aplicados‬
‭através da sua fé pessoal; e também pecador, porque os seus pecados não são apagados e continuam a‬
‭condicionar as suas ações. A mediação da Igreja, que administra os sacramentos e as indulgências, é,‬
‭portanto, ineficaz. As suas 95 "Teses sobre as Indulgências" (1517), que simbolizam o início da Reforma,‬
‭foram um trabalho académico teologicamente inovador, mas conduziram a uma rutura com Roma. Lutero‬
‭questiona a autoridade do Papa sobre a administração da graça e é convidado a retratar-se (1518), mas‬
‭reafirma-se no ambiente anti-romano da época. As ideias de um frade alemão sobre um assunto tão‬
‭obscuro não preocuparam Roma, embora o Papa Leão X tenha condenado 41 das suas proposições como‬
‭heréticas através da bula Exurge Domine (1520). A Dieta Imperial de Worms (1521), que se reuniu pela‬
‭primeira vez com o novo imperador Carlos V e foi confrontada com questões muito complexas, condenou‬
‭Lutero ao exílio e à queima das suas obras.‬
‭Mas nada disso adiantou: a bula foi destruída publicamente em Wittemberg e Lutero conseguiu‬
‭escapar à condenação graças à proteção do seu príncipe, o Eleitor Frederico, o Sábio, da Saxónia. No calor‬
‭das polémicas destes anos (1520 e 1521), Lutero formulou as suas principais ideias em livros curtos e‬
‭simples, que a imprensa difundiu junto de um público bem-disposto: O Papado de Roma, À Nobreza Cristã‬
‭da Nação Alemã, Sobre o Cativeiro Babilónico da Igreja, Sobre a Liberdade do Cristão. Mas ele não era um‬
‭homem sistemático e escreveu sob a influência de polémicas teológicas - com Zwingli sobre a Eucaristia,‬
‭com Erasmo sobre o livre arbítrio - e dos acontecimentos políticos daqueles anos, a revolta dos cavaleiros‬
‭de 1522 e a "guerra dos camponeses" de 1524-1525. Lutero foi assistido por um grande humanista, Filipe‬
‭Melanchthon, que preparou os primeiros compêndios sistemáticos do luteranismo, o Loci communes‬
‭theologicarum (1521) e a Confessio Augustana, que apresentou à Dieta de Augsburgo em 1530 como um‬
‭texto de concórdia. Nessa altura, começaram a ser chamados de Protestantes.‬
‭Do princípio radical de que cada homem é salvo apenas pela sua "fé" e que as boas obras não têm‬
‭valor, derivam as principais características da religião luterana:‬

‭ . uma visão pessimista do homem‬‭. O peso do pecado reduz a sua liberdade de escolha entre o bem e o‬
1
‭mal, entre a graça que Deus oferece e as tentações do demónio. Na sua resposta a Erasmo (De libero‬
‭arbitrio, 1524), Martinho Lutero (De servo arbitrio, 1525) aproxima-se da ideia de predestinação que Calvino‬
‭desenvolverá mais tarde: se o homem não pode escolher entre o bem e o mal, então é o próprio Deus que‬
‭separa aqueles que justifica daqueles que condena.‬

‭ . Uma relação mais pessoal, espiritual e direta com Deus‬‭. A Palavra de Deus está no centro: é a Bíblia que‬
2
‭fala a cada um dos fiéis em consciência, sem precisar da orientação interpretativa da tradição (os Santos‬
‭Padres da Igreja primitiva) e do magistério (papa, bispos, concílios). Perante a Palavra, os sacramentos‬
‭perdem importância e mudam de natureza: são meros sinais salvíficos, que não conferem a graça por si‬
‭mesmos, mas apenas na medida da fé de quem os recebe. Além disso, ficam reduzidos aos que se fundam‬
‭diretamente na Escritura, principalmente o Batismo e a Eucaristia (esta última como mera comemoração e‬
‭não como reprodução real do único sacrifício de Cristo), e também a Confissão. Os santos e Nossa Senhora‬
‭já não são mediadores que protegem, mas modelos a imitar; as peregrinações, as devoções às relíquias e‬
‭as próprias imagens religiosas (indulgências) perdem o sentido.‬

‭ . Uma Igreja mais igualitária.‬‭Inicialmente, Lutero concebeu-a como a comunidade espiritual daqueles que‬
3
‭partilham a mesma fé e na qual todos são essencialmente iguais através do batismo. Aqueles que prestam‬
‭ lgum serviço à comunidade como "pastores-res", ensinando a Palavra e administrando os sacramentos,‬
a
‭não pertencem assim a uma "ordem distinta e podem casar-se".‬

‭ . Uma liturgia mais participativa‬‭. Para o povo, a celebração da "missa alemã" foi o aspeto mais evidente da‬
4
‭Reforma: a língua vernácula substituiu completamente o latim; a comunhão era feita com pão e vinho; a‬
‭proclamação da Palavra e a pregação receberam uma ênfase especial; o povo participava no canto dos‬
‭salmos e dos textos bíblicos, muitos dos quais foram musicados pelo próprio Lutero.‬

‭ pregação luterana tocou fundo entre os descontentes e ambiciosos do Império, e as ideias de‬
A
‭liberdade e igualdade cristã acompanharam a mobilização violenta de camponeses e cavaleiros nos‬
‭primeiros anos. A liberdade e a igualdade cristã acompanharam a mobilização violenta de camponeses e‬
‭cavaleiros nos primeiros anos do Império. A baixa nobreza, empobrecida pela inflação e desvalorizada pelas‬
‭novas técnicas de guerra, aspirava a libertar-se da tutela dos príncipes territoriais através da apropriação‬
‭das terras e das receitas eclesiásticas: mas a revolta dos cavaleiros do vale do Reno, liderada por U. von‬
‭Hutten e F. von Sickingen, fracassou. F. von Sickingen fracassou (1522-1523). Do mesmo modo, uma‬
‭grande insurreição camponesa levantou o terço sul do Império, com ramificações para o norte. As suas‬
‭antigas reivindicações anti-feudais foram expressas de uma nova forma, sob a reformulação ideológica de‬
‭pastores como T. Müntzer, mas foi sangrentamente esmagada pelos exércitos dos príncipes ("guerra‬
‭camponesa" de 1524-1525). Lutero tinha apelado "à nobreza cristã da nação alemã" (1520) para apoiar a‬
‭Reforma, e estimava o campesinato como um reservatório incorrupto de virtudes cristãs. Mas a componente‬
‭de anarquia e violência de ambos os movimentos levou-o a mudar radicalmente e confiou aos poderes‬
‭constituídos a implementação da Reforma sob a forma de "estados-igreja" (Landeskirchen), muito diferente‬
‭daquilo com que tinha sonhado no início.‬
‭Entre 1520 e 1540, a Reforma Luterana difundiu-se rapidamente no Império, mais cedo nas cidades‬
‭do que nos senhorios territoriais. Em 1535, 51 das 85 cidades livres tinham-na aceite sem tensões graves, a‬
‭começar por Estrasburgo (1524). (1524). Em muitos casos, os próprios magistrados, organizando uma‬
‭disputa pública ou chamando pastores reformados, introduziram-na através de um simples ato‬
‭administrativo. Da mesma forma, os príncipes territoriais reivindicavam o "us refor-mandi" como responsável‬
‭perante Deus pela salvação dos seus súbditos e procediam à aplicação da Reforma sob a sua supervisão.‬
‭Em 1525, Alberto de Hohenzollern, Grão-Mestre da Ordem Teutónica, secularizou o Ducado da Prússia e‬
‭iniciou a incorporação pacífica de outros territórios na Reforma: Hesse (1526), Saxónia eleitoral e du-cal,‬
‭Brandeburgo (1539), etc. Em 1542, pela primeira vez, a Reforma prevaleceu pela força, com o aplauso de‬
‭Lutero, no ducado de Braunschweig.‬
‭As autoridades emitiam "ordenações eclesiásticas" (Kirchenordnungen) para regular o culto e‬
‭utilizavam o sistema de "visitações" para controlar a sua aplicação, assumindo em ambos os casos poderes‬
‭episcopais. Isto foi feito em 1$27 pelo Eleitor da Saxónia; em 1538, João Frederico da Saxónia confiou a um‬
‭"consistório", constituído por teólogos e juristas, a administração da justiça em questões eclesiásticas e o‬
‭governo da própria Igreja. Este modelo foi amplamente imitado por outros príncipes do Império. Com a‬
‭mudança, a posição social dos pastores melhorou, sendo menos numerosos, mais instruídos e mais ricos‬
‭do que antes, mas à custa de uma estreita dependência da autoridade. Exceto nos primeiros momentos,‬
‭eram os magistrados das cidades e os príncipes territoriais que nomeavam os pastores e os pagavam com‬
‭as antigas receitas eclesiásticas, agora administradas pelo poder civil.‬
‭Os grandes príncipes estavam cientes de que a Reforma implicava uma importante transferência de‬
‭riqueza e poder, e que o novo modelo de igreja os fortalecia contra o imperador. Mas a esperança de chegar‬
‭a um acordo religioso que evitasse a ruptura da Igreja e a quebra da paz na Alemanha também foi mantida‬
‭viva. Até o de Ratisbona, em 1541, vários "colóquios" foram realizados nos quais os teólogos discutiam‬
‭livremente, os reformadores entre si e com aqueles que mantinham as doutrinas tradicionais, e até mesmo‬
‭com os núncios papais. Mas os acordos eram difíceis, mesmo entre os reformados: em Marburg (1529),‬
‭Zwingli e Lutero não entendiam da mesma forma a presença de Cristo na Eucaristia.‬
‭Nessas décadas de indefinição dogmática, todos apelaram por um concílio universal que‬
‭restaurasse a unidade, mas que foi adiado justamente pela desconfiança de todos os envolvidos. O papa‬
‭temia o ressurgimento das teses conciliares e não queria fortalecer o imperador na Itália, resolvendo seus‬
‭problemas internos na Alemanha; ele concordou em abordar questões dogmáticas, mas temia perder o‬
‭poder se enfrentasse mudanças organizacionais como o imperador pedia. Os príncipes reformados temiam‬
‭perder tudo o que haviam conquistado e queriam um "alemão" em vez de um concílio ecumênico. Carlos V.,‬
‭a fim de manter a paz imperial que lhe permitiria lutar contra a França e os turcos, estava disposto a fazer‬
‭grandes concessões disciplinares (casamento de sacerdotes, comunhão sob ambos os tipos, liturgia em‬
‭vernáculo).‬
‭A afirmação das igrejas protestantes no Império foi determinada por complexas vicissitudes militares‬
‭ políticas. Em 1531, 7 príncipes do norte e centro da Alemanha, e 11 cidades, assinaram uma liga‬
e
‭defensiva em Smalkalde. A liga dos "reformados" continuou a crescer enquanto Carlos V esteve envolvido‬
‭na defesa de Viena (1532), nas guerras com a França (1536-1538, 1542-1544) e no norte da África (Túnis,‬
‭1535, Argel, 1541). Em 1539 incluía mais de 29 cidades e 15 príncipes, incluindo os eleitores da Saxônia e‬
‭Brandemburgo. Apenas as grandes casas de Wittelsbach, duques de Babiera, e de Habsburgo, arquiduques‬
‭da Áustria e imperadores, cujos domínios se estendiam ao sul, permaneceram leais a Roma.‬
‭Na realidade, o confronto confessional desses anos era apenas um aspecto da rivalidade dos‬
‭grandes senhores com o imperador e entre si. Em um momento propício, Carlos V foi capaz de derrotar‬
‭militarmente a Liga Protestante na Batalha de Mühlberg (1547), aproveitando a ambição territorial de um‬
‭Maurício da Saxônia que abandonou momentaneamente os protestantes. Mas ele não conseguiu recompor‬
‭a ordem política e religiosa no Império em favor de uma única autoridade suprema e católica: a traição do‬
‭próprio duque da Saxônia, que se aliou a Henrique II da França, revitalizou a Liga Protestante, que infligiu‬
‭uma amarga derrota a Carlos V.‬
‭A paz religiosa em Augsburgo (1555) entre luteranos e católicos excluiu todos eles. as outras‬
‭confissões (zwinglianos, anabatistas, calvinistas). Baseava-se em um novo princípio do "territorialismo‬
‭religioso" (J. Leclerc): príncipes e cidades independentes podiam escolher a forma de religião e impô-la a‬
‭seus súditos ("cuius regio, eius religio"); Ao mesmo tempo, procurou-se estabelecer mecanismos de‬
‭"reserva eclesiástica" que impedissem a passagem de novas terras para a Reforma, embora esta não tenha‬
‭sido aplicada sem violência.‬
‭O luteranismo se espalhou simultaneamente nas duas grandes monarquias bálticas. O‬
‭estabelecimento da Reforma na Suécia acompanhou sua emancipação do reino da Dinamarca-Noruega sob‬
‭Gustavo Vasa (1523). A Dieta de Vasteras (1527) trouxe um amplo acordo entre a coroa sueca e a nobreza‬
‭sobre a secularização da propriedade eclesiástica. Quase não houve resistência à ruptura com Roma, seja‬
‭entre o clero ou o povo, em grande parte porque as inovações litúrgicas e sacramentais foram mínimas: até‬
‭1593, a Igreja sueca não aceitou a "Confessio Augustana" de 1530, e isso como uma reação à tentativa de‬
‭recatolicizar o país de Sigismundo Vasa, por alguns anos rei da Polônia e da Suécia. E na‬
‭Dinamarca-Noruega, o luteranismo triunfou definitivamente na Dieta de Copenhague (1536), quando‬
‭Cristiano III prevaleceu em uma guerra civil contra seu rival Cristóvão de Oldemburgo, apoiado por forças‬
‭católicas.‬

‭3.2 Zwingli. Os Anabatistas e os Reformadores Radicais‬

‭ utero liderou a ruptura com Roma e estabeleceu os princípios doutrinários básicos da Reforma.‬
L
‭Mas, na convulsão dos primeiros anos, outros reformadores fizeram propostas dogmaticamente mais‬
‭radicais e mais revolucionárias em termos de suas repercussões sociais.‬
‭Ulrich Zwingli (1484-1531) e a Reforma na Suíça. Contemporâneo de Lutero, acumulou uma longa‬
‭experiência pastoral entre os soldados mercenários, como pároco de Glarus, e com peregrinos ao santuário‬
‭de Einsielden, quando foi chamado como pregador para Zurique (1518). Sua formação humanista e as‬
‭críticas de Erasmo à Igreja, mais do que outras experiências pessoais, levaram-no a aceitar as ideias‬
‭luteranas e, em 1523, implementou a reforma com o apoio da Câmara Municipal.‬
‭Zwingli atuou em um contexto sociopolítico muito diferente do alemão. A Suíça era uma‬
‭confederação de treze cantões, 5 rurais e 8 mais urbanos (Berna, Friburgo, Basileia, etc.), além de outros‬
‭territórios associados e dependentes. Os quatro bispos não tinham poderes temporais, nem grandes‬
‭príncipes territoriais ou uma nobreza forte, mas havia sólidas oligarquias urbanas e rurais acostumadas a‬
‭formas comunitárias e federais de governo. A influência do humanismo entre suas elites era muito‬
‭perceptível naquele país aberto onde Erasmo se refugiou (Basileia, 1536). Por todas essas razões, suas‬
‭propostas eram, doutrinariamente, mais radicais do que as de Lutero, e seu modelo de igreja era muito‬
‭diferente.‬
‭Nos aspectos formais, Zwingli chegou a remover todo tipo de imagem, suprimindo também sinos,‬
‭velas, até cantando; Os pastores não usavam paramentos litúrgicos, mas aqueles comuns na administração‬
‭dos sacramentos, no vernáculo, é claro. Dogmaticamente, ele defendia a única autoridade da Bíblia e a total‬
‭ineficácia das obras, mas de forma mais radical e pessimista do que Lutero:‬
‭Deus predestina aqueles que devem ser salvos, a quem Ele enche com sua graça. Ele reconheceu apenas‬
‭dois sacramentos, o Batismo e a Ceia do Senhor, mas entendeu como meros símbolos da união dos‬
‭homens com Deus: interpretou alegoricamente as palavras do Evangelho ("Este é o meu corpo... meu‬
‭sangue") que o luteranismo entendia literalmente.‬
‭Ele criou uma igreja organizada de baixo para cima, em pequenas comunidades autônomas‬
‭vagamente confederadas em "sínodos" e com participação mais ampla. A comunidade elegeu seus‬
‭ astores e também "apóstolos" e "profetas", encarregados de governar espiritual e socialmente a‬
p
‭comunidade político-religiosa. Ao contrário das igrejas territoriais luteranas, que são dependentes e‬
‭subordinadas à autoridade do príncipe, os zwinglianos tendem a se intrometer no governo civil, que se‬
‭confunde com o religioso.‬
‭O proselitismo suíço de Zwingli, apoiado pelo hegemonismo político de Zurique, foi bem-sucedido‬
‭em Basileia e outros territórios, mas falhou na tentativa de impor a Reforma em toda a Confederação. A liga‬
‭de cantões e cidades católicas, com a ajuda de Fernando da Áustria, derrotou Zwingli na Batalha de Kappel‬
‭(1531), onde foi morto. Seu trabalho em Zurique perdurou, e indiretamente, através de Martin Butzer‬
‭("Bucer": 1491-1551) reformador de Estrasburgo, muitas de suas experiências foram retomadas e‬
‭retrabalhadas por João Calvino. Outros movimentos radicais devem mais a ele do que ao próprio Lutero.‬
‭Os "anabatistas". Seitas e movimentos radicais. À margem das igrejas protestantes, surgiram‬
‭movimentos mais radicais, que funcionavam como "seitas", grupos de eleitos, de puros, que se separavam‬
‭do resto dos incrédulos grupos de eleitos, de puros, que se separavam do resto dos incrédulos. Sem‬
‭ortodoxias, sem hierarquias nem estruturas, sentem-se movidos diretamente pelo Espírito Santo, que lhes‬
‭fala em sonhos e sonhos do Espírito Santo. Espírito Santo, que lhes fala em sonhos e visões. Procuram a‬
‭realização imediata no mundo das utopias profetizadas na Bíblia, como a comunidade de bens ou a‬
‭igualdade social, e por isso chocam violentamente com as autoridades. São animados por uma convicção‬
‭escatológica tirada do Apocalipse: o fim dos tempos está próximo, o Juízo Final que recompensará os‬
‭eleitos e castigará os infiéis, o estabelecimento, por um tempo, do reino de Cristo e dos seus santos na‬
‭Nova Sião sobre a terra.‬
‭Os "anabaptistas" eram assim chamados porque "rebatizam" os adultos, em sinal de aceitação da‬
‭sua escolha: uma aberração para a maioria, que considerava o batismo imediato como garantia de‬
‭salvação, face a uma mortalidade infantil muito elevada.‬
‭Há pacíficos, vítimas das autoridades civis e perseguidos por todas as Igrejas, que criam pequenos grupos‬
‭dispersos da Suíça aos Países Baixos e à Boémia. Outros, em circunstâncias excepcionais, assumem‬
‭formas violentas, como em Münster (1534-1535). Um padeiro de Harlem, Jan Mathijs, e um alfaiate, João de‬
‭Leyden, dos Países Baixos, lideraram um movimento anabatista maciço numa cidade que tinha passado‬
‭pela Reforma e que o bispo católico mantinha cercado para recuperar o seu senhorio.‬
‭Numa atmosfera de exaltação calíptica e profética que sublimava as duras condições materiais do‬
‭cerco, ocorreram fenómenos estranhos, como a imposição da poligamia ou a proclamação do alfaiate como‬
‭rei "do povo de Deus da Nova Sião". A vitória militar dos príncipes católicos e luteranos aliados, e o castigo‬
‭brutal habitual em tais casos, puseram fim à loucura colectiva. O povo expectante da Vestefália e dos‬
‭Países Baixos foi desiludido de tais sonhos apocalípticos, e o anabatismo praticamente desapareceu.‬

‭3.3 Calvino e o Calvinismo‬

‭Se Lutero foi associado a uma reforma da doutrina, o calvinismo foi visto como a sua perfeição,‬
c‭ omo a sua consequente consumação numa verdadeira reforma da vida. Na sua segunda fase, Calvino‬
‭conseguiu dar ao protestantismo uma disciplina eclesiástica clara, um culto ordenado e um modelo eficaz de‬
‭igreja capaz de responder ao catolicismo renovado da Contra-Reforma.‬
‭João Calvino (Noyon, 1509-Génova, 1564) provém de uma família burguesa, que lhe proporcionou‬
‭uma educação completa: humanidades em Paris, direito em Orleães e Bourges. Recebeu ordens‬
‭eclesiásticas, mas nunca estudou formalmente (foi autodidata em teologia). Evoluiu lentamente dos círculos‬
‭erasmistas e evangélicos para o luteranismo, movido pelo desejo de restaurar a verdadeira Igreja e a glória‬
‭de Deus na terra do que pela preocupação com a salvação da sua alma. As perseguições anti-luteranas de‬
‭1533-1534 obrigaram-no a refugiar-se na corte de Margarida de Navarra, em Estrasburgo e, finalmente, em‬
‭Basileia. Aí publicou, em latim, a primeira versão, muito curta, d‬‭a Institutio Christiana‬‭(1536): uma exposição‬
‭sistemática da doutrina evangélica, em defesa dos protestantes franceses, dedicada a Francisco I.‬
‭No mesmo ano, foi para Genebra, onde o seu compatriota Guilherme Farel estava a tentar reformar‬
‭a cidade. Genebra era um pequeno centro artesanal e comercial, em declínio, que se tinha livrado da tutela‬
‭dos duques de Saboia e do bispo (1533). A impaciência intransigente dos reformadores e a resistência do‬
‭partido mais conservador obrigam-nos a fugir. Entre 1538 e 1541, vive em Estrasburgo, uma das primeiras‬
‭cidades a aceitar a Reforma e, com Martinho Butzer ("Bu-zero", 1491-1551), um lugar de convergência de‬
‭ideias e de julgamentos eclesiásticos. Aí, ensinou a Sagrada Escritura, serviu a colónia francesa exilada,‬
‭amadureceu a organização eclesiástica e litúrgica e participou nos colóquios teológicos daqueles anos.‬
‭Embora não tenha chegado a conhecer Lutero pessoalmente, foi aí que o seu projeto foi finalmente forjado.‬
‭Uma mudança de governo em Genebra, em 1541, permitiu-lhe pô-lo em prática com todas as suas‬
‭consequências.‬
‭A doutrina de Calvino tem no seu centro a transcendência absoluta de Deus, tão distante do homem‬
c‭ omo o Javé do Sinai do Antigo Testamento. Tudo deve ser ordenado "Soli Deo Gloria": para a glória de um‬
‭Deus rigoroso, incompreensível, inatingível, bem diferente do pai misericordioso encarnado em Cristo. Daí‬
‭deriva um dos elementos mais dinâmicos para os seus discípulos: a ideia de predestinação. A simples‬
‭aceitação da pregação, a pertença a esta igreja "reformada", um esforço de purificação ascética, são sinais‬
‭que certificam a escolha salvadora de Deus; a agressiva atividade proselitista dos fiéis calvinistas explica-se‬
‭pelo fervor com que interiorizaram esta certeza absoluta da sua própria salvação.‬
‭A revelação de Deus na Bíblia é a norma suprema, com preferência pelo Antigo Testamento e pelo‬
‭povo de Israel como modelo, em detrimento dos Evangelhos e das primeiras comunidades cristãs.‬
‭Reconhece apenas dois sacramentos, o Batismo e a Ceia do Senhor, esta última como pura comemoração.‬
‭A sua organização eclesiástica assenta em quatro ministérios biblicamente enraizados: "pastores",‬
‭"anciãos", "diáconos" e "mestres". Os "pastores" são os chefes religiosos da comunidade, administrando a‬
‭Palavra e os sacramentos; os "anciãos", escolhidos de entre os leigos, são responsáveis pela correção‬
‭moral e pela disciplina; a assistência aos pobres e aos doentes é da responsabilidade dos "diáconos", assim‬
‭como o ensino dos jovens e a interpretação das Escrituras pelos "doutores". O "consistório", composto por‬
‭pastores e anciãos, é o órgão supremo: um tribunal dogmático, moral e até político. A partir do consistório,‬
‭Calvino impõe uma disciplina rigorosa em todas as frentes, eliminando as dissidências políticas, as heresias‬
‭(Servetus foi queimado na fogueira em 1553) e os maus costumes.‬
‭A vida em Genebra tornou-se austera, rígida e policiada, centrada na catequese, no estudo das‬
‭Escrituras, nos sermões, etc. Danças, cânticos, leituras profanas, bebidas e outras atitudes imorais eram‬
‭perseguidas mesmo dentro das igrejas. Mas esse mesmo rigor prestigiou a "igreja reformada" de Genebra‬
‭aos olhos dos protestantes mais inquietos de toda a Europa e impulsionou a sua rápida expansão em todas‬
‭as direcções nos anos 1550-1570. Pois o calvinismo continha um poderoso germe proselitista e, se‬
‭possível, dominador. Calvino procurou, para a maior glória de Deus, estabelecer o seu senhorio em todo o‬
‭lado e fez de Genebra a alternativa à Roma da Contra-Reforma. A sua extensa correspondência pessoal e‬
‭os seus escritos, multiplicados por uma imprensa ativa, encorajaram o zelo dos eleitos; e a Acade-mia,‬
‭dirigida pelo seu colaborador e sucessor, Theodore de Beza (1519-1605), formou os pastores que deviam‬
‭ministrar às novas comunidades. A sua própria estrutura, descentralizada em pequenas comunidades‬
‭confederadas por nações, facilitava a difusão em ambientes politicamente adversos.‬
‭O calvinismo difundiu-se no meio de graves convulsões políticas, pelas quais teve uma grande‬
‭responsabilidade. Em muitos casos, precisou de violência para se inserir entre as Igrejas luterana, católica e‬
‭anglicana, já bem estabelecidas em meados do século XI. A paz religiosa de Augsburgo (1555), assinada‬
‭entre luteranos e católicos, excluiu os calvinistas. No entanto, os exilados de França e dos Países Baixos‬
‭fundaram as primeiras comunidades em Wessel e Emdem, na região do Baixo e Médio Reno. Em 1576,‬
‭Frederico IV, Eleitor do Palatinado, tornou-a a religião oficial dos seus Estados e, pouco depois, o Conde de‬
‭Nassau, o Conde de Lippe e alguns outros senhores fizeram o mesmo.‬
‭Calvino e muitos dos seus primeiros discípulos eram exilados franceses. Talvez por isso a sua‬
‭doutrina tenha encontrado um eco especial no reino católico mais populoso da Europa. Em 1559, o primeiro‬
‭Sínodo Nacional reuniu-se em Paris e 50 comunidades redigiram uma Confessio Gallicana e uma Disciplina‬
‭sobre o seu funcionamento; e, entre 1555 e 1562, Genebra enviou 80 pastores para atender as novas‬
‭comunidades. A morte de Henrique II em 1559 abriu um longo período de fraqueza no trono até 1589. Na‬
‭luta pelo poder, a nobreza organiza-se em dois campos político-confessionais: a família Guise lidera o‬
‭campo católico, e a Casa de Bourbon, o campo "hugo-note" ou calvinista. A nova fé impôs-se sobretudo nas‬
‭regiões periféricas do Sul e do Sudoeste (Dauphiné, Provença, Languedoc, Béarn, Guiana) e do Norte‬
‭(Normandia). No final do século, havia 1,2 milhões de huguenotes, quase um em cada dez franceses, na‬
‭sua maioria camponeses ou artesãos, mas também uma parte significativa da magistratura, das pessoas‬
‭instruídas e da nobreza média e alta, pelo que a sua força era superior ao seu número. Após oito violentas‬
‭guerras civis (1562-1598), foi necessário encontrar uma solução de compromisso. Foi aceite que Henrique‬
‭de Bourbon, líder dos huguenotes, ocupasse o trono por direito de sangue, mas com um regresso ao‬
‭catolicismo maioritário. Com o Édito de Nantes (1598), Henrique IV restabeleceu o catolicismo em todo o‬
‭reino e concedeu uma ampla tolerância (liberdade de consciência, mas restrições ao culto; igualdade de‬
‭oportunidades nas universidades, tribunais e administração; concessão de "lugares seguros" militares).‬
‭A difusão do calvinismo nos Países Baixos galvanizou a resistência aristocrática e nacionalista ao‬
‭regime autoritário de Filipe II de Espanha. Embora os seguidores de Guy de Bray, formados em Genebra,‬
‭fossem pouco numerosos, estiveram no centro da fúria iconoclasta do verão de 1566, que determinou as‬
‭duras represálias que o Duque de Alba levaria a cabo, sem sucesso. A revolta generalizada das 17‬
‭províncias foi resolvida com a formação de duas ligas: na de Arras (1579), as províncias do sul‬
‭permaneceram "obedientes" e católicas, atraídas para a paz por Alexandre Farne-sius; as províncias do‬
‭ orte, associadas na liga de Utrecht, lutaram pela independência sob a liderança de Guilherme de Orange‬
n
‭e, entre os protestantes, os calvinistas foram os mais activos.‬
‭A reforma do pobre e atrasado reino da Escócia foi levada a cabo por John Knox (1505?-1572), que‬
‭evoluiu do luteranismo para o calvinismo nos anos do seu exílio alemão e da sua estadia em Genebra‬
‭(1554-1555). Por influência inglesa, a Reforma teve simpatizantes entre a nobreza. Em 1560, aproveitando‬
‭a ausência da rainha Mary Stuart e a rutura da sua aliança com a França, um grupo de lordes espirituais e‬
‭temporais reuniu-se, por instigação de Knox, num "Parlamento para a Reforma". Concordaram em romper‬
‭com a autoridade do papa e em promulgar uma Confessio Scotica, e deu-se a secularização parcial da‬
‭propriedade eclesiástica, dividida entre a nobreza e a coroa. Mas a velha igreja, com os seus bispos, clero e‬
‭propriedades, não desapareceu completamente. Mary Stuart, apesar de católica, não conseguiu levar a‬
‭cabo uma restauração católica e abdicou perante James VI (1567) antes de se exilar. Foi Andrew Melville,‬
‭sucessor de Knox, que implementou um "presbiterianismo" rigoroso, que nega a diferença hierárquica entre‬
‭bispos e pastores; cada comunidade paroquial elege o seu pastor e os seus diáconos e anciãos; e a sessão‬
‭local elege os seus representantes nas assembleias nacionais ("Kirk Session"). Doutrinariamente calvinista,‬
‭a sua organização era a mais participativa de todas, o que minava o poder do rei. Tiago VI, na sua‬
‭maioridade, tentou inverter o rumo e restaurar o bispo (1582-1586), mas com tão pouco sucesso como o‬
‭que viria a ter o seu filho Carlos I de Inglaterra.‬

‭3.4 O Cisma Inglês e a Reforma Anglicana‬

‭Lutero, Zwingli, Calvino, como pastores-teólogos, deram nome às principais variantes da Reforma.‬
‭ o entanto, o "anglicanismo" é geralmente associado à vontade de um rei, Henrique VIII. A Inglaterra‬
N
‭evoluiu, de forma lenta e sinuosa, desde o cisma disciplinar de 1534 até à afirmação plena de uma forma‬
‭particular de igreja protestante em 1559. Os problemas de sucessão e as alianças diplomáticas dos seus‬
‭reis forçaram mudanças numa ou noutra direção, sempre impostas de cima para baixo com o apoio do‬
‭Parlamento.‬
‭O drama de consciência de Henrique VIII (1509-1547) foi decisivo para o início da rutura com Roma‬
‭(G. Elton). Em 1525, o rei considerou não ser razoável esperar descendência masculina da sua mulher.‬
‭Catarina de Aragão (1485-1536). Apenas uma filha e cinco nascimentos malfadados sustentam a sua‬
‭apreensão de viver em pecado com a antiga mulher do seu irmão Artur e de ser punido por isso. É também‬
‭verdade que a casa de Tudor tinha subido ao trono apenas recentemente (1485), após a guerra civil das‬
‭Duas Rosas: precisava de um herdeiro masculino incontestável. Para o efeito, tentou anular o seu‬
‭casamento com a neta dos Reis Católicos e voltar a casar-se. O processo de nulidade, iniciado pelo‬
‭Chanceler Thomas Wolsey em Inglaterra, foi enviado por Clemente VII a Roma em 1529 e retardado pelos‬
‭interesses diplomáticos de Carlos V, sobrinho de Catarina. O rei decidiu então romper com a jurisdição de‬
‭Roma.‬
‭Em 1533, Thomas Cranmer, o novo Primaz da Cantuária, declarou nulo o primeiro casamento do‬
‭Rei e válido o seu casamento com Ana Bolena, já grávida. Em 1534, o Parlamento aprovou as grandes leis‬
‭cismáticas com Roma, incluindo o "Ato de Supremacia": o rei passava a ser "o único chefe supremo da‬
‭Igreja de Inglaterra". A rutura, de carácter mais político do que religioso, foi amplamente apoiada pelo‬
‭Parlamento, mas também teve a oposição de alguns católicos. As primeiras perseguições levaram à prisão‬
‭de mais de 300 religiosos, cujos priores foram executados. Mais excepcionais e exemplares foram o‬
‭julgamento e a morte do único bispo que se recusou a receber o seu poder do rei e não do Papa (John‬
‭Fischer de Rochester) e do antigo chanceler e conhecido humanista, Thomas More, ambos em 1535. A‬
‭supressão de 291 pequenos conventos e mosteiros em 1536, seguida da supressão dos maiores‬
‭(1537-1540) e de outras receitas provenientes de confrarias e obras piedosas, colocou nas mãos do rei‬
‭propriedades de elsrmes, gerando uma clientela nobiliárquica e eclesiástica agradecida. Mas também‬
‭provocou o descontentamento dos camponeses, endémico nos condados do norte, ciosos dos usos‬
‭colectivos da terra que os novos "cercados" aboliam. Robert Aske liderou um protesto camponês maciço,‬
‭expresso na "Peregrinação da Graça" (1536), que, como todos os outros na época, fracassou sob a dura‬
‭repressão, mas foi reavivado na grande rebelião de 1569.‬
‭Henrique VIII, com o apoio do Parlamento, regulamentou a doutrina e a liturgia da Igreja de‬
‭Inglaterra com grande prudência e calculada ambiguidade. Embora rebelde contra Roma, manteve-se‬
‭visceralmente anti-protestante, como se manifestou na sua afirmação dos sete sacramentos (1521) contra‬
‭Lutero, o que lhe valeu o título de Defensor fidei de Leão X. A Confissão dos Dez Artigos (1536) e o Livro‬
‭dos Bispos (1537), embora essencialmente católicos, anteciparam algumas das mudanças da Reforma:‬
‭supremacia da Escritura, imposição da liturgia em inglês, celibato sacerdotal voluntário, reprovação das‬
‭indulgências e das relíquias, obrigação dos párocos de pregar. Regulamentos posteriores (Act of the Six‬
‭Articles de 1539, King's Book de 1543) inverteram esta tendência e reafirmaram os ritos católicos‬
t‭radicionais: celibato obrigatório, confissão auricular, transubstanciação eucarística, etc. No entanto, durante‬
‭estes anos, o uso da Bíblia em inglês difundiu-se, acompanhado por um Homilias reformista de Cranmer.‬
‭O breve reinado de um menor, Eduardo VI (1547-1553), permitiu que os elementos mais claramente‬
‭protestantes, liderados por Cranmer, avançassem desta vez na direção de uma verdadeira Reforma‬
‭doutrinária. Os Quarenta e Dois Artigos de Fé (155R) combinavam formulações luteranas e zwinglianas com‬
‭elementos ainda católicos. Mas o que o povo pôde perceber, como em todo o lado, foram as mudanças‬
‭litúrgicas que implicaram. A missa deixou de conter a ideia do sacrifício e da presença real de Cristo: os‬
‭altares foram substituídos por simples mesas de madeira, a liturgia passou a ser em inglês, a Palavra‬
‭(pregação, recitação e canto dos salmos) tornou-se mais importante, a missa diária desapareceu, os vasos‬
‭litúrgicos e outros objectos sagrados foram confiscados, as fundações das missas foram abolidas. Os‬
‭bispos e os padres viram o seu estatuto sagrado atenuado: podiam voltar a casar. Apenas dois‬
‭sacramentos, o Batismo e a Ceia do Senhor, são reconhecidos: os rituais do casamento, da morte e da‬
‭ordenação perdem o seu antigo esplendor. Tal como no caso de Henrique VIII, as mudanças foram‬
‭introduzidas como uma obrigação uniforme para todos, através de "Actos de Uniformidade" e "Livros de‬
‭Preces" aprovados pelo Parlamento e por conselhos de bispos simpáticos, e marginalizando os relutantes.‬
‭Uma nova mudança no trono alterou radicalmente a evolução da Igreja em Inglaterra, mas também‬
‭por um curto período de tempo. Maria Tudor (1553-1558), filha de Catarina de Aragão, casada com Filipe II‬
‭de Espanha, procurou a restauração do catolicismo. Para o efeito, recorreu ao episcopado mais moderado‬
‭que o seu pai tinha promovido, nomeadamente a Gardiner, que nomeou chanceler. O Cardeal Reginald‬
‭Pole, exilado em Roma desde 1536, onde tinha sido um dos principais defensores da reforma católica de‬
‭Trento, regressou como legado papal plenipotenciário e foi nomeado bispo de Cantuária. Não houve‬
‭problemas com o Parlamento, que revogou disciplinadamente a legislação anterior; em contrapartida, Paulo‬
‭III absolveu-os do cisma e reconheceu as secularizações que tinham tido lugar. Embora todos‬
‭aconselhassem prudência, talvez num excesso de zelo religioso, procedeu à purificação do reino,‬
‭queimando 273 hereges, incluindo o próprio Thomas Cranmer. John Fox pôde, então, escrever um Livro dos‬
‭Mártires e, com o triunfo final da Reforma, a rainha passou para a historiografia anglicana como "Bloody‬
‭Mary". Se, até então, o povo inglês associava a causa protestante à espoliação das igrejas, à irreverência e‬
‭à anarquia religiosa, passou a vê-la como um modelo de virtude e de resistência nacional à tirania papista‬
‭(O. Chadwick).‬
‭O longo governo de Isabel I (1558-1603) permitiu a afirmação progressiva do "anglicanismo" como‬
‭variante do reformismo protestante. Qualquer que fosse a sua fé pessoal, estava condicionada pelas‬
‭circunstâncias: filha de Ana Bolena e chefe dos perseguidos por Maria I, mantinha relações tensas com a‬
‭monarquia católica de Espanha na Irlanda, nas Índias e nos Países Baixos. Em 1559, o Parlamento‬
‭restabeleceu o Ato de Supremacia, o Ato de Uniformidade e o Livro de Oração. Os Trinta e nove artigos de‬
‭fé (1563), uma reformulação dos de Cranmer de 1553, tinham um carácter ligeiramente mais calvinista.‬
‭Desde a sua excomunhão por Pio V em 1570, a pressão sobre os católicos, que se tinham revoltado sem‬
‭sucesso nos condados do Norte em 1569, aumentou. Os papas e o rei de Espanha alimentaram as‬
‭preocupações dos católicos irlandeses com alguma ajuda militar e, em vários seminários "ingleses" no‬
‭continente, formaram padres para ministrarem às comunidades clandestinas. Mas a maioria dos católicos,‬
‭ainda que com dificuldade, optou por tornar a sua fé compatível com a sua lealdade política.‬
‭Por outro lado, os dissidentes que apelavam a um aprofundamento da Reforma, a uma purificação‬
‭do anglicanismo ("puritanos"), eram também vigiados de perto e perseguidos. A rainha recusou uma‬
‭reforma no sentido presbiteriano, como na Escócia, que aboliria o episcopado, um dos esteios do seu poder.‬
‭Em 1603, a "Igreja Católica de Inglaterra" - assim se chamava oficialmente - mantinha um credo‬
‭basicamente católico, exceto na eclesiologia, o que explica o regresso fluido dos anglicanos ao catolicismo‬
‭durante os séculos XIX e XX.‬

‭4. A reforma católica‬

‭No início do século XVI, alguns leigos e clérigos tomaram iniciativas vigorosas de reforma, mas‬
‭ stas eram específicas de uma diocese, de uma congregação, etc. O que diferenciava a Reforma Católica‬
e
‭das outras reformas cristãs era a sua unidade e universalidade. Os sucessivos papas conduziram a‬
‭transformação de toda a Igreja segundo o mesmo modelo: definido no Concílio Ecuménico de Trento‬
‭(1545-1563) e aplicado progressivamente de acordo com as circunstâncias particulares de cada Igreja nos‬
‭países da sua obediência.‬
‭4.1. Movimentos prévios‬

‭As igrejas das penínsulas espanhola e italiana anteciparam-se às outras nas suas iniciativas‬
r‭ eformistas. O caso espanhol deve muito ao cuidado com que os monarcas católicos - especialmente Isabel‬
‭I de Castela - selecionaram bispos cultos e piedosos, afastados das facções nobiliárquicas. Fray Hernando‬
‭de Talavera em Granada (1493-1507) ou Fray Francisco Jiménez de Cisneros em Toledo (1495-1517)‬
‭anteciparam o modelo do bispo reformador: professor e pastor próximo dos seus fiéis, preocupado com a‬
‭formação dos seus sacerdotes. Além disso, a partir dos seus influentes cargos de confessor e regente real,‬
‭promoveu a reforma das ordens religiosas e tomou outras iniciativas. A Universidade de Alcalá, dotada por‬
‭Cisneros (1509), abriu-se a uma renovada teologia positiva, num ambiente mais humanista e erasmista,‬
‭embora o erudito de Roterdão tenha recusado o convite para integrar o seu claustro e a grande empresa da‬
‭Bíblia Poliglota. Na mais tradicional Salamanca, um renovado "segundo escolasticismo" não tardaria a‬
‭florescer, graças a Francisco de Vitória (1526) e aos seus discípulos, nos quais se formaram muitos dos‬
‭grandes teólogos de Trento. Estas iniciativas em Espanha foram forjadas sob a vigilância de um instrumento‬
‭de controlo religioso sem paralelo: a Inquisição real (1478). Exercida na perseguição da heresia oculta dos‬
‭conversos, quando os "alumbrados" e os Erasmistas representavam algum perigo, eram facilmente‬
‭silenciados.‬
‭A renovação da Igreja em Itália deveu-se mais a iniciativas individuais vindas de baixo. Funcionou‬
‭como um viveiro onde se formaram pessoas chamadas a ocupar posições eclesiásticas de relevo e onde se‬
‭forjaram experiências, mesmo que demorassem a amadurecer. Assim, a renovação progressiva do‬
‭episcopado e da cúria, que culminou com a do pontificado, encontrou prontos muitos dos instrumentos‬
‭necessários à reforma católica.‬
‭Seguindo a tradição das confrarias, pequenos grupos de leigos e clérigos destacaram-se pelo vigor‬
‭com que viveram o seu cristianismo na prática da devoção (missa e oração diárias, confissão e comunhão‬
‭pelo menos mensais) e da caridade (assistência aos doentes incuráveis, aos pobres, aos órfãos, etc.).‬
‭Hector Vernazza, em Génova, promoveu uma "fraternidade" com 36 leigos e 4 sacerdotes. Entre as outras‬
‭que se multiplicaram por toda a Itália, a mais célebre foi a do "Oratório do Divino Amor", em Roma (1513):‬
‭não pelo seu número (60 membros, na sua maioria leigos), mas porque nela participaram S. Caetano de‬
‭Tiena e João Pedro Caraffa (futuro Paulo IV).‬
‭Estas iniciativas continuaram na reforma de antigas ordens religiosas, ou na fundação de outras‬
‭com características muito inovadoras. Em 1505, um grupo de jovens universitários venezianos reuniu-se em‬
‭torno de Paolo Giustiniani e Gaspar Contarini para estudar a Bíblia; o primeiro reformou mais tarde os‬
‭monges camaldulenses e o segundo, já cardeal, foi um dos promotores do Concílio. Cajetano de Tiena e‬
‭João Paulo Caraffa fundaram a congregação dos "Teatinos" (1524), S. Jerónimo Emiliano a dos‬
‭"Somascanos" (1540), Santo António M.° Zaccaria a dos "Barnabitas" (1530). Nestes três casos, tratava-se‬
‭de congregações de "clérigos regulares", sacerdotes mas sem pároco, que viviam em comunidade com‬
‭votos particulares, dedicados a um apostolado específico (a formação dos sacerdotes, o cuidado dos‬
‭doentes e dos órfãos, as missões populares).‬
‭Em 1535, foram fundadas as "Ursulinas" (Santa Ângela Merici) para a educação de raparigas‬
‭abandonadas e, em 1528, foi aprovada a separação de um ramo dos Franciscanos.‬
‭Matteo Bascio e Ludovico Fossombrone quiseram restabelecer a rigorosa observância primitiva - daí o‬
‭hábito de tecido grosseiro e o capuz pontiagudo: "Capuchinhos" - e centraram-se na vida eremítica da‬
‭oração e do serviço aos pobres, sem preocupações intelectuais particulares; mais tarde, a partir de 1536,‬
‭reorientaram-se para a pregação e a administração dos sacramentos à gente comum, com enorme sucesso.‬
‭Mas de todas as fundações, a mais original e relevante foi a promovida por um nobre de Guipúzcoa,‬
‭Inigo de Loyola (1491-1556). O seu ferimento no cerco de Pamplona (1521) deu início à sua conversão, que‬
‭foi confirmada pela experiência eremítica em Manresa e pela peregrinação à Terra Santa. Quando cresceu,‬
‭iniciou os seus estudos em Barcelona e prosseguiu-os em Alcalá, Salamanca e Paris (1528), onde‬
‭encontrou os seus primeiros companheiros entre os estudantes espanhóis e portugueses, e onde deve ter‬
‭coincidido com João Calvino. Este pequeno grupo de universitários emite os seus primeiros votos privados‬
‭em 1534, mas sem um objetivo muito concreto. Não puderam viajar para a Terra Santa, como pretendiam, e‬
‭acabaram por ir para Roma, onde se ofereceram ao serviço do Papa. Em 1538, Inácio foi ordenado‬
‭sacerdote e preparou as primeiras "Formulae Instituti" que foram aprovadas por Paulo III em 1540, lançando‬
‭a "Companhia de Jesus", cujo objetivo era militar "para a maior glória de Deus" sob as ordens do papa.‬
‭Para o conseguir de forma mais eficaz, Inácio de Loyola concebeu uma congregação muito‬
‭inovadora, em primeiro lugar devido à sua estrutura hierárquica e unitária, tão diferente das formas federais‬
‭frouxas da maioria das ordens tradicionais. O superior "geral" era o superior vitalício e tinha amplos poderes‬
‭para nomear os "provinciais", e estes nomeavam os "reitores" das várias casas, colégios, etc. A obediência‬
‭ao superior no seio da Companhia era reforçada e cada professor acrescentava um quarto voto aos três‬
t‭radicionais: o de obediência ao Papa "sine ulla tergiversatione aut excusatione". Depois de uma seleção‬
‭rigorosa e de uma formação cuidadosa, sem hábito identificador próprio nem obrigação de rezar em‬
‭comunidade, os "jesuítas" tinham a disciplina e a flexibilidade necessárias, que faltavam a outros religiosos,‬
‭para assumir as mais diversas tarefas. Apesar da reprovação de Paulo IV, a "Companhia" difundiu-se‬
‭rapidamente e ocupou um lugar de destaque nas mais diversas frentes: a evangelização das Índias‬
‭Orientais (S. Francisco Xavier), a defesa da ortodoxia em Trento (Lainez e Salmerón, teólogos papais), a‬
‭formação das novas elites dirigentes católicas nos seus colégios. Aquando da morte de Inácio de Loyola, os‬
‭jesuítas eram cerca de 1000 e, dez anos mais tarde, eram 3500 espalhados por 18 províncias do mundo‬
‭católico.‬

‭4.2 O concílio de Trento‬

‭O Quinto Concílio de Latrão (1512-1517), convocado por Júlio II e Leão X, não abordou a reforma‬
‭ a Igreja que muitos desejavam. Limitou-se a responder ao conflito conciliarista do final da Idade Média,‬
d
‭reavivado pelos interesses políticos do rei de França em Pisa (1511). Uma outra convocação para tratar dos‬
‭novos problemas colocados pelos protestantes alemães, embora amplamente desejada, deparou-se com‬
‭demasiadas inércias e obstáculos antes de 1545.‬
‭Clemente VII (1523-1534), um Médicis mais diplomático do que religioso, procurou, com a aliança‬
‭da França, minar a hegemonia de Carlos V em Itália, mas sem sucesso (saque de Roma, 1527).‬
‭Reconciliado com o imperador, a quem coroou em Bolonha em 1530, rejeitou, no entanto, o apelo do‬
‭imperador para um concílio destinado a pacificar a Alemanha. Francisco I de França e o próprio papa não‬
‭deixaram de acolher, pelo menos inicialmente, as dificuldades internas do seu rival face à "Liga de‬
‭Smalkalda" (1531), sem apreciar que a heresia ameaçava também a França e a Itália.‬
‭De Paulo III (1534-1549) Farnese, decano dos cardeais, com quatro filhos naturais antes da sua‬
‭ordenação sacerdotal, ninguém esperava grande coisa, nem pela sua idade avançada nem pelo seu‬
‭nepotismo. No entanto, em 1535, elegeu como cardeais membros proeminentes do partido reformista‬
‭(Caraffa, Sadolet, Contarini, Pole, Morone, del Monte, Cervini, Giustiniani), embora não tantos como os‬
‭conservadores que controlavam os escritórios da cúria (Penitenciária, Dataria, etc.), centros de poder e‬
‭dinheiro. Para melhor controlar os surtos de evangelicalismo e o perigo de penetração protestante, em 1542‬
‭reorganizou a Inquisição papal e, a partir de 1543, começou a elaborar, por diocese, índices de livros‬
‭proibidos. Encoraja a auto-reforma das ordens religiosas e acolhe novas fundações, como a "Companhia de‬
‭Jesus" (1540). Finalmente, decidiu convocar um concílio.‬
‭O Concílio foi inaugurado após três convocações infrutíferas, a 13 de dezembro de 1545, em‬
‭Trento, uma cidade do Império, mas do lado italiano dos Alpes. Teve um desenvolvimento muito agitado em‬
‭três fases descontínuas: quatro anos sob Paulo III (1545-1549), um ano sob Júlio III (1551-1552) e quase‬
‭dois sob Pio IV (1562-1563). Apesar das dificuldades, conseguiu levar a cabo a grande reforma que marcou‬
‭os contornos essenciais do catolicismo até ao século XX.‬
‭Os bispos e os generais das ordens eram poucos na primeira fase, apenas 50-70 votos, com uma‬
‭maioria absoluta de italianos, alguns espanhóis, apenas três franceses e nenhum alemão. Em 1546-1547,‬
‭os padres conciliares trataram simultaneamente das grandes questões doutrinais contestadas pelos‬
‭protestantes e de algumas questões disciplinares cuja reforma interessava mais ao imperador. Nestes dois‬
‭anos, em duas campanhas que culminaram com a vitória de Mühlberg (abril de 1547), Carlos V derrotou a‬
‭Liga de Smalkalda e tentou forçar os protestantes alemães a participar e a aceitar o concílio. Mas as suas‬
‭relações com o papa deterioraram-se - uma disputa sobre o ducado de Parma e o assassinato de Pierluigi‬
‭Farnese, filho de Paulo III - e o papa decidiu, com a maioria dos presentes, transferir as sessões para‬
‭Bolonha. Os bispos imperiais permaneceram em Trento e, embora não tenha havido rutura e os trabalhos‬
‭preparatórios tenham continuado, nada de novo foi decidido. Carlos V, como o Papa não se queria submeter‬
‭a um Concílio que lhe convinha, tentou um acordo religioso no Império, na Dieta de Augsburgo, e ditou um‬
‭acordo temporário até à conclusão do Concílio ("Interino" de Augsburgo, 1548), que foi suspenso pela morte‬
‭do Papa.‬
‭O novo pontífice, Júlio III (1550-1555), compreendeu a urgência de concluir os trabalhos. Embora‬
‭esta segunda fase do Concílio (1551-1552) não tenha contado com a presença de bispos franceses, devido‬
‭às tensões de Henrique II com o Imperador, contou com a presença de alguns luteranos, delegados de 3‬
‭príncipes protestantes e de 6 cidades protestantes. As suas elevadas exigências - recomeçar as‬
‭discussões; confrontá-las apenas a partir das Escrituras; proclamar a supremacia do concílio sobre o papa -‬
‭abortaram qualquer possibilidade de diálogo. Em breve, a traição de Maurício da Saxónia e a sua aliança‬
‭com Henrique II de França abriram uma nova guerra, na qual Carlos V quase foi capturado, os bispos‬
‭alemães retiraram-se e o Concílio foi suspenso (1552). Júlio III tentou então reformar a Cúria por sua conta‬
‭ preparou uma "Bula de Reforma", que dava força também aos decretos de Trento aprovados até então e‬
e
‭promovia outras alterações, mas morreu sem a proclamar.‬
‭Esta linha de reforma autocrática e não conciliar foi seguida pelo seu sucessor, Paulo IV‬
‭(1555-1559). Napolitano, visceralmente anti-espanhol, reformador precoce (fundador dos Teatinos), Paulo IV‬
‭trouxe um espírito duro, rigoroso e intransigente. Tinha péssimas relações com os austríacos: com o novo‬
‭imperador Fernando I, por ter assinado a Paz de Augsburgo (1555) e por ter tomado a coroa sem a sua‬
‭participação; e com Carlos I e Filipe II, com quem lutou pela hegemonia em Itália. Não quis ter nada a ver‬
‭com o Concílio e procurou impor a reforma da Igreja por decreto. Reorganizou a Inquisição Romana,‬
‭perseguindo duramente a imoralidade da cidade. Em 1559, publicou o primeiro Índice Pontifício de Livros‬
‭Proibidos, baseado nos da Sorbonne (1544), de Lovaina (1546) e da Inquisição Espanhola (1551), mas‬
‭levou-o a extremos invulgares de rigor.‬
‭Após a sua morte, a eleição de Pio IV (1559-1565) permitiu retomar o Concílio numa terceira fase‬
‭(1562-1563), determinada por circunstâncias muito diferentes. No Império tinha sido alcançada uma paz‬
‭religiosa (Augsburgo, 1555), em Inglaterra a restauração católica tinha sido frustrada (1558) e em França o‬
‭perigo de tomada do poder pelos huguenotes era muito grave (1559). Nas duas primeiras fases, a Frente‬
‭tinha reagido às doutrinas de Lutero e Zwingli, e havia esperança de uma recuperação territorial que era‬
‭agora impossível. Os esforços concentram-se, portanto, na reforma interna da Igreja. Em 4 de dezembro de‬
‭1563, na sessão de encerramento, 6 cardeais, 3 patriarcas orientais, 25 arcebispos, 169 bispos, 7 abades e‬
‭7 generais confirmaram todos os decretos adotados desde 1546, que Pio IV ratificou imediatamente.‬

‭4.3. Trabalho e realização do concílio‬

‭Trento reafirmou os principais dogmas da fé católica face aos protestantes. A Igreja Católica foi‬
t‭ambém reorganizada para se ocupar melhor da "cura das almas" dos seus fiéis e para recuperar o terreno‬
‭perdido com a Reforma. Em termos de clarificação dogmática, foram clarificados os seguintes pontos:‬

‭ .‬‭fontes da fé.‬‭A Escritura como fonte principal, mas interpretada de acordo com o magistério da Igreja e‬
1
‭com a tradição. Os livros deuterocanônicos, que não fazem parte da Bíblia judaica (Judite, Tobias, etc.), são‬
‭admitidos como revelados. A versão latina da Bíblia segundo S. Jerónimo - Vulgata - é ratificada, mesmo‬
‭que se promova uma nova edição corrigida.‬

‭ .‬‭A justificação pela fé e o valor das obras.‬‭Rejeita a visão extrema e pessimista de Lutero e, sobretudo, de‬
2
‭Calvino sobre o homem sem liberdade para fazer o bem e rejeitar o mal. Com a ajuda da graça, que lhe é‬
‭dada pelos sacramentos, ele pode fazer obras meritórias e vencer as tentações. No entanto, a interação‬
‭entre a graça de Deus e a liberdade do homem permaneceu um mistério sobre o qual as escolas teológicas‬
‭católicas discutiram tão ferozmente que os papas, no início do século XVII, tiveram de lhes impor silêncio.‬

‭ .‬‭Os sacramentos.‬‭São sete, são sinais de Cristo e não da Igreja, e concedem a graça em si mesmos, não‬
3
‭segundo a fé de quem os recebe. A doutrina católica se diferencia profundamente da doutrina protestante. A‬
‭Eucaristia, em particular, era exaltada como uma renovação do sacrifício de Cristo e como a presença real‬
‭do seu corpo e sangue. O sacramento da Ordem diferenciava claramente os leigos do clero, este último‬
‭com a sua hierarquia. O matrimónio como união pública perante a comunidade, com o sacerdote como‬
‭testemunha solene, adquiriu uma dignidade renovada.‬

‭ ‬‭. A Igreja.‬‭"Corpo místico de Cristo", mas também sociedade jurídico-histórica unitária e hierárquica. Ao‬
4
‭mesmo tempo que se reconhece o sacerdócio universal dos fiéis pelo batismo, exalta-se o sacerdócio‬
‭ministerial dos consagrados numa tríplice hierarquia de bispo, presbítero e diácono. No entanto, duas‬
‭questões fundamentais e conflituosas permanecem por resolver: em primeiro lugar, se a autoridade dos‬
‭bispos provém diretamente dos apóstolos ("episcopalismo") ou é delegada da autoridade do papa, e em que‬
‭consiste o primado do papa entre os bispos ("conciliarismo"); em segundo lugar, o papel dos príncipes na‬
‭Igreja e a relação do poder civil com o poder eclesiástico ("realismo").‬

‭Esta base dogmática renovada apoiou importantes mudanças disciplinares. Era urgente cuidar mais‬
‭ ficazmente da instrução e da vivência da fé dos fiéis: neste sentido, Trento foi um concílio eminentemente‬
e
‭pastoral. Não tratou de mudanças organizacionais na Cúria Romana, que os papas levaram a cabo‬
‭pessoalmente, mas renovou a figura do bispo e a do padre. O bispo devia ser um homem de ciência e de‬
‭piedade, um canonista ou um teólogo, para servir de mestre e pastor da Igreja local; isto obrigava-o a residir‬
‭na diocese, a visitá-la constantemente, a pregar e a ensinar, a promover a formação moral e intelectual do‬
c‭ lero e a introduzir reformas através dos conselhos provinciais e dos sínodos diocesanos. Um modelo de‬
‭bispo tridentino foi São Carlos Borromeu, arcebispo de Milão (1564-1584).‬

‭Quanto ao clero secular, reafirma-se o celibato obrigatório, dignifica-se o seu aspeto exterior‬
(‭ tonsura e vestes talares que o distinguem) e confia-se-lhe, como colaborador do bispo, o cuidado pastoral‬
‭nas paróquias. O pároco ensina as orações e a doutrina na pregação dominical e na catequese das‬
‭crianças; controla a administração dos sacramentos através dos registos paroquiais e vela pelo‬
‭cumprimento dos mandamentos da Igreja (confissão e comunhão anual). Para o efeito, deve receber uma‬
‭formação moral e intelectual aprofundada: o Concílio ordenou a criação de seminários em todas as‬
‭dioceses. Trento quase não se ocupou das ordens religiosas, exceto para reduzir as suas isenções e para‬
‭aumentar o controlo episcopal sobre as suas actividades nas dioceses. Quase não tratou dos leigos: o‬
‭matrimónio continuou a ser considerado como um estado inferior à consagração religiosa ou ao simples‬
‭celibato. Também não tratava da reforma dos príncipes, embora os bispos se queixassem amargamente da‬
‭interferência das autoridades seculares.‬
‭A Igreja Católica promoveu as formas tradicionais de piedade popular que os protestantes tinham‬
‭rejeitado, embora purificando-as dos excessos. Foram encorajadas as confrarias de devoção popular,‬
‭centradas na recitação do terço, na caridade para com os doentes, na oração pelos mortos, na celebração‬
‭dos mistérios e das festas da fé, como as da Semana Santa, etc. As procissões tornaram-se reafirmações‬
‭colectivas e públicas da fé nos pontos mais atacados pelo protestantismo: a devoção à Virgem e aos santos‬
‭e, sobretudo, o sacramento da Eucaristia nas grandes solenidades do "Corpus Christi". O reconhecimento‬
‭de certos milagres e, sobretudo, a canonização de novos santos, supervisionada a partir de Roma,‬
‭encorajavam a fé do povo, que era instruído nas orações e nas verdades fundamentais através da‬
‭catequese, ajudada pela publicação de catecismos, e através da pregação dominical e das "missões"‬
‭extraordinárias.‬
‭No cristianismo católico, acentuou-se o clericalismo, a uniformidade e a riqueza formal dos ritos, em‬
‭contraste com o maior protagonismo dos leigos e a diversidade e maior sobriedade litúrgica das igrejas‬
‭protestantes. Os templos católicos estavam repletos de crucifixos, virgens e santos, expressão e objeto da‬
‭devoção popular. Os paramentos e os vasos e instrumentos litúrgicos foram renovados, enriquecidos com‬
‭ouro, prata, pratas, selos e pedras preciosas, sinais da magnificência dos sacramentos. Foi também dada‬
‭atenção à importância da música sacra, da polifonia coral e do órgão, mas como um espetáculo sem‬
‭participação popular. De Roma, foram impostos um Missal (1570), um Brevia- rio (1568) para a oração e um‬
‭texto bíblico (1592), sacrificando uma rica variedade de tradições litúrgicas: nunca antes a Igreja tinha sido‬
‭tão uniforme. Por reação antiprotestante, a Bíblia permaneceu inacessível ao povo fiel: era proclamada em‬
‭latim na liturgia, e só a mediação do clero nos sermões a aproximava; a catequese das crianças não era‬
‭essencialmente bíblica, mas dogmática.‬
‭A receção do Concílio e a sua aplicação na Europa católica foram uma questão de circunstâncias‬
‭nacionais. Filipe II aceitou os decretos tridentinos (1564), mas "sem prejuízo dos direitos reais"; utilizou os‬
‭recursos do patrocínio real sobre o episcopado para supervisionar a sua aplicação nos conselhos‬
‭provinciais e nos sínodos diocesanos. As guerras religiosas e um acentuado galicanismo impediram a sua‬
‭aceitação formal em França, embora tenham sido admitidas por acordo da Junta do clero (1615). No‬
‭Império, as reformas foram implementadas tardiamente, no início do século XVII, mais devido ao apoio‬
‭pessoal dos príncipes da Baviera e da Áustria. Mas foram os grandes pontífices pós-conciliares (Pio V,‬
‭1566-1572, Gregório XIII, 1572-1585, Sisto V, 1585-1590, e Clemente VIII, 1592-1605) que fizeram de‬
‭Roma, mais perfeitamente do que nunca, a cabeça da catolicidade e não apenas a sede do papado. Os‬
‭melhores teólogos ensinavam aí (o "Gregorianum" dos jesuítas deslocou a Sorbonne, Lovaina ou‬
‭Salamanca); foram fundados seminários específicos para os países da recatolização (colégios para‬
‭alemães, ingleses, irlandeses, escoceses, húngaros, etc.).‬
‭Os núncios, bem como os representantes diplomáticos, promoviam as reformas eclesiásticas e a‬
‭administração nos vários países. Os bispos eram obrigados a prestar contas a Roma sobre a vida‬
‭eclesiástica das suas dioceses em visitas periódicas "ad limina" (1585), que Filipe II proibia os espanhóis de‬
‭efetuarem pessoalmente. Em 1588, foram criadas 15 congregações cardinalícias permanentes, com‬
‭competências definidas, nove das quais para o governo da Igreja universal (Inquisição, Index, Concílio,‬
‭Bispos, etc.), reforçando assim o controlo romano.‬

‭5. Uma Europa confessional‬

‭A fragmentação do cristianismo em igrejas rivais conduziu a um processo de "confessionalização"‬


(‭ H. Jedin, W. Reinhard) na segunda metade do século XVI. Todas as "confissões" sentiram igualmente a‬
‭urgência de elaborar formulações dogmáticas que definissem a sua identidade particular, desnecessária‬
‭ nquanto existisse um único cristianismo. Assim, elaboraram confissões de fé solenes como referências às‬
e
‭quais os seus fiéis se deviam conformar: os luteranos em Augsburgo (1530) ou na Fórmula de Concórdia‬
‭(1577); os calvinistas nas diferentes Confissões nacionais (francesa, 1559, escocesa, 1560, belga, 1561,‬
‭etc.); os católicos nos decretos do Concílio de Trento (1564); os anglicanos nos Trinta e nove artigos de fé‬
‭(1563). E, para instruir todos os fiéis na reta doutrina, produziram-se compêndios adaptados aos pregadores‬
‭ou ao povo: os catecismos "maior" e "menor" de Lutero (1529), a Institutio de Calvino (1536), o catecismo‬
‭romano de Pio V (1566) e as suas versões populares.‬
‭As diferentes Igrejas organizam-se através de regras que regulamentam, mais do que nunca, o‬
‭culto litúrgico, o direito canónico, a assistência caritativa e educativa, etc. Durante a segunda metade do‬
‭século XVI, no seio da Igreja Católica, as constituições sinodais diocesanas e as disposições dos visitadores‬
‭episcopais multiplicaram-se em número e importância. Os sínodos nacionais e os consistórios calvinistas,‬
‭ou os consistórios e superintendentes luteranos, ou, no caso anglicano, o Parlamento, também elaboraram‬
‭importantes "Disciplinas", "Ordenações", "Livro de Oração", etc. A formação, tanto do seu próprio clero‬
‭como do clero missionário, foi confiada a centros especializados - colégios eclesiásticos, seminários, e não‬
‭indiferentemente às universidades, como anteriormente. Nunca antes as Igrejas tinham assumido o trabalho‬
‭de catequização das crianças e dos jovens, o que envolveu católicos e protestantes num grande esforço‬
‭educativo, com a criação de escolas, ginásios, academias, etc. Para preservar a ortodoxia e perseguir os‬
‭heterodoxos, todas as denominações utilizaram recursos semelhantes, nunca antes tão poderosos.‬
‭Desenvolveram-se instituições inquisitoriais; houve uma rígida censura à impressão e à licença de‬
‭pregação; elaboraram-se índices de livros proibidos ou expurgados; proibiu-se o estudo no estrangeiro.‬
‭O conceito de "confessionalização", desenvolvido pela historiografia alemã, tenta explicar as novas‬
‭relações entre religião e política numa Europa dividida, onde o Papa e o Imperador deixaram de ser‬
‭referências operacionais comuns. A formação das igrejas territoriais, como vimos, deveu-se muito às‬
‭autoridades seculares. "Uma fé, uma lei, um rei" tornou-se o ideal de todos os príncipes do século XV que‬
‭enfrentaram as consequências políticas da rutura religiosa. Governar sobre fiéis de confissões diversas e‬
‭rivais era indesejável por razões óbvias: a diferença inclinada à dissidência, à conspiração ou à rebelião‬
‭interna e à aliança com inimigos externos. Os católicos irlandeses eram uma ameaça constante para Isabel‬
‭I., a sua rainha anglicana, tal como os calvinistas das Províncias Unidas eram para Filipe II, o seu rei‬
‭católico.Com exceção de alguns espíritos, a liberdade de consciência e de culto não era entendida como um‬
‭direito do indivíduo. Todas as igrejas mantinham uma intolerância semelhante e perseguiam rigorosamente‬
‭os hereges com a ajuda do poder secular, que os considerava traidores. No entanto, a violência das guerras‬
‭religiosas e políticas internas, sobretudo no Império e em França, onde a aniquilação do inimigo não podia‬
‭ser conseguida, tornou necessária a paz religiosa. A Paz de Augsburgo (1555) no Império, o Édito de‬
‭Nantes (1598) em França, o Édito de Magestad (1609) na Boémia, regulamentaram uma tolerância‬
‭"política", sempre imperfeita e ameaçada, e que acabou por fracassar no século XVII.‬
‭A identificação do príncipe com uma determinada confissão reforçava a sua autoridade e o seu‬
‭poder: a secularização da propriedade aumentava o seu património, e os eclesiásticos e as suas instituições‬
‭actuavam de diversas formas como instrumentos ao serviço do rei.Na Escócia presbiteriana, Tiago VI‬
‭lamentava que, sem bispos, não podia ser um verdadeiro rei, como Isabel I de Inglaterra ou Filipe I de‬
‭Espanha, que controlavam de perto os respectivos episcopados. Por outro lado, as Igrejas e os Estados‬
‭compreenderam as vantagens de colaborar na formação dos seus fiéis e súbditos segundo os novos‬
‭critérios de ortodoxia e de disciplina social que se julgavam necessários. Foi preciso tempo para que o povo‬
‭apreciasse e interiorizasse as mudanças religiosas e políticas, para as quais teve de ser doutrinado com‬
‭recurso a vários meios: jurídicos e penais, mas também literários e artísticos. Este processo, iniciado na‬
‭segunda metade do século XVI, seria concluído no século seguinte.‬
‭Capítulo 04‬
‭Afirmação monárquica e processos de integração política‬
‭1. A Nova Forma Política das Monarquias Majestosas‬

‭A partir do século XV, a instituição monárquica começa a distinguir a sua autoridade das instâncias‬
‭ niversais que se tinham tornado depositárias do poder político durante a Idade Média - o papado e o‬
u
‭império - e das estruturas particulares do domínio feudal da sociedade feudal. A nova posição de‬
‭superioridade dos reis manifestou-se, entre outras coisas, na assimilação do tratamento de majestade que,‬
‭até então, era monopólio exclusivo dos imperadores. Os novos monarcas manobram com prudência para‬
‭impor o seu poder supremo num determinado território. O processo foi longo e foi ladeado, para além de‬
‭abundantes guerras, por um corpo proporcional de doutrina e um rico leque de manifestações‬
‭propagandísticas.‬

‭1.1. Minando a autoridade do papal‬

‭ o mundo cristão do período medieval, o poder supremo estava nas mãos do papa. Apesar das‬
N
‭habituais lutas pela supremacia que o opunham ao poder imperial, a autoridade religiosa que lhe era‬
‭conferida por ser considerado o sucessor de S. Pedro e por ser o legítimo intérprete da Bíblia, onde se‬
‭encontravam tantas máximas políticas, conferia-lhe uma omnipotência que ultrapassa as tarefas espirituais‬
‭e entrava decididamente nos assuntos seculares. A ideologia hierocrática do papado foi reforçada pela‬
‭Reforma Gregoriana (séculos XI e X) e pelas interpretações autorizadas de Hugo de São Victor, São‬
‭Bernardo de Claraval, Honório de Autun, João de Salisbury, São Tomás de Aquino e Egídio Romano, entre‬
‭outros. Segundo estes autores, o papa era o chefe do governo universal enquanto vigário de Cristo,‬
‭enquanto o imperador só tinha legitimidade se actuasse sob a aprovação do sumo pontífice. A par destes‬
‭argumentos político-religiosos abstratos, questões mais pragmáticas, como o controlo das nomeações‬
‭clericais, as receitas eclesiásticas e a administração da justiça, também alimentaram os confrontos.‬
‭As hostilidades entre o Papado e o Império foram intensas e obstinadas até ao final do século XIII,‬
‭mas depois disso ambas as potências universalistas entraram num processo imparável de declínio. A‬
‭soberania universal do Papa foi também posta em causa pelas monarquias. Filipe IV de França exigiu uma‬
‭contribuição em dinheiro do clero galicano para financiar a guerra com a Inglaterra (1294). Os protestos do‬
‭Papa Bonifácio VIII e a excomunhão que promulgou contra o rei francês foram não só desprezados como‬
‭vigorosamente contestados. Mais do que uma questão pessoal, a gravidade destas divergências era um‬
‭sinal dos novos tempos em que a unidade cristã começava a dividir-se em diferentes unidades nacionais.‬
‭Durante o século XIV, o prestígio e a autoridade do papado atingiram os seus níveis mais baixos. A‬
‭transferência da Santa Sé para Avinhão (1309-1377) e o Cisma de Gi (1378-1417), que opôs primeiro dois e‬
‭depois três papas, refletiram a pressão que as novas potências conseguiram exercer sobre o poder‬
‭conceitual do sumo pontífice. O Concílio de Constança de 1417 pôs fim ao cisma, mas, ao mesmo tempo,‬
‭significou uma retração das ambições temporais do papado. Os monarcas aproveitaram a oportunidade‬
‭para negociar as primeiras concordatas com a Santa Sé. Em 1418, o Papa Martinho V fez acordos sobre‬
‭assuntos eclesiásticos com a Inglaterra, França, Alemanha e Castela, e o seu sucessor, o Papa Eugénio IV,‬
‭com a Borgonha em 1441 e com a Polónia em 1447. Todos estes tratados envolviam as autoridades civis na‬
‭submissão fiscal do clero e no controle das nomeações eclesiásticas. Além disso, estas concordatas foram‬
‭continuamente revistas durante os séculos seguintes, com o objetivo de aumentar as prerrogativas do rei‬
‭sobre os assuntos do clero. Assim, em 1516, a concordata com a França concedeu a Francisco I a‬
‭prerrogativa de nomear bispos e abades e, em 1523, Adriano VI concedeu a Carlos I o direito perpétuo de‬
‭nomear bispos e outros altos funcionários do corpo eclesiástico.Em pouco tempo, os monarcas adquiriram‬
‭amplos poderes sobre o clero nacional. Nos territórios luteranos, no entanto, a estatalização da Igreja‬
‭ocorreu através da rutura com a autoridade de Roma.‬

‭1.2 O declínio das pretensões universalistas do Império‬

‭Durante o período medieval, os imperadores do Ocidente consideravam-se os legítimos sucessores‬


‭ os Césares romanos. A ideologia imperial manteve a conceção universalista e o poder supremo‬
d
‭característicos do Baixo Império, mas, com a influência da religião cristã monoteísta, o imperador foi‬
‭revestido de uma auréola de sacralidade e santidade que o colocava numa posição muito acima dos seus‬
s‭ úbditos e apenas abaixo de Deus. Esta delegação divina, exaltada através do simbolismo das cerimónias‬
‭de coroação, estabeleceu a ideia de um governante que agia simultaneamente como rei e sacerdote. Esta‬
‭conceção césaro-papista chocou de frente com as pretensões do papado, nomeadamente durante o‬
‭pontificado de Gregório VII (1073-1085). A Santa Sé reservou ao Sacro Império Romano-Germânico o‬
‭exercício do poder simbolizado pela espada, ou seja, o de braço armado da Igreja e defensor da verdadeira‬
‭religião. O Papa cedeu este poder ao imperador e, da mesma forma, podia retirá-lo se este não cumprisse o‬
‭objetivo para o qual tinha sido conferido. Face a esta argumentação teológica elaborada e madura, a‬
‭ideologia imperial tinha pouca capacidade de resposta. Mesmo assim, não faltaram ardentes defesas‬
‭historicistas e providencialistas do Império contra o Papado. Mesmo depois do século XII, quando o seu‬
‭poder começava a ser contestado pelas monarquias europeias: Engelbert de Admont no seu tratado Sobre‬
‭a Origem e a Finalidade do Império Romano, Dante na sua Monarquia, Marsilius de Pádua no seu Defensor‬
‭da Paz e Guilherme de Okcam no seu Sobre o Poder do Imperador e do Papado denunciaram as‬
‭pretensões hierocráticas do papa e tentaram demonstrar a finalidade pacificadora e justa do imperador‬
‭contra o perigo do Anticristo (desordem).‬
‭Este padrão, no entanto, permaneceu teórico. Os conflitos dos séculos XIV e XV - a Guerra dos‬
‭Cem Arcos - e a fraqueza do Império, que tinha pretensões cada vez mais universalistas e se identificava‬
‭cada vez mais com a nação alemã, revelaram a natureza dos novos poderes: os reis soberanos. Foram‬
‭introduzidas na doutrina jurídico-política uma série de fórmulas que exprimem a ideia de que o monarca não‬
‭reconhecia qualquer poder temporal superior no seu território -‬‭reges superio-rem non recognoscentes‬‭- ou‬
‭que o rei era imperador no seu reino -‬‭rer est imperaior in regno suo.‬‭Desenvolve-se um processo de‬
‭"imperialização" da figura do rei, que se revela pela apropriação de uma série de símbolos e atributos até‬
‭então exclusivos do imperador: o uso do título de majestade, a adaptação do direito romano às ambições‬
‭centralistas do monarca, a representação pictórica do rei em trajes e ornamentos imperiais, a sacralização‬
‭do rei como Vicarius Christi, entre outros. A doutrina da origem divina do poder real desenvolveu-se em‬
‭todas as cortes europeias, mas sobretudo em França. O rei gaulês, rei "pela graça de Deus" - rer gratia Dei‬
‭- reeditou a saturação simbólica das coroações, atribuiu a si próprio poderes taumatúrgicos e lutou‬
‭ferozmente pela conquista da forma absolutista de governo.‬

‭1.3. Controlo dos poderes locais‬

‭ or detrás das pretensões universais, papais ou imperiais, a monarquia teve de fazer face à‬
P
‭fragmentação do poder feudal. O feudalismo europeu atingiu o seu auge entre os séculos X e XII. Perante a‬
‭insegurança causada pelas invasões muçulmanas, mongóis, normandas e eslavas dos séculos VII-XIX, os‬
‭reis, incapazes de garantir a defesa da sua realeza, entregaram a proteção e a custódia de uma parte do‬
‭território aos seus lugares-tenentes. Outras vezes, as massas camponesas confiavam-se a um senhor, que‬
‭lhes oferecia proteção em troca do estabelecimento de um vínculo de vassalagem e da aceitação de uma‬
‭série de benefícios. Cada zona - feudum - tornou-se uma unidade autárquica e um domínio jurisdicional sob‬
‭o domínio efetivo de um senhor que, embora mantivesse uma relação de feudo-vasallato com o monarca,‬
‭por vezes questionava a sua autoridade e até o confrontava porque o seu poder podia ser superior. Este‬
‭reforço dos poderes locais implicou um enfraquecimento do rei, que era considerado, entre os membros da‬
‭comunidade feudal, o primus inter pares, ou seja, o primeiro entre iguais. O principal atributo que o monarca‬
‭manteve foi o seu carácter religioso, mas, dada a natureza da situação, a tese teocrática tradicional deixou‬
‭de ser imanente, tornou-se mais flexível e coexistiu primeiro com o contrato feudal e depois com o‬
‭constitucionalismo que se desenvolveu nas cidades.‬
‭De facto, o progresso das cidades através do artesanato e do comércio levou ao aparecimento de‬
‭um grupo social cada vez mais poderoso economicamente, a burguesia, que não partilhava os interesses‬
‭feudais. A burguesia das cidades estabeleceu um sistema de governo corporativo que visava a defesa das‬
‭liberdades e o desenvolvimento da manufatura e do comércio. A realeza aproveitou-se disso para controlar‬
‭a nobreza feudal. O monarca favorecia a emancipação das cidades do domínio feudal, colocava-as sob a‬
‭sua jurisdição e concedia-lhes abundantes franquias e privilégios, o que lhe permitia exigir, para além de‬
‭uma lealdade efectiva, subsídios regulares e milícias disciplinadas. Em França, na Catalunha, em Castela e‬
‭em Inglaterra, a situação era mais ou menos a mesma, mas no Norte de Itália, as potencialidades das‬
‭cidades face ao imperador permitiram que estas se tornassem entidades autónomas e autogovernadas, ou‬
‭seja, cidades-estado. Embora tenha sido a prática quotidiana que deu força a este modelo de governo‬
‭popular, houve também algumas elaborações teóricas notáveis, como a do jurista Bartolo de Sassoferrato‬
‭(1314-1357) que, com base no aristotelismo e nos textos de direito romano, justificou a liberdade das‬
‭cidades lombardas e toscanas face às pretensões do imperador.‬
‭O aparecimento de novos poderes cívicos nos reinos levou à criação de formas de governo mais‬
‭complexas: os tribunais em Espanha, as dietas na Alemanha, os parlamentos em Inglaterra e os Estados‬
‭ erais em França. Para estas assembleias, o monarca convocava regularmente representantes do clero, da‬
G
‭nobreza e das cidades para discutir questões de governo do reino e aprovar cargos extraordinários. A‬
‭assunção pelo monarca do poder público supremo (suprema potestas) sobre um território moldou o conceito‬
‭de soberania e, consequentemente, a ideia de Estado. A partir dos séculos X e XV, esta entidade vítrea‬
‭começou a articular-se segundo a fórmula do governo misto ou da monarquia temperada representada por‬
‭parlamentos. Ao longo da Idade Moderna, a capacidade de controlo dos reis sobre estas assembleias‬
‭determinou o grau de absolutismo que conseguiram impor aos diferentes territórios que compunham a sua‬
‭monarquia.‬
‭Em França, as tendências centralizadoras e absolutistas dos monarcas manifestaram-se na‬
‭marginalização e docilidade dos Estados Gerais, que foram convocados durante períodos muito longos,‬
‭como os que decorreram entre 1484 e 1560 ou entre 1614 e 1789. Na monarquia espanhola, o poder do rei‬
‭era sentido de forma diferente nas cortes da Coroa de Castela e nas cortes da Coroa de Aragão: em‬
‭Castela, os monarcas encontraram uma porta aberta para o intervencionismo desde o início do século XV‬
‭mas, após a derrota dos comuneros em Villalar (1521), que exigiam, entre outras coisas, um maior poder‬
‭político das Cortes desgastadas face ao rei, Castela tornou-se um território mais propício ao exercício do‬
‭absolutismo; em Aragão, manteve-se a tradicional fórmula pactista entre a coroa e os estamentos, embora à‬
‭custa de uma relação muito pouco estável entre as duas instituições durante o período da monarquia dos‬
‭Habsburgos. Em Inglaterra, a Casa de Tudor conseguiu construir uma monarquia centralizada sem recorrer‬
‭à fagocitação do parlamento, dada a convergência de interesses religiosos e económicos entre ambos. Em‬
‭todos estes casos, o perfil dos reis e o seu envolvimento no novo projeto de Estado foi muito elevado: Luís‬
‭XII e Francisco I em França, Fernando o Católico e Carlos I em Espanha e Henrique VII e Henrique VIII em‬
‭Inglaterra.‬

‭1.4. O novo príncipe‬

‭Quando, em 1513, Niccolò Machiavelli reconhece em Fernando de Aragão um "novo príncipe", está‬
‭ renunciar às suas profundas convicções republicanas face ao potencial efetivo de um monarca soberano‬
a
‭com princípios absolutistas. As opulentas e refinadas cidades-estado italianas tinham feito da forma‬
‭republicana um ideal da cultura humanista repetidamente exaltado por autores como Coluccio Salutati,‬
‭Leonardo Bruni, Leonardo Batista Alberti e o próprio Maquiavel, mas tinham-se revelado ineficazes para‬
‭garantir a estabilidade interna e o domínio externo. O colapso das estruturas de governo comunal deu lugar‬
‭às formas principescas dos signori. Mesmo assim, as lutas entre as grandes famílias e as suas clientelas‬
‭pelo controlo do espaço político italiano prosseguiram, aguçadas pela participação ativa dos franceses e dos‬
‭espanhóis, a quem Maquiavel chamava "bárbaros". O autor florentino, na sua obra mais conhecida, O‬
‭Príncipe, combina desprezo e admiração quando se refere ao seu domínio em Itália. Se, por um lado, se‬
‭enojava com o seu jugo, por outro, deslumbrava-se com a capacidade - a virtude - que estes monarcas‬
‭tinham demonstrado para liderar processos de unidade política, um empreendimento tão impossível na Itália‬
‭de então como desejado por Maquiavel.‬
‭As acções extraordinárias de Fernando, o Católico, são resumidas no capítulo XXI de O Príncipe da‬
‭seguinte forma: "No início do seu reinado atacou Granada; e essa empresa foi a base do seu Estado. Em‬
‭primeiro lugar, empreendeu-a numa altura em que não tinha outras ocupações e não corria o risco de ser‬
‭impedido; manteve ocupadas as mentes dos nobres de Castela, que, absorvidos por aquela guerra, já não‬
‭tinham tempo para conspirar. E, entretanto, ia adquirindo reputação e poder sobre os nobres sem que estes‬
‭se apercebessem. Com o dinheiro da Igreja e do povo, pôde manter as suas tropas e lançar bases sólidas‬
‭para os seus exércitos com aquela longa guerra, que mais tarde lhe trouxe tantas honras. Para além de‬
‭tudo isto, para poder levar a cabo empreendimentos maiores, dedicou-se com piedosa crueldade a expulsar‬
‭e esvaziar o seu reino de porcos, um exemplo desprezível e bizarro. Sob este mesmo manto, atacou a‬
‭África; levou a cabo o empreendimento da Itália, e ultimamente tem assaltado a França."‬
‭Embora a interpretação de Maquiavel não tenha em conta nem a personalidade de Isabel de‬
‭Castela nem a instabilidade que a unificação de reinos com estruturas político-institucionais diferentes,‬
‭como Aragão e Castela, acabou por gerar, elogia o desenvolvimento de um processo que está a lançar as‬
‭bases de um Estado moderno. A conquista do emirado nasrida de Granada (148I-1492) foi uma iniciativa da‬
‭monarquia que juntou a nobreza, a Igreja e o povo: a poderosa nobreza castelhana pôs de lado as‬
‭rivalidades que a opunham aos reis e lançou-se com entusiasmo numa empresa que lhe trouxe honras e‬
‭méritos; a Igreja contribuiu com uma importante ajuda financeira e com uma ideologia que apelava à guerra‬
‭dos cruzados; e o povo, para além de contribuir para os custos da guerra, engrossou as fileiras de um‬
‭exército que, embora heterogéneo, não tinha precedentes em dimensão e organização. Após a vitória, já‬
‭estavam criados os primórdios das estruturas administrativas e administrativas modernas, o que permitiu‬
‭manter e desenvolver um poderoso exército e um grande corpo diplomático, ambos instrumentos‬
f‭undamentais da política externa, desenvolvida com sucesso através de várias campanhas militares no‬
‭Mediterrâneo e de uma calculada política matrimonial. No interior, a coesão social e a unidade religiosa‬
‭foram reafirmadas com a expulsão dos judeus em 1492 e a conversão forçada dos mudéjares ao‬
‭cristianismo em 1502.‬
‭A consideração política que Maquiavel concedeu a Fernando de Aragão não foi, no entanto, isenta‬
‭de consequências nefastas no domínio da moral. O rei católico tornou-se, ao mesmo tempo, o convidado de‬
‭honra do perverso e, ao mesmo tempo, famoso capítulo XVIII de O Príncipe. "Sobre como os príncipes‬
‭devem manter a sua palavra". Aí alude a "um certo príncipe do nosso tempo, que não convém nomear, [que]‬
‭não prega senão a paz e a lealdade, quando é um inimigo amargo tanto de uma como de outra; e tanto de‬
‭uma como de outra, se as tivesse observado, ter-lhe-iam roubado a reputação ou o estado". O monarca‬
‭descrito por Maquiavel utilizava um princípio moral política e socialmente operativo, que embelezava a sua‬
‭imagem perante os seus súbditos e lhe dava prestígio perante os outros príncipes, mas se o curso dos‬
‭acontecimentos e os altos e baixos da fortuna tornavam necessário ir contra a verdade, a religião e a sua‬
‭palavra, não hesitava em pô-los em prática. Estas ideias, juntamente com outras que o escritor florentino‬
‭incluiu na sua obra, tocam o conceito de razão de Estado e o conhecido axioma "os fins justificam os‬
‭meios".‬
‭O carácter laico da trama política de Maquiavel, dentro de um universo tão cristão como o da época,‬
‭foi fortemente contestado, sobretudo após a Contra-Reforma. Autores como Possevino, Botero. Gentillet e‬
‭Ribadeneyra dedicaram algumas de suas obras a desvendar o veneno da proposta de Maquiavel. Mas a‬
‭solvência política, a conservação e a segurança do Estado continuavam a exigir os truques de sempre.‬
‭Assim, o uso da razão de Estado maquiavélica foi disfarçado e suplantado por uma "boa" ou "verdadeira"‬
‭razão de Estado, que fazia prevalecer os preceitos da religião sobre as necessidades da política, embora‬
‭justificando certas excepções no interesse do Estado. Esta fusão entre os princípios da razão de Estado e‬
‭da defesa da religião permitiu os modelos mais bem sucedidos de monarquias absolutas.‬

‭2. Configurações estatais e identidades nacionais‬

‭Desde o final da Idade Média que se verifica uma tendência para a formação de grandes‬
‭ onarquias. A França absorveu os ducados vassalos da Borgonha e da Bretanha em 1493 e 1532,‬
m
‭respetivamente. Graças a vários laços dinásticos. Carlos V uniu as heranças de Isabel de Castela,‬
‭Fernando de Aragão, Maximiliano da Áustria e Maria de Borgonha. Nas ilhas britânicas, o principado de‬
‭Gales foi unido à Inglaterra e colocado sob a sua administração em 1536. Os grandes monarcas do‬
‭Renascimento eram governantes de uma complexa manta de retalhos de domínios, e cada um desses‬
‭reinos, províncias, senhorios, etc., mantinha a sua própria constituição única, que se traduzia na existência‬
‭de órgãos legislativos, regimes jurídicos e aparelhos institucionais específicos. Mas as grandes monarquias‬
‭do século XVI não eram apenas institucional e politicamente compostas ou segmentadas, mas também‬
‭étnica, cultural e linguisticamente. Assim, por exemplo, os reis de França dominavam a Bretanha de língua‬
‭celta ou a Provença de língua occitana; os reis da Polónia eram governantes da Prússia de língua alemã e‬
‭grão-duques da Lituânia, uma área enorme e etnicamente diversa.Não é, pois, de estranhar que as‬
‭pressões opostas de integração e desintegração política e territorial, tão características desta primeira fase‬
‭da formação do Estado moderno, tenham conduzido a conflitos de lealdades e de identidades, não menos‬
‭relevantes do que os confrontos ocorridos nos domínios fiscal ou institucional.‬

‭2.1. Pátria e nação. Nativos e estrangeiros‬

‭Embora a palavra "patriotismo" só tenha surgido no século XVII, ela pode ser utilizada para definir‬
c‭ ertos sentimentos e ideias políticas já expressos nos séculos do início da modernidade. Assim, a partir da‬
‭segunda metade do século XV, a palavra "pátria", no sentido clássico de pátria, lugar de origem dos‬
‭antepassados, tende a ser alargada a um território mais vasto, a uma comunidade política. É então que se‬
‭difunde uma conceção da "pátria" como um valor, como algo ligado à existência dos homens e que‬
‭determina a obrigação política de a defender e até de fazer sacrifícios pessoais por ela. Joan Benimelis, ao‬
‭dedicar a sua Histôria del regne de Mállorca aos júris da capital das Baleares, reconhece que "entre as‬
‭outras obrigações que nós, homens, temos, uma das menos importantes é a que temos para com a nossa‬
‭pátria [...] e este amor e obrigação é tão grande que, se o esquecermos, somos obrigados a perder a vida‬
‭por ele".‬
‭Por seu lado, o termo "nação" conservou nesta época o seu significado tradicional, agrupando os‬
‭que falavam a mesma língua; mas nem sempre foi utilizado com este sentido, pois, tal como o conceito de‬
‭pátria, com o qual foi muitas vezes confundido, tendeu a adquirir conotações políticas e territoriais.‬
‭Em suma, podemos apreender um "sentimento nacional" que não se contenta em distinguir o‬
"‭ natural" do "estrangeiro", mas que exalta o primeiro e desvaloriza o segundo. Assim, as literaturas do‬
‭Renascimento difundiram uma geografia dos estereótipos nacionais, uma psicologia elementar dos povos,‬
‭que permitia a cada nação distinguir-se, comparar-se e glorificar-se em relação às outras. O nobre‬
‭humanista alemão Ulrich von Hut-ten escrevia jocosamente, em 1517, que enviava "mais saudações do que‬
‭há ladrões na Polónia, hereges na Boémia, cangaceiros na Suíça, proxenetas em Espanha, bêbados na‬
‭Saxónia, prostitutas em Bamberg, sodomitas em Florença...". Além disso, a propaganda que acompanhava‬
‭as guerras e as rivalidades de todo o género abundava em calúnias e insultos. Os sentimentos de ódio e a‬
‭aversão aos estereótipos dos "outros" não eram, evidentemente, os factores desencadeantes das guerras,‬
‭mas uma vez iniciado o conflito, as oficinas de propaganda ao serviço dos poderes políticos amplificavam e‬
‭difundiam tudo o que contribuía para aumentar o afastamento e a animosidade em relação à "nação‬
‭inimiga", respirando força e volume em sentimentos de contra-identidade.‬

‭2.2 Identidades e contra-identidades‬

‭As sociedades europeias das monarquias compósitas do Renascimento caracterizavam-se por‬


‭ últiplas identidades e lealdades partilhadas. Podia haver um patriotismo "local", baseado no amor do‬
m
‭indivíduo ao seu local de origem, um patriotismo "jurisdicional" ou "senhorial", derivado dos laços de‬
‭lealdade entre senhores e vassalos, um patriotismo "dinástico", baseado na lealdade ao monarca ou à casa‬
‭reinante a que estavam ligados os habitantes de um determinado país ou território, e também um‬
‭sentimento de identidade colectiva ligado a uma "nação política", cujas instituições, leis e privilégios,‬
‭juntamente com uma língua e uma história comuns, constituiriam os seus pontos de referência‬
‭fundamentais.‬
‭Era normal que alguns destes patriotismos se sobrepusessem ou coexistissem, mas o confronto ou‬
‭a oposição entre um patriotismo dinástico e um patriotismo ligado à nação política de uma das formações‬
‭históricas que constituíam essas monarquias compósitas podia ser tanto um sintoma como um fator de‬
‭fortes tensões internas. Num mundo político em que a revolta era categoricamente condenada, a defesa da‬
‭pátria tornou-se uma arma eficaz de apoio político-moral contra as tendências absolutistas, centralizadoras‬
‭e assimilacionistas das "novas monarquias".‬
‭No início da modernidade, este sentimento nacional só estava presente, a nível consciente, em‬
‭certas elites sociais capazes de uma certa organização da memória histórica e de uma valorização política‬
‭dos seus próprios elementos institucionais, jurídicos e linguístico-culturais, que diferenciavam e exaltavam‬
‭em relação aos de outras comunidades vizinhas. Com o tempo, estas identidades nacionais‬
‭universalizaram-se socialmente, tomando forma na antiga Univer-sitas cristã através de contactos e‬
‭relações promovidos por elementos tão diversos como as guerras, a expansão do comércio, os relatos dos‬
‭viajantes e a maior circulação de livros e notícias desde a invenção da imprensa.‬
‭As guerras, quase omnipresentes nesta fase da formação do Estado moderno, foram um fator‬
‭importante na mobilização e extensão destes sentimentos étnicos e consciências nacionais. Durante as‬
‭guerras e como consequência das guerras, as identidades nacionais adquiriram uma força e um volume‬
‭especiais: por um lado, multiplicaram a distância que separava psicologicamente o "nós" do "eles" e, por‬
‭outro, forneceram mitos e memórias para as gerações futuras que alimentaram a experiência subjectiva da‬
‭diferença. Erasmo de Roterdão já percebia claramente que estas identidades patriótico-nacionais também‬
‭tinham um fundamento emocional; nos seus Colóquios (1518), afirmou: "Praticamente todos os‬
‭anglo-saxões odeiam os gauleses e todos os gauleses odeiam os anglo-saxões, pela única razão de serem‬
‭anglo-saxões. Os irlandeses, precisamente por serem irlandeses, odeiam os bretões, os italianos os‬
‭alemães, os suecos os suíços, e assim por diante".‬

‭2.3 fronteiras‬

‭A partir do final da Idade Média, a ideia de soberania territorial, juntamente com a emergência das‬
i‭dentidades nacionais, levou ao desenvolvimento de um conceito primitivo de fronteira. A cartografia‬
‭desenvolveu-se de forma excecional durante o século XVI. Os mapas e atlas tornaram-se, para os‬
‭monarcas e estadistas, símbolos de poder e instrumentos das suas estratégias políticas e militares. Mas os‬
‭mapas também serviam para a compreensão racional da localização dos indivíduos num território definido e‬
‭para a sua identificação com ele. Quando, em 1570, Abraham Ortelius editou o seu Theatrum Orbis‬
‭Terrarum - composto por 70 mapas feitos com a colaboração de vários cartógrafos e geógrafos - no prefácio‬
‭dedicado "ao leitor", explicou que uma das causas da falta de mapas era a falta de uma compreensão‬
‭racional do território.‬
‭ xplica que uma das razões para a publicação do atlas é o facto de todos os europeus desejarem ver o seu‬
e
‭próprio país num mapa "por causa do amor que sentem pela sua terra natal".‬
‭No entanto, os territórios políticos não tinham ainda uma definição "linear", como a que se verificaria‬
‭a partir da definição moderna de fronteira no século XI; com exceção do mar, a ideia de que as‬
‭características geográficas constituíam fronteiras naturais não estava sequer generalizada. Em vez de‬
‭serem fixas e impermeáveis, as fronteiras eram elásticas e porosas. Havia continuidade linguística, enclaves‬
‭jurisdicionais do outro "lado", reivindicações territoriais há muito contestadas, etc. De facto, o termo‬
‭"fronteira" quase não era utilizado, preferindo-se palavras como "confins", "limites" ou "fronteiras". É verdade‬
‭que muitos tratados internacionais dos séculos XI e XVI incluíam cláusulas de delimitação e demarcação de‬
‭linhas de fronteira entre os seus territórios, mas o Estado dos primeiros tempos modernos ainda não era um‬
‭Estado territorial. Mesmo a monarquia francesa - a mais compacta territorialmente entre as grandes‬
‭monarquias da época - continuava a encarar a sua soberania em termos de jurisdição entre os seus‬
‭súbditos e não com base na administração de uma circunscrição territorial perfeitamente delineada.‬
‭É também de salientar que o desenvolvimento da cartografia e da geografia contribuiu - juntamente‬
‭com a história, a literatura de costumes, etc. - para a afirmação das identidades nacionais. As corografias‬
‭renascentistas criaram ideias de comunidade e solidariedade entre os habitantes de um determinado‬
‭território. Nos textos desses primeiros geógrafos, há uma interpretação e apropriação do "espaço" sobre o‬
‭qual constroem uma geografia económica, física e humana, e a tornam específica de um coletivo: os‬
‭"franceses", os "ingleses", os "escoceses", etc., dos quais fazem frequentemente uma caracterização‬
‭antropológica.‬

‭2.4 Cultura História e Língua‬

‭ ma das características do início da Idade Moderna é o reforço das ligações entre o poder político e‬
U
‭a cultura. Todos os poderes - central, regional e local - se esforçaram por criar símbolos e referências‬
‭culturais. A arquitetura, as artes plásticas, a história, o teatro e a música tornaram-se instrumentos de‬
‭propaganda e de legitimação, bem como ferramentas que moldaram patriotismos e identidades.‬
‭O papel desempenhado pela história e pelos historiadores na formação da consciência nacional foi,‬
‭sem dúvida, muito importante, ao ponto de Bernard Guenée afirmar que "num certo sentido, foram os‬
‭historiadores que criaram as nações". A justificação do "presente nacional" através de um passado quase‬
‭sempre idealizado e mitologizado era um lugar-comum entre os cronistas e historiadores do Renascimento.‬
‭E com a difusão dos valores culturais do humanismo, assistiu-se, como é sabido, a uma revalorização do‬
‭mundo antigo, que pôs em circulação nos meios cultos e eruditos os nomes clássicos das províncias‬
‭romanas: Itália, Hispânia, Gália, etc., nomes que adquiriram relevância política por coincidirem com o‬
‭processo de formação territorial dos Estados modernos. Muitos humanistas e académicos empenharam-se‬
‭em "batalhas proeminentes" para defender a antiguidade, a religiosidade e a proeza histórica da sua nação,‬
‭proclamando a sua superioridade sobre as comunidades vizinhas. A recuperação da história antiga serviu a‬
‭causa nacional: os autores franceses sublinharam o carácter puro dos gauleses, tal como revelado nos‬
‭Comentários de César; os cronistas castelhanos assimilaram a história de Espanha à de Castela e‬
‭reivindicaram para os seus monarcas a herança dos reis godos, etc.‬
‭A este conjunto de mitos e símbolos que dão sentido ao próprio passado, há que acrescentar outro‬
‭igualmente essencial: o da língua. O século XVI assistiu ao impulso decisivo das grandes literaturas‬
‭nacionais europeias: foi o século de Ariosto, Camões, Cervantes, Ronsard, Rabelais, São João da Cruz,‬
‭Shakespeare. Em muitos destes autores, há uma atitude de defesa e de glosa da sua língua e da sua‬
‭identidade linguística. O humanista António Ferreira, na sua célebre tragédia Inés de Castro‬
‭(1558), proclamava: "Que a língua portuguesa floresça, fale, cante, se ouça e viva; e que se mostre altiva e‬
‭orgulhosa de si mesma por onde quer que vá". O avanço das línguas nacionais não se fez apenas na‬
‭cultura literária, mas também noutras áreas que afectavam a vida quotidiana do povo...". Assim, por‬
‭exemplo, pelo édito de Villers-Cotterêts (1539), Francisco I impôs a utilização da língua da Île-de-France em‬
‭vez do latim nos escritos dos juízes e notários de todo o reino.‬
‭Na fase inicial da formação dos Estados modernos, embora a língua não tivesse o importante valor‬
‭de coesão que lhe será atribuído na era dos nacionalismos contemporâneos, também não era uma questão‬
‭politicamente neutra. Os governantes e os académicos políticos estavam bem cientes da força‬
‭disciplinadora da unificação linguística. Em Della ragione di Stato (1589), Giovanni Botero, ao discutir a‬
‭forma de enfraquecer a coesão dos súbditos heréticos ou indóceis, recomendava que "uma vez que o laço‬
‭de união está na fala, obrigai-os a falar a nossa língua, para que, se falarem, sejam compreendidos, como o‬
‭rei católico fez com os mouros de Granada".‬
‭3. As estruturas do estado‬

‭A afirmação do poder monárquico nestes incipientes Estados modernos foi acompanhada pelo‬
‭ esenvolvimento de órgãos centralizados de governo e de justiça, de uma burocracia de funcionários‬
d
‭públicos, de instrumentos reforçados de política externa, diplomacia e forças armadas, e de um tesouro e‬
‭uma fiscalidade que enfrentaram o grande desafio de fazer face aos custos crescentes da guerra. E, em‬
‭certa medida, pode afirmar-se que a situação de guerra quase permanente foi o principal fator que‬
‭estimulou o aparecimento das estruturas essenciais dos Estados europeus modernos.‬

‭3.1. A corte e os órgãos do governo central‬

‭As cortes europeias que se formaram no início do período moderno resultaram da evolução da‬
"‭ casa real" medieval. A corte era, antes de mais, não só o cenário natural para a exibição do poder real,‬
‭mas também fazia parte da própria imagem da realeza. As cerimónias festivas, religiosas, protocolares, etc.,‬
‭que se desenrolavam na corte, bem como as regras de etiqueta da corte que a regiam, eram meios e‬
‭instrumentos para oferecer uma representação do poder real de acordo com as suas pretensões de‬
‭soberania. O papel de um monarca como Júpiter ou Augusto, protetor quase divino dos seus súbditos,‬
‭tornou-se um tema comum nos espectáculos ritualizados das cortes europeias. Por outro lado, a corte era o‬
‭centro do governo da monarquia. Não só aí se situavam os órgãos da administração central, como também‬
‭a casa real e a corte eram o palco dos contactos e das transacções entre a coroa e as elites políticas. A‬
‭corte servia para domesticar a aristocracia, mas também servia de bastião para a aristocracia exercer‬
‭pressão e fazer pactos com o poder real.‬
‭No final do século XVI, as cortes de Londres, Paris, Madrid e Viena eram já consideravelmente‬
‭grandes. Paris, Madrid e Viena, mas também Estocolmo. Assim, a corte imperial vienense contava 451‬
‭pessoas em 1554 e 531 em 1576. À medida que a dimensão e a complexidade das funções da corte‬
‭aumentavam, foram criadas regras escritas para regular tudo, desde as finanças da corte ao cerimonial e ao‬
‭modo de vida das pessoas que nela viviam. Obras como O Cortesão (1528) de Balthasar de Castiglione,‬
‭que atingiu um número excecional de edições e traduções para a época, tornaram-se guias para os‬
‭aspirantes a "perfeitos cortesãos".‬
‭O reforço do poder real teve um correlato institucional na atribuição de poderes e no‬
‭desenvolvimento de órgãos administrativos centralizados. Tal como noutros aspectos, o Estado dos‬
‭primeiros tempos modernos inspirou-se em elementos derivados do mundo político medieval, pois o sistema‬
‭de conselhos típico das monarquias europeias era uma herança do dever feudal do consilium. Em muitas‬
‭monarquias, o conselho real original - a Curia Regis medieval - foi subdividido em várias instituições ou‬
‭conselhos, alguns para tratar dos assuntos de governo e justiça dos seus territórios constituintes, outros‬
‭para tratar de departamentos específicos, como o tesouro.‬
‭Os conselhos eram órgãos administrativos colegiais compostos maioritariamente por juristas que,‬
‭através de documentos chamados "consultas", exerciam funções consultivas para o monarca tomar‬
‭decisões governamentais; e, em certa medida, estes conselhos podem ser considerados como o embrião‬
‭ou precedente dos futuros ministérios. No seu clássico El Concejo y consejeros del Príncipe (1559), o‬
‭valenciano Fadrique Furió Ceriol definia o que era um conselho da seguinte forma: "é o conselho do‬
‭Príncipe como quase todos os seus sentidos, o seu entendimento, a sua memória, os seus olhos, os seus‬
‭ouvidos, a sua voz, os seus pés e as suas mãos".‬
‭O caso da Monarquia Hispânica, que teve catorze conselhos durante o reinado de Filipe II, é‬
‭paradigmático do desenvolvimento desta fórmula sinodal. A enorme complexidade deste sistema de‬
‭governo deu origem à figura dos secretários oficiais, responsáveis pela ligação entre os conselhos e a figura‬
‭do rei, que acabaram por se tornar peças fundamentais da máquina institucional. Os secretários reais e‬
‭concelhios: Francisco de los Cobos, Gonzalo Pérez, Antonio Pé-rez, Gabriel de Zayas, Mateo Vázquez de‬
‭Lecca, etc., eram geralmente recrutados entre a pequena nobreza e os grupos letrados de juristas; o seu‬
‭papel fundamental na vida da corte enfraqueceria com o aparecimento do valimento no século XVII.‬

‭3.2 A burocracia‬

‭Na Idade Média, a área de influência dos funcionários reais e dos órgãos da administração‬
‭ onárquica era certamente reduzida, não só porque os homens e os meios eram poucos, mas também‬
m
‭porque as pretensões políticas e sociais do poder real eram muito mais limitadas do que as das "novas‬
‭monarquias" do início do Estado modern‬
‭A partir de finais do século XV, as "novas monarquias" europeias desenvolveram planos de‬
‭organização administrativa, formulados com "pretensões estatais", e expandiram as suas burocracias. É de‬
‭ otar que a novidade deste processo não foi apenas a extensão ou o alargamento territorial do aparelho‬
n
‭burocrático, mas também o sentido e os objectivos que lhe foram atribuídos. Trata-se da expressão de uma‬
‭forma original de entender e gerir a ordem política em que, a partir da hegemonia da posição do rei, se‬
‭procurava integrar os poderes mais ou menos autónomos dos estamentos.‬
‭A "modernidade" desta administração real reforçada deve, no entanto, ser relativizada. Era, sem‬
‭dúvida, um instrumento de poder nas mãos dos monarcas, mas a gentry exigia, em parte com sucesso, que‬
‭os altos funcionários do Estado fossem escolhidos entre os membros das suas linhagens. Assim, por‬
‭exemplo, em Inglaterra, o cargo de juiz de paz era exclusivo da nobreza. Por outras palavras, a‬
‭administração do Estado dos primeiros tempos modernos não era inerentemente anti-establishment. Por‬
‭outro lado, os cargos ou ofícios ocupados por estes servidores do rei estavam ainda muito imbuídos de‬
‭elementos do mundo feudal. É verdade que os funcionários do rei exerciam uma função pública, mas esta‬
‭baseava-se numa relação de lealdade para com o monarca e tinha uma conceção patrimonial relativamente‬
‭aos cargos ocupados. Como é sabido, a venda de cargos públicos, já existente no final da Idade Média,‬
‭generalizou-se neste período de afirmação das grandes monarquias. Em França, em 1523, Francisco I teve‬
‭de criar um departamento específico, a Recette de Parties Casuelles, encarregado de recolher as avultadas‬
‭receitas provenientes da venda de cargos públicos. Em Castela, teoricamente, a venda de cargos públicos‬
‭era proibida devido à transferência de poder do soberano, mas foram utilizados vários artifícios jurídicos‬
‭para contornar esta proibição. A partir de 1540, e sobretudo a partir do reinado de Filipe II, as dificuldades‬
‭financeiras da coroa levaram à venda de cargos públicos, primeiro na administração local e depois na‬
‭administração central.‬
‭Para além de ser uma fonte de rendimento, a venalidade dos cargos alargava a base social do‬
‭poder monárquico, pois permitia a promoção e a participação nas esferas de poder de muitos membros da‬
‭pequena nobreza e da burguesia em ascensão. Por todas estas razões, parece inquestionável que a‬
‭burocracia venal contribuiu para o enraizamento do poder real. Significativamente, onde teve um‬
‭desenvolvimento mais precário - como no caso de Inglaterra‬
‭-No caso da Inglaterra, a instituição monárquica acabou por ser mais débil, quer em termos das suas raízes‬
‭sociais, quer em termos dos seus instrumentos de poder e controlo sobre essa mesma sociedade.‬

‭3.3 A diplomacia‬

‭ esde o Renascimento que os Estados, enquanto organizações de poder, têm de responder às‬
D
‭necessidades relacionais impostas por uma conceção do mundo internacional em que a figura do Estado‬
‭está inevitavelmente inserida num sistema de pluralidade estatal. Como consequência, os jogos de alianças,‬
‭ligas, cercos ou equilíbrios de poder adquiriram, nos tempos modernos, uma intensidade e complexidade‬
‭sem precedentes. Do mesmo modo, as relações externas dos Estados conheceram, a partir do século XVI,‬
‭um alargamento da esfera política. Países e reinos até então ignorados, ou que tinham sido deixados fora‬
‭da cristandade em consequência da expansão europeia, passaram a figurar nos escritos dos tratados‬
‭políticos, dos embaixadores e dos estadistas em geral.‬
‭O instrumento de relacionamento entre estes Estados que surgiu após a "explosão da nebulosa‬
‭cristã" da época medieval - na expressão de Jean De-lumeau - foi a diplomacia. Foram os italianos,‬
‭sobretudo os venezianos, que, a partir da segunda metade do século XV, começaram a nomear‬
‭embaixadores permanentes ou residentes; logo foram seguidos pelas monarquias de França e Espanha,‬
‭enquanto os últimos a adotar esta prática foram os czares russos, que nomearam os seus primeiros‬
‭embaixadores residentes no final do século XVII, no tempo de Pedro, o Grande.‬
‭É de salientar que a introdução de embaixadores residentes não aboliu o recurso a enviados‬
‭temporários, embaixadores com missões extraordinárias. De facto, tratava-se de figuras complementares: o‬
‭embaixador residente era um servidor dos interesses do seu príncipe numa corte estrangeira, cuja tarefa‬
‭consistia em obter informações, influenciar o processo de decisão política, etc.; enquanto os enviados‬
‭plenipotenciários tinham o poder de chegar a acordos e concluir tratados, levando consigo instruções‬
‭pormenorizadas e procurações da corte do seu príncipe.‬
‭Os relatórios ou despachos que os embaixadores forneciam aos respectivos governos constituem‬
‭uma documentação de enorme interesse para o estudo das relações internacionais. Destaca-se, em‬
‭particular, o modelo de relazioni elaborado pelos diplomatas venezianos, que eram obrigados a informar‬
‭exaustivamente o senado da capital do Adriático sobre a "força" dos estados (os seus domínios, população,‬
‭exército, marinha), sobre a sua "razão" (carácter dos súbditos, personalidade do príncipe) e sobre o‬
‭"conselho" (principais ministros, instituições e instrumentos de governo).‬
‭Em suma, a diplomacia, no sistema de soberania dos primeiros tempos modernos, era um veículo‬
‭de informação, um instrumento de negociação e uma parte necessária do planeamento e execução de‬
‭empreendimentos bélicos. A diplomacia parece, pois, pela sua própria essência, estar ligada ao regime do‬
‭ stado moderno. O seu desenvolvimento e significado reflectem-se num novo género literário que surge em‬
E
‭meados do século XV: as obras que caracterizam o modelo do "embaixador perfeito" e a diplomacia como‬
‭arte. Bernard de Rosier em Ambaxatorium brevilogus (1436), Ermolao Bárbaro em De officio legatis (1490)‬
‭ou Torcuato Tasso em II Message-ro, traçaram um modelo de comportamento cujo referente era o "ideal‬
‭cortês", tinha de ser dotado de qualidades como a graça, a eloquência e a capacidade de esconder os seus‬
‭próprios interesses e descobrir os dos outros.‬
‭Para além desta "diplomacia oficial", as monarquias europeias mais poderosas desenvolveram‬
‭redes de agentes, espiões, correspondentes e confidentes que, para além de obterem e analisarem todo o‬
‭tipo de informações, prestavam uma vasta gama de serviços aos respectivos governos, o que Miguel Ángel‬
‭Echevarría definiu como "diplomacia secreta". Estas actividades não se desenvolviam apenas no‬
‭estrangeiro, mas a vigilância e o controlo eram também exercidos à porta fechada, uma vez que o carácter‬
‭"compósito" destas monarquias e os perigos dos jogos políticos de fação, entre outros factores,‬
‭aconselhavam também a vigilância interna dos governantes. Para a Monarquia Hispânica, no final do século‬
‭XVI, estas actividades foram suficientemente importantes para dar origem ao cargo de "Espía Mayor del‬
‭Reino", uma figura ligada aos Conselhos de Estado e de Guerra cuja função era coordenar este tipo de‬
‭serviço.‬

‭3.4 Exércitos‬

‭Os séculos do início do período moderno foram tempos de conflitos intensos. Calcula-se que houve‬
‭ enos de dez anos de paz completa no século XVI e apenas quatro no século XVII. As causas das guerras‬
m
‭podem ser diversas: as reivindicações patrimoniais das dinastias europeias que aspiravam a alargar os seus‬
‭domínios territoriais, os confrontos religiosos que eclodiram com a ascensão do luso-romanismo, ou as‬
‭pressões contrárias no sentido da integração e da desintegração política nessa Europa de "monarquias‬
‭compósitas" institucionais, políticas e étnicas.‬
‭Sem dúvida, a ligação entre a ação da guerra e a estrutura do Estado foi reforçada nesta época,‬
‭uma vez que a construção e a manutenção de grandes exércitos desenvolveram tesourarias e sistemas‬
‭financeiros de tesouraria, órgãos de administração e de governo. Do mesmo modo, com o crescimento‬
‭contínuo dos seus instrumentos de força, o Estado tende a administrar, controlar e monopolizar os meios de‬
‭coerção eficazes no seu território.‬
‭no seu território.‬
‭As inovações militares na forma como a guerra era conduzida a partir do século XV tiveram um forte‬
‭impacto na vida económica, política e social da Europa renascentista. Niccolò Machiavelli, na sua Arte da‬
‭Guerra (1520-1521), já tinha percebido estas mudanças e previsto algumas das suas consequências. Para‬
‭o florentino, as vitórias dos piqueiros suíços sobre a cavalaria borgonhesa de Carlos, o Ousado, na década‬
‭de 1470, continham uma dupla lição: a infantaria tinha derrotado a cavalaria e a quantidade tinha superado‬
‭a qualidade. Como mostra o Quadro 4.1, no decurso dos séculos XVI e XVI as previsões de Maquiavel‬
‭tornaram-se realidade. O crescimento da dimensão dos exércitos deveu-se a inovações tácticas e‬
‭estratégicas que se sobrepuseram a concentrações maciças de tropas, e foi possível graças ao aumento‬
‭gradual das capacidades de mobilização, organização, aprovisionamento e pagamento dos Estados, de‬
‭modo a disporem de forças semelhantes.‬
‭Muitas das inovações que condicionaram o modelo de guerra nos tempos modernos têm as suas‬
‭raízes no Renascimento. De particular importância foram as inovações que se registaram nas fortificações e‬
‭construções defensivas a partir do século XV. O traço italiano, um novo estilo de fortificação baseado em‬
‭muros mais largos e baixos, construídos em tijolo, com baluartes equipados com artilharia e defendidos por‬
‭fossos largos, garantiu a superioridade da tática defensiva na guerra de cerco. Esta situação provocou uma‬
‭série de mudanças importantes na dimensão e na composição dos exércitos, bem como no carácter da‬
‭guerra: 1. Em primeiro lugar, eclipsou finalmente a cavalaria como principal força de combate; 2.‬
‭Finalmente, o valor da artilharia, que era utilizada cada vez mais maciçamente tanto em cercos como em‬
‭batalhas abertas, tornou-se cada vez mais importante.‬
‭Por outro lado, a partir do século XV, as potências europeias começaram a expandir-se a nível‬
‭mundial. Portugal e a monarquia espanhola, primeiro, depois a Holanda, a Inglaterra e a França, criaram‬
‭impérios longe do continente. As disputas marítimas e coloniais complementaram as guerras terrestres dos‬
‭Estados europeus. E embora estes impérios ultramarinos não tenham contribuído para a formação de‬
‭estruturas estatais na mesma medida que as guerras terrestres, também exigiram o desenvolvimento de‬
‭uma marinha forte e a expansão do número de funcionários e órgãos de governo. Ao mesmo tempo, estes‬
‭territórios conquistados e colonizados podiam ser uma fonte de riqueza que criava alternativas à tributação‬
‭interna; no caso da Monarquia Hispânica, o ouro e a prata americanos foram, como se sabe, um dos pilares‬
‭económicos que tornaram possível o seu longo período de hegemonia.‬
‭3.5 Tesouraria e finanças‬

‭Os Estados da era moderna necessitavam de um sistema permanente de receitas para fazer face‬
‭ s crescentes despesas geradas pelas suas administrações, redes diplomáticas, centros de corte e, em‬
à
‭particular, pelas suas onerosas empresas de guerra. Daí a necessidade de implementar políticas‬
‭económicas e mecanismos de extração e circulação de recursos monetários para os seus órgãos de‬
‭governo.‬
‭A necessidade premente destas grandes monarquias de aumentarem as suas receitas deparou-se,‬
‭no entanto, com várias limitações. A primeira era de natureza político-ideológica, uma vez que na Idade‬
‭Média se tinha estabelecido a doutrina de que o monarca se devia contentar com as receitas provenientes‬
‭do seu próprio património e com os rendimentos inerentes à sua condição de soberano: royalties -‬
‭monopólios sobre a exploração de minas, salinas, impostos sobre transacções mercantis, etc.; todas as‬
‭outras receitas tinham de ser aprovadas pelas assembleias representativas ou estaduais, ou seja, não‬
‭derivavam de um direito real mas de uma negociação contratual. Em segundo lugar, os Estados e as‬
‭monarquias tinham uma limitação jurídica, uma vez que a existência de privilégios fiscais de natureza‬
‭estigmática ou corporativa - como os que afectavam a nobreza e o clero em alguns encargos - restringia a‬
‭base tributária social. Por fim, havia uma limitação administrativa, pois o desenvolvimento do aparelho‬
‭burocrático revelou-se insuficiente para cobrar as fontes de receita e, consequentemente, as monarquias‬
‭tiveram de descentralizar ou privatizar muitas dessas funções.‬
‭As situações fiscais na Europa Ocidental eram muito diversas. Não só havia diferenças entre as‬
‭várias monarquias, como a sua natureza institucional e politicamente "compósita" implicava a existência de‬
‭diferentes sistemas fiscais nas províncias, reinos ou principados que as compunham, tendo os soberanos‬
‭diferentes capacidades de arrecadação de receitas em cada um desses territórios.‬
‭Apesar destas diversidades, os monarcas promoveram políticas que tinham um objetivo comum‬
‭fundamental: alargar a sua capacidade fiscal, tentando ultrapassar os obstáculos constitucionais que‬
‭limitavam a extração de recursos ou estabelecendo novos impostos sobre o consumo e expandindo as‬
‭actividades económicas. Assim, por exemplo, durante o reinado de Henrique VII de Inglaterra (1485-1509)‬
‭as receitas provenientes das terras da coroa, dos direitos aduaneiros, dos direitos feudais e das taxas e‬
‭multas legais triplicaram de cerca de 52 000 libras para cerca de 142 000 libras por ano. Note-se, no‬
‭entanto, que o reforço do "Estado fiscal" teve de ser amplamente negociado com as assembleias‬
‭representativas dos reinos e com as oligarquias locais e regionais, o que levou ao envolvimento de sectores‬
‭sociais mais alargados na nova ordem fiscal e financeira.‬
‭De igual modo, para colmatar a sua falta de dinheiro, os monarcas recorreram a medidas não‬
‭fiscais: vendas de terras e cargos, manipulações monetárias, petições ao papado para participar nos‬
‭rendimentos da instituição eclesiástica ou a apropriação dos rendimentos da comatian ti agus al de‬
‭nadangre 6s e entus s odios e ingre estavam à frente. Em consequência, as monarquias viram-se obrigadas‬
‭a recorrer ao crédito e a estabelecer ligações com a banca privada internacional. Assim, por exemplo, entre‬
‭1520 e 1556, Carlos V recebeu empréstimos sob a forma de contratos de assento no valor de 28,8 milhões‬
‭de ducados, comprometendo-se a reembolsar 38 milhões de ducados, ou seja, pagando uma taxa de juro‬
‭média de 31,7%. A dinâmica do endividamento conduziu frequentemente as monarquias à falência e‬
‭também à conversão de dívidas a curto prazo em dívidas consolidadas a longo prazo. Assim, os juros -‬
‭títulos da dívida pública castelhana - foram profusamente utilizados no reinado de Filipe II para cobrir o‬
‭défice do tesouro da coroa. Este maior entrosamento entre o capital privado e as finanças públicas, ao‬
‭mesmo tempo que tornava as monarquias economicamente dependentes de instituições e indivíduos‬
‭exteriores às suas esferas de poder, criava também uma teia de interesses que estreitava os laços entre os‬
‭soberanos, o capitalismo cosmopolita e as elites sociais que compravam esses títulos de dívida pública.‬

‭4. Relações entre os estados‬

‭As unidades políticas europeias dos séculos XI e XVII estavam dotadas de princípios de Estado‬
‭ inda limitados e frágeis. Se, por um lado, o poder real se reforçou e a corte, a burocracia, o exército e a‬
a
‭diplomacia se desenvolveram extraordinariamente, por outro, a pluralidade de jurisdições senhoriais e‬
‭municipais, os privilégios privados e os obstáculos ao pleno exercício da soberania continuaram presentes.‬
‭As grandes revoltas e sublevações contra o Estado, quer em defesa dos privilégios das‬
‭propriedades, quer em protesto contra o aumento dos impostos, foram uma constante na vida política‬
‭desses séculos.‬
‭A consideração destas forças antagónicas tem dado origem a um debate historiográfico que se tem‬
‭refugiado em duas posições: a dos que aplicam a esta equação o termo "Estado moderno", não só por‬
r‭ azões puramente práticas, mas também porque se deve, de alguma forma, destacar o processo de‬
‭transformação política que a Europa viveu desde a Guerra dos Cem Anos até ao Iluminismo; e a dos que‬
‭questionam - sobretudo os historiadores do direito - se alguma configuração política anterior à Revolução‬
‭Francesa e à Idade Contemporânea pode ser qualificada como Estado.‬
‭Embora os tratados políticos dos séculos XV e XV dificilmente tenham conseguido construir‬
‭sistemas completos e coerentes de soberania e de Estado, estavam conscientes da divisão da Cristandade‬
‭em diferentes repúblicas. Um dos elementos mais evidentes da pluralidade dos Estados manifesta-se‬
‭através das diferenças que os opõem (conflitos bélicos) e das iniciativas que os ligam (estratégias‬
‭matrimoniais e tratados políticos). A natureza destas iniciativas evidenciava a desigualdade entre os‬
‭Estados e, ao mesmo tempo, a necessidade de regular as relações entre eles com base no direito, mas não‬
‭apenas entre os Estados que faziam parte da República Cristã, mas entre todos aqueles que constituíam a‬
‭comunidade internacional, independentemente das suas culturas e religiões.‬

‭4.1. Os desafios das novas monarquias‬

‭As monarquias Tudor e Stuart na Grã-Bretanha e as monarquias Valois e Bourbon em França são‬
‭ s melhores exemplos de monarquias nacionais autoritárias. Apesar dos obstáculos encontrados no‬
o
‭processo de centralização e uniformização, estas monarquias assentavam em unidades territoriais mais ou‬
‭menos compactas. A Monarquia Hispânica, pelo contrário, que na época de Carlos V era constituída por‬
‭uma enorme diversidade de domínios extensos e dispersos, não conseguiu projetar o seu espaço à maneira‬
‭de um Estado. Às dificuldades de comunicação entre os territórios juntam-se a missão imperial de defesa da‬
‭cristandade que o ideal carolíngio assumiu e a rutura religiosa que a eclosão da Reforma Luterana‬
‭provocou.‬
‭A herança múltipla de Carlos V e a sua eleição como Sacro Imperador Romano-Germânico em‬
‭1519 reavivaram o sonho de uma monarquia universalista. A ideia imperial de Carlos V era uma‬
‭continuação da conceção medieval de império, em que o imperador deveria atuar como defensor e chefe do‬
‭corpo político da Cristandade. Travar a expansão turco-otomana nos Balcãs e no Mediterrâneo foi o‬
‭principal empreendimento de Carlos em defesa da Igreja e, como guardião da Cristandade, teve de‬
‭enfrentar o imperialismo dos soberanos unitários, em particular da França, e a resistência dos príncipes‬
‭alemães quando estes se começaram a converter ao luteranismo.‬
‭A ideia medieval de império ou sonho de Dante foi promovida pelo italiano Mercurio Gattinara,‬
‭Grão-Chanceler de Carlos V, e teorizada por intelectuais como o jurista navarro Miguel de Ulzurrun e os‬
‭erasmistas Juan Luis Vives e Alfonso de Valdés. No entanto, esta proposta, que defendia a submissão de‬
‭todos os príncipes ao poder secular do império, era tão anacrónica como quimérica. Mesmo assim, as‬
‭vitórias de Carlos V sobre o desconfiado Francisco I de França e o Papa, na terceira década do século XVI,‬
‭deram um novo fôlego a este projeto.‬
‭O curso dos acontecimentos posteriores moderou este objetivo, transformando o domínio temporal‬
‭do imperador numa supremacia moral destinada a manter a unidade da Igreja e a concórdia entre os reis‬
‭soberanos na luta contra os turcos. A nova conceção imperial rejeitou a doutrina da monarquia universalis e‬
‭aceitou plenamente a pluralidade dos Estados. Esta modernização da obra do imperador foi delineada pelas‬
‭obras de Fray Antonio de Guevara, Pedro Mexía e Juan Ginés de Sepúlveda, mas a pressão dos territórios‬
‭reformados transformou a construção imperial numa utopia.‬
‭A doutrina religiosa de Lutero contribuiu para reforçar os poderes dos governantes. Os príncipes‬
‭alemães que abraçaram o movimento reformista acabaram por se dissociar da autoridade espiritual do papa‬
‭e do projeto imperial de Carlos V. Através do princípio do livre exame e da teoria do sacerdócio universal,‬
‭Roma perdeu o monopólio da interpretação da Bíblia e acabou com a diferença hierárquica entre leigos e‬
‭clérigos. Estas ideias foram, no entanto, interpretadas pelos anabaptistas e pelas massas camponesas‬
‭alemãs empobrecidas como uma forma de anarquismo, chegando mesmo a reivindicar o reino de Deus com‬
‭base na igualdade universal e na comunidade de bens. O seu levantamento revolucionário em 1525 revelou‬
‭o perigo que podiam representar para a ordem estabelecida, pelo que os príncipes, incitados pelo próprio‬
‭Lutero, que recuou da sua posição inicial sobre este ponto, reprimiram violentamente os camponeses. Esta‬
‭experiência levou Lutero a procurar a tutela dos príncipes, pelo que o movimento reformado foi organizado e‬
‭dirigido sob a autoridade do senhor territorial. Os príncipes luteranos, para além do seu poder civil absoluto,‬
‭passaram a governar a igreja reformada por direito divino. Esta nova forma de cesaropapismo foi ainda‬
‭alimentada pela apropriação dos bens que a Igreja Católica tinha acumulado nos seus territórios.‬
‭Os esforços das potências católicas - lideradas por Carlos V - para erradicar a heresia na‬
‭Alemanha, especialmente após a Dieta de Speyer em 1529, provocaram a resistência armada dos príncipes‬
‭luteranos, que começaram a reivindicar a plena soberania dos seus Estados contra a autoridade do‬
‭imperador. Apesar dos esforços diplomáticos e militares de Carlos V para manter a unidade do mundo‬
c‭ ristão e salvaguardar a sua ideia renovada de império através da Paz de Augsburgo, em 1555, teve de‬
‭aceitar o seu fracasso político e religioso. O princípio de cuius regio, eius religio, para além de dar aos‬
‭príncipes e senhores do Sacro Império Romano-Germânico a liberdade de escolherem a sua religião e de a‬
‭imporem aos seus súbditos, era um testemunho da nova afirmação do Estado.‬
‭Uma vez fracturado o ideal de uma cristandade politicamente unida, as propostas de conciliação das‬
‭discórdias entre Estados passaram pelo estabelecimento de outras fórmulas de organização universal.‬

‭4.2. O direito internacional‬

‭As correntes de pensamento político mais vanguardistas do século XVI, nomeadamente as‬
f‭ormuladas pelos autores da escola espanhola da segunda escolástica, opunham-se à jurisdição universal‬
‭do imperador e negavam ao papado qualquer tipo de poder temporal sobre os príncipes cristãos. A única‬
‭prerrogativa que autores como Francisco de Vitoria ou o jesuíta italiano Robert Bellarmine atribuíam ao‬
‭Sumo Pontífice sobre a soberania dos reis era a de um "poder indireto", ou seja, a sua interferência só se‬
‭justificava quando os fins espirituais estavam ameaçados.‬
‭O dominicano Francisco de Vitoria (1483-1546) é o primeiro teórico de um mundo dividido. Para‬
‭Vitória, os diferentes Estados faziam parte de uma corporação internacional de dimensão planetária, que‬
‭integrava soberanos cristãos e pagãos. Esta sociedade internacional estava orientada para o bem comum,‬
‭de acordo com o direito das nações, que todos os Estados possuíam. O ius gentium, subordinado ao direito‬
‭natural, só podia conduzir a uma relação benéfica entre os povos. Este princípio natural traduziu-se, por sua‬
‭vez, em direito positivo e, logicamente, em leis justas para todo o mundo. Abriu-se assim a possibilidade de‬
‭estabelecer os princípios do direito internacional.‬
‭Um dos casos mais interessantes discutidos por Vitoria é o‬‭ius communicationis,‬‭ou seja, o direito‬
‭das pessoas a deslocarem-se de um lugar para outro e a relacionarem-se livremente entre si. A par deste‬
‭direito, existem outros direitos mais específicos, como o direito de comércio ou o direito de emigrar. No‬
‭entanto, esta abordagem otimista, articulada em grande parte em torno do problema da ocupação legítima‬
‭das Índias por parte de Espanha, adoptou posições diferentes após a divisão das possessões de Carlos V‬
‭entre o seu filho Filipe II e o seu irmão Fernando I (1556) e o impulso espiritual da Contra-Reforma que‬
‭suscitou o Concílio de Trento (1545-1563).‬
‭A escola jesuíta desenvolveu uma abordagem muito mais pragmática da realidade dos novos‬
‭Estados. Luis de Molina (1535-1600) e Francisco Suárez (1548-1617), apesar de seguirem muitos aspectos‬
‭das teorias de Vitória, colocaram o direito das nações no âmbito do direito positivo consuetudinário, em que‬
‭a soberania de cada Estado prevalecia sobre o ius gentium. O direito internacional que vincula os Estados‬
‭não é uma iniciativa "necessária" nem implica um compromisso imutável, embora seja desejável para o bem‬
‭comum universal. As relações internacionais são, portanto, anárquicas e estimuladas pelos interesses‬
‭particulares dos Estados.‬
‭Numa perspetiva calvinista, o holandês Hugo Grotius (1583-1645) chegou a conclusões‬
‭semelhantes. Na sequência de Vitoria e Suárez, encontrou no quadro normativo gerado pelos tratados entre‬
‭Estados um princípio de "direito internacional" que podia ajudar a manter a paz. Era uma resposta prática ao‬
‭confronto inerente que animava as monarquias absolutas e um meio de regular os apetites coloniais‬
‭perseguidos pelas grandes potências europeias. O conflito colonial é um exemplo do que, se as‬
‭negociações falhassem, poderia acabar numa "guerra justa". Enquanto a Espanha e Portugal baseavam o‬
‭seu monopólio dos mares em várias bulas papais, outros países, como os Países Baixos, justificavam a sua‬
‭liberdade nos mares com base no ius communicationis.‬
‭A prática do direito internacional reforçou-se na sequência dos conflitos. Assim, a Paz de Vestefália‬
‭(1648), que pôs termo à Guerra dos Trinta Anos, consagrou o direito internacional moderno. Reconheceu a‬
‭existência de um corpo de Estados envolvidos num processo de paz que estava acima dos acordos e‬
‭desacordos individuais. Tratava-se de uma solução secular que reconhecia igualmente o direito dos‬
‭príncipes e das cidades do Sacro Império Romano-Germânico a desenvolverem compromissos diplomáticos‬
‭independentemente do imperador e que, por fim, reconhecia um certo número de Estados mais pequenos,‬
‭que confiavam a sua segurança à nova ordem internacional.‬
‭Capítulo 11‬
‭Os câmbios sociais‬
‭ s historiadores discutem a transformação social da sociedade europeia na transição da Idade‬
O
‭Média para a Idade Moderna. Para a historiografia marxista, ambas pertencem ao modo de produção‬
‭feudal, mas com diferenças entre os dois períodos. O feudalismo após o século XVI seria um "feudalismo‬
‭tardio". A sociedade europeia era basicamente agrária, com a nobreza ocupando uma posição privilegiada e‬
‭preeminente. A economia urbana é frequentemente apresentada como antitética ao feudalismo, mas, de‬
‭certo modo, a burguesia urbana coexistiu e colaborou com a nobreza, se não mesmo se tornou dominadora‬
‭do mundo rural.‬
‭A sociedade do século XVII era ainda hierárquica e tradicional. Centrava-se num grupo social‬
‭qualquer: a família, a linhagem alargada, a corporação laboral ou profissional, a comunidade de vizinhos, o‬
‭bairro ou a paróquia. É por esta razão que falamos de sociedade colectiva. A interferência externa ao grupo,‬
‭quer de indivíduos isolados quer de um poder organizado, era fortemente rejeitada em nome da moral‬
‭colectiva. Acreditava-se que a defesa dos direitos tradicionais podia ser conseguida através de atitudes de‬
‭rebeldia, e mesmo que o povo (ou uma parte dele, como a nobreza) tinha não só o direito, mas até o dever,‬
‭de se rebelar se as autoridades não fossem diligentes no cumprimento das suas obrigações, por exemplo,‬
‭na perseguição da heresia ou de pecados considerados "nefastos", como a homossexualidade, ou na‬
‭política de manter o pão acessível às classes trabalhadoras.‬

‭1. A nobreza‬

‭A nobreza continuou a ser o principal património privilegiado e o ponto de referência para os outros‬
‭ rupos da sociedade. Teoricamente, era definida pela sua função militar, embora fosse mais correto defini-la‬
g
‭como uma classe fundiária hereditária de origem militar. A nível europeu, representava entre um e dois por‬
‭cento da população, embora alguns países, como a Hungria e a Polónia, e algumas regiões do norte de‬
‭Espanha se caracterizassem por percentagens de cerca de 10 por cento ou mais. Os teóricos da nobreza‬
‭tentaram também justificar o estatuto privilegiado dos nobres fazendo-os descendentes dos antigos‬
‭conquistadores germânicos: os francos, os godos em Espanha ou os normandos em Inglaterra. Esta‬
‭possível origem étnica significava que o estatuto de nobreza era o mesmo para todos os membros da‬
‭nobreza. Mas a realidade é que, no seio da nobreza, havia diferenças de nível económico e de posição‬
‭social. É comum falar-se de alta e baixa nobreza. A diferença entre os dois grupos podia ser definida pela‬
‭posse de senhorios jurisdicionais, ou pela posse do título de conde, duque, marquês ou similar. No século‬
‭XVI, praticamente todos os nobres titulados eram senhores jurisdicionais, ao contrário do que aconteceu‬
‭nos séculos posteriores. Por outro lado, havia muitos senhores jurisdicionais que não possuíam títulos, mas‬
‭pertenciam à baixa nobreza. E, naturalmente, havia um certo número de simples senhores que não‬
‭detinham senhorios jurisdicionais, mas eram proprietários rurais ou urbanos.‬
‭Ao contrário do que pregavam os seus teóricos, o estatuto nobiliárquico não era imutável, mas sim o‬
‭resultado de uma evolução histórica. A maioria dos títulos nobiliárquicos existentes na Europa não teve‬
‭origem medieval, tendo sido concedidos pelos reis em diferentes épocas. Os reis concederam promoções‬
‭dentro das fileiras da nobreza titulada, deram títulos a simples cavaleiros ou transformaram em nobres ou‬
‭"militares" indivíduos e famílias que, até então, eram obviamente plebeus. O fenómeno do enobrecimento foi‬
‭possível porque existia uma zona mista de pessoas que, sem serem legalmente nobres, viviam como‬
‭nobres (mais nobilium), tanto pela origem dos seus rendimentos, sob a forma de rendas, como pela‬
‭ostentação com que os gastavam. Eram oligarquias urbanas que costumamos designar por "patrícios",‬
‭porque eles próprios gostavam de se apresentar como descendentes dos patrícios da Roma antiga,‬
‭distintos e superiores aos plebeus.‬
‭O estatuto de nobreza era transmitido por herança a todos os filhos, mas o título não o era. Nos‬
‭países de direito romano, ou influenciados por ele, só o filho mais velho de um conde, por exemplo, herdava‬
‭o condado. Este era o sistema de sucessão seguido pelos lordes ingleses. Os outros filhos seriam‬
‭simplesmente cavaleiros, que, se tivessem sorte, poderiam obter um novo título. No que respeita à herança‬
‭de bens, o sistema de primogenitura do direito romano ainda não estava generalizado na Europa no século‬
‭XVI. Nos países germânicos e eslavos, por exemplo, vigorava o sistema de repartição igualitária dos bens‬
‭entre os filhos. Esta é uma das razões da extrema fragmentação política na Alemanha.‬
‭A base da riqueza nobre era a propriedade privilegiada da terra através do sistema senhorial. Nas‬
‭suas mansões, o nobre não era apenas o proprietário, mas detinha também a autoridade pública, incluindo‬
‭a autoridade judicial e a nomeação de autoridades locais. Do ponto de vista económico, e em consequência‬
‭da crise dos últimos séculos medievais, os senhores cediam geralmente a exploração da maior parte das‬
s‭ uas terras aos camponeses, quer em troca de rendas fixas, quer em troca de uma parte das colheitas.‬
‭Restava uma "reserva senhorial" que era geralmente explorada através do trabalho camponês, muitas‬
‭vezes forçado. Numa época de alta dos preços, como a do século XI, era mais rentável receber uma parte‬
‭da colheita (renda em espécie) ou mesmo aumentar a produção da reserva, obrigando os camponeses a‬
‭trabalhos forçados. Este processo, a que Engels chamou "segunda servidão", estava a começar no final do‬
‭século na Europa de Leste, mas estava longe de estar irreversivelmente consolidado.‬
‭Os senhores dispunham de muitos meios de coerção económica sobre os camponeses. Detinham o‬
‭monopólio de meios técnicos como os moinhos (de cereais e de azeite) e as ferrarias, cobravam impostos‬
‭sobre as vias de comunicação (pontes, estradas, barcos), detinham o monopólio da utilização da terra.‬
‭Gozavam de direitos preferenciais para vender os seus próprios produtos em melhores condições e em‬
‭melhores prazos do que os camponeses, gozavam de direitos exclusivos de caça e pesca (o que deu‬
‭origem à existência de caçadores furtivos), cobravam direitos sobre as vendas ou transmissões hereditárias‬
‭das propriedades dos camponeses, em suma, gozavam de uma situação privilegiada que lhes permitia viver‬
‭do trabalho dos seus súbditos e, ao mesmo tempo, ditar as regras que regulavam esse trabalho.‬
‭Mas se os rendimentos eram elevados, também o eram as despesas. Um grande senhor tinha de‬
‭manter um grande número de criados e levar uma vida sumptuosa, sem poupar despesas; chamava-se a‬
‭isto ser "liberal". Tinha de sustentar financeiramente as suas filhas e desenvolver uma política matrimonial‬
‭correcta, procurando noras bem dotadas para os seus filhos. Uma consequência da "liberalidade" era a‬
‭construção e manutenção de vários palácios e residências, que eram dispendiosos. A administração de uma‬
‭grande propriedade nobre não era fácil. Na realidade, uma mansão funcionava graças ao aluguel de direitos‬
‭garantidos por comerciantes ou camponeses ricos. No final do século XVI, muitas casas nobres tinham‬
‭graves problemas financeiros e estavam endividadas.‬
‭Também aqui entra em jogo o estatuto privilegiado da nobreza e a sua dependência do poder real.‬
‭Um dos privilégios dos nobres era o facto de não poderem ser presos por dívidas. Os monarcas concediam‬
‭todo o tipo de vantagens económicas para que os aristocratas não fossem obrigados a pagar aos seus‬
‭credores. Além disso, concediam-lhes toda a espécie de misericórdias sob a forma de privatização dos‬
‭impostos ou de concessão de cargos lucrativos na administração civil ou eclesiástica para si e para os seus‬
‭filhos. Embora alguns historiadores tenham referido a existência de uma "crise da aristocracia" a partir de‬
‭meados do século XI, o termo parece hoje exagerado e deve ser qualificado. De qualquer modo, a ruína de‬
‭algumas famílias foi compensada pela ascensão de outras, como os Spencers de Althorp, em Inglaterra,‬
‭grandes proprietários de gado, que ainda não tinham obtido a dignidade de condes no reinado de Isabel I.‬

‭2. A população urbana‬

‭ as cidades, existiam três grandes grupos sociais numericamente díspares. Havia uma minoria de‬
N
‭burgueses, uma maioria de artesãos e também um grande número de servos e trabalhadores não‬
‭qualificados, para não falar dos sectores marginalizados.‬
‭A definição do conceito de burguesia na Europa do século XVI não é fácil. As cidades eram muitas‬
‭vezes governadas por famílias de "cidadãos" ou "burgueses honestos", um estatuto semi-nobre e‬
‭hereditário, que viviam dos rendimentos da propriedade ou do capital (empréstimos de vários tipos). Os‬
‭"cidadãos" eram frequentemente chefes exclusivos ou preeminentes dos governos municipais.‬
‭De um modo geral, a burguesia do Antigo Regime é geralmente assimilada aos comerciantes. No‬
‭entanto, os diplomados universitários que viviam da sua profissão eram também importantes pela sua‬
‭projeção social e cultural: medicina e leis. Ambos tentavam aproximar-se de um estatuto privilegiado e‬
‭consideravam o seu trabalho como "honorário", uma expressão que sobreviveu até aos nossos dias. Os‬
‭médicos tinham tendência a confiar mais nos seus próprios esforços, enquanto os licenciados em Direito‬
‭podiam encontrar emprego nos numerosos tribunais da administração civil e eclesiástica. A burocracia‬
‭também oferecia emprego a pessoas sem estatuto nobre: eram os "escritórios de pena" de escrivães e‬
‭escribas. Em geral, as profissões liberais não eram consideradas incompatíveis com a nobreza, ao passo‬
‭que a prática do comércio o era.‬
‭Eram precisamente os comerciantes que se orgulhavam da sua experiência prática. Costumavam‬
‭enviar os seus filhos para passar um período de formação noutras cidades, em empresas de familiares ou‬
‭correspondentes. Esta prática era mais viável para os grandes comerciantes internacionais, envolvidos em‬
‭redes mercantis ou financeiras. No período renascentista e durante todo o século XVI, não havia banqueiros‬
‭especializados. Os financeiros eram grandes comerciantes grossistas que, entre muitos outros bens de‬
‭valor, negociavam em dinheiro, através da especulação e da emissão de letras de câmbio. Só no caso dos‬
‭financeiros mais ligados às grandes monarquias, como foi o caso dos Fuggers alemães e, sobretudo, dos‬
‭genoveses no reinado de Filipe II, é que a especialização financeira se aproximou perigosamente da‬
‭dedicação exclusiva. Mas, de um modo geral, os grandes financeiros do século XVI eram, nas palavras dos‬
‭ istoriadores económicos, "banqueiros mercantis". O sistema tinha um precedente claro nas cidades‬
h
‭italianas do século V e especialmente em Florença, onde a ascensão e queda da chamada "Banca Médici"‬
‭precedeu o controlo da família Médici sobre a política municipal. Os Médicis deixaram de ser uma entidade‬
‭significativa em termos de atividade económica em 1492, dois anos antes de perderem temporariamente o‬
‭poder político. As grandes casas comerciais e financeiras italianas (de Florença, mas também de outras‬
‭cidades da Toscânia ou de outras regiões de Itália) dominavam a vida económica de Lyon, a principal‬
‭cidade industrial e financeira de França, onde também se encontravam grandes comerciantes da Alemanha‬
‭e da Suíça.‬
‭Entre as numerosas actividades dos Médicis e dos Fugger, contava-se a indústria, sobretudo a‬
‭indústria têxtil. Mas a burguesia do século XVI era essencialmente comercial ou mesmo financeira, e os‬
‭seus investimentos industriais eram limitados. Com exceção de alguns sectores específicos, a maior parte‬
‭da produção industrial estava nas mãos de artesãos especializados, que se organizavam em corporações‬
‭nas cidades.‬
‭Os grémios ou corporações de artesãos tinham diferentes designações, que variavam de país para‬
‭país e mesmo dentro de cada país. Em Itália, por exemplo, chamavam-se "artes". Algumas destas‬
‭denominações refletiam as origens religiosas das corporações ou as suas funções de culto ou de‬
‭assistência: eram "confrarias", "mistérios", "abadias", "irmandades". As corporações regulavam a formação‬
‭profissional através do sistema de aprendizagem e organizavam as condições de trabalho, o fabrico e a‬
‭venda dos produtos.‬
‭Ao longo do século XVII, o número de corporações e de artesãos em geral aumentou. Nas grandes‬
‭cidades, o número de grémios aumentou devido a uma especialização, por vezes excessiva. Em Barcelona,‬
‭por exemplo, a indústria da seda estava dividida em cinco grémios diferentes, de acordo com as‬
‭especialidades. A difusão da tipografia levou ao aparecimento de corporações de tipógrafos e livreiros,‬
‭como a Stationers Company em Londres e o Corps de la Livrairie em Paris. Nas cidades de média‬
‭dimensão, onde o número de artesãos era mais reduzido, as diferentes especialidades foram agrupadas em‬
‭"corporações de ofícios", sob o patrono de um santo, por exemplo, Santo Eloy, no caso dos artesãos de‬
‭metal, incluindo os ourives. Em Inglaterra, os historiadores designam estas corporações de ofícios por‬
‭corporações "amalgamadas".‬
‭A partir do século XV, o acesso ao estatuto de mestre faz-se através de um exame de mestre. Este‬
‭ato devia comprovar, em primeiro lugar, a formação técnica do aspirante, através da realização de uma‬
‭"obra-prima", mas, na prática, tornou-se um mecanismo de seleção económica e social, uma vez que as‬
‭despesas a suportar eram elevadas, incluindo muitas vezes um "refresco" para os examinadores e outras‬
‭autoridades da guilda. Os filhos e genros dos professores eram frequentemente isentos, total ou‬
‭parcialmente, destas taxas, o que favorecia também os naturais da cidade.‬
‭As discriminações de vária ordem limitavam a entrada nos grémios. Em geral, os filhos ilegítimos‬
‭não eram admitidos. Havia discriminação religiosa ou étnica. Muitas corporações alemãs não aceitavam‬
‭candidatos de origem eslava. Muitas corporações espanholas rejeitavam os candidatos de origem‬
‭muçulmana ou judaica. As discriminações eram mais frequentes nas corporações mais ricas, que impunham‬
‭barreiras ao trabalho meramente manual ou "mecânico".‬
‭Os grémios estavam estreitamente ligados às administrações municipais. Na melhor das hipóteses,‬
‭participavam neles. O governo de Londres era formalmente conduzido através das guildas, que se reuniam‬
‭no Guild Hall. O chefe do bairro ou "major" tinha de pertencer a uma das doze grandes corporações.‬
‭Também em Paris, o governo municipal estava ligado às seis grandes corporações, os chamados Six Corps‬
‭des Marchands: comerciantes de tecidos, comerciantes de tecidos e sedas, comerciantes de especiarias,‬
‭ourives, peleiros e fabricantes de bonés.‬
‭Em geral, os artesãos participavam nos governos municipais depois dos cidadãos e dos‬
‭comerciantes. A evolução nem sempre foi linear. As corporações tinham conquistado posições no governo‬
‭municipal em muitas cidades alemãs durante os séculos XIV e XV (fala-se mesmo de uma "revolução das‬
‭corporações"), mas o século XVI assistiu a um declínio do papel dos artesãos e a uma aristocratização dos‬
‭conselhos. Os artesãos, e mesmo os comerciantes, foram marginalizados dos conselhos de muitas cidades‬
‭italianas, que constituíram um "governo estreito" em vez do anterior "governo largo" ou "governo ancho".‬
‭Muitos jovens jornaleiros, jornaleiros ou artífices das corporações nunca conseguiram passar o‬
‭exame de mestre, ficando sempre numa condição intermédia. Apesar da hostilidade dos mestres, estes‬
‭costumavam organizar-se em "grémios de jovens", sobretudo nos ofícios mais numerosos, como os‬
‭alfaiates e os sapateiros. As organizações semi-clandestinas de jornaleiros ou compagnons em França, as‬
‭chamadas compagnonnages, são particularmente conhecidas e chegaram a ter uma organização complexa.‬
‭Os membros das corporações eram trabalhadores especializados. Mas nas cidades havia uma‬
‭grande massa de operários não qualificados que trabalhavam geralmente por um salário diário em‬
‭empregos ocasionais.‬
‭3. Los campesinos‬

‭Cerca de 80 % ou mais da população da Europa era composta por camponeses. A investigação‬


‭ istórica pôs em evidência as diferenças internas deste grupo social. As diferenças dependiam das‬
h
‭condições de exploração da terra: se eram ou não proprietários, em que condições, de que capital‬
‭dispunham (animais de criação ou utensílios agrícolas), que pagamentos eram obrigados a efetuar, etc. Em‬
‭princípio, considera-se que os camponeses que viviam em regime senhorial estavam em piores condições,‬
‭mas tudo dependia de outros factores. Como a maioria não era proprietária de terras, os camponeses não‬
‭senhoriais eram também obrigados a pagar uma renda pela sua propriedade e trabalhavam geralmente de‬
‭forma precária, devendo já a colheita aos comerciantes ou aos camponeses mais ricos. Além disso, todos‬
‭os cultivadores directos, ou proprietários agrícolas, eram obrigados a pagar um décimo teórico da sua‬
‭produção (o dízimo) para a manutenção do clero. Mesmo nos países protestantes, os dízimos continuavam‬
‭a ser pagos, quer às igrejas reformadas, quer à nobreza que se tinha apoderado das suas propriedades.‬
‭Se o camponês não era um proprietário livre ou um senhorio alodial (em Inglaterra, free-holder), os‬
‭melhores contratos eram os de longa duração, perpétuos e hereditários, segundo o modelo romano da‬
‭enfiteuse. Consistiam geralmente em transferências de terras não cultivadas, que o camponês utilizava,‬
‭contra o pagamento de uma taxa moderada, o censo enfitêutico, e o reconhecimento da autoridade do‬
‭"senhor eminente" em caso de venda ou de herança. O camponês beneficiava do domínio útil ou do‬
‭usufruto da propriedade. Era um contrato importante no início de um ciclo económico, como no início do‬
‭século XV, quando se tratava de explorar terras não cultivadas.‬
‭Um segundo tipo de contrato era o arrendamento, em que o camponês pagava os custos de‬
‭exploração. Os proprietários de terras recorriam, em geral, a contratos de curta duração. Um terceiro tipo‬
‭era o contrato de meação, em que o proprietário suportava uma parte dos custos e recebia em troca uma‬
‭parte da produção, metade, um terço ou outra percentagem, consoante o tipo de cultura. Este contrato‬
‭generalizou-se por volta de 1500 em França e em Itália.‬
‭Na sociedade rural, a propriedade comunal e os direitos coletivos estavam profundamente‬
‭enraizados. As freguesias detinham a propriedade ou o direito de utilizar as florestas e os prados para a‬
‭exploração da madeira ou para a manutenção do gado. Além disso, as propriedades individuais estavam‬
‭sujeitas a direitos de utilização colectiva, uma vez efectuada a colheita ou a vindima. Este direito de respigar‬
‭ou de pastar os rebentos de uva servia para alimentar o gado dos camponeses pobres. Para exercer este‬
‭direito, era indispensável que os campos permanecessem abertos e que os camponeses respeitassem um‬
‭ritmo de trabalho uniforme, regulado pela coletividade.‬
‭Ao longo da Idade Moderna, as terras colectivas foram sujeitas a um forte processo de erosão por‬
‭parte dos camponeses ricos, dos senhores, que se consideravam proprietários das montanhas e dos‬
‭prados, ou da burguesia das cidades, que se tinha tornado proprietária rural. Os pântanos, que também‬
‭costumavam ser utilizados coletivamente, foram sujeitos a um processo de recuperação, a fim de serem‬
‭convertidos em propriedade privada.‬
‭O escalão superior da sociedade camponesa era ocupado por uma pequena minoria de 5% de‬
‭camponeses ricos, proprietários ou grandes rendeiros. Eram os chamados “gros laboureurs” camponeses‬
‭honestos ou ricos vilões". Eram frequentemente os intermediários do regime senhorial, possuíam gado e‬
‭empregavam trabalho assalariado. Por detrás destes "poderosos", existia no século XVI um sólido grupo de‬
‭camponeses médios, independentes, mas não tão ricos como os anteriores. Representando até 25% do‬
‭total, constituíam a espinha dorsal da sociedade camponesa e impediam uma polarização social extrema.‬
‭A maioria da população rural europeia, entre 6 e 70 %, era constituída por camponeses‬
‭dependentes, com pouca ou nenhuma terra. Muitas vezes, tinham de efetuar trabalhos sazonais para os‬
‭seus vizinhos mais abastados. Viviam à mercê da fome e das más colheitas, que os impediam de pagar‬
‭rendas e impostos. Podiam perder as suas terras à mais pequena dificuldade. No final do século, a sua‬
‭proporção tinha aumentado devido à crise económica.‬
‭No entanto, a posse de um pedaço de terra diferenciava os camponeses dependentes dos‬
‭jornaleiros e dos trabalhadores agrícolas. Enquanto os primeiros tendiam a ser casados e domiciliados, os‬
‭segundos eram jovens solteiros que se consideravam temporariamente parte da família do patrão num‬
‭sentido lato (como os aprendizes nas guildas ou os criados nas cidades). Estes servos-casados ou servos‬
‭agrícolas eram mais definidores da sociedade rural do que simples operários.‬
‭4. Los sectores marginados‬
‭Os historiadores que explicaram exaustivamente a estrutura da sociedade europeia do início da‬
‭Idade Moderna consideram que a pobreza era um elemento essencial da mesma. Calcula-se geralmente‬
‭que 10 % da população vivia na pobreza. Mas é importante esclarecer o que os historiadores querem dizer‬
‭quando falam de pobreza em termos da sociedade do século XI.‬
‭As classes trabalhadoras, urbanas e rurais, viviam no limiar da pobreza, à mercê de uma situação‬
‭económica negativa. Uma má colheita ou uma situação económica negativa podiam deixar uma família‬
‭trabalhadora, rural ou urbana, camponesa ou artesã, sem os seus meios de subsistência habituais. O‬
‭aumento do número de pobres, tal como observado nos testemunhos da época, coincidiu com as‬
‭dificuldades económicas conhecidas. Estas podiam ser de carácter transitório, embora graves pelas suas‬
‭consequências imediatas, como aconteceu por volta de 1530 em Veneza. Pior foi a deterioração progressiva‬
‭do nível de vida que se verificou na segunda metade do século com o aumento do preço dos géneros‬
‭alimentícios. O limiar da pobreza deslocou-se e passou a abranger uma grande parte da classe operária.‬
‭Estes protestavam não tanto contra os baixos salários, mas contra os preços elevados, ou seja, exprimiam‬
‭as suas queixas sobretudo enquanto consumidores. Os assalariados puros não constituíam a maioria da‬
‭população ativa. Por outro lado, não era raro que uma parte do salário fosse recebida em espécie, pelo que‬
‭os dados relativos ao salário bruto nem sempre são totalmente fiáveis.‬
‭Uma vez que o trabalho familiar estava centrado no chefe de família, a morte ou a incapacidade de‬
‭trabalhar do chefe de família podia conduzir à pobreza. Por esta razão, havia categorias específicas da‬
‭população que eram praticamente assimiladas aos pobres: viúvas, doentes, idosos, reduzidos à‬
‭mendicidade por falta de recursos.‬
‭A pobreza era uma caraterística permanente dessa sociedade, apesar da multiplicidade de‬
‭instituições religiosas cujo objetivo era resolvê-la ou atenuá-la. Mas, no primeiro terço do século XVI,‬
‭registou-se uma mudança importante na atitude oficial face ao pauperismo. A mudança não foi certamente‬
‭radical. Já na Idade Média se distinguia entre os "bons" e os "maus pobres". Mas a visão cristã tradicional‬
‭era a de uma certa valorização dos "pobres de Jesus Cristo". A esmola indiscriminada era considerada‬
‭positiva. De facto, algumas das ordens religiosas mais importantes, as que tinham maior presença nas‬
‭cidades, como os franciscanos e os dominicanos, definiam-se como "mendicantes" e pediam publicamente‬
‭esmolas para os seus conventos.‬
‭Em contraste com esta visão tradicional, algumas cidades dos Países Baixos e da Alemanha‬
‭criaram uma nova prática política para a pobreza. Era a chamada "polícia dos pobres" (polícia não no‬
‭sentido de vigilância, mas no sentido de ordem, de acordo com a palavra grega "polis", ou seja, cidade).‬
‭Esta nova realidade assistencial foi exposta, entre outros, por Juan Luis Vives, um humanista valenciano‬
‭radicado nos Países Baixos, na sua obra latina de 1523, intitulada De subventione pauperum. Nos anos‬
‭seguintes, a polémica continuou entre os partidários da caridade tradicional e os defensores da nova‬
‭"polícia".‬
‭Estes últimos propunham exercer e regular a assistência social através de instituições municipais e‬
‭não religiosas e encorajar os necessitados a trabalhar mais ou menos à força. O sistema estendeu-se a‬
‭França, Itália e Espanha. No primeiro destes países, foram criadas instituições denominadas "Bureaux‬
‭(offices) de pauvres". Em Itália, foram fundados grandes "Albergues de pobres", nomeadamente em‬
‭Génova. Durante a segunda metade do século, as grandes cidades italianas criaram "montes de piedad"‬
‭para conceder crédito às classes trabalhadoras. Alguns grandes municípios ingleses, como Norwich (na‬
‭altura a segunda maior cidade do país), criaram um imposto para ajudar os pobres. O sistema foi‬
‭generalizado em 1598, por ato do Parlamento. Cada paróquia tornou-se responsável pelo sustento dos‬
‭"seus" pobres. Considerado como uma solução de emergência, o sistema da Lei dos Pobres manteve-se‬
‭em vigor, com modificações, até ao primeiro terço do século XIX.‬
‭Os pobres que não eram controlados por uma paróquia eram considerados vagabundos. Eram‬
‭perigosos porque não dependiam de um senhor; eram, na expressão inglesa, masterless men. A maior‬
‭parte dos vagabundos eram camponeses pobres que tinham perdido as suas terras e não dispunham de‬
‭tantas instituições de caridade como nas cidades. A doutrina oficial, durante toda a Idade Moderna, era a de‬
‭que não existia desemprego involuntário. Quem não tinha trabalho tinha de ser obrigado a trabalhar, de‬
‭forma mais ou menos compulsiva, para pagar a sua manutenção em instituições organizadas e controladas‬
‭pelas autoridades civis e eclesiásticas, como as Casas de Misericórdia que foram fundadas nas cidades‬
‭espanholas a partir de 1580.‬
‭A prevenção das autoridades contra os vagabundos não era infundada. Era difícil distinguir os‬
‭"miseráveis" dos "bandidos", ou seja, dos criminosos. A existência de "falsos indigentes", mendigos que‬
‭fingiam doenças inexistentes e praticavam roubos, podia ser ampliada pelas narrativas dos viajantes ou‬
‭mesmo por publicações especializadas, como o Liber vagatorum, escrito no final da Idade Média, que‬
‭descrevia as muitas variedades de falsos mendigos e criminosos, que por vezes formavam bandos‬
‭ rganizados, ou que pediam esmolas através de ameaças. Como escreveu um historiador contemporâneo‬
o
‭(Van Dulmen), as fronteiras entre pobres e vagabundos e entre estes últimos e os bandidos eram ténues.‬
‭Os vendedores ambulantes que se aproximavam da vagabundagem eram vistos com uma certa‬
‭desconfiança. Daí a perseguição dos ciganos em todo o lado.‬
‭A legislação penal, aplicada contra os criminosos e os vagabundos, era tendencialmente severa,‬
‭muitas vezes arbitrária e socialmente selectiva. Castigava frequentemente aqueles que não pertenciam a‬
‭grupos que os pudessem proteger e, em geral, os estranhos à comunidade. As penas não consistiam‬
‭geralmente em prisão, mas sim em multas, flagelação, mutilação ou trabalhos forçados, se tal fosse‬
‭conveniente para as autoridades públicas, como acontecia com as penas de galé nos países‬
‭mediterrânicos. Muitas vezes, esta pena não dependia tanto da gravidade da infração cometida como da‬
‭necessidade de remadores da frota. Tratava-se de casos em que os juízes abusavam do seu poder‬
‭discricionário na interpretação das leis, sobretudo nos processos criminais, que não envolviam pessoas bem‬
‭colocadas na comunidade.‬
‭O banditismo tinha perfis distintos. Respondia, evidentemente, à miséria, mas também aos hábitos‬
‭de violência que impregnavam toda a vida social, incluindo a dos privilegiados. Em princípio, para utilizar a‬
‭terminologia italiana, o bandido era a pessoa expulsa da sua comunidade pelas autoridades, ou fora da lei‬
‭através de um bando. A palavra fuoriscito, tal como a palavra espanhola para fora da lei, significava, em‬
‭princípio, aquele que tinha saído, quer por vontade própria, quer por decisão oficial.‬
‭Embora o banditismo estivesse disseminado por toda a Europa moderna, era particularmente‬
‭importante nos países mediterrânicos no final do século XI. Era também o resultado de confrontos‬
‭familiares, verdadeiras guerras privadas, mantidas com a ajuda de servos ("lacaios"), parentes e amigos.‬
‭Neste sentido, a atividade catalã de "bandolejar" era praticada por membros da pequena nobreza. Os‬
‭vice-reis pensavam, e tinham razão, que os bandidos encontraram abrigo graças aos grupos privilegiados,‬
‭ao asilo proporcionado pelos edifícios eclesiásticos ou pelos castelos nobres. Por isso, uma política‬
‭repressiva implicava a violação desses privilégios, por exemplo, a demolição de castelos ou casas, ou a‬
‭prisão de eclesiásticos. Nos países dos Balcãs, o banditismo dos "haiduk" era favorecido pela população,‬
‭que o via como uma forma de resistência popular aos turcos.‬
‭O historiador francês Fernand Braudel, na sua grande obra sobre o mundo mediterrânico no tempo‬
‭de Filipe II, considera o banditismo como uma forma menor ou latente das grandes revoltas camponesas.‬

‭5. Las revueltas populares‬


‭No primeiro terço do século XVI, assiste-se ao culminar de um ciclo de revoltas que se estendeu ao‬
‭longo do final da Idade Média. Estas revoltas eram uma resposta a crises económicas, mas muitas vezes‬
‭giravam em torno de uma ideologia religiosa, baseada na ideia do fim do mundo (o Apocalipse), que se‬
‭acreditava estar muito próximo (por exemplo, o ano de 1524) e da segunda vinda de Cristo, que deveria‬
‭estabelecer um período de justiça de mil anos. Por esta razão, fala-se de movimentos "milenaristas". Os‬
‭grupos religiosos mais radicais negavam as hierarquias sociais existentes e procuravam criar sociedades‬
‭perfeitas, sem propriedade privada.‬
‭As revoltas radicais baseavam-se na igualdade fundamental do género humano: no tempo de Adão‬
‭e Eva não havia nobres nem plebeus. Os revoltosos chamavam-se "irmãos" e organizavam-se em‬
‭irmandades (como em Castela e na Galiza) ou em germanias, como em Valência e Maiorca. Estas últimas‬
‭eram socialmente definidas como germanias de menestréis, ou seja, de artesãos. Ao mesmo tempo, os‬
‭rebeldes castelhanos eram definidos como "comuneros", ou seja, plebeus. Atualmente, considera-se que o‬
‭grande movimento social de 1525 na Alemanha deve ser caracterizado como uma revolta do "homem‬
‭comum" e não como uma guerra de camponeses, uma vez que esta última designação ocultaria a‬
‭importância da participação urbana.‬
‭No entanto, dada a população maioritariamente rural, as revoltas camponesas eram importantes.‬
‭Trata-se de um movimento de longa data, que começou em meados do século XIV, com a revolta conhecida‬
‭como‬‭jacquerie‬‭, nos condados próximos de Paris, em 1358. O seu nome deve-se à designação pejorativa‬
‭de "Jacques Bonhomme", atribuída aos camponeses. Quase todas as guerras camponesas da Idade‬
‭Moderna terminaram com a vitória militar da nobreza e dos reis sobre os bandos organizados de‬
‭camponeses. Mas é possível que a derrota dos sectores mais radicais tenha sido seguida de uma espécie‬
‭de reforma dos abusos mais flagrantes.‬
‭Após a Reforma Protestante surgem muitos movimentos camponeses que misturaram-se com‬
‭reivindicações religiosas. Em Inglaterra, houve movimentos, tanto católicos como protestantes, em defesa‬
‭dos direitos e costumes locais e contra o cercamento dos campos. Em França, os camponeses protestantes‬
‭recusam-se a pagar o dízimo para apoiar o clero católico. No Delfinado, a oposição à isenção fiscal de que‬
‭beneficiavam as propriedades adquiridas pela nobreza continuou, o que teve repercussões na carga fiscal‬
‭dos plebeus. A última década do século foi particularmente conturbada a nível europeu.‬
‭Capítulo 21‬
‭Crises e transformações na população e economia‬
‭europeias do século XVII‬

‭1. Caracterização do século: da teoria da "crise geral" à ênfase no impacto desigual das dificuldades‬

‭A caraterização do século XVII tem-se tornado uma tarefa cada vez mais difícil e problemática. Em‬
‭ eados do século XX, a historiografia considerou o conceito de "crise geral" como o mais adequado para‬
m
‭definir os traços fundamentais do período. Foi, de facto, um período atormentado por dificuldades, o que lhe‬
‭conferiu um carácter sombrio que contrastou fortemente com o brilho dos dois séculos em que se‬
‭enquadrou. E o fenómeno não se verifica exclusivamente na esfera económica; a instabilidade preside‬
‭também às relações sociais, ao mundo político e à esfera das crenças e do pensamento religioso. É, pois, a‬
‭generalidade das dificuldades que tem contribuído para a descrição do período como uma época de crise.‬
‭No entanto, este conceito tem vindo a ser cada vez mais clarificado e matizado, invocando a sua natureza‬
‭polissémica: pode significar desde uma mudança abrupta de natureza conjuntural, até uma recessão‬
‭prolongada, ou um processo de transformação de natureza estrutural. Assim, consoante o significado‬
‭adotado, pode sustentar-se uma caraterização diferente do século, negando mesmo a própria existência da‬
‭crise se se optar pelo segundo (como no caso de Morineau) ou terceiro (como o faz Wallerstein) dos‬
‭significados aludidos.‬
‭A formulação da teoria da "crise geral" foi reforçada pela interpretação quantitativista do período. A‬
‭"revolução dos preços" tinha culminado no final do século XVI, e o que caracterizou o século XVI foi a sua‬
‭estagnação ou inversão. O momento da viragem não foi uniforme, sendo mais prematuro nos países‬
‭mediterrânicos, onde começou no início do século, do que no noroeste da Europa, onde o processo se‬
‭atrasou até à década de 1640. No entanto, a partir de então, a tendência foi claramente descendente e a‬
‭segunda metade do século caracterizou-se, em todo o lado, por preços baixos.‬
‭A correlação da sua evolução com a entrada de metais preciosos americanos parecia ser muito‬
‭estreita, uma vez que, de acordo com os registos oficiais estudados por E. J. Hamilton, a década de 1590‬
‭tinha sido o ponto culminante do seu processo ascendente. A partir daí, a tendência começou a inverter-se‬
‭lentamente, com o declínio a precipitar-se a partir da década de 1630 e a atingir níveis catastróficos na‬
‭década de 1650. Em consequência, a Europa teria ficado privada de um dos elementos básicos para o bom‬
‭funcionamento do sistema económico, o que, como salientou Morineau, apoiava a tese da "grande‬
‭depressão". Mas a tendência geral dos outros indicadores económicos da época ia no mesmo sentido. O‬
‭crescimento demográfico do século XV também tinha começado a abrandar no final do século, seguindo-se‬
‭uma fase de estagnação ou, na melhor das hipóteses, de crescimento lento durante a primeira metade do‬
‭século XVII, e a tendência negativa acentuou-se a partir daí. A quebra da produção agrícola é também‬
‭evidente quando analisada na perspetiva de meados do século XI, altura em que se atingiu um limite‬
‭máximo de produção que, em muitos casos, só foi ultrapassado no século XVII. A atividade industrial‬
‭conheceu também sérias dificuldades, que afectaram particularmente os centros têxteis urbanos com maior‬
‭tradição de fabrico, como os situados no Norte de Itália e no Sul dos Países Baixos. Por último, a crise‬
‭comercial e financeira que se registou entre 1619 e 1622 foi de tal intensidade que Ruggiero Romano situou‬
‭nela o início da crise geral do século. Em todo o caso, parece claro que, a partir de então, se registou um‬
‭declínio do tráfego comercial em todas as áreas geográficas, embora com intensidade e duração muito‬
‭diferentes.‬
‭No entanto, todos os indicadores acima referidos foram objeto de uma revisão aprofundada,‬
‭nalguns casos questionando a tendência registada e, na maioria dos casos, qualificando, na maior parte das‬
‭vezes, o carácter geral das dificuldades sofridas pela economia europeia. Neste trabalho, M. Morineau‬
‭distinguiu-se em particular, criticando os dois argumentos básicos utilizados pelos quantitativistas para‬
‭corroborar a existência da crise. De particular importância foi a sua correção dos dados de Hamilton sobre a‬
‭entrada de metais preciosos americanos, sublinhando que os elevados níveis de fraude invalidam a‬
‭informação obtida a partir dos registos oficiais. Utilizando como fonte alternativa as gazetas mercantis e os‬
‭relatórios dos cônsules estrangeiros, verifica-se (ver fig. 21.1) que a taxa de chegada de metais preciosos‬
‭não diminuiu, mas manteve-se estagnada num nível elevado na primeira metade do século, e aumentou‬
‭durante a segunda metade, ultrapassando os níveis máximos do final do século XVI. Por conseguinte, não‬
‭se pode falar de uma escassez drástica e prolongada de metais preciosos na Europa do século XVII.Além‬
‭disso, o seu ritmo de chegada evoluiu de forma muito diferente da tendência dos preços, pelo que os dois‬
f‭actores devem estar completamente dissociados. O mecanismo de formação dos preços resulta de factores‬
‭muito mais complexos, incluindo a relação entre a oferta produtiva e a procura da população. A este‬
‭respeito, Morineau recorda que um período de baixa dos preços não pode ser identificado mecanicamente‬
‭com uma fase de crise. Com efeito, qualquer situação económica é ambivalente e os seus efeitos‬
‭dependem da posição que os grupos sociais ocupam nas relações de mercado. Assim, um período de baixa‬
‭de preços foi benéfico para os compradores, que devem ter constituído a maioria da população. Isto não‬
‭quer dizer que a sociedade europeia não tenha sido afetada pelas dificuldades. Mas estas não tinham o‬
‭carácter contínuo e geral que lhes é geralmente atribuído. Nestes termos, Morineau nega que se possa falar‬
‭da crise do século XVII "tal como foi formulada até agora". Em vez de uma recessão generalizada, o que se‬
‭verificou foi o aparecimento de uma série de crises de intensidade e amplitude variáveis, algumas das quais‬
‭coincidiram no tempo, mas que afectaram de forma desigual os vários territórios e sectores económicos.‬
‭É, portanto, a irregularidade do impacto das "crises" que tende a ser sublinhada atualmente. Estas‬
‭crises já tinham começado a surgir antes do século XVII, e a sua manifestação seguiu padrões cronológicos‬
‭muito diferentes. Só em termos muito gerais se pode dizer que o seu impacto foi mais precoce na zona‬
‭mediterrânica, onde as dificuldades também começaram a desaparecer mais prematuramente. Por outro‬
‭lado, no noroeste da Europa, o seu impacto foi mais tardio, tendo ocorrido entre meados do século XVII e o‬
‭primeiro terço do século XXI. As crises também não afectaram os diferentes sectores económicos com a‬
‭mesma intensidade, tendo sido mais agudas no sector agrícola do que nos sectores industrial e comercial, e‬
‭tendo havido grandes disparidades dentro de cada um deles. O mesmo se pode dizer do ponto de vista‬
‭territorial. O impacto foi mais intenso nos países mediterrânicos e na Europa de Leste. Em França, na‬
‭Europa Central e na Escandinávia, registou-se uma estagnação ou um ligeiro declínio. As Províncias Unidas‬
‭e a Inglaterra, pelo contrário, conheceram apenas dificuldades episódicas que não impediram um processo‬
‭de crescimento e, sobretudo neste último caso, uma reorientação das suas actividades económicas de‬
‭grande importância para a evolução posterior.‬
‭Foi o impacto desigual das crises que permitiu a ocorrência de transformações importantes, que se‬
‭revelaram decisivas para o futuro. A rejeição do seu carácter geral tem, como salienta Morineau, efeitos‬
‭libertadores, pois permite apreciar mais facilmente os progressos realizados ao longo do século. Embora‬
‭nenhuma época esteja isenta de progressos e de recuos, é evidente que os períodos de crise geraram‬
‭desafios aos quais se respondeu de forma desigual. Daí a tendência, como sublinhou Jan de Vries, para‬
‭"uma concentração da atividade económica, uma vez que as empresas mais fracas não conseguiam‬
‭encontrar uma saída para a crise". Se estas reacções se verificaram em todos os sectores económicos, um‬
‭fenómeno semelhante foi vivido em termos geográficos e territoriais. Neste sentido, as dificuldades‬
‭provocaram uma intensa redistribuição do potencial económico, favorecendo uma maior integração do‬
‭sistema económico europeu e deslocando o seu eixo de gravidade do Mediterrâneo para a zona noroeste‬
‭do continente. Esta região não só aumentou o seu peso demográfico ao longo do século XVII, como liderou‬
‭o processo de urbanização em curso e articulou a seu favor a crescente divisão internacional do trabalho‬
‭que se verificava na "economia mundial" europeia. No entanto, a periferização do Mediterrâneo também não‬
‭significou um imobilismo absoluto. Tanto nesta área como no resto do continente europeu, ocorreram‬
‭transformações, em maior ou menor grau consoante a região, que favoreceram uma crescente‬
‭especialização da atividade económica e, consequentemente, um aumento da inter-relação e integração‬
‭dos mercados. Assim, à medida que o século avança, são as mudanças e transformações estimuladas‬
‭pelas crises que parecem caraterizar o período, tanto ou mais do que as crises.‬

‭2. A controvérsia sobre as causas e a natureza da crise‬

‭A evolução registada na caraterização do século XVII reflecte perfeitamente a intensidade do‬


‭ ebate historiográfico que se gerou em torno deste século. As suas origens encontram-se na polémica‬
d
‭sustentada pela historiografia marxista sobre a traição do feudalismo pelo capitalismo. No entanto, a‬
‭problemática rapidamente extravasou este âmbito, passando a abranger toda a historiografia europeia e‬
‭também a análise das convulsões políticas ocorridas em meados do século. Assim, o debate foi inicialmente‬
‭polarizado entre os que defendiam que a crise tinha uma origem fundamentalmente económica e os que‬
‭sublinhavam a responsabilidade dos problemas de natureza política. Em todo o caso, havia um certo‬
‭consenso quanto ao carácter geral das dificuldades e uma tendência para recorrer a explicações‬
‭monocausais para determinar a sua origem. São estas simplificações que têm vindo a ser progressivamente‬
‭abandonadas em favor de uma interpretação mais complexa da realidade, que nega, como vimos, o‬
‭carácter geral das dificuldades e propõe uma visão integrada das suas diferentes manifestações.‬
‭Embora a historiografia marxista britânica já tivesse caracterizado o século XVII como um período‬
‭de crise, inserindo-o na controvérsia sobre a transição do feudalismo para o capitalismo, o artigo publicado‬
‭ or E. Hobsbawm em 1954 é frequentemente considerado como o verdadeiro detonador do debate.‬
p
‭Hobsbawm defende que a crise do século XVII é a "última fase" da transição entre os dois sistemas‬
‭económicos. Não podia, portanto, ser vista como uma mera crise conjuntural, mas tinha um carácter‬
‭estrutural. Defendeu, nomeadamente, que a crise foi causada pelos obstáculos colocados pela sociedade‬
‭feudal ao desenvolvimento do capitalismo, uma vez que a sua estrutura económica impedia o crescimento‬
‭do mercado. Assim, embora tenha afetado todos os sectores económicos, a principal manifestação da crise‬
‭foi na esfera comercial. As contradições do sistema feudal bloquearam a expansão que se tinha verificado‬
‭no século XVI e conduziram a uma redução do mercado, tanto no interior da Europa Ocidental como nas‬
‭suas relações com a Europa Oriental e o mundo ultramarino. No entanto, a crise teve um efeito muito‬
‭positivo nos desenvolvimentos posteriores, pois destruiu os obstáculos ao desenvolvimento do capitalismo,‬
‭criando as condições que tornaram possível a revolução industrial, uma vez que a crise levou a uma‬
‭considerável concentração do poder económico a favor dos sectores e economias mais avançados, como a‬
‭francesa, a holandesa e a inglesa. No entanto, só estes últimos, depois de terem sofrido uma drástica‬
‭mudança sócio-política (a revolução de 1640) que permitiu o desenvolvimento do capitalismo, é que levaram‬
‭a uma maior industrialização.‬
‭Foi a consideração deste último conflito como uma revolução burguesa que provocou a reação de‬
‭H. Trevor Roper, que defendeu que não se podia provar que os sectores que se opunham à monarquia‬
‭pretendiam promover o desenvolvimento do capitalismo. Para ele, a revolução inglesa deve ser vista no‬
‭contexto das convulsões políticas que ocorreram simultaneamente na Europa na década de 1640. Foram‬
‭estas que constituíram a principal manifestação da crise do século, pelo que a sua natureza era mais‬
‭sociopolítica do que económica. A crise não resultou da rutura do antigo sistema de produção, mas foi um‬
‭conflito gerado pelo desenvolvimento excessivo do aparelho de Estado. A sociedade reagiu, num contexto‬
‭de regressão económica, contra o custo excessivo do aparelho administrativo, que conduziu ao aumento da‬
‭fiscalidade e à centralização política. O insucesso das reformas que a própria monarquia tentou promover‬
‭para limitar o número de funcionários e promover o crescimento económico levou ao eclodir das revoltas,‬
‭cujo principal detonador foi o contraste entre o luxo e o esbanjamento da corte e as dificuldades económicas‬
‭da maioria da população.‬
‭Se a tese de Trevor Roper deu origem a numerosos contributos sobre as causas e as‬
‭características das revoltas da década de 1640, as interpretações que colocaram a tónica nos aspectos‬
‭económicos centraram-se na natureza das dificuldades sentidas durante o século. Para I. Walerstein, estas‬
‭dificuldades não conduziram a qualquer mudança estrutural e não devem, por conseguinte, ser‬
‭consideradas como a manifestação de uma "crise". Esta última já tinha sido vivida no final da Idade Média,‬
‭conduzindo à emergência da "economia-mundo" capitalista. Por isso, considera que o que se passou no‬
‭século XVI foi a primeira grande contratação do novo sistema económico. Os estratos politicamente‬
‭dominantes não tentaram arruiná-lo, mas procuraram os meios de o fazer funcionar em seu benefício, de‬
‭modo que a contração acabou por conduzir à consolidação do sistema capitalista. A resposta fundamental‬
‭às dificuldades foi o reforço das estruturas estatais, especialmente na zona central da economia mundial, o‬
‭que permitiu a concentração do poder económico e a acumulação de capital, abrindo caminho para a‬
‭revolução industrial. Neste aspeto, há uma certa semelhança com a tese de A. Lublinskaya, que sublinha o‬
‭apoio dado pela monarquia absoluta ao desenvolvimento da burguesia e do capitalismo manufatureiro. Pelo‬
‭contrário, R. Brenner considera que a crise do século XI teve um carácter nitidamente feudal. Foi, tal como a‬
‭do século XIV, uma crise agrária resultante da manutenção de relações de produção e de extração de‬
‭excedentes que impediam qualquer melhoria da produtividade. Questiona também o papel atribuído por‬
‭Hobsbawm à expansão do mercado na génese do capitalismo, atribuindo, pelo contrário, o protagonismo à‬
‭estrutura de classes agrária e às relações de poder que dela derivam. E é esta circunstância que explicaria‬
‭o diferente desfecho da crise do século XVII nos casos da França, onde se deu a consolidação do pequeno‬
‭campesinato, e da Inglaterra, onde a concentração da propriedade permitiu o aumento da produtividade e a‬
‭emergência de relações de produção capitalistas.‬
‭De qualquer modo, se, como vimos, os problemas económicos nunca estiveram completamente‬
‭desligados do quadro político em que se inserem, esta relação foi intensificada nas teses que atribuem um‬
‭papel fundamental à guerra e ao processo de construção do absolutismo por ela impulsionado no‬
‭desencadear das dificuldades do século. Assim, D. Parker argumenta que a crise decorreu das contradições‬
‭do próprio sistema feudal, sendo a principal delas a divergência entre o baixo nível de produtividade e as‬
‭exigências de uma sociedade essencialmente militarista. O problema agravar-se-ia num século tão belicoso‬
‭como o século XVI, gerando dificuldades tão graves que só foram facilmente ultrapassadas nos países que‬
‭transformaram a sua estrutura sócio-política, como foi o caso da Inglaterra. Por seu lado, N. Steensgaard‬
‭atribui um papel fundamental ao Estado, quer no desencadear da crise, quer no seu impacto díspar nos‬
‭vários sectores económicos. Com efeito, contrariamente ao que é defendido, considera que o que se viveu‬
‭na altura não foi uma crise de produção, mas de distribuição do rendimento através do sector público. O‬
‭ umento da carga fiscal, exigido pelas necessidades militares e pelo desenvolvimento do aparelho de‬
a
‭Estado, levou a uma redução do consumo e do investimento privado. Mas, em alguns sectores, esta‬
‭redução foi compensada pelo aumento da procura pública. Foi esta circunstância que fez com que não‬
‭houvesse uma "regressão geral" e que as dificuldades afetaram de forma tão diferente os vários sectores‬
‭económicos.‬
‭À medida que a interpretação da crise se foi matizando, foi-se diluindo a estreita correlação da crise‬
‭com o processo de desenvolvimento económico que tinha sido inicialmente sublinhado. Assim, na‬
‭introdução de G. Parker e L. Smith à sua compilação de artigos sobre o tema, de 1978, a dimensão‬
‭planetária do fenómeno foi sublinhada, ligando-o estreitamente ao agravamento das condições climáticas‬
‭que ocorreu durante a chamada "Pequena Idade do Gelo". Esta caracterizou-se por invernos longos e frios‬
‭e verões frescos e húmidos, que afetaram negativamente o desenvolvimento das culturas e conduziram a‬
‭fomes frequentes. O ciclo iniciou-se na década de 1560, mas as condições climatéricas não se mantiveram‬
‭estáveis durante todo o período, registando-se várias oscilações. As fases mais agudas ocorreram entre os‬
‭séculos XVI e XVII, entre 1640 e 1665 e entre 1690 e 1710, coincidindo com os períodos de maior penúria.‬
‭O agravamento do clima teria agravado os desequilíbrios resultantes do crescimento excessivo da‬
‭população durante o século XVI, cujas necessidades alimentares não podiam ser cobertas por uma‬
‭agricultura cuja produtividade era limitada pelas condições socioeconômicas prevalecentes no mundo rural.‬
‭Com efeito, como o chamado "debate de Brenner" demonstrou, uma interpretação estritamente malthusiana‬
‭do processo é insuficiente para explicar as dificuldades que foram também causadas pela apropriação‬
‭crescente dos produtos agrícolas pelas classes rentistas e pela intensificação da pressão fiscal para fazer‬
‭face ao custo crescente do aparelho de Estado. Só integrando estas diferentes interpretações será possível‬
‭apreender o verdadeiro significado de uma época cuja complexidade é cada vez mais sublinhada pela‬
‭historiografia.‬

‭3. A respostas política às dificuldades: o mercantilismo‬

‭A gravidade das dificuldades sentidas durante o século levou o Estado a intervir fortemente na‬
‭ tividade económica, seguindo orientações políticas que foram concetualmente englobadas pelo termo‬
a
‭"mercantilismo". Este termo foi cunhado a posteriori pelos economistas liberais para designar propostas que‬
‭consideravam erróneas, uma vez que, na sua opinião, davam mais importância ao comércio do que à‬
‭produção. Não existe, portanto, uma escola ou doutrina mercantilista perfeitamente sistematizada. Esta‬
‭denominação englobou uma série de teorias e práticas estatais muito diversas, cujas origens remontam ao‬
‭final da Idade Média, sendo a escola de Salamanca um dos seus primeiros centros de difusão. No entanto,‬
‭foi no século XVII que estas teorias começaram a ter uma maior influência nas decisões políticas. Assim, a‬
‭sua adoção pode ser vista como um reflexo do poder crescente da monarquia, que alargou os seus poderes‬
‭à regulação da própria vida económica.‬
‭O objetivo da intervenção era essencialmente de natureza política. Para fazer face às necessidades‬
‭financeiras acrescidas do Estado, já não se considerava suficiente aumentar apenas a carga fiscal, mas‬
‭também a riqueza tributável dos súbditos. Os monarcas procuravam, assim, alcançar a prosperidade dos‬
‭seus vassalos, aumentando os seus rendimentos e estimulando o consumo dos produtos produzidos no seu‬
‭território. Mas este objetivo era meramente instrumental, uma vez que o que realmente se procurava não‬
‭era o bem-estar da população, mas sim que o aumento da atividade económica alimentasse os cofres do‬
‭tesouro real e assegurasse o poder e a glória do soberano. Para tal, era essencial controlar a circulação dos‬
‭metais preciosos, considerados de grande importância para a vida económica. No entanto, a conceção‬
‭estritamente monetarista ou bulonista, que pretendia proibir a sua extração identificando o seu‬
‭entesouramento com a riqueza do país, já tinha sido ultrapassada. Compreendia-se que a riqueza se‬
‭obtinha através do aumento da produção interna e do comércio. Mas os metais preciosos eram o meio de‬
‭liquidação final das trocas e a base de um sistema de crédito ainda muito rudimentar. Por último, a‬
‭intervenção do Estado obedecia também às exigências dos próprios empresários e comerciantes que, num‬
‭contexto internacional de crescente competitividade e agressividade, necessitavam do apoio de governos‬
‭fortes que lhes dessem proteção e privilégios.‬
‭Segundo P. Deyon, são três os temas fundamentais do mercantilismo: o aumento do poder do‬
‭Estado, a apologia do trabalho e do comércio e a extrema atenção dada à balança comercial. Como a‬
‭intervenção na atividade económica se tornou um instrumento adicional para aumentar o poder da‬
‭monarquia, foi agressivamente encorajada. Tal como os territórios que podiam ser conquistados, o mercado‬
‭mundial era visto como limitado nas suas dimensões, pelo que a expansão do comércio de um país só‬
‭podia ser conseguida à custa da redução das oportunidades de negócio dos rivais. Daí a criação de grandes‬
‭empresas comerciais, às quais eram concedidos privilégios para operar exclusivamente em determinadas‬
‭zonas geográficas, sendo os seus poderes protegidos pela força do Estado. O objetivo era fazer do‬
c‭ omércio internacional um meio de conquistar novos mercados para favorecer a expansão da produção‬
‭nacional, o que aumentaria a riqueza e o poder do soberano. Colbert exprime perfeitamente esta conceção‬
‭ao afirmar que "as companhias de comércio são os exércitos do rei e as manufacturas de França as suas‬
‭reservas". Assim, os conflitos internacionais assumiram uma forte conotação económica, dando origem a‬
‭verdadeiras guerras comerciais, como a que opôs a Inglaterra à França pela hegemonia mercantil‬
‭holandesa.‬

‭A agressão externa baseava-se, no entanto, na promoção da produção interna. Mas nem todos os‬
s‭ ectores da economia tinham a mesma importância, e a atividade agrícola foi largamente marginalizada. Os‬
‭maiores esforços foram concentrados no estímulo à produção industrial, com a concessão de privilégios e‬
‭monopólios a oficinas e empresas privadas, e a criação de fábricas estatais para desenvolver sectores‬
‭considerados estratégicos, como a exploração mineira, a metalurgia e o fabrico de artigos de luxo. O‬
‭objetivo era evitar a saída de dinheiro para a aquisição no estrangeiro de bens cuja produção gerava valor‬
‭acrescentado em relação às matérias-primas utilizadas. A alternativa era favorecer o seu desenvolvimento‬
‭no território, o que também estimulava o trabalho, a atividade e a riqueza dos súbditos. Com este objetivo,‬
‭foram adoptadas medidas políticas para incentivar o crescimento demográfico e, consequentemente, o‬
‭crescimento da mão de obra produtiva; procurou-se atrair a imigração de artesãos estrangeiros‬
‭especializados nos sectores industriais que se pretendia promover; e puniu-se severamente a emigração‬
‭que contribuísse para a disseminação dos "segredos de produção" existentes no interior do país. A‬
‭conceção tradicional de caridade baseada na distribuição de esmolas individuais foi também combatida, por‬
‭se considerar que favorecia o desenvolvimento da mendicidade e da ociosidade. Em alternativa, foram‬
‭criadas oficinas e estabelecimentos correcionais onde se confinavam os pobres e se procurava‬
‭reconvertê-los em sujeitos disciplinados e laboriosos. E os preconceitos sociais que exaltavam o rentismo e‬
‭desvalorizavam o trabalho e o investimento produtivo começaram a pôr em causa o sistema de valores‬
‭dominante no antigo regime. Mas a promoção da atividade produtiva exigia também a adoção de medidas‬
‭tarifárias protecionistas. Era necessário eliminar os obstáculos que dificultavam o comércio interno, criando‬
‭um mercado unificado e protegido da concorrência estrangeira. Para o efeito, foram fixados direitos‬
‭aduaneiros elevados para desencorajar a exportação de matérias-primas e a importação de produtos‬
‭manufacturados e proibida a introdução de produtos de luxo. O objetivo era conseguir uma balança‬
‭comercial favorável que determinasse o fluxo de metais preciosos de potências rivais para o país. Não se‬
‭tratava, porém, de os entesourar, o que se refletiu na continuação do défice comercial com a Ásia. Assim, a‬
‭balança comercial começou a distinguir-se da mais complexa balança de pagamentos, que incluía os‬
‭serviços navais, comerciais e financeiros efectuados nas diversas operações que qualquer tráfego podia‬
‭gerar.‬
‭Dada a falta de sistematização das ideias mercantilistas, a sua aplicação dependia da orientação‬
‭política que lhes era dada pela monarquia e da capacidade dos comerciantes e homens de negócios para‬
‭fazerem valer os seus interesses e responderem às iniciativas dos detentores do poder. O mercantilismo‬
‭francês teve em Colbert o seu principal impulsionador e adquiriu um carácter fundamentalmente‬
‭industrialista. Os incentivos que as empresas recebiam eram muito diversos, incluindo a concessão de‬
‭isenções fiscais, monopólios temporários de fabrico ou de venda, empréstimos bonificados, contratos de‬
‭fornecimento do Estado, privilégios honoríficos, etc.‬
‭Por vezes, alguns destes privilégios eram concedidos a todas as oficinas artesanais de uma determinada‬
‭zona. Podiam também ser concedidos a manufacturas concentradas e privadas, como a de Van Robais em‬
‭Abbeville. Por fim, a própria monarquia criou empresas públicas, como a fábrica de móveis e tapeçaria‬
‭Gobelins. Mas a contrapartida a estes incentivos foi a imposição de uma intensa regulamentação destinada‬
‭a preservar a qualidade da produção, o que acentuou o seu carácter tradicional. A promoção industrial foi‬
‭complementada por uma política tarifária agressiva que culminou em 1667, com a triplicação dos direitos de‬
‭importação de certas mercadorias, como os tecidos de Leiden, o que aumentou a tensão com as Províncias‬
‭Unidas e levou à eclosão da guerra franco-holandesa de 1772. Por último, embora tenham sido também‬
‭criadas várias companhias privilegiadas para promover o comércio fora da Europa, a sua excessiva‬
‭dependência do apoio real tornou-as menos dinâmicas e tiveram uma vida curta.‬
‭Na maioria dos países do continente europeu, o mercantilismo teve uma orientação semelhante,‬
‭embora as suas concretizações tenham sido escassas neste século, tendo a sua influência adquirido maior‬
‭vigor no século XVII. O caso holandês é o mais atípico, pois nem sequer houve pensadores de relevo que‬
‭formulassem propostas mercantilistas. Pelo contrário, a sua hegemonia comercial fez com que os‬
‭holandeses se caracterizassem pela defesa da liberdade comercial e pela eliminação de todo o tipo de‬
‭obstáculos ou proibições que dificultavam o comércio. No entanto, não deixaram de recorrer à criação de‬
‭companhias privilegiadas para regular o comércio ex-europeu, impondo à força o respeito pelas suas‬
‭prerrogativas monopolistas. E, de facto, foi o modelo destas companhias que os outros países com muito‬
‭ enos fortuna tentaram imitar, uma vez que não estavam tão intimamente ligados aos interesses dos seus‬
m
‭grupos mercantis.‬
‭De facto, o mercantilismo mais original é o inglês. Os seus autores de tratados defendiam a‬
‭proteção da agricultura, que se materializou na introdução, em 1670, da escala móvel de direitos de‬
‭importação de cereais e na subsequente concessão de subsídios à exportação em anos de abundância. No‬
‭que respeita à política industrial, o abuso dos primeiros Stuarts na criação de monopólios e na promulgação‬
‭de regulamentos desacreditou estas práticas, que foram abandonadas após a revolução de 1640, embora‬
‭se mantivessem medidas tarifárias de natureza protecionista. Mas as maiores realizações do mercantilismo‬
‭inglês ocorreram na esfera comercial. As suas companhias privilegiadas, também estreitamente ligadas aos‬
‭interesses dos grupos mercantis, obtiveram um sucesso semelhante ao das companhias holandesas. No‬
‭entanto, as medidas de maior alcance foram as que visavam a promoção da marinha nacional, que‬
‭assumiram a forma dos famosos Actos de Navegação. A lei de 1651 era claramente dirigida contra a‬
‭interferência holandesa, estabelecendo que as mercadorias trazidas para Inglaterra só podiam ser‬
‭transportadas por navios ingleses ou do país de origem das mercadorias. A lei de 1663 procurava incentivar‬
‭o comércio de entrepostos nas relações da Inglaterra com as suas colónias e estimular o tráfego de‬
‭reexportação. A promulgação dos Actos desencadeou a eclosão das três guerras anglo-holandesas que‬
‭tiveram lugar entre 1652 e 1672. E os seus efeitos minaram gravemente a hegemonia holandesa, ajudando‬
‭a estabelecer a posterior liderança da Inglaterra no comércio internacional.‬

‭4. A complexidade da evolução demográfica‬

‭ rejeição do conceito de "crise geral" permitiu apreciar melhor a grande complexidade da evolução‬
A
‭demográfica registrada na Europa do século XVII. Mais do que um declínio geral da população, o que se‬
‭registou neste século foi o fim do período de intenso crescimento que o continente conheceu no século XVI.‬
‭De facto, as estimativas globais (ver Quadro 21.1) consideram que a população teria passado de cerca de‬
‭102 milhões de habitantes no início do século XVII para cerca de 115 milhões no final do século. O‬
‭crescimento teria sido, portanto, muito reduzido, o que, interrompendo a tendência claramente ascendente‬
‭do século anterior, teria conduzido a uma nova fase caracterizada pela estagnação. No entanto, este traço‬
‭geral não reflete a verdadeira dimensão de um processo demográfico cuja evolução foi muito diversificada,‬
‭tanto geográfica como cronologicamente, o que modificou a distribuição da população e alterou os antigos‬
‭equilíbrios.‬
‭A alteração da situação demográfica ocorreu de forma faseada, uma vez que as dificuldades sentidas em‬
‭cada período tiveram um impacto muito desigual nos vários territórios europeus. As primeiras manifestações‬
‭do fenómeno ocorreram no último terço do século XI e nos primeiros anos do século XI, devido à‬
‭estagnação da produção agrícola, ao aparecimento de más colheitas e à propagação de epidemias,‬
‭nomeadamente a chamada "peste atlântica" de 1596-1603.‬
‭No entanto, depois de ultrapassadas estas dificuldades, a população continuou a crescer, com intensidade‬
‭variável, na maioria dos territórios. Só nos países mediterrânicos é que o declínio começou a tornar-se‬
‭irreversível. A Guerra dos Trinta Anos criou um problema semelhante na zona central do continente‬
‭europeu, pois à destruição, à pilhagem e aos abusos das tropas juntou-se o aparecimento da peste, cuja‬
‭propagação foi facilitada pela passagem do exército. As décadas centrais do século, nomeadamente entre‬
‭1647 e 1668, assistiram ao alastramento das dificuldades à maior parte da Europa, sendo particularmente‬
‭intensa a peste que assolou os países mediterrânicos em 1647-1652, mas também os efeitos da guerra do‬
‭Norte na zona do Báltico e na Europa Oriental e a epidemia de peste de 1665-1667 no noroeste do‬
‭continente. Finalmente, entre 1690 e 1715, alguns países, como a França, que até então tinham conseguido‬
‭manter uma certa estabilidade, foram afectados.‬
‭As circunstâncias acima descritas conduziram a evoluções demográficas muito diferentes nos vários‬
‭territórios europeus. Na Europa Centro-Oriental, o declínio foi brutal e ocorreu numa única fase, coincidindo‬
‭com as fases mais agudas das guerras. Na Alemanha, a Guerra dos Trinta Anos provocou uma perda‬
‭média de 40 % da população rural e de 33 % da população urbana. Na Polónia, durante a Guerra dos‬
‭Nórdicos, verificou-se uma queda semelhante, passando a população de 3,8 para 2,5 milhões entre‬
‭1655-1660. Nos países mediterrânicos, por outro lado, a crise ocorreu em duas fases, coincidindo com as‬
‭dificuldades de finais do século XI e meados do século XI. Em Espanha, a crise foi particularmente intensa‬
‭em Castela e Leão, onde o declínio chegou a atingir 50% na primeira metade do século. Em contrapartida,‬
‭na zona mediterrânica o seu impacto foi menos intenso e a sua duração mais curta, enquanto no mar‬
‭Cantábrico se detectou um ciclo de euforia demográfica entre 1630-1680. Em Itália, a população passou de‬
‭13,3 para 11,5 milhões de habitantes na primeira metade do século, com uma perda de 25% na zona mais‬
‭dinâmica do norte da península. Em França, a sucessão de fases positivas e negativas permitiu compensar‬
‭perdas até 20 %, particularmente graves nos últimos anos do reinado de Luís XIV. No entanto, a maior‬
‭ ivergência no ritmo e na direção da evolução ocorreu nos países do Noroeste da Europa. Nestas zonas, o‬
d
‭crescimento demográfico foi ainda muito forte na primeira metade do século e só abrandou mais tarde,‬
‭dando origem a um saldo claramente positivo. No caso da Inglaterra, por exemplo, a população cresceu de‬
‭4,1 milhões em 1601 para 5,2 milhões em 1656, estagnando em torno deste valor até ao início do século‬
‭XVII. Uma evolução semelhante foi registada nos Países Baixos e na Escandinávia.‬
‭Globalmente, se a população europeia cresceu ligeiramente durante o século XVII, isso deveu-se‬
‭em grande parte ao dinamismo da parte noroeste do continente. De acordo com os dados globais‬
‭fornecidos por P. Kriedte (ver quadro 21.1), nos Países Baixos e nas Ilhas Britânicas, o aumento foi de 31%,‬
‭e na Dinamarca e na Escandinávia, de 19%. Como a população da Itália e da Península Ibérica‬
‭permaneceu estagnada durante o mesmo período, o peso dessas zonas em relação a estas últimas passou‬
‭de 50 % para mais de 70 %. O impacto desigual das dificuldades do século XVII favoreceu assim uma‬
‭alteração do equilíbrio demográfico do continente, deslocando o seu centro de gravidade do Mediterrâneo‬
‭para o Atlântico. Processos semelhantes tiveram lugar no interior dos diferentes países e, no caso de‬
‭Espanha, começou a inversão do equilíbrio entre o centro e a periferia da península. Mas a crise castelhana‬
‭foi também acompanhada por um processo de desurbanização determinado pelo declínio dos centros‬
‭manufatureiros e mercantis tradicionais.‬
‭No entanto, esta situação contrastava com o rápido crescimento de Madrid e a manutenção dos centros‬
‭mercantis na periferia. Uma circunstância semelhante ocorreu no resto do continente, onde também se‬
‭destacou o crescimento das residências monárquicas e das cidades portuárias atlânticas.‬
‭Assim, a população urbana foi redistribuída a favor das grandes cidades e das localizadas na costa‬
‭atlântica. Como sublinhou J. de Vries, este reequilíbrio conduziu à configuração de um sistema urbano mais‬
‭integrado, em que as cidades do Noroeste da Europa assumiram a liderança. Foi aí que se localizaram as‬
‭metrópoles mais importantes, nomeadamente Paris, Londres e a Prandstad holandesa. A deslocação do‬
‭equilíbrio anterior foi também evidente neste aspeto, gerando uma nova realidade de grande importância‬
‭para o futuro.‬
‭As dificuldades sentidas pela população estão tradicionalmente ligadas às crises de subsistência.‬
‭As más colheitas, que se tornaram mais frequentes devido ao desequilíbrio malthusiano e às alterações‬
‭climáticas, foram as principais responsáveis pelas crises demográficas que ocorreram durante o século. A‬
‭escassez de cereais e o aumento acentuado dos seus preços provocaram a fome e a subnutrição da‬
‭população, o que levou a um aumento da mortalidade e a um declínio dos casamentos e das concepções.‬
‭Neste modelo interpretativo, as epidemias têm um papel subordinado, uma vez que a sua propagação‬
‭decorre da deterioração das condições nutricionais da população, raramente surgindo de forma autónoma.‬
‭No entanto, muitas crises demográficas não se enquadram nos padrões descritos. As regiões marítimas,‬
‭que podiam abastecer-se mais facilmente, não deixaram de as experimentar, tal como as zonas onde se‬
‭difundiam melhorias agrícolas que permitiam aumentar a produtividade. No mesmo sentido, M. Livi-Bacci‬
‭argumentou que a fome não era a causa da mortalidade, mas tinha uma maior influência na nupcialidade.‬
‭Assim, as epidemias assumem atualmente uma maior importância na geração de crises demográficas.‬
‭Entre essas epidemias, destaca-se a peste, que voltou a atingir a população europeia com uma frequência e‬
‭intensidade semelhantes às do século XIV. Os surtos mais importantes ocorreram em 1596-1603, que veio‬
‭a ser considerada a maior catástrofe sofrida pela Europa depois da Peste Negra; em 1628-1632, que foi‬
‭mais intensa no norte de Itália e em França; em 1647-1652, que devastou os países mediterrânicos; e em‬
‭1665-1667, que afectou gravemente os países do noroeste da Europa. A partir da década de 1670, porém,‬
‭a peste começou a regredir na Europa Ocidental e os poucos surtos que se registaram a partir daí foram‬
‭cada vez mais localizados. E, entre os vários argumentos apresentados para explicar o fenómeno, o mais‬
‭convincente é o que insiste na maior eficácia das medidas adotadas para evitar o contágio. Como salientou‬
‭J. P. Poussou, este é um dos aspectos mais positivos da criação dos Estados modernos. Com o‬
‭desaparecimento da peste, outras doenças epidémicas tornaram-se mais importantes, embora o seu‬
‭impacto na população tenha sido muito menos dramático.‬
‭Mas, a par da mortalidade catastrófica, o outro fator que influenciou a evolução demográfica do‬
‭século XVII dependeu, em maior medida, da vontade da própria população. As dificuldades do século‬
‭favoreceram o aparecimento de novos comportamentos demográficos que conduziram a uma redução‬
‭consciente da natalidade. Mais do que através da difusão de práticas contraceptivas, de carácter‬
‭excecional, o processo teve origem nos comportamentos conjugais. O celibato estendeu-se para além da‬
‭esfera eclesiástica, ao ponto de, nalguns territórios, chegar a representar 10% da população. Mas a causa‬
‭fundamental do declínio da natalidade foi o retardamento da idade do casamento. Embora a tendência já‬
‭tivesse começado antes, foi no século XVII que o casamento tardio se consolidou na Europa. O simples‬
‭atraso na idade média do casamento, que em vez de rondar os 20 anos se aproximava dos 30, levou a uma‬
‭redução do número de filhos concebidos por cada mulher. O atraso pode ter sido provocado por dificuldades‬
‭económicas, que aconselhavam a não casar "sem posição", ou seja, sem ter meios para assegurar a‬
s‭ ubsistência do novo núcleo familiar. Assim, o fenómeno não se verificou nas zonas onde a indústria rural‬
‭tinha atingido um certo grau de difusão. Como salientou P. Kriedte, a "cadeia de reprodução e de herança"‬
‭tinha sido quebrada nessas zonas, pois não só não era necessário esperar pela posse de bens para casar,‬
‭como a constituição de uma família era uma condição essencial para a atividade industrial. Em todo o caso,‬
‭J. de Vries considera que as dificuldades económicas não são suficientes para explicar a tendência para o‬
‭adiamento da idade do casamento, uma vez que este processo se verificou também nas categorias sociais‬
‭mais elevadas, que não estavam tão condicionadas pelo problema da subsistência. No seu caso, o‬
‭fenómeno pode ser atribuído a um desejo de reduzir a mobilidade social descendente e de alcançar uma‬
‭maior estabilidade social. Mas, para o conjunto da população, não é de excluir que, para além da falta de‬
‭oportunidades de trabalho, o adiamento da idade do casamento se deva ao desejo de usufruir de um nível‬
‭de vida mais elevado. Também neste aspeto, portanto, o século XVII foi um período crucial na mudança do‬
‭sistema de valores e do padrão de comportamento da população europeia.‬

‭5. A crise da sociedade rural e o incipiente processo de transformação da agricultura‬

‭O sector agrícola foi o que mais sofreu com as dificuldades do século. No caso dos cereais, como‬
s‭ e depreende da análise das fontes de dízimos, o nível máximo de produção que tinha sido atingido no‬
‭século XVI só excecionalmente foi recuperado nos melhores anos do século XVII. A perspetiva secular‬
‭indica, assim, a existência de uma certa regressão ou, na melhor das hipóteses, de uma estagnação da‬
‭produção agrícola. No entanto, a tendência não foi uniforme ao longo do século e a evolução cronológica foi‬
‭muito díspar do ponto de vista territorial. No Noroeste da Europa, a queda da produção foi menos intensa,‬
‭registando-se mesmo duas fases de clara recuperação entre 1600-1630 e 1660-1680. Em Inglaterra, porém,‬
‭só no contexto da Guerra Civil é que as dificuldades foram mais intensas, não se repetindo depois devido‬
‭aos frutos das inovações agrícolas que estavam a ser introduzidas. Na zona mediterrânica, pelo contrário, a‬
‭regressão produtiva foi mais precoce, prolongando-se até meados do século e conhecendo depois uma‬
‭certa estabilidade ou uma ligeira recuperação. No entanto, a produção castelhana, em particular,‬
‭enquadra-se neste modelo, enquanto na costa mediterrânica espanhola a crise foi mais curta e menos‬
‭intensa, e no golfo da Biscaia o século passou a ser caracterizado como um período de crescimento‬
‭produtivo. Por último, foi na Europa de Leste que a crise foi mais grave, com uma intensidade semelhante à‬
‭do século XV, e só no século XVIII se iniciou uma clara recuperação.‬
‭Para além da estagnação ou da redução da colheita de cereais, as explorações agrícolas‬
‭registaram também um ligeiro declínio da produtividade, sendo esta tendência mais acentuada na segunda‬
‭metade do século. O declínio foi de 17% na Europa de Leste, de 18% na Alemanha e na Escandinávia e de‬
‭14% em França. Mesmo em Inglaterra, registou-se uma quebra de 13%, embora na primeira metade do‬
‭século. Mas, para além disso, a tendência para a baixa dos preços intensificou as dificuldades da‬
‭agricultura. De facto, só a parte noroeste do continente conheceu um período relativamente favorável‬
‭durante o primeiro terço do século, quando a recuperação da produção coincidiu com um período de preços‬
‭ainda relativamente elevados. Assim, foi precisamente entre 1615 e 1639, nos Países Baixos, que o ritmo‬
‭de drenagem das terras através da construção de polders atingiu a intensidade mais elevada do período‬
‭moderno, enquanto em Inglaterra as técnicas neerlandesas foram também aplicadas para a drenagem da‬
‭região pantanosa de Fens, entre 1626 e 1649.‬
‭Mas se a redução ou a estagnação da produção, da produtividade e dos preços já pintavam um‬
‭quadro sombrio para as explorações agrícolas, as suas dificuldades foram agravadas pela ofensiva dos‬
‭poderosos para aumentar a sua apropriação do produto agrícola. Os principais responsáveis por esta‬
‭ofensiva não eram os encargos feudais. A sua taxa era estritamente fixada e a sua alteração era muito‬
‭polémica, devido à oposição imediata do campesinato. No entanto, os senhores aproveitaram o seu poder‬
‭para usurpar os bens comuns e aumentar as suas explorações agrícolas. De qualquer modo, a‬
‭possibilidade de rever periodicamente as rendas exigidas aos colonos que cultivavam as suas terras fez‬
‭com que esta taxa se tornasse um dos encargos mais pesados suportados pelos camponeses. O seu‬
‭aumento no final do século XVI e nas primeiras décadas do século XVII agravou a crise do mundo rural. E,‬
‭embora os latifundiários não tivessem posteriormente outra alternativa senão reduzir as suas exigências, o‬
‭agravamento das condições do campesinato acentuou a sua dependência da exploração deste tipo de‬
‭parcelas, generalizando a tributação dos rendimentos nelas auferidos. E à sua pressão juntou-se a pressão‬
‭exercida pelo Estado, cujas necessidades aumentaram dramaticamente em consequência do clima de‬
‭guerra reinante e do processo de construção do absolutismo.‬
‭Na Europa de Leste, foram sobretudo as dificuldades dos grandes domínios senhoriais que‬
‭agravaram a crise do mundo rural. A sua rentabilidade diminuiu devido à queda da produção e da‬
‭produtividade agrícola, à diminuição das exportações de cereais para a Europa Ocidental e ao aumento dos‬
‭custos de exploração. E os senhores tentaram resolver a sua crise financeira alargando os seus domínios,‬
‭ surpando os poucos bens colectivos detidos pela comunidade das aldeias, absorvendo as bolsas de‬
u
‭propriedade alodial camponesa que tinham sobrevivido até então e reduzindo mesmo a parte de terra‬
‭cedida aos seus servos a título precário. O resultado deste processo foi uma formidável concentração da‬
‭propriedade nas mãos de um grupo restrito de grandes aristocratas. A exploração dos seus vastos domínios‬
‭exigiu o reforço dos laços de servidão, o que generalizou o processo de subjugação do campesinato‬
‭iniciado em finais do século XV. Foi em meados do século XV, aproveitando os efeitos da guerra e as‬
‭necessidades do Estado, que os senhores conseguiram reduzir ao mínimo o campesinato livre. Mas‬
‭também intensificaram a exploração dos seus servos, aumentando a quantidade de trabalho obrigatório.‬
‭Consolidou-se, assim, um sistema económico que, baseado na existência de grandes domínios explorados‬
‭com pouca eficiência, impedia a melhoria da produtividade e consagrava o atraso e o empobrecimento da‬
‭sociedade rural.‬
‭Na Europa Ocidental verificou-se também um intenso processo de endividamento do campesinato,‬
‭que em muitos casos levou à subsequente alienação da sua propriedade. O fenómeno afectou também‬
‭quase todos os sectores do campesinato, enfraquecendo até a própria comunidade das aldeias. No entanto,‬
‭juntamente com a nobreza e o clero, foram as classes rentistas urbanas que mais beneficiaram com o‬
‭fenómeno. Por isso, a sua influência foi muito intensa nas zonas circundantes das grandes cidades,‬
‭enquanto nas zonas mais afastadas do mundo urbano a pequena propriedade familiar camponesa‬
‭conseguiu resistir melhor à investida. Mas isso se deu à custa da intensificação do trabalho de seus‬
‭membros e da busca de fontes complementares de renda. Em Inglaterra, porém, a ofensiva dos poderosos‬
‭foi mais intensa, levando ao quase desaparecimento do pequeno campesinato entre 1660 e 1740. Esta‬
‭evolução foi favorecida pelas peculiaridades da propriedade senhorial inglesa, caracterizada pela maior‬
‭precariedade das explorações camponesas e pela existência de importantes propriedades consolidadas nas‬
‭mãos dos senhores. A revolução acelerou o processo ao eliminar os constrangimentos feudais que‬
‭impediam a concentração da propriedade nas mãos de uma classe social cada vez mais caracterizada pelo‬
‭seu carácter fundiário. Os bens comuns foram privatizados com o acordo dos camponeses mais ricos da‬
‭localidade e, a partir de 1660, os obstáculos que até então tinham impedido o cercamento da propriedade‬
‭desapareceram completamente. Embora o seu desenvolvimento tenha sido moderado durante o resto do‬
‭século, a estrutura agrária inglesa começou a assentar na trilogia entre grandes proprietários, rendeiros que‬
‭exploravam a terra segundo métodos capitalistas e trabalhadores assalariados do campesinato‬
‭empobrecido.‬
‭Pressionados pelos proprietários que geriam as suas propriedades de forma mais eficaz, foram‬
‭estes grandes rendeiros que introduziram os novos métodos agrícolas que lhes permitiram contrariar a‬
‭baixa dos preços agrícolas através do aumento da produtividade. Os fortes laços com os Países Baixos‬
‭favoreceram o conhecimento dos sistemas agrícolas aí adoptados em resposta à crise tardo-medieval. No‬
‭entanto, as plantas forrageiras e as culturas intensivas, estimuladas pela procura urbana e industrial,‬
‭ganharam aí maior relevo, enquanto os cereais desempenhavam um papel secundário, uma vez que o‬
‭abastecimento do território tinha sido facilitado pelas importações do Báltico. O mérito dos ingleses foi a‬
‭adaptação deste sistema para dar aos cereais um papel preponderante, beneficiando da sua associação‬
‭com as plantas forrageiras, as leguminosas e as culturas intensivas. O objetivo era eliminar os pousios;‬
‭associar a atividade agrícola e a atividade pecuária, favorecendo a estabulação; recuperar melhor o‬
‭desgaste do solo; e melhorar a sua qualidade graças à mobilização contínua. Como resultado, o sistema‬
‭favoreceu um aumento substancial da produtividade dos cereais. A política governamental estimulou o‬
‭processo através da introdução, em 1670, de uma escala móvel de direitos aduaneiros sobre as‬
‭importações de cereais e, mais tarde, foram concedidos subsídios para incentivar a sua exportação em‬
‭anos de abundância. Em consequência, a Inglaterra tornou-se autossuficiente, escapou às dificuldades de‬
‭produção do final do século e tornou-se mesmo um importante exportador, rivalizando com o Báltico no‬
‭abastecimento da Europa no primeiro terço do século XVII.‬
‭No resto do continente, a resposta às dificuldades da pequena agricultura assumiu um carácter‬
‭mais tradicional. De um modo geral, a produção cerealífera manteve a sua hegemonia, apenas com‬
‭pequenos ajustamentos para se adaptar à nova situação. Assim, a redução da produção afectou‬
‭principalmente os cereais panificáveis (trigo e cevada), enquanto o centeio e a aveia, mais produtivos e‬
‭susceptíveis de serem utilizados na alimentação animal, se mantiveram mais bem conservados. No entanto,‬
‭a maior inovação na produção cerealífera foi a difusão do milho, que, a partir do final do século XI, se‬
‭estendeu à Galiza, à zona cantábrica espanhola, ao sul de França e ao norte de Itália. A sua elevada‬
‭produtividade e a sua inserção em sistemas de rotação de culturas que permitiram eliminar os pousios‬
‭melhoraram substancialmente os resultados da agricultura camponesa. Outro cereal que proporcionou uma‬
‭produtividade notável foi o arroz, muito difundido na Lombardia e no País Valenciano. Nesta zona, bem‬
‭como no Norte de Itália e na região francesa de Vivarais, desenvolveu-se a cultura da amoreira, estimulando‬
‭a produção de fibras de seda nas zonas rurais. Outro cereal que proporcionou uma produtividade notável foi‬
‭ arroz, cuja difusão foi muito importante na Lombardia e no País Valenciano. Nesta zona, bem como no‬
o
‭Norte de Itália e na região francesa de Vivarais, desenvolveu-se a cultura da amoreira, estimulando a‬
‭produção de fibras de seda nas zonas rurais. Outras culturas industriais, como o linho e o cânhamo,‬
‭estenderam-se à Galiza, ao oeste de França, aos Países Baixos e à Alemanha, favorecendo também o‬
‭desenvolvimento da indústria rural. A procura urbana, por seu lado, estimulou a horticultura e a plantação de‬
‭árvores de fruto na sua área de influência. Por último, a viticultura também registou progressos significativos‬
‭em França e na zona mediterrânica, devido à procura dos mercados do noroeste da Europa. Em suma,‬
‭embora se trate de pequenas transformações efectuadas em áreas geográficas muito limitadas, as‬
‭dificuldades do século favoreceram uma certa diversificação produtiva que intensificou a comercialização da‬
‭agricultura e lançou as bases de um incipiente processo de especialização regional.‬

‭6. A Crise da Manufatura Urbana Tradicional e a Reestruturação da Atividade Industrial‬

‭As dificuldades do século XVI afectaram particularmente a produção urbana tradicional. Ao mesmo‬
t‭empo, porém, estimularam a adoção de soluções inovadoras que permitiram uma melhor adaptação da‬
‭atividade industrial às condições do mercado e favoreceram o desenvolvimento do capitalismo. A‬
‭reestruturação do sector foi impulsionada pela crise da sociedade rural. A queda dos preços agrícolas‬
‭libertou recursos que a população pôde utilizar para adquirir produtos com uma procura mais elástica, como‬
‭os produtos manufacturados. Verificou-se, portanto, um aumento da procura que afectou principalmente os‬
‭produtos de menor qualidade e de menor preço e que conseguiu compensar a redução do mercado dos‬
‭produtos tradicionais. Mas, além disso, a crise do mundo rural provocou também uma intensa polarização‬
‭social, com o aparecimento de um vasto sector de camponeses empobrecidos que necessitavam de obter‬
‭recursos adicionais para sobreviver. A combinação destes factores produziu uma mudança progressiva na‬
‭organização e localização da atividade industrial, reforçando o seu controlo pelos sectores empresariais e‬
‭transferindo a sua localização para o mundo rural.‬
‭As principais razões subjacentes a este processo de "proto-industrialização" foram a redução dos‬
‭custos de produção e a rejeição do quadro restritivo imposto pelas corporações no mundo urbano. A‬
‭proteção proporcionada por estas organizações acentuou o aumento do valor real dos salários. Por outro‬
‭lado, o empobrecimento do campesinato favoreceu o aparecimento no mundo rural de uma mão de obra‬
‭abundante e disposta a trabalhar por salários muito inferiores aos pagos na cidade. A sua dispersão e‬
‭desorganização colocavam-nos à mercê dos patrões. Mas, para além disso, o salário era, no seu caso,‬
‭apenas um rendimento complementar dos recursos obtidos na pequena exploração familiar. Isto conduziu‬
‭àquilo a que P. Kriedte chama a "externalização dos custos do trabalho", uma vez que o empregador‬
‭suportava apenas uma parte dos custos de reprodução do trabalho, sendo o resto suportado pelo sector‬
‭agrícola. Assim, a agricultura contribuía para o processo de acumulação de capital-mercadoria. Mas, para‬
‭além da redução dos custos, a transferência da produção industrial para o campo resultava também da‬
‭baixa elasticidade da oferta de trabalho na economia urbana. A regulamentação rigorosa da formação dos‬
‭artesãos limitava a capacidade de expansão da sua produção, o que significava que esta não podia‬
‭responder rapidamente ao crescimento da procura no mercado.Pelo contrário, os camponeses podiam‬
‭facilmente participar no processo de produção, no qual colaboravam todos os membros do agregado‬
‭familiar. Por último, a mudança de localização foi também influenciada pela rejeição das regras das‬
‭corporações, uma vez que, ao preservar a qualidade da produção, dificultava a produção de bens de menor‬
‭qualidade e preço, cuja procura era crescente. De um modo geral, ao reduzir os custos e alargar a oferta‬
‭produtiva, a proto-indústria favoreceu a acumulação de capital. A proto-indústria favoreceu a acumulação de‬
‭capital, mas também a generalização do trabalho a domicílio, acentuando a separação entre capital e‬
‭trabalho. E a extensão do sistema ao mundo rural implicou a emergência de uma mão de obra qualificada e‬
‭a difusão das relações de mercado. A proto-indústria contribuiu assim de forma significativa para o‬
‭desenvolvimento do capitalismo.‬
‭A manifestação mais evidente da crise da produção urbana tradicional ocorreu no Norte de Itália,‬
‭nomeadamente nos centros de produção de tecidos de alta qualidade de Veneza, da Lombardia e da‬
‭Toscânia. A sua procura, tanto externa como interna, caiu perante a concorrência de produtos mais leves e‬
‭mais económicos provenientes do Noroeste da Europa. Mas os tecidos italianos não eram apenas mais‬
‭caros devido à sua qualidade superior, mas também devido aos custos de produção mais elevados, em‬
‭consequência da elevada tributação, dos custos salariais mais elevados e da rigidez das corporações de‬
‭ofício. No entanto, o declínio foi menor no caso da indústria da seda, afectando particularmente Génova,‬
‭mas manteve-se melhor em Bolonha e Florença. Além disso, a crise foi compensada neste sector pela‬
‭enorme difusão da fiação da seda no mundo rural, que fez do país o maior produtor europeu de fibras de‬
‭seda. É por isso que P. Malanima qualifica o conceito de declínio, sublinhando que a economia italiana‬
‭sofreu uma "reconversão" no século XVII, passando da produção de tecidos de lã para o fio de seda.‬
‭A crise da indústria de tecidos castelhana foi também muito intensa, com o fabrico a desaparecer‬
‭ raticamente em muitas cidades. O centro industrial mais emblemático, Segóvia, reduziu consideravelmente‬
p
‭a sua atividade, mantendo um nível muito modesto à custa da diversificação da produção e produzindo,‬
‭juntamente com os panos superfinos, artigos de baixa qualidade. E, embora a indústria transformadora se‬
‭tenha difundido em algumas zonas rurais, como o interior de Segóvia ou a serra de Cameros, o seu controlo‬
‭empresarial era muito débil e produziam-se produtos de má qualidade. Apenas no caso da Catalunha, a‬
‭recuperação registada no final do século foi impulsionada por pequenos comerciantes ou artesãos em‬
‭centros semi-urbanos (Igualada, Sabadell, Terrassa, etc.). Do mesmo modo, o declínio do mais importante‬
‭centro de seda castelhano, Toledo, favoreceu a expansão da atividade em Valência e Barcelona, bem como‬
‭noutras pequenas cidades destes territórios. Por último, a difusão da indústria do linho nas zonas rurais foi‬
‭particularmente importante na Galiza, embora fosse exercida por pequenos camponeses independentes e‬
‭produzisse produtos muito vulgares.‬
‭A indústria têxtil urbana francesa manteve um certo vigor até à década de 1630, mas foi o clima de‬
‭guerra, os conflitos sociais e as dificuldades ocorridas entre 1630 e 1650 que provocaram uma forte‬
‭recessão nos centros tradicionais. Durante a era Colbert, a proteção pautal e a política de promoção‬
‭industrial conduziram a uma certa recuperação, tendo-se estabelecido uma certa complementaridade entre‬
‭a indústria rural e a urbana em algumas zonas, como Amiens e Beauvais. A difusão da proto-indústria no‬
‭Norte e no Oeste do país é também notável. Algo semelhante aconteceu no Languedoc, graças ao apoio do‬
‭Estado e ao incentivo às exportações para o Mediterrâneo oriental através do porto de Marselha. Por último,‬
‭o declínio dos genoveses favoreceu a conversão de Lyon no principal centro europeu da seda.‬
‭Em contraste com as dificuldades das outras áreas manufactureiras, a indústria têxtil neerlandesa‬
‭conheceu uma formidável expansão no século XVII. A instalação de refugiados flamengos no território‬
‭favoreceu a difusão dos novos drapeleiros, cuja produção cresceu de forma espetacular em Leiden (ver‬
‭quadro 21.2). Embora a manufatura fosse urbana, os seus custos mais elevados foram inicialmente‬
‭atenuados pela abundante oferta de mão de obra fornecida pelos refugiados, pela intensa especialização‬
‭dos ofícios têxteis e pela introdução de inovações tecnológicas. Os produtos atractivos e baratos que‬
‭produzia, sobretudo stencils e fustans, substituíram os produtos tradicionais no mercado internacional,‬
‭conquistando uma posição no Mediterrâneo em detrimento dos italianos. No entanto, a partir de meados do‬
‭século, a cidade começou a sofrer um problema semelhante devido, desta vez, à concorrência dos novos‬
‭cortinados ingleses que, por disporem de matérias-primas abundantes e serem fabricados em zonas rurais,‬
‭tinham custos de produção mais baixos. A sua produção só podia sobreviver se se especializasse na‬
‭produção de tecidos de alta qualidade, cujo preço elevado atenuava o impacto dos elevados custos‬
‭laborais. No entanto, como os mercados para estes produtos eram pequenos, a produção têxtil em Leiden‬
‭começou a declinar no final do século. O desenvolvimento de Leiden reflecte as fraquezas da própria‬
‭indústria neerlandesa, uma vez que, devido ao seu carácter urbano e aos elevados custos da mão de obra,‬
‭não podia competir com os produtos produzidos nas zonas proto-industriais. Além disso, tratava-se de uma‬
‭atividade muito vulnerável, muito dependente do abastecimento de matérias-primas e de produtos‬
‭semi-acabados provenientes do estrangeiro. Assim, os tecidos ingleses eram produzidos em Amesterdão e‬
‭Leiden; os linhos alemães, flamengos e franceses eram branqueados em Haarlem; e as outras indústrias,‬
‭como a alimentar, a açucareira e a naval, estavam intimamente ligadas à hegemonia comercial do próprio‬
‭território, que começou a esmorecer a partir da década de 1670.‬
‭De facto, foi a indústria têxtil inglesa que sofreu a conversão mais intensa. No final do século XI, o‬
‭país produzia principalmente tecidos tradicionais semi-acabados, que eram acabados e tingidos nos Países‬
‭Baixos. Esta atividade foi muito afetada pela crise comercial de 1619-1622, pelo fracasso do projeto‬
‭Cokay-ne de eliminação dos acabamentos externos dos tecidos e pela desestabilização dos mercados do‬
‭centro e do norte da Europa em consequência da guerra. Simultaneamente, a melhoria da alimentação do‬
‭gado, resultante das inovações agrícolas, fez com que a lã inglesa perdesse qualidade e se tornasse mais‬
‭comprida e grosseira. Tudo isto favoreceu o desenvolvimento dos novos drapeados, que já tinham sido‬
‭introduzidos no país no final do século XVI por refugiados flamengos, mas que até então tinham tido um‬
‭crescimento muito limitado. A partir da década de 1620, a sua difusão foi muito intensa nas zonas rurais do‬
‭Sudoeste de Inglaterra e do Oeste de Yorkshire. Os seus produtos rapidamente se tornaram concorrentes‬
‭no mercado internacional, devido aos seus baixos custos de produção, resultantes da utilização de mão de‬
‭obra rural e da abundância de matérias-primas. Estas matérias-primas provinham não só do gado inglês,‬
‭mas também do irlandês, que era obrigado a canalizar a sua produção de lã para Inglaterra. Por último, as‬
‭manufacturas beneficiaram de um mercado em expansão, tanto a nível interno como internacional, graças à‬
‭crescente eficácia da rede comercial inglesa no Mediterrâneo e no mundo colonial.‬
‭Mas o crescimento industrial da Inglaterra e do Noroeste da Europa não se baseou apenas no‬
‭fabrico de têxteis. A exploração mineira e a metalurgia foram também as actividades que mais se‬
‭desenvolveram nestas regiões. A existência de ricas jazidas de cobre e ferro, de vastas áreas florestais de‬
‭ nde se podia obter combustível e os privilégios e vantagens fiscais concedidos por Gustavo Adolfo levaram‬
o
‭os holandeses a transferir as suas fundições de ferro e a produção de armamento para a Suécia. A indústria‬
‭metalúrgica sueca rapidamente alcançou uma posição hegemónica, fornecendo cerca de um terço da‬
‭procura europeia de ferro no final do século. Em contrapartida, a produção britânica tinha estabilizado, em‬
‭grande parte devido à escassez de combustível resultante da desflorestação intensiva. No entanto, cerca de‬
‭metade da produção sueca era exportada para Inglaterra, contribuindo para o desenvolvimento da indústria‬
‭metalúrgica de Birmingham e Sheffield.‬
‭Os problemas energéticos causados pela desflorestação começaram a ser resolvidos com a utilização‬
‭generalizada do carvão. A sua utilização como combustível básico para o aquecimento doméstico fez de‬
‭Londres o seu principal mercado. Mas era também utilizado por um número crescente de manufacturas‬
‭como substituto da madeira ou do carvão vegetal, embora os problemas causados pela sua utilização na‬
‭metalurgia só tenham sido resolvidos no século XVIII. Esta procura intensa estimulou a exploração do‬
‭carvão, cuja importância crescente levou a que, em meados do século XVI, o seu principal centro de‬
‭produção, Newcastle, fosse considerado como o Peru de Inglaterra. Desta forma, a Inglaterra conseguiu‬
‭desenvolver também no século XVII a fonte de energia básica que favoreceria o seu posterior processo de‬
‭industrialização.‬

‭7. O declínio dos centros mercantis do Mediterrâneo e a hegemonia das potências navais do Atlântico‬

‭A primeira fase de expansão da economia-mundo europeia começou a atingir os seus limites no‬
f‭inal do século XVI. A interrupção do crescimento demográfico e o agravamento das dificuldades tiveram um‬
‭impacto negativo no comércio, enquanto a exploração dos impérios ultramarinos criados pelas potências‬
‭ibéricas era ainda muito superficial e centrada em actividades com uma elevada componente especulativa.‬
‭Na Ásia, os portugueses limitaram-se a instalar feitorias em locais estratégicos para controlar as estruturas‬
‭mercantis anteriormente existentes. Assim, não conseguiram perturbar o comércio terrestre com o‬
‭Mediterrâneo Oriental, o que permitiu a Veneza manter o importante tráfego de redistribuição dos produtos‬
‭asiáticos para a Alemanha através dos desfiladeiros alpinos. No início do século XV, a chegada dos‬
‭holandeses à Ásia significou, simultaneamente, a deslocação dos portugueses e o triunfo definitivo das‬
‭rotas marítimas sobre as terrestres. Simultaneamente, com o declínio da indústria urbana no norte de Itália‬
‭e a desestabilização do comércio com a Alemanha em consequência da Guerra dos Trinta Anos, Veneza‬
‭sofreu uma redução considerável da sua atividade comercial, relegando-a para uma posição muito‬
‭secundária na cena internacional.‬
‭O sistema colonial espanhol, por seu lado, tinha-se baseado na exploração das minas através do‬
‭recurso ao trabalho forçado dos indígenas. Mas a catástrofe demográfica vivida por estes últimos e o‬
‭esgotamento das jazidas mais ricas e acessíveis aumentaram os custos da exploração. Embora a produção‬
‭de metais preciosos não tenha diminuído com a descoberta de novas jazidas, uma parte maior ficou na‬
‭América para fazer face aos custos de administração e defesa. A economia americana, por sua vez,‬
‭tornou-se mais autossuficiente, reduzindo a sua dependência dos fornecimentos europeus. Tudo isto levou‬
‭a uma redução do tráfico hispano-americano, que também foi afetado negativamente pelo aumento da‬
‭tributação e pela insegurança causada pelo recurso da Monarquia ao confisco dos metais recebidos por‬
‭particulares para resolver os seus problemas financeiros. Estes últimos, por seu lado, acabaram por‬
‭deslocar a hegemonia dos genoveses nas finanças internacionais, controlando a prata espanhola que‬
‭entrava na Europa através dos empréstimos concedidos à Monarquia Hispânica entre 1557 e 1627. Assim,‬
‭a crise dos sistemas coloniais ibéricos ocorreu em paralelo com o declínio dos centros mercantis‬
‭tradicionais do Mediterrâneo.‬
‭Tudo isto consagrava a deslocação do centro de gravidade do comércio internacional para o‬
‭Atlântico, que tinha começado a verificar-se no século XVI, quando as principais correntes de tráfego‬
‭convergiam para Antuérpia. A sua hegemonia tinha sido muito fraca, pois não dispunha de uma frota‬
‭comercial própria. Pelo contrário, foi o poder naval dos holandeses que permitiu a Amesterdão tornar-se o‬
‭verdadeiro centro do sistema económico europeu no século XVII, desenvolvendo um novo sistema‬
‭comercial que ultrapassou os limites que tinham impedido a expansão da economia mundial. Este sistema‬
‭baseava-se na intensificação das rotas comerciais existentes e na utilização da sua posição hegemónica‬
‭para criar novas oportunidades comerciais onde antes não existiam. Ao contrário de Antuérpia, os‬
‭mercadores de Amesterdão não tinham de esperar que os navios estrangeiros lhes trouxessem‬
‭mercadorias, pois possuíam a frota mais poderosa da Europa. Mas, para além da sua dimensão, os seus‬
‭navios eram também melhores do que os dos seus concorrentes, pois desde o final do século XVI que os‬
‭estaleiros navais holandeses tinham criado um novo tipo de navio mercante: o navio-flutuante. Os seus‬
‭custos de produção e de exploração eram muito baixos e a sua capacidade de carga aumentava à medida‬
‭que se especializava no transporte de mercadorias. O seu financiamento era também muito inovador, com a‬
f‭ragmentação do capital em participações muito pequenas detidas por numerosas pequenas empresas, o‬
‭que permitia a participação de todos os sectores sociais e a diversificação dos riscos. Deste modo, puderam‬
‭oferecer fretes a preços muito baixos, monopolizando a maior parte do tráfego comercial e tornando-se os‬
‭"transportadores rodoviários dos mares", como lhes chamavam depreciativamente os seus concorrentes. E,‬
‭ao movimentarem mercadorias das mais diversas origens, conseguiam introduzi-las noutras áreas‬
‭geográficas, de modo a dinamizar as trocas comerciais e a ultrapassar as limitações do comércio bilateral.‬
‭A base do sistema comercial neerlandês era a sua especialização no comércio de mercadorias‬
‭volumosas, que resultava do seu forte controlo do tráfego no Báltico. Ao longo do século XVII, mais de dois‬
‭terços dos navios que atravessavam o Estreito do Øresund arvoravam o pavilhão neerlandês. Uma‬
‭indicação clara da sua importância é o facto de este tráfego ter atraído três quartos de todo o capital ativo‬
‭na bolsa de Amesterdão, ainda em 1666. Era também de importância estratégica para a república, uma vez‬
‭que contribuía para o abastecimento de cereais de uma sociedade tão urbanizada como a neerlandesa e‬
‭fornecia os abastecimentos navais essenciais para a atividade dos seus estaleiros. O seu estabelecimento‬
‭tinha exigido a intensificação das relações comerciais com a Península Ibérica, de onde obtinha vinho, sal e,‬
‭sobretudo, prata espanhola, essencial para pagar o défice resultante do maior valor das importações do‬
‭Báltico. Apesar disso, o controlo holandês sobre o principal produto fornecido por esta zona, os cereais, foi‬
‭crucial, pois permitiu-lhes entrar no Mediterrâneo quando a sua incapacidade de produzir agravou as crises‬
‭de subsistência no final do século XVI.‬
‭No entanto, para além do trigo e do centeio, os holandeses transportaram também têxteis, peixe, peles,‬
‭equipamento naval, etc., estabelecendo um dos seus principais centros de redistribuição no porto italiano de‬
‭Livorno e estabelecendo relações comerciais com o Norte de África e o Império Turco. Por outras palavras,‬
‭o tráfego mediterrânico não diminuiu com a crise dos centros mercantis tradicionais, mas o seu controlo‬
‭passou para as potências navais do Atlântico. Mas depois de terem conquistado a hegemonia no comércio‬
‭europeu, os holandeses assumiram o controlo do comércio mundial. A partir da década de 1590,‬
‭começaram a entrar pacificamente no comércio asiático. Mas os seus métodos mudaram radicalmente‬
‭quando, sob o impulso dos Estados Gerais, foi criada a Companhia das Índias Orientais em 1602, reunindo‬
‭num único organismo as várias companhias que existiam até então. Em contraste com o carácter pessoal e‬
‭efémero destas companhias, a Companhia das Índias Orientais era uma sociedade anónima impessoal,‬
‭com um capital permanente, obtido através da emissão de acções totalmente negociáveis em bolsa. A‬
‭Companhia pôs fim às viagens ao acaso e, actuando como uma espécie de Estado dentro do Estado,‬
‭organizou expedições e uma política de expansão na Ásia.Para impor o seu monopólio, desalojou‬
‭violentamente os portugueses, conquistando o controlo das Molucas com a capitulação do forte de‬
‭Amboina, em 1604. A criação posterior das feitorias de Batávia e Malaca permitiu-lhes dominar o comércio‬
‭das especiarias e o tráfego entre o Índico e o Pacífico. Assim, puderam desempenhar um papel de‬
‭intermediários no próprio comércio intra-asiático e os seus lucros contribuíram para reduzir o défice‬
‭comercial crónico da Europa com a Ásia. Do mesmo modo, como a concorrência crescente das outras‬
‭potências coloniais acabou por saturar o mercado europeu das especiarias, na segunda metade do século‬
‭XVII assistiu-se a uma diversificação das mercadorias importadas, com um aumento acentuado dos‬
‭produtos têxteis provenientes do Sul da Índia. No entanto, embora o comércio neerlandês se tenha‬
‭adaptado a estas circunstâncias, a evolução beneficiou mais os ingleses, que estavam mais firmemente‬
‭estabelecidos na Índia.‬
‭No continente americano, os holandeses foram muito menos bem sucedidos. A sua expansão foi‬
‭impulsionada pela Companhia das Índias Ocidentais, fundada em 1621 segundo o modelo anterior. No‬
‭entanto, a sua natureza era mais política, pois era vista como uma arma de guerra contra o tráfico atlântico‬
‭espanhol, sendo o seu maior sucesso a captura da frota espanhola das Índias em 1628. Posteriormente,‬
‭ocupou o noroeste do Brasil, onde incentivou o desenvolvimento da cultura da cana-de-açúcar. Para dispor‬
‭de mão de obra regular, os portugueses apoderaram-se também dos fortes da Costa do Ouro Africana e de‬
‭Angola e entraram no comércio de escravos. Mas a necessidade de preservar o comércio do Báltico, para o‬
‭qual o sal português era vital, e os custos crescentes desta política de expansão territorial levaram os‬
‭holandeses a decidir abandonar o território brasileiro. Em todo o caso, a sua iniciativa estimulou a expansão‬
‭das plantações de açúcar nas ilhas das Caraíbas, sendo os franceses e os ingleses os principais‬
‭beneficiários do novo modelo de exploração colonial daí decorrente.‬
‭A disponibilidade de uma frota tão poderosa e o manuseamento de mercadorias das mais diversas‬
‭proveniências permitiram aos holandeses intensificar as relações comerciais, quebrando os limites que‬
‭impediam o seu desenvolvimento. Assim, por exemplo, aperfeiçoaram o comércio báltico, enviando‬
‭produtos coloniais para o Báltico, o que lhes permitiu reduzir tanto o défice crónico da balança de‬
‭pagamentos como a proporção de navios que atravessavam o Estreito do Øresund em lastro (ou seja, sem‬
‭produtos comerciais no seu interior). Além disso, a sua hegemonia mercantil fez de Amesterdão o principal‬
‭centro financeiro da Europa. A criação da sua bolsa de valores em 1609 tornou o comércio de mercadorias‬
‭ de títulos definitivamente independente das feiras. Esta bolsa foi complementada pelo Banco de Câmbio,‬
e
‭criado no mesmo ano, que substituiu as feiras genovesas como o mais importante centro internacional de‬
‭compensação de letras de câmbio. O banco não só aceitava depósitos e efectuava transferências e trocas‬
‭de moeda, como também aceitava, pagava e negociava letras de câmbio, estando apenas excluída da sua‬
‭atividade a concessão de crédito a particulares. No entanto, a hegemonia neerlandesa era muito vulnerável,‬
‭pois dependia demasiado da intermediação, sem uma estrutura produtiva sólida e sem um mercado interno‬
‭forte para apoiar o seu comércio. Por isso, a crescente hostilidade dos seus concorrentes começou a‬
‭diminuir o seu dinamismo no último terço do século.‬
‭A partir da década de 1670 foram os ingleses que conseguiram afirmar a sua hegemonia no‬
‭comércio internacional. Na primeira metade do século XVI. A reestruturação da sua indústria têxtil‬
‭permitiu-lhes ultrapassar os produtos holandeses, rivalizando com estes nos mercados ibérico e‬
‭mediterrânico. A partir da Revolução, a política governamental estimulou o desenvolvimento da marinha‬
‭(principalmente através dos Actos de Navegação, da expansão colonial e do comércio de entreposto e‬
‭reexportação). De facto, a importação, o processamento e a subsequente reexportação de produtos‬
‭coloniais (açúcar e tabaco, em particular) tornaram-se o sector de mais rápido crescimento do comércio‬
‭externo inglês na segunda metade do século XVII. Mas, para além do mercado europeu, este comércio era‬
‭também impulsionado pela procura interna, uma vez que o maior afluxo destas mercadorias reduzia os seus‬
‭preços e favorecia o seu consumo por uma população que tinha também maior poder de compra de bens‬
‭com procura elástica. A estreita ligação entre o comércio colonial, a força da produção e do consumo interno‬
‭e a liderança que estes dois domínios permitiam à Inglaterra no comércio europeu constituíam os pilares‬
‭fundamentais da vigorosa economia atlântica que a Inglaterra tinha conseguido articular a seu favor no final‬
‭do século XVII.‬
‭Capítulo 23‬
‭A cultura no século das luzes‬
‭1. Introdução‬

‭"Somos os descendentes directos do século XVIII". A tese de Paul Hazard continua a ser válida no‬
i‭nício do século XXI? Em grande medida, sim. Certas ideias e valores sociopolíticos que surgiram ou se‬
‭tornaram hegemónicos no Século das Luzes continuam a ser amplamente aceites hoje em dia. Assim, os‬
‭valores da razão, do progresso, da civilização, da tolerância e da utilidade. Estas ideias-força são aceites‬
‭não só no nosso mundo ocidental, mas também, embora de forma desigual, noutras civilizações. Assim, o‬
‭tema em apreço ajuda-nos a compreender a emergência de uma época ou fase histórica por vezes‬
‭designada por Modernidade. Uma Modernidade que se iniciaria no último século da Idade Moderna (o‬
‭século XVI), conheceria o seu apogeu no século XIX e começaria a ser seriamente questionada no último‬
‭terço do século XX.‬
‭É verdade que, entendendo a cultura num sentido mais antropológico, como o modo de viver e de‬
‭pensar partilhado por um grupo humano, a grande maioria das realidades culturais do século XVII não pode‬
‭ser reduzida ao movimento que hoje designamos com o nome de Iluminismo, Lumières ("luzes" em‬
‭francês), ou os seus equivalentes aproximados em inglês (Enlightenment), alemão (Aufklärung) ou italiano‬
‭(Illuminism). A influência que este movimento histórico-cultural alcançou posteriormente, dentro e fora do‬
‭mundo ocidental, justifica, no entanto, que lhe dediquemos uma atenção substancial neste capítulo. A‬
‭medida e as práticas através das quais alguns governantes tentaram concretizar o programa iluminista dos‬
‭philosophes serão examinadas mais especificamente noutro lugar. Chamavam-se a si próprios philosophes,‬
‭ou melhor, intelectuais, que procuravam reformar, guiados pela razão, a sociedade cristã tradicional de‬
‭hegemonia aristocrática.‬
‭Nas páginas que se seguem, começaremos por traçar as características fundamentais da cultura da‬
‭Europa Ocidental no século XVII, situando o Iluminismo no seu significado geral, mas também referindo as‬
‭suas diferentes formas, figuras, centros e realizações. De seguida, abordaremos os limites do Iluminismo e‬
‭as origens do Romantismo, bem como a ambiguidade da Modernidade nascida no Século das Luzes.‬
‭Depois de discutirmos as tendências das artes visuais, debruçar-nos-emos finalmente sobre os progressos‬
‭realizados no conhecimento da natureza e no seu domínio.‬

‭2. As características básicas da cultura occidental no século XVIII‬

‭A cultura europeia, ou seja, o modo de viver e de pensar basicamente partilhado pela grande‬
‭maioria dos seus habitantes, caracteriza-se pelos seguintes aspectos‬

‭2.1. O cristianismo como referente civilizacional fundamental‬

‭A religião cristã continua a ser a referência fundamental que articula a mundividência e as práticas‬
s‭ ociais, tanto dos camponeses como dos homens e mulheres das cidades. A arte e a utilização do espaço,‬
‭a onomástica, os costumes familiares e as festas são largamente modulados pelos valores, símbolos e‬
‭prescrições do cristianismo. As igrejas protestantes ou católicas eram responsáveis pela transmissão da‬
‭doutrina e da moral cristãs, através de uma pregação já muito organizada, por exemplo da maioria dos‬
‭eclesiásticos apoiados pelos fiéis e do controle das dissidências ideológicas e dos costumes.‬
‭Por outro lado, no século XVII, o processo de difusão do evangelho cristão continuou em grande‬
‭parte do mundo, especialmente na América. Em 1790, existiam 7 arcebispos, 36 bispados e mais de 70.000‬
‭igrejas no México e na América do Sul. Várias cidades da atual Califórnia devem a sua origem à fundação‬
‭de algumas missões (centros de evangelização) no século XV. Uma das experiências missionárias e‬
‭sócio-culturais mais importantes foi a realizada pelos jesuítas entre os índios Guarani nas chamadas‬
‭reduções do Paraguai. Um famoso filme de R. Joffé, A Missão, baseia-se nesta experiência.‬
‭No mundo protestante, o movimento de renovação cristã mais importante foi o metodismo, fundado‬
‭em Inglaterra por John Wesley em 1738, com o objetivo de facilitar o conhecimento da Bíblia e a vida cristã‬
‭às pessoas. Nas colónias norte-americanas, o metodismo conduziria mais tarde à criação da Igreja‬
‭Episcopal Metodista. Na Alemanha luterana, especialmente entre 1730 e 1750, o Pietismo (fundado em‬
‭1670 por P. Spener), que enfatizava os aspectos místicos e caritativos do cristianismo, foi de grande‬
‭importância. O pietismo influenciou, por sua vez, o nascimento da corrente espiritual dos Irmãos Morávios,‬
c‭ om o seu centro em Herrhuh (a "proteção do Senhor"). Esta corrente difundiu-se também noutros países‬
‭europeus e no estrangeiro.‬
‭No entanto, a ascendência social do cristianismo diminuiu consideravelmente no século XVI entre‬
‭as elites de alguns países, nomeadamente em França, Inglaterra e Países Baixos, por diversas razões. Em‬
‭parte, devido às amargas disputas entre correntes eclesiásticas (por exemplo, entre jansenistas e jesuítas‬
‭em França e noutros países), ao descrédito que a intolerância religiosa provocou nas Igrejas, às‬
‭dificuldades em harmonizar as interpretações tradicionais da Bíblia com as novas experiências culturais e‬
‭científicas, ao mundanismo de uma parte significativa do clero e à sua ligação ao poder temporal ostensivo..‬

‭2.2. A transição para a civilização escrita‬

‭ o século XVI, assiste-se à transição de uma cultura baseada na transmissão oral para uma cultura‬
N
‭em que a palavra escrita desempenha um papel importante. Esta proeminência da escrita foi favorecida por‬
‭um conjunto de fatores. Em toda a Europa, especialmente na Europa Ocidental, a alfabetização aumentou‬
‭significativamente, sobretudo nas cidades, embora em proporções e com diferenças (consoante os meios‬
‭socioculturais, os países e o género) ainda não bem conhecidas. Em França, por exemplo, a média de‬
‭pessoas que assinaram a certidão de casamento passou de 29% entre os homens (em 1690) para 47% (em‬
‭1790). Neste último ano, a percentagem de mulheres era de 27%, com importantes diferenças regionais. No‬
‭centro de Londres, em meados do século, a população alfabetizada podia já aproximar-se dos 90% para os‬
‭homens e dos 70% para as mulheres. Os números que conhecemos para Amesterdão não estão longe‬
‭disso.‬
‭A transição para a civilização da palavra escrita foi também favorecida pelo aparecimento ou‬
‭expansão de novos meios de comunicação (jornais e revistas), bem como pela flexibilização da censura em‬
‭alguns países. O primeiro diário inglês, The Daily Courant, surgiu em 1702, seguido 75 anos mais tarde pelo‬
‭primeiro em francês. Esta diferença cronológica explica-se, pelo menos em parte, pelo facto de em‬
‭Inglaterra, ao contrário do que acontecia em França, a lei garantir uma liberdade básica de impressão a‬
‭partir do final do século XI.‬
‭No que respeita às gazetas ou aos jornais não diários (em muitos casos semanais), desenvolveu-se‬
‭uma ampla tipologia que se consolidou ao longo do século. Alguns jornais de informação geral estavam‬
‭mais orientados para a divulgação de notícias políticas e económicas, enquanto outros estavam mais‬
‭orientados para a criação de opinião. Entre os primeiros, um dos mais bem sucedidos, para além das‬
‭gazetas holandesas fundadas já no século anterior, foi o vulgarmente conhecido como Correspondente de‬
‭Hamburgo (publicado a partir de 1730). No final do século, circulava com cerca de 80.000 exemplares, um‬
‭número muito elevado. Parece que no norte da Alemanha, nas vésperas da Revolução Francesa, cerca de‬
‭metade dos homens adultos tinham acesso à informação dos jornais, quer como leitores, quer como‬
‭ouvintes.‬
‭Entre os jornais de opinião, o Spectator, publicado em Londres nas primeiras décadas do século,‬
‭tornou-se um ponto de referência. O Século das Luzes assistiu também ao nascimento de jornais ou‬
‭revistas especializadas. Já em 1739, surgiu na cidade universitária alemã de Göttingen uma revista‬
‭dedicada a questões científicas e culturais, que adquiriu grande prestígio. Também a imprensa‬
‭especializada em economia chegou a Espanha na última década do século, com El Correo Mercantil e El‬
‭Semanario de Agricultura. A difusão desta imprensa fora do próprio país dependeu de muitos factores. A‬
‭imprensa de língua francesa foi facilitada pela hegemonia desta língua ao longo do século. Mesmo uma‬
‭grande parte da imprensa neerlandesa era publicada em francês. Assim, é mais fácil compreender a difusão‬
‭de Le Journal des dames, publicado em Paris, um jornal que prestava muita atenção à moda. Em 1761, o‬
‭jornal chegou a 39 cidades em França e a 41 cidades noutros países. Outro indicador da influência da‬
‭língua francesa é a percentagem de traduções de obras escritas em francês. No que diz respeito a‬
‭Espanha, calcula-se que, no século XVII, essa percentagem era de quase dois terços do número total de‬
‭obras traduzidas.‬
‭Outro facto que favoreceu a difusão da escrita foi a língua em que quase todas as obras foram‬
‭publicadas, pelo menos na Europa Ocidental. Exceto em zonas restritas, o latim foi substituído em cada país‬
‭pela respectiva língua literária, enquanto o francês era a língua das relações internacionais ("a língua‬
‭universal", como dizia a Academia das Ciências e das Letras de Berlim em 1782), devido à hegemonia‬
‭política e ao prestígio da arte de viver francesa desde o reinado de Luís XIV. O francês assumiu assim o‬
‭papel que o latim desempenhava anteriormente na república europeia das letras. No entanto, globalmente‬
‭falando, a grande maioria dos europeus, exceto nos países do noroeste, continua analfabeta. Continuaram‬
‭a receber e a transmitir a sua visão do mundo através de histórias e imagens, mais ou menos cruas, mais‬
‭ou menos criativas.‬
‭2.3. Cultura Iluminista versus cultura popular‬

‭Foi talvez no século XVIII que se alargou o fosso entre os modos de pensar e de viver das elites‬
‭ uropeias e da maioria da população camponesa. As elites deixaram de partilhar muitos dos traços da‬
e
‭mentalidade popular. As elites esclarecidas não gostavam do gosto do povo pela astrologia e pela‬
‭adivinhação, das pantomimas burlescas e da violência colectiva que se manifestava em muitas festas‬
‭urbanas e camponesas, como as encerradas (ritos de escárnio de que eram vítimas alguns casais).‬
‭Enquanto o comportamento popular tendia a ser mais espontâneo, rude e crédulo, o autocontrolo (pelo‬
‭menos exteriormente), a sofisticação e um certo sentido crítico predominavam entre as elites, sobretudo‬
‭entre a burguesia esclarecida.‬
‭Muitos dos Iluminados quiseram empenhar-se numa verdadeira luta contra as chamadas‬
‭"superstições do vulgar". Mas a "cultura popular" não pode ser comparada de forma simplista com a "alta‬
‭cultura" ou a "cultura de elite" do Iluminismo. Se é que se pode distingui-las, a circulação e a influência‬
‭mútua entre as duas foi um fenómeno muito importante, como salientou Roger Chartier. O que é por vezes‬
‭considerado tradição popular imemorial foi por vezes "inventado" com a intervenção consciente de um grupo‬
‭"culto".‬
‭Já no final do Século das Luzes, uma certa idealização e admiração pelos valores supostamente‬
‭simples e autênticos do mundo camponês, não corrompidos pela civilização, difundiu-se mesmo entre‬
‭alguns intelectuais. A criação do mito do bom selvagem por Rousseau, o interesse de Herder e Macpherson‬
‭pelas canções populares e o génio de Francisco de Goya nas suas cenas de género estão ligados a esta‬
‭abordagem. No entanto, a palavra inglesa folklore (de‬‭falk/folk‬‭, povo; e lore, ciência) só foi utilizada por W. J.‬
‭Thom(a)s em 1846.‬

‭2.4. A hegemonia masculina e o papel social da mulher‬

‭Na mentalidade do século XVII e na sociedade hierarquizada em que surgiu o Iluminismo, a esfera‬
‭ ública era dominada pelos homens. Poder-se-ia talvez falar de uma sociedade patriarcal. As mulheres não‬
p
‭tinham praticamente acesso ao ensino superior ou a cargos públicos, com a importante exceção da realeza‬
‭em alguns países. Por outro lado, as mulheres desempenhavam um papel social fundamental em certos‬
‭serviços eclesiásticos, na assistência aos pobres, aos doentes e aos idosos. Na mentalidade da época, o‬
‭papel das mulheres era quase exclusivamente o de esposas e mães, ou de religiosas, quase sempre‬
‭subordinadas juridicamente às decisões dos homens. Neste ambiente cultural, é ainda mais surpreendente‬
‭que Diderot, na secção "cidadão" da Encyclopédie, tenha afirmado, em 1753, que as mulheres não tinham‬
‭realmente os direitos dos cidadãos. Na Europa, é preciso esperar pelo período revolucionário após 1789‬
‭para encontrar reivindicações explícitas e articuladas dos direitos políticos e sociais das mulheres. Assim,‬
‭em certa medida, num ensaio do Marquês de Condorcet, em 1790, e de forma muito mais completa por‬
‭Olympe de Gouges, que em 1791 reescreveu Os Direitos do Homem e do Cidadão a partir desta perspetiva,‬
‭para desenvolver Os Direitos da Mulher e do Cidadão. Do outro lado do Atlântico, alguns destes direitos‬
‭foram reconhecidos desde cedo nas colónias britânicas de Nova Jérsia e Pensilvânia. Na Grã-Bretanha,‬
‭uma obra fundamental nesta linha de pensamento, embora menos revolucionária, foi a contemporânea‬
‭Vindication of the Rights of Women, escrita pela inglesa Mary Stonecraft.‬
‭Parece que foi também em Inglaterra, no século XV, que começou a surgir na Europa aquilo a que‬
‭Lawrence Stone chamou "individualismo afetivo", pois o direito do filho ou da filha a decidir sobre o seu‬
‭casamento começou a ser reconhecido entre a nobreza. El sí de las niñas (1806), peça escrita pelo‬
‭iluminista Leandro Fernández de Moratín, também defende esta autonomia afectiva. Nela questiona o‬
‭costume de o pai decidir os maridos das filhas sem ter em conta as suas preferências ou disparidades de‬
‭idade.‬
‭Apesar das desigualdades de género prevalecentes, algumas mulheres pertencentes às elites‬
‭desempenharam um papel muito ativo na época do Iluminismo, como aglutinadoras de círculos de‬
‭sociabilidade e de comunicação intelectual animada. Uma das formas prototípicas destes círculos, os‬
‭"salões", deu lugar a numerosos estudos, como o de V. Heyden-Rynsch. Em Paris, são célebres os "salões"‬
‭de Madame Deffand ou de Madame de Lespinasse (falecida em 1776).‬

‭3. O Iluminismo como movimento intelectual e sociocultural‬

‭3.1. Significado e características gerais do iluminismo na História da Europa Ocidental‬

‭ Iluminismo é um rótulo cómodo, necessário e não desprovido de sentido para designar uma‬
O
‭acumulação de realidades complexas, personagens, obras e instituições de sociabilidade com matizes‬
‭ uito diferentes. Não é de estranhar, portanto, que tenha suscitado tantos debates envolvendo milhares de‬
m
‭especialistas de todo o mundo. São tantos que se tornou necessário enumerá-los numa publicação‬
‭específica. O termo equivalente ao nosso "Iluminismo", enquanto substantivo abstrato, surgiu pela primeira‬
‭vez na Europa, mais concretamente na Alemanha (Aufklärung), já na década de 1780, para designar um‬
‭movimento cultural e social. Em suma, o que foi o Iluminismo? O Iluminismo foi o processo pelo qual a‬
‭humanidade atingiu a maioridade ao ousar pensar e examinar o património recebido à luz da razão. Uma‬
‭confiança otimista na luz da razão é um fio condutor comum ao pensamento daqueles que se consideravam‬
‭iluminados. A razão, pensavam eles, seria suficiente para resolver os problemas humanos e ultrapassar os‬
‭erros e os horrores do passado.‬
‭Há décadas atrás, quando se estudava o Iluminismo, a ênfase era colocada mais na procura de‬
‭uma definição normativa ou na identificação de um corpus de pensamento que constituísse a referência‬
‭básica. No centro deste pensamento estava a convicção acima referida. Além disso, pensava-se que o‬
‭modelo do Iluminismo por excelência (ou do "verdadeiro" Iluminismo) tinha sido dado em França. Nos‬
‭últimos anos, os estudos sobre o Iluminismo tornaram-se mais atentos ao processo de alargamento do‬
‭diálogo cultural que o Iluminismo significou para toda a Europa. Surgiu também uma visão mais multipolar,‬
‭que não está tão ligada ao modo francês. Algumas obras (por exemplo, S. Jüttner e J. Schlobach) reflectem‬
‭a relativa unidade e diversidade do fenómeno em análise, mesmo nos seus títulos (Enlightenment/es). Pode‬
‭dizer-se que o termo Iluminismo, tradicionalmente considerado como um cânone de grandes textos e‬
‭doutrinas filosóficas, passou hoje a designar, sobretudo, uma evolução das práticas culturais, dos modos de‬
‭representação e das formas de sociabilidade.‬

‭3.2. Cronologia, sociologia e contexto histórico do iluminismo‬


‭Como cronologia para o Iluminismo, pode adotar-se a utilizada por T. Munck: de 1721 (apatio das‬
‭Cartas Persas do Barão de Montesquieu) a 1794, quando Condorcet morre e a Revolução Francesa se‬
‭encaminha para direcções radicais estranhas ao reformismo iluminista. O apogeu do Iluminismo foi, grosso‬
‭modo, a segunda metade do século XVI. Em 1748, Montesquieu publicou O Espírito das Leis. Em 1774, o‬
‭aparecimento de Outra Filosofia da História para a Educação da Humanidade, de Herder, e o movimento‬
‭literário alemão Sturm und Drang ("Tempestade e Impulso") testemunharam o início de um novo clima‬
‭cultural, um prelúdio do Romantismo. Mas, embora o Iluminismo tenha terminado, em certo sentido, com o‬
‭aparecimento do Romantismo, o liberalismo, o impulso dominante do século XIX, era filho do Iluminismo e,‬
‭nalguns aspectos, o marxismo também o era. Este último, através do seu racionalismo prometeico e da sua‬
‭fé no progresso.‬
‭Expansão da linguagem caraterística do Iluminismo, desde os níveis mais elevados do discurso das‬
‭obras mais formalizadas ou filosóficas até à correspondência coloquial, é uma forma de estabelecer uma‬
‭cronologia diferenciada do Iluminismo nos diferentes países europeus e não europeus. Na Europa, esta‬
‭visão do mundo estende-se de norte a sul e de oeste a leste.‬
‭A Europa de Leste e o Sudeste (cirílico e otomano) seriam afectados pelo Iluminismo de forma mais‬
‭tardia e superficial. O movimento iluminista chegou às zonas atlânticas americanas colonizadas por‬
‭anglo-saxões e ibéricos nas últimas décadas do século XVII e no início do século XIX. As revoluções‬
‭americanas eram inconcebíveis sem a difusão das ideias iluministas. Afinal de contas. O Iluminismo do‬
‭século XVII foi um fenómeno ocidental tanto quanto, se não mais do que, europeu.‬
‭Tal como outras correntes ou movimentos socioculturais, o Iluminismo é melhor compreendido no‬
‭seu contexto histórico global. O seu otimismo racionalista está em grande medida em consonância com a‬
‭autoconfiança de uma elite europeia. As razões para esta confiança residem na expansão do comércio e da‬
‭navegação, no notável progresso científico, na existência de uma paz relativa (pelo menos em comparação‬
‭com a Guerra dos Trinta Anos) e na progressão da civilização europeia e do domínio da Europa em todos‬
‭os continentes.‬
‭De um ponto de vista sociológico, no século XVII, o Iluminismo dizia essencialmente respeito‬
‭apenas a uma elite urbana de nobres e notáveis do terceiro estado (financeiros, comerciantes e, sobretudo,‬
‭funcionários públicos e homens das profissões liberais, como médicos e advogados). Rousseau era de‬
‭origem camponesa, Helvetius um financeiro, Voltaire um burguês enobrecido, Capmany um funcionário‬
‭público de uma família ilustre, Muratori um padre, Kant um professor. O mundo camponês permaneceu‬
‭quase totalmente alheio ao Iluminismo.‬
‭A interpretação marxista do Iluminismo associava-o demasiado estreitamente à burguesia,‬
‭enquanto classe social, como se o Iluminismo fosse apenas o epifenómeno ideológico da crescente‬
‭proeminência da burguesia. A ligação entre o dinamismo comercial do Noroeste e o progresso cultural e‬
‭político é, sem dúvida, crucial, como alguns homens do século XVIII (entre outros, Montesquieu e o‬
‭historiador alemão Heeren) já tinham visto. Mas esta ligação tem muitos significados. As liberdades civis e‬
‭religiosas que existiam anteriormente em Inglaterra, na Holanda e em algumas cidades alemãs (como‬
‭ amburgo) favoreciam o comércio (e com ele a ascensão social da burguesia). Por outro lado, os contactos‬
H
‭comerciais e étnicos contribuíram para uma certa relativização e crítica, necessária à inovação, dos próprios‬
‭valores culturais e políticos.‬

‭3.3. Iluminismo e Inovação‬

‭É discutível até que ponto o Iluminismo foi verdadeiramente inovador. Para alguns, defendiam antes‬
‭ titudes intelectuais que já tinham surgido no final do século XVII, sobretudo em Inglaterra, na altura da‬
a
‭"crise da consciência europeia". Com efeito, a atividade de Voltaire, figura prototípica do Iluminismo, pode‬
‭ser entendida, em grande medida, como a de um divulgador em França de ideias "inglesas": a física‬
‭newtoniana e as teorias sobre o conhecimento humano e sobre a autoridade política de J. Locke. Em todo o‬
‭caso, o carácter provocador com que estas ideias são frequentemente apresentadas e o eco social que‬
‭tiveram são, pelo menos, novos. A este respeito, o empreendimento coletivo mais emblemático do‬
‭Iluminismo foi a elaboração e a publicação da Encyclopédie, ou enciclopédia francesa por excelência,‬
‭dirigida por Denis Diderot e publicada entre 1751 e 1772.‬

‭3.4. Ideias-força que moldaram a visão do mundo iluminista‬

‭ uais foram as principais ideias que moldaram a visão do mundo mais amplamente partilhada pelo‬
Q
‭Iluminismo? Em primeiro lugar e acima de tudo, como já antecipamos, a razão ou, mais precisamente, a‬
‭confiança na luz da razão. O Século das Luzes herdou a sua tensão fundamental do cogito cartesiano (P.‬
‭Chaunu). Leibniz, por seu lado, tinha afirmado no final do século XVII que "nada [é] mais útil para a‬
‭felicidade do que a luz do intelecto". A nova reivindicação da razão como fundamento do Iluminismo foi‬
‭também feita por outro filósofo, Immanuel Kant, um século mais tarde, na sua resposta concisa à pergunta‬
‭"O que é o Iluminismo? Sapere aude! Kan sintetizou assim uma trajetória comum a posteriori: a da audácia‬
‭da razão. A confiança na suficiência da razão foi talvez a ideia central do Iluminismo. Foi a base de uma‬
‭tendência para um espírito crítico face a todas as tradições aceites.‬
‭de todos os tipos de tradições aceites.‬
‭Em boa parte do Iluminismo, sobretudo em França, o exercício da razão levou a uma contestação‬
‭do sobrenatural, da revelação e de muitas crenças cristãs consideradas preconceituosas; um verdadeiro‬
‭julgamento do cristianismo e, mais ainda, do cristianismo e da Igreja Católica do Antigo Regime. Em França,‬
‭entre os mais destacados iluministas, prevaleceu a corrente deísta, que admitia uma religião natural ou‬
‭filosófica (embora houvesse também expoentes do ateísmo, como Helvétius e D'Holbach). Na Alemanha,‬
‭pelo contrário, a relação entre o cristianismo e o Iluminismo foi, em geral, mais dialógica, com uma grande‬
‭diversidade de posições. A revisão crítica do património intelectual podia levar à sua rejeição, mas também‬
‭à sua confirmação ou renovação. De facto, a maioria sociológica do Iluminismo era cristã. Subscreviam a‬
‭reivindicação iluminista da razão, aceitando ao mesmo tempo que a razão humana é limitada e que se‬
‭baseia na Razão divina encarnada em Cristo. Procuravam, portanto, um cristianismo razoável.‬
‭A razão é a nau capitã de todo um comboio semântico do Iluminismo, no qual a natureza, a‬
‭tolerância, o progresso e a civilização também figuram de forma proeminente. A natureza, que‬
‭frequentemente substitui Deus, é entendida como real, ideal, positiva (dada) e normativa (ditando as suas‬
‭regras) como base para a ética e a política. A tolerância civil das diversas convicções religiosas seria‬
‭pré-colonizada por todos os iluminados, de modo a ultrapassar o clima de perseguição anterior por motivos‬
‭confessionais. No fundo, defendiam uma ideia que já tinha vindo a ganhar terreno em Inglaterra, na Holanda‬
‭e, com mais dificuldade, na própria França. Esta ideia é frequentemente associada, no Século das Luzes, a‬
‭uma atitude de indiferentismo ou de relativismo religioso (como em Lessing).‬
‭A crença no progresso da civilização, tanto no plano material como no plano ético, é uma das ideias‬
‭mais marcantes da visão do mundo iluminista. Esta ideia implica, por um lado, que a idade de ouro não se‬
‭encontra num passado perdido, mas no futuro. Por outro lado, pressupõe que o aperfeiçoamento é um‬
‭padrão natural de evolução. A crença no progresso atingiu a sua formulação paradigmática no último terço‬
‭do século XVIII em Turgot e Condorcet (este último já em plena Revolução Francesa), mas foi partilhada por‬
‭Voltaire (embora de forma mais cautelosa), por iluministas britânicos (como o inglês Gibbon), por espanhóis‬
‭(como o catalão Capmany) e por muitos outros. Para alcançar esse progresso, o Iluminismo deu grande‬
‭importância ao desenvolvimento de conhecimentos úteis para o domínio da natureza e para a criação de‬
‭bem-estar e de riqueza material. Por outro lado, para uma boa parte dos iluministas, a fé no progresso‬
‭constituía, em muitos casos, uma alternativa aparente à escatologia cristã, embora para muitos outros as‬
‭duas se combinassem.‬
‭Quanto à civilização, outro conceito-chave do Iluminismo, é um neologismo utilizado pela primeira‬
‭vez, de forma significativa, pelo Marquês de Mirabeau, em França, em 1756, e rapidamente adotado noutros‬
‭ aíses europeus. A civilização indicava tanto o estádio avançado da sociedade e da cultura, como o‬
p
‭processo pelo qual esse estádio tinha sido atingido. A civilização, enquanto estádio avançado, englobava‬
‭não só um conjunto de conhecimentos e de valores culturais, mas também o desenvolvimento tecnológico e‬
‭político-social. Todas estas ideias iluministas e algumas outras relacionadas (como as liberdades e a‬
‭reforma) formam um sistema de valores (axiologia) em que predomina o racionalismo utilitário, herdado‬
‭ainda mais de Bacon e Locke do que de Descartes. No entanto, a mundividência iluminista é devedora, em‬
‭grande medida, do cristianismo. Assim, por exemplo, na sua conceção universalista e teleológica (finalista)‬
‭da aventura humana.‬

‭3.5. Grandes figuras, centros e realizações do iluminismo‬

‭ alvez o primeiro grande filósofo do Iluminismo tenha sido Charles-Louis de Sécondat, Barão de‬
T
‭Montesquieu, um importante jurista de Bordéus, que possuía um excelente conhecimento do mundo‬
‭romano. Nas suas Cartas persas (1721), Montesquieu reflecte (satiricamente) sobre a cultura e a política‬
‭francesas no final do reinado de Luís XIV, através da boca de viajantes persas (algo semelhante seria feito‬
‭mais tarde pelo espanhol Cadalso nas suas Cartas marruecas). ) Depois de visitar vários países europeus,‬
‭Montesquieu publicou em 1748, com grande sucesso, a sua obra mais importante: O Espírito das Leis, um‬
‭estudo sistemático e comparativo dos regimes políticos, fortemente influenciado por Locke, enquadrado‬
‭numa filosofia racionalista do direito e da sociedade. Nesta obra, defende o modelo inglês de uma‬
‭monarquia limitada com separação de poderes.‬
‭A admiração pelas ideias políticas de Locke foi também partilhada por Voltaire (François-Marie‬
‭Arouet), uma das grandes figuras do Iluminismo, nas suas Cartas Inglesas ou Cartas Filosóficas (1734) e‬
‭noutras obras. Voltaire, filho de um notário parisiense, desenvolveu uma atividade literária e intelectual muito‬
‭importante, diversificada e influente, salpicada de ironia combativa. A partir de 1760, Voltaire tornou-se o rei‬
‭não coroado do Iluminismo europeu. Passa algum tempo na corte de Frederico II da Prússia, seu admirador‬
‭e francófilo, tal como Catarina II da Rússia, o déspota russo que F.-M. Arouet. Voltaire foi, no entanto, um‬
‭crítico muito acérrimo do regime e das instituições políticas francesas, cujo poder de construção ele próprio‬
‭tinha sofrido.‬
‭Voltaire cultivou múltiplos géneros literários. Escreveu poemas como A Henriade, 1728 (em‬
‭homenagem ao rei - Henrique IV - que pôs fim às guerras de "religião" em França), história (como O Século‬
‭de Luís XIV, 1751), obras de sátira e polémica religiosa como A Criada (1755, sobre Joana d'Arc) e um‬
‭Dicionário Filosófico (1764) para divulgar o seu pensamento, mais brilhante do que original e profundo. No‬
‭seu Ensaio sobre os Costumes e o Espírito das Nações (1756), Voltaire apresenta uma filosofia esclarecida‬
‭da história, em alternativa à apresentada por Bossuet no seu Discurso sobre a História Universal (foi Voltaire‬
‭quem cunhou a expressão "filosofia da história"). A atitude ambígua, por vezes cínica, de Voltaire em‬
‭relação à religião caracterizou-se por um forte anti-clericalismo e um desprezo pelo sobrenatural,‬
‭defendendo uma religião razoável e natural. Esta atitude cristalizou-se na criação de um adjetivo específico‬
‭("Voltaireano") para a designar.‬
‭Denis Diderot é outra das figuras-chave do Iluminismo, não só pelas suas publicações pessoais,‬
‭como a Carta sobre os cegos (1749), mas sobretudo como diretor do mais emblemático empreendimento‬
‭intelectual coletivo do Iluminismo: a Encyclopédie ou Dictionnaire raisonné des sciences, des arts et des‬
‭métiers (cuja produção conhecemos pelos estudos de, entre outros, R. Darnton). A ideia de uma publicação‬
‭que estabelecesse a ordem e o encadeamento de todos os conhecimentos humanos não era nova. De‬
‭facto, inicialmente, o projeto, depois transmutado, consistia na adaptação de uma enciclopédia inglesa‬
‭anterior (Chambers'). Cerca de 4.000 pessoas tornaram-se assinantes da iniciativa. Em 1751, apareceu o‬
‭primeiro volume, por ordem alfabética, encabeçado por um "Discurso Preliminar" do matemático D'Alembert,‬
‭que era um hino ao progresso científico. D'Alembert foi fundamental na coordenação dos artigos científicos,‬
‭embora se tenha retirado da redação em 1758.‬
‭Cerca de 130 redactores colaboraram com Diderot e D'Alembert nos artigos da Encyclopédie de‬
‭l'Encyclopédie. Vejamos alguns deles. Voltaire escreveu artigos históricos, Rousseau sobre música,‬
‭Quesnay (o teórico fisiocrata) e Turgot sobre questões económicas, Buffon, autor de uma famosa História‬
‭Natural e diretor do jardim botânico real de Paris, escreveu sobre ciências naturais. Um dos autores de‬
‭Química foi D'Holbach, autor do Sistema da Natureza, um rico financeiro alemão que emigrou para França.‬
‭Embora interrompida por dificuldades internas e pelas restrições das autoridades, em 1765 os 17‬
‭volumes de texto da Encyclopédie estavam concluídos e em 1772 estavam prontos os 11 volumes de‬
‭gravuras, que dão uma imagem da civilização material da época. No seu conjunto, a Encyclopédie é uma‬
‭"apologia prudente do progresso humano, desligada de todo o dogma e de toda a autoridade" (R. Mandrou).‬
‭Em alguns artigos, há uma crítica hábil, meio velada, por vezes contraditória, do Antigo Regime e do‬
‭cristianismo. Mas as proibições de que foi alvo foram atenuadas pelo apoio de certas pessoas influentes no‬
‭ mbiente da corte e pela pressão daquilo a que mais tarde se chamaria a opinião pública. Uma opinião‬
a
‭pública que a própria Encyclopédie, cujo sucesso foi considerável, ajudou a criar. Foi publicada, traduzida e‬
‭adaptada, noutros países, embora tenha sido mal recebida na Europa Central.‬
‭É difícil avaliar a verdadeira influência da Encyclopédie, mesmo em França, uma vez que o facto de‬
‭a subscrever ou comprar não indica necessariamente que se partilha a sua filosofia de base. O sucesso da‬
‭Encyclopédie de Diderot encorajou outros projectos semelhantes. Assim, a partir de 1778, o da‬
‭Encyclopédie méthodique, dirigida por Panckoucke, que actualizava a anterior, sem o pendor anti-cristão da‬
‭primeira.‬
‭De todos os colaboradores da Encyclopédie, um dos mais famosos é o genebrino Jean-Jacques‬
‭Rousseau (1712-1778), cuja vida turbulenta é também conhecida pelas suas Confissões. Rousseau, por‬
‭vezes considerado um iluminista radical, foi um arauto do pensamento democrático e da soberania popular‬
‭em O Contrato Social (1762). No entanto, a defesa dos sentimentos, o espiritualismo que lhe é peculiar e as‬
‭suas dúvidas sobre o progresso da civilização aproximam-no das atitudes românticas. "Com Voltaire termina‬
‭um mundo, com Rousseau começa outro", escreveu Goethe. Rousseau mostrou um grande interesse‬
‭teórico pela educação no Emile, embora tenha abandonado os seus filhos.‬
‭O Iluminismo europeu foi policêntrico. Não foi apenas obra da intelligentsia parisiense. Em‬
‭Edimburgo, a capital da Escócia, encontramos outro dos centros do mundo britânico onde trabalharam‬
‭algumas das figuras mais importantes do pensamento iluminista. David Hume (1711-1776), o Newton da‬
‭psicologia, transformou o (empirismo) de Locke como filósofo em (ceticismo epistemológico), mas este‬
‭ceticismo foi equilibrado pela sua confiança no valor das crenças morais e no instinto cívico presidido pelo‬
‭utilitarismo. Hume também cultivou com sucesso a história social e política da Grã-Bretanha. William‬
‭Robertson, figura de proa dos moderados escoceses e líder da igreja presbiteriana, foi um historiador mais‬
‭profissional, também em Edimburgo. Adam Smith (1723-1790), mais conhecido pela sua Riqueza das‬
‭Nações (1776), foi também uma figura proeminente nesta cidade. Esta obra, que surgiu após o início da‬
‭revolução industrial, é uma pedra angular da teoria económica, especialmente da teoria económica liberal.‬
‭Edimburgo foi também sede de uma das mais importantes sociedades ou clubes de debate cultural e‬
‭político: a Select Society, que floresceu entre 1754 e 1764.‬
‭Sem sair do mundo britânico, e no que diz respeito à Inglaterra, vale a pena mencionar J. Locke‬
‭como precursor do Iluminismo, bem como o historiador Edward Gibbon e o poeta, crítico e lexicógrafo Dr.‬
‭Johnson. Enquanto Gibbon, no seu Declínio e Queda do Império Romano (1776-1788), defende a tese de‬
‭que "o predomínio ou pelo menos o abuso do cristianismo" contribuiu para essa queda, as ideias do Dr.‬
‭Johnson poderiam representar a síntese do cristianismo e do Iluminismo. Em Londres, as liberdades de‬
‭reunião e de imprensa facilitaram a existência e a atividade de numerosas sociedades públicas de debate a‬
‭partir de meados do século XVIII.‬
‭No que diz respeito ao clima cultural e ao pensamento iluminista nas colónias britânicas da América‬
‭do Norte, importa sublinhar que o espírito, e mesmo a letra, da Declaração de Independência dos Estados‬
‭Unidos da América em 1776 é uma das expressões mais completas da eficácia e do potencial político do‬
‭projeto iluminista.‬
‭Na Alemanha, a figura multifacetada de Immanuel Kant (1724-1804) apresenta-nos algumas das‬
‭complexidades e características do estudo do Iluminismo e da sua variante germânica. Por um lado, nele‬
‭podemos ver a personificação e o culminar do pensamento iluminista alemão, com a sua profundidade‬
‭filosófica e o seu moderantismo político. Na sua Crítica da Razão Pura (1781), Kant aprofunda a teoria do‬
‭conhecimento, tentando ultrapassar o ceticismo de Hume e o anterior realismo "ingénuo". As condições e‬
‭possibilidades do conhecimento, pelo menos do mundo fenoménico (o domínio da ciência), assentam,‬
‭segundo ele, na estruturação criativa da razão. Na Crítica da Razão Prática (1788), Kant aborda o mundo‬
‭noumenal do domínio muito mais problemático dos valores. Nesta obra, propõe uma ética autónoma e um‬
‭vago deísmo fora do cristianismo. Politicamente, Kant era um liberal moderado, interessado na paz‬
‭perpétua, sobre a qual escreveu. O seu pensamento pode ser visto como um ponto culminante do‬
‭Iluminismo, mas Kant pode também, em certos aspectos, ser visto como o iniciador da filosofia idealista‬
‭alemã do Romantismo, representada por Eichte, Schelling e Hegel, que se juntaram no primeiro terço do‬
‭século XIX. Por outro lado, Kant também nos aparece ligado ao Iluminismo como um movimento de‬
‭ampliação da comunicação político-cultural. Ele foi um dos membros e animadores de uma das mais‬
‭poderosas sociedades de leitura e discussão que floresceram na Alemanha, a semi-secreta Sociedade das‬
‭Quartas-feiras de Berlim, que se reunia quinzenalmente ou mensalmente de 1782 a 1789.‬
‭Outra figura multifacetada fundamental no panorama cultural germânico da época do Iluminismo foi‬
‭C. E. Lessing (1729-1781), filho de um clérigo protestante saxónico. Lessing contribuiu largamente para o‬
‭renascimento da literatura alemã e lutou contra o neoclassicismo francês. As suas afinidades com o‬
‭pensamento iluminista podem ser vistas na sua visão da história em termos de progresso moral em A‬
‭ ducação do Homem (1780). A sua atitude intelectual representa a ligação entre o Iluminismo e o‬
E
‭movimento pré-romântico Sturm-und-Drang.‬
‭Embora em Itália e em Espanha o movimento iluminista tenha sido muito menos significativo do‬
‭ponto de vista social do que em França, na Grã-Bretanha ou no norte da Alemanha, também teve figuras‬
‭importantes e alguns sectores em que as novas ideias e atitudes se impuseram. É significativo que duas‬
‭edições (em Luca e Liorna) da Enciclopédia de Diderot tenham sido publicadas em Itália. O filósofo e‬
‭historiador Ludovico Antonio Muratori, sacerdote católico (1672-1750), pode ser inserido na esfera do‬
‭Iluminismo italiano. O seu texto A Felicidade Pública, Objeto dos Bons Princípios (1749) foi amplamente‬
‭difundido, sobretudo na Áustria. Também Cesare Becca-ria, empenhado na reforma humanizadora dos‬
‭terríveis procedimentos penitenciários e penais do Antigo Regime. Becca-ria pertenceu ao círculo intelectual‬
‭agrupado em Milão em torno da revista II caffè (1764-1765). Na Nápoles do Iluminismo maduro, o professor‬
‭de economia política Antonio Genovesi defende, nas suas Lições sobre o comércio (1766-1767), a liberdade‬
‭de comércio como meio de desenvolver a economia meridional. O filósofo da história e da cultura‬
‭Giambattista Vico (1688-1744), autor da Ciência Nova, estava à margem da visão de mundo iluminista. Vico‬
‭foi um antecessor original do historicismo do século XIX.‬
‭Em Espanha, a sintonia entre o movimento iluminista e a influência francesa não foi tão grande‬
‭como Sarrailh pensava, embora esta última tenha sido favorecida pela comunidade dinástica e pela‬
‭proximidade cultural. Em suma, embora com um considerável desfasamento cronológico em relação a‬
‭França, houve um iluminismo católico em Espanha no século XVIII, semelhante ao italiano e também‬
‭influenciado por ele. Longe do radicalismo francês, as atitudes do Iluminismo espanhol eram geralmente‬
‭moderadas e reformistas, na crença - como Gaspar M. de Jovellanos expressou - de que "uma nação‬
‭esclarecida pode fazer grandes reformas sem sangue". A consciência nacional dos ilustrados espanhóis‬
‭estava dilacerada pelo desprezo dos filósofos e enciclopedistas franceses. Um dos seus objectivos era,‬
‭portanto, vencer a decadência. No plano interno, os iluministas espanhóis tiveram de lutar dura e‬
‭cautelosamente contra a corrente chauvinista de um catolicismo mais combativo do que reflexivo.‬
‭Na primeira metade do século, enquanto o beneditino galego Benito Feijóo cultivava o ensaísmo‬
‭crítico para o "desencantamento dos erros comuns" e a popularização, o valenciano Gregorio Mayan dava‬
‭ênfase à solidez e à erudição com vista à renovação cultural. Na segunda metade do século, com a entrada‬
‭em cena da geração de Campomanes e Olavide, as preocupações críticas e reformistas do Iluminismo‬
‭espanhol estendem-se ao campo económico e social. Assim, o conde de Campomanes promoveu a‬
‭formação generalizada de Sociedades Económicas de Amigos da Pátria. Por seu lado, António de‬
‭Capmany, grande historiador e filólogo, envolveu-se pessoalmente nos projectos reformistas de Carlos III e‬
‭defendeu o reconhecimento social do comércio e do trabalho útil.‬

‭4. Os limites do Iluminismo e as Origens do Romantismo‬

‭4.1 Os limites da ilustração‬

‭Já dissemos que o movimento iluminista teve pouco efeito direto no mundo camponês. Mesmo nos‬
‭ odos de pensar e de viver dos grupos letrados, é necessário olhar para o movimento iluminista, sem o‬
m
‭confundir com a cultura do século XVII. Havia correntes intelectuais muito influentes à margem do‬
‭Iluminismo e até em oposição direta a ele, mesmo na época em que o movimento iluminista estava mais‬
‭ativo. Assim, a partir do estudo das bibliotecas privadas dos países latinos, verifica-se que no século XVIII‬
‭houve uma sobreposição da cultura iluminista à cultura escolástica e barroca, e não uma substituição desta‬
‭pela primeira. Alguns autores combateram as ideias iluministas porque identificavam, em bloco, a filosofia‬
‭moderna com o ateísmo ou a irreligião. Assim, o Padre Zeballos em La falsa filosofía 1775. Noutros‬
‭momentos, mais do que uma atitude explicitamente anti-iluminista, o que prevaleceu foi a continuidade de‬
‭um ensino baseado na autoridade, na tradição e no sistema político-confessional emblematizado pela‬
‭monarquia de Luís XIV.‬
‭Por outro lado, não se pode estabelecer uma demarcação clara entre o clima cultural iluminista e o‬
‭romântico. Deve falar-se antes de uma sobreposição. Os precursores do movimento romântico surgiram‬
‭mais cedo em Inglaterra e na Alemanha (por volta de 1770) do que em França. Em contraste com os‬
‭valores universais e racionais, com um certo sabor francês na prática, a geração que surgiu na Alemanha‬
‭na década de 1770 começou a afirmar o valor da cultura nacional específica, da intuição poética e do‬
‭sentimento. Assim, Herder falava, em 1774, em Outra Filosofia da História para a Educação do Homem, de‬
‭"um livre-pensamento caro, gasto, cansativo, inútil, substituto da única coisa que talvez lhes falte [ao espírito‬
‭de alguns países]: coração, calor, sangue, humanidade, vida! O encontro entre Herder e Goethe em‬
‭Estrasburgo, em 1770, foi decisivo para o nascimento do movimento pré-romântico de Sturm und Drang‬
‭(Tempestade e Impulso), que recebeu o nome de um drama homónimo de Klinger. Este movimento‬
r‭ eivindicava a liberdade estética do génio criativo contra as normas do racionalismo classicista esclarecido.‬
‭O Sturm und Drang coincidiu, no entanto, com a tendência emancipatória contida no Iluminismo, na‬
‭exigência de libertação política da tirania.O poeta, dramaturgo e historiador Schiller e o brilhante e‬
‭multifacetado Goethe (1749 - 1832), autor de Fausto, são dois dos mais famosos representantes deste‬
‭movimento.‬
‭Na Inglaterra, a tendência pré-romântica foi ainda mais precoce do que na Alemanha. A nova‬
‭tendência caracterizou-se por um sentimentalismo moralista e por fazer da natureza o principal motivo‬
‭estético. Os romances de Samuel Richardson, como Pamela (1740), e as reflexões líricas de Edward Young‬
‭sobre a vida e a morte, em Pensamentos noturnos (1745), contam-se entre as obras-chave (o facto de o‬
‭enciclopedista Didero ter escrito um elogio a Richardson mostra até que ponto os necessários rótulos‬
‭pedagógicos são redutores). Os pensamentos noturnos de Young inspirariam, entre outras obras,‬‭Las‬
‭noches lúgubres‬‭do espanhol Cadalso. Vemos repetidamente que, para além das fronteiras políticas, o‬
‭mesmo sangue cultural circula pelas canetas dos europeus. Os romances de Richardson, por seu lado,‬
‭tiveram um grande sucesso em toda a Europa. Em França, este sucesso é um testemunho da crescente‬
‭(anglo-tailandesaque atingiu o seu auge na alta sociedade no final do século. Tudo o que é inglês está na‬
‭moda: o chá, as corridas de cavalos, o tipo humano do gentleman e o constitucionalismo.‬

‭4.2 Ambiguidades e contradições do Iluminismo‬

‭Já nos referimos à complexidade do clima cultural da Europa Ocidental nas últimas décadas do‬
‭ éculo das Luzes. Vamos agora abordar a ambiguidade e os germes contraditórios da "cidade celestial dos‬
S
‭filósofos do século XVII" (C. L. Becker). Estes germes explicam a fragmentação do legado intelectual‬
‭iluminista em múltiplas direcções na e após a Revolução Francesa.‬
‭Em certo sentido, a Revolução Francesa foi provocada pela difusão da atitude crítica defendida pelo‬
‭Iluminismo, mesmo que este fator intelectual seja apenas um dos que deram origem à Revolução. A‬
‭Revolução pode ser vista como o corolário do Iluminismo, mas também como o fim dessa época. Não só‬
‭porque a Revolução tomou um rumo muito afastado do reformismo da maioria dos iluministas. Mas também‬
‭porque a Revolução foi uma experiência histórica de tal profundidade e magnitude que transmutou e‬
‭fragmentou a visão iluminista do mundo.‬
‭Os filósofos mais representativos alimentavam a ilusão de que a natureza e a razão forneceriam‬
‭novos critérios universais, morais e políticos, alternativos aos do cristianismo. Era esta a sua fé otimista‬
‭subjacente. Mas o conceito de natureza a que sempre se apelou pode ser entendido de muitas maneiras‬
‭diferentes. Pode ser lido como simplicidade, ordem, harmonia e lei; ou conflito, complexidade e‬
‭espontaneidade. Pode ser entendido de uma forma organicista ou mecanicista. O recurso à razão também‬
‭não era menos ambíguo. A razão reconhecia ou criava a realidade? Além disso, a submissão a uma razão‬
‭(universal, hegeliana) podia ser o fundamento do grande poder da autoridade e do Estado; mas também era‬
‭possível apelar à razão (individual, na interpretação liberal) para legitimar espaços de autonomia face ao‬
‭poder.‬
‭Muitas das ambiguidades da mundividência iluminista já eram percebidas no seu tempo pelas‬
‭mentes mais astutas, como Goethe. De facto, no século XIX, as sementes de contradição do pensamento‬
‭iluminista dariam lugar à fragmentação do património da Aufklärung numa floresta de "ismos" (políticos,‬
‭estéticos e filosóficos), em grande parte antagónicos: liberalismo e socialismo, neoclassicismo e‬
‭romantismo, nacionalismo e universalismo, pragmatismo e idealismo. Já não havia uma nova cidade de‬
‭filósofos, mas muitas, e a grande celebração da vida, que parecera iminente ao Iluminismo, tardava em‬
‭chegar. No entanto, o século XIX continuou a viver substancialmente do otimismo progressista do‬
‭Iluminismo. No século XX, várias experiências amargas de grande escala fizeram com que, pela primeira‬
‭vez, a fé iluminista começasse a ser seriamente questionada no Ocidente. Essas experiências foram as‬
‭catástrofes totalitárias em nome do homem novo; a barbárie da guerra que se serviu de uma ciência‬
‭extraordinariamente eficaz; e a ameaça de uma alteração dificilmente reversível do equilíbrio ecológico.‬
‭Tanto ou mais do que o "princípio da esperança", apela-se agora ao "princípio da responsabilidade". Se, de‬
‭certa forma, continuamos iluminados, continuamos iluminados de uma forma mais cautelosa e castigada.‬

‭5. Tendências artísticas na sociedade da corte do século XVIII‬

‭ associação artística do Século das Luzes ao neoclassicismo é uma simplificação reducionista. De‬
A
‭facto, em grande parte da Europa, sobretudo na Europa católica, e na América Latina, foi o estilo barroco‬
‭que dominou a primeira metade do século XVI. Basta mencionar a fachada do Obradoiro da catedral de‬
‭Santiago de Compostela, a Plaza Mayor de Salamanca, a grande abadia de Melk, na Áustria, ou as igrejas‬
‭de Carmen e São Francisco, na cidade mineira brasileira de Ouro Preto.‬
‭A tendência neoclássica, com o seu recurso aos modelos geométricos da Antiguidade, foi muito‬
i‭mportante, e não apenas nos numerosos palácios ou residências reais inspirados em Versalhes, de Queluz,‬
‭perto de Lisboa, a Drottingholm, nos arredores de Estocolmo. Os nomes franceses de muitos destes‬
‭palácios, Sanssoucci ("sem preocupações"), Monrepos ("o meu descanso") e Solitude ("solidão"), são mais‬
‭uma prova da influência da língua francesa na sociedade de corte europeia. Estes nomes revelam também‬
‭alguns dos objectivos destas residências: como locais de lazer e imagens do poder. Esta segunda‬
‭finalidade, a de visualizar o poder, era também o objetivo dos arcos ou portas triunfais, como a Porta de‬
‭Brandeburgo em Berlim, ou de alguns novos conjuntos urbanos, como a praça erigida por iniciativa de‬
‭Estanislau da Polónia em Nancy (capital do seu Ducado da Lorena).‬
‭A Europa do Iluminismo, que partilhava estilos artísticos, partilhava também a paixão pela porcelana‬
‭e outras obras de arte da China. O pagode chinês encomendado pelo rei Jorge III de Inglaterra para o seu‬
‭jardim botânico de Kew é um dos exemplos mais marcantes desta paixão pela chinoiserie. O exotismo‬
‭traduziu-se também, embora em menor grau, no interesse pelas sociedades islâmicas. A difusão cultural‬
‭entre os diferentes países europeus, por vezes favorecida por laços dinásticos, foi também muito intensa no‬
‭domínio da música. Assim, o alemão Händel seguiu o eleitor hanoveriano Jorge I para o seu novo reino em‬
‭Inglaterra e naturalizou-se britânico.‬

‭Aparte: Novidades do mundo financeiro‬

‭O principal instrumento mercantil e financeiro desde a Idade Média era a letra de câmbio.‬
‭ ratava-se de um documento notarial que permitia aos comerciantes vender a crédito num local e cobrar‬
T
‭noutro. As letras de câmbio eram trocadas entre mercadores de locais distantes, evitando os riscos e os‬
‭inconvenientes da transferência de divisas, permitindo simultaneamente a troca de moedas de diferentes‬
‭nacionalidades. A possibilidade de ser transferida entre comerciantes antes da data de pagamento, ou‬
‭in-doso, permitia que a letra circulasse como dinheiro, o que fazia da letra um instrumento de pagamento‬
‭muito eficaz. A letra de câmbio não sofreu grandes alterações formais durante a Idade Moderna.‬
‭A novidade do século XVI foi a sua extraordinária difusão. A multiplicação e a intensificação das‬
‭relações comerciais estimularam o seu uso. Deixou de ser um instrumento exclusivo dos grandes‬
‭comerciantes com ligações internacionais e tornou-se um instrumento bastante popular, utilizado por amplos‬
‭grupos sociais. As letras trocadas no interior de cada país tornaram-se, ao longo do século, um meio de‬
‭pagamento muito importante e, nalgumas regiões, até mais importante do que a moeda. A sua notável‬
‭difusão ao longo do século XVII foi apoiada pela publicação, em todos os países europeus, de leis‬
‭específicas que garantiam os direitos e deveres de todos os que a utilizavam, o que acabou por lhe conferir‬
‭um quadro jurídico estável em toda a Europa. As suas vantagens para o comércio internacional‬
‭mantiveram-se, uma vez que os Estados não podiam intervir nelas, pelo que se tornaram o instrumento‬
‭ideal para a expansão das relações comerciais internacionais.‬
‭Outra forma de multiplicar os meios de pagamento foi o papel-moeda. As notas de banco surgiram‬
‭com o desenvolvimento da atividade bancária e com as alterações introduzidas pelas finanças públicas. Em‬
‭rigor, as notas de banco eram promessas de pagamento de depósitos que os clientes mantinham nos‬
‭bancos e que estes emitiam porque tinham experiência de que os depósitos não eram sempre levantados.‬
‭Apesar da importância do Banco de Amesterdão (1609), este não emitia notas de banco. As primeiras notas‬
‭de banco foram emitidas a título privado por ourives ingleses durante o século XVII, antecipando o que os‬
‭bancos viriam a fazer mais tarde. A primeira emissão de notas de banco na Europa foi efectuada em 1661‬
‭pelo Banco da Suécia, Riksbank (1656). A escassez de metais preciosos na Suécia e a abundância de‬
‭reservas de cobre tornaram aconselhável a substituição das pesadas moedas de cobre por notas, que se‬
‭tornaram muito populares.‬
‭Posteriormente, a criação de novos bancos e os problemas de financiamento do Estado facilitaram‬
‭a repetição destas questões. Em 1694, foi fundado o Banco de Inglaterra para ajudar na comercialização da‬
‭dívida nacional. A oferta de moeda em Inglaterra aumentou com a emissão de notas que dependiam dos‬
‭depósitos do banco e da promessa do Parlamento de apoiar a dívida. Mais traumática foi a experiência‬
‭francesa. Os billets de monnaie foram introduzidos em 1701, mais como um meio de financiamento da‬
‭guerra do que como um meio de pagamento. Um exilado escocês, John Law, tentou demonstrar a‬
‭superioridade do papel-moeda em relação ao metal precioso. Após ter conquistado a confiança do Regente‬
‭de França, conseguiu, em 1718, converter o Banque Générale em Banque Royale e pôde criar um banco de‬
‭emissão, agora com o único limite de emissões decretado pelo Regente. Para assegurar a circulação destas‬
‭notas, Law incorpora vários monopólios no banco (tabaco, cobrança de impostos, casa da moeda) e impõe‬
‭a utilização obrigatória de notas, convertendo a dívida pública em acções da Companhia do Mississipi, o‬
‭que, aliás, conduz a uma forte especulação. Esta fuga para a frente, que era constante, rapidamente se‬
‭desmoronou quando se verificou que os lucros da Companhia estavam muito aquém das expectativas. O‬
‭ ânico abateu-se sobre todo o edifício construído pela Lei e, em 1720, o governo reagiu retirando o‬
p
‭papel-moeda de circulação.‬
‭Embora esta má experiência tenha pesado sobre a França, a ponto de o papel-moeda só voltar a‬
‭ser emitido quando se tornou inevitável para financiar as guerras revolucionárias, o papel-moeda foi emitido‬
‭noutros países europeus: na Suécia em 1741, na Áustria em 1760, na Rússia em 1762 e em Espanha em‬
‭1779. Em todos eles, o principal motivo foi a obtenção de meios para financiar as dívidas dos Estados, mas,‬
‭desta forma, conseguiram também fornecer mais instrumentos de pagamento para as relações económicas.‬

‭> De Amsterdam a Londres‬


‭Outro desenvolvimento importante no mundo financeiro no século XVI foi o estabelecimento de‬
‭Londres como um importante centro financeiro mundial. Durante o século XVII, Amesterdão tinha-se‬
‭estabelecido como o principal centro financeiro do mundo. O seu desenvolvimento esteve relacionado com‬
‭o crescimento comercial dos Países Baixos e com a existência de um importante centro comercial, a Bolsa‬
‭de Amesterdão, e de um centro de depósito e conversão de moedas, o Banco de Amesterdão, bem como‬
‭com a incorporação de várias minorias de comerciantes e banqueiros franceses e portugueses.‬
‭O padrão de crescimento repetiu-se durante o século XVI com Londres. A expansão da atividade‬
‭comercial e o poderio militar da Inglaterra permitiram a intensificação das relações comerciais e financeiras.‬
‭O sucesso das sociedades anónimas inglesas tornou o mercado bolsista inglês mais ágil. Por sua vez, a‬
‭firme decisão do governo inglês de gerar dívida pública garantida pela nação, o Parlamento, facilitou a‬
‭existência de inúmeros tipos de dívida que podiam ser transferidos e transaccionados na City.‬
‭Uma das chaves do crescimento de Amesterdão tinha sido o controlo da informação comercial e‬
‭financeira. Em Amesterdão, podia-se saber o preço de qualquer produto na Europa ou no mundo, e‬
‭podia-se contratar qualquer tipo de serviço. Uma verdadeira rede de informação fluía para Amesterdão. Esta‬
‭superioridade informativa começou a ser partilhada com Londres, à medida que o seu tráfego comercial‬
‭aumentava. Este processo de atração de informações e serviços permitiu que, em 1780, Londres‬
‭controlasse e ultrapassasse Amesterdão. A invasão da Holanda pela França revolucionária foi o golpe final‬
‭para Amesterdão, com uma transferência maciça de capital para Londres.‬

‭6. As transformações industriais‬

‭Os estímulos de uma economia de mercado em crescimento e de uma forte expansão comercial‬
‭ urante o século XVII foram decisivos para as transformações industriais. Foi necessário introduzir‬
d
‭alterações nos métodos e na organização da produção, bem como adaptar as possibilidades técnicas e os‬
‭gostos dos consumidores. Contrariamente ao comércio, a introdução destas mudanças foi mais complicada‬
‭e, por conseguinte, mais lenta em toda a Europa, uma vez que colidiam frequentemente com as estruturas‬
‭produtivas, jurídicas e mentais herdadas dos séculos anteriores.‬
‭Se o que importava cada vez mais era o mercado, a organização da produção e a sua distribuição‬
‭começaram a ser tão importantes, se não mais, do que a produção do produto. Em contraste com o modelo‬
‭do artesão e do mestre artesão, começa a surgir o empresário industrial com poucas competências de‬
‭produção mas com uma capacidade de organização considerável. O tipo de comerciante que organiza a‬
‭produção, contrata trabalhadores e organiza a distribuição, já presente nos séculos anteriores,‬
‭generalizou-se extraordinariamente. De facto, foram estes comerciantes-industriais os responsáveis pelo‬
‭forte aumento da produção industrial e pelo enchimento da maior parte dos navios que navegavam com‬
‭produtos manufacturados. O seu exemplo foi decisivo para facilitar a transição de alguns mestres de grémio‬
‭para o empreendedorismo industrial.‬
‭O facto de servir estes mercados longínquos não só provocou mudanças no tipo de empresários‬
‭industriais, como também alterou as características dos trabalhadores. As qualificações, as competências e‬
‭a experiência deixaram de ser requisitos para se ser produtor. Como o que importava era a possibilidade de‬
‭produzir o máximo possível, os novos empresários industriais procuraram mão de obra não qualificada e‬
‭encontraram-na na contratação de camponeses ou nos artesãos e jornaleiros desempregados das cidades.‬
‭Não se pode dizer que fossem operários industriais, mas uma parte crescente do seu tempo era dedicada à‬
‭produção de produtos para mercados e clientes desconhecidos.‬

‭6.1‬‭Mudanças na organização e na geografia industrial‬

‭6.1.1 Trabalhar para mercados distantes‬

‭ ma das principais inovações e estímulos para as transformações industriais do século XVII foi o‬
U
‭facto de a indústria europeia ter aumentado o volume de produção destinado a um cliente anónimo. Grande‬
‭ arte da história industrial anterior tinha sido dominada pela proximidade dos mercados e pelo‬
p
‭conhecimento do cliente. Esta proximidade reforçava o conhecimento mútuo, o artesão-cliente, a‬
‭dependência e, em última análise, favorecia a continuidade dos métodos e dos produtos produzidos. Por‬
‭outro lado, trabalhar para mercados cada vez mais distantes levou a uma maior preocupação dos industriais‬
‭com a eficiência dos métodos de produção, a quantidade antes da qualidade, bem como a uma maior‬
‭sensibilidade e flexibilidade para se adaptarem às mudanças na sociedade de consumo.‬
‭Se o que importava cada vez mais era o mercado, a organização da produção e a sua distribuição‬
‭começaram a ser tão ou mais importantes do que a produção do produto. Em contraste com o modelo do‬
‭artesão e do mestre artesão, começa a surgir o empresário industrial com poucas competências de‬
‭produção mas com uma capacidade de organização considerável. O tipo de comerciante que organiza a‬
‭produção, contrata trabalhadores e organiza a distribuição, já presente nos séculos anteriores, generaliza-se‬
‭extraordinariamente. De facto, foram estes comerciantes-industriais os responsáveis pelo forte aumento da‬
‭produção industrial e pelo abastecimento da maior parte dos navios que navegavam com produtos‬
‭manufacturados. O seu exemplo foi fundamental para facilitar a transição de alguns mestres de grémio para‬
‭o empreendedorismo industrial.‬
‭O facto de servir estes mercados longínquos não só provocou mudanças no tipo de empresários‬
‭industriais, como também alterou as características dos trabalhadores. As qualificações, as competências e‬
‭a experiência deixaram de ser requisitos para se ser produtor. Como o que importava era a possibilidade de‬
‭produzir o mais possível, os novos empresários industriais procuravam mão de obra não qualificada, e‬
‭encontravam-na na contratação de camponeses ou de artesãos e jornaleiros desempregados nas cidades.‬
‭Não podiam ser descritos como trabalhadores industriais, mas uma parte crescente do seu tempo era‬
‭passada a produzir bens manufaturados para mercados e clientes desconhecidos.‬

‭6.1.2 Superar la pervivencia gremial‬

‭A forma básica de organização da produção industrial continuou a ser, até ao final do século XVII, a‬
‭ uilda. A indústria corporativa tinha dado provas da sua utilidade em contextos históricos anteriores, onde o‬
g
‭problema essencial era a falta de abastecimento de matérias-primas e os perigos da distribuição da‬
‭produção.‬
‭Mas no século XVIII, como vimos, esta situação alterou-se drasticamente, o que fez com que o grémio‬
‭perdesse a sua principal razão de ser. Além disso, para assegurar a eficácia da organização, a guilda‬
‭desenvolveu e acumulou numerosos regulamentos e privilégios. O carácter destes quadros de produção‬
‭tornou-se cada vez mais restritivo, pois o principal problema da sua evolução era a concorrência, impedindo‬
‭a entrada de novos produtores e de novos produtos. Isto significava que, para além de começar a ser‬
‭anacrónico, o grémio era menos reativo à mudança. Entraram inevitavelmente em conflito com a liberdade‬
‭de empresa e de trabalho e tiveram igualmente mais dificuldade em responder ao desafio de uma procura‬
‭de produtos industriais muito mais diversificada, em constante mutação e em crescimento.‬
‭Apesar da sua presença generalizada na Europa do século XVII, a guilda estava assim condenada‬
‭a desaparecer devido ao próprio desenvolvimento da economia de mercado.‬
‭Mas a questão que se coloca é a de saber por que razão se manteve até ao final do século XVIII. Em‬
‭primeiro lugar, a guilda estava firmemente implantada em toda a Europa, mais nos países mediterrânicos e‬
‭da Europa Central e menos nos Países Baixos e na Grã-Bretanha. O custo do desmantelamento dos‬
‭privilégios destas estruturas era muito elevado e ninguém, nem as autoridades nem a população, confiava‬
‭cegamente que o comércio asseguraria as produções locais. Foi precisamente este receio de um vazio que‬
‭impediu qualquer mudança. Por outro lado, as autoridades locais e o próprio Estado foram os primeiros a‬
‭apoiar a continuidade do grémio. Numa relação semelhante à que se desenvolveu entre os governos do‬
‭século XIX e os sindicatos, as corporações eram úteis ao Estado: serviam de interlocutores entre o governo‬
‭e os trabalhadores para manter ou alargar certas políticas laborais ou de paz social. No século XI, podiam‬
‭também ser utilizadas como agentes fiscais, uma vez que, em muitos países europeus, as corporações‬
‭mantinham a sua capacidade de gerar receitas, chegando mesmo a ser mobilizadas como investidores‬
‭financeiros.‬
‭O declínio das corporações não foi, portanto, apenas uma questão de eficácia e de concorrência no‬
‭mercado. Os ataques de escritores e pensadores criaram um clima intelectual contrário, mas só na segunda‬
‭metade do século é que os políticos começaram a tomar medidas para limitar os seus privilégios. Esta‬
‭mudança tímida não foi de modo algum generalizada em todos os países; na Prússia, na Áustria ou em‬
‭Espanha, por exemplo, a estrutura manteve-se e os governos chegaram mesmo a autorizar novas‬
‭corporações. Por conseguinte, o desenvolvimento e as mutações industriais tiveram de coexistir com a‬
‭persistência da regulamentação das corporações. Neste contexto de coexistência forçada, a superação das‬
‭limitações das corporações deu-se através da difusão de outros tipos de organização industrial.‬
‭6.1.3. O triunfo da indústria doméstica‬

‭Para responder às exigências dos mercados, os comerciantes não podiam contar com a capacidade‬
‭ e produção de uma ou várias corporações, porque a sua produção era dedicada ao mercado local, limitada‬
d
‭por quotas, e a sua estrutura organizativa impedia um sistema de trabalho mais dinâmico e a incorporação‬
‭de novas técnicas. Perante esta situação, os comerciantes encontraram um grande potencial de mão de‬
‭obra na população agrícola, mas tinham de ser os comerciantes a organizar a produção.‬
‭Durante o século XVII, multiplicaram-se as iniciativas dos comerciantes-industriais, que recorreram‬
‭às populações agrícolas para produzir os produtos necessários aos mercados. Estes comerciantes estavam‬
‭geralmente sediados nos portos e criaram uma rede de agentes encarregados de distribuir as‬
‭matérias-primas, e por vezes as ferramentas, aos produtores e, após um certo tempo, de cobrar o trabalho‬
‭encomendado. As tarefas confiadas eram geralmente simples e as técnicas eram rudimentares e‬
‭amplamente conhecidas: na maioria dos casos, tratava-se de produtos ou de fases de transformação de‬
‭produtos relacionados com a procura de têxteis e de artigos para o lar. Os camponeses eram utilizados‬
‭porque não tinham restrições laborais, eram mão de obra barata e, além disso, dispunham de tempo para‬
‭as executar, devido às interrupções sazonais do ciclo de trabalho agrícola.‬
‭As vantagens deste sistema, num contexto de forte crescimento do mercado, eram consideráveis.‬
‭Permitia aumentar o volume de produção e, através da oferta, abrir novos mercados na Europa e nos‬
‭países coloniais: os produtos de linho que circulavam no século XVII através do Atlântico eram fabricados‬
‭nos campos europeus. Para os agricultores-operários, permitia-lhes aumentar o rendimento familiar,‬
‭sobretudo quando se tratava de uma atividade em que todos os membros da família podiam colaborar.‬
‭Esta forma de organização industrial não podia estender-se indefinidamente a todo o espaço rural e‬
‭apresentava grandes limitações em termos de resposta à procura, tanto dentro como fora da Europa. O‬
‭recurso ao trabalho a partir de casa não podia estender-se indefinidamente numa região, porque‬
‭rapidamente surgiram problemas graves no controlo dos produtores e na entrega das matérias-primas. Os‬
‭custos de distribuição subiram em flecha com o aumento da logística. O ritmo de produção também não‬
‭podia manter a regularidade porque dependia, em última análise, do ciclo de trabalho dos agricultores, nem‬
‭tinha flexibilidade para responder a aumentos específicos da procura; de facto, eram frequentes os‬
‭desfasamentos entre os aumentos da procura e as possibilidades de produção. De facto, eram frequentes‬
‭os desfasamentos entre os aumentos da procura e as possibilidades de produção. Além disso, a pressão‬
‭sobre a mão de obra levou à sua revalorização e ao aumento dos salários, o que aumentou o custo de‬
‭produção.‬
‭Por conseguinte, era necessário aumentar a produtividade e reduzir os custos. O caminho escolhido‬
‭foi a mecanização progressiva da produção e a concentração do trabalho e das etapas de produção. Os‬
‭passos mais decididos nesta direção começaram a ser dados em algumas regiões de Inglaterra, a partir de‬
‭meados do século XVII, e conduziram ao início da Revolução Industrial.‬

‭6.1.4. A Indústria Concentrada‬

‭Antes de se avançar decisivamente para a concentração e a mecanização da produção industrial, já‬


t‭inham sido experimentados modelos de concentração do trabalho. Em certas actividades, como os‬
‭acabamentos têxteis, a estamparia do algodão, a exploração mineira, os altos fornos do sector metalúrgico‬
‭ou a construção naval, concentravam-se muitos trabalhadores, por vezes num único edifício, como foi o‬
‭caso da empresa francesa de Oberkampf, com mais de mil trabalhadores, ou da empresa inglesa de‬
‭Wilkinson, com mais de dois mil trabalhadores.‬
‭A iniciativa estatal contribuiu para a concentração do processo de produção industrial em‬
‭numerosos projectos. Durante o século XVII, o Estado criou fábricas reais e manufacturas estatais com o‬
‭objetivo de promover o desenvolvimento industrial do país, produzir bens de interesse nacional e bens para‬
‭competir no comércio internacional. Um exemplo notável foram os arsenais militares, que concentravam o‬
‭maior número possível de actividades relacionadas com a construção e manutenção naval. Havia também‬
‭muitas outras indústrias estatais que produziam bens de luxo ou equipamento militar, embora as razões da‬
‭concentração de mão de obra nestas produções industriais não se devessem tanto a problemas técnicos‬
‭como ao interesse do Estado em controlar a atividade e a qualidade do produto. Embora tenham‬
‭conseguido alguns avanços técnicos notáveis, em geral, eram pouco competitivas e o seu futuro estava‬
‭ligado à manutenção dos apoios estatais.‬
‭6.1.5 A geografia industrial‬

‭O desenvolvimento da indústria artesanal fez com que a produção industrial do século XVII tivesse‬
‭ m carácter marcadamente rural. A sua aplicação tradicional à produção de tecidos e têxteis estendeu-se a‬
u
‭novas zonas rurais e a outras produções, como a metalurgia (cutelaria em Thiers, ferraria em Namur ou‬
‭Liège, ou fornos de ferro e aço na Suécia) e, sobretudo, a sua extensão a fases de produção de uma grande‬
‭variedade de produtos (montagem de relógios, polimento de espelhos, tinturaria, etc.). Esta mudança‬
‭essencial na geografia industrial teve repercussões importantes, pois contribuiu para a difusão da economia‬
‭de mercado em toda a Europa e estimulou a integração dos mercados.‬
‭A geografia industrial do século XVII tem também um carácter marcadamente regional. Antes de‬
‭falar de produções nacionais, seria mais correto falar de regiões produtoras. Se compararmos apenas as‬
‭regiões industriais europeias do século XVIII, verificamos que as diferenças técnicas e organizacionais da‬
‭produção entre os países não eram tão notáveis. A diferença nos desenvolvimentos nacionais poderia ser‬
‭melhor explicada pela capacidade desigual de integrar estas regiões produtoras num mercado nacional, ou‬
‭seja, de se relacionarem com outras regiões e de iniciarem processos de especialização.‬

‭6.1.6. A predominância da construção e da indústria têxtil‬

‭ o ponto de vista do emprego, a construção e a indústria têxtil foram as principais produções‬


D
‭industriais até ao século XIX.Embora ainda não saibamos muito sobre as características da construção,‬
‭especialmente no domínio civil, tudo aponta para um forte crescimento durante o século XVIII: os monarcas‬
‭dispunha de finanças mais saudáveis para multiplicar as suas construções, que representavam o seu poder‬
‭e se adaptavam às necessidades da sua crescente administração. Ao mesmo tempo, a expansão da‬
‭urbanização e o crescimento demográfico foram os estímulos definitivos para a multiplicação da construção.‬
‭Neste processo, e porque foi possível estudá-lo melhor, registou-se uma verdadeira febre de construção‬
‭entre as elites sociais, que se lançaram em grandes reformas de habitações urbanas e na construção de‬
‭segundas residências no campo.‬
‭Sabemos mais sobre a outra indústria essencial, a têxtil. Os "novos tecidos leves" produzidos nas‬
‭pequenas cidades, que tinham sofrido uma grande evolução desde o final do século XVI, entraram em‬
‭declínio durante o século XVII, pois não conseguiam competir com novos produtos, como os tecidos de‬
‭bagas ou de algodão. O predomínio da produção de lã manteve-se em praticamente todas as regiões‬
‭europeias até 1770; a partir de então, as dificuldades de obtenção de lã dificultaram o seu desenvolvimento,‬
‭embora também houvesse países, como a Inglaterra e a Alemanha, onde o crescimento se acelerou.‬
‭A transformação do linho e do cânhamo cresceu ao longo do século, mas acabou por sofrer‬
‭também a concorrência do algodão, mais ainda do que a do tecido de lã. Algumas regiões produtoras de‬
‭linho, como a Silésia, conseguiram obter um produto de qualidade notável, capaz de competir em toda a‬
‭Europa. A indústria da seda continuou a ser um feudo dos países mediterrânicos, devido às condições‬
‭climáticas e a uma forte tradição. Os grandes centros urbanos italianos produtores de seda continuaram a‬
‭diminuir, tendo o maior crescimento ocorrido em zonas onde parte da produção foi transferida para o sector‬
‭artesanal, como no Piemonte e em Valência.‬
‭O grande desenvolvimento da indústria têxtil no século XVI foi a difusão do algodão. Os europeus já‬
‭o utilizavam desde o século XVI, misturando-o com outras fibras, mas no século XVI os tecidos eram feitos‬
‭exclusivamente de algodão. O sucesso do seu desenvolvimento deveu-se, em parte, à moda: a grande‬
‭procura, por parte dos europeus, de tecidos indianos, chamados "indianas" ou calicos, um tecido mais leve‬
‭e com desenhos muito mais atraentes. Os europeus copiaram estes tecidos e difundiram a sua fiação e,‬
‭mais tarde, até a sua tecelagem na indústria artesanal. A indústria indiana espalhou-se por toda a Europa e‬
‭registou um crescimento significativo até 1780, altura em que a concorrência inglesa limitou as condições‬
‭para a expansão do resto da Europa. Os maiores produtores eram a França e a Grã-Bretanha. A França‬
‭baseou a sua expansão na grande mão de obra utilizada, destacando-se a região da Alsácia, Lille, Rouen e‬
‭Languedoc. A Grã-Bretanha baseou a sua expansão na mecanização e conseguiu ultrapassar a França a‬
‭partir de 1740. Apenas um facto: a Inglaterra e o País de Gales importaram 13 000 toneladas de algodão‬
‭antes da Revolução Francesa, em comparação com as 5 440 toneladas compradas pela França.‬

‭6.1.7 Metalurgia e minas‬

‭Depois da construção civil e da indústria têxtil, a metalurgia do ferro foi a produção mais importante‬
‭ o século XVII. Para além da tradicional procura de armamento e ferragens, alargada neste século pela‬
d
‭expansão marítima, havia agora uma procura para a construção civil e militar e para a construção de‬
‭máquinas e ferramentas, especialmente para a agricultura.‬
‭Os principais produtores de ferro-gusa são a Suécia e a Rússia. A Suécia continua a ser o principal‬
f‭ornecedor de ferro, sendo a maior parte exportada sob a forma de barras, principalmente para a‬
‭Grã-Bretanha, que representa 60% da sua produção. A Rússia aumentou de forma constante a sua‬
‭produção de ferro, ultrapassando as toneladas produzidas na Suécia a partir de 1780. A metalurgia registou‬
‭um crescimento notável na Grã-Bretanha a partir de 1720, devido à procura das frotas mercantes e‬
‭marítimas. Esta procura foi complementada por uma importante indústria metalúrgica de cutelaria,‬
‭ferragens, alfinetes e pregos, destinados aos mercados europeus e às plantações. A indústria metalúrgica‬
‭também se expandiu significativamente na Alemanha, onde a presença de uma mão de obra qualificada se‬
‭conjugava com a abundância de madeira, vias navegáveis e minas de ferro e carvão. O resultado foi uma‬
‭metalurgia rural ativa em pequena escala e o interesse do Estado em estimular, especialmente na Silésia, a‬
‭construção de altos-fornos.‬
‭A extração de carvão também conheceu um crescimento notável durante este século. Em toda a‬
‭Europa, a sua expansão esteve ligada à procura de fundição de canhões, olaria, fornos de vidro ou de‬
‭tijolos, fabrico de sabão, forjas e aquecimento urbano.‬
‭forjas e aquecimento urbano. Na Grã-Bretanha, a procura industrial intensificou a extração de carvão, que‬
‭passou de dois milhões de toneladas no início do século para mais de dez milhões de toneladas no final do‬
‭século. Outras regiões produtoras importantes foram Lie-ja. Hainut, na França, e o vale do Ruhr, na‬
‭Alemanha.‬

‭6.2 A revolução industrial na Inglaterra‬

‭ século XVIII trouxe uma das maiores inovações no progresso económico da humanidade: a‬
O
‭Revolução Industrial. Desde meados do século XI até cerca de meados do século seguinte, assistiu-se a‬
‭uma rápida transição para a mecanização industrial. Esta mudança na capacidade produtiva foi muito‬
‭importante porque acabou por afetar a economia e a sociedade como um todo e, de facto, iniciou a‬
‭transição para o mundo contemporâneo.‬
‭A questão que mais preocupa os historiadores deste fenómeno é a de explicar como e porquê esta‬
‭Revolução Industrial pode ter ocorrido na Grã-Bretanha. Os numerosos estudos disponíveis não forneceram‬
‭uma resposta única, mas identificaram progressivamente alguns pontos essenciais. A começar pelo nome, o‬
‭termo "Revolução Industrial" tem sido enganador. Não se tratou de uma revolução súbita, mas sim de um‬
‭processo lento, em que os diferentes tipos de indústria coexistiram e se estimularam mutuamente durante‬
‭muito tempo. É também consensual que as transformações não se limitaram ao quadro industrial. De facto,‬
‭desde o início, todos os sectores da economia e da sociedade se transformaram. Assim, sectores como o‬
‭dos serviços na Grã-Bretanha sofreram, durante o século XVIII, mudanças tão revolucionárias, se não mais,‬
‭do que as da indústria. Na lista de causas, foi excluída a existência de um único fator causal ou pré-requisito‬
‭(disponibilidade de carvão, indústria do algodão, mercados coloniais, desenvolvimento político, etc.). Fala-se‬
‭antes de uma interação de causas, sem ordem sequencial, que produziria uma mudança global.‬
‭Um dos factores mais importantes que contribuíram para o aumento da capacidade produtiva foi a‬
‭acumulação de avanços tecnológicos. O que se verificou no caso da Inglaterra durante o século XVIII é que‬
‭esses avanços não resultaram tanto de invenções singulares e brilhantes como de condições económicas,‬
‭sociais e mentais que favoreceram a experimentação, a transferência de soluções técnicas de uma‬
‭atividade para outra, não necessariamente novas, e, em suma, a acumulação de progressos técnicos‬
‭amplamente partilhados pela economia.‬
‭Mas foi, sem dúvida, o crescimento da procura, primeiro na Grã-Bretanha e depois no estrangeiro,‬
‭que motivou este interesse em intensificar a transferência e a aplicação de soluções técnicas. Não só a‬
‭população britânica aumentou, mas também, e de forma mais decisiva, os padrões de consumo e a‬
‭dependência do mercado dessa população. Uma urbanização mais intensa e mercados mais integrados‬
‭facilitaram a dependência dos consumidores em relação ao abastecimento do mercado. O funcionamento‬
‭dos mercados conduziu a fornecimentos regulares e estes conduziram a um aumento da confiança dos‬
‭consumidores e da sua dependência dos mercados. Esta espiral de crescimento permitiu que o mercado e a‬
‭economia inglesa fossem os principais clientes da Revolução Industrial. Sectores como a agricultura e os‬
‭transportes desempenharam um papel decisivo no aumento desta procura. Mesmo a procura externa foi um‬
‭importante estímulo adicional, mas não a origem da Revolução. Neste caso, os ingleses souberam tirar‬
‭partido das redes de distribuição desenvolvidas no seu papel de intermediários no tráfego marítimo‬
‭internacional para introduzir gradualmente os produtos da sua Revolução Industrial.‬
‭As mudanças concretas na indústria, que levaram à sua mecanização, afectaram a tecnologia e a‬
‭organização utilizadas na produção. Vejamos a sequência das mudanças com o exemplo da indústria do‬
‭algodão. No início do século XVIII, a indústria do algodão era uma atividade marginal em comparação com a‬
‭poderosa indústria da lã: a proporção da produção era de 1 para 27. Era, tal como a lã, uma indústria‬
‭ rtesanal, com uma produtividade muito baixa e de má qualidade. A situação começou a mudar durante a‬
a
‭primeira metade do século XVIII, quando os tecidos de algodão importados da Índia se tornaram populares,‬
‭um gosto partilhado pelo resto da população europeia. O aumento da procura e as dificuldades de‬
‭abastecimento dos tecidos indianos favoreceram o aumento da produtividade da indústria nacional. Os‬
‭sucessivos aperfeiçoamentos técnicos permitiram avanços notáveis, ao mesmo tempo que criaram‬
‭perturbações no processo de produção, que estimularam novas mudanças. Os modelos de lançadeiras,‬
‭cada vez mais aperfeiçoados, permitiam uma capacidade de produção de tecidos superior à quantidade de‬
‭fio que as fiandeiras podiam fornecer com os seus métodos tradicionais. Havia escassez de fio e não havia‬
‭mão de obra suficiente para acompanhar o ritmo de produção dos tecelões. Se não tivesse havido uma‬
‭procura crescente, a produção poderia ter estagnado dentro dos limites permitidos pela disponibilidade de‬
‭fio, mas à medida que a procura foi sendo pressionada, foram sendo introduzidos sucessivos‬
‭melhoramentos na velha roda de fiar e, em poucos anos, foram produzidas máquinas de fiar cada vez mais‬
‭potentes e, no início do século XIX, era fornecido mais fio do que os tecelões conseguiam tecer, criando‬
‭assim um novo "estrangulamento" que, por sua vez, estimulou outras alterações.‬
‭Os modos de produção também estavam a mudar. À medida que a procura aumentava e se tornava‬
‭mais regular, tornou-se evidente que não havia mão de obra doméstica a tempo parcial suficiente para estas‬
‭tarefas. Os teares, por outro lado, tornavam-se cada vez mais complexos e dispendiosos, e exigiam cada‬
‭vez mais energia. A utilização de mulheres e crianças para movimentar as máquinas foi, inicialmente, uma‬
‭solução temporária, rapidamente ultrapassada pela utilização da água e da energia a vapor. Tudo favoreceu‬
‭a concentração da mão de obra e das máquinas num único edifício: a fábrica. Aqui, a produtividade da mão‬
‭de obra podia ser mais bem controlada, as máquinas podiam ser levadas ao seu máximo desempenho e‬
‭podia ser iniciada uma organização mais eficiente das tarefas de produção. A matéria-prima necessária, o‬
‭algodão, era fornecida sem problemas a partir das plantações do sul dos Estados Unidos, e o seu preço até‬
‭baixou com a introdução do descaroçador. As vantagens da produção em relação à fase anterior eram, pois,‬
‭evidentes: maior produtividade, melhor qualidade e uma redução significativa dos custos. A Inglaterra‬
‭dispunha de uma mercadoria que podia ser colocada no mercado internacional, o que lhe permitia obter‬
‭uma margem de lucro significativa para obter capitais para reinvestimento, e de um sector industrial que‬
‭oferecia ao resto da atividade económica novas tecnologias, formas de organização e de utilização da força‬
‭motriz.‬

‭7. Estabilidade e mudança no sector agrícola‬

‭Em contraste com as importantes transformações operadas no comércio e na indústria durante o‬


s‭ éculo XVIII, a agricultura oferecia uma imagem marcada de continuidade e de aparente estabilidade. Esta‬
‭imagem de ausência de mudança contrasta com o peso prioritário que as actividades agrícolas continuaram‬
‭a ter nessas economias, mesmo nas mais proeminentes: eram as que tinham a maior percentagem de‬
‭população ativa, as que mais contribuíam para o conjunto das economias europeias e as que produziam e,‬
‭ao mesmo tempo, eram o destino da parte mais importante dos rendimentos.‬
‭Tal como nos outros sectores da economia, a maior parte das mudanças possíveis já tinha sido‬
‭explorada e implementada nos séculos anteriores, mas, ao contrário do que aconteceu no comércio e na‬
‭indústria, não houve uma difusão significativa desses desenvolvimentos na agricultura. As mudanças mais‬
‭revolucionárias na agricultura, como a agricultura intensiva e a rotação de culturas nos Países Baixos desde‬
‭o século XVI, que eram amplamente conhecidas em toda a Europa e que os viajantes do século XVIII eram‬
‭responsáveis por exaltar e aconselhar a sua aplicação noutras regiões, não se difundiram significativamente‬
‭noutras regiões agrícolas europeias durante o século XVIII.‬
‭Há várias razões para que estes desenvolvimentos neerlandeses não se tenham propagado mais‬
‭amplamente na Europa. Em primeiro lugar, existiam condicionalismos ambientais objectivos. Numa‬
‭agricultura ainda fortemente dependente do clima e da qualidade dos solos e com poucas terras irrigadas, a‬
‭maioria das rotações de culturas praticadas nos Países Baixos não podia ser praticada em grandes partes‬
‭da Europa. Em segundo lugar, era muito difícil reproduzir noutras regiões europeias, a uma escala‬
‭significativa, a combinação de estímulos mútuos que tinha permitido a "revolução agrícola" neerlandesa: o‬
‭triângulo agricultura intensiva - criação de animais - mercados urbanos. A utilização maciça de fertilizantes‬
‭naturais, por exemplo, que era um dos subprodutos desse tipo de agricultura intensiva, manteve-se‬
‭consideravelmente baixa na maior parte da Europa até meados do século XIX. Em terceiro lugar, mas não‬
‭menos importante, a rigidez da estrutura fundiária e a ausência de um mercado de terras alargado, que‬
‭também não se alterou em profundidade durante o século XVII. Por último, o elevado nível de‬
‭endividamento da população camponesa limitava a realização de mudanças de cultura. Era necessário um‬
‭mínimo de solvência financeira para experimentar novas culturas. Estas experiências acabaram por ser‬
‭limitadas a uma minoria e a continuidade das culturas foi imposta.‬
‭Para a maioria dos europeus, as mudanças na agricultura durante o século XVIII resultaram mais‬
‭ os métodos tradicionais, ou seja, da extensão da lavoura e do cultivo. Esta extensão das terras cultivadas‬
d
‭foi mais eficaz no século XVI do que nos séculos anteriores, principalmente porque havia uma maior‬
‭pressão demográfica e mobilidade dos camponeses, bem como um maior empenhamento dos Estados e‬
‭das autoridades em remover os obstáculos e facilitar a lavoura.‬

‭7.1 Interesse pela agricultura‬

‭ ma das evoluções mais significativas da agricultura durante o século XVIII‬


U
‭foi o crescimento do interesse dessa sociedade e das suas elites dirigentes pelos progressos da agronomia.‬
‭Desde o início do século, registou-se uma notável proliferação de escritos sobre os problemas da‬
‭agricultura. Algumas dessas obras, como The new hourse-plou-ghing husbandry (1731) do nobre inglês,‬
‭jurista e eventualmente agricultor Jethro Tull, foram amplamente divulgadas em toda a Europa e inspiraram‬
‭outros teóricos, como o francês Duhamel de Monceau, Tratado sobre a cultura do solo (1750), ou o italiano‬
‭Cosimo Timei, O agricultor experiente (1760) e, em geral, numerosos "viajantes". Estas obras centraram-se,‬
‭em geral, mais nos problemas técnicos e menos nos problemas estruturais, que acabariam por permitir a‬
‭aplicação de soluções técnicas. Os contributos mais reais destas inúmeras obras encorajavam a‬
‭substituição dos pousios por novas culturas, como o nabo ou o trevo, numa fórmula já conhecida, e‬
‭chamavam a atenção para as vantagens da utilização de máquinas e da associação da criação de gado à‬
‭agricultura, principalmente para melhorar a fertilização das terras.‬
‭Estas obras tiveram o efeito de tornar a agricultura uma moda. O paternalismo iluminista retomou o‬
‭testemunho de uma tradição que, nos séculos anteriores, tinha olhado para a agricultura para exemplificar a‬
‭existência de valores eternos: o camponês era o recetáculo dos ideais humanos e, por extensão, da sua‬
‭atividade no campo. Esta moda da agricultura reflecte-se no interesse das elites sociais. Alguns nobres e‬
‭mesmo reis, inspirados por este ambiente e por estas leituras, tiveram o cuidado de aplicar, quase sempre a‬
‭título de exemplo, algumas das receitas dos teóricos.‬
‭O interesse pela agricultura foi também estimulado pela corrente de pensamento fisiocrata que, a‬
‭partir de meados do século XVIII, colocou a agricultura na origem de todas as riquezas. Para além de se‬
‭afastarem dos princípios mercantilistas e apelarem a uma atividade económica mais livre, sem restrições‬
‭nem privilégios (laissez-fairez), insistiam na importância do direito natural e do direito de propriedade. A‬
‭natureza humana implica, segundo eles, o direito de propriedade, e este direito não tem qualquer utilidade‬
‭sem a liberdade de utilização. Um imposto único, justo e universal poderia ser cobrado sobre a livre‬
‭propriedade da terra. O papel do governo devia limitar-se a permitir a livre circulação dos produtos e‬
‭rendimentos agrícolas e, sobretudo, o livre comércio de cereais. Algumas destas abordagens fisiocráticas,‬
‭como o comércio livre de cereais, puderam ser implementadas em vários países, mas os resultados foram‬
‭geralmente contraproducentes e, de facto, levaram a revoltas camponesas. A principal razão para o‬
‭fracasso prático das ideias fisiocráticas foi o facto de as medidas terem sido tomadas sem que se‬
‭alterassem previamente as estruturas de propriedade herdadas e as condições fiscais e de mercado em que‬
‭a população vivia.‬
‭Mais importantes para os camponeses eram as sociedades criadas para ajudar e promover a‬
‭agricultura. Grupos de indivíduos, quase sempre próximos das elites locais, organizavam-se para ajudar a‬
‭difundir técnicas, máquinas e conhecimentos entre os agricultores. Um movimento mais ou menos‬
‭encorajado pelos poderes públicos, mas que povoou praticamente toda a Europa com sociedades agrícolas.‬
‭A ação destas sociedades traduziu-se na organização de cursos para agricultores, na criação de prémios‬
‭para resolver problemas específicos ou na publicação de revistas, como a Gazette d'Agriculture em França‬
‭(1765) ou a Crónica Alemã em Augsburgo (1774).‬
‭Esta moda ou estado de espírito favorável à melhoria da situação da agricultura acabou por‬
‭influenciar os governantes. A maior parte dos governos do século XVIII empreenderam políticas agrárias.‬
‭Os maiores sucessos reais foram conseguidos no apoio à extensão das culturas: favorecendo o‬
‭desbravamento e a drenagem de zonas pantanosas. Ao mesmo tempo, a coroa promoveu numerosos‬
‭movimentos de colonização para a obtenção de novas terras agrícolas. O axioma mercantilista de que se os‬
‭recursos de um país não fossem utilizados, perder-se-iam, atingiu o estatuto de máxima política. As‬
‭mudanças na fiscalidade também foram abordadas, com reduções de impostos, mas os resultados foram‬
‭mais desiguais, porque afectaram a estrutura dos rendimentos e da propriedade, e esta área necessitava de‬
‭reformas profundas que, apesar de numerosos projectos, nunca foram abordadas.‬
‭7.2 A expansão da agricultura‬

‭O interesse da sociedade, dos seus governantes e das suas elites pela agricultura constituiu um‬
‭ uadro capaz de estimular o crescimento, embora, como já vimos, sem o modificar em grande medida, mas‬
q
‭as bases do crescimento agrícola continuaram a ser fundamentalmente expansivas. Tal como no século XI,‬
‭os preços dos produtos agrícolas aumentaram fortemente durante o século XVII. A subida começou mais‬
‭cedo na Europa Central e Meridional, no final do século XVII, e, globalmente, em todos os mercados‬
‭agrícolas europeus, a partir da década de 1730. Esta tendência foi semelhante para os preços das rendas e‬
‭dos alugueres, que se mantiveram paralelos aos preços durante a maior parte do século, embora tenham‬
‭divergido acentuadamente no final do século XVII, o que conduziu a um declínio acentuado do poder de‬
‭compra da população camponesa.‬
‭O que é importante sobre este aumento constante do valor da agricultura é o facto de ter ocorrido‬
‭progressivamente, sem flutuações acentuadas durante a maior parte do século. Isto deve-se ao facto de os‬
‭europeus terem sido eficazes no aumento contínuo da área cultivada: drenagem de lagos, limpeza de‬
‭florestas e, em menor escala, irrigação. Mesmo em áreas com um elevado nível de utilização das terras,‬
‭como os Países Baixos, houve uma nova euforia após 1765 para construir novos polders e recuperar terras‬
‭do mar. Mas este processo começou a esgotar as terras aráveis disponíveis, o que conduziu não só a um‬
‭problema de escassez de recursos, principalmente de terras, mas também a um confronto com formas de‬
‭propriedade fundiária em que os direitos de propriedade eram menos bem definidos ou mais contestados,‬
‭como era o caso dos bens comuns. A expansão tinha limites e provocava tensões sociais.‬
‭A par do aumento das terras disponíveis, registaram-se importantes alterações no tipo de plantas‬
‭cultivadas durante o século XVII, que também contribuíram para uma utilização mais eficiente do solo e para‬
‭a rentabilidade final. Uma das transformações com maior impacto foi a alteração dos tipos de cereais mais‬
‭cultivados: a área dedicada ao trigo aumentou, em detrimento do centeio na Europa do Norte e Central e da‬
‭cevada na Europa Mediterrânica.‬
‭O milho continuou a expandir-se. As vantagens do milho em relação ao trigo eram bem conhecidas,‬
‭nomeadamente os seus rendimentos mais elevados devido à eliminação dos pousios, mas tratava-se de‬
‭uma cultura que exigia grandes quantidades de fertilizantes e de água, e poucas regiões da Europa tinham‬
‭capacidade para os fornecer: a Baixa Alsácia, a Galiza, o Palatinado e o Norte de Itália. Nestas regiões, o‬
‭milho substituiu as culturas pobres, como o sorgo e o painço, e tornou-se a base da alimentação popular.‬
‭As novas áreas desbravadas proporcionaram a oportunidade de desenvolver culturas mais‬
‭orientadas para o mercado. Embora algumas delas se tenham tornado essenciais na dieta dos seus‬
‭produtores, como a batata, o trigo mourisco e a vinha, foi a batata que se revelou o produto mais‬
‭revolucionário da agricultura do século XVIII. As suas vantagens eram óbvias: podia ser cultivada em solos‬
‭pobres e o seu rendimento era quatro vezes superior ao do centeio. A principal desvantagem era o facto de‬
‭exigir mais mão de obra, pelo que a sua expansão estava ligada ao crescimento demográfico. As zonas‬
‭tradicionalmente marginais da agricultura europeia, com solos pobres e climas adversos, passaram a ser‬
‭favorecidas pela cultura da batata. Foi sublinhado que outra forma de expansão da cultura foi a ocorrência‬
‭de crises periódicas nos cereais, que estimulavam a procura de soluções rápidas e de elevado rendimento,‬
‭como foi o caso após a Guerra dos Sete Anos. Em certas regiões da Irlanda, da Dinamarca, da Prússia ou‬
‭da Saxónia, a batata tornou-se uma monocultura antes do final do século XVIII.‬

‭7.3 Sistema Norfolk e cercamentos‬

‭ ealmente, houve poucas inovações nos modelos de cultivo ao longo do século XVIII. No contexto‬
R
‭europeu, a mais significativa foi a expansão dos sistemas intensivos desenvolvidos na Flandres, Brabante,‬
‭Zelândia, Holanda e Inglaterra. Em resumo, tratava-se de uma maior planejamento da unidade de‬
‭exploração agrícola. Este planejamento tinha como objetivo superar a dependência climática, aumentar o‬
‭número de colheitas e fornecer produtos agropecuários e matérias-primas ao mercado: lúpulo para a‬
‭fabricação de cerveja, corantes, colza ou linho. Para isso, era necessário um cultivo muito intensivo, que só‬
‭poderia ser alcançado com altos níveis de adubação do solo. Era uma agricultura semelhante à das hortas‬
‭mediterrâneas, mas com uma maior variedade de produtos destinados ao mercado urbano. A migração para‬
‭a Inglaterra teve, como em outras regiões da Europa, a desvantagem de requerer grandes quantidades de‬
‭trabalho intensivo e adubos. Na Inglaterra, o modelo chamado de Sistema Norfolk triunfou, pois foi‬
‭estimulado por uma elevada demanda urbana e um ativo processo de privatização da terra através de‬
‭cercamentos (enclosures). Ou seja, não foi uma nova técnica, mas sim um novo quadro institucional e de‬
‭estímulos que favoreceu a mudança. O que permitiu as transformações agrárias durante o século XVIII na‬
‭Grã-Bretanha foi aprofundar um mercado mais livre da propriedade da terra, com um recuo líquido dos bens‬
‭comuns e uma maior participação dos agricultores ingleses na economia de mercado. Os cercamentos não‬
‭ ram novos na Grã-Bretanha, mas intensificaram-se durante o século XVIII. Na opinião dos políticos‬
e
‭ingleses e do Parlamento, que concedia as autorizações de cercamento, era mais rentável cultivar uma‬
‭propriedade privada e bem definida. O movimento de cercamentos, portanto, ajudou na disseminação dessa‬
‭agricultura intensiva e a aproveitar melhor os estímulos do mercado. Um dado significativo: por volta de‬
‭1700, metade da terra arável do país era cultivada em campos abertos; em 1820, apenas 3% estavam sem‬
‭cercar.‬

‭7.4 Mudanças na Criação de Gado‬

‭O maior inconveniente da pecuária europeia era a escassa presença de gado estabulado. Apesar‬
‭ e serem bem conhecidas as vantagens de ter gado estabulado, principalmente pelos fertilizantes e‬
d
‭produtos cárneos, lácteos e derivados, a pecuária estabulada era limitada pela falta de forragens artificiais.‬
‭Ao longo do século XVII, a situação melhorou um pouco devido ao crescimento urbano e à demanda por‬
‭carne que isso implicava. No entanto, exceto nas áreas próximas das capitais e grandes centros urbanos, a‬
‭pecuária estabulada não experimentou uma expansão significativa em relação aos séculos anteriores.‬
‭Estimulado pela demanda crescente dos mercados urbanos, houve maior sucesso na preparação e‬
‭utilização intensiva, e por vezes especulativa, de pastagens e áreas herbáceas destinadas à criação de‬
‭gado bovino. Na Grã-Bretanha, por exemplo, onde a demanda por carne foi paralela ao seu processo de‬
‭urbanização, houve uma verdadeira expansão de pastagens destinadas ao gado na Irlanda e na Escócia.‬
‭Em menor escala, esse fenômeno ocorreu em toda a Europa. Da mesma forma que a pecuária estabulada,‬
‭em torno das grandes cidades surgiram pastagens e campos herbáceos destinados ao fornecimento de‬
‭carne. A extensão desses campos herbáceos contribuiu para a criação de sistemas de pastagens artificiais‬
‭em áreas próximas a pequenos cursos de água irrigadas por pequenos canais, como ocorreu em Rouen,‬
‭Lombardia ou Veneza. A ovelha experimentou um aumento significativo na Europa Mediterrânea,‬
‭principalmente devido à demanda por lã para a indústria. O monopólio mantido pela Espanha na produção‬
‭de lã de ovelha merina, um produto de qualidade extraordinária, desapareceu durante a segunda metade do‬
‭século XVIII, ao ser introduzida e incentivada sua criação na França e na Alemanha. Animais de tração,‬
‭como o boi, tenderam a diminuir sua presença durante o século XVIII e foram substituídos pelo cavalo de‬
‭tração, cujo número aumentou. O porco continuou sendo um animal de presença limitada no século XVIII,‬
‭não ultrapassando os níveis de autoconsumo, exceto em algumas regiões dos Bálcãs.‬

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