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3 cia geral da economia francesa de então, descrita por La-


brousse^: um período de expansão, até 1730; uma de-
pressão, durante a década de 30; uma recuperação nos

O espaço-tempo anos 40, seguida de um período de expansão até os anos


70; por último, nos vinte e cinco anos finais, uma suces-
do Iluminismo e são de altas e baixas.
Por maiores que possam ter sido as diferenças regio-
suas bases sociais nais ou nacionais e locais, é impossível não se perceber o
aumento demográfico, o crescimento da produção agrícola
c industrial e a expansão comercial, em termos globais.
Assim, segundo Venturi, é possível afirmar-se que " A
curva do setecentos, com seus altos e baixos, é a curva
da Ilustração". Apesar de todas as diversidades, pode-se
o espaço-tempo do movimento ilustrado
jierceber que, a partir de 1740, na Espanha, na Itália, em
Viena, em Berhm e em Paris, a circulação das ideias, com
À primeira vista, as respostas parecem simples e
suas esperanças e expectativas, assegura o aparecimento da
óbvias: o espaço do Iluminismo! A Europal Seu tempo?
"Huropa das Luzes". Algo de novo estava nascendo. Pas-
O século xviin
sa va-se da Fruhaufklãrung à Aufklãrung e, no centro de
ludo, estava Paris, onde se começava a produzir a Enci-
A dimensão cronológica clopédia ^.
Outros historiadores, no entanto, preferem, em rela-
Para os historiadores, porém, são muitas as indaga-
ção aos começos do Iluminismo, associá-lo geneticamente
ções e divergências. E m dois excelentes trabalhos. Franco
oia à revolução científica do século XVII, ora, como Paul
Venturi i situa as inúmeras dificuldades que envolvem uma
lliaard, à "Crise da consciência europeia", entre 1680 e
"Cronologia e geografia do Iluminismo". Uma primeira or-
1720. Já o historiador germânico Fritz Valjavec define uma
dem de questões diz respeito ao ritmo da história econó-
"etapa preparatória", de 1720 a 1740, e uma "Ilustração
mica geral do setecentos e às lacunas que ainda persistem
piopriamente dita", de 1740 a 1780*.
quanto às variações regionais e locais em relação à tendên-

^ I AiiRoussE, Ernest. Fluctuaciones económicas e historia social.


1 VENTURI, Franco. Cronologia e geografia dell'illuminismo. In: Míi.lrid, Tecnos, 1962. p. 339 et seqs.
—. Utopia e riforma nelVIlluminismo. Torino, Einaudi, 1970. p. I VI NI URI, F . Cronologia. . ., cit., p. 146-50.
145 et seqs. Cf. do mesmo autor: L'Illuminismo nel settecento eu- I llAMi>soN, Norman. O Iluminismo. Lisboa, Ulisséia, 1973. p. 12;
ropeo. In: XI Congrès International des Sciences Historiques. I IA/ARI), Paul. La pensée européenne au ZF///»"»" siècle. Paris, Boi-
Rapports, v. I V . Histoire Moderne. Estocolmo, 1960, p. 106 et seqs. VIII, 1946. t. 1, p. 58-77; VALJAVEC, Fritz. Historia de la Ilustración
(71 occidente. Madrid, Rialp, 1964. p. 27.
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O espaço geográfico do Iluminismo •"•<-'' íft.


O período de apogeu do Iluminismo, que Venturi situa
entre 1740 e meados dos anos 70, caracteriza-se pela publi- Uma primeira pergunta: Europa ou Europasi
cação da Enciclopédia e seu impacto sobre toda a Europa, O hábito, herdado dos próprios iluministas, é de refe-
mas também pelas reações violentas dos que a condenavam. lir-se o Iluminismo a uma certa ideia de Europa, isto é,
É nessa fase que melhor se podem avaliar as distâncias entre uma unidade intelectual e mental que, ainda em nossos
Paris e os outros centros culturais europeus: são inúmeras (lias, condnua a servir de referência a historiadores que se
as gradações, as releituras, as defasagens e as refrações. mantêm fiéis defensores da ideologia da "unidade da E u -
Foi nos anos 60, afirma Venturi, que o movimento das " L u - ropa das 'Luzes' ". Como demonstração dessa "Europa",
zes" pareceu finalmente abarcar a Europa inteira, da Rús- aponta-se para a própria consciência dos contemporâneos:
sia à península I b é r i c a — ^ é a "primavera das 'Luzes' "! nao se referiam eles à existência de uma "República das
E l a envolve intelectuais, políticos e também o povo. Este se I .etras", que cobriria a Europa de ponta a ponta, indife-
revolta em Nápoles, em 1764, contra a carestia; em Madri, icnte às fronteiras polídcas? Como se poderia negar a exis-
promove o "motim de Esquilace"; e em Londres, agita-se uncia então de uma "consciência europeia", supranacional,
em torno de J. Wilkes. Utopia e reforma chegam ao auge •.olidária, plenamente aberta ao livre trânsito das ideias,
em Paris, e é a partir do Sena que as ideias se difundem e lios livros, dos "filósofos", a Europa das "Luzes". U m a
atravessam as fronteiras nacionais. Mas, que diferenças I iiropa que se afirma unida, civilizada, culta, iluminada, e
de interpretações caracterizam aqui e ali a recepção das <|iic pode definir, detentora que é das "Luzes", a diferença.
obras dos "filósofos"! I'. cia quem nomeia os mundos e povos "exóticos", e os
la/, motivo de curiosidade, n ã o raro de simpatia e até de
Nessa Europa, somente um país — a Inglaterra — .ulmiração, mas nem por isso menos "estranhos". Mais
parece fugir à regra. N ã o havia ali um movimento ilumi- "avançada" na senda do "progresso", essa Europa pode, ao
nista nem um partido dos "filósofos". Iluminismo propria- mesmo tempo, exaltar suas próprias realizações e debruçar-
mente dito, no caso das ilhas britânicas, só o iremos en- curiosa sobre aquelas culturas que "ficaram para trás"
contrar na Escócia, em Glasgow e Edimburgo na marcha da História.
Os vinte anos que precedem a Revolução de 1789 Se é assim que pensavam e sentiam os homens do
marcam a etapa final do Iluminismo. É a época em que lliiininismo, cabe ao historiador tomar na devida conta tais
se acirram os debates e mais do que nunca se aprofundam liirmas de sentir e de pensar, para que possa compreender
as divergências entre utopia e reforma. Para os historia- Cl sentido de tais tomadas de consciência. No entanto, seria
dores do Iluminismo em geral, a Revolução é o ponto final inna coisa bem diversa o historiador assumir essas ideias,
do movimento ilustrado. Mas trata-se de um problema I Miuecendo, ou n ã o querendo perceber, que a pretendida
ainda em aberto: continuidade ou ruptura entre o Ilumi- imidade da Europa era na realidade um projeto, ou uma
nismo e a Revolução? Ideologia''.

• INiMi AU R VEurope des Lumières: cosmopolitisme et unité euro-


5 VENTURI, F . Cronologia..., cit., p. 155-7 r.unnr au XVIIfer^e siècle. Paris, Stock, 1966. p. 13-21; CHAUNU,
6 Id., ibid., p. 162-5.
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As bases sociais das "Luzes"


(liiir 0 Iluminismo em si mesma, aplicando-lhe seus (de-
próprios esquemas". N a base dessa concepção está
A s características mais gerais das formações sociais
a afirmação do Iluminismo como ideologia da burguesia
existentes na Europa do século X V I I I , do ponto de vista
fin ascensão.
das suas estruturas, já foram por nós expostas em volume
anterior pertencente a esta mesma Série ^. O que agora vem É certo que o iluminismo ou alguns de seus aspectos
ao caso é bem mais específico: é a questão das bases sociais converteram-se num certo momento em instrumentos de
do Iluminismo. defesa e de ataque na luta contra as sobrevivências do
mundo feudal, senhorial, medieval, na França, na Itália, na
No entender de G. Gusdorf, " a pretensão de esboçar
Espanha e alhures. É igualmente certo que tais funções não
uma sociologia da cultura para o século X V I I I é ao mesmo
foram sempre, nem por toda parte, as funções do Iluminis-
tempo desesperada e prematura" ^. Desesperada porque
mo, cabendo ao historiador precisar quando, como e em que
foge às possibilidades de um indivíduo tentar realizá-la
limites tal ocorreu, e não apenas aceitar aquela identifi-
sozinho; prematura porque os novos métodos de investiga- cação preestabelecida
ção estatística ainda estão dando seus primeiros passos. E m
resumo, podemos apenas formular hipóteses. A questão é exatamente essa: o verdadeiro lugar co-
Já a visão de Venturi é bem diferente. Após analisar mum em que se converteu, na historiografia, a afirmação
as dificuldades e incertezas das interpretações filosóficas e acerca do "caráter burguês" da ideologia iluminista.
filológicas do Iluminismo, o referido autor debruça-se so- Segundo W. Dorn, h á uma notável correlação entre
bre as interpretações que seguem um caminho inverso, par- M ilcsintegração do antigo sistema intelectual e rehgioso da
tindo da sociedade e dos grupos sociais, e busca com- liiiropa e o esfacelamento do antigo sistema social feudal:
preender o Iluminismo a partir de suas raízes. T a l pers- "O contexto social do Iluminismo revela tratar-se de um
pectiva, segundo Venturi, tenta compreender as "Luzes" a movimento de classe média, em suas afirmações e negações,
partir do que a seu respeito escreveram Marx, Engels e MOS preconceitos contra os quais lutou e nos novos pre-
seus seguidores conceitos que cultivou. Nem a velha nobreza, nem o clero
E m lugar de levar em conta o ritmo interno de desen- iibseurantista teriam sido capazes de liderar a nova socie-
volvimento do Iluminismo europeu no setecentos, confron- datle em gestação". A guarda avançada da transformação
tando-o com os elementos de revolta e de fé, de esperança ciilliiral foram os setores educados da burguesia: Voltaire,
e de desilusão, "a visão marxista tende simplesmente a in- n.tlembert, Crimm, Diderot, Rousseau, e mesmo D'Hol-
hiuli; todos, com exceção de Montesquieu, "eram homens
P. La civilisation de VEurope classique. Paris, Arthaud, 1 9 7 1 . p.
66-72; GUSDORF, G . , op. cit., p. 56-8; VENTURI, F . Les traditions
de la culture italienne et les Lumières. In: UTOPIE et institutions. . ., " l>i ibid, p. 2 0 : "Na base da sua interpretação do Iluminismo
cit., p. 43-8. (|.:„a os marxistas) está a afirmação de que este é a ideologia da
8 FALCON, F . J . C . O despotismo esclarecido. São Paulo, Ática, 1986. l,lM^Mlcsia em desenvolvimento. Estou pessoalmente convencido de
9 GUSDORF, G . , op. cit., p. 4 6 5 . ,,„c'esta definição é um dos obstáculos que mais seriamente se
1»VENTURI, F . Introdução. In: —. Utopia e riforma..., cit., p. iMiooin hoje a uma compreensão mais profunda do século X V I U ,
17-18. ,|„e é necessário remover esta hipótese de trabalho para poderinos
piosscguir de maneira melhor, mais rápida e irmos mais adiante .
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tia dos produtores, mas também dos consumidores da cul-


oriundos da classe média e que deveram sua fama ao seu iiiia". A aristocracia subvenciona e protege os pensadores
talento". Mas ( h á sempre u m ) " é evidentemente absurdo
mas, ao fazê-lo, ela adere aos valores da nova classe domi-
considerar tais homens como advogados conscientes de
iKiiite ( s i c ) : " A parte esclarecida da aristocracia presta
uma classe social particular. Eles iludiam-se a si mesmos
seu ato de adesão à ideologia da classe mais ativa da
como defensores da 'humanidade'... No entanto, estavam
nação"
defendendo certos interesses s o c i a i s . . . se bem que isso não
fosse sempre aparente" Bem outra é a visão de Venturi: "Por toda parte, a
íeiação entre forças burguesas mais ou menos estádcas ou
No caso de Gusdorf, após uma excelente caracteriza- .ilivas e o movimento iluminista deve permanecer um pro-
ção da natureza e limites da "classe cultural na sociedade", hlcma, n ã o um dado de fato e um pressuposto histórico",
na qual se evidenciam os limites numéricos e urbanos que liste mesmo autor indica os riscos que corre o historiador
a reduziam a algumas dezenas de milhares de pessoas, o incapaz de tomar tais precauções, pois " n ã o poderá j a -
autor conclui: " A referida classe cultural reunia, através mais entender a oposição a Luiz XIV, a formação e o sig-
da Europa, um pequeno número de eleitos, isolados do
Mificado de Montesquieu, a importância da luta dos Parla-
resto da população, tanto pelos fins que se propunham
mentos e da chamada revolução nobiliária" ou, no caso
quanto pelos seus métodos"; e sua autoconsciência de ci-
ilaliano, " n ã o saberá como expUcar o significado do Ilumi-
dadãos do mundo é uma resposta à própria solidão em
nismo de grupos como o do conde Verri, do marquês Becca-
meio a uma população que n ã o os compreende. Os inte-
ria, do marquês Longo, ou de Filangieri"
lectuais formam uma confraria, dividida em diversas sei-
Expressão mais radical da hipótese (ou tese?) sobre
tas. " A história da cultura deve ser compreendida sobre
a identidade entre Iluminismo e burguesia, Lucien Gold-
o pano de fundo da incultura", que engloba a maior parte
mann 1^ atribui um valor absoluto e genérico a essa asso-
da população, "ou melhor", prossegue Gusdorf, " à classe
ciação, "arriscando-se, seriamente, a levá-la ao absurdo"
cultural, interessada pelas ideias, contrapõe-se a maioria
Outras análises, também de inspiração marxista, de-
silenciosa daqueles que perseveram no regime arcaico das
monstram maior fundamentação na efetiva realidade social,
representações coletivas, da subliteratura popular, do fol-
.1 partir de pesquisas históricas precisas: Jacques Proust e
clore e do catecismo".
liirio Diaz seriam dois bons exemplos. Os enciclopedistas
E m síntese, a cultura intelectual pode ser entendida i iam homens que n ã o pertenciam nem à grande, nem à
como uma "mentalidade de ruptura", que toma suas pró- |)cquena e média burguesias; eram burgueses, sim, uma pe-
prias distâncias em relação à "imutável" mentalidade
arcaica.
Gus[)ORF, G . , op. cit., p. 466 et seqs. Neste mesmo livro são
Curiosamente, no entanto, esse mesmo autor, ao con- desenvolvidos temas como: "A importância social do intelectual",
p. 478 et seqs.; "A vocação do intelectual", p. 490 et seqs.; "O ofício
cluir, ratifica o que denominamos de "lugar comum": "O
(liis letras", p. 503 et seqs, cuja leitura recomendamos.
século X V I I I é o século do aburguesamento da cultura, os 11 VENTURI, F . Introdução, cit., p. 20.
burgueses constituem daí por diante n ã o somente a maio- CioLDMANN, Lucien. La liuslración y la sociedad actual. Caracas,
Mi)nte Ávila, 1968. p. 30 et seqs.
"1 VENTURI, F . Introdução, cit., p. 21.
2 DORN, W . Competition for empire, cit., p. 182-3.
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quena elite de doutos e de técnicos, ou seja, juristas, médi- ou funcionários do Estado absolutista, os "clérigos" de di-
cos, professores, engenheiros, altos funcionários civis e mi- versos matizes ou categorias, os ardstas, os "diletantes" dos
htares, sábios, técnicos especializados, que "se situam lipos mais variados — nobres ou comerciantes. Encontran-
exatamente a meio caminho da grande e da média bur- ilo-se nos salões e academias, fazendo parte de associações
guesia, bastante próximos das camadas sociais mais ele- nu de sociedades secretas, essa gente formava o mundo por
vadas. . . mas n ã o muito longe do povo trabalhador. . . " " I xcclência em que se produziam e debatiam as ideias do
Que lições podemos tirar dessa polémica? Percebe- llutninismo. A pardcipação maior ou menor de cada um
mos que ela envolve dois tipos de questões: as indagações desses tipos sociais, a importância da opinião pública, o
sobre o significado politico e social da ideologia iluminista; papel dos vínculos com o aparelho de Estado, tudo isso
e as perguntas sobre a origem social e a posição dos ilumi- v;uiava muito de um país para outro. Bastaria ter em
nistas na sociedade das "Luzes". Havia, é certo, ideias e mente os casos da Inglaterra, França, Prússia e Espanha
intelectuais burgueses no movimento iluminista. Mas eram p.ira perceber as enormes distâncias.
todos burgueses? J á vimos que aí se situam as discrepâncias Concluindo, desejamos apenas chamar a atenção para
dos historiadores. O mais difícil, portanto, é saber como diiiis ordens de ideias: . . .
avaliar corretamente as ideias, hábitos, comportamentos e
1. As respostas a todas as indagações e questiona-
atitudes de natureza aristocrática (no sentido de nobreza
mentos acima expostos dependem muito da própria con-
e clero) presentes no movimento iluminista.
crpção teórico-metodológica daquele que aborda o Ilumi-
Parece certo, porém, que enxergar somente aquilo que iiisiiio. O dilema é sempre o mesmo: ou admitimos que o
identificamos como " b u r g u ê s ( e s ) " é apenas pinçar algu- (|iic de fato importa ao historiador não é ver os homens
mas partes que por algum modvo julgamos mais "impor- iilc uma certa época) tal como eles pensam a si mesmos
tantes", deixando o restante de lado, em silêncio. T a l pro- c, sim, como eles eram realmente, ou seja, tal como são
cedimento é comum nas abordagens francamente teleoló- ixira nós, ou então, admidmos que aquilo que de fato
gicas, para as quais a verdade do Iluminismo confunde-se ((Mila para o historiador são as representações individuais
com a dos vencedores, não havendo assim qualquer incon- ou coletivas, em si mesmas, as formas concretas de ser e
veniente em ignorar-se o resto, pois a "memória" já está ili- pensar de cada individualidade histórica, aquilo que era
constituída. liaslante real para os homens de uma determinada época,
Quanto aos agentes sociais do Iluminismo, sabemos mesmo que para nós sejam apenas "ideologias" e/ou "men-
que eles eram toda espécie de "letrados" ou, se quisermos ta litlades". Valeria então aquilo que os homens são para
ser mais precisos, todos os "homens de letras" — "gens \i iiwsmos. Cada uma dessas posições arrasta consigo seus
de lettres". Eram, portanto, os membros das profissões pioprios fantasmas: o mecanicismo no primeiro caso, o
liberais (médicos, advogados, professores e t c ) , os "oficiais" historicismo, no segundo. . .
2. Os caminhos da investigação direcionada ao escla-
iccimcnto dessas dúvidas n ã o são menos complexos. E n -
" PROUST, J . Diderot et VEncyclopédie. Paris, 1967. p. 505- DIAZ F
F,teo/M e pohuca nel settecento francese, Torino, 1963, apud V E N - (|iiaiito Gusdorf, como mencionamos, parece colocar gran-
TURI, F . , op. cit.. p. 2 1 e 2 3 ; VENTURI. F . Introdução, cit p 2 4 des esperanças nos futuros resultados das investigações
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quantitativas, Venturi mostra-se cético e irónico a tal res-


peito, não poupando críticas às histórias sociais da cultura 4 : r ' ' - ' .
que partem da pretensão de uma história total — "a coisa
mais perigosa que existe" — , e da visão da sociedade como
de uma estrutura global capaz de revelar sua lógica interna, Secularização e
isto é, as leis de sua própria existência, utilizando um ins-
trumento interpretativo adequado a tal fim: seja a luta de
racionalismo : "
classes (o marxismo), a quantificação ou o estruturalismo.
E m assim procedendo, produz-se apenas filosofia da his-
tória 18.
N ã o tenhamos muitas ilusões. Qualquer um desses
estilos que definem a mentalidade ilustrada eram apenas
finas películas superpostas à espessura de um corpo social
que, na maioria dos casos, sequer se dava conta dessa Por outro lado, no cerne do Iluminismo aconteceu o Impor
existência superficial. Os cidadãos da autoproclamação da tante fenómeno da secularização ou nova forma de lib
"Reptiblica das Letras" não eram senão parcela ínfima dos
dade e autonomia, que determinará o mundo e o modo de
homens de então. E r a m a minoria da minoria dos instruídos,
ser-no-mundo do homem moderno. Por isso, uma interpre-
e essa era, de fato, " a verdadeira fronteira das 'Luzes' "
tação do Iluminismo é, por essência, uma leitura da sec
larização i .

A falsa antítese
Quando, em 1975, em livro de nossa autoria 2, abor-
damos o problema da secularização, situamos esse conceito
110 interior de um processo caracterizado pela "passagem
da transcendência à imanência, da verdcahdade à horizon-
lalidade", articulando-o aos desenvolvimentos do individua-
18 Analisando os trabalhos franceses dirigidos por A. Dupront, ou
elaborados por G. Bolléme, J. Ehrard, François Furet, D. Roche, lismo e do racionalismo e ainda, mais amplamente, às
e J. Roger sobre Livro e sociedade no século XVIII, Venturi ironiza transformações que se verificaram, durante a Idade Mo-
os respectivos resultados: " . . . estudando as ideias quando já se derna, em diferentes planos: o político, o económico e o
tornaram estruturas mentais, sem apreender-lhes o momento cria-
tivo e ativo, o resultado historiográfico (desses trabalhos) é o de
reafirmar, com grande luxo de métodos novos, aquilo que já era
sabido"; cf. Introdução, cit., p. 24-5. • PEREIRA, M . B . , op. cit., p. 4 4 3
FALCON, F.i.C.A época pombalina, cap. 1.
I»HAMPSON, N . , op. cit., p. 7 2 ; CHAUNU, P . , op. cit., p. 7 1 .
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ideológico. Todo esse conjunto, por nós denominado de Ocorre no domínio da ciência do espírito o mesmo pro-
"problemática europeia", ao mesmo tempo que privilegiava cesso de secularização com que deparamos antes no do-
de certo modo a questão da secularização, oferecia a res- mínio da observação e do conhecimento da natureza
peito desta última um certo tipo de concepção pautada
pela visão dicotômica que tende a opor, de forma radical, A visão tradicional, de natureza finahsta ou teleoló-
razão e religião. Cremos que, hoje, já é tempo de matizar gica por definição, era típica de um universo mental mar-
um pouco as coisas. cado pela Revelação. Pouco a pouco essa visão perdeu
terreno diante do avanço da visão imanentista, naturalista
A passagem à imanência, cada vez mais associada às
c antropocêntrica. A o longo desse embate produziu-se uma
ideias de "progresso" e de "civilização", como o assinala
nova concepção do mundo e do homem, essencialmente ter-
Gusdorf, está presente nas sucessivas mudanças que então
rena e humana, pautada pelos pressupostos da imanência,
se operam quanto à maneira de definir as relações entre o
da racionalidade e da relação homem-natureza como reali-
homem e a natureza, cuja contrapartida se acha na luta da dade essencial.
Igreja Católica contra os avanços de um "novo espírito U m dos aspectos mais conhecidos e evidentes da secu-
científico", que é o verdadeiro espírito da ciência moder- larização foi o desenvolvimento da crítica às crenças e prá-
na, expresso na concepção matemático-natural do mundo. ticas religiosas, em nome da razão e da liberdade de pen-
Contra essa possibilidade de uma outra verdade, distinta, samento. J á em 1713 Anthony Collins, no seu Discourse
autónoma e imanente, os guardiães da verdade revelada of free-thinking, defendia a liberdade de pensamento e,
assestaram suas baterias. Que o digam Giordano Bruno e rcferindo-se às interpretações da Bíblia e à multiplicidade
Galileu Galileil ilc opiniões em matéria de religião, afirmava que a razão
A afirmação da imanência, típica do racionalismo mo- deve ser o único critério válido, de acordo com a própria
derno, privilegiando a dialetica homem-natureza, colocou vontade divina.
em evidência o paradigma naturalista, fazendo da ideia de O livre-pensar, com tendência ao deísmo, caracteriza
uma natureza auto-regulada, detentora de sua própria lega- inicialmente os meios culturais anglo-holandeses, difundin-
lidade, a premissa necessária de todo conhecimento cientí- (lo-se, a partir dali, durante o setecentos e assumindo, prin-
fico. Este racionalismo naturalista constituiria, no século lipalmente em França, uma forte conotação anticlerical,
i|uc Voltaire muito bem simboliza. A tradição desse radi-
X V I I I , um dos pressupostos básicos do Iluminismo.
calismo anticlerical levou às leituras da secularização em
A secularização significou, até certo ponto, a essência bases antitéticas: razão versus religião, ou natural versus
do processo de passagem da transcendência à imanência no sobrenatural Contra essa visão algo maniqueísta da se-
campo das teorias e práticas políticas, económicas e sociais cularização, presente nos círculos maçónicos, é necessário
em geral. Neste sentido, a secularização pode ser identifi-
cada como a emancipação de cada um dos campos parti- ' < AssiRER, Ernst. Filosoíía de la Ilustración. México, Fondo de
culares do conhecimento, especialmente daqueles cujo obje- ( iiliura Económica, 1950. p. 181.
to é o próprio homem, da tutela teológica e metafísica: 1 lAi.coN, F . J . C . A época pombalina, p. 9, nota 36, e p. 10, nota
17.
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contrapormos a realidade histórica de uma secularização O reconhecimento da autonomia e da legitimidade da esfera


que está longe de ter sido um processo hnear ou homogé- própria do entendimento humano, assim como da realidade
neo. Seria mais exato concebermos não uma, mas várias intramundana do homem e da vida, ou seja, do natural
secularizações, cada qual com seu próprio ritmo, formando A segunda linha, muito vinculada às vicissitudes in-
um conjunto diacrónico e desigual, não raro contraditório. glesas do seiscentos, tem em Herbert de Cherbury (1588-
Dentro de tal perspectiva, o essencial é não estabele- -1648) e nos platónicos de Cambridge, como Henry More,
cermos uma total oposição ou incompatibilidade entre a os expoentes de uma tendência que busca conciliar a ciên-
secularização e o cristianismo, pois: cia com os valores espirituais, pois, para eles e muitos
Nas raízes históricas do Iluminismo há um crescente pro- outros, "a razão é a luz, o candelabro do Senhor". Pensa-
cesso de secularização, que não é apenas um produto da vam, assim, que era possível conciHar razão e Revelação,
Reforma nem uma expropriação de bens culturais extorqui- fazendo da Revelação presente na Bíblia apenas o começo
dos de seu legítimo proprietário, mas uma profunda mu- histórico de uma revelação a ser adquirida por intermédio
dança histórica nascida sob a influência direta do cristia- da razão. F o i esse também o grande objetivo de B. Spinoza
nismo
e, bem mais tarde, ele estará presente em Lessing.
Se, no plano do pensamento político, as especulações
O anticlericalismo, típico das "Luzes" francesas, não sobre as origens da sociedade e do Estado e sobre a natu-
é a regra no restante da Europa. O reconhecimento da reza do poder do príncipe e dos direitos dos stiditos leva-
diferença como raiz da autonomia do homem e do mundo vam a uma espécie de compromisso entre a esfera da polí-
faz parte também de um processo interior à própria Igreja. tica, própria do Estado, e a esfera da liberdade de cons-
Com frequência, a iluminação racional, longe de ser enca-
ciência, própria do siidito, afirmando então o binómio "pti-
rada como oposta à iluminação religiosa, foi entendida
blico" (Estado) versus "privado" (indivíduo), no plano
como uma espécie de expansão ou ampliação desta liUima.
do pensamento religioso a tendência foi a conciliação entre
"O caminho do racionalismo moderno, historicamente, não
a luz natural da razão e a luz sobrenatural da revelação
é o da rejeição do cristianismo mas, muito pelo contrário,
histórica. A luz natural também é uma palavra divina. T a l
o de seu alargamento."
era a essência das reflexões de Pierre Bayle. Outra não se-
Do século X V I ao século X V I I I , desenvolveram-se ria, aliás, a posição de Kant, para quem o dictamen da cons-
duas linhas de reflexão tendentes, em ambos os casos, a ciência é a própria palavra de Deus.
reconhecer a reahdade secular. A primeira, no plano da
política, tem seus marcos mais significativos em Maquiavel,
Bodin, Hobbes e Locke, mas é preciso não esquecer a im-
A razão iluminista — a iluminação secular
portância de certos textos de Tomás de Aquino (séc. X I I I )
e, sobretudo, de Roberto Belarmino (séc. X V I ) , nos quais Já vimos que a visão de mundo do Iluminismo, ao
desponta uma visão cristã da secularização cuja essência é retomar a antiga metáfora das luzes que se opõem às som-

5 PEREIRA, M . B . , op. cit., p. 484.


«Id., ibid., p. 488-9.
36 37

bras, interpretou-a no interior de um contexto marcado dados empíricos, daquilo que chamamos de "fatos", uma
pelo processo de secularização, devendo-se entender este vez que a verdade jamais é diretamente "dada" por qual-
iildmo nos termos do que acabamos de expor linhas acima: quer tipo de "evidência". Para o pensamento iluminista,
trata-se da "iluminação racional" a qual, para boa parte a razão é trabalho, trabalho do intelecto, cujas ferramentas
dos pensadores de então, n ã o se opõe necessariamente à sãó a observação e a experimentação. A razão é instrumen-
"luz divina". to de m u d a n ç a : o primeiro passo é mudar o próprio modo
Entre o racionalismo dos grandes filósofos do século de pensar.
X V I I (Descartes, Spinoza, Leibniz, entre outros) e o ra- Pensar racionalmente, filosoficamente, isto é, pensar
cionalismo das "Luzes" há continuidades e diferenças im- diferente. Que significa esse novo pensar? Basicamente,
portantes. Para os iluministas a razão é alguma coisa ao trata-se de criticar, duvidar e, se necessário, demolir. A ra-
mesmo tempo mais modesta e também mais ambiciosa do zão define-se portanto como crítica de um pensamento "tra-
que o era para os grandes construtores de sistemas filo- dicional" — de suas formas e contetidos. N ã o há mais espa-
sóficos do século anterior. Mais modesta porque os "filó- ços proibidos à razão. Tudo deve ser submeddo ao espírito
sofos" já n ã o acreditam numa razão definida como soma- crídco. Afinal, é através da crídca do existente que se po-
tório ou síntese de ideias inatas reveladoras da essência derá produzir o novo e o verdadeiro. Os preconceitos, as
absoluta do existente; mais ambiciosa porque, para os ho- superstições, os ídolos, no sentido de Bacon, constituem
mens do Iluminismo, a razão está longe de ser uma espécie barreiras ou véus que ocultam/encobrem a verdade, impe-
de herança — ela é, sim, uma aquisição possível. Portanto, dindo o caminho até ela. A verdade é um mais além,
em lugar de consdtuir uma espécie de tesouro, ou "banco algo a desvendar e/ou a descobrir. Contra a ideologia
de dados", como diríamos hoje, a razão é uma força inte- (desculpem-nos o anacronismo) os iluministas empunham
lectual original cuja função maior é a de guiar o intelecto as armas da crítica racionalista.
no caminho que o leva à verdade^.
O movimento mental das "Luzes" repousa no pressu-
Longe de ser um conjunto de conhecimentos a priori posto do avanço constante, historicamente necessário, de
sobre princípios ou verdades preexistentes, a razão ilumi- uma racionalidade que pouco a pouco "ilumina" as som-
nista é concebida como energia ou força intelectual, só com- bras do erro e da ignorância. A razão iluminista apresenta-
preensível e perceptível através da prádca, isto é, do que -se aos seus adeptos como um instrumental crítico que se
é capaz de fazer e produzir. dirige a cada indivíduo naquilo que possui de mais íntimo
Princípio de toda verdade, autónoma por definição, e essencial — sua consciência racional de ser humano.
a razão iluminista se opõe a tudo que é irracional e se Mais que convencer ou persuadir, com argumentos racio-
oculta sob as denominações vagas de "autoridade", "tra- nais, trata-se de trazer à tona, em cada um, essa capacidade
dição" e "revelação". Tampouco essa razão é escrava dos ou essa essência racional, comum a todos: pensar por si
mesmo, "sair da menoridade para a maioridade", tal é a
^ CASSIRER, E . , op. cit., p. 13. palavra de ordem. Í , :
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A razão iluminista instaura em definitivo o "reino da século X V I I — , fizeram fulgir os primeiros clarões de ra-
crítica" 8 e, ao fazê-lo, n ã o é apenas o Estado absolutista cionalidade, contestando crenças e valores, afirmando no-
que lhe serve de alvo. É a sociedade existente como um vos princípios de conhecimento, sendo por isso mesmo per-
todo que deve ser reconstruída. Identificando no cristia- seguidos, incompreendidos e quase sempre esmagados pela
nismo a verdadeira essência da sociedade contemporânea, intolerância, cujo modelo perfeito e acabado era represen-
os iluministas promovem a crítica impiedosa dessa cidade tado pelo Santo Ofício.
de Deus, para em seu lugar edificarem a cidade dos homens, J á o modelo físico-matemático é a demonstração cien-
natural, secular ^, ou, quem sabe, a cidade celestial dos tífica da racionalidade do universo e constitui a garantia
filósofos
de que existe uma identidade essencial entre o sujeito e o
Se tudo pode e deve ser submetido ao tribunal da crí- objeto do conhecimento: a racionalidade é imanente ao
tica racional, por que n ã o criticar também as próprias con- mundo e ao homem. Deriva daí o otimismo quanto às pos-
cepções do racionalismo iluminista? Significativamente, tal sibilidades da razão humana — ela pode apreender, reco-
crítica, empreendida por Kant, j á anuncia o crepúsculo do nhecendo-se, a razão universal. D a í as consequências bá-
Iluminismo. Mas, até chegarem a essa crítica, foi possível sicas: existem leis que regem o existente, tais leis são ra-
aos iluministas esbanjarem suas certezas e difundirem seu cionais, logo, acessíveis à razão humana. O homem pode
otimismo quanto à felicidade possível do género humano e conhecer as leis que governam o mundo material e as
à sua fé no progresso. próprias sociedades que ele criou, logo, conhecendo-se tais
O otimismo racionalista dos "filósofos" expressa a leis é possível construir uma sociedade adequada a elas e
convergência de duas vertentes de pensamento complemen- que, dada a natureza racional do próprio homem, será
tares. Por um lado, sua autoconsciência; por outro, a também a melhor sociedade possível para esse homem.
admiração, a quase embriaguez com que se debruçam sobre O modelo de racionalidade típico do pensamento ilu-
o modelo físico-matemático.
minista é aquele que o grande avanço das ciências da na-
A autoconsciência iluminista contrapõe seus próprios tureza, de Galileu a Newton, havia fixado como verdade
" a v a n ç o s " ao "obscurandsmo" das épocas anteriores. Sua indiscutível. Os progressos da matemática e da física ah
visão pecuHar da história reforça-lhe as convicções de su- estavam, diante dos "filósofos", a demonstrar a verdade in-
perioridade intelectual. Quando muito, reconhecendo-se
sofismável da racionalidade do universo. Existem "leis" ao
como "modernos", já que os "antigos" estiveram mergu-
mesmo tempo racionais, naturais e universais. Se assim
lhados em trevas, admitem os "filósofos" a importância
é no mundo da natureza, por que não o deveria ser tam-
daqueles precursores — movimentos e homens — que, em
bém no mundo dos homens? Se a razão que a tudo governa
determinados momentos — como no Renascimento e no
c a mesma, por que não deveriam estar também a ela sub-
metidas as instituições sociais? E i s , portanto, a grande
8 KosELLECK, Reinhardt. Crírica illuminista e crisi delia società bor-
ghese. Bologna, II Mulino, 1972. tarefa do Iluminismo: fazer o balanço e a divulgação dos
9 HAZARD, P., op. cit., t. 1. enormes progressos já alcançados pela razão teórica e prá-
10 BECKER Carl. The heavenly city in the philosophy of the 18th
century. Yale University Press, 1959. z' / io,n tica (as ciências e as técnicas) e empreender a investigação
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e pelo que construiu. Sua especificidade reside n ã o tanto


das leis que dizem respeito diretamente ao homem — indi-
em suas doutrinas, quanto na forma que imprimiu à ativi-
vidual e social.
dade de criticar, duvidar e demolir, mas também de cons-
O paradigma físico-matemático, então no seu apogeu, truir.
levou o racionalismo iluminista à naturalização do homem,
Distanciando-se do "espírito do sistema" que predo-
isto é, da sociedade e da cultura. A s instituições humanas
minara no século anterior, mas n ã o do "espírito sistemáti-
então existentes apareciam à razão iluminista como cria-
co", os "filósofos" tentaram quase sempre reconhecer os
ções irracionais, incapazes de resistirem por mais tempo aos
méritos, tanto do racionalismo cartesiano, quanto do em-
golpes da crítica racional. Cabe a esta última desvendar a
pirismo inglês, de Locke e Newton. Seu maior desejo era
inadequação de tais instituições à natureza racional do
homem. N ã o é, portanto, de causar espanto o otimismo fundir essas duas correntes filosóficas, aproveitando de
iluminista. E l e resulta, naturalmente, da fé que têm os cada uma delas os melhores elementos. Ainda hoje as aná-
filósofos no poder da razão e na verdade da ciência — uma lises dos especialistas divergem quando se trata de apontar
nova religião enfim, uma religião secular, cujo deus é a quem teria exercido maior fascínio sobre os iluministas:
razão e onde a razão é Deus. Descartes ou Locke.
O que realmente importa é a concepção que os ilumi-
As avaliações do pensamento iluminista constantes da nistas tinham da filosofia: uma forma de pensar (racional-
maioria das histórias da filosofia são reticentes ou franca mente) todos os ramos do conhecimento, dando ênfase ao
mente negadvas. Os "filósofos" parecem haver criado
sentido de indagação e descoberta, pois assim é a razão:
pouco e pecado pela falta de originalidade É como se,
crítica e criadora. O progresso dessa mesma razão — o
num certo sentido, sua capacidade criadora houvesse sido
progresso intelectual em suma — permitirá ao homem a
eclipsada pela atividade crítica. A tal respeito, Cassirer
verdadeira liberdade. T a l liberdade só é possível através
observa:
do conhecimento daquelas forças e tendências que regem
.. .0 Iluminismo criou realmente uma forma de pensamento o mundo e são responsáveis pela ordem e pelas leis uni-
que era original em sua totalidade, pois s ó no que diz res- versais:
peito ao conteúdo ela continuou na dependência das elucu- Os fatos não são uma mistura caótica e fortuita de ele-
brações dos séculos precedentes i^. mentos separados; pelo contrário, parecem incorporar-se a
certos padrões e apresentar formas, regularidades e rela-
O pensamento do Iluminismo pode ser avaliado tanto ç õ e s definidas. A ordem é imanente ao universo, acreditava
negativa quanto positivamente, pelo que negou e criticou Newton, e não se pode descobri-la a partir de princípios
abstratos, mas sim mediante a observação e a acumulação
de dados i^.
11 CHEVALIER, J . Histoire de la pensée — 3; la pensée moderne de
Descartes a Kant. Paris, Flammarion, 1 9 6 1 . p. 4 1 4 et seqs •
BREHIER, E . Histoire de la philosophie — 2; L a philosophie moderne Sendo assim, era preciso estudar os "fatos", levar em
— 2; Le Dix-Huitième Siècle. Paris, P U F , 1950; CHÂTELET F consideração os "dados" fornecidos pela observação e pela
Historia da filosofia — 4; o Iluminismo o século X V I I I . Rio de
Janeiro, Zahar, 1974.
ISZEITLIN, I . , op. cit., p. 15.
12 CASSIRER, E . , op. cit., p. 13.

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