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quena elite de doutos e de técnicos, ou seja, juristas, médi- ou funcionários do Estado absolutista, os "clérigos" de di-
cos, professores, engenheiros, altos funcionários civis e mi- versos matizes ou categorias, os ardstas, os "diletantes" dos
htares, sábios, técnicos especializados, que "se situam lipos mais variados — nobres ou comerciantes. Encontran-
exatamente a meio caminho da grande e da média bur- ilo-se nos salões e academias, fazendo parte de associações
guesia, bastante próximos das camadas sociais mais ele- nu de sociedades secretas, essa gente formava o mundo por
vadas. . . mas n ã o muito longe do povo trabalhador. . . " " I xcclência em que se produziam e debatiam as ideias do
Que lições podemos tirar dessa polémica? Percebe- llutninismo. A pardcipação maior ou menor de cada um
mos que ela envolve dois tipos de questões: as indagações desses tipos sociais, a importância da opinião pública, o
sobre o significado politico e social da ideologia iluminista; papel dos vínculos com o aparelho de Estado, tudo isso
e as perguntas sobre a origem social e a posição dos ilumi- v;uiava muito de um país para outro. Bastaria ter em
nistas na sociedade das "Luzes". Havia, é certo, ideias e mente os casos da Inglaterra, França, Prússia e Espanha
intelectuais burgueses no movimento iluminista. Mas eram p.ira perceber as enormes distâncias.
todos burgueses? J á vimos que aí se situam as discrepâncias Concluindo, desejamos apenas chamar a atenção para
dos historiadores. O mais difícil, portanto, é saber como diiiis ordens de ideias: . . .
avaliar corretamente as ideias, hábitos, comportamentos e
1. As respostas a todas as indagações e questiona-
atitudes de natureza aristocrática (no sentido de nobreza
mentos acima expostos dependem muito da própria con-
e clero) presentes no movimento iluminista.
crpção teórico-metodológica daquele que aborda o Ilumi-
Parece certo, porém, que enxergar somente aquilo que iiisiiio. O dilema é sempre o mesmo: ou admitimos que o
identificamos como " b u r g u ê s ( e s ) " é apenas pinçar algu- (|iic de fato importa ao historiador não é ver os homens
mas partes que por algum modvo julgamos mais "impor- iilc uma certa época) tal como eles pensam a si mesmos
tantes", deixando o restante de lado, em silêncio. T a l pro- c, sim, como eles eram realmente, ou seja, tal como são
cedimento é comum nas abordagens francamente teleoló- ixira nós, ou então, admidmos que aquilo que de fato
gicas, para as quais a verdade do Iluminismo confunde-se ((Mila para o historiador são as representações individuais
com a dos vencedores, não havendo assim qualquer incon- ou coletivas, em si mesmas, as formas concretas de ser e
veniente em ignorar-se o resto, pois a "memória" já está ili- pensar de cada individualidade histórica, aquilo que era
constituída. liaslante real para os homens de uma determinada época,
Quanto aos agentes sociais do Iluminismo, sabemos mesmo que para nós sejam apenas "ideologias" e/ou "men-
que eles eram toda espécie de "letrados" ou, se quisermos ta litlades". Valeria então aquilo que os homens são para
ser mais precisos, todos os "homens de letras" — "gens \i iiwsmos. Cada uma dessas posições arrasta consigo seus
de lettres". Eram, portanto, os membros das profissões pioprios fantasmas: o mecanicismo no primeiro caso, o
liberais (médicos, advogados, professores e t c ) , os "oficiais" historicismo, no segundo. . .
2. Os caminhos da investigação direcionada ao escla-
iccimcnto dessas dúvidas n ã o são menos complexos. E n -
" PROUST, J . Diderot et VEncyclopédie. Paris, 1967. p. 505- DIAZ F
F,teo/M e pohuca nel settecento francese, Torino, 1963, apud V E N - (|iiaiito Gusdorf, como mencionamos, parece colocar gran-
TURI, F . , op. cit.. p. 2 1 e 2 3 ; VENTURI. F . Introdução, cit p 2 4 des esperanças nos futuros resultados das investigações
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A falsa antítese
Quando, em 1975, em livro de nossa autoria 2, abor-
damos o problema da secularização, situamos esse conceito
110 interior de um processo caracterizado pela "passagem
da transcendência à imanência, da verdcahdade à horizon-
lalidade", articulando-o aos desenvolvimentos do individua-
18 Analisando os trabalhos franceses dirigidos por A. Dupront, ou
elaborados por G. Bolléme, J. Ehrard, François Furet, D. Roche, lismo e do racionalismo e ainda, mais amplamente, às
e J. Roger sobre Livro e sociedade no século XVIII, Venturi ironiza transformações que se verificaram, durante a Idade Mo-
os respectivos resultados: " . . . estudando as ideias quando já se derna, em diferentes planos: o político, o económico e o
tornaram estruturas mentais, sem apreender-lhes o momento cria-
tivo e ativo, o resultado historiográfico (desses trabalhos) é o de
reafirmar, com grande luxo de métodos novos, aquilo que já era
sabido"; cf. Introdução, cit., p. 24-5. • PEREIRA, M . B . , op. cit., p. 4 4 3
FALCON, F.i.C.A época pombalina, cap. 1.
I»HAMPSON, N . , op. cit., p. 7 2 ; CHAUNU, P . , op. cit., p. 7 1 .
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ideológico. Todo esse conjunto, por nós denominado de Ocorre no domínio da ciência do espírito o mesmo pro-
"problemática europeia", ao mesmo tempo que privilegiava cesso de secularização com que deparamos antes no do-
de certo modo a questão da secularização, oferecia a res- mínio da observação e do conhecimento da natureza
peito desta última um certo tipo de concepção pautada
pela visão dicotômica que tende a opor, de forma radical, A visão tradicional, de natureza finahsta ou teleoló-
razão e religião. Cremos que, hoje, já é tempo de matizar gica por definição, era típica de um universo mental mar-
um pouco as coisas. cado pela Revelação. Pouco a pouco essa visão perdeu
terreno diante do avanço da visão imanentista, naturalista
A passagem à imanência, cada vez mais associada às
c antropocêntrica. A o longo desse embate produziu-se uma
ideias de "progresso" e de "civilização", como o assinala
nova concepção do mundo e do homem, essencialmente ter-
Gusdorf, está presente nas sucessivas mudanças que então
rena e humana, pautada pelos pressupostos da imanência,
se operam quanto à maneira de definir as relações entre o
da racionalidade e da relação homem-natureza como reali-
homem e a natureza, cuja contrapartida se acha na luta da dade essencial.
Igreja Católica contra os avanços de um "novo espírito U m dos aspectos mais conhecidos e evidentes da secu-
científico", que é o verdadeiro espírito da ciência moder- larização foi o desenvolvimento da crítica às crenças e prá-
na, expresso na concepção matemático-natural do mundo. ticas religiosas, em nome da razão e da liberdade de pen-
Contra essa possibilidade de uma outra verdade, distinta, samento. J á em 1713 Anthony Collins, no seu Discourse
autónoma e imanente, os guardiães da verdade revelada of free-thinking, defendia a liberdade de pensamento e,
assestaram suas baterias. Que o digam Giordano Bruno e rcferindo-se às interpretações da Bíblia e à multiplicidade
Galileu Galileil ilc opiniões em matéria de religião, afirmava que a razão
A afirmação da imanência, típica do racionalismo mo- deve ser o único critério válido, de acordo com a própria
derno, privilegiando a dialetica homem-natureza, colocou vontade divina.
em evidência o paradigma naturalista, fazendo da ideia de O livre-pensar, com tendência ao deísmo, caracteriza
uma natureza auto-regulada, detentora de sua própria lega- inicialmente os meios culturais anglo-holandeses, difundin-
lidade, a premissa necessária de todo conhecimento cientí- (lo-se, a partir dali, durante o setecentos e assumindo, prin-
fico. Este racionalismo naturalista constituiria, no século lipalmente em França, uma forte conotação anticlerical,
i|uc Voltaire muito bem simboliza. A tradição desse radi-
X V I I I , um dos pressupostos básicos do Iluminismo.
calismo anticlerical levou às leituras da secularização em
A secularização significou, até certo ponto, a essência bases antitéticas: razão versus religião, ou natural versus
do processo de passagem da transcendência à imanência no sobrenatural Contra essa visão algo maniqueísta da se-
campo das teorias e práticas políticas, económicas e sociais cularização, presente nos círculos maçónicos, é necessário
em geral. Neste sentido, a secularização pode ser identifi-
cada como a emancipação de cada um dos campos parti- ' < AssiRER, Ernst. Filosoíía de la Ilustración. México, Fondo de
culares do conhecimento, especialmente daqueles cujo obje- ( iiliura Económica, 1950. p. 181.
to é o próprio homem, da tutela teológica e metafísica: 1 lAi.coN, F . J . C . A época pombalina, p. 9, nota 36, e p. 10, nota
17.
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bras, interpretou-a no interior de um contexto marcado dados empíricos, daquilo que chamamos de "fatos", uma
pelo processo de secularização, devendo-se entender este vez que a verdade jamais é diretamente "dada" por qual-
iildmo nos termos do que acabamos de expor linhas acima: quer tipo de "evidência". Para o pensamento iluminista,
trata-se da "iluminação racional" a qual, para boa parte a razão é trabalho, trabalho do intelecto, cujas ferramentas
dos pensadores de então, n ã o se opõe necessariamente à sãó a observação e a experimentação. A razão é instrumen-
"luz divina". to de m u d a n ç a : o primeiro passo é mudar o próprio modo
Entre o racionalismo dos grandes filósofos do século de pensar.
X V I I (Descartes, Spinoza, Leibniz, entre outros) e o ra- Pensar racionalmente, filosoficamente, isto é, pensar
cionalismo das "Luzes" há continuidades e diferenças im- diferente. Que significa esse novo pensar? Basicamente,
portantes. Para os iluministas a razão é alguma coisa ao trata-se de criticar, duvidar e, se necessário, demolir. A ra-
mesmo tempo mais modesta e também mais ambiciosa do zão define-se portanto como crítica de um pensamento "tra-
que o era para os grandes construtores de sistemas filo- dicional" — de suas formas e contetidos. N ã o há mais espa-
sóficos do século anterior. Mais modesta porque os "filó- ços proibidos à razão. Tudo deve ser submeddo ao espírito
sofos" já n ã o acreditam numa razão definida como soma- crídco. Afinal, é através da crídca do existente que se po-
tório ou síntese de ideias inatas reveladoras da essência derá produzir o novo e o verdadeiro. Os preconceitos, as
absoluta do existente; mais ambiciosa porque, para os ho- superstições, os ídolos, no sentido de Bacon, constituem
mens do Iluminismo, a razão está longe de ser uma espécie barreiras ou véus que ocultam/encobrem a verdade, impe-
de herança — ela é, sim, uma aquisição possível. Portanto, dindo o caminho até ela. A verdade é um mais além,
em lugar de consdtuir uma espécie de tesouro, ou "banco algo a desvendar e/ou a descobrir. Contra a ideologia
de dados", como diríamos hoje, a razão é uma força inte- (desculpem-nos o anacronismo) os iluministas empunham
lectual original cuja função maior é a de guiar o intelecto as armas da crítica racionalista.
no caminho que o leva à verdade^.
O movimento mental das "Luzes" repousa no pressu-
Longe de ser um conjunto de conhecimentos a priori posto do avanço constante, historicamente necessário, de
sobre princípios ou verdades preexistentes, a razão ilumi- uma racionalidade que pouco a pouco "ilumina" as som-
nista é concebida como energia ou força intelectual, só com- bras do erro e da ignorância. A razão iluminista apresenta-
preensível e perceptível através da prádca, isto é, do que -se aos seus adeptos como um instrumental crítico que se
é capaz de fazer e produzir. dirige a cada indivíduo naquilo que possui de mais íntimo
Princípio de toda verdade, autónoma por definição, e essencial — sua consciência racional de ser humano.
a razão iluminista se opõe a tudo que é irracional e se Mais que convencer ou persuadir, com argumentos racio-
oculta sob as denominações vagas de "autoridade", "tra- nais, trata-se de trazer à tona, em cada um, essa capacidade
dição" e "revelação". Tampouco essa razão é escrava dos ou essa essência racional, comum a todos: pensar por si
mesmo, "sair da menoridade para a maioridade", tal é a
^ CASSIRER, E . , op. cit., p. 13. palavra de ordem. Í , :
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A razão iluminista instaura em definitivo o "reino da século X V I I — , fizeram fulgir os primeiros clarões de ra-
crítica" 8 e, ao fazê-lo, n ã o é apenas o Estado absolutista cionalidade, contestando crenças e valores, afirmando no-
que lhe serve de alvo. É a sociedade existente como um vos princípios de conhecimento, sendo por isso mesmo per-
todo que deve ser reconstruída. Identificando no cristia- seguidos, incompreendidos e quase sempre esmagados pela
nismo a verdadeira essência da sociedade contemporânea, intolerância, cujo modelo perfeito e acabado era represen-
os iluministas promovem a crítica impiedosa dessa cidade tado pelo Santo Ofício.
de Deus, para em seu lugar edificarem a cidade dos homens, J á o modelo físico-matemático é a demonstração cien-
natural, secular ^, ou, quem sabe, a cidade celestial dos tífica da racionalidade do universo e constitui a garantia
filósofos
de que existe uma identidade essencial entre o sujeito e o
Se tudo pode e deve ser submetido ao tribunal da crí- objeto do conhecimento: a racionalidade é imanente ao
tica racional, por que n ã o criticar também as próprias con- mundo e ao homem. Deriva daí o otimismo quanto às pos-
cepções do racionalismo iluminista? Significativamente, tal sibilidades da razão humana — ela pode apreender, reco-
crítica, empreendida por Kant, j á anuncia o crepúsculo do nhecendo-se, a razão universal. D a í as consequências bá-
Iluminismo. Mas, até chegarem a essa crítica, foi possível sicas: existem leis que regem o existente, tais leis são ra-
aos iluministas esbanjarem suas certezas e difundirem seu cionais, logo, acessíveis à razão humana. O homem pode
otimismo quanto à felicidade possível do género humano e conhecer as leis que governam o mundo material e as
à sua fé no progresso. próprias sociedades que ele criou, logo, conhecendo-se tais
O otimismo racionalista dos "filósofos" expressa a leis é possível construir uma sociedade adequada a elas e
convergência de duas vertentes de pensamento complemen- que, dada a natureza racional do próprio homem, será
tares. Por um lado, sua autoconsciência; por outro, a também a melhor sociedade possível para esse homem.
admiração, a quase embriaguez com que se debruçam sobre O modelo de racionalidade típico do pensamento ilu-
o modelo físico-matemático.
minista é aquele que o grande avanço das ciências da na-
A autoconsciência iluminista contrapõe seus próprios tureza, de Galileu a Newton, havia fixado como verdade
" a v a n ç o s " ao "obscurandsmo" das épocas anteriores. Sua indiscutível. Os progressos da matemática e da física ah
visão pecuHar da história reforça-lhe as convicções de su- estavam, diante dos "filósofos", a demonstrar a verdade in-
perioridade intelectual. Quando muito, reconhecendo-se
sofismável da racionalidade do universo. Existem "leis" ao
como "modernos", já que os "antigos" estiveram mergu-
mesmo tempo racionais, naturais e universais. Se assim
lhados em trevas, admitem os "filósofos" a importância
é no mundo da natureza, por que não o deveria ser tam-
daqueles precursores — movimentos e homens — que, em
bém no mundo dos homens? Se a razão que a tudo governa
determinados momentos — como no Renascimento e no
c a mesma, por que não deveriam estar também a ela sub-
metidas as instituições sociais? E i s , portanto, a grande
8 KosELLECK, Reinhardt. Crírica illuminista e crisi delia società bor-
ghese. Bologna, II Mulino, 1972. tarefa do Iluminismo: fazer o balanço e a divulgação dos
9 HAZARD, P., op. cit., t. 1. enormes progressos já alcançados pela razão teórica e prá-
10 BECKER Carl. The heavenly city in the philosophy of the 18th
century. Yale University Press, 1959. z' / io,n tica (as ciências e as técnicas) e empreender a investigação
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