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Rio de Janeiro
Abril de 2010
2
_____________________________________________________________________
Profª. Drª. Vanda Santos Falseth
(Orientadora)
Universidade Federal do Rio de Janeiro
_____________________________________________________________________
Profª. Drª Alice da Silva Cunha
Universidade Federal do Rio de Janeiro
_____________________________________________________________________
Prof. Dr. Amós Coêlho da Silva
Universidade do Estado do Rio de Janeiro
_____________________________________________________________________
Prof. Dr. Francisco de Assis Florêncio
(Universidade do Estado do Rio de Janeiro)
_____________________________________________________________________
Profª. Drª Mary Kimiko Guimarães Murashima
(Universidade do Estado do Rio de Janeiro)
_____________________________________________________________________
Profª. Drª. Arlete José Mota
(Suplente)
(Universidade Federal do Rio de Janeiro)
_____________________________________________________________________
Prof. Dr. Airto Ceolin Montagner
(Suplente)
(Universidade do Estado do Rio de Janeiro)
3
Agradeço
RESUMO
O estudo das obras de Cícero e de Sêneca permite perceber, além dos temas já
consagrados pela exegese, a formulação de novas propostas identitárias para o povo
romano, baseadas tanto na manutenção quanto na adaptação do mos maiorum, e também
na recepção das escolas filosóficas gregas, com especial papel para o estoicismo. Assim,
obras destes autores, e também a praetexta Otávia, propõem ou demonstram novos
paradigmas para a romanidade, ao mesmo tempo em que criam e/ou refletem as relações
entre Literatura, Filosofia e História no Império Romano, cujas reverberações podem ser
ainda hoje percebidas nas culturas de latinidade.
7
RESUMEN / RÉSUMÉ
RESUMEN
El estudio de las obras de Cicerón y de Séneca permite percibir, además de los temas
ya consagrados por la exegesis, la formulación de nuevas propuestas identitarias para el
pueblo romano, basadas tanto en el mantenimiento como en la adaptación del mos
maiorum, y también en la recepción de las escuelas filosóficas griegas, con especial
papel para el estoicismo. Así, obras de estos autores, y también la praetexta Octavia,
proponen o demuestran nuevos paradigmas para la romanidad, al tiempo en que crean
y/o reflejan las relaciones entre Literatura, Filosofia e História en el Imperio Romano,
cuyas reverberaciones se pueden todavía hoy percibir en las culturas de latinidad.
RÉSUMÉ
SUMÁRIO
Nota Introdutória p. 10
1 INTRODUÇÃO p. 12
2 A QUESTÃO IDENTITÁRIA EM ROMA p. 25
2.1 Uma identidade de limites p. 25
2.1.1 Mos maiorum, base da romanidade p. 28
2.1.1.1 A tríade fundamental do mos maiorum p. 29
2.1.1.2 Conceitos secundários do mos maiorum p. 33
2.1.1.3 Conceitos terciários do mos maiorum p. 37
2.1.2 A “dinâmica identitária” romana p. 39
2.2 Os limites da identidade p. 43
2.3 Uma nova identidade para um novo homem p. 47
2.3.1 Homo nouus... p. 49
2.3.2 ... et homo uetustus p. 50
2. 4 - Novas variáveis numa velha equação p. 51
2.5 – Rumo à simbiose p. 52
3 CÍCERO: A ROMANIDADE FILOSÓFICA p. 54
3.1 – Cícero: esboço biográfico p. 55
3.1.1 – Cícero, magister eloquentiae p. 59
3.1.2. - Cícero, o filósofo p. 61
3.2 – O pensamento político de Cícero p. 63
3.2.1 - De Re Publica p. 64
3.2.2 – De finibus p. 74
3.2.3 – “Tusculanae Disputationes” p. 82
3.2.3.1 – A “Escola do Pñrtico” e a nova identidade p. 84
romana
3.2.3.2 – Virtus, prima inter pares. p. 86
3.2.4 – Catão e Lélio: a velhice e a amizade p. 89
3.3 – Uma nova identidade e a modernização conservadora p. 95
4 SÊNECA: A FILOSOFIA NO TRONO DO IMPÉRIO p. 98
4.1 Augusto e a nova crise identitária p. 98
9
Nota Introdutória
tese cujo resultado é este que se tem em mãos. Contudo, deve-se ressaltar que entre aquele
projeto e este resultado final há algumas diferenças, e, portanto, convém esclarecer-se seu
porquê.
Roma, a), daqueles valores que acabaram por constituir a identidade romana, b), a
díspares, tendo sido recomendada sua redução às obras que delimitassem um período
menor de tempo. Ademais, o número e a extensão das obras de Cícero e de Sêneca em que
o tema da identidade romana é levantado logo mostrou-se maior do que o que pensáramos
a princípio, sendo-nos imperativo incluir, no corpus de nossa análise, obras que antes não
alternativa senão rendermo-nos ao peso dos fatos e reduzir definitivamente nosso trabalho
Deve-se acrescentar ainda que o súbito falecimento de nosso orientador, o Prof. Dr.
Carlos Antonio Kalil Tannus - que além de privar, a nós, de sua inigualável companhia no
pesquisadores - foi um fator determinante para nossa decisão de retirar de nosso projeto os
itens finais, já que o processo de sua substituição pela Profª Drª Vanda dos Santos Falseth
tomou mais tempo do que o esperado, em razão de entraves burocráticos. Estes foram ao
fim vencidos, e nossa atual orientadora pôde, enfim, iniciar, com o entusiasmo que lhe é
peculiar, a tarefa que o Fatum lhe designou. Porém, tal atraso consumiu-nos um tempo
precioso de pesquisa.
Desse modo, fique o leitor ciente de que esta tese é, ao fim, um recorte daquele
projeto originalmente apresentado. Entretanto, para que não fosse raso, tampouco foi largo;
1 INTRODUÇÃO
internacional logo evidenciará que esta atravessou, nos anos centrais do século XX, um
Crusius, Marouzeau, Monteil, Pinkster et alii, que até hoje são tidos como pedras angulares
área, foram mais tímidos. Isso se deu, pensamo-lo, não apenas porque estes estudos são
limitados a um corpus fechado mas também porque sobre este corpus paira o peso de dois
milênios de uma exegese que moldou uma tradição crítica com poder de chancela sobre as
foram, paulatinamente, sendo exauridas, e que obras como a de Paratore e Bayet, apesar da
envergadura e do fôlego com que cobrem a produção literária latina, são também o
fato esgotado – com o próprio conhecimento sobre o Mundo Clássico, logo visto como
incapaz de fornecer novas explicações sobre seu próprio objeto de estudo e, tão grave
quanto, como igualmente incapaz de contribuir para uma mais bem calibrada interpretação
Contudo, romper ou flexibilizar essa tradição exegética será tarefa para sucessivas
gerações de investigadores. Nesse aspecto, fica patente que estudos como os de René
Contudo, mesmo estes estudos não esgotam as possibilidades de abordagem de seu método
passu com os avanços realizados pelos estudos linguísticos. No que tange ao nosso
literários – podemos afirmar que esse processo de renovação está ainda em curso.
Clássica tem apresentado, nos últimos anos, uma grande renovação em sua temática,
14
deste conjunto de obras, à luz das novas correntes teóricas que se vêm desenvolvendo
mundo contemporâneo.
e suas tipologias – nacional, cultural, social, religiosa, etc. Este é um conceito que ganha
particularidades socioculturais daqueles que se veem nele envolvidos. Para nós, membros
indivíduo?
políticas, seguiu-se uma integração econômica jamais vista – e por séculos irrepetida – e
também uma integração cultural, iniciada pelo helenismo e que, atravessando o período
romano, será perpetuada ainda pelo Cristianismo. Esta integração cultural, é sabido,
Greco-Romana”.
15
O caráter dual dessa civilização, expresso até mesmo pelo adjetivo composto que a
culturais, a que se pode acrescentar as de outros povos, como egípcios, judeus, celtas,
germânicos, etc.
teriam havido questionamentos semelhantes aos que ora nos fazemos? Teriam os antigos
meditado sobre os problemas acarretados pela unificação movida pelos impérios supra-
no século III a.C., sem estar secundado por uma florescência no âmbito cultural, teriam
sido efetivadas construções discursivas que visassem definir a identidade romana – para
além da “mera” superioridade militar - perante a dos diversos povos que perfaziam o tecido
social dos territórios que conquistara? Se isto se deu, como se deu? Quem teria realizado
esse processo, e, mais importante, quais as ideias que foram, então e por conseguinte,
veiculadas? Enfim, o que, ao longo de todo esse processo, acabaria por definir um romano
como tal? Sob que estatutos viria a constituir-se uma identidade cultural? E, por último,
esta identidade ter-se-ia modificado ao longo da própria história romana e/ou graças ao
flexibilizar-se ainda mais o recorte de nosso corpus; por isso, mesmo partindo das análises
16
realizadas por aqueles autores já mencionados acima, é-nos necessário abrir mão não só da
que nos possibilitassem responder às questões acima expostas nos obrigaram a privilegiar,
mais que a forma, o discurso em si, e, mais que o discurso, as intenções que nele estão
embutidas.
que, seja qual for a roupagem, suas concepções de mundo, de sociedade e de indivíduo
tenham sido expostas de modo mais inequívoco e em que suas reflexões a respeito tenham
sido construídas. Tal tarefa, embora creiamo-la necessária até mesmo para, como dito
que congrega, demasiado hercúlea para ser realizada individualmente. Optou-se, portanto,
por sua divisão em tópicos de mais fácil execução, razão pela qual decidimos reduzir o
discussões. Por isso, principiamos nosso estudo dedicando-nos àqueles autores que, através
cristalização destes paradigmas, dever-se-á antes atentar para o fato de que estes são em
Dessa forma, mesmo resultando de um processo que dura boa parte do período
republicano, ficou-nos patente que os paradigmas da romanidade foram mais bem expostos
atravessava sua crise final, aqueles instantes históricos que antecederam à instauração do
romana.
Assim, será na produção escritural destes dois momentos que buscaremos tanto os
paradigmas quanto os discursos nos quais se configuram a interpretação que lhes é dada.
saberes produzidos pelos mais destacados pensadores romanos: Marco Túlio Cícero e
A seleção de tais autores se dá por razões diversas: Cícero e Sêneca são, dentre os
escritores de língua latina, aqueles cujo conjunto de obra encontra-se melhor preservado.
copiosa produção, temos percebido haver, ainda que em caráter subjacente, e esta constitui
que se reflita ou se proponha uma identidade romana, vinculada, ou não, a qualquer escola
discursos identitários formulados por estes dois autores serão, também e igualmente,
respostas a questões relativas a seu próprio tempo. Desse modo, o modo pelo qual Cícero
República. Com Sêneca não será muito diferente: visará definir o homem romano segundo
a realidade inspirada pelo governo de Nero. A posição assumida por estes pensadores a
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respeito de seu próprio tempo nos permite questionar também se, em seu discurso
Visando explorar a presença dos discursos identitários nas obras desses dois
autores, recorreu-se ao estudo sistemático de todos os textos de sua autoria a que pudemos
ter acesso. No caso específico de Cícero, descartamos os discursos jurídicos do autor, não
porque ali não estivessem presentes subsídios para nossas argumentações, mas porque
esses mesmos subsídios seriam encontrados alhures, no conjunto de suas obras ditas
produzidos entre os anos de 45 e 43, ano da morte do autor, em plena crise fatal da
República.
didatismo sua concepção do ser humano e estabelece outra visão do que comporia o
homem romano.
ao de Sêneca, analisamos a praetexta Octauia, obra que, tendo sido a única de seu gênero
que nos chegou, suscita ainda uma série de desdobramentos das visões identitárias
Octauia fez com que nos decidíssemos a “cometer” essa tradução, que se encontra como
anexo a este trabalho, juntamente com o texto latino original, tal como publicado pela Les
Belles Lettres.
Mas se cremos ter deixado claras as linhas gerais de nossa pesquisa, falta-nos
esclarecer as razões pelas quais optamos por um estudo de um tema “transversal” como o
discussão acerca da identidade romana é tarefa que exige, inicialmente, a explicação das
razões de ser efetuada. Tal explicação, a ser feita em seguida, demonstrará – assim
pretendemos – que a busca dessa identidade tem repercussão direta na discussão a respeito
da nossa própria, uma vez que, inserido o Brasil no contexto do que se condicionou chamar
América Latina, qualquer busca a respeito da romanidade será, de certo modo, uma busca
Ademais, executar essa busca tomando como objeto de análise textos de Cícero e
Um fato logo chamará a atenção de quem quer que inicie estudos nas letras da
Antiguidade: o de que estas não podem ser estudadas através dos mesmos procedimentos
uma compartimentalização que divide a história literária em diversas fases - mas que
1
Sabemos da ausência de qualquer edição no Brasil; ademais, tendo consultado o Prof. Dr. Sebastião
Tavares de Pinho, da Universidade de Coimbra, este nos confirmou ter sido a última edição do texto lançada
em Portugal aquela editada em 1972, comportando uma tradução realizada por José António Segurado e
Campos, alertando-nos ainda sobre ser tal obra “absolutamente esgotada”.
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também a engloba -, contendo, cada uma destas, características particulares, das quais
determinados autores seriam fundadores e/ou representantes mais bem apurados e cujas
obras formar-lhe-iam o cânone, os neófitos no estudo das letras clássicas cedo se deparam
chama “estilos de época”, pois o processo escritural não era compreendido como passível
de alterações tão abruptas como aquelas que hoje detectamos como produto, por exemplo,
ou qual poeta ou dramaturgo, mesmo quando de sua lavra, não poderiam ser
prática não só costumeira mas valorizada entre autores distantes uns dos outros até mesmo
comparação com a gastronomia, podemos afirmar que o cordon bleu iria não para o que
inventasse uma nova receita, mas para aquele que melhor reproduzisse dado prato.
pela temática, pela escrita e pela retórica – autores, estilos, épocas, o mosaico de textos da
Antiguidade logo nos parece demasiado monocromático. As diferenças que entre eles há
manifestam-se de modo por demais sutil para uma percepção direta e imediata, cumprirá
então esmiuçar os detalhes de cada texto, para perceber a arquitetura e a trama que em cada
Tampouco poderá o neófito prender-se à biografia dos autores antigos, pois nada
dista mais destas obras que seus próprios autores. Não se pode jamais esperar aquela
identificação entre biografia, valores e retórica que tanto delicia os que se detêm no
Romantismo ou nas vanguardas literárias: nas letras clássicas autor e obra(s) são seres não
só distintos mas também distantes, um fato de que Petrônio e seu Satyricon são suficiente
exemplo.
ser a literatura grega “hierarquicamente” superior à latina: esta seria, enfim, um conjunto
de simples repetições dos processos desenvolvidos por aquela, com os autores latinos
servindo-se reiteradamente dos modelos gregos para criar obras que quase nunca poderiam
igualar-se ao original2. Contudo, devemos, nós também, prevenir nosso olhar e nossa
repetida por seus sucessores – da originalidade como quesito avaliativo da primeira ordem.
alguém a dedicar-se ao estudo das letras clássicas, por serem ainda distantes do paladar a
que nos acostumamos, resta então o trabalho de, a partir de um conhecimento consistente
literaturas do Ocidente – tanto pelas temáticas que insere, quanto pelos procedimentos que
2
Muito embora o trato dado, por mãos latinas, à temática de inspiração grega poderá conceder a esta última
abordagens antes impensadas, chegando mesmo a significar um salto qualitativo, bastando para isso conferir
o trabalho de reconstrução das obras de Homero efetuado por Vergílio em sua Eneida.
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logicamente aqueles elementos cuja presença fosse detectável em apenas uma destas será
ainda definir com exatidão a que nos referimos ao usar o termo “Ocidente”. Obviamente,
quando se pensa este termo, damo-nos conta de que duas definições são possíveis: segundo
do Ocidente engendra uma dicotomia no mínimo insólita, pois retira do quadro a única
porção que de fato se define usando um epíteto que é igualmente reivindicação direta desta
Antiga que nos capacitem a verificar as razões – de âmbito cultural, mais profundas que as
esta porção da América, o que seria contribuição decisiva para os estudos neolatinos; e, no
que mais nos diz respeito, analisar-se a permanência dos valores culturais latinos mesmo
em tamanha distância espaço-temporal como a que há entre esses dois universos culturais.
(enormemente) diluída pelas transformações realizadas na cultura latina, seja pelos demais
povos que se fizeram presentes na Península Ibérica após 476, seja pelas culturas
ameríndias aqui encontradas após 1492, seja ainda pela decisiva contribuição africana às
culturas da América.
seria indicativo de que, mais do que uma referência de civilização modelar, a cultura latina
americano.
Assim sendo, para nós, latino-americanos que somos, nenhum estudo sobre a nossa
própria identidade cultural pode prescindir daquilo que mais de perto, como classicistas,
nos diz respeito: a identidade cultural que herdamos dos romanos. Nosso estudo, por
conseguinte, não poderia principiar de fato senão pelo estudo da identidade cultural
romana. Estudo este que não poderá deixar de lado a própria história romana, que, segundo
comprender su historia, mientras que la historia griega se debe estudiar con el propósito
identidade romana em sua fase mais antiga, quando se estabelecem aquelas bases presentes
em toda a trajetória de Roma, até o momento da primeira crise identitária, coincidente com
o apogeu da República.
3
“deve-se estudar a literatura romana principalmente com o propósito de compreender sua história, enquanto
a história grega deve ser estudada com o propósito de compreender a literatura grega.”
25
um modelo identitário ímpar, cujo êxito foi comprovado pela própria ascensão de seu
poder. Este modelo não se distingue apenas pelas peculiaridades que apresenta: é
sobretudo no que seu modo de construção - distante daquele praticado por outras
civilizações de seu tempo - tem de sui generis que o modelo identitário romano deve ser
estudado. No capítulo que ora se inicia, abordaremos tanto o conteúdo quanto a construção
desse modelo, assim como as crises que, em dado momento, levarão à necessidade de sua
reconstrução.
Se fosse possível reduzir toda uma cultura a uma única expressão, limites seria o
termo no qual poderíamos resumir a cultura romana, já que a história e os mitos romanos
e decisiva.
26
território, evidenciando que, antes mesmo da existência de uma cidade de fato, existiria
uma cidade de direito, com limites espaciais já definidos, e cuja transposição causariam a
morte de Remo.
Outro fator importante para definir-se o homem romano é sua origem “mestiça”, já
adiciendae multitudinis causa uetere consilio condentium urbes, qui obscuram atque
humilem conciendo ad se multitudinem natam e terra sibi prolem ementiebantur,
locum qui nunc saeptus escendentibus inter duos lucos est Asylum aperit. Eo ex
finitimus populis turba omnis, sine discrimine liber an seruus esset, auida nouarum
rerum perfugit; idque primum ad coeptam magnitudinem roboris fuit. (TITO LÍVIO;
Ab Vrbe Condita, VIII, 5)4
Ainda que Tito Lívio – como visto acima – declare ser “um velho hábito dos
um que desejasse partilhar do destino da cidade não encontra paralelo nos povos do mundo
antigo: enquanto os egípcios jamais se expandiram para além das margens do Nilo e os
hebreus simplesmente não concebiam estender sua “cidadania”, restrita desde sempre
apenas a quem partilhasse de sua origem étnica e religiosa; e enquanto fenícios e gregos
fundavam suas novas colônias com os excedentes populacionais de suas prñprias “cidades-
mães”; Roma é fundada sobre uma cidadania que poderia ser adquirida, não se
numa homogeneidade jurídica: será romano, enfim, quem dispuser do mesmo estatuto
jurídico dos nascidos em Roma. Estatutos estes que foram por Rômulo estabelecidos,
segundo o mito e corroborado por Tito Lívio, no mesmo ritual que consagrou a cidade:
4
“em razão de um velho hábito dos que fundam cidades, que, para aumentar-lhes a população, ao fundá-las
chamavam a si a prole obscura e humilde nascida da terra, criou o Asilo, um lugar que está agora entre dois
bosques, vedado aos que aí sobem. Para ali toda uma turba de povos vizinhos, sem discriminar-se se livre ou
escravo fosse, acorreu ávida de coisas novas, e essa foi a primeira mostra da força da cidade.”
27
populi unius corpus nulla re praeterquam legibus poterat, iura dedit.” (TITO LÍVIO; Ab
seu sucessor, além de estabelecer novas leis e costumes, organizar o espaço temporal. A
“qui bellum nullum quidem gessit, sed non minus ciuitati, quam Romulus, profuit;
nam et leges Romanis moresque constituit, qui consuetudine praeliorum iam latrones
ac semibarbari putabantur. Annum descripsit in duodecim menses, prius sine aliqua
computatione confusum, et infinita Romae sacra ac templa constituit.” (EUTRÓPIO,
Breu. Hist. Rom., III,1)6
Famoso por ter estabelecido um calendário de doze meses – o de Rômulo possuía apenas
dez – mais próximo, portanto, dos limites do ano astronômico, Numa Pompílio foi
conhecido também pelos templos e cultos que estabeleceu, e, segundo Tito Lívio 7, o
primeiro destes templos teria sido o de Jano, deus bifronte que preside, entre outros
assuntos, aos limites em geral. Mais tarde, o próprio Numa Pompílio construirá em Roma
dois outros templos: um dedicado a Júpiter Término, deus também dos limites, e outro à
Mas Numa também “deu leis e costumes ao povo”, não temos nñs motivos para
duvidar de que, tendo, segundo o mito, sido o seu um reinado de paz e ordem, em que são
assentadas as bases da romanidade, tenha sido nesse momento aquele em que o mos
maiorum começa a ganhar sua noção orgânica, tornando-se , portanto, aquele conjunto de
valores e práticas consuetudinárias que atravessarão toda a história romana, o que faz
necessário que, antes de prosseguir, explicitemos quais os valores que estariam contidos no
5
“Tendo tratado as coisas divinas com o ritual e convocado e reunido uma multidão que não poderia unir-se
na forma de um único povo senão pelas leis, estabeleceu-lhes os direitos.”
6
“que não travou guerra alguma, mas não serviu menos à cidade do que Rômulo; pois constituiu as leis e os
costumes para os romanos, que então eram tidos como ladrões e semibárbaros devido a seus hábitos
guerreiros. Dividiu o ano, que antes era confuso, sem qualquer contagem, em doze meses, e construiu em
Roma infinitos templos e lugares sagrados.”
7
In: Ab Vrbe Condita, XIX. (2005: 66)
28
conceito de mos maiorum, pois, se Rômulo e Numa teriam, como rezam as lendas,
delimitado, respectivamente, o espaço e o tempo físicos sob os quais a cidade era regida, o
Pereira apresenta um detalhado estudo sobre as ideias morais dos romanos. Estas ideias
formam, segundo a autora, “a parte mais significativa do seu legado cultural, a ponto de se
1989:321).
realçado, até porque não fica restrito ao mundo das regras de convivência da vida familiar:
as ideias morais desenvolvidas pelos romanos espraiavam-se para cada meandro da vida
modo, no tocante a esse conjunto, duas conclusões podem ser alcançadas: a) fica claro que
o todo é maior que a soma das partes, e b) o povo romano era sistematicamente regulado
Havia, contudo, uma hierarquia entre essas ideias e os valores que preconizavam:
8
Essa hierarquia, convém notar, é defendida por Pierre Grimal em seu texto A Civilização Romana (1988).
Na obra de Mª Helena da Rocha Pereira não existe menção ao fato; porém, a interrelação entre os diversos
29
Fides está, segundo Rocha Pereira, “no centro da ordem política, social e jurídica
de Roma” (1989:322). Verdade que se comprova pelo fato de que, naquele seu templo
construído a mando de Numa, ficava a sede dos arquivos romanos e era sede - inicialmente
Fides ia além do antropomórfico: Fides é, também, “um juramento que compromete ambas
definição de Fides, mais detalhada, pode também ser encontrada em Pierre Grimal:
pois os compromissos que apadrinhava podiam também abarcar os deuses, que também a
ela se submetiam: ao cumprimento dos ritos tradicionais por parte dos homens, caberia aos
Nítido está, portanto, que o conceito de Fides esconde outra característica, bem
também um agente regulador da estabilidade, pois uma vez que os compromissos - dos
homens entre si, e também com as divindades - estão fixados, conjuram-se para longe o
desconfiança.
conceitos que a pesquisadora lusa apresenta é de tal monta, que acaba por confirmar a preponderância desses
conceitos frente aos demais.
30
Outro conceito de suma importância para os romanos seria o de Pietas, que Grimal
explicará como
...a atitude que consistia em observar escrupulosamente não só os ritos mas as relações
existentes entre os seres no interior do universo: a pietas começa por ser uma espécie
de justiça do imaterial que mantém as coisas espirituais no seu lugar, ou que as remete
para o seu lugar sempre que um acidente revela alguma perturbação. (GRIMAL,
1988:70)
Logo, se Fides consistia num valor a ser preservado na e pela sociedade, Pietas
complementaridade entre esses dois conceitos, vê-se porém que Pietas se prolonga por um
terreno em que Fides não transita, pois atua também como elo daquelas relações sociais
de gens ou mesmo de tribo. Rocha Pereira, na obra já citada, definirá Pietas, portanto,
como
...um sentimento de obrigação para com aqueles a quem o homem está ligado
por natureza. Quer dizer, por conseguinte, que liga entre si os membros da
comunidade familiar, unidos sob a égide da patria potestas, e projetada no pretérito
pelo culto dos antepassados. Está, pois, firmada nos sentimentos religiosos dos
romanos, que se sentiam protegidos pelos deuses Manes, Lares e Penates, e que
pensavam que o dono da casa tinha o seu genius tutelar e a esposa era protegida por
Juno.
Estabelecendo assim um vínculo afetivo entre os membros de uma família, a
pietas alargava-se à divindade, e acaba por compreender também as suas relações com
o Estado. (PEREIRA, 1989: 328-30).
Atuando então como o “cimento” das relações entre determinada fração social, a Pietas
será também a base das relações hierárquicas da sociedade romana como um todo, pois,
segundo Grimal, existirá “uma pietas para com os deuses, mas também para com os
31
membros dos diversos grupos a que se pertence, para com a própria cidade e, para além
É necessário reparar que os dois mais antigos conceitos basilares da moral romana
são valores que delimitam o espaço das relações humanas, e regulam também o modus
operandi dessas mesmas relações, não sendo de modo algum conceitos que valorizem ou
social como um todo. A moral romana existe para garantir a sobrevivência da cidade, da
regulava aquelas estabelecidas pela natureza, Virtus determinava o que seria a conduta
esperável dos homens daquela sociedade9. É claro, a Virtus tornava o indivíduo consciente
grandemente ao longo dos séculos, Virtus será, dentre os conceitos até aqui arrolados, o
9
E o termo “homens” deve ser entendido no seu sentido restrito, já que o termo forma-se de uir (homem),
acrescido do sufixo tut(s), indicativo de estado. Nesse aspecto, uma boa tradução para o termo não seria
virtude, e sim hombridade.
32
relacionamento dos homens entre si; Virtus, que de início abarcava também uma série de
outros conceitos dele derivados, sofreria, ao longo do tempo, ora com o fato de que alguns
afirmar que
Esta moral romana possui uma orientação nítida: o seu fim é a subordinação da pessoa
à cidade e ainda há pouco tempo o seu ideal continuava a ser o mesmo, a despeito de
todas as transformações econômicas e sociais. Quando um romano, ainda no tempo do
Império, fala de uirtus (...), refere-se menos à conformidade com valores abstratos do
que à afirmação em ato, voluntária, da qualidade viril por excelência, ao domínio de
si. (GRIMAL, 1988:66)
indivíduo, estas, segundo Rocha Pereira, seriam: fides, sapientia, modestia, continentia,
aequitas e honos – conceitos que não sofreram modificações expressivas até os dias de
hoje. Tais conceitos seriam, ainda segundo Rocha Pereira, expressivos em uma sociedade
agrária e oligárquica, tal como era a Roma republicana, contudo, à medida que a expansão
relação a esses três, devendo ser considerada sua expressão frente a uma situação concreta.
33
E quais seriam esses demais valores? No estudo de Rocha Pereira, que até aqui
temos utilizado como base, estão listados os seguintes conceitos: gloria, dignitas, grauitas,
auctoritas, clementia, concordia, libertas, otium cum dignitate, res publica, sapientia,
fundamentais, logo, de segunda grandeza, ou não teriam existido durante toda a história
Um primeiro grupo de conceitos seria aquele formado pelo trinômio honor, dignitas
e gloria, assim dispostos por expressarem uma gradação: Honor é a qualidade do uir
honestus, cujo mérito é reconhecido publicamente e tem, por isso, uma função pedagógica
na cidade, pois, para um cidadão, ser considerado honestus tornava-o exemplo de distinção
escala dos cargos públicos passíveis de serem exercidos por aqueles que preenchessem os
diversos requisitos para tal: cidadania, idade, renda, classe social de origem, etc.
Dignitas, conceito muito próximo ao de honor; atua num nível pessoal. Ou seja,
enquanto honor é uma qualidade pessoal reconhecida pela coletividade, dignitas deriva da
posição social – que pode vir de berço - e/ou do prestígio alcançado por quem detenha
honor.
10
Fique claro que nossa apresentação pretende-se sumaríssima. Esses conceitos – e a análise de seu papel na
cultura romana – demandam estudos muito mais aprofundados que o aqui podemos realizar.
34
Por fim, temos o conceito de gloria, que, segundo Rocha Pereira, consiste em “ser
considerado bom pelos homens de bem” (1988:334). Ademais, segundo a mesma autora, a
gloria
resulta de três condições: ser amado pela multidão; ter a sua confiança (fides); ser
admirado e digno de honrarias (honor). Logo, gloria combina com fides, (...), e
sobretudo com honor, com a qual acaba por formar um binômio muitas vezes
invocado (honor et gloria). (PEREIRA, 1988:335)
cidade, e tivesse chegado ao nível de honor, seria permitido ter o estatuto de gloriosus.
círculo social direto, e a dignitas resulta das ações do uir honestus; a gloria nasce do
reconhecimento, por todos os cidadãos, dos feitos ou do valor do indivíduo. Será, portanto,
uma qualidade inerente à vida republicana, pois somente onde houvesse ampla
possibilidade de debate poder-se-ia discutir sobre quem mereceria ser chamado uir
magnus.
Tendo-a como condição sine qua non para as demais, podemos considerar fides
como ponto em torno do qual gloria gravita. Mas tal qualidade seria, em Cícero, não mais
considerada como atrelada à fides, mas a uirtus, fato que rompe o trinômio acima
que originalmente está relacionado à ideia de “peso” - pode ser sintetizado como o “ter
11
Cícero chegaria a escrever uma obra intitulada De Gloria, hoje perdida.
35
grauitas perante a cidade, e, a partir daí, exercer o poder (potestas) que lhe está confiado.
Auctoritas é, por conseguinte, uma qualidade moral aplicada à vida pública. Trata-se ainda
de um conceito bastante antigo entre os romanos, já que é mencionado na Lei das XII
Tábuas.
Estes dois conceitos, segundo Cícero, não teriam equivalentes na cultura grega,
da vida pública, ambos seriam transmutados: grauitas passa a ser simplicitas; enquanto
advindas do regime imperial: se antes a grauitas era necessária para obter-se auctoritas e,
daí, exercer sua potestas, com o novo regime, o mandatário poderá dispensar a grauitas –
como Calígula e Nero – e, mesmo sem auctoritas, exercer não a potestas, mas a potentia
pura e simples; enquanto, para os demais, restaria uma grauitas decaída, esvaziada de seu
seguir, clementia e concordia, serão, novamente segundo Rocha Pereira, tão fortemente
modificados por valores congêneres de origem grega, que, por suas características
Ainda que o termo clementia já existisse na cultura romana, não se percebe, até a
agonia da República, seu uso como ação política. Se, até aquele momento, os romanos
12
A própria substituição de um substantivo concreto (potestas) por um abstrato (potentia), indica também
que a ideia antes expressa, definida e delimitada pela res publica, agora não tem mais os contornos nítidos,
sendo antes um valor em si próprio.
36
no entanto, à vontade do governante - de quem passa a ser uma qualidade, como defenderá
Desse modo, se antes a clementia era um conceito aplicável na vida pessoal e não
na pública; nessa será inserido durante o Império, na qual ocupará um lugar central, ainda
que seu uso seja considerado prerrogativa do imperador; pois é sua forma de retribuição à
pietas que se lhe deve, já que sua figura tem caráter divino.
Concordia será outro conceito adquirido dos gregos. Termo que traduz o conceito
grego de “homónoia”, definido por Rocha Pereira como “a harmonia no modo de pensar e
modo, a Fides seria a mantenedora da Concordia, e mesmo que esta também tenha sido
Cícero em suas obras a partir de De Re Publica, como meio de conseguir a unidade entre
labor, termo que designava a capacidade do homem em realizar as tarefas que provessem o
de trabalho realizado, nota-se, na trajetória cultural romana, que o conceito de labor mal
disfarça um juízo de valor sobre o trabalho em si: quanto mais próximo da vida campestre
a profissão do indivíduo, tanto mais correto seria seu caráter. Isso se percebe, ao longo da
história, em obras dos mais diversos matizes: desde o De Re Rustica de Catão até as
37
também soldado.
Ademais dos conceitos primários – fides, pietas e uirtus – que delimitam o espaço
dos valores romanos e secundários - honor, dignitas, gloria, grauitas, auctoritas, clementia
prendem aos secundários, aos quais remetem. Este grupo, mais restrito, seria composto por
Libertas era a condição desfrutada pelo homem em sua condição de cidadão, que
não só lhe permitia exercer a vida pública mas também exercer atividades econômicas. No
Desse modo, libertas é tanto um conceito abstrato como uma condição concreta de
que o cidadão romano desfruta. Vale recordar também que, historicamente, os romanos
O outro conceito terciário é o de otium cum dignitate. Como o nome já indica, este
consiste, na República, na tranquilidade advinda por ter o cidadão, já, ocupado todas as
atividades que dele a cidade exigisse, tendo alcançado a dignitas. Neste caso, era-lhe
entanto, defenderá que o otium cum dignitate não deve ser sinônimo de inatividade, mas de
38
dedicar-se.
Por último, temos um conceito que, sem prender-se a qualquer dos grupos
anteriores, pode ser encarado tanto como uma prática quanto como um “supraconceito”
maiorum era a tradição que fundamentava o modelo da vida em comum do povo romano.
Sua observância era considerada um verdadeiro tabu para a população da Urbe, já que,
antepassados baseados nos conceitos que ora expusemos, sua prática não faria mais que
romanidade, desse modo, a expressão mos maiorum não teria podido atuar, no inconsciente
coletivo do povo romano, como o termo evocativo de todos e cada um daqueles conceitos
já citados? Cremos que a resposta seja afirmativa, já que Syme (1971) definirá este
conceito dizendo que “não é um cñdigo de lei constitucional, mas um conceito vago e
Cremos que o termo podia referir-se à explicação de uma dada prática ou conduta –
esta, evidentemente, baseada num dos conceitos acima – e que, por essa razão, e também
por ser, como Syme afirma, “vago e emocional”, este conceito terá sido usado também, ao
longo da história romana, como sinônimo ou como coletivo daqueles já aqui expostos.
Outro fator que corrobora nossa crença é o que, ao contrário dos demais conceitos,
coletivo dos valores e práticas consagrados pela tradição, embasados pelos conceitos
39
expostos. Em suma, seria, portanto, o coletivo desses mesmos conceitos, razão pela qual,
ao longo deste trabalho, preferimos utilizar o termo mos maiorum para referirmo-nos ao
fundadores de Roma, perceber que, neles, já se via com nitidez a preocupação romana em
ter, no ato de delimitar, o estabelecimento de uma condição sine qua non para sua própria
existência: o que é bem apropriado para uma cultura de agricultores-soldados. Para esses, é
necessário delimitar o espaço das plantações, a posse de cada terreno, o tempo para a
colheita, o tempo destinado às práticas militares e mesmo para a guerra, cada atividade
exercida, enfim, pelos romanos exigia uma delimitação clara e inequívoca do espaço e do
que também limitam, assim como ordenam, a ação dos homens nesse espaço e tempo. Isso
13
Haverá ainda um quarto grupo de conceitos Ŕ sapientia e humanitas - que só tardiamente surgiram na
história de Roma, não havendo qualquer menção a eles anterior ao processo de helenização. Sendo conceitos
que se desenvolvem plenamente na obra de Cícero, serão examinados no capítulo a ele dedicado.
40
O que poderia, então, ser absorvido e incorporado por Roma? Tudo aquilo que
pudesse ser ordenado segundo o padrão romano, um padrão que será, sobretudo, jurídico.
Podemos, então, fazer coro a Umberto Eco, para quem, em Roma “Unidade e identidade
são um produto jurídico, Roma é um sistema de leis que agem no interior de certas
fronteiras, a cidadania romana é um privilégio para quem assume certos encargos e tira
A princípio , portanto, Roma é o intento de dar limites e ordem à realidade, fato que
estará sempre presente ao longo da história, afinal, muito da expansão romana dos séculos
seguintes terá como resultado final a ordenação, segundo o modelo romano, daquilo que
estiver dentro dos limites do poder de Roma. Roma ordena, e contida na ambivalência
desse verbo está, além de sua disposição para impor ordem ao mundo, sua igual
compreende para disciplinar. Ora, traçar as linhas-mestras dessa ordenação era, mesmo que
os romanos de então não tivessem tido consciência do fato, um processo dialético cuja
do mos maiorum. Ou seja, o direito romano surge como práxis filosófica, mesmo sem que
houvesse uma escola filosófica stricto sensu que lhe fornecesse um lastro teórico.
termo que não deve ser compreendido como aplicado – apenas - às características raciais,
mas às culturais do povo romano: formado inicialmente por gente oriunda das mais
diversas regiões da Itália central, a convivência entre povos distintos tornou habitual o
Cria-se então uma segunda dinâmica, dessa vez cíclica, à medida que Roma se
expande pelo território italiano: uma nova expansão traça novos e mais amplos limites -
que devem ser ordenados -, esses limites incorporam ao orbe romano novas populações -
que devem ser romanizadas - e características culturais - que devem ser selecionadas –
para adaptar elementos novos, como por exemplo, os substratos linguísticos vizinhos,
sejam eles lígures, gauleses, etruscos, osco-úmbrios, sabinos, volscos, etc. Prova cabal
segundo Antonio Houaiss (1989), registra haver no latim clássico cerca de mil e duzentos
Se a identidade romana, e mais tarde a latina, é, como vimos, elástica, é por outro
lado bastante rígida em seu pragmatismo: dentro de uma lógica cartesiana que vê no
único modus operandi para a legítima incorporação ordenada de novos elementos à cidade.
Mesmo os deuses estrangeiros não estavam livres desse imperativo: para que pudessem ser
cultuados na Vrbs, deviam ser legalmente introduzidos pelo pontifex no panteão romano.
Essa necessidade de ordem atinge cada meandro da cultura latina, não sendo devaneio
pensar que a preferência da língua latina pela formação de períodos subordinados, a rigidez
A língua, aliás, seria um dos mais eficientes meios de romanização. Porta pela qual
aprendizado foi prática recorrente entre os povos submetidos, e isso não deixou nunca de
alcançando, entre a urbe e seu orbe, uma unidade que, segundo Georges Duby:
“não se fundou apenas sobre as colônias dispersas, sobre uma estrela de calçadas todas
elas conducentes ao centro, sobre uma constelação de aglomerados urbanos de
estrutura semelhante, sobre o direito. Fundou-se sobre uma língua, a dos mandamentos
militares, a dos decretos de justiça, a das liturgias do poder: a língua do velho país
latino.” (DUBY; 1989: 12)
mundo: Roma é o centro desse universo, ponto de expansão de um poder constituído sobre
riqueza material e cultural dos povos conquistados. Porém, não há aqui lugar para um
pensamento divergente, pois, desde o fim da monarquia, Roma é, sob a capa de uma
República, uma oligarquia agro-mercantil com forte poder militar. Esta oligarquia exerce,
de maneira centralizadora e censória, um poder que não admite questionamentos sobre sua
Mas ainda assim haverá questionamentos, e esses viriam da própria Roma, do povo
romano que exigia maior retorno pelas contribuições que fizera à expansão. Não se tratava
apenas de maior distribuição de riquezas, mas sim de mais ampla participação política e de
da urbe logo farão com que não bastem mais o mos maiorum.
Assim, a codificação das leis nas XII Tábuas não deve ser vista apenas como
reflexo das crises sociais em Roma mas também uma mostra do espírito universalizante da
identidade romana: se essa é definida pelo estatuto jurídico, este estatuto deveria ser de
pleno conhecimento de todos aqueles por ele regidos, assim como o intento de torná-las,
43
por sua (a)fixação no Fórum, perenes. Inseridas, integradas e imutáveis dentro daqueles
trajetória identitária romana: não apenas o espaço e o tempo, mas também a sociedade é
Assim, ao longo dos cerca de trezentos anos desde a fundação de Roma até a
publicação das XII Tábuas, temos a formação de um primeiro padrão identitário romano,
gestado em paralelo à consolidação da urbe e sua expansão pela Itália. Esse padrão
ordenação do mundo segundo Roma terá seguimento com as três Guerras Púnicas e com a
modi operandi empregados na absorção dos elementos culturais dos conquistados serão
prova.
Ainda que os dois processos, o das Guerras Púnicas e o da conquista dos territórios
helênicos tenham se dado de modo praticamente concomitante, uma vez que esses
econômica do Mediterrâneo ocidental, uma vez que, tendo as cidades fenícias submergido
diante do poder dos impérios surgidos pós-Alexandre, Cartago as pudera substituir como
tomada da Itália.
Primeira Guerra Púnica (264-241 a.C), assume o controle total da Sicília, incluindo aí
algumas cidades gregas. Inicia-se a expansão de Roma para além do território peninsular
da Itália. Apesar do violento embate e da longa guerra, como a Sicília não havia sentido a
presença de um superestrato cultural cartaginês, não se pode dizer que tenha havido algo a
ser incorporado diretamente pelos romanos – o que o foi, deu-se por via indireta, através da
todo o leste da Espanha – iniciando sua presença na Península Ibérica - e grande parte do
Terceira (149-146 a.C.), os romanos destroem Cartago a tal ponto que a cidade teve de ser
refundada, pois a antiga ficara tão destruída que foi preferível riscá-la do mapa.
A vitória nas Guerras Púnicas levariam Roma a dois novos desafios: testar a
validade daquela segunda dinâmica de expansão a que nos referimos, desta vez em
estrutura econômica e social por causa da sucessão de guerras, as questões sociais seriam,
social adquirido desde as XII Tábuas. O primeiro desafio seria vencido com o tempo: ao
número de escritores latinos que daí advirão será prova disso. Quanto ao segundo,
A questão que aqui devemos nos fazer é: por que a conquista de Cartago, que deu a
pouca repercussão no plano cultural? É óbvio que Roma incorporou todos os avanços na
tecnologia naval cartaginesa, além de tê-la substituído como potência política; mas a
cultural das populações recém-conquistadas: se Cartago era herdeira das rotas comerciais
fenícias, não se pode afirmar que o tenha sido também da cultura fenícia, que, aliás, já há
tempos estava em plena decadência, sob o império dos selêucidas. Seu nível cultural,
podemos supor, não devia diferir muito do da própria Roma naquele período, logo, não
Tarento (272 a.C.) e, principalmente, Siracusa (212 a.C.) significarão, para Roma, o
contato com todo o universo cultural da Magna Grécia. E esse contato terá inúmeras
requintada que sua própria, requinte esse que logo contagia a elite romana e adentra seu
cotidiano com uma força impensável. Assiste-se, no plano cultural, ao pleno impacto da
forte influência da cultura helenística no modus uiuendi das elites romanas, que adotam
hábitos de consumo que modificam profundamente seu modo de vida. A austeridade que
até então marcara a elite romana é substituída pelo luxo, e sua ostentação estabelece novos
padrões de consumo e de gosto artístico cujo melhor exemplo é a ascensão de Terêncio aos
palcos: artista voltado para a elite, seu teatro opõe-se diametralmente ao de Plauto, artista
de vertente popular.
Há também todo um grande incremento da vida cultural em Roma uma vez que a
influência das artes gregas tampouco deixa de se fazer sentir, muito embora, convém notar,
essa influência helênica seja repleta de tensões entre os dois povos, pois, segundo Barrow:
46
...las nuevas costumbres se debían a la influencia del pensamiento y del modo de vida
de los griegos: y hay que tener en cuenta que por “griego” debemos entender no la
suprema expresión del génio helénico, tal como se manifiesta en cuatro o cinco de los
grandes autores de los siglos V y IV a.C., sino la cultura que se difundió por todo el
Mediterráneo oriental, cultura cuya fuente principal de inspiración era la gran época
de Atenas. Esta cultura se había apoderado de los aspectos menos importantes porque
era incapaz de alcanzar en su emulación la altura de los momentos cumbres. Había
adulterado el lenguaje, la literatura y el carácter griegos. Podían adquirirse las obras
griegas y muchos las leían; pero los griegos que los romanos empezaban a tratar en su
vida cotidiana ya no eran siempre como los atenienses del siglo V. Aunque los
romanos aprovechaban las capacidades artísticas y profesionales de estos nuevos
griegos, en general los despreciaban por su carácter, y los despreciaban sobre todo
porque no habían sabido ser dignos de su pasada grandeza. (BARROW, 1986:61)14
Colocando-se de lado essa tensão, percebe-se que essa influência grega será responsável
inicial, lançará o pensamento romano a uma nova esfera de abstração até então
inalcançada.
sem razão que Cícero afirmará, nas Disputationes Tusculanae (I,3) : “Doctrina Graecia
nos et omni litterarum genere superabat; in quo erat facile uincere non repugnantes.”15
Tal constatação certamente terá atingido o narcisismo romano: se até então considerara os
outros como bárbaros; agora, diante do passado grego, Roma era colocada nessa posição.
Contudo, os romanos não tardariam a agir com a cultura grega da mesma forma já
praticada com outros povos: era necessário delimitá-la para conhecê-la, conhecê-la para
14
“... os novos costumes deviam-se à influência do pensamento e do modo de vida dos gregos: e deve-se
levar em conta que por “grego” devemos entender não a suprema expressão do gênio helênico, tal como se
manifesta em quatro ou cinco dos grandes autores dos séculos V e IV a.C., mas a cultura que se difundiu por
todo o Mediterrâneo oriental, cultura cuja fonte principal de inspiração era a grande época de Atenas. Essa
cultura havia se apoderado dos aspectos menos importantes porque era incapaz de alcançar em sua emulação
a altura dos momentos máximos. Havia adulterado a linguagem, a literatura e o caráter gregos. Podiam
adquirir as obras gregas e muitos as liam; mas os gregos com quem os romanos começavam a tratar em sua
vida cotidiana já não eram siempre como os atenienses do século V. Ainda que os romanos aproveitassem as
capacidades artísticas e profissionaiss deestes novos gregos, em geral os desprezavam por seu caráter, e os
desprezaavam sobretudo porque não souberam ser dignos de sua grandeza passada. (BARROW, 1986, p.61)
15
“A Grécia nos superava em educação e em todo gênero de letras; pois era fácil vencer os que não
lutavam.” Repare que há, mesmo em Cícero, um certo desdém pela superioridade grega.
47
dela selecionar o que fosse considerado válido, e, afinal, ordená-la segundo seu próprio
apreendido, logo ficou patente que, ao fazê-lo, a própria base da cultura romana poderia ser
modificada.
Outrossim, o novo padrão de consumo das elites romanas faz aumentar a distância
entre o patriciado e uma plebe que, ademais, também se modificava: a população romana
de então já não eram os agricultores-soldados de séculos atrás, mas toda uma massa
formada por novos atores sociais. Por conseguinte, esses novos padrões de gosto e
consumo acirrarão ainda mais a tensão social na Vrbs, uma vez que a ostentação desses
novos hábitos pela elite será mais um ponto de insatisfação das camadas alijadas do poder.
Forma-se uma situação que será muito bem sintetizada por Jean Bayet:
Mas, mais que isso, esses atores novos não são apenas novos atores, mas atores diferentes,
que não partilham dos mesmos valores da elite – seja esta elite helenizada ou
16
“A vida econômica e social, a própria sensibilidade de Roma foram abaladas: o afluxo de riquezas e de
obras de arte encorajou o luxo e a busca pelos prazeres; em contra-partida, o orgulho nacional se agravou.
Sobretudo a unidade moral entre as altas classes cheias de arrogância e uma plebe cada dia mais cosmopolita.
A velha aristocracia se helenizava com gosto e encorajava o purismo; a massa, ao contrário, se guiou pelos
aspectos materiais e problemas do helenismo asiático; entre eles, o Senado defendia, não sem alguma
hipocrisia, o velho ideal romano.”
48
tradicionalista. Junto com a estrutura social decadente, aquele primeiro padrão identitário
romano começa a dar sinais de exaustão, como bem definirá René Pichon (1903)
La destruction de l‟ancien édifice social est commencée au IIIe siècle. Elle s‟accomplit
de diverses causes, intérieures et extérieures. Au dedans, c‟est la lutte des patriciens et
plébéiens, les triomphes successifs de ces derniers; or, les nouveaux venus sont animés
d‟un esprit opposé à celui des aristocrates. Ils sont indifférents aux anciennes
traditions morales, politiques ou religieuses – même hostiles, puisque c‟est au nome de
ces traditions qu‟on les a si longtemps tenus à la porte de la cité. En solidarisant avec
leur propre cause celle des mœurs antiques, les patriciens ont compromis ces mœurs
elles-mêmes. (PICHON; 1903: 31)17
Logo, não é apenas a organização social romana que se vê questionada, é todo o conjunto
de valores sobre os quais essa organização fora construída que se intenta reformar, isso,
La religion formaliste est de moins en moins suivie; elle est remplacée chez les gens
cultivés par le scepticisme, et dans la basse classe par les cultes orientaux, plus
passionés, plus favorables aux effusions du mysticisme individuel. (PICHON; 1903:
31)18
acontecimentos que conduzirão, mais tarde, ao Império. Vale recordar, contudo, que o
padrão identitário continua sendo aquele respaldado pela tradição e defendido pelo Senado;
17
“A destruição do antigo edifício social começou no século III a.C. Ela se consumou por diversas causas,
internas e externas. No início, é a luta entre patrícios e plebeus, os triunfos sucessivos dos últimos; ora, os
recém-chegados são imbuídos de um espírito oposto ao dos aristocratas. São indiferentes às velhas tradições
morais, políticas ou religiosas – são até hostis, pois é em nome destas tradições que foram por muito tempo
mantidos fora da cidade. Unindo sua própria causa à dos costumes ancestrais, os patrícios acabaram por
comprometer estes costumes.”
18
“A religião formal é cada vez menos seguida, substituída entre os pessoas cultas, pelo ceticismo, e nas
classes baixas, pelos cultos orientais, mais passionais e favoráveis às efusões do misticismo individual”.
49
Para tanto, importa reconhecer que todo o processo de expansão militar e política
de aumento do número das legiões necessárias para o controle das regiões conquistadas -
dessas tropas engendra uma rede de intendência que detona o aquecimento do comércio,
poder militar romano - um poder cuja administração demanda cada vez mais funcionários.
mão-de-obra em que o elemento humano necessário para ocupar-se de todas estas novas
funções será, em expressiva maioria, oriundo da ordem equestre. Isso conferirá aos
membros dessa ordem – chamados homines noui - uma mobilidade e um destaque social de
que até então não desfrutaram – na prática, a ordem equestre constituirá uma subordem
social: uma camada média, sustentáculo do poder, que, sem ser contudo aquinhoada com
qualquer fração do mesmo, logo será um elemento a mais a pressionar por mudanças no
que lhe garantam uma participação, no jogo político, proporcional ao papel que passaria a
exercer.
torna-se grande demais para ser bem administrado pela República, e estes novos atores
19
Neste trabalho, utlizamos o termo latino imperium para referirmo-nos às regiões sob poder romano, não à
instituição política, que ainda não se constituíra. Ao referirmo-nos ao regime, utilizaremos o termo português
império.
50
sociais, unidos aos veteranos militares e à plebe urbana, reivindicam mais terras e maior
representatividade.
convulsões sociais vividas pela república romana em seus últimos cento e cinquenta
anos20, cujas consequências e idiossincrasias acabarão por conduzir ao Império. Mas essas
uma vez que a classe dirigente - o patriciado hereditário, de base econômica latifundista e
quadro sociopolítico, embora não abrissem mão de conduzirem, eles mesmos, estas
reformas.
É nesse momento que se destacará a figura de Marco Pórcio Catão (234-149 a.C.),
legítimo representante das correntes mais tradicionalistas do patriciado. Sua ação como
censor eleito em 184 a.C foi marcada por uma tentativa de reconduzir a sociedade romana
buscou depurar o Senado das inovações que considerava nocivas. Catão caracterizou-se
influência grega foi seu alvo preferencial: fez com que os filósofos e retores gregos fossem
Suas ações como censor tiveram êxito, em parte, devido a sua independência dos
20
As exceções seriam as diversas revoltas de escravos ocorridas no período.
51
grega teve um resultado dúbio: de fato, os valores do pensamento grego foram excluídos
da vida pública, contudo, nada podia ser feito quanto à vida privada dos cidadãos. O
próprio Catão foi mostra disso quando, na velhice, dispôs-se a estudar grego. Ao fim,
Catão acabou sendo o mais legítimo representante de uma identidade romana que já não
Não devemos entender com isso que aquela antiga configuração da identidade
romana tenha sido destruída. Os romanos de então, assim como seus ancestrais, tinham
ainda necessidade de delimitar para ordenar: delimitam ainda o espaço e o tempo segundo
sua própria lógica, e ainda ordenam o mundo e sua sociedade segundo seu próprio padrão
jurídico. No entanto, se sua identidade é ainda aquela do passado, não é mais, porém,
apenas aquela, e é da dificuldade em absorver, por si só, as novas variáveis identitárias que
surgem que a sociedade romana – e com ela sua própria identidade - passará por toda uma
série de convulsões.
justamente no recurso à Filosofia, pois sendo uma de suas missões buscar respostas sobre o
ser humano, poderia colaborar com essa empreitada. Assim, teremos um segundo
nascimento da Filosofia em Roma, e essa nova filosofia já não será mais o arcabouço
como o surgimento de uma filosofia romana autônoma da grega, mas pela busca, no
pensamento grego, do necessário para revestir a cultura tradicional romana de uma base
52
transformações sociais, já expostas, e culturais, que este contato com a Grécia provoca. O
maior êxito dessa busca, no período republicano, estará personificado em Cícero: sua
mais que isso, apresenta-se também como intento de solução para um dilema que a
dos novos costumes que esta introduzira, indispondo o espírito romano aos rigores de sua
própria tradição cultural e drenando de sua vida cultural o pleno sentido de valores como
sobre as quais sua própria essência até então se assentava. Os intelectuais romanos de
então percebem que a expansão de seu poder custara-lhes a perda do centro gravitacional
de sua cultura.
governos de Mário, apoiado pelo partido popular, e Sila, este apoiado plenamente pelo
guerras e conquistas sempre produziriam novos veteranos. a pressão por reforma agrária.
urbe, como acaba também por transferir as relações de lealdade da tropa, que migram da
aristocracia para o próprio generalato romano. Isso acaba por garantir uma sobrevida à
aristocracia como classe dominante, mas fica claro que o poder está mudando de mãos,
ainda que de modo bastante lento e sujeito a retrocessos, como se evidencia na concessão,
manter sua posição sem negociar com ou apoiar-se nestes novos grupos, ainda que isto
signifique ao mesmo tempo abrir mão de alguma fração de seu poder de classe dominante.
Julgado dessa forma, talvez a figura de Júlio César se apresentasse como capaz de fazer
essa necessária transição de forma minimamente satisfatória para todos, todavia, seu
instauração do império como instituição política, fato que se concretiza com a ascensão de
Augusto em 27 a.C.
construiu uma identidade romana, que, desafiada pelas transformações na sociedade de que
é produto, busca na Filosofia grega uma nova base de sustentação; nosso próximo capítulo
abordará como, na obra filosófica de Marco Túlio Cícero, ocorre essa simbiose entre
Roma.
54
mas, indo além, transformara-o no seu espaço de reflexão sobre o próprio homem.
maneira pragmática e sucinta, como foi conveniente aos romanos – um substrato de caráter
filosófico.
poder, introduziram novas personagens em seu tecido social, tornando cada vez mais
complexa a trama de suas relações, e como, em decorrência disso, o modelo identitário que
até aquele momento servira para a composição da romanidade não mais serviria para
abarcar o conjunto dessa (nova) sociedade. Esse fato conduziu, no bojo da absorção da
Uma vez que acreditamos que Cícero será o primeiro autor em que se percebem
obras, os momentos em que esses questionamentos, e as propostas que faz, tornam-se mais
evidentes. Convém ressaltar que não realizaremos aqui uma análise completa de qualquer
55
das obras de Cícero, mas tão somente dos pontos onde há uma proposição de caráter
ordem equestre, estuda em Roma e inicia, com brilhantismo, sua carreira como advogado,
conseguindo, entre 81 e 79, diversos êxitos em julgamentos tidos como “causas perdidas”.
No entanto, não estudou apenas Direito: durante seus anos de formação, estudara Filosofia
com o estoico Diódoto e o acadêmico Fílon de Larissa. Isto será um fator decisivo para sua
formação forense e também para sua atuação política: Cícero reunirá em si uma sólida
formação em ambas as áreas e estará, mais que ninguém em seu tempo, apto a, trafegando
Em razão disso e com o acréscimo de seu reconhecido talento como escritor, Cícero
será o primeiro nome romano capacitado a elevar o patamar da discussão sobre os rumos
hereditária - tornando-se, “par l‟ ampleur de sa pensée, la diversité de ses activités, par son
action politique, aussi, qui reste inséparable de son génie d‟orateur et d‟écrivain, il
rassemble en lui et symbolise ce temps qui est le sien et où l‟expression est au service de la
Ásia. Retornando a Roma, retoma suas atividades como advogado e inicia seu cursus
21
“pela amplitude de seu pensamento, pela diversidade de suas atividades, por sua ação política também,
que é inseparável de sua genialidade como orador e escritor, reúne em si e simboliza esse tempo que é o seu e
onde a expressividade está a serviço da urbe.”
56
edil curul em 69, pretor urbano em 66, e cônsul em 63 22 são as que mais se destacam.
Durante todo este tempo, embora não tenha deixado de estudar, as publicações de Cícero
estão restritas aos seus discursos forenses, ficando evidente que Cícero soube usar destes
discursos para estabelecer sua fama e posicionar-se entre os notáveis de seu tempo,
ousando defender causas ou ideias que o colocariam no centro da vida pública, e no papel
de peça-chave para o jogo político de Roma, pois “les discours judiciaires concernent, dans
leur grande majorité, des procès de caractère politique et ce sont eux, et non les quelques
procès privés que nous avons mentionnés, qui ont fait la gloire de Cicéron. La vie
Assim, nesta fase de sua vida, Cícero usa seus talentos para sua própria ascensão
social. 24 E se em seus discursos não deixa de haver uma preocupação com a Filosofia, esta
percebe-se que, mesmo entre estes discursos, está presente a exaltação de um modelo
Sua ascensão como figura pública tende a ser vista como contraditória, uma vez que
Cícero surge como um seguidor, embora moderado, da causa popular e, à medida que
22
É durante seu mandato como cônsul que desbarata a conspiração promovida por Lúcio Sérgio Catilina,
não só prendendo mas executando sumariamente os que o apoiavam.
23
“os discursos jurídicos dizem respeito, em sua grande maioria, a processos de caráter político e são estes, e
não os demais processos privados que mencionávamos, que fizeram a glória de Cícero. A vida pública, em
Roma, assim o exigia.”
24
Outro fator que certamente terá contribuído para sua ascensão social e política foi seu alinhamento político
com Pompeu, para quem defendeu os poderes ilimitados concedidos pela Lex Manilia em 66 a.C.
57
Optimates e Populares, vale ressaltar que não se trata, de fato, de partidos políticos, mas de
Mendes explicita ao declarar que “não existia uma oposição formal entre senadores e
equestres, que desfrutavam do mesmo gênero de vida, tinham os mesmos gostos e ideias
políticas. (MENDES; 1988: 54)”. A disputa era, segundo Grimal, colocada num nível
ainda mais baixo, já que “il n‟y avait guère de débats idéologiques ni de partis bien définis;
ce qui l‟emportait, c‟étaient les rivalités entre les personnes et les clans qui avaient pour
1994:168)”25.
Fato é que Cícero, mesmo direcionando-se à causa conservadora, não obteve, junto
aos optimates, o reconhecimento a que certamente fazia jus. Isso se dá porque, apesar do
fato de que essa adesão teria acelerado sua ascensão social, a leitura de seus textos mostra
que Cícero não foi um mero adulador do patriciado, mas o defensor de um sistema político,
o da república oligárquica, no qual essa classe era dominante. E é por essa razão que
contraiu, ao longo de sua carreira, uma série de inimigos justamente entre os membros do
patriciado; chegando a ser exilado – graças a uma lei proposta por Clódio - por ter
antigos inimigos. Em 52, é novamente afastado do centro das decisões, através de uma
25
“Não existiam debates ideolñgicos nem partidos bem definidos, o que a conduzia, eram as rivalidades entre
pessoas e clãs que tinham por objetivo a conquista de magistraturas e de governos provinciais.”
26
Outro fato que dificultou a aceitação de Cícero foi sua insistência, após a conjuração de Catilina, em
apresentar-se como pater patriae: o esprit de corps do patriciado não podia aceitar que um membro da ordem
equestre houvesse prendido e executado diversos membro de sua classe. Contudo Cícero sempre manteve
grande número de admiradores entre o povo, que celebrou seu triunfo quando de seu retorno do exílio.
58
condutor da nação. Analisado sob este prisma, sua trajetória política torna-se quase linear:
sua intenção maior, até esse momento, era a almejada concordia ordinum que poria fim às
exceção”. Sob esse assunto, Gian Biagio Conte é categórico ao afirmar que:
Despite the many fluctuations, Cicero‟s political career follows a consistent line. In
the context of a general rapprochement between Senate and equites the homo nouus
supported the nobilitas, and even afterwards he remained faithful to the idea of
concord and to the senatorial cause. His attempt at collaboration with the triumvirs
was a response to the need for an authoritative government, and here, too, Cicero was
concerned to preserve the prestige and the prerogatives of the Senate. Even the
temporary rapprochement with Caesar‟s autocratic tendencies and to maintain power
within the familiar framework of republican traditions. (CONTE; 1994:185)27
Durante a Guerra Civil (49-47), Cícero adere ao grupo de Pompeu. Uma adesão
sem entusiasmo, pois estava consciente de que, qualquer que fosse o vencedor, o Senado
estaria condenado à perda de grande parte de seu poder. Com a vitória de César, Cícero é
logo perdoado, já que César era suficientemente perspicaz para perceber que, assim o
pública até o assassinato do ditador em 44 28. A partir de então, tenta interferir novamente
27
“Apesar de algumas flutuações, a carreira política de Cícero segue uma linha consistente. No contexto de
uma aproximação geral entre o Senado e os equites o homo nouus apoiou a nobilitas, e mesmo contradito ele
manteve fé na ideia de concórdia e na causa senatorial. Sua tentativa de colaboração com os triúnviros foi
uma resposta à necessidade de um governo autoritário, e aqui, também, Cícero buscou preservar o prestígio e
as prerrogativas do Senado. Mesmo a aproximação temporária com as tendências autocráticas de César e
manter o poder nas estruturas familiares da tradição republicana.”
28
Não se duvida de que Cícero estivesse a par dos Idos de Março, mas sua participação ativa no assassinato
de César não pode ser comprovada. Contudo, inclinamo-nos a crer que, indiretamente, as obras de Cícero
tenham sido fundamentais nesse processo, conforme demonstraremos a seguir.
59
no rumo dos acontecimentos, mas, transformado em peão no jogo político entre Marco
produção escritural: nos anos que sucedem ao de seu consulado (63 a 43), Cícero produz
uma grande quantidade de obras, voltadas para a Retórica, para a Filosofia e para o
pensamento político romano. Apesar de voltada para áreas tão díspares, novamente
podemos recorrer a Conte para defender a ideia de uma linha-mestra em seus textos:
But as his years and his disappointments mounted up, he felt the increasing need to
reflect on the bases of politics and morality and went back to Hellenistic thought. The
aim of his philosophical works is the same one that inspires some of his most
important speeches: to provide a solid intellectual, ethical, political base for a
dominant class whose need for order would not be translated into obtuse isolation and
whose respect for the national tradition (mos maiorum) would not hinder the
absorption of Greek culture,(…). (CONTE; 1994:177)29
A participação de Cícero no jogo político em Roma acabou por ser menor do que o
brilho que deu às letras latinas de seu tempo: seu nome é até mesmo usado para delimitar
um dos períodos literários de Roma 30; isso se deve primeiramente a seu êxito como orador,
posição na qual alcançou, ainda em vida, pleno reconhecimento como o mais importante
dos prosadores e oradores romanos. Nesse aspecto, Cícero destacou-se não apenas por ser
um dileto praticante da retórica da persuasão mas também por ter estudado profundamente
os fundamentos e as técnicas dessa ciência, publicando uma série de livros sobre o assunto:
29
“Mas como nesses anos seus desapontamentos cresceram, ele sentiu a crescente necessidade de repensar
as bases da política e da moral, e voltou-se para o pensamento helenístico. O alvo de seus trabalhos
filosóficos é o mesmo que inspira alguns dos seus mais importantes discursos: prover uma sólida base
intelectual, ética e política para uma classe dominante cuja necessidade de ordem não poderia ser traduzida
num isolamento obtuso e cujo respeito pela tradição nacional (mos maiorum) não poderia atrapalhar a
absorção da cultura grega,...”
30
Diversos historiógrafos da literatura latina estabelecem os anos de Cícero (81-43 a.C.), como uma das fases
da literatura romana.
60
Dentre estas obras, no entanto, duas irão além do objetivo principal e nos tratarão
“il retrace l‟histoire de l‟éloquence romaine, depuis ses plus lointaines origines
saisissables jusqu‟à l‟époque contemporaine. Dans cet ouvrage, qu‟il intitula Brutus,
en hommage à son jeune ami, pour lequel il a beaucoup d‟estime, il sacrifie aux
tendances du jour, le désir croissant de connaître les antiquités de Rome; ce n‟est pas
un hasard si l‟un des interlocuteurs est Atticus. Mais la succession des notices
consacrées, par ordre chronologique, aux orateurs ne laisse pas de tracer une véritable
histoire de la vie politique depuis plus d‟un siècle. (GRIMAL, 1994:173) 32
Ou seja, o que se explicita neste texto é como Cícero interpreta o – tumultuado – período
Grimal, determinará o ano de 146 a.C., em que termina a Terceira Guerra Púnica, com a
destruição definitiva de Cartago, e em que Corinto é destruída - como o marco que delimita
histórico romano.
O Orator, escrito no mesmo ano de 46 a.C., chama-nos a atenção por ser uma obra
de caráter doutrinal, abordando como deve proceder o grande orador. É também dedicado a
31
Sabe-se com certeza que o De Oratore é de 54, sobre os demais a data é aproximada. Porém a ordem de
sua apresentação acima é a da publicação dos textos.
32
“...ele retrata a histñria da eloquência romana, desde suas origens mais longínquas até a época
contemporânea. Nesta obra, que chamou Brutus, em homenagem a seu jovem amigo por quem tem muita
estima, ele sacrifica às tendências do momento, ao desejo crescente de conhecer as antiguidades de Roma; e
não é por acaso que um dos interlocutores é Ático. Mas a sucessão, em ordem cronológica, de fatos
consagrados pelos oradores não deixa de traçar uma verdadeira história da vida política desde há mais de um
século.”
61
Mais que o mestre da eloquência, o Cícero que aqui nos interessa investigar é o
filósofo cujo pensamento comporta um programa político e, dentre deste, uma nova
concepção da identidade romana. Se, como já dito, Cícero fora, na juventude, aluno do
acadêmico Fílon e do estoico Diódoto, seu aprendizado nestas duas escolas serviu para que
manifestasse, sempre que possível, uma profunda repulsa pelo epicurismo. A explicação
There are two principal grounds for Cicero‟s aversion to Epicureanism, closely linked
to one another. First, the Epicurean philosophy leads to a lack of interest in politics,
whereas the boni ought to participate actively in public life. Second, Epicureanism
excludes the divinity‟s providential function (to the extent that it does not deny its
existence) and thus weakens the links with traditional religion, which remains the
fundamental basis of ethics for Cicero. (CONTE; 1994:193-4)33
cultura romana, uma vez que desafiava diversos dos valores consagrados no mos maiorum.
passagem a identidade cultural – romana a partir das duas outras escolas, aquelas mesmas
não se detém aí: a evolução de seu trabalho faz com que penda para o neoacademicismo,
certo, mas que, à falta deste, podíamos chegar a conclusões com vários graus de
probabilidade de certeza, conclusões estas que podem constituir uma diretriz para nossa
33
“Há dois principais argumentos para a aversão de Cícero pelo epicurismo, fortemente unidas uma à outra.
Primeiramente, a filosofia epicurista conduz à perda de interesse pela polítca, enquanto os boni devem
participar ativamente na vida pública. Em segundo lugar, o epicurismo exclui a função providencial da
divindade (mesmo que não negue sua existência) e desse modo rompe os elos com a religião tradicional, que
permanece como a base fundamental da ética, para Cícero.”
62
seus livros manifestam-se diversos pontos em que a influência estoica é marcante, quando
não predominante, como nas questões relativas à ética, afinal, conforme mais uma vez
Conte:
“Cicero recognized that Stoicism furnished the most solid moral basis for the citizens‟
commitment to the community. Yet by virtue of his taste and culture he felt himself
remote from an intransigent Stoic such as Cato [the Younger] or from an Academic of
rigid morality such as Brutus. (CONTE; 1994:194)34
De fato, Cícero era um eclético, e cremos não poder ter sido diferente, pois sendo a
procedimento já consagrado da cultura romana, Cícero estaria tão somente agindo segundo
Cicero is original in the choice of subject and in the shaping of the arguments, since
the problems poses by society are new. Cicero knits together the torn limbs of
Hellenistic thought in order to extract from it an ideal structure that will operate
effectively in regard to Roman society. (CONTE; 1994:192)35
À parte sua produção sobre a retórica, que embute, como vimos, sua visão da
história, Cícero possui dois outros grupos de obras: a), sobre política, constituído de De Re
Publica (54-51), De Legibus (52-?) e, b), sobre filosofia propriamente dita, em que se
34
“Cícero reconheceu que o estoicismo fornecia a mais sñlida base moral para o comprometimento dos
cidadãos para com a comunidade. Mas em razão de seu gosto pessoal e cultura ele se sentia distante de um
estoico intransigente como Catão [de Útica] ou de um acadêmico de moralidade rígida como Brutus.”
35
Cícero é original na escolha do tema e na construção dos argumentos, uma vez que os problemas colocados
à sociedade também são novos. Cícero costurou os tecidos rasgados do pensamento helenístico ´para extrair
daí uma estrutura ideal para operar efetivamente em relação à sociedade romana.”
63
em 4436.
conduz o pensamento, a ação política – e se reflete nos textos – de Cícero nos concedem
que estas obras sejam analisadas em conjunto, uma vez que, nos seus textos políticos,
Cícero traça as linhas gerais de conduta do cidadão partícipe de um modelo de estado que o
próprio Cícero traça; e, nos seus textos mais estreitamente filosóficos, Cícero estabelece o
Vimos que Cícero escreveu duas obras de caráter mais estreitamente político: De
na primeira, já que, segundo Gian Biagio Conte (1994), esta obra não teria sido publicada
durante a vida de Cícero: “Inspired again by the model of Plato, who had followed the
Republic with the Laws, Cicero complemented the dialogue on the state with de De
1994:190)”37. Afirmação esta corroborada, de modo ainda mais enfático, por Pierre
Grimal, que afirma ainda que este livro somente teria sido terminado após a morte de
César:
36
Há a variação de alguns meses na produção destas obras, para alguns autores (Harvey e Paratore), as
Tusculanae Disputationes teriam sido concluídas apenas em 44, e De Fato teria sido escrito em 43.
Inclinamo-nos aqui, no entanto, pelas datas consideradas pela maioria dos autores consultados.
37
“Inspirado novamente no modelo de Platão, que continuou a República com as Leis, Cícero complementou
o diálogo sobre o estado com o De Legibus, iniciado em 52 e provavelmente não publicando durante sua
vida.”
64
Il semble que la mort de César n‟ait pas été étrangère à ce qui apparaît comme un
regain d‟optimisme. Il retrouve les idées qui lui avaient dicté, peut-être vers 52 ou 51,
son traité Des lois (De Legibus), où se trouvait affirmée la possibilité, pour un homme
d‟État, d‟influer sur la vie de la cité, et de rompre les prétendus déterminismes qui
passaient pour la dominer. Il se peut que le De Legibus, à peine achevé au moment où
Cicéron partait en Cilicie, soit resté inédit et n‟ait été publié qu‟après la mort de son
auteur. (GRIMAL, 1994:177)38
Como as ideias que Cícero defende nesta obra só teriam visto a luz durante o governo de
Augusto e não tiveram repercussão durante o período em análise, cremos ser melhor
Publica.
3.2.1 - De Re Publica
um debate ocorrido entre diversos amigos na quinta de Cipião Emiliano. Debate em que
são discutidos diversos temas relativos à organização do Estado e em que Cipião acaba se
tornando não apenas um condutor do debate mas um alter ego do autor, uma vez que as
A obra compunha-se originariamente de seis livros, dos quais nos restaram os dois
Mas se o texto demarca, desde o título, sua proximidade com o de Platão, qual
seria, por outro lado o distanciamento com o “República”? Cremos que o primeiro marco
38
“Parece que a morte de César não foi estranha a quem a via como uma retomada do otimismo. Ele
reencontra as ideais que havia ditado, talvez em 52 ou 51, seu tratado sobre as leis (De Legibus), onde se
encontrava afirmada a possibilidade, para um homem de Estado, de influir na vida da urbe, e de romper os
pretensos determinismos que pareciam dominá-la. Talvez o De Legibus mal terminado no momento em que
Cícero partia para a Cilícia, tenha ficado inédito e sñ tenha sido publicado apñs a morte de seu autor.”
65
trecho abaixo, que, dito por Cipião, mal esconde a biografia do próprio Cícero:
Sed neque iis contentus sum quae de ista consultatione scripta nobis summi ex Graecia
sapientissimique homines reliquerunt, neque ea quae mihi uidentur anteferre illis
audeo. Quam ob rem peto a uobis ut me sic audiatis: neque ut omnino expertem
Graecarum rerum, neque ut eas nostris in hoc praesertim genere anteponentem, sed ut
unum e togatis patris diligentia non inliberaliter institutum, studioque discendi a
pueritia incensum, usu tamen et domesticis praeceptis multo magis eruditum quam
litteris.' (CÍCERO; De Re Pub., I,36)39
alcançar tons ainda mais fortes que o acima, como se percebe na abertura das Tusculanae,
em que, mesmo que reitere a superioridade dos valores e das práticas romanas, Cícero não
...cum omnium artium, quae ad rectam uiuendi uiam pertinerent, ratio et disciplina
studio sapientiae, quae philosophia dicitur, contineretur, hoc mihi Latinis litteris
inlustrandum putaui, non quia philosophia Graecis et litteris et doctoribus percipi non
posset, sed meum semper iudicium fuit omnia nostros aut inuenisse per se sapientius
quam Graecos aut accepta ab illis fecisse meliora, quae quidem digna statuissent, in
quibus elaborarent.” (CICÉRON; Tusc., I, 1)40
república dual é suspenso em nome de um mandato trino. Mandato este que, mal
39
“...se as doutrinas políticas dos mais esclarecidos escritores gregos não me satisfazem completamente,
tampouco me atrevo a ter preferência pelas minhas próprias ideias. Suplico-vos, , portanto,, que não me
escuteis como a um ignorante, completamente estranho às teorias gregas, nem tampouco como a um homem
inteiramente disposto a dar-lhes a preferência; sou romano antes de mais nada, educado com os cuidados de
meu pai no gosto dos estudos liberais, estimulado desde pequeno pelo desejo de aprender, mas formado
muito mais pela experiência e pelas lições domésticas do que pelos livros”. Todas as traduções de De Re
Publica são de Amador Cisneiros.
40
“...como a teoria e a prática de todas as artes que dizem respeito ao meio correto de viver estão contidas no
estudo da sabedoria, que é chamada filosofia, considerei ilustrar com letras latinas, não porque a filosofia não
pudesse ser apreendida com os mais sábios ou com os textos gregos, mas porque sempre foi minha opinião
que os nossos tenham melhorado e tornado mais sábias do que os gregos todas as coisas que - quer tenham
descoberto por si, quer tenham recebido deles – ao menos considerassem dignas e às quais se tenham
dedicado.” Tradução nossa.
66
Roma. Cícero, antevendo que, qualquer que fosse o resultado desse conflito, o sistema dual
republicano entraria em agonia, busca minorar os danos, delineando o que cogitava ser um
modelo “ideal” do novo regime. Uma opção, que, ao fim, não deixaria de ser uma
indivíduo. O contorno básico será, para Cícero, a virtude – termo empregado no sentido
que lhe dão os estoicos – em detrimento dos poderes militar e econômico – à época,
Nam diuitiae, nomen, opes uacuae consilio et uiuendi atque aliis imperandi modo
dedecoris plenae sunt et insolentis superbiae, nec ulla deformior species est ciuitatis
quam illa in qua opulentissimi optimi putantur. Virtute uero gubernante rem publicam,
quid potest esse praeclarius? Cum is qui imperat aliis seruit ipse nulli cupiditati, cum
quas ad res ciuis instituit et vocat, eas omnis conplexus est ipse, nec leges inponit
populo quibus ipse non pareat, sed suam uitam ut legem praefert suis ciuibus.
(CÍCERO; De Re Pub., I,51) 42
41
“...na monarquia, a generalidade dos cidadãos toma pouca parte no direito comum e nos negñcios públicos;
sob a denominação aristocrática, a multidão, apenas livre, está privada de qualquer meio de ação, e mesmo de
deliberação; por últimos, quando o povo assume todo o poder, mesmo supondo-o sábio e moderado, a própria
igualdade se torna injusta desigualdade, porque não há degradação que distinga o verdadeiro mérito.”
(...)“Por minha parte, creio que a melhor forma política é uma quarta formada da mescla e reunião das três
primeiras”.
42
“ ...o nome ilustre, o poderio, sem a sabedoria que ensina os homens a se governarem a dirigir os outros
nada mais são do que uma vergonhosa e insolente vaidade; não há no mundo espetáculo mais triste que uma
sociedade em que o valor dos homens é medido pelas riquezas que possuem. Ao contrário, que pode haver de
mais belo e preclaro que a virtude governando a República? Que é mais admirável do que esse governo,
67
Cícero acaba por esboçar a figura do dirigente de modo tal que acabaria constituindo-se
agente da virtude, virtuosas serão suas ações, quaisquer que sejam seus motivos,
Mas não nos enganemos, Cícero, defensor da causa senatorial, advoga de modo
id enim tenetote quod initio dixi, nisi aequabilis haec in ciuitate compensatio sit et
iuris et officii et muneris, ut et potestatis satis in magistratibus et auctoritatis in
principum consilio et libertatis in populo sit, non posse hunc incommutabilem rei
publicae conseruari statum. (CÍCERO; De Re Pub., II,57) 44
Uma defesa em que Cícero sai duplamente beneficiado, pois, com o fortalecimento do
sistema judicial, sua condição de advogado o coloca em franco destaque; ademais, com a
estabilidade do legislativo (i. e., do Senado), sua posição, devido ao livre trânsito de que aí
desfrutava, sairia, também, privilegiada. Entretanto, apesar de poder extrair daí algum
Quare cum lex sit ciuilis societatis vinculum, ius autem legis aequale, quo iure
societas ciuium teneri potest, cum par non sit conditio ciuium? Si enim
pecunias aequari non placet, si ingenia omnium paria esse non possunt, iura
certe paria debent esse eorum inter se qui sunt ciues in eadem re publica. Quid
est enim ciuitas nisi iuris societas ciuium? (CÍCERO; De Re Pub., I,49)45
quando o que manda não é escravo de paixão alguma e dá exemplo de tudo o que ensina e preconiza, não
impondo ao vulgo leis que é o primeiro a não respeitar, mas oferecendo, com lei viva, a própria existência
aos seus compatriotas?
43
Este, inclusive, será o mote de que Sêneca se valerá na formação do jovem Nero.
44
“considerai o que disse de início: um estado em que os direitos e as prerrogativas não estão num equilíbrio
perfeito, em que os magistrados não têm suficiente poder, bastante influência as deliberações dos nobres e o
povo bastante liberdade, não pode ter estabilidade nem permanência.”
45
“Sendo a lei o laço de ouro de toda sociedade civil, e proclamando seu princípio à comum igualdade,
sobre que base assenta uma associação de cidadãos cujos direitos não são os mesmos para todos? Se não se
68
de poderes e a virtude como regente das ações do governante, sua defesa da igualdade de
direitos parece paradoxal quando constatado que Cícero defende também o modelo
concordia ordinum, e a igualdade de direitos seria uma condição sine qua non para
alcançá-la.
uma elite mais bem capacitada para dirigir a República. Uma elite que, talvez para não
...quare sint nobis isti qui de ratione uiuendi disserunt magni homines (ut sunt), sint
eruditi, sint ueritatis et uirtutis magistri, dam modo sit haec quaedam, siue a uiris in
rerum publicarum uarietate uersatis inuenta, siue etiam in istorum otio ac litteris
tractata, res (sicut est) minime quidem contemnenda, ratio ciuilis et disciplina
populorum, quae perficit in bonis ingeniis, id quod iam persaepe perfecit, ut
incredibilis quaedam et diuina uirtus exsisteret. Quodsi quis ad ea instrumenta animi,
quae natura quaeque ciuilibus institutis habuit, adiungendam sibi etiam doctrinam et
uberiorem rerum cognitionem putauit, ut ii ipsi qui in horum librorum disputatione
uersantur, nemo est quin eos anteferre omnibus debeat. Quid enim potest esse
praeclarius, quam cum rerum magnarum tractatio atque usus cum illarum artium
studiis et cognitione coniungitur? Aut quid P. Scipione, quid C. Laelio, quid L. Philo
perfectius cogitari potest? Qui, ne quid praetermitterent quod ad summam laudem
clarorum uirorum pertineret, ad domesticum maiorumque morem etiam hanc a Socrate
aduenticiam doctrinam adhibuerunt. Quare qui utrumque uoluit et potuit, id est ut cum
maiorum institutis tum doctrina se instrueret, ad laudem hunc omnia consecutum
puto.46 (CÍCERO; De Re Pub., III,2)
admite a igualdade da fortuna; se a igualdade da inteligência é um mito, a igualdade dos direitos parece ao
menos obrigatória entre os membros de uma mesma república. Que é, pois, o Estado, senão uma sociedade
para o direito?”
46
“Não se deve, por isso deixar de reconhecer que a arte social de governar os povos, ou na variedade dos
descobrimentos dos homens versados no governo da República, ou no que eles escreveram em seu ócio
fecundo, longe de ser uma ciência sem importância, desperta nos engenhos privilegiados uma virtude divina
e quase incrível; e quando a essas excelsas faculdades naturais, desenvolvidas pelas instituições civis, se
unem, como nos interlocutores deste diálogo, sólida instrução e extensos conhecimentos, ninguém haverá que
a eles se devem antepor. Com efeito, que pode existir de mais preclaro do que o conhecimento e o hábito dos
problemas mais importantes da política, quando se unem a eles de prazer e a experiência das artes do
entendimento? Que homens haverá melhores do que Cipião, Lélio e Filão, que para reunir às tradições dos
seus antepassados e aos seus costumes domésticos a doutrina estranha que haviam recebido de Sócrates? Em
69
Deve-se notar que Cícero lança mão do termo doctrina para especificar o conjunto
utilizado.
fossem substituídas, na condução dos negócios públicos, por uma elite intelectual, como,
aliás, Platão já havia defendido na obra em que Cícero se inspirou. De qualquer modo,
perceba-se que mesmo o mais ardoroso defensor da tradição republicana acreditava serem
república.
Triunvirato. Sua proposta é mais ambiciosa, pois visa, embora defendendo as prerrogativas
maiorum e os defendidos pelo estoicismo e pelo academicismo. Mas Cícero vai além:
obras: os já citados membros do “Círculo dos Cipiões”. Este grupo, reunido ao redor de
Cipião Emiliano, teria sido o principal responsável pela absorção romana da cultura grega,
suma, quem ambas as coisas quer e pode, quem se instrui ao mesmo tempo na doutrina presente e nas
instituições passadas, julgo que merece a maior consideração e os mais perfeitos elogios.”
70
no século anterior. Além disso, nele figurariam grandes nomes do cenário político, militar
e cultural, não sendo sem fundamento que Cícero os utilizasse como símbolos de uma
“aurea aetas” da república: o apogeu do modelo, em plena saúde antes da eclosão das
tornar-se, nas mãos de Cícero, uma galeria fixa de personagens aos quais recorreria quando
desejasse discutir valores caros à identidade romana, bastando-nos citar textos como
Laelius de Amicitia – em que Lélio narra a trajetória de sua amizade com Cipião, e os
valores que essa amizade embutia, representava e defendia – e Cato Maior de Senectute,
em que, transformando Catão em personagem, faz com que defenda e justifique alguns dos
valores mais caros ao mos maiorum. Desse modo, sempre que necessário apresentar a
Cícero lançava mão de sua trupe de personagens históricas, das quais voltaremos a tratar
próximas de suas obras a abordarmos enfocarão não o Estado romano, mas o indivíduo em
si. Obviamente, o indivíduo que interessa a Cícero é o cidadão, pois este é, no mundo
romano, o ser social por excelência. Acreditamos que esta mudança no foco deve-se a
fatores diversos, entre os quais o fato de que Cícero escreve De Re Publica entre 54 e 51,
durante a vigência do Triunvirato, enquanto as demais obras foram escritas entre 46 e 43,
A guerra civil foi, como sabemos, iniciada em 48; quando, após a morte de Crasso e
a dissolução dos laços familiares que uniam César a Pompeu, os dois mandatários restantes
também uma ruptura brutal com o passado de Roma: se um dos pilares fundamentais de
71
sua identidade era a inviolabilidade de seu território – a ponto de que às próprias legiões
romanas era proibido aquartelar-se na Vrbs – este princípio seria derrubado na travessia do
Rubicão.
Mas esse não seria o único pilar a ser derrubado por César naquele momento:
de novas bases para a contagem do tempo, ainda que corrigisse erros existentes desde
modificado, cumpria reordenarem-se as leis que, até então, regulavam aquela sociedade.
sendo o romano um homem completamente moldado pelas leis de sua sociedade, Cícero
certamente esperaria poder exercer alguma influência no processo: através de sua ação
como filósofo, influir na formação de um novo modelo de homem romano, uma nova
nossa atenção, uma vez que pode elucidar algumas questões sobre como os romanos
apre(e)ndiam a realidade.
sabor”47, sendo o étimo do verbo saber, em suas variadas formas, nas línguas românicas.
47
Este significado, em desuso, persiste dicionarizado na língua portuguesa, e, ainda que pouco usado,
apresenta-se mais vivamente na língua espanhola
72
termo estreia na língua latina pelas mãos de Ênio, já com essa acepção -, acreditamos ainda
que uma análise da etimologia deste termo poderá fornecer-nos pistas para a elucidação do
seguinte deslocamento de sentidos: degustar, saborear > provar > experimentar > conhecer.
que é , portanto, passível de ser experimentado, permitimo-nos pensar que, nessa transição
quem seria conhecimento aquilo que pudesse ser (com)provado, passível de ser submetido
à prática empírica, o que descartaria, de início, qualquer reflexão teórica mais aprofundada:
Ser uma experiência concreta, conforme a origem do termo nos explica, expõe uma
desconfiança romana para com o conhecimento grego: afinal, usar um termo que trata da
original, posto que o sentido que a interpreta mudará do campo gustativo para o cognitivo
e, mais precisamente, para a moral. A esse respeito dirá Mª Helena da Rocha Pereira que, “
no sentido moral, a sapientia corresponde sobretudo à moderação (...) Mas pode-se dizer,
de um modo geral, que são os sentidos de sophia que ela abrange” (ROCHA PEREIRA,
1989:411).
73
“sabedoria” e, mais estritamente, da prñpria philosophia. Mas isso, em Roma, não poderia
logo concederá a este conceito o valor de uma virtude política, já que seu detentor poderia
que, para os estoicos, estes termos se equivaliam. E esta aproximação semântica com uma
das qualidades que os romanos mais desejavam para seus líderes políticos torna esta
qualidade também palatável aos romanos, configurando como sábio o homem público que
age sob parâmetros morais definidos, tendo a formação cultural como ferramenta a seu
dispor. Desse modo, em Roma, ser sábio é uma qualidade que, como todas as demais,
forma o cidadão para a sociedade. E não será gratuito que os dois maiores nomes da
cultura romana – Cícero e Sêneca - tenham sido reconhecidos como os mais sábios de suas
respectivas épocas, tendo sido também homens de efetiva ação na vida pública, como,
aliás, já declaramos.
Nesse contexto, Cícero acaba por tornar-se o responsável por alçar a sapientia à
formação da romanidade, sapientia não pode ser considerada parte do mos maiorum,
entretanto, tampouco sua influência posterior deverá ser minimizada. Mesmo porque, com
nesses novos limites, a influência da filosofia grega devesse estar, já, interiorizada, não
será um despropósito que o mais aprofundado trabalho filosófico de Cícero - obra cuja
74
malorum48.
3.2.2 – De finibus
De finibus bonorum et malorum é uma obra dividida em cinco livros, nos quais
Cícero apresenta a defesa e a refutação das escolas filosóficas até aqui tratadas: no livro I,
Mânlio Torquato faz a apresentação e defesa do epicurismo, refutada por Cícero no livro
II. No livro III, temos Catão de Útica, neto do Censor, expondo a concepção estoica, sobre
a qual Cícero tecerá suas críticas no livro IV. Já o livro apresenta apenas a exposição, feita
por Pisão Calpurniano, dos méritos da Academia, com uma breve análise de Cícero
Mais uma das obras de Cícero dedicadas a Bruto, vale recordar que De finibus foi
filosóficas de Cícero, De finibus é aquele em que o autor realiza sua mais veemente defesa
Non eram nescius, Brute, cum, quae summis ingeniis exquisitaque doctrina
philosophi Graeco sermone tractauissent, ea Latinis litteris mandaremus, fore ut hic
noster labor in uarias reprehensiones incurreret. Nam quibusdam, et iis quidem non
admodum indoctis, totum hoc displicet philosophari. Quidam autem non tam id
reprehendunt, si remissius agatur, sed tantum studium tamque multam operam
ponendam in eo non arbitrantur. Erunt etiam, et ii quidem eruditi Graecis litteris,
contemnentes Latinas, qui se dicant in Graecis legendis operam malle consumere.
Postremo aliquos futuros suspicor, qui me ad alias litteras uocent, genus hoc scribendi,
etsi sit elegans, personae tamen et dignitatis esse negent.49 (CÍCERO; De finibus, I,1)
48
Atentando-se para o polissemia do termo finis, -is que pode não apenas indicar “o grau supremo de algo”
mas também a fronteira, a borda, o confim, a extremidade, o limite, enfim. Em se tratando de Cícero, o uso
deste termo não será um acidente.
49
“Eu não ignorava, amigo Bruto, quando comecei a expor em latim o que os filósofos gregos tinham
tratado com máximo engenho e magnífica doutrina, que este nosso trabalho havia de estar sujeito a várias
censuras. Alguns, e não de todo indoutos, reprovam todo e qualquer gênero de filosofia. Outros, sem rejeitá-
la completamente, se a fazemos moderadamente, consideram mau que eu tenha votado tanto estudo e tanto
trabalho a semelhante tarefa. Haverá alguns instruídos nas letras gregas e depreciadores da latina, que
julgarão preferível ocupar o tempo com ler os gregos. Por fim, suspeito que não haverá de faltar quem me
75
Percebe-se como, segundo Cícero, o próprio fato de dedicar-se à filosofia ainda era
visto negativamente por uma parte da intelectualidade romana, havendo ainda quem
preconizasse que os estudos filosóficos não deveriam servir-se do latim50. Verifica-se, pois
a existência de apenas uma pequena margem de manobra para o trabalho que Cícero
realiza: discorrer sobre filosofia – o que, para muitos romanos, era por si só uma falta – e
fazê-lo em latim – uma falta até para aqueles se dedicassem a tais estudos.
subserviente, Cícero opta por agir dentro da tradição romana: delimita e experimenta as
escolas restantes, selecionando assim o que considera de fato aproveitável -, e por fim
conceito, pois qualquer conceito desenvolvido numa língua-origem deverá ser reproduzido
língua latina de expressar a quantidade de novos conceitos a serem absorvidos. Não é vão, ,
portanto,, que Cícero despenda boa parte do livro I defendendo não só a capacidade de o
Non est omnino hic docendi locus; sed ita sentio et saepe disserui, Latinam linguam
non modo non inopem, ut uulgo putarent, sed locupletiorem etiam esse quam
Graecam. Quando enim nobis, uel dicam aut oratoribus bonis aut poetis, postea
estimule a escrever acerca de outra coisa, porque não seria adequada a filosofia à dignidade da minha
pessoa.” (Todas as traduções de De finibus bonorum et malorum são de Carlos Ancède Nougué.)
50
Não será gratuito pois o fato de que, novamente, Cícero utilize o termo doctrina, dessa vez acompanhada
do genitivo philosophi para denominar a área de conhecimento: acreditamos que Cícero estaria “dourando a
pílula” para seus leitores.
76
quidem quam fuit quem imitarentur, ullus orationis uel copiosae uel elegantis ornatus
defuit? (CÍCERO; De finibus, I,10)51
uma vez que, fazendo-o, defende não apenas a capacidade expressiva do latim, mas ataca
Rudem enim esse omnino in nostris poetis aut inertissimae segnitiae est aut fastidii
delicatissimi. Mihi quidem nulli satis eruditi uidentur, quibus nostra ignota sunt. An
“Vtinam ne in nemore...” nihilo minus legimus quam hoc idem Graecum, quae autem
de bene beateque uiuendo a Platone disputata sunt, haec explicari non placebit Latine?
(CÍCERO; De finibus, I,5) 52
Cicero: -Si enim Zenoni licuit, cum rem aliquam inuenisset inusitatam, inauditum
quoque ei rei nomen inponere, cur non liceat Catoni? Nec tamen exprimi uerbum e
uerbo necesse erit, ut interpretes indiserti solent, cum sit uerbum, quod idem declaret,
magis usitatum. Equidem soleo etiam quod uno Graeci, si aliter non possum, idem
pluribus uerbis exponere. et tamen puto concedi nobis oportere ut Graeco uerbo
utamur, si quando minus occurret Latinum, ne hoc ephippiis et acratophoris potius
quam proegmenis et apoproegmenis concedatur; quamquam haec quidem praeposita
recte et reiecta dicere licebit.
Cato: - Bene facis, inquit, quod me adiuuas, et istis quidem, quae modo dixisti, utar
potius Latinis, in ceteris subuenies, si me haerentem uidebis.
Cicero: - Sedulo, inquam, faciam. Sed 'fortuna fortis'; quare conare, quaeso. Quid
enim possumus hoc agere diuinius? (CÍCERO; De finibus, III,15)53
51
“Não é esta a ocasião de prová-lo, mas creio, e muitas vezes o defendi, que a língua latina não só não é
pobre, como a considera o vulgo, senão que é mais rica que a grega. Sim, por que quando nos faltou, não
digo a nós, mas aos bons oradores e poetas, e pelo menos depois que tivemos a quem imitar, qualquer ornato
ou elegante elocução?”
52
“Ser de todo ignorante com respeito ao que escreveram os nossos poetas delata ou uma grande inércia e
desídia, ou um paladar demasiado enojadiço e delicado. A mim não me parecem bastante eruditos os que
ignoram as nossas coisas. Se lemos na nossa língua aquela cena que assim principia: “Quem dera que no
bosque...”, e nos agrada não menos que em grego, por que não nos hão de agradar em latim os preceitos que
Platão ministrou sobre o bem e a felicidade da vida?”
53
“Cícero: - Se foi lícito a Zenão, quando inventava algo inusitado, dar um nome inaudito, por que não se há
de consentir o mesmo a Catão? Ademais, não é necessário que traduzas palavra a palavra, como costumam
fazer os intérpretes ignorantes, quando o melhor para tornar compreensível o pensamento é usar uma
expressão conhecida. Eu costumo indicar com muitas palavras latinas o sentido de uma só grega quando não
posso tomar outro caminho, e não obstante, creio que se nos deve conceder o uso de uma palavra grega
quando não nos ocorre uma latina, e que, assim como se usam os termos “ephíppia” e “acratophoro”, se
devem usar também “proégmena” e “apoproégmena”, ainda que pudéssemos dizer em latim “praeposita” e
“reiecta”.
77
Assim, outra finalidade – mais uma significação de finis – da obra seria (com)provar as
possibilidades expressivas da língua latina, e não será sem propósito que, para cada
conceito grego debatido nos diálogos, seja oferecida e discutida uma hipótese de tradução
ou equivalência em latim. E mais, Cícero preconiza que o latim possui maior elasticidade
para a criação de novos vocábulos assim como mais facilidade de incorporação de termos
estrangeiros:
como guia para as ações dos homens, levando-os a possuir determinados valores:
Inuitat igitur uera ratio bene sanos ad iustitiam, aequitatem, fidem, neque homini
infanti aut inpotenti iniuste facta conducunt, qui nec facile efficere possit, quod
conetur, nec optinere, si effecerit, et opes uel fortunae uel ingenii liberalitati magis
conueniunt, qua qui utuntur, beniuolentiam sibi conciliant et, quod aptissimum est ad
Catão: - Bem fazes em ajudar-me, mas, quando haja termos na nossa língua, usá-los-ei sempre. No restante,
tu socorrer-me-ás, quando me vejas em dúvida.
Cícero: - Certamente o farei, e com muita presteza. Lança-te, , portanto,, à empresa, que a fortuna ajuda os
audazes. E que matéria mais divina poderíamos tratar?”
54
“É verdade que, dentre todos os filósofos, foram os estoicos os que mais fizeram inovações. Zenão, o
príncipe da escola, não foi tanto inventor de coisas como de vocábulos novos. E, se tal se concedeu aos
gregos, numa língua que quase todos consideram a mais rica, e se entre eles foi lícito para os homens doutos,
quando tratavam de coisas ainda inexploradas, valer-se de palavras insólitas, quanto mais não se nos deve
conceder a nós, que só agora, pela primeira vez, ousamos tocá-las? E pela mesma razão que já dei muitas
vezes – não sem certa queixa, não tanto dos gregos como de alguns dos nossos, que querem passar por gregos
antes que por latinos, porque, com efeito, não nos vence a Grécia em abundância de palavras, sendo nós, ao
contrário, superiores nisto – temos de trabalhar para conseguir esta maior quantidade não só nas nossas
próprias artes, mas também nas deles. E, conquanto muitas palavras gregas, que por antigo costume usamos
como latinas – por exemplo, a própria filosofia, a retórica, a dialética, a gramática, a geometria, a música -,
pudessem expressar-se em latim, tenhamo-las, porém, dado que as tolera o uso, por nossas.”
78
quiete uiuendum, caritatem, praesertim cum omnino nulla sit causa peccandi.
(CÍCERO; De finibus, I,52)55
Deve-se, no entanto, reparar que, dentre os valores que Cícero arrola – fides, aequitas,
iustitia – apenas fides faz parte do mos maiorum. Os demais, aequitas e iustitia, são valores
instauração do sistema republicano. Ao igualar esses valores à fides, Cícero comete uma
ação com dupla consequência: recorda ao leitor sua posição como sustentáculos do sistema
Ademais, dois outros valores que Cícero evoca são igualmente elevados à categoria
cidadania romana. Com isso, Cícero incorpora quatro novos valores na composição de
uirtus, o que resultará, como “efeito dominñ”, em uma nova concepção da romanidade em
que a filosofia, ainda que denominada apenas doctrina philosophi, já terá contribuído
efetivamente. Até porque, para Cícero, a filosofia grega não contradiz - ao contrário,
reitera - o costume ancestral. Esse costume que seria, já, uma práxis filosófica em estado
latente, uma vez que, mesmo que em seu grau mínimo, capacitava aqueles que os
Cato: - Egone quaeris, inquit, quid sentiam? Quos bonos uiros, fortes, iustos,
moderatos aut audiuimus in re publica fuisse aut ipsi uidimus, qui sine ulla doctrina
naturam ipsam secuti multa laudabilia fecerunt, eos melius a natura institutos fuisse,
quam institui potuissent a philosophia, si ullam aliam probauissent praeter eam, quae
nihil aliud in bonis haberet nisi honestum, nihil nisi turpe in malis; ceterae
philosophorum disciplinae, omnino alia magis alia, sed tamen omnes, quae rem ullam
55
“A verdadeira razão, , portanto,, convida as mentes sãs à justiça, à equidade e à boa-fé; e ao homem fraco
e impotente como é, não lhe aproveita a injustiça, porque não pode conseguir facilmente o que deseja nem
retê-lo se o consegue; e os recursos da riqueza e do talento convêm mais à liberalidade, mediante a qual se
consolida a benevolência, que é tão necessária para viver bem, especialmente se não há nenhuma causa para
cometer faltas.”
56
Ainda que Cícero grafe beniuolentia, preferimos essa forma por ser mais próxima à das línguas românicas.
79
uirtutis expertem aut in bonis aut in malis numerent, eas non modo nihil adiuuare
arbitror neque firmare, quo meliores simus, sed ipsam deprauare naturam. Nam nisi
hoc optineatur, id solum bonum esse, quod honestum sit, nullo modo probari possit
beatam uitam uirtute effici. Quod si ita sit, cur opera philosophiae sit danda nescio. Si
enim sapiens aliquis miser esse possit, ne ego istam gloriosam memorabilemque
uirtutem non magno aestimandam putem. (CÍCERO; De finibus, III,11; grifo nosso)57
por usar o termo philosophia, concluindo seu processo de aclimatação do paladar romano
Cícero acaba por conferir uma base filosófica ao senso comum romano, criando uma ampla
zona de intercessão entre essas duas fontes de saberes, mas sem que haja, de fato, sua
fusão. Contudo, ao estabelecer que essa zona de intercessão compreende a distinção entre o
desenvolvido, Cícero estabelece que a filosofia é –também - a base da justiça, uma vez que
Em efeito reverso, por ter sido iustitia um dos novos valores incorporados por
Cícero à uirtus e, estando essa baseada, na filosofia, é novamente a filosofia quem ganha
evidenciou essa relação. Porém, Cícero mostra também que, para além de uma finalidade
prática – tão ao gosto romano - do conhecimento filosófico, a filosofia pode ainda servir a
57
“Queres saber o que eu penso? Eu penso que muitos varões, virtuosos, fortes e moderados, que figuraram
nos anais da nossa República ou conhecemos nós mesmos, e que empreenderam, sem nenhuma doutrina
filosófica, seguindo tão-somente os impulsos naturais, muitas ações louváveis, foram mais bem educados
pela natureza do que teriam podido ser por nenhuma filosofia, afora aquela que não considera como bem
senão o honesto e como mal senão o torpe. As demais escolas filosóficas, conquanto sem dúvida umas mais
que outras, mas em suma todas as que contam entre os bens ou os males coisas sem nenhuma relação com a
virtude, não só não têm prestígio algum nem servem para tornar-nos melhores, mas corrompem a própria
natureza. Se não se concebe que só é bom o que é honesto, de maneira alguma se pode aprovar que a vida
feliz consista na virtude. E, se assim não fosse, por que nos haveríamos de dedicar à filosofia? Se o sábio
pudesse ser infeliz, guardar-me-ia eu, muito, de ter em grande apreço a gloriosa e memorável virtude.”
80
Nec enim gubernationi aut medicinae similem sapientiam esse arbitramur, sed actioni
illi potius quam modo dixi et saltationi, ut in ipsa insit, non foris petatur extremum, id
est artis effectio. (...) Sola enim sapientia in se tota conuersa est, quod idem in ceteris
artibus non fit. Inscite autem medicinae et gubernationis ultimum cum ultimo
sapientiae comparatur. Sapientia enim et animi magnitudinem complectitur et
iustitiam, et ut omnia quae omini accidant infre se esse iudicet, quod idem ceteris
artibus non contingit. Tenere autem uirtutes eas ipsas, quarum modo feci mentionem,
nemo poterit, nisi statuerit nihil esse quod intersit aut differat aliud ab alio, praeter
honesta et turpia. (CÍCERO; De finibus, III, 25)58
como uma consequência da filosofia, uma vez que, se é através da filosofia que se
estabelece a crença no direito natural, é desse direito que seria desenvolvido, através da
Ex omnibus philosophis natura tributum esse docuerunt, ut ii, qui procreati essent,
a procreatoribus amarentur, et, id quod temporum ordine antiquius est, ut coniugis
uirorum et uxorum natura coniuncta esse dicerent, qua ex stirpe orirentur amicitia
cognationum. Atque ab his initiis profecti omnium uirtutum et originem et
progressionem persecuti sunt. Ex quo magnitudo quoque animi existebat, qua facile
posset repugnari obsistique fortunae, quod maximae res essent in potestate sapientis.
Varietates autem iniurasque fortunae facile ueteres philosophorum praeceptis instituta
uita superabat.
Principiis autem a natura datis amplitudines quaedam bonorum excitabantur partim
profectae a contemplatione rerum occultiorum, quod erat insitus menti cognitionis
amor, e quo etiam rationis explicandae disserendique cupiditas consequebatur;
quodque hoc solum animal natum est pudoris ac uerecundiae particeps appetensque
coniunctiorum hominum ad societatem animaduertentesque in omnibus rebus, quas
ageret aut diceret, ut ne quid ab eo fieret nisi honeste ac decore, his initiis, ut ante dixi,
et seminibus a natura datis temperantia, modestia, iustitia et omnis honestas perfecte
absoluta est. (CÍCERO; De finibus, IV, 17-18) 59
58
“Não consideramos a sabedoria semelhante à arte da navegação ou à da medicina, mas antes à arte do
histrião e à arte da dança, porque estas têm em si mesmas o seu próprio fim último, sem buscá-lo fora
dela.(...) Assim, pois, só a sabedoria é plena e perfeita em si mesma. E por isso é inexata a comparação entre
o fim da sabedoria e o fim da medicina e o da pilotagem. A sabedoria abarca a magnanimidade e a justiça, e o
ter o homem por inferiores a ele todas as coisas que lhe sucedem – e isso não se dá nas demais artes.
Ninguém pode conceber as virtudes de que antes falávamos sem começar por crer que só duas coisas diferem
entre si: o honesto e o torpe.” Repare que aqui Cícero retorna ao termo sapientia, apesar de considerá-los
sinônimos, a inserção de philosophia deve ser paulatina.
59
“Foram eles (os estoicos) os primeiros, dentre todos os filósofos, a dizer que é de origem e direito natural
que os pais amem os filhos, e que também o é o amor conjugal, o qual é ainda anterior no tempo, e de cuja
raiz nascem as relações de parentesco e amizade. A partir destes princípios, investigaram a origem e o
desenvolvimento de todas as virtudes, dentre as quais está entre as primeiras a magnanimidade, com a qual se
pode facilmente resistir à fortuna, estando, como estão, as coisas sob o poder do sábio. A variedade e as
injúrias da fortuna, superava-as facilmente a disciplina dos antigos filósofos e a vida educada segundo os
seus preceitos. Dados estes princípios pela natureza, começava depois a ampliá-los pela contemplação das
verdades mais recônditas, uma vez que há um amor de ciência inato na alma, ao qual se segue a avidez de
investigar as razões e de discuti-las, sendo ademais o homem o único animal que sente pudor e vergonha, o
81
aquela em que há uma complementaridade entre o direito natural, do qual derivaria o senso
comum, e o direito civil, regulador das relações sociais. O empenho de Cícero se dá então
no sentido de, deixando clara esta complementaridade, demonstrar não haver oposição
entre aquelas distintas formas de direito e os novos valores trazidos pela filosofia.
Valores entre os quais Cícero aponta agora para temperantia e modestia, que vê
honor, ao invés de serem, como Rocha Pereira (1989) alertou, componentes independentes
da uirtus. Sendo inerentes a honor, essa deixaria de ser um valor absoluto em si, o que tem,
indiretamente, uma consequência política: sendo honor condição sine qua non para o
exercício do poder, seu detentor deverá ser igualmente modesto e de bom temperamento, a
ambos podem ser úteis ao Estado romano - que nesse momento já não era, de fato, a
república senatorial que Cícero defendia – mas também ao homem romano, que, através da
nova moral preconizada por Cícero – uma moral que não rompia a tradição, mas que, ao
mesmo tempo que lhe incorporava novos valores, dava-lhe novos pontos de apoio –
poderia capacitar-se a ser não apenas cidadão mas também indivíduo, na nova Roma que o
Ao delimitar a fronteira entre o bem e o mal, Cícero acaba por diluir também as
antigas fronteiras entre a tradição romana e o pensamento grego, e entre o direito natural
único que apetece a união social com seus semelhantes, e único que em todas as coisas que faz ou diz busca
guardar honestidade e decoro. Desta semente deitada pela natureza nascem e se aperfeiçoam depois a
temperança, a modéstia, a justiça e toda e qualquer honestidade.”
82
(universal) e o direito civil (romano). Diluídas essas fronteiras, o romano não deixa de ser
um cidadão devotado ao Estado, mas pode igualmente ser um indivíduo que, desfrutando
dos direitos prescritos por sua cidadania e imbuído dos valores nacionais, servirá
espontaneamente ao Estado. Abre-se também, com isso, o caminho para uma nova
até então coeso, mas fechado – em que se constituíra o mos maiorum, novos valores serão
Mas não podemos ver a ação de Cícero como deletéria à tradição, ao contrário, ao
vesti-la com a nova roupagem da filosofia, Cícero tenta preservá-la, pois, mesmo que a
situação política se modificasse a ponto de que a tradição deixasse de ser fundamental para
procederemos em seguida.
como a anterior, dedicada a Bruto. Contudo, as Tusculanae inovam por sua forma: ao invés
O texto se abre com uma pequena introdução em que Cícero declara que a filosofia
é um tema digno de abordagem pela literatura latina, embora esta não houvesse, até então,
83
tratado o tema de uma forma digna de sua importância. E que, mesmo que essa situação
Philosophia iacuit usque ad hanc aetatem nec ullum habuit lumen litterarum
Latinarum; quae inlustranda et excitanda nobis est, ut, si occupati profuimus aliquid
ciuibus nostris, prosimus etiam, si possumus, otiosi. 6 In quo eo magis nobis est
elaborandum, quod multi iam esse libri Latini dicuntur scripti inconsiderate ab optimis
illis quidem uiris, sed non satis eruditis. (CÍCERO; Tusc., I, 5-6) 60
Iniciado o diálogo entre mestre e discípulo, o livro I discorre sobre a morte, vista
como um obstáculo à felicidade. Contudo, acaba se defendendo a ideia de que a morte, seja
uma aniquilação do ser ou uma oportunidade para a mudança da alma, não será jamais um
mal. O livro II trata do sofrimento físico, que deve ser suportado em nome da virtude, e da
O livro III trata do sofrimento da mente e de suas causas possíveis: tristeza, inveja,
O livro IV, de certa forma, continua o terceiro, tratando de outros distúrbios da mente e de
como uma correta conduta filosófica será capaz de derrotá-los. O livro V discute se
apenas a virtude – vista sob o prisma estoico - seria suficiente para levar o sábio à
felicidade, e Cícero acaba por concluir que o homem virtuoso será, pela virtude em si
mesma, sempre feliz. Percebe-se que, nesta obra, o neoacademicismo está ausente: pela
abordagem dos temas tratados, vê-se que Cícero volta-se diretamente ao estoicismo como
filosófica.
60
“A filosofia, que devemos lustrar e restaurar, esteve inerte e até o nosso tempo não teve brilho algum nas
letras latinas; , portanto,, se ocupados servimos em algo aos nossos concidadãos, sirvamos também, se
pudermos, quando ociosos. Desconsiderai mesmo que já dizem existir muitos livros latinos escritos por
alguns bons homens, mas não suficientemente competentes naquilo que mais deve ser trabalhado por nós.”
84
divulgar os ideais estoicos e demonstrar sua importância, mostremos o que capacitaria esta
escola a funcionar como novo norte para a identidade cultural romana. Para tanto, convém
determo-nos ainda um pouco nas características gerais desta escola. Objetivando fazê-lo,
preferimos a menção a Pierre Aubenque et alii (1981), cujo texto alia o necessário
O estoicismo tira seu nome do Pórtico (Stoa), lugar de Atenas onde se reuniam
seus adeptos. Diferentemente do epicurismo, não está ligado à autoridade incontestada
de um único fundador. A doutrina estoica se constituiu antes progressivamente pelas
contribuições sucessivas dos três primeiros chefes da escola: Zenão de Cício (332-
262), que, depois de ter sido o discípulo do cínico Crates, funda a nova escola por
volta de 300 a.C.; Cleanto de Assos (por volta de 312-232) e Crisipo (277 – por volta
de 204), que mereceu o título de segundo fundador do estoicismo, restabelecendo e
confirmando a unidade da escola contra as dissidências de certos discípulos e os
ataques, de inspiração “probabilista”, da Nova Academia. A partir daí, o ensinamento
estoico será transmitido, com uma continuidade espantosa, durante vários séculos. Se
o médio estoicismo, representado essencialmente por Panécio (180-110) e Possidônio
(por volta de 135-51), que tiveram o grande mérito histórico de introduzir o estoicismo
em Roma, trai contaminações platônicas ou aristotélicas, o novo estoicismo, ou
estoicismo imperial, marcará uma volta à ortodoxia do antigo estoicismo.
Esse novo estoicismo, que se desenvolveu em Roma sob o Império, está ligado a
três grandes nomes: Sêneca (nascido por volta do início da era cristã, morto em 65),
Epicteto (nascido em 50, morto entre 125 e 130) e Marco Aurélio (121-180),
imperador em 161). Esses três pensadores, cujas obras nos foram conservadas no
essencial (enquanto os escritos do antigo e do médio estoicismo só nos são acessíveis
através de resumos ou citações de autores posteriores), serão os verdadeiros
propagadores do estoicismo no Ocidente. É através deles que Guillaume du Vair,
Montaigne, Corneille, Vigny e tantos outros conhecerão as lições da sabedoria estoica.
(AUBENQUE et al., 1981: 169)
mesmo se iniciado por Cícero, não se restringe a este autor, sendo antes um processo que,
avaliado dentros dos limites estreitos da vida dos três grandes filósofos que Aubenque
menciona, durou pelo menos 140 anos, dos primeiros escritos de Sêneca, em 40 d.C, à
chamada Escola do Pórtico: seus ensinamentos, sendo um produto coletivo, podiam, por
isso mesmo, ser melhorados ou adaptados a novas realidades – como seria o caso dos
romanos – e, apesar disso, mantinham uma continuidade que lhe conferia o aspecto de
solidez desejado para o que quer que se alçasse às condições de doutrina de estado e de
capacitaria em definitivo para tanto? Faz-se mister o retorno a Aubenque, para dar a esta
...é para a moral que tendem todos os esforços dos estoicos. Esta se reduz a alguns
princípios simples: não há outro bem que a retidão da vontade, outro mal que o vício:
tudo o que não é nem vício nem virtude é indiferente. Desses axiomas resultam uma
multidão de consequências paradoxais: a doença, a morte, a pobreza, a escravidão não
são males, mas “indiferentes”; o sábio é, por definição, feliz, mesmo nos sofrimentos;
o mau é sempre infeliz, já que inflige a si próprio, por seu vício, o único dano que sua
alma possa sofrer. (AUBENQUE, et al., 1981: 177)
maiorum romano, conjunto de valores que, embora amplamente arraigado nos séculos
relaxamento dos costumes. Entretanto, enquanto o mos maiorum funcionava – por ser
condição inerente à educação familiar romana – como um contrato social coletivo, a moral
estoica, sendo norma de vida apenas daqueles que se dedicavam à escola, devia ser
divulgada, justificando-se, com isso, uma obra como a de Cícero, que serve, também,
prima inter pares entre os conceitos que, agregados ao mos maiorum, (con)formam o novo
outorgará o título de “sábio”, condição sine qua non para o alcance da felicidade61.
ocupando uma posição única: seja pela forma de composição, em que Cícero descarta suas
cuja única função é propor os temas para discussão -, seja pelo conteúdo, que é
Contudo, quando consideramos que esta obra foi escrita imediatamente após o De
finibus bonorum et malorum, percebemos que os dois textos, de fato, apresentam uma
os contras das principais escolas filosóficas gregas, nas Tusculanae Disputationes o que
vemos é a aplicação prática dos principais valores dessas escolas – com grande destaque
Cícero apresenta, através dos diversos exemplos que há na obra – todos, evidentemente,
sábio.
Percebe-se ainda que há, nas obras selecionadas, uma redução de foco: se De Re
61
Ideia que será retomada por Sêneca em De uita beata.
87
propunha a disposição legal e jurídica para essa mesma república, e se o De finibus... trata
dos – antigos e novos - valores para o cidadão dessa mesma república, as Tusculanae
vivenciar a fusão entre velhos e novos valores sociais que Cícero mesmo propunha.
palavra é um “magister philosophiae”, cujo nome não nos é apresentado. Entretanto, fica
patente que esse é um estratagema de Cícero para poder apresentar mais diretamente suas
ideias, e, considerando que, em sua obra já mencionada, Harvey aponta para o fato de que,
nos manuscritos das Tusculanae Disputationes, as falas são indicadas pelas letras latinas M
signo M com duplo sentido, podendo ser a inicial do praenomen de Cícero, igualando-se
cena, realizando em primeira pessoa do discurso sua exposição – o que equivale a afirmar
Entretanto, cremos haver, ainda, uma terceira e última redução de foco, esta com
maiores consequências no plano político: o fato de Cícero ter dedicado suas obras a Bruto
trai sua intenção de, ao longo de seus textos, fazer com que Bruto assumisse – como de
em 48. Esta última hipótese transparece não apenas nas dedicatórias, mas na própria
condução das ideias realizada por Cícero na obra, principalmente nos livros I e II das
62
Essa proposta de Harvey é adotada por diversos estudiosos: várias edições das Tusculanae Disputationes
trazem as rubricas Auditor e Cicero, substituindo a A e M.
88
contida. Uma mensagem na qual a uirtus - e sua busca – se tornam as principais razão e
Ora, devendo o homem virtuoso não apenas praticar a virtude, mas, em seu nome,
agir em defesa de sua sociedade, fica clara para nós a intenção, exitosa aliás, de Cícero em
Assim, podemos crer que os objetivos de Cícero, nessa obra, são: dar continuidade,
no plano individual, às exposições de De finibus...; mostrar que apenas o sábio, por possuir
de César.
Para além, contudo, desse último motivo, menos nobre e mais imediato, Cícero
busca da uirtus. E isso, cremos também, acaba por fortalecer a integração entre os valores
filosófica.63
Tanto é que, nas próximas obras de Cícero, serão abordados com mais
especificidade como mais alguns valores da tradição tiveram seu sentido modificado pelo
aporte filosófico. Vale lembrar que estas obras foram escritas entre 45 e 44 a.C. ou seja,
quadro da definição dos novos valores identitários, essas obras têm informações
63
Termo com que poderemos nos referir ao projeto identitário romano proposto por Cícero, já que esse
projeto se constrói sob o viés da filosofia.
89
Contudo, estando perdidos o primeiro e o último textos da lista acima, nossa análise estará
Em Cato Maior, Cícero dá a palavra a Catão, o Antigo, avô daquele mesmo Catão
de Útica com quem Cícero dialoga em De finibus... e também seu correligionário político
junto aos Optimates. Nesta obra, a personagem-título fala a respeito da velhice, vista não
cidadão – mas sim como um estímulo adicional ao seu bom desempenho: uma vez que,
exigências da cidade.
próprio Cícero. Mais uma vez recorrendo às figuras históricas da Roma dos Cipiões, auge
responsabilidades do cargo: se é aos velhos que cabe a tarefa de gerir a sociedade, vale
recordar que a raiz de senex (*sen-) é a mesma de senatus, -us64. Desse modo, convocava o
Senado a reassumir seu papel na sociedade romana, num tempo em que, com a guerra civil
64
Conforme se vê no já mencionado Dictionnaire Étymologique de la Langue Latine, de Ernout e Meillet,
no verbete senex: “Le nominatif de senex comporte un suffixe –c- qui se retrouve dans un certain nombre de
dérivés, tandis que d‟autres sont formés sur le thème *sen- des cas obliques. On a donc: seneca, -ae; senatus,
-us.”
90
normas de conduta do novo Senado, criando parâmetros para o que seria, mais tarde,
Logo em seguida, Cícero escreve Laelius de Amicitia, uma obra da qual devemos
mencionar as condições de sua produção: segundo Paratore (1983), este texto foi escrito
em fins de 44 a.C, quando as tropas de Bruto e Cássio já haviam sido derrotadas pela
aliança entre Otaviano e Marco Antônio, e Cícero - que nesse ínterim já havia pronunciado
as Filípicas - sabia que, constituído o Segundo Triunvirato, não tardaria a que seu nome
fosse incluído nas listas de cassação, exílio ou execução. Sabendo-se, portanto, com os dias
Officiis.
inusitada preocupação literária, pois nesta obra é Cícero quem se coloca como narrador
explícito: no preâmbulo de sua obra – dedicada ao amigo Ático –, Cícero deixa claro que a
Sed, ut tum ad senem senex de senectute, sic hoc libro ad amicum amicissimus scripsi de
amicitia. Tum est Cato locutor, quo erat nemo fere senior temporibus illis, nemo prudentior;
nunc Laelius et sapiens (sic enim est habitus) et amicitiae gloria excellens de amicitia loquetur.
Tu uelim a me animum parumper auertas, Laelium loqui ipsum putes. C. Fannius et Q. Mucius
ad socerum ueniunt post mortem Africani; ab his sermo oritur, respondet Laelius, cuius tota
disputatio est de amicitia, quam legens te ipse cognosces. (CÍCERO; De Amic., I, 5) 65
E, talvez por isso, possamos pensar que, ao usar a primeira do singular na oração abaixo,
Cícero esteja falando de si mesmo, e não de sua personagem-título: “Quam ob rem caue
Catoni anteponas istum quidem ipsum, quem Apollo, ut ais, sapientissimum iudicauit;
65
“, portanto,, assim como então, um velho escrevia sobre a velhice a um outro velho, nesta nova obra, é um
amigo que escreve sobre a amizade a seu amigo mais querido. Naquele livro, quem fala é Catão, talvez o
homem mais velho do seu tempo e também, o mais sábio. Neste, quem fala sobre a amizade é Lélio, que não
somente era sábio (assim era considerado), mas, também, que ficou célebre como amigo. Peço-lhe, pois, que
me esqueça por um instante, e imagine estar a ouvir o próprio Lélio. Caio Fânio e Quinto Múcio (Cévola)
vêm à casa do sogro, após a morte do Africano; eles começam a conversa e Lélio responde, fazendo, sozinho,
toda a exposição sobre a amizade. Lendo-a, você vai se reconhecer nela.” (CÍCERO; 2006:17) Todas as
traduções de De Amicitia são de João Teodoro d‟Olim Marote.
91
huius enim facta, illius dicta laudantur. De me autem, ut iam cum utroque uestrum loquar,
(nova) identidade romana? Esta é, cremos, uma questão que admite duas respostas: a
primeira é de caráter (meta)físico – tema que Cícero tratou em obras que não abordamos
aqui -, mas que aponta para o fato de que, para além da religião tradicional romana,
Neque enim adsentior iis, qui haec nuper disserere coeperunt, cum corporibus simul
animos interire atque omnia morte deleri. Plus apud me antiquorum auctoritas ualet,
uel nostrorum maiorum, qui mortuis tam religiosa iura tribuerunt, quod non fecissent
profecto, si nihil ad eos pertinere arbitrarentur; uel eorum, qui in hac terra fuerunt
Magnamque Graeciam, quae nunc quidem deleta est, tum florebat, institutis et
praeceptis suis erudierunt, uel eius, qui Apollinis oraculo sapientissimus est iudicatus,
qui non tum hoc, tum illud, ut in plerisque, sed idem semper, animos hominum esse
diuinos iisque, cum ex corpore excessissent, reditum in caelum patere, optimoque et
iustissimo cuique expeditissimum. (CÍCERO; De Amic., IV, 13)67
Outra possibilidade de resposta encontra-se na listagem de valores sine quibus non poderia
Qui ita se gerunt, ita uiuunt, ut eorum probetur fides, integritas, aequalitas, liberalitas
nec sit in iis ulla cupiditas, lubido, audacia, sitque magna constantia, ut ii fuerunt,
modo quos nominaui, hos uiros bonos, ut habiti sunt, sic etiam appellandos putemus,
66
“Não vá, , portanto,, colocar alguém acima de Catão, nem mesmo aquele que, como você diz, foi
proclamado por Apolo como o “mais sábio” dos homens, pois deste último, louvam-se as palavras, e do
outro, as ações. Quanto a mim, quero, agora, me dirigir a vocês dois: eis o que penso.” (CÍCERO; 2006:21)
67
“Com efeito, eu não concordo com aqueles que recentemente começaram a sustentar que a alma morre
juntamente com o corpo, e que a morte destrói tudo. Prefiro acreditar na autoridade dos antigos, ou na de
nossos ancestrais, que conferiam aos mortos direitos tão sagrados, coisa que não teriam feitos se acreditassem
que nada mais interessava aos mortos; prefiro, ainda, acreditar na opinião dos filósofos que viveram nesta
terra e deram à Magna Grécia, hoje decadente, é certo, mas então florescente, as instituições e os
ensinamentos que a formaram; acreditar, enfim, na opinião daquele que o oráculo de Delfos proclamou como
“o mais sábio”, e que, a esse respeito, não dizia ora isto, ora aquilo, como outros frequentemente o faziam,
mas sempre sustentou que as almas humanas são divinas, e que, no dia em que deixam o corpo, abre-se,
diante delas, um caminho que as leva de volta ao céu, e para as melhores e mais justas, esse retorno é mais
rápido.” (CÍCERO; 2006:25-27)
92
quia sequantur, quantum homines possunt, naturam optimam bene uiuendi ducem.
68
(CÍCERO; De Amic., V, 19)
romanidade, valores que, assim como os do mos maiorum, não eram, necessariamente,
oriundos da Filosofia, mas que ganhariam, com seu reforço, mais força perante as elites e
as massas. Entre esses, claro, inscreve-se a amizade, que, para Cícero, está na base de todo
laço social, sendo inexistente sem a justiça, que atuaria como seu “elemento regulador”.
edifício social – demolido com as diversas guerras mencionadas – poderia ser reconstruído,
pois tanto a tradição, baseada no mos maiorum, quanto seu suporte filosófico – elementos
...voltava ao seu ideal de Roma de um século antes, da Roma cipiônica, que se tornara
para o seu espírito uma espécie de sede utópica de todas as perfeições; voltavam
alguns dos interlocutores do De Oratore e do De Re Publica a exaltar alguns
princípios morais como a amizade, que eram a charneira das filosofias helenísticas,
mas que Cícero considerava praticamente afirmados, sobretudo pela grande tradição
oligárquica romana. (PARATORE; 1983: 230-31)
Outrossim, a intenção última de Cícero, nesse texto, parece-nos ser antes aquela manifesta
Si les propos de Laelius sont peu denses, du point de vue philosophique, la réussite
littéraire de ce texte mineur tient à la qualité du ton donné à l‟éxposé. Et à y regarder
de plus près, cette fiction est troublante – car l‟on y voit la célébration de l‟ amitié
placée sous le signe de la laudatio funebris, de l‟oraison funèbre. En d‟autres terms,
Cicéron, qui s‟identifie à Scipion, emprunte-t-il ce détour pour déjá parler de lui-
même au passé? Scipion, dit Laelius, vivra toujours, car il était vertueux. Bien des
68
“Aqueles que se comportam, que vivem de forma tal que evidencia boa-fé, integridade, equidade e
liberalidade, nos quais não há cobiça, nem paixão, nem louca ousadia e demonstram grande firmeza de
caráter, como as personagens que acabo de citar, e que foram, todos eles, considerados homens de bem, nós,
na minha opinião, devemos, também, assim chamá-los, porque, na medida do possível, seguem a natureza,
que é a melhor guia da vida.” (CÍCERO; 2006:33) As personagens que Cícero citara eram: Caio Fabrício,
Mânio Cúrio e Tibério Coruncânio; cônsules que praticaram ações heroicas durante seus mandatos.
93
lignes sont émouvantes dans ce livre, et font songer à une consolation. Sentant venir sa
fin, Cicéron rêve d‟immortalité. (MARTIN; GAILLARD; 1993:232)69
Mesmo sendo seu “canto de cisne”, Laelius antecede ainda a uma obra que, sendo
Filosofia: dessa vez dedicado a seu filho Marco, Cícero escreverá ainda, no mesmo ano, o
De Officiis, obra que, embora extensa, não chega a apresentar algum novo ângulo para a
Vimos, portanto, que Cícero se vale da escolas filosóficas gregas, mas o faz usando
selecionar, desse objeto, o item considerado válido. Contudo Cícero acaba por ir além, e,
com isso
Cícero, como observamos, usa da filosofia grega, e, se para tanto, fez-se necessário
construir todo um vocabulário latino para dar conta dessa apropriação – abstrata –, Cícero
desempenhou essa tarefa; e, por fim, se sua busca ultrapassou os limites iniciais,
outorgando cidadania romana à filosofia grega, Cícero tornou, com isso, universal a
69
“Se os propñsitos de Laelius são pouco densos, do ponto de vista filosófico, o alcance literário desse texto
menor prende-se à qualidade do tom dado à exposição. E, observando-se mais de perto, essa ficção é
problemática – porque aí se percebe a celebração da amizade marcada pelo signo da laudatio funebris, a
oração fúnebre. Em outros termos, Cícero, que se identifica com Cipião, usa esse desvio para falar de si
mesmo já no passado? Cipião, diz Lélio, vivera sempre, porque era virtuoso. Muitas linhas são emocionantes
nesse livro, e fazem pensar numa consolação. Sentindo vir seu fim, Cícero sonha com a imortalidade.”
70
“A proximidade da herança helenística não se reduz a ressuscitar antigas querelas de escola, esgotadas há
um século, ela constitui uma tentativa de repensar em termos romanos o aporte da cultura grega, e se
subordina à vontade de tentar uma compreensão global da ação humana, segundo os padrões de pensamentos
que eram os de Cícero e seus contemporâneos.”
94
romanidade - condição de que até mesmo seus portadores eram inconscientes -, chegando
aos limites do metafísico, esse fato só pode ser computado a seu crédito.
principal criador e ilustrador do conceito totalmente latino da humanitas. (1983: 240)”: sua
moldar aquela espiritualidade latina da qual, uma vez aproveitada pelo Cristianismo,
tardio na cultura romana: resultando de uma lenta evolução da vida pública e do direito
civil, sua plena formulação, como vimos, só se dará na tormenta final da República.
mais amplo de seres humanos; evidenciado pelas características que farão do homem um
ser humano, e, mais tarde, humanitário, e com destaque para a civilidade, que engloba o
direito como norma básica de convivência. Este fato aproxima a humanitas latina da
paideia grega. Sobre essa transição, não pretenderíamos ser mais concisos que Pierre
conceitos que formaram o mos maiorum serão os mesmos que definirão a romanidade e
concepção abrangente. Desse modo, agregando-se sapientia e humanitas, aquela tríade que
95
importância da uirtus, preparariam, de certo modo, a visão de mundo romana para o novo
defender uma restauração plena do modelo político anterior e, ao mesmo tempo, preconizar
um novo conjunto de valores para a sociedade romana. Porém devemos recordar que essa
sociedade, tal como pretendida por Cícero, não é mais restrita aos cidadãos da Vrbs.
Ele mesmo um cidadão romano não-citadino, Cícero sabia que eram necessárias
satisfatoriamente, toda aquela população da península italiana que, desde Mário, tivera
acesso jurídico à cidadania. Ora, essa absorção passava necessariamente pela Magna
Grécia, ou seja, toda a região sul da Itália, centro agrícola de primeira ordem na península,
costumes e as tradições dessa região deveriam estar, de algum modo, visíveis nessa nova
composição identitária.
poder romano, ser atraídas com maior eficácia para Roma, uma atração que deveria ser
executada não mais apenas manu militari, mas por modos mais sutis. E, finalmente, as
71
Essas elites eram, na verdade, as populações helênicas, já que os demais povos sob o imperium não eram
considerados suficientemente civilizados para merecerem maior atenção, ou para que sua cultura pudesse
interferir na questão identitária em Roma.
96
da Roma republicana. Com isso, como dissemos, seria possível integrar não apenas os
grupos sociais em conflito na capital, em que o predomínio político dos Optimates estaria
consagrado mas também atrair para a romanidade o conjunto das populações italianas e as
os habitantes de Roma contavam, agora, pouco para a manutenção do poder romano. Era
romanidade. E uma estratégia para isso seria fazer com que o habitante das regiões
controladas por Roma pudesse, a par de sua própria origem, sentir-se parte de uma
coletividade maior, por partilhar valores mais profundos que o ius sanguinis ou o ius solis.
É por esse motivo que as obras de Cícero apontam para a incorporação, como
também é por isso que, por outro lado, está clara também a intenção de universalizar o mos
maiorum.
romanidade os diversos grupos socioculturais sob o imperium. Cícero antevia, enfim, que o
sentimento em relação a Roma, para que Roma mesma se preservasse, deveria dar um
passo além, na direção da universalidade. Em resumo, para que Roma continuasse a ser
sistema não escondem o intuito de preservar as estruturas que o regem. Isto fica claro
República, Cícero tenha sido assassinado a mando de Marco Antônio em 43 a.C., não se
pode dizer que sua obra tenha caído no esquecimento – prova disso é o fato de ser o autor
romano mais bem preservado – ou ainda que suas propostas no plano político e/ou
filosófico não tenham sido aproveitadas. Afinal, alcançando o poder, Augusto configurará
enfaticamente sua política pela pauta da preservação, ao máximo, das estruturas políticas
da República; assim como pela restauração do mos maiorum e das tradições ancestrais
Cícero, seria posta em prática pelo regime autocrático que ele tanto se empenhou em
evitar.
República, o mesmo não poderá dito de Sêneca – assunto de nosso próximo capítulo – já
que, cessada qualquer dinâmica e/ou debates políticos pelos sucessores de Augusto, esse
pensador viverá numa Roma que, apesar de manter uma retórica em que a vida pública
seria calcada no estoicismo, terá uma população a qual restará apenas um absenteísmo
quanto à vida pública, justificado pelo mesmo Epicurismo que Cícero tanto combatera.
98
Sêneca (4 a.C), cerca de cem anos terão decorrido entre ambas as mortes, já que a de
Sêneca ocorre em 62 d.C. Essa informação pouco significaria se esse não fosse o primeiro
maneira sucinta.
Otaviano, vencidas por este último, o poder se viu, pela primeira vez desde César,
concentrado em uma só pessoa. E, talvez por isso, Otaviano, logo cognominado Augusto,
com todas as instâncias de poder: senado, exército, população, etc. Dissolvidas as velhas
99
realizando sempre algumas adaptações motivadas pelo novo regime. Como governante,
das províncias mais abaladas pelas sucessivas guerras e em embelezar a capital. Realiza
literatura, sendo este o momento em que a poesia latina é catapultada a um novo patamar,
romanidade, em especial o resgate do mos maiorum. Esta retomada transparece até mesmo
na emissão de moedas realizada por Augusto, em que estes conceitos são personificados, já
que
que são úteis para apaziguar os ânimos cansados de seguidas convulsões políticas -, ao
Les abstractions personnifiées jouent un grand rôle dans les imaginations romaines,
soit qu‟elles expriment une satisfaction béate, dans les époques de prosperité, soit que
l‟affirmation qu‟elles symbolisent rallie la foi du peuple dans un avenir meilleur.
(BABELON, 1944:110)72
72
As abstrações personificadas têm um grande papel no imaginário romano, seja porque expressam uma
alegre satisfação, nas épocas de prosperidade, seja porque a afirmação que elas simbolizam unifica a fé do
povo em um futuro melhor.
100
romana73 terá agravada a crise identitária que até então vivenciara, pois além da
indisposição para com os referenciais de sua própria tradição cultural, somar-se-á a crise
advinda da perda de uma parte ainda maior de seu poder, partilhado agora com os novos
grupos sociais em que Augusto se apoia. A sensação de que a perda do poder era
decorrência também da crise cultural logo se faz sentir, levando uma boa parcela dessa
agora tornado “válvula de escape” para uma situação sociopolítica bastante adversa.
É nesse momento que muitas das propostas realizadas por Cícero são acatadas pela
elite cultural, e também pelo regime imperial, que, embora deixando de lado o máximo
possível que fizesse alusão direta à tradição republicana, acabará abraçando os valores
E apesar das proposições de Cícero não terem sido esquecidas durante os anos de
73
É importante distinguir aqui “aristocracia”, i. e., a oligarquia hereditária que dirigia a República há
séculos,; de “elite”, os novos grupos a que a expansão do império dera existência.
74
“Outros saberão, com mais habilidade, abrir e animar o bronze, creio de boa mente, e tirar do mármore
figuras vivas, melhor defenderão as causas e melhor descreverão com o compasso o movimentos dos céus e
marcarão o cursos das constelações: tu, romano, lembra-te de governar os povos sob teu império. Estas serão
tuas artes, impor condições de paz, poupar os vencidos e dominar os soberbos.”
101
A perda das raízes culturais romanas ficará ainda mais evidente durante as
primeiras décadas do Império, posto que nesse momento se estende a outras camadas
sociais, uma vez que até mesmo a paz e a estabilidade que o Império proporcionam
... la société cultivée, qui assure aux écrivains un public et des encouragements,
s‟élargit toujours. Aux sénateurs délivrés des vrais soucis politiques, aux chevaliers,
fonctionnaires préférés du régime, se joignent la riche bourgeoisie des provinces et
même une sélection d‟affranchies. En effet, avec la pacification de l‟Empire et la
prospérité qui en résulta, le rôle des esclaves intelligents, intendants, secrétaires,
gérants, s‟accrut partout entre la bourgeoisie fonctionarisée et la plèbe fainéante;
affranchis et, avec leurs habitudes d‟activité et d‟entregent, s‟enrichissant souvent,
désireux au surplus de faire reconnaitre leur valeur intellectuelle et oublier leur
origine, ils sont le vrai ferment de la nouvelle société.
Ils sont le plus souvent originaires de l‟Orient. El les provinces asiatiques envoient
maintenant vers Rome, unique capitale, une foule de besogneux avides de se faire une
place. Ainsi un grand nombre d‟hommes dont le grec était la langue maternelle sont
appélés à l‟usage du latin. Mais ils ne renoncent tout à fait ni à leur mentalité ni à
leurs aspirations; et même leur influence modifie fort vite les mœurs et jusqu‟à l‟esprit
romains: les rangs se confondent, l‟orgueil national se perd, les curiosités se
multiplient, les plus nobles comme les plus basses. (BAYET, 1953: 444-5) 75
de soerguer esta identidade tradicional romana, será em vão que o próprio Augusto estará,
75
“A sociedade culta, que assegura aos escritores um público e encorajamento, aumenta sempre. Aos
senadores liberados de verdadeiros debates políticos, aos equestres, funcionários preferidos do regime,
juntam-se a rica burguesia das províncias e mesmo uma seleção de libertos. De fato, com a pacificação do
Império e a prosperidade resultante, o papel dos escravos inteligentes, intendentes, secretários, gerentes, se
espalha por toda parte entre a burguesia funcionarizada e a plebe desocupada; liberttos e, com seus hábitos de
atividade e empreendimento, enriquecendo-se frequentemente, desejosos ademais de fazer reconhecer seu
valor intelectual e esquecer sua origem, são o verdadeiro fermento da nova sociedade.
Eles são com maior frequência originários do Oriente. E as províncias asiáticas enviam agora para
Roma, única capital, uma legião de desejosos ávidos de conseguir um lugar ao sol. Desse modo um grande
número de homens cuja língua materna era o grego são chamados ao uso do latim. Mas eles não renunciam
de modo algum a sua mentalidade nem a suas aspirações; e sua influência modifica rapidamente os hábitos e
até mesmo o espírito romano: os níveis se confundem, o orgulho nacional se perde, as curiosidades se
multiplicam, tanto as mais nobres quanto as mais vis.”
102
esta seria uma questão imanente à produção de obras como a própria Eneida, por Virgílio;
e dos Fastos, por Ovídio, e não deixa de ser um traço de continuidade do pensamento de
Cícero.
Fica também patente - após o fracasso das tentativas de Augusto e o pouco impacto,
para além do ufanismo patriótico, despertado pela Eneida - que embora as propostas
filosófico; a situação tornara-se tão mais complexa que rapidamente uma nova
formada por gente de origens as mais diversas, ao menos a elite social e cultural era
romana de boa cepa, nos anos de Augusto porém, era a própria elite que, pouco a pouco,
identitária romana persistia, uma vez que novas personagens insistiam em entrar em cena.
meio a esta elite romana, aqueles que, havendo preservado o quanto possível sua
identidade cultural, ainda fossem capazes, mesmo com o fim de formular uma nova
governantes, para que tenhamos uma visão mais clara – embora limitada – dos fatos
históricos do período.
103
a seu sucessor Tibério, o qual, apesar de não possuir a mesma popularidade do antecessor,
pôde ainda exercer seu poder com relativa tranquilidade, e tão seguro estava da solidez de
seu governo que pôde, em 29, retirar-se para a ilha de Capri e aí residir até a morte, em 37.
Augusto, mormente no campo cultural em que se mantém a ênfase na defesa dos valores
morais, fato que, novamente, pode ser comprovado através da numismática do período
imperial:
Ou seja, enfatizar, no meio circulante, os valores das virtudes significava, por si só,
demonstrar quais seriam os valores que, segundo Tibério, deveriam ser perseguidos por
as virtudes que Augusto priorizara seriam defendidas: seus sucessores imprimiriam nas
Ao longo dos anos, outras virtudes e personificações, além das cardinais, são
incorporadas à cunhagem de moedas, assim como várias apresentações das ações do
príncipe para com seus súditos ou mesmo de suas atividades como dirigente do
Império. Assim, observa-se o aparecimento de Aequitas, Aeternitas, Annona, Ceres,
Concordia, Constantia, Felicitas, Fortuna, Honos, Libertas, Pax, Pudicitia, Salus,
Securitas, Spes, Tutela, Veritas e Victoria. (VIZENTIN, 2005:70)
Tal prática, evidentemente, nos permite aquilatar com maior precisão a imagem que cada
um dos Césares tentava transmitir à população. Mas também deixa claro quais foram os
valores em ascensão no período entre Augusto e Nero: como se percebe na lista acima, são
basicemente os mesmo que arrolamos no conjunto do mos maiorum, tal como preconizado
104
Veritas e Victoria. Além, é claro, daqueles ideais que o regime, desde Augusto, defendia:
conjunto de (novos) valores propostos – por Augusto e seus sucessores – para o regime
imperial.
Estado, tirania. Calígula logo veio a ser deposto pelas legiões em 41, e substituído por seu
tio Cláudio, a quem caberia (re)organizar o modelo imperial, reparando os estragos que
despontar no quadro político romano, como Cícero, também era advogado – embora seus
discursos não tenham sido preservados – e sabe-se que não desfrutava da simpatia do
Senado: Cláudio não desprezava a instituição, mas julgava inadequado o modo de vida
Como legislador, Cláudio era ponderado e cauteloso, e muito do que estabeleceu foi
d.C. No terreno militar, Cláudio foi responsável pela definitiva anexação da Bretanha ao
105
Império (43 d.C.). Contudo, os escândalos provocados pela promiscuidade de sua mulher,
fizeram ainda com que Cláudio decidisse adotar o filho desta, o jovem Nero, em
detrimento dos filhos da primeira esposa: Britânico e Otávia. (Sendo Nero mais velho,
acusação de adultério; mas seu exílio seria revogado em 49, pois Agripina convence
Cláudio a nomeá-lo preceptor de Nero. Com a morte do imperador, Nero herda o trono e,
para consolidar sua posição, casa-se com sua irmã adotiva Otávia e trama o assassinato do
jovem Britânico.
Ao longo de todo este período, forma-se no Senado, lenta mas de modo crescente,
instauração por Augusto, como forma de pacificar o imperium, sua continuidade tornou-se
odiosa às instituições e às liberdades do povo romano. Esse grupo vale-se dos valores
estoicos para aglutinar suas ideias de retorno à República e é por isso mesmo denominado
“oposição estoica”.
Vista até aqui a sucessão do Império, voltemos à pergunta de Bieler sobre quem
Para tanto, será necessário voltar ainda uma vez ao período republicano, em que,
territórios conquistados fará com que, décadas depois, surja no panorama social uma figura
inteiramente nova: a daquele cidadão romano que, mesmo não-nascido na Urbe, muitas
vezes sequer na Itália, tem interesses na manutenção do poder romano em sua região, ao
Essa figura emergente terá especial destaque nas regiões do Ocidente: Gália,
representou, sob o ponto de vista das relações entre o centro e a periferia do mundo
ainda mais o processo de romanização destas províncias. Romanização esta que, tendo
preservado muito das antigas tradições e da identidade cultural romana, seria agora um
retornarmos a Bayet:
Cette poussée d‟orientalisme hellénisant est pourtant contenue par l‟apport des
provinces occidentales où la langue latine, fixée par l‟usage classique, gagne
puissament. Après la Cisalpine et la Narbonnaise, l‟Espagne donne à Rome une foule
d‟ écrivains, Porcius Latro, les Sénèques et Lucain, Columelle, en attendant Quintilien
et Martial; et voici que, dès 48, la nouvelle Gaule peut aspirer au droit de cité complet,
tandis que la Bretagne s‟ouvre à la formation romaine et que l‟Empire s‟étend dans
l‟Afrique du Nord jusqu‟à l‟Océan. Sans doute ces provinciaux enrichissent-ils aussi
le cosmopolitisme romain de traits nationaux: on a reconnu, dans les Espagnols, l‟éclat
et l‟enflure superbe de la race. Mais leur formation, plus purement latine, les agrége
mieux au passé de Rome, (BAYET, 1953: 444)76
Se estes eram os homens capazes de injetar sangue novo no velho espírito romano,
fazendo com que, dentro do Império e apesar da censura política exercida pelos
76
Esta onda de orientalismo helenizante é entretanto contida pelo aporte das províncias ocidentais onde o
latim, fixado pelo uso clássico, vence com vantagem. Além da Cisalpina e da Narbonense, a Espanha dá a
Roma uma fila de escritores, Pórcio Latro, os Sênecas e Lucano, Columela, esperando ainda Quintiliano e
Marcial; e eis que, desde 48, a nova Gália pode aspirar ao direito completo de cidadania, enquanto que a
Bretanha se abre à formação romana e o Império se estende da África do Norte até o Oceano. Sem dúvida
estes provincianos enriquecem-se também o cosmopolitismo romano com traços nacionais: reconheceu-se,
nos espanhóis, a explosão e a fúria soberba da raça. Mas sua formação, mais puramente latina, os prende
melhor ao passado de Roma.
107
sua história, foram também responsáveis pela ampliação dos horizontes culturais romanos,
que não mais estariam restritos a Roma, antes dar-se-ia o inverso, fato que levou o
Se Bieler se aferra ao fato político de vigência do Império Romano para realizar sua
durante o Império é, sobretudo, obra daqueles romanos que agravam aquele paradoxo já
77
Os conceitos de literatura romana e literatura latina se entrecruzam. O latim se escreveu e falou ainda
muito depois da queda e desmembramento do Império Romano do Ocidente. Nos estados que daí surgiram,
continuou sendo o latim o idioma literário; desde a época carolíngua (e na Irlanda ainda antes) foi a língua
universal e unificadora, ao lado das línguas literárias nacionais. Ainda hoje continua sendo o latim a língua
da igreja católica romana. Mas isto tudo tem pouco a ver com a história da literatura romana: tão só como
sobrevivência de formas e motivos literários, de técnicas e elementos estilísticos e, sobretudo como tradição
daquela liteatura.
Nem todos os autores romanos escreveram em latim. (...) Mas desde a era clássica da literatura
romana, os países que participaram ativamente nela estavam completamente romanizados: Itália desde a
conquista, España desde o início de nossa cronologia, África desde o século II, e as Gálias desde fins do
século III. A criação literária dos homens nascidos em tais países pertence essencialmente a literatura
romana, os romanos nativos da capital em si a representam muito mal, salvo os oradores: são os nativos do
resto de Itália e logo das províncias os que nos trasmitem tudo que é tipicamente romano. Tal é o caso de
Ênio no século II antes de Cristo, assim como o de Rutílio Namaciano no V depois de Cristo.
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para uma crise que possuía duas faces: a de uma crise política motivada pela expansão de
um poderio econômico e militar que postergou além do devido sua adaptação à nova
realidade que esta mesma expansão ensejara e a de uma crise identitária surgida
inicialmente na aristocracia e que mais tarde espalhou-se às demais classes que disputavam
parcelas do poder na Urbe, b) que fica ainda patente que, apesar de solução política, o
império é incapaz, por si só, de resolver - ao contrário, agrava - a crise identitária que
tentara resolver, e que tornava-se ainda mais urgente uma renovação no espírito romano
que lhe garantisse a própria sobrevivência; por fim, c) evidencia-se ainda que esta
renovação só seria possível – como de fato ocorreu – capitaneada pelos romanos das
províncias, que haviam preservado em maior grau o espírito que ora se impunha salvar.
Como consequência do somatório destes fatos, ficava aberto o caminho para que
homens como Sêneca ocupassem os espaços sociais, culturais e políticos do Império, o que
público romano como a de Lúcio Aneu Sêneca é, ademais de mérito do próprio, tornada
78
Razão pela que preferiremos, neste trabalho, usar os termos literatura e cultura latina ao referimo-nos à
produção feita por estes romanos, não porque não reconheçamos a validade do argumento de Bieler, mas
porque, dados os limites temporais estabelecidos para este trabalho, essa distinção suplanta em importância
àquela.
109
anterior.
tratada em obras como La Vie de Sénèque, de Auguste Bailly; Vie de Sénèque, de René
Waltz e Sénèque ou la conscience de l’Empire, de Pierre Grimal, além de toda uma plêiade
de historiadores, filósofos e literatos – haverá, contudo, alguns fatos que deverão ser
forçosamente mencionados, e para isso optamos por recorrer ao ligeiro esboço já traçado
Sorti d‟une famille qui n‟avait d‟autre ambition que de servir, dévoué au régime
impérial, comme tous les provinciaux, qui lui devaient tout, Sènèque aimait
passionnément la vie politique. Il était profondément ambitieux, et il lutta toute sa vie
pour avoir le droit de se consacrer au service de la Cité. Mais, en même temps, il était
doué d‟une vie intérieure intense. Il était fasciné par rechercer dans la philosophie
comme une véritable initiation mystique et il est certain que son choix du Stoïcisme
fut moins dicté par sa raison que par son cœur. (GRIMAL, 1957: 35)79
maioria das vezes sequer na Itália, e cuja produção intelectual busca realizar a adaptação
É essa a geração que entroniza na capital a compreensão de que o império era maior
de que uma cidade e as regiões que dominara. Se Cícero era consciente de que a Vrbs
deveria tornar-se, cada vez mais, Orbis, a partir dessa geração, de que Sêneca é sem dúvida
o principal nome, o Orbe suplanta a Urbe, e o nome “romana” passa a designar antes a
cultura expressa em latim que aquela do Lácio, conforme Bieler nos alertou.
79
“Saído de uma família que não tinha outra ambição senão servir, devotada ao regime imperial, como todos
os provincianos, que lhe deviam tudo, Sêneca amava apaixonadamente a vida política. Era profundamente
ambicioso, e lutou toda sua vida para ter o direito de consagrar-se ao serviço da Cidade. Mas, ao mesmo
tempo, era dotado de uma intensa vida interior. Era fascinado para buscar na filosofia uma verdadeira
iniciação mística e estava certo de que sua opção pelo Estoicismo foi ditada menor pela razão que pelo
coração.”
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Ademais, será essa a geração que realizará, visando resgatar as tradições culturais
romanas, preservadas em suas regiões de origem, um novo encontro destas tradições com o
estoicismo helênico, e, nessa tarefa, Sêneca desempenhará um papel crucial, uma vez que,
tendo sido presença constante na corte imperial durante os reinados de Tibério a Nero, e
tendo sido o preceptor deste último e governado de fato o Império durante os anos da
minoridade deste, Sêneca terá a oportunidade – tão preconizada pelos filósofos desde
Platão, e que Cícero tanto almejou – de orientar esse mesmo Império pelos princípios do
estoicismo que abraçara e que tanto defendia, como testemunham seus textos.
E de que consistiam estes textos? E por que teria Sêneca abraçado o estoicismo
como escola filosófica e tentado, através de Nero, impô-lo como norma e diretriz do
língua latina, tendo como concorrentes Cícero – que tratou a Filosofia sempre pela ótica do
Direito, como afirmamos anteriormente - e Marco Aurélio – embora este tenha escrito em
grego suas Meditações. Além disso, a figura de Sêneca sobressai ante estes dois por razões
Fica patente que o destaque de Sêneca fica devido a dois critérios distintos: suplanta a
Cícero porque este ainda usa a Filosofia como arcabouço para uma práxis que é, afinal,
sociedade romana. Quanto a Marco Aurélio, a crítica fica no âmbito linguístico: ter
escolhido escrever em grego o desqualificaria como escritor latino – embora não, segundo
estes dois motivos que o nome de Sêneca, e sua obra filosófica, são justamente lembrados
entre os maiores da Antiguidade Clássica. Todavia, há ainda, segundo Paul Veyne, uma
razão para que se coloque Sêneca no conjunto dos grandes escritores latinos: a inovação
estilística que sua prosa representa, e que é, por sua vez, mais um distintivo entre sua obra
e a de Cícero:
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“Em Sêneca, as considerações filosñficas vão à frente das convicções, ou, melhor, não se separam delas,
enquanto que, em Cícero, sentimos um ligeiro desdobramento: a filosofia vinha a realçar as convições, como
um esmalte.
Por último, o filósofo Sêneca era, ao mesmo tempo, como Cìcero, um escritor, fato que se reconhece
numa coisa, ainda que filósofos, um e outro escreveram em latim e não em grego. (...) Cícero e Sêneca
escolheram o latim porque se sabiam com capacidade de escritor, por que queriam enriquecer sua literatura
nacional, porque não desejavam fechar-se no meio dos especialistas, mas porque apontavam ao grande
público culto.”
112
Sêneca que chegou até nós pode ser dividido em dois grupos; o primeiro destes, formado
pelos textos de caráter filosófico, subdividir-se-ia nos subgrupos dos textos filosóficos
propriamente ditos e o dos textos dramatúrgicos. Esta divisão, evidentemente falha, é feita
expostas e analisadas pelo estoicismo de que foi um dos mais eminentes representantes.
Podemos igualmente incluir neste primeiro subgrupo sua produção epistolar, em especial
correspondência para círculos muito maiores que o de seu destinatário, Sêneca expunha a
doutrina de sua escola filosófica. Também alguns de seus poemas podem ser categorizados
O segundo subgrupo seria composto pelas tragédias escritas por Sêneca. Sobre
81
Uma das razões da modernidade de seu estilo: frases breves, claras, mordazes, diretas, que saber tornar
acessíveis algumas questões às vezes árduas por meio de uma súbita metáfora. Este é o estilo nossa prosa de
ideias desde Montesquieu, e de nosso grande jornalismo. Mas na Antiguidade esse estilo se encontrava nas
antípodas do que se considerava “grande estilo”, a saber: da eloquência, dos amplos períodos ciceronianos
cujo começo, às vezes, o leitor já tinha esquecido quanto chegava ao final; não importava: a eloquência
antiga era em geral uma espécie de bel canto e, como este último, atraía a incontáveis fãs. Entretanto, havia
exceções, como Demóstenes, cujo método não consistia em encantar, mover, e seduzir, mas em projetar
sobre seus ouvintes um influxo nervoso que os cativava. O estilo de Sêneca segue o mesmo caminho.
Uma palavra mais: apesar de sua clareza, Sêneca deve ser levado a sério como filósofo, passou já o
tempo em que se lhe considerava um literato com verniz de filosofia, cujo estudo se deixava para os
especialistas em letras latinas. A clareza de sua superfície deixa perceber fundamentos conceituais muito
firmes, que são os do estoicismo grego em sua versão autêntica. Sêneca não foi um decadente nem um
vulgarizador que se dirigisse ao pretenso “espírito prático” dos romanos.
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Consideradas, pois, não só por Millares Carlo mas pela maioria dos críticos, como o
ponto fraco de sua produção, os defeitos apontados nas tragédias de Sêneca traem a
ideias filosóficas que defendia: tratava-se, enfim, da submissão, pura e simples, do Teatro à
Filosofia.
discutível autoria – e pela sátira Diui Claudii Apocolocyntosis, composta por ocasião da
morte de Cláudio, que nos anos iniciais de seu governo, ordenara seu exílio na Córsega.
data facilmente dedutível, sobre outras permanecem dúvidas sem solução, contudo, sabe-se
que sua produção se dá entre os anos 40 e 65 d.C., ano de sua morte; entretanto importa
mais ainda ressaltar que, mesmo sendo uma obra tão vária e dispersa entre tantos textos, o
apesar de seus escritos, jamais foi, a rigor, um filósofo - uma linearidade quase absoluta.
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De argumento totalmente grego, foram compostas para leitura e não para serem encenadas. Seus
títulos são Hercules furens, Troades (Hecuba); Phoenissae (Thebais); Medea; Phaedra (Hippolitus);
Oedipus; Agamemnon; Thyestes e Oetaeus. Em alguns códices acrescenta-se uma “pretexta” intitulada
Octauia, posterior à morte de Nero.
Em geral, trata-se de peças que não podem resistir à comparação com as grandes concepções dos
autores gregos que lhes serviram de modelo, comumente Sófocles e Eurípides. Há, sem dúvida, nelas
admiráveis passagens, pensamentos belíssimos, descrições brilhantes, coros cheios de graça e encanto; mas,
julgadas em conjunto, empalidecem pela frieza, falta de intriga, substituída por relatos demasiadamente
longos; as paixões são excessivas e a inoportuna verborragia rouba eficácia aos sentimentos que trata de
representar.
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é válido questionarmo-nos sobre a real adesão de Sêneca à escola estoica. Adesão esta já
questionada pelo mesmo Paul Veyne, na obra que vimos citando - Séneca y el estoicismo –
e também relativizada por Pierre Grimal, que prefere defender haver em Sêneca boas doses
de ecletismo e de independência:
senequiano logo demonstrarão que Sêneca diverge do estoicismo apenas naquilo que lhe é
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No mundo greco-romano, a filosofia era uma questão de seitas, como no Extremo Oriente; um filósofo não
se interessava pela filosofia em geral, mas era platônico ou pitagórico ou epicúreo ou, como Sêneca, estoico.
A filosofia não era matéria de ensino universitário, mas um estudo sublime que atraia a aficcionados ricos,
como Sêneca, e que dava emprego a preceptores privados.
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Sêneca é um pensador de obediência estoica. Ele o proclama frequemente, e se vangloria de
pertencer à escola mais “viril” e que elevou mais alto o ideal da Virtude. Entretanto, se seu pensamento
encontra apoio no Estoicismo, ele mesmo não se condidera um escravo desta escola. Ele nos adverte muitas
vezes,e afirma sua desconfiança das fórmulas propostas por tal ou qual mestre do Pórtico. Nós vemos, no
tratado Sobre a Vida Feliz, por exemplo, divertir-se a opor umas às outras todas as definições estoicas da
felicidade, a mostrar sua equivalência, para ao fim, propor outra, pessoal.
Frequentemente, também, ele adota sentenças epicúreas. As primeiras Cartas a Lucílio terminam
sempre por alguma fórmula emprestada da escola rival, que ele afirma com malícia a verdade e a
profundidade.
Por todas essas razões, frequentemente considerou-se Sêneca como eclético e um filósofo, senão
inteiramente original, ao menos independente.
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secundário: a dialética, o excesso de minúcias e sutilezas - o que é, aliás, uma atitude bem
coerente com o pragmatismo romano. Logo, vale mais ater-se ao alerta emitido por
Grimal: “ ... il convint de ne pas être dupe des apparences, et surtout, de notre
stoïcienne pèse sur lui bien plus qu‟il ne le dit.” (GRIMAL, 1957: 41)85
Entretanto, como pensador, Sêneca também acrescenta algo de seu à moral estoica:
buscar consonância com a natureza, isto será demonstrado na seguinte citação – longa
Este reconhecimento, por parte de Sêneca, de que a vida moral consiste em dominar
uma natureza humana sobre a qual a paixão exerce um poder de atração ainda mais
sedutor, será a chave que nos possibilita entender diversos dos seus textos, como De Vita
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“convém não se enganar pela aparências, e sobretudo, por nosso conhecimento, infelizmente fragmentado,
das fontes de Sêneca. A ortodoxia estoica pesa sobre ele mais do ele assume.”
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Beata, De Tranquilitate Animi, De Breuitate Vitae, etc. Também nos esclarece a razão de
como escola destinada a capitanear seu intento de recuperação das tradições culturais
romanas: como Cícero já demonstrara, havia, entre a natureza desta escola e a das
tradições, uma identidade de princípios que bastava apenas expor sob a nova roupa