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VISÕES DA IDENTIDADE ROMANA EM CÍCERO E SÊNECA

Luiz Fernando Dias Pita

Tese de Doutorado apresentada ao Programa de Pós-


Graduação em Letras Clássicas da Universidade
Federal do Rio de Janeiro como quesito para a
obtenção do Título de Doutor em Letras Clássicas.
Orientadora: Profª. Drª Vanda Santos Falseth

Rio de Janeiro
Abril de 2010
2

VISÕES DA IDENTIDADE ROMANA EM CÍCERO E SÊNECA

Luiz Fernando Dias Pita

Profª. Drª. Vanda Santos Falseth

Tese de Doutoramento submetida ao Programa de Pós-Graduação em Letras


Clássicas (Área de Concentração: Culturas da Antiguidade Clássica), da Faculdade de
Letras da Universidade Federal do Rio de Janeiro como parte dos requisitos necessários à
obtenção do título de Doutor em Letras Clássicas.

Rio de Janeiro, de abril de 2010.

_____________________________________________________________________
Profª. Drª. Vanda Santos Falseth
(Orientadora)
Universidade Federal do Rio de Janeiro

_____________________________________________________________________
Profª. Drª Alice da Silva Cunha
Universidade Federal do Rio de Janeiro

_____________________________________________________________________
Prof. Dr. Amós Coêlho da Silva
Universidade do Estado do Rio de Janeiro

_____________________________________________________________________
Prof. Dr. Francisco de Assis Florêncio
(Universidade do Estado do Rio de Janeiro)

_____________________________________________________________________
Profª. Drª Mary Kimiko Guimarães Murashima
(Universidade do Estado do Rio de Janeiro)

_____________________________________________________________________
Profª. Drª. Arlete José Mota
(Suplente)
(Universidade Federal do Rio de Janeiro)

_____________________________________________________________________
Prof. Dr. Airto Ceolin Montagner
(Suplente)
(Universidade do Estado do Rio de Janeiro)
3

À Marli, por ter-me devolvido o sentido do termo família.


Ao Virgílio, pelo futuro.
4

Agradeço

Ao Prof. Dr. Carlos Antonio Kalil Tannus pela


orientação precisa, segura e entusiasmada,
assim como pela amizade com que me honrou;

À Profª Drª Vanda Santos Falseth, que


atualizou o velho adágio “Amica certa in hora
incerta cernitur.”

Ao corpo de professores do Programa de Pós-


Graduação em Letras Clássicas da Universidade
Federal do Rio de Janeiro; pelo brilhante curso
aí ministrado;

Ao corpo de professores do curso de


Especialização em Língua Latina da
Universidade do Estado do Rio de Janeiro,
pelas sólidas bases que me possibilitaram
realizar este voo;

Ao amigo Prof. Marcelo de Melo Soares, pela


colaboração sempre presta;

Ao amigo Prof. Me. Dimas de Fonte Silva pelo


sempre fecundo intercâmbio de ideias e
experiências;

Ao amigo Prof. Emerson Xavier, que


transmitindo-me seus conhecimentos de
francês, possibilitou-me a leitura da maioria dos
textos utilizados na elaboração deste trabalho;

Aos companheiros de jornada.


5

“Deve-se estudar a literatura romana


principalmente com o propósito de
compreender a história de Roma, enquanto a
história grega deve ser estudada com o
propósito de compreender a literatura
grega.”
(R. H. Barrow)
6

RESUMO

VISÕES DA IDENTIDADE ROMANA EM CÍCERO E SÊNECA

Luiz Fernando Dias Pita

Profª. Drª. Vanda Santos Falseth

Resumo da Tese de Doutoramento submetida ao Programa de Pós-graduação em


Letras Clássicas (Área de Concentração: Culturas da Antiguidade Clássica), da
Faculdade de Letras da Universidade Federal do Rio de Janeiro como parte dos
requisitos necessários à obtenção do título de Doutor em Letras Clássicas.

O estudo das obras de Cícero e de Sêneca permite perceber, além dos temas já
consagrados pela exegese, a formulação de novas propostas identitárias para o povo
romano, baseadas tanto na manutenção quanto na adaptação do mos maiorum, e também
na recepção das escolas filosóficas gregas, com especial papel para o estoicismo. Assim,
obras destes autores, e também a praetexta Otávia, propõem ou demonstram novos
paradigmas para a romanidade, ao mesmo tempo em que criam e/ou refletem as relações
entre Literatura, Filosofia e História no Império Romano, cujas reverberações podem ser
ainda hoje percebidas nas culturas de latinidade.
7

RESUMEN / RÉSUMÉ

VISÕES DA IDENTIDADE ROMANA EM CÍCERO E SÊNECA

Luiz Fernando Dias Pita

Profª. Drª. Vanda Santos Falseth

Resumo da Tese de Doutoramento submetida ao Programa de Pós-graduação em


Letras Clássicas (Área de Concentração: Culturas da Antiguidade Clássica), da
Faculdade de Letras da Universidade Federal do Rio de Janeiro como parte dos
requisitos necessários à obtenção do título de Doutor em Letras Clássicas.

RESUMEN

El estudio de las obras de Cicerón y de Séneca permite percibir, además de los temas
ya consagrados por la exegesis, la formulación de nuevas propuestas identitarias para el
pueblo romano, basadas tanto en el mantenimiento como en la adaptación del mos
maiorum, y también en la recepción de las escuelas filosóficas griegas, con especial
papel para el estoicismo. Así, obras de estos autores, y también la praetexta Octavia,
proponen o demuestran nuevos paradigmas para la romanidad, al tiempo en que crean
y/o reflejan las relaciones entre Literatura, Filosofia e História en el Imperio Romano,
cuyas reverberaciones se pueden todavía hoy percibir en las culturas de latinidad.

RÉSUMÉ

L‟étude des œuvres de Cicéron et de Sénèque nous permettent d‟apercevoir, au-delà


des thèmes déjà consacrés par l‟exégèse, la formulation de nouvelles propositions
identitaires pour le peuple romain, établies tant sur la manutention comme sur
l‟adaptation du mos maiorum, et aussi sur la réception des écoles philosophiques
grecques, avec rôle privilégié pour le Stoïcisme. Ainsi, des œuvres des auteurs
mentionnés, et aussi la praetexta Octavie, établissent ou démontrent des nouveaux
paradigmes pour la romanité, au même temps que créent ou refléchissent les rélations
entre la Littérature, la Philosophie et l‟Histoire dans l‟Empire Romain, dont les
repercussions se peuvent, jusqu‟aujourd‟hui, se noter dans les cultures de latinité.
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SUMÁRIO

Nota Introdutória p. 10
1 INTRODUÇÃO p. 12
2 A QUESTÃO IDENTITÁRIA EM ROMA p. 25
2.1 Uma identidade de limites p. 25
2.1.1 Mos maiorum, base da romanidade p. 28
2.1.1.1 A tríade fundamental do mos maiorum p. 29
2.1.1.2 Conceitos secundários do mos maiorum p. 33
2.1.1.3 Conceitos terciários do mos maiorum p. 37
2.1.2 A “dinâmica identitária” romana p. 39
2.2 Os limites da identidade p. 43
2.3 Uma nova identidade para um novo homem p. 47
2.3.1 Homo nouus... p. 49
2.3.2 ... et homo uetustus p. 50
2. 4 - Novas variáveis numa velha equação p. 51
2.5 – Rumo à simbiose p. 52
3 CÍCERO: A ROMANIDADE FILOSÓFICA p. 54
3.1 – Cícero: esboço biográfico p. 55
3.1.1 – Cícero, magister eloquentiae p. 59
3.1.2. - Cícero, o filósofo p. 61
3.2 – O pensamento político de Cícero p. 63
3.2.1 - De Re Publica p. 64
3.2.2 – De finibus p. 74
3.2.3 – “Tusculanae Disputationes” p. 82
3.2.3.1 – A “Escola do Pñrtico” e a nova identidade p. 84
romana
3.2.3.2 – Virtus, prima inter pares. p. 86
3.2.4 – Catão e Lélio: a velhice e a amizade p. 89
3.3 – Uma nova identidade e a modernização conservadora p. 95
4 SÊNECA: A FILOSOFIA NO TRONO DO IMPÉRIO p. 98
4.1 Augusto e a nova crise identitária p. 98
9

4.2 Os sucessores de Augusto p. 103


4.3 O “emergente” na sociedade romana p. 105
4.4 “A consciência do Império” p. 108
4.4.1 O Estoico e o Trágico p. 110
4.4.2 A “Eminência Parda” do Quinquennium Neronis p. 117
4.4.3 De Clementia e De Beneficiis. p. 119
4.5 Ad Lucilium Epistolae Morales p.124
5 UM TEXTO APÓCRIFO COM MUITAS LEITURAS p. 132
5.1 Um trovão ao longe p. 132
5.2 Octauia: obra de Sêneca? p. 134
5.2.1 A datação p. 134
5.2.2 A obra e seu percurso p. 137
5.2.3 A questão da autoria p. 138
5.2.4 Uma estrutura inovadora e de aproximações p. 145
5.2.4.1 Características gerais da fabula praetexta p. 151
5.2.4.2 Um enquadramento desconfortável p. 155
5.2.4.3 História e Literatura: construções discursivas p. 157
5.2.4.3.1 Octauia como romance histórico p. 159
5.2.4.3.2 Octauia como narrativa de extração p. 162
histórica
5.3 Simulacro de julgamento p. 165
5.4 Uma aula de Astronomia p. 173
6 CONCLUSÃO p. 177
7 REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS p. 182
ANEXOS p. 189
ANEXO 1 – Texto latino de Octauia p. 190
ANEXO 2 – Proposta de tradução de Octauia p. 213
10

Nota Introdutória

Quando do ingresso ao curso de Doutorado do Programa de Pós-Graduação em

Letras Clássicas da Universidade Federal do Rio de Janeiro, foi apresentado um projeto de

tese cujo resultado é este que se tem em mãos. Contudo, deve-se ressaltar que entre aquele

projeto e este resultado final há algumas diferenças, e, portanto, convém esclarecer-se seu

porquê.

O projeto original buscava detectar e examinar o surgimento e a evolução, em

Roma, a), daqueles valores que acabaram por constituir a identidade romana, b), a

construção de discursos identitários, através do desenvolvimento e debate destas ideias, no

âmbito de obras literárias diversas, consideradas como “narrativas de extração histñrica”.

Contudo, este projeto original pareceu, já aos examinadores, abarcar um espectro

temporal excessivamente longo, assim como obras produzidas em condições extremamente

díspares, tendo sido recomendada sua redução às obras que delimitassem um período

menor de tempo. Ademais, o número e a extensão das obras de Cícero e de Sêneca em que

o tema da identidade romana é levantado logo mostrou-se maior do que o que pensáramos

a princípio, sendo-nos imperativo incluir, no corpus de nossa análise, obras que antes não

havíamos cogitado serem necessárias. Outrossim, logo percebeu-se igualmente que a

exígua bibliografia, existente e disponível, a respeito de algumas das obras que

pretendíamos avaliar constituía-se em obstáculo incontornável; assim, não nos restou

alternativa senão rendermo-nos ao peso dos fatos e reduzir definitivamente nosso trabalho

final aos limites sugeridos anteriormente.

Deve-se acrescentar ainda que o súbito falecimento de nosso orientador, o Prof. Dr.

Carlos Antonio Kalil Tannus - que além de privar, a nós, de sua inigualável companhia no

plano físico, e, aos estudos clássicos no Brasil, de um de seus maiores professores e


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pesquisadores - foi um fator determinante para nossa decisão de retirar de nosso projeto os

itens finais, já que o processo de sua substituição pela Profª Drª Vanda dos Santos Falseth

tomou mais tempo do que o esperado, em razão de entraves burocráticos. Estes foram ao

fim vencidos, e nossa atual orientadora pôde, enfim, iniciar, com o entusiasmo que lhe é

peculiar, a tarefa que o Fatum lhe designou. Porém, tal atraso consumiu-nos um tempo

precioso de pesquisa.

Desse modo, fique o leitor ciente de que esta tese é, ao fim, um recorte daquele

projeto originalmente apresentado. Entretanto, para que não fosse raso, tampouco foi largo;

e, em razão diretamente proporcional, será mais curto e, também, mais profundo.


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1 INTRODUÇÃO

Uma breve análise da trajetória dos Estudos Clássicos no meio acadêmico

internacional logo evidenciará que esta atravessou, nos anos centrais do século XX, um

período de crise de paradigmas que, cremos, apenas recentemente se tem superado.

Se até o início do século XX predominava na Academia uma abordagem

eminentemente gramaticalista e filológica do latim, estudos pautados nos avanços

proporcionados pelas diversas correntes linguísticas pós-saussureana oxigenaram os

estudos do idioma, levando à publicação de obras como as de Ernout, Niedermann,

Crusius, Marouzeau, Monteil, Pinkster et alii, que até hoje são tidos como pedras angulares

para o estudo aprofundado da língua latina.

Entretanto, os estudos da produção literária greco-latina não foram igualmente

beneficiados pelos avanços da Teoria Literária do mesmo período: os progressos, nessa

área, foram mais tímidos. Isso se deu, pensamo-lo, não apenas porque estes estudos são

limitados a um corpus fechado mas também porque sobre este corpus paira o peso de dois

milênios de uma exegese que moldou uma tradição crítica com poder de chancela sobre as

possibilidades de abordagem de um texto clássico. Em razão disto, vemos que as

possibilidades de investigação, geralmente cartesianas e positivistas, dos textos clássicos


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foram, paulatinamente, sendo exauridas, e que obras como a de Paratore e Bayet, apesar da

envergadura e do fôlego com que cobrem a produção literária latina, são também o

esgotamento desta linha investigativa.

Em processo paralelo, o mundo acadêmico presenciou a ascensão de um novo

paradigma, que privilegiava o conhecimento oriundo das Ciências Exatas. A coincidência

entre este privilégio conferido às Ciências Exatas e o esgotamento da linha investigativa

historicista levou o conhecimento sobre a Cultura Clássica a ser tratado, pejorativamente,

como uma “obsolescência” acadêmica. Confundindo-se o método investigativo – este de

fato esgotado – com o próprio conhecimento sobre o Mundo Clássico, logo visto como

incapaz de fornecer novas explicações sobre seu próprio objeto de estudo e, tão grave

quanto, como igualmente incapaz de contribuir para uma mais bem calibrada interpretação

do momento vivido, no presente, pelas áreas de conhecimento que tangenciava. Impôs-se,

por questão de sobrevivência, a renovação.

Contudo, romper ou flexibilizar essa tradição exegética será tarefa para sucessivas

gerações de investigadores. Nesse aspecto, fica patente que estudos como os de René

Martin e Jacques Gaillard, Gian Biagio Conte e, principalmente, de Pierre Grimal

representam uma modificação no método investigativo, posto priorizarem o estudo da

trajetória dos gêneros literários antigos, independentemente da linearidade historicista.

Contudo, mesmo estes estudos não esgotam as possibilidades de abordagem de seu método

e, consequentemente, ainda não completaram a distância necessária para colocar-se pari

passu com os avanços realizados pelos estudos linguísticos. No que tange ao nosso

conhecimento das manifestações culturais da Antiguidade Clássica – mormente os estudos

literários – podemos afirmar que esse processo de renovação está ainda em curso.

Assim, é perceptível que a pesquisa voltada para as culturas da Antiguidade

Clássica tem apresentado, nos últimos anos, uma grande renovação em sua temática,
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abordagens e paradigmas. A exploração de obras historicamente relegadas a segundo

plano, novas leituras de textos basilares e a (re)construção do corpus teórico interpretativo

deste conjunto de obras, à luz das novas correntes teóricas que se vêm desenvolvendo

principalmente no âmbito da Literatura, da Historiografia e da Filosofia, têm conduzido a

uma reorganização do conhecimento que temos sobre o Mundo Antigo, e, mais

detalhadamente, o universo da Cultura Clássica, colocando, na ordem do dia,

questionamentos que, há algumas décadas, não seriam considerados pertinentes ao

universo da Antiguidade; ou ainda, analisando, no corpus de nosso conhecimento a

respeito do Mundo Antigo, a possível presença de conceitos geralmente atribuídos ao

mundo contemporâneo.

Um destes conceitos, característico do pensamento pós-moderno, é o da identidade

e suas tipologias – nacional, cultural, social, religiosa, etc. Este é um conceito que ganha

relevo à medida que o avanço do processo de globalização tem reduzido as

particularidades socioculturais daqueles que se veem nele envolvidos. Para nós, membros

da chamada sociedade de informação, impõe-se a dicotomia: de que modo é possível

participar plenamente do sistema econômico mundial e sua consequente dissolução de

fronteiras, e, paralelamente, preservar(-se) enquanto grupo social ou mesmo como

indivíduo?

Ora, o fenômeno contemporâneo da globalização econômica encontra paralelos na

ascensão do impérios alexandrino e romano: à dissolução, manu militari, das fronteiras

políticas, seguiu-se uma integração econômica jamais vista – e por séculos irrepetida – e

também uma integração cultural, iniciada pelo helenismo e que, atravessando o período

romano, será perpetuada ainda pelo Cristianismo. Esta integração cultural, é sabido,

formularia aquilo que, desde o Renascimento, acostumamo-nos a chamar de “Civilização

Greco-Romana”.
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O caráter dual dessa civilização, expresso até mesmo pelo adjetivo composto que a

define, já demonstra a existência de ao menos uma importante divisão: aquela que,

geograficamente formada por um Oriente helenístico e um Ocidente latinizado, denuncia

haverem coexistido, durante o domínio romano, ao menos duas grandes identidades

culturais, a que se pode acrescentar as de outros povos, como egípcios, judeus, celtas,

germânicos, etc.

Desse modo, é possível que nos perguntemos: diante de um quadro semelhante,

teriam havido questionamentos semelhantes aos que ora nos fazemos? Teriam os antigos

meditado sobre os problemas acarretados pela unificação movida pelos impérios supra-

mencionados? Enfim, teria existido, na Antiguidade Clássica, alguma reflexão sobre a

identidade cultural? Em caso afirmativo, como tais questionamentos ter-se-iam formulado,

por quem, e, mais grave, a que conclusões se chegou?

No caso específico de Roma, cuja irrupção no xadrez político mediterrânico se dá,

no século III a.C., sem estar secundado por uma florescência no âmbito cultural, teriam

sido efetivadas construções discursivas que visassem definir a identidade romana – para

além da “mera” superioridade militar - perante a dos diversos povos que perfaziam o tecido

social dos territórios que conquistara? Se isto se deu, como se deu? Quem teria realizado

esse processo, e, mais importante, quais as ideias que foram, então e por conseguinte,

veiculadas? Enfim, o que, ao longo de todo esse processo, acabaria por definir um romano

como tal? Sob que estatutos viria a constituir-se uma identidade cultural? E, por último,

esta identidade ter-se-ia modificado ao longo da própria história romana e/ou graças ao

contato de Roma com os povos que conquistou?

Tais questionamentos, que ensejaram a construção deste trabalho, são justamente

aqueles a que visamos responder. Para fazê-lo, no entanto, torna-se imprescindível

flexibilizar-se ainda mais o recorte de nosso corpus; por isso, mesmo partindo das análises
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realizadas por aqueles autores já mencionados acima, é-nos necessário abrir mão não só da

linearidade positivista quanto de atermo-nos a um único gênero literário: a busca de fontes

que nos possibilitassem responder às questões acima expostas nos obrigaram a privilegiar,

mais que a forma, o discurso em si, e, mais que o discurso, as intenções que nele estão

embutidas.

Para tanto, foi necessária a compreensão daqueles sistemas discursivos romanos em

que, seja qual for a roupagem, suas concepções de mundo, de sociedade e de indivíduo

tenham sido expostas de modo mais inequívoco e em que suas reflexões a respeito tenham

sido construídas. Tal tarefa, embora creiamo-la necessária até mesmo para, como dito

acima, uma interpretação mais exata da contemporaneidade, é, pela envergadura de saberes

que congrega, demasiado hercúlea para ser realizada individualmente. Optou-se, portanto,

por sua divisão em tópicos de mais fácil execução, razão pela qual decidimos reduzir o

escopo de nosso trabalho a um patamar mais modesto, e, selecionando um campo de

atuação estrito, partiremos da premissa de que o espaço de interseção entre os saberes

filosófico, literário e historiográfico sempre proporcionará campo para abrigar semelhantes

discussões. Por isso, principiamos nosso estudo dedicando-nos àqueles autores que, através

do desenvolvimento de um pensamento filosófico – expresso em textos de mérito literário

– preocuparam-se em estabelecer os paradigmas culturais que constituriam a identidade

cultural romana - que doravante chamaremos romanidade.

Tendo sido imperativo fazer-se o exame do processo de construção e/ou

cristalização destes paradigmas, dever-se-á antes atentar para o fato de que estes são em

maior número em dois momentos históricos: o fim da República e o governo de Nero.

Dessa forma, mesmo resultando de um processo que dura boa parte do período

republicano, ficou-nos patente que os paradigmas da romanidade foram mais bem expostos

– e assumiram um dos formatos que os consagrou - no momento em que a República


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atravessava sua crise final, aqueles instantes históricos que antecederam à instauração do

império como regime político. Outrossim, o governo de Nero, em que a fragilidade e as

contradições do sistema imperial ficaram mais evidentes, graças ao regime de terror

imposto pelo governante, também ensejou a reconfiguração dos paradigmas da identidade

romana.

Assim, será na produção escritural destes dois momentos que buscaremos tanto os

paradigmas quanto os discursos nos quais se configuram a interpretação que lhes é dada.

Tais discursos apresentam a articulação, na órbita do literário e do historiográfico, de

saberes produzidos pelos mais destacados pensadores romanos: Marco Túlio Cícero e

Lúcio Aneu Sêneca.

A seleção de tais autores se dá por razões diversas: Cícero e Sêneca são, dentre os

escritores de língua latina, aqueles cujo conjunto de obra encontra-se melhor preservado.

Ademais, ambos foram considerados os intelectuais mais destacados de seus respectivos

tempos, além de terem exercido forte influência no pensamento das gerações

imediatemente subsequentes e mesmo ao longo dos séculos seguintes. Ao longo de sua

copiosa produção, temos percebido haver, ainda que em caráter subjacente, e esta constitui

a nossa tese, todos aqueles questionamentos que acima apresentamos.

Realizamos , portanto,, na obra destes autores, o levantamento de um corpus em

que se reflita ou se proponha uma identidade romana, vinculada, ou não, a qualquer escola

de pensamento; contudo, neste corpus, o fato mais claramente perceptível é que os

discursos identitários formulados por estes dois autores serão, também e igualmente,

respostas a questões relativas a seu próprio tempo. Desse modo, o modo pelo qual Cícero

definirá a romanidade é, em si mesma, uma resposta à crise sociopolítica do fim da

República. Com Sêneca não será muito diferente: visará definir o homem romano segundo

a realidade inspirada pelo governo de Nero. A posição assumida por estes pensadores a
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respeito de seu próprio tempo nos permite questionar também se, em seu discurso

identitário, estaria sendo apregoado posicionamento político, havendo assim, uma

definição de romanidade que, partindo do campo filosófico, ultrapassa o espectro cultural e

alcança o plano político.

Visando explorar a presença dos discursos identitários nas obras desses dois

autores, recorreu-se ao estudo sistemático de todos os textos de sua autoria a que pudemos

ter acesso. No caso específico de Cícero, descartamos os discursos jurídicos do autor, não

porque ali não estivessem presentes subsídios para nossas argumentações, mas porque

esses mesmos subsídios seriam encontrados alhures, no conjunto de suas obras ditas

filosóficas e políticas. Assim, foram ao fim analisados cinco textos: De Re Publica, De

Finibus Bonorum et Malorum, Tusculanae Disputationes, Cato Maior de Senectute e

Laelius de Amicitia. À exceção do primeiro, publicado em 52, os demais foram todos

produzidos entre os anos de 45 e 43, ano da morte do autor, em plena crise fatal da

República.

Já no caso de Sêneca, nossa análise centrou-se inicialmente em De Clementia e De

Beneficiis, obras em que se realizam – como Cícero fizera em De Re Publica e em De

Legibus – a adaptação da romanidade ao Império. E também nas Ad Lucilium Epistulae

Morales, em que o pensador, já na oposição à tirania de Nero, expõe com vagar e

didatismo sua concepção do ser humano e estabelece outra visão do que comporia o

homem romano.

Como forma de examinar a permanência dos valores romanos no período posterior

ao de Sêneca, analisamos a praetexta Octauia, obra que, tendo sido a única de seu gênero

que nos chegou, suscita ainda uma série de desdobramentos das visões identitárias

romanas, ao tempo em que estabelece relações – que cremos inusitadas, ao tratarmos da

Antiguidade - entre Literatura e História e entre identidade e ideologia.


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Ademais, a inexistência1 de uma tradução em língua portuguesa do texto de

Octauia fez com que nos decidíssemos a “cometer” essa tradução, que se encontra como

anexo a este trabalho, juntamente com o texto latino original, tal como publicado pela Les

Belles Lettres.

Mas se cremos ter deixado claras as linhas gerais de nossa pesquisa, falta-nos

esclarecer as razões pelas quais optamos por um estudo de um tema “transversal” como o

da identidade romana. Pesquisar a probabilidade de existência, nos textos latinos, de uma

discussão acerca da identidade romana é tarefa que exige, inicialmente, a explicação das

razões de ser efetuada. Tal explicação, a ser feita em seguida, demonstrará – assim

pretendemos – que a busca dessa identidade tem repercussão direta na discussão a respeito

da nossa própria, uma vez que, inserido o Brasil no contexto do que se condicionou chamar

América Latina, qualquer busca a respeito da romanidade será, de certo modo, uma busca

por uma fração de nossas próprias raízes.

Ademais, executar essa busca tomando como objeto de análise textos de Cícero e

Sêneca impõe, outrossim, o estabelecimento de nosso próprio viés de leitura e análise

desses textos, já que, em se tratando da literatura clássica, é imperativo esclarecer algumas

particularidades dessa literatura, tarefa que passaremos a executar.

Um fato logo chamará a atenção de quem quer que inicie estudos nas letras da

Antiguidade: o de que estas não podem ser estudadas através dos mesmos procedimentos

utilizados para as letras da Idade Moderna ou Contemporânea.

Acostumados a conceber os estudos literários de uma forma que não se restringe a

uma compartimentalização que divide a história literária em diversas fases - mas que

1
Sabemos da ausência de qualquer edição no Brasil; ademais, tendo consultado o Prof. Dr. Sebastião
Tavares de Pinho, da Universidade de Coimbra, este nos confirmou ter sido a última edição do texto lançada
em Portugal aquela editada em 1972, comportando uma tradução realizada por José António Segurado e
Campos, alertando-nos ainda sobre ser tal obra “absolutamente esgotada”.
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também a engloba -, contendo, cada uma destas, características particulares, das quais

determinados autores seriam fundadores e/ou representantes mais bem apurados e cujas

obras formar-lhe-iam o cânone, os neófitos no estudo das letras clássicas cedo se deparam

com o estranhamento provocado pela ausência destes fatores.

No quadro de estudo das Letras Clássicas não existiria o que a contemporaneidade

chama “estilos de época”, pois o processo escritural não era compreendido como passível

de alterações tão abruptas como aquelas que hoje detectamos como produto, por exemplo,

de um choque geracional entre escritores. Tampouco os procedimentos utilizados por tal

ou qual poeta ou dramaturgo, mesmo quando de sua lavra, não poderiam ser

compreendidos como peculiaridades suas: o aproveitamento das estruturas rítmicas era

prática não só costumeira mas valorizada entre autores distantes uns dos outros até mesmo

por alguns séculos.

O valor e a originalidade de um autor eram, pois, medidos por sua habilidade em

(re)criar temas utilizados ou estruturas de versificação já consagradas; valendo-nos de uma

comparação com a gastronomia, podemos afirmar que o cordon bleu iria não para o que

inventasse uma nova receita, mas para aquele que melhor reproduzisse dado prato.

O que acima afirmamos tem as mais diversas consequências quando nos

defrontamos, com um olhar impregnado de contemporaneidade, com aqueles textos que

formaram o primeiro cânone e o embrião da literatura ocidental: habituados a distinguir –

pela temática, pela escrita e pela retórica – autores, estilos, épocas, o mosaico de textos da

Antiguidade logo nos parece demasiado monocromático. As diferenças que entre eles há

manifestam-se de modo por demais sutil para uma percepção direta e imediata, cumprirá

então esmiuçar os detalhes de cada texto, para perceber a arquitetura e a trama que em cada

um subjaz. Resta ao neófito navegar nestes textos como o marinheiro de cabotagem,

impedido de afastar-se da costa pelo risco, real e iminente, de naufrágio.


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Tampouco poderá o neófito prender-se à biografia dos autores antigos, pois nada

dista mais destas obras que seus próprios autores. Não se pode jamais esperar aquela

identificação entre biografia, valores e retórica que tanto delicia os que se detêm no

Romantismo ou nas vanguardas literárias: nas letras clássicas autor e obra(s) são seres não

só distintos mas também distantes, um fato de que Petrônio e seu Satyricon são suficiente

exemplo.

Conjugados, tais fatores explicariam ainda o porquê de diversos autores pensarem

ser a literatura grega “hierarquicamente” superior à latina: esta seria, enfim, um conjunto

de simples repetições dos processos desenvolvidos por aquela, com os autores latinos

servindo-se reiteradamente dos modelos gregos para criar obras que quase nunca poderiam

igualar-se ao original2. Contudo, devemos, nós também, prevenir nosso olhar e nossa

capacidade de julgamento quanto à ultravalorização – propugnada pelos românticos e

repetida por seus sucessores – da originalidade como quesito avaliativo da primeira ordem.

No entanto, se tamanhas semelhanças podem ser insuficientes para estimular

alguém a dedicar-se ao estudo das letras clássicas, por serem ainda distantes do paladar a

que nos acostumamos, resta então o trabalho de, a partir de um conhecimento consistente

dos elementos constituintes da literariedade contemporânea, buscar encontrar, na produção

da Antiguidade, o(s) embrião(ões) destes mesmos elementos. Este é, portanto, sobretudo,

um trabalho de detecção “genealñgica” em que a produção greco-latina será esquadrinhada

a partir de um novo viés epistemológico: importante para a constituição mesma das

literaturas do Ocidente – tanto pelas temáticas que insere, quanto pelos procedimentos que

inaugura – resta-nos estabelecer concretamente o onde e o como se dão – se se dão – este

perpetuar, na literatura ocidental contemporânea, dos elementos literários estabelecidos

2
Muito embora o trato dado, por mãos latinas, à temática de inspiração grega poderá conceder a esta última
abordagens antes impensadas, chegando mesmo a significar um salto qualitativo, bastando para isso conferir
o trabalho de reconstrução das obras de Homero efetuado por Vergílio em sua Eneida.
22

pelos antigos. E mais, se a produção literária da chamada Civilização Greco-Romana é

aquela caracterizada como produto da interseção cultural destas duas civilizações,

logicamente aqueles elementos cuja presença fosse detectável em apenas uma destas será

um tópico particularizante desta cultura.

Mas se mencionávamos aqui a literariedade ocidental contemporânea, resta-nos

ainda definir com exatidão a que nos referimos ao usar o termo “Ocidente”. Obviamente,

quando se pensa este termo, damo-nos conta de que duas definições são possíveis: segundo

a primeira delas, o “Ocidente” é aquela porção do mundo construída, historicamente, sobre

o tripé formado pelo pensamento grego, o direito romano e a religiosidade judaico-cristã;

já a segunda definição efetuaria um recorte na primeira: se todas as nações passíveis de

enquadrar-se na primeira são de direito ocidentais, sê-lo-iam de fato apenas aquelas

consideradas desenvolvidas, isto é, aquelas que alcançaram plena industrialização e podem

hoje inserir-se na chamada sociedade de informação.

A aceitação apriorística do desenvolvimento econômico como critério de definição

do Ocidente engendra uma dicotomia no mínimo insólita, pois retira do quadro a única

porção que de fato se define usando um epíteto que é igualmente reivindicação direta desta

pertinência e proclamação indireta de sua condição de herdeira de ao menos uma fração da

cultura antiga: a América Latina.

Deste modo, se a participação da América Latina no conjunto das nações ocidentais

só pode ser questionada em razão de seu desenvolvimento econômico, faltam-nos ainda

estudos que busquem o esclarecimento da veracidade desta pertinência e desta condição de

herdeira da latinidade antiga.

É neste sentido que cumpre construirem-se possibilidades de estudo da Roma

Antiga que nos capacitem a verificar as razões – de âmbito cultural, mais profundas que as

contingências históricas – que justifiquem o epíteto “latina” dado a – e reivindicado por -


23

esta porção da América, o que seria contribuição decisiva para os estudos neolatinos; e, no

que mais nos diz respeito, analisar-se a permanência dos valores culturais latinos mesmo

em tamanha distância espaço-temporal como a que há entre esses dois universos culturais.

Evidentemente, objetarão os críticos, essa proclamada fração se encontraria

(enormemente) diluída pelas transformações realizadas na cultura latina, seja pelos demais

povos que se fizeram presentes na Península Ibérica após 476, seja pelas culturas

ameríndias aqui encontradas após 1492, seja ainda pela decisiva contribuição africana às

culturas da América.

Contudo, repliquemos a essa objeção alertando que, independentemente do quão

diluída se encontre, é perceptível – desde o nível institucional até às fundações da cultura

popular - a persistência de elementos culturais, antropológicos, folclóricos, etc., que

estavam já presentes na cultura latina da Antiguidade e que também estão na cultura

hispano-romana resultante da aclimatação daquela em território ibérico. Essa persistência

seria indicativo de que, mais do que uma referência de civilização modelar, a cultura latina

atuaria como elemento formador de todas as esferas do espírito e do pensamento latino-

americano.

Assim sendo, para nós, latino-americanos que somos, nenhum estudo sobre a nossa

própria identidade cultural pode prescindir daquilo que mais de perto, como classicistas,

nos diz respeito: a identidade cultural que herdamos dos romanos. Nosso estudo, por

conseguinte, não poderia principiar de fato senão pelo estudo da identidade cultural

romana. Estudo este que não poderá deixar de lado a própria história romana, que, segundo

R. H. Barrow: “se debe estudiar la literatura romana principalmente con el propósito de


24

comprender su historia, mientras que la historia griega se debe estudiar con el propósito

de comprender la literatura griega” (Barrow, 1986: 11)3

Em nosso próximo capítulo, estudaremos como se deu o processo de formação da

identidade romana em sua fase mais antiga, quando se estabelecem aquelas bases presentes

em toda a trajetória de Roma, até o momento da primeira crise identitária, coincidente com

o apogeu da República.

3
“deve-se estudar a literatura romana principalmente com o propósito de compreender sua história, enquanto
a história grega deve ser estudada com o propósito de compreender a literatura grega.”
25

2 A QUESTÃO IDENTITÁRIA EM ROMA

Desde o momento da fundação de Roma, até a crise da República, Roma construiu

um modelo identitário ímpar, cujo êxito foi comprovado pela própria ascensão de seu

poder. Este modelo não se distingue apenas pelas peculiaridades que apresenta: é

sobretudo no que seu modo de construção - distante daquele praticado por outras

civilizações de seu tempo - tem de sui generis que o modelo identitário romano deve ser

estudado. No capítulo que ora se inicia, abordaremos tanto o conteúdo quanto a construção

desse modelo, assim como as crises que, em dado momento, levarão à necessidade de sua

reconstrução.

2.1 Uma identidade de limites

Se fosse possível reduzir toda uma cultura a uma única expressão, limites seria o

termo no qual poderíamos resumir a cultura romana, já que a história e os mitos romanos

estão impregnados de relatos em que a ideia de limites apresenta importância fundamental

e decisiva.
26

Roma é mitologicamente fundada por sobre o princípio da inviolabilidade de seu

território, evidenciando que, antes mesmo da existência de uma cidade de fato, existiria

uma cidade de direito, com limites espaciais já definidos, e cuja transposição causariam a

morte de Remo.

Outro fator importante para definir-se o homem romano é sua origem “mestiça”, já

que, para povoar a cidade que fundara, Rômulo

adiciendae multitudinis causa uetere consilio condentium urbes, qui obscuram atque
humilem conciendo ad se multitudinem natam e terra sibi prolem ementiebantur,
locum qui nunc saeptus escendentibus inter duos lucos est Asylum aperit. Eo ex
finitimus populis turba omnis, sine discrimine liber an seruus esset, auida nouarum
rerum perfugit; idque primum ad coeptam magnitudinem roboris fuit. (TITO LÍVIO;
Ab Vrbe Condita, VIII, 5)4

Ainda que Tito Lívio – como visto acima – declare ser “um velho hábito dos

fundadores de cidades”, a ação de Rômulo de permitir livre entrada em Roma a qualquer

um que desejasse partilhar do destino da cidade não encontra paralelo nos povos do mundo

antigo: enquanto os egípcios jamais se expandiram para além das margens do Nilo e os

hebreus simplesmente não concebiam estender sua “cidadania”, restrita desde sempre

apenas a quem partilhasse de sua origem étnica e religiosa; e enquanto fenícios e gregos

fundavam suas novas colônias com os excedentes populacionais de suas prñprias “cidades-

mães”; Roma é fundada sobre uma cidadania que poderia ser adquirida, não se

fundamentando numa homogeneidade “étnica” e/ou cultural, como as anteriores, mas

numa homogeneidade jurídica: será romano, enfim, quem dispuser do mesmo estatuto

jurídico dos nascidos em Roma. Estatutos estes que foram por Rômulo estabelecidos,

segundo o mito e corroborado por Tito Lívio, no mesmo ritual que consagrou a cidade:

“Rebus diuinis rite perpetratis uocataque ad concilium multitudine quae coalescere in

4
“em razão de um velho hábito dos que fundam cidades, que, para aumentar-lhes a população, ao fundá-las
chamavam a si a prole obscura e humilde nascida da terra, criou o Asilo, um lugar que está agora entre dois
bosques, vedado aos que aí sobem. Para ali toda uma turba de povos vizinhos, sem discriminar-se se livre ou
escravo fosse, acorreu ávida de coisas novas, e essa foi a primeira mostra da força da cidade.”
27

populi unius corpus nulla re praeterquam legibus poterat, iura dedit.” (TITO LÍVIO; Ab

Vrbe Condita, VIII, 1)5

Se Rômulo organizara os espaços territorial e jurídico originais da cidade, caberá a

seu sucessor, além de estabelecer novas leis e costumes, organizar o espaço temporal. A

atuação de Numa Pompílio é reconhecida por ter sido este o rei

“qui bellum nullum quidem gessit, sed non minus ciuitati, quam Romulus, profuit;
nam et leges Romanis moresque constituit, qui consuetudine praeliorum iam latrones
ac semibarbari putabantur. Annum descripsit in duodecim menses, prius sine aliqua
computatione confusum, et infinita Romae sacra ac templa constituit.” (EUTRÓPIO,
Breu. Hist. Rom., III,1)6

Famoso por ter estabelecido um calendário de doze meses – o de Rômulo possuía apenas

dez – mais próximo, portanto, dos limites do ano astronômico, Numa Pompílio foi

conhecido também pelos templos e cultos que estabeleceu, e, segundo Tito Lívio 7, o

primeiro destes templos teria sido o de Jano, deus bifronte que preside, entre outros

assuntos, aos limites em geral. Mais tarde, o próprio Numa Pompílio construirá em Roma

dois outros templos: um dedicado a Júpiter Término, deus também dos limites, e outro à

Fides. Sintomaticamente, os três templos eram localizados no Capitólio.

Mas Numa também “deu leis e costumes ao povo”, não temos nñs motivos para

duvidar de que, tendo, segundo o mito, sido o seu um reinado de paz e ordem, em que são

assentadas as bases da romanidade, tenha sido nesse momento aquele em que o mos

maiorum começa a ganhar sua noção orgânica, tornando-se , portanto, aquele conjunto de

valores e práticas consuetudinárias que atravessarão toda a história romana, o que faz

necessário que, antes de prosseguir, explicitemos quais os valores que estariam contidos no

5
“Tendo tratado as coisas divinas com o ritual e convocado e reunido uma multidão que não poderia unir-se
na forma de um único povo senão pelas leis, estabeleceu-lhes os direitos.”
6
“que não travou guerra alguma, mas não serviu menos à cidade do que Rômulo; pois constituiu as leis e os
costumes para os romanos, que então eram tidos como ladrões e semibárbaros devido a seus hábitos
guerreiros. Dividiu o ano, que antes era confuso, sem qualquer contagem, em doze meses, e construiu em
Roma infinitos templos e lugares sagrados.”
7
In: Ab Vrbe Condita, XIX. (2005: 66)
28

conceito de mos maiorum, pois, se Rômulo e Numa teriam, como rezam as lendas,

delimitado, respectivamente, o espaço e o tempo físicos sob os quais a cidade era regida, o

mos maiorum delimitaria o espaço psíquico de circulação de seus habitantes.

2.1.1 Mos maiorum, base da romanidade

Em seus estudos de História da Cultura Clássica (1989), Maria Helena da Rocha

Pereira apresenta um detalhado estudo sobre as ideias morais dos romanos. Estas ideias

formam, segundo a autora, “a parte mais significativa do seu legado cultural, a ponto de se

poder dizer que o mundo moderno, consciente ou inconscientemente, define os seus

prñprios padrões de comportamento pela adesão ou rejeição daqueles valores.” (PEREIRA,

1989:321).

Ao analisarmos esse conjunto, evidencia-se que, apesar de apresentarem diversas

particularidades, formam um todo em que o que têm de complementar é exponencialmente

realçado, até porque não fica restrito ao mundo das regras de convivência da vida familiar:

as ideias morais desenvolvidas pelos romanos espraiavam-se para cada meandro da vida

pública, encontrando assim ampla ressonância na organização política da cidade. Desse

modo, no tocante a esse conjunto, duas conclusões podem ser alcançadas: a) fica claro que

o todo é maior que a soma das partes, e b) o povo romano era sistematicamente regulado

por suas próprias concepções de moral e pelos valores daí resultantes.

Havia, contudo, uma hierarquia entre essas ideias e os valores que preconizavam:

no topo desta hierarquia, encontravam-se os conceitos de fides, pietas e uirtus, que

passaremos a examinar em seguida 8.

8
Essa hierarquia, convém notar, é defendida por Pierre Grimal em seu texto A Civilização Romana (1988).
Na obra de Mª Helena da Rocha Pereira não existe menção ao fato; porém, a interrelação entre os diversos
29

2.1.1.1 A tríade fundamental do mos maiorum

Fides está, segundo Rocha Pereira, “no centro da ordem política, social e jurídica

de Roma” (1989:322). Verdade que se comprova pelo fato de que, naquele seu templo

construído a mando de Numa, ficava a sede dos arquivos romanos e era sede - inicialmente

provisória, mais tarde alternativa - de reuniões do senado romano. Mas o significado de

Fides ia além do antropomórfico: Fides é, também, “um juramento que compromete ambas

as partes na observância de um pacto “bem-firme” (ROCHA PEREIRA; 1989:324)”. Outra

definição de Fides, mais detalhada, pode também ser encontrada em Pierre Grimal:

É o garante da boa-fé e da benevolência mútua em toda a vida social. Usa oficialmente


o título do Fides Populi Romani (a Boa-Fé do Povo Rmano) e, tal como o deus
vizinho, Terminus, garante a conservação das demarcações (fronteiras da cidade,
limites dos campos e tudo o que se deve manter para que seja salvaguardada a ordem
das coisas), Fides assegura as relações dos seres, tanto nos contratos como nos
tratados, e mais profundamente ainda no contrato implícito, definido pelos diferentes
costumes, que liga os cidadãos entre si. (GRIMAL, 1988:70-1)

Evidentemente, Fides não regularia unicamente as relações contratuais humanas,

pois os compromissos que apadrinhava podiam também abarcar os deuses, que também a

ela se submetiam: ao cumprimento dos ritos tradicionais por parte dos homens, caberia aos

deuses responder com suas respectivas bênçãos.

Nítido está, portanto, que o conceito de Fides esconde outra característica, bem

própria de sociedades agrárias: o desejo da estabilidade. Pois sendo à primeira vista a

personificação da confiança e do empenho pela manutenção da palavra, Fides acaba sendo

também um agente regulador da estabilidade, pois uma vez que os compromissos - dos

homens entre si, e também com as divindades - estão fixados, conjuram-se para longe o

imprevisível, fonte de anarquia e de subversão, e também o inovador, fonte de

desconfiança.

conceitos que a pesquisadora lusa apresenta é de tal monta, que acaba por confirmar a preponderância desses
conceitos frente aos demais.
30

Esta observância, absoluta e irrevogável, do compromisso estabelecido seria a razão

da unidade social e política desfrutada por Roma: reunidos, congregados e organizados

como sociedade através de juramentos realizados diante da Fides, os romanos teriam a

obrigação de manter uma unidade de valores que se traduziria também em ações.

Outro conceito de suma importância para os romanos seria o de Pietas, que Grimal

explicará como

...a atitude que consistia em observar escrupulosamente não só os ritos mas as relações
existentes entre os seres no interior do universo: a pietas começa por ser uma espécie
de justiça do imaterial que mantém as coisas espirituais no seu lugar, ou que as remete
para o seu lugar sempre que um acidente revela alguma perturbação. (GRIMAL,
1988:70)

Logo, se Fides consistia num valor a ser preservado na e pela sociedade, Pietas

seria a prática cotidiana que conduziria a essa preservação. Percebendo-se a imediata

complementaridade entre esses dois conceitos, vê-se porém que Pietas se prolonga por um

terreno em que Fides não transita, pois atua também como elo daquelas relações sociais

que não se baseariam na palavra ou na confiança, mas na natureza - as relações familiares,

de gens ou mesmo de tribo. Rocha Pereira, na obra já citada, definirá Pietas, portanto,

como

...um sentimento de obrigação para com aqueles a quem o homem está ligado
por natureza. Quer dizer, por conseguinte, que liga entre si os membros da
comunidade familiar, unidos sob a égide da patria potestas, e projetada no pretérito
pelo culto dos antepassados. Está, pois, firmada nos sentimentos religiosos dos
romanos, que se sentiam protegidos pelos deuses Manes, Lares e Penates, e que
pensavam que o dono da casa tinha o seu genius tutelar e a esposa era protegida por
Juno.
Estabelecendo assim um vínculo afetivo entre os membros de uma família, a
pietas alargava-se à divindade, e acaba por compreender também as suas relações com
o Estado. (PEREIRA, 1989: 328-30).

Atuando então como o “cimento” das relações entre determinada fração social, a Pietas

será também a base das relações hierárquicas da sociedade romana como um todo, pois,

segundo Grimal, existirá “uma pietas para com os deuses, mas também para com os
31

membros dos diversos grupos a que se pertence, para com a própria cidade e, para além

desta, afinal para com todos os seres humanos (GRIMAL, 1988:70)”.

É necessário reparar que os dois mais antigos conceitos basilares da moral romana

são valores que delimitam o espaço das relações humanas, e regulam também o modus

operandi dessas mesmas relações, não sendo de modo algum conceitos que valorizem ou

particularizem o indivíduo frente à sociedade. Ao contrário, não esboçam qualquer

preocupação a respeito da individualidade - não havendo, em sua origem, qualquer espaço

para a subjetividade – mas preocupava-se antes com a conservação e organização do grupo

social como um todo. A moral romana existe para garantir a sobrevivência da cidade, da

família e, somente por último, do indivíduo, cujas possibilidades de expressão, nessa

sociedade, ficavam também claramente (de)limitadas, através do conceito de Virtus.

Se Fides controlava as relações estabelecidas por consentimento mútuo e Pietas

regulava aquelas estabelecidas pela natureza, Virtus determinava o que seria a conduta

esperável dos homens daquela sociedade9. É claro, a Virtus tornava o indivíduo consciente

de que seu valor consistia exatamente na subordinação à coletividade, correspondendo ao

que dele se esperasse, como bem definirá Grimal:

Esta virtude romana é feita de vontade, de severidade (a grauitas, a seriedade, isenta


de frivolidade), a dedicação à pátria. (...) é essencialmente a consciência de uma
hierarquia que subordina estritamente o indivíduo aos diferentes grupos sociais, e estes
grupos uns aos outros. Os imperativos mais constrangedores emanam da cidade; os
mais imediatos, da família. O indivíduo não conta para além da sua função no grupo.
(GRIMAL, 1988:66)

Justamente porque as expectativas de Roma em relação a seus cidadãos variaram

grandemente ao longo dos séculos, Virtus será, dentre os conceitos até aqui arrolados, o

que sofrerá, diacronicamente, maiores modificações: enquanto Fides e Pietas,

acompanhando as transformações culturais derivadas do advento do Cristianismo, se

9
E o termo “homens” deve ser entendido no seu sentido restrito, já que o termo forma-se de uir (homem),
acrescido do sufixo tut(s), indicativo de estado. Nesse aspecto, uma boa tradução para o termo não seria
virtude, e sim hombridade.
32

transmutariam respectivamente em “fé” e “piedade” – quando tratam da relação do homem

com o divino -, e em “confiança” e “respeito” – ou mesmo “temor” -, quando tratando do

relacionamento dos homens entre si; Virtus, que de início abarcava também uma série de

outros conceitos dele derivados, sofreria, ao longo do tempo, ora com o fato de que alguns

desses conceitos adquiririam “autonomia”, ora porque acompanharia toda a gama de

transformações na conduta dos romanos.

Apesar disso, um ingrediente será perene na trajetória do conceito de Virtus: não

deixou jamais de representar a submissão à cidade, e, retornando a Grimal, podemos

afirmar que

Esta moral romana possui uma orientação nítida: o seu fim é a subordinação da pessoa
à cidade e ainda há pouco tempo o seu ideal continuava a ser o mesmo, a despeito de
todas as transformações econômicas e sociais. Quando um romano, ainda no tempo do
Império, fala de uirtus (...), refere-se menos à conformidade com valores abstratos do
que à afirmação em ato, voluntária, da qualidade viril por excelência, ao domínio de
si. (GRIMAL, 1988:66)

Se Virtus era inicialmente, o nome dado a um conjunto de qualidades inerentes ao

indivíduo, estas, segundo Rocha Pereira, seriam: fides, sapientia, modestia, continentia,

aequitas e honos – conceitos que não sofreram modificações expressivas até os dias de

hoje. Tais conceitos seriam, ainda segundo Rocha Pereira, expressivos em uma sociedade

agrária e oligárquica, tal como era a Roma republicana, contudo, à medida que a expansão

de Roma comprometeu a unidade sociopolítica da cidade, esses conceitos se desligariam

do de Virtus, ora adquirindo autonomia, ora decaindo em importância.

Analisados em conjunto, percebemos que fides, pietas e uirtus seriam os três

vértices de um plano em que todos os demais valores da tradição romana estariam

inseridos, como coordenadas. Os demais valores da tradição romana existem, pois, em

relação a esses três, devendo ser considerada sua expressão frente a uma situação concreta.
33

E quais seriam esses demais valores? No estudo de Rocha Pereira, que até aqui

temos utilizado como base, estão listados os seguintes conceitos: gloria, dignitas, grauitas,

auctoritas, clementia, concordia, libertas, otium cum dignitate, res publica, sapientia,

humanitas. Contudo, ou estes conceitos estão subordinados a algum(ns) dos três

fundamentais, logo, de segunda grandeza, ou não teriam existido durante toda a história

romana, razão pela qual devem ser analisados à parte10.

2.1.1.2 Conceitos secundários do mos maiorum

Um primeiro grupo de conceitos seria aquele formado pelo trinômio honor, dignitas

e gloria, assim dispostos por expressarem uma gradação: Honor é a qualidade do uir

honestus, cujo mérito é reconhecido publicamente e tem, por isso, uma função pedagógica

na cidade, pois, para um cidadão, ser considerado honestus tornava-o exemplo de distinção

frente a seus pares.

Em função da honor, era facultado ao cidadão seguir o chamado cursus honorum, a

escala dos cargos públicos passíveis de serem exercidos por aqueles que preenchessem os

diversos requisitos para tal: cidadania, idade, renda, classe social de origem, etc.

Dignitas, conceito muito próximo ao de honor; atua num nível pessoal. Ou seja,

enquanto honor é uma qualidade pessoal reconhecida pela coletividade, dignitas deriva da

posição social – que pode vir de berço - e/ou do prestígio alcançado por quem detenha

honor.

10
Fique claro que nossa apresentação pretende-se sumaríssima. Esses conceitos – e a análise de seu papel na
cultura romana – demandam estudos muito mais aprofundados que o aqui podemos realizar.
34

Por fim, temos o conceito de gloria, que, segundo Rocha Pereira, consiste em “ser

considerado bom pelos homens de bem” (1988:334). Ademais, segundo a mesma autora, a

gloria

resulta de três condições: ser amado pela multidão; ter a sua confiança (fides); ser
admirado e digno de honrarias (honor). Logo, gloria combina com fides, (...), e
sobretudo com honor, com a qual acaba por formar um binômio muitas vezes
invocado (honor et gloria). (PEREIRA, 1988:335)

apenas, portanto, a quem observassse a fides a ponto de merecer atitude recíproca da

cidade, e tivesse chegado ao nível de honor, seria permitido ter o estatuto de gloriosus.

Assim, se honor advém do reconhecimento pelos pares, i.e., pelos membros do

círculo social direto, e a dignitas resulta das ações do uir honestus; a gloria nasce do

reconhecimento, por todos os cidadãos, dos feitos ou do valor do indivíduo. Será, portanto,

uma qualidade inerente à vida republicana, pois somente onde houvesse ampla

possibilidade de debate poder-se-ia discutir sobre quem mereceria ser chamado uir

magnus.

Tendo-a como condição sine qua non para as demais, podemos considerar fides

como ponto em torno do qual gloria gravita. Mas tal qualidade seria, em Cícero, não mais

considerada como atrelada à fides, mas a uirtus, fato que rompe o trinômio acima

delineado e atrela gloria a outro grupo de conceitos11. Evidentemente, com o fim da

dinâmica na vida pública decorrente do estabelecimento do Império, o conceito de gloria

seria concentrado primeiramente na pessoa do imperador, e, mais tarde, com o

Cristianismo, na sua própria concepção da Divindade.

Um segundo grupo de valores, formado pelo binômio grauitas e auctoritas, está

localizado em torno da uirtus, e novamente há uma relação hierárquica: grauitas - termo

que originalmente está relacionado à ideia de “peso” - pode ser sintetizado como o “ter

11
Cícero chegaria a escrever uma obra intitulada De Gloria, hoje perdida.
35

consciência do peso de suas ações”, correspondendo, pois, à “seriedade moral” que é

esperada, do indivíduo, no nível pessoal e familiar. Como extensão de grauitas à vida

pública, deriva o conceito de auctoritas, a capacidade do homem público de prolongar sua

grauitas perante a cidade, e, a partir daí, exercer o poder (potestas) que lhe está confiado.

Auctoritas é, por conseguinte, uma qualidade moral aplicada à vida pública. Trata-se ainda

de um conceito bastante antigo entre os romanos, já que é mencionado na Lei das XII

Tábuas.

Estes dois conceitos, segundo Cícero, não teriam equivalentes na cultura grega,

sendo exclusivamente romanos. Entretanto, com o Império e o consequente esvaziamento

da vida pública, ambos seriam transmutados: grauitas passa a ser simplicitas; enquanto

auctoritas perderia seu sentido original, sendo substituído por potentia.12

Tal mudança reflete bem as mofidicações no pensamento da sociedade romana,

advindas do regime imperial: se antes a grauitas era necessária para obter-se auctoritas e,

daí, exercer sua potestas, com o novo regime, o mandatário poderá dispensar a grauitas –

como Calígula e Nero – e, mesmo sem auctoritas, exercer não a potestas, mas a potentia

pura e simples; enquanto, para os demais, restaria uma grauitas decaída, esvaziada de seu

peso original e metamorfoseada em simplicitas.

Se os dois conceitos anteriores não tinham equivalentes entre os gregos, os dois a

seguir, clementia e concordia, serão, novamente segundo Rocha Pereira, tão fortemente

modificados por valores congêneres de origem grega, que, por suas características

intrínsecas, estarão próximos, respectivamente, dos de pietas e de fides.

Ainda que o termo clementia já existisse na cultura romana, não se percebe, até a

agonia da República, seu uso como ação política. Se, até aquele momento, os romanos

12
A própria substituição de um substantivo concreto (potestas) por um abstrato (potentia), indica também
que a ideia antes expressa, definida e delimitada pela res publica, agora não tem mais os contornos nítidos,
sendo antes um valor em si próprio.
36

preferiram a seueritas, a clementia ganhará posição a partir do Império, sendo vinculada,

no entanto, à vontade do governante - de quem passa a ser uma qualidade, como defenderá

Sêneca em seu De Clementia.

Desse modo, se antes a clementia era um conceito aplicável na vida pessoal e não

na pública; nessa será inserido durante o Império, na qual ocupará um lugar central, ainda

que seu uso seja considerado prerrogativa do imperador; pois é sua forma de retribuição à

pietas que se lhe deve, já que sua figura tem caráter divino.

Concordia será outro conceito adquirido dos gregos. Termo que traduz o conceito

grego de “homónoia”, definido por Rocha Pereira como “a harmonia no modo de pensar e

de sentir” (PEREIRA, 1988:335). A concordia diferiria de fides no sentido de que esta

deve ser conquistada por um cidadão ou resultar de um acordo plenamente deliberado,

enquanto aquela somente pode resultar de um consenso, mútuo ou coletivo. De qualquer

modo, a Fides seria a mantenedora da Concordia, e mesmo que esta também tenha sido

deificada, aquela a precede em antiguidade junto ao povo romano.

A concordia, dessa vez ordinum, seria também um conceito desenvolvido por

Cícero em suas obras a partir de De Re Publica, como meio de conseguir a unidade entre

as ordens senatorial e equestre.

Outro dos conceitos chamados secundários forma um conjunto único: trata-se de

labor, termo que designava a capacidade do homem em realizar as tarefas que provessem o

sustento, próprio e dos seus. Relacionando a capacidade de trabalho do indivíduo ao tipo

de trabalho realizado, nota-se, na trajetória cultural romana, que o conceito de labor mal

disfarça um juízo de valor sobre o trabalho em si: quanto mais próximo da vida campestre

a profissão do indivíduo, tanto mais correto seria seu caráter. Isso se percebe, ao longo da

história, em obras dos mais diversos matizes: desde o De Re Rustica de Catão até as
37

Geórgicas de Vergílio, o homem romano é, por excelência, um agricultor capaz de ser

também soldado.

2.1.1.3 Conceitos terciários do mos maiorum

Ademais dos conceitos primários – fides, pietas e uirtus – que delimitam o espaço

dos valores romanos e secundários - honor, dignitas, gloria, grauitas, auctoritas, clementia

e concordia – que se articulam aos primeiros, há ainda um grupo de conceitos que se

prendem aos secundários, aos quais remetem. Este grupo, mais restrito, seria composto por

libertas e otium cum dignitate.

Libertas era a condição desfrutada pelo homem em sua condição de cidadão, que

não só lhe permitia exercer a vida pública mas também exercer atividades econômicas. No

plano político da República, libertas tem um valor indissociável dos de dignitas e

auctoritas, já que apenas o homem livre pode alcançá-los. E é através de dignitas e

auctoritas que libertas se prende igualmente à fides e à uirtus.

Desse modo, libertas é tanto um conceito abstrato como uma condição concreta de

que o cidadão romano desfruta. Vale recordar também que, historicamente, os romanos

consideram o surgimento da república como o nascimento de sua condição de libertas.

O outro conceito terciário é o de otium cum dignitate. Como o nome já indica, este

conceito também se une ao de dignitas, e, indiretamente, ao de uirtus. Otium cum dignitate

consiste, na República, na tranquilidade advinda por ter o cidadão, já, ocupado todas as

atividades que dele a cidade exigisse, tendo alcançado a dignitas. Neste caso, era-lhe

facultado abster-se conscientemente da atividade política e da vida pública. Cícero, no

entanto, defenderá que o otium cum dignitate não deve ser sinônimo de inatividade, mas de
38

tranquilidade para decidir a que atividade – principalmente as de caráter intelectual –

dedicar-se.

Por último, temos um conceito que, sem prender-se a qualquer dos grupos

anteriores, pode ser encarado tanto como uma prática quanto como um “supraconceito”

que atua como coletivo dos já mencionados, trata-se do mos maiorum.

Significando, em sua tradução mais simples, o “costume dos antigos”, o mos

maiorum era a tradição que fundamentava o modelo da vida em comum do povo romano.

Sua observância era considerada um verdadeiro tabu para a população da Urbe, já que,

como vimos, o temor às inovações seria uma marca fundamental da pietas.

Contudo, o questionamento que podemos aqui encetar é: estando os costumes dos

antepassados baseados nos conceitos que ora expusemos, sua prática não faria mais que

traduzir, em preceitos e no cotidiano, os valores tidos como pilares fundamentais da

romanidade, desse modo, a expressão mos maiorum não teria podido atuar, no inconsciente

coletivo do povo romano, como o termo evocativo de todos e cada um daqueles conceitos

já citados? Cremos que a resposta seja afirmativa, já que Syme (1971) definirá este

conceito dizendo que “não é um cñdigo de lei constitucional, mas um conceito vago e

emocional”. (SYME, apud ROCHA PEREIRA, 1989:351; grifo nosso)

Cremos que o termo podia referir-se à explicação de uma dada prática ou conduta –

esta, evidentemente, baseada num dos conceitos acima – e que, por essa razão, e também

por ser, como Syme afirma, “vago e emocional”, este conceito terá sido usado também, ao

longo da história romana, como sinônimo ou como coletivo daqueles já aqui expostos.

Outro fator que corrobora nossa crença é o que, ao contrário dos demais conceitos,

o de mos maiorum não sofre ressignificações ao longo do tempo. Referindo-se sempre a

um tempo pretérito, o mos maiorum é usado no sentido que aqui defendemos, o de um

coletivo dos valores e práticas consagrados pela tradição, embasados pelos conceitos
39

expostos. Em suma, seria, portanto, o coletivo desses mesmos conceitos, razão pela qual,

ao longo deste trabalho, preferimos utilizar o termo mos maiorum para referirmo-nos ao

conjunto de conceitos sobre os quais, desde os primórdios, a romanidade se construiu 13.

2.1.2 A “dinâmica identitária” romana

Se acima examinamos os conceitos que delimitariam a romanidade, distinguindo-a

dos elementos característicos de outros povos, devemos agora, retomando os mitos

fundadores de Roma, perceber que, neles, já se via com nitidez a preocupação romana em

ter, no ato de delimitar, o estabelecimento de uma condição sine qua non para sua própria

existência: o que é bem apropriado para uma cultura de agricultores-soldados. Para esses, é

necessário delimitar o espaço das plantações, a posse de cada terreno, o tempo para a

colheita, o tempo destinado às práticas militares e mesmo para a guerra, cada atividade

exercida, enfim, pelos romanos exigia uma delimitação clara e inequívoca do espaço e do

tempo, por isso, (de)limitam-se o espaço e o tempo e estabelecem-se os costumes e as leis

que também limitam, assim como ordenam, a ação dos homens nesse espaço e tempo. Isso

já constituirá o elemento fundamental de diferenciação entre romanos e gregos, pois, como

muito bem ressaltará Umberto Eco:

Os gregos conhecem a polis, mas as cidades da Grécia são numerosas. A etnia


helênica possui os confins móveis de uma língua despedaçada em vários dialetos. Os
bárbaros começam onde já não se fala grego. A linguagem determina a identidade.
Para o Romano, pelo contrário, Roma é tudo aquilo a que se conferiu uma definição
política (finis) romana, e os bárbaros começam onde já não há ciues romani. A língua
latina impõe-se como selo político de uma ordem desejada, não encontrada, mas nada
impede o intelectual romano de também falar grego. (ECO, 1989:26)

13
Haverá ainda um quarto grupo de conceitos Ŕ sapientia e humanitas - que só tardiamente surgiram na
história de Roma, não havendo qualquer menção a eles anterior ao processo de helenização. Sendo conceitos
que se desenvolvem plenamente na obra de Cícero, serão examinados no capítulo a ele dedicado.
40

O que poderia, então, ser absorvido e incorporado por Roma? Tudo aquilo que

pudesse ser ordenado segundo o padrão romano, um padrão que será, sobretudo, jurídico.

Podemos, então, fazer coro a Umberto Eco, para quem, em Roma “Unidade e identidade

são um produto jurídico, Roma é um sistema de leis que agem no interior de certas

fronteiras, a cidadania romana é um privilégio para quem assume certos encargos e tira

partido de certos direitos. (ECO, 1989:26)”

A princípio , portanto, Roma é o intento de dar limites e ordem à realidade, fato que

estará sempre presente ao longo da história, afinal, muito da expansão romana dos séculos

seguintes terá como resultado final a ordenação, segundo o modelo romano, daquilo que

estiver dentro dos limites do poder de Roma. Roma ordena, e contida na ambivalência

desse verbo está, além de sua disposição para impor ordem ao mundo, sua igual

necessidade de organizar esse mundo de modo a que pudesse compreendê-lo.

Estabelece-se uma dinâmica da ação romana: Roma ordena para compreender e

compreende para disciplinar. Ora, traçar as linhas-mestras dessa ordenação era, mesmo que

os romanos de então não tivessem tido consciência do fato, um processo dialético cuja

culminância acarretaria o pleno desenvolvimento do direito civil, para além simplesmente

do mos maiorum. Ou seja, o direito romano surge como práxis filosófica, mesmo sem que

houvesse uma escola filosófica stricto sensu que lhe fornecesse um lastro teórico.

Há ainda que considerar-se que, ab ouo, Roma é produto de uma mestiçagem,

termo que não deve ser compreendido como aplicado – apenas - às características raciais,

mas às culturais do povo romano: formado inicialmente por gente oriunda das mais

diversas regiões da Itália central, a convivência entre povos distintos tornou habitual o

aproveitamento, a adaptação e a incorporação seletiva de valores, crenças, costumes e

hábitos oriundos de culturas próximas, enfim, mas sobretudo distintas.


41

Cria-se então uma segunda dinâmica, dessa vez cíclica, à medida que Roma se

expande pelo território italiano: uma nova expansão traça novos e mais amplos limites -

que devem ser ordenados -, esses limites incorporam ao orbe romano novas populações -

que devem ser romanizadas - e características culturais - que devem ser selecionadas –

incorporando-se à cultura romana o que for considerado aproveitável.

Definida como estatuto jurídico, a romanidade é, de início, suficientemente elástica

para adaptar elementos novos, como por exemplo, os substratos linguísticos vizinhos,

sejam eles lígures, gauleses, etruscos, osco-úmbrios, sabinos, volscos, etc. Prova cabal

disso é o Dictionnaire Étymologique de la Langue Latine (1932), de Ernout e Meillet, que,

segundo Antonio Houaiss (1989), registra haver no latim clássico cerca de mil e duzentos

termos de origem celta e seiscentos de proveniência germânica, sendo ainda incalculável o

número de termos de origem grega. Outro exemplo desse processo de incorporação e

adaptação é o do próprio alfabeto latino, resultante da adaptação romana de um alfabeto

grego recebido por via etrusca.

Se a identidade romana, e mais tarde a latina, é, como vimos, elástica, é por outro

lado bastante rígida em seu pragmatismo: dentro de uma lógica cartesiana que vê no

continuum espaço-temporal o locus para a existência de Roma, vê na ordenação jurídica o

único modus operandi para a legítima incorporação ordenada de novos elementos à cidade.

Mesmo os deuses estrangeiros não estavam livres desse imperativo: para que pudessem ser

cultuados na Vrbs, deviam ser legalmente introduzidos pelo pontifex no panteão romano.

Essa necessidade de ordem atinge cada meandro da cultura latina, não sendo devaneio

pensar que a preferência da língua latina pela formação de períodos subordinados, a rigidez

extrema da consecutio temporum e a equivalência semântica entre o supino, o acusativo de

finalidade e o gerundivo não seriam reflexos, no plano linguístico, da inconsciente vontade

romana de ordenar o mundo.


42

A língua, aliás, seria um dos mais eficientes meios de romanização. Porta pela qual

o bárbaro recém-conquistado poderia anelar participar plenamente da vida romana, seu

aprendizado foi prática recorrente entre os povos submetidos, e isso não deixou nunca de

significar a ordenação do pensamento desses povos segundo o padrão do latim,

alcançando, entre a urbe e seu orbe, uma unidade que, segundo Georges Duby:

“não se fundou apenas sobre as colônias dispersas, sobre uma estrela de calçadas todas
elas conducentes ao centro, sobre uma constelação de aglomerados urbanos de
estrutura semelhante, sobre o direito. Fundou-se sobre uma língua, a dos mandamentos
militares, a dos decretos de justiça, a das liturgias do poder: a língua do velho país
latino.” (DUBY; 1989: 12)

É imprescindível pensar que, se Roma ordena o mundo, essa é sua ordenação do

mundo: Roma é o centro desse universo, ponto de expansão de um poder constituído sobre

fundações distintas das das nações contemporâneas e também ponto de convergência da

riqueza material e cultural dos povos conquistados. Porém, não há aqui lugar para um

pensamento divergente, pois, desde o fim da monarquia, Roma é, sob a capa de uma

República, uma oligarquia agro-mercantil com forte poder militar. Esta oligarquia exerce,

de maneira centralizadora e censória, um poder que não admite questionamentos sobre sua

prática de poder nem sobre sua própria razão de ser.

Mas ainda assim haverá questionamentos, e esses viriam da própria Roma, do povo

romano que exigia maior retorno pelas contribuições que fizera à expansão. Não se tratava

apenas de maior distribuição de riquezas, mas sim de mais ampla participação política e de

extensão de voz e voto à plebe. Essas reivindicações, somadas ao crescimento e à expansão

da urbe logo farão com que não bastem mais o mos maiorum.

Assim, a codificação das leis nas XII Tábuas não deve ser vista apenas como

reflexo das crises sociais em Roma mas também uma mostra do espírito universalizante da

identidade romana: se essa é definida pelo estatuto jurídico, este estatuto deveria ser de

pleno conhecimento de todos aqueles por ele regidos, assim como o intento de torná-las,
43

por sua (a)fixação no Fórum, perenes. Inseridas, integradas e imutáveis dentro daqueles

continuum cartesiano, as XII Tábuas representarão, até aquele momento, o píncaro da

trajetória identitária romana: não apenas o espaço e o tempo, mas também a sociedade é

ordenada de modo permanente, segundo regras que se pretendem imutáveis.

Assim, ao longo dos cerca de trezentos anos desde a fundação de Roma até a

publicação das XII Tábuas, temos a formação de um primeiro padrão identitário romano,

gestado em paralelo à consolidação da urbe e sua expansão pela Itália. Esse padrão

identitário manter-se-á impoluto durante os dois séculos seguintes, e o processo de

ordenação do mundo segundo Roma terá seguimento com as três Guerras Púnicas e com a

conquista da Magna Grécia.

Veremos em sequência que esse processo terá, para Roma, consequências

inusitadas e que levarão à reconfiguração da própria identidade romana, de que os distintos

modi operandi empregados na absorção dos elementos culturais dos conquistados serão

prova.

2.2 Os limites da identidade

Ainda que os dois processos, o das Guerras Púnicas e o da conquista dos territórios

helênicos tenham se dado de modo praticamente concomitante, uma vez que esses

processos tiveram consequências distintas para a identidade romana, serão abordados em

separado iniciando-se pelas guerras contra Cartago.

De origem fenícia, Cartago já era, em cerca de 300 a.C., a maior potência

econômica do Mediterrâneo ocidental, uma vez que, tendo as cidades fenícias submergido

diante do poder dos impérios surgidos pós-Alexandre, Cartago as pudera substituir como

principal entreposto comercial entre as duas partes do Mediterrâneo. Sua política


44

expansionista a levara a conquistar a metade ocidental da Sicília, de onde podia lançar-se à

tomada da Itália.

Envolvida na guerra de Cartago contra as cidades sicilianas, Roma, ao final da

Primeira Guerra Púnica (264-241 a.C), assume o controle total da Sicília, incluindo aí

algumas cidades gregas. Inicia-se a expansão de Roma para além do território peninsular

da Itália. Apesar do violento embate e da longa guerra, como a Sicília não havia sentido a

presença de um superestrato cultural cartaginês, não se pode dizer que tenha havido algo a

ser incorporado diretamente pelos romanos – o que o foi, deu-se por via indireta, através da

mediação das populações gregas da Sicília.

Na Segunda Guerra Púnica (218-201 a.C.), os romanos conquistam aos cartagineses

todo o leste da Espanha – iniciando sua presença na Península Ibérica - e grande parte do

norte da África, incorporam ainda as ilhas da Sardenha e da Córsega ao seu território. Na

Terceira (149-146 a.C.), os romanos destroem Cartago a tal ponto que a cidade teve de ser

refundada, pois a antiga ficara tão destruída que foi preferível riscá-la do mapa.

A vitória nas Guerras Púnicas levariam Roma a dois novos desafios: testar a

validade daquela segunda dinâmica de expansão a que nos referimos, desta vez em

populações não-itálicas, com poucos referenciais culturais comuns, e, abalada na sua

estrutura econômica e social por causa da sucessão de guerras, as questões sociais seriam,

em Roma, agravadas, levando ao rompimento daquele –então fragilizado já - equilíbrio

social adquirido desde as XII Tábuas. O primeiro desafio seria vencido com o tempo: ao

tempo de César, a Hispânia e a África eram já províncias muito bem romanizadas, e o

número de escritores latinos que daí advirão será prova disso. Quanto ao segundo,

voltaremos a abordá-lo mais adiante.

A questão que aqui devemos nos fazer é: por que a conquista de Cartago, que deu a

Roma o controle de praticamente todo o território do Mediterrâneo ocidental, teve tão


45

pouca repercussão no plano cultural? É óbvio que Roma incorporou todos os avanços na

tecnologia naval cartaginesa, além de tê-la substituído como potência política; mas a

resposta à questão acima, parece-nos, está situada no próprio nível de desenvolvimento

cultural das populações recém-conquistadas: se Cartago era herdeira das rotas comerciais

fenícias, não se pode afirmar que o tenha sido também da cultura fenícia, que, aliás, já há

tempos estava em plena decadência, sob o império dos selêucidas. Seu nível cultural,

podemos supor, não devia diferir muito do da própria Roma naquele período, logo, não

havia mesmo muito a ser incorporado à cultura romana.

Se a conquista de Cartago teve as consequências acima descritas, as conquistas de

Tarento (272 a.C.) e, principalmente, Siracusa (212 a.C.) significarão, para Roma, o

contato com todo o universo cultural da Magna Grécia. E esse contato terá inúmeras

consequências para a trajetória da romanidade.

A primeira dessas consequências é o contato com uma civilização muitíssimo mais

requintada que sua própria, requinte esse que logo contagia a elite romana e adentra seu

cotidiano com uma força impensável. Assiste-se, no plano cultural, ao pleno impacto da

forte influência da cultura helenística no modus uiuendi das elites romanas, que adotam

hábitos de consumo que modificam profundamente seu modo de vida. A austeridade que

até então marcara a elite romana é substituída pelo luxo, e sua ostentação estabelece novos

padrões de consumo e de gosto artístico cujo melhor exemplo é a ascensão de Terêncio aos

palcos: artista voltado para a elite, seu teatro opõe-se diametralmente ao de Plauto, artista

de vertente popular.

Há também todo um grande incremento da vida cultural em Roma uma vez que a

influência das artes gregas tampouco deixa de se fazer sentir, muito embora, convém notar,

essa influência helênica seja repleta de tensões entre os dois povos, pois, segundo Barrow:
46

...las nuevas costumbres se debían a la influencia del pensamiento y del modo de vida
de los griegos: y hay que tener en cuenta que por “griego” debemos entender no la
suprema expresión del génio helénico, tal como se manifiesta en cuatro o cinco de los
grandes autores de los siglos V y IV a.C., sino la cultura que se difundió por todo el
Mediterráneo oriental, cultura cuya fuente principal de inspiración era la gran época
de Atenas. Esta cultura se había apoderado de los aspectos menos importantes porque
era incapaz de alcanzar en su emulación la altura de los momentos cumbres. Había
adulterado el lenguaje, la literatura y el carácter griegos. Podían adquirirse las obras
griegas y muchos las leían; pero los griegos que los romanos empezaban a tratar en su
vida cotidiana ya no eran siempre como los atenienses del siglo V. Aunque los
romanos aprovechaban las capacidades artísticas y profesionales de estos nuevos
griegos, en general los despreciaban por su carácter, y los despreciaban sobre todo
porque no habían sabido ser dignos de su pasada grandeza. (BARROW, 1986:61)14

Colocando-se de lado essa tensão, percebe-se que essa influência grega será responsável

pela introdução de diversos procedimentos artísticos – que consolidam ou dão novo

impulso à Literatura e à Pintura – no mundo romano e, que, passado o deslumbramento

inicial, lançará o pensamento romano a uma nova esfera de abstração até então

inalcançada.

Os romanos de então logo constatariam a superioridade cultural grega, e não será

sem razão que Cícero afirmará, nas Disputationes Tusculanae (I,3) : “Doctrina Graecia

nos et omni litterarum genere superabat; in quo erat facile uincere non repugnantes.”15

Tal constatação certamente terá atingido o narcisismo romano: se até então considerara os

outros como bárbaros; agora, diante do passado grego, Roma era colocada nessa posição.

Contudo, os romanos não tardariam a agir com a cultura grega da mesma forma já

praticada com outros povos: era necessário delimitá-la para conhecê-la, conhecê-la para

14
“... os novos costumes deviam-se à influência do pensamento e do modo de vida dos gregos: e deve-se
levar em conta que por “grego” devemos entender não a suprema expressão do gênio helênico, tal como se
manifesta em quatro ou cinco dos grandes autores dos séculos V e IV a.C., mas a cultura que se difundiu por
todo o Mediterrâneo oriental, cultura cuja fonte principal de inspiração era a grande época de Atenas. Essa
cultura havia se apoderado dos aspectos menos importantes porque era incapaz de alcançar em sua emulação
a altura dos momentos máximos. Havia adulterado a linguagem, a literatura e o caráter gregos. Podiam
adquirir as obras gregas e muitos as liam; mas os gregos com quem os romanos começavam a tratar em sua
vida cotidiana já não eram siempre como os atenienses do século V. Ainda que os romanos aproveitassem as
capacidades artísticas e profissionaiss deestes novos gregos, em geral os desprezavam por seu caráter, e os
desprezaavam sobretudo porque não souberam ser dignos de sua grandeza passada. (BARROW, 1986, p.61)
15
“A Grécia nos superava em educação e em todo gênero de letras; pois era fácil vencer os que não
lutavam.” Repare que há, mesmo em Cícero, um certo desdém pela superioridade grega.
47

dela selecionar o que fosse considerado válido, e, afinal, ordená-la segundo seu próprio

conjunto de valores. Dessa vez, no entanto, dadas as dimensões do conhecimento a ser

apreendido, logo ficou patente que, ao fazê-lo, a própria base da cultura romana poderia ser

modificada.

2.3 Uma nova identidade para um novo homem

Outrossim, o novo padrão de consumo das elites romanas faz aumentar a distância

entre o patriciado e uma plebe que, ademais, também se modificava: a população romana

de então já não eram os agricultores-soldados de séculos atrás, mas toda uma massa

formada por novos atores sociais. Por conseguinte, esses novos padrões de gosto e

consumo acirrarão ainda mais a tensão social na Vrbs, uma vez que a ostentação desses

novos hábitos pela elite será mais um ponto de insatisfação das camadas alijadas do poder.

Forma-se uma situação que será muito bem sintetizada por Jean Bayet:

La vie économique et sociale, la sensibilité même de Rome en furent bouleversées:


l‟afflux des richesses et des œuvres d‟art encouragea au luxe et à la recherche des
jouissances; en contre-partie, l‟orgueil national s‟aggravèrent. Surtout l‟unité morale
fut rompue entre les hautes classes pleines de morgue et une plèbe de plus en plus
cosmopolite. La vieille aristocratie s‟hellénisait avec goût et encourageait le purisme;
la foule, au contraire, se porta vers les aspects matériels et troubles de l‟hellénisme
asiatique; entre elles, le Sénat défendait, non sans quelque hypocrisie, l‟idéal vieux-
romain. (BAYET, 1953: 100-101).16

Mas, mais que isso, esses atores novos não são apenas novos atores, mas atores diferentes,

que não partilham dos mesmos valores da elite – seja esta elite helenizada ou

16
“A vida econômica e social, a própria sensibilidade de Roma foram abaladas: o afluxo de riquezas e de
obras de arte encorajou o luxo e a busca pelos prazeres; em contra-partida, o orgulho nacional se agravou.
Sobretudo a unidade moral entre as altas classes cheias de arrogância e uma plebe cada dia mais cosmopolita.
A velha aristocracia se helenizava com gosto e encorajava o purismo; a massa, ao contrário, se guiou pelos
aspectos materiais e problemas do helenismo asiático; entre eles, o Senado defendia, não sem alguma
hipocrisia, o velho ideal romano.”
48

tradicionalista. Junto com a estrutura social decadente, aquele primeiro padrão identitário

romano começa a dar sinais de exaustão, como bem definirá René Pichon (1903)

La destruction de l‟ancien édifice social est commencée au IIIe siècle. Elle s‟accomplit
de diverses causes, intérieures et extérieures. Au dedans, c‟est la lutte des patriciens et
plébéiens, les triomphes successifs de ces derniers; or, les nouveaux venus sont animés
d‟un esprit opposé à celui des aristocrates. Ils sont indifférents aux anciennes
traditions morales, politiques ou religieuses – même hostiles, puisque c‟est au nome de
ces traditions qu‟on les a si longtemps tenus à la porte de la cité. En solidarisant avec
leur propre cause celle des mœurs antiques, les patriciens ont compromis ces mœurs
elles-mêmes. (PICHON; 1903: 31)17

Logo, não é apenas a organização social romana que se vê questionada, é todo o conjunto

de valores sobre os quais essa organização fora construída que se intenta reformar, isso,

por si só, já representa a necessidade de construção da identidade romana, porque o

panorama que formara a identidade então vigente já fora radicalmente modificado.

Suficiente mostra dessas modificações é a súbita alteração na religiosidade romana:

La religion formaliste est de moins en moins suivie; elle est remplacée chez les gens
cultivés par le scepticisme, et dans la basse classe par les cultes orientaux, plus
passionés, plus favorables aux effusions du mysticisme individuel. (PICHON; 1903:
31)18

Assiste-se , portanto, a uma conjugação de fatores que ensejarão toda a sucessão de

acontecimentos que conduzirão, mais tarde, ao Império. Vale recordar, contudo, que o

padrão identitário continua sendo aquele respaldado pela tradição e defendido pelo Senado;

e justamente a tendência em reprimir-se quaisquer intentos de reforma social, mesmo

garantindo vitórias temporárias, apenas adiavam um embate ainda maior.

Mas, se falávamos, de atores diferentes, convém verificarmos que mudanças no

quadro social de fato ocorreram nesse período.

17
“A destruição do antigo edifício social começou no século III a.C. Ela se consumou por diversas causas,
internas e externas. No início, é a luta entre patrícios e plebeus, os triunfos sucessivos dos últimos; ora, os
recém-chegados são imbuídos de um espírito oposto ao dos aristocratas. São indiferentes às velhas tradições
morais, políticas ou religiosas – são até hostis, pois é em nome destas tradições que foram por muito tempo
mantidos fora da cidade. Unindo sua própria causa à dos costumes ancestrais, os patrícios acabaram por
comprometer estes costumes.”

18
“A religião formal é cada vez menos seguida, substituída entre os pessoas cultas, pelo ceticismo, e nas
classes baixas, pelos cultos orientais, mais passionais e favoráveis às efusões do misticismo individual”.
49

2.3.1 Homo nouus...

Para tanto, importa reconhecer que todo o processo de expansão militar e política

de Roma, ocorrido nos três séculos anteriores, conduziriam, forçosamente, a um necessário

reequacionamento das estruturas de poder da Vrbe: há, em razão das conquistas, um

enorme aumento na quantidade de escravos em território romano; ademais, a necessidade

de aumento do número das legiões necessárias para o controle das regiões conquistadas -

conduz a um expressivo aumento dos contingentes militares; os gastos de manutenção

dessas tropas engendra uma rede de intendência que detona o aquecimento do comércio,

fazendo surgir uma camada da população enriquecida com e interessada na expansão do

poder militar romano - um poder cuja administração demanda cada vez mais funcionários.

Cria-se, dentro dessa espiral de crescimento do poder romano, uma demanda de

mão-de-obra em que o elemento humano necessário para ocupar-se de todas estas novas

funções será, em expressiva maioria, oriundo da ordem equestre. Isso conferirá aos

membros dessa ordem – chamados homines noui - uma mobilidade e um destaque social de

que até então não desfrutaram – na prática, a ordem equestre constituirá uma subordem

social: uma camada média, sustentáculo do poder, que, sem ser contudo aquinhoada com

qualquer fração do mesmo, logo será um elemento a mais a pressionar por mudanças no

que lhe garantam uma participação, no jogo político, proporcional ao papel que passaria a

exercer.

As consequências dessa espiral de crescimento logo se fazem sentir: o imperium19

torna-se grande demais para ser bem administrado pela República, e estes novos atores

19
Neste trabalho, utlizamos o termo latino imperium para referirmo-nos às regiões sob poder romano, não à
instituição política, que ainda não se constituíra. Ao referirmo-nos ao regime, utilizaremos o termo português
império.
50

sociais, unidos aos veteranos militares e à plebe urbana, reivindicam mais terras e maior

representatividade.

As duas reivindicações acima apontadas estão na gênese de quase todas as

convulsões sociais vividas pela república romana em seus últimos cento e cinquenta

anos20, cujas consequências e idiossincrasias acabarão por conduzir ao Império. Mas essas

não eram, porém, as únicas transformações ocorridas no panorama sociopolítico romano,

uma vez que a classe dirigente - o patriciado hereditário, de base econômica latifundista e

representado pelo Senado - encontrava-se dividida entre os que propunham a manutenção,

a qualquer custo, do status quo, e aqueles que reconheciam a necessidade de reformas no

quadro sociopolítico, embora não abrissem mão de conduzirem, eles mesmos, estas

reformas.

2.3.2 ... et homo uetustus

É nesse momento que se destacará a figura de Marco Pórcio Catão (234-149 a.C.),

legítimo representante das correntes mais tradicionalistas do patriciado. Sua ação como

censor eleito em 184 a.C foi marcada por uma tentativa de reconduzir a sociedade romana

àquela ordem já desvalorizada: combateu a ostentação e o exibicionismo dos ricos e

buscou depurar o Senado das inovações que considerava nocivas. Catão caracterizou-se

pelo rechaço sistemático a qualquer inovação na cultura romana, e, obviamente, a

influência grega foi seu alvo preferencial: fez com que os filósofos e retores gregos fossem

proibidos de residir em Roma.

Suas ações como censor tiveram êxito, em parte, devido a sua independência dos

poderosos e honestidade ímpar, no entanto, mesmo seu empenho em combater a influência

20
As exceções seriam as diversas revoltas de escravos ocorridas no período.
51

grega teve um resultado dúbio: de fato, os valores do pensamento grego foram excluídos

da vida pública, contudo, nada podia ser feito quanto à vida privada dos cidadãos. O

próprio Catão foi mostra disso quando, na velhice, dispôs-se a estudar grego. Ao fim,

Catão acabou sendo o mais legítimo representante de uma identidade romana que já não

podia responder à realidade vigente.

2. 4 Novas variáveis numa velha equação

Não devemos entender com isso que aquela antiga configuração da identidade

romana tenha sido destruída. Os romanos de então, assim como seus ancestrais, tinham

ainda necessidade de delimitar para ordenar: delimitam ainda o espaço e o tempo segundo

sua própria lógica, e ainda ordenam o mundo e sua sociedade segundo seu próprio padrão

jurídico. No entanto, se sua identidade é ainda aquela do passado, não é mais, porém,

apenas aquela, e é da dificuldade em absorver, por si só, as novas variáveis identitárias que

surgem que a sociedade romana – e com ela sua própria identidade - passará por toda uma

série de convulsões.

Onde então poderiam os romanos buscar mecanismos que lhes possibilitassem

reequacionar, incluindo as novas variáveis, sua identidade cultural? A resposta estaria

justamente no recurso à Filosofia, pois sendo uma de suas missões buscar respostas sobre o

ser humano, poderia colaborar com essa empreitada. Assim, teremos um segundo

nascimento da Filosofia em Roma, e essa nova filosofia já não será mais o arcabouço

teórico do Direito, mas todo o surgimento de um pensamento filosófico romano.

Ao falarmos de pensamento filosófico romano, devemos entender esse termo não

como o surgimento de uma filosofia romana autônoma da grega, mas pela busca, no

pensamento grego, do necessário para revestir a cultura tradicional romana de uma base
52

filosófica que lhe outorgasse nova profundidade, capacitando-a ao enfrentamento das

transformações sociais, já expostas, e culturais, que este contato com a Grécia provoca. O

maior êxito dessa busca, no período republicano, estará personificado em Cícero: sua

produção escritural, importantíssima no âmbito da Filosofia e do Direito, representa a

síntese do que afirmávamos.

Entendamos, portanto, que o recurso à Filosofia não tem apenas a intenção de

proporcionar um “revestimento teñrico” àquelas práxis – jurídica e ética - já consagradas;

mais que isso, apresenta-se também como intento de solução para um dilema que a

absorção do helenismo trouxera à elite romana, pois a recepção da cultura helenística – e

dos novos costumes que esta introduzira, indispondo o espírito romano aos rigores de sua

própria tradição cultural e drenando de sua vida cultural o pleno sentido de valores como

auctoritas, grauitas, constantia, simplicitas, fides, etc., igualmente retirara-lhe as bases

sobre as quais sua própria essência até então se assentava. Os intelectuais romanos de

então percebem que a expansão de seu poder custara-lhes a perda do centro gravitacional

de sua cultura.

2.5 – Rumo à simbiose

Após as primeiras agitações sociais conduzidas pelos Gracos e que acarretam os

governos de Mário, apoiado pelo partido popular, e Sila, este apoiado plenamente pelo

Senado, o poder republicano adota a estratégia de distribuir territórios conquistados entre

soldados veteranos e funcionários, diminuindo, apenas momentaneamente, já que novas

guerras e conquistas sempre produziriam novos veteranos. a pressão por reforma agrária.

Outra estratégia de Mário, a de permitir a qualquer cidadão, independentemente de sua

origem social, o ingresso no exército, não apenas diminui a quantidade de desocupados na


53

urbe, como acaba também por transferir as relações de lealdade da tropa, que migram da

aristocracia para o próprio generalato romano. Isso acaba por garantir uma sobrevida à

aristocracia como classe dominante, mas fica claro que o poder está mudando de mãos,

ainda que de modo bastante lento e sujeito a retrocessos, como se evidencia na concessão,

por parte de Mário, da cidadania romana a todos os habitantes da Península Itálica.

Unidos, os interesses de cada um destes agentes sociais – mesmo que

ocasionalmente opostos entre si – colocarão o patriciado romano em xeque: não há como

manter sua posição sem negociar com ou apoiar-se nestes novos grupos, ainda que isto

signifique ao mesmo tempo abrir mão de alguma fração de seu poder de classe dominante.

Julgado dessa forma, talvez a figura de Júlio César se apresentasse como capaz de fazer

essa necessária transição de forma minimamente satisfatória para todos, todavia, seu

assassinato em 44 a.C., torna irreconciliáveis estes grupos e abre caminho para a

instauração do império como instituição política, fato que se concretiza com a ascensão de

Augusto em 27 a.C.

Se neste capítulo abordamos a trajetória de Roma e o modus operandi pelo qual se

construiu uma identidade romana, que, desafiada pelas transformações na sociedade de que

é produto, busca na Filosofia grega uma nova base de sustentação; nosso próximo capítulo

abordará como, na obra filosófica de Marco Túlio Cícero, ocorre essa simbiose entre

identidade romana e o pensamento grego, com a inserção de novos valores na cultura de

Roma.
54

3 CÍCERO: A ROMANIDADE FILOSÓFICA

Em nosso capítulo anterior, analisamos que, desde sua fundação, o processo

histórico romano não só transformara o Direito no elemento regulador de sua sociedade,

mas, indo além, transformara-o no seu espaço de reflexão sobre o próprio homem.

Ocupando essa função, é no âmbito do Direito que encontraremos – sempre disposto de

maneira pragmática e sucinta, como foi conveniente aos romanos – um substrato de caráter

filosófico.

Vimos também que o desenvolvimento da sociedade romana, e a expansão de seu

poder, introduziram novas personagens em seu tecido social, tornando cada vez mais

complexa a trama de suas relações, e como, em decorrência disso, o modelo identitário que

até aquele momento servira para a composição da romanidade não mais serviria para

abarcar o conjunto dessa (nova) sociedade. Esse fato conduziu, no bojo da absorção da

cultura helenística pela intelectualidade romana, ao estudo da Filosofia grega no intento de

fornecer um novo lastro àquela (também nova) conformação identitária.

Uma vez que acreditamos que Cícero será o primeiro autor em que se percebem

questionamentos acerca da identidade romana, abordaremos aqui, em algumas de suas

obras, os momentos em que esses questionamentos, e as propostas que faz, tornam-se mais

evidentes. Convém ressaltar que não realizaremos aqui uma análise completa de qualquer
55

das obras de Cícero, mas tão somente dos pontos onde há uma proposição de caráter

identitário. Antes, porém, façamos uma breve recapitulação de sua biografia.

3.1 – Cícero: esboço biográfico

Nascido em Arpino em 106 a.C., Cícero será um dos mais destacados

representantes daqueles homines noui a que nos referimos anteriormente: oriundo da

ordem equestre, estuda em Roma e inicia, com brilhantismo, sua carreira como advogado,

conseguindo, entre 81 e 79, diversos êxitos em julgamentos tidos como “causas perdidas”.

No entanto, não estudou apenas Direito: durante seus anos de formação, estudara Filosofia

com o estoico Diódoto e o acadêmico Fílon de Larissa. Isto será um fator decisivo para sua

formação forense e também para sua atuação política: Cícero reunirá em si uma sólida

formação em ambas as áreas e estará, mais que ninguém em seu tempo, apto a, trafegando

entre ambas, construir pontes entre elas.

Em razão disso e com o acréscimo de seu reconhecido talento como escritor, Cícero

será o primeiro nome romano capacitado a elevar o patamar da discussão sobre os rumos

da sociedade romana – compreendendo-se aí a proposição de uma nova concepção

hereditária - tornando-se, “par l‟ ampleur de sa pensée, la diversité de ses activités, par son

action politique, aussi, qui reste inséparable de son génie d‟orateur et d‟écrivain, il

rassemble en lui et symbolise ce temps qui est le sien et où l‟expression est au service de la

cité. (GRIMAL, 1994:162)”21, como bem sintetizará Pierre Grimal.

Entre 79 e 77, Cícero realiza novos estudos, em Filosofia e Retórica, em Rodes e na

Ásia. Retornando a Roma, retoma suas atividades como advogado e inicia seu cursus

21
“pela amplitude de seu pensamento, pela diversidade de suas atividades, por sua ação política também,
que é inseparável de sua genialidade como orador e escritor, reúne em si e simboliza esse tempo que é o seu e
onde a expressividade está a serviço da urbe.”
56

honorum, galgando todos os degraus políticos da sociedade romana: questor em 75 a.C.,

edil curul em 69, pretor urbano em 66, e cônsul em 63 22 são as que mais se destacam.

Durante todo este tempo, embora não tenha deixado de estudar, as publicações de Cícero

estão restritas aos seus discursos forenses, ficando evidente que Cícero soube usar destes

discursos para estabelecer sua fama e posicionar-se entre os notáveis de seu tempo,

ousando defender causas ou ideias que o colocariam no centro da vida pública, e no papel

de peça-chave para o jogo político de Roma, pois “les discours judiciaires concernent, dans

leur grande majorité, des procès de caractère politique et ce sont eux, et non les quelques

procès privés que nous avons mentionnés, qui ont fait la gloire de Cicéron. La vie

publique, à Rome, le voulait ainsi.” (GRIMAL, 1994:168)23

Assim, nesta fase de sua vida, Cícero usa seus talentos para sua própria ascensão

social. 24 E se em seus discursos não deixa de haver uma preocupação com a Filosofia, esta

se encontra submetida à necessidade de defender, e vencer, uma determinada causa. Porém

percebe-se que, mesmo entre estes discursos, está presente a exaltação de um modelo

político, o da República Senatorial, do qual Cícero se torna um ardoroso defensor.

Sua ascensão como figura pública tende a ser vista como contraditória, uma vez que

Cícero surge como um seguidor, embora moderado, da causa popular e, à medida que

conquista maiores espaços no ambiente político romano, vai, paulatinamente - e ao

contrário do que se poderia esperar -, aderindo à causa conservadora. Contudo, mesmo

costumando dividir os grupos políticos em atuação naquele momento histórico entre

22
É durante seu mandato como cônsul que desbarata a conspiração promovida por Lúcio Sérgio Catilina,
não só prendendo mas executando sumariamente os que o apoiavam.
23
“os discursos jurídicos dizem respeito, em sua grande maioria, a processos de caráter político e são estes, e
não os demais processos privados que mencionávamos, que fizeram a glória de Cícero. A vida pública, em
Roma, assim o exigia.”
24
Outro fator que certamente terá contribuído para sua ascensão social e política foi seu alinhamento político
com Pompeu, para quem defendeu os poderes ilimitados concedidos pela Lex Manilia em 66 a.C.
57

Optimates e Populares, vale ressaltar que não se trata, de fato, de partidos políticos, mas de

grupos representativos de estamentos sociais muito próximos, como Norma Musco

Mendes explicita ao declarar que “não existia uma oposição formal entre senadores e

equestres, que desfrutavam do mesmo gênero de vida, tinham os mesmos gostos e ideias

políticas. (MENDES; 1988: 54)”. A disputa era, segundo Grimal, colocada num nível

ainda mais baixo, já que “il n‟y avait guère de débats idéologiques ni de partis bien définis;

ce qui l‟emportait, c‟étaient les rivalités entre les personnes et les clans qui avaient pour

enjeu la conquête des magistratures et des gouvernements provinciaux. (GRIMAL,

1994:168)”25.

Fato é que Cícero, mesmo direcionando-se à causa conservadora, não obteve, junto

aos optimates, o reconhecimento a que certamente fazia jus. Isso se dá porque, apesar do

fato de que essa adesão teria acelerado sua ascensão social, a leitura de seus textos mostra

que Cícero não foi um mero adulador do patriciado, mas o defensor de um sistema político,

o da república oligárquica, no qual essa classe era dominante. E é por essa razão que

contraiu, ao longo de sua carreira, uma série de inimigos justamente entre os membros do

patriciado; chegando a ser exilado – graças a uma lei proposta por Clódio - por ter

executado cidadãos sem julgamento, durante a repressão aos catilinários 26.

É durante o Primeiro Triunvirato (59-53), que a estrela de Cícero começa a

esmaecer: exilado em 58, retorna a Roma em 57 e é constrangido a defender vários de seus

antigos inimigos. Em 52, é novamente afastado do centro das decisões, através de uma

25
“Não existiam debates ideolñgicos nem partidos bem definidos, o que a conduzia, eram as rivalidades entre
pessoas e clãs que tinham por objetivo a conquista de magistraturas e de governos provinciais.”
26
Outro fato que dificultou a aceitação de Cícero foi sua insistência, após a conjuração de Catilina, em
apresentar-se como pater patriae: o esprit de corps do patriciado não podia aceitar que um membro da ordem
equestre houvesse prendido e executado diversos membro de sua classe. Contudo Cícero sempre manteve
grande número de admiradores entre o povo, que celebrou seu triunfo quando de seu retorno do exílio.
58

nomeação ao cargo de procônsul na Cilícia (51). Em suma, Cícero jamais recuperou, no

campo político, a importância antes adquirida.

Outra contradição em Cícero é sua tentativa de colaboração com o Triunvirato, uma

aparente traição ao sistema republicano. Mas se muito dessa colaboração resulta de

constrangimento, pode-se porém perceber, subjacente, a defesa do Senado enquanto órgão

condutor da nação. Analisado sob este prisma, sua trajetória política torna-se quase linear:

sua intenção maior, até esse momento, era a almejada concordia ordinum que poria fim às

convulsões da República, mesmo que ficasse, temporariamente, sob um “regime de

exceção”. Sob esse assunto, Gian Biagio Conte é categórico ao afirmar que:

Despite the many fluctuations, Cicero‟s political career follows a consistent line. In
the context of a general rapprochement between Senate and equites the homo nouus
supported the nobilitas, and even afterwards he remained faithful to the idea of
concord and to the senatorial cause. His attempt at collaboration with the triumvirs
was a response to the need for an authoritative government, and here, too, Cicero was
concerned to preserve the prestige and the prerogatives of the Senate. Even the
temporary rapprochement with Caesar‟s autocratic tendencies and to maintain power
within the familiar framework of republican traditions. (CONTE; 1994:185)27

Durante a Guerra Civil (49-47), Cícero adere ao grupo de Pompeu. Uma adesão

sem entusiasmo, pois estava consciente de que, qualquer que fosse o vencedor, o Senado

estaria condenado à perda de grande parte de seu poder. Com a vitória de César, Cícero é

logo perdoado, já que César era suficientemente perspicaz para perceber que, assim o

fazendo, neutralizaria seu poder de ação. O estratagema de César dá certo, e Cícero,

recusando-se a colaborar com o novo governante, permanece oficialmente afastado da vida

pública até o assassinato do ditador em 44 28. A partir de então, tenta interferir novamente

27
“Apesar de algumas flutuações, a carreira política de Cícero segue uma linha consistente. No contexto de
uma aproximação geral entre o Senado e os equites o homo nouus apoiou a nobilitas, e mesmo contradito ele
manteve fé na ideia de concórdia e na causa senatorial. Sua tentativa de colaboração com os triúnviros foi
uma resposta à necessidade de um governo autoritário, e aqui, também, Cícero buscou preservar o prestígio e
as prerrogativas do Senado. Mesmo a aproximação temporária com as tendências autocráticas de César e
manter o poder nas estruturas familiares da tradição republicana.”
28
Não se duvida de que Cícero estivesse a par dos Idos de Março, mas sua participação ativa no assassinato
de César não pode ser comprovada. Contudo, inclinamo-nos a crer que, indiretamente, as obras de Cícero
tenham sido fundamentais nesse processo, conforme demonstraremos a seguir.
59

no rumo dos acontecimentos, mas, transformado em peão no jogo político entre Marco

Antônio e Otaviano, é proscrito e depois executado a mando do primeiro em 43.

3.1.1 – Cícero, magister eloquentiae

A decadência do papel de Cícero na política é inversamente proporcional a sua

produção escritural: nos anos que sucedem ao de seu consulado (63 a 43), Cícero produz

uma grande quantidade de obras, voltadas para a Retórica, para a Filosofia e para o

pensamento político romano. Apesar de voltada para áreas tão díspares, novamente

podemos recorrer a Conte para defender a ideia de uma linha-mestra em seus textos:

But as his years and his disappointments mounted up, he felt the increasing need to
reflect on the bases of politics and morality and went back to Hellenistic thought. The
aim of his philosophical works is the same one that inspires some of his most
important speeches: to provide a solid intellectual, ethical, political base for a
dominant class whose need for order would not be translated into obtuse isolation and
whose respect for the national tradition (mos maiorum) would not hinder the
absorption of Greek culture,(…). (CONTE; 1994:177)29

A participação de Cícero no jogo político em Roma acabou por ser menor do que o

brilho que deu às letras latinas de seu tempo: seu nome é até mesmo usado para delimitar

um dos períodos literários de Roma 30; isso se deve primeiramente a seu êxito como orador,

posição na qual alcançou, ainda em vida, pleno reconhecimento como o mais importante

dos prosadores e oradores romanos. Nesse aspecto, Cícero destacou-se não apenas por ser

um dileto praticante da retórica da persuasão mas também por ter estudado profundamente

os fundamentos e as técnicas dessa ciência, publicando uma série de livros sobre o assunto:

29
“Mas como nesses anos seus desapontamentos cresceram, ele sentiu a crescente necessidade de repensar
as bases da política e da moral, e voltou-se para o pensamento helenístico. O alvo de seus trabalhos
filosóficos é o mesmo que inspira alguns dos seus mais importantes discursos: prover uma sólida base
intelectual, ética e política para uma classe dominante cuja necessidade de ordem não poderia ser traduzida
num isolamento obtuso e cujo respeito pela tradição nacional (mos maiorum) não poderia atrapalhar a
absorção da cultura grega,...”
30
Diversos historiógrafos da literatura latina estabelecem os anos de Cícero (81-43 a.C.), como uma das fases
da literatura romana.
60

De inuentione, De Oratore, Partitiones Oratoriae (54)31, De Optimo Genere Oratorum

(52), Brutus, Orator (46) e Topica (44).

Dentre estas obras, no entanto, duas irão além do objetivo principal e nos tratarão

da identidade romana: Brutus e Orator. O primeiro é uma refutação do neoaticismo que

caracterizara até então seus discursos e, também e principalmente, uma história da

eloquência latina, um texto em que, segundo Pierre Grimal:

“il retrace l‟histoire de l‟éloquence romaine, depuis ses plus lointaines origines
saisissables jusqu‟à l‟époque contemporaine. Dans cet ouvrage, qu‟il intitula Brutus,
en hommage à son jeune ami, pour lequel il a beaucoup d‟estime, il sacrifie aux
tendances du jour, le désir croissant de connaître les antiquités de Rome; ce n‟est pas
un hasard si l‟un des interlocuteurs est Atticus. Mais la succession des notices
consacrées, par ordre chronologique, aux orateurs ne laisse pas de tracer une véritable
histoire de la vie politique depuis plus d‟un siècle. (GRIMAL, 1994:173) 32

Ou seja, o que se explicita neste texto é como Cícero interpreta o – tumultuado – período

histórico precedente, período em que, respeitando-se o “depuis plus d‟un siècle” de

Grimal, determinará o ano de 146 a.C., em que termina a Terceira Guerra Púnica, com a

destruição definitiva de Cartago, e em que Corinto é destruída - como o marco que delimita

o início das sucessivas crises do sistema republicano, e também da identidade romana. O

que está subreptício no discurso de Brutus é a interpretação, por Cícero, do percurso

histórico romano.

O Orator, escrito no mesmo ano de 46 a.C., chama-nos a atenção por ser uma obra

de caráter doutrinal, abordando como deve proceder o grande orador. É também dedicado a

Bruto, mais um de longa série a que voltaremos em seguida.

31
Sabe-se com certeza que o De Oratore é de 54, sobre os demais a data é aproximada. Porém a ordem de
sua apresentação acima é a da publicação dos textos.
32
“...ele retrata a histñria da eloquência romana, desde suas origens mais longínquas até a época
contemporânea. Nesta obra, que chamou Brutus, em homenagem a seu jovem amigo por quem tem muita
estima, ele sacrifica às tendências do momento, ao desejo crescente de conhecer as antiguidades de Roma; e
não é por acaso que um dos interlocutores é Ático. Mas a sucessão, em ordem cronológica, de fatos
consagrados pelos oradores não deixa de traçar uma verdadeira história da vida política desde há mais de um
século.”
61

3.1.2. Cícero, o filósofo

Mais que o mestre da eloquência, o Cícero que aqui nos interessa investigar é o

filósofo cujo pensamento comporta um programa político e, dentre deste, uma nova

concepção da identidade romana. Se, como já dito, Cícero fora, na juventude, aluno do

acadêmico Fílon e do estoico Diódoto, seu aprendizado nestas duas escolas serviu para que

manifestasse, sempre que possível, uma profunda repulsa pelo epicurismo. A explicação

para tal posicionamento nos será dada novamente por Conte:

There are two principal grounds for Cicero‟s aversion to Epicureanism, closely linked
to one another. First, the Epicurean philosophy leads to a lack of interest in politics,
whereas the boni ought to participate actively in public life. Second, Epicureanism
excludes the divinity‟s providential function (to the extent that it does not deny its
existence) and thus weakens the links with traditional religion, which remains the
fundamental basis of ethics for Cicero. (CONTE; 1994:193-4)33

Fica , portanto, evidente que o epicurismo ia completamente de encontro às bases da

cultura romana, uma vez que desafiava diversos dos valores consagrados no mos maiorum.

Assim, descartado o epicurismo, restava a Cícero (re)pensar a política – e de

passagem a identidade cultural – romana a partir das duas outras escolas, aquelas mesmas

que estudara na juventude: o academicismo platônico e o estoicismo. Cícero, no entanto,

não se detém aí: a evolução de seu trabalho faz com que penda para o neoacademicismo,

baseado principalmente no pensamento de Carnéades de Cirene (214-129 a.C.). Segundo

Paul Harvey (1998), Carnéades defendia “a impossibilidade de atingirmos o conhecimento

certo, mas que, à falta deste, podíamos chegar a conclusões com vários graus de

probabilidade de certeza, conclusões estas que podem constituir uma diretriz para nossa

conduta. (Harvey; 1998: 101)”.

33
“Há dois principais argumentos para a aversão de Cícero pelo epicurismo, fortemente unidas uma à outra.
Primeiramente, a filosofia epicurista conduz à perda de interesse pela polítca, enquanto os boni devem
participar ativamente na vida pública. Em segundo lugar, o epicurismo exclui a função providencial da
divindade (mesmo que não negue sua existência) e desse modo rompe os elos com a religião tradicional, que
permanece como a base fundamental da ética, para Cícero.”
62

A filosofia de Cícero, contudo, vai ainda além dos limites do neoacademicismo: em

seus livros manifestam-se diversos pontos em que a influência estoica é marcante, quando

não predominante, como nas questões relativas à ética, afinal, conforme mais uma vez

Conte:

“Cicero recognized that Stoicism furnished the most solid moral basis for the citizens‟
commitment to the community. Yet by virtue of his taste and culture he felt himself
remote from an intransigent Stoic such as Cato [the Younger] or from an Academic of
rigid morality such as Brutus. (CONTE; 1994:194)34

De fato, Cícero era um eclético, e cremos não poder ter sido diferente, pois sendo a

aquisição seletiva e pragmática do pensamento, práticas e valores culturais estrangeiros um

procedimento já consagrado da cultura romana, Cícero estaria tão somente agindo segundo

seu condicionamento cultural, mas, além disso, Conte afirma que:

Cicero is original in the choice of subject and in the shaping of the arguments, since
the problems poses by society are new. Cicero knits together the torn limbs of
Hellenistic thought in order to extract from it an ideal structure that will operate
effectively in regard to Roman society. (CONTE; 1994:192)35

À parte sua produção sobre a retórica, que embute, como vimos, sua visão da

história, Cícero possui dois outros grupos de obras: a), sobre política, constituído de De Re

Publica (54-51), De Legibus (52-?) e, b), sobre filosofia propriamente dita, em que se

arrolam: Paradoxa Stoicorum (46), escrito em 46 a.C.; Academica, De Finibus Bonorum et

Malorum, Tusculanae Disputationes e De Natura Deorum, todos produzidos em 45, De

34
“Cícero reconheceu que o estoicismo fornecia a mais sñlida base moral para o comprometimento dos
cidadãos para com a comunidade. Mas em razão de seu gosto pessoal e cultura ele se sentia distante de um
estoico intransigente como Catão [de Útica] ou de um acadêmico de moralidade rígida como Brutus.”

35
Cícero é original na escolha do tema e na construção dos argumentos, uma vez que os problemas colocados
à sociedade também são novos. Cícero costurou os tecidos rasgados do pensamento helenístico ´para extrair
daí uma estrutura ideal para operar efetivamente em relação à sociedade romana.”
63

Diuinatione, De Fato, Cato Maior de Senectute, Laelius de Amicitia e De Officiis, escritos

em 4436.

Apesar de enquadrados em grupos distintos, a já mencionada linha-mestra que

conduz o pensamento, a ação política – e se reflete nos textos – de Cícero nos concedem

que estas obras sejam analisadas em conjunto, uma vez que, nos seus textos políticos,

Cícero traça as linhas gerais de conduta do cidadão partícipe de um modelo de estado que o

próprio Cícero traça; e, nos seus textos mais estreitamente filosóficos, Cícero estabelece o

padrão de conduta e de pensamento desse mesmo cidadão, recorrendo, para tanto, a

modelos diversos, conforme veremos adiante.

3.2 – O pensamento político de Cícero

Vimos que Cícero escreveu duas obras de caráter mais estreitamente político: De

Re Publica e De Legibus, no entanto, nossa análise aqui estará concentrada exclusivamente

na primeira, já que, segundo Gian Biagio Conte (1994), esta obra não teria sido publicada

durante a vida de Cícero: “Inspired again by the model of Plato, who had followed the

Republic with the Laws, Cicero complemented the dialogue on the state with de De

Legibus, begun in 52 and probably not published during his lifetime.(CONTE;

1994:190)”37. Afirmação esta corroborada, de modo ainda mais enfático, por Pierre

Grimal, que afirma ainda que este livro somente teria sido terminado após a morte de

César:

36
Há a variação de alguns meses na produção destas obras, para alguns autores (Harvey e Paratore), as
Tusculanae Disputationes teriam sido concluídas apenas em 44, e De Fato teria sido escrito em 43.
Inclinamo-nos aqui, no entanto, pelas datas consideradas pela maioria dos autores consultados.
37
“Inspirado novamente no modelo de Platão, que continuou a República com as Leis, Cícero complementou
o diálogo sobre o estado com o De Legibus, iniciado em 52 e provavelmente não publicando durante sua
vida.”
64

Il semble que la mort de César n‟ait pas été étrangère à ce qui apparaît comme un
regain d‟optimisme. Il retrouve les idées qui lui avaient dicté, peut-être vers 52 ou 51,
son traité Des lois (De Legibus), où se trouvait affirmée la possibilité, pour un homme
d‟État, d‟influer sur la vie de la cité, et de rompre les prétendus déterminismes qui
passaient pour la dominer. Il se peut que le De Legibus, à peine achevé au moment où
Cicéron partait en Cilicie, soit resté inédit et n‟ait été publié qu‟après la mort de son
auteur. (GRIMAL, 1994:177)38

Como as ideias que Cícero defende nesta obra só teriam visto a luz durante o governo de

Augusto e não tiveram repercussão durante o período em análise, cremos ser melhor

deixarmos de lado o exame de De Legibus e concentrarmo-nos mais detidamente em De Re

Publica.

3.2.1 - De Re Publica

Escrito ainda durante o Primeiro Triunvirato, De Re Publica é construído, desde o

título, à semelhança da “República”, de Platão. Como esse, naquele temos a narração de

um debate ocorrido entre diversos amigos na quinta de Cipião Emiliano. Debate em que

são discutidos diversos temas relativos à organização do Estado e em que Cipião acaba se

tornando não apenas um condutor do debate mas um alter ego do autor, uma vez que as

opiniões expressas serão as de Cícero.

A obra compunha-se originariamente de seis livros, dos quais nos restaram os dois

primeiros e fragmentos, de extensão variada, dos outros; entre os quais se encontra o

famoso Somnium Scipionis, quase um texto à parte.

Mas se o texto demarca, desde o título, sua proximidade com o de Platão, qual

seria, por outro lado o distanciamento com o “República”? Cremos que o primeiro marco

38
“Parece que a morte de César não foi estranha a quem a via como uma retomada do otimismo. Ele
reencontra as ideais que havia ditado, talvez em 52 ou 51, seu tratado sobre as leis (De Legibus), onde se
encontrava afirmada a possibilidade, para um homem de Estado, de influir na vida da urbe, e de romper os
pretensos determinismos que pareciam dominá-la. Talvez o De Legibus mal terminado no momento em que
Cícero partia para a Cilícia, tenha ficado inédito e sñ tenha sido publicado apñs a morte de seu autor.”
65

de distanciamento seria a afirmação da superioridade da práxis romana sobre a teorização

grega, afirmação que se explicita já nos primeiros momentos do texto, como se vê no

trecho abaixo, que, dito por Cipião, mal esconde a biografia do próprio Cícero:

Sed neque iis contentus sum quae de ista consultatione scripta nobis summi ex Graecia
sapientissimique homines reliquerunt, neque ea quae mihi uidentur anteferre illis
audeo. Quam ob rem peto a uobis ut me sic audiatis: neque ut omnino expertem
Graecarum rerum, neque ut eas nostris in hoc praesertim genere anteponentem, sed ut
unum e togatis patris diligentia non inliberaliter institutum, studioque discendi a
pueritia incensum, usu tamen et domesticis praeceptis multo magis eruditum quam
litteris.' (CÍCERO; De Re Pub., I,36)39

Aliás, em quase todas as suas obras filosóficas, a proclamação da superioridade

romana frente à especulação grega tornar-se-ia um lugar-comum para Cícero, chegando a

alcançar tons ainda mais fortes que o acima, como se percebe na abertura das Tusculanae,

em que, mesmo que reitere a superioridade dos valores e das práticas romanas, Cícero não

deixa de reconhecer-se como tributário da mesma:

...cum omnium artium, quae ad rectam uiuendi uiam pertinerent, ratio et disciplina
studio sapientiae, quae philosophia dicitur, contineretur, hoc mihi Latinis litteris
inlustrandum putaui, non quia philosophia Graecis et litteris et doctoribus percipi non
posset, sed meum semper iudicium fuit omnia nostros aut inuenisse per se sapientius
quam Graecos aut accepta ab illis fecisse meliora, quae quidem digna statuissent, in
quibus elaborarent.” (CICÉRON; Tusc., I, 1)40

Retornando à De Re Publica, devemos recordar que sua produção se dá durante a

vigência do Primeiro Triunvirato, momento em que o rodízio de poderes consagrado na

república dual é suspenso em nome de um mandato trino. Mandato este que, mal
39
“...se as doutrinas políticas dos mais esclarecidos escritores gregos não me satisfazem completamente,
tampouco me atrevo a ter preferência pelas minhas próprias ideias. Suplico-vos, , portanto,, que não me
escuteis como a um ignorante, completamente estranho às teorias gregas, nem tampouco como a um homem
inteiramente disposto a dar-lhes a preferência; sou romano antes de mais nada, educado com os cuidados de
meu pai no gosto dos estudos liberais, estimulado desde pequeno pelo desejo de aprender, mas formado
muito mais pela experiência e pelas lições domésticas do que pelos livros”. Todas as traduções de De Re
Publica são de Amador Cisneiros.
40
“...como a teoria e a prática de todas as artes que dizem respeito ao meio correto de viver estão contidas no
estudo da sabedoria, que é chamada filosofia, considerei ilustrar com letras latinas, não porque a filosofia não
pudesse ser apreendida com os mais sábios ou com os textos gregos, mas porque sempre foi minha opinião
que os nossos tenham melhorado e tornado mais sábias do que os gregos todas as coisas que - quer tenham
descoberto por si, quer tenham recebido deles – ao menos considerassem dignas e às quais se tenham
dedicado.” Tradução nossa.
66

disfarçando as tendências autocráticas dos três mandatários – César, Pompeu e Crasso–,

instaurava um frágil equilíbrio e conseguia, no máximo, retardar um conflito interno em

Roma. Cícero, antevendo que, qualquer que fosse o resultado desse conflito, o sistema dual

republicano entraria em agonia, busca minorar os danos, delineando o que cogitava ser um

modelo “ideal” do novo regime. Uma opção, que, ao fim, não deixaria de ser uma

concessão aos mandatários já em cena:

“Sed et in regnis nimis expertes sunt ceteri communis iuris et consilii, et in


optimatium dominatu uix particeps libertatis potest esse multitudo, cum omni consilio
communi ac potestate careat, et cum omnia per populum geruntur quamuis iustum
atque moderatum, tamen ipsa aequabilitas est iniqua, cum habet nullos gradus
dignitatis. (...) Itaque quartum quoddam genus rei publicae maxime probandum esse
sentio, quod est ex his quae prima dixi moderatum et permixtum tribus.” 41 (CÍCERO;
De Re Pub., I,43)

Desejando o fortalecimento do poder pessoal do dirigente – que, esperava, seria

Pompeu –, Cícero começa a delinear um perfil para o dirigente que, distintamente do

sistema dual estabelecido desde a criação da República, já pressupunha que o exercício do

poder se concentrasse em um único indivíduo; restando apenas delinear os contornos desse

indivíduo. O contorno básico será, para Cícero, a virtude – termo empregado no sentido

que lhe dão os estoicos – em detrimento dos poderes militar e econômico – à época,

ressalte-se, exercidos tanto pelo patriciado quanto pelos equestres enriquecidos:

Nam diuitiae, nomen, opes uacuae consilio et uiuendi atque aliis imperandi modo
dedecoris plenae sunt et insolentis superbiae, nec ulla deformior species est ciuitatis
quam illa in qua opulentissimi optimi putantur. Virtute uero gubernante rem publicam,
quid potest esse praeclarius? Cum is qui imperat aliis seruit ipse nulli cupiditati, cum
quas ad res ciuis instituit et vocat, eas omnis conplexus est ipse, nec leges inponit
populo quibus ipse non pareat, sed suam uitam ut legem praefert suis ciuibus.
(CÍCERO; De Re Pub., I,51) 42

41
“...na monarquia, a generalidade dos cidadãos toma pouca parte no direito comum e nos negñcios públicos;
sob a denominação aristocrática, a multidão, apenas livre, está privada de qualquer meio de ação, e mesmo de
deliberação; por últimos, quando o povo assume todo o poder, mesmo supondo-o sábio e moderado, a própria
igualdade se torna injusta desigualdade, porque não há degradação que distinga o verdadeiro mérito.”
(...)“Por minha parte, creio que a melhor forma política é uma quarta formada da mescla e reunião das três
primeiras”.
42
“ ...o nome ilustre, o poderio, sem a sabedoria que ensina os homens a se governarem a dirigir os outros
nada mais são do que uma vergonhosa e insolente vaidade; não há no mundo espetáculo mais triste que uma
sociedade em que o valor dos homens é medido pelas riquezas que possuem. Ao contrário, que pode haver de
mais belo e preclaro que a virtude governando a República? Que é mais admirável do que esse governo,
67

Cícero acaba por esboçar a figura do dirigente de modo tal que acabaria constituindo-se

como um paradigma do mandatário, sendo estes contornos reevocados diversas vezes, ao

longo dos séculos, como meio de consolidação de poderes ditatoriais: se o governante é um

agente da virtude, virtuosas serão suas ações, quaisquer que sejam seus motivos,

justificativas e/ou consequências43.

Mas não nos enganemos, Cícero, defensor da causa senatorial, advoga de modo

enfático a necessidade de independência entre os poderes executivo, legislativo e

judiciário, visando ao equilíbrio do Estado:

id enim tenetote quod initio dixi, nisi aequabilis haec in ciuitate compensatio sit et
iuris et officii et muneris, ut et potestatis satis in magistratibus et auctoritatis in
principum consilio et libertatis in populo sit, non posse hunc incommutabilem rei
publicae conseruari statum. (CÍCERO; De Re Pub., II,57) 44

Uma defesa em que Cícero sai duplamente beneficiado, pois, com o fortalecimento do

sistema judicial, sua condição de advogado o coloca em franco destaque; ademais, com a

estabilidade do legislativo (i. e., do Senado), sua posição, devido ao livre trânsito de que aí

desfrutava, sairia, também, privilegiada. Entretanto, apesar de poder extrair daí algum

benefício pessoal, Cícero é veemente ao defender a supremacia do Direito na formação,

organização e condução da sociedade:

Quare cum lex sit ciuilis societatis vinculum, ius autem legis aequale, quo iure
societas ciuium teneri potest, cum par non sit conditio ciuium? Si enim
pecunias aequari non placet, si ingenia omnium paria esse non possunt, iura
certe paria debent esse eorum inter se qui sunt ciues in eadem re publica. Quid
est enim ciuitas nisi iuris societas ciuium? (CÍCERO; De Re Pub., I,49)45

quando o que manda não é escravo de paixão alguma e dá exemplo de tudo o que ensina e preconiza, não
impondo ao vulgo leis que é o primeiro a não respeitar, mas oferecendo, com lei viva, a própria existência
aos seus compatriotas?
43
Este, inclusive, será o mote de que Sêneca se valerá na formação do jovem Nero.
44
“considerai o que disse de início: um estado em que os direitos e as prerrogativas não estão num equilíbrio
perfeito, em que os magistrados não têm suficiente poder, bastante influência as deliberações dos nobres e o
povo bastante liberdade, não pode ter estabilidade nem permanência.”
45
“Sendo a lei o laço de ouro de toda sociedade civil, e proclamando seu princípio à comum igualdade,
sobre que base assenta uma associação de cidadãos cujos direitos não são os mesmos para todos? Se não se
68

Se a sociedade romana, tal como preconizada por Cícero, pressupunha o equilíbrio

de poderes e a virtude como regente das ações do governante, sua defesa da igualdade de

direitos parece paradoxal quando constatado que Cícero defende também o modelo

oligárquico da república. Contudo, vale recordar que Cícero almejava sobretudo a

concordia ordinum, e a igualdade de direitos seria uma condição sine qua non para

alcançá-la.

Mas a igualdade de direitos defendida por Cícero não significa a inexistência de

uma elite mais bem capacitada para dirigir a República. Uma elite que, talvez para não

ferir as suscetibilidades dos membros do Triunvirato, Cícero exemplifica com outro

“triunvirato”, formado por membros destacados do “Círculo dos Cipiões”.

...quare sint nobis isti qui de ratione uiuendi disserunt magni homines (ut sunt), sint
eruditi, sint ueritatis et uirtutis magistri, dam modo sit haec quaedam, siue a uiris in
rerum publicarum uarietate uersatis inuenta, siue etiam in istorum otio ac litteris
tractata, res (sicut est) minime quidem contemnenda, ratio ciuilis et disciplina
populorum, quae perficit in bonis ingeniis, id quod iam persaepe perfecit, ut
incredibilis quaedam et diuina uirtus exsisteret. Quodsi quis ad ea instrumenta animi,
quae natura quaeque ciuilibus institutis habuit, adiungendam sibi etiam doctrinam et
uberiorem rerum cognitionem putauit, ut ii ipsi qui in horum librorum disputatione
uersantur, nemo est quin eos anteferre omnibus debeat. Quid enim potest esse
praeclarius, quam cum rerum magnarum tractatio atque usus cum illarum artium
studiis et cognitione coniungitur? Aut quid P. Scipione, quid C. Laelio, quid L. Philo
perfectius cogitari potest? Qui, ne quid praetermitterent quod ad summam laudem
clarorum uirorum pertineret, ad domesticum maiorumque morem etiam hanc a Socrate
aduenticiam doctrinam adhibuerunt. Quare qui utrumque uoluit et potuit, id est ut cum
maiorum institutis tum doctrina se instrueret, ad laudem hunc omnia consecutum
puto.46 (CÍCERO; De Re Pub., III,2)

admite a igualdade da fortuna; se a igualdade da inteligência é um mito, a igualdade dos direitos parece ao
menos obrigatória entre os membros de uma mesma república. Que é, pois, o Estado, senão uma sociedade
para o direito?”
46
“Não se deve, por isso deixar de reconhecer que a arte social de governar os povos, ou na variedade dos
descobrimentos dos homens versados no governo da República, ou no que eles escreveram em seu ócio
fecundo, longe de ser uma ciência sem importância, desperta nos engenhos privilegiados uma virtude divina
e quase incrível; e quando a essas excelsas faculdades naturais, desenvolvidas pelas instituições civis, se
unem, como nos interlocutores deste diálogo, sólida instrução e extensos conhecimentos, ninguém haverá que
a eles se devem antepor. Com efeito, que pode existir de mais preclaro do que o conhecimento e o hábito dos
problemas mais importantes da política, quando se unem a eles de prazer e a experiência das artes do
entendimento? Que homens haverá melhores do que Cipião, Lélio e Filão, que para reunir às tradições dos
seus antepassados e aos seus costumes domésticos a doutrina estranha que haviam recebido de Sócrates? Em
69

Deve-se notar que Cícero lança mão do termo doctrina para especificar o conjunto

de ensinamentos socráticos, certamente Cícero assim age para contornar o preconceito

vigente na sociedade romana quanto ao termo, não se valendo , portanto, do vocábulo

philosophia, nessa época já corrente na cultura grega, tampouco o termo sapientia é

utilizado.

Em De Re Publica Cícero defendia, enfim, que as elites hereditárias do patriciado

fossem substituídas, na condução dos negócios públicos, por uma elite intelectual, como,

aliás, Platão já havia defendido na obra em que Cícero se inspirou. De qualquer modo,

perceba-se que mesmo o mais ardoroso defensor da tradição republicana acreditava serem

necessárias reformas no sistema político e, também, na formação dos quadros dirigentes da

república.

Ao escrever De Re Publica, Cícero não apenas defende um conjunto de ideias com

a pretensa finalidade de orientar a elite política romana na resolução das crises

institucionais que se acumulavam já desde há um século e cuja última consequência fora o

Triunvirato. Sua proposta é mais ambiciosa, pois visa, embora defendendo as prerrogativas

do Senado, redefinir não apenas o funcionamento do sistema republicano, mas indicar um

novo referencial de valores, resultante da simbiose entre aqueles já consagrados no mos

maiorum e os defendidos pelo estoicismo e pelo academicismo. Mas Cícero vai além:

seleciona um grupo de personagens históricas do passado recente de Roma como

representantes ideiais –ou idealizados - dessa simbiose.

Cícero lança mão de um grupo de personagens a que recorrerá em diversas de suas

obras: os já citados membros do “Círculo dos Cipiões”. Este grupo, reunido ao redor de

Cipião Emiliano, teria sido o principal responsável pela absorção romana da cultura grega,

suma, quem ambas as coisas quer e pode, quem se instrui ao mesmo tempo na doutrina presente e nas
instituições passadas, julgo que merece a maior consideração e os mais perfeitos elogios.”
70

no século anterior. Além disso, nele figurariam grandes nomes do cenário político, militar

e cultural, não sendo sem fundamento que Cícero os utilizasse como símbolos de uma

“aurea aetas” da república: o apogeu do modelo, em plena saúde antes da eclosão das

crises abordadas no capítulo anterior.

Os membros do Círculo dos Cipiões – e também Catão, o Censor - acabariam por

tornar-se, nas mãos de Cícero, uma galeria fixa de personagens aos quais recorreria quando

desejasse discutir valores caros à identidade romana, bastando-nos citar textos como

Laelius de Amicitia – em que Lélio narra a trajetória de sua amizade com Cipião, e os

valores que essa amizade embutia, representava e defendia – e Cato Maior de Senectute,

em que, transformando Catão em personagem, faz com que defenda e justifique alguns dos

valores mais caros ao mos maiorum. Desse modo, sempre que necessário apresentar a

defesa de elementos socioculturais já consagrados e conformativos da sociedade romana,

Cícero lançava mão de sua trupe de personagens históricas, das quais voltaremos a tratar

quando abordarmos especificamente os dois textos mencionados acima.

Se em De Re Publica, Cícero esboçara uma nova configuração do Estado, as

próximas de suas obras a abordarmos enfocarão não o Estado romano, mas o indivíduo em

si. Obviamente, o indivíduo que interessa a Cícero é o cidadão, pois este é, no mundo

romano, o ser social por excelência. Acreditamos que esta mudança no foco deve-se a

fatores diversos, entre os quais o fato de que Cícero escreve De Re Publica entre 54 e 51,

durante a vigência do Triunvirato, enquanto as demais obras foram escritas entre 46 e 43,

já após a Guerra Civil e durante a ditadura de César.

A guerra civil foi, como sabemos, iniciada em 48; quando, após a morte de Crasso e

a dissolução dos laços familiares que uniam César a Pompeu, os dois mandatários restantes

empenham-se em conquistar o poder. O movimento que simboliza o início da guerra civil é

também uma ruptura brutal com o passado de Roma: se um dos pilares fundamentais de
71

sua identidade era a inviolabilidade de seu território – a ponto de que às próprias legiões

romanas era proibido aquartelar-se na Vrbs – este princípio seria derrubado na travessia do

Rubicão.

Mas esse não seria o único pilar a ser derrubado por César naquele momento:

lembremo-nos de que, em 46 a.C., é realizada a reforma do calendário. O estabelecimento

de novas bases para a contagem do tempo, ainda que corrigisse erros existentes desde

Numa Pompílio, significou, enfim, uma modificação radical do continuum espaço-

temporal: em consequência de uma nova (de)limitação do espaço, já violado, e do tempo,

modificado, cumpria reordenarem-se as leis que, até então, regulavam aquela sociedade.

Em decorrência disso, novas leis forçosamente moldariam um novo homem, e

sendo o romano um homem completamente moldado pelas leis de sua sociedade, Cícero

certamente esperaria poder exercer alguma influência no processo: através de sua ação

como jurista, influenciar o processo de modificação da estrutura republicana e, atuando

como filósofo, influir na formação de um novo modelo de homem romano, uma nova

identidade romana, enfim, que já interiorizasse a influência da filosofia grega.

É nesse contexto que Cícero se valerá de um termo que, embora já presente na

língua e na literatura latinas, terá um deslocamento de sentido que o conduzirá à condição

de sinônimo de philosophia: trata-se de sapientia, termo sobre o qual vale dedicarmos

nossa atenção, uma vez que pode elucidar algumas questões sobre como os romanos

apre(e)ndiam a realidade.

Sapientia seria, em sua origem, um substantivo abstrato derivado de sapiens,

particípio presente do verbo sapere, cujo significado primordial seria o de “sentir o

sabor”47, sendo o étimo do verbo saber, em suas variadas formas, nas línguas românicas.

47
Este significado, em desuso, persiste dicionarizado na língua portuguesa, e, ainda que pouco usado,
apresenta-se mais vivamente na língua espanhola
72

Mas, se em sua trajetória, o termo sapientia chegará a ser sinônimo de filosofia – o

termo estreia na língua latina pelas mãos de Ênio, já com essa acepção -, acreditamos ainda

que uma análise da etimologia deste termo poderá fornecer-nos pistas para a elucidação do

modus cognoscendi romano: ao estudar-se o campo semântico de sapere detectamos o

seguinte deslocamento de sentidos: degustar, saborear > provar > experimentar > conhecer.

Assim, se o que se saboreia é, no decorrer do processo, algo que se experimenta,

que é , portanto, passível de ser experimentado, permitimo-nos pensar que, nessa transição

de significados, é possível observar-se, de modo tão sumário quanto inequívoco, uma

expressão característica da identidade romana: sua visão pragmática da realidade, para

quem seria conhecimento aquilo que pudesse ser (com)provado, passível de ser submetido

à prática empírica, o que descartaria, de início, qualquer reflexão teórica mais aprofundada:

para os romanos o saber é, antes de tudo, uma experiência concreta.

Ser uma experiência concreta, conforme a origem do termo nos explica, expõe uma

razão, mais profunda que um mero complexo de inferioridade, para a histórica

desconfiança romana para com o conhecimento grego: afinal, usar um termo que trata da

necessidade de comprovação empírica como sinônimo de outro que designa um

conhecimento abstrato trai o paradoxo instaurado na mentalidade romana pela chegada da

filosofia grega; ao passo em que a transição do significado desse termo demonstra o

desarme do pensamento romano sobre o assunto.

Mas o termo sapientia adquire em latim outra carga semântica, independente da

original, posto que o sentido que a interpreta mudará do campo gustativo para o cognitivo

e, mais precisamente, para a moral. A esse respeito dirá Mª Helena da Rocha Pereira que, “

no sentido moral, a sapientia corresponde sobretudo à moderação (...) Mas pode-se dizer,

de um modo geral, que são os sentidos de sophia que ela abrange” (ROCHA PEREIRA,

1989:411).
73

Deslocado para o âmbito da moral, sapientia acabará se tornando sinônimo de

“sabedoria” e, mais estritamente, da prñpria philosophia. Mas isso, em Roma, não poderia

deixar de acarretar a injeção de um novo valor semântico, já que o pensamento romano

logo concederá a este conceito o valor de uma virtude política, já que seu detentor poderia

bem servir à cidade, se e quando necessário.

Esta evolução do conceito acabaria por torná-lo próximo do de uirtus – recordando

que, para os estoicos, estes termos se equivaliam. E esta aproximação semântica com uma

das qualidades que os romanos mais desejavam para seus líderes políticos torna esta

qualidade também palatável aos romanos, configurando como sábio o homem público que

age sob parâmetros morais definidos, tendo a formação cultural como ferramenta a seu

dispor. Desse modo, em Roma, ser sábio é uma qualidade que, como todas as demais,

forma o cidadão para a sociedade. E não será gratuito que os dois maiores nomes da

cultura romana – Cícero e Sêneca - tenham sido reconhecidos como os mais sábios de suas

respectivas épocas, tendo sido também homens de efetiva ação na vida pública, como,

aliás, já declaramos.

Nesse contexto, Cícero acaba por tornar-se o responsável por alçar a sapientia à

condição de um dos valores fundamentais da identidade romana. Conceito tardio na

formação da romanidade, sapientia não pode ser considerada parte do mos maiorum,

entretanto, tampouco sua influência posterior deverá ser minimizada. Mesmo porque, com

as rupturas no continuum espaço-temporal realizadas por César, exigiam-se novos alicerces

para a compreensão do homem romano e sua posição no mundo.

Se era necessário, , portanto,, estabelecer novos limites para a identidade romana, e,

nesses novos limites, a influência da filosofia grega devesse estar, já, interiorizada, não

será um despropósito que o mais aprofundado trabalho filosófico de Cícero - obra cuja
74

análise procederemos em seguida – chame-se justamente De finibus bonorum et

malorum48.

3.2.2 – De finibus

De finibus bonorum et malorum é uma obra dividida em cinco livros, nos quais

Cícero apresenta a defesa e a refutação das escolas filosóficas até aqui tratadas: no livro I,

Mânlio Torquato faz a apresentação e defesa do epicurismo, refutada por Cícero no livro

II. No livro III, temos Catão de Útica, neto do Censor, expondo a concepção estoica, sobre

a qual Cícero tecerá suas críticas no livro IV. Já o livro apresenta apenas a exposição, feita

por Pisão Calpurniano, dos méritos da Academia, com uma breve análise de Cícero

inserida no próprio livro.

Mais uma das obras de Cícero dedicadas a Bruto, vale recordar que De finibus foi

publicado em 45 a.C., pouco antes, , portanto,, do assassinato de César. Dentre as obras

filosóficas de Cícero, De finibus é aquele em que o autor realiza sua mais veemente defesa

da prática filosófica em Roma, e o faz já na abertura do texto, quando alega que:

Non eram nescius, Brute, cum, quae summis ingeniis exquisitaque doctrina
philosophi Graeco sermone tractauissent, ea Latinis litteris mandaremus, fore ut hic
noster labor in uarias reprehensiones incurreret. Nam quibusdam, et iis quidem non
admodum indoctis, totum hoc displicet philosophari. Quidam autem non tam id
reprehendunt, si remissius agatur, sed tantum studium tamque multam operam
ponendam in eo non arbitrantur. Erunt etiam, et ii quidem eruditi Graecis litteris,
contemnentes Latinas, qui se dicant in Graecis legendis operam malle consumere.
Postremo aliquos futuros suspicor, qui me ad alias litteras uocent, genus hoc scribendi,
etsi sit elegans, personae tamen et dignitatis esse negent.49 (CÍCERO; De finibus, I,1)

48
Atentando-se para o polissemia do termo finis, -is que pode não apenas indicar “o grau supremo de algo”
mas também a fronteira, a borda, o confim, a extremidade, o limite, enfim. Em se tratando de Cícero, o uso
deste termo não será um acidente.
49
“Eu não ignorava, amigo Bruto, quando comecei a expor em latim o que os filósofos gregos tinham
tratado com máximo engenho e magnífica doutrina, que este nosso trabalho havia de estar sujeito a várias
censuras. Alguns, e não de todo indoutos, reprovam todo e qualquer gênero de filosofia. Outros, sem rejeitá-
la completamente, se a fazemos moderadamente, consideram mau que eu tenha votado tanto estudo e tanto
trabalho a semelhante tarefa. Haverá alguns instruídos nas letras gregas e depreciadores da latina, que
julgarão preferível ocupar o tempo com ler os gregos. Por fim, suspeito que não haverá de faltar quem me
75

Percebe-se como, segundo Cícero, o próprio fato de dedicar-se à filosofia ainda era

visto negativamente por uma parte da intelectualidade romana, havendo ainda quem

preconizasse que os estudos filosóficos não deveriam servir-se do latim50. Verifica-se, pois

a existência de apenas uma pequena margem de manobra para o trabalho que Cícero

realiza: discorrer sobre filosofia – o que, para muitos romanos, era por si só uma falta – e

fazê-lo em latim – uma falta até para aqueles se dedicassem a tais estudos.

Entre o negar qualquer recepção da filosofia grega e o fazê-lo de modo

subserviente, Cícero opta por agir dentro da tradição romana: delimita e experimenta as

escolas filosóficas a serem absorvidas – com a clara exclusão do epicurismo -, ordena o

conhecimento a aproveitar-se – e o faz mostrando os pós e os contras de cada uma das

escolas restantes, selecionando assim o que considera de fato aproveitável -, e por fim

realizar sua definitiva incorporação ao conhecimento romano. Contudo, distintamente da

absorção de uma técnica qualquer, a absorção de ideias provenientes de uma corrente de

pensamento passa pela incorporação, pela linguagem, da capacidade de expressar um novo

conceito, pois qualquer conceito desenvolvido numa língua-origem deverá ser reproduzido

na língua-meta. Sendo aquela o grego e essa o latim, impõe-se defender a capacidade da

língua latina de expressar a quantidade de novos conceitos a serem absorvidos. Não é vão, ,

portanto,, que Cícero despenda boa parte do livro I defendendo não só a capacidade de o

latim desempenhar tal tarefa:

Non est omnino hic docendi locus; sed ita sentio et saepe disserui, Latinam linguam
non modo non inopem, ut uulgo putarent, sed locupletiorem etiam esse quam
Graecam. Quando enim nobis, uel dicam aut oratoribus bonis aut poetis, postea

estimule a escrever acerca de outra coisa, porque não seria adequada a filosofia à dignidade da minha
pessoa.” (Todas as traduções de De finibus bonorum et malorum são de Carlos Ancède Nougué.)
50
Não será gratuito pois o fato de que, novamente, Cícero utilize o termo doctrina, dessa vez acompanhada
do genitivo philosophi para denominar a área de conhecimento: acreditamos que Cícero estaria “dourando a
pílula” para seus leitores.
76

quidem quam fuit quem imitarentur, ullus orationis uel copiosae uel elegantis ornatus
defuit? (CÍCERO; De finibus, I,10)51

uma vez que, fazendo-o, defende não apenas a capacidade expressiva do latim, mas ataca

também os que o colocam em patamar abaixo do grego.

Rudem enim esse omnino in nostris poetis aut inertissimae segnitiae est aut fastidii
delicatissimi. Mihi quidem nulli satis eruditi uidentur, quibus nostra ignota sunt. An
“Vtinam ne in nemore...” nihilo minus legimus quam hoc idem Graecum, quae autem
de bene beateque uiuendo a Platone disputata sunt, haec explicari non placebit Latine?
(CÍCERO; De finibus, I,5) 52

Se reconhecer a superioridade grega era, como já observamos, para Cícero um verdadeiro

anátema, o pater patriae viu-se, no entanto, obrigado a transigir, diante da possibilidade de

inexistência de uma plena tradução de um vocábulo, como se percebe no diálogo que

encetou com Catão, presente no livro III:

Cicero: -Si enim Zenoni licuit, cum rem aliquam inuenisset inusitatam, inauditum
quoque ei rei nomen inponere, cur non liceat Catoni? Nec tamen exprimi uerbum e
uerbo necesse erit, ut interpretes indiserti solent, cum sit uerbum, quod idem declaret,
magis usitatum. Equidem soleo etiam quod uno Graeci, si aliter non possum, idem
pluribus uerbis exponere. et tamen puto concedi nobis oportere ut Graeco uerbo
utamur, si quando minus occurret Latinum, ne hoc ephippiis et acratophoris potius
quam proegmenis et apoproegmenis concedatur; quamquam haec quidem praeposita
recte et reiecta dicere licebit.
Cato: - Bene facis, inquit, quod me adiuuas, et istis quidem, quae modo dixisti, utar
potius Latinis, in ceteris subuenies, si me haerentem uidebis.
Cicero: - Sedulo, inquam, faciam. Sed 'fortuna fortis'; quare conare, quaeso. Quid
enim possumus hoc agere diuinius? (CÍCERO; De finibus, III,15)53

51
“Não é esta a ocasião de prová-lo, mas creio, e muitas vezes o defendi, que a língua latina não só não é
pobre, como a considera o vulgo, senão que é mais rica que a grega. Sim, por que quando nos faltou, não
digo a nós, mas aos bons oradores e poetas, e pelo menos depois que tivemos a quem imitar, qualquer ornato
ou elegante elocução?”
52
“Ser de todo ignorante com respeito ao que escreveram os nossos poetas delata ou uma grande inércia e
desídia, ou um paladar demasiado enojadiço e delicado. A mim não me parecem bastante eruditos os que
ignoram as nossas coisas. Se lemos na nossa língua aquela cena que assim principia: “Quem dera que no
bosque...”, e nos agrada não menos que em grego, por que não nos hão de agradar em latim os preceitos que
Platão ministrou sobre o bem e a felicidade da vida?”

53
“Cícero: - Se foi lícito a Zenão, quando inventava algo inusitado, dar um nome inaudito, por que não se há
de consentir o mesmo a Catão? Ademais, não é necessário que traduzas palavra a palavra, como costumam
fazer os intérpretes ignorantes, quando o melhor para tornar compreensível o pensamento é usar uma
expressão conhecida. Eu costumo indicar com muitas palavras latinas o sentido de uma só grega quando não
posso tomar outro caminho, e não obstante, creio que se nos deve conceder o uso de uma palavra grega
quando não nos ocorre uma latina, e que, assim como se usam os termos “ephíppia” e “acratophoro”, se
devem usar também “proégmena” e “apoproégmena”, ainda que pudéssemos dizer em latim “praeposita” e
“reiecta”.
77

Assim, outra finalidade – mais uma significação de finis – da obra seria (com)provar as

possibilidades expressivas da língua latina, e não será sem propósito que, para cada

conceito grego debatido nos diálogos, seja oferecida e discutida uma hipótese de tradução

ou equivalência em latim. E mais, Cícero preconiza que o latim possui maior elasticidade

para a criação de novos vocábulos assim como mais facilidade de incorporação de termos

estrangeiros:

Quamquam ex omnibus philosophis Stoici plurima nouauerunt, Zenoque, eorum


princeps, non tam rerum inuentor fuit quam uerborum nouorum. Quodsi in ea lingua,
quam plerique uberiorem putant, concessum a Graecia est ut doctissimi homines de
rebus non peruagatis inusitatis uerbis uterentur, quanto id nobis magis est
concedendum, qui ea nunc primum audemus attingere? Et quoniam saepe diximus, et
quidem cum aliqua querela non Graecorum modo, sed eorum etiam, qui se Graecos
magis quam nostros haberi uolunt, nos non modo non uinci a Graecis uerborum copia,
sed esse in ea etiam superiores, elaborandum est ut hoc non in nostris solum artibus,
sed etiam in illorum ipsorum adsequamur. Quamquam ea uerba, quibus instituto
ueterum utimur pro Latinis, ut ipsa philosophia, ut rhetorica, dialectica, grammatica,
geometria, musica, quamquam Latine ea dici poterant, tamen, quoniam usu percepta
sunt, nostra ducamus. (CÍCERO; De finibus, III,5) 54

Ultrapassando essa discussão, Cícero apresentará, já no livro I, o valor da razão

como guia para as ações dos homens, levando-os a possuir determinados valores:

Inuitat igitur uera ratio bene sanos ad iustitiam, aequitatem, fidem, neque homini
infanti aut inpotenti iniuste facta conducunt, qui nec facile efficere possit, quod
conetur, nec optinere, si effecerit, et opes uel fortunae uel ingenii liberalitati magis
conueniunt, qua qui utuntur, beniuolentiam sibi conciliant et, quod aptissimum est ad

Catão: - Bem fazes em ajudar-me, mas, quando haja termos na nossa língua, usá-los-ei sempre. No restante,
tu socorrer-me-ás, quando me vejas em dúvida.
Cícero: - Certamente o farei, e com muita presteza. Lança-te, , portanto,, à empresa, que a fortuna ajuda os
audazes. E que matéria mais divina poderíamos tratar?”
54
“É verdade que, dentre todos os filósofos, foram os estoicos os que mais fizeram inovações. Zenão, o
príncipe da escola, não foi tanto inventor de coisas como de vocábulos novos. E, se tal se concedeu aos
gregos, numa língua que quase todos consideram a mais rica, e se entre eles foi lícito para os homens doutos,
quando tratavam de coisas ainda inexploradas, valer-se de palavras insólitas, quanto mais não se nos deve
conceder a nós, que só agora, pela primeira vez, ousamos tocá-las? E pela mesma razão que já dei muitas
vezes – não sem certa queixa, não tanto dos gregos como de alguns dos nossos, que querem passar por gregos
antes que por latinos, porque, com efeito, não nos vence a Grécia em abundância de palavras, sendo nós, ao
contrário, superiores nisto – temos de trabalhar para conseguir esta maior quantidade não só nas nossas
próprias artes, mas também nas deles. E, conquanto muitas palavras gregas, que por antigo costume usamos
como latinas – por exemplo, a própria filosofia, a retórica, a dialética, a gramática, a geometria, a música -,
pudessem expressar-se em latim, tenhamo-las, porém, dado que as tolera o uso, por nossas.”
78

quiete uiuendum, caritatem, praesertim cum omnino nulla sit causa peccandi.
(CÍCERO; De finibus, I,52)55

Deve-se, no entanto, reparar que, dentre os valores que Cícero arrola – fides, aequitas,

iustitia – apenas fides faz parte do mos maiorum. Os demais, aequitas e iustitia, são valores

cuja personificação é mais recente, remontando não à fundação da cidade, mas à

instauração do sistema republicano. Ao igualar esses valores à fides, Cícero comete uma

ação com dupla consequência: recorda ao leitor sua posição como sustentáculos do sistema

republicano e, paralelamente, concede-lhes mais peso na identidade romana, já que são

mostradas como qualidades inerentes ao homem virtuoso.

Ademais, dois outros valores que Cícero evoca são igualmente elevados à categoria

de valores componentes da uirtus: liberalitas e beneuolentia56. Esses valores, no entanto,

seriam sobretudo valores universais, não se aplicando estritamente à noção clássica da

cidadania romana. Com isso, Cícero incorpora quatro novos valores na composição de

uirtus, o que resultará, como “efeito dominñ”, em uma nova concepção da romanidade em

que a filosofia, ainda que denominada apenas doctrina philosophi, já terá contribuído

efetivamente. Até porque, para Cícero, a filosofia grega não contradiz - ao contrário,

reitera - o costume ancestral. Esse costume que seria, já, uma práxis filosófica em estado

latente, uma vez que, mesmo que em seu grau mínimo, capacitava aqueles que os

observassem para a distinção entre o bem e o mal:

Cato: - Egone quaeris, inquit, quid sentiam? Quos bonos uiros, fortes, iustos,
moderatos aut audiuimus in re publica fuisse aut ipsi uidimus, qui sine ulla doctrina
naturam ipsam secuti multa laudabilia fecerunt, eos melius a natura institutos fuisse,
quam institui potuissent a philosophia, si ullam aliam probauissent praeter eam, quae
nihil aliud in bonis haberet nisi honestum, nihil nisi turpe in malis; ceterae
philosophorum disciplinae, omnino alia magis alia, sed tamen omnes, quae rem ullam

55
“A verdadeira razão, , portanto,, convida as mentes sãs à justiça, à equidade e à boa-fé; e ao homem fraco
e impotente como é, não lhe aproveita a injustiça, porque não pode conseguir facilmente o que deseja nem
retê-lo se o consegue; e os recursos da riqueza e do talento convêm mais à liberalidade, mediante a qual se
consolida a benevolência, que é tão necessária para viver bem, especialmente se não há nenhuma causa para
cometer faltas.”
56
Ainda que Cícero grafe beniuolentia, preferimos essa forma por ser mais próxima à das línguas românicas.
79

uirtutis expertem aut in bonis aut in malis numerent, eas non modo nihil adiuuare
arbitror neque firmare, quo meliores simus, sed ipsam deprauare naturam. Nam nisi
hoc optineatur, id solum bonum esse, quod honestum sit, nullo modo probari possit
beatam uitam uirtute effici. Quod si ita sit, cur opera philosophiae sit danda nescio. Si
enim sapiens aliquis miser esse possit, ne ego istam gloriosam memorabilemque
uirtutem non magno aestimandam putem. (CÍCERO; De finibus, III,11; grifo nosso)57

Enfim o termo esperado! De maneira discreta e quase imperceptível, Cícero acaba

por usar o termo philosophia, concluindo seu processo de aclimatação do paladar romano

ao novo conhecimento. Evidentemente, isso se dá como parte de um processo em que

Cícero acaba por conferir uma base filosófica ao senso comum romano, criando uma ampla

zona de intercessão entre essas duas fontes de saberes, mas sem que haja, de fato, sua

fusão. Contudo, ao estabelecer que essa zona de intercessão compreende a distinção entre o

bem e o mal, e que esse é o ponto de partida de todo o conhecimento posteriormente

desenvolvido, Cícero estabelece que a filosofia é –também - a base da justiça, uma vez que

esta somente pode desenvolver-se a partir da zona de intercessão.

Em efeito reverso, por ter sido iustitia um dos novos valores incorporados por

Cícero à uirtus e, estando essa baseada, na filosofia, é novamente a filosofia quem ganha

peso na composição da romanidade.

Se até então, para os romanos, o Direito era, inconscientemente, a práxis de uma

filosofia, Cícero, demonstrando a intercessão entre o mos maiorum e a filosofia em si,

evidenciou essa relação. Porém, Cícero mostra também que, para além de uma finalidade

prática – tão ao gosto romano - do conhecimento filosófico, a filosofia pode ainda servir a

outras funções, sendo, ao fim, a forma mais plena de conhecimento:

57
“Queres saber o que eu penso? Eu penso que muitos varões, virtuosos, fortes e moderados, que figuraram
nos anais da nossa República ou conhecemos nós mesmos, e que empreenderam, sem nenhuma doutrina
filosófica, seguindo tão-somente os impulsos naturais, muitas ações louváveis, foram mais bem educados
pela natureza do que teriam podido ser por nenhuma filosofia, afora aquela que não considera como bem
senão o honesto e como mal senão o torpe. As demais escolas filosóficas, conquanto sem dúvida umas mais
que outras, mas em suma todas as que contam entre os bens ou os males coisas sem nenhuma relação com a
virtude, não só não têm prestígio algum nem servem para tornar-nos melhores, mas corrompem a própria
natureza. Se não se concebe que só é bom o que é honesto, de maneira alguma se pode aprovar que a vida
feliz consista na virtude. E, se assim não fosse, por que nos haveríamos de dedicar à filosofia? Se o sábio
pudesse ser infeliz, guardar-me-ia eu, muito, de ter em grande apreço a gloriosa e memorável virtude.”
80

Nec enim gubernationi aut medicinae similem sapientiam esse arbitramur, sed actioni
illi potius quam modo dixi et saltationi, ut in ipsa insit, non foris petatur extremum, id
est artis effectio. (...) Sola enim sapientia in se tota conuersa est, quod idem in ceteris
artibus non fit. Inscite autem medicinae et gubernationis ultimum cum ultimo
sapientiae comparatur. Sapientia enim et animi magnitudinem complectitur et
iustitiam, et ut omnia quae omini accidant infre se esse iudicet, quod idem ceteris
artibus non contingit. Tenere autem uirtutes eas ipsas, quarum modo feci mentionem,
nemo poterit, nisi statuerit nihil esse quod intersit aut differat aliud ab alio, praeter
honesta et turpia. (CÍCERO; De finibus, III, 25)58

Concentrando-se ainda no Direito, Cícero iria ainda empenhar-se em demonstrá-lo

como uma consequência da filosofia, uma vez que, se é através da filosofia que se

estabelece a crença no direito natural, é desse direito que seria desenvolvido, através da

vida em sociedade, o Direito civil romano:

Ex omnibus philosophis natura tributum esse docuerunt, ut ii, qui procreati essent,
a procreatoribus amarentur, et, id quod temporum ordine antiquius est, ut coniugis
uirorum et uxorum natura coniuncta esse dicerent, qua ex stirpe orirentur amicitia
cognationum. Atque ab his initiis profecti omnium uirtutum et originem et
progressionem persecuti sunt. Ex quo magnitudo quoque animi existebat, qua facile
posset repugnari obsistique fortunae, quod maximae res essent in potestate sapientis.
Varietates autem iniurasque fortunae facile ueteres philosophorum praeceptis instituta
uita superabat.
Principiis autem a natura datis amplitudines quaedam bonorum excitabantur partim
profectae a contemplatione rerum occultiorum, quod erat insitus menti cognitionis
amor, e quo etiam rationis explicandae disserendique cupiditas consequebatur;
quodque hoc solum animal natum est pudoris ac uerecundiae particeps appetensque
coniunctiorum hominum ad societatem animaduertentesque in omnibus rebus, quas
ageret aut diceret, ut ne quid ab eo fieret nisi honeste ac decore, his initiis, ut ante dixi,
et seminibus a natura datis temperantia, modestia, iustitia et omnis honestas perfecte
absoluta est. (CÍCERO; De finibus, IV, 17-18) 59

58
“Não consideramos a sabedoria semelhante à arte da navegação ou à da medicina, mas antes à arte do
histrião e à arte da dança, porque estas têm em si mesmas o seu próprio fim último, sem buscá-lo fora
dela.(...) Assim, pois, só a sabedoria é plena e perfeita em si mesma. E por isso é inexata a comparação entre
o fim da sabedoria e o fim da medicina e o da pilotagem. A sabedoria abarca a magnanimidade e a justiça, e o
ter o homem por inferiores a ele todas as coisas que lhe sucedem – e isso não se dá nas demais artes.
Ninguém pode conceber as virtudes de que antes falávamos sem começar por crer que só duas coisas diferem
entre si: o honesto e o torpe.” Repare que aqui Cícero retorna ao termo sapientia, apesar de considerá-los
sinônimos, a inserção de philosophia deve ser paulatina.
59
“Foram eles (os estoicos) os primeiros, dentre todos os filósofos, a dizer que é de origem e direito natural
que os pais amem os filhos, e que também o é o amor conjugal, o qual é ainda anterior no tempo, e de cuja
raiz nascem as relações de parentesco e amizade. A partir destes princípios, investigaram a origem e o
desenvolvimento de todas as virtudes, dentre as quais está entre as primeiras a magnanimidade, com a qual se
pode facilmente resistir à fortuna, estando, como estão, as coisas sob o poder do sábio. A variedade e as
injúrias da fortuna, superava-as facilmente a disciplina dos antigos filósofos e a vida educada segundo os
seus preceitos. Dados estes princípios pela natureza, começava depois a ampliá-los pela contemplação das
verdades mais recônditas, uma vez que há um amor de ciência inato na alma, ao qual se segue a avidez de
investigar as razões e de discuti-las, sendo ademais o homem o único animal que sente pudor e vergonha, o
81

Cícero acaba estabelecendo a crença de que uma sociedade bem estruturada é

aquela em que há uma complementaridade entre o direito natural, do qual derivaria o senso

comum, e o direito civil, regulador das relações sociais. O empenho de Cícero se dá então

no sentido de, deixando clara esta complementaridade, demonstrar não haver oposição

entre aquelas distintas formas de direito e os novos valores trazidos pela filosofia.

Valores entre os quais Cícero aponta agora para temperantia e modestia, que vê

complementares a honestas - substantivo abstrato que expressa a qualidade de possuir

honor. Desse modo, temperantia e modestia passariam a ser ingredientes necessários à

honor, ao invés de serem, como Rocha Pereira (1989) alertou, componentes independentes

da uirtus. Sendo inerentes a honor, essa deixaria de ser um valor absoluto em si, o que tem,

indiretamente, uma consequência política: sendo honor condição sine qua non para o

exercício do poder, seu detentor deverá ser igualmente modesto e de bom temperamento, a

antítese de figura autocrática de César.

Mostrando essa correspondência e aquela complementaridade, Cícero demonstra

também a confluência entre os dois tipos de conhecimento, afirmando tacitamente que

ambos podem ser úteis ao Estado romano - que nesse momento já não era, de fato, a

república senatorial que Cícero defendia – mas também ao homem romano, que, através da

nova moral preconizada por Cícero – uma moral que não rompia a tradição, mas que, ao

mesmo tempo que lhe incorporava novos valores, dava-lhe novos pontos de apoio –

poderia capacitar-se a ser não apenas cidadão mas também indivíduo, na nova Roma que o

somatório das convulsões sociais estava criando.

Ao delimitar a fronteira entre o bem e o mal, Cícero acaba por diluir também as

antigas fronteiras entre a tradição romana e o pensamento grego, e entre o direito natural

único que apetece a união social com seus semelhantes, e único que em todas as coisas que faz ou diz busca
guardar honestidade e decoro. Desta semente deitada pela natureza nascem e se aperfeiçoam depois a
temperança, a modéstia, a justiça e toda e qualquer honestidade.”
82

(universal) e o direito civil (romano). Diluídas essas fronteiras, o romano não deixa de ser

um cidadão devotado ao Estado, mas pode igualmente ser um indivíduo que, desfrutando

dos direitos prescritos por sua cidadania e imbuído dos valores nacionais, servirá

espontaneamente ao Estado. Abre-se também, com isso, o caminho para uma nova

configuração da identidade romana, já que, sendo possível modificar-se aquele sistema –

até então coeso, mas fechado – em que se constituíra o mos maiorum, novos valores serão

agregados àquela identidade.

Mas não podemos ver a ação de Cícero como deletéria à tradição, ao contrário, ao

vesti-la com a nova roupagem da filosofia, Cícero tenta preservá-la, pois, mesmo que a

situação política se modificasse a ponto de que a tradição deixasse de ser fundamental para

a manutenção do Estado, o indivíduo romano já estaria dela impregnado, dando-lhe

continuidade. Fato que, forçosamente, teria repercussão na formação do cidadão e, em

última instância, no Estado em si.

É, portanto, no intuito dessa preservação que Cícero publicará, em sequência à De

finibus bonorum et malorum, as Tusculanae Disputationes, obra cuja - breve - análise

procederemos em seguida.

3.2.3 – “Tusculanae Disputationes”

Escritas em 45 a.C. as Tusculanae Disputationes são compostas de cinco livros e é,

como a anterior, dedicada a Bruto. Contudo, as Tusculanae inovam por sua forma: ao invés

da costumeira reunião de amigos, de Cícero ou os de Cipião, nessa obra temos apenas um

diálogo entre duas pessoas, sabidamente um mestre e seu discípulo.

O texto se abre com uma pequena introdução em que Cícero declara que a filosofia

é um tema digno de abordagem pela literatura latina, embora esta não houvesse, até então,
83

tratado o tema de uma forma digna de sua importância. E que, mesmo que essa situação

estivesse já se modificando, a produção filosófica em latim padecia de qualidade:

Philosophia iacuit usque ad hanc aetatem nec ullum habuit lumen litterarum
Latinarum; quae inlustranda et excitanda nobis est, ut, si occupati profuimus aliquid
ciuibus nostris, prosimus etiam, si possumus, otiosi. 6 In quo eo magis nobis est
elaborandum, quod multi iam esse libri Latini dicuntur scripti inconsiderate ab optimis
illis quidem uiris, sed non satis eruditis. (CÍCERO; Tusc., I, 5-6) 60

Iniciado o diálogo entre mestre e discípulo, o livro I discorre sobre a morte, vista

como um obstáculo à felicidade. Contudo, acaba se defendendo a ideia de que a morte, seja

uma aniquilação do ser ou uma oportunidade para a mudança da alma, não será jamais um

mal. O livro II trata do sofrimento físico, que deve ser suportado em nome da virtude, e da

morte como refúgio último para o sofrimento.

O livro III trata do sofrimento da mente e de suas causas possíveis: tristeza, inveja,

compaixão, aflição, desalento e de como vencê-las, pela reflexão, coragem e autodomínio.

O livro IV, de certa forma, continua o terceiro, tratando de outros distúrbios da mente e de

como uma correta conduta filosófica será capaz de derrotá-los. O livro V discute se

apenas a virtude – vista sob o prisma estoico - seria suficiente para levar o sábio à

felicidade, e Cícero acaba por concluir que o homem virtuoso será, pela virtude em si

mesma, sempre feliz. Percebe-se que, nesta obra, o neoacademicismo está ausente: pela

abordagem dos temas tratados, vê-se que Cícero volta-se diretamente ao estoicismo como

norma de conduta do indivíduo que visa a uirtus.

Se Cícero se decide pelo estoicismo como fonte primordial para a conduta do

indivíduo, convém pausarmos momentaneamente nossa discussão sobre as Tusculanae

Disputationes e examinarmos mais detidamente as posições defendidas por esta escola

filosófica.

60
“A filosofia, que devemos lustrar e restaurar, esteve inerte e até o nosso tempo não teve brilho algum nas
letras latinas; , portanto,, se ocupados servimos em algo aos nossos concidadãos, sirvamos também, se
pudermos, quando ociosos. Desconsiderai mesmo que já dizem existir muitos livros latinos escritos por
alguns bons homens, mas não suficientemente competentes naquilo que mais deve ser trabalhado por nós.”
84

3.2.3.1 A “Escola do Pñrtico” e a nova identidade romana

Comprovada então a adesão de Cícero ao estoicismo e evidenciado seu cuidado em

divulgar os ideais estoicos e demonstrar sua importância, mostremos o que capacitaria esta

escola a funcionar como novo norte para a identidade cultural romana. Para tanto, convém

determo-nos ainda um pouco nas características gerais desta escola. Objetivando fazê-lo,

preferimos a menção a Pierre Aubenque et alii (1981), cujo texto alia o necessário

esclarecimento a uma concisão ímpar sobre o tema:

O estoicismo tira seu nome do Pórtico (Stoa), lugar de Atenas onde se reuniam
seus adeptos. Diferentemente do epicurismo, não está ligado à autoridade incontestada
de um único fundador. A doutrina estoica se constituiu antes progressivamente pelas
contribuições sucessivas dos três primeiros chefes da escola: Zenão de Cício (332-
262), que, depois de ter sido o discípulo do cínico Crates, funda a nova escola por
volta de 300 a.C.; Cleanto de Assos (por volta de 312-232) e Crisipo (277 – por volta
de 204), que mereceu o título de segundo fundador do estoicismo, restabelecendo e
confirmando a unidade da escola contra as dissidências de certos discípulos e os
ataques, de inspiração “probabilista”, da Nova Academia. A partir daí, o ensinamento
estoico será transmitido, com uma continuidade espantosa, durante vários séculos. Se
o médio estoicismo, representado essencialmente por Panécio (180-110) e Possidônio
(por volta de 135-51), que tiveram o grande mérito histórico de introduzir o estoicismo
em Roma, trai contaminações platônicas ou aristotélicas, o novo estoicismo, ou
estoicismo imperial, marcará uma volta à ortodoxia do antigo estoicismo.
Esse novo estoicismo, que se desenvolveu em Roma sob o Império, está ligado a
três grandes nomes: Sêneca (nascido por volta do início da era cristã, morto em 65),
Epicteto (nascido em 50, morto entre 125 e 130) e Marco Aurélio (121-180),
imperador em 161). Esses três pensadores, cujas obras nos foram conservadas no
essencial (enquanto os escritos do antigo e do médio estoicismo só nos são acessíveis
através de resumos ou citações de autores posteriores), serão os verdadeiros
propagadores do estoicismo no Ocidente. É através deles que Guillaume du Vair,
Montaigne, Corneille, Vigny e tantos outros conhecerão as lições da sabedoria estoica.
(AUBENQUE et al., 1981: 169)

Como visto, o processo de aproveitamento dos ideais estoicos pelos romanos,

mesmo se iniciado por Cícero, não se restringe a este autor, sendo antes um processo que,

avaliado dentros dos limites estreitos da vida dos três grandes filósofos que Aubenque

menciona, durou pelo menos 140 anos, dos primeiros escritos de Sêneca, em 40 d.C, à

morte de Marco Aurélio, em 180.


85

Ainda do texto de Aubenque, extraem-se dois fatores explicativos do êxito da

chamada Escola do Pórtico: seus ensinamentos, sendo um produto coletivo, podiam, por

isso mesmo, ser melhorados ou adaptados a novas realidades – como seria o caso dos

romanos – e, apesar disso, mantinham uma continuidade que lhe conferia o aspecto de

solidez desejado para o que quer que se alçasse às condições de doutrina de estado e de

base identitária. Porém, se estes fatores colocariam o estoicismo em condição privilegiada

para servir ao propósito acima delineado, o que, na essência de seu pensamento, o

capacitaria em definitivo para tanto? Faz-se mister o retorno a Aubenque, para dar a esta

questão uma resposta válida:

...é para a moral que tendem todos os esforços dos estoicos. Esta se reduz a alguns
princípios simples: não há outro bem que a retidão da vontade, outro mal que o vício:
tudo o que não é nem vício nem virtude é indiferente. Desses axiomas resultam uma
multidão de consequências paradoxais: a doença, a morte, a pobreza, a escravidão não
são males, mas “indiferentes”; o sábio é, por definição, feliz, mesmo nos sofrimentos;
o mau é sempre infeliz, já que inflige a si próprio, por seu vício, o único dano que sua
alma possa sofrer. (AUBENQUE, et al., 1981: 177)

Os axiomas do estoicismo, percebe-se logo, coadunam-se perfeitamente com o mos

maiorum romano, conjunto de valores que, embora amplamente arraigado nos séculos

precedentes, fora porém, abalado pelas convulsões sociais e, principalmente, pelo

relaxamento dos costumes. Entretanto, enquanto o mos maiorum funcionava – por ser

condição inerente à educação familiar romana – como um contrato social coletivo, a moral

estoica, sendo norma de vida apenas daqueles que se dedicavam à escola, devia ser

divulgada, justificando-se, com isso, uma obra como a de Cícero, que serve, também,

como artigo de divulgação da escola estoica.

Concluído este esclarecimento, retornemos às Tusculanae Disputationes.


86

3.2.3.2 – Virtus, prima inter pares.

As Tusculanae serão, enfim, a obra na qual Cícero elevará a uirtus à categoria de

prima inter pares entre os conceitos que, agregados ao mos maiorum, (con)formam o novo

conjunto de valores em que a romanidade se apoiará. E, àquele que a possui, Cícero

outorgará o título de “sábio”, condição sine qua non para o alcance da felicidade61.

No conjunto das obras aqui selecionadas, as Tusculanae Disputationes acabam

ocupando uma posição única: seja pela forma de composição, em que Cícero descarta suas

habituais galerias de personagens e deixa em cena tão somente um mestre e um discípulo -

cuja única função é propor os temas para discussão -, seja pelo conteúdo, que é

inteiramente voltado ao indivíduo e sua busca pela virtude e felicidade, as Tusculanae

Disputationes, em princípio, destoariam completamente das anteriores.

Contudo, quando consideramos que esta obra foi escrita imediatamente após o De

finibus bonorum et malorum, percebemos que os dois textos, de fato, apresentam uma

nítida sequência na exposição de suas ideias: se em De finibus... Cícero apregoa os prós e

os contras das principais escolas filosóficas gregas, nas Tusculanae Disputationes o que

vemos é a aplicação prática dos principais valores dessas escolas – com grande destaque

para o estoicismo - a questões concretas. Pragmaticamente, como convém a um romano,

Cícero apresenta, através dos diversos exemplos que há na obra – todos, evidentemente,

baseados na história de Roma - as situações em que aqueles valores foram de serventia ao

sábio.

Percebe-se ainda que há, nas obras selecionadas, uma redução de foco: se De Re

Publica tratava da organização e dos valores de uma república ideal e De Legibus

61
Ideia que será retomada por Sêneca em De uita beata.
87

propunha a disposição legal e jurídica para essa mesma república, e se o De finibus... trata

dos – antigos e novos - valores para o cidadão dessa mesma república, as Tusculanae

Disputationes mostrarão a esse cidadão, como é possível, na condição de indivíduo,

vivenciar a fusão entre velhos e novos valores sociais que Cícero mesmo propunha.

Outra redução de foco se dá quanto às personagens: na primeira obra, a fala

pertence aos contemporâneos de Cipião, em De Legibus e De finibus... quem dialoga são

os contemporâneos do próprio Cícero; mas, nas Tusculanae Disputationes, quem detém a

palavra é um “magister philosophiae”, cujo nome não nos é apresentado. Entretanto, fica

patente que esse é um estratagema de Cícero para poder apresentar mais diretamente suas

ideias, e, considerando que, em sua obra já mencionada, Harvey aponta para o fato de que,

nos manuscritos das Tusculanae Disputationes, as falas são indicadas pelas letras latinas M

e A, respectivamente “Marcus” e “Adolescens”, ou talvez o fossem pelas letras gregas M e

Δ, significando então “Mathetés” e “Didáskalos” (mestre e discípulo), teríamos então um

signo M com duplo sentido, podendo ser a inicial do praenomen de Cícero, igualando-se

assim Marcus a Magister. 62 Por fim, no De Officiis, Cícero se colocará definitivamente em

cena, realizando em primeira pessoa do discurso sua exposição – o que equivale a afirmar

sua própria autoridade como filósofo.

Entretanto, cremos haver, ainda, uma terceira e última redução de foco, esta com

maiores consequências no plano político: o fato de Cícero ter dedicado suas obras a Bruto

trai sua intenção de, ao longo de seus textos, fazer com que Bruto assumisse – como de

fato o fez – a vanguarda da resistência a César, em substituição a Pompeu, morto no Egito

em 48. Esta última hipótese transparece não apenas nas dedicatórias, mas na própria

condução das ideias realizada por Cícero na obra, principalmente nos livros I e II das

62
Essa proposta de Harvey é adotada por diversos estudiosos: várias edições das Tusculanae Disputationes
trazem as rubricas Auditor e Cicero, substituindo a A e M.
88

Disputationes: ao dedicá-las a Bruto, tornava-o receptor privilegiado da mensagem nelas

contida. Uma mensagem na qual a uirtus - e sua busca – se tornam as principais razão e

causa das ações do indivíduo, em nível pessoal ou político.

Ora, devendo o homem virtuoso não apenas praticar a virtude, mas, em seu nome,

agir em defesa de sua sociedade, fica clara para nós a intenção, exitosa aliás, de Cícero em

atrair Bruto – por meio da filosofia – para o grupo dos cesaricidas.

Assim, podemos crer que os objetivos de Cícero, nessa obra, são: dar continuidade,

no plano individual, às exposições de De finibus...; mostrar que apenas o sábio, por possuir

a uirtus, pode alcançar a felicidade e encorajar, em Bruto, sua participação no assassinato

de César.

Para além, contudo, desse último motivo, menos nobre e mais imediato, Cícero

também realiza uma apresentação pragmática de como deveria o indivíduo proceder na

busca da uirtus. E isso, cremos também, acaba por fortalecer a integração entre os valores

da tradição romana e os da filosofia grega, anulando, enfim, a distância entre os dois

conjuntos de conhecimento, amalgamando-os no que poderemos denominar romanidade

filosófica.63

Tanto é que, nas próximas obras de Cícero, serão abordados com mais

especificidade como mais alguns valores da tradição tiveram seu sentido modificado pelo

aporte filosófico. Vale lembrar que estas obras foram escritas entre 45 e 44 a.C. ou seja,

imediatamente antes ou após os Idos de Março; trata-se de um grupo de obras as quais a

crítica costuma considerar menores no corpus ciceroniano, no entanto, pensamos que, no

quadro da definição dos novos valores identitários, essas obras têm informações

importantes a nos fornecer.

63
Termo com que poderemos nos referir ao projeto identitário romano proposto por Cícero, já que esse
projeto se constrói sob o viés da filosofia.
89

O grupo seria originalmente formado por De gloria, Cato Maior de Senectute,

Laelius de Amicitia e De Virtutibus, escrito originalmente como apêndice a De Officiis.

Contudo, estando perdidos o primeiro e o último textos da lista acima, nossa análise estará

restrita aos dois restantes, vistos em conjunto.

3.2.4 – Catão e Lélio: a velhice e a amizade

Em Cato Maior, Cícero dá a palavra a Catão, o Antigo, avô daquele mesmo Catão

de Útica com quem Cícero dialoga em De finibus... e também seu correligionário político

junto aos Optimates. Nesta obra, a personagem-título fala a respeito da velhice, vista não

como um impedimento à execução dos deveres – de indivíduo, de paterfamilias, de

cidadão – mas sim como um estímulo adicional ao seu bom desempenho: uma vez que,

livre das necessidades do corpo, o senex pode dedicar-se melhor às do espírito e às

exigências da cidade.

Trata-se de um longo discurso em que a fala de Catão acaba por representar a do

próprio Cícero. Mais uma vez recorrendo às figuras históricas da Roma dos Cipiões, auge

do modelo republicano oligárquico que defendia, e colocando seu discurso na boca do

paradigma do tradicionalismo, Cícero acaba por dirigir, à classe senatorial, um chamado às

responsabilidades do cargo: se é aos velhos que cabe a tarefa de gerir a sociedade, vale

recordar que a raiz de senex (*sen-) é a mesma de senatus, -us64. Desse modo, convocava o

Senado a reassumir seu papel na sociedade romana, num tempo em que, com a guerra civil

em andamento, talvez se pudesse, ainda, pensar numa vitória de Bruto e Cássio e a

64
Conforme se vê no já mencionado Dictionnaire Étymologique de la Langue Latine, de Ernout e Meillet,
no verbete senex: “Le nominatif de senex comporte un suffixe –c- qui se retrouve dans un certain nombre de
dérivés, tandis que d‟autres sont formés sur le thème *sen- des cas obliques. On a donc: seneca, -ae; senatus,
-us.”
90

consequente restauração da república senatorial. Em caso contrário, a obra estabeleceria as

normas de conduta do novo Senado, criando parâmetros para o que seria, mais tarde,

conhecido como “oposição estoica”.

Logo em seguida, Cícero escreve Laelius de Amicitia, uma obra da qual devemos

mencionar as condições de sua produção: segundo Paratore (1983), este texto foi escrito

em fins de 44 a.C, quando as tropas de Bruto e Cássio já haviam sido derrotadas pela

aliança entre Otaviano e Marco Antônio, e Cícero - que nesse ínterim já havia pronunciado

as Filípicas - sabia que, constituído o Segundo Triunvirato, não tardaria a que seu nome

fosse incluído nas listas de cassação, exílio ou execução. Sabendo-se, portanto, com os dias

contados, Cícero refugia-se em sua uilla em Tusculum e redige, ainda, Laelius e De

Officiis.

Laelius de Amicitia tem, ainda, em relação às demais obras de Cícero, uma

inusitada preocupação literária, pois nesta obra é Cícero quem se coloca como narrador

explícito: no preâmbulo de sua obra – dedicada ao amigo Ático –, Cícero deixa claro que a

fala de Ático é, na verdade, a sua, assumindo a responsabilidade pelo discurso:

Sed, ut tum ad senem senex de senectute, sic hoc libro ad amicum amicissimus scripsi de
amicitia. Tum est Cato locutor, quo erat nemo fere senior temporibus illis, nemo prudentior;
nunc Laelius et sapiens (sic enim est habitus) et amicitiae gloria excellens de amicitia loquetur.
Tu uelim a me animum parumper auertas, Laelium loqui ipsum putes. C. Fannius et Q. Mucius
ad socerum ueniunt post mortem Africani; ab his sermo oritur, respondet Laelius, cuius tota
disputatio est de amicitia, quam legens te ipse cognosces. (CÍCERO; De Amic., I, 5) 65

E, talvez por isso, possamos pensar que, ao usar a primeira do singular na oração abaixo,

Cícero esteja falando de si mesmo, e não de sua personagem-título: “Quam ob rem caue

Catoni anteponas istum quidem ipsum, quem Apollo, ut ais, sapientissimum iudicauit;

65
“, portanto,, assim como então, um velho escrevia sobre a velhice a um outro velho, nesta nova obra, é um
amigo que escreve sobre a amizade a seu amigo mais querido. Naquele livro, quem fala é Catão, talvez o
homem mais velho do seu tempo e também, o mais sábio. Neste, quem fala sobre a amizade é Lélio, que não
somente era sábio (assim era considerado), mas, também, que ficou célebre como amigo. Peço-lhe, pois, que
me esqueça por um instante, e imagine estar a ouvir o próprio Lélio. Caio Fânio e Quinto Múcio (Cévola)
vêm à casa do sogro, após a morte do Africano; eles começam a conversa e Lélio responde, fazendo, sozinho,
toda a exposição sobre a amizade. Lendo-a, você vai se reconhecer nela.” (CÍCERO; 2006:17) Todas as
traduções de De Amicitia são de João Teodoro d‟Olim Marote.
91

huius enim facta, illius dicta laudantur. De me autem, ut iam cum utroque uestrum loquar,

sic habetote.” (CÍCERO; De Amic., I, 10) 66

E o que Cícero preconiza, nesse texto, como importante para a configuração da

(nova) identidade romana? Esta é, cremos, uma questão que admite duas respostas: a

primeira é de caráter (meta)físico – tema que Cícero tratou em obras que não abordamos

aqui -, mas que aponta para o fato de que, para além da religião tradicional romana,

admitiam-se também novas crenças, de origem estrangeira, tal como a concepção –

socrática, aliás – de um recompensa post-mortem:

Neque enim adsentior iis, qui haec nuper disserere coeperunt, cum corporibus simul
animos interire atque omnia morte deleri. Plus apud me antiquorum auctoritas ualet,
uel nostrorum maiorum, qui mortuis tam religiosa iura tribuerunt, quod non fecissent
profecto, si nihil ad eos pertinere arbitrarentur; uel eorum, qui in hac terra fuerunt
Magnamque Graeciam, quae nunc quidem deleta est, tum florebat, institutis et
praeceptis suis erudierunt, uel eius, qui Apollinis oraculo sapientissimus est iudicatus,
qui non tum hoc, tum illud, ut in plerisque, sed idem semper, animos hominum esse
diuinos iisque, cum ex corpore excessissent, reditum in caelum patere, optimoque et
iustissimo cuique expeditissimum. (CÍCERO; De Amic., IV, 13)67

Outra possibilidade de resposta encontra-se na listagem de valores sine quibus non poderia

um indivíduo ser considerado um uir bonus:

Qui ita se gerunt, ita uiuunt, ut eorum probetur fides, integritas, aequalitas, liberalitas
nec sit in iis ulla cupiditas, lubido, audacia, sitque magna constantia, ut ii fuerunt,
modo quos nominaui, hos uiros bonos, ut habiti sunt, sic etiam appellandos putemus,

66
“Não vá, , portanto,, colocar alguém acima de Catão, nem mesmo aquele que, como você diz, foi
proclamado por Apolo como o “mais sábio” dos homens, pois deste último, louvam-se as palavras, e do
outro, as ações. Quanto a mim, quero, agora, me dirigir a vocês dois: eis o que penso.” (CÍCERO; 2006:21)

67
“Com efeito, eu não concordo com aqueles que recentemente começaram a sustentar que a alma morre
juntamente com o corpo, e que a morte destrói tudo. Prefiro acreditar na autoridade dos antigos, ou na de
nossos ancestrais, que conferiam aos mortos direitos tão sagrados, coisa que não teriam feitos se acreditassem
que nada mais interessava aos mortos; prefiro, ainda, acreditar na opinião dos filósofos que viveram nesta
terra e deram à Magna Grécia, hoje decadente, é certo, mas então florescente, as instituições e os
ensinamentos que a formaram; acreditar, enfim, na opinião daquele que o oráculo de Delfos proclamou como
“o mais sábio”, e que, a esse respeito, não dizia ora isto, ora aquilo, como outros frequentemente o faziam,
mas sempre sustentou que as almas humanas são divinas, e que, no dia em que deixam o corpo, abre-se,
diante delas, um caminho que as leva de volta ao céu, e para as melhores e mais justas, esse retorno é mais
rápido.” (CÍCERO; 2006:25-27)
92

quia sequantur, quantum homines possunt, naturam optimam bene uiuendi ducem.
68
(CÍCERO; De Amic., V, 19)

Ao enumerá-las, Cícero arrola os novos valores com que (re)alicerçara a

romanidade, valores que, assim como os do mos maiorum, não eram, necessariamente,

oriundos da Filosofia, mas que ganhariam, com seu reforço, mais força perante as elites e

as massas. Entre esses, claro, inscreve-se a amizade, que, para Cícero, está na base de todo

laço social, sendo inexistente sem a justiça, que atuaria como seu “elemento regulador”.

Sendo a amizade e a justiça os elementos fundamentais da sociedade, todo o

edifício social – demolido com as diversas guerras mencionadas – poderia ser reconstruído,

pois tanto a tradição, baseada no mos maiorum, quanto seu suporte filosófico – elementos

constituintes da aqui chamada romanidade filosófica - estariam intactos. Enfim, em Laelius

de Amicitia, Cícero encerra um ciclo, ou como dirá Paratore:

...voltava ao seu ideal de Roma de um século antes, da Roma cipiônica, que se tornara
para o seu espírito uma espécie de sede utópica de todas as perfeições; voltavam
alguns dos interlocutores do De Oratore e do De Re Publica a exaltar alguns
princípios morais como a amizade, que eram a charneira das filosofias helenísticas,
mas que Cícero considerava praticamente afirmados, sobretudo pela grande tradição
oligárquica romana. (PARATORE; 1983: 230-31)

Outrossim, a intenção última de Cícero, nesse texto, parece-nos ser antes aquela manifesta

por René Martin e Jacques Gaillard:

Si les propos de Laelius sont peu denses, du point de vue philosophique, la réussite
littéraire de ce texte mineur tient à la qualité du ton donné à l‟éxposé. Et à y regarder
de plus près, cette fiction est troublante – car l‟on y voit la célébration de l‟ amitié
placée sous le signe de la laudatio funebris, de l‟oraison funèbre. En d‟autres terms,
Cicéron, qui s‟identifie à Scipion, emprunte-t-il ce détour pour déjá parler de lui-
même au passé? Scipion, dit Laelius, vivra toujours, car il était vertueux. Bien des

68
“Aqueles que se comportam, que vivem de forma tal que evidencia boa-fé, integridade, equidade e
liberalidade, nos quais não há cobiça, nem paixão, nem louca ousadia e demonstram grande firmeza de
caráter, como as personagens que acabo de citar, e que foram, todos eles, considerados homens de bem, nós,
na minha opinião, devemos, também, assim chamá-los, porque, na medida do possível, seguem a natureza,
que é a melhor guia da vida.” (CÍCERO; 2006:33) As personagens que Cícero citara eram: Caio Fabrício,
Mânio Cúrio e Tibério Coruncânio; cônsules que praticaram ações heroicas durante seus mandatos.
93

lignes sont émouvantes dans ce livre, et font songer à une consolation. Sentant venir sa
fin, Cicéron rêve d‟immortalité. (MARTIN; GAILLARD; 1993:232)69

Mesmo sendo seu “canto de cisne”, Laelius antecede ainda a uma obra que, sendo

praticamente a última das de Cícero, condensará todo seu pensamento no âmbito da

Filosofia: dessa vez dedicado a seu filho Marco, Cícero escreverá ainda, no mesmo ano, o

De Officiis, obra que, embora extensa, não chega a apresentar algum novo ângulo para a

observação da suas concepções identitárias romanas.

Vimos, portanto, que Cícero se vale da escolas filosóficas gregas, mas o faz usando

do procedimento padrão romano para a incorporação de novos paradigmas culturais:

delimitar – no tempo, no espaço e no âmbito do Direito – o objeto de interesse, e

selecionar, desse objeto, o item considerado válido. Contudo Cícero acaba por ir além, e,

com isso

L‟aproche des héritages hellénistiques ne se réduit pas à ressusciter d‟anciennes


querelles d‟école, épuisées parfois depuis un bon siècle, elle constitue une tentative
pour repenser en termes romains l‟apport de la culture grecque, et se subordonne à la
volonté de tenter une compréhension globale de l‟action humaine, selon les cadres de
pensée qui étaient ceux de Cicéron et de ses contemporains. (PROST, 1996:23)70

Cícero, como observamos, usa da filosofia grega, e, se para tanto, fez-se necessário

construir todo um vocabulário latino para dar conta dessa apropriação – abstrata –, Cícero

desempenhou essa tarefa; e, por fim, se sua busca ultrapassou os limites iniciais,

outorgando cidadania romana à filosofia grega, Cícero tornou, com isso, universal a

69
“Se os propñsitos de Laelius são pouco densos, do ponto de vista filosófico, o alcance literário desse texto
menor prende-se à qualidade do tom dado à exposição. E, observando-se mais de perto, essa ficção é
problemática – porque aí se percebe a celebração da amizade marcada pelo signo da laudatio funebris, a
oração fúnebre. Em outros termos, Cícero, que se identifica com Cipião, usa esse desvio para falar de si
mesmo já no passado? Cipião, diz Lélio, vivera sempre, porque era virtuoso. Muitas linhas são emocionantes
nesse livro, e fazem pensar numa consolação. Sentindo vir seu fim, Cícero sonha com a imortalidade.”
70
“A proximidade da herança helenística não se reduz a ressuscitar antigas querelas de escola, esgotadas há
um século, ela constitui uma tentativa de repensar em termos romanos o aporte da cultura grega, e se
subordina à vontade de tentar uma compreensão global da ação humana, segundo os padrões de pensamentos
que eram os de Cícero e seus contemporâneos.”
94

romanidade - condição de que até mesmo seus portadores eram inconscientes -, chegando

aos limites do metafísico, esse fato só pode ser computado a seu crédito.

E mais, ao desenvolver novos parâmetros para a romanidade, Cícero acabará por

desembocar em novo conceito, o de humanitas, sendo considerado por Paratore (1983), “o

principal criador e ilustrador do conceito totalmente latino da humanitas. (1983: 240)”: sua

obra filosñfica, que o prñprio Paratore chamará “fragmentária e assistemática” ajudará a

moldar aquela espiritualidade latina da qual, uma vez aproveitada pelo Cristianismo,

seremos todos tributários. Vale, portanto, que tratemos desse conceito.

À semelhança de sapientia, humanitas será também o conceito de surgimento mais

tardio na cultura romana: resultando de uma lenta evolução da vida pública e do direito

civil, sua plena formulação, como vimos, só se dará na tormenta final da República.

Sua etimologia trai a evolução, dentro do conceito de cidadania, de um conjunto

mais amplo de seres humanos; evidenciado pelas características que farão do homem um

ser humano, e, mais tarde, humanitário, e com destaque para a civilidade, que engloba o

direito como norma básica de convivência. Este fato aproxima a humanitas latina da

paideia grega. Sobre essa transição, não pretenderíamos ser mais concisos que Pierre

Grimal, que, tratando do ius gentium, defende que os romanos

Transformaram-no na fórmula de uma espécie de justiça universal: a ciuitas romana


alargou-se para ciuitas humana. É legítimo pensar que a fórmula dos filósofos gregos
não teria adquirido esta eficácia se os romanos não lhe tivessem conferido a expressão
de um sentimento que traziam dentro de si de forma latente e que subitamente se viu
iluminado pela revelação vinda do Oriente. (GRIMAL, 1989:70)

Assim, articulados em relação a e a partir de fides, pietas e uirtus, os diversos

conceitos que formaram o mos maiorum serão os mesmos que definirão a romanidade e

que atravessarão todas as transformações da sociedade romana, até mesmo sobrevivendo a

ela, porque saberão evoluir do romano – concepção excludente - para o humano –

concepção abrangente. Desse modo, agregando-se sapientia e humanitas, aquela tríade que
95

apontamos como fundamental para o mos maiorum é transformada em um pentágono, e à

romanidade seriam incorporados um novo grupo de valores que, por realçarem a

importância da uirtus, preparariam, de certo modo, a visão de mundo romana para o novo

modelo político que se aproximava: o império.

3.3 – Uma nova identidade e a modernização conservadora

Seria válido interrogarmo-nos, aqui, se não seria contraditório, da parte de Cícero,

defender uma restauração plena do modelo político anterior e, ao mesmo tempo, preconizar

um novo conjunto de valores para a sociedade romana. Porém devemos recordar que essa

sociedade, tal como pretendida por Cícero, não é mais restrita aos cidadãos da Vrbs.

Ele mesmo um cidadão romano não-citadino, Cícero sabia que eram necessárias

mudanças na concepção da identidade romana para que se pudesse absorver, rápida e

satisfatoriamente, toda aquela população da península italiana que, desde Mário, tivera

acesso jurídico à cidadania. Ora, essa absorção passava necessariamente pela Magna

Grécia, ou seja, toda a região sul da Itália, centro agrícola de primeira ordem na península,

e ponto de expansão e controle do poder romano em todo o Mediterrâneo: os valores, os

costumes e as tradições dessa região deveriam estar, de algum modo, visíveis nessa nova

composição identitária.

Também as elites dos territórios mais distantes71 deveriam, para perpetuação do

poder romano, ser atraídas com maior eficácia para Roma, uma atração que deveria ser

executada não mais apenas manu militari, mas por modos mais sutis. E, finalmente, as

próprias elites da Vrbs deveriam adquirir um novo arcabouço identitário e ideológico,

71
Essas elites eram, na verdade, as populações helênicas, já que os demais povos sob o imperium não eram
considerados suficientemente civilizados para merecerem maior atenção, ou para que sua cultura pudesse
interferir na questão identitária em Roma.
96

justificando assim tanto a sobrevivência do mos maiorum, agora atualizado, como a

manutenção de seu poder.

Fica-nos patente que a intenção de Cícero era, claramente, a de reconstruir, não

necessariamente sob os mesmos valores, aquela unidade de pensamento existente no auge

da Roma republicana. Com isso, como dissemos, seria possível integrar não apenas os

grupos sociais em conflito na capital, em que o predomínio político dos Optimates estaria

consagrado mas também atrair para a romanidade o conjunto das populações italianas e as

elites das demais regiões conquistadas.

Tal atração se tornara um imperativo já que, até mesmo no cômputo populacional,

os habitantes de Roma contavam, agora, pouco para a manutenção do poder romano. Era

necessário, , portanto,, para a própria sobrevivência de Roma, ampliar o conceito de

romanidade. E uma estratégia para isso seria fazer com que o habitante das regiões

controladas por Roma pudesse, a par de sua própria origem, sentir-se parte de uma

coletividade maior, por partilhar valores mais profundos que o ius sanguinis ou o ius solis.

É por esse motivo que as obras de Cícero apontam para a incorporação, como

valores romanos, de valores outros, reconhecidos pela Filosofia como universais. E

também é por isso que, por outro lado, está clara também a intenção de universalizar o mos

maiorum.

Amalgamados, esses dois conjuntos ideológicos atrairiam para o sentimento de

romanidade os diversos grupos socioculturais sob o imperium. Cícero antevia, enfim, que o

sentimento em relação a Roma, para que Roma mesma se preservasse, deveria dar um

passo além, na direção da universalidade. Em resumo, para que Roma continuasse a ser

Roma, a Vrbs deveria ser, cada vez mais, Orbis.

A visão de Cícero estará, portanto, inscrita no que se pode denominar

“modernização conservadora”, em que as novas roupagens dadas a um determinado


97

sistema não escondem o intuito de preservar as estruturas que o regem. Isto fica claro

quando recordamos que, se o suporte filosófico aceleraria o processo de identificação dos

não-romanos, ou “neo”-romanos, com Roma e, ao mesmo tempo, conferia à identidade

romana novos pontos de sustentação, o modelo político e os mecanismos de acesso à

cidadania ficariam intocados.

Ainda que, em consequência do conturbado xadrez político que levou ao fim da

República, Cícero tenha sido assassinado a mando de Marco Antônio em 43 a.C., não se

pode dizer que sua obra tenha caído no esquecimento – prova disso é o fato de ser o autor

romano mais bem preservado – ou ainda que suas propostas no plano político e/ou

filosófico não tenham sido aproveitadas. Afinal, alcançando o poder, Augusto configurará

enfaticamente sua política pela pauta da preservação, ao máximo, das estruturas políticas

da República; assim como pela restauração do mos maiorum e das tradições ancestrais

romanas. Paradoxalmente, portanto, a romanidade filosófica, tal como preconizada por

Cícero, seria posta em prática pelo regime autocrático que ele tanto se empenhou em

evitar.

No entanto, se Cícero é produto da efervescência política e cultural de seu tempo, e

atuou dentro da dinâmica de poder(es) e da possibilidade de debate proporcionados pela

República, o mesmo não poderá dito de Sêneca – assunto de nosso próximo capítulo – já

que, cessada qualquer dinâmica e/ou debates políticos pelos sucessores de Augusto, esse

pensador viverá numa Roma que, apesar de manter uma retórica em que a vida pública

seria calcada no estoicismo, terá uma população a qual restará apenas um absenteísmo

quanto à vida pública, justificado pelo mesmo Epicurismo que Cícero tanto combatera.
98

4 SÊNECA: A FILOSOFIA NO TRONO DO IMPÉRIO

Cerca de quarenta anos separam a morte de Cìcero (43 a.C) do nascimento de

Sêneca (4 a.C), cerca de cem anos terão decorrido entre ambas as mortes, já que a de

Sêneca ocorre em 62 d.C. Essa informação pouco significaria se esse não fosse o primeiro

século de vigência do regime imperial, um período com algumas turbulências e em que se

processam diversas mudanças na sociedade romana, as quais aqui serão abordadas de

maneira sucinta.

4.1 Augusto e a nova crise identitária

Com o fim do Segundo Triunvirato (43-36) e as guerras entre Marco Antônio e

Otaviano, vencidas por este último, o poder se viu, pela primeira vez desde César,

concentrado em uma só pessoa. E, talvez por isso, Otaviano, logo cognominado Augusto,

instituiu um novo modelo de governo em que a concentração de poderes tornou-se a

tônica: Roma tornava-se, enfim, a sede do Império.

A fórmula desenvolvida por Augusto, entretanto, residia na própria (extrema)

popularidade do princeps e da submissão do Senado. Excessivamente centrada nessa

popularidade, a fórmula dependia, enfim, de que o governante mantivesse boas relações

com todas as instâncias de poder: senado, exército, população, etc. Dissolvidas as velhas
99

tensões entre optimates e populares, o governo de Augusto caracteriza-se pela efetivação

das ideias destes de maneira que contentasse também àqueles.

O governo de Augusto não se caracterizaria, no entanto, pela demolição sistemática

da estrutura governamental republicana; ao contrário, Augusto manteve o quanto pôde,

realizando sempre algumas adaptações motivadas pelo novo regime. Como governante,

após 27 a.C, Augusto empenhou-se em pacificar o Império, em promover a reconstrução

das províncias mais abaladas pelas sucessivas guerras e em embelezar a capital. Realiza

também uma política cultural em que se valorizam enormemente as artes; principalmente a

literatura, sendo este o momento em que a poesia latina é catapultada a um novo patamar,

graças a autores como Vergílio, Horácio e Ovídio.

Uma das tônicas dessa política será a retomada de valores tradicionais da

romanidade, em especial o resgate do mos maiorum. Esta retomada transparece até mesmo

na emissão de moedas realizada por Augusto, em que estes conceitos são personificados, já

que

De acordo com Augusto, um bom governante deveria observar a uirtus, a clementia, a


iustitia e a pietas, seguidas da auctoritas, potestas, corona ciuica e o título de pater
patriae. De todas elas, entretanto, somente a pietas e a iustitia figuram em suas
cunhagens explicitamente. (VIZENTIN, 2005:69)

Valorizando a pietas e a iustitia, Augusto reafirma um compromisso com tais conceitos –

que são úteis para apaziguar os ânimos cansados de seguidas convulsões políticas -, ao

mesmo tempo em que faz do meio circulante um excelente material de autopropaganda,

pois como defenderá Babelon:

Les abstractions personnifiées jouent un grand rôle dans les imaginations romaines,
soit qu‟elles expriment une satisfaction béate, dans les époques de prosperité, soit que
l‟affirmation qu‟elles symbolisent rallie la foi du peuple dans un avenir meilleur.
(BABELON, 1944:110)72

72
As abstrações personificadas têm um grande papel no imaginário romano, seja porque expressam uma
alegre satisfação, nas épocas de prosperidade, seja porque a afirmação que elas simbolizam unifica a fé do
povo em um futuro melhor.
100

Entretanto, mesmo com uma política cultural restauracionista, a aristocracia

romana73 terá agravada a crise identitária que até então vivenciara, pois além da

indisposição para com os referenciais de sua própria tradição cultural, somar-se-á a crise

advinda da perda de uma parte ainda maior de seu poder, partilhado agora com os novos

grupos sociais em que Augusto se apoia. A sensação de que a perda do poder era

decorrência também da crise cultural logo se faz sentir, levando uma boa parcela dessa

aristocracia – saudosa da república – a buscar propostas que lhe permitissem reconstruir

sua identidade e sobreviver enquanto classe, ou a simplesmente mergulhar no epicurismo,

agora tornado “válvula de escape” para uma situação sociopolítica bastante adversa.

É nesse momento que muitas das propostas realizadas por Cícero são acatadas pela

elite cultural, e também pelo regime imperial, que, embora deixando de lado o máximo

possível que fizesse alusão direta à tradição republicana, acabará abraçando os valores

defendidos por Cícero, e, por extensão, sua própria concepção de romanidade.

E apesar das proposições de Cícero não terem sido esquecidas durante os anos de

Augusto, a sensação de inferioridade cultural perante a Grécia persiste, pois é justamente

na Eneida que Vergílio traçará um eloquente manifesto do paradoxo representado pelo

poder de Roma e a condição menor que esta ocupava no plano cultural:

Excudent alii spirantia mollius aera,


Credo equidem; uiuos ducent de marmore uultus;
Orabunt causas melius, caelique meatus
Describent radio et surgentia sidera dicent:
Tu regere imperio populos, Romane, memento;
Hae tibi erunt artes, pacique imponere morem,
Parcere subiectis, et debelare superbos. (Vergílio, Aeneis VI, 847-53)74

73
É importante distinguir aqui “aristocracia”, i. e., a oligarquia hereditária que dirigia a República há
séculos,; de “elite”, os novos grupos a que a expansão do império dera existência.
74
“Outros saberão, com mais habilidade, abrir e animar o bronze, creio de boa mente, e tirar do mármore
figuras vivas, melhor defenderão as causas e melhor descreverão com o compasso o movimentos dos céus e
marcarão o cursos das constelações: tu, romano, lembra-te de governar os povos sob teu império. Estas serão
tuas artes, impor condições de paz, poupar os vencidos e dominar os soberbos.”
101

A perda das raízes culturais romanas ficará ainda mais evidente durante as

primeiras décadas do Império, posto que nesse momento se estende a outras camadas

sociais, uma vez que até mesmo a paz e a estabilidade que o Império proporcionam

contribuem para o agravamento da situação, como nos informa Jean Bayet:

... la société cultivée, qui assure aux écrivains un public et des encouragements,
s‟élargit toujours. Aux sénateurs délivrés des vrais soucis politiques, aux chevaliers,
fonctionnaires préférés du régime, se joignent la riche bourgeoisie des provinces et
même une sélection d‟affranchies. En effet, avec la pacification de l‟Empire et la
prospérité qui en résulta, le rôle des esclaves intelligents, intendants, secrétaires,
gérants, s‟accrut partout entre la bourgeoisie fonctionarisée et la plèbe fainéante;
affranchis et, avec leurs habitudes d‟activité et d‟entregent, s‟enrichissant souvent,
désireux au surplus de faire reconnaitre leur valeur intellectuelle et oublier leur
origine, ils sont le vrai ferment de la nouvelle société.
Ils sont le plus souvent originaires de l‟Orient. El les provinces asiatiques envoient
maintenant vers Rome, unique capitale, une foule de besogneux avides de se faire une
place. Ainsi un grand nombre d‟hommes dont le grec était la langue maternelle sont
appélés à l‟usage du latin. Mais ils ne renoncent tout à fait ni à leur mentalité ni à
leurs aspirations; et même leur influence modifie fort vite les mœurs et jusqu‟à l‟esprit
romains: les rangs se confondent, l‟orgueil national se perd, les curiosités se
multiplient, les plus nobles comme les plus basses. (BAYET, 1953: 444-5) 75

Assim, configurava-se, naquela parcela da elite romana - não mais composta

unicamente pela dualidade patriciado e equestres, e tampouco inteiramente embriagada

pela luxuria asiatica - a sensação de perda de identidade, e, embora delineiem-se projetos

de soerguer esta identidade tradicional romana, será em vão que o próprio Augusto estará,

durante seu governo, pessoalmente empenhado no resgate das tradições culturais

nacionais: o momento histórico inteiramente novo repele soluções antigas.

75
“A sociedade culta, que assegura aos escritores um público e encorajamento, aumenta sempre. Aos
senadores liberados de verdadeiros debates políticos, aos equestres, funcionários preferidos do regime,
juntam-se a rica burguesia das províncias e mesmo uma seleção de libertos. De fato, com a pacificação do
Império e a prosperidade resultante, o papel dos escravos inteligentes, intendentes, secretários, gerentes, se
espalha por toda parte entre a burguesia funcionarizada e a plebe desocupada; liberttos e, com seus hábitos de
atividade e empreendimento, enriquecendo-se frequentemente, desejosos ademais de fazer reconhecer seu
valor intelectual e esquecer sua origem, são o verdadeiro fermento da nova sociedade.
Eles são com maior frequência originários do Oriente. E as províncias asiáticas enviam agora para
Roma, única capital, uma legião de desejosos ávidos de conseguir um lugar ao sol. Desse modo um grande
número de homens cuja língua materna era o grego são chamados ao uso do latim. Mas eles não renunciam
de modo algum a sua mentalidade nem a suas aspirações; e sua influência modifica rapidamente os hábitos e
até mesmo o espírito romano: os níveis se confundem, o orgulho nacional se perde, as curiosidades se
multiplicam, tanto as mais nobres quanto as mais vis.”
102

Obviamente, percebe-se nas obras dos principais autores do tempo de Augusto, a

preocupação em valorizar - igualando ou sobrepujando - a cultura romana frente à grega:

esta seria uma questão imanente à produção de obras como a própria Eneida, por Virgílio;

e dos Fastos, por Ovídio, e não deixa de ser um traço de continuidade do pensamento de

Cícero.

Fica também patente - após o fracasso das tentativas de Augusto e o pouco impacto,

para além do ufanismo patriótico, despertado pela Eneida - que embora as propostas

ciceronianas houvessem introduzido novos valores na cultura romana, elevando a

romanidade de um estágio calcado no simples pragmatismo a outro, baseado no aporte

filosófico; a situação tornara-se tão mais complexa que rapidamente uma nova

configuração da identidade romana far-se-ia necessária.

Esta necessidade adviria do fato de que, se ao tempo de Cícero a plebe já era

formada por gente de origens as mais diversas, ao menos a elite social e cultural era

romana de boa cepa, nos anos de Augusto porém, era a própria elite que, pouco a pouco,

vinha recebendo elementos estrangeiros. Apesar de resolvida a crise política, a crise

identitária romana persistia, uma vez que novas personagens insistiam em entrar em cena.

Entretanto, já no texto de Bayet, supra-citado, subjaz a interrogação: onde estariam, em

meio a esta elite romana, aqueles que, havendo preservado o quanto possível sua

identidade cultural, ainda fossem capazes, mesmo com o fim de formular uma nova

síntese, de promover esta nova configuração identitária, que, se necessário, deveria

discernir, novamente, o espírito cultural romano do grego? Antes de responder a esta

questão, tracemos um breve panorama da trajetória do Império, através de seus

governantes, para que tenhamos uma visão mais clara – embora limitada – dos fatos

históricos do período.
103

4.2 Os sucessores de Augusto

Ao falecer, em 14 d.C., Augusto não encontrou problemas em transmitir o governo

a seu sucessor Tibério, o qual, apesar de não possuir a mesma popularidade do antecessor,

pôde ainda exercer seu poder com relativa tranquilidade, e tão seguro estava da solidez de

seu governo que pôde, em 29, retirar-se para a ilha de Capri e aí residir até a morte, em 37.

A política de Tibério contentou-se em perpetuar as linhas gerais estabelecidas por

Augusto, mormente no campo cultural em que se mantém a ênfase na defesa dos valores

morais, fato que, novamente, pode ser comprovado através da numismática do período

imperial:

Herdeira da tradição republicana, a cunhagem imperial, no entanto – e sobretudo a


partir de Tibério – modificou seus padrões estilísticos dando lugar ao aparecimentos
das virtudes e suas personificações, cuja ênfase recaiu principalmente em seu
conteúdo moral. (VIZENTIN, 2005:67)

Ou seja, enfatizar, no meio circulante, os valores das virtudes significava, por si só,

demonstrar quais seriam os valores que, segundo Tibério, deveriam ser perseguidos por

aquela sociedade. Contudo, parece-nos, novamente baseando-nos em Vizentin, não apenas

as virtudes que Augusto priorizara seriam defendidas: seus sucessores imprimiriam nas

moedas imperiais aquelas que, acreditavam, caracterizaria seu governo

Ao longo dos anos, outras virtudes e personificações, além das cardinais, são
incorporadas à cunhagem de moedas, assim como várias apresentações das ações do
príncipe para com seus súditos ou mesmo de suas atividades como dirigente do
Império. Assim, observa-se o aparecimento de Aequitas, Aeternitas, Annona, Ceres,
Concordia, Constantia, Felicitas, Fortuna, Honos, Libertas, Pax, Pudicitia, Salus,
Securitas, Spes, Tutela, Veritas e Victoria. (VIZENTIN, 2005:70)

Tal prática, evidentemente, nos permite aquilatar com maior precisão a imagem que cada

um dos Césares tentava transmitir à população. Mas também deixa claro quais foram os

valores em ascensão no período entre Augusto e Nero: como se percebe na lista acima, são

basicemente os mesmo que arrolamos no conjunto do mos maiorum, tal como preconizado
104

por Cícero: Aequitas, Honos, Concordia, Libertas, Constantia; acrescidos de outros,

sintomáticos das pretensões de um regime autoritário: Aeternitas, Tutela, Securitas, Pax,

Veritas e Victoria. Além, é claro, daqueles ideais que o regime, desde Augusto, defendia:

Felicitas, Pudicitia, Salus, Spes; e de algumas deusas de fundamental importância no

imaginário popular: Ceres, Annona e Fortuna. Constata-se, portanto, que o regime

instaurado por Augusto preocupou-se em preservar o mos maiorum, assimilando-o ao

conjunto de (novos) valores propostos – por Augusto e seus sucessores – para o regime

imperial.

O sucessor de Tibério, Caio, cognominado Calígula, acabaria sendo o responsável

pelas primeiras crises no regime imperial: franco desrespeito pelo constitucional,

tendências abertamente autocráticas, desprezo pelas instituições, falência econômica do

Estado, tirania. Calígula logo veio a ser deposto pelas legiões em 41, e substituído por seu

tio Cláudio, a quem caberia (re)organizar o modelo imperial, reparando os estragos que

Calígula impusera à solidez do regime.

É durante fins do governo de Tibério ou início do de Calígula que Sêneca começa a

despontar no quadro político romano, como Cícero, também era advogado – embora seus

discursos não tenham sido preservados – e sabe-se que não desfrutava da simpatia do

imperador, podendo-se afirmar que a deposição desse salvou-lhe a vida.

O governo de Cláudio é outro capítulo da conturbada relação entre poder imperial e

Senado: Cláudio não desprezava a instituição, mas julgava inadequado o modo de vida

claramente epicurista de muitos senadores, e também a ineficácia administrativa das

províncias sob jurisidição senatorial.

Como legislador, Cláudio era ponderado e cauteloso, e muito do que estabeleceu foi

preservado ou recuperado pelos Flávios, a dinastia que sucedeu aos Júlio-Cláudios em 69

d.C. No terreno militar, Cláudio foi responsável pela definitiva anexação da Bretanha ao
105

Império (43 d.C.). Contudo, os escândalos provocados pela promiscuidade de sua mulher,

Messalina, que levaram à execução desta e ao casamento do imperador com Agripina,

fizeram ainda com que Cláudio decidisse adotar o filho desta, o jovem Nero, em

detrimento dos filhos da primeira esposa: Britânico e Otávia. (Sendo Nero mais velho,

tornava-se o primeiro na linha de sucessão).

No início do governo de Cláudio (41-54), Sêneca foi exilado na Córsega, sob

acusação de adultério; mas seu exílio seria revogado em 49, pois Agripina convence

Cláudio a nomeá-lo preceptor de Nero. Com a morte do imperador, Nero herda o trono e,

para consolidar sua posição, casa-se com sua irmã adotiva Otávia e trama o assassinato do

jovem Britânico.

Ao longo de todo este período, forma-se no Senado, lenta mas de modo crescente,

uma oposição ao regime imperial: saudosos do poder desfrutado na República, muitos

senadores questionam a validade do regime, alegando que, se necessária foi sua

instauração por Augusto, como forma de pacificar o imperium, sua continuidade tornou-se

odiosa às instituições e às liberdades do povo romano. Esse grupo vale-se dos valores

estoicos para aglutinar suas ideias de retorno à República e é por isso mesmo denominado

“oposição estoica”.

Vista até aqui a sucessão do Império, voltemos à pergunta de Bieler sobre quem

poderia traçar essa novamente necessária (re)configuração da identidade romana,

analisando o papel que nela desempenharão os “emergentes” do Império.

4.3 O “emergente” na sociedade romana

Para tanto, será necessário voltar ainda uma vez ao período republicano, em que,

ainda durante o período de expansão do império, a prática de assentamento de cidadãos nos


106

territórios conquistados fará com que, décadas depois, surja no panorama social uma figura

inteiramente nova: a daquele cidadão romano que, mesmo não-nascido na Urbe, muitas

vezes sequer na Itália, tem interesses na manutenção do poder romano em sua região, ao

mesmo tempo em que deseja influir nos destinos do Estado.

Essa figura emergente terá especial destaque nas regiões do Ocidente: Gália,

Espanha, Bretanha e norte da África, onde o estabelecimento do Império sob Augusto

representou, sob o ponto de vista das relações entre o centro e a periferia do mundo

romano, uma reorganização político-econômica que, equacionando o sistema tributário e

estabelecendo a paz, consolidou o sentimento de pertinência ao orbe latino, acelerando

ainda mais o processo de romanização destas províncias. Romanização esta que, tendo

preservado muito das antigas tradições e da identidade cultural romana, seria agora um

recurso para contrabalançar a influência do Oriente helenístico, conforme se detecta ao

retornarmos a Bayet:

Cette poussée d‟orientalisme hellénisant est pourtant contenue par l‟apport des
provinces occidentales où la langue latine, fixée par l‟usage classique, gagne
puissament. Après la Cisalpine et la Narbonnaise, l‟Espagne donne à Rome une foule
d‟ écrivains, Porcius Latro, les Sénèques et Lucain, Columelle, en attendant Quintilien
et Martial; et voici que, dès 48, la nouvelle Gaule peut aspirer au droit de cité complet,
tandis que la Bretagne s‟ouvre à la formation romaine et que l‟Empire s‟étend dans
l‟Afrique du Nord jusqu‟à l‟Océan. Sans doute ces provinciaux enrichissent-ils aussi
le cosmopolitisme romain de traits nationaux: on a reconnu, dans les Espagnols, l‟éclat
et l‟enflure superbe de la race. Mais leur formation, plus purement latine, les agrége
mieux au passé de Rome, (BAYET, 1953: 444)76

Se estes eram os homens capazes de injetar sangue novo no velho espírito romano,

fazendo com que, dentro do Império e apesar da censura política exercida pelos

imperadores, a cultura romana - principalmente a literatura - ingressasse em nova fase de

76
Esta onda de orientalismo helenizante é entretanto contida pelo aporte das províncias ocidentais onde o
latim, fixado pelo uso clássico, vence com vantagem. Além da Cisalpina e da Narbonense, a Espanha dá a
Roma uma fila de escritores, Pórcio Latro, os Sênecas e Lucano, Columela, esperando ainda Quintiliano e
Marcial; e eis que, desde 48, a nova Gália pode aspirar ao direito completo de cidadania, enquanto que a
Bretanha se abre à formação romana e o Império se estende da África do Norte até o Oceano. Sem dúvida
estes provincianos enriquecem-se também o cosmopolitismo romano com traços nacionais: reconheceu-se,
nos espanhóis, a explosão e a fúria soberba da raça. Mas sua formação, mais puramente latina, os prende
melhor ao passado de Roma.
107

sua história, foram também responsáveis pela ampliação dos horizontes culturais romanos,

que não mais estariam restritos a Roma, antes dar-se-ia o inverso, fato que levou o

historiador literário Ludwig Bieler a dividir a produção escritural deste período em

literatura latina e literatura romana:

Los conceptos de literatura romana y literatura latina se entrecruzan. El latín se


escribió y habló todavía mucho después de la caída y desmembramiento del Imperio
Romano de Occidente. En los Estados que surgieron de él siguió siendo el latín el
idioma literario; desde la época carolíngia (y en Irlanda todavía antes) fue la lengua
universal y unificadora, al lado de las lenguas de las literaturas nacionales. Aún hoy
continúa siendo el latín el idioma de la Iglesia romano-católica. Pero esto tiene poco
que ver con la historia de la literatura romana: tan sólo como supervivencia de formas
y motivos literarios, de técnicas y elementos estilísticos y, sobre todo, como tradición
de aquella literatura.
No todos los autores romanos escribieron en latín. (..)Pero desde la edad clásica de
la literatura romana, los países que participaron activamente en ella estaban del todo
romanizados: Italia desde conquistas, España desde los comienzos de nuestra
cronología, África desde el siglo II, y las Galias desde finales del siglo III. La creación
literaria de los hombres nacidos en tales países pertenece esencialmente a la literatura
romana; los romanos nativos de la misma capital apenas si la representan, salvo los
oradores: son los nativos del resto de Italia y luego de las Provincias los que nos
transmiten lo típicamente romano. Tal es el caso de Ennio en el siglo II antes de
Cristo, así como el de Rutilio Namaciano en el V después de Cristo. (BIELER,
1992:9-10)77

Se Bieler se aferra ao fato político de vigência do Império Romano para realizar sua

distinção, deixa no entanto inequívoco o fato de que a literatura produzida em latim

durante o Império é, sobretudo, obra daqueles romanos que agravam aquele paradoxo já

77
Os conceitos de literatura romana e literatura latina se entrecruzam. O latim se escreveu e falou ainda
muito depois da queda e desmembramento do Império Romano do Ocidente. Nos estados que daí surgiram,
continuou sendo o latim o idioma literário; desde a época carolíngua (e na Irlanda ainda antes) foi a língua
universal e unificadora, ao lado das línguas literárias nacionais. Ainda hoje continua sendo o latim a língua
da igreja católica romana. Mas isto tudo tem pouco a ver com a história da literatura romana: tão só como
sobrevivência de formas e motivos literários, de técnicas e elementos estilísticos e, sobretudo como tradição
daquela liteatura.
Nem todos os autores romanos escreveram em latim. (...) Mas desde a era clássica da literatura
romana, os países que participaram ativamente nela estavam completamente romanizados: Itália desde a
conquista, España desde o início de nossa cronologia, África desde o século II, e as Gálias desde fins do
século III. A criação literária dos homens nascidos em tais países pertence essencialmente a literatura
romana, os romanos nativos da capital em si a representam muito mal, salvo os oradores: são os nativos do
resto de Itália e logo das províncias os que nos trasmitem tudo que é tipicamente romano. Tal é o caso de
Ênio no século II antes de Cristo, assim como o de Rutílio Namaciano no V depois de Cristo.
108

expresso na figura de Cícero: se este, apesar de ser um cidadão não-citadino78, é, ao menos

oriundo da Itália; enquanto Sêneca provém de outras paragens.

Antes de passarmos às relações da cultura romana imperial com a doutrina estoica,

podemos apresentar já as seguintes conclusões : a) o Império foi a solução política possível

para uma crise que possuía duas faces: a de uma crise política motivada pela expansão de

um poderio econômico e militar que postergou além do devido sua adaptação à nova

realidade que esta mesma expansão ensejara e a de uma crise identitária surgida

inicialmente na aristocracia e que mais tarde espalhou-se às demais classes que disputavam

parcelas do poder na Urbe, b) que fica ainda patente que, apesar de solução política, o

império é incapaz, por si só, de resolver - ao contrário, agrava - a crise identitária que

tentara resolver, e que tornava-se ainda mais urgente uma renovação no espírito romano

que lhe garantisse a própria sobrevivência; por fim, c) evidencia-se ainda que esta

renovação só seria possível – como de fato ocorreu – capitaneada pelos romanos das

províncias, que haviam preservado em maior grau o espírito que ora se impunha salvar.

Como consequência do somatório destes fatos, ficava aberto o caminho para que

homens como Sêneca ocupassem os espaços sociais, culturais e políticos do Império, o que

de fato ocorreu já na geração de seu pai, conhecido como Sêneca, o Retórico.

4.4 “A consciência do Império”

Vimos, acima, como uma biografia de intelectual e, principalmente, de homem

público romano como a de Lúcio Aneu Sêneca é, ademais de mérito do próprio, tornada

78
Razão pela que preferiremos, neste trabalho, usar os termos literatura e cultura latina ao referimo-nos à
produção feita por estes romanos, não porque não reconheçamos a validade do argumento de Bieler, mas
porque, dados os limites temporais estabelecidos para este trabalho, essa distinção suplanta em importância
àquela.
109

possível graças às mudanças no panorama da sociedade romana ocorridas no século

anterior.

Apesar de não nos determos neste trabalho na biografia de Sêneca – sobejamente

tratada em obras como La Vie de Sénèque, de Auguste Bailly; Vie de Sénèque, de René

Waltz e Sénèque ou la conscience de l’Empire, de Pierre Grimal, além de toda uma plêiade

de historiadores, filósofos e literatos – haverá, contudo, alguns fatos que deverão ser

forçosamente mencionados, e para isso optamos por recorrer ao ligeiro esboço já traçado

por Pierre Grimal:

Sorti d‟une famille qui n‟avait d‟autre ambition que de servir, dévoué au régime
impérial, comme tous les provinciaux, qui lui devaient tout, Sènèque aimait
passionnément la vie politique. Il était profondément ambitieux, et il lutta toute sa vie
pour avoir le droit de se consacrer au service de la Cité. Mais, en même temps, il était
doué d‟une vie intérieure intense. Il était fasciné par rechercer dans la philosophie
comme une véritable initiation mystique et il est certain que son choix du Stoïcisme
fut moins dicté par sa raison que par son cœur. (GRIMAL, 1957: 35)79

Nascido, assim como seu pai, Sêneca o Retórico, em Córdova, na Espanha,

pertence à segunda geração de homens públicos romanos não nascidos em Roma, na

maioria das vezes sequer na Itália, e cuja produção intelectual busca realizar a adaptação

da identidade romana ao modelo imperial de governo, conferindo-lhe um novo formato.

É essa a geração que entroniza na capital a compreensão de que o império era maior

de que uma cidade e as regiões que dominara. Se Cícero era consciente de que a Vrbs

deveria tornar-se, cada vez mais, Orbis, a partir dessa geração, de que Sêneca é sem dúvida

o principal nome, o Orbe suplanta a Urbe, e o nome “romana” passa a designar antes a

cultura expressa em latim que aquela do Lácio, conforme Bieler nos alertou.

79
“Saído de uma família que não tinha outra ambição senão servir, devotada ao regime imperial, como todos
os provincianos, que lhe deviam tudo, Sêneca amava apaixonadamente a vida política. Era profundamente
ambicioso, e lutou toda sua vida para ter o direito de consagrar-se ao serviço da Cidade. Mas, ao mesmo
tempo, era dotado de uma intensa vida interior. Era fascinado para buscar na filosofia uma verdadeira
iniciação mística e estava certo de que sua opção pelo Estoicismo foi ditada menor pela razão que pelo
coração.”
110

Ademais, será essa a geração que realizará, visando resgatar as tradições culturais

romanas, preservadas em suas regiões de origem, um novo encontro destas tradições com o

estoicismo helênico, e, nessa tarefa, Sêneca desempenhará um papel crucial, uma vez que,

tendo sido presença constante na corte imperial durante os reinados de Tibério a Nero, e

tendo sido o preceptor deste último e governado de fato o Império durante os anos da

minoridade deste, Sêneca terá a oportunidade – tão preconizada pelos filósofos desde

Platão, e que Cícero tanto almejou – de orientar esse mesmo Império pelos princípios do

estoicismo que abraçara e que tanto defendia, como testemunham seus textos.

E de que consistiam estes textos? E por que teria Sêneca abraçado o estoicismo

como escola filosófica e tentado, através de Nero, impô-lo como norma e diretriz do

Império? Para responder corretamente a estas questões, deveremos primeiramente observar

como se construiu, ao longo dos anos, a produção textual de Sêneca.

4.4.1 O Estoico e o Trágico

Por seu trabalho intelectual, Sêneca é considerado também o maior filósofo de

língua latina, tendo como concorrentes Cícero – que tratou a Filosofia sempre pela ótica do

Direito, como afirmamos anteriormente - e Marco Aurélio – embora este tenha escrito em

grego suas Meditações. Além disso, a figura de Sêneca sobressai ante estes dois por razões

estabelecidas por Paul Veyne:

En Séneca, las consideraciones filosóficas van delante de las convicciones, o, antes


bien, no se separan de ellas, mientras que, en Cicerón, sentimos un ligero
desdoblamiento: la filosofía venía a realzar las convicciones, a manera de barniz.
Por último, el filósofo Séneca era al mismo tiempo, como Cicerón, un escritor, lo
que se reconoce en una cosa, aunque filósofos, uno y otro escribieron en latín y no en
griego. (...) Cicerón y Séneca escogieron el latín porque se sabían con capacidades de
escritor, porque querían enriquecer su literatura nacional, porque no deseaban
111

encerrarse en el medio de los especialistas, sino que apuntaban al gran público


cultivado. (VEYNE, 1993, p.31-32)80

Fica patente que o destaque de Sêneca fica devido a dois critérios distintos: suplanta a

Cícero porque este ainda usa a Filosofia como arcabouço para uma práxis que é, afinal,

jurídica, enquanto Sêneca a torna um campo autônomo de conhecimento - o que não

deixaria de ser um resultado da ação de Cícero em conferir um lugar para a Filosofia na

sociedade romana. Quanto a Marco Aurélio, a crítica fica no âmbito linguístico: ter

escolhido escrever em grego o desqualificaria como escritor latino – embora não, segundo

a categorização de Bieler já mencionada, como escritor romano. De qualquer modo, é por

estes dois motivos que o nome de Sêneca, e sua obra filosófica, são justamente lembrados

entre os maiores da Antiguidade Clássica. Todavia, há ainda, segundo Paul Veyne, uma

razão para que se coloque Sêneca no conjunto dos grandes escritores latinos: a inovação

estilística que sua prosa representa, e que é, por sua vez, mais um distintivo entre sua obra

e a de Cícero:

Una de las razones de la modernidad de su estilo: frases breves, claras, mordaces,


directas, que saben hacer accesibles algunas cuestiones a veces arduas por el medio de
uma metáfora súbita. Éste es el estilo de nuestra prosa de ideas desde Montesquieu, y
de nuestro gran periodismo. Pero en la Antigüedad ese estilo se encontraba en los
antípodas de lo que se consideraba gran estilo, a saber: de la elocuencia, de los
amplios períodos cicerónicos cuyo comienzo, a veces, ya ha olvidado el lector cuando
llega al final; no importaba: la elocuencia antigua era en general una especie de bel
canto y, como este último, atraía a incontables aficionados. Sin embargo, había
excepciones, como Demóstenes, cuyo método no consistía en encantar, mecer y
seducir, sino en proyectar sobre sus auditores un influjo nervioso que los cautivaba. El
estilo de Séneca sigue el mismo camino.
Una palabra más: pese a su claridad, Séneca debe ser tomado en serio como
filósofo; ha pasado la época en que se le consideraba un literato con barniz de
filosofía, cuyo estudio se dejaba a los especialistas en letras latinas. La claridad de su
superficie deja percibir fundamentos conceptuales muy firmes, que son los del
estoicismo griego en su versión auténtica. Séneca no fue un decadente ni un

80
“Em Sêneca, as considerações filosñficas vão à frente das convicções, ou, melhor, não se separam delas,
enquanto que, em Cícero, sentimos um ligeiro desdobramento: a filosofia vinha a realçar as convições, como
um esmalte.
Por último, o filósofo Sêneca era, ao mesmo tempo, como Cìcero, um escritor, fato que se reconhece
numa coisa, ainda que filósofos, um e outro escreveram em latim e não em grego. (...) Cícero e Sêneca
escolheram o latim porque se sabiam com capacidade de escritor, por que queriam enriquecer sua literatura
nacional, porque não desejavam fechar-se no meio dos especialistas, mas porque apontavam ao grande
público culto.”
112

vulgarizador que se dirigiera al pretendido “espíritu práctico” de los romanos.


(VEYNE, 1993, p.12)81

No que tange à categorização de sua produção intelectual, o conjunto da obra de

Sêneca que chegou até nós pode ser dividido em dois grupos; o primeiro destes, formado

pelos textos de caráter filosófico, subdividir-se-ia nos subgrupos dos textos filosóficos

propriamente ditos e o dos textos dramatúrgicos. Esta divisão, evidentemente falha, é feita

baseada no princípio de inserirmos no primeiro subgrupo aqueles textos em que o autor

fala diretamente – a um dado interlocutor – sobre as questões filosóficas, tais como

expostas e analisadas pelo estoicismo de que foi um dos mais eminentes representantes.

Podemos igualmente incluir neste primeiro subgrupo sua produção epistolar, em especial

as Ad Lucilium Epistolae Morales, artifício com que, graças à divulgação de sua

correspondência para círculos muito maiores que o de seu destinatário, Sêneca expunha a

doutrina de sua escola filosófica. Também alguns de seus poemas podem ser categorizados

neste primeiro subgrupo.

O segundo subgrupo seria composto pelas tragédias escritas por Sêneca. Sobre

estas, vale a exposição feita por Millares Carlo:

De argumento griego en su totalidad, fueron compuestas para la lectura y no para


ser llevadas a escena. Sus títulos son Hercules furens, Troades (Hecuba); Phoenissae
(Thebais); Medea; Phaedra (Hippolitus); Oedipus; Agamemnon; Thyestes y Oetaeus.
En algunos cñdices se aðade una “pretexta” intitulada Octauia, posterior a la muerte
de Nerón.
En general, se trata de piezas que no pueden resistir la comparación con las grandes
concepciones de los autores griegos que les sirvieron de modelo, por lo común

81
Uma das razões da modernidade de seu estilo: frases breves, claras, mordazes, diretas, que saber tornar
acessíveis algumas questões às vezes árduas por meio de uma súbita metáfora. Este é o estilo nossa prosa de
ideias desde Montesquieu, e de nosso grande jornalismo. Mas na Antiguidade esse estilo se encontrava nas
antípodas do que se considerava “grande estilo”, a saber: da eloquência, dos amplos períodos ciceronianos
cujo começo, às vezes, o leitor já tinha esquecido quanto chegava ao final; não importava: a eloquência
antiga era em geral uma espécie de bel canto e, como este último, atraía a incontáveis fãs. Entretanto, havia
exceções, como Demóstenes, cujo método não consistia em encantar, mover, e seduzir, mas em projetar
sobre seus ouvintes um influxo nervoso que os cativava. O estilo de Sêneca segue o mesmo caminho.
Uma palavra mais: apesar de sua clareza, Sêneca deve ser levado a sério como filósofo, passou já o
tempo em que se lhe considerava um literato com verniz de filosofia, cujo estudo se deixava para os
especialistas em letras latinas. A clareza de sua superfície deixa perceber fundamentos conceituais muito
firmes, que são os do estoicismo grego em sua versão autêntica. Sêneca não foi um decadente nem um
vulgarizador que se dirigisse ao pretenso “espírito prático” dos romanos.
113

Sófocles y Eurípides. Hay, sin duda, en ellas admirables pasajes, pensamientos


bellísimos, descripciones brillantes, coros llenos de gracia y de encanto; pero,
juzgadas en conjunto, adolecen de frialdad, de falta de intriga, reemplazada por los
relatos demasiadamente largos; las pasiones son excesivas y la inoportuna verbosidad
resta eficacia a los sentimientos que se trata de poner en juego. (MILLARES CARLO,
1995:152)82

Consideradas, pois, não só por Millares Carlo mas pela maioria dos críticos, como o

ponto fraco de sua produção, os defeitos apontados nas tragédias de Sêneca traem a

intenção do autor em novamente demonstrar, desta vez usando a fórmula do drama, as

ideias filosóficas que defendia: tratava-se, enfim, da submissão, pura e simples, do Teatro à

Filosofia.

Já o segundo grupo seria formado por um grupo de 70 epigramas – quase todos de

discutível autoria – e pela sátira Diui Claudii Apocolocyntosis, composta por ocasião da

morte de Cláudio, que nos anos iniciais de seu governo, ordenara seu exílio na Córsega.

A datação de cada obra de Sêneca em particular é tema complexo, se algumas têm a

data facilmente dedutível, sobre outras permanecem dúvidas sem solução, contudo, sabe-se

que sua produção se dá entre os anos 40 e 65 d.C., ano de sua morte; entretanto importa

mais ainda ressaltar que, mesmo sendo uma obra tão vária e dispersa entre tantos textos, o

pensamento filosófico de Sêneca apresenta – ao contrário do de Cícero, e até porque este,

apesar de seus escritos, jamais foi, a rigor, um filósofo - uma linearidade quase absoluta.

Uma vez que a concepção contemporânea de filósofo – aquele que se dedica à

especulação filosófica ou ao ensino da Filosofia - é distinta daquela em voga na

82
De argumento totalmente grego, foram compostas para leitura e não para serem encenadas. Seus
títulos são Hercules furens, Troades (Hecuba); Phoenissae (Thebais); Medea; Phaedra (Hippolitus);
Oedipus; Agamemnon; Thyestes e Oetaeus. Em alguns códices acrescenta-se uma “pretexta” intitulada
Octauia, posterior à morte de Nero.
Em geral, trata-se de peças que não podem resistir à comparação com as grandes concepções dos
autores gregos que lhes serviram de modelo, comumente Sófocles e Eurípides. Há, sem dúvida, nelas
admiráveis passagens, pensamentos belíssimos, descrições brilhantes, coros cheios de graça e encanto; mas,
julgadas em conjunto, empalidecem pela frieza, falta de intriga, substituída por relatos demasiadamente
longos; as paixões são excessivas e a inoportuna verborragia rouba eficácia aos sentimentos que trata de
representar.
114

Antiguidade, definida mesmo a partir de uma diferença fundamental na própria concepção

de Filosofia, posto que

En el mundo grecorromano, la filosofía era cuestión de sectas, como en el Lejano


Oriente; un filósofo no se interesaba en la filosofía en general, sino que era platónico o
pitagórico o epicúreo o, como Séneca, estoico. La filosofía no era materia de
enseñanza universitaria, sino un estudio sublime que atraía a aficionados ricos, como
Séneca, y que daba de vivir a preceptores privados. (VEYNE, 1993:11) 83

é válido questionarmo-nos sobre a real adesão de Sêneca à escola estoica. Adesão esta já

questionada pelo mesmo Paul Veyne, na obra que vimos citando - Séneca y el estoicismo –

e também relativizada por Pierre Grimal, que prefere defender haver em Sêneca boas doses

de ecletismo e de independência:

Sénèque est un penseur d‟obédience stoïcienne. Il le proclame bien souvent, et se


vante d‟appartenir à l‟école la plus “virile”, et qui a porté le plus haut l‟idéal de la
Vertu. Toutefois, si sa pensée trouve appui dans le Stoïcisme, lui-même ne se
considère pas comme esclave de l‟Ècole. Il nous en avertit plusieurs fois, et affirme sa
défiance des formules proposées par tel ou tel maître du Portique. Nous le voyons,
dans le traité de la Vie heureuse, par exemple, s‟amuser à opposer les unes aux autres
toutes les définitions stoïciennes du bonheur, à montrer leur équivalence, pour en fin
de compte, en proposer une autre, qui lui est personnelle.
Souvent, aussi, il adopte des sentences épicuriennes. Les premières Lettres à
Lucilius se terminent toutes par quelque formule empruntée à l‟école rivale, dont il
affirme avec malice la vérité et la profondeur.
Pour toutes ces raisons, l‟on a souvent considèré Sènèque comme un éclectique
et un philosophe, sinon entièrement original, du moins indépendant. (GRIMAL, 1957:
40-1)84

Apesar, contudo desta aparente independência, estudos mais minuciosos do pensamento

senequiano logo demonstrarão que Sêneca diverge do estoicismo apenas naquilo que lhe é

83
No mundo greco-romano, a filosofia era uma questão de seitas, como no Extremo Oriente; um filósofo não
se interessava pela filosofia em geral, mas era platônico ou pitagórico ou epicúreo ou, como Sêneca, estoico.
A filosofia não era matéria de ensino universitário, mas um estudo sublime que atraia a aficcionados ricos,
como Sêneca, e que dava emprego a preceptores privados.
84
Sêneca é um pensador de obediência estoica. Ele o proclama frequemente, e se vangloria de
pertencer à escola mais “viril” e que elevou mais alto o ideal da Virtude. Entretanto, se seu pensamento
encontra apoio no Estoicismo, ele mesmo não se condidera um escravo desta escola. Ele nos adverte muitas
vezes,e afirma sua desconfiança das fórmulas propostas por tal ou qual mestre do Pórtico. Nós vemos, no
tratado Sobre a Vida Feliz, por exemplo, divertir-se a opor umas às outras todas as definições estoicas da
felicidade, a mostrar sua equivalência, para ao fim, propor outra, pessoal.
Frequentemente, também, ele adota sentenças epicúreas. As primeiras Cartas a Lucílio terminam
sempre por alguma fórmula emprestada da escola rival, que ele afirma com malícia a verdade e a
profundidade.
Por todas essas razões, frequentemente considerou-se Sêneca como eclético e um filósofo, senão
inteiramente original, ao menos independente.
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secundário: a dialética, o excesso de minúcias e sutilezas - o que é, aliás, uma atitude bem

coerente com o pragmatismo romano. Logo, vale mais ater-se ao alerta emitido por

Grimal: “ ... il convint de ne pas être dupe des apparences, et surtout, de notre

connaissance, malheureusement fragmentaire, des sources de Sénèque. L‟orthodoxie

stoïcienne pèse sur lui bien plus qu‟il ne le dit.” (GRIMAL, 1957: 41)85

Entretanto, como pensador, Sêneca também acrescenta algo de seu à moral estoica:

a consciência de que o alcance dessa moral - por quem se dedique ao estoicismo -

significará um ato deliberado e voluntário de construção de uma harmonia que deverá

buscar consonância com a natureza, isto será demonstrado na seguinte citação – longa

porém necessária – de Aubenque et al.:

A moral estoica foi entretanto, desde a Antiguidade, tachada de incoerência. Viu-se


nela um conflito latente entre uma inspiração naturalista, que nos prescreve viver em
conformidade com a natureza, e uma inspiração precursoramente “formalista”, que
tenderia a definir a vida do sábio por sua harmonia interna, ela própria adquirida ao
preço de uma „indiferença” geral às circunstâncias exteriores. De fato, não há
contradição entre essas duas aproximações se se quer com efeito lembrar-se que a
própria natureza é concebida pelos estoicos como um todo solidário e harmonioso, de
maneira que, passando da harmonia representada da natureza à harmonia efetivamente
realizada em si mesmo, o sábio nada mais faz, para retomar uma expressão de V.
Goldschmidt, que realizar a mesma “estrutura” em diferentes níveis.
Não deixa de ser verdade que os estoicos hesitaram sobre o como dessa passagem.
O ideal teria sido deduzir a regra prática de uma interpretação da ordem do mundo.
Mas a ordem do mundo não se deixa sempre facilmente reconhecer no detalhe; o
estoicismo exige então de nós um ato de fé na racionalidade oculta do universo,
completado por uma técnica do uso das representações: trata-se, com efeito, de
considerar como indiferente o que é em si explicável, logo racional, mas que não
sabermos ainda explicar: a doença, o sofrimento, a morte etc. Essa técnica provisória
corria o risco de se enrijecer num indiferentismo generalizado, parente próximo do
ceticismo. É o que sucedeu, desde a segunda geração do estoicismo, com a dissidência
de Ariston de Quios (primeira metade do séuclo II a.C.), que ensinava que a dialética e
a física, já que a virtude é o único bem, nada mais são que curiosidades vãs.
(AUBENQUE et alii, 1981:178-180)

Este reconhecimento, por parte de Sêneca, de que a vida moral consiste em dominar

uma natureza humana sobre a qual a paixão exerce um poder de atração ainda mais

sedutor, será a chave que nos possibilita entender diversos dos seus textos, como De Vita

85
“convém não se enganar pela aparências, e sobretudo, por nosso conhecimento, infelizmente fragmentado,
das fontes de Sêneca. A ortodoxia estoica pesa sobre ele mais do ele assume.”
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Beata, De Tranquilitate Animi, De Breuitate Vitae, etc. Também nos esclarece a razão de

haver-se decidido por, repisando as pegadas de Cícero, defender o valor do estoicismo

como escola destinada a capitanear seu intento de recuperação das tradições culturais

romanas: como Cícero já demonstrara, havia, entre a natureza desta escola e a das

tradições, uma identidade de princípios que bastava apenas expor sob a nova roupa