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O estudo da História, pelo menos o interesse pelo tema, é relevante no processo de formação

intelectual, conferindo desde logo conhecimento factual – que permite entender um pouco
melhor de onde vimos e como se chegou onde se chegou – mas também oportunidades para
pensar criticamente e, sobretudo, analisar o presente e pensar o futuro em relação a algo,
neste caso a eventos passados.
O filósofo e político irlandês Edmud Bruke afirmou que “um povo que não conhece a sua
história está condenado a repeti-la”. No caso nacional, assistimos serenos a exemplos desta
máxima demasiadas vezes – serenos em média, ressalvo, pois há, sobretudo nas redes sociais,
os que se escandalizam e que contrabalançam com os “avençados” de serviço que tudo
aceitam e justificam, e fora das redes os dias desfiam uns depois dos outros, sendo o efeito
global médio da indignação praticamente nulo.
Quando observamos eventos passados é frequente encontramos momentos “óbvios” (faço o
paralelismo com os momentos “clutch” no desporto em que, geralmente nos últimos minutos
de um jogo, se reúne a força e a concentração necessárias para se ter sucesso e
eventualmente mudar o resultado do jogo), onde parece fácil perceber como tudo vai
redundar menos para os intervenientes desses eventos que não tomam as atitudes corretas e
deixam que a entropia (o grau de desordem) aumente, no fundo que os referidos eventos
sigam o seu ritmo rumo ao desastre. Face a estas situações não é invulgar arrogarmo-nos um
certo grau de superioridade, fantasiando que nós ou um qualquer contemporâneo, submetido
às mesmas situações, tomaria atitudes muito mais sérias e responsáveis, inteligentes até.
Retive, recentemente, alguns bons exemplos no magnifico livro A Tragédia de um Povo, de
Orlando Figes, de onde peço emprestado o título para este texto, no qual parece simples e
fácil, a posteriori, perceber o verdadeiro desastre político e social em curso na Rússia em finais
do século XIX e inícios do século XX, que vai resultar na criação da URSS, e apresentar diversos
pontos de inflexão, com atitudes a serem tomadas. Num desses exemplos, e já em pleno
período da Revolução Russa, o embaixador britânico no império russo relata o curioso caso de
um deputado menchevique do soviete de Moscovo, que em 1917, num encontro de
regimentos, discursou mecânica e inflamadamente para uma multidão sobre a necessidade de
paz, de toda a terra ser entregue aos camponeses e das vantagens de uma república sobre a
monarquia. Os soldados receberam o discurso com saudações calorosas e um deles terá
gritado, “Queremos eleger-te como Czar”, ao que os restantes aplaudiram. Sintetizou o
deputado: “Recusei a coroa Romanov e fui-me embora com a sensação pesada de como seria
fácil a qualquer aventureiro ou demagogo tornar-se o mestre desta gente simples e crédula.”
Esta passagem relacionada com a Revolução Russa de 1917 poderia ser, mais de um século
depois, perfeitamente aplicada a Portugal. Um povo simples e crédulo, damos a mão a quem
se afigure afável e nos faça belas promessas – um médico de família para cada um de nós ou
ainda habitação condigna para todos até 2024, para citar dois exemplos. Muitos outros
poderiam ser dados, englobando diversos aspetos económicos e sociais. Não que as promessas
não sejam boas, longe disso. Quem não ficaria genuinamente contente em viver num país
onde todos tivessem um médico de família? Ou existisse habitação digna para todos? O que
vamos assistindo, contudo, é que à semelhança de uma revolução que prometeu tirar o poder
de uns quantos para o partilhar entre todos, os anos passam e tudo permanece igual. Ou piora,
inclusivamente – tanto no caso russo de 1917 em diante, como a história se encarregou de
mostrar, como no caso português, com os médicos de família, por exemplo, onde o nível de
prestação de serviços tem piorado nos últimos anos, sem que daí advenham consequências de
maior para os gestores e decisores. E refiro-me, claro está, ao ponto de vista da maioria.
(…)
Acredito que no futuro estes nossos tempos serão analisados sob a mesma lupa do “seria tão
simples ter mudado”. Temos muito menos desculpas do quem nos antecedeu, dado o acesso a
informação sem precedentes na história, saibamos procurar, filtrar e agir criticamente sobre os
resultados. É a tragédia de um povo que se vai repetindo, amarrado a uma triste sina de
periferia e indigência por meia dúzia de promessas ocas e vãs que se vão renovando. E o
derradeiro golpe, que não andará muito longe, será quando perceberem que para nos
manterem com o cabresto nem precisam de prometer nada.

https://observador.pt/opiniao/a-tragedia-de-um-povo/

A educação do patriotismo
Ter sido lembrado da imagem do patriotismo, indistinguível da vontade da liberdade, é já um
bem que todos devemos aos ucranianos. Não tínhamos sido educados, aqui neste cantinho,
para esta experiência
Uma das coisas sobre as quais a formidável resistência ucraniana à invasão russa nos faz
pensar é a questão do patriotismo. E é algo que nós (incluo-me, é claro, a mim neste “nós”)
não nos encontramos particularmente à-vontade para pensar. Primeiro, porque a ideia de
patriotismo nos aparece como maculada pela ideia de nacionalismo, que é tudo menos bem-
vinda aos olhos da maioria das pessoas. Depois, e fixando-nos agora em Portugal, as formas
sortidas de “patriotismo” que por cá nos vêm mais facilmente à cabeça, desde o final do século
XIX até aos nossos dias, não se recomendam por aí além. A reacção ao Ultimato inglês de 1890,
que incluiu o horrendo Finis patriae de Guerra Junqueiro, foi um tristíssimo exemplo de
inferioridade e inconsequência que, de resto, amiúde ressurge, ainda mais ridículo, a propósito
de querelas improváveis e menores. O patriotismo do salazarismo foi uma construção artificial
destinada a manter o país numa imobilidade arcaica e imune ao mundo em seu redor. O
patriotismo do futebol – que atingiu os píncaros quando Scolari foi seleccionador nacional –
representa uma paródia que só uma grande inconsciência colectiva e a falta de vergonha das
elites permite. E, por fim, o patriotismo de Marcelo – “quando queremos, somos os melhores
do mundo”, com as suas múltiplas variantes – é de uma infantilidade de bradar aos céus, que
espantaria até um cidadão do Burkina Fasso. Se ele fosse visitar Uagadugu e elaborasse sobre
o tema, os nativos fartar-se-iam de rir.
A associação entre patriotismo e nacionalismo é, se nos permitirmos uma simplificação
legítima, facilmente contrariável. Os grandes teóricos do patriotismo – o Maquiavel
republicano dos Discursos sobre a primeira década de Tito Lívio e, mesmo que a interpretação
mais corrente o coloque do lado do nacionalismo, o Fichte dos Discursos à nação alemã, por
exemplo – mostraram amplamente que o patriotismo se concebe em estreita relação com a
exigência de liberdade, algo que não acontece, a não ser de forma perfeitamente retórica, com
o nacionalismo puro e duro. É, de resto, algo que salta aos olhos na luta dos ucranianos contra
o nacionalismo russo de Putin. O amor da liberdade é um ingrediente necessário do
patriotismo. De que liberdade, antes de mais, se trata? É uma pergunta importante, porque
“liberdade” é uma palavra que pode ser entendida em vários sentidos. Trata-se da liberdade
de um povo se dar, na medida do possível, as suas próprias leis, que não devem ser ditadas por
outros povos, e de deliberar em conjunto, mais uma vez na medida do possível, sobre o
caminho que quer seguir. É esta liberdade que se encontra na raiz de todas as liberdades
políticas, que, sem ela, não podem substantivamente existir.
Aceitemos esta distinção entre patriotismo e nacionalismo, que é, aos meus olhos, justa. O
problema é que ela permanece muito abstracta e não nos oferece qualquer conteúdo vivencial
da palavra “patriotismo”, isto é, não nos indica nada sobre a maneira de sentir patriótica nem
sobre o tipo de situações em que ela pode eclodir. Ora, há na literatura portuguesa um autor
que, apesar de vários e inevitáveis equívocos, conseguiu colocar esta última questão de um
modo sensível. Estou a falar de Eça de Queiroz.
Toda a gente se lembra da passagem d’Os Maias onde se descreve o memorável jantar
organizado por João da Ega no Hotel Central em honra do Cohen. Às tantas, Ega, levado pelo
álcool e pelo seu entusiasmo de demagogo, proclama que a única esperança de salvação da
pátria residiria numa invasão espanhola. Levar “uma sova tremenda”, uma “medonha tareia”,
ressuscitaria o “espírito público” e o “génio português”. A “catástrofe” levar-nos-ia a renascer
“novos em folha”, e “recomeçava-se uma história nova, um outro Portugal, um Portugal sério
e inteligente, forte e decente, estudando, pensando, fazendo civilização, como outrora”. Da
enunciação desta terapia de choque, a conversa passa ebriamente para a organização da
resistência à invasão purificadora. Tomás de Alencar prontifica-se para o combate e para o tiro
aos galegos e Dâmaso Salcede, como seria de esperar, anuncia que “se as coisas chegassem a
esse ponto, se se pusessem assim feias, eu cá, à cautela, ia-me raspando para Paris”.
O cómico da argumentação foi, é claro, tomado como indício do anti-patriotismo de Eça,
como, de resto, a totalidade d’Os Maias. É muito elucidativo ler a recepção imediata do livro,
já em 1888, na imprensa. Várias das críticas censuram a falta de patriotismo de Eça. Não era
coisa nova. Uma polémica célebre com Pinheiro Chagas, em 1880 e 1881, recolhida
postumamente nas Notas Contemporâneas, gira exactamente em torno deste tema.
Como é natural, a posição de Eça é mais complexa. Num conto contemporâneo da escrita d’Os
Maias, intitulado A Catástrofe, Eça repete o tema da invasão (o conto, na edição dos Livros do
Brasil, vem no volume d’O Conde d’Abranhos). Ao contrário do que acontece n’Os Maias, em
que as opiniões proferidas no jantar do Hotel Central funcionam claramente como expressão
do ponto de vista das personagens, A Catástrofe fica-se pela descrição da situação – a invasão
e a vida sob a ocupação –, sendo que a única verdadeira personagem é meramente simbólica:
a sentinela estrangeira que vigia o Arsenal. Só adiante no conto se sabe que a guerra fora
iniciada pela Alemanha e que nem a Inglaterra nos tinha podido salvar. É provável que a
sentinela do Arsenal seja espanhola, embora isso fique indeterminado. Mas a consequência da
invasão, como n’Os Maias, é, como Ega exuberantemente queria, o nascimento de um
patriotismo que antes não existia. Celebram-se as grandes datas da história de Portugal na
privacidade das casas e espera-se que a geração crescida sob a ocupação possua valores mais
altos do que aquela que presenciou a perda da independência. E aqui sem gozo nenhum.
Dizendo o mesmo, é o avesso trágico da conversa do Hotel Central.
Provavelmente, o Eça d’A Catástrofe tem razão num ponto, que, de resto, mencionei atrás
neste artigo: o patriotismo, como coisa distinta do nacionalismo, só existe verdadeiramente
quando é animado pela paixão da liberdade, maximamente quando essa paixão se manifesta
no confronto com quem a quer oprimir. É isso que faz dele, aos nossos olhos, algo de heróico,
grandioso e belo, que nos comove, como nos comove a coragem do povo ucraniano,
simbolizada pelo presidente Zelensky. Algo que escapa por inteiro à legião de pobres-diabos,
conhecidos ou anónimos, de esquerda e de direita, Dâmasos Salcede encapotados que não
perdem uma oportunidade para se enternecer com a força de Putin – recomenda-se uma
psicanálise – e de ridicularizar Zelensky, com indisfarçável ódio.
Mas dizer isto é tudo menos cair em qualquer “romantismo” na matéria. O patriotismo e o
amor da liberdade numa situação de guerra têm um preço imenso que se paga em terríveis
privações, sofrimento e morte, como está à vista de toda a gente. São uma maldição gloriosa
que não devemos invejar, até porque tal inveja seria uma forma de desrespeito pelo
inominável sofrimento daqueles sobre os quais a maldição heróica tombou. Basta que,
ajudando-os de todas as maneiras possíveis, possamos ver claramente o significado maior do
patriotismo e respeitá-lo e admirá-lo sem a mitigação que a esperteza dos pobres-diabos, que
confundem a fascinação suscitada pela força bruta com um exercício de liberdade do
pensamento, nos aconselha. Ter sido lembrado da imagem viva do patriotismo, indistinguível
da vontade da liberdade, é já um bem que todos devemos aos ucranianos. Não tínhamos sido
educados, aqui neste cantinho, para esta experiência.
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Alguém (ainda) aguenta?


Diante deste cenário repleto de personagens e situações simultaneamente cómicas, amargas,
mentirosas, egoístas, desprezíveis, talvez seja oportuno colocar a questão: alguém aguenta
tudo isto?
18 jul 2021

Nesta pequena porção de terra à beira-mar plantada e de beleza inigualável – com 943
quilómetros de costa e que no ano de 2043 celebrará 900 anos de soberania –, a realidade
tangível combinada com um espaço político sui generis continuam hoje a dar alguma razão a
Júlio César, que já sem paciência e arrependido por aqui ter posto os pés, alegadamente
desabafou: “Há nos confins da Ibéria um povo que não se governa nem se deixa governar!”
É um facto histórico que foi – mais uma vez – uma grave crise que nos levou à necessidade de
nos abrirmos ao mundo (séc. XIV), e a solução foi encontrada na expansão ultramarina, que
aliada a condições geográficas especiais e a conhecimentos náuticos e científicos de última
linha, nos incitaram a rasgar novos horizontes e a dar a conhecer ao Mundo outros e
inexplorados “mundos”, mas também a acumular poder e riquezas que nunca havíamos tido e
que rapidamente foram namoradas e invejadas pelas grandes potências europeias daquele
período (e posteriores). Creio que seria aqui imperdoável não fazer uma referência à epopeia
lusa pelos vários “impérios” ultramarinos, desenhados quer pelas nossas emblemáticas
embarcações quer por gentes (e um povo) com visão, ambição e coragem inigualáveis!
Porém, infortunadamente o fado das crises não nos larga e nas últimas décadas o país (e os
Portugueses) vivem e suportam crise após crise. A longa estagnação da nossa já débil
economia – para não referir uma linha de convergência com a média europeia que foi
interrompida na passagem milénio e que parece hoje “descartada” – continua vigente e
agrava-se a cada dia que passa com a pandemia da Covid-19. Recordo, goste-se ou não, que
esta foi uma pandemia para o qual não nos preparámos convenientemente
(embora antecipada pela OMS em 2018, mas depois ignorada), que surgiu oficialmente a 17
novembro de 2019, em Wuhan, e só perto de quatro meses depois chega ao nosso território e
onde já ceifou já mais de 17 mil vidas e contabiliza perto de 900 mil infetados. Se em abril de
2020 se falava, cá e lá fora, de um “milagre português”, o erro de querer salvar e celebrar o
Natal levou-nos a um pesadelo (e tragédia) em finais de janeiro de 2021, quando atingimos
máximos diários de infetados (16432) e de mortos (303), e passamos a liderar o ranking dos
países com mais novos casos e novas mortes por milhão de habitantes. Mais uma vez,
ninguém assumiu qualquer responsabilidade e reconheceu as imensas fragilidades do SNS, e
misturada com incoerências, oportunismos e medidas ziguezagueantes (algumas inclusive de
incerta constitucionalidade), até se tentou passar a culpa para o comportamento
“desapropriado” dos portugueses.
Ora, qualquer cidadão minimamente esclarecido e atento ao estado e evoluir do regime – mas
sobretudo àquilo que as televisões seletivamente lhe servem nesta “sociedade do espetáculo”
–, percebe que algo de muito sério está a passar-se e que as fabulações por parte do poder
político são cada vez mais cínicas e desavergonhadas. Para os líderes políticos e altos
representantes do Estado, o importante é manter a fachada e dissimular ou evitar prestar
contas, isto é, assumir responsabilidades perante qualquer problema, insucesso ou fiasco…
ainda por mais se tal se traduzir em vidas perdidas ou desfeitas, mais desemprego, miséria ou
novos dramas sociais, em suma, o essencial é conservar o poder (e a ordem pública), nem que
para isso se sacrifique o valor (e a cultura) da transparência.
É indesmentível que depois da crise financeira que eclodiu em 2008 nos EUA, com a falência
do quarto maior banco de investimento, o Lehman Brothers – crise que depressa atravessou o
Atlântico com “ondas de choque” em países como a Grécia, Irlanda, Chipre, Islândia, Espanha e
Portugal, em particular no nosso sistema financeiro graças à sua elevada exposição a derivados
“tóxicos’”(e em instituições como a Caixa Geral de Depósitos, BCP, BES, Banif e BPI) –, os
Portugueses foram chamados a pagar os erros e devaneios de administradores e gestores (e a
recapitalizar bancos), mas igualmente as omissões ou graves falhas na regulação e supervisão
a nível nacional e comunitário. Desde esse singular período ficou demonstrado que exigir mais
informação aos governantes é fundamental (assim como escrutinar as relações promíscuas
entre o poder político e o poder financeiro), mas, como é costume, notáveis e “intocáveis”
assobiaram para o lado e a culpa recaiu, mais uma vez, sobre os do costume, aqueles que até
hoje honraram encargos com as ajudas do Estado à banca em mais de 21 mil milhões de euros.
Mas se esta foi a primeira crise financeira, económica e social do novo século e milénio – que
estamos e vamos continuar a pagar! – nas últimas décadas os Portugueses têm assistido,
suportado e providenciado um conjunto de casos (onde habitualmente sobressai o vocábulo
“corrupção”) que vão saturando e corroendo a confiança dos cidadãos nos eleitos e nas
instituições. Por limitação de espaço, apenas a referência a alguns dos mais mediáticos das
últimas décadas: o caso “Tecnoforma”, “Bragaparques”, “Portucale”, “BPN”, “Freeport”,
“Vistos Gold”, “Monte Branco”, o caso BES e a célebre “Operação Marquês”, “Banif”, as “golas
antifumo”, o caso “Tancos”, a morte de Ihor Homeniuk e todo o caso “SEF”… e mais
recentemente o “Russian Gate”, na Câmara Municipal de Lisboa, sempre envolvendo
destacados ou ilustres cidadãos, alguns deles “pessoas politicamente expostas” ou até mesmo
titulares (ou ex-titulares) de cargos públicos e políticos.
Naturalmente, perguntamos: qual o efeito de tudo isto? Sem dúvida que é diverso, mas
podemos talvez destacar duas ou três ideias que prevalecem no espírito dos Portugueses: a
primeira é que o Estado está capturado por um conjunto de interesses e alguns partidos
políticos; a segunda é que o poder político está “combinado” com o poder financeiro e vice-
versa; a terceira é que a esfera de ação do Estado em Portugal é cada vez maior e o cidadão
comum goza cada vez menos de liberdade e é sucessivamente chamado a pagar falhas/erros
de terceiros. Foi assim bem recentemente com os cortes nos salários e pensões, e sê-lo-á,
muito provavelmente, também num futuro não muito longínquo se não forem bem
aproveitados os milhões da bazuca europeia na implementação do nosso Plano de
Recuperação e Resiliência (PRR). Diante deste cenário repleto de personagens e situações
simultaneamente cómicas, amargas (ou até bizarras), imorais, malandras, mentirosas, egoístas,
atrevidas… mas também desprezíveis, talvez seja oportuno colocar uma última questão:
alguém (ainda) aguenta tudo isto? Fernando Ulrich, atual “chairman” do BPI, deu-nos a
resposta em 2012, quando o povo aguentou a austeridade de um governo que desejou
ir muito para “além da troika”: “Ai aguenta, aguenta!”.
https://observador.pt/opiniao/alguem-ainda-aguenta/

A batalha
Lembrando Aljubarrota, lembremos também o que a falta de sensibilidade à História e à
memória, a desatenção ao povo e a aceitação passiva da “legitimidade reinante” podem
trazer.
Toda a gente sabe que as identidades nacionais não são graníticas nem estão fechadas a
interpretações e a reinterpretações; mas ninguém parece saber, ou querer saber, que o
processo que está em curso não é a sua “reinterpretação”: é a sua estratégica desconstrução e
diluição num tolerante todo transnacional, mediante o contrito cancelamento de um “passado
de opressão e violência”. Ora, daqui, poderá vir tudo menos a anunciada “libertação do jugo
das pertenças” e a insinuada paz na Terra entre “a população” de boa vontade.
Num tempo de leviandade e ignorância em que, em nome de grandes e fluidos princípios
humanitários, se faz uma guerra silenciosa mas impiedosa à História e às identidades nacionais
– um tempo particularmente permeável à ilusão de que as declarações universais das Nações
Unidas ou o crescente rol de direitos da União Europeia são mais importantes para a defesa
das liberdades e dos interesses dos cidadãos do que a independência das nações – a memória
da História, da nossa História tornou-se num bem essencial.
Conhecer, reconhecer, recordar, os momentos de nascimento, de risco e de consolidação da
nossa independência não será, por isso, um exercício fútil.
Para nós, Portugueses, Aljubarrota é um desses momentos fundacionais, um momento de
risco e de consolidação do que somos, ou do que também somos e também nos determina. Ou
do que não quisemos então ser.
Nos finais do século XIV, com a independência em risco depois da morte de D. Fernando, o
momento era de crise.
Como quase todas as crises de poder medievais, a crise de 1383-1385 começava por ser uma
crise de legitimidade e de sucessão dinástica. D. Fernando não tinha herdeiro varão, mas tinha,
do seu casamento com Leonor Teles, uma filha, D. Beatriz, prometida ao rei de Castela, D. João
I. O Tratado de Salvaterra de Magos, de 2 de Abril de 1383, ratificava a promessa e, numa série
de cláusulas conformes com correcção político-jurídica do tempo, entregava Portugal a
Castela.
E recomeçou a guerra entre Portugal e Castela, embora a guerra quase fosse o estado natural
das coisas entre os Estados medievais e, dentro deles, entre feudos e clãs. A guerra que então
começava era também um episódio da Guerra dos Cem Anos, entre franceses e ingleses, e nela
também pesava a divisão da Igreja, com um Papa em Roma e outro em Avinhão.
No reinado de D. Fernando, as guerras com Castela tinham sido sucessivas e a terceira correra
mal para Portugal; daí o Tratado de Salvaterra – uma tentativa de reequilíbrio, negociada na
mó de baixo. D. Fernando morre em Outubro de 1383, pouco depois do Tratado, e Leonor
Teles, a viúva, fica regente.
O Conde de Andeiro, principal conselheiro da Rainha-Regente e pró-castelhano, é então morto
por D. João, Mestre de Aviz, e por outros patriotas. D. João de Castela volta a invadir Portugal
em 1384 e Nun’Álvares derrota os castelhanos nos Atoleiros. E em 1385, nas segundas Cortes
de Coimbra, João das Regras, depois de demonstrar a ilegitimidade de todos os pretendentes –
D. João de Castela, os Infantes D. João e D. Dinis, filhos de D. Pedro e Dona Inês de Castro, e D.
João Mestre de Avis, filho natural de D. Pedro e de D. Teresa Lourenço –, persuade as Cortes a
aclamar o Mestre, “de Pedro único herdeiro/ Ainda que bastardo, verdadeiro” (como depois
dirá Camões). E fá-lo em nome de uma nova legitimidade identitária, numa decisão pioneira de
reivindicação proto-nacional que se afasta do direito feudal, favorável ao Rei de Castela, e da
legitimidade reinante, que levava a grande nobreza a apoiar Castela (aprendi com Martim de
Albuquerque que em 1383-1385 a divisão das elites se dava entre os chefes das grandes casas
e os bastardos e filhos segundos).
Em Coimbra – com o apoio político e jurídico de João das Regras – funcionou a dupla D. João
Mestre de Avis/Nuno Álvares Pereira, dupla que vai ser decisiva para a vitória. De resto,
Nun’Álvares terá também sido bastante persuasivo nas Cortes, apresentando-se em Coimbra
com um séquito de homens armados, por via das dúvidas e dos duvidosos.
Quando o Rei de Castela vem reivindicar os seus direitos pela força, invadindo Portugal na
Primavera de 1385, esta dupla já está consolidada. A avançada castelhana pela Beira Alta sofre
a derrota de Trancoso, mas é em Aljubarrota que tudo se joga.
Da batalha, temos os relatos de dois cronistas da época – Froissart e Lopez de Ayala –,
a Crónica do Condestabre e, algumas décadas depois, a de Fernão Lopes. Há também cartas de
D. João de Castela a cidades de Espanha, a explicar a batalha e a derrota. Modernamente,
sobretudo à volta das “covas do lobo” e das obras de defesa dos Portugueses, que teriam
armadilhado a investida castelhana, há uma polémica – aberta por Afonso do Paço, com os
contributos de Alcide de Oliveira, Gastão de Melo Matos, Salvador Arnault, Nuno Valdez dos
Santos e outros – que, mais tarde, João Gouveia Monteiro veio esclarecer.
Mas o que mais aqui se destaca é a decisão de Nun’Álvares de dar batalha, e batalha decisiva,
e de para isso fazer as preparações necessárias, que incluíam as tais disposições defensivas no
terreno. Bem pelo contrário, e como conta Ayala, do lado castelhano dominou a arrogância, o
menosprezo, ou mesmo o desprezo, pelos Portugueses, dos orgulhosos senhores castelhanos
e dos muitos nobres portugueses passados para o lado castelhano.
E foi a batalha, com os resultados que se conhecem. Como em outras grandes batalhas antigas
(Canas, por exemplo), a decisão foi rápida. Quebrada a linha da frente castelhana, começou a
debandada e o massacre dos vencidos.
A estratégia seguida em Aljubarrota por Nun’Álvares não era original: tinha sido inaugurada
por Eduardo III e pelos ingleses nas batalhas de Crécy e Poitiers na Guerra dos Cem Anos e era,
fundamentalmente, uma adaptação inteligente e realista da táctica aos recursos humanos e
materiais disponíveis. Os franceses eram mais numerosos e tinham uma cavalaria superior. Por
isso, os ingleses escolheram uma batalha a pé, com os arqueiros a cobrir a infantaria, em
posições vantajosas, e ganharam em Crécy, em 26 de Agosto de 1346. Dez anos depois, foi a
vez do Príncipe Negro, filho de Eduardo III, vencer o rei de França, em Poitiers.
Nun’Álvares tinha, com certeza, conhecimento destes sucessos. Havia também uma
colaboração próxima com os ingleses: as cidades marítimas de Lisboa e Porto eram ligadas
comercialmente a Inglaterra e tinham tomado partido pelo Mestre. De Inglaterra tinham
também vindo umas centenas de arqueiros, que alinharam em Aljubarrota e que foram
decisivos.
Quando, ainda na instrução primária da “longa noite fascista”, estudei História de Portugal, os
castelhanos eram 32 mil e os portugueses 7 mil. Depois li no Oliveira Martins que alguns
desses castelhanos eram não-combatentes – parte do imenso trem logístico que seguia o
exército e que, com a pilhagem, o abastecia –, o que baixava o número de inimigos no terreno
para uns 20 mil, enquanto o dos portugueses subia ligeiramente para cerca dos 10 mil.
Entretanto, João Gouveia Monteiro fez o estudo crítico da “Batalha Real” e a Fundação de
Aljubarrota, instituída graças a um significativo legado de António Champalimaud, continua a
estudar e a divulgar Aljubarrota às novas gerações.
Independentemente dos números e do ineditismo da estratégia, o mais importante, desde o
início da crise, é a vontade de liberdade e de independência dos Portugueses (estimulada pelo
tratamento que os castelhanos tinham dado ao povo nas invasões do reinado de D. Fernando);
ou o facto de essa vontade colectiva de resistência ter sido bem interpretada, assumida,
enquadrada e guiada por uma dupla de líderes – D. João, Mestre de Avis, e Nuno Álvares
Pereira – com a assistência jurídica e institucional de João das Regras.
Aljubarrota foi o choque da determinação portuguesa com a ambição castelhana de unificar a
Península. Ambição que, 200 anos depois, com Filipe II, triunfaria – mas que seria outra vez
vencida em 1640 e nas campanhas da Guerra da Restauração. Até hoje.
E no entanto, há uns anos, em nome de considerações economicistas, cancelou-se o feriado
que lembra esse 1º de Dezembro de 1640, o feriado em que se celebra ou devia celebrar a
nossa secular vontade de independência. E não foi um governo de esquerda que o cancelou.
Lembrando hoje Aljubarrota, lembremos também que a falta de sensibilidade à memória e à
História, a falta de coragem e de liderança e a aceitação passiva e acrítica da dependência, da
“legitimidade reinante” e da “modernidade transnacional” costumam anteceder tudo o que é
invasão, saque, ocupação, cancelamento.
https://observador.pt/opiniao/a-batalha/

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inclusao-dos-judeus-lisboetas/

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