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O ESTADO

O Estado
Sua História e Desenvolvimento Vistos Sociologicamente

Franz Oppenheimer

1ª Edição
O Estado: Sua História e Desenvolvimento Vistos Sociologicamente
Franz Oppenheimer
Editora Konkin, 1ª Edição
Email: contato@editorakonkin.com.br
Título Original: Der Staat
Título em Inglês: The State: Its History and Development Viewed Sociologically

Coordenação Editorial
Alex Pereira de Souza

Tradução e Revisão
Alex Pereira de Souza, Gabriel Camargo, Hiel Estevão, José Aldemar, Vitor Gomes

Capa
Gabriel Teixeira Pereira

Diagramação
Alex Pereira de Souza

Licença
Domínio Público. Esse livro está livre de restrições de autor e de direitos conexos.

ISBN
978-65-999192-6-8 (versão impressa) | 978-65-999192-7-5 (versão digital)
Sumário
O Homem (1864—1943) ............................................................ 7
O Livro (1908/1929) ................................................................... 7
Prefácio do Autor à Segunda Edição Americana .......................11
Prefácio do Autor à Segunda Edição Alemã ............................. 21
Introdução ................................................................................. 25
(a) As Teorias do Estado ....................................................... 25
(b) A Ideia Sociológica do Estado......................................... 29
I. A Gênese do Estado ............................................................... 33
(a) Meios Políticos e Econômicos ........................................ 34
(b) Povos sem Estado: Caçadores e Agricultores ................. 36
(c) Povos precedendo o Estado: Pastores e Vikings ............. 39
(d) A Gênese do Estado ......................................................... 49
II. O Estado Feudal Primitivo ................................................... 67
(a) A Forma de Domínio ....................................................... 67
(b) A Integração .................................................................... 70
(c) A Diferenciação: Teorias de Grupo e Psicologia de Grupo
.............................................................................................. 72
(d) O Estado Feudal Primitivo de Grau Superior ................. 79
III. O Estado Marítimo.............................................................. 89
(a) Comércio nos Tempos Pré-Históricos ............................. 89
(b) O Comércio e o Estado Primitivo ................................... 97
(c) A Gênese do Estado Marítimo ....................................... 100
(d) A Essência e o Desfecho dos Estados Marítimos .......... 109
IV. O Desenvolvimento do Estado Feudal ...............................119
(a) A Gênese da Propriedade Fundiária ...............................119
(b) O Poder Central no Estado Feudal Primitivo ................ 123
(c) A Desintegração Política e Social do Estado Feudal
Primitivo .............................................................................. 128
(d) A Amalgamação Étnica .................................................. 141
(e) O Estado Feudal Desenvolvido...................................... 145
V. O Desenvolvimento do Estado Constitucional ................... 149
(a) A Emancipação do Campesinato.................................... 150
(b) A Gênese do Estado Industrial ....................................... 152
(c) As Influências da Economia Monetária ......................... 156
(d) O Estado Constitucional Moderno ................................ 163
VI. A Tendência do Desenvolvimento do Estado .................... 173
O Homem (1864—1943)
Franz Oppenheimer, um dos tantos médicos britânicos,
franceses e alemães que abandonaram suas atividades médicas e
ascenderam à fama como economistas políticos, nasceu em Berlim.
Estudou e praticou medicina, tornou-se professor particular de
Economia na Universidade de Berlim em 1909, e Professor de
Sociologia na Universidade de Frankfurt em 1919. Sua visão libertária
o fez, por muitos anos, alvo de perseguições acadêmicas, até que a fama
crescente de sua obra-prima, O Estado, efetivamente silenciou seus
detratores.

7
O Livro (1908/1929)
A história orgânica do estado* é uma longa e fascinante
aventura, geralmente tornada monótona em exposições eruditas. Não é
assim em O Estado, de Oppenheimer, que extrai essa história de uma
maneira estimulante, das necessidades agudas e conflitos homicidas de
todos os tipos e condições dos homens, da Idade da Pedra até a Era de
Henry Ford. O suave fluxo de informações importantes derivadas deste
volume alemão tornou-o altamente receptível aos leitores.

* [NT] Optamos pela grafia da palavra estado no sentido de "nação politicamente


organizada" sempre em letra minúscula, ao contrário do que a maioria dos
dicionaristas da língua portuguesa recomendam. Com maiúscula, estado simboliza
uma visão de mundo distorcida, de dependência do poder central, de fé cega e
irracional na força superior de um ente capaz de conduzir os destinos de cada uma das
pessoas. Grafar estado com minúscula é uma pequena contribuição para a demolição
da noção disfuncional de que se pode esperar tudo de um centralismo provedor. Esta
grafia se aplica a todas as obras da Editora Konkin.

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Prefácio do Autor à
Segunda Edição Americana
Este pequeno livro encontrou o seu caminho. Além da presente
tradução para o inglês, existem edições autorizadas em francês, húngaro
e sérvio. Também fui informado de que há traduções publicadas em
japonês, russo, hebraico e iídiche; mas estas, é claro, são piratas. O livro
resistiu ao teste da crítica e foi julgado favoravelmente e
desfavoravelmente. Reacendeu, inquestionavelmente, a discussão sobre
a origem e a essência do estado.

Vários etnólogos proeminentes, particularmente Holsti, o atual


Ministro das Relações Exteriores do Estado Livre Finlandês, atacaram
o princípio básico formulado e demonstrado nesta Obra, mas falharam,
porque sua definição de estado assumiu a própria matéria que deveria
ser comprovada. Eles reuniram uma grande variedade de fatos para
provar a existência de algumas formas de Governo e Liderança, mesmo
onde não havia classes, e à substância dessas formas deram o nome de
“O Estado”.

Não é minha intenção contestar esses fatos. É evidente que em


qualquer grupo de seres humanos, por menor que seja, deve existir uma
autoridade que determina conflitos e, em situações extraordinárias,
assume a liderança. Mas essa autoridade não é “O Estado”, no sentido
em que uso a palavra. O estado pode ser definido como uma
organização de uma classe dominando as outras classes.

Tal organização de classe só pode acontecer de uma maneira, a


saber, através da conquista e da sujeição de grupos étnicos pelo grupo
dominante. Isso pode ser demonstrado com quase certeza matemática.
Nenhum dos meus críticos trouxe provas para invalidar esta tese. A
maioria dos sociólogos modernos, entre os quais podemos citar Albion
Small, Alfred Vierkandt e Wilhelm Wundt, aceita essa tese. Wilhelm
Wundt, em particular, afirma em linguagem inequívoca que “a
sociedade política (termo idêntico ao estado no sentido empregado

11
neste livro) surgiu pela primeira vez e só poderia se originar no período
de migração e conquista”, segundo o qual a subjugação de um povo por
outro foi efetuada.

Mas mesmo alguns de meus oponentes se inclinam


favoravelmente a meus argumentos, como no caso do venerável Adolf
Wagner, cujas palavras tenho orgulho de citar. Em seu artigo sobre “O
Estado” no Handwörterbuch der Staatswissenschaften, ele escreve: “O
conceito sociológico do estado, ao qual me referi, particularmente no
amplo escopo e tratamento dado por Oppenheimer, merece
consideração cuidadosa, especialmente de economistas políticos e
historiadores políticos. A visão que se abre, deste ponto de vista, do
desenvolvimento econômico dos povos e do estado em tempos
históricos deveria ser atraente até mesmo para os opositores do próprio
conceito.”

O “conceito sociológico do estado”, como Ludwig Gumplowicz


o denominou, tem aceitação geral garantida. Seus oponentes são árduos
e perseverantes, e certa vez os chamei de “a raiz sociológica de todo
mal”; mas o conceito, não obstante, é o princípio básico da sociologia
“burguesa”, e será considerado valioso no estudo, não apenas da
economia e da história, mas também do Direito e da História
Constitucional. Permito-me fazer algumas observações sobre este
ponto.

A evidência mais antiga do reconhecimento da ideia subjacente à


lei da acumulação prévia pode ser rastreada, o mais tardar, até o período
de decadência da civilização clássica, na época em que a economia
capitalista escravista levou as cidades-estado à ruína, bem como embora
seus povos tivessem sofrido de um consumo galopante. Como em nossa
era capitalista moderna, que se assemelha a esse período em muitos
aspectos, ocorreu uma ruptura em todas as relações naturalmente
desenvolvidas nas quais o indivíduo encontrou proteção.

O que Ferdinand Toennies chama de “laços comunitários” foi


afrouxado. O indivíduo se viu desprotegido, compelido a confiar em
seus próprios esforços e em sua própria razão no mar fervilhante de

12
competição que se seguiu. A razão coletiva, produto da sabedoria de
milhares de anos de experiência, não poderia mais guiá-lo ou protegê-
lo. Ficou espalhado. Dessa necessidade de uma razão individual, surgiu
a ideia do nacionalismo. Essa ideia teve sua justificativa a princípio,
como uma linha de desenvolvimento e um método na nascente ciência
do governo social; mas quando mais tarde se tornou o que Rubenstein
(em sua obra Romantic Socialism) chama de uma “tendência”, não se
justificou.

A comunidade, para usar o termo de Toennies, transformou-se em


uma “sociedade”. O “contrato” parecia ser o único vínculo que
mantinha os homens unidos — o contrato baseado na relação puramente
racionalista de serviço por serviço, o do ut des, o “Contrat Social” de
Rousseau. Uma “sociedade” pareceria, assim, ser uma união de
indivíduos autocentrados que esperavam, por meio da combinação,
obter suas satisfações pessoais. Aristóteles havia ensinado que o estado
havia se desenvolvido, por crescimento gradual, a partir do grupo
familiar.

Os estoicos e os epicuristas sustentavam que os indivíduos


formaram o estado — com a diferença de que os primeiros viam o
indivíduo como sendo socialmente inclinado por natureza, e o segundo,
que ele era naturalmente antissocial. Para os estoicos, portanto, o
“Estado de Natureza” era uma união pacífica; para os epicuristas era
uma guerra de um contra o outro, com a Sociedade como um meio
obrigatório para um modus vivendi decente. Com o primeiro, uma
Sociedade estava condicionada “physei” (por natureza); com o outro era
“nomo” (por decreto).

Apesar, porém, dessa diferença fundamental entre essas escolas,


ambas assumiram a premissa de que, no início, os indivíduos eram
livres, iguais política e economicamente, e que foi a partir dessa ordem
social original que se desenvolveram, por diferenciação gradual, o
estado plenamente desenvolvido com sua hierarquia de classes. Esta é
a lei da acumulação prévia.

13
Mas estaríamos errados se acreditássemos que esta tese foi
originalmente concebida como um relato histórico. O racionalismo é
essencialmente a-histórico, até mesmo anti-histórico. Pelo contrário, a
tese foi originalmente apresentada como uma “ficção”, uma teoria, uma
suposição conscientemente a-histórica. Nesta forma, adquiriu o nome
de lei natural. Foi sob esse nome que surgiu no pensamento moderno,
tingido estoicamente em Grotius e Puffendorf, e de maneira epicurista
em Hobbes. Tornou-se a arma operativa do pensamento entre o
crescente terceiro estado dos capitalistas.

Os capitalistas usaram a arma, primeiro contra o estado feudal


com sua classe privilegiada e, mais tarde, contra o quarto estado, com
sua teoria de classe do socialismo. Contra a dominação feudal
argumentou que uma “Lei da Natureza” não conhece e não permite
privilégios. Após suas vitórias na Revolução Inglesa de 1648 e na
grande Revolução Francesa de 1789, justificou, pelo mesmo raciocínio,
sua própria preeminência de facto, sua própria superioridade social e
econômica de classe, contra as reivindicações das classes trabalhadoras.
Segundo Adam Smith, as classes em uma sociedade são o resultado do
desenvolvimento “natural”.

De um estado original de igualdade, estes não surgiram por outra


causa senão o exercício das virtudes econômicas da diligência,
frugalidade e providência. Uma vez que essas virtudes são
predominantemente as de uma sociedade burguesa, o domínio
capitalista, assim sancionado pela lei natural, é justo e inatacável. Como
corolário deste teorema, as reivindicações do socialismo não podem ser
admitidas.

Assim, o que originalmente foi apresentado como uma “ficção”,


tornou-se primeiro uma hipótese e, finalmente, o axioma de toda a
sociologia burguesa. Aqueles que o apoiam aceitam o axioma como
autoevidente, como não requerendo prova. Para eles, a dominação de
classe, nesta teoria, é o resultado de uma diferenciação gradual de um
estado original de igualdade e liberdade geral, sem implicação de
qualquer poder extraeconômico.

14
Robert Malthus aplicou essa suposta lei ao futuro, em sua
tentativa de demonstrar que qualquer tipo de socialismo é puramente
utópico. Sua célebre Lei da População nada mais é do que a lei da
acumulação original projetada no futuro. Ele afirma que se qualquer
tentativa fosse feita para restaurar o estado de igualdade econômica, o
funcionamento da lei teria o efeito — por causa da diferença na
eficiência econômica — de restaurar as condições de classe modernas.
Toda sociologia ortodoxa começa com a luta contra essa suposta lei das
formações de classes.

No entanto, cada passo de progresso feito nos vários campos da


ciência da sociologia foi feito rasgando, um por um, as raízes
inumeráveis e extensas que procederam desse suposto axioma. Uma
sociologia sólida deve lembrar o fato de que a formação de classes em
tempos históricos não ocorreu por meio de diferenciação gradual na
competição econômica pacífica, mas foi o resultado de conquista e
subjugação violentas.

Como tanto o capitalismo quanto o socialismo tiveram suas


origens na Inglaterra, essas novas ideias certamente encontrariam sua
primeira expressão naquele país. De modo que encontramos Gerrard
Winstanley, o líder dos “verdadeiros niveladores” da época de
Cromwell, colocando os fatos da história contra essa suposição teórica
anti-histórica. Ele mostrou que a classe dominante inglesa (a fidalguia
rural) era composta essencialmente pelos conquistadores vitoriosos, os
normandos, e que a classe sujeita eram os saxões ingleses conquistados.

Mas sua demonstração teve pouca influência. Foi somente


quando a grande Revolução Francesa evidenciou o contraste
nitidamente que o pensamento veio à tona. Ninguém menos que o
Conde St. Simon, reconhecido como o fundador da ciência da
sociologia moderna, e o não menos científico socialismo, descoberto na
classe dominante de seu país os conquistadores francos e burgúndios, e
em sua população sujeita, os descendentes dos celtas romanizados. Foi
a publicação dessa descoberta que originou a sociologia da Europa
Ocidental.

15
As conclusões tiradas dela foram levadas adiante pelo discípulo
de St. Simon, Auguste Comte, em seu Philosophy of History, e pelos
saint-simonistas, Enfantin e Bazard. Esses pensadores tiveram grande
influência no desenvolvimento econômico do século seguinte; mas sua
principal contribuição foi a elaboração da ideia sociológica do estado.

Entre os povos da Europa Ocidental, a nova sociologia encontrou


uma aceitação mais imediata do que entre os da Europa Oriental. A
razão para isso pode ser facilmente percebida quando lembramos que
no Oriente o contraste entre o “Estado” e a “Sociedade” não havia sido
tão definitivamente percebido como no Ocidente. Mesmo no Ocidente,
esse contraste só foi plenamente apreciado, como um fato social, na
Inglaterra, na França, nos Países Baixos e na Itália, porque nesses países
apenas a classe de riqueza móvel que havia se desenvolvido como
terceiro estado havia sucedido na deposição do “estado” feudal.

Na França, a aliança dos capitalistas com a Coroa contra a então


nobreza armada e ativa conseguiu submeter os Frondeurs ao poder
absoluto do Rei. A partir de então, esse novo estamento passou a se
representar como a Nação, e o termo “Economia Nacional” substituiu
o antigo termo “Economia Política”. Os membros desse terceiro estado
sentiam-se aqueles súditos do estado cujos direitos e liberdades haviam
sido cerceados pelos privilégios dos dois estamentos dominantes da
nobreza e do clero. Doravante, o Terceiro Estado proclama os direitos
da “Sociedade” e contra o “Estado”, opõe a eterna Lei da Natureza —
a da igualdade e liberdade originais — contra os direitos teórico-
históricos dos Estamentos. O conceito de Sociedade em contraste com
o conceito de Estado aparece pela primeira vez em Locke e, a partir de
então, esse contraste foi cada vez mais definido, especialmente nos
escritos da escola fisiocrata de economistas.

Nessa luta entre classes e ideias, nem a Europa Central nem a


Oriental desempenharam um papel importante. Na Alemanha, uma vez
se desenvolveu uma classe capitalista (no período dos Fuggers de
Augsburg) que atingiu quase a magnitude americana. Mas foi esmagado
pelas Guerras Religiosas e pelas várias invasões francesas dos séculos
XVI e XVII, que deixaram a Alemanha um deserto devastado e

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despovoado. Ao final do período restavam algumas cidades e pequenos
estados sob o domínio absoluto dos príncipes. Dentro das cidades, os
artesãos estavam unidos em suas ligas de artesanato, e o restante
consistia em atividades educacionais e oficiais acadêmicos.

Em grande medida, todos eles dependiam do estado — os


membros das corporações de ofício porque aceitavam uma condição
privilegiada, os funcionários porque eram servidores do estado e os
profissionais porque pertenciam ao estamento superior da sociedade.
Por esta razão não houve nenhum movimento econômico ou social do
terceiro estado na Alemanha; houve apenas um movimento literário
influenciado pelo fluxo de ideias do Ocidente. Isso explica o motivo do
contraste entre as duas ideias de Estado e de Sociedade não estarem
presentes na mente do povo alemão. Pelo contrário, os dois termos
foram usados como sinônimos, ambos conotando uma conformidade
essencialmente necessária à natureza.

Mas há ainda outra causa para essa diferença na atitude mental


entre a Europa Ocidental e a Europa Oriental. Na Inglaterra e na França,
desde a época de Descartes, os problemas e investigações da ciência
foram formulados por homens treinados em matemática e ciências
naturais. Especialmente no novo estudo da filosofia da história, o início
de nossa sociologia moderna, esses homens atuaram como guias. Na
Alemanha, ao contrário, foram os teólogos e especialmente os teólogos
protestantes os líderes do pensamento.

Em suas mãos, o estado passou a ser considerado um instrumento


da modelagem divina e, na verdade, da divindade imanente. Esse
pensamento resultou em um culto ao estado, que atingiu seu auge no
conhecido sistema hegeliano. Assim aconteceu que dois rios de
pensamento fluíram lado a lado por um tempo — a Sociologia da
Europa Ocidental e a filosofia da História da Alemanha — com
correntes intercomunicantes ocasionais, como Althusios e Puffendorf
no ensino francês, inglês e holandês do direito natural, e a de Rousseau
em Hegel. Em 1840, no entanto, uma junção direta foi feita por meio
de Lorenz Stein, um dos alunos mais talentosos de Hegel que, mais
tarde, se tornou o principal professor alemão de direito administrativo

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e influenciou gerações de pensadores. Veio para Paris, ainda jovem,
com o propósito de estudar o Socialismo na nascente. Ele conheceu os
homens célebres daquela época heróica — com Enfintin e Bazard, com
Louis Blanc, Reybaud e Proudhon.

Lorenz Stein absorveu o novo pensamento com entusiasmo, e em


sua mente fértil precipitou-se a síntese criativa entre o pensamento
sociológico científico da Europa Ocidental e a filosofia da história
metafísica alemã. O produto foi chamado por ele de Ciência da
Sociedade (Gesellschaftswissenschaft). Foi dos escritos de Stein que
quase todos os desenvolvimentos importantes do pensamento
sociológico alemão receberam seus primeiros impulsos. Karl Marx,
especialmente (como Struve mostrou), bem como Schaeffle, Othmar
Spann e Gumplowicz, devem muito a ele.

Não é meu propósito desenvolver este tema histórico. Preocupo-


me apenas em traçar o desenvolvimento da ideia sociológica do estado.
O primeiro efeito desse encontro das duas correntes de pensamento foi
uma confusão prejudicial de terminologia. Os escritores da Europa
Ocidental há muito perderam o controle da unificação das expressões
no pensamento. Como dito acima, o Terceiro Estado começou por se
pensar como “Sociedade”, em oposição ao estado. Mas quando o
Quarto Estado cresceu para a consciência de classe e tornou-se
consciente de sua própria existência teórica, arrogou-se o termo
“Sociedade” (como pode ser visto pela seleção da palavra socialismo),
e tratou a Burguesia como uma forma do “Estado”, do estado de classe.
Havia, portanto, dois conceitos amplamente diferentes de “Sociedade”.

No entanto, aqui estava uma ideia subjacente comum à burguesia


e ao socialista, uma vez que concebiam o estado como uma coleção de
privilégios surgidos e mantidos em violação da lei natural, enquanto a
Sociedade era pensada como a forma prescrita de união humana em
conformidade com a lei natural. Eles diferiam apenas em um ponto
essencial, a saber, que enquanto o Terceiro Estado declarava que sua
sociedade capitalista era o resultado dos processos da lei natural, os
socialistas consideravam seus objetivos ainda não alcançados e
proclamavam que a sociedade ideal do futuro que iria realmente ser o

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produto dos processos da lei natural, só poderia ser realizado pela
eliminação de toda “mais-valia”. Embora ambos estivessem em conflito
com relação aos fundamentos, ambos concordavam em ver o “Estado”
como civitas diaboli e a “Sociedade” como civitas dei.

Stein, no entanto, inverteu os objetivos dos dois conceitos. Como


um hegeliano e preeminentemente adorador do estado, ele concebeu o
estado como civitas coelestis. A Sociedade, que ele entendia significar
apenas a Sociedade burguesa dominante, ele a via através dos olhos de
seus amigos e professores Socialistas, e a concebia como civitas
terrena.

O que no sentido de Platão é a “ideia pura”, a “ordem natural” dos


primeiros fisiocratas e denominada pelos franceses e ingleses de
“Sociedade”, era para Stein, o “Estado”. O que havia sido contaminado
e tornado impuro pela mistura de matéria grosseira, eles chamavam de
“Estado”, enquanto os alemães o chamavam de “Sociedade”. Na
realidade, porém, há pouca diferença entre os dois. Stein percebeu com
pesar que o conceito puro de Hegel de um estado baseado no direito e
na liberdade estava fadado a permanecer apenas uma “ideia”.
Eternamente acorrentado, como ele supôs que deveria estar, pelas
forças da propriedade e da cultura que delas procede, nunca poderia ser
um fato. Esta é sua conclusão a respeito da “Sociedade”, de modo que
seu desenvolvimento efetivo é obstruído pela associação beneficente
dos seres humanos, como Stein concebeu essa associação.

Assim foi atingido o auge do pensamento confuso. Todos os


sociólogos alemães, com a única exceção de Carl Dietzel, logo
perceberam que o conceito hegeliano de estado era impotente, existindo
apenas na “Ideia”. Em nenhum ponto ele tocava a realidade do
crescimento histórico e em nenhum sentido poderia representar o que
sempre foi considerado como o estado. Há muito tempo, tanto Marx
quanto Bakunin — respectivamente os fundadores do coletivismo
científico e do anarquismo prático — e especialmente Ludwig
Gumplowicz, abandonaram a terminologia hegeliana e aceitaram a da
Europa Ocidental e isso foi geralmente aceito em todos os lugares.

19
Neste pequeno livro, segui a terminologia da Europa Ocidental.
Por “Estado”, não quero dizer a agregação humana que porventura
venha a ser, ou, como deve ser propriamente. Quero dizer com isso
aquela soma de privilégios e posições dominantes que são criadas pelo
poder extraeconômico. E, em contraste com isso, entendo por
Sociedade a totalidade dos conceitos de todas as relações e instituições
puramente naturais entre homem e homem, que não serão plenamente
realizadas até que o último remanescente das criações das bárbaras
“eras de conquista e migração”, tenha sido eliminado da vida em
comunidade.

Outros podem chamar qualquer forma de liderança e governo ou


algum outro ideal de “Estado”. Isso é uma questão de escolha pessoal.
É inútil discutir sobre definições. Mas seria bom que esses outros
pensadores entendessem que não contestaram a ideia sociológica de
“Estado”, se um conceito de “Estado” fundamentado em uma base
diferente não correspondesse àquele que eles desenvolveram. E eles
devem se precaver particularmente contra o perigo de aplicar qualquer
definição diferente da usada neste livro aos produtos históricos reais
que até agora foram chamados de “Estados”, cuja essência,
desenvolvimento, curso e futuro devem ser explicados por qualquer
verdadeiro ensino ou filosofia do estado.

Franz Oppenheimer

Frankfurt-am-Main, abril de 1922

20
Prefácio do Autor à
Segunda Edição Alemã
Este pequeno livro apareceu pela primeira vez em 1909 como
uma versão expandida de um ensaio previamente publicado na “Neuen
Rundschau”. Fez um tanto de sucesso, e não somente em alemão, mas
também apareceu em traduções autorizadas em língua inglesa, francesa
e sérvia. A edição inglesa de 1914 que foi impressa nos EUA teve sua
segunda edição em 1922. O livro foi publicado em húngaro sem minha
autorização, e, até onde sei, foi publicado integralmente ou somente em
partes no japonês, russo, hebraico e iídiche. Somente o editor da versão
em húngaro se prontificou a me enviar um exemplar físico.

Com exceção de uma mudança pequena, todavia


fundamentalmente significativa, na qual foi expressa a minha atitude
totalmente transformada em relação à assim chamada visão econômica
da história, a última edição alemã de 1923 permanece praticamente
inalterada. Posteriormente não achei motivo algum para realizar
quaisquer alterações no texto anterior enquanto eu estava trabalhando
em meu System der Soziologie, na maior parte conservado letra por
letra, especialmente em sua segunda parte: a versão publicada em 1926
de der Staat.

Minha visão fundamental não permanece somente inabalada,


mas, na última conferência em setembro da Sociedade Alemã de
Sociologia em Zurique, ela recebeu quase que completa confirmação
dos principais etnólogos da Alemanha: uma nova prova da assertividade
do método dedutivo. Pois minha bagagem em etnologia era
extremamente rasa na época em que pela primeira vez expressei meu
pensamento fundamental em meu livro de 1898, Großgrundeigentum
und soziale Frage. Até onde me lembro, com exceção do
Kulturgeschichte der Menschheit de Julius Lippert, em geral não
aprendi coisa alguma sobre etnologia e etnografia. Nem sequer os
escritos de Ludwig Gumplowicz, de quem eu posteriormente optei por
me tornar seguidor, eram-me conhecidos, algo que não agradou esse

21
velho professor quando com ele me encontrei. Eu fui um completo
autodidata na produção de grande parte de minha obra tardia!

Desse modo, como já foi dito, a maior parte dessa pequena edição
foi colocada na edição ampliada de der Staat, com a última edição
chegando a seu fim, considerei seriamente a questão sobre se deveria
sequer publicar o livro em sua antiga forma novamente. Decidi fazer
isso por uma série de motivos: porque a versão maior, com suas 860
páginas, é de um calibre muito pesado para o grande público leitor, e
porque infelizmente é muito cara, pelo menos para muitos leitores
alemães de hoje. Além do mais, também porque algumas partes desta
edição menor de der Staat entraram não na outra edição, mas sim na
primeira parte de meu System, na sociologia geral.

E, finalmente, pela mesma razão pela qual eu leio quase todas as


minhas antigas obras (com exceção somente da terceira parte do System
der Soziologie, que é distribuída como um manual chamado Theorie der
Reinen und politischen Ökonomie, e a terceira edição do livreto Wert
und Kapitalprofit, que foi completamente revisado): elas têm aparecido
sempre de novo com seus textos totalmente inalterados; pois tais
leitores que se voltam a essas obras mais antigas, algumas das quais
foram substituídas por obras mais recentes minhas, regularmente
desejam possuir o texto original para poderem seguir a linha de
desenvolvimento do autor.

Desse modo, o texto agora aparece quase sem alteração alguma.


Somente o primeiro parágrafo do capítulo introdutório sobre as teorias
do estado foram reformulados seguindo a edição ampliada.

O leitor que desejar ir mais a fundo no objeto referido, que é


vasto, não terá escolha senão se aprofundar na edição ampliada de der
Staat. O leitor encontra aqui uma história intelectual das teorias do
estado desde a Antiguidade Grega até os tempos presentes, que resultam
no montante de um quarto de quatrocentas páginas. Ele também
encontra uma detalhada descrição do percurso da epidemia que
devastara as cidades-estado da Antiguidade, encontra uma descrição
precisa das formas de governo que se seguem do estado feudal

22
desenvolvido: estado servil (Lehenstaat), estado estamental
(Ständenstaat), estado constitucional absoluto e moderno; e,
finalmente, encontra um retrato muito mais detalhado da futura
“sociedade sem classes”, rumo a qual, se minha visão estiver correta, a
tendência social está se impulsionando: todas as coisas as quais somente
neste esboço poderiam ser implicadas.

Que este pequeno livro saia novamente e procure fazer, caso


possa, novos amigos para si e para este autor entre os outros mais
antigos.

Franz Oppenheimer
Frankfurt-am-Main, 1º de novembro de 1928

23
Introdução

(a) As Teorias do Estado

Este tratado diz respeito somente ao estado histórico. Não fala dos
estados animais, que recaem sob a zoologia e psicologia animal,
tampouco dos assim chamados “estados” do tempo pré-histórico, com
os quais a historiografia pré-histórica e a etnologia têm de lidar. Sobre
essa “organização tribal”, falou Wilhelm Wundt: “Não é nem sequer
uma ordem de estado com desenvolvimento incompleto, mas sim algo
completamente diferente.”1
Este tratado, além do mais, não fala sobre “os” estados — eles
são objeto da história —, mas sim “do” estado: perpassa-o enquanto um
fenômeno social geral em seu surgimento e desenvolvimento até sua
forma de Estado Constitucional Moderno; e visa tentar alcançar, com
isso, uma previsão razoável de seu desenvolvimento futuro. Isso quer
dizer: olhar para o estado do ponto de vista do sociólogo. Não do ponto
de vista do filósofo: pois ele só está interessado em como deveria ser o
estado. Sobre o estado como ele foi e como ele é, o Estado Histórico,
diz, por exemplo, B. Fichte: “Não interessa aos esclarecidos.” Também
não do ponto de vista do jurista: pois ele só está interessado em sua
forma externa, enquanto o sociólogo anseia por entender o conteúdo e
a vida da sociedade de estado.
Por esta razão, toda doutrina de direito público está excluída de
nossa consideração logo de início. Todavia, uma rápida visão geral das
teorias de estado propriamente ditas nos mostra que não deveríamos
esperar esclarecimento algum delas acerca da origem, natureza e
propósito do estado. Elas representam todas as sombras concebíveis
entre os extremos. Se, para Rousseau, o estado se origina de um contrato
social, mas, para Carey, surge de um bando de ladrões; se Platão e os

1
Wilh. Wundt, Elemente der Völkerpsychologie, Leipzig 1912. p. 301.

25
O Estado

marxistas imputam onipotência ao estado, querendo elevá-lo a um


absoluto Senhor dos Habitantes em tudo quanto é político e econômico,
para Platão até em questões sexuais, enquanto o liberalismo o condena
à impotência do “Estado Guarda-Noturno” e o anarquismo quer
erradicá-lo totalmente, então uma tentativa de se chegar a uma visão
apropriada de estado que esteja no meio termo entre tais doutrinas tão
excludentes entre si é estéril.
Essa dicotomia insolúvel nas teorias do estado é explicada pelo
fato de que nenhuma delas emergiu a partir de um ponto de vista
sociológico. O estado é um objeto da história universal e sua essência
pode ser conhecida somente através de uma perspectiva universal
histórica ampla. Precisamos perguntar quais propriedades são
essenciais ao conceito de estado enquanto tal. Pode-se achar a resposta
a essa questão somente se levarmos em consideração possivelmente
todos os estados, do passado e do presente, e, consequentemente, ver
quais as propriedades que todos eles possuem.
Visto que há estados grandes e pequenos, firmemente
centralizados e frouxamente coordenados, monárquicos, aristocráticos,
plutocráticos e democráticos; visto que seus habitantes pertencem a
todas raças e cores, são pouco ou altamente civilizados, e vivem
principalmente da agricultura ou de comércio e trocas, está claro que a
essência do estado não pode residir nem na extensão nem no grau de
poder coercitivo sobre seu território e sobre seus habitantes, nem em
sua constituição, nem em seu nível de cultura e técnica.
Os antigos sistemas de filosofia do estado tentaram alcançar tal
abstração compreensiva e chegaram a uma conclusão, que ainda é
amplamente ensinada hoje, de que a essência do estado é a mesma da
de uma área de proteção: proteção externa de fronteiras e proteção
interna legal são seu ratio fiendi et essendi (razão de operar e de ser).
Grotius diz: “O estado é uma associação completa de pessoas livres, as
quais se reuniram em prol de proteção legal e utilidade.”
E de fato essa visão está correta em um cerne: mas não é
completa. Ela negligencia uma característica comum a todos os estados:
todo estado do passado na história que inquestionavelmente é digno de
seu nome, especialmente todo estado que se tornou significativo na

26
Introdução

história humana no que toca a seu desenvolvimento para maiores níveis


de poder, tamanho e riqueza ou de outro modo é um estado de classes,
isto é, uma hierarquia de estratos ou de classes acima e abaixo uma da
outra com diferentes direitos e diferentes rendas.
Nossa discussão mostrará que essa característica é a mais
importante, a mais decisiva, é o caráter primário do estado, a partir do
qual sozinho sua origem e essência podem ser reconhecidas; deixará
claro que a função protetora do estado, tanto interna quanto
externamente, deve ser compreendida como um dever secundário
assumido pelas classes superiores no interesse de seus direitos de
governo e renda. O estado não surge no interesse da função protetora,
mas, inversamente, a função protetora surge no interesse do estado já
permanecente.
Com isso já obtivemos a explicação para o fato impressionante de
que as teorias anteriores do estado são tão diferentes umas das outras.
São todas teorias de classe! Mas tal coisa não é o resultado de uma
compreensão investigativa, mas sim da vontade que deseja; não precisa
de argumentos para penetrar a verdade, mas sim de uma arma na luta
pelos interesses materiais; não é ciência, mas mimetismo da ciência. E
é por isso que, a partir da compreensão do estado, podemos chegar a
uma compreensão das teorias do estado, todavia nunca podemos chegar
a uma compreensão da essência do estado a partir da compreensão das
teorias do estado.
O estado não surgiu da “necessidade de associação”, como pensa
Platão; ele não é uma “construção da natureza”, como lhe responde
Aristóteles; e, em espécie, não tem, como explica Ancillon, “a mesma
origem que as línguas”. Está inteiramente errado quando ele assume
que “assim como as línguas se desenvolveram e se formaram a partir
da necessidade e da capacidade do homem de comunicar seus
pensamentos e sentimentos, assim os estados também se
desenvolveram por necessidade e por instinto de sociabilidade”; o
estado também não é “un droit gouvernement de plusieurs ménages et
de ce qui leur est commun avec puissance souveraine (um governo justo
de diversos lares e do que é comum a eles com poder soberano)”
(Bodin); o estado tampouco surgiu para pôr fim à “bellum omnium

27
O Estado

contra omnes (guerra de todos contra todos)”, como acreditava Hobbes


e muitos outros depois dele; o estado é tampouco o resultado de um
“contrat social” que – muito antes de Rousseau – Grotius, Spinoza e
Locke queriam nos fazer acreditar; o estado é talvez “o meio para o fim
superior do desenvolvimento sempre contínuo daquilo que é puramente
humano em uma nação”, como Fichte afirmou; mas certamente o estado
não tem esse propósito; não foi criado e não é mantido para esse fim; o
estado também não é “o Absoluto”, como diz Schelling, e muito menos
“a realidade da ideia moral, o espírito moral como a vontade manifesta,
evidente em si mesma e substancial que pensa, sabe e realiza o que
sabe”, como também afirma Hegel de forma tão bela quanto clara.
Também não podemos concordar com Stahl quando ele chama o estado
de “reino moral da comunidade humana” e “considerado em forma mais
profunda, uma instituição divina”.
E tampouco Marco Túlio Cícero quando pergunta: “quid est enim
civitas nisi juris societas? (pois, que é uma cidade senão uma sociedade
de lei?)” E menos ainda seu seguidor, von Savigny, ao ver na “origem
do estado uma espécie de geração de lei, o mais alto grau de geração de
leis em geral” e o estado se definiu como “a manifestação corpórea do
povo”. De forma similar, Bluntschli declara que o estado é uma “pessoa
do povo” e, assim, começa a série daqueles teóricos que declaram o
estado, ou a sociedade, ou qualquer mistura dos dois, como um
“superorganismo”, uma visão que é tão insustentável quanto a
afirmação de Sir Henry Maine de que o estado se desenvolveu a partir
da família através dos elos intermediários: sexo, casa e tribo.
O estado também não é uma “unidade federal”, como supõe o
jurista Jellinek. O antigo Böhmer chegou muito perto da verdade
quando disse que “denique regnorum praecipuorum ortus et incrementa
perlustrans vir et latrocinia potentiae initia fuisse apparebit (a origem
do crescimento dos principais reinos parece coincidir com o início do
poder do homem de roubar e matar)”; e, ainda assim, Carey está no
caminho errado quando considera o estado como sendo fundado por
uma gangue de ladrões que se levantaram para dominar seus
compatriotas. Há uma partícula maior ou menor de verdade em algumas
dessas explicações, mas elas não são esgotantes, e a maioria está
totalmente errada.
28
Introdução

(b) A Ideia Sociológica do Estado

Então, o que é o estado em conceitos sociológicos? A própria


história dessa palavra nos diz isso. Vem do italiano do período
renascentista. Lá a palavra se referia ao príncipe que havia chegado ao
poder através da violência, juntamente com seus seguidores: “Os
governantes e seus seguidores são chamados de lo stato, e este nome
foi então autorizado a usurpar o significado de toda a existência de um
território”, disse Jakob Burckhardt. Assim, Luís XIV estava certo em
um sentido mais profundo do que ele mesmo suspeitava com seu altivo
ditado: “L’Etat c’est moi”. Em nossa palavra “Hofstaat”, o antigo
significado ainda permanece.
Essa é “a lei segundo a qual ele empossou”, e é isso que o estado
permaneceu. É inteiramente, em sua origem e quase inteiramente em
sua essência em seus primeiros estágios de existência, uma instituição
social imposta por um grupo vitorioso de homens a um grupo vencido
de homens, com o único propósito de regular o domínio do primeiro
sobre o último e se proteger contra insurreições internas e ataques
externos. E o domínio não tinha outra intenção final senão a exploração
econômica dos vencidos pelos vencedores.
Nenhum “estado” primitivo na história mundial se desenvolveu
de qualquer outra forma;2 se uma tradição confiável relata o contrário,
é meramente uma questão de fusão de dois estados primitivos já
totalmente desenvolvidos em uma organização mais complexa; ou é no
máximo uma variante humana da fábula das ovelhas que fizeram do
urso seu rei para protegê-las do lobo; mas, mesmo neste caso, a forma

2
“A história é incapaz de nos mostrar um povo em que os primeiros traços da
divisão do trabalho e da agricultura não coincidissem também com tal
exploração econômica, na qual o fardo do trabalho não recaísse sobre alguns e
o fruto do mesmo recaísse sobre outros, na qual, em outras palavras, a divisão
do trabalho não teria assumido a forma de um se submeter ao outro.”
(Rodbertus-Jagetzow, Beleucht. der soz. Frage. 2ª ed. Berlim 1890, p. 124).

29
O Estado

e o conteúdo do estado tornaram-se exatamente os mesmos que nos


“estados lobos” da cultura inocente e imediata.
Até a pequena lição de história dada aos nossos jovens é
suficiente para provar essa afirmação geral. Em todos os lugares, uma
tribo selvagem guerreira rompe as fronteiras de um povo menos
guerreiro, estabelece-se como uma nobreza e funda seu estado. Na
Mesopotâmia, onda após onda e estado após estado: babilônios,
amorreus, assírios, árabes, medos, persas, macedônios, partos,
mongóis, seljúcidas, tártaros, turcos; no Nilo, hicsos, núbios, persas,
gregos, romanos, árabes, turcos; em Hellas, os estados dóricos, sinais
típicos; na Itália, romanos, ostrogodos, lombardos, francos, normandos,
alemães; na Espanha, cartagineses, romanos, visigodos, árabes; na
Gália, romanos, francos, burgúndios; na Grã-Bretanha, saxões,
normandos.
Onda após onda de tribos guerreiras selvagens também varreram
a Índia até a Malásia, também sobre a China; e o mesmo tipo por toda
parte nas colônias europeias, onde só se encontrava alguns núcleos
populacionais sedentários: na América do Sul e México. Mas onde isso
falta, onde só se encontram caçadores nômades que só podem ser
mortos, mas não subjugados, ajuda-se a si mesmo importando de longe
as massas de homens explorados e recrutados: o tráfico de escravos!
As únicas aparentes exceções são aquelas colônias europeias nas
quais não é mais possível, através da importação escravos, compensar
a falta de uma população nativa sedentária. Uma dessas colônias, os
Estados Unidos, é um dos estados mais poderosos da história do mundo.
Aqui a exceção é explicada pelas massas de pessoas que serão
exploradas e submetidas ao trabalho compulsório importarem a si
mesmas através da emigração em massa de tais estados primitivos ou
de seus estágios superiores de desenvolvimento, nos quais a exploração
atingiu um grau muito extremo, ao mesmo tempo em que a liberdade
de movimento já foi alcançada. Aqui, então, há, por assim dizer, uma
infecção remota com a “posição de estado” advinda de surtos
estrangeiros.
No entanto, onde a imigração é muito baixa nessas colônias, seja
pelas distâncias excessivas que resultam em elevados custos de

30
Introdução

deslocamento, seja pelas restrições de imigração, já nos aproximamos


do derradeiro objetivo do desenvolvimento do estado, que já vemos
como necessário para um estágio final para o qual ainda não temos o
termo científico. Aqui, mais uma vez, na dialética do desenvolvimento,
uma mudança na quantidade se transformou em uma mudança na
qualidade: a velha forma foi preenchida com nova matéria.
Ainda temos um “estado” na medida em que representa a
regulação estrita da convivência social de uma grande massa de
pessoas, assegurada por meios externos de poder: mas não é mais um
“estado” no antigo sentido, não é mais um instrumento de dominação
política e exploração econômica de um grupo social por meio de outro,
não é mais um “estado de classes”, mas uma condição que parece
realmente pactuada por um “contrato social”. As colônias australianas
estão muito próximas desse estágio; e isso está quase chegando à Nova
Zelândia.
Enquanto não se chegar a um consenso comum sobre a origem e
a natureza dos estados históricos ou, o que é a mesma coisa, do “estado”
no sentido sociológico, será vã uma tentativa de estabelecer um novo
nome para essas comunidades mais avançadas. Apesar de todos os
protestos, elas ainda seriam chamadas de “estados”, senão pela benéfica
confusão dos termos. Vamos chamá-las de “cidadanias de homens
livres” nesta discussão, a fim de captarmos um novo conceito.
A visão geral sumarizada sobre os estados do passado e do
presente teria de ser suplementada, se houvesse espaço, pelo exame dos
fatos que nos são apresentados pela etnologia sobre aqueles estados que
não recaem sobre o campo de visão de nossa erroneamente assim
chamada “história do mundo”. Aqui só pode ser assegurado que
também aqui nossa regra geral não admite exceção. Também no
arquipélago malaio, no “grande laboratório sociológico da África”, em
suma, em todos os lugares deste planeta onde o desenvolvimento das
tribos já atingiu uma forma superior, o “estado” surgiu através da
subjugação de um grupo de homens por outro, e a exploração
econômica dos subjugados era e é sua raison d’être, sua “razão
suficiente”.

31
O Estado

Nesta consideração, no entanto, a visão geral que acabamos de


fazer pode nos servir não apenas como prova da proposição
fundamental, que devemos acima de tudo, para nomear o pioneiro, a
Ludwig Gumplowicz, o constitucionalista e sociólogo de Graz, mas
pode também nos iluminar imediatamente, em um breve lampejo, do
caminho percorrido pelo “estado” no sofrimento da humanidade e no
qual agora o seguiremos: do primitivo estado conquistador para, através
de mil passagens, a cidadania de homens livres.

32
I
A Gênese do Estado

Uma única força impulsiona toda a vida; uma força a


desenvolveu, desde a única célula, a partícula de albumina flutuando no
oceano quente do tempo pré-histórico, até os vertebrados e depois ao
homem. Essa única força, de acordo com Lippert, é a tendência de
prover a vida, bifurcada em “fome e amor”. Com o homem, no entanto,
a filosofia também entra no jogo dessas forças, a fim de, doravante,
junto com “a fome e o amor, manter unida a estrutura do mundo dos
homens”.
Certamente, esta filosofia, esta “ideia” de Schopenhauer, é em sua
origem nada mais do que uma criatura da provisão para a vida chamada
por ele de “vontade”. É um órgão de orientação no mundo, um braço na
luta pela existência. No entanto, apesar disso, chegaremos a conhecer o
desejo de causalidade como uma força autoatuante e de fatos sociais
como cooperadores no processo sociológico de desenvolvimento. No
início da sociedade humana, e à medida que ela se desenvolve
gradualmente, essa tendência avança em várias ideias bizarras
chamadas de “superstição”.
Elas são baseadas em conclusões puramente lógicas de
observações incompletas sobre ar e água, terra e fogo, animais e plantas,
que parecem dotados de uma multidão de espíritos bondosos e
malévolos. Pode-se dizer que nos tempos modernos mais recentes, em
estágio alcançado apenas por pouquíssimas raças, surge também a filha
mais nova do desejo de causalidade, a saber, a ciência, como resultado
lógico da observação completa dos fatos; ciência, agora necessária para
exterminar a superstição amplamente ramificada, que, com inúmeros
fios, se enraizou na própria alma da humanidade.

33
O Estado

Mas, por mais poderosa que seja, especialmente no momento do


“êxtase”,3 a superstição pode ter influenciado a história, por mais
poderosa que seja, mesmo em tempos comuns, ela pode ter cooperado
no desenvolvimento da vida comunitária humana, a principal força do
desenvolvimento ainda encontra-se nas necessidades da vida, que
obrigam o homem a adquirir para si e para a sua família o alimento, o
vestuário e a habitação. Este continua sendo, portanto, o impulso
“econômico”. Uma investigação sociológica — e isso significa
sociopsicológica — do desenvolvimento da história não pode, portanto,
progredir senão seguindo os métodos pelos quais as necessidades
econômicas foram satisfeitas em seu desdobramento gradual e
prestando atenção às influências do impulso causal em seu devido lugar.

(a) Meios Políticos e Econômicos

Existem dois meios fundamentalmente opostos pelos quais o


homem, necessitando de sustento, é impelido a obter os meios
necessários para satisfazer seus desejos. São o trabalho e o roubo, o seu
próprio trabalho e a apropriação forçada do trabalho alheio. Roubo!
Apropriação forçada! Essas palavras nos transmitem ideias de crime e
penitenciária, pois somos contemporâneos de uma civilização
desenvolvida, especificamente baseada na inviolabilidade da
propriedade. E essa forte impressão não se perde quando estamos
convencidos de que o roubo por terra e mar é a relação primitiva da
vida, assim como o ofício dos guerreiros — que também por muito
tempo é apenas roubo organizado em massa — constitui a mais
respeitada das ocupações.
Tanto por causa disso quanto pela necessidade de ter, no
desenvolvimento posterior deste estudo, termos concisos, claros e
nitidamente opostos para esses contrastes tão importantes, proponho na
discussão a seguir chamar o próprio trabalho de um indivíduo e a troca

3
Achelis, Die Ekstase in ihrer kulturellen Bedeutung, vol. 1 de Kulturprobleme
der Gegenwart, Berlim, 1902.

34
A Gênese do Estado

equivalente do seu próprio trabalho pelo trabalho alheio, o “meio


econômico” para a satisfação das necessidades, enquanto a apropriação
não recíproca do trabalho alheio será chamada de “meio político”.
A ideia não é totalmente nova; os filósofos da história sempre
encontraram essa contradição e tentaram formulá-la. Mas nenhuma
dessas fórmulas levou a premissa ao seu fim lógico completo. Em
nenhum lugar é mostrado claramente que a contradição consiste apenas
nos meios pelos quais o propósito idêntico, a aquisição de objetos
econômicos de consumo, deve ser obtido. No entanto, este é o ponto
crítico do raciocínio. No caso de um pensador do nível de Karl Marx,
pode-se observar que confusão é produzida quando o propósito
econômico e os meios econômicos não são estritamente diferenciados.
Todos esses erros, que acabaram levando a esplêndida teoria de
Marx para tão longe da verdade, basearam-se na falta de diferenciação
clara entre os meios de satisfação econômica das necessidades e seu
fim. Isso o levou a designar a escravidão como “categoria econômica”
e a força como “força econômica” — meias verdades que são muito
mais perigosas do que inverdades totais, pois sua descoberta é mais
difícil e as falsas conclusões a partir delas são inevitáveis.
Por outro lado, nossa própria diferenciação nítida entre os dois
meios para o mesmo fim nos ajudará a evitar tal confusão. Esta será
nossa chave para compreender o desenvolvimento, a essência e o
propósito do estado; e como toda a história universal até agora foi
apenas a história de estados, para uma compreensão da história
universal também. Toda a história do mundo, desde os tempos
primitivos até a nossa própria civilização, apresenta uma única fase,
uma disputa entre os meios econômicos e os meios políticos; e pode
apresentar apenas esta fase até que tenhamos alcançado a cidadania de
homens livres.

35
O Estado

(b) Povos sem Estado: Caçadores e Agricultores

O estado é uma organização dos meios políticos. Nenhum estado,


portanto, pode surgir até que os meios econômicos tenham criado um
número definido de objetos para a satisfação de necessidades, objetos
esses que podem ser levados embora ou apropriados por roubo bélico.
Por isso, os caçadores primitivos não têm estado; e mesmo os caçadores
mais desenvolvidos tornam-se partes de uma estrutura estatal apenas
quando encontram em sua vizinhança uma organização econômica
evoluída que podem subjugar. Mas caçadores primitivos vivem em
anarquia prática.
Grosse diz a respeito dos caçadores primitivos em geral:
Não há diferenças essenciais de fortuna entre eles e,
portanto, falta uma fonte principal para a origem das
diferenças de posição. Geralmente, todos os homens
adultos dentro da tribo desfrutam de direitos iguais. Os
mais velhos, graças à sua maior experiência, têm certa
autoridade; mas ninguém se sente obrigado a prestar-lhes
obediência. Onde, em alguns casos, os chefes são
reconhecidos — como os botokude, os centro-
californianos, os wedda e os mincopie — seus poderes são
extremamente limitados. O chefe não tem meios de impor
seus desejos contra a vontade dos demais. A maioria das
tribos de caçadores, no entanto, não tem chefe. Toda a
sociedade dos homens ainda forma uma massa homogênea
e indiferenciada, na qual só alcançam proeminência
aqueles indivíduos que se acredita possuírem poderes
mágicos.4

Aqui, então, quase não existe uma centelha de “posição de


estado”, mesmo no sentido das teorias comuns do estado, menos ainda
no sentido da correta “ideia sociológica do estado”.

4
Grosse, Formen der Familie. Freiburg e Leipzig, 1896, p. 39.

36
A Gênese do Estado

A estrutura social dos camponeses primitivos não tem mais


semelhança com um estado do que tem a horda de caçadores. Onde o
camponês, trabalhando a terra com uma enxada, vive em liberdade,
ainda não há “estado”. O arado é sempre a marca de uma condição
econômica superior que ocorre apenas em um estado; isto é, em um
sistema de trabalho de plantação realizado por servos subjugados.5 Os
agricultores vivem isolados uns dos outros, espalhados pelo país em
áreas rurais separadas, talvez em aldeias, separados por causa de brigas
sobre distritos ou limites de fazendas.
Na melhor das hipóteses, eles vivem em associações fracamente
organizadas, unidos por juramento, ligados apenas frouxamente pelo
laço que a consciência da mesma descendência, fala e a mesma crença
lhes impõe. Eles se unem talvez uma vez por ano na celebração comum
de ancestrais renomados ou do deus tribal. Não há autoridade
governante sobre toda a massa; os vários chefes de uma aldeia, ou
possivelmente de um distrito, podem ter mais ou menos influência em
suas esferas circunscritas, dependendo geralmente de suas qualidades
pessoais e, especialmente, dos poderes mágicos que lhes são atribuídos.
Cunow descreve os camponeses peruanos antes da incursão dos
incas da seguinte forma: “Uma vida não regulamentada lado a lado de
muitas tribos independentes e em guerra mútua, que novamente foram
divididas em uniões territoriais mais ou menos autônomas, mantidas
juntas por laços de parentesco.”6 Pode-se dizer que todos os
camponeses primitivos do velho e do novo mundo eram desse tipo.
Em tal estado da sociedade, dificilmente é concebível que uma
organização guerreira pudesse surgir com propósitos de ataque. É
bastante difícil mobilizar o clã, ou mais ainda a tribo, para defesa
comum. O camponês está sempre carente de mobilidade. Ele é tão
apegado ao solo quanto as plantas que cultiva. De fato, o trabalho de
seu campo o torna “vinculado ao solo” (glebae adscriptus), embora, na
ausência de lei, ele tenha liberdade de movimento. Além disso, que
finalidade teria uma expedição de pilhagem em um país que, em toda a

5
Ratzel, Völkerkunde. 2ª Edition. Leipzig e Viena, 1894-5, II, p. 372.
6
Die Soziale Verfassung des Inkareichs. Stuttgart, 1896, p. 51.

37
O Estado

sua extensão, é ocupado apenas por comunidades camponesas? O


camponês não pode tirar do camponês nada que ele já não possua.
Numa condição de sociedade marcada pela superfluidade das
terras agrícolas, cada indivíduo contribui apenas com um pouco de
trabalho para o seu cultivo extensivo. Cada um ocupa tanto território
quanto necessita. Mais seria supérfluo. Sua aquisição seria trabalho
perdido, mesmo que seu proprietário pudesse conservar por qualquer
período de tempo os produtos de grãos assim garantidos. Sob condições
primitivas, no entanto, isso se deteriora rapidamente devido à mudança
de atmosfera, formigas ou outros agentes. Segundo Ratzel, o camponês
centro-africano deve converter o mais rápido possível a porção em
excesso de sua colheita em cerveja para não perdê-la totalmente!
Por todas essas razões, falta totalmente aos camponeses
primitivos aquele desejo bélico de tomar a ofensiva que é a marca
distintiva dos caçadores e dos pastores: a guerra não pode melhorar sua
condição. E essa atitude pacífica é fortalecida pelo fato de que a
ocupação do camponês não o torna um guerreiro eficiente. É verdade
que seus músculos são fortes e ele tem poderes de resistência, mas ele
é lento de movimento e lento para chegar a uma determinação, enquanto
caçadores e nômades, por seus métodos de vida, desenvolvem
velocidade de movimento e rapidez de ação. Por esta razão, o camponês
primitivo costuma ter uma disposição mais gentil do que eles.7
Resumindo: nas condições econômicas e sociais dos distritos
camponeses não se encontra nenhuma diferenciação a serviço das

7
Essa contradição psicológica, embora muitas vezes expressamente declarada,
não é a regra absoluta, Grosse, Forms of the Family, diz (p. 137): “Alguns
historiadores da civilização colocam o camponês em oposição aos nômades
guerreiros, alegando que os camponeses são pessoas amantes da paz. De fato,
não se pode afirmar que sua vida econômica os leve às guerras, ou os eduque
para ela, como se pode dizer dos criadores de gado. No entanto, encontra-se no
âmbito desta forma de cultivo uma massa dos povos mais guerreiros e cruéis
que se encontram em qualquer lugar. Os canibais selvagens do arquipélago de
Bismarck, os vitianos sedentos de sangue, os açougueiros de homens de
Daóme e dos axantes — todos eles cultivam os acres "pacíficos"; e se outros
camponeses não são tão ruins, parece que a disposição gentil da vasta massa
parece ser, no mínimo, questionável.”

38
A Gênese do Estado

formas superiores de integração. Não existe nem o impulso nem a


possibilidade de sujeição bélica dos vizinhos. Nenhum “Estado” pode,
portanto, surgir; e, de fato, nenhum jamais surgiu de tais condições
sociais. Se não houvesse um impulso de fora, de grupos de homens
alimentados de maneira diferente, o agricultor primitivo nunca teria
descoberto o estado.

(c) Povos precedendo o Estado: Pastores e Vikings

Os pastores, ao contrário, embora isolados, desenvolveram toda


uma série de elementos de posição de estado; e nas tribos que
progrediram mais, desenvolveram essa série de elementos em sua
totalidade, com a única exceção do último ponto de identificação que
completa o estado em seu sentido moderno, ou seja, com exceção
apenas da ocupação definitiva de um território circunscrito.
Um desses elementos é econômico. Mesmo sem a intervenção de
força extraeconômica, ainda pode desenvolver-se entre os pastores uma
diferenciação suficientemente acentuada de propriedade e renda.
Supondo que, no início, houvesse total igualdade no número de cabeças
de gado, dentro de pouco tempo, um homem pode ser mais rico e o
outro mais pobre. Um criador especialmente inteligente verá seu
rebanho aumentar rapidamente, enquanto um vigia especialmente
cuidadoso e um caçador ousado o preservarão da dizimação por animais
de rapina. O elemento sorte também afeta o resultado. Um desses
pastores encontra um pasto especialmente bom e locais saudáveis para
beber água; o outro perde todo o seu estoque por causa de uma
pestilência, ou por causa de uma nevasca ou tempestade de areia.
Distinções na fortuna rapidamente trazem distinções de classe. O
pastor que perdeu tudo deve contratar-se ao homem rico; e submetendo-
se assim sob o outro, torna-se dependente dele. Onde quer que vivam
pastores, de todas as três partes do mundo antigo, encontramos a mesma
história. Meitzen relata sobre os lapões, nômades na Noruega:
“Trezentas renas bastavam para uma família; quem possuía apenas cem

39
O Estado

deveria entrar ao serviço do mais rico, cujos rebanhos chegavam a mil


cabeças.”8
O mesmo escritor, falando dos nômades da Ásia Central, diz:
“Uma família exigia trezentas cabeças de gado para
conforto; cem cabeças é pobreza, seguida por uma vida de
dívidas. O servo deve cultivar as terras do senhor.”9 Ratzel
relata a respeito dos hotentotes da África uma forma de
“commendatio”: “O homem pobre se esforça para se
contratar para o homem rico, seu único objetivo é obter
gado.”10
Laveleye, que relata as mesmas circunstâncias da Irlanda, atribui
a origem e o nome do sistema feudal (système féodal) ao empréstimo
de gado pelos ricos aos membros pobres da tribo; consequentemente,
um “fee-od” (ser dono de gado) foi a primeira rixa pela qual, enquanto
a dívida existisse, o magnata vinculava o pequeno proprietário a si
mesmo como “seu homem”.
Podemos apenas sugerir os métodos pelos quais, mesmo em
associações pacíficas de pastores, essa diferenciação econômica e
social consequente pode ter sido promovida pela conexão do
patriarcado com os ofícios do sacerdócio supremo e sacrificial, se os
velhos sábios usaram habilmente a superstição de seus associados de
clã.
Mas essa diferenciação, desde que não seja afetada pelos meios
políticos, opera dentro de limites muito modestos. Inteligência e
eficiência não são hereditárias com nenhum grau de certeza. O maior
rebanho será dividido se muitos herdeiros crescerem em uma tenda, e a
sorte é complicada. Em nossos dias, o homem mais rico entre os lapões
da Suécia, no menor tempo possível, foi reduzido a uma pobreza tão
completa que o governo teve que sustentá-lo. Todas essas causas fazem

8
Siedlung und Agrarwesen der Westgermanen, etc. Berlim, 1895, I, p. 273.
9
l. c. I, p. 138.
10
Ratzel, l. c. I, p. 702.

40
A Gênese do Estado

com que a condição original de igualdade econômica e social seja


sempre aproximadamente restaurada.11
“Quanto mais pacífico, aborígine e genuíno for o nômade,
menores serão as diferenças tangíveis de posse. É
comovente notar o prazer com que um velho príncipe dos
mongóis de Tsaidam aceita seu tributo ou presente, que
consiste em um punhado de tabaco, um pedaço de açúcar
e vinte e cinco copeques.”12
Essa igualdade é destruída permanentemente e em maior grau
pelos meios políticos. “Onde a guerra é travada e o espólio obtido,
surgem diferenças maiores, que encontram sua expressão na
propriedade de escravos, mulheres, armas e montarias espirituosas.”13
A propriedade de escravos! O nômade é o inventor da escravidão
e, assim, criou a muda do estado, a primeira exploração econômica do
homem pelo homem.
O caçador faz guerras e faz cativos. Mas ele não os torna escravos;
ou ele os mata, ou então os adota na tribo. Escravos seriam inúteis para
ele. O espólio da caçada pode ser guardado ainda menos do que o grão
pode ser “capitalizado”. A ideia de usar um ser humano como motor de
trabalho só poderia surgir em um plano econômico no qual um corpo
de riqueza se desenvolveu, chamemos de capital, que pode ser
aumentado apenas com a ajuda de forças de trabalho dependentes.
Este estágio é alcançado pela primeira vez pelos pastores. As
forças de uma família, sem ajuda externa, são suficientes para manter
unido um rebanho de tamanho muito limitado e protegê-lo de ataques
de animais de rapina ou inimigos humanos. Até que os meios políticos
sejam postos em jogo, as forças auxiliares são encontradas com muita
parcimônia; como os membros mais pobres do clã já mencionado,
juntamente com fugitivos de tribos estrangeiras, que se encontram em

11
Além disso, é crucial que em toda parte nessas sociedades os ricos sejam
forçados pela pressão da opinião pública a doar generosamente, e muitas vezes
excessivamente, até a ruína.
12
Ratzel, l. c. II, p. 555.
13
Ratzel, l. c. II, p. 555.

41
O Estado

todo o mundo como dependentes protegidos na companhia dos maiores


donos de rebanhos.14 Em alguns casos, todo um pobre clã de pastores
entra, meio livremente, a serviço de alguma tribo rica.
“Povos inteiros ocupam posições correspondentes à sua
riqueza relativa. Assim, os tungusen, que são muito
pobres, tentam viver perto dos assentamentos dos
tschuktsches, porque encontram ocupação como pastores
de renas pertencentes aos ricos tschuktsches; eles são
pagos em renas. E a sujeição dos ural-samojedes pelos
pirjaenes ocorreu através da ocupação gradual de seus
pastos.”15
Exceto, porém, o último caso citado, que já é bastante estatal, as
poucas forças de trabalho existentes, sem capital, não são suficientes
para permitir que o clã mantenha rebanhos muito grandes. Além disso,
os próprios métodos de pastoreio obrigam à divisão. Pois um pasto não
pode, como dizem nos Alpes Suíços, ser “exagerado”, ou seja, ter gado
demais. O perigo de perder todo o rebanho é reduzido à medida que ele
é distribuído em vários pastos. Pois pragas de gado, tempestades, etc.,
podem afetar apenas uma parte; enquanto mesmo o inimigo do exterior
não consegue afugentar todos de uma vez. Por isso, os hereros, por
exemplo, “encontram todo proprietário abastado obrigado a manter,
além do rebanho principal, vários outros rebanhos subsidiários. Irmãos
mais novos ou outros parentes próximos, ou na falta deles, servos
antigos testados, observam-nos.”16
Por isso, o nômade desenvolvido poupa seu inimigo capturado;
ele pode usá-lo como escravo em seu pasto. Podemos notar essa
transição de matar para escravizar em um rito costumeiro dos citas: eles
ofereciam em seus locais de sacrifício um em cada cem inimigos
capturados. Lippert, que relata isso, vê nisso “o começo de uma

14
Por exemplo, com os ovambo segundo Ratzel, l. c. II, p. 214, que em parte
“parecem ser encontrados na condição de escravos”, e de acordo com Laveleye
entre os antigos irlandeses (Fuidhirs).
15
Ratzel, l. c. I, p. 648.
16
Ratzel, l. c. II, p. 99.

42
A Gênese do Estado

limitação, e a razão disso é evidentemente encontrada no valor que um


inimigo capturado adquiriu ao se tornar o servo de um pastor tribal”.17
Com a introdução dos escravos na economia tribal dos pastores,
o estado, em seus elementos essenciais, está completo, exceto que ainda
não adquiriu um limite territorial definitivamente circunscrito. O estado
tem, portanto, a forma de domínio, e sua base econômica é a exploração
do trabalho humano. Daí em diante, a diferenciação econômica e a
formação de classes sociais avançam rapidamente. Os rebanhos dos
grandes, sabiamente divididos e mais bem guardados por numerosos
servos armados do que os dos simples homens livres, em regra,
mantêm-se em seu número original: eles também aumentam mais
rapidamente do que os dos homens livres, pois são aumentados pela
maior parte no espólio que os ricos recebem, correspondente ao número
de guerreiros (escravos) que estes colocam no campo.
Da mesma forma, o cargo de sacerdote supremo cria uma fenda
cada vez maior que divide os números do clã, todos anteriormente
iguais; até que finalmente uma nobreza genuína, os ricos descendentes
dos ricos patriarcas, é colocada em justaposição aos homens livres
comuns.
“Os peles-vermelhas também não desenvolveram em sua
organização progressiva nenhuma nobreza e nenhuma
escravidão,18 e nisso sua organização se distingue
essencialmente daquelas do velho mundo. Ambos surgem
do desenvolvimento do patriarcado dos povos criadores de
gado.”19
Assim, encontramos, com todas as tribos desenvolvidas de
pastores, uma separação social em três classes distintas: nobreza
(“chefe da casa de seus pais” na frase bíblica), homens livres comuns e
escravos. De acordo com Mommsen, “todos os povos indo-germânicos

17
Lippert, Kulturgeschichte der Menschheit. Stuttgart, 1886, II, p. 302.
18
Esta afirmação de Lippert não é totalmente correta. Os caçadores e pescadores
domiciliados mais desenvolvidos do noroeste da América têm nobres e
escravos.
19
Lippert, l. c. II, p. 522.

43
O Estado

têm a escravidão como uma instituição jurídica”.20 Isso se aplica aos


arianos e semitas da Ásia e da África, bem como aos hamitas. Entre
todos os fulbe do Saara, “a sociedade é dividida em príncipes, chefes,
plebeus e escravos”.21 E encontramos os mesmos fatos em todos os
lugares, é claro, onde quer que a escravidão seja legalmente
estabelecida, como entre os hova22 e seus parentes polinésios, os
“Nômades do Mar”. A psicologia humana em circunstâncias
semelhantes produz condições semelhantes, independentemente de cor
ou raça.
Assim, o pastor gradualmente se acostuma a ganhar a vida por
meio da guerra e da exploração dos homens como motores de trabalho
servil. E é preciso admitir que todo o seu modo de vida o impele a usar
cada vez mais os “meios políticos”.
Ele é fisicamente mais forte e tão hábil e determinado quanto o
caçador primitivo, cujo suprimento de comida é muito irregular para
permitir que ele atinja seu maior desenvolvimento físico natural. O
pastor pode, em todos os casos, crescer até sua estatura completa, desde
que tenha nutrição ininterrupta no leite de seus rebanhos e um
suprimento infalível de carne. Isso é mostrado no nômade de cavalos
ariano, não menos do que no pastor da Ásia e da África, por exemplo,
o zulu.
Em segundo lugar, as tribos de pastores aumentam mais
rapidamente do que as hordas de caçadores. Isto é assim, não só porque
os adultos podem obter muito mais alimento de um determinado
território, mas ainda mais porque a posse do leite dos animais encurta o
período de amamentação das mães e, consequentemente, permite que
nasçam um maior número de crianças e cresçam até à maturidade.
Como consequência, os pastos e as estepes do velho mundo tornaram-
se fontes inesgotáveis, que periodicamente irrompiam de seus confins
deixando escapar inundações de humanidade, de modo que passaram a
ser chamadas de “vaginae gentium”.

20
Römische Geschichte. 6ª edição. Berlim, 1874, I, p. 17.
21
Ratzel, l. c. II, p. 518.
22
Ratzel, l. c. I, p. 425.

44
A Gênese do Estado

Além disso, encontramos um número muito maior de guerreiros


armados entre os pastores do que entre os caçadores. Cada um desses
pastores é mais forte individualmente e, no entanto, todos juntos são
pelo menos tão móveis quanto uma horda de caçadores; enquanto os
cavaleiros de camelo e cavalo entre eles são incomparavelmente mais
móveis. Essa massa maior dos melhores elementos individuais é
mantida unida por uma organização somente possível sob a égide de
um patriarcado detentor de escravos acostumado a governar, uma
organização preparada e desenvolvida por sua ocupação e, portanto,
superior à dos jovens guerreiros dos caçadores jurados ao serviço de um
chefe.
Os caçadores, pode-se observar, trabalham melhor sozinhos ou
em pequenos grupos. Os pastores, por outro lado, movem-se da melhor
maneira em um grande comboio, no qual cada indivíduo está mais
protegido; e que é em todos os sentidos uma expedição armada, onde
cada ponto de parada se torna um acampamento armado. Assim,
desenvolve-se uma ciência de manobras táticas, subordinação estrita e
disciplina firme. “Não se engane”, como diz Ratzel,
“se se considerar como forças disciplinares na vida dos
nômades a ordem das tendas que, da mesma forma,
existem desde os tempos mais remotos. Cada um e tudo
aqui tem um lugar tradicional definido; daí a rapidez e a
ordem na montagem e desmontagem do acampamento, no
estabelecimento e na reorganização. É inédito que alguém
sem ordens, ou sem o motivo mais premente, deva mudar
de lugar. Graças a esta disciplina rigorosa, as tendas podem
ser embaladas e carregadas no espaço de uma hora.”23
A mesma ordem experimentada, transmitida por eras incontáveis,
regula a marcha guerreira da tribo dos pastores durante a caça, na guerra
e na peregrinação pacífica. Assim, eles se tornam lutadores
profissionais, irresistíveis até que o estado desenvolva organizações
mais elevadas e poderosas. Pastor e guerreiro tornam-se conceitos

23
Ratzel, l. c. II, p. 545.

45
O Estado

idênticos. A afirmação de Ratzel sobre os nômades da Ásia Central se


aplica a todos eles:
“O nômade é, como pastor, um conceito econômico, como
guerreiro, um conceito político. É fácil para ele passar de
qualquer atividade para a do guerreiro e ladrão. Tudo na
vida tem para ele um lado pacífico e bélico, um lado
honesto e ladrão; de acordo com as circunstâncias, uma ou
outra dessas fases aparece em primeiro lugar. Mesmo a
pesca e a navegação, nas mãos dos turcomanos do Cáspio
Oriental, transformaram-se em pirataria. [...] As atividades
da existência aparentemente pacífica como pastor
determinam as do guerreiro; o cajado pastoral torna-se um
instrumento de luta. No outono, quando os cavalos
retornam fortalecidos do pasto e a segunda colheita das
ovelhas é concluída, as mentes dos nômades voltam-se
para algum feudo ou expedição de roubo (Baranta,
literalmente, fazer gado, levantar gado), adiada para
aquele tempo. Esta é uma expressão do direito de
autoajuda, que em disputas sobre questões de direito, ou
em disputas que afetam a dignidade, ou em rixas de
sangue, busca tanto retribuição quanto garantia nas coisas
mais valiosas que o inimigo possui, ou seja, os animais de
seu rebanho. Os jovens que não estiveram em uma baranta
devem primeiro adquirir o nome de batir, herói, e assim
ganhar o direito de honra e respeito. O prazer da donidade
unido ao desejo de aventura desenvolve a tríplice gradação
descendente de vingador, herói e ladrão.”24
Um desenvolvimento idêntico ocorre com os nômades do mar, os
“vikings”, como com os nômades da terra. Isso é bastante natural, pois
nos casos mais importantes observados na história da humanidade, os
nômades do mar são simplesmente nômades da terra que se dirigem ao
mar.
Observamos acima um dos inúmeros exemplos que indicam que
o pastor não hesita muito em usar para expedições saqueadoras, em vez
do cavalo ou do “navio do deserto”, os “cavalos do mar”. Este caso é

24
Ratzel, l. c. II, pp. 390-1.

46
A Gênese do Estado

exemplificado pelos turcomanos do Cáspio Oriental.25 Outro exemplo


é fornecido pelos citas:
“A partir do momento em que aprendem com seus vizinhos
a arte de navegar nos mares, esses pastores errantes, a
quem Homero (Ilíada, XIII, 3) chama de 'cavaleiros
respeitados, comedores de leite e pobres, os mais justos
dos homens', transformam-se em ousados navegadores
como seus irmãos bálticos e escandinavos. Estrabão (Cas.,
301) reclama: ‘Desde que se aventuraram no mar,
praticando pirataria e assassinando estrangeiros, eles se
tornaram piores; e associando-se com muitos povos, eles
adotam seus hábitos mesquinhos de comércio e
esbanjamento.'”26
Se os fenícios realmente eram “semitas”, eles fornecem um
exemplo adicional de importância incomparável da transformação de
“beduínos” da terra em do mar, i.e., ladrões guerreiros; e o mesmo é
provavelmente verdade para a maioria dos numerosos povos que
saquearam os países ricos ao redor do Mediterrâneo, seja da costa da
Ásia Menor, Dalmácia ou da costa norte-africana. Estes começam desde
os primeiros tempos, como vemos nos monumentos egípcios (os gregos
não foram admitidos no Egito),27 e continuam até os dias atuais: e.g., os
piratas do Rife. Os “mouros” norte-africanos, uma fusão de árabes e
berberes, ambos originalmente nômades da terra, são talvez o exemplo
mais célebre dessa mudança.
Há casos em que os nômades do mar — ou seja, os ladrões do
mar — surgem imediatamente dos pescadores, sem estágio
intermediário de pastor. Já examinamos as causas que dão aos pastores
sua superioridade sobre o campesinato: a população relativamente
numerosa da horda, combinada com uma atividade que desenvolve

25
Ratzel, l. c. II, pp. 390-1.
26
Lippert, l. c. I, p. 471.
27
Kulischer, “Zur Entwicklungsgeschichte des Kapitelzinses.” Jahrbücher für
National Ökonomie. parte III, vol. 18, p. 318, Jena, 1899: (Diz Estrabão:
“Saqueadores e ansiosos por ir para terras estrangeiras devido à pobreza de sua
terra natal.”)

47
O Estado

coragem e resolução rápida no indivíduo, e educa a massa como um


todo para uma disciplina tensa.
Tudo isso se aplica também aos pescadores que vivem no mar.
Áreas de pesca ricas permitem uma densidade populacional
considerável, como é demonstrado no caso dos índios do Noroeste
(tlingit, etc.); estes permitem também a custódia de escravos, uma vez
que o escravo ganha mais com a pesca do que seu sustento. Assim
encontramos, somente aqui entre os peles-vermelhas, a escravidão
desenvolvida como uma instituição; e encontramos, portanto, junto com
ela, diferenças econômicas permanentes entre os homens livres, que
resultam em uma espécie de plutocracia semelhante à observada entre
os pastores.
Aqui, como ali, o hábito de comandar os escravos produz o hábito
de governar e o gosto pelos “meios políticos”. Isso é favorecido pela
tensa disciplina desenvolvida na navegação.
“Nenhuma vantagem da pesca em comum encontra-se na
disciplina das tripulações. Eles devem prestar obediência
implícita a um líder escolhido em cada um dos maiores
barcos de pesca, pois todo sucesso depende da obediência.
O comando de um navio depois facilita o comando do
estado. Estamos acostumados a considerar os habitantes
das Ilhas Salomão como completos selvagens, e ainda
assim sua vida está sujeita a um elemento solitário, que
combina suas forças, a saber, a navegação.”28
Se os índios do Noroeste não se tornaram tão famosos ladrões do
mar no velho mundo, isso se deve ao fato de que as vizinhanças ao seu
alcance não desenvolveram nenhuma civilização rica; mas todos os
pescadores mais desenvolvidos praticam a pirataria.
Por isso, os vikings têm a mesma capacidade de escolher os meios
políticos como base de sua existência econômica que os ladrões de
gado; e da mesma forma eles foram fundadores de estados em grande
escala. Daqui em diante, distinguiremos os estados fundados por eles
como “estados do mar”, enquanto os estados fundados por pastores —

28
Ratzel, l. c. I, p. 123.

48
A Gênese do Estado

e no novo mundo por caçadores — serão chamados de “estados


terrestres”. Os estados do mar serão tratados extensivamente quando
discutirmos as consequências do estado feudal desenvolvido. Enquanto,
porém, estivermos discutindo o desenvolvimento do estado e do estado
feudal primitivo, devemos nos limitar a considerar o estado da terra e
deixar de lado o estado do mar. Este tratamento é conveniente, pois em
todas as coisas essenciais o estado do mar tem as mesmas
características, mas seu desenvolvimento não pode ser seguido através
dos vários estágios típicos como pode o desenvolvimento do estado
terrestre.

(d) A Gênese do Estado

As hordas de caçadores são incomparavelmente mais fracas, tanto


em número quanto na força dos lutadores individuais, do que os
pastores com quem ocasionalmente esbarram. Naturalmente, eles não
podem suportar o impacto. Eles fogem para as terras altas e montanhas,
onde os pastores não têm vontade de segui-los, não apenas por causa
das dificuldades físicas envolvidas, mas também porque seu gado não
encontra pastagem lá; ou então entram em uma forma de relação
clientelista, como acontecia com frequência na África, especialmente
em tempos muito antigos. Quando os hicsos invadiram o Egito, tais
caçadores dependentes os seguiram. Os caçadores costumam pagar pela
proteção um tributo insignificante na forma de despojos da caça e são
usados para reconhecimento e vigilância. Mas o caçador, sendo um
“anarquista prático”, muitas vezes convida a sua própria destruição em
vez de se submeter ao trabalho regular. Por essas razões, nenhum
“estado” jamais surgiu de tal contato.
Os camponeses lutam como recrutas indisciplinados e com seus
combatentes individuais indisciplinados; de modo que, a longo prazo,
embora sejam numerosos, não são mais capazes do que os caçadores de
resistir ao ataque dos pastores fortemente armados. Mas o campesinato
não foge. O camponês está apegado à sua terra e está acostumado ao
trabalho regular. Ele permanece, cede à sujeição e presta homenagem
49
O Estado

ao seu conquistador; essa é a gênese dos estados terrestres no velho


mundo.
No novo mundo, onde os animais de pastoreio maiores, gado,
cavalos, camelos, não eram nativos, descobrimos que, em vez do pastor,
o caçador é o conquistador do camponês, por causa de sua habilidade
infinitamente superior no uso de armas e em disciplina militar.
“No velho mundo descobrimos que o contraste entre
pastores e camponeses desenvolvia a civilização; no novo
mundo, o contraste é entre as tribos sedentárias e as
errantes. Os toltecas, dedicados à agricultura, lutaram
contra as tribos selvagens (com uma organização militar
altamente desenvolvida) invadindo do norte, tão
incansavelmente quanto o Irã com Turan.”29
Isso vale não apenas para o Peru e o México, mas para toda a
América, um forte fundamento para a opinião de que a base
fundamental da civilização é a mesma em todo o mundo, sendo seu
desenvolvimento consistente e regular nas mais variadas condições
econômicas e geográficas. Onde quer que a oportunidade se apresente
e o homem possua o poder, ele prefere os meios políticos aos
econômicos para a preservação de sua vida. E talvez isso não seja
verdade apenas para o homem, pois, de acordo com Life of the Bees de
Maeterlinck, um enxame que uma vez fez a experiência de obter mel de
uma colmeia estrangeira, por roubo em vez de construção tediosa, está
a partir de então arruinado para os “meios econômicos”. Das abelhas
trabalhadoras, surgiram as abelhas ladras.
Deixando de lado as formações de estado do novo mundo, que
não têm grande significado na história universal, a causa da gênese de
todos os estados é o contraste entre camponeses e pastores, entre
trabalhadores e ladrões, entre terras baixas e pradarias. Ratzel,
considerando a sociologia do ponto de vista geográfico, expressa isso
inteligentemente:

29
Ratzel, l. c. I, p. 591.

50
A Gênese do Estado

“Deve ser lembrado que os nômades nem sempre destroem


a civilização oposta dos povos assentados. Isso se aplica
não apenas a tribos, mas também a estados, mesmo aqueles
de algum poder. O caráter guerreiro dos nômades é um
grande fator na criação de estados. Encontra expressão nas
imensas nações da Ásia controladas por dinastias nômades
e exércitos nômades, como a Pérsia, governada pelos
turcos; a China, conquistada e governada pelos mongóis e
manchus; e nos estados mongóis e radjaputa da Índia, bem
como nos estados na fronteira do Sudão, onde a
amalgamação dos elementos anteriormente hostis ainda
não se desenvolveu até agora, embora eles estejam unidos
por benefício mútuo. Em nenhum lugar é tão claro como
aqui na fronteira dos povos nômades e camponeses, que as
grandes obras do impulso promovedor de civilização dos
nômades não são resultado da atividade civilizadora, mas
de façanhas bélicas a princípio prejudiciais ao trabalho
pacífico. Sua importância reside na capacidade dos
nômades de manter unidas as raças sedentárias que de
outra forma facilmente se desintegrariam. Isso, no entanto,
não exclui seu grande aprendizado com seus súditos. [...]
No entanto, todo esse povo trabalhador e inteligente não
tinha e não podia ter a vontade e o poder de governar, o
espírito militar e o senso de ordem e subordinação que
beneficia um estado. Por esta razão, os senhores nascidos
no deserto do Sudão governam seu povo negro, assim
como os manchus governam seus súditos chineses. Isso
ocorre de acordo com uma lei, válida de Timbuctu a
Pequim, segundo a qual formações estatais vantajosas
surgem em ricas terras camponesas adjacentes a uma vasta
pradaria; onde uma alta cultura material de povos
sedentários é violentamente subjugada ao serviço dos
habitantes das pradarias com energia, capacidade bélica e
desejo de governar.”30
Na gênese do estado, da sujeição de um povo camponês a uma
tribo de pastores ou a nômades do mar, podem ser distinguidas seis
etapas. Na discussão a seguir, não se deve presumir que o

30
Ratzel, l. c. II, p. 370.

51
O Estado

desenvolvimento histórico real deva, em cada caso particular, galgar


toda a escala etapa após etapa. Embora, mesmo aqui, o argumento não
dependa de uma mera construção teórica, uma vez que cada estágio
particular é encontrado em numerosos exemplos, tanto na história do
mundo quanto na etnologia, e há estados que aparentemente
progrediram em todos eles. Mas há muitos mais que pularam um ou
mais desses estágios.
A primeira fase compreende roubos e mortes em lutas de
fronteira, combates intermináveis interrompidos nem pela paz nem pelo
armistício. É marcado pela matança de homens, rapto de crianças e
mulheres, pilhagem de rebanhos e queima de residências. Mesmo que
os infratores sejam derrotados no início, eles retornam em corpos cada
vez mais fortes, impelidos pelo dever da rixa de sangue. Às vezes, o
grupo de camponeses pode se reunir, organizar sua milícia e talvez
derrotar temporariamente o ágil inimigo; mas a mobilização é muito
lenta e os suprimentos a serem trazidos para o deserto são muito caros
para os camponeses. A milícia camponesa não carrega, como o inimigo,
seu estoque de alimentos — seus rebanhos — para o campo.
No sudoeste da África, os alemães experimentaram recentemente
as dificuldades que uma força bem disciplinada e superior, equipada
com um trem de abastecimento, com uma ferrovia voltando para sua
base de abastecimento e com os milhões do Império Alemão atrás dela,
pode ter com um punhado de guerreiros pastores, que foram capazes de
dar aos alemães um revés decisivo. No caso dos impostos primitivos,
essa dificuldade é aumentada pelo espírito tacanho do camponês, que
considera apenas sua própria vizinhança, e pelo fato de que, enquanto a
guerra continua, as terras não são cultivadas. Portanto, nesses casos, a
longo prazo, o corpo pequeno, mas compacto e facilmente mobilizável
derrota constantemente a massa maior e desarticulada, como a pantera
triunfa sobre o búfalo.
Este é o primeiro estágio na formação dos estados. O estado pode
permanecer estacionário neste ponto por séculos, por mil anos. O
seguinte é um exemplo completamente característico:
Cada extensão de uma tribo turcomana anteriormente
delimitada por um amplo cinturão que pode ser designado

52
A Gênese do Estado

como seu 'distrito de pilhagem'. Tudo ao norte e leste de


Chorassan, embora nominalmente sob domínio persa, por
décadas pertenceu mais aos turcomanos, jomudes,
goklenes, e outras tribos das planícies fronteiriças, do que
aos persas. Os tekinzes, de maneira semelhante,
saquearam todos os trechos de Kiwa a Bokhara, até que
outras tribos turcomanas foram reunidas com sucesso pela
força ou pela corrupção para atuar como um tampão.
Inúmeros outros exemplos podem ser encontrados na
história da cadeia de oásis que se estende entre a Ásia
Oriental e Ocidental diretamente através das estepes de sua
parte central, onde desde os tempos antigos os chineses
exerceram uma influência predominante através da posse
de todos os centros estratégicos importantes, como o Oásis
de Chami. Os nômades, partindo do norte e do sul,
tentavam constantemente desembarcar nessas ilhas de solo
fértil, que para eles devem ter parecido as Ilhas dos
Abençoados. E toda horda, carregada de pilhagem ou
fugindo após a derrota, era protegida pelas planícies.
Embora as ameaças mais imediatas tenham sido evitadas
pelo enfraquecimento contínuo dos mongóis e pelo
domínio real do Tibete, a última insurreição dos dunganes
mostrou com que facilidade as ondas de uma tribo móvel
penetram essas ilhas de civilização. Somente após a
destruição dos nômades, impossível enquanto houver
planícies abertas na Ásia Central, sua existência pode ser
definitivamente assegurada.31
Toda a história do velho mundo está repleta de casos bem
conhecidos de expedições em massa, que devem ser atribuídas ao
primeiro estágio de desenvolvimento do estado, na medida em que não
visavam a conquista, mas diretamente o saque. A Europa Ocidental
sofreu com essas expedições nas mãos dos celtas, germânicos, hunos,
avares, árabes, magiares, tártaros, mongóis e turcos por terra; enquanto
os vikings e os sarracenos o assediavam nas vias navegáveis. Essas
hordas inundaram continentes inteiros muito além dos limites de seu
território de pilhagem habitual. Eles desapareceram, voltaram, foram

31
Ratzel, l. c. II, pp. 390-1.

53
O Estado

absorvidos e deixaram para trás apenas terras devastadas. Em muitos


casos, porém, avançaram em alguma parte do distrito inundado
diretamente para o sexto e último estágio de formação de estado, nos
casos em que estabeleceram um domínio permanente sobre a população
camponesa. Ratzel descreve essas migrações em massa de forma
excelente no seguinte:
As expedições das grandes hordas de nômades contrastam
com esse movimento, gota a gota e passo a passo, pois
transbordam de um poder tremendo, especialmente a Ásia
Central e todos os países vizinhos. Os nômades deste
distrito, como da Arábia e do Norte da África, unem a
mobilidade em seu modo de vida com uma organização
que reúne toda a sua massa para um único objeto. Parece
ser uma característica dos nômades que eles facilmente
desenvolvem poder despótico e poder de longo alcance a
partir da coesão patriarcal da tribo. Assim, surgem
governos de massa, que se comparam a outros movimentos
entre os homens da mesma forma que os riachos inchados
se comparam ao fluxo constante, mas difuso, de um
afluente. A história da China, Índia e Pérsia, não menos
que a da Europa, mostra sua importância histórica. Assim
como eles se moviam em seus campos com suas esposas e
filhos, escravos e carroças, rebanhos e toda a sua
parafernália, eles inundaram as terras fronteiriças. Embora
esse lastro possa tê-los privado de velocidade, ele
aumentou seu ímpeto. Os habitantes assustados foram
levados diante deles e, como uma onda, rolaram sobre os
países conquistados, absorvendo suas riquezas. Como
carregavam tudo consigo, suas novas moradas foram
equipadas com todos os seus bens e, portanto, seus
assentamentos finais tiveram uma importância
etnográfica. Dessa maneira, os magiares inundaram a
Hungria, os manchus invadiram a China, os turcos, os
países da Pérsia ao Adriático.32
O que foi dito aqui de hamitas, semitas e mongóis, pode ser dito
também, pelo menos em parte, das tribos arianas de pastores. Aplica-se

32
Ratzel, l. c. II, pp. 388-9.

54
A Gênese do Estado

também aos verdadeiros negros, pelo menos àqueles que vivem


inteiramente de seus rebanhos:
“As tribos móveis e beligerantes dos kafirs possuem um
poder de expansão que precisa apenas de um objeto
sedutor para atingir efeitos violentos e derrubar as relações
etinológicas de vastos distritos. A África Oriental oferece
tal objeto. Aqui o clima não proibiu a criação de gado,
como nos países do interior, e não paralisou desde o início
o poder de impacto dos nômades, embora numerosos
pacíficos povos agrícolas encontrassem espaço para seu
desenvolvimento. Tribos errantes de kafirs se derramaram
como riachos devastadores nas terras frutíferas do
Zambeze, e até as terras altas entre o Tanganica e a costa.
Aqui eles encontraram a guarda avançada do watusi, uma
onda de erupção hamita, vinda do norte. Os antigos
habitantes desses distritos foram exterminados ou, como
servos, cultivaram as terras que anteriormente possuíam;
ou ainda continuaram a lutar; ou ainda, permaneceram
imperturbáveis em assentamentos deixados de lado pelo
fluxo da conquista.”33
Tudo isso aconteceu diante de nossos olhos. Parte disso ainda está
acontecendo. Durante muitos milhares de anos, “abalou toda a África
Oriental, desde o Zambeze até o Mediterrâneo”. A incursão dos hicsos,
por meio da qual por mais de quinhentos anos o Egito esteve sujeito às
tribos de pastores dos desertos do leste e do norte — “parentes dos
povos que até os dias atuais pastoreiam seus rebanhos entre o Nilo e o
Mar Vermelho”34 — é a primeira fundação autenticada de um estado.
Esses estados foram seguidos por muitos outros, tanto no próprio país
do Nilo, quanto mais ao sul, até o Império de Muata Jamvo, na orla sul
do distrito central do Congo, que os comerciantes portugueses em
Angola relataram já no final de o século XVI, e até o Império de
Uganda, que só em nossos dias finalmente sucumbiu à organização
militar superior da Europa. “A terra deserta e a civilização nunca se

33
Ratzel, l. c. II, pp. 103-04.
34
Thurnwald, Staat und Wirtschaft im altem Ägypten. Zeitschrift für Soz.
Wissenchaft, vol. 4, 1901, pp. 700-01.

55
O Estado

encontram pacificamente lado a lado; mas suas batalhas são todas


semelhantes e cheias de repetições.”35
“Semelhantes e cheias de repetições”! Isso pode ser dito da
história universal em suas linhas básicas. O ego humano em seu aspecto
fundamental é praticamente o mesmo em todo o mundo. Atua
uniformemente, obedecendo às mesmas influências de seu meio, com
raças de todas as cores, em todas as partes da terra, tanto nos trópicos
quanto nas zonas temperadas. É preciso recuar o suficiente e escolher
um ponto de vista tão alto que o aspecto variegado dos detalhes não
esconda os grandes movimentos da massa. Em tal caso, nossos olhos
perdem o “modo” da luta, da errância, da humanidade trabalhadora,
enquanto sua “substância”, sempre semelhante, sempre nova, sempre
duradoura através da mudança, revela-se sob leis uniformes.
Gradualmente, desta primeira fase, desenvolve-se a segunda, na
qual o camponês, através de milhares de tentativas frustradas de revolta,
aceitou seu destino e cessou toda resistência. Por volta dessa época,
começa a surgir na consciência do pastor selvagem que um camponês
assassinado não pode mais arar e que uma árvore frutífera derrubada
não mais produzirá. Em seu próprio interesse, então, sempre que
possível, ele deixa o camponês viver e a árvore crescer. A expedição
dos pastores vem como antes, cada membro eriçado com armas, mas
não mais pretendendo nem esperando guerra e apropriação violenta. Os
invasores queimam e matam apenas na medida do necessário para
impor um respeito saudável ou para quebrar uma resistência isolada.
Mas, em geral, principalmente de acordo com um direito
consuetudinário em desenvolvimento — o primeiro germe do
desenvolvimento de todo o direito público — o pastor agora se apropria
apenas do excedente do camponês. Ou seja, ele deixa ao camponês sua
35
Ratzel, l. c. II, pp. 404-05. (Gumplowicz, Rassenkampf, p. 264: “O Egito, rico
e autossuficiente, diz Ranke, convidou a avareza das tribos vizinhas, que
serviam a outros deuses. Sob o nome de povos pastores, dinastias estrangeiras
e tribos estrangeiras governaram o Egito por séculos. “Verdadeiramente, o
resumo da história universal não poderia ser iniciado com palavras mais
características do que as de Ranke. Pois nas palavras aplicadas ao Egito está
resumida a quintessência de toda a história da humanidade.” — Tradutor da
Edição em Inglês.)

56
A Gênese do Estado

casa, seus apetrechos e provisões até a próxima safra.36 O pastor no


primeiro estágio é como o urso, que com o propósito de roubar a
colmeia, a destrói. No segundo estágio, ele é como o apicultor, que
deixa às abelhas mel suficiente para carregá-las durante o inverno.
Grande é o progresso entre o primeiro estágio e o segundo. Longo
é o passo adiante, tanto econômica quanto politicamente. No início,
como vimos, a aquisição pela tribo dos pastores era puramente
ocupacional. Independentemente das consequências, eles destruíram a
fonte de riqueza futura para aproveitar o momento. Doravante a
aquisição torna-se econômica, porque toda economia se baseia em uma
sábia administração doméstica, ou seja, em restringir o gozo do
momento em vista das necessidades do futuro. O pastor aprendeu a
“capitalizar”.
É um grande avanço na política quando um ser humano
totalmente estranho, até então presa como os animais selvagens, obtém
um valor e é reconhecido como uma fonte de riqueza. Embora este seja
o início de toda escravidão, subjugação e exploração, é ao mesmo
tempo a gênese de uma forma superior de sociedade, que vai além da
família baseada na relação consanguínea. Vimos como, entre ladrões e
roubados, os primeiros fios de uma relação jurídica foram tecidos
através da fenda que separava aqueles que até então eram apenas
“inimigos mortais”. O camponês obtém assim uma aparência de direito
às necessidades básicas da vida; de modo que é considerado errado
matar um homem sem resistência ou despojá-lo de tudo.
E melhor do que isso, fios gradualmente mais delicados e macios
são tecidos em uma rede ainda muito fina, mas que, no entanto, traz
mais relações humanas do que o arranjo habitual da divisão de espólios.
Uma vez que os pastores não mais enfrentam os camponeses apenas em
combate, é provável que agora atendam a um pedido respeitoso ou
solucionassem uma queixa bem fundamentada. “O imperativo

36
Ratzel, l. c. II, p. 393, falando dos árabes diz: “A dificuldade de alimentar os
escravos torna impossível mantê-los. Vastas populações são mantidas em
sujeição e privadas de tudo além do necessário para manter a vida.
Transformam oásis inteiros em terras dominiais, visitados na época da colheita
para roubar os habitantes; uma dominação característica do deserto.”

57
O Estado

categórico” da equidade, “faça aos outros o que você gostaria que


fizessem a você”, até então havia regido os pastores apenas em suas
relações com seus próprios membros da tribo e sua espécie. Agora, pela
primeira vez, começa a falar, sussurrando timidamente em nome
daqueles que são estranhos à relação consanguínea. Nisto encontramos
o germe daquele magnífico processo de fusão externa que, a partir de
pequenas hordas, formou nações e uniões de nações; e que, no futuro,
dará vida ao conceito de “humanidade”. Encontramos também o germe
da unificação interna das tribos uma vez separadas, da qual, no lugar do
ódio aos “bárbaros”, surgirá o amor abrangente pela humanidade, do
cristianismo e do budismo.
O momento em que o conquistador primeiro poupou sua vítima
para explorá-la permanentemente em um trabalho produtivo, teve uma
importância histórica incomparável. Deu origem à nação e ao estado,
ao direito e à economia superior, com todos os desenvolvimentos e
ramificações que surgiram e que surgirão a partir deles. A raiz de tudo
o que é humano desce até o solo escuro do animal — amor e arte, não
menos que estado, justiça e economia.
Ainda outra tendência amarra ainda mais estreitamente essas
relações psíquicas. Voltando à comparação do pastor e do urso, há no
deserto, ao lado do urso que guarda as abelhas, outros ursos que também
desejam o mel. Mas nossa tribo de pastores bloqueia seu caminho e
protege suas colmeias pela força das armas. Os camponeses se
acostumam, quando o perigo ameaça, a chamar os pastores, que eles
não consideram mais como ladrões e assassinos, mas como protetores
e salvadores. Imagine a alegria dos camponeses quando o bando de
vingadores que retorna traz de volta à aldeia as mulheres e crianças
saqueadas, com as cabeças ou escalpos dos inimigos. Esses laços não
são mais fios, mas faixas fortes e com nós.
Aqui está uma das principais forças dessa “integração”, pela qual,
no desenvolvimento posterior, aqueles originalmente não do mesmo
sangue, e muitas vezes de grupos diferentes que falam línguas
diferentes, serão no final fundidos em um povo, com uma linguagem,
um costume e um sentimento de nacionalidade. Essa unidade cresce

58
A Gênese do Estado

gradativamente a partir de sofrimento e necessidade comuns, vitórias e


derrotas comuns, regozijo comum e tristeza comum.
Um novo e vasto domínio se abre quando senhor e escravo
servem aos mesmos interesses; então surge uma corrente de simpatia,
um senso de serviço comum. Ambos os lados apreendem e
gradualmente reconhecem a humanidade comum um do outro.
Gradualmente, os pontos de semelhança são percebidos, no lugar das
diferenças de constituição e vestimenta, de linguagem e religião, que
até então haviam causado apenas antipatia e ódio. Gradualmente, eles
aprendem a se entender, primeiro por meio de um discurso comum e
depois por meio de um hábito mental comum. A rede das inter-relações
psíquicas torna-se mais forte.
Nesta segunda etapa da formação dos estados, o trabalho de base,
no essencial, está traçado. Nenhum outro passo pode ser comparado em
importância à transição pela qual o urso se torna um apicultor. Por esta
razão, referências curtas devem ser suficientes.
A terceira fase chega quando o “excedente” obtido pelo
campesinato é levado por eles regularmente às tendas dos pastores
como “tributo”, uma regulamentação que oferece a ambas as partes
vantagens autoevidentes e consideráveis. Por este meio, o campesinato
fica totalmente isento das pequenas irregularidades ligadas ao antigo
método de tributação, como alguns homens espancados na cabeça,
mulheres violentadas ou casas de fazenda incendiadas. Os pastores, por
outro lado, não precisam mais aplicar a esse “negócio” nenhuma
“despesa” e trabalho, para usar uma expressão mercantil; e eles dedicam
o tempo e a energia assim liberados para uma “extensão dos trabalhos”,
em outras palavras, para subjugar outros camponeses.
Esta forma de tributo é encontrada em muitos exemplos bem
conhecidos da história: hunos, magiares, tártaros, turcos obtiveram sua
maior renda de seus tributos europeus. Às vezes, o caráter do tributo
pago pelos súditos ao seu senhor é mais ou menos vago, e o ato assume
a forma de pagamento por proteção, ou mesmo de subvenção. É bem
conhecida a história segundo a qual Átila foi retratado pelo fraco
imperador de Constantinopla como um príncipe vassalo; enquanto o
tributo que ele pagou ao Huno apareceu como uma taxa.

59
O Estado

A quarta etapa, mais uma vez, é de suma importância, pois agrega


o fator decisivo no desenvolvimento do estado, como estamos
acostumados a ver, a saber, a união em uma faixa de terra de ambos os
grupos étnicos.37 (Sabe-se que nenhuma definição jurídica de estado
pode ser alcançada sem o conceito de território estatal.) A partir de
então, a relação dos dois grupos, originalmente internacional,
gradualmente se torna cada vez mais intranacional.
Esta união territorial pode ser causada por influências
estrangeiras. Pode ser que hordas mais fortes tenham empurrado os
pastores para a frente, ou que seu aumento populacional tenha atingido
o limite estabelecido pela capacidade nutritiva das estepes ou pradarias;
pode ser que uma grande praga do gado tenha forçado os vaqueiros a
trocar a extensão ilimitada das pradarias pelos estreitos de algum vale
fluvial. Em geral, porém, bastam as causas internas para que os pastores
permaneçam na vizinhança de seus camponeses.
O dever de proteger seus afluentes contra outros “ursos” os obriga
a manter um contingente de jovens guerreiros na vizinhança de seus
súditos; e isso é ao mesmo tempo uma excelente medida de defesa, pois
impede que os camponeses cedam ao desejo de romper suas amarras ou
deixar que outros pastores se tornem seus senhores. Esta última
ocorrência não é rara, pois, se a tradição estiver correta, é o meio pelo
qual os filhos de Rurik vieram para a Rússia.

37
Há, aparentemente no caso dos fulbe, um estágio de transição entre os três
primeiros estágios e o quarto, em que o domínio é exercido metade
internacionalmente e metade intranacionalmente. Segundo Ratzel (l. c. II, p.
419): “Como uma sépia, a raça conquistadora estende numerosos braços aqui
e ali entre os aborígines apavorados, cuja falta de coesão proporciona muitas
lacunas. Assim, os fulbe estão fluindo lentamente para os países de Benue e
gradualmente os permeando. Observadores posteriores abstiveram-se,
portanto, com razão, de atribuir limites definidos. Existem muitas localidades
dispersas de fulbe que consideram um determinado local como seu centro e
como o centro de seu poder. Assim, Muri é a capital dos numerosos
assentamentos fulbe espalhados pelo Médio Benue, e a posição de Gola é
semelhante no distrito de Adamawa. Ainda não há reinos próprios com
fronteiras definidas uns contra os outros e contra tribos independentes. Mesmo
essas capitais estão, em outros aspectos, ainda longe de serem firmemente
estabelecidas.”

60
A Gênese do Estado

Até agora, a justaposição local não significa uma comunidade


estatal em seu sentido mais estrito; isto é, uma organização unitária.
Caso os pastores estejam lidando com súditos totalmente não
bélicos, eles continuam sua vida nômade, vagando pacificamente para
cima e para baixo e pastoreando seu gado entre seus periecos e hilotas.
É o caso dos wahuma de cor clara,38 “os homens mais belos do mundo”
(Kandt), na África Central, ou do clã tuaregue dos hadanara da tribo
asgar,
“que tomaram assento entre os imrad e tornaram-se piratas
errantes. Esses imrad são a classe servidora dos asgars, que
vivem neles, embora os imrad pudessem colocar em
campo dez vezes mais guerreiros; a situação é análoga à
dos espartanos em relação aos seus hilotas.”39
O mesmo pode ser dito dos teda entre a próxima Borku:
“Assim como a terra é dividida em um semi-deserto que
sustenta os nômades, e jardins com pomares de tâmaras,
então a população é dividida entre nômades e povos
estabelecidos. Embora aproximadamente igual em
número, dez a doze mil no total, nem é preciso dizer que
estes últimos estão sujeitos aos outros.”40
E o mesmo se aplica a todo o grupo de pastores conhecidos como
galla masi e wahuma.
“Embora as diferenças de posse sejam consideráveis, eles
têm poucos escravos, como classe servidora. Estes são
representados por povos de casta inferior, que vivem
separados e afastados deles. É o pastoreio que está na base
da família, do estado e, com eles, do princípio da evolução
política. Neste vasto território, entre Scehoa e seus limites
mais ao sul, por um lado, e Zanzibar, por outro, não se

38
Ratzel, l. c. II, p. 165.
39
Ratzel, l. c. II, p. 485.
40
Ratzel, l. c. II, p. 480.

61
O Estado

encontra um poder político forte, apesar da articulação


social altamente desenvolvida.”41
Caso o país não esteja adaptado para pastorear gado em grande
escala — como era universalmente o caso na Europa Ocidental — ou
onde uma população menos não-bélica possa fazer tentativas de
insurreição, a multidão de senhores torna-se mais ou menos
permanentemente estabelecida, lugares ou pontos estrategicamente
importantes para seus acampamentos, castelos ou cidades. A partir
desses centros, eles controlam seus “súditos”, principalmente com o
objetivo de arrecadar seus tributos, não lhes dando atenção em outros
aspectos. Eles os deixam administrar seus negócios, exercer sua
adoração religiosa, resolver suas disputas e ajustar seus métodos de
economia interna. Sua constituição autóctone, seus funcionários locais,
de fato, não sofrem interferência.
Se Frants Buhl relata corretamente, esse foi o início do governo
dos israelitas em Canaã.42 A Abissínia, essa grande força militar,
embora à primeira vista possa parecer um estado totalmente
desenvolvido, não parece, no entanto, ter avançado além do quarto
estágio. Pelo menos Ratzel afirma:
“O principal cuidado dos abissínios consiste no tributo, no
qual seguem o método dos monarcas orientais nos tempos
antigos e modernos, que é não interferir na gestão interna
e na administração da justiça de seus povos súditos.”43
O melhor exemplo do quarto estágio é encontrado na situação do
antigo México antes da conquista espanhola:
A confederação sob a liderança dos mexicanos tinha ideias
de conquista um tanto mais progressistas. Apenas as tribos
que ofereceram resistência foram exterminadas. Em outros
casos, os vencidos eram meramente saqueados e depois
obrigados a pagar tributos. A tribo derrotada governava a
si mesma como antes, por meio de seus próprios oficiais.

41
Ratzel, l. c. II, p. 165.
42
Buhl, Soziale Verhältnisse der Israeliten, p. 13.
43
Ratzel, l. c. II, p. 455.

62
A Gênese do Estado

Foi diferente no Peru, onde a formação de um império


compacto se seguiu ao primeiro ataque. No México, a
intimidação e a exploração foram os únicos objetivos da
conquista. E assim aconteceu que o chamado Império do
México na época da conquista representava apenas um
grupo de tribos indígenas intimidadas, cuja federação
umas com as outras era impedida pelo medo de expedições
de saque de algum forte inexpugnável em seu meio.44
Deve-se observar que não se pode falar disso como um estado em
nenhum sentido próprio. Ratzel mostra isso na nota seguinte:
É certo que os vários pontos mantidos em sujeição pelos
Guerreiros de Montezuma estavam separados uns dos
outros por extensões de território ainda não conquistadas.
Uma condição muito parecida com o governo dos hova em
Madagascar. Não se diria que espalhar algumas
guarnições, ou melhor ainda, colônias militares, sobre a
terra, é uma marca de domínio absoluto, uma vez que essas
colônias, com grande dificuldade, mantêm uma faixa de
algumas milhas em sujeição.45
A lógica dos eventos avança rapidamente do quarto para o quinto
estágio e molda quase completamente o estado completo. Surgem
brigas entre aldeias ou clãs vizinhos, que os senhores não permitem
mais que se desdobrem, pois assim a capacidade de serviço dos
camponeses seria prejudicada. Os senhores assumem o direito de
arbitrar e, em caso de necessidade, de executar seu julgamento. No
final, acontece que em cada “corte” do rei da aldeia ou chefe do clã há
um deputado oficial que exerce o poder, enquanto aos chefes é
permitido manter a aparência de autoridade. O estado dos Incas mostra,
em estado primitivo, um exemplo típico desse arranjo.
Aqui encontramos os Incas unidos em Cuzco, onde tinham suas
terras e moradias patrimoniais.46 Um representante dos incas, o

44
Ratzel, l. c. I, p. 628.
45
Ratzel, l. c. I, p. 625.
46
Cieza de Leon, “Seg. parte de la crónica del Peru.” P. 75, cit. por Cunow,
Inkareich (p. 62, nota 1).

63
O Estado

Tucricuc, entretanto, residia em todos os distritos da corte do chefe


nativo. Ele “supervisionava todos os assuntos de seu distrito; levantava
as tropas, superintendia a entrega do tributo, ordenava o trabalho
forçado em estradas e pontes, superintendia a administração da justiça
e, em suma, supervisionava tudo em seu distrito”.47
As mesmas instituições que foram desenvolvidas pelos caçadores
americanos e pelos pastores semitas também são encontradas entre os
pastores africanos. Em Ashanti, o sistema dos tucricuc foi desenvolvido
de maneira típica;48 e os Dualla estabeleceram para seus súditos que
vivem em aldeias segregadas “uma instituição baseada na conquista a
meio caminho entre um sistema feudal e a escravidão”.49 O mesmo
autor relata que os barotse têm uma constituição correspondente ao
estágio mais antigo da organização feudal medieval: “Suas aldeias são
[...] por via de regra cercadas por um círculo de aldeias onde vivem seus
servos. Estes cultivam os campos de seus senhores na vizinhança
imediata, cultivam grãos ou pastoreiam o gado.”50 A única coisa que
não é típica aqui consiste nisso, que os senhores não vivem em castelos
ou salões isolados, mas estão estabelecidos em aldeias entre seus
súditos.
É apenas um pequeno passo dos incas aos dórios na Lacedemônia,
Messênia ou Creta; e nenhuma distância maior separa os fulbe, dualla
e barotse dos estados feudais relativamente rigidamente organizados
dos impérios negros africanos de Uganda, Unyoro, etc.; e os impérios
feudais correspondentes da Europa Oriental e Ocidental e de toda a
Ásia. Em todos os lugares, os mesmos resultados são produzidos pela
força das mesmas causas sócio-psicológicas. A necessidade de manter
os súditos em ordem e ao mesmo tempo mantê-los em plena capacidade
de trabalho conduz passo a passo do quinto ao sexto estágio, no qual o
estado, adquirindo plena intranacionalidade e pela evolução de
“Nacionalidade” é desenvolvido em todos os sentidos. Torna-se cada
vez mais frequente a necessidade de interferir, aliviar as dificuldades,

47
Cunow, l. c. p. 61.
48
Ratzel, l. c. II, p. 346.
49
Ratzel, l. c. II, pp. 36-7.
50
Ratzel, l. c. II, p. 221.

64
A Gênese do Estado

punir ou coagir a obediência; e assim desenvolver o hábito de governar


e os usos do governo. Os dois grupos, inicialmente separados e depois
reunidos em um território, a princípio apenas se colocam um ao lado do
outro, depois se espalham um no outro como uma mistura mecânica,
como se usa o termo em química, até que gradualmente se tornam mais
e mais uma “combinação química”.
Eles se misturam, se unem, se amalgamam em unidade, nos
costumes e hábitos, na fala e na adoração. Logo os laços de
relacionamento unem os estratos superiores e inferiores. Em quase
todos os casos, a classe mestra escolhe as virgens mais bonitas das raças
subjugadas para suas concubinas. Assim se desenvolve uma raça de
bastardos, às vezes levados para a classe dominante, às vezes rejeitados,
e então por causa do sangue dos mestres em suas veias, tornando-se os
líderes natos da raça subjugada. Na forma e no conteúdo o estado
primitivo está completo.

65
II
O Estado Feudal Primitivo

(a) A Forma de Domínio

Sua forma é a dominação; o domínio de uma pequena minoria


guerreira, inter-relacionada e estreitamente aliada, sobre um território
definitivamente delimitado e seus cultivadores. Gradualmente, o
costume desenvolve alguma forma de lei de acordo com a qual esse
domínio é exercido. Esta lei regula os direitos de primazia e as
reivindicações dos senhores, e o dever de obediência e de serviço por
parte dos súditos, de modo que não seja prejudicada a capacidade de
prestar serviços dos camponeses. Esta palavra, Präsentationsfähigkeit,
data das reformas de Frederico, o Grande. A “apicultoridade”, portanto,
é regida pela lei dos costumes. O dever de pagar e trabalhar por parte
dos camponeses corresponde ao dever de proteção por parte dos
senhores, que evitam as extorsões de seus próprios companheiros, bem
como defendem os camponeses dos ataques de inimigos estrangeiros.
Embora esta seja uma parte do conteúdo do conceito de estado,
há outra, que no início é de magnitude muito maior; a ideia de
exploração econômica, o meio político para a satisfação das
necessidades. O camponês entrega uma parte do produto de seu
trabalho, sem nenhum serviço equivalente em troca. “No princípio era
o aluguel de terra.”
As formas sob as quais o aluguel de terra é cobrado ou consumido
variam. Em alguns casos, os senhores, como união ou comunidade
fechada, se instalam em algum acampamento fortificado e consomem
como comunistas o tributo de seu campesinato. Esta é a situação no
estado do Inca. Em alguns casos, cada nobre-guerreiro individual tem
uma faixa definida de terra atribuída a ele: mas geralmente o produto
disso ainda é, como em Esparta, consumido na “sissítia”, por associados
de classe e companheiros de armas. Em alguns casos, a nobreza

67
O Estado

fundiária se espalha por todo o território, cada homem alojado com seus
seguidores em seu castelo fortificado e consumindo, cada um por si, o
produto de seu domínio ou terras. Até agora, esses nobres não se
tornaram senhores de terras, no sentido de administrarem suas
propriedades. Cada um deles recebe tributo pelo trabalho de seus
dependentes, os quais ele não orienta nem supervisiona. Este é o tipo
de domínio medieval nas terras da nobreza germânica. Finalmente, o
cavaleiro se torna dono de propriedade de nobres ou cavaleiros.51 Seus
ex-servos se transformam em trabalhadores de sua plantação, e o tributo
agora aparece como o lucro do empreendedor. Este é o tipo do primeiro
empreendimento capitalista dos tempos modernos, a exploração de
grandes territórios nas terras a leste do Elba, anteriormente ocupadas
por eslavos e depois colonizadas por alemães. Numerosas transições
conduzem de um estágio ao outro.
Mas sempre, em sua essência, o “Estado” é o mesmo. Seu
propósito, em todos os casos, encontra-se sendo o meio político para a
satisfação das necessidades. A princípio, seu método consiste em cobrar
um aluguel sobre a terra, desde que não exista atividade comercial cujos
produtos possam ser apropriados. Sua forma, em todos os casos, é a do
domínio, pela qual a exploração é considerada como “justiça”, mantida
como uma “constituição”, insistida estritamente e, em caso de
necessidade, aplicada com crueldade. E, no entanto, dessa forma, o
direito absoluto do conquistador torna-se restrito dentro dos limites da
lei, a fim de permitir a aquisição contínua de aluguéis de terra. O dever
de fornecimento por parte dos súditos é limitado pelo seu direito de se
manterem em boas condições. O direito de tributar dos senhores é
complementado por seu dever de proteção dentro e fora do estado —
segurança sob a lei e defesa da fronteira.
Neste ponto, o estado primitivo está completamente desenvolvido
em todos os seus aspectos essenciais. Já passou da condição

51
N.T.: Em alemão Rittergutsbesitzer, Besitzer se refere a proprietário ou dono,
e Rittergut ou praedium nobilium sive equestrium a uma propriedade à qual,
através da lei ou do direito consuetudinário, os privilégios do proprietário, em
particular isenções fiscais, capacidade de chancelaria e capacidade
parlamentar, estavam ligados.

68
O Estado Feudal Primitivo

embrionária; tudo o que se segue pode ser apenas fenômenos de


crescimento.
Em comparação com as uniões de famílias, o estado representa,
sem dúvida, uma espécie muito superior; já que o estado abarca uma
massa maior de homens, em articulação mais estreita, mais capazes de
conquistar a natureza e de repelir os inimigos. Ele transforma as
ocupações meio lúdicas dos homens em trabalho estrito e metódico e,
assim, traz miséria indizível para inúmeras gerações ainda não nascidas.
Doravante, estes devem comer o pão com o suor de seu rosto, já que a
era de ouro da livre comunidade de relações consanguíneas foi seguida
pela regra de ferro do domínio do estado. Mas o estado, ao descobrir o
trabalho em seu sentido próprio, inicia neste mundo aquela força que
sozinha pode trazer a era de ouro em um plano muito mais elevado de
relação ética e de felicidade para todos. O estado, para usar as palavras
de Schiller, destrói a felicidade não instruída das pessoas enquanto elas
eram crianças, para conduzi-las por um triste caminho de sofrimento até
a felicidade consciente da maturidade.
Uma espécie superior! Paul von Lilienfeld, um dos principais
defensores da visão de que a sociedade é um organismo de um tipo
superior, apontou que, a esse respeito, um paralelo especialmente
notável pode ser traçado entre os organismos comuns e esse
superorganismo. Todos os seres superiores se propagam sexualmente;
seres inferiores assexuadamente, por divisão, por brotamento e às vezes
por conjugação. Mostramos que a divisão simples corresponde
exatamente ao crescimento e ao desenvolvimento posterior da
associação baseada na relação consanguínea, que existia antes do
estado. Isso cresce até se tornar grande demais para a coesão; ela então
perde sua unidade, divide-se, e as hordas separadas, se é que se
associam, permanecem em uma conexão muito frouxa, sem qualquer
tipo de articulação mais próxima. A fusão de grupos exogâmicos é
comparável à conjugação.
O estado, no entanto, vem a ser através da propagação sexual.
Toda propagação bissexual é realizada pelo seguinte processo: o
elemento masculino, uma célula pequena, muito ativa, móvel e vibrante
— o espermatozóide — procura uma grande célula inativa sem

69
O Estado

mobilidade própria — o óvulo, ou princípio feminino — entra e se


funde com isso. Deste processo resulta um imenso crescimento; ou seja,
uma diferenciação maravilhosa com integração simultânea. O
campesinato inativo, preso por natureza aos seus campos, é o óvulo, a
tribo móvel dos pastores, o espermatozoide, desse ato sociológico de
fecundação; e sua resultante é o amadurecimento de um organismo
social superior mais totalmente diferenciado em seus órgãos e muito
mais completo em suas integrações.
É fácil encontrar outros paralelos. Pode-se comparar as rixas
fronteiriças à maneira pela qual inúmeros espermatozóides enxameiam
em torno do óvulo até que finalmente um, o mais forte ou o mais
afortunado, descobre e conquista o micrópilo. Pode-se comparar a
atração quase mágica que o óvulo exerce sobre o espermatozóide com
o poder não menos mágico com que os pastores das estepes são atraídos
para as planícies cultivadas.
Mas tudo isso não é prova para o “organismo”. O problema, no
entanto, foi apontado.

(b) A Integração

Acompanhamos a gênese do estado, desde a sua segunda fase em


diante, no seu crescimento objetivo enquanto forma política e jurídica
com conteúdo econômico. Mas é muito mais importante examinar seu
crescimento subjetivo, sua “diferenciação e integração”
sociopsicológica, uma vez que toda sociologia é quase sempre
psicologia social. Primeiro, então, vamos discutir a integração.
Vimos no segundo estágio, conforme exposto acima, como a rede
de relações psíquicas se torna cada vez mais estreita e emaranhada, à
medida que avança o amálgama econômico. Os dois dialetos se tornam
uma língua; ou um dos dois, muitas vezes de origem totalmente
diferente do outro, extingue-se. Esta, em alguns casos, é a linguagem
dos vencedores, mas mais frequentemente a dos vencidos. Ambos os
cultos se fundem em uma religião, na qual o deus tribal dos
70
O Estado Feudal Primitivo

conquistadores é adorado como a divindade principal, enquanto os


antigos deuses dos vencidos se tornam seus servos ou, como demônios
ou diabos, seus adversários. O tipo corporal tende a assimilar, por
influência do mesmo clima e modo de vida semelhante. Onde existiu
ou se mantém uma forte diferença entre os tipos,52 os bastardos, em
certa medida, preenchem a lacuna — de modo que, apesar do contraste
étnico ainda existente, todos, cada vez mais, começam a sentir que o
tipo dos inimigos além da fronteira é mais estranho, mais “estrangeiro”
do que o novo tipo co-nacional. Senhores e súditos vêem uns aos outros
como “nós”, pelo menos no que diz respeito ao inimigo além da
fronteira; e finalmente a memória da origem diferente desaparece
completamente. Os conquistadores são considerados filhos dos antigos
deuses. Isso, em muitos casos, eles são literalmente, já que esses deuses
nada mais são do que as almas de seus ancestrais elevados à divindade
por apoteose.
Como os novos “estados” são muito mais agressivos do que as
antigas comunidades unidas por meras relações consanguíneas, o
sentimento de ser diferente do estrangeiro além-fronteiras, crescendo
em frequentes rixas e guerras, torna-se cada vez mais forte entre os que
estão dentro do “reino da paz”. E na mesma medida cresce entre eles o
sentimento de pertencer ao outro; de modo que o espírito de
fraternidade e de equidade, que antes existia apenas dentro da horda e
que nunca deixou de dominar a associação dos nobres, se enraíza em
todos os lugares e encontra cada vez mais seu lugar nas relações entre
os senhores e seus súditos.
A princípio, essas relações se manifestam apenas em casos raros:
a equidade e a fraternidade são permitidas apenas tal jogo enquanto é

52
“Entre os wahuma, as mulheres ocupam uma posição mais elevada do que
entre os negros, e são cuidadosamente vigiadas por seus homens. Isso dificulta
os casamentos mistos. A massa dos waganda ainda hoje não teria permanecido
uma genuína tribo negra 'de pele cor de chocolate escuro e cabelo curto de lã',
não fosse pelo fato de os dois povos serem estritamente opostos um ao outro
como camponeses e pastores, governantes e súditos, como desprezados e
honrados, apesar das relações mantidas entre as classes superiores. Nessa
posição peculiar, eles representam um fenômeno típico, que se repete em
muitos outros pontos.” — Ratzel, l. c. II, p. 177.

71
O Estado

consistente com o direito de usar os meios políticos; mas isso é


concedido. Um vínculo muito mais forte de comunidade psíquica entre
alto e baixo, mais potente do que qualquer sucesso contra a invasão
estrangeira, é tecido pela proteção legal contra a agressão dos
poderosos. “Justitia fundamentum regnorum.” Quando, de acordo com
seus próprios ideais de justiça, os aristocratas como um grupo social
executam alguém de sua própria classe por assassinato ou roubo, por
ter ultrapassado os limites da exploração permitida, o agradecimento e
a alegria dos súditos são ainda mais sinceros do que após a vitória sobre
inimigos estrangeiros.
Estas, então, são as principais linhas de desenvolvimento da
integração psíquica. O interesse comum em manter a ordem, a lei e a
paz produzem um forte sentimento de solidariedade, que pode ser
chamado de “uma consciência de pertencer ao mesmo estado”.

(c) A Diferenciação: Teorias de Grupo e


Psicologia de Grupo

Por outro lado, como em todo crescimento orgânico, desenvolve-


se pari passu uma diferenciação psíquica igualmente poderosa. Os
interesses do grupo produzem fortes sentimentos grupais; os estratos
superiores e inferiores desenvolvem uma “consciência de classe”
correspondente aos seus interesses peculiares.
O interesse separado do grupo principal é atendido ao manter
intacta a lei imposta dos meios políticos; tal interesse leva ao
“conservadorismo”. O interesse do grupo de súditos, ao contrário,
aponta para a remoção da regra vigente, para sua substituição por uma
nova regra, a lei da igualdade para todos os habitantes do estado, e leva
ao “liberalismo” e à revolução.
Aqui reside a raiz principal de toda psicologia de classe e partido.
Portanto, desenvolvem-se, de acordo com leis psicológicas definidas,
aquelas formas de pensamento incomparavelmente poderosas que,

72
O Estado Feudal Primitivo

como “teorias de classe”, através de milhares de anos de luta guiam e


justificam todas as disputas sociais na consciência dos contemporâneos.
“Quando a vontade fala, a razão tem que ficar em silêncio”, diz
Schopenhauer, ou como Ludwig Gumplowicz afirma a mesma ideia, “o
homem age de acordo com as leis da natureza, como uma reflexão tardia
que ele pensa humanamente”. Sendo a vontade do homem estritamente
“determinada”, ele precisa agir de acordo com a pressão que o mundo
circundante exerce sobre ele; e a mesma lei vale para toda comunidade
de homens: grupos, classes e o próprio estado.
Eles “fluem do plano de maior pressão econômica e social para o
de menor pressão, ao longo da linha de menor resistência”. Mas cada
indivíduo e cada comunidade de homens acreditam ser agentes livres;
e, portanto, por uma lei psíquica inescapável, eles são forçados a
considerar o caminho que estão percorrendo como um meio livremente
escolhido e o ponto para o qual são conduzidos como um fim livremente
escolhido. E sendo o homem um ser racional e ético, isto é, uma
entidade social, ele é obrigado a justificar perante a razão e a moral o
método e o ponto objetivo de seu movimento, e a levar em conta a
consciência social de seu tempo.
Enquanto as relações de ambos os grupos fossem simplesmente
as de inimigos fronteiriços opostos internacionalmente, o exercício dos
meios políticos não exigia justificativa, porque um homem de sangue
estrangeiro não tinha direitos. Assim, porém, que a integração psíquica
desenvolve, em qualquer grau, o sentimento de comunidade da
consciência do estado, assim que o servo adquire “direitos” e a
consciência da igualdade essencial se infiltra na massa, os meios
políticos requerem um sistema de justificação; e surge na classe
dominante a teoria de grupo da “legitimidade”.
Em todos os lugares, os defensores da legitimidade justificam o
domínio e a exploração com raciocínio antropológico e teológico
semelhante. O grupo mestre, já que reconhece a bravura e a eficiência
guerreira como as únicas virtudes de um homem, declara-se, o
vencedor, — e do seu ponto de vista com bastante razão — como a mais
eficiente, a melhor "raça". Esse ponto de vista é tanto mais intensificado
quanto mais baixa a raça sujeita é reduzida pelo trabalho duro e pela

73
O Estado

pouca comida. E uma vez que o deus tribal do grupo dominante se


tornou o deus supremo na nova religião estatal amalgamada, esta
religião declara — e novamente de seu ponto de vista de forma bastante
correta — que a constituição do estado foi decretada pelo céu, que é
“tabu”, e que a interferência é um sacrilégio.
Em consequência, portanto, de uma simples inversão lógica, o
grupo explorado ou subjugado é considerado como uma raça
essencialmente inferior, como indisciplinado, ardiloso, preguiçoso,
covarde e totalmente incapaz de autogoverno ou autodefesa, de modo
que qualquer revolta contra o domínio imposto deve necessariamente
aparecer como uma revolta contra o próprio Deus e contra Suas
ordenanças morais. Por essas razões, o grupo dominante está sempre
em união mais estreita com o sacerdócio, que, pelo menos em seus
cargos mais altos, quase sempre se recruta entre seus filhos,
compartilhando seus direitos políticos e privilégios econômicos.
Esta foi, e é até hoje, a teoria de classe do grupo dominante; nada
foi tirado dela, nenhum item foi adicionado a ela. Mesmo o argumento
muito moderno pelo qual, por exemplo, a nobreza fundiária da velha
França e da Prússia moderna tentou colocar fora do tribunal as
reivindicações do campesinato à donidade de terras, sob a alegação de
que eles eram donos delas desde tempos imemoriais, enquanto seus
camponeses receberam apenas um mandato vitalício, — é reproduzido
entre os wahuma, da África,53 e provavelmente poderia ser mostrado
em muitos outros casos.
Como sua teoria de classe, sua psicologia de classe foi e é sempre
a mesma. Sua característica mais importante, o “orgulho do
aristocrata”, mostra-se no desprezo pelas camadas trabalhadoras mais
baixas. Isso é tão inerente que os pastores, mesmo depois de terem
perdido seus rebanhos e se tornado economicamente dependentes,
ainda mantêm seu orgulho como antigos senhores:
“Mesmo os galla, que foram espoliados de sua riqueza de
rebanhos pelos somalis ao norte do Tana, e que assim se
tornaram vigias dos rebanhos de outros homens, e mesmo

53
Ratzel, l. c. II, p. 178.

74
O Estado Feudal Primitivo

em alguns casos ao longo do Sabaki se tornaram


camponeses, ainda olham com desprezo para o camponês
watokomo, que está sujeito a eles e se parece com os
suaheli. Mas a atitude deles é bem diferente em relação aos
povos caçadores tributários, a saber, os waboni, os
wassanai e os walangulo (ariangulo) que se assemelham
aos galla.”54
A seguinte descrição dos tibbu aplica-se, como se tivesse sido
originalmente contada sobre eles, a Walter Havenaught e ao resto dos
pobres cavaleiros que, nas cruzadas, procuravam saque e domínio
senhorial. Aplica-se não menos a muitos nobres líderes lutadores da
Alemanha a leste do Elba, e a muitos cavalheiros poloneses
esfarrapados.
“Eles são homens cheios de autoconsciência. Eles podem
ser mendigos, mas não são párias. Muitas pessoas nessas
circunstâncias seriam completamente miseráveis e
deprimidas; os tibbu têm aço em sua natureza. Eles são
esplendidamente adequados para serem ladrões, guerreiros
e governantes. Até o seu sistema de roubo é imponente,
embora seja vil como o de um chacal. Esses tibbus
esfarrapados, lutando contra a pobreza extrema e
constantemente à beira da fome, levantam as
reivindicações mais insolentes com crença aparente ou real
em sua validade. O direito do chacal, que considera as
posses de um estranho como propriedade comum, é a
proteção dos gananciosos contra a necessidade. A
insegurança de um estado de guerra quase perpétuo faz
com que a vida se torne um desafio insistente e, ao mesmo
tempo, a recompensa da extorsão!”55
Este fenômeno não se limita de forma alguma à África Oriental,
pois é dito do soldado abissínio: “Assim equipado ele vem.
Orgulhosamente, ele despreza todos: sua é a terra, e para ele o camponês
deve trabalhar."56

54
Ratzel, l. c. II, p. 198.
55
Ratzel, l. c. II, p. 476.
56
Ratzel, l. c. II, p. 453.

75
O Estado

Profundamente como o aristocrata sempre despreza os meios


econômicos e os camponeses que os empregam, ele admite francamente
sua confiança nos meios políticos. Guerra honesta e “roubo honesto”57
são sua ocupação como um senhor, são seu bom direito. Seu direito —
exceto sobre aqueles que pertencem à mesma camarilha — se estende
tanto quanto seu poder. Em nenhum outro lugar esse grande elogio aos
meios políticos é tão bem expresso quanto na conhecida canção dórica
para beber:
Tenho grandes tesouros; a lança e a espada;
Com que proteger meu corpo, o escudo de couro de touro
bem testado.
Com estes eu posso arar e colher minha colheita,
Com estes posso colher o doce vinho de uva,
Por eles eu carrego o nome de 'Senhor' com meus servos.

Mas estes nunca ousam empunhar lança e espada,


Ainda menos a guarda do corpo, o escudo de couro de
touro bem testado.
Eles jazem aos meus pés estendidos no chão,
Minha mão é lambida por eles como por cães,
Eu sou o rei persa deles — aterrorizando-os com meu
nome.58
Nessas linhas arbitrárias está expresso o orgulho dos senhores
guerreiros. Os versos seguintes, tirados de uma fase completamente
diferente da civilização, mostram que o ladrão ainda tem parte no
guerreiro, apesar do cristianismo, da Paz de Deus e do Sacro Império
Romano da Nação Germânica. Essas linhas também elogiam os meios
políticos, mas em sua forma mais grosseira, simples roubo:
Você gastaria sua vida, meu jovem nobre escudeiro,
Siga então meu ensinamento, monte seu cavalo e junte-se
à gangue!
Vá para a floresta, quando o camponês aparecer,
Atropele-o rapidamente, agarre-o pelo colarinho,

57
Compare isso com a justificativa predominante de “honest graft” em contratos
municipais ou políticos. — Tradutor da Edição em Inglês.
58
Kopp, Griechische Staatsaltertümer, 2, Aufl. Berlin, 1893, p. 23.

76
O Estado Feudal Primitivo

Alegre-se em seu coração, tirando dele tudo o que ele tem,


Desatrele os cavalos dele e leve você embora!59
“A menos”, acrescenta Sombart, “que ele preferisse caçar animais
mais nobres e aliviar os mercadores de suas valiosas remessas”. Os
nobres praticavam o roubo como forma natural de complementar os
seus rendimentos, estendendo-os cada vez mais à medida que os
rendimentos das suas propriedades já não bastavam para pagar as
exigências crescentes do consumo quotidiano e do luxo. O sistema de
pirataria era considerado uma ocupação totalmente honrosa, pois
atendia à exigência da essência da cavalaria, de que cada um deveria se
apropriar de tudo o que estivesse ao alcance da ponta de sua lança ou
da lâmina de sua espada. Os nobres aprenderam a pirataria enquanto o
sapateiro foi educado em seu ofício. A balada colocou isso de forma
alegre:
Pilhar, roubar, isso não é vergonha,
Os melhores da terra fazem exatamente o mesmo.
Além deste ponto principal da psicologia “escudeiro-árquica”,
uma segunda marca distintiva dificilmente menos característica é
encontrada na piedade dessas pessoas, seja ela de convicção ou
meramente acentuada em público.
Parece que as mesmas ideias sociais sempre impõem
características idênticas à classe dominante. Isso é ilustrado pela forma
sob a qual Deus, na visão deles, aparece como seu Deus Nacional
especial e preponderantemente como um Deus da Guerra. Embora
professem Deus como o criador de todos os homens, mesmo de seus
inimigos, e desde o cristianismo, como o Deus do Amor, isso não
neutraliza a força com que os interesses de classe formulam sua
ideologia apropriada.
Para completar o esboço da psicologia da classe dominante, não
devemos esquecer a tendência ao esbanjamento, facilmente
compreendida naqueles “ignorantes do gosto de labuta”, que às vezes

59
Uhland, Alte hoch und niederdeutsche Volkslieder I (1844), p. 339 citado por
Sombart: Der moderne Kapitalismus, Leipzig, 1902, I, pp. 384-5.

77
O Estado

aparece em uma forma superior como generosidade; nem devemos


esquecer, como seu traço supremo, aquela bravura que despreza a
morte, que é provocada pela coerção imposta a uma minoria, sua
necessidade de defender seus direitos a qualquer momento com armas,
e que é favorecida por uma liberdade de todo trabalho que permite o
desenvolvimento do corpo na caça, esporte e disputas. Sua caricatura é
a combatividade e uma supersensibilidade à honra pessoal, que
degenera em loucura.
Neste ponto, uma pequena digressão: César encontrou os celtas
exatamente naquele estágio de seu desenvolvimento, no qual os nobres
obtiveram domínio sobre seus companheiros de clã. Desde aquela
época, sua narrativa clássica permaneceu como norma — a psicologia
de classe deles aparece como a psicologia racial de todos os celtas.
Nem mesmo Mommsen escapou desse erro. O resultado é que
agora, em cada livro de história universal ou sociologia, pode-se ler o
erro palpável, repetido até que a contradição seja inútil, embora um
mero relance fosse suficiente para mostrar que todos os povos de todas
as raças, no mesmo estágio de seu desenvolvimento, apresentaram as
mesmas características; na Europa, tessálios, apulianos, campanianos,
germânicos, poloneses, etc. Enquanto isso, os celtas, e especificamente
os franceses, em diferentes estágios de seu desenvolvimento,
mostraram traços de caráter bastante diferentes. A psicologia pertence
ao estágio de desenvolvimento, não à raça!
Sempre que, por outro lado, as sanções religiosas do “estado” são
fracas, ou se tornam fracas, desenvolve-se como uma teoria de grupo
por parte dos súditos, o conceito, claro ou borrado, de Direito Natural.
A classe baixa considera o orgulho racial e a suposta superioridade dos
nobres como presunçosos, afirma ser de raça e sangue tão bons quanto
a classe dominante60 — e de seu ponto de vista, novamente, com
bastante razão, pois, de acordo com seus pontos de vista, diligência e
ordem são considerados as únicas virtudes. Eles também são céticos
quanto à religião que ajuda seus adversários; e estão tão firmemente
convencidos quanto os nobres da opinião diretamente oposta, a saber,
60
“Quando Adão cavou e Eva teceu, onde estava o nobre? [Als Adam grub, und
Eva spann, wo war da der Edelmann?”, cataram os lolardos ingleses.

78
O Estado Feudal Primitivo

que os privilégios do grupo mestre violam a lei tanto quanto a razão. O


desenvolvimento posterior não é capaz de acrescentar nenhum ponto
essencial aos fatores originalmente dados.
Sob a influência dessas ideias, ora claramente, ora obscuramente
expostas, os dois grupos passam a travar suas batalhas, cada um por
seus próprios interesses. O jovem estado se despedaçaria sob a pressão
de tais forças centrífugas, não fosse a atração centrípeta dos interesses
comuns, da ainda mais poderosa consciência estatal. A pressão de
estrangeiros de fora, de inimigos comuns, supera a tensão interna de
interesses de classe conflitantes. Um exemplo pode ser encontrado na
história da secessão dos “Plebs” e na missão bem-sucedida de Menenius
Agrippa. E assim o jovem estado, como um planeta, oscilaria por toda
a eternidade em sua órbita predeterminada, de acordo com o
paralelogramo de forças, se ele e seu mundo circundante não fossem
mudados e desenvolvidos até produzir novas energias externas e
internas.

(d) O Estado Feudal Primitivo de Grau Superior

O próprio crescimento condiciona mudanças importantes; e o


jovem estado deve crescer. As mesmas forças que o trouxeram à ser,
incitam sua extensão, exigem que ele alcance mais poder. Mesmo que
um estado tão jovem estivesse “saturado”, como muitos estados
modernos afirmam estar, ele ainda seria forçado a se expandir e crescer
sob pena de extinção. Sob condições sociais primitivas, as linhas de
Goethe se aplicam com absoluta verdade: “Você deve subir ou cair,
conquistar ou ceder, ser martelo ou bigorna”.
Os estados são mantidos de acordo com os mesmos princípios que
os chamaram a ser. O estado primitivo é a criação do roubo bélico; e
somente por roubo bélico pode ser preservado.
A carência econômica do grupo mestre não tem limites; nenhum
homem é suficientemente rico para satisfazer seus desejos. Os meios
políticos são direcionados a novos grupos de camponeses ainda não
79
O Estado

subjugados, ou novas costas ainda não saqueadas são buscadas. O


estado primitivo se expande, até que ocorre uma colisão na borda da
“esfera de interesses” de outro estado primitivo, que se originou
exatamente da mesma maneira. Então temos, pela primeira vez, no
lugar do roubo bélico até então realizado, a verdadeira guerra em seu
sentido mais estrito, desde então massas igualmente organizadas e
disciplinadas são arremessadas umas contra as outras.
O objeto da disputa permanece sempre o mesmo, a produção dos
meios econômicos das classes trabalhadoras, como pilhagem, tributo,
impostos e aluguel de terra; mas a disputa não se dá mais entre um grupo
que pretende explorar e outra massa a ser explorada, mas entre dois
grupos senhores pela posse de todo o espólio.
O resultado final do conflito, em quase todos os casos, é a fusão
de ambos os estados primitivos em um maior. Este, por sua vez,
naturalmente e pela força das mesmas causas, ultrapassa suas fronteiras,
devora seus vizinhos menores e talvez seja por sua vez devorado por
algum estado maior.
O grupo de trabalhadores subjugados pode não ter muito interesse
na questão final desses concursos para o domínio; é indiferente que
pague tributo a um ou outro grupo de senhores. Seu principal interesse
reside no curso da luta particular, que é, em todo caso, paga com suas
próprias peles. Portanto, exceto em casos de maus-tratos grosseiros e
exploração,61 as classes baixas são corretamente governadas por sua
“consciência estatal” quando, com todas as suas forças, ajudam seu
grupo mestre hereditário em tempos de guerra. Pois se seu grupo
principal for derrotado, os súditos sofrerão mais severamente com a
devastação total da guerra. Eles lutam literalmente por esposa e filhos,
pelo lar, quando lutam para impedir o governo de mestres estrangeiros.
O grupo mestre está completamente envolvido na questão dessa
luta pelo domínio. Em casos extremos, pode ser completamente
exterminado, como foi a nobreza local das tribos germânicas no Império

61
Assim, por exemplo, nos estados gregos e no Império Romano, os escravos
afluíam em grande número aos invasores germânicos e árabes, e os colonos
aparentemente livres mantinham-se no máximo neutras.

80
O Estado Feudal Primitivo

Franco. Quase tão ruim, se não pior, é a perspectiva de ser empurrado


para o grupo dos servos. Às vezes, um tratado de paz oportuno preserva
sua posição social como grupos mestres de hierarquia subordinada: por
exemplo, a nobreza saxônica na Inglaterra normanda, ou os suppans em
território alemão tomado dos eslavos. Em outros casos, onde as forças
são quase iguais, os dois grupos se fundem em um grupo mestre com
direitos iguais, que forma uma nobreza cujos membros se casam. Essa,
por exemplo, era a situação nos territórios eslavos, onde chefes vendos
isolados eram tratados como iguais aos germânicos, ou na Roma
medieval, no caso de famílias proeminentes das colinas de Alban e da
Toscana.
Neste novo “estado feudal primitivo de grau superior”, como o
chamaremos, o grupo dominante pode, portanto, desintegrar-se em
vários estratos mais ou menos poderosos e privilegiados. A organização
pode apresentar muitas variedades pelo fato bem conhecido de que
muitas vezes o grupo senhorial se separa em duas camadas econômicas
e sociais subordinadas, desenvolvidas como vimos na fase dos pastores:
os donos de grandes rebanhos e de muitos escravos, e os homens livres
comuns. Possivelmente, a diferenciação menos completa em níveis
sociais nos estados criados pelos caçadores no novo mundo deve ser
atribuída à circunstância de que, na ausência de rebanhos, os
concomitantes dessa forma de propriedade e a separação original em
classes não foram introduzidos no estado. Veremos, mais tarde, que
força foi exercida sobre o desenvolvimento político e econômico dos
estados do velho mundo pelas diferenças de posição e propriedade dos
dois estratos de governantes.
Da mesma forma, como no caso do grupo dominante, um
correspondente processo de diferenciação divide o grupo sujeito no
“estado feudal primitivo de grau superior” em vários estratos mais ou
menos desprezados e compelidos a prestar serviço. É necessário apenas
recordar a diferença muito marcante na posição social e jurídica
ocupada pelo campesinato nos estados dóricos, Lacedemônio e Creta, e
entre os tessálios, onde os perioiki tinham claros direitos de posse e
direitos políticos razoavelmente bem protegidos, enquanto os hilotas,
neste último caso os penestai, estavam quase desprotegidos na vida e
na propriedade. Entre os antigos saxões também encontramos uma
81
O Estado

classe, os liti, intermediária entre os homens livres comuns e os


servos.62 Esses exemplos poderiam ser multiplicados; aparentemente
são causadas pelas mesmas tendências que provocaram a diferenciação
entre a nobreza mencionada acima. Quando dois estados feudais
primitivos se fundem, suas camadas sociais se estratificam de várias
maneiras, que em certa medida são comparáveis às combinações
resultantes da mistura de dois baralhos.
É certo que essa mistura mecânica provocada pelas forças
políticas influencia no desenvolvimento das castas, ou seja, das
profissões hereditárias, que ao mesmo tempo formam uma hierarquia
de classes sociais. “As castas são geralmente, se não sempre,
consequências da conquista e subjugação por estrangeiros.”63 Embora
este problema não tenha sido completamente resolvido, pode-se dizer
que a formação de castas foi fortemente influenciada por fatores
econômicos e religiosos.
É provável que as castas tenham surgido da seguinte forma: as
forças formadoras de estado penetraram nas organizações econômicas
existentes, e as vocações sofreram adaptações e depois se petrificaram
sob a influência de conceitos religiosos, que, no entanto, também
podem ter influenciado sua formação original. Isso parece decorrer do
fato de que também entre o homem e a mulher existem certas
separações de vocação, que, por assim dizer, são tabus e
intransponíveis. Assim, entre todos os caçadores, o cultivo da terra é
trabalho da mulher, enquanto entre muitos pastores africanos, assim que
o arado de bois é usado, a agricultura se torna trabalho do homem, e
então as mulheres não podem, sob pena de sacrilégio, usar o gado
doméstico.64
É provável que tais conceitos religiosos possam ter feito com que
uma vocação se tornasse hereditária e depois compulsoriamente
hereditária, especialmente quando uma tribo ou aldeia praticava um

62
Inama-Sternegg, Deutsche Wirtsch.-Gesch. I, Leipzig, 1879, p. 59.
63
Westermarck, History of Human Marriage, Londres, 1891, p. 368.
64
Similarmente, há tribos de caçadores do norte da Ásia, onde as mulheres são
definitivamente proibidas de tocar no equipamento de caça ou de cruzar uma
trilha de caça. — Ratzel I, página 650.

82
O Estado Feudal Primitivo

determinado ofício. Isso acontece com todas as tribos em estado de


natureza, onde o intercurso é facilmente possível, especialmente no
caso dos ilhéus. Quando algum desses grupos é conquistado por outra
tribo, os súditos, com suas vocações hereditárias desenvolvidas, tendem
a formar dentro da nova entidade estatal uma “casta” pura. Sua posição
de casta depende, em parte, da estima que antes desfrutavam entre seu
próprio povo e, em parte, da vantagem que sua vocação oferece a seus
novos senhores. Se, como frequentemente acontecia, ondas de
conquista se sucedessem em série, a formação de castas poderia ser
multiplicada, especialmente se, entretanto, o desenvolvimento
econômico tivesse gerado muitas classes vocacionais.
Este desenvolvimento é provavelmente melhor observado no
grupo de ferreiros, que, em quase todos os casos, ocuparam uma
posição peculiar, meio temido e meio desprezado. Especialmente na
África, desde o início dos tempos, encontramos tribos de ferreiros
experientes, como seguidores e dependentes de tribos de pastores. Os
hicsos trouxeram essas tribos com eles para o país do Nilo e talvez
devessem sua vitória decisiva às armas feitas por eles; e até tempos
recentes os dinka mantiveram o djur que trabalha com ferro em uma
espécie de relação de súdito. O mesmo se aplicava também aos
nômades do Saara; enquanto nossas sagas do norte são preenchidas com
o contraste tribal com os “anões” e o medo de seus poderes mágicos.
Todos os elementos estavam à mão em um estado desenvolvido para a
formação de castas nitidamente diferenciadas.65
Como a cooperação de conceitos religiosos afeta o início dessas
formações pode ser bem ilustrado por um exemplo da Polinésia. Aqui,
“embora muitos nativos tenham a habilidade de construir
navios, apenas uma classe privilegiada pode exercer o
ofício, tão intimamente ligado a esta arte está o interesse
dos estados e das sociedades. Em todo o arquipélago
antigamente, e até hoje em Fiji, os carpinteiros, que são
quase exclusivamente construtores de navios, formam
uma casta especial, ostentam o título altivo de
'trabalhadores do rei' e desfrutam da prerrogativa de ter

65
Cf. Ratzel, l. c. I, p. 81.

83
O Estado

seus próprios chefes. [...] Tudo é feito de acordo com a


tradição antiga; a colocação da quilha, a conclusão do
navio e o lançamento, tudo ocorre em meio a cerimônias e
festas religiosas.”66
Onde a superstição foi fortemente desenvolvida, pode surgir um
verdadeiro sistema de castas, baseado em parte em fundamentos
econômicos e em parte étnicos. Na Polinésia, por exemplo, a articulação
das classes, através da operação do tabu, trouxe um estado de coisas
muito parecido com um sistema de castas completo.67 Resultados
semelhantes podem ser vistos no sul da Arábia.68 É desnecessário neste
ponto ampliar o lugar importante que a religião teve na origem e
manutenção de castas separadas no antigo Egito e na Índia moderna.69
Estes são os elementos do estado feudal primitivo de grau
superior. Eles são mais múltiplos e mais numerosos do que no estado
primitivo inferior; mas em ambos, a constituição legal e a distribuição
político-econômica são fundamentalmente as mesmas. Os produtos dos
meios econômicos ainda são objeto da luta de grupos. Este permanece
agora como sempre o impulso motor da política interna do estado,
enquanto os meios políticos continuam agora como sempre a constituir
o impulso motor de sua política externa no ataque ou na defesa. Teorias
de grupos idênticos continuam a justificar, tanto para as classes altas
quanto para as baixas, os objetos e meios das lutas externas e
domésticas.
Mas o desenvolvimento não pode permanecer estacionário. O
crescimento difere do mero aumento de volume; crescimento significa
uma diferenciação e integração cada vez maiores.
Quanto mais o estado feudal primitivo estende seu domínio,
quanto mais numerosos são seus súditos e mais densa sua população,
mais se desenvolve uma divisão do trabalho político-econômica, que

66
Ratzel, l. c. I, p. 156.
67
Ratzel, l. c. I, pp. 259-60.
68
Ratzel, l. c. II, p. 434.
69
Além disso, parece que a rigidez do sistema de castas indiano não é tão severa
na prática. A guilda parece romper com tanta frequência as barreiras das castas
quanto o contrário. — Ratzel II, página 596.

84
O Estado Feudal Primitivo

suscita novas necessidades e novos meios de supri-las; e tanto mais


nítidas são as distinções dos estratos de classe econômicos e,
consequentemente, sociais, de acordo com o que chamei de “lei da
aglomeração ao redor de núcleos existentes de riqueza”. Essa
diferenciação crescente torna-se decisiva para o desenvolvimento
posterior do estado feudal primitivo e, mais ainda, para sua conclusão.
Esta conclusão não pretende ser, em nenhum sentido, o fim físico
de tal estado. Não queremos dizer a morte de um estado, pelo qual tal
estado feudal de tipo superior desaparece, em conseqüência do conflito
com um estado mais poderoso, no mesmo ou em um plano superior de
desenvolvimento, como foi o caso dos estados mogul da Índia ou de
Uganda em seus conflitos com a Grã-Bretanha.
Tampouco significa uma estagnação como aquela em que caíram
a Pérsia e a Turquia,70 que representa por um tempo apenas uma pausa
no desenvolvimento, uma vez que esses países, por suas próprias forças
ou por conquista estrangeira, logo devem ser empurrados no caminho
de seu destino. Tampouco nos referimos à rigidez do gigantesco
Império Chinês, que só pode durar enquanto as potências estrangeiras
se abstiverem de forçar seus misteriosos portões.71
O resultado aqui mencionado significa o desenvolvimento
posterior do estado feudal primitivo, uma questão de importância para
nossa compreensão da história universal como um processo. As
principais linhas de desenvolvimento nas quais esta questão se ramifica
são duplas e de caráter fundamentalmente diferente. Mas essa oposição

70
Deixo estas palavras, escritas em 1907, que já se revelaram uma profecia
cumprida, pelo menos no que diz respeito à Turquia. (Dezembro de 1928.)
71
Se tivéssemos espaço, uma exposição detalhada desse desenvolvimento
excepcional de um estado feudal seria tentadora. A China mereceria uma
discussão mais detalhada, pois, em muitos aspectos, ela se aproximou mais da
condição de “cidadania de homens livres” do que qualquer povo da Europa
Ocidental. A China superou as consequências do sistema feudal de forma mais
completa do que nós, europeus; e tornou, no início de seu desenvolvimento, os
grandes interesses de propriedade na terra inofensivos, de modo que seu filho
bastardo, o capitalismo, dificilmente surgiu; enquanto, além disso, resolveu em
grau considerável os problemas da produção cooperativa e da distribuição
cooperativa.

85
O Estado

polar é condicionada por um contraste semelhante entre dois tipos de


riqueza econômica, cada um dos quais aumenta de acordo com a “lei
de aglomeração ao redor de núcleos existentes”. No primeiro caso,
trata-se de propriedade móvel; no outro, a propriedade fundiária. Aqui
é a capital do comércio, ali a propriedade da terra, acumulando-se nas
mãos de um número cada vez menor, e assim subvertendo radicalmente
a articulação das classes, e com ela todo o estado.
O estado marítimo é palco do desenvolvimento das riquezas
móveis; o estado territorial é a personificação do desenvolvimento da
propriedade fundiária. A questão final do primeiro é a exploração
capitalista pela escravidão, o resultado do último é, antes de tudo, o
estado feudal desenvolvido.
A exploração capitalista pela escravatura, resultado típico do
desenvolvimento dos chamados “estados antigos” do Mediterrâneo, não
termina na morte de estados, o que não tem importância, mas na morte
de povos, por causa do consumo de população. Na genealogia do
desenvolvimento histórico do estado, forma um ramo secundário, do
qual não pode ocorrer nenhum crescimento imediato.
O estado feudal desenvolvido, porém, representa o ramo
principal, a continuação do tronco; e é, portanto, a origem para o
crescimento posterior do estado. Daí desenvolveu-se no estado
estamental; no absolutismo e no estado constitucional moderno; e se
estivermos certos em nosso prognóstico, ele se tornará uma “cidadania
de homens livres”.
Contanto que o tronco crescesse apenas em uma direção, i. e.,
para incluir o estado feudal primitivo de grau superior, nosso esboço de
seu crescimento e desenvolvimento poderia incluir ambas as formas.
Doravante, após a bifurcação, nossa história se bifurca e segue cada
ramo até seu último galho.
Começamos, então, com os estados marítimos, embora não sejam
a forma mais antiga. Pelo contrário, desde que a aurora da história
dissipa a névoa da existência pré-histórica, os primeiros estados fortes
foram formados como estados territoriais, que então, por seus próprios
poderes, atingiram a escala de estados feudais desenvolvidos. Mas além

86
O Estado Feudal Primitivo

desse estágio, pelo menos no que diz respeito aos estados mais
interessantes para nossa cultura, a maioria deles permaneceu
estacionária ou caiu no poder dos estados marítimos; e então, infectados
com o veneno mortal da exploração capitalista através da escravidão,
foram destruídos pela mesma praga.
O progresso posterior dos estados feudais expandidos de grau
superior só poderia ocorrer depois que os estados marítimos tivessem
percorrido seu curso: formas poderosas de dominação e estadismo eles
se tornaram, e subsequentemente influenciaram e promoveram a
conformação dos estados territoriais que cresceram de suas ruínas.
Por essa razão, a história do destino dos estados marítimos deve
ser traçada primeiro, pois eles são a introdução às formas superiores de
vida do estado. Depois de traçar primeiro o ramo lateral, retornaremos
ao ponto de partida, o estado feudal primitivo, seguiremos o tronco
principal até o desenvolvimento do estado constitucional moderno e,
antecipando a história atual, esboçaremos a “cidadania de homens
livres” do futuro.

87
III
O Estado Marítimo
O curso da vida e o caminho do sofrimento do estado fundado
pelos nômades do mar, como já foi dito, é determinado pelo capital
comercial; assim como a do estado territorial é determinada pelo capital
investido em bens imóveis; e, podemos acrescentar, a do estado
constitucional moderno pelo capital produtivo. O nômade do mar,
porém, não inventou o comércio ou a comunidade mercantil, feiras ou
mercados ou cidades; estes preexistiam e, uma vez que serviam a seu
propósito, agora eram desenvolvidos para atender a seus interesses.
Todas essas instituições, servindo aos meios econômicos, à troca por
equivalentes, há muito foram descobertas.
Aqui, pela primeira vez em nossa pesquisa, encontramos o meio
econômico não como objeto de exploração pelos meios políticos, mas
como um agente cooperante na origem do estado, pode-se chamá-lo de
“cadeia” que passa para o “elevador” criado pelo estado feudal para
criar uma estrutura mais elaborada. A gênese do estado marítimo não
seria completamente inteligível, se não tivéssemos como premissa uma
afirmação sobre o tráfego e intercâmbio de mercadorias em tempos pré-
históricos. Além disso, nenhum prognóstico do estado moderno é
completo, o que não leva em conta os meios econômicos formados
independentemente da troca aborígine.

(a) Comércio nos Tempos Pré-Históricos

A explicação psicológica da troca trouxe à tona a teoria da


utilidade marginal, seu maior mérito. De acordo com essa teoria, a
valoração subjetiva de qualquer bem econômico diminui
proporcionalmente ao número de objetos do mesmo tipo possuídos pelo

89
O Estado

mesmo proprietário. Quando até dois proprietários se encontram, cada


um com um número de artigos semelhantes, eles trocarão com prazer,
desde que os meios políticos sejam impedidos, por exemplo, se ambas
as partes são aparentemente igualmente fortes e bem armadas, ou no
estágio inicial, estão dentro do círculo sagrado de relacionamento. Pela
troca, cada um recebe bens de altíssimo valor subjetivo, no lugar de
bens de baixíssimo valor subjetivo, de forma que ambas as partes saem
ganhando na transação. O desejo dos povos primitivos pela troca deve
ser mais forte do que o dos cultos. Pois neste estágio o homem não
valoriza seus próprios bens, mas cobiça as coisas pertencentes a
estranhos e dificilmente é afetado por considerações econômicas
calculadas.
Por outro lado, não devemos esquecer que existem povos
primitivos para os quais a troca não tem qualquer atração.
“Cook fala de tribos na Polinésia, com quem nenhuma
relação era possível, uma vez que os presentes não
causavam absolutamente nenhuma impressão neles e
depois eram jogados fora; tudo o que lhes era mostrado,
eles consideravam com indiferença e sem desejo de
possuí-lo, enquanto com suas próprias coisas eles não se
separavam; na verdade, eles não tinham nenhuma
concepção de comércio ou escambo.”72
Portanto, Westermarck é da opinião de que “troca e comércio são
invenções comparativamente tardias”. Nisso ele se opõe a Peschel, que
teria considerado que o homem no estágio mais antigo de
desenvolvimento conhecido se envolveu em trocas. Westermarck
afirma que não há prova “de que os habitantes das cavernas do Périgord
do período das renas obtivessem seus cristais de rocha, suas conchas do
Atlântico e os chifres do antílope Saiga da Polônia (moderna) por meio
de escambo”.73

72
I. Kulischer, I. c., p. 317, onde outros exemplos podem ser encontrados.
73
Westermarck, History of Human Marriage, p. 400, que contém uma série de
exemplos etnográficos.

90
O Estado Marítimo

Apesar dessas exceções, que admitem outras explicações —


talvez os nativos temessem a feitiçaria — a história dos povos
primitivos mostra que o desejo de negociar e trocar é uma característica
humana universal. Só pode, entretanto, ter efeito quando esses homens
primitivos, ao se encontrarem com estranhos, recebem novos objetos
atraentes, uma vez que no círculo imediato de seus parentes de sangue
todos têm os mesmos tipos de propriedade e, em seu comunismo
natural, em média aproximadamente a mesma quantidade.74
No entanto, mesmo assim, a troca, o início de todo comércio
regular, só pode ocorrer quando o encontro com estrangeiros é pacífico.
Mas existe alguma possibilidade de encontro pacífico com
estrangeiros? Não está o homem primitivo, durante toda a sua vida, e
especialmente no período em que começa a troca, ainda sob a
apreensão: homo homini lupus?
Depois que o comércio é desenvolvido, ele é, via de regra,
fortemente influenciado pelos “meios políticos”, “o comércio
geralmente segue o roubo”.75 Mas seus primórdios são principalmente
o resultado dos meios econômicos, o resultado de relações pacíficas,
não belicosas.
As relações internacionais dos caçadores primitivos entre si não
devem ser confundidas com as existentes entre os caçadores ou pastores
e seus camponeses, ou entre os próprios pastores. Há, sem dúvida, rixas
de sangue, ou rixas por causa de mulheres saqueadas, ou possivelmente
por violação dos distritos destinados à caça; mas a estes falta aquele
forte incentivo, que é consequência apenas da avareza, do desejo de
espoliar outros homens dos produtos de seu trabalho. Portanto, as
“guerras” dos caçadores primitivos dificilmente são guerras reais, mas
sim escaramuças e combates individuais, travados frequentemente —
como são os duelos estudantis alemães — de acordo com um cerimonial

74
Aliás, existem associações centrais (australianas) cujos grupos individuais
vivem em locais diferentes (por exemplo, costa e floresta) e, portanto, têm
produtos diferentes. Aqui a troca é natural. Mas também estamos lidando aqui
com níveis relativamente altos de cultura. Os australianos são caçadores
superiores!
75
Westermarck, l. c., p. 546.

91
O Estado

estabelecido, e prolongados apenas até o ponto da incapacidade de lutar,


como se poderia dizer, “até o primeiro sangue”.76 Essas tribos,
numericamente muito fracas, sabiamente limitam o derramamento de
sangue à quantidade indispensável — isto é, no caso de uma rixa de
vingança de sangue — e assim evitar iniciar novas rixas de vingança de
sangue.
Por esta razão, as relações pacíficas com seus vizinhos em igual
escala econômica são muito mais fortes, e também mais livres do
incentivo ao uso de meios políticos, tanto entre caçadores quanto entre
camponeses primitivos, do que entre pastores. São inúmeros os
exemplos em que os primeiros se encontram pacificamente para
explorar os recursos naturais em comum.
“Enquanto ainda nos estágios primitivos da civilização,
grandes massas de pessoas se reúnem, de tempos em
tempos, em lugares onde objetos úteis podem ser
encontrados. Os índios de grande parte da América faziam
peregrinações regulares aos campos de pederneira; outros
se reuniam anualmente na época da colheita nos pântanos
de Zizania dos lagos do Noroeste. Os australianos, vivendo
dispersos no distrito de Barku, reúnem-se de todas as
direções para os festivais da colheita nos pântanos do
milho que produz Marsiliacae. Quando as árvores bonga-
bonga em Queensland produzem uma colheita
superabundante, e há um estoque maior disponível do que
a tribo pode consumir, as tribos estrangeiras têm permissão
para compartilhar disso.”77
“Várias tribos concordam com a donidade comum de faixas
definidas de território, e também das pedreiras de fonolito para
machadinhas.”78 Numerosas tribos australianas têm consultas comuns
e sessões dos anciãos para julgamento. Nestes, o restante da população

76
Cf. Ratzel, l. c. I, pp. 318, 540.
77
Ratzel, l. c. I, p. 335.
78
Ratzel, l. c. I, p. 346.

92
O Estado Marítimo

forma os espectadores, um costume semelhante ao germânico


“Umstand” no folkmoot primitivo.79
É natural que tais reuniões gerem trocas. Talvez isso explique a
origem daquelas “feiras semanais realizadas pelos negros da África
Central no meio da floresta primitiva sob acordos especiais pela paz”80
e também as grandes feiras, ditas muito antigas, dos caçadores de peles
do extremo norte do Tschuktsche.
Todas essas coisas pressupõem o desenvolvimento de formas
pacíficas de intercâmbio entre grupos vizinhos. Essas formas podem ser
encontradas quase universalmente. Elas poderiam ser facilmente
desenvolvidas neste período, uma vez que ainda não havia sido
descoberto que os homens podem ser utilizados como motores de
trabalho. Nesta fase, o estranho é tratado como inimigo apenas em casos
duvidosos. Se ele vier com intenções aparentemente pacíficas, será
tratado como amigo. Assim, desenvolveu-se todo um código de
cerimônias de direito público, destinado a demonstrar a intenção
pacífica do recém-chegado.81 Afasta-se o braço e mostra-se a mão
desarmada, ou envia-se de antemão arautos, que são sempre
invioláveis.82
É claro que essas formas representam algum tipo de reivindicação
de hospitalidade e, de fato, é por meio desse direito de hóspede que o
comércio pacífico se torna possível. A troca de presentes de convidados
precede e parece introduzir o escambo propriamente dito. Torna-se,
portanto, importante investigar a origem da hospitalidade.

79
Ratzel, l. c. I, p. 347.
80
Bücher, Entstehung der Volkswirtschaft, segunda edição, Tübingen, 1898, p.
301.
81
Nesta categoria deve ser considerada a saudação, ainda em uso em algumas
partes, “A paz esteja convosco”. É expressivo da perversidade dos últimos anos
de Tolstoi que ele interprete erroneamente essa marca característica de uma
época em que a guerra era o estado normal das coisas, como o remanescente
de uma era de ouro de paz. The Importance of the Russian Revolution (tradução
alemã de A. Hess, p. 17).
82
Veja Ratzel, l. c. I, p. 271, sobre os oceânicos: “A comunicação de tribo para
tribo é confiada a arautos invioláveis, de preferência mulheres idosas. Estes
também medeiam o comércio de escambo.” Cf. p. 317 para os australianos.

93
O Estado

Westermarck, em sua recente obra monumental (1907), Origin


and Development of Moral Concepts,83 afirma que o costume da
hospitalidade resulta de duas causas, curiosidade por notícias do
estrangeiro de longe e, mais ainda, do medo de que o estrangeiro pode
ser dotado de poderes de feitiçaria, imputados a ele apenas porque ele é
um estranho.84 Na Bíblia, a hospitalidade é recomendada porque não se
pode saber que o estranho pode não ser um anjo. A raça supersticiosa
teme sua maldição (a Erínia dos gregos) e se apressa em apaziguar o
estranho. Tendo sido aceito como hóspede, ele é inviolável e goza do
direito sagrado do grupo consanguíneo, sendo considerado como
pertencente a ele durante sua estada.
Portanto, ele participa dos benefícios do comunismo aborígine
reinante no grupo e compartilha sua propriedade. O anfitrião exige e
recebe tudo o que reivindica, o estranho obtém em troca o que pede.
Quando a relação pacífica se torna mais frequente, a troca mútua de
presentes para convidados pode se transformar em um acordo
comercial, porque o comerciante retorna com prazer ao local onde
encontrou um bom entretenimento, uma troca lucrativa e onde está
protegido pelas leis da hospitalidade, em vez de procurar novos lugares,
onde, muitas vezes com perigo de vida, teria que primeiro adquirir o
direito à hospitalidade.
A existência de uma divisão “internacional” do trabalho é,
obviamente, pressuposta antes que o desenvolvimento de uma relação
comercial regular possa começar. Essa divisão do trabalho existe muito
antes e em maior extensão do que geralmente se acredita.
“É bastante errôneo supor que a divisão do trabalho ocorre
apenas em uma alta escala de desenvolvimento
econômico. Existem no interior da África aldeias de
ferreiros, ou melhor, daqueles que apenas fabricam facas

83
Tradução para o alemão por L. Katscher. Leipzig, 1907.
84
Isso pode explicar o uso de mulheres idosas como arautos. Elas estão
duplamente disponíveis para esse fim, pois são inúteis para a guerra e
supostamente dotados de poderes específicos de feitiçaria (Westermarck),
ainda mais do que os velhos, que também são tratados com cautela, pois podem
se tornar “fantasmas” em breve.

94
O Estado Marítimo

de arremesso; A Nova Guiné tem suas aldeias de oleiros, a


América do Norte seus fabricantes de pontas de flechas.”85
De tais especialidades desenvolve-se o comércio, seja por meio
de mercadores itinerantes, ou por presentes para os anfitriões, ou por
presentes de paz de tribo para tribo. Na América do Norte, os kaddu
comercializam arcos.
“A obsidiana era universalmente empregada para pontas
de flechas e facas; no Yellowstone, no rio Snake, no Novo
México, mas especialmente no México. Daí o precioso
artigo foi distribuído por todo o país até Ohio e Tennessee,
uma distância de quase duas mil milhas.”86
De acordo com Vierkandt:
“Dos produtos puramente caseiros dos povos primitivos,
resulta um sistema de comércio totalmente distinto
daquele que prevalece nas condições modernas. [...] Cada
tribo separada desenvolveu aptidões especiais, levando ao
intercâmbio. Mesmo entre as tribos indígenas
relativamente incivilizadas da América do Sul,
encontramos tais diferenciações. [...] Por meio desse
comércio, os produtos podem ser distribuídos por
distâncias extraordinárias, não de maneira direta por meio
de comerciantes profissionais, mas por meio de uma
passagem gradual de tribo para tribo. A origem de tal
comércio, como Buecher mostrou, remonta à troca de
presentes de convidados.”87
Além dessa troca de presentes de convidados, um comércio pode
crescer a partir das ofertas de paz que os adversários trocam após uma
luta como sinal de reconciliação.88 Sartorius relata sobre a Polinésia:

85
Ratzel, l. c. I, p. 81.
86
Ratzel, l. c. I, pp. 478-9.
87
A. Vierkandt, Die wirtschaftlichen Verhältnisse der Naturvölker. Zeitschrift für
Sozialwissenschaft, II, pp. 177-8.
88
A espada de Breno frequentemente cai na balança. A troca aparente mascara
“reparações” sensíveis.

95
O Estado

“Depois de uma guerra entre diferentes ilhas, as ofertas de


paz para cada grupo eram algo novo; e se o presente e o
presente de retorno agradassem a ambas as partes, uma
repetição ocorria e, assim, abria-se novamente o caminho
para a troca de produtos. Mas, estes, em contraste com os
presentes de convidados, eram as bases da relação
contínua. Aqui, no lugar do contato de indivíduos, tribos e
povos se encontraram. As mulheres são o primeiro objeto
de troca; elas formam o elo de ligação entre tribos
estranhas e, de acordo com evidências de muitas fontes, as
mulheres são trocadas por gado.”89
Encontramos aqui um objeto de comércio, trocável mesmo sem
“divisão internacional do trabalho”. E parece que a troca de mulheres,
em muitos aspectos, facilitou o caminho para a troca de mercadorias,
como se tivesse sido o primeiro passo para a integração pacífica das
tribos, que acompanhou a integração belicosa da formação do estado.
Lippert, no entanto, acredita que a pacífica troca de fogo antecede esta
troca.90 Admitindo que esse costume seja muito antigo, ele pode, no
entanto, rastreá-lo apenas a partir de rudimentos de observância e de lei;
e como a prova não está mais acessível, não prosseguiremos com a
questão neste local.
Por outro lado, a troca de mulheres é observada universalmente e,
sem dúvida, exerce uma influência extraordinariamente forte no
desenvolvimento de relações pacíficas entre tribos vizinhas e na
preparação para troca de mercadorias. A história das mulheres sabinas,
que se jogaram entre seus irmãos e seus maridos, quando estes estavam
prestes a entrar em batalha, deve ter sido uma realidade em mil
instâncias no curso do desenvolvimento da raça humana. Em todo o
mundo, o casamento de parentes próximos é considerado um ultraje,
como “incesto”, por motivos que fogem ao escopo deste livro.91 Isso
direciona o desejo sexual para as mulheres das tribos vizinhas e, assim,
torna o saque das mulheres uma parte das relações intertribais
primárias; e em quase todos os casos, a menos que fortes sentimentos

89
Kulischer, l. c. pp. 320-1.
90
Lippert, l. c. I, p. 266, et seq.
91
Cf. Westermarck, History of Human Marriage.

96
O Estado Marítimo

raciais o neutralizem, o rapto violento de mulheres é gradualmente


comutado para troca e compra, o costume resultante da relativa
indesejabilidade das mulheres do próprio sangue em comparação com
as esposas a serem conseguidas de outras tribos.92
Onde a divisão do trabalho tornasse possível a troca de bens, as
relações entre as várias tribos se tornariam úteis a ela; os grupos
exogâmicos gradualmente se acostumam regularmente a se
encontrarem de forma pacífica. A paz, originalmente protegendo a
horda de parentes de sangue, a partir de então se estende a um círculo
mais amplo. Um exemplo de inúmeras instâncias:
“Cada uma das duas tribos de Camarões tem seus próprios
‘países do mato’, lugares onde seus próprios membros da
tribo comercializam e onde, por meio de casamentos, eles
têm parentes. Aqui também a exogamia mostra seu poder
de ligação entre tribos.”
Estas são as principais linhas de crescimento da troca e do tráfico
pacíficos; do direito à hospitalidade e à troca de mulheres, talvez
também da troca de fogo, ao comércio de mercadorias. Além disso,
mercados e feiras, e talvez também comerciantes, eram quase
uniformemente considerados sob a proteção de um deus que preservava
a paz e vingava sua violação. Assim, trouxemos os fundamentos desse
importantíssimo fator sociológico a ponto dos meios políticos entrarem
como causa para perturbar, reorganizar e depois desenvolver e afetar as
criações dos meios econômicos.

(b) O Comércio e o Estado Primitivo

Há duas razões muito importantes pelas quais o guerreiro ladrão


não deve interferir indevidamente nos mercados e feiras que encontrar
em seu domínio conquistado.

92
Ratzel, l. c. II, p. 27.

97
O Estado

A primeira, que é extraeconômica, é o medo supersticioso de que


a divindade vingará uma violação da paz. A segunda, que é econômica
e provavelmente a mais importante — e acho que sou o primeiro a
apontar essa conexão — é que os conquistadores não podem prosperar
sem os mercados.
O espólio dos vencedores primitivos consiste em muitas
propriedades que não estão disponíveis para seu uso e consumo
imediatos. Visto que artigos valiosos naquele período existem em
poucas formas, enquanto estes poucos ocorrem em grande quantidade,
a “utilidade marginal” de qualquer tipo é considerada muito baixa. Isso
se aplica especialmente ao produto mais importante dos meios políticos,
os escravos. Tomemos primeiro o caso do pastor: sua necessidade de
escravos é limitada pelo tamanho de seus rebanhos; é muito provável
que ele troque seu excedente por outros objetos de maior valor para ele:
sal, ornamentos, armas, metais, tecidos, utensílios etc. Por isso, o pastor
não só é sempre um ladrão, como também é sempre comerciante e
negociante e protege o comércio.93
Ele protege o comércio vindo em sua direção para trocar seu
saque com os produtos de outra civilização — desde os primeiros
tempos, os nômades escoltam as caravanas que passam por suas estepes
ou desertos em consideração ao dinheiro da proteção — mas ele
também protege o comércio mesmo em lugares conquistados por ele
em tempos pré-históricos. Exatamente o mesmo tipo de consideração
que influenciou os pastores a mudar da fase de urso para a fase de
apicultor, deve tê-los influenciado a manter e proteger os antigos
mercados e feiras.
Um único saque, nesse caso, significaria matar a galinha dos ovos
de ouro. É mais lucrativo preservar o mercado e, em vez disso, estender
a paz reinante sobre ele, uma vez que não há apenas o lucro a ser obtido
na troca de mercadorias estrangeiras por pilhagem, mas também o
dinheiro da proteção, o pedágio dos senhores, a ser coletado. Por essa
razão, os príncipes dos estados feudais de todos os estágios de
desenvolvimento estenderam sobre os mercados, estradas e
93
De acordo com Ed. Hahn, isso é menos verdadeiro para os pastores africanos
do que para os asiáticos.

98
O Estado Marítimo

comerciantes, sua proteção especial, a “paz do rei”, muitas vezes


reservando para si mesmos o monopólio do comércio exterior. Em todos
os lugares os vemos ocupados em criar novas feiras e cidades pela
concessão de proteção e imunidade.
Esse interesse no sistema de feiras e mercados torna
completamente crível que as tribos de pastores respeitassem os
mercados existentes em sua esfera de influência a tal ponto que
suspenderam o esforço dos meios políticos tão completamente que nem
mesmo exerceram “domínio” sobre eles. A história contada por
Heródoto é inerentemente provável, embora ele tenha ficado surpreso
que os argipeanos tivessem um mercado sagrado entre os pastores citas
sem lei, e que seus habitantes desarmados fossem efetivamente
protegidos pela paz sagrada de seu mercado. Muitos fenômenos
semelhantes tornam isso mais facilmente crível.
“Ninguém ousará feri-los, pois são considerados sagrados; e
ainda assim eles não têm armas; mas são eles que acalmam as brigas de
seus vizinhos, e quem quer que tenha escapado para eles como um
fugitivo não pode ser tocado por nenhum outro homem.”94 Instâncias
semelhantes são encontradas com frequência: “É sempre a mesma
história dos argipeanos, a história da pequena tribo ‘sagrada’,
'desarmada', 'justa', que faz escambo e apaziguadora no meio de uma
população nômade semelhante a beduínos.”95
Cere pode ser tomado como um exemplo de um tipo superior.
Estrabão diz a respeito de seus habitantes: “Os gregos tinham grande
consideração por sua bravura e justiça, porque, embora fossem bastante
poderosos, abstinham-se de roubos.” Mommsen, que cita esta
passagem, acrescenta: “Isso não exclui a pirataria, praticada pelos
mercadores de Cere, bem como por todos os outros mercadores, mas
sim que Cere era uma espécie de porto livre para os fenícios, assim
como para os gregos.”96

94
Herodotus IV, 23, citado por Lippert, l. c. I, p. 459.
95
Lippert, l. c. II, p. 170.
96
Mommsen, l. c. I, p. 139.

99
O Estado

Cere não é como a feira dos argipeanos, um mercado no interior


de um distrito de nômades da terra, mas está no meio de um domínio
de nômades do mar, um porto dotado de sua própria paz. Esta é uma
daquelas formações típicas cuja importância, a meu ver, não foi
apreciada pelo seu valor real. Eles têm, parece-me, exercido uma
poderosa influência na gênese dos estados marítimos.
As razões pelas quais vimos os nômades da terra forçados a
preservar, se não a criar, mercados, devem com ainda mais intensidade
ter coagido os nômades do mar a atitudes semelhantes. Pois o transporte
de saques, especialmente de rebanhos e escravos, é difícil e perigoso
nas trilhas do deserto ou das estepes: o avanço lento convida à
perseguição. Mas com a canoa de guerra e o “navio-dragão” esse
transporte é fácil e seguro. Por essa razão, o viking é ainda muito mais
comerciante e mercador do que o pastor. Como é dito em Fausto,
“Guerra, Comércio e Pirataria são inseparáveis”.

(c) A Gênese do Estado Marítimo

Em muitos casos, creio eu, o comércio do saque da pirataria é a


origem daquelas cidades em torno das quais, como centros políticos,
cresceram as cidades-estados da civilização antiga ou mediterrânea;
enquanto em muitos outros casos, o mesmo comércio cooperou para
levá-los ao mesmo ponto de desenvolvimento político.
Esses mercados portuários desenvolveram-se provavelmente a
partir de dois tipos gerais: eles cresceram como fortalezas piratas direta
e intencionalmente colocadas em território hostil, ou então como
“colônias mercantes” baseadas em direitos de tratados nos portos de
estados feudais estrangeiros primitivos ou desenvolvidos.
Do primeiro tipo, temos vários exemplos importantes da história
antiga que correspondem exatamente ao quarto estágio de nosso
esquema, onde uma colônia armada de piratas se instala em um ponto
comercial e estrategicamente defensável no litoral de um estado
estrangeiro. O exemplo mais notável é Cartago; e, da mesma forma, os
100
O Estado Marítimo

nômades gregos do mar, jônios, dórios e aqueus, estabeleceram-se em


seus castelos marítimos nas costas do Adriático e do Tirreno no sul da
Itália, nas ilhas desses mares e nos golfos do sul da Gália. Fenícios,
etruscos,97 gregos e, de acordo com a investigação moderna, cários,
todos ao redor do Mediterrâneo, fundaram seus “Estados” segundo o
mesmo tipo, com idêntica divisão de classe em senhores e camponeses
servis do território vizinho.98
Alguns desses estados da costa desenvolveram-se em estados
feudais do tipo dos estados territoriais; e a classe senhorial tornou-se
então uma aristocracia fundiária. Os fatores dessa mudança foram:
primeiro, as condições geográficas, a falta de bons portos e uma grande
extensão de hinterland cultivado por camponeses pacíficos; e em
segundo lugar, muito provavelmente, a organização adquirida em
classes trazidas com eles de seus lares originais.
Em muitos casos, eram nobres fugitivos, derrotados em rixas
domésticas, ou filhos mais novos, às vezes toda uma geração de jovens
de ambos os sexos, que assim se iniciavam “no viking”, tendo em casa
terras e servos, como pequenos senhores, eles novamente buscaram em
terras estrangeiras o que consideravam devido. A ocupação da
Inglaterra pelos anglo-saxões e do sul da Itália pelos normandos são
97
Se os etruscos eram imigrantes na Itália por territórios que começaram a
pirataria depois de terem feito guerra com sucesso em terra, ou se como
nômades do mar eles já haviam estabelecido o país ao longo do mar com o
nome deles, não foi determinado. Se os etruscos eram um povo de guerra que
imigraram para a Itália por terra e depois passaram para o nomadismo
marítimo, ou se já haviam chegado como nômades do mar em seus assentos no
mar com o nome deles, não foi estabelecido. Mas é muito provável que pelo
menos uma imigração posterior tenha ocorrido por mar; os “tursa” de que
falam os monumentos egípcios. Os filisteus também chegaram à Palestina por
mar, talvez de Creta: "cereteus e feleteus".
98
Condições semelhantes podem ser observadas entre os ilhéus próximos à Índia.
Aqui os malaios são vikings. “A colonização é um fator importante, como
conquista e colonização ultramarina [...] lembrando o grande papel
desempenhado na antiga Hellas pelas tribos errantes. [...] Cada faixa de costa
mostra elementos estrangeiros, que entram sem ser solicitados e, na maioria
das vezes, espalhando danos entre os nativos. O direito de conquista foi
concedido pelos governantes de Tornate a dinastias nobres, que mais tarde se
tornaram vice-reis semi-soberanos nas ilhas de Buru, Serang, etc.”

101
O Estado

exemplos desse método; também o são as colonizações espanhola e


portuguesa do México e da América do Sul. As colônias aqueias da
Grande Grécia no sul da Itália fornecem exemplos adicionais e muito
importantes desse desenvolvimento de estados feudais territoriais por
nômades do mar:
“Esta Liga Aqueia de cidades foi uma verdadeira
colonização. As cidades não tinham portos — Croton só
tinha uma boa enseada — e estavam sem qualquer
comércio próprio; o sibarita podia se gabar de estar
ficando grisalho em sua cidade aquática entre as pontes de
sua casa, enquanto a compra e venda era realizada por
milésios e etruscos. Por outro lado, os gregos nesta região
não apenas controlavam a orla da costa, mas governavam
de mar a mar; [...] os habitantes agrícolas nativos foram
forçados a uma relação de clientela ou servidão, e foram
obrigados a trabalhar nas fazendas de seus senhores ou
pagar tributo a eles.”99
É provável que a maioria das colônias dóricas em Creta fossem
organizadas de forma semelhante.
Mas, no curso da história universal, esses “estados territoriais”,
quer tenham surgido com mais ou menos frequência, não adquiriram
tanta importância quanto aquelas cidades marítimas que dedicaram suas
principais energias ao comércio e ao corso. Mommsen contrasta em
frases distintas e bem escolhidas o senhor de terras aqueu com os
“comerciantes reais” das colônias gregas no sul da Itália:
“De forma alguma eles desprezaram a agricultura ou o
aumento do território; os gregos não se contentaram, pelo
menos não depois de se tornarem poderosos, em
permanecer no espaço confinado de uma fábrica comercial
fortificada no meio do país dos bárbaros, como haviam
feito os fenícios. Suas cidades foram fundadas principal e
exclusivamente para fins comerciais e, ao contrário das

99
Mommsen, l. c. I, p. 132.

102
O Estado Marítimo

colônias aqueias, estavam universalmente situadas nos


melhores portos e locais de desembarque.”100
Estamos certos, no caso das colônias jônicas, e podemos muito
bem assumir isso para os outros casos, que os fundadores dessas cidades
não eram senhores de terras, mas mercadores marítimos.
Mas tais estados ou cidades marítimas, em sentido estrito, vieram
a existir não apenas por meio de conquistas bélicas, mas também por
começos pacíficos, por uma pénétration pacifique mais ou menos
mista.
Onde, no entanto, os vikings não encontraram camponeses
pacíficos, mas estados feudais no estágio primitivo, dispostos a lutar,
eles ofereceram e aceitaram termos de paz e se estabeleceram como
colônias de mercadores.
Sabemos de tais casos em todas as partes do mundo, em portos e
em mercados em terra. Para citar os exemplos com os quais os alemães
estão mais familiarizados, há os assentamentos de comerciantes do
norte da Alemanha em países ao longo do oceano alemão e do mar
Báltico, o German Steel Yard em Londres, o Hansa na Suécia e a
Noruega, na ilha de Schönen, e na Rússia, em Novgorod. Em Wilna, a
capital dos Grão-Duques da Lituânia, havia tal colônia; e o Fondaco dei
Tedeschi em Veneza é outro exemplo de instituição semelhante.
Os estrangeiros em quase todos os casos se estabelecem como
uma massa compacta, sujeita às suas próprias leis e à sua própria
jurisdição. Frequentemente adquirem grande influência política, às
vezes estendendo-se ao domínio sobre o estado. Alguém poderia pensar
que o seguinte conto de Ratzel, sobre a costa e as ilhas do Oceano
Índico, foi uma narrativa contemporânea da invasão fenícia ou grega do
Mediterrâneo por volta de 1.000 a.C.:
“Nações inteiras foram, por assim dizer, liquefeitas pelo
comércio, especialmente os proverbialmente inteligentes,
zelosos e onipresentes malaios de Sumatra; assim como o
traiçoeiro bugi das Celebes. Estes podem ser encontrados

100
Mommsen, l. c. I, p. 134.

103
O Estado

em qualquer lugar, de Cingapura à Nova Guiné.


Ultimamente, especialmente em Bornéu, eles imigraram
em massa a pedido dos chefes de Bornéu. Sua influência
era tão forte que lhes foi permitido governar a si mesmos
de acordo com suas próprias leis, e eles se sentiram tão
fortes que repetidamente tentaram alcançar a
independência. Os achineses anteriormente ocupavam
uma posição semelhante. Malaca havia se tornado o
principal mercado dos malaios de Sumatra e, após seu
declínio, Achin tornou-se o porto mais frequentado desse
leste distante, especialmente no primeiro quarto do século
XVII, o período crucial do desenvolvimento daquele canto
do mundo.”101
O seguinte, dentre inúmeros exemplos, demonstra a
universalidade dessa forma de assentamento: “Em Urga, onde eles
dominam politicamente, os mercadores estão amontoados em uma
cidade chinesa separada.”102
Nos Estados Judeus havia “pequenas colônias de mercadores e
mecânicos estrangeiros, separados em bairros distintos das cidades.
Aqui, sob a proteção do rei, eles poderiam viver de acordo com seus
próprios costumes religiosos.”103 Também podemos comparar com isso,
I Reis, 20:34.
“O rei Onri de Efraim foi forçado pelo sucesso militar de
seu oponente, o rei de Damasco, a conceder aos
mercadores aramaicos o uso de certas partes da cidade de
Samaria, onde sob proteção real eles poderiam negociar.
Mais tarde, quando o rumo da guerra favoreceu seu
sucessor, Acabe, este último exigiu o mesmo privilégio
para os mercadores efraimitas em Damasco.”104

101
Ratzel, l. c. I, p. 160.
102
Ratzel, l. c. II, p. 558.
103
Buhl, l. c., p. 48.
104
Buhl, l. c., pp. 78-79.

104
O Estado Marítimo

“Os habitantes da Itália, onde quer que estivessem,


mantinham-se unidos como massas sólidas e organizadas,
os soldados como legionários, os comerciantes de todas as
grandes cidades como corporações; enquanto os cidadãos
romanos domiciliados ou residentes nos vários ‘circulos’
(conventus civium Romanorum), eram organizados como
uma 'convenção de cidadãos romanos' com seu próprio
governo comunal.”105
Podemos lembrar os guetos medievais, que, antes da grande
perseguição aos judeus na Idade Média, eram colônias mercantes
semelhantes. Os assentamentos de europeus nos portos de fortes
impérios estrangeiros na atualidade mostram organizações corporativas
semelhantes, com constituição e jurisdição (consular) próprias. China,
Turquia e Marrocos devem continuar a ostentar essa marca de
inferioridade, enquanto recentemente o Japão conseguiu se livrar dessa
insígnia.
O ponto mais interessante sobre essas colônias, pelo menos para
nosso estudo, consiste em sua tendência geral de estender sua influência
política à dominação completa. E há uma boa razão para isso. Os
comerciantes possuem uma massa de riqueza móvel, que
provavelmente será usada como fator decisivo nas convulsões políticas
que constantemente perturbam todos os estados feudais, seja em guerras
internacionais entre dois estados vizinhos, seja em lutas intranacionais,
como guerras de sucessão .
Além disso, os colonos, em muitos casos, podem contar com o
poder de seu estado natal, baseando suas reivindicações em laços de
sangue e em interesses comerciais extraordinariamente fortes; ao passo
que há, além disso, o fato de que em muitos casos eles têm em seus
guerreiros marinheiros e seus numerosos escravos uma força efetiva e
compacta própria, capaz de realizar muito em uma esfera limitada.
A seguinte história do papel desempenhado pelos mercadores
árabes na África Oriental parece-me mostrar um tipo histórico até então
não suficientemente apreciado:

105
Mommsen, l. c. II, p. 406.

105
O Estado

“Quando Speke, como o primeiro europeu, fez esta viagem


em 1857, os árabes eram mercadores, vivendo como
estrangeiros na terra. Quando em 1861 ele passou pelo
mesmo caminho, os árabes pareciam grandes proprietários
de terras com ricas propriedades de terra e estavam em
guerra com o governante territorial nativo. Esse processo,
recorrentemente encontrado em muitas outras regiões do
interior da África, é a consequência necessária do
equilíbrio de poder. Os mercadores estrangeiros, sejam
eles árabes ou suaheli, pedem o privilégio do trânsito e
pagam tributo por ele; eles estabelecem armazéns, que os
chefes favorecem, pois parecem satisfazer sua vaidade e
ampliar suas conexões; então, incorrendo na suspeita,
opressão e perseguição dos chefes, os mercadores se
recusam a pagar os pedágios e taxas, que cresceram com o
aumento de sua prosperidade. Por fim, em uma das lutas
inevitáveis pela sucessão, os árabes ficam do lado de um
pretendente, se ele for flexível o suficiente, e assim são
levados a brigas internas do país e participam das guerras
muitas vezes intermináveis.”106
Essa atividade política dos habitantes mercadores (metoikoi) é um
tipo constantemente recorrente. “Em Bornéu, desenvolveram-se
estados separados a partir dos assentamentos de garimpeiros
chineses.”107 Falando estritamente, toda a história da colonização pelos
europeus é uma série de exemplos da lei que, com qualquer força
superior, as fábricas e assentamentos maiores de estrangeiros tendem a
crescer em dominação, a menos que se aproximem do tipo primitivo de
pirataria simples, como as conquistas espanhola e portuguesa, ou as
Companhias das Índias Orientais, tanto inglesas quanto holandesas.
“Existe um estado ladrão ao lado do oceano, entre o Reno e o
Scheldt”, são as palavras acusadoras do holandês Multatuli. Todas as
colônias do leste asiático, americanas e africanas de todos os povos
europeus surgiram como um ou outro desses dois tipos.

106
Ratzel, l. c. II, p. 191; cf. também pp. 207-8.
107
Ratzel, l. c. I, p. 363.

106
O Estado Marítimo

Mas os estrangeiros nem sempre obtêm domínio incondicional.


Às vezes, o estado anfitrião é muito forte e os recém-chegados
permanecem politicamente impotentes, mas estrangeiros protegidos;
como, por exemplo, os alemães na Inglaterra. Às vezes, o estado
anfitrião, embora subjugado, torna-se forte o suficiente para se livrar da
dominação estrangeira; assim, por exemplo, a Suécia expulsou o Hansa
que lhe havia imposto sua soberania. Em alguns casos, um conquistador
supera tanto os mercadores quanto o estado hospedeiro, e subjuga
ambos; como aconteceu com as repúblicas de Novgorod e Pskov,
quando os russos as anexaram.
Em muitos casos, no entanto, os estrangeiros ricos e a nobreza
doméstica se amalgamam em um grupo de governantes, seguindo o tipo
de formação de estados territoriais, nos quais vimos isso ocorrer sempre
que dois grupos de governantes igualmente fortes entravam em conflito.
Parece-me que esta última situação nomeada é o pressuposto mais
provável para a gênese das mais importantes cidades-estado da
antiguidade, para as cidades marítimas gregas e para Roma.
Da história grega, para usar os termos de Kurt Breysig,
conhecemos apenas a “Idade Média”, da história romana, apenas seus
“Tempos Modernos”. Para os assuntos anteriores, devemos ser
extremamente cuidadosos ao extrair deduções de analogias imaginárias.
Mas parece-me que fatos suficientes são provados e admitidos para
permitir a conclusão de que Atenas, Corinto, Micenas, Roma, etc.,
tornaram-se estados da maneira já apresentada. E isso se seguiria,
mesmo que os dados de toda a demografia e história geral conhecidas
não fossem de validade tão universal que permitissem a conclusão em
si.
Sabemos com precisão pelos nomes dos lugares (Salamis: Ilha da
Paz, equivalente a Ilha do Mercado), pelos nomes dos heróis, pelos
monumentos e pela tradição imediata, que em muitos portos gregos
existiam fábricas fenícias, enquanto o hinterland era ocupado por
pequenos estados feudais com a articulação típica de nobres, homens
livres comuns e escravos. Não se pode contestar seriamente que o
desenvolvimento das cidades-estados foi fortemente impulsionado por
influências estrangeiras; e isso é verdade, embora nenhuma evidência

107
O Estado

específica possa ser aduzida para mostrar que qualquer um dos


mercadores fenícios ou ainda mais poderosos da Caria foi autorizado a
se casar com as famílias da nobreza residente, ou se tornou cidadão
pleno, ou finalmente até mesmo tornaram-se príncipes.
O mesmo se aplica a Roma, sobre a qual Mommsen, um autor
cauteloso, afirma:
“Roma deve sua importância, senão sua origem, a essas
relações comerciais e estratégicas. A evidência disso é
encontrada em muitos vestígios de valor muito maior do
que os contos de romances históricos que pretendem ser
autênticos. Tomemos um exemplo das relações primitivas
existentes entre Roma e Cere, que foi para a Etrúria o que
Roma foi para o Lácio, e depois disso foi seu vizinho mais
próximo e amigo comercial; ou a importância incomum
atribuída à ponte sobre o Tibre e à construção da ponte
(Pontifex Maximus) em todas as partes do Estado
Romano; ou a galé no brasão municipal. A esta fonte
podem ser atribuídas as primitivas taxas portuárias
romanas às quais, desde tempos remotos, estavam sujeitas
apenas as mercadorias destinadas à venda (promercale) e
não o que entrava no porto de Ostia, para o uso adequado
do afretador (usuarium), e que constituía, portanto, um
imposto sobre o comércio. Por essa razão, encontramos o
uso comparativamente precoce de dinheiro cunhado e os
tratados comerciais de estados ultramarinos com Roma.
Nesse sentido, então, Roma pode, como afirma a história
de sua origem, ter sido mais uma cidade criada do que
desenvolvida, e entre as cidades latinas a mais jovem em
vez da mais antiga.”108
Seria necessário o trabalho de uma vida inteira de pesquisa
histórica para investigar essas possibilidades, ou melhor, essas
probabilidades; e então escrever a história constitucional dessas
cidades-estados preeminentemente importantes e tirar daí as conclusões
necessárias. Parece-me que neste caminho se encontrariam muitas
informações sobre muitas questões obscuras, como o domínio etrusco

108
Mommsen, l. c., p. 46.

108
O Estado Marítimo

em Roma, ou a origem das famílias ricas dos plebeus, ou sobre os


metoikoi atenienses, e muitos outros problemas.
Aqui podemos apenas seguir o fio que nos oferece a esperança de
nos conduzir através do labirinto da tradição histórica até a questão.

(d) A Essência e o Desfecho dos Estados


Marítimos

Todos esses são verdadeiros “Estados” no sentido sociológico,


quer surjam de fortalezas de ladrões do mar, quer de portos de nômades
terrestres originais como colônias mercantes que obtiveram domínio ou
que se fundiram com o grupo dominante do povo anfitrião. Pois eles
nada mais são do que a organização dos meios políticos, sua forma é a
dominação, seu conteúdo é a exploração econômica do súdito pelo
grupo mestre.
No que diz respeito ao princípio, eles não devem ser diferenciados
dos estados fundados por nômades terrestres; e, no entanto, eles
assumiram uma forma diferente, tanto por razões internas quanto
externas, e mostram uma psicologia diferente das classes.
Não se deve acreditar que o sentimento de classe fosse diferente
nestes e nos estados territoriais. Aqui como ali, a classe mestra olha com
o mesmo desprezo para os súditos, para os “Rantuses”, para o “homem
das unhas azuis”, como o patrício alemão da Idade Média olhava para
um ser com quem, mesmo quando nascido livre, nenhum casamento ou
intercurso social era permitido.
De fato, a teoria de classes dos καλοκἀγαθοί (bem-nascidos) ou
dos patrícios (filhos de ancestrais) pouco difere daquela dos senhores
do campo. Mas outras circunstâncias aqui provocam diferenças,
consoantes, naturalmente, com os interesses de classe. Em qualquer
distrito governado por comerciantes, o roubo na estrada não pode ser
tolerado e, portanto, é considerado, e.g., entre os gregos marítimos, um

109
O Estado

crime vulgar. A história de Teseu não teria sido apontada contra os


salteadores em um estado territorial. Por outro lado,
“a pirataria era considerada por eles, nos tempos mais
remotos, como um comércio nada desonroso [...] do qual
ampla prova pode ser encontrada nos poemas homéricos;
enquanto em um período muito posterior, Polícrates
organizou um estado ladrão bem desenvolvido na ilha de
Samos.”

“No Corpus Juris, é feita menção a uma lei de Sólon na


qual a associação de piratas (ἐπὶ λείαν οἰχόμενοι) é
reconhecida como uma empresa admissível."109
Mas, independentemente desses detalhes, mencionados apenas
porque servem para lançar uma luz clara sobre o crescimento da
“superestrutura ideológica”,110 as condições básicas de existência dos
estados marítimos, totalmente diferentes dos estados territoriais,
criaram dois fenômenos extremamente importantes, que são de
importância histórica universal, a saber, o crescimento de uma
constituição democrática, por meio da qual a gigantesca disputa entre
o sultanismo do Oriente e a liberdade cívica do Ocidente deveria ser
travada (de acordo com Mommsen, o verdadeiro conteúdo da história
universal); e, em segundo lugar, o desenvolvimento do trabalho
escravo capitalista, que acabaria por aniquilar todos esses estados.
Consideremos primeiro as causas internas ou sócio-psicológicas
desse contraste entre o estado territorial e o estado marítimo.
Estados são mantidos pelo mesmo princípio do qual surgem. A
conquista de terras e populações é a ratio essendi de um estado
territorial; e pela conquista repetida de terras e populações deve crescer,
até que seu crescimento natural seja interrompido por cadeias de

109
Ambos citados por Kulischer, l. c., p. 319, de: Buechsenschuetz, Besitz und
Erwerb im grieschischen Altertum; e Goldschmidt, History of the Law of
Commerce.
110
Quão característico dessas relações é que a Grã-Bretanha, o único “estado
marítimo” da Europa, mesmo nos dias de hoje, não abrirá mão do direito de
armar corsários.

110
O Estado Marítimo

montanhas, deserto ou oceano, ou seus limites sociológicos sejam


determinados pelo contato com outros estados de sua própria espécie,
que não pode subjugar. O estado marítimo, por outro lado, nasceu da
pirataria e do comércio; e por esses dois meios, deve se esforçar para
estender seu poder. Para tanto, nenhum território extenso precisa estar
absolutamente sujeito ao seu domínio. Não há necessidade de levar seu
desenvolvimento além dos primeiros cinco estágios.
Os estados marítimos raramente, e somente quando compelidos,
passam do quinto estágio e atingem a completa intranacionalidade e
amalgamação. Normalmente, basta que outros nômades e comerciantes
do mar sejam mantidos afastados, que o monopólio do roubo e do
comércio seja assegurado e que os “súditos” sejam mantidos em
silêncio por fortes e guarnições. Lugares importantes de produção são,
é claro, realmente “dominados”; e isso se aplica especialmente a minas,
a alguns cinturões férteis de grãos, a bosques com boa madeira, a salinas
e a importantes pescarias. Dominação aqui, portanto, significa
administração permanente, fazendo com que os súditos trabalhem para
a classe dominante.
Só mais tarde no desenvolvimento, surge o gosto por “terras e
servos” e grandes domínios para a classe dominante para além dos
confins dos limites estreitos e originais do estado. Isso acontece quando
o estado marítimo pela incorporação de territórios subjugados se tornou
uma mistura das formas territoriais e marítimas. Mas mesmo nesse
caso, e em contraste com os estados territoriais, as grandes propriedades
fundiárias são apenas uma fonte de aluguéis monetários e, em quase
todos os casos, são administradas como propriedade de ausentes. Isso
encontramos em Cartago e no Império Romano posterior.
Os interesses da classe mestra, que no estado marítimo, como em
qualquer outro estado, governa de acordo com sua própria vantagem,
são diferentes dos do estado territorial. Neste último, o magnata
territorial feudal é poderoso por causa de sua propriedade de terras e
pessoas; enquanto, inversamente, o patrício da cidade marítima é
poderoso por causa de sua riqueza. O magnata territorial pode dominar
seu “Estado” apenas pelo número de homens de armas que mantém e,
para ter o maior número possível, deve aumentar seu território o

111
O Estado

máximo possível. O patrício, por outro lado, pode controlar seu


“estado” apenas pela riqueza móvel, com a qual ele pode alugar armas
fortes ou subornar almas fracas; tal riqueza é conquistada mais
rapidamente pela pirataria e pelo comércio do que pelas guerras de
terras e pela posse de grandes propriedades em territórios distantes.
Além disso, para usar plenamente tal propriedade, ele seria
obrigado a deixar sua cidade para se estabelecer nela e se tornar um
escudeiro regular; porque em um período em que o dinheiro ainda não
se generalizou, em que ainda não se produziu uma divisão lucrativa do
trabalho entre a cidade e o campo, a exploração das grandes
propriedades de terra só pode ser exercida pelo consumo real de seus
produtos, e a propriedade ausente como uma fonte de renda é
inconcebível.
Até agora, no entanto, não chegamos a essa parte do
desenvolvimento. Ainda estamos examinando condições primitivas.
Nenhum patrício de qualquer cidade-estado pensaria, neste momento,
em deixar seu rico e animado lar para se enterrar entre os bárbaros e,
assim, com um único movimento, isolar-se de qualquer papel político
em seu estado. Todos os seus interesses econômicos, sociais e políticos
o impelem unanimemente aos empreendimentos marítimos. Não a
propriedade fundiária, mas o capital móvel, é o nervo de sua vida.
Estas foram as causas motrizes das ações da classe mestra nas
cidades marítimas; e mesmo onde as condições geográficas permitiram
uma extensa expansão além do hinterland adjacente dessas cidades,
eles voltaram o peso do esforço para o poder marítimo em vez do
crescimento territorial. Mesmo no caso de Cartago, seu território
colossal era muito menos importante para ela do que seus interesses
marítimos.
Principalmente, conquistou a Sicília e a Córsega mais para
impedir a competição dos comerciantes gregos e etruscos do que para
possuir essas ilhas; estendeu seus territórios em direção aos líbios em
grande parte para garantir a segurança de suas outras possessões
domésticas; e finalmente, quando conquistou a Espanha, seu motivo
último foi a necessidade de possuir as minas. A história do Hansa mostra

112
O Estado Marítimo

muitos pontos de semelhança com o acima. A maioria dessas cidades


marítimas, além disso, não era capaz de subjugar um grande distrito.
Mesmo que houvesse vontade de conquistar, havia condições
geográficas estranhas que atrapalhavam. Ao longo de todo o
Mediterrâneo, com exceção de alguns poucos lugares, a planície
costeira é extremamente estreita, uma pequena faixa cercada por altas
cadeias montanhosas. Essa foi uma das causas que impediu que a
maioria dos estados agrupados em torno de algum porto comercial
crescesse até algo parecido com o tamanho que naturalmente supomos
ser provável; enquanto no campo aberto, governado por pastores, e isso
muito cedo, imensos reinos vieram a existir.
A segunda causa para o pequeno começo desses estados é
encontrada nisso, que o hinterland, seja nas colinas ou nas poucas
planícies do Mediterrâneo, foi ocupado por tribos guerreiras. Esses
membros da tribo, caçadores ou pastores guerreiros, ou então estados
feudais primitivos da mesma raça superior dos nômades do mar,
provavelmente não seriam subjugados sem uma disputa severa. Assim,
na Grécia, o interior foi salvo dos estados marítimos.
Por estas razões o estado marítimo, mesmo quando mais
desenvolvido, permanece sempre centralizado, somos tentados a dizer
centrado, no seu porto mercantil; enquanto o estado territorial,
fortemente descentralizado desde o início, por muito tempo continua a
se desenvolver à medida que expande uma descentralização ainda mais
pronunciada. Mais tarde, veremos como isso é afetado pela adoção
daquelas formas de governo e realização econômica que foram
aperfeiçoadas pela primeira vez na “cidade-estado” e que assim
obtiveram força para neutralizar as forças centrífugas e construir a
organização central que é característica de nossos estados modernos.
Este é o primeiro grande contraste entre as duas formas de Estado.
Não menos decisivo é o segundo ponto de contraste, segundo o
qual o estado territorial permanece vinculado às economias naturais em
oposição às economias monetárias, para as quais o estado marítimo
rapidamente se volta. Esse contraste surge também das condições
básicas de sua existência.

113
O Estado

Onde quer que um estado viva em economia natural, o dinheiro é


um luxo supérfluo — tão supérfluo que uma economia desenvolvida
para o uso do dinheiro retrocede novamente em um sistema de
pagamentos em espécie assim que a comunidade volta à forma
primitiva. Assim, depois que Carlos Magno emitiu boas moedas, a
situação econômica as expulsou. Neustria — para não mencionar a
Austrásia — sob o estresse da migração dos povos reverteu ao
pagamento em espécie.
Tal sistema pode muito bem prescindir sem o dinheiro como
padrão de valores, uma vez que não possui nenhuma relação e tráfego
desenvolvidos. Os inquilinos do senhor fornecem como tributo as
coisas que o senhor e seus seguidores consomem imediatamente;
enquanto seus ornamentos, tecidos finos, armas adamascadas ou
cavalos raros, sal etc., são adquiridos em troca de mercadores errantes
por escravos, cera, peles e outros produtos de um sistema econômico
belicoso de troca em espécie.
Na vida citadina, em qualquer estágio avançado de
desenvolvimento, é impossível existir sem uma medida comum de
valores. O mecânico livre em uma cidade não pode, exceto em casos
raros, encontrar algum outro artesão que necessite da coisa especial que
produz, disposto a consumi-la imediatamente. Além disso, nas cidades,
o inevitável comércio varejista de produtos alimentícios, onde todos
devem comprar quase tudo o que é necessário, torna inevitável o uso de
moedas cunhadas.
É impossível conduzir o comércio em seu sentido mais limitado,
não entre comerciante e clientes, mas entre comerciante e comerciante,
sem ter uma medida comum de valor. Imagine o caso de um
comerciante entrando em um porto com uma carga de escravos,
desejando levar tecido como carga de retorno, e encontrando um
comerciante de tecidos que na época pode não querer escravos, mas
ferro, ou gado, ou peles. Para realizar essa troca, pelo menos uma dúzia
de negócios intermediários teriam que ocorrer antes que o objetivo
pudesse ser alcançado. Isso só pode ser evitado se existir alguma
mercadoria desejada por todos. No sistema de pagamento em espécie
dos estados territoriais este pode ser levado por gado ou cavalos, desde

114
O Estado Marítimo

que possam ser utilizados por qualquer um em algum momento; mas o


dono de navio não pode carregar gado como meio de pagamento, e
assim o ouro e a prata passam a ser reconhecidos como “dinheiro”.
Da centralização e do uso do dinheiro, que são propriedades
necessárias do estado marítimo ou cidade-estado, como o chamaremos
daqui em diante, segue-se por necessidade o seu destino.
A psicologia do homem da cidade, e especialmente do morador
da cidade marítima comercial, é radicalmente diferente da do
camponês. Seu ponto de vista é mais livre e abrangente, ainda que mais
superficial; ele é mais vivo, porque mais impressões o atingem em um
dia do que um camponês em um ano. Ele se acostuma com mudanças e
novidades constantes, e assim é sempre novarum rerum cupidus. Ele
está mais distante da natureza e menos dependente dela do que o
camponês e, portanto, tem menos medo de “fantasmas”.
Uma consequência disso é que um subalterno em uma cidade-
estado está menos apto a considerar os regulamentos “tabu” impostos a
ele pelo primeiro e segundo estamentos dos governantes. E como ele é
obrigado a viver em massas compactas com seus companheiros súditos,
ele logo encontra sua força nos números, de modo que se torna mais
indisciplinado e sedicioso do que o servo que vive em tal isolamento
que nunca se torna consciente da massa à qual ele pertence e permanece
sempre com a impressão de que seu suserano com seus seguidores teria
a vantagem em todas as lutas.
Isso em si mesmo acarreta uma dissolução sempre progressiva do
rígido sistema de grupos subordinados criado pela primeira vez pelo
estado feudal. Na Grécia, somente os estados territoriais foram capazes
de manter seus súditos por muito tempo em um estado de sujeição:
Esparta, seus hilotas, Tessália, seus penestes. Em todas as cidades-
estado, ao contrário, encontramos cedo uma insurreição do proletariado
contra a qual a classe dominante não conseguiu opor uma resistência
efetiva.
A situação econômica tende ao mesmo resultado que as condições
de assentamento. A riqueza móvel tinha muito menos estabilidade do
que a propriedade fundiária: o mar é traiçoeiro, e as fortunas da guerra

115
O Estado

marítima e da pirataria não menos. O homem rico de hoje pode perder


tudo em uma volta da roda da Fortuna; enquanto o homem mais pobre
pode, pelo mesmo balanço, pousar no topo. Mas em uma comunidade
baseada inteiramente em posses, a perda de fortuna traz consigo a perda
de posição e de “classe”, assim como ocorre o inverso.
O plebeu rico se torna o líder da massa do povo em sua luta
constitucional por direitos iguais e coloca toda a sua fortuna em risco
nessa luta. A posição dos patrícios torna-se insustentável; quando
coagidos, eles sempre concederam as reivindicações da classe baixa.
Assim que o primeiro plebeu rico foi incluído em suas fileiras, o direito
de governo por nascimento, defendido como uma instituição sagrada,
tornou-se para sempre impossível. Daí em diante, o que é justo para um
é justo para o outro; e o governo aristocrático é seguido primeiro pelo
plutocrático, depois pelo democrático, finalmente pelo regime
oclocrático, até que a conquista estrangeira ou a “tirania” de algum
“Salvador da Espada” resgate a comunidade do caos.
Este fim afeta não só o estado, mas na maioria dos casos afeta
seus habitantes tão profundamente que se pode falar de uma literal
morte dos povos, causada pela exploração capitalista do trabalho
escravo. Esta última é uma instituição social que inevitavelmente
existirá em todos os estados fundado na pirataria e em
empreendimentos marítimos e, portanto, usando o dinheiro como meio
de troca. Nos estágios primitivos do feudalismo, de onde foi derivada,
a escravidão era inofensiva, como é verdade em todos os sistemas
econômicos baseados na troca e no uso em espécie, apenas para se
tornar um câncer ulceroso, totalmente destrutivo de toda a vida do
estado assim que é explorado pelo método “capitalista”, i.e., assim que
o trabalho escravo for aplicado, não para ser usado em um sistema de
pagamento feudal em espécie, mas para abastecer um mercado pagando
em dinheiro.
Inúmeros escravos são trazidos para o país pela pirataria,
corsários ou pelas guerras comerciais. A riqueza de seus proprietários
lhes permite trabalhar a terra com mais intensidade, e os proprietários
de imóveis dentro dos limites da cidade obtêm receitas cada vez maiores
de suas posses e tornam-se cada vez mais ávidos por terras. O pequeno

116
O Estado Marítimo

proprietário rural do campo, sobrecarregado com os impostos e o


serviço militar das guerras travadas no interesse dessa grande classe
mercantil, afunda-se em dívidas, torna-se escravo por dívidas ou migra
para a cidade como um mendigo.
Mas ainda assim não há esperança para ele, pois a remoção dos
camponeses prejudicou os artesãos e pequenos comerciantes, pois os
camponeses costumavam comprar na cidade, enquanto as grandes
propriedades de terra, aumentando constantemente com a remoção do
campesinato, fornecem suas próprias necessidades por seus próprios
produtos de escravos. O mal ataca outras partes do corpo político. Os
ofícios restantes são gradualmente usurpados por senhores que
exploram o trabalho escravo, que é mais barato que o trabalho livre.
A classe média então se despedaça; e surge uma turba de
indigentes e imprestáveis, um verdadeiro "lumpemproletariado" que,
em razão da constituição democrática alcançada nesse ínterim, é o
soberano da comunidade. O curso completo, tanto político quanto
militar, é então uma mera questão de tempo. Pode ocorrer sem invasão
estrangeira; que, no entanto, geralmente se instala quando, por causa do
colapso físico causado pelo imenso despovoamento, pelo consumo do
povo em seu sentido literal, o estágio final é alcançado. Este é o fim de
todos esses estados. No âmbito deste tratado não podemos nos alongar
sobre esta fase.
Apenas uma cidade-estado conseguiu manter-se ao longo dos
séculos, porque foi a conquistadora final de todas as outras e porque foi
capaz de contrariar o consumo da população pelo único método de
saneamento possível; por extensas recriações de populações de classe
média, tanto nas cidades como nos distritos rurais, bem como por vastas
colonizações de camponeses em terras tomadas dos vencidos.
O Império Romano era esse estado. Mas mesmo esse gigantesco
organismo finalmente sucumbiu ao consumo da população, causado
pela exploração escravagista capitalista. No intervalo, porém, havia
criado o primeiro imperium, isto é, o primeiro estado tensamente
centralizado em grande escala, e superou e amalgamou todos os estados
territoriais das costas do Mediterrâneo e de seus países vizinhos, e assim
estabeleceu para sempre perante o mundo o modelo de tal domínio

117
O Estado

organizado. Além disso, desenvolveu a organização das cidades e do


sistema de economia monetária a tal ponto que nunca foram totalmente
destruídas, mesmo no tumulto da migração bárbara. Em consequência
disso, os estados territoriais feudais que ocuparam o território do antigo
Império Romano, direta ou indiretamente, receberam aqueles novos
impulsos que os levariam para além da condição do estado feudal
primitivo normal.

118
IV
O Desenvolvimento do Estado Feudal

(a) A Gênese da Propriedade Fundiária

Voltamos agora, como já dissemos, ao ponto em que o estado


feudal primitivo deu origem à cidade-estado como desdobramento, para
acompanhar o crescimento ascendente do ramo principal. Assim como
o destino da cidade-estado era determinado pela aglomeração daquela
forma de riqueza em torno da qual o estado girava em sua órbita, o
destino do estado territorial é condicionado por aquela aglomeração de
riqueza que por sua vez controla sua órbita, a donidade de propriedade
fundiária.
No anterior, acompanhamos a diferenciação econômica no caso
das tribos pastoris, e mostramos que mesmo aqui a lei da aglomeração
em torno de núcleos existentes de riqueza começa a fazer valer sua
eficácia, desde que os meios políticos entrem em jogo, seja ele na forma
de guerras por pilhagem ou ainda mais na forma de escravidão. Vimos
que a tribo tinha nobres diferenciados e homens livres comuns, abaixo
dos quais os escravos, sem quaisquer direitos políticos, são
subordinados como uma terceira classe.
Essa diferenciação de riqueza é introduzida no estado primitivo e
acentua ainda mais notavelmente o contraste de posição social. Torna-
se ainda mais acentuado pelo assentamento, por meio do qual é criada
a propriedade privada nas terras. Sem dúvida existiam, mesmo na época
em que surgiu o estado feudal primitivo, grandes diferenças na
quantidade de terras possuídas por indivíduos, especialmente se dentro
da tribo de pastores a separação havia sido fortemente marcada entre os
proprietários principescos de grandes rebanhos e muitos escravos e os
homens livres comuns mais pobres. Esses príncipes ocupam mais terras
do que os pequenos homens livres.

119
O Estado

A princípio, isso acontece de forma bastante inofensiva e sem o


menor vestígio de qualquer consciência do fato de que a posse
prolongada da terra se tornará o meio de um aumento considerável do
poder social e da riqueza. Sobre isso, não há dúvida neste momento,
uma vez que, neste estágio, os homens livres comuns teriam sido
poderosos o suficiente para impedir a formação de extensas
propriedades fundiárias se soubessem que isso acabaria por prejudicá-
los.
Mas ninguém poderia ter previsto essa possibilidade. As terras,
no estado em que as observamos, não têm valor. Por essa razão, o objeto
e o espólio da disputa não eram a posse de terras, mas da terra e seus
camponeses, sendo estes últimos vinculados ao solo (glebae adscripti
de nossa lei posterior) como substrato de trabalho e motores de trabalho,
da conjunção da qual cresce o objeto dos meios políticos, a saber, o
aluguel de terra.
Cada um tem a liberdade de tomar tanto da terra não cultivada
existente em massa quanto precisar e quiser ou puder cultivar. É tão
improvável que alguém se preocupe em medir para outros as partes de
uma oferta aparentemente ilimitada, quanto que alguém distribua a
oferta de ar atmosférico.
Os príncipes dos clãs nobres, provavelmente desde o início, de
acordo com o uso da tribo dos pastores, recebem mais “terras e
camponeses” do que os homens livres comuns. Esse é o direito deles
como príncipes, por causa de sua posição como patriarcas, senhores da
guerra e capitães, mantendo suas companhias guerreiras de pessoas
meio livres, de criados, de clientes ou de refugiados. Isso
provavelmente representa uma diferença considerável nas quantidades
primitivas de propriedade da terra.
Mas isto não é tudo. Os príncipes precisam de uma superfície
maior da “terra sem camponeses” do que os homens livres comuns,
porque trazem consigo seus servos e escravos. Estes, no entanto, não
têm locus standi na lei e são incapazes, de acordo com os conceitos
universais de direito popular, de adquirir o título de propriedade
fundiária. Como, porém, eles devem ter terra para viver, seu senhor a
toma para eles, a fim de nela os estabelecer. Em consequência disso,

120
O Desenvolvimento do Estado Feudal

quanto mais rico o príncipe da tribo nômade, mais poderoso se torna o


magnata territorial.
Mas isso significa que a riqueza, e com ela a posição social, é
consolidada de forma mais firme e duradoura do que no estágio de
propriedade do pastor. Pois os maiores rebanhos podem ser perdidos,
mas a propriedade fundiária é indestrutível; e os homens obrigados a
trabalhar, gerando rendas, reproduzem sua espécie mesmo após o mais
terrível massacre, mesmo que não possam ser obtidos adultos na caça
de escravos.
Em torno desse núcleo fixo de riqueza, a propriedade começa a
se aglomerar com rapidez crescente. Inofensiva como foi a primeira
ocupação, os homens devem logo reconhecer o fato de que o aluguel
aumenta com o número de escravos que se pode estabelecer nas terras
desocupadas. Doravante, a política externa do estado feudal não é mais
dirigida para a aquisição de terras e camponeses, mas sim de
camponeses sem terra, para serem levados para casa como servos e aí
serem novamente colonizados.
Quando todo o estado continua a guerra ou a expedição de roubo,
os nobres obtêm a maior parte. Muitas vezes, porém, eles saem por
conta própria, seguidos apenas por suas companhias de guerra, e então
o homem livre comum, ficando em casa, não recebe parte do saque.
Assim, o círculo vicioso tende constantemente a aumentar rapidamente
com o aumento da riqueza das terras pertencentes aos nobres. Quanto
mais escravos um nobre tiver, mais aluguel ele poderá obter. Com isso,
por sua vez, ele pode manter um séquito guerreiro, composto de servos,
de homens livres preguiçosos e de refugiados. Com a ajuda deles, ele
pode, por sua vez, conduzir muitos outros escravos, para aumentar seus
aluguéis.
Este processo ocorre, mesmo onde existe algum poder central
que, de acordo com a lei geral do povo, tem o direito de dispor das terras
não cultivadas; embora seja, em muitos casos, não apenas por
tolerância, mas frequentemente pela sanção expressa dessa autoridade.
Enquanto o magnata feudal permanecer o vassalo submisso da coroa, é
do interesse do rei torná-lo o mais forte possível. Com isso, sua
comitiva militar, a ser colocada à disposição da coroa em tempos de

121
O Estado

guerra, é correspondentemente aumentada. Apresentaremos apenas


uma ilustração para mostrar que a consequência necessária na história
universal não se limita ao efeito bem conhecido nos estados feudais da
Europa Ocidental, mas decorre dessas premissas mesmo em ambientes
totalmente diferentes:
“O principal serviço em Fiji consistia em serviço de
guerra; e se o resultado fosse bem-sucedido, significava
novas concessões de terras, incluindo nelas os habitantes,
como escravos, e assim levava à assunção de novas
obrigações.”111
Essa acumulação de propriedade fundiária em quantidade cada
vez maior nas mãos da nobreza fundiária leva o estado feudal primitivo
de um estágio superior ao “estado feudal acabado” com uma escala
completa de posições feudais.
A referência a um trabalho anterior pelo autor, com base no estudo
das fontes, mostrará a mesma conexão causal para as terras alemãs;112
e nessa publicação foi apontado que em todas as instâncias observadas
ocorre um processo idêntico em suas principais linhas de
desenvolvimento. É apenas nesta linha de raciocínio que se pode
explicar o fato, para tomar o Japão como exemplo, de seu sistema feudal
ter se desenvolvido nos detalhes precisos que são bem conhecidos dos
estudiosos da história europeia, embora o Japão seja habitado por uma
raça fundamentalmente diferente dos arianos; e além disso (um forte
argumento contra dar muito peso à visão materialista da história) o
processo de agricultura está em uma base técnica totalmente diferente,
já que os japoneses não são cultivadores com o arado, mas com a
enxada.
Neste caso, como ao longo deste livro, não é a fortuna de um
único povo que é investigada; é antes o objetivo do autor narrar o
desenvolvimento típico, as consequências universais, dos mesmos
traços básicos da humanidade onde quer que sejam colocados.

111
Ratzel, l. c. I, p. 263.
112
F. Oppenheimer, Grossgrundeigentum und soziale Frage. Livro 2, capítulo I.
Berlim, 1898.

122
O Desenvolvimento do Estado Feudal

Pressupondo o conhecimento dos dois exemplos mais magníficos do


estado feudal expandido, a Europa Ocidental e o Japão, limitar-nos-
emos, em geral, a casos menos conhecidos e, tanto quanto possível,
daremos preferência a material retirado da etnografia, em vez de da
história em seu sentido mais restrito.
O processo a ser narrado agora é uma mudança, paulatinamente
consumada, mas fundamentalmente revolucionária, da articulação
política e social do estado feudal primitivo: a autoridade central perde
o seu poder político para a nobreza territorial, o homem livre comum
afunda de seu status, enquanto o "súdito" ascende.

(b) O Poder Central no Estado Feudal


Primitivo

O patriarca de uma tribo de pastores, embora dotado da


autoridade que decorre de sua senhoria de guerra e funções sacerdotais,
geralmente não tem poderes despóticos. O mesmo pode ser dito do “rei”
de uma pequena comunidade estabelecida, onde, em geral, ele exerceria
um comando muito limitado. Por outro lado, assim que algum gênio
militar consegue fundir numerosas tribos de pastores em uma poderosa
massa de guerreiros, o poder despótico centralizado é a consequência
direta e inevitável.113 Assim que a guerra existe, a verdade do homérico
οὐκ ἀγαθὴ πολυκοιρανιὴ εἶς κοίρανος ἔστω εἶς
βασιλεύς,114
é admitido pelas tribos mais indisciplinadas e se torna um fato a ser
praticado. Os caçadores primitivos livres prestam obediência
incondicional a seu chefe eleito, enquanto estão no caminho da guerra;
os cossacos livres da Ucrânia, não reconhecendo nenhuma autoridade

113
O nomadismo caracteriza-se excepcionalmente pela facilidade com que, a
partir de condições patriarcais, se desenvolvem funções despóticas com os
mais amplos poderes. Ratzel, l. c. Vol. II, pp. 388-9.
114
“O governo de muitos não é uma coisa boa, sobre muitos deve haver um rei.”

123
O Estado

em tempos de paz, se submetem ao poder de vida e morte de seu hetman


em tempos de guerra. Essa obediência a seu senhor da guerra é um traço
comum a toda genuína psicologia guerreira.
Os líderes das grandes migrações de nômades são todos déspotas
poderosos: Átila, Omar, Genghis Khan, Tamerlane, Mosilikatse,
Ketchwayo. Da mesma forma, descobrimos que sempre que um
poderoso estado territorial veio a ser como resultado da fusão de vários
estados feudais primitivos, existia no início uma forte autoridade
central. Exemplos disso podem ser vistos no caso de Sargão Ciro,
Chlodowech, Carlos Magno, Boleslau, o Vermelho.
Às vezes, especialmente enquanto o estado principal ainda não
atingiu seus limites geográficos ou sociológicos, a autoridade
centralizada é mantida intacta nas mãos de uma série de monarcas
fortes, o que degenera, em alguns casos, no mais louco despotismo e
insanidade de alguns dos Césares: especialmente encontramos
exemplos flagrantes disso na Mesopotâmia e na África. Abordaremos
apenas esta fase, tanto mais que ela tem pouco efeito geral sobre o
desenvolvimento final das formas de governo. Este ponto deve, no
entanto, ser afirmado, que o desenvolvimento da forma de governo de
um despotismo depende principalmente de qual pode ser o status
sacerdotal dos governantes, além de sua posição como senhores da
guerra, e se eles detêm o monopólio do comércio como um direito real
adicional.
A combinação de César e Papa tende em todos os casos a
desenvolver as formas extremas de despotismo; enquanto a divisão das
funções espirituais e temporais faz com que seus expoentes se
verifiquem e se contrabalancem mutuamente. Um exemplo
característico pode ser encontrado nas condições prevalecentes entre os
estados malaios do arquipélago das Índias Orientais, verdadeiros
“estados marítimos”, cuja gênese é uma contrapartida exata da dos
estados marítimos gregos. De um modo geral, o príncipe tem tão pouco
poder entre eles quanto, digamos, o rei no início da história dos estados
áticos. Os chefes dos clãs (em Sulu, o Dato, em Achin, o Panglima),
como no caso de Atenas, têm o poder real. Mas onde, “como em Tobah,
os motivos religiosos dotam os governantes da posição de um Papa em

124
O Desenvolvimento do Estado Feudal

miniatura, uma fase totalmente diferente é encontrada. Os Panglima


então dependem inteiramente do Rajah, e são meramente
funcionários.”115
Para se referir a um fato bem conhecido, quando os aristocratas e
chefes dos clãs em Atenas e em Roma aboliram o reino, eles
preservaram pelo menos o antigo título, e concedeu seu uso a um
dignitário politicamente impotente, a fim de que os deuses pudessem
ter suas oferendas apresentadas da maneira habitual. Pela mesma razão,
em muitos casos, o descendente do antigo rei tribal é preservado como
um dignitário, de outro modo totalmente impotente, enquanto o poder
real do governo há muito foi transferido para algum chefe de guerra;
como no Império Merovíngio tardio, os prefeitos carolíngios do palácio
(majordomus) governaram ao lado de um “rei há muito cingido”, rex
crinitus, da raça de Merowech, assim, no Japão, o Shogun governou ao
lado do Mikado e no Império dos Incas, o comandante dos Inca ao lado
do Huillcauma, que gradualmente foi limitado a suas funções
sacerdotais.116,117
Além do cargo de sumo pontífice, o poder do chefe de estado é
frequentemente aumentado enormemente pelo monopólio comercial,
função exercida pelos chefes primitivos como consequência natural do
escambo pacífico de presentes de hóspedes. Tal monopólio comercial,
por exemplo, foi exercido pelo rei Salomão; e posteriormente pelo
imperador romano Frederico II.118,119

115
Ratzel, l. c. I, p. 408.
116
No Egito encontramos situação semelhante, ao lado do preconceituoso
Amenhotep IV., o majordomus do palácio de Haremheb, que “conseguiu reunir
em suas mãos as mais altas funções militares e administrativas do império, até
exercer os poderes de um regente do estado." Schneider, Civilization and
Thought of the Ancient Egyptians. Leipzig, 1907, p. 22.
117
Cunow, l. c. pp. 66-7. Da mesma forma, entre os habitantes das ilhas malaias,
numerosos exemplos são encontrados em Radak (Ratzel, l. c. I, p. 267).
118
Cf. Acta Imperii, ou Huillard-Breholles, H. D. Fred. II. — Tradutor da Edição
em Inglês.
119
Buhl, l. c., p. 17.

125
O Estado

Como regra, os chefes negros são "monopolistas do comércio";120


assim como o Rei de Sulu.121 Entre os galla, onde quer que a supremacia
de um chefe principal seja reconhecida, ele se torna “como de costume,
o comerciante de sua tribo; já que nenhum de seus súditos têm
permissão para negociar diretamente com estranhos”.122 Entre os
barotse e mabunda, o rei é “de acordo com a estrita interpretação da lei,
o único comerciante de seu país”.123
Ratzel observa, em linguagem contundente, a importância desse
fator:
“Além de sua feitiçaria, o chefe aumenta seu poder pelo
monopólio do comércio. Como o chefe é o único
intermediário no comércio, tudo o que seus súditos
desejam passa por suas mãos, e ele se torna o doador de
todos os presentes desejados, o realizador dos desejos mais
afetuosos. Em tal sistema, certamente existem
possibilidades de grande poder.”124
Se, nos distritos conquistados, onde o poder do governo pode ser
exercido de forma mais tensa, é acrescentado o monopólio do comércio,
o poder real pode tornar-se muito grande.
Pode-se afirmar como regra geral que, mesmo nos casos
aparentemente mais extremos de despotismo, não existe absolutismo
monárquico. O governante pode, sem se deixar intimidar pelo medo de
punição, enfurecer-se contra sua classe de súditos; mas ele é controlado
em grande medida por seus seguidores feudais. Ratzel, ao falar do
assunto em geral, observa:
“A chamada 'reunião da corte' de africanos ou de antigos
chefes americanos é provavelmente sempre um conselho.
[...] Embora encontremos traços de absolutismo com todos
os povos em uma escala baixa, mesmo onde a forma de

120
Ratzel, l. c. II, p. 66.
121
Ratzel, l. c. II, p. 118.
122
Ratzel, l. c. II, p. 167.
123
Ratzel, l. c. II, p. 218.
124
Ratzel, l. c. I, p. 125.

126
O Desenvolvimento do Estado Feudal

governo é republicana, a causa do absolutismo não está na


força nem do estado nem do chefe, mas na fraqueza moral
do indivíduo, que sucumbe sem nenhuma resistência
efetiva aos poderes exercidos sobre ele.”125
O reino dos zulu é um despotismo limitado, no qual ministros de
estado muito poderosos (Induna) compartilham o poder; com outras
tribos caffir é um conselho, às vezes dominando tanto o povo quanto os
chefes.126 Apesar desse controle, “sob Tshaka, todo espirro ou falação
na presença do tirano, bem como toda falta de lágrimas pela morte de
algum parente real, era punido com a morte”.127
A mesma limitação se aplica aos reinos da África Ocidental de
Dahomy e Ashanti, notórios por causa de suas terríveis barbaridades.
“Apesar do desperdício de vidas humanas, na guerra, no
comércio de escravos e nos sacrifícios humanos, não
existiu em nenhum lugar o despotismo absoluto. [...]
Bowditch observa a semelhança do sistema predominante
em Ashanti, com suas fileiras e ordens, com o antigo
sistema persa descrito por Heródoto.”128
Deve-se ter muito cuidado, e isso pode ser novamente insistido,
para não confundir despotismo com absolutismo. Mesmo nos estados
feudais da Europa Ocidental, os governantes exerciam, em muitos
casos, o poder de vida e morte, livres das amarras da lei; mas, no
entanto, tal governante era impotente contra seus "magnatas". Contanto
que não interfira nos privilégios das classes, ele não precisa restringir
sua crueldade e pode até ocasionalmente sacrificar um dos grandes
homens; mas ai dele se ousasse tocar nos privilégios econômicos de
seus magnatas.
É possível estudar essa fase tão característica, completamente
livre, do ponto de vista da lei, e ainda fortemente cerceada por freios
políticos, nos grandes impérios da África Oriental:

125
Ratzel, l. c. I, p. 124.
126
Ratzel, l. c. I, p. 118.
127
Ratzel, l. c. I, p. 125.
128
Ratzel, l. c. I, p. 346.

127
O Estado

“O governo de Waganda e Wanyoro é, em teoria, baseado


no governo do rei sobre todo o território; mas, na
realidade, isso é apenas uma aparência de governo, pois,
na verdade, as terras pertencem aos chefes supremos do
império. Foram eles que representaram a oposição popular
às influências estrangeiras, no tempo de Mtesa; e Muanga
não ousava, por medo deles, fazer quaisquer inovações.
Embora a realeza seja limitada na realidade, na aparência
ela ocupa uma posição imponente no que não é essencial.
O governante é o senhor absoluto sobre a vida e os
membros de seus súditos, a massa do povo, e sente-se
contido apenas no círculo mais estreito dos principais
cortesãos”129
Exatamente a mesma afirmação se aplica aos habitantes da
Oceania, para mencionar a última das grandes sociedades que criaram
estados:
“Em nenhum lugar se encontra a ausência total de uma
mediação representativa entre o príncipe e o povo. [...] O
princípio aristocrático corrige o patriarcal. Portanto, os
extremos do despotismo dependem mais da pressão de
classe e casta do que da vontade avassaladora de qualquer
indivíduo.”130

(c) A Desintegração Política e Social do Estado


Feudal Primitivo

O espaço nos impede de detalhar os inúmeros matizes sob os


quais a mistura patriarcal-aristocrática (em alguns casos plutocrática)
de forma de governo no estado feudal primitivo é mostrada em um
levantamento etnográfico, histórico ou jurídico. Isso também é da maior
importância para o desenvolvimento subsequente.

129
Ratzel, l. c. II, p. 245.
130
Ratzel, l. c. I. pp. 267-8.

128
O Desenvolvimento do Estado Feudal

É indiferente quanto poder o governante pode ter tido no início,


um destino inevitável quebra seu poder em pouco tempo; e faz isso,
pode-se dizer, de forma mais rápida, quanto maior era o poder, isto é,
quanto maior o território do estado feudal primitivo de grau superior.
Tendo em conta o processo já enunciado, que, através da
ocupação e povoamento de terras não utilizadas por meio de escravos
recém-adquiridos, permitia o aumento do poder dos nobres separados,
chegou-se a um resultado que poderá ser incômodo para o poder central.
Mommsen, ao falar dos celtas, diz:
“Quando em um clã com cerca de oitenta mil homens
armados, um único chefe pode comparecer à convocação
com dez mil seguidores, excluindo seus servos e
devedores, fica claro que tal nobre era antes um príncipe
independente do que um mero cidadão de seu clã.”131
E o mesmo pode se aplicar ao “Heiu” dos somalis, onde um
grande proprietário de terras mantinha centenas de famílias na
dependência de suas terras, “de modo que as condições na Somalilândia
tendem a lembrar aquelas existentes na Europa medieval durante os
tempos feudais.”132
Embora tal preponderância de magnatas territoriais isolados
possa ocorrer no estado feudal de baixo desenvolvimento, ela atinge seu
ápice no estado feudal de grau superior, o grande estado feudal; isso
acontece em razão do aumento do poder conferido aos senhorios pela
concessão de funções de funcionários públicos.
Quanto mais o estado se expande, mais o poder oficial deve ser
delegado pelo governo central a seus representantes nas fronteiras e nas
marchas, constantemente ameaçados por guerras e surtos
insurrecionais. A fim de preservar seu bailiado em segurança para o
estado, tal funcionário deve ser dotado de poderes militares supremos,
juntamente com as funções dos mais altos funcionários administrativos.

131
Mommsen, l. c. III, pp. 234-5.
132
Ratzel, l. c. II, p. 167.

129
O Estado

Mesmo que não exija um grande número de funcionários públicos,


ainda assim deve ter uma força militar permanente.
E como ele vai pagar a esses homens? Com uma possível exceção,
a ser observada a seguir, não há impostos que fluam para o tesouro do
governo central e depois sejam despejados novamente sobre a terra,
uma vez que estes pressupõem um desenvolvimento econômico
existente apenas onde o dinheiro é empregado. Mas nas comunidades
que têm um sistema de pagamentos em espécie, como são todos esses
“estados territoriais”, não há impostos pagáveis em dinheiro.
Por essa razão, o governo central não tem outra alternativa senão
entregar aos condes, ou guardas de fronteira, ou sátrapas, as rendas de
sua jurisdição territorial. Tal funcionário, então, recebe as dívidas dos
súditos, determina quando e onde o trabalho forçado deve ser prestado,
recebe os deodands, taxas e penalidades pagáveis em gado, etc.; e em
consideração a isso deve manter a força armada, colocar números
definidos de homens armados à disposição do governo central, construir
e manter estradas e pontes, alimentar e estabilizar o governante e seus
seguidores, ou seus “missi domini” e, finalmente, fornecer um tributo
definido, constituído por bens de alto valor, facilmente transportados
para a corte, como cavalos, gado, escravos, metais preciosos, vinhos,
etc.
Em outras palavras, ele recebe um feudo imensamente grande por
seus serviços. Se antes não era, ele agora se torna o maior homem de
seu país, embora antes provavelmente fosse o senhorio mais poderoso
de seu distrito oficial. Daqui em diante, ele fará exatamente o que seus
iguais em posição estão fazendo, embora eles possam não ter sua
posição oficial; isto é, ele continuará, apenas em escala maior, a assentar
novas terras com servos sempre recém-recrutados. Com isso, ele
aumenta sua força militar; e isso deve ser desejado e auxiliado pelo
governo central. Pois é o destino desses estados, que eles devem
engordar aqueles próprios poderes locais, que devem engolfá-los.
Surgem condições que permitem ao chefe das marchas impor os
termos de sua assistência militar, especialmente nas inevitáveis rixas
que surgem sobre o direito de sucessão ao governo central. Obtém assim
mais valiosas concessões, especialmente o reconhecimento formal da

130
O Desenvolvimento do Estado Feudal

hereditariedade do seu feudo oficial, de modo que os cargos e as terras


passam a ser exercidos por um mandato idêntico.
Dessa forma, ele gradualmente se torna quase independente da
autoridade central, e a reclamação do camponês russo, “o céu está alto
e o czar está longe”, tende a se tornar de aplicação universal. Veja este
exemplo característico da África:
“O império da Lunda é um estado feudal absoluto. Aos
chefes (Muata, Mona, Muene) é permitida uma ação
independente em todos os assuntos internos, desde que
isso agrade ao Muata Jamvo. Habitualmente, os grandes
chefes, que vivem longe, enviam uma vez por ano as suas
caravanas com o seu tributo à Mussumba; mas aqueles que
vivem muito longe, às vezes, por longos períodos, omitem
qualquer pagamento de seu tributo; enquanto chefes
semelhantes nas vizinhanças da capital enviam tributos
muitas vezes ao ano.”133
Nada pode mostrar mais claramente do que este relatório, como,
por causa de meios de transporte inadequados, a extensão da distância
torna-se politicamente eficaz nesses estados frouxamente mantidos
juntos e em estado de pagamento em espécie. Somos tentados a dizer
que a independência dos senhores feudais cresce proporcionalmente ao
quadrado de sua distância da sede da autoridade central. A coroa deve
pagar cada vez mais por seus serviços e deve confirmá-los
gradualmente em todos os poderes soberanos do estado, ou então
permitir que eles usurpem esses poderes depois que eles os tomaram
um após o outro. Tais são a hereditariedade de feudos, pedágios em
rodovias e comércio (em um estágio posterior, o direito de cunhagem),
alta e baixa justiça, o direito de exigir para ganho privado os deveres
públicos de reparar caminhos e pontes (o antigo trinodis necessitas
inglês) e a disposição dos serviços militares dos homens livres do país.
Por esses meios, os poderosos guardiões da fronteira
gradualmente alcançam uma independência de fato cada vez maior e,
finalmente, completa, mesmo que o vínculo formal da suserania feudal

133
Ratzel, l. c. II, p. 229.

131
O Estado

possa aparentemente manter unidos por muito tempo os principados


recém-desenvolvidos. O leitor, é claro, lembra-se de exemplos dessas
transições típicas; toda a história medieval é uma cadeia delas; não
apenas os impérios merovíngio e carolíngio, não apenas a Alemanha,
mas também a França, a Itália, a Espanha, a Polônia, a Boêmia, a
Hungria, assim como o Japão e a China,134 passaram por esse processo
de decomposição, não apenas uma vez, mas repetidamente.
E isso não é menos verdade para os estados feudais da
Mesopotâmia: grandes impérios se sucedem, adquirem poder, rompem-
se vez após vez e novamente são reunidos. No caso da Pérsia, somos
informados expressamente: “Estados e províncias separados, por meio
de uma revolta bem-sucedida, obtiveram liberdade por um período mais
longo ou mais curto, e o 'grande rei' em Susa nem sempre teve o poder
de forçá-los a retornar à sua obediência; em outros estados, os sátrapas
ou chefes guerreiros governavam arbitrariamente, exercendo o governo
infiel e violentamente, seja como governantes independentes ou sub-
reis tributários do rei dos reis. O império mundial persa caminhava para
a sua desintegração uma aglomeração de estados e terras, sem qualquer
lei geral, sem administração ordenada, sem sistema judicial uniforme,
sem ordem e cumprimento da lei, e sem possibilidade de ajuda.”135
Um destino semelhante atingiu seu vizinho no vale do Nilo:
“Príncipes vêm de famílias de usurpadores, senhorios
livres, que pagam impostos sobre a terra a ninguém, exceto
ao rei, e governam certas faixas de terra, ou distritos. Esses
príncipes distritais governam um território
especificamente separado como pertencente à sua posição
oficial e separado de suas posses familiares.”

“As operações bélicas bem-sucedidas posteriores, talvez


preenchendo a lacuna entre o Império (Egípcio) Antigo e
o Médio, juntamente com a reunião de cativos das
guerras, que poderiam ser utilizados como motores de
trabalho, trouxeram uma exploração mais rigorosa dos

134
Ratzel, l. c. I, p. 128.
135
Weber, Weltgeschichte, III, p. 163.

132
O Desenvolvimento do Estado Feudal

súditos, uma determinação definitiva dos tributos. Durante


o Império Médio, o poder dos príncipes dos clãs atingiu
uma altura enorme, eles mantiveram grandes cortes,
imitando o esplendor do estabelecimento real.”136

“Com o declínio da autoridade real durante um período de


decadência, os funcionários superiores usam seu poder
para fins pessoais, a fim de tornar seus cargos hereditários
dentro de suas famílias.”137,138
Mas a operação dessa lei histórica não se restringe aos povos
“históricos”. Ao falar dos estados feudais da Índia, Ratzel afirma:
“Mesmo além do Radshistão, os nobres muitas vezes
desfrutavam de uma grande independência, de modo que
mesmo em Haiderabad, depois que os Nizam adquiriram o
domínio exclusivo do país, os Umara ou Nabobs
mantiveram tropas próprias, independentemente do
exército do Nizam. Esses feudatários menores não
atenderam às crescentes demandas dos tempos modernos
no que diz respeito à administração dos estados indianos
com tanta frequência quanto os príncipes maiores.”139
Finalmente, na África, grandes estados feudais surgem e
desaparecem, assim como bolhas que surgem e explodem na corrente

136
Thurnwald, l. c., pp. 702-3.
137
Maspero diz, New Light on Ancient Egypt, pp. 218-9: “Até então, de fato, o
sumo sacerdote havia sido escolhido e nomeado pelo rei; desde a época de
Ramsés III. foi sempre escolhido da mesma família, e o filho sucedeu ao pai
no trono pontifício. A partir desse momento os eventos marcharam
rapidamente. O mortmain tebano foi dobrado com um verdadeiro feudo
senhorial, que seus mestres aumentaram por casamentos com os herdeiros de
feudos vizinhos, por legados contínuos de um ramo da família para o outro, e
pela colocação de cadetes de cada geração à frente do clero de certas cidades
secundárias. O protocolo oficial dos cargos ocupados por suas esposas mostra
que um século ou um século e meio depois de Ramsés III, quase toda a Tebaida,
cerca de um terço do território egípcio estava nas mãos do Sumo Sacerdote de
Amon e de sua família.” — Nota (e itálico) do Tradutor da Edição em Inglês.
138
Thurnwald, l. c., p. 712; cf. Schneider, Kultur und Denken der alten Ägypter,
Leipzig, 1907, p. 38.
139
Ratzel, l. c. II, p. 599.

133
O Estado

de fenômenos eternamente semelhantes. O poderoso império Ashanti,


dentro de um século e meio, encolheu para menos de um quinto de seu
território;140 e muitos dos impérios que os portugueses encontraram
desapareceram sem deixar vestígios de sua existência. E, no entanto,
esses eram fortes poderes feudais:
“Impérios negros majestosos e cruéis, como Benin,
Dahomy ou Ashanti, assemelham-se em muitos aspectos
ao antigo Peru ou México, tendo em suas vizinhanças
tribos politicamente desorganizadas. A nobreza hereditária
dos Mfumus, fortemente separada do resto do estado, tinha
principalmente a administração dos distritos e, juntamente
com a nobreza de serviço mais transitória, formava em
Loango fortes pilares do governante e sua casa.”141
Mas sempre que tal estado, uma vez poderoso, se divide em vários
estados territoriais independentes ou de fato ou juridicamente, o
processo anterior recomeça. O grande estado engole os menores, até
que um novo império surja. “Os maiores magnatas territoriais mais
tarde se tornam imperadores”, diz Meitzen laconicamente sobre a
Alemanha.142 Mas mesmo este grande domínio desaparece, dividido
pela necessidade de equipar vassalos guerreiros com feudos.
“Os reis logo descobriram que haviam doado todos os seus
pertences; suas grandes possessões territoriais no Delta haviam se
dissipado”, diz Schneider (l. c. p. 38) sobre os faraós da sexta dinastia.
As mesmas causas produziram efeitos semelhantes no Império Franco
entre merovíngios e carolíngios; e mais tarde na Alemanha no caso dos
imperadores saxão e Hohenstaufen.143 Referências adicionais são
desnecessárias, pois todos estão familiarizados com essas instâncias.
Em uma parte subsequente deste tratado, examinaremos as causas
que finalmente libertaram o estado feudal primitivo dessa maldição de
bruxa, esse círculo da aglomeração à desintegração sem fim. Nossa
tarefa atual é assumir o lado social do processo, como já abordamos sua

140
Ratzel, l. c. II, p. 362.
141
Ratzel, l. c. II, p. 344.
142
Meitzen, l. c. II, p. 633.
143
Inama-Sternegg, l. c. I, pp. 140-1.

134
O Desenvolvimento do Estado Feudal

fase histórica. Ele muda a articulação das classes da maneira mais


decisiva.
Os homens livres comuns, os estratos inferiores do grupo
dominante, são atingidos com uma força avassaladora. Eles afundam
em servidão. Sua decadência deve acompanhar a do poder central; já
que ambos, aliados pode-se dizer, por natureza, são ameaçados
simultaneamente pelo poder crescente dos grandes senhores territoriais.
A coroa controla o magnata fundiário enquanto o recrutamento dos
homens livres comuns do distrito for uma força superior a seus guardas,
a seus “seguidores”.
Mas uma necessidade fatal, já exposta, impele a coroa a entregar
os camponeses ao senhor de terras, e a partir do momento em que o
imposto do condado se torna mais fraco do que seus guardas, os
camponeses livres estão perdidos. Onde os poderes soberanos do estado
são delegados ao magnata territorial, isto é, onde ele se tornou mais ou
menos um senhor independente da região, a derrubada das liberdades
dos camponeses é realizada, pelo menos em parte, sob a cor da lei,
forçando serviços militares excessivos, que arruínam o camponeses, e
que são exigidos tanto mais quanto os interesses dinásticos do senhor
territorial exigem novas terras e novos camponeses, ou abusando do
direito ao trabalho compulsório, ou transformando a administração da
justiça pública em opressão militar.
Os homens livres comuns, no entanto, recebem o golpe final, seja
pela delegação formal ou pela usurpação dos poderes mais importantes
da coroa, a disposição de terras desocupadas. Originalmente, esta terra
pertencia a todo o “povo” em comum; isto é, aos homens livres para
uso comum; mas de acordo com um costume original, provavelmente
universal, o patriarca dispõe dele. Este direito de disposição passa para
o magnata territorial com os privilégios reais restantes — e assim ele
obteve o poder de estrangular alguns poucos homens livres restantes.
Ele agora declara todas as terras desocupadas como sua propriedade e
proíbe seu assentamento por camponeses livres, enquanto apenas
aqueles que reconhecem sua supremacia têm acesso permitido; isto é,
que se confiaram a ele ou são seus servos.

135
O Estado

Esse é o último prego no caixão dos homens livres comuns. Até


agora, sua igualdade de posses tem sido de alguma forma garantida.
Mesmo que um camponês tivesse doze filhos, seu patrimônio não era
repartido, porque onze deles abriram novos campos de terra comuns da
comunidade, ou então nas terras gerais ainda não distribuídas para
outras aldeias. Daqui em diante isso é impossível; as porções de terra
tendem a se dividir onde crescem famílias grandes, outras se unem
quando o herdeiro e a herdeira se casam: de agora em diante passam a
existir “trabalhadores”, recrutados entre os donos de metade, um quarto
ou mesmo um oitavo de terra que ajudam a trabalhar uma maior área.
Assim, o campesinato livre se divide em ricos e pobres; isso
começa a afrouxar o vínculo que até então tornava o feixe de flechas
inquebrável. Quando, portanto, algum camarada é subjugado pelas
extorsões do senhor e se torna seu vassalo, ou se camponeses escravos
são estabelecidos entre os proprietários originais, seja para ocupar
alguma porção vaga pela extinção da família ou caído nas mãos do
senhor por causa do endividamento de seu ocupante, então toda coesão
social é afrouxada; e o campesinato, dividido por classes e contrastes
econômicos, é entregue sem poder de resistência ao magnata.
Por outro lado, o resultado é o mesmo onde o magnata não
usurpou os poderes de regalia do estado. Nesses casos, a força
escancarada e a violação desavergonhada de direitos alcançam os
mesmos fins. O governante, distante e impotente, obrigado a contar com
a boa vontade e ajuda dos violadores da lei e da ordem, não tem nem o
poder nem a oportunidade de interferência.
Quase não há necessidade de aduzir exemplos. O campesinato
livre da Alemanha foi submetido ao processo de expropriação e
desclassificação pelo menos três vezes. Uma vez aconteceu nos tempos
celtas.144 A segunda derrubada dos camponeses livres do antigo Império
Alemão ocorreu nos séculos IX e X. A terceira tragédia da mesma forma
começou no século XV, nos países ex-eslavos, que eles haviam
conquistado e colonizado.145 Os camponeses viviam pior naquelas

144
Mommsen, l. c. V, p. 84.
145
Cf. a exposição detalhada disso em F. Oppenheimer, Grossgrundeigentum und
die soziale Frager, Livro II, cap. 3.

136
O Desenvolvimento do Estado Feudal

terras, nas “repúblicas dos nobres”, onde não havia autoridade


monárquica central, cuja comunhão de interesses com seus súditos
tendia a despojar a opressão de suas piores feições. Os celtas da época
de César na Gália são um dos primeiros exemplos. Aqui
“as grandes famílias exerceram uma preponderância
econômica, militar e política. Eles monopolizaram os
arrendamentos dos direitos lucrativos do estado. Eles
forçaram os homens livres comuns, sobrecarregados com
os impostos que eles mesmos haviam imposto, a tomar
emprestado deles, e então, primeiro como seus devedores,
depois legalmente como seus servos, a renunciar a sua
liberdade. Para seu próprio benefício, eles desenvolveram
o sistema de seguidores: isto é, o privilégio da nobreza de
ter em torno de si uma massa de servos armados a seu
soldo, chamados ambacti, com cuja ajuda formavam um
estado dentro de um estado. Contando com estes, seus
próprios homens de armas, eles desafiaram as autoridades
legais e os impostos dos homens livres, e assim foram
capazes de romper a comunidade. [...] A única proteção a
ser encontrada era na relação de servidão, onde o dever e
o interesse pessoal exigiam que o senhor protegesse seus
clientes e vingasse qualquer dano a seus homens. Uma vez
que o estado não tinha mais o poder de proteger os homens
livres, estes em número crescente tornaram-se vassalos de
algum nobre poderoso.”146
Encontramos essas condições idênticas mil e quinhentos anos
depois em Curlândia, Livonia, na Pomerânia sueca, em Holstein
Oriental, em Mecklenburg e especialmente na Polônia. Nos territórios
alemães, os pequenos nobres subjugaram seu campesinato, enquanto na
Polônia sua presa era o outrora livre e nobre Schlachziz. “A história
universal é monótona”, diz Ratzel. O mesmo procedimento derrubou o
campesinato do antigo Egito:
“Depois de um intermezzo bélico, segue-se um período na
história do Império Médio, que traz uma deterioração da
posição do campesinato no Baixo Egito. O número de

146
Mommsen, l. c. III, pp. 234-5.

137
O Estado

senhorios diminui, enquanto seu crescimento territorial e


poder aumentam. O tributo dos camponeses é doravante
determinado por uma avaliação exata de suas propriedades
e definitivamente fixado por uma espécie de Livro do
Juízo Final. Devido a essa pressão, muitos camponeses
logo entram na corte do senhor ou nas cidades dos
governantes locais, e ali se empregam como servos,
mecânicos ou mesmo como supervisores na organização
econômica desses feudos ou cortes. Em comum com
quaisquer cativos disponíveis, eles contribuem para a
extensão das propriedades do príncipe e para promover a
expulsão geral do campesinato de suas propriedades.”147
O exemplo do Império Romano mostra, como nada mais, como
esse processo se torna inevitável. Quando encontramos Roma pela
primeira vez na história, a concepção de servidão já havia sido
esquecida. Quando se abre o “período moderno” de Roma, só se
conhece a escravidão. E, no entanto, em quinze séculos, o campesinato
livre novamente afunda na dependência econômica, depois que Roma
se tornou um império excessivamente estendido e pesado, cujos
distritos fronteiriços se dissolveram cada vez mais do controle central.
Os grandes proprietários de terras, tendo sido dotados de justiça
inferior e administração policial em suas próprias propriedades,
“reduziram seus empregados, que originalmente poderiam ter sido
proprietários livres do 'ager privatus vectigalis' a um estado de
servidão, e assim desenvolveram um uma espécie de glebae adscriptus
real, dentro dos limites de suas 'imunidades'”.148 Os germânicos
invasores encontraram essa ordem feudal elaborada na Gália e em
outras províncias. Nessa época, a imensa diferença antes existente entre
escravos e colonos livres (coloni) havia sido completamente obliterada,
primeiro em sua posição econômica e depois, naturalmente, em seus
direitos constitucionais.
Sempre que os homens livres comuns afundam na dependência
política e econômica dos grandes magnatas territoriais, quando, em

147
Thurnwald, l. c., p. 771.
148
Meitzen, l. c. I, pp. 362f.

138
O Desenvolvimento do Estado Feudal

outras palavras, eles se tornam vinculados à corte ou às terras, o grupo


social anteriormente sujeito a eles tende, em medida correspondente, a
melhorar seu status. Ambas as camadas tendem a se encontrar no meio
do caminho, para aproximar sua posição e, finalmente, para se
amalgamar. As observações que acabamos de fazer sobre os colonos
livres e os escravos agrícolas do final do Império Romano são
verdadeiras em todos os lugares. Assim, na Alemanha, homens livres e
servos formavam juntos, quando fundidos, o grupo econômico e
legalmente unitário de Grundholde, ou homens ligados à terra.149
A elevação dos antigos “súditos”, daqui em diante, por uma
questão de brevidade, serão chamados de “plebe”, flui da mesma fonte
que a degradação do homem livre e surge pela mesma necessidade dos
próprios fundamentos sobre os quais esses estados são eles mesmos
erguidos, a saber, a aglomeração da propriedade fundiária em cada vez
menos mãos.
Os plebeus são os adversários naturais do governo central — já
que este é seu conquistador e impositor de impostos; enquanto eles
naturalmente se opõem aos homens livres comuns, que os desprezam e
os oprimem politicamente, além de rebatê-los economicamente. O
grande magnata também é o adversário natural do governo central —
um impedimento em seu caminho para a independência completa, e é
ao mesmo tempo também um inimigo natural dos homens livres
comuns, que por sua vez não apenas apóiam o governo central; mas
também bloqueiam com suas posses seu caminho para o domínio
territorial, enquanto com suas reivindicações de igualdade de direitos
políticos irritam seu orgulho principesco.
Como os interesses políticos e sociais dos príncipes territoriais e
da plebe coincidem, eles devem se tornar aliados; o príncipe só pode
alcançar a independência completa se, em sua luta pelo poder contra a
coroa e os homens livres comuns, controlar guerreiros confiáveis e
pagadores de impostos condescendentes; a plebe só pode então ser
libertada de sua desclassificação como pária, tanto econômica quanto

149
Inama-Sternegg, l. c. I, pp. 373, 386.

139
O Estado

socialmente, se os odiados e orgulhosos homens livres comuns forem


rebaixados ao seu nível.
Esta é a segunda vez que notamos a identidade de interesse entre
os príncipes e seus súditos. Na primeira vez, encontramos uma
solidariedade fracamente desenvolvida em nosso segundo estágio de
formação do estado. Isso faz com que o príncipe semi-soberano trate
seus inquilinos dependentes tão gentilmente quanto maltrata os
camponeses livres de seu território; consequentemente, eles lutarão
com mais boa vontade por ele e contribuirão com impostos, enquanto
os mais prontamente os homens livres oprimidos sucumbirão à pressão,
especialmente porque sua parcela de poder político no estado,
coincidente com o declínio do poder central, tornou-se apenas uma frase
sem significado.
Em alguns casos, como na Alemanha no final do século X, isso
foi feito com plena consciência de seus efeitos 150 — algum príncipe
exerce um governo particularmente "suave", a fim de atrair os súditos
de um potentado vizinho para sua terras e, assim, aumentar sua própria
força na guerra e na tributação, e enfraquecer a de seu oponente. A plebe
passa a possuir, tanto legal quanto efetivamente, direitos cada vez
maiores, privilégios ampliados da lei de propriedade, talvez
autogoverno em assuntos comuns e sua própria administração da
justiça; assim, eles se elevam no mesmo grau que os homens livres
comuns afundam, até que as duas classes se encontrem e sejam
amalgamadas em um corpo aproximadamente no mesmo plano jurídico
e econômico. Meio servos, meio súditos de um estado, eles representam
uma formação característica do estado feudal, que ainda não reconhece
nenhuma distinção clara entre direito público e direito privado; por sua
vez, consequência imediata de sua própria gênese histórica, o domínio
na forma de um estado em prol dos direitos econômicos privados.

150
Cf. F. Oppenheimer, Grossgrundeigentum, p. 272.

140
O Desenvolvimento do Estado Feudal

(d) A Amalgamação Étnica

A amalgamação jurídica e social dos homens livres degradados e


da plebe exaltada tende inevitavelmente à interpenetração étnica.
Embora a princípio não fosse permitido aos povos subjugados
intercasar ou ter relações sociais com os homens livres, agora tais
obstáculos não podem ser mantidos; em qualquer aldeia, a classe social
não é mais determinada pela descendência da raça dominante, mas sim
pela riqueza. E pode surgir frequentemente o caso em que o descendente
puro-sangue do pastor guerreiro deve ganhar a vida como um
trabalhador do campo contratado pelo descendente igualmente puro-
sangue dos antigos servos. O grupo social dos súditos é agora composto
por uma parte do antigo grupo étnico mestre e uma parte do antigo
grupo súdito.
Dizemos apenas de uma parte, porque a essa altura a outra parte
foi amalgamada com a outra parte do antigo grupo mestre étnico em
uma classe social unitária. Em outras palavras, uma parte da plebe não
apenas atingiu a posição a que a massa dos homens livres comuns caiu,
mas subiu muito além dela, na medida em que foi completamente
recebida no grupo dominante, que, entretanto, não só aumentou
enormemente, mas também diminuiu grandemente em número.
E isso também é um processo universal encontrado em toda a
história; porque em todos os lugares segue com força igualmente
convincente das próprias premissas do domínio feudal. O primus inter
pares, seja o detentor do poder central ou algum potentado local,
assumindo o posto de príncipe, requer ferramentas mais flexíveis para
seu domínio do que as encontradas entre seus “pares”. Estes últimos
representam uma classe que ele deve rebaixar se quiser ascender — e
esse é e deve ser o objetivo de todos, pois nesse estágio o desejo de
poder é idêntico ao objetivo de autopreservação.
Nesse esforço, ele enfrenta a oposição de seus primos detestáveis
e obstinados e de seus pequenos nobres — e por essa razão,
encontramos em todas as cortes, desde a do rei soberano de um
poderoso império feudal até o senhor do que dificilmente é mais do que

141
O Estado

uma grande propriedade, homens de descendência insignificante como


funcionários confidenciais ao lado de representantes do grupo mestre,
que em muitos casos sob a máscara de funcionários do príncipe, aliás,
são “éforos”, participantes do poder do príncipe como os
plenipotenciários de seu grupo. Lembremo-nos apenas do Induna na
corte dos reis bantu. Não é de admirar, então, que o príncipe deposite
mais confiança em seus próprios homens do que nesses conselheiros
irritantes e pretensiosos, em homens cuja posição está
indissoluvelmente ligada à sua e que seriam arruinados por sua
queda.151
Também aqui as referências históricas são quase supérfluas.
Todos estão familiarizados com o fato de que nas cortes dos reinos
feudais da Europa Ocidental, além dos parentes do rei e alguns nobres
vassalos, havia também elementos dos grupos inferiores, ocupando
altos cargos, clérigos152 e grandes guerreiros da classe plebeia. Entre os
seguidores imediatos de Carlos Magno, todas as raças e povos de seu
império estavam representados. Também nos contos de Teodorico, o
Gótico, na Saga de Dietrich do Niebelungen Lied, essa ascensão de
bravos filhos das raças subjugadas encontra seu reflexo. Além destes,
seguem-se alguns casos menos conhecidos.
No Egito, já no Antigo Império, encontra-se ao lado dos oficiais
régios da nobreza feudal, descendentes dos pastores conquistadores,
administrando seus distritos como representantes da coroa, com plenos
poderes como deputados, “uma massa de oficiais da corte confiados a
determinadas funções do governo”. "Originou-se com os servos

151
Um dos exemplos mais notáveis pode ser encontrado no caso de Markward de
Annweiler, Marquês de Ancona e Duque de Ravenna, senescal de Henrique
VI, que após a morte do imperador Henrique VI. disputou o poder da Regente
Constança agindo por seu filho, Frederico II. (Veja Boehmer-Ficker, Regesta
Imperii, V, vol. 1, N.º 511. v. ad. annum 1197.) — Tradutor da Edição em
Inglês.
152
É nessa conexão que os príncipes gostam de chamar religiões estrangeiras. O
clero, pelo menos inicialmente, são seus aliados naturais e, graças ao medo dos
espíritos, muito eficazes.

142
O Desenvolvimento do Estado Feudal

empregados nas cortes dos príncipes, como prisioneiros de guerra,


refugiados, etc."153
A fábula de José mostra um estado de coisas conhecido na época
como uma ocorrência comum, da ascensão de um escravo à posição de
um ministro de estado todo poderoso. Nos dias de hoje tal carreira está
dentro do reino da possibilidade em qualquer corte oriental, como
Pérsia, Turquia ou Marrocos, etc. No caso do velho Marechal
Derflinger, no tempo de Friedrich Wilhelm I, o Grande Eleitor, em uma
data muito posterior, temos um exemplo da transição do estado feudal
desenvolvido para o estado estamental, que pode ser multiplicado pelos
exemplos de inúmeros outros bravos espadachins.
Acrescentemos alguns exemplos dos povos “desconsiderados
pela história”. Ratzel conta sobre o reino de Bornu:
“Os homens livres não perderam a consciência de sua
descendência livre, em contraste com os escravos do sheik;
mas os governantes depositam mais confiança em seus
escravos do que em seus próprios parentes e associados
livres de sua tribo. Eles podem contar com a devoção dos
primeiros. Não apenas os cargos na corte, mas a defesa do
país foi desde os tempos antigos confiada
preferencialmente aos escravos. Os irmãos do príncipe,
assim como os filhos mais ambiciosos ou mais eficientes,
são objetos de suspeita; e enquanto os lugares mais
importantes da corte estão nas mãos dos escravos, os
príncipes são colocados em postos distantes da sede do
governo. Seus salários são pagos com as rendas dos
escritórios e dos impostos das províncias.”154
Entre os fulbe “a sociedade é dividida em príncipes, chefes,
plebeus e escravos. Os escravos do rei desempenham um grande papel
como soldados e oficiais, e podem aspirar aos mais altos cargos do
estado”.155

153
Thurnwald, l. c., p. 706.
154
Ratzel, l. c. II, p. 503.
155
Ratzel, l. c. II, p. 518.

143
O Estado

Esta nobreza de criação da corte pode, em certos casos, ser


admitida nos grandes cargos imperiais, para que, segundo o método
acima exposto, alcance a soberania sobre um território. No estado
feudal desenvolvido, representa a alta nobreza; e geralmente consegue
preservar sua posição, mesmo quando algum vizinho mais poderoso o
mediatizou incorporando o estado.
A alta nobreza franca certamente contém tais elementos do grupo
inferior original;156 e uma vez que de seu sangue toda a alta nobreza dos
estados civilizados europeus descende pelo menos em linha direta pelo
casamento, encontramos uma amálgama étnica, tanto no atual grupo de
súditos e na mais alta ordem da classe dominante. E o mesmo se aplica
ao Egito:
“Com o naufrágio da autoridade real no tempo da
decadência, os altos funcionários abusam de seu poder
para fins pessoais, para tornar seus cargos hereditários em
suas famílias e, assim, criar uma nobreza oficial não
diferenciada do resto da população.”157
E finalmente, o mesmo processo, pelas mesmas causas, se
apodera da atual classe média, da camada inferior da classe senhorial,
dos funcionários e oficiais dos grandes feudatários. A princípio ainda
existe uma diferença social entre, por um lado, os vassalos livres, os
subfeudatários do grande senhor de terras, parentes, filhos mais novos
de outras famílias nobres, associados empobrecidos do mesmo distrito,
em casos isolados filhos nascidos livres de camponeses, refugiados
livres e rufiões profissionais de ascendência livre; e de outro, se o termo
for permitido, os subalternos dos guardas de descendência plebeia. Mas
a falta de liberdade avança, enquanto a liberdade afunda em valor
social; e aqui também o governante deposita mais confiança em suas
criaturas do que em seus pares. Aqui também, mais cedo ou mais tarde,
o processo de amalgamação se completa. Na Alemanha, ainda em 1085,

156
Meitzen, l. c. I, p. 579: “Na época da compilação da Lex Salica, a antiga
nobreza racial havia sido reduzida a homens livres comuns ou então
aniquilada. Os funcionários, por outro lado, são avaliados em triplo wergeld,
600 solidi, e se um for 'puer regis' 300 solidi.
157
Thurnwald, l. c. p. 712.

144
O Desenvolvimento do Estado Feudal

a nobreza não-livre da corte classifica-se entre os “servi et litones”,


enquanto um século depois é colocada entre os “liberi et nobiles”.158
No decurso do século XIII, foi completamente absorvido, juntamente
com os vassalos livres, para dentro da nobreza pela cavalaria. As duas
ordens, entretanto, tendem a igualar-se economicamente; ambos têm
subinfeudações, feudos por obrigação de serviço na guerra e feudos de
serviço dos cativos; enquanto todos os feudos dos “ministeriais” ou
sargentos tornaram-se, entretanto, tão hereditários quanto os dos
vassalos livres, tanto quanto os patrimônios dos poucos senhores
territoriais menores sobreviventes pertencentes à nobreza original, que
ainda podem ter escapado das garras dos grandes principados
territoriais.
De maneira bastante análoga a essa, o desenvolvimento ocorreu
em todos os outros estados feudais da Europa Ocidental; enquanto sua
contraparte exata é encontrada no extremo Oriente, na borda do
continente eurasiano, no Japão. Os daimios são a alta nobreza; o
samurai, o cavalheirismo, a nobreza da espada.

(e) O Estado Feudal Desenvolvido

Com isso, o estado feudal atingiu seu auge. Forma, política e


socialmente, uma hierarquia de numerosos estratos; dos quais, em todos
os casos, o inferior é obrigado a prestar serviço ao próximo acima dele,
e o superior é obrigado a proteger o inferior. A pirâmide repousa sobre
a população trabalhadora, da qual a maior parte ainda é camponesa; o
excedente de seu trabalho, o aluguel de terra, toda a “mais-valia” dos
meios econômicos é usado para sustentar as camadas superiores da
sociedade. Este aluguel de terra da maioria das propriedades é entregue
aos pequenos proprietários de feudos, exceto quando essas
propriedades ainda estão na posse imediata do príncipe ou da coroa e
ainda não foram concedidas como feudos. Os titulares delas são

158
Inama-Sterneegg, l. c. II, p. 61.

145
O Estado

obrigados em contrapartida a prestar o serviço militar estipulado, e


também, em certos casos, a prestar trabalho de valor econômico.
O vassalo maior, por sua vez, é obrigado a servir aos grandes
inquilinos da coroa; que, por sua vez, estão, pelo menos por lei estrita,
sob obrigação semelhante para com o titular do poder central; enquanto
imperador, rei, sultão, xá ou faraó, por sua vez, são considerados
vassalos do deus tribal. Assim, começa nos campos, cujo campesinato
sustenta e nutre a todos, e sobe até o “rei do céu” uma ordem
artificialmente graduada de hierarquias, que restringe tão
absolutamente toda a vida do estado que, de acordo com o costume e a
lei, nem um pedaço de terra nem um homem pode ser compreendido a
menos que esteja dentro de sua dobra.
Uma vez que todos os direitos originalmente criados para os
homens livres comuns foram retomados pelo estado, ou então
distorcidos pelos príncipes vitoriosos dos territórios, ocorre que uma
pessoa que não mantém alguma relação feudal com algum superior
deve de fato estar “sem a lei”, sem reinvidicação a proteção ou justiça,
i.e., estar fora do escopo daquele poder que sozinho oferece justiça.
Portanto, a regra, nulle terre sans seigneur, parecendo-nos à primeira
vista como uma ebulição de arrogância feudal, é de fato a codificação
de um novo estado legal existente, ou pelo menos a eliminação de
alguns resquícios arcaicos, não mais tolerados, do estado feudal
primitivo completamente descartado.
Esses filósofos da história que pretendem explicar todo
desenvolvimento histórico a partir da qualidade das “raças”, dão como
centro de sua posição estratégica o alegado fato de que apenas os
germânicos, graças à sua “capacidade política” superior, conseguiram
elevar o edifício artístico do estado feudal desenvolvido. Parte do vigor
desse argumento se foi, desde que começou a surgir neles a convicção
de que no Japão a raça mongol havia alcançado esse resultado idêntico.
Ninguém pode dizer o que as raças negras poderiam ter feito, se a
irrupção de civilizações mais fortes não tivesse barrado seu caminho, e
ainda assim Uganda não difere muito dos impérios dos carolíngios ou
de Boleslaw, o Vermelho, exceto que os homens não tinham em Uganda
quaisquer “valores de tradição” da cultura medieval: e esses valores não

146
O Desenvolvimento do Estado Feudal

eram um mérito das raças germânicas, mas um presente com o qual a


fortuna os dotou.
Mudando a discussão do negro para os “semitas”, encontramos a
acusação de que esta raça não tem absolutamente nenhuma capacidade
para a formação de estados. E, no entanto, encontramos, há milhares de
anos, esse mesmo sistema feudal desenvolvido pelos semitas, se os
fundadores do reino egípcio fossem semitas. Alguém poderia pensar
que a seguinte descrição de Thurnwald foi tirada do período dos
imperadores Hohenstaufen:
“Quem entrou no seguimento de algum poderoso, foi
posteriormente protegido por ele como se fosse o chefe da
família. Esta relação [...] indica uma relação fiduciária
semelhante à vassalagem. Essa relação de proteção em
troca de fidelidade tende a se tornar a base da organização
de toda a sociedade egípcia. É a base das relações do
senhor feudal com seus sargentos e camponeses, assim
como do faraó com seus funcionários. A coesão dos
indivíduos em grupos sujeitos a senhores protetores
comuns, é fundada nesta visão, até o ápice da pirâmide,
para o próprio rei considerado como 'o vigário de seus
ancestrais', como o vassalo dos deuses na terra. [...] Quem
quer que esteja fora desse alcance social, um 'homem sem
mestre', está sem proteção e, portanto, sem a lei.”159
A hipótese da dotação de qualquer raça em particular não foi
usada por nós e não precisamos dela. Como diz Herbert Spencer, é a
mais estúpida de todas as tentativas imagináveis de construir uma
filosofia da história.
A primeira característica do estado feudal desenvolvido é a
gradação múltipla de níveis construídos em uma pirâmide de
dependência mútua. Sua segunda marca distintiva é a amalgamação dos
grupos étnicos, originalmente separadas.
A consciência anteriormente existente da diferença de raças
desapareceu completamente. Resta apenas a diferença de classes.

159
Thurnwald, l. c., p. 705.

147
O Estado

Doravante trataremos apenas de classes sociais e não mais de


grupos étnicos. O contraste social é o único fator dominante na vida do
estado. Consistentemente com isso, a consciência do grupo étnico muda
para uma consciência de classe, as teorias do grupo, para as teorias da
classe. No entanto, eles não mudam nem um pouco sua essência. As
novas classes dominantes estão tão cheias de seu direito divino quanto
o antigo grupo mestre, e logo se vê que a nova nobreza da espada
consegue esquecer, rápida e completamente, sua descendência do grupo
vencido; enquanto os ex-homens livres agora desclassificados, ou os
ex-pequenos nobres afundados na escala social, doravante juram tão
firmemente pela “lei natural” como fizeram antes apenas as tribos
subjugadas.
O estado feudal desenvolvido é, em sua essência, exatamente a
mesma coisa que era quando ainda estava no segundo estágio de
formação do estado. Sua forma é a do domínio, sua razão de ser, a
exploração política dos meios econômicos, limitada pelo direito
público, que obriga a classe mestra a dar a proteção correlata, e que
garante à classe baixa o direito de ser protegida, de na medida em que
são mantidos trabalhando e pagando impostos, para que possam
cumprir seu dever para com seus mestres. Em sua essência, o governo
não mudou, apenas foi disposto em mais graus; e o mesmo se aplica à
exploração, ou como diz a teoria econômica, “a distribuição” da
riqueza.
Assim como outrora, agora a política interna desses estados oscila
naquela órbita prescrita pelo paralelogramo do impulso centrífugo das
antigas disputas de grupos, agora guerras de classes, contrabalançadas
pela atração centrípeta dos interesses comuns. Assim como
antigamente, sua política externa é determinada pelo esforço de sua
classe dominante por novas terras e servos, um impulso de expansão
causado ao mesmo tempo pela necessidade ainda existente de
autopreservação. Embora diferenciado muito mais minuciosamente e
integrado muito mais poderosamente, o estado feudal desenvolvido
nada mais é do que o estado primitivo chegado à sua maturidade.

148
V
O Desenvolvimento do Estado
Constitucional
Se entendermos o resultado do estado feudal, no sentido dado
acima, como um desenvolvimento orgânico posterior, para frente ou
para trás, condicionado pelo poder das forças internas, mas não como
uma terminação física, provocada ou condicionada por forças externas,
então podemos dizer que o resultado do estado feudal é determinado
essencialmente pelo desenvolvimento independente das instituições
sociais criadas pelos meios econômicos.
Tais influências podem vir também de fora, de estados
estrangeiros que, graças a um desenvolvimento econômico mais
avançado, possuem um poder centralizado de forma mais tensa, uma
melhor organização militar e um maior avanço. Tocamos em algumas
dessas fases. O desenvolvimento independente dos estados feudais
mediterrâneos foi abruptamente interrompido por sua colisão com os
estados marítimos, que estavam em um plano muito mais alto de
crescimento econômico e riqueza e mais centralizados, como Cartago
e, mais especialmente, Roma.
A destruição do Império Persa por Alexandre, o Grande, pode ser
exemplificada neste contexto, uma vez que a Macedônia havia se
apropriado dos avanços econômicos dos estados marítimos helênicos.
O melhor exemplo nos tempos modernos é a influência estrangeira no
caso do Japão, cujo desenvolvimento foi abreviado de maneira quase
incrível pelos impulsos militares e pacíficos da civilização da Europa
Ocidental. No espaço de apenas uma geração, percorreu o caminho de
um estado feudal totalmente amadurecido para o estado constitucional
moderno completamente desenvolvido.
Parece-me que temos apenas que lidar com uma abreviação do
processo de desenvolvimento. Tanto quanto podemos ver — embora
doravante as evidências históricas se tornem escassas e quase não haja
exemplos de etnografia — pode ser afirmada a regra que as forças de

149
O Estado

dentro, mesmo sem fortes influências estrangeiras, conduzem o estado


feudal amadurecido, com estrita consistência lógica, no mesmo
caminho para a idêntica conclusão.
Os criadores dos meios econômicos que controlam esse avanço
são as cidades e seu sistema de economia monetária, que gradualmente
substitui o sistema de economia natural e, assim, desloca o eixo em
torno do qual gira toda a vida do estado; no lugar da propriedade
fundiária, o capital móvel torna-se gradualmente preponderante.

(a) A Emancipação do Campesinato

Tudo isso segue como uma consequência natural da premissa


básica do estado feudal. Quanto mais os grandes proprietários privados
se tornam uma nobreza fundiária, mais na mesma medida o sistema
feudal da economia natural deve se despedaçar. Quanto mais amplos
direitos de propriedade fundiária forem adquiridos e nutridos pelos
príncipes dos estados territoriais, mais o sistema feudal baseado em
pagamentos em bens e serviços estará fadado à desintegração; pode-se
dizer que os dois acompanham esse desenvolvimento.
Enquanto a donidade de grandes propriedades de terra for
relativamente limitada, o princípio primitivo do apicultor, permitindo a
seus camponeses apenas o suficiente para a subsistência, pode ser
realizado. Quando, no entanto, estes se expandem para dimensões
territoriais e incluem, como é regularmente o caso, acréscimos de terra
resultantes de guerras bem-sucedidas, ou pela renúncia e subinfeudação
por herança ou casamentos políticos de proprietários de terras menores,
espalhados amplamente pelo país e longe dos domínios originais do
mestre, então a política do apicultor não pode mais ser realizada.
A menos que, portanto, o magnata territorial pretenda manter em
seu salário uma imensa massa de capatazes, o que seria caro e
politicamente imprudente, ele teria de impor a seus camponeses algum
tributo fixo, em parte aluguel e em parte imposto. A necessidade

150
O Desenvolvimento do Estado Constitucional

econômica de uma reforma administrativa une-se, portanto, à


necessidade política, de elevar a “plebe”, na forma que já foi discutida.
Quanto mais o magnata do território deixa de ser um proprietário
privado, mais ele tende a se tornar exclusivamente um sujeito de direito
público, isto é, príncipe de um território, mais cresce a solidariedade
acima mencionada entre o príncipe e o povo. Vimos que alguns poucos
magnatas, mesmo no período de transição de grandes latifúndios para
principados, consideravam de seu maior interesse manter um governo
“suave”.
Isso alcançou o resultado, não apenas de educar sua plebe para
uma consciência mais viril em relação ao estado, mas também teve o
efeito de tornar mais fácil para os poucos homens livres comuns
desistirem de seus direitos políticos em troca de proteção; embora fosse
ainda mais importante, pois privava seus vizinhos e rivais de seu
precioso material humano. Quando o príncipe territorial finalmente
alcançou a completa independência de facto, seu interesse próprio deve
incitá-lo firmemente a perseverar no caminho assim iniciado. Se ele, no
entanto, investir novamente seus oficiais de justiça ou oficiais com
terras e camponeses, ele ainda terá o mais premente interesse político
em garantir que seus súditos não sejam entregues a eles sem restrições.
Para manter seu controle, o príncipe limitará o direito dos
“cavaleiros” aos rendimentos das terras a determinados pagamentos em
bens e serviços e ao trabalho forçado limitado, reservando-se para si o
exigido pelo interesse público, como o trabalho forçado nas estradas ou
em pontes. Logo veremos que a circunstância de que em todos os
estados feudais desenvolvidos os camponeses têm pelo menos dois
senhores reclamando serviço é decisiva para sua posterior ascensão.
Por todas essas razões, os serviços a serem exigidos dos
camponeses em um estado feudal desenvolvido devem ser limitados de
alguma forma. Doravante, todo excedente pertence a ele livre do
controle do senhorio. Com essa mudança, o caráter da propriedade
fundiária foi totalmente revolucionado. Até então, o senhor de terras,
por direito, tinha direito a toda a renda, economizando apenas o
absolutamente necessário para permitir que seus camponeses
subsistissem e continuassem sua prole; daqui em diante, o produto total

151
O Estado

de seu trabalho, por direito, pertence ao camponês, economizando


apenas um encargo fixo para seu senhorio como aluguel de terra. A
posse de vastas propriedades fundiárias desenvolveu-se em
senhorialismo. Isso completa o segundo passo importante dado pela
humanidade em direção ao seu objetivo.
O primeiro passo foi dado quando o homem fez a transição da
fase de urso para a de apicultor, descobrindo assim a escravidão; esta
etapa abole a escravidão. A humanidade trabalhadora, até então apenas
um objeto da lei, torna-se agora pela primeira vez uma entidade capaz
de gozar de direitos. O motor de trabalho, sem direitos, pertencente ao
seu senhor, e sem garantias efetivas de vida e integridade física, tornou-
se agora súdito contribuinte de algum príncipe.
Doravante, os meios econômicos, agora pela primeira vez
assegurados de seu sucesso, desenvolvem suas forças de maneira bem
diferente. O camponês trabalha com incomparavelmente mais
diligência e cuidado, obtém mais do que precisa e, assim, cria a
“cidade” no sentido econômico do termo, isto é, a cidade industrial. O
excedente produzido pelo campesinato gera uma demanda por objetos
não produzidos na economia camponesa; ao mesmo tempo, a
agricultura mais intensiva acarreta uma redução dos subprodutos
industriais até então elaborados pela indústria doméstica camponesa.
Como a agricultura e a pecuária absorvem cada vez mais as
energias da família rural, torna-se possível e necessário dividir o
trabalho entre produção original e manufatura; a aldeia tende a tornar-
se principalmente o lugar da primeira, a cidade industrial passa a ser a
sede da segunda.

(b) A Gênese do Estado Industrial

Que não haja mal-entendidos: não afirmamos que a cidade surge


assim, mas apenas a cidade industrial. Tem existido a verdadeira cidade
histórica, que pode ser encontrada em todos os estados feudais
desenvolvidos. Tais cidades surgiram ou por um meio puramente
152
O Desenvolvimento do Estado Constitucional

político, como uma fortaleza,160 ou pela cooperação dos meios políticos


com os econômicos, como um mercado, ou por alguma necessidade
religiosa, como os arredores de algum templo.161 Onde quer que tal
cidade no sentido histórico exista na vizinhança, a cidade industrial
recém-surgida tende a crescer em torno dela; caso contrário,
desenvolve-se espontaneamente a partir da divisão de trabalho existente
e amadurecida. Via de regra, ele, por sua vez, se tornará uma fortaleza
e terá seus próprios locais de culto.
Naturalmente, todo lugar para o qual se dirigem grandes
peregrinações torna-se um extenso centro comercial. Podemos ver as
lembranças disso no fato de que os grandes mercados atacadistas,
realizados em determinados horários no norte da Europa, são chamados
de Messen por causa da cerimônia religiosa.
Estas são apenas misturas históricas acidentais. Em seu sentido
econômico estrito, “cidade” significa o lugar dos meios econômicos, ou
a troca e o intercâmbio por valores equivalentes entre a produção rural
e a manufatura. Isso corresponde ao uso comum da linguagem, pelo
qual uma fortaleza, por maior que seja, um aglomerado de templos,
claustros e locais de peregrinação, por mais extensos, se concebíveis
sem lugar para troca, seriam designados por suas características
externas como “tipo uma cidade” ou “parecendo uma cidade”.
Embora possa ter havido poucas mudanças no exterior da cidade
histórica, ocorreu uma revolução interna em uma escala magnífica. A
cidade industrial se opõe diretamente ao estado. Assim como o estado
é o meio político desenvolvido, a cidade industrial é o meio econômico

160
“Os acampamentos maiores do exército do Reno obtiveram seus anexos
municipais em parte por meio de vivandeiros do exército e seguidores do
acampamento, e particularmente por meio dos veteranos, que após a conclusão
de seus serviços permaneceram em seus alojamentos habituais. Assim surgiu
distinta dos quartéis militares propriamente ditos, uma cidade distinta de
cabanas (Canabae). Em todas as partes do Império, e especialmente nas várias
Germânias, surgiram com o passar do tempo, desses acampamentos dos
legionários, e particularmente das estações centrais, cidades no sentido
moderno.” — Mommsen, l. c. V, p. 153.
161
“Todo local de culto reúne ao seu redor as residências dos sacerdotes, escolas
e casas de repouso para os peregrinos.” — Ratzel, l. c. II., p. 575.

153
O Estado

desenvolvido. A grande disputa que preenche a história universal, ou


melhor, seu próprio significado, passa a ocorrer entre a cidade e o
estado.
A cidade como um corpo econômico e político solapa o sistema
feudal com armas políticas e econômicas. Com a primeira a cidade
força, com a segunda ela atrai, seu poder para longe da classe
dominante feudal.
Esse processo se dá no campo da política pela interferência da
cidade, agora centro de poderes próprios, no mecanismo político do
estado feudal desenvolvido, entre o poder central e os magnatas
territoriais locais e seus súditos. As cidades são fortalezas e moradas de
homens guerreiros, bem como depósitos de material para a guerra
(armas, etc.); e mais tarde eles se tornam reservatórios centrais de
suprimento de dinheiro usado nas disputas entre o governo central e os
crescentes príncipes territoriais, ou entre estes em suas guerras
mortíferas. Assim, são pontos estratégicos importantes ou aliados
valiosos; e pode, por meio de uma política previdente, adquirir direitos
importantes.
Como uma regra geral, as cidades tomam parte da coroa nas lutas
contra os nobres feudais, por razões sociais, porque os senhores de
terras recusam reconhecer a igualdade social, exigida de direito pelos
seus cidadãos mais abastados; por razões políticas, porque o governo
central, graças à solidariedade entre príncipe e povo, está mais apto a
ser influenciado por interesses comuns do que o magnata territorial, que
serve apenas a seus interesses privados; e, finalmente, por razões
econômicas, porque a vida na cidade só pode prosperar em paz e
segurança. As práticas da cavalaria, como a lei do clube e a guerra
privada, e a prática dos cavaleiros de saquear as caravanas são
inconciliáveis com os meios econômicos; e, portanto, as cidades são
fiéis aliadas dos guardiões da paz e da justiça, primeiro ao imperador,
depois, ao príncipe territorial soberano; e quando a cidadania armada
desintegra e pilha um ninho de bandidos, a pequena gota reflete o
mesmo processo acontecendo no oceano da história.
Para desempenhar com sucesso esse papel político, a cidade deve
atrair o maior número possível de cidadãos, um esforço também

154
O Desenvolvimento do Estado Constitucional

imposto por considerações puramente econômicas, uma vez que tanto


a divisão do trabalho quanto a da riqueza aumentam com o aumento da
cidadania. Portanto, as cidades favorecem a imigração com todos os
seus poderes; e mais uma vez mostram nisso o contraste polar de sua
diferença essencial em relação aos senhores feudais.
Os novos cidadãos assim atraídos para as cidades são retirados
das propriedades feudais, que são assim enfraquecidas em poder de
tributação e defesa militar na proporção em que as cidades são
fortalecidas. A cidade torna-se uma poderosa competidora no leilão, em
que o servo é derrubado para o maior lance, ou seja, para aquele que
oferece mais direitos. A cidade oferece ao camponês total liberdade e,
em alguns casos, tudo o que possui. O princípio “o ar da cidade liberta
o camponês” é combatido com sucesso; e o governo central, satisfeito
em fortalecer as cidades e enfraquecer os nobres turbulentos,
geralmente confirma por documento os direitos recém-adquiridos.
O terceiro grande movimento no progresso da história universal
pode ser visto na descoberta da honra do trabalho livre; ou melhor, na
sua redescoberta, perdida de vista desde aqueles tempos longínquos em
que o caçador livre e o lavrador primitivo subjugado gozavam dos
frutos do seu trabalho. Até agora o camponês carrega a marca do pária
e seus direitos são pouco respeitados. Mas na cidade cercada por muros
e bem defendida, o cidadão mantém a cabeça erguida. Ele é um homem
livre em todos os sentidos da palavra, livre mesmo perante a lei, uma
vez que encontramos nas concessões de direitos a muitas das primeiras
cidades emancipadas (Ville-franche) a provisão de que um servo
residindo nelas “um ano e um dia” sem ser perturbado pela
reivindicação de seu mestre deve ser considerado livre.
Dentro das muralhas da cidade ainda existem várias categorias e
graus de status político. A princípio, os antigos colonos, os homens de
posição igual aos nobres do país circundante, os antigos homens livres
do burgo, recusam aos recém-chegados, geralmente pobres artesãos ou
vendedores ambulantes, o direito de participar do governo. Mas, como
vimos no caso das cidades marítimas, tais gradações de hierarquia não
podem ser mantidas dentro de uma comunidade comercial. A maioria,
inteligente, cética, estreitamente organizada e compacta, força a

155
O Estado

concessão de direitos iguais. A única diferença é que a disputa é mais


longa em um estado feudal desenvolvido, porque agora a luta não diz
respeito apenas às partes interessadas. Os grandes magnatas territoriais
da vizinhança e os príncipes impedem o pleno desenvolvimento das
forças com sua interferência. Nos estados marítimos do mundo antigo,
não havia tertius gaudens que pudesse derivar quaisquer lucros com as
disputas dentro da cidade, já que fora das cidades não existia nenhum
sistema de senhores feudais poderosos.
Estes, então, são os braços políticos das cidades em sua disputa
com o estado feudal: alianças com a coroa, ataque direto e sedução dos
servos dos senhores feudais para o ar livre da cidade. As suas armas
econômicas não são menos eficazes, a passagem do pagamento em bens
e serviços para o sistema do dinheiro como meio de troca está
inseparavelmente ligada aos métodos cívicos, é o meio pelo qual o
método de pagamento em bens e serviços é totalmente destruído e com
ele o estado feudal.

(c) As Influências da Economia Monetária

O processo sociológico posto em movimento pelo sistema de


economia monetária é tão bem conhecido e sua mecânica é tão
amplamente reconhecida que algumas sugestões serão suficientes.
Aqui, como no caso dos estados marítimos, a consequência da
invasão do sistema monetário é que o governo central se torna quase
onipotente, enquanto os poderes locais são reduzidos à completa
impotência.
O domínio não é um fim em si mesmo, mas apenas o meio dos
governantes para seu objetivo essencial, o gozo sem trabalho de artigos
de consumo tão numerosos e valiosos quanto possível. Durante a
prevalência do sistema de economia natural, não há outra maneira de
obtê-los, exceto pelo domínio; os guardas das fronteiras e os príncipes
territoriais obtêm sua riqueza por meio de seu poder político. Quanto
mais camponeses forem possuídos, maior será o poderio militar e maior
156
O Desenvolvimento do Estado Constitucional

será o alcance do território submetido e, portanto, maiores serão as


receitas. No entanto, assim que os produtos da agricultura são trocáveis
por mercadorias atraentes, torna-se mais racional para cada um,
principalmente um homem privado, isto é, para todo senhor feudal que
não seja um príncipe territorial — e isso agora inclui os cavaleiros —
diminuir tanto quanto possível o número de camponeses e deixar apenas
um pequeno número que possa, com o máximo de trabalho, produzir o
maior produto da terra, e desocupá-las o menos possível.
O produto líquido da propriedade imobiliária, assim
tremendamente aumentado, é agora levado aos mercados e vendido por
mercadorias, e não é mais usado para manter um corpo de guardas
bélico. Tendo dissolvido este seguinte, o cavaleiro torna-se
simplesmente dono de propriedade de nobres ou cavaleiros.162 Com este
acontecimento, como de um só golpe, o poder central, do rei ou príncipe
territorial, fica sem rival para o domínio, e torna-se politicamente
onipotente.
Os vassalos indisciplinados, que antes faziam tremer os reis
fracos, após uma breve tentativa de governo conjunto durante o tempo
do estado estamental, transformaram-se em cortesãos flexíveis,
implorando favores nas mãos de algum monarca absoluto, como Luís
XIV. E, além disso, tornou-se seu último recurso, uma vez que o poder
militar, agora exclusivamente exercido por ele como tesoureiro das
forças, sozinho pode protegê-los da revolta sempre imanente de seus
inquilinos, levados ao extremo. Enquanto no tempo da economia
natural a coroa era quase sempre aliada dos camponeses e das cidades
contra a nobreza, agora temos a união dos reis absolutos, nascidos do
estado feudal, com sua nobreza, contra os representantes dos meios
econômicos.
Desde os dias de Adam Smith, tem sido costume declarar essa
revolução fundamental de alguma forma, como se os tolos nobres
tivessem vendido seu direito de nascença por um prato de lentilhas,
quando trocaram seu domínio por tolos artigos de luxo. Nenhuma visão
pode ser mais errônea. Os indivíduos frequentemente erram na
162
N.T.: Veja a referência quanto ao significado de Rittergutsbesitz, ante, página
39.

157
O Estado

salvaguarda de seus interesses: uma classe por um período prolongado


nunca está em erro.
O fato é que o sistema de pagamentos em dinheiro fortaleceu o
poder central de forma tão poderosa e imediata que, mesmo sem a
interposição da sublevação agrária, qualquer resistência da nobreza
fundiária teria sido sem sentido. Como mostra a história da antiguidade,
o exército de um governo central, financeiramente forte, é sempre
superior aos recrutas feudais. O dinheiro permite o armamento de filhos
de camponeses, e treiná-los em soldados profissionais, cuja organização
sólida é sempre superior à frouxa confederação de uma massa armada
de cavaleiros. Além disso, nessa fase, o governo central também podia
contar com o auxílio dos batalhões bem armados das guildas urbanas.
A pólvora fez o resto na Europa Ocidental. As armas de fogo,
porém, são um produto que só pode ser produzido nos estabelecimentos
industriais de uma cidade rica. Por causa dessas razões técnicas
militares, mesmo aquele senhor feudal que não se importa com os novos
luxos estabelecidos e que deseja apenas manter ou aumentar sua
posição independente, deve submeter seus territórios à mesma
revolução agrária; já que, para ser forte, ele agora precisa antes de tudo
ter dinheiro, que na nova ordem das coisas tornou-se o nervus rerum,
seja para comprar armas ou para contratar mercenários. Um segundo
empreendimento capitalista atacadista, portanto, surgiu através do
sistema de pagamentos em dinheiro; além da administração por atacado
de latifúndios, a guerra é conduzida como um grande empreendimento
comercial — os condottieri aparecem no palco. O mercado está cheio
de material para exércitos de mercenários, guardas dispensados dos
senhores feudais e jovens camponeses cujas terras foram tomadas pelos
senhores.
Há casos em que algum pequeno nobre pode subir ao trono de
algum principado territorial, como aconteceu muitas vezes na Itália e
como foi realizado por Albrecht Wallenstein, mesmo no período da
Guerra dos Trinta Anos. Mas isso é uma questão de destino individual,
não afetando o resultado final. Os poderes locais desaparecem da
disputa de forças políticas como centros independentes de autoridade e
retêm o remanescente de sua influência anterior apenas enquanto

158
O Desenvolvimento do Estado Constitucional

servem aos príncipes como fonte de suprimentos; isto é, o estado


estamental.
O aumento infinito do poder da coroa é então reforçado por uma
segunda criação do sistema de pagamento em dinheiro, pelo
funcionalismo. Contamos em detalhes o círculo vicioso que obrigou o
estado feudal a um beco sem saída entre a aglomeração e a dissolução,
enquanto seus meirinhos tiveram que ser pagos com “terras e
camponeses” e, assim, foram alimentados como rivais potenciais de seu
criador. Com o advento dos pagamentos em dinheiro, o círculo vicioso
é quebrado. Doravante, o governo central exerce suas funções por meio
de empregados assalariados, permanentemente dependentes de seu
pagador.163 Daí em diante, é possível um governo permanentemente
estabelecido, tensamente centralizado, e surgem impérios, como não
existiam desde os desenvolvidos estados marítimos da antiguidade, que
também foram fundados nos pagamentos em dinheiro.
Essa revolução do mecanismo político foi desencadeada em todos
os lugares pelo desenvolvimento da economia monetária — com apenas
uma exceção, tanto quanto posso ver, a saber, o Egito.
Aqui, de acordo com a declaração de especialistas, nenhuma
informação definitiva é obtida, e parece que o sistema de troca de
dinheiro aparece como uma instituição amadurecida apenas nos tempos
gregos. Até aquela época, o tributo dos camponeses era pago em bens e
serviços;164 e ainda assim descobrimos, logo após a expulsão dos
hicsos, durante o Novo Império (por volta do século XVI a.C.), que o
absolutismo dos reis estava plenamente desenvolvido: “O poder militar
é sustentado por mercenários estrangeiros, a administração é exercida

163
Eisenhardt, Gesch. der National Oekonomie, p. 9: “Auxiliado pelo novo e mais
líquido meio de pagamento em dinheiro, tornou-se possível a constituição de
um novo e mais independente estabelecimento de soldados e de oficiais. Como
eram pagos apenas periodicamente, tornou-se impossível para eles se tornarem
independentes (como os feudatários haviam feito) e depois se voltarem contra
o seu pagador.”
164
Thurnwald, l. c., p. 773.

159
O Estado

por um corpo centralizado de funcionários dependentes do favor real,


enquanto a aristocracia feudal desapareceu.”165
Pode parecer que esta exceção confirma a regra. O Egito é um
país de excepcional conformação geográfica. Encravado em um estreito
compasso, entre as montanhas e o deserto, uma estrada natural, o rio
Nilo, atravessa toda a sua extensão e permite o transporte de cargas
volumosas com muito mais facilidade do que a estrada mais refinada.
E esta estrada facilitou ao faraó reunir os impostos de todos os seus
distritos em seus próprios armazéns, as chamadas “casas do rei” 166 e
deles abastecer suas guarnições e funcionários públicos com os próprios
produtos in naturalibus.167Por essa razão, o Egito, depois de ter se
unificado em um império, permanece centralizado, até que as potências
estrangeiras extingam sua vida como um “estado”.
“Esta circunstância é a fonte do enorme e pleno poder
exercido pelo faraó na qual os pagamentos ainda são feitos
em bens e serviços; o controle exclusivo e imediato dos
objetos de consumo cotidiano estão em suas mãos. O
governante distribui a seus empregados apenas as
quantidades de toda a massa de bens que lhe parecem boas
e adequadas; e como os artigos de luxo estão quase todos
exclusivamente em suas mãos, ele também goza por conta
disso de uma extraordinária plenitude de poder.”168
Com esta única exceção, onde uma força poderosa executa a
tarefa, o poder de circular dinheiro parece em todos os casos ter
dissolvido o estado feudal.
O custo da revolução recaiu sobre os camponeses e as cidades.
Quando a paz é feita, a coroa e os pequenos nobres sacrificam
mutuamente o campesinato, dividindo-o, por assim dizer, em duas
metades ideais; a coroa concede à nobreza a maior parte das terras
comuns dos camponeses e a maior parte de sua força de trabalho que
ainda não foi expropriada; a nobreza concede à coroa o direito de

165
Thurnwald, l. c., p. 699.
166
Thurnwald, l. c., p. 709.
167
As instruções nos armazéns circulavam como uma forma de papel-dinheiro.
168
Thurnwald, l. c., p. 711.

160
O Desenvolvimento do Estado Constitucional

recrutar e tributar tanto os camponeses quanto as cidades. O camponês,


que enriqueceu na liberdade, afunda de volta na pobreza e, portanto, na
inferioridade social. As antigas potências feudais agora se unem como
aliadas para subjugar as cidades, exceto quando, como na Alta Itália,
elas se tornam potências centrais feudais. (E mesmo nesse caso, na
maior parte, todos caem no poder dos capitães dos mercenários,
condottiere).
O poder de ataque dos adversários tornou-se mais forte, o poder
das cidades diminuiu. Pois com a decadência do campesinato, diminui
seu poder de compra e com isso a prosperidade das cidades, baseada
nele. As pequenas cidades do país estagnam e empobrecem, e sendo
agora incapazes de se defender, caem presas do domínio absolutista dos
príncipes territoriais; as cidades maiores, onde a demanda pelos luxos
dos nobres criou um forte elemento comercial, dividem-se em grupos
sociais e assim desperdiçam sua força política.
A imigração que agora se derrama em suas paredes é composta de
mercenários demitidos e alquebrados, camponeses despojados,
mecânicos empobrecidos das cidades menores; é, em outras palavras,
uma imigração proletária. Pela primeira vez aparece, na terminologia
de Karl Marx, o “trabalhador livre”, em massa, competindo com sua
própria classe nos mercados de trabalho das cidades. E, novamente, a
“lei da aglomeração” entra para formar distinções efetivas de classe e
propriedade e, assim, dilacerar a população cívica. Lutas selvagens
acontecem nas cidades entre as classes; por meio do qual o príncipe
territorial, em quase todos os casos, novamente consegue obter o
controle. As únicas cidades que podem escapar permanentemente do
abraço mortal do poder do príncipe são os poucos “estados marítimos”
ou “cidades-estado” genuínos.
Como no caso dos estados marítimos, o pivô da vida do estado
foi novamente deslocado para outro lugar. Em vez de girar em torno da
riqueza investida em propriedades fundiárias, agora gira em torno da
riqueza capitalizada, porque, nesse ínterim, a própria propriedade
imobiliária tornou-se “capital”. Por que é que o desenvolvimento não
se abre, como no caso dos estados marítimos, para a expropriação
capitalista do trabalho escravo?

161
O Estado

Existem duas razões controladoras, uma interna e outra externa.


A razão externa deve ser encontrada no seguinte: a caça de escravos em
escala lucrativa é dificilmente possível neste momento em qualquer
parte do mundo, uma vez que quase todos os países ao alcance também
são organizados como estados fortes. Onde quer que seja possível,
como por exemplo nas colônias americanas das potências da Europa
Ocidental, ela se desenvolve imediatamente.
A razão interna pode ser encontrada na circunstância de que o
camponês dos países do interior, em contraste com as condições
prevalecentes nos estados marítimos, está sujeito, não a um mestre, mas
a pelo menos duas169 pessoas com direito a seu serviço, seu príncipe e
seu senhorio. Ambos resistem a qualquer tentativa de diminuir a
capacidade de serviço de seus camponeses, pois isso é essencial para
seus interesses. Príncipes especialmente fortes fizeram muito por seus
camponeses, e.g., aqueles de Brandemburgo-Prússia. Por esta razão, os
camponeses, embora miseravelmente explorados, mantiveram sua
liberdade pessoal e sua condição de súditos dotados de direitos pessoais
em todos os estados onde o sistema feudal havia sido plenamente
desenvolvido quando o sistema de pagamentos em dinheiro substituiu
o de pagamentos em bens e serviços.
A evidência de que esta explicação é correta pode ser encontrada
nas relações daqueles estados que foram dominados pelo sistema de
troca em dinheiro, antes que o sistema feudal fosse elaborado.
Isso se aplica especialmente aos distritos da Alemanha
anteriormente ocupados pelos eslavos, mas particularmente à Polônia.
Nesses distritos, o sistema feudal ainda não havia sido elaborado de
forma tão completa quanto nas regiões onde a demanda por produtos de
grãos nos grandes centros industriais ocidentais havia transformado os
nobres, sujeitos de direito público, em proprietários de um Rittergut, os
sujeitos de interesses econômicos privados. Nesses distritos, os
camponeses estavam sujeitos ao dever de prestar serviço apenas a um
senhor, que era ao mesmo tempo seu suserano e senhorio; e por causa

169
Na Alemanha medieval, os camponeses pagam tributos, em muitos casos, não
apenas ao senhor da terra e ao príncipe territorial, mas também ao prefeito e ao
oficial de justiça.

162
O Desenvolvimento do Estado Constitucional

disso, surgiram as repúblicas de nobres acima mencionadas, que, na


medida em que a pressão de seus vizinhos mais avançados permitia,
tendiam a se aproximar do sistema capitalista de exploração do trabalho
escravo.170
O seguinte é tão bem conhecido que pode ser declarado
brevemente. O sistema de troca por meio de dinheiro amadurece no
capitalismo, e faz nascer novas classes em justaposição aos
proprietários de terra; o capitalista exige direitos iguais aos das ordens
anteriormente privilegiadas e, finalmente, os obtém revolucionando a
plebe inferior. Nesse ataque à ordem das coisas sagradamente
estabelecida, os capitalistas se unem às classes inferiores, naturalmente
sob a bandeira da “lei natural”. Mas assim que a vitória foi alcançada,
a classe baseada na riqueza móvel, a chamada classe média, volta suas
armas contra as classes baixas, faz as pazes com seus antigos oponentes
e invoca em sua luta reacionária contra os proletários, sua aliados
tardios, a teoria da legitimidade, ou faz uso de uma mistura maligna de
argumentos baseados em parte na legitimidade e em parte no
pseudoliberalismo.
Desta forma, o estado gradualmente amadureceu do estado ladrão
primitivo, através dos estágios do estado feudal desenvolvido, através
do absolutismo, até o estado constitucional moderno.

(d) O Estado Constitucional Moderno

Dediquemos um momento à mecânica e à cinética do estado


moderno.
Em princípio, é a mesma entidade que o estado ladrão primitivo
ou o estado feudal desenvolvido. Acrescentou-se, no entanto, um novo
elemento — o funcionalismo, que pelo menos terá esse objetivo: na
disputa das várias classes, representará os interesses comuns do estado
como um todo. Até que ponto esse propósito é atendido, investigaremos

170
Cf. com isto F. Oppenheimer, Grossgrundeigentum etc., livro II, cap. 3.

163
O Estado

em outro lugar. Vamos agora estudar o estado em relação às


características que ele trouxe de seus estágios juvenis.
A sua forma continua a ser a dominação, o seu conteúdo continua
a ser a exploração dos meios econômicos. Esta continua limitada pelo
direito público, que por um lado protege a tradicional “distribuição” dos
produtos totais da nação; por outro, procura manter em plena eficiência
os pagadores de impostos e aqueles obrigados a prestar serviço. A
política interna do estado continua a girar no caminho que lhe é
prescrito pelo paralelogramo da força centrífuga das disputas de classe
e pelo impulso centrípeto dos interesses comuns do estado; e sua
política externa continua a ser determinada pelos interesses da classe
dominante, agora compreendendo além dos interesses fundiários
também os interesses endinheirados.
Em princípio, existem agora, como antes, apenas duas classes a
serem distinguidas: uma classe dominante, que adquire mais do produto
total do trabalho do povo — os meios econômicos — do que contribuiu,
e uma classe sujeita, que obtém menos da riqueza resultante do que
contribuiu. Cada uma dessas classes, por sua vez, conforme o grau de
desenvolvimento econômico, divide-se em mais ou menos subclasses
ou estratos, que se graduam de acordo com a sorte ou má sorte de seus
padrões econômicos.
Entre os estados altamente desenvolvidos, encontra-se
introduzida entre as duas classes principais uma classe de transição, que
também pode ser subdividida em vários estratos. Seus membros são
obrigados a prestar serviços à classe alta, enquanto têm direito a receber
serviços das classes abaixo deles.
Para ilustrar com um exemplo, encontramos na classe dominante
na Alemanha moderna pelo menos três estratos. Primeiro vêm os
grandes magnatas de terras, que são ao mesmo tempo os principais
acionistas dos grandes empreendimentos industriais e empresas
mineradoras; em seguida, os capitães da indústria e os “bancocratas”,
que também em muitos casos se tornaram proprietários de grandes
propriedades. Em consequência disso, eles se amalgamam rapidamente
com a primeira camada. Tais são, por exemplo, os príncipes Fugger, ex-

164
O Desenvolvimento do Estado Constitucional

banqueiros de Augsburg, e os condes de Donnersmarck, proprietários


de extensas minas na Silésia.
E, finalmente, há os pequenos nobres do campo, que doravante
denominaremos junker ou “proprietário de terras”. A classe sujeita, em
todo o caso, consiste em pequenos camponeses, trabalhadores
agrícolas, operários de fábricas e minas, com pequenos artesãos e
funcionários subordinados. As “classes médias” são as classes da
transição: compostas pelos donos de grandes e médias fazendas, pelos
pequenos fabricantes e pelos mecânicos mais bem pagos, além daqueles
ricos “burgueses”, como os judeus, que não enriqueceram o suficiente
para superar certas dificuldades tradicionais que se opõem à sua
chegada ao estágio de casamentos mistos com a classe alta.
Todos eles prestam serviço não correspondido à classe alta e
recebem serviço não correspondido das classes mais baixas. Isso
determina o resultado que ocorre ou para o estrato como um todo ou
para os indivíduos nele; isto é, ou uma aceitação completa na classe
alta, ou um afundamento absoluto na classe baixa. Das classes de
transição (alemãs), os grandes agricultores e os fabricantes de riqueza
média ascenderam, enquanto a maioria dos artesãos desceu para as
classes mais baixas. Chegamos assim à cinética das classes.
Os interesses de cada classe põem em movimento um corpo real
de forças associadas, que os impulsionam com um momento definido
para a consecução de um objetivo definido. Todas as classes têm o
mesmo objetivo; a saber, o resultado total do trabalho produtivo de
todos os habitantes de um determinado estado. Cada classe tenta obter
a maior parte possível da produção nacional; e como todos lutam
identicamente pelo mesmo objetivo, a disputa de classe resulta.
Essa disputa de classes é o conteúdo de toda a história dos
estados, exceto na medida em que o interesse do estado como um todo
produz ações comuns. Podemos desconsiderá-los neste ponto, uma vez
que receberam destaque indevido pelo método tradicional de estudo
histórico e levam a visões unilaterais. Historicamente, esta disputa de
classe é mostrada como uma luta de partido. Um partido é
originariamente e em sua essência nada mais que uma representação
organizada de uma classe. Sempre que uma classe, devido à

165
O Estado

diferenciação social, se divide em numerosas subclasses com diversos


interesses separados, o partido que pretende representá-la se desintegra
na primeira oportunidade em uma massa de minúsculos partidos, e estes
serão aliados ou inimigos mortais de acordo com o grau de divergência
dos interesses de classe.
Onde, por outro lado, um antigo contraste de classe desapareceu
por diferenciação social, os dois antigos partidos amalgamam-se em
pouco tempo em um novo partido. Como exemplo do primeiro caso,
podemos recordar a separação dos partidos de artesãos e de antissemitas
do partido do liberalismo alemão, como consequência do fato de que o
primeiro representava grupos descendentes, enquanto o segundo
representava os ascendentes. Um exemplo característico da segunda
categoria pode ser encontrado no amálgama político que uniu no
sindicato dos fazendeiros os pequenos proprietários de terra do interior
do Elba Oriental com os camponeses ricos do Elba Ocidental em
grandes plantações.
Como o pequeno proprietário de terras afunda e o fazendeiro
sobe, eles se encontram no meio do caminho. Toda política partidária
pode ter apenas um significado, a saber, obter para a classe representada
uma parcela tão grande quanto possível da produção nacional total. Em
outras palavras, as classes privilegiadas pretendem manter sua parcela,
pelo menos, na escala antiga e, se possível, aumentá-la até o máximo
que permita às classes exploradas apenas uma mera existência, para
mantê-las aptas a fazer o seu trabalho, tal como nas fases do apicultor.
Seu objetivo é confiscar todo o produto excedente dos meios
econômicos, um excedente que aumenta enormemente à medida que a
população se torna mais densa e a divisão do trabalho mais
especializada. Por outro lado, o grupo das classes exploradas gostaria
de reduzir seu tributo ao ponto zero e consumir todo o produto por conta
própria; e as classes de transição trabalham tanto quanto possível para
reduzir seu tributo às classes superiores, enquanto ao mesmo tempo se
esforçam para aumentar sua renda não correspondida das classes
inferiores.
Este é o objetivo e o conteúdo de todas as disputas partidárias. A
classe dominante conduz esta luta com todos os meios que seu domínio

166
O Desenvolvimento do Estado Constitucional

adquirido lhe deu. Em consequência disso, a classe dominante cuida


para que a legislação seja moldada em seu interesse e para servir a seu
propósito — legislação de classe. Essas leis são então aplicadas de tal
maneira que o dorso embotado da espada da justiça é voltado para cima,
enquanto seu fio afiado é voltado para baixo — justiça de classe. A
classe governante em cada estado usa a administração do estado no
interesse daqueles que pertencem a ela sob um duplo aspecto.
Em primeiro lugar, reserva a seus partidários todos os cargos de
destaque e todos os cargos de influência e lucro, no exército, nos ramos
superiores do serviço governamental e nos cargos públicos; e em
segundo lugar, por meio dessas mesmas agências, ela dirige toda a
política do estado, faz com que sua política de classe gere guerras
comerciais, políticas coloniais, tarifas protecionistas, legislação que
melhora em algum grau as condições das classes trabalhadoras,
políticas de reforma eleitoral, etc. Enquanto os nobres governaram o
estado, eles o exploraram como se administrassem um latifúndio;
quando a burguesia obtém o domínio, o estado é explorado como se
fosse uma fábrica. E a religião de classe cobre todos os defeitos, desde
que possam ser suportados, com o seu “não toque nos fundamentos da
sociedade”.
Ainda existem no direito público uma série de privilégios
políticos e posições econômicas estratégicas que favorecem a classe
dominante: tal como, na Prússia, um sistema de votação que dá aos
plutocratas uma vantagem indevida sobre as classes menos favorecidas,
uma limitação da direitos constitucionais de livre reunião, regulamentos
para servidores, etc. Por isso, a luta constitucional, travada por milhares
de anos e dominando a vida do estado, ainda está incompleta. A luta por
melhores condições de vida, outra fase da luta partidária e de classes,
geralmente ocorre nos corredores dos órgãos legislativos, mas muitas
vezes é realizada por meio de manifestações nas ruas, greves gerais ou
insurreições escancaradas.
Mas a plebe final e definitivamente aprendeu que esses
remanescentes de centros estratégicos feudais não constituem, exceto
em instâncias tardias, a fortaleza final de seus oponentes. Não é nas
condições políticas, mas nas econômicas que a causa deve ser buscada,

167
O Estado

o que fez com que mesmo no estado constitucional moderno a


“distribuição da riqueza” não tenha sido alterada em princípio. Assim
como nos tempos feudais, a grande massa dos homens vive em amarga
pobreza; mesmo sob as melhores condições, eles têm as escassas
necessidades da vida, conquistadas pelo trabalho forçado árduo,
esmagador e estupefato, não mais exigido pelo direito de exploração
política, mas efetivamente arrancado dos trabalhadores por suas
necessidades econômicas.
E assim como antes nos dias não reformados, a estreita minoria,
uma nova classe dominante, um conglomerado de detentores de antigos
privilégios e de novos-ricos, reúne-se no tributo, agora crescido até a
imensidão; e não apenas não presta nenhum serviço para isso, mas
ostenta sua riqueza em face do trabalho por uma vida desenfreada. A
disputa de classe doravante é dedicada cada vez mais a essas causas
econômicas, baseadas em sistemas viciosos de distribuição; e toma
forma numa luta corpo a corpo entre exploradores e proletariado,
travada por greves, sociedades cooperativas e sindicatos. A organização
econômica primeiro força o reconhecimento e depois a igualdade de
direitos; então ele lidera e finalmente controla os destinos políticos do
partido trabalhista. No final, portanto, o sindicato controla o partido.
Até agora, o desenvolvimento do estado progrediu na Grã-Bretanha e
nos Estados Unidos.
Se não tivesse sido acrescentado ao estado moderno um elemento
inteiramente novo, seu funcionalismo, o estado constitucional, embora
mais sutilmente diferenciado e mais poderosamente integrado, seria, no
que diz respeito à forma e ao conteúdo, um pouco diferente de seus
protótipos.
Por uma questão de princípio, os funcionários do estado, pagos
com fundos do estado, são afastados das lutas econômicas de interesses
conflitantes; e, portanto, é justamente considerado impróprio para
qualquer um a serviço do governo participar de qualquer
empreendimento lucrativo, e em nenhuma burocracia bem ordenada é
tolerada. Se fosse possível realizar completamente o princípio, e nem
todo funcionário, mesmo o melhor deles, trouxesse consigo aquele
conceito de estado mantido pela classe da qual ele se originou,

168
O Desenvolvimento do Estado Constitucional

encontraríamos no funcionalismo, de fato, aquela força moderadora e


criadora de ordem, afastada do conflito de interesses de classe, por meio
da qual o estado pudesse ser conduzido em direção a seu novo objetivo.
Ela se tornaria o fulcro de Arquimedes de onde o mundo do estado
poderia ser movido.
Mas o princípio, lamentamos dizer, não pode ser executado
completamente; e além disso, os funcionários não deixam de ser
homens reais, não se tornam meras abstrações sem consciência de
classe. Isso pode ser bem diferente do fato de que, pelo menos na
Europa, a participação em uma forma definida de empreendimentos —
a saber, administrar grandes propriedades fundiárias — é considerada
um meio favorável de progredir no serviço do estado, e continuar a sê-
lo enquanto a nobreza fundiária preponderar. Em consequência disso,
muitos funcionários do Continente, e pode-se mesmo dizer os
funcionários mais influentes, estão sujeitos à pressão de enormes
interesses econômicos; e são inconscientemente, e muitas vezes contra
sua vontade, trazidos para as disputas de classe.
Existem fatores, como mesadas extras feitas por pais ou sogros,
ou propriedades hereditárias, e afinidade com as pessoas que controlam
os interesses fundiários e endinheirados ou aliados a eles, por meio dos
quais a solidariedade de interesses entre a classe dominante é algo
aumentado pelo fato de que esses funcionários, praticamente sem
exceção, são tirados de uma classe com a qual desde a juventude eles
mantêm relações de intimidade. Se não houvesse, entretanto, tal
unidade de interesses econômicos, o comportamento dos funcionários
seria inteiramente influenciado pelos puros interesses do estado.
Por isso, via de regra, o quadro de funcionários mais eficiente,
objetivo e imparcial encontra-se nos estados pobres. A Prússia, por
exemplo, era anteriormente devedora de sua pobreza por aquele corpo
incomparável de funcionários que a administravam em meio a todos os
seus problemas. Esses funcionários do estado estavam, na verdade, em
consonância com a regra acima enunciada, completamente dissociados
de qualquer interesse em ganhar dinheiro, direta ou indiretamente.
Esse corpo ideal de funcionários é uma ocorrência rara nos
estados mais ricos. O desenvolvimento plutocrático atrai cada vez mais

169
O Estado

o indivíduo para o seu vórtice, roubando-lhe a sua objetividade e a sua


imparcialidade. E, no entanto, os funcionários continuam cumprindo o
dever que o estado moderno exige deles, de preservar os interesses do
estado em oposição aos interesses de qualquer classe. E esse interesse
é preservado por eles, mesmo que contra sua vontade, ou pelo menos
sem clara consciência do fato, de tal maneira que os meios econômicos,
que deram origem à burocracia, acabam avançando em seu tedioso
caminho de vitória, contra os meios políticos.
Ninguém duvida que os funcionários fazem a política de classe
que lhes é prescrita pela constelação de forças que operam no estado; e,
nessa medida, eles certamente representam a classe mestra da qual
surgiram. Mas eles amenizam a amargura da luta, opondo-se aos
extremistas em ambos os campos e defendendo emendas às leis
existentes, quando o desenvolvimento social se torna maduro para sua
promulgação, sem esperar até que a disputa sobre elas se torne aguda.
Onde governa uma raça eficiente de príncipes, cujo representante
momentâneo adota a política do rei Frederico, que se considerava
apenas como “o primeiro servidor do estado”, o que foi dito acima se
aplica a ele em grau maior, ainda mais assim como seus interesses,
como beneficiário permanente da existência continuada do estado, o
levariam antes de tudo a fortalecer as forças centrípetas e a enfraquecer
os poderes centrífugos.
No decorrer do que precede, notamos em muitos casos a
solidariedade natural entre o príncipe e o povo como uma força histórica
de grande valor. No estado constitucional completo, no qual o monarca,
embora num grau infinitesimal, é um súdito de interesses econômicos
privados, ele tende a ser quase completamente “um funcionário”. Essa
comunidade de interesses é enfatizada aqui com muito mais força do
que no estado feudal ou no estado despoticamente governado, onde o
domínio, pelo menos em metade de sua extensão, é baseado nos
interesses econômicos privados do príncipe.
Mesmo em um estado constitucional, a forma externa de governo
não é o fator decisivo; a luta das classes continua e leva ao mesmo
resultado na república e na monarquia. Apesar disso, deve-se admitir
que há mais probabilidade de que, tudo o mais constante, a curva de

170
O Desenvolvimento do Estado Constitucional

desenvolvimento do estado em uma monarquia seja mais generalizada,


com menos incurvidade secundária, pela razão de que o príncipe é
menos afetado por perdas de popularidade, não sendo tão sensível a
rajadas momentâneas de desaprovação tal como um presidente eleito
por um curto mandato de anos, e pode, portanto, moldar suas políticas
por períodos de tempo mais longos.
Não devemos deixar de mencionar uma forma especial de
funcionalismo, as equipes científicas das universidades, cuja influência
no desenvolvimento ascendente do estado não deve ser subestimada.
Isso não é apenas uma criação dos meios econômicos, como o foram os
próprios funcionários, mas ao mesmo tempo representa uma força
histórica, a necessidade de causalidade, que encontramos até agora
apenas como um aliado do estado conquistador. Vimos que essa
necessidade criou superstição enquanto o estado estava em um estágio
primitivo; seu bastardo, o tabu, descobrimos em todos os casos ser um
meio eficaz de controle pela classe dominante. A partir dessas mesmas
necessidades, então, a ciência foi desenvolvida, atacando e destruindo
a superstição e, assim, auxiliando na preparação do caminho da
evolução. Esse é o incalculável serviço histórico da ciência e
principalmente das universidades.

171
VI
A Tendência do Desenvolvimento do
Estado
Nós nos esforçamos para descobrir o desenvolvimento do estado
de seu passado mais remoto para os tempos presentes, seguindo seu
curso como um explorador, de sua fonte para o fluxo de sua efluência
nas planícies. Amplas e poderosas são suas ondas que passam até
desaparecer na névoa do horizonte, em regiões inexploradas e, para o
observador do dia presente, indetectáveis.
Tão amplas e poderosas quanto, o fluxo da história — e até o dia
presente toda a história tem sido a história de estados — vai além de
nossa visão, e seu curso é encoberto pelas névoas do futuro. Será que
devemos ousar levantar hipóteses acerca do rumo futuro, até que “com
alegria desenfreada ele afunde nos braços de seu pai esperançoso e
expectante”? (Prometheus de Goethe.) É possível estabelecer um
prognóstico alicerçado cientificamente em relação ao futuro
desenvolvimento do estado?
Eu acredito nessa possibilidade. A tendência171 do
desenvolvimento do estado inequivocamente leva a um ponto: visto que
em seus aspectos essenciais, o estado irá deixar de ser os “meios
políticos desenvolvidos” e irá se tornar “uma cidadania de homens
livres”. Em outras palavras, sua casca exterior irá se manter, nos
aspectos essenciais, na forma que foi desenvolvida no estado
constitucional, no qual a administração será exercida por um
funcionalismo. Mas o conteúdo dos estados até agora conhecidos terão
mudado em seu elemento vital pelo desaparecimento da exploração
econômica de uma classe por outra. E uma vez que o estado irá, por
isso, existir sem o interesse das classes ou classe, a burocracia do futuro
irá verdadeiramente ter alcançado o ideal de guardião imparcial do

171
“Tendência, i.e., uma lei que, cuja execução absoluta é controlada por
circunstâncias compensatórias, ou por elas é retardada e enfraquecida.” Marx,
Kapital, vol. III, p. 215.

173
O Estado

interesse comum, que hoje em dia tenta laboriosamente alcançar. O


“estado” do futuro será guiado pela “sociedade” em auto-governo.
Bibliotecas foram repletas de livros com escritos sobre a
delimitação dos conceitos “estado” e “sociedade”. O problema,
entretanto, do nosso ponto de vista, tem uma solução simples. O
“estado” é o meio político completamente desenvolvido, e a sociedade
é o meio econômico plenamente desenvolvido. Até agora o estado e a
sociedade estavam indissoluvelmente interligados: na “cidadania de
homens livres”, não haverá nenhum “estado” mas apenas “sociedade”.
Esse prognóstico do futuro desenvolvimento do estado contém
por inclusão todas essas fórmulas famosas, através das quais, os grandes
historiadores filosóficos têm tentado determinar o “valor resultante” da
história universal. Ela contém o “progresso de atividade bélica para
trabalho pacífico” de St. Simon, e também o “desenvolvimento da
escravidão para a liberdade” de Hegel; a “evolução da humanidade” de
Herder, assim como “a penetração da razão através da natureza” de
Schleiermacher.
Nos últimos tempos se perdeu o feliz otimismo dos escritores
clássicos e humanistas; o pessimismo sociológico governa o espírito
dos dias recentes. O prognóstico aqui colocado ainda não pode alegar
ter muitos adeptos. Não somente as pessoas que obtêm os lucros pelo
domínio, graças à sua obsessão pelo espírito de sua classe o consideram
um conceito incrível; aqueles pertencentes à classe subjugada também
consideram-no com o máximo ceticismo.
É verdade que a teoria proletária, em matéria de princípios, prediz
identicamente o mesmo resultado. Mas os adeptos de tal teoria não
acreditam que seja possível pelo caminho da evolução, mas apenas
através da revolução. E então ela é pensada como uma imagem de uma
“sociedade” variando em todos os aspectos daquela que evoluiu pelo
progresso da história: em outras palavras, como uma organização dos
meios econômicos, como um sistema de economia sem competição e
mercado, como coletivismo.
A teoria anarquista torna a forma e o conteúdo do “estado” tão
inseparáveis como a cara e a coroa de uma moeda: não há “governo”

174
A Tendência do Desenvolvimento do Estado

sem exploração! Ela iria, portanto, esmagar tanto a forma como o


conteúdo do estado, e então trazer uma condição de anarquia, mesmo
que deste modo todas as vantagens econômicas da divisão do trabalho
devam ser sacrificadas. Mesmo um grande pensador como o falecido
Ludwig Gumplowicz, que foi o primeiro a colocar a fundação na qual
a presente teoria do estado se desenvolveu, é um pessimista sociológico;
e pelas mesmas razões dos anarquistas, dos quais ele combatia tão
violentamente.
Ele também considera como eternamente inseparáveis a forma e
o conteúdo, o governo e a exploração de classes; entretanto, dado que
ele, e acho que está correto, não considera possível que muitas pessoas
talvez vivam juntas sem uma força coercitiva investida em um algum
governo, ele declara que a classe-estado é “imanente” e não apenas uma
categoria histórica.
Apenas uma pequena fração de liberais sociais, ou socialistas
liberais, acredita na evolução da sociedade sem o domínio de classe e
exploração de classe das quais devem garantir ao indivíduo, além de
política, a liberdade econômica do movimento, dentro das óbvias
limitações dos meios econômicos. Esse era o credo do velho liberalismo
social, dos dias pré-Manchester, enunciados por Quesnay e
especialmente por Adam Smith, e novamente levados para os tempos
modernos por Henry George e Theodore Hertzka.
Esse prognóstico pode ser fundamentado de duas maneiras, uma
delas através da história e da filosofia, a outra pela economia política,
como uma tendência do desenvolvimento do estado, e como uma
tendência da evolução da economia, os dois apontam claramente para
um mesmo ponto.
A tendência do desenvolvimento do estado foi mostrado
anteriormente como um vitorioso e firme combate entre os meios
econômicos contra os meios políticos. Vimos que, no início, o direito
aos meios econômicos, o direito à igualdade e à paz, era restringido à
um pequeno círculo de uma horda unida pelos seus laços sanguíneos,
um legado de condições pré-humanas da sociedade;172 enquanto fora

172
Cf. a excelente obra de Peter Kropotkin, Mutual Aid in its Development.

175
O Estado

dos limites dessa ilha da paz rugia o tufão dos meios políticos. Mas nós
vimos a expansão cada vez maior dos círculos dos quais as leis de paz
expulsavam seus adversários, e vimos em todos os lugares seu avanço
conectado com o avanço dos meios econômicos, do escambo de grupos
por equivalentes, entre si. A primeira troca talvez tenha sido a troca do
fogo, após isso a troca de mulheres, e finalmente a troca de bens, o
domínio da paz constantemente ampliando suas fronteiras. Ele protegia
os mercados, e então as estradas que levavam a eles, e finalmente
protegia os mercadores que viajavam por essas ruas.
No curso dessa discussão foi mostrado como o “estado” absorveu
e desenvolveu essas organizações para a paz, e como, em consequência,
elas retrocedem cada vez mais o direito com base no mero poder. A lei
dos mercadores se torna a lei da cidade; a cidade industrial, os meios
econômicos desenvolvidos, minam o estado feudal, os meios políticos
desenvolvidos; e finalmente a população cívica, em uma batalha aberta,
aniquila os remanescentes políticos do estado feudal, e reconquista para
toda a população do estado a liberdade e o direito à igualdade, a lei
urbana se torna lei pública e finalmente lei internacional.
Além disso, em nenhum horizonte pode ser avistada qualquer
força capaz de resistir efetivamente a essa tendência até agora eficiente.
Pelo contrário, a interferência do passado, que temporariamente
bloqueou esse processo, está obviamente se tornando cada vez mais
fraca. As relações internacionais de comércio e troca adquiriram entre
as nações uma preponderante importância sobre a diminuição das
relações bélicas e políticas; e na esfera intranacional, em razão do
mesmo processo de desenvolvimento econômico, o capital móvel, a
criação do direito à paz, prepondera cada vez mais sobre os direitos de
propriedade fundiária, a criação do direito de guerra. Ao mesmo tempo,
cada vez mais a superstição perde sua influência. E, portanto, justifica-
se concluir que a tendência assim marcada irá levar ao seu fim lógico,
a exclusão dos meios políticos e todas as suas obras, até que a completa
vitória dos meios econômicos seja atingida.
Mas pode-se objetar que no estado constitucional moderno todos
os resquícios mais proeminentes da antiga lei de guerra já foram
eliminados.

176
A Tendência do Desenvolvimento do Estado

Pelo contrário, sobrevive uma quantidade considerável de


remanescentes dessas instituições, disfarçadas, é verdade, em trajes
econômicos, e aparentemente não mais um privilégio legal, mas apenas
um direito econômico, a donidade de grandes propriedades — a
primeira criação e o último refúgio dos meios políticos. Seu disfarce
preservou-a do mesmo destino de todas as outras criações feudais. E
ainda, esse último remanescente do direito de guerra é indubitavelmente
o último obstáculo especial no caminho da humanidade; e sem dúvida
o desenvolvimento da economia está a caminho de destruí-la.
Para fundamentar essas observações eu tenho de referir o leitor a
outros livros, onde eu dei detalhada evidência do que está acima e que
não posso repeti-lo no espaço alocado aqui em extensão.173 Eu posso
apenas reafirmar os principais pontos feitos nesses livros.
Não há diferença em princípio entre a distribuição dos produtos
totais dos meios econômicos entre as separadas classes de um estado
constitucional, a chamada “distribuição capitalista", aquela
predominante no estado feudal.
Todas as escolas econômicas mais importantes coincidem em
achar que a causa disso, que a oferta de trabalhadores “livres” (isto é,
livre politicamente e economicamente sem capital, de acordo com Karl
Marx) excede perpetuamente a demanda, e que, portanto, existe “a
relação social do capital”. Há “constantemente dois trabalhadores
buscando um mestre por trabalho, e diminuindo, uns pelos outros, os
salários”; e, portanto, a “mais-valia” permanece com a classe
capitalista, enquanto o trabalhador nunca recebe a chance de formar
capital por si mesmo e se tornar um empregador.
De onde vem essa oferta excedente de trabalhadores livres?
A explicação da teoria “burguesa”, segundo a qual essa oferta
excedente é causada pela superprodução de filhos de pais proletários, é

173
Cf. F. Oppenheimer, Die Siedlungsgenossenschaft etc., Berlim, 1896, e seu
Grossgrundeigentum und soziale Frage, Berlim, 1898.

177
O Estado

baseada em uma falácia lógica, e é contradita por todos os fatos


conhecidos.174
A explicação da teoria proletária segundo a qual o processo
capitalista de produção por si só produz “trabalhadores livres”, por
configurar de novo e de novo novas máquinas de economia de mão de
obra, também é baseada numa falácia lógica e da mesma forma é
contradita por todos os fatos conhecidos.175
A evidência de todos os fatos mostra, e a conclusão pode ser
deduzida sem o medo de contradição, que o excesso de oferta de
“trabalhadores livres” é descendente do direito de possuir
propriedades fundiárias em grandes propriedades; e que a emigração
para as cidades e para o exterior a partir dessas propriedades fundiárias
são as causas da distribuição capitalista.
Sem dúvida, há uma tendência crescente no desenvolvimento
econômico pela qual a ruína das vastas propriedades fundiárias será
efetuada. O sistema é seu sangramento até a morte, sem esperança de
salvação, causada pela liberdade dos ex-servos — a consequência
necessária do desenvolvimento de cidades. Tão logo os camponeses
obtiveram o direito de se deslocar sem o passaporte dos senhores de
terra (Freizuegigkeit em alemão), desenvolveu-se a chance de escapar
dos países que antes os oprimiam. O sistema de emigração criou “a
competição do exterior” junto com a queda, no Continente, de preços
para produtos da fazenda, e fez necessários salários perpetuamente
crescentes. Por esses dois fatores o aluguel de terreno é reduzido por
dois lados, e deve gradualmente descer até o ponto zero, já que aqui
também não há força contrária a ser reconhecida por meio da qual o
processo possa ser desviado.176 Portanto, o sistema de vastas

174
Cf. F. Oppenheimer, Bevölkerungsgesetz des T. R. Malthus. Darstellung and
Kritik, Berlim-Bern, 1901.
175
Cf. F. Oppenheimer, Grundgesetz der Marxschen Gesellschaftslehre,
Darstellung und Kritik, Berlim, 1903.
176
Cf. F. Oppenheimer, Grundgesetz der Marxschen Gesellschaftslehre, Part IV.,
particularmente o capítulo doze: “Die Tendenz der kapitalistischen
Entwicklung.”

178
A Tendência do Desenvolvimento do Estado

propriedades territoriais cai por terra.177 Quando, no entanto, ele


desaparecer, não pode haver excesso de oferta de “trabalhadores livres”.
No contrário, "dois mestres irão correr atrás de um trabalhador e
eles devem aumentar o preço por si mesmos”. Não haverá “mais-valia”
para a classe capitalista, pois o trabalhador ele mesmo pode formar
capital e se tornar um empregador. Por este o último vestígio dos meios
políticos terá sido destruído, e apenas os meios econômicos exercerão
influência. O conteúdo de tal sociedade é a “economia pura”178 de troca
equivalente de commodities com commodities, ou de força de trabalho
com commodities, e a forma política dessa sociedade será a da
“cidadania de homens livres”.
Essa dedução teorética é, além disso, confirmada pela experiência
da história. Onde quer que tenha havido uma sociedade em que vastas
propriedades não existiam para que se obtivesse um aluguel crescente,
a “economia pura” existiu, e a sociedade aproximou a forma do estado
para aquela da “cidadania de homens livres”. Tal comunidade foi
achada na Alemanha nos quatro séculos179 por volta de 1000 d.C., onde
o sistema primitivo de propriedades vastas foi desenvolvido no domínio
socialmente inofensivo de territórios vastos, até cerca o ano de 1400,
quando as grandes propriedades recentemente surgidas, criadas pelos
meios políticos, as guerras dos ladrões nos países anteriormente
eslavos, expulsaram os colonos das terras a leste do Elba.180 Tal
comunidade era o estado mórmon de Utah, que não mudou muito nesse
aspecto, onde uma legislação sábia de terras permitia a posse apenas

177
Hoje, ao ler a prova da nova edição de 1929, esta profecia, impressa pela
primeira vez em 1896, é quase totalmente cumprida. A grande propriedade
fundiária russa desapareceu completamente; na Romênia, na Polônia, no sul da
Eslavinia e na Tchecoslováquia, ela foi massivamente reduzida; na Alemanha,
instalou-se uma crise em que, desta vez, a empobrecida Prússia não poderia
mais implorar, mesmo que quisesse.
178
Cf. F. Oppenheimer, Grossgrundeigentum und soziale Frage, Berlim, 1898.
Livro I, capítulo 2, seção 3, “Physiologie des sozialen Körpers”, pp. 57 et seq.
179
Cf. F. Oppenheimer, Grossgrundeigentum, livro II, capítulo 2, seç. 3, p. 322.
180
Cf. F. Oppenheimer, Grossgrundeigentum, livro II, capítulo 3, seç. 4,
especialmente pp. 423 et seq.

179
O Estado

fazendas de médio e pequeno porte.181 Tal comunidade seria encontrada


na cidade e condado de Vinlândia, Iowa, EUA,182 desde que cada colono
pudesse obter terra, sem o aumento do aluguel. Tal comunidade é, além
de todas as outras, a Nova Zelândia, cujo governo favorece com todas
as suas forças a posse de pequenas e médias propriedades de terra,
enquanto ao mesmo tempo dissolve e estreita, por todos os meios ao
seu alcance, as grandes propriedades fundiárias, que por sinal, por não
haver trabalhadores em excesso, são quase incapazes de produzir
aluguéis.183
Em todos esses casos há um surpreendente bem-estar equalizado,
talvez não mecanicamente igual; mas não há riqueza, pois o bem-estar
é o controle sobre os artigos de consumo, enquanto a riqueza é o
domínio da raça humana. Em nenhum desses casos os meios de
produção, “capital”, produzindo nenhuma mais-valia; não há
trabalhadores “livres” e não há “relação de capital”,184 e a forma política
dessas comunidades se aproxima muito de uma “cidadania de homens
livres” e tende a se aproximar dela cada vez mais, na medida em que a
pressão dos estados vizinhos, organizados e baseados nas leis da guerra,
permite seu desenvolvimento.
O “estado” se decompõe ou então gera países novos como Utah e
a Nova Zelândia, retorna a um estágio rudimentar de desenvolvimento;
enquanto a livre autodeterminação dos homens livres, adquirida com
dificuldade com uma luta de classes que constantemente tende a
penetrar mais fundo e mais profundamente. Portanto, no Império
Alemão havia um desenvolvimento paralelo entre a ascensão política
das uniões das cidades livres imperiais, o declínio dos estados feudais,
a emancipação dos ofícios, então ainda compreendendo toda a “plebe”

181
Cf. F. Oppenheimer, “Die Utopie als Tatsache”, Zeitschrift für Sozial-
Wissenschaft, 1899, vol. II, pp. 190 et seq. Reimpresso na coleção de meus
discursos e ensaios: Wege zur Gemeinschaft, Jena 1924.
182
Cf. F. Oppenheimer, Siedlungsgenossenschaft, pp. 477 et seq.
183
Cf. André Siegfried, La démocratie en Nouvelle Zelande, Paris, 1904.
184
Isso é dito por ninguém menos que o próprio Karl Marx, no último (25º)
capítulo do primeiro volume de seu Kapital, cujo estudo cuidadoso não pode
ser recomendado o suficiente a todos os marxistas, especialmente aos líderes
dos sovietes russos.

180
A Tendência do Desenvolvimento do Estado

das cidades, e o declínio do controle patrício do governo da cidade. Esse


desenvolvimento beneficente foi interrompido pelo surgimento de
novos estados feudais primitivos na fronteira oriental do antigo Império
Alemão, e, portanto, o florescimento econômico da cultura alemã foi
arruinado.
Quem quer que acredite em um propósito consciente na história
pode dizer que a raça humana precisava passar por outro ensino de
sofrimento antes que pudesse ser redimida. A Idade Média havia
descoberto o sistema de trabalho livre, mas não havia o desenvolvido
até sua capacidade ou eficiência máxima. Ela seria reservada para a
nova escravidão do capitalismo para descobrir e desenvolver o
incomparavelmente mais eficiente sistema de trabalho cooperativo, a
divisão de trabalho nas oficinas, a fim de coroar o homem como o
governante das forças naturais, como rei do planeta.
A escravidão da antiguidade e do capitalismo moderno já foi
necessária; agora se tornou supérflua. De acordo com a história, todo
cidadão livre de Atena tinha cinco escravos humanos; mas nós temos
oferecido aos nossos concidadãos da sociedade moderna uma vasta
massa de poder escravizado, escravos de aço, que não sofrem na criação
de valores. Desde então, amadurecemos em direção a uma civilização
tão superior à civilização do tempo de Péricles, quanto a população, o
poder e as riquezas de comunidades modernas excedem aquelas do
pequeno estado de Ática.
Atenas estava condenada à dissolução — pela razão de usar a
escravidão como uma instituição econômica, por causa dos meios
políticos. Tendo entrado uma vez nesse caminho, não havia outra saída
a não ser a morte para a população. Nosso caminho levará à vida.
A mesma conclusão foi encontrada pela visão histórico-filosófica,
que levava em conta a tendência de desenvolvimento do estado, ou o
estudo da economia política, que levam em conta a tendência do
desenvolvimento econômico; isto é, que os meios econômicos vencem
ao longo de todo o decurso, enquanto os meios políticos desaparecem
da vida de sociedade, naquela de suas criações, que é a mais antiga e
mais tenaz da vida; o capitalismo decai com grandes latifúndios e
arrendamentos de terra.

181
O Estado

Esse foi o caminho de sofrimento e salvação da humanidade, sua


Golgotha e ressurreição ao reino eterno — da guerra à paz, da divisão
hostil de hordas para a unidade pacífica da humanidade, da brutalidade
à humanidade, do Estado Ladrão para a Cidadania de Homens Livres.

182
183

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