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Os Espelhos dos Príncipes, ou Espelhos dos Reis – em latim, Specula Principum ou Specula Regum –
constituíram um gênero literário e pedagógico muito frequente ao longo de toda a Idade Média, desde o
século VI, com o mais antigo de que se tem notícia, até à passagem do século XV para o século XVI,
quando deixaram de ser produzidos porque entrou em voga outro modelo de Príncipe, o modelo
renascentista e neopaganizado de Maquiavel. Santo Isidoro de Sevilha (sécs. VI-VII), explicou, nas
Etimologias, que a origem da palavra REI está ligada à retidão e à virtude. Etimologicamente, são
cognatos o substantivo REX (rei), o verbo REGERE (reger ou reinar) e o advérbio RECTE (retamente). O
rei é quem rege e rege retamente. O rei que não rege verdadeiramente, não é rei. E o rei que não rege
retamente, não é um bom rei. Em outras palavras, não é rei no sentido pleno. Na própria etimologia da
palavra REI está, pois, contido um elemento moralizante e ético. Esse ensinamento de Santo Isidoro
estava no substrato dos Specula. Segundo Jacques Le Goff, que resume o pensamento de Santo Isidoro,
não basta ao rei possuir todo o poder, ele deverá também possuir e ser exemplo de todas as virtudes para
seu povo. Em outros termos, não basta ao rei ter herdado ou conquistado uma coroa, ele somente
legitimará plenamente seu poder se for virtuoso e colocar sua virtude ao serviço do seu povo. (cfr. LE
GOFF, J. Uma longa Idade Média. Rio de Janeiro: Ed. Civilização Brasileira, 2008, p. 223). Sobre o
gênero literário dos Specula, ver SANTOS, A. A. dos. Parlamentarismo, sim, mas à brasileira. São
Paulo: Artpress, 2015, p. 382-387.
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SANTO TOMÁS DE AQUINO, El Régimen Político [De regimine Principum], 75. O bom governante,
ensina em outra obra o mesmo Tomás, comentando a Política de Aristóteles, é necessariamente virtuoso:
"Não se é bom príncipe se não se é moralmente bom e prudente" (Com. In: III Polit., lec. 3, n. 369); e
acrescenta, na Suma Teológica: "É impossível que o bem comum da nação vá bem se os cidadãos não são
virtuosos, ao menos aqueles a quem compete mandar." (I-IIae, q.92, a.1.) Ver, a respeito, MARTÍNEZ
BARRERA, Jorge. A Política em Aristóteles e Santo Tomás. Rio de Janeiro: Sétimo Selo, 2007.
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BRUYNE, Edgar de. A Estética da Idade Média. Porto: Caminhos Romanos, 2016; GILSON, Étienne.
Introdução às Artes do Belo: o que é filosofar sobre a Arte? São Paulo: É Realizações, 2010. Ver
especialmente o capítulo VIII (As Artes e o Sagrado), p. 149-164.
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No início do século XIX, no contexto do Romantismo, retornaram o interesse e o gosto pelo passado
medieval. De certa forma, a Idade Média voltou a estar no foco das atenções. Começaram a proliferar
romances como os do escocês Walter Scott (1771-1832), ambientados no Medievo. Na Música e na
Arquitetura também se notou, no século XIX, uma revalorização dos temas e padrões medievais.
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Igualmente na Historiografia a Idade Média voltou a estar presente; os estudos medievais, que estavam
praticamente abandonados havia séculos, voltaram com novo ímpeto.
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Jacques Le Goff sustenta, em vários livros de sua copiosa produção bibliográfica, a tese de que aquilo
que chamamos “o Renascimento” foi, na realidade, apenas “um Renascimento”, ou melhor, o terceiro dos
Renascimentos. Para ele, o primeiro Renascimento foi o carolíngio, na passagem do século VIII para o
IX; o segundo foi o escolástico, dos fins do século XII até o fim do XIII; e o terceiro foi aquele
geralmente designado como tal, ou seja, nos séculos XIV-XVI. O renascimento carolíngio não foi apenas
cultural, mas teve reflexos diretos na melhoria das condições de trabalho e de vida.
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Ver, a respeito: GIMPEL, Jean. A Revolução Industrial da Idade Média. Rio de Janeiro: Zahar Editores,
1977; FRUGONI, Chiara. Invenções da Idade Média. Rio de Janeiro: Zahar, 2001; VV. AA. A Ciência na
Idade Média – um surpreendente panorama da extraordinária riqueza da produção científica medieval.
Scientific American História. Dossier Especial História número 1, São Paulo, s/d.
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retornaram com pleno vigor e no seu máximo rigor? Basta lembrar, a propósito, que foi
nos séculos XV e XVI que retomou nova força a chaga da escravidão, que na Idade
Média estava praticamente extinta na Cristandade europeia; que se acentuou a
discriminação contra as mulheres, impedidas de frequentar universidades e praticar
livremente a medicina; e se passou a justificar a usura, do que decorreria o surgimento
(ou pelo menos a incrementação) do capitalismo, com todos os desvios e abusos que ele
ensejou.7
No que constituiu, essencialmente, a transição da Idade Média para a
Renascença? No pensamento do francês Étienne Gilson (1884-1978), que analisou essa
transição mais especificamente na ótica da filosofia, a grande diferença entre ambas as
épocas se deu não por adição, mas por subtração. Segundo ele, a Renascença não foi,
como muitos imaginam, uma Idade Média à qual se acrescentou o homem, elemento
novo, elemento central no humanismo dominante a partir de certa altura do século XIV.
Mas foi a Idade Média menos Deus. De fato, na entronização do homem, como centro e
referencial de todas as coisas, ocorreu um imenso distanciamento da visão teocêntrica
medieval. E, observa Gilson, pelo simples fato de se afastar Deus do centro do
panorama, o que ocorreu é que o próprio homem perdeu sua posição no universo,
porque perdeu a base ontológica e lógica da sua dignidade.8
Uma análise descritiva ampla, dessa passagem, abordando aspectos que hoje em
dia se chamaria de história de mentalidades, foi a que fez o brasileiro Plinio Corrêa de
Oliveira (1908-1995). Segundo ele, no século XV se acentuou uma profunda
transformação de mentalidades que já tivera início no século anterior. Nessa
transformação teve grande papel o apetite dos prazeres, que cresceu a ponto de se
transformar em ânsia insaciável. A cavalaria, outrora alta expressão da austeridade e do
espírito de sacrifício medievais, transformou-se em amorosa e sentimental. E, em meio
aos excessos de um luxo que invadia as camadas mais elevadas da sociedade, foi-se
criando uma mentalidade nova, interesseira, calculista, mercantilista, a qual constituiria
o caldo de cultura no qual estava sendo gestado o mundo novo que fazia entrada no
panorama da História.9
Gilson analisa a transição como passagem do teocentrismo medieval para o
humanismo renascentista. Na sua ótica, a colocação do homem como centro representou
uma negação de Deus e foi causa de tudo o que veio depois. Esse o grande “pecado
original” dos tempos modernos. Já Corrêa de Oliveira mostra a passagem da austeridade
e do equilíbrio medievais atingidos por uma mentalidade nova, com uma “explosão de
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A historiadora Régine Pernoud baseada em extensa pesquisa que fez em fontes primárias de arquivos
franceses, sustenta que nos séculos XIV e XV, por influência dos padrões clássicos greco-romanos
impostos pela mentalidade que então fazia entrada no cenário europeu, o papel da mulher se tornou muito
menos marcado, na sociedade, do que no século XIII. (PERNOUD, Régine. La Femme au temps des
Croisades. Paris: Éditions Stock, 1980) Ver, a respeito, COSTA, Ricardo da; SANTOS, A. A. dos. A
imagem da mulher medieval em O Sonho (1399) e Curial e Guelfa (c. 1460). eHumanista/IVITRA, v. 5,
p. 424-442, 2014; e SANTOS, A. A. dos. A condição da mulher na Idade Média. A Tribuna Piracicabana,
Piracicaba SP, p. 2, 26/out/2013. Ver também ALEXANDRE DOS SANTOS, ARMANDO. Misoginia e
exaltação da mulher em obras literárias clássicas da Coroa de Aragão. Scripta, v. 17, p. 1-15, 2021.
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L’humanisme médiéval et la Renaissance, in: Les idées et les lettres. Paris: Vrin, 1932. Ver também, do
mesmo autor, La Philosophie au Moyen Âge. Paris: Payot, 1976, vol. 2, p. 720-754. No mesmo sentido de
crítica filosófica à Renascença também se exprimiu o Cardeal Zeferino González y Díaz Tuñón,
Arcebispo de Sevilha, em sua Histoire de la Philosophie (Paris: P. Lethielleux Libraire-Éditeur, 1891,
vol. III, p. 1-6).
9
Revolução e Contra-Revolução, Campos: Boa Imprensa, 1959, p. 18-20.
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Op. cit., p. 12.
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Idem, p. 12-13 e 22-27. O livro Revolução e Contra-Revolução, publicado inicialmente em 1959, foi
duas vezes atualizado pelo autor: em 1976 e, já depois da queda do império soviético, em 1992. A última
versão do livro pode ser encontrada na sua 4ª. edição (São Paulo: Artpress, 1998).
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“Marc Bloch esboça sua história e designa seu momento decisivo, o século XVII: (...) Eis as datas de
nascimento dos três grandes nomes da crítica histórica: o jesuíta Paper-broeck, fundador da hagiografia
científica e da congregação dos bollandistas, nascido em 1628; dom Mabillon, o beneditino de Saint-
Maur, fundador da diplomática, nascido em 1632; Richard Simon, o oratoriano que marca os primórdios
da exegese bíblica crítica, nascido em 1638.” (do prefácio de Jacques Le Goff a BLOCH, Marc. Apologia
da História ou O Ofício do Historiador. Tradução de André Telles. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Editor,
2001, p. 28)
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Nas palavras de Bloch, “a Doação de Constantino – essa espantosa elucubração que um clérigo romano
do século VIII assinou sob o nome do primeiro César cristão – foi, três séculos mais tarde, contestada nos
círculos do mui pio imperador Oto III.” (op. cit., p. 89).
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mesmo rigor e a mesma margem de certeza das ciências exatas ou experimentais. Marc
Bloch mais tarde exprimiria bem a mentalidade que presidia a essa escola
historiográfica:
As gerações que vieram logo antes da nossa, nas últimas décadas do século
XIX e até os primeiros anos do XX, viveram como alucinadas por uma
imagem muito rígida, uma imagem verdadeiramente comtiana das ciências
do mundo físico. Ao estender ao conjunto das aquisições do espírito esse
prestigioso esquema, parecia-lhes então não existir conhecimento autêntico
que não devesse desembocar em demonstrações incontinenti irrefutáveis, em
certezas formuladas sob o aspecto de leis imperiosamente universais. Esta era
uma opinião praticamente unânime. (BLOCH, Marc. Apologia da História
ou O Ofício do Historiador. Tradução de André Telles. Rio de Janeiro, Jorge
Zahar Editor, 2001, p. 47)
Dica do professor: