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7) Séculos XVIII e XIX: Historicismo, Iluminismo, Positivismo e


Marxismo

Tópico A – Historicismo, Iluminismo e Positivismo

A visão cristã da História, que estudamos na aula anterior, foi a que, de um


modo geral, compartilharam os historiadores no Medievo europeu. Desde Santo
Agostinho, que viveu no período da chamada Antiguidade Tardia, mais precisamente
entre 354 e 430, até o momento não muito preciso em que se deu a transição da Idade
Média para a Idade Moderna, foi essa a visão historiográfica que prevaleceu.
Na nossa perspectiva atual, seja qual for a orientação da linha teórica que
adotemos, não resta dúvida de que a passagem da Idade Média para a Modernidade
constituiu uma ruptura muito profunda, uma imensa transformação criteriológica, uma
profunda mudança axiológica na ordenação dos valores, que teve implicações em todos
os campos da vida humana, na cultura, na política, na economia, na vida social.
Na Idade Média prevalecia o teocentrismo. Deus era o Alfa e o Ômega, o
princípio e o fim da História humana e era, ao mesmo tempo, o centro de tudo. Por
princípio, tudo se ordenava para Deus e se relacionava com o Divino como a seu fim
último – embora na prática, na ordem concreta das realizações humanas, muitas vezes
esse ideal não fosse nem de longe atingido. O ideal visado para o governo dos povos era
o fixado nos specula regum e nos specula principum,1 ou seja, o bem comum, não
apenas nesta Terra, mas em ordem à felicidade eterna no Paraíso.2 Em todos os campos
das atividades humanas, econômicos, culturais, artísticos, em princípio era esse o ideal

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Os Espelhos dos Príncipes, ou Espelhos dos Reis – em latim, Specula Principum ou Specula Regum –
constituíram um gênero literário e pedagógico muito frequente ao longo de toda a Idade Média, desde o
século VI, com o mais antigo de que se tem notícia, até à passagem do século XV para o século XVI,
quando deixaram de ser produzidos porque entrou em voga outro modelo de Príncipe, o modelo
renascentista e neopaganizado de Maquiavel. Santo Isidoro de Sevilha (sécs. VI-VII), explicou, nas
Etimologias, que a origem da palavra REI está ligada à retidão e à virtude. Etimologicamente, são
cognatos o substantivo REX (rei), o verbo REGERE (reger ou reinar) e o advérbio RECTE (retamente). O
rei é quem rege e rege retamente. O rei que não rege verdadeiramente, não é rei. E o rei que não rege
retamente, não é um bom rei. Em outras palavras, não é rei no sentido pleno. Na própria etimologia da
palavra REI está, pois, contido um elemento moralizante e ético. Esse ensinamento de Santo Isidoro
estava no substrato dos Specula. Segundo Jacques Le Goff, que resume o pensamento de Santo Isidoro,
não basta ao rei possuir todo o poder, ele deverá também possuir e ser exemplo de todas as virtudes para
seu povo. Em outros termos, não basta ao rei ter herdado ou conquistado uma coroa, ele somente
legitimará plenamente seu poder se for virtuoso e colocar sua virtude ao serviço do seu povo. (cfr. LE
GOFF, J. Uma longa Idade Média. Rio de Janeiro: Ed. Civilização Brasileira, 2008, p. 223). Sobre o
gênero literário dos Specula, ver SANTOS, A. A. dos. Parlamentarismo, sim, mas à brasileira. São
Paulo: Artpress, 2015, p. 382-387.
2
SANTO TOMÁS DE AQUINO, El Régimen Político [De regimine Principum], 75. O bom governante,
ensina em outra obra o mesmo Tomás, comentando a Política de Aristóteles, é necessariamente virtuoso:
"Não se é bom príncipe se não se é moralmente bom e prudente" (Com. In: III Polit., lec. 3, n. 369); e
acrescenta, na Suma Teológica: "É impossível que o bem comum da nação vá bem se os cidadãos não são
virtuosos, ao menos aqueles a quem compete mandar." (I-IIae, q.92, a.1.) Ver, a respeito, MARTÍNEZ
BARRERA, Jorge. A Política em Aristóteles e Santo Tomás. Rio de Janeiro: Sétimo Selo, 2007.
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que deveria prevalecer. A arte medieval não somente focalizava preferencialmente


temas religiosos, mas também entendia a si própria como a expressão da Beleza, e
entendia a Deus como sendo a suma Beleza, o inspirador, o parâmetro e a Causa Final
de todas as artes humanas.3
Com o Renascimento, o critério de valores mudou radicalmente e Deus deixou
de ser o centro de tudo. Não se propôs o ateísmo, propôs-se simplesmente um
deslocamento do papel de Deus. O Homem ocupou seu lugar. O antropocentrismo
tomou a dianteira sobre o teocentrismo. Dessa mudança, as consequências eram
inevitáveis, nos mais variados campos. Na Política, por exemplo, ao modelo especular
de Príncipe cristão devotado ao bem comum de seu povo, sucedeu o modelo do Príncipe
de Maquiavel, cuja meta não mais era assegurar o bem comum da sociedade, mas
garantir sua permanência no poder de qualquer modo, não mais sujeito a uma ordenação
moral, mas liberado dessa obrigação e tendo em vista única e exclusivamente o seu
próprio bem individual.
A essa mudança axiológica profunda, até mesmo a arte foi sensível. Ela deixou
de ser a expressão da beleza suprema e passou a exprimir belezas humanas,
proporcionadas aos limites do homem. A representação do maravilhoso e do sublime do
Paraíso e de uma Terra concebida como reflexo e imitação do mundo paradisíaco até
então tinha sido o objetivo dos artistas medievais. Tal objetivo cedeu o passo a outro, o
da busca das perfeições clássicas, dos modelos humanos consagrados pela Antiguidade.
Revalorizou-se a arte antiga, revalorizou-se, paralelamente, o Direito Romano, tendeu-
se a desprezar a Idade Média e a influência da Igreja Católica.
Do ponto de vista técnico, as artes tiveram grandes progressos no Renascimento.
Técnicas novas foram desenvolvidas, obras-primas foram realizadas. Mas, como
acontece em toda mudança, houve também perdas notáveis. Foram desprezados e
sacrificados numerosos elementos artísticos medievais, que só muito depois, já no
século XIX, voltaram a ser valorizados. A estatuária medieval, que era
predominantemente policromada, em muitos lugares teve as tintas raspadas, para que a
estátua aparecesse monocromática, em sua pura forma, apenas para corresponder aos
padrões de Antiguidade clássica.
Durante um longo período, desde o século XV até o limiar do século XIX, a
Idade Média foi objeto de um desprezo generalizado. Foram-lhe atribuídos epítetos
como The Dark Age, a Idade das Trevas, a Longa noite de mil anos. A própria
designação Idade Média continha um juízo de valor depreciativo, já que se entendia
como uma interrupção temporária de duas eras de grande esplendor, a Antiguidade
clássica e a Modernidade. Durante séculos, a Europa sentiu vergonha de seu passado
medieval, que lhe parecia bárbaro e inculto. Até o estilo gótico era entendido
pejorativamente como algo bárbaro, algo próprio aos godos. Somente no início do
século XIX a Idade Média voltou a ser revalorizada na Europa e teve início um longo
processo reabilitatório que se estende até nossos dias.4

3
BRUYNE, Edgar de. A Estética da Idade Média. Porto: Caminhos Romanos, 2016; GILSON, Étienne.
Introdução às Artes do Belo: o que é filosofar sobre a Arte? São Paulo: É Realizações, 2010. Ver
especialmente o capítulo VIII (As Artes e o Sagrado), p. 149-164.
4
No início do século XIX, no contexto do Romantismo, retornaram o interesse e o gosto pelo passado
medieval. De certa forma, a Idade Média voltou a estar no foco das atenções. Começaram a proliferar
romances como os do escocês Walter Scott (1771-1832), ambientados no Medievo. Na Música e na
Arquitetura também se notou, no século XIX, uma revalorização dos temas e padrões medievais.
3

À vista disso, algumas perguntas se impõem: o Renascimento, tal como de fato


ocorreu – ou seja, rompendo antiteticamente (e quase dialeticamente) com o passado
medieval próximo e procurando “ressuscitar” uma Antiguidade clássica que, na
verdade, nunca tinha morrido inteiramente, mas se conservara na cultura ocidental,
preservada nas bibliotecas dos mosteiros, nos escritos dos grandes pensadores e
filósofos, nas instituições universitárias – terá realmente representado um fator benéfico
para a História da Humanidade?
Após o período trágico de meados do século XIV até meados do século XV
(marcado pela Peste Negra, pela Guerra dos Cem Anos, pela queda do Império Romano
do Oriente, pelo recrudescer do perigo maometano), não teria sido mais vantajoso um
retorno aos padrões que haviam presidido ao progresso cultural, científico e artístico
verificado no século XIII, que foi precisamente o século da consolidação das grandes
universidades europeias? Nesse caso, o desabrochar extraordinário de potencialidades e
virtualidades demonstrado pela Velha Europa durante o Ciclo das Navegações, nos
séculos XV e XVI, não poderia ter-se inserido na linha da continuidade e não da ruptura
com o Medievo?
Se em lugar da ruptura com a visão teocêntrica medieval tivesse havido um
progresso e uma abertura ainda maior da mesma visão humanístico-cristã, não poderia
ter ocorrido um Renascimento completamente diferente daquele que ocorreu? Não
poderia ter-se produzido, nos séculos XIV e XV, um renascimento similar ao
renascimento carolíngio, ocorrido na passagem do século VIII para o IX? Ou similar ao
renascimento escolástico, dos fins do século XII até o fim do XIII?5
Tanto nas escolas carolíngias dirigidas por Santo Alcuíno de York (c. 740-804)
como nas universidades do século XIII, os clássicos greco-romanos, tantos séculos
conservados nos mosteiros, foram estudados e revalorizados com afinco, deles se
extraindo os tesouros da sabedoria dos antigos, enriquecidos pelo Cristianismo e pela
longa experiência dos séculos – mas sempre num sentido de continuidade e não de
ruptura.
Sem querer entrar em divagações pelo campo escorregadio e controvertido da
História Contra-Factual, pode-se perguntar: – Se o “terceiro Renascimento” tivesse
ocorrido no sentido de continuidade com os dois primeiros, não poderia ter havido um
desenvolvimento tecnológico e científico extraordinário (já notado de modo claro no
século XIII),6 assim como um aprimoramento artístico e cultural muito grande, sem que
os excessos do velho paganismo recobrassem vida e adquirissem força nova? Por
exemplo, sem o retorno das excessivamente rígidas, patriarcais e patrimonialísticas
normas do Direito Romano que mil anos de Cristianismo haviam suavizado, e que

Igualmente na Historiografia a Idade Média voltou a estar presente; os estudos medievais, que estavam
praticamente abandonados havia séculos, voltaram com novo ímpeto.
5
Jacques Le Goff sustenta, em vários livros de sua copiosa produção bibliográfica, a tese de que aquilo
que chamamos “o Renascimento” foi, na realidade, apenas “um Renascimento”, ou melhor, o terceiro dos
Renascimentos. Para ele, o primeiro Renascimento foi o carolíngio, na passagem do século VIII para o
IX; o segundo foi o escolástico, dos fins do século XII até o fim do XIII; e o terceiro foi aquele
geralmente designado como tal, ou seja, nos séculos XIV-XVI. O renascimento carolíngio não foi apenas
cultural, mas teve reflexos diretos na melhoria das condições de trabalho e de vida.
6
Ver, a respeito: GIMPEL, Jean. A Revolução Industrial da Idade Média. Rio de Janeiro: Zahar Editores,
1977; FRUGONI, Chiara. Invenções da Idade Média. Rio de Janeiro: Zahar, 2001; VV. AA. A Ciência na
Idade Média – um surpreendente panorama da extraordinária riqueza da produção científica medieval.
Scientific American História. Dossier Especial História número 1, São Paulo, s/d.
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retornaram com pleno vigor e no seu máximo rigor? Basta lembrar, a propósito, que foi
nos séculos XV e XVI que retomou nova força a chaga da escravidão, que na Idade
Média estava praticamente extinta na Cristandade europeia; que se acentuou a
discriminação contra as mulheres, impedidas de frequentar universidades e praticar
livremente a medicina; e se passou a justificar a usura, do que decorreria o surgimento
(ou pelo menos a incrementação) do capitalismo, com todos os desvios e abusos que ele
ensejou.7
No que constituiu, essencialmente, a transição da Idade Média para a
Renascença? No pensamento do francês Étienne Gilson (1884-1978), que analisou essa
transição mais especificamente na ótica da filosofia, a grande diferença entre ambas as
épocas se deu não por adição, mas por subtração. Segundo ele, a Renascença não foi,
como muitos imaginam, uma Idade Média à qual se acrescentou o homem, elemento
novo, elemento central no humanismo dominante a partir de certa altura do século XIV.
Mas foi a Idade Média menos Deus. De fato, na entronização do homem, como centro e
referencial de todas as coisas, ocorreu um imenso distanciamento da visão teocêntrica
medieval. E, observa Gilson, pelo simples fato de se afastar Deus do centro do
panorama, o que ocorreu é que o próprio homem perdeu sua posição no universo,
porque perdeu a base ontológica e lógica da sua dignidade.8
Uma análise descritiva ampla, dessa passagem, abordando aspectos que hoje em
dia se chamaria de história de mentalidades, foi a que fez o brasileiro Plinio Corrêa de
Oliveira (1908-1995). Segundo ele, no século XV se acentuou uma profunda
transformação de mentalidades que já tivera início no século anterior. Nessa
transformação teve grande papel o apetite dos prazeres, que cresceu a ponto de se
transformar em ânsia insaciável. A cavalaria, outrora alta expressão da austeridade e do
espírito de sacrifício medievais, transformou-se em amorosa e sentimental. E, em meio
aos excessos de um luxo que invadia as camadas mais elevadas da sociedade, foi-se
criando uma mentalidade nova, interesseira, calculista, mercantilista, a qual constituiria
o caldo de cultura no qual estava sendo gestado o mundo novo que fazia entrada no
panorama da História.9
Gilson analisa a transição como passagem do teocentrismo medieval para o
humanismo renascentista. Na sua ótica, a colocação do homem como centro representou
uma negação de Deus e foi causa de tudo o que veio depois. Esse o grande “pecado
original” dos tempos modernos. Já Corrêa de Oliveira mostra a passagem da austeridade
e do equilíbrio medievais atingidos por uma mentalidade nova, com uma “explosão de

7
A historiadora Régine Pernoud baseada em extensa pesquisa que fez em fontes primárias de arquivos
franceses, sustenta que nos séculos XIV e XV, por influência dos padrões clássicos greco-romanos
impostos pela mentalidade que então fazia entrada no cenário europeu, o papel da mulher se tornou muito
menos marcado, na sociedade, do que no século XIII. (PERNOUD, Régine. La Femme au temps des
Croisades. Paris: Éditions Stock, 1980) Ver, a respeito, COSTA, Ricardo da; SANTOS, A. A. dos. A
imagem da mulher medieval em O Sonho (1399) e Curial e Guelfa (c. 1460). eHumanista/IVITRA, v. 5,
p. 424-442, 2014; e SANTOS, A. A. dos. A condição da mulher na Idade Média. A Tribuna Piracicabana,
Piracicaba SP, p. 2, 26/out/2013. Ver também ALEXANDRE DOS SANTOS, ARMANDO. Misoginia e
exaltação da mulher em obras literárias clássicas da Coroa de Aragão. Scripta, v. 17, p. 1-15, 2021.
8
L’humanisme médiéval et la Renaissance, in: Les idées et les lettres. Paris: Vrin, 1932. Ver também, do
mesmo autor, La Philosophie au Moyen Âge. Paris: Payot, 1976, vol. 2, p. 720-754. No mesmo sentido de
crítica filosófica à Renascença também se exprimiu o Cardeal Zeferino González y Díaz Tuñón,
Arcebispo de Sevilha, em sua Histoire de la Philosophie (Paris: P. Lethielleux Libraire-Éditeur, 1891,
vol. III, p. 1-6).
9
Revolução e Contra-Revolução, Campos: Boa Imprensa, 1959, p. 18-20.
5

orgulho e sensualidade”,10 dando início a uma imensa transformação no interior das


pessoas, que desencadearia o processo revolucionário, iniciado com a decadência da
Idade Média e, depois de percorrer diversas etapas – Reforma protestante, Revolução
Francesa e Comunismo –, chega ao clímax nos tempos atuais, em que, após a queda da
União Soviética o movimento comunista internacional metamorfoseou-se e assumiu
novos avatares.11

Assim como no campo artístico, também no historiográfico o Renascimento


ocasionou alguns progressos pontuais, a par de perdas notáveis. Entre os pontos
positivos, cabe destacar um maior rigor documental, no exame e na crítica das fontes,
rigor esse que se acentuaria nos séculos seguintes, chegando a uma sistematização mais
completa no século XVII.

O verdadeiro progresso veio no dia em que a dúvida tornou-se, como dizia


Volney, "examinadora"; em que regras objetivas em outros termos foram
pouco a pouco elaboradas, as quais, entre a mentira e a verdade, permitem
uma triagem. O jesuíta von Paperbroeck, ao qual a leitura das Vidas dos
santos inspirara uma incoercível desconfiança em relação à herança da Alta
Idade Média inteira, considerava falsos todos os diplomas merovíngios
preservados nos mosteiros. Não, responde em substância Mabillon; existem,
incontestavelmente, diplomas inteiramente forjados, remanejados ou
interpolados; há também os autênticos; e eis como é possível distinguir uns
dos outros. Nesse ano – 1681 – ano da publicação do De re diplomatica, uma
grande data, na verdade, na história do espírito humano – a crítica de
documentos foi definitivamente fundada. Esse foi certamente aliás, de todo
modo, o momento decisivo na história do método crítico. O humanismo do
período precedente tivera suas veleidades e suas intuições. Não havia ido
mais longe. (...) A doutrina de pesquisa foi elaborada apenas ao longo do
século XVII, século cuja verdadeira grandeza não colocamos onde
deveríamos, e, sobretudo, por volta de sua segunda metade. (BLOCH, Marc.
Apologia da História ou O Ofício do Historiador. Tradução de André Telles.
Rio de Janeiro, Jorge Zahar Editor, 2001, p. 90-91)

Marc Bloch considera o beneditino Dom Jean Mabillon (1632-1707) o


verdadeiro fundador e sistematizador da crítica documental, com a publicação, em 1681,
do seu livro De re diplomatica. Mas Jacques Le Goff, na introdução à obra de Bloch,
destaca outros eclesiásticos que, no mesmo século XVII também tiveram importante
papel para o desenvolvimento da crítica historiográfica.12
Costuma-se exagerar, em matéria de crítica documental, a importância da
comprovação, efetuada no século XV por Lorenzo Valla (1407-1457), da falsidade do
famoso documento conhecido como Donatio Constantini, um pergaminho apócrifo

10
Op. cit., p. 12.
11
Idem, p. 12-13 e 22-27. O livro Revolução e Contra-Revolução, publicado inicialmente em 1959, foi
duas vezes atualizado pelo autor: em 1976 e, já depois da queda do império soviético, em 1992. A última
versão do livro pode ser encontrada na sua 4ª. edição (São Paulo: Artpress, 1998).
12
“Marc Bloch esboça sua história e designa seu momento decisivo, o século XVII: (...) Eis as datas de
nascimento dos três grandes nomes da crítica histórica: o jesuíta Paper-broeck, fundador da hagiografia
científica e da congregação dos bollandistas, nascido em 1628; dom Mabillon, o beneditino de Saint-
Maur, fundador da diplomática, nascido em 1632; Richard Simon, o oratoriano que marca os primórdios
da exegese bíblica crítica, nascido em 1638.” (do prefácio de Jacques Le Goff a BLOCH, Marc. Apologia
da História ou O Ofício do Historiador. Tradução de André Telles. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Editor,
2001, p. 28)
6

atribuído ao Imperador Constantino que, no século IV teria efetuado uma doação de um


patrimônio imobiliário ao Papa São Silvestre I. Esse pergaminho, que apareceu somente
no final do primeiro milênio, já vinha tendo sua validade contestada desde muito antes
de Valla ter, a serviço do rei Afonso V de Aragão, demonstrado filologicamente que não
podia ter sido escrito no século em que viveu Constantino.13

* * *

Depois de termos exposto a visão cristã da História, tema da 6ª. Unidade, e de


termos neste primeiro tópico da 7ª. Unidade compreendido a transição – de importância
transcendental – do teocentrismo medieval para o antropocentrismo renascentista,
precisaremos saltar para o século XIX, bem mais próximo de nós. Nele – e
especialmente no marxismo, que tanto influenciou e continua a influenciar a
historiografia brasileira – precisaremos concentrar nossa atenção.
Devido à limitação da carga horária de nossa disciplina, não será possível expor,
e menos ainda aprofundar toda a historiografia desde o Renascimento até o século XIX.
É nossa intenção, posteriormente, em cursos de extensão a serem disponibilizados no
portal do Centro Universitário Ítalo-brasileiro, expor em pormenores os historiadores
que se destacaram nesse período, analisando as linhas teóricas e suas obras principais.
Desde já, porém, e de modo muito resumido, podemos dizer que se estabeleceu
nesse período a tendência geral para a procura de um sentido e de um rumo previsível
para a História e até mesmo, em alguma medida, para a elaboração de uma Filosofia da
História baseada na razão humana, mais do que na fé ou em elementos da Revelação.
Não era uma historiografia ateia, como a que se firmaria no século XIX com o
positivismo e o marxismo. Mas era uma historiografia que tendia cada vez mais a se
desvincular de elementos religiosos e sobrenaturais e foi pouco a pouco se
transmutando no historicismo, que procura um sentido inelutável e absoluto para a
História negando ou pelo menos ignorando por completo a mera possibilidade de uma
intervenção divina nos acontecimentos humanos.
Sem dúvida, houve nesse período importantes historiadores que não
corresponderam a essa tendência e produziram obras de inspiração religiosa ou se
dedicaram a temas históricos de natureza religiosa. Mas a tendência geral que
prevaleceu no período foi essa.
O historicismo procurava, numa Filosofia desvinculada e até oposta à Teologia,
estabelecer leis absolutas que regessem os fatos históricos; e entendia que essas leis
conduziam a humanidade num sentido evolutivo. Bem conhecidas e bem formuladas
essas leis, seria entendido o sentido da História, e esta passaria a ser previsível e
inevitável. Assim, o historicismo se caracterizava pelo determinismo, que negava a
plenitude do livre-arbítrio humano e influenciaria profundamente o iluminismo
racionalista do século XVIII, no qual se estabeleceu a ideia de um progresso incoercível
ao qual se destinava o conjunto da humanidade, ao mesmo tempo que se exaltava a
razão humana – mais uma vez, desvinculada da fé e da Revelação – como fonte lógica e
ontológica do direito e da moral. Igualmente determinista e de cunho evolucionista
foram o positivismo do século XIX, o qual igualmente acreditava nesse progresso, mas
procurava lhe atribuir um caráter cientificista, e o marxismo.

13
Nas palavras de Bloch, “a Doação de Constantino – essa espantosa elucubração que um clérigo romano
do século VIII assinou sob o nome do primeiro César cristão – foi, três séculos mais tarde, contestada nos
círculos do mui pio imperador Oto III.” (op. cit., p. 89).
7

O francês Augusto Comte (1798-1857) foi o fundador e o principal divulgador


do positivismo, uma escola de pensamento derivada do iluminismo e do racionalismo, e
influenciada fortemente pelo cientificismo que perpassava todos os ambientes culturais
do século XIX. Comte propugnava uma evolução constante da sociedade tendo como
fundamento os progressos da Ciência, que na sua ótica devia presidir de modo uniforme
e com idênticos métodos a todos os ramos do conhecimento humano. Seu pensamento
foi desdobrado em três vertentes principais, a filosófica, a sociológica e a política, e
acabou desembocando na criação de uma religião nova, que denominou “Religião da
Humanidade”.
O caráter evolucionista e determinista do positivismo fica bem claro na sua visão
da História. Comte entendia que a evolução da humanidade correspondia a três estágios
de desenvolvimento, que inevitavelmene se sucederiam. O primeiro, que ele denominou
Estado Teológico, era aquele em que as pessoas procuravam em Deus, no sobrenatural e
na mística a explicação de tudo; nessa fase, a mais atrasada de todos, o homem se
caracterizaria pela irracionalidade. A Idade Média estaria nesse estágio.
Num segundo estágio, vinha o Estado Metafísico, em que o homem se
conduziria pela razão, ocupando a filosofia o lugar antes ocupado pela religião. A
irracionalidade dos crentes, nessa fase, seria substituída pela razão e os homens
procurariam explicar tudo com base em argumentos lógicos. O século XVIII, com o
racionalismo e o iluminismo, corresponderia a esse estágio.
Vinha depois o terceiro, que ele denominava Estado Positivo, que
corresponderia ao século XIX e era consequência de dois grandes acontecimentos aos
quais Comte atribuía importância suprema: a Revolução Francesa e a Revolução
Industrial. O fundamento e a explicação de tudo já não mais seria procurado na religião
ou na filosofia, mas na própria natureza, cientificamente estudada. A Ciência ocuparia,
então, o papel das antigas religiões e das antigas filosofias, e deveria ser a Religião da
Humanidade. Os avanços da ciência e da técnica, que deveriam presidir a essa fase,
deveriam ser cuidadosamente baseados na observação e na análise da natureza.
A implantação e o triunfo do Estado Positivo nas sociedades pressupunha,
segundo Comte, um estudo científico do funcionamento e do dinamismo das próprias
sociedades. A esse estudo científico, que mais tarde constituiria uma ciência autônoma,
Comte chamou Sociologia. Era missão da Sociologia, segundo ele, não apenas estudar
as sociedades, mas também nelas promover o avanço social, para o estabelecimento do
Estado Positivo. Politicamente, Comte era por princípio favorável a regimes fortes e
ditatoriais, capazes de conduzir as sociedades para os rumos previstos pela Ciência, sem
as oscilações, incertezas e desordens características dos regimes em que prevalecem
opiniões divergentes ou conflitantes.
Por mais que, na nossa ótica de hoje, essa teorização das coisas pareça absurda,
o fato é que, no contexto cientificista do século XIX muita gente a aceitou como
verdade indiscutível e as ideias comtianas influenciaram muitos campos do
conhecimento humano, como o Direito, a História e a Ciência Política, entre outros.
Lembre-se que, no Brasil da segunda metade do século XIX, o positivismo marcou
profundamente a formação das mentalidades e, dominando o exército, teve como efeito
o destronamento de D. Pedro II e a proclamação da República. O próprio lema “Ordem
e Progresso, da bandeira republicana, era de nítida inspiração positivista.
Foi por influência de Comte que surgiu na historiografia a Escola Positivista,
também conhecida como Escola Metódica. Seria uma forma de estudar a História com o
8

mesmo rigor e a mesma margem de certeza das ciências exatas ou experimentais. Marc
Bloch mais tarde exprimiria bem a mentalidade que presidia a essa escola
historiográfica:

As gerações que vieram logo antes da nossa, nas últimas décadas do século
XIX e até os primeiros anos do XX, viveram como alucinadas por uma
imagem muito rígida, uma imagem verdadeiramente comtiana das ciências
do mundo físico. Ao estender ao conjunto das aquisições do espírito esse
prestigioso esquema, parecia-lhes então não existir conhecimento autêntico
que não devesse desembocar em demonstrações incontinenti irrefutáveis, em
certezas formuladas sob o aspecto de leis imperiosamente universais. Esta era
uma opinião praticamente unânime. (BLOCH, Marc. Apologia da História
ou O Ofício do Historiador. Tradução de André Telles. Rio de Janeiro, Jorge
Zahar Editor, 2001, p. 47)

Veremos, na próxima unidade, como o século XX se encarregou de desmontar,


peça por peça, o castelo de cartas erigido pela teorização positivista, e tomada tão a
sério por tanta gente séria...

Dica do professor:

Não se limite, prezado aluno, ao conteúdo das aulas e ao texto do material


didático que elaboramos para você. No sistema EAD, o aluno não é receptor passivo do
conhecimento, mas deve ativamente procurar completar e desenvolver os conteúdos que
recebe. Habitue-se a ler, a pesquisar, a inquirir. Abra muito o campo de suas leituras. É
claro que muitas dúvidas e desejos de esclarecimento surgirão dessas leituras. Para isso,
os tutores e o próprio professor autor deste material didático está sempre à sua
disposição. Mãos à obra, pois!

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