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CAPÍTULO I

A IDADE MÉDIA E SEUS SIGNIFICADOS

A expressão Idade Média é empregada pela historiografia para designar o perío-


do compreendido entre a Antiguidade Clássica e a Modernidade. Os historiadores se
detiveram em classificar a queda do Império Romano do Ocidente, em 476, e a to-
mada de Constantinopla, capital do Império Bizantino, pelos turcos otomanos, em
1453, como respectivos marcos inicial e final do medievo. Para tanto, esta conceitua-
ção se faz presente em distintos livros e artigos acadêmicos que tratam da temática
medieval, embora não seja possível assegurar a probabilidade de esgotamento das dis-
cussões em torno de um significado consensual. Decerto, o termo teria sido emprega-
do primeiramente por humanistas da península itálica no século XIV, basicamente, ao
findar da Idade Média, para diferenciá-la da nova conjuntura de então: o Renasci-
mento. Mais do que simplesmente uma distinção de periodizações, este foi o argu-
mento encontrado pelos intelectuais modernos para rotular a Idade Média como
“noite de mil anos” ou a clássica “idade das trevas”, tempo de obscurantismo da razão
e do conhecimento científico.
Tardou para que fosse reconhecida como um farto campo de estudos e pesqui-
sas historiográficas. Muitos autores da contemporaneidade se empenharam no senti-
do de estabelecer uma contribuição capaz de desmistificar a imagem negativa da me-
dievalidade (onde a humanidade regrediu, parou de pensar e de produzir a arte). Lo-
gicamente, quando do fim da Antiguidade, o homem se viu diante de uma desordem
provocada pela degeneração política e moral do Império Romano do Ocidente e as
migrações dos povos bárbaros, aspectos que oportunamente influenciaram o ciclo se-
guinte. Nada obstante, foi justamente na era medieval que as universidades floresce-
ram na Europa. Além do mais, a sociedade se configurou assim como a concebemos
atualmente.

A IDADE MÉDIA NA VISÃO DOS HUMANISTAS

A antipatia, ou desafeto manifestado por humanistas, a posteriori, por iluminis-


tas pela Idade Média, deve ser entendida sob a perspectiva de um sentimento de ple-
no menosprezo, alicerçada no contexto de redescoberta da cultura clássica. Consoan-
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te à acepção destes eruditos do século XVI, igualmente da Ilustração, a noção de Re-


nascença seria precipuamente o retorno aos valores culturais da Antiguidade Clássica
contraposto ao perfil gótico da cultura medieval, corroborada pelo apego a fé em de-
trimento da racionalidade e do aprimoramento do saber.

A hostilidade, ou até mesmo o desprezo, sentido e frequentemente expresso em


relação à Idade Média pela elite cultural da época dita do Renascimento, a partir
do século XIV, com mais frequência durante o XV e sobretudo o XVI, foi retrans-
mitida e agravada posteriormente, em particular pelos eruditos ditos das Luzes
no século XVIII. Eles chegaram até a qualificar a Idade Média como época das tre-
vas, Dark Ages, em inglês. Essa condenação da Idade Média é fundamentada an-
tes de tudo na necessidade, para os homens do Renascimento, de voltar a Anti-
guidade clássica e a seus grandes mestres (Aristóteles e Platão na Grécia, Cícero e
Sêneca em Roma), que o pensamento medieval teria ignorado e contra os quais
se teria afirmado (LE GOFF, 2015, p. 75).

Sabe-se que o Humanismo, enquanto movimento de caráter intelectual, repre-


sentou a transição da Idade Média para a Idade Moderna. O conceito nasceu na con-
junção dos séculos XV e XVI na península itálica, preconizado pelo poeta Petrarca, com
a finalidade de “designar as atitudes renascentistas que enfatizavam o homem e sua
posição privilegiada na Terra” (SILVA, Kalina Vanderlei; SILVA, Maciel Henrique,
2021, p. 193). Com efeito, isto viria a reforçar a tese de que o ser humano seria o
centro de todas as coisas, distintamente da ótica medieval onde tudo girava em torno
de Deus. Para tanto, ainda quanto ao Humanismo:

[...] esse termo indicava um conjunto de indivíduos que desde o século anterior
(XIV) vinha se esforçando para modificar e renovar o padrão de estudos ministra-
do tradicionalmente nas Universidades medievais. Esses centros de formação
intelectual e profissional eram dominados pela cultura da Igreja e voltados para
as três carreiras tradicionais: direito, medicina e teologia. Estavam, portanto,
empenhados em transmitir aos seus alunos uma concepção estática, hierárquica
e dogmática da sociedade, da natureza e das coisas sagradas, de forma a preser-
var a ordem feudal (SEVCENKO, 1986, p. 14).

Segundo Nicolau Sevcenco, coube aos homens da citada época a recondução


dos estudos tradicionais para o “programa dos studia humanitatis (estudos humanos),
que incluíam a poesia, a filosofia, a história, a matemática e a eloquência, disciplina
esta resultante da fusão entre a retórica e a filosofia” (S EVCENKO, op.cit.). Se para os
ideólogos humanistas estava claro a necessidade de mudanças de pensamento, bem
como a passagem do espectro teocêntrico para o antropocêntrico, a valorização do ci-
entificismo, do racionalismo e da retomada do modelo clássico da cultura greco-ro-
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mana, para os filósofos iluministas, a herança medieval deveria ser radicalmente des-
prezada. Daí podemos assimilar a contraposição entre “idade das trevas”, em menção
ao medievo, e “século das luzes”, uma referência ao século XVIII, reconhecido como o
período em que o homem alcança o apogeu de sua maturidade intelectual e racional.
Tendo se difundido pela iniciativa do filósofo alemão Immanuel Kant, o Iluminismo
logo se consagrou por toda a Europa, em que pese não ter se concentrado à crítica
tão somente ou restritamente da Idade Média, mas pela forte oposição ao absolutis-
mo monárquico, ou Antigo Regime, sistema político centrado na figura do rei como
soberano, e ao mercantilismo.
Concernente aos tempos medievais, a ideologia professada pelos filósofos do sé-
culo XVIII só veio a reiterar o discurso propagado pelos humanistas dos séculos XVI e
XVII, de que a Idade Média seria uma “Idade das Trevas”, um período sombrio da his-

tória caracterizado pelo arcaísmo e o domínio da religião. Em suma, a vida do ho-


mem era desprovida de progresso, na concepção destes pensadores. Para a filosofia
iluminista, apenas a racionalidade permitiria a aquisição de conhecimento e a liberta-
ção da “escuridão” pelo homem. Muitas das obras produzidas pelos iluministas ques-
tionavam, dentre outras coisas, “os resquícios feudais, como a permanência da servi-
dão” (PAZZINATO e SENISE, 1999, p. 100).

A VISÃO DOS MEDIEVALISTAS

Jacques Le Goff (1924-2014), historiador francês, membro da terceira geração


da Escola dos Annales, foi até seu falecimento um dos principais medievalistas da atu-
alidade. Tendo produzido centenas de artigos, defendeu a ideia de uma “longa Idade
Média”, que, diferentemente do conceito tradicional, não terminaria no século XV,
mas se prolongaria até por volta do século XVIII. Na transcorrência desse tempo, de
acordo com Le Goff, a Europa não teve qualquer tipo de transformação que viesse a
confirmar uma ruptura de épocas.

Agora é preciso mostrar que, nos campos econômico, político, social e cultural,
não há, no século XVI, e de fato até meados do século XVIII, mudanças funda-
mentais que justificassem a separação entre Idade Média e um período novo,
diferente, que seria o Renascimento (LE GOFF, 2015, p. 97).

A Idade Média, para Jacques Le Goff, abrange desde o século II ao término do


século XVIII, que é quando se irrompe a Revolução Industrial, evento histórico propa-
gador de grande desenvolvimento tecnológico permitindo abalizar significativas mu-
danças, como a efetivação das indústrias e a consolidação do sistema capitalista. En-
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tre os medievalistas brasileiros, Hilário Franco Júnior se destaca ao igualmente tratar


na introdução do seu livro A Idade Média, nascimento do ocidente, a questão con-
ceitual relativa aos mil anos de história da civilização europeia. Particularmente, nesta
obra, o autor se encarrega de traçar a visão sobre o aludido espaço temporal com am-
paro na ótica dos renascentistas e iluministas, dos românticos do século XIX, do con-
texto do século XX e na própria acepção do homem medieval. No tocante ao Roman-
tismo,

Vista como época de fé, autoridade e tradição, a Idade Média oferecia um re-
médio à insegurança e aos problemas decorrentes de um culto exagerado ao ci -
entificismo. Vista como fase histórica das liberdades, das imunidades e dos pri-
vilégios, reforçava o liberalismo burguês vitorioso no século XIX. Dessa maneira,
o equilíbrio e a harmonia na literatura e nas artes, que o Renascimento e o
Classicismo do século XVII tinham buscado, cedia lugar à paixão, à exuberância
e à vitalidade encontráveis na Idade Média. A verdade procurada através do ra-
ciocínio, que guiara o Iluminismo do século XVIII, cedia lugar à valorização dos
sentidos, do instinto, dos sonhos, das recordações (JÚNIOR, 2006, p. 13).

A Idade Média para o século XX, explica o autor, ganha neste cenário, um outro
olhar, ensejando um salto qualitativo para a corrente medievalística, “carro-chefe da
historiografia contemporânea, ao propor temas, experimentar métodos, rever concei-
tos, dialogar intimamente com outras ciências humanas” (JÚNIOR, op.cit.). Em mea-
dos da década de 1920, o historiador belga Henri Pirenne (1862-1935), esteve em
evidência pela projeção de suas teses concernentes à Idade Média. Na obra Maomé e
Carlos Magno, Pirenne se incumbe de propor uma discussão dos limites entre à An-
tiguidade e a medievalidade, ciclo este cuja origem aponta para o elemento árabe.
Mormente, a interpelação versa sobre o prisma das atividades comerciais. As contes-
tações de Pirenne partem do pressuposto de que a queda do Império Romano, em
476, não exprime a gênese da era medieval. Os bárbaros, diz ele, jamais arruinaram o
império. Pelo contrário. Quando muito, se romanizaram. A unidade mediterrânea,
por isso, não foi desfeita, preservando os intercâmbios do comércio. Somente por
volta dos séculos VII e VIII, este cenário sofre uma conversão, dada a ocupação de parte
da Europa pelos muçulmanos.
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A IDADE MÉDIA ENTRE O “PODER PÚBLICO” E A


“CENTRALIZAÇÃO POLÍTICA”

“O desprezo pela Idade Média é parente próximo da satisfação que temos diante das
fórmulas simplificadoras que dão conta do período, das quais ‘Idade das Trevas’ é apenas a
mais evidente. Estas se sustentam em parte na certeza de que aquilo que é pertinente ao
conhecimento deste período, nele se encerra, tendo pouca ou nenhuma influência nas zo -
nas de saber cronologicamente vizinhas. O desprezo pela Idade Média é antigo, mas sujei-
to tanto a nuances quanto à evolução. O epíteto ‘Idade das Trevas’ é poderoso. Não se tra -
ta de uma adjetivação simples, mas de uma verdadeira idéia-tese capaz de explicar mil anos
da história ocidental. Dessa forma, não surpreende que a popularização do conhecimento
da Idade Média seja tão pouco exigente. Na verdade, basta que se confirme ao infinito
aquilo que já se sabe: a Idade Média foi um período da história do Ocidente caracterizado
pelo controle da aristocracia sobre o campesinato, por meio da força das armas e com o
apoio do clero que, manipulando medos de fundamentação religiosa, garantiam o controle
ideológico e a submissão da sociedade. Essa síntese sumária de todo um período histórico,
absolutamente improvável de ser aplicada pelos historiadores a qualquer outra época, é re -
conhecida, sem remorsos, como válida e suficiente para a Idade Média. A auto-suficiência
dessa definição estrita oculta toda uma época sob algumas poucas palavras pretensamente
‘esclarecedoras’ e ‘verdadeiras’. Podemos dizer mesmo que neste ocultamento está encerra-
da a função histórica do período. Desde que respeitados os limites bem estabelecidos de
suas ‘Trevas’, a Idade Média pode prestar-se a todos os conteúdos”. (A LMEIDA, Néri, de
Barros. A Idade Média entre o “poder público” e a “centralização política”. Varia História,
Belo Horizonte, vol. 26, nº 43: p.49-70, jan/jun 2010).

No tocante a tentativa de desfazer os equívocos comumente atrelados a noção


de Idade Média, a historiadora francesa Régine Pernoud traz-nos significativos subsí-
dios. Em sua obra O mito da Idade Média, a autora tenta, a certo modo, se não eli-
minar, amenizar os ditos antigos clichês, dentre preconceitos, juízos e mal-entendi-
dos que se perpetuaram por muito tempo sobre o medievo, em que pese hoje em dia
ainda identificarmos o uso de esteriótipos em alusão ao período da história europeia
entre os séculos V e XV (MACEDO, 2003, p. 109-110). Sem embargo, aponta-nos José
Rivair Macedo que ocorre que

desde pelos menos o princípio do século XX, as pesquisas acadêmicas sobre His-
tória Política, Social, Econômica e Cultural, as pesquisas no campo da Filolo-
gia10 e da Literatura, da Filosofia e das Artes, têm demonstrado inúmeros tra-
ços originais da Europa durante a Idade Média, e tais pesquisas contribuíram
decisivamente para reabilitar aquele período aos olhos dos estudiosos. Hoje ne-
nhum erudito defenderia com seriedade aqueles velhos chavões. Isso não quer
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dizer que os esteriótipos relacionados com a Idade Média tenham desaparecido.


Estes explicam, inclusive, um certo fascínio da arte e da cultura de massas por
essa obscura Idade Média – na qual pululam magos e fadas, duendes e elfos,
dragões, cavaleiros errantes e aventuras fabulosas (MACEDO, op.cit.).

A sistematização da Idade Média enquanto área de estudos deu-se ao alvorecer


do século XX, como já citado neste texto. Desta feita, tornou-se instrumento apto para
apreendermos não só o funcionamento da estrutura social, política e econômica da
civilização ocidental naqueles dez séculos, sobretudo para depreendermos o atual âm-
bito desta mesma sociedade. Dessarte, o homem medieval, nas palavras de Marcelo
Cândido da Silva, vivenciou inúmeros contrastes, ora pela fome, por guerras e epide-
mias, ora momentos de paz, abundância e prosperidade (SILVA, 2020, p. 13).

Embora a maior parte da população vivesse no campo, foi durante a Idade Mé -


dia que o fenômeno urbano tornou-se relevante e que as cidades surgiram como
elementos dinâmicos da vida econômica, política e cultural do continente euro-
peu. Nas cidades medievais, foram construídas as catedrais, os maiores edifícios
da Cristandade, e fundadas suas mais importantes instituições de ensino, as
universidades (SILVA, op.cit.).

CONSIDERAÇÕES FINAIS

Superada a etapa de explanação no texto dos distintos significados atribuídos à


Idade Média, cabe-nos o reconhecimento do quão esta periodização histórica revela-
se pertinente na continuidade da condução de pesquisas historiográficas focadas na
mencionada época. Aqui reafirmamos a tese da inesgotabilidade dos debates feitos
em torno de um conceito comum capaz de esclarecer como deveríamos interpretar
de fato a medievalidade. Ficou claro nas entrelinhas deste artigo que a expressão Ida-
de Média fora cunhada pelos humanistas da Renascença com a finalidade de depreci-
ar aquele ínterim dos séculos V ao XV, tachando-o de “obscuro”, “retrógrado”, “degra-
dante”, em vista da nova conjuntura que se difundia na Europa Ocidental a partir do
século XV: o Renascimento e a retomada de elementos da cultura da Antiguidade
Clássica. Em contrapartida, os medievalistas dos séculos XX e XXI promoveram um
grande esforço no sentido de desmistificar esta imagem negativa imposta pelos erudi-
tos da modernidade ao medievo. Defendem que foi justamente na Idade Média que
se deu o aparecimento das primeiras universidades europeias e onde se constituiu o
núcleo social atualmente verificado na contemporaneidade.
Hoje, mais do que nunca, não se pode desconsiderar a Idade Média como um
rico e valioso campo de estudos historiográficos. A temática tem despertado atenção
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de professores de História em formação e futuros historiadores desde meados do sé-


culo XXI. Assim, como posto por Marcelo Cândido da Silva, “a Idade Média é tam-
bém objeto de numerosas celebrações, que lhe conferem um estatuto de curiosidade
e, mais importante ainda, de período ‘áureo’ da história” (S ILVA, op.cit., p. 139). Seja
na política, na cultura, na economia, o mundo medieval denota uma contribuição
profunda, hábil para a compreensão de como se deu a constituição de toda a estrutu-
ra da sociedade ocidental e que se prolongo na atualidade. Ademais, a Idade Média
mexe com nosso imaginário em face de personagens e figuras mitológicas apreciadas
e veneradas por pessoas diversas.
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REFERÊNCIAS

ALMEIDA, Néri, de Barros. A Idade Média entre o “poder público” e a “centraliza-


ção política”. Varia História, Belo Horizonte, vol. 26, nº 43: p.49-70, jan/jun 2010.
CALAINHO, Daniela Buono. História Medieval do Ocidente. Petrópolis, Vozes,
2014.
JÚNIOR, Hilário Franco. A Idade Média, nascimento do ocidente. São Paulo: Bra-
siliense, 2006.
LE GOFF, Jacques. A História deve ser dividida em pedaços? São Paulo: Unesp,
2015.
MACEDO, José Rivair. Repensando a Idade Média no ensino de História. In:
______. (org.). História na sala de aula: conceitos, práticas e propostas. São Paulo:
Contexto, 2003.
PAZZINATO, Alceu Luiz; SENISE, Maria Helena Valente. História Moderna e
Contemporânea. São Paulo: Ática, 1999.
SEVCENKO, Nicolau. O Renascimento. Discutindo a História. São Paulo: Atual,
1986.
SILVA, Kalina Vanderlei; SILVA, Maciel Henrique. Dicionário de Conceitos His-
tóricos. São Paulo: Contexto, 2021.
SILVA, Marcelo Cândido da. História Medieval. São Paulo: Contexto, 2020.

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