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HISTÓRIA E HISTORIOGRAFIA

MEDIEVAL OCIDENTAL
AULA 1

Prof. Douglas Mota Xavier de Lima


Profª Mariana Bonat Trevisan
CONVERSA INICIAL

A Idade Média não existe. […] é uma fabricação, uma construção, um


mito, quer dizer, um conjunto de representações e de imagens em
perpétuo movimento, amplamente difundidas na sociedade, de
geração em geração. (Amalvi, 2006, p. 537)

Com essa provocadora frase, Christian Amalvi inicia seu verbete do


Dicionário Temático do Ocidente Medieval lembrando aos leitores que o período
de 1.000 anos compreendido entre o fim do Império Romano Ocidental (476 d.C.)
e a conquista de Constantinopla pelos turcos-otomanos (1453 d.C.), comumente
denominado de Idade Média, é uma fabricação, uma construção social. Como
toda periodização, essa denominação é um instrumento que orienta a relação do
homem com o tempo histórico, sendo marcada por subjetividades e mecanismos
identitários do contexto que a idealizou, ou seja: toda periodização é um recurso
carregado de uma historicidade própria.
Pensar a Idade Média em nosso mundo como uma categoria em contínua
construção de sentido e em constante movimento de (re)apropriação é
fundamental para o nosso entendimento a respeito da História e Historiografia
Medieval Ocidental. A partir desse ponto de partida, dividimos esta aula em cinco
temáticas: a primeira apresenta o conceito de Idade média, abordando o
surgimento do termo, no século XIV, e o desenvolvimento de sua conotação
negativa, nos séculos XVII e XVIII.
Na segunda temática, discutimos o contraponto oferecido pela visão
idealizada advinda com o Romantismo do século XIX, bem como a
institucionalização da área de História Medieval no mesmo período. Em seguida,
abordamos as múltiplas noções de Idade Média surgidas no século XX,
considerando os usos políticos do passado medieval no início da centúria e as
renovações historiográficas que ressignificaram a Idade Média ao longo do
período.
Nosso quarto tema concentra-se na noção de medievalismo e discute as
variadas apropriações do medievo, sobretudo pela cultura de massas. Por fim,
no quinto item, discutimos as demarcações acerca do início e do fim do medievo,
assim como as periodizações internas da chamada Idade Média Ocidental.

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TEMA 1 – IDADE MÉDIA: A FORMAÇÃO DO CONCEITO

A periodização da história jamais é um ato neutro ou inocente: a


evolução da imagem da Idade Média na época moderna e
contemporânea comprova isso. Por meio da periodização, expressa-
se uma apreciação das sequências assim definidas, um julgamento de
valor, mesmo que seja coletivo. Aliás, a imagem de um período
histórico pode mudar com o tempo. (Le Goff, 2015, p. 29)

A partir do século XIV, poetas e escritores ligados ao humanismo


cunharam termos para expressar a distinção entre o tempo em que viviam
(encarado como o limiar de uma nova era intelectual — moderna) e o passado
que lhes era imediatamente anterior, o qual viam como um período obscuro que
os separava de um tempo mais antigo (em que viveram pensadores como
Cícero, Sêneca, Ovídio, Platão, entre outros). Nesse sentido, podemos lembrar
algumas expressões que deram origem à noção pejorativa de Idade Média. O
poeta italiano Petrarca (1304-1374) empregou o termo tenebrae; o bibliotecário
papal Giovanni Andrea Bussi (1417-1475) falou em media tempestas; e o erudito
suíço Joachim von Watt (1484-1551) utilizou a expressão media aetas para
designar um tempo intermediário entre a Antiguidade dos clássicos e o novo
tempo intelectual que julgavam viver.
Não obstante, foi preciso esperar o século XVII no Ocidente europeu para
que um desejo de fixar uma periodização histórica se cristalizasse e a noção de
uma história humana laica se desprendesse da noção religiosa da história da
Salvação cristã. Os termos Antiguidade, Idade Média e Idade Moderna já
existiam desde o humanismo do século XIV, mas foi somente a partir da
sociedade seiscentista que eles ganharam contornos mais acabados, passando
a expressar uma divisão da história em três idades. Conforme a consciência da
modernidade se instaurava, consolidava-se a menção à Antiguidade e a uma
Idade Média (Koselleck, 2006, p. 21-39).
O século XVIII generalizou essa visão de história e, por seu viés
anticlerical e antiaristocrático, acentuou o desprezo ao passado denominado
medieval, visto como época de superstições, tirania clerical, anarquia feudal,
ausência de liberdade, ou seja, como Idade das Trevas. Para as revoluções
burguesas do período, a Idade Média serviu de contraponto ideal, permitindo a
exaltação de valores iluministas ao mesmo tempo em que legitimava a ruptura
revolucionária. Como explica Alain Guerreau, o Iuminismo foi uma ideologia de
luta, uma batalha intelectual para desacreditar e deslegitimar o modelo de

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organização social estratificado até então vigente, redefinindo termos como
religião, economia e política (Guerreau, 2002, p. 25-29).

TEMA 2 – O SÉCULO XIX: NOSTALGIA E IDENTIDADE NACIONAL

Quando somos medievalistas sem nos interrogarmos o que é sê-lo,


corremos o risco de nos inserirmos numa “grande narrativa”
autoconstruída que periodizou qualitativa e preconceituosamente um
determinado passado. A defesa de uma Idade Média não identitária
implica o projeto de deslocar o “período medieval” da genealogia
progressista da humanidade, para um local cientificamente construído
de observação de factos sociais, moldados pelo espaço e tempo.
(Rosa, 2017, p. 22-29)

Nessa cronologia da construção do conceito de Idade Média, o século XIX


ocupa igualmente lugar de destaque. Nesse momento surgiu então a visão de
Idade Média advinda do movimento do Romantismo, perspectiva que passou a
idealizar e elogiar o passado medieval. Nesse momento de afirmação dos
estados nacionais burgueses, estabeleceu-se uma nostalgia que fez da Idade
Média o momento de origem das nacionalidades, época das tradições, da
vitalidade dos povos e de heróis virtuosos, como a santa Joana d’Arc, alçada a
mito nacional na França. Foi no período, por exemplo, que surgiu o modismo da
construção de igrejas, castelos e prédios no estilo gótico, inspirados em
construções medievais. Como afirma Guerreau, jamais se construíram tantos
palácios e igrejas como na Europa do século XIX, embebidas em cultos
neogóticos. Na literatura, a temática medieval também ganhou destaque, sendo
emblemáticas as obras de Goethe (1749-1832), Walter Scott (1771-1832) e
Victor Hugo (1802-1855) (Franco JR., 2006, p. 12-13).
Paralelamente, o século XIX foi o período de afirmação da história
científica e, consequentemente, nele se desenvolveu a História Medieval como
disciplina acadêmica. Tal institucionalização foi favorecida por uma série de
“políticas de memória” (Delacroix, 2012, p. 13-35) que remetiam ainda ao século
anterior — com a fundação de academias de história, tal como a Academia Real
da História Portuguesa, criada em 1720 — e se consolidaram na sociedade
oitocentista. Multiplicaram-se arquivos e institutos de pesquisa nacionais, como
a École Nationale des Chartres, na França, em 1821.
Segundo Marcelo Cândido da Silva, a maior e mais duradoura
contribuição do Romantismo aos estudos medievais nesse contexto foi a edição
e publicação de fontes, tal como a Monumenta Germaniae Historica (MGH),
entre 1819 e 1824, na Alemanha. Essa seria a maior coleção de edição de fontes
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medievais, tornada indispensável para as investigações sobre a Idade Média
desde então. Com o objetivo de promover a história dos povos germânicos do
século V ao século XV, as MGH são um claro indicador da associação com o
nacionalismo germânico do século XIX (Silva, 2019, p. 148). De todo modo, seja
por meio das aspirações nostálgicas do romantismo, seja pelos pressupostos
científicos da história metódica, observa-se que no século XIX, ambas as vias
são expressões de um movimento que buscou no medievo as raízes da
identidade nacional dos Estados europeus.
Ainda sobre o século XIX, convém assinalar três dimensões relacionadas
à institucionalização acadêmica da História Medieval: a noção de
evolução/progresso e civilização que orientou as diferentes ciências; a definição
de demarcações entre as disciplinas, em especial, entre História Medieval e
História Moderna; e a organização curricular com suas implicações para os
sistemas de ensino ocidentais.
Primeiramente, assinala-se que as Ciências Humanas e Sociais
passaram a se estruturar numa perspectiva evolucionista, compreendendo que
a história poderia ser descrita em termos de uma melhoria contínua, o progresso,
que abarcava desde as primeiras comunidades humanas primitivas aos estágios
mais avançados das civilizações, que seriam aqui representadas pelos Estados
europeus. Do mesmo modo, o termo civilização, até então empregado
principalmente no singular com um significado moral (civilizado como ser bom,
culto e educado, contrário ao ser inculto, rude e violento), passou a ser utilizado
no plural, associando-se aos conceitos de povo, cultura e nação. Decorre dessa
reorientação a divisão da História a partir de uma linha progressiva de
civilizações, que ocidentaliza a história numa marcha evolucionista. Desse
movimento de ocidentalização, a constituição da história da Idade Média como
história do Ocidente medieval, centrada na Europa, particularmente nos reinos
da França e Inglaterra, orientação que persiste na atualidade.
Em uma segunda dimensão, cabe ressaltar que foi no século XIX, por
meio de Jules Michelet (1798-1874) e, principalmente, Jacob Burckhardt (1818-
1897), que a expressão renascimentos (que geralmente referenciava aspectos
da história da arte) foi alçada a Renascimento, passando a expressar um período
histórico que se opunha à Idade Média. Esse mito do Renascimento como
símbolo de ruptura histórica caiu em desuso ao longo do século passado. No
entanto, seu enraizamento desde o século XIX difundiu a percepção de que ao

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final da Idade Média, a Europa e, particularmente, a Itália viveram uma
verdadeira revolução cultural que conseguiu libertar o homem da opressão
religiosa e de uma sociedade coletivamente condicionada por excessivos
regulamentos e por uma divisão social corporativa (Blockmans;
Hoppenbrouwers, 2012, p. 4-5). Ademais, estabeleceram-se as demarcações
entre as disciplinas de História Medieval e História Moderna, com a primeira
terminando num cenário de crise generalizada, expressa na tríade guerra-fome-
peste, e a segunda iniciada com o alvorecer do Renascimento, definida pela
descoberta do mundo e do homem, como sugeriu Michelet.
Por fim, insere-se uma terceira dimensão por vezes desconsiderada ao
se tratar da institucionalização da história: a construção e a organização do
currículo acadêmico/escolar. Foi ao longo do século XIX que, em termos gerais,
a organização da escolarização se estruturou (Chervel, 1990), favorecendo a
promoção dos livros didáticos e a instrução pública oferecida pelo Estado, o que
contribui para que a escola ganhasse destaque como local onde era possível
ensinar tudo a todos ao mesmo tempo. Paralelamente, a disciplina de História
se institucionalizou nas universidades europeias e seu ensino se difundiu pelos
sistemas escolares criados pelos Estados nacionais. O Estado imperial brasileiro
se integrou a esse movimento a fim de reafirmar suas raízes ocidentais,
adotando o modelo curricular francês. Circe Bittencourt, ao investigar o saber
histórico escolar no Colégio Pedro II, o primeiro colégio público brasileiro de
ensino secundário, demonstra que, em 1837, a História tornou-se obrigatória e,
com as propostas curriculares de 1855 e 1857, a História da Idade Média
começou a figurar como obrigatória ao lado da História Antiga, da História
Moderna e da História do Brasil (Bittencourt, 2008, p. 99-111).
Até o momento, buscou-se apresentar a construção do conceito de Idade
Média, demonstrando a gradativa evolução do termo como instrumento de
periodização desde o século XIV, as acepções negativas que ele carregou,
tornando-se contraponto da sociedade burguesa e as múltiplas tendências
abertas pelo século XIX, ora numa perspectiva identitária, ora num olhar
nostálgico e valorativo, ou apenas na institucionalização acadêmica e escolar do
período. Em seguida, serão abordadas as reorientações do conhecimento sobre
a Idade Média no século XX.

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TEMA 3 – AS MÚLTIPLAS IDADES MÉDIAS DO SÉCULO XX

A Idade Média ocupa assim, hoje, em nossa memória, o lugar


problemático crucial em que nossos antepassados colocavam a
Antiguidade greco-latina. Ela se oferece permanente como um termo
de referência, servindo, por analogia ou por contraste, ao nível dos
discursos, tanto racionais quanto afetivos, para esclarecer um ou outro
aspecto dessa mutabilidade, desta manipulabilidade que somos nós.
Um recurso tal, sem dúvida, é espontâneo demais para ser
perfeitamente inocente e poderíamos ver aí a projeção fantasmática de
alguns de nossos medos. (Zumthor, 2009, p. 17)

Em geral, as sínteses que apresentam os novos olhares sobre a Idade


Média no século XX tendem a se concentrar apenas na historiografia, sobretudo
no movimento da Escola dos Annales, demonstrando como a “Revolução
francesa da historiografia”, tal como sugeriu Peter Burke, redefiniu a
compreensão sobre o medievo. No entanto, antes de enveredar pelas questões
propriamente historiográficas, convém atentar aos usos políticos da Idade Média
na primeira metade do século passado, usos que ecoam no tempo presente.
A percepção comum da história europeia costuma compreender que o fim
do Antigo Regime, nos séculos XVIII e XIX, fez sucumbir as hierarquias e as
forças sociais que sustentavam o sistema. Em outras palavras, que a sociedade
de ordens foi implodida pelo avanço do capitalismo e da sociedade de classes,
que a nobreza perdeu seu prestígio e poder diante do declínio político e
econômico gerados pela nova ordem socioeconômica e pela afirmação da classe
burguesa. Na contramão dessa perspectiva, entende-se que a força política e
patrimonial da nobreza e as hierarquias sociais orientadas pelas referências
aristocráticas, como o papel da linhagem e as distinções nobiliárquicas,
continuaram ativas até a Primeira Guerra Mundial (1914-1918) (Mayer, 1987).
Tal compreensão permite destacar a importância simbólica da cavalaria
em inícios do século XX e como elementos e personagens medievais foram
mobilizadas na Primeira Guerra. Como indicado anteriormente, desde o século
XIX acentuaram-se os nacionalismos que buscavam no medievo referências
para o orgulho nacional e raízes de cada Estado-nação. Nessa busca,
praticamente todos os Estados europeus celebraram heróis medievais, como
Brian Boru (941-1024), na Irlanda, Alexander Nevsky (1220-1263), na Rússia, e
a já citada Joana d’Arc (1412-1431), na França (Lynch, 2016, p. 140).
Essa tendência se consolidou nas décadas seguintes no contexto da
Segunda Guerra Mundial (1939-1945), sendo comum encontrar referências ao
medievo na propaganda nazista e soviética (Figura 1) (Lanzieri, 2019, p. 189-
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209). Aliás, a Alemanha de Hitler mobilizou amplamente a memória do Sacro
Império Romano Germânico de Oto I (912-973) para identificar-se como o III
Reich e, consequentemente, como herdeira natural do império medieval. O
brado ein Reich, ein Volk, ein Führer (um Império, um povo, um líder) ecoava
nas aparições públicas de Hitler junto às multidões, inflamando o patriotismo
alemão e demonstrando que a Idade Média permanecia como uma fonte
inesgotável de referências e reapropriações.

Figura 1 – Propaganda militar nazista com elementos medievais

Fonte: Hi-Story/Alamy/Fotoarena.

Frente à imagem de uma obscura Idade Média (vista como a Idade das
Trevas) e à de uma Idade Média idealizada e nacionalista, em meados do século
passado a historiografia viu surgir uma nova compreensão de Idade Média. Sem
desconsiderar a importância de Marc Bloch (1886-1944), de outros medievalistas
da primeira metade do século XX, bem como de outras escolas historiográficas,
pode-se afirmar que foi a terceira geração dos Annales, com Jacques Le Goff
(1924-2014), Georges Duby (1919-1996), Emmanuel Le Roy Ladurie (1919-),
entre outros, que alçou o medievo a novos rumos e à vanguarda da historiografia.
Para um novo conceito de Idade Média é o título da emblemática
coletânea de Le Goff, publicada em 1977, e serve de exemplo das novas
perspectivas dos estudos medievais no período. Ela foi produzida num contexto
de efervescência de novos problemas e métodos, de alargamento da noção de
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documento, ou seja, de mutações no fazer historiográfico, resultando num
movimento de redefinição dos estudos medievais que ultrapassou as fronteiras
da França e influenciou diferentes historiografias, entre elas a brasileira. O novo
conceito de Idade Média proposto por Le Goff caracterizou-se, por exemplo, pela
abordagem transdisciplinar e de uma concepção de longa duração do Ocidente
medieval, pela história das mentalidades e pelo destaque de temáticas como os
rituais, os gestos e o folclore. De acordo com Le Goff (1980, p. 12):

Uma outra Idade Média é — no esforço do historiador — uma Idade


Média total, elaborada tanto a partir das fontes literárias, arqueológicas,
artísticas, jurídicas, como a partir dos únicos documentos outrora
concedidos aos medievalistas “puros”. É, repito, uma longa Idade
Média, em que todos os aspectos se estruturam num sistema que, no
essencial, funciona desde o Baixo Império romano até a Revolução
Industrial dos séculos XVIII e XIX. É uma Idade Média profunda que o
recurso aos métodos etnológicos permite abarcar nos seus hábitos
quotidianos, nas suas crenças, nos seus comportamentos, nas suas
mentalidades.

Apesar da Idade Média na concepção de Le Goff ter contribuído para a


renovação dos estudos medievais por meio da definição do medievo pela
alteridade com nosso mundo, ela manteve o foco do período como uma história
da Cristandade latina, marcadamente a partir do modelo francês. Todavia, a
prática de historicização da disciplina, acentuada nas últimas décadas —
associada à afirmação das historiografias de fora da Europa e ao aparecimento
de novas linhas teóricas, como os estudos pós-coloniais e decoloniais —,
favoreceu a renovação de diferentes temáticas, revisando os conceitos
operativos do historiador e, especificamente, do medievalista. Além disso, o
diálogo interdisciplinar e as aproximações entre diferentes escolas
historiográficas promoveram novos caminhos para a História Medieval, vias que
ressaltam a crítica ao caráter eurocêntrico da Idade Média.
A obra Fazer e pensar a História Medieval hoje: guia de estudo,
investigação e docência (2017), da historiadora Maria de Lurdes Rosa, é um dos
poucos títulos disponíveis em língua portuguesa que sistematiza a produção
atual da medievalística internacional (Rosa, 2017). Em diálogo com o estudo de
Rosa, indicam-se diferentes frentes de investigação sobre o medievo na
atualidade: a questão da recepção e dos usos da Idade Média no mundo
contemporâneo, o chamado medievalismo; a história antropológica da sociedade
medieval, explorando os rituais, as emoções, o corpo e as práticas religiosas; a
decolonização da Idade Média, repensando conceitos estruturantes como

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feudalismo e violência; a reconsideração das fontes literárias medievais por meio
da História Cultural e estudos linguísticos; a História Global do medievo,
articulando Europa, Ásia e Oriente Médio; e uma história conectada do
Mediterrâneo medieval, abordagem que integra cristãos, judeus e muçulmanos.
Ao longo do século XX, a Idade Média deixou de ser apenas uma
ferramenta acadêmica para se tornar objeto de curiosidade e interesse da cultura
popular e dos meios de comunicação em massa. Ao passo que a história não
mais se produz somente no mundo acadêmico e nos livros impressos, evidencia-
se que as plataformas digitais, assim como outras mídias mais antigas, como o
cinema e os jogos eletrônicos, subverteram as bases da produção e circulação
das narrativas sobre o passado. Assim, pode-se dizer que cada vez mais e mais
pessoas estão usando as diferentes mídias para acionar o passado e construir
outros tipos de discursos históricos, narrativas e saberes que, por vezes,
afastam-se do que a academia compreende como mais correto ou verossímil
acerca de determinado acontecimento ou sociedade passada. Para finalizar
esse panorama sobre a Idade Média no mundo contemporâneo, convém refletir
agora sobre o medievalismo, um vasto campo de estudos empenhado em
investigar as apropriações, interpretações e ressignificações da cultura medieval
em épocas posteriores à Idade Média.

TEMA 4 – O MEDIEVALISMO

No cinema, nos quadrinhos, nas livrarias, a Idade Média conhece


grande sucesso, sendo uma das manifestações mais importantes, sem
dúvida, a explosão da fantasia, um subgênero bastante recente que na
maioria das vezes desenvolve seus personagens em um universo
imaginário próximo, ou pelo menos inspirado, na Idade Média. […]
Nesse reino de mundos que não existem, o leitor se depara com uma
Idade Média que não existe, ou melhor, com uma miragem.
(Rochebouet; Salamon, 2008, p. 320, tradução livre)

O recente sucesso internacional da saga literária A Song of Ice and Fire


(As Crônicas de Gelo e Fogo), do escritor George R. R. Martin, e da série de
televisão norte-americana Game of Thrones são indícios de um movimento muito
mais amplo de recepção da Idade Média na cultura contemporânea, que abarca
expressões literárias, cinematográficas, arquitetônicas, musicais e lúdicas. O
termo inglês medievalism vem do século XIX e, desde o final do século passado,
tem sido usado como referência para os estudos acerca da recepção da Idade
Média. As pesquisas têm investigado diferentes manifestações do medievalismo,
sendo possível estabelecer três amplos conjuntos de estudos: os usos políticos
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da Idade Média; o recriacionismo histórico, elemento turístico, econômico e
educativo; e a recepção da Idade Média como motivo midiático, literário e lúdico
(D’Arcens, 2016).
Essa miragem medieval, como sugerido no trecho acima, pode ser
exemplificada pela série Game of Thrones. Como uma série de fantasia, ela não
representa lugares e eventos históricos, distinguindo-se de outras produções
contemporâneas, como Vikings e The Last Kingdom, exemplos de ficção
histórica. O enredo de Game of Thrones desenvolve-se nos continentes fictícios
de Westeros e Essos, habitados por homens, gigantes, dragões, corvos falantes
e os famosos caminhantes brancos.
Inspirada em acontecimentos históricos e rejeitando os cânones do
gênero fantasia, Game of Thrones foi recebida e examinada, pelo público em
geral e pela crítica especializada, como um “filme histórico”, uma série baseada
na história medieval real. Em torno dessa recepção da série, reside um dos
principais problemas: a questão do realismo histórico. George Martin manifestou
em diferentes oportunidades o seu desejo em romper com o escapismo do
gênero fantasia, característica ancorada na cultura de massa pelo universo de
Walt Disney e de J. R. R. Tolkien, referências criticadas por serem inverossímeis,
idealizadas e infantis. A saída encontrada por Martin foi basear-se na Idade
Média, buscando garantir a autenticidade histórica de sua obra.
Uma das principais referências do realismo histórico de Game of Thrones
é sua dimensão política inspirada na Europa medieval. A série mobiliza uma
profusão de ícones medievais, que criam um ambiente familiar aos espectadores
acostumados com a representação de castelos, cavaleiros, tronos imponentes
etc. Em síntese, pode-se afirmar que Westeros é um mundo definido pelas
estruturas vassálicas familiares às da Europa medieval dos séculos X ao XII,
expressando-se através dos códigos de cavalaria, dos vínculos pessoais de
dependência e da violência. Não obstante, esse recurso narrativo à violência,
antes de informar sobre a Idade Média histórica, revela uma das recepções mais
comuns do medievo, a ideia de uma Idade Média bárbara, época sem lei, de
força bruta viril, um período de trevas (dark ages) por excelência. Assim, ao
construir um mundo extremamente violento, George Martin e os produtores do
canal HBO exploram um dos principais pilares da imagem contemporânea do
medievo: a ideia de uma sociedade de violência generalizada.

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Paralelamente ao destaque da violência, Game of Thrones reafirma a
ideia da Idade Média como uma cultura branca uniforme, um dos equívocos mais
enraizados acerca do medievo. Segundo Helen Yong (2017), “a ideia de que a
“Idade Média real” foi um período marcadamente branco tem mais a ver com
fantasias modernas sobre pureza racial do que com a realidade histórica”. As
representações de uma sociedade medieval patriarcal, branca e deveras violenta
não são um entretenimento inofensivo ou um modismo; pelo contrário, tais
representações estabelecem laços forte com a ação política concreta. Elas têm
sido utilizadas por grupos conservadores autoritários e supremacistas raciais ao
longo do século XX e XXI, que costumam fazer do medievo o seu referencial
identitário, nostálgico e instrumento de autorrepresentação (Falconieri, 2015, p.
16). A partir de tais aportes, a Idade Média de Game of Thrones revela novas
dimensões a fim de problematizar os usos do passado medieval na
contemporaneidade, usos que extrapolam o entretenimento e ganham força na
agenda política internacional, demonstrando a atualidade e a relevância do
campo de estudos do medievalismo.

TEMA 5 – A IDADE MÉDIA OCIDENTAL E SUAS PERIODIZAÇÕES

O termo Idade Média deve ser o mais desastrado de todos esses


inúmeros rótulos que nós, historiadores, continuamos por hábito a apor
a cortes arbitrários do passado. Porque toda a época é, se quisermos,
uma “idade média”, uma transição entre o passado e futuro. Aquela a
que chamamos medieval — o milénio entre o século IV e o XIV — só
foi transição verdadeira entre a agonia da civilização mediterrânea
clássica e a gestação da civilização europeia moderna. (Lopez, 1965,
p. 11)

Agora que aprendemos a longa trajetória do conceito de Idade Média e os


múltiplos olhares sobre o medievo na contemporaneidade, cabe considerar as
demarcações internas ao período histórico, tendo como foco espacial o Ocidente
medieval. Nesse sentido, a exposição será dividida inicialmente em dois eixos:
a questão do fim do mundo antigo e o problema do fim do medievo.
Após séculos de expansão e esplendor, entre o século III e o século V,
período conhecido como Baixo Império, o mundo romano vivenciou um profundo
declínio, uma crise política, econômica, social e cultural, e ruiu em 476, com a
deposição do último imperador em Roma. Desde o século XVIII, com a obra de
Edward Gibbon (1737-1794), até meados do século passado, essa noção
expressava de forma um tanto consensual a compreensão sobre o fim do mundo
romano e a passagem da Antiguidade para a Idade Média. Com conotações
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claramente negativas acerca dos últimos séculos romanos e sobre os primeiros
séculos do medievo, tal perspectiva pode ser sintetizada em duas vias: a
explicação político-institucional e a explicação econômico-social.
Para a primeira corrente, exemplificada pelas obras de Mikhail Rostovtzeff
(1870-1952) e Ferdinand Lot (1866-1952), as reformas do Estado romano, em
vez de sanarem a crise institucional dos séculos II e III, acentuaram a
desestruturação do Império, sendo agravadas pelas invasões bárbaras. De
acordo com essa perspectiva, o fim do mundo romano legou uma sociedade
decadente, corrupta, com poder fragmentado e com uma economia reduzida às
trocas locais in natura. Para a segunda via, exemplificada pelos estudos de Max
Weber (1864-1920) e Perry Anderson (1938-), a crise do mundo romano foi,
sobretudo, uma crise do sistema produtivo, prejudicado pela escassez da mão
de obra escrava, que inviabilizou a produção e contribuiu diretamente para as
guerras contínuas que desestruturam o mundo romano. Nesse sentido, usando
os termos de Anderson, a Idade Média seria o resultado da catastrófica colisão
do modo de produção primitivo e do modo de produção antigo, que geraram uma
nova síntese, a ordem feudal fundada no trabalho servil.
Em ambas as propostas, o mundo romano e a Antiguidade terminam no
século V, num cenário de crise, declínio que se prolongou aos séculos seguintes.
No entanto, desde meados do século passado, ocorreu uma profunda
reavaliação da interpretação histórica sobre os séculos III a V, reorientação que
pode ser expressa no conceito de Antiguidade Tardia, forjado em contraposição
à ideia de decadência e ruína romana (Machado, 2015, p. 81-114). Num primeiro
momento, os estudos de Henri-Irénée Marrou (1904-1977), Arnold Hugh Jones
(1904-1970) e Santo Mazzarino (1916-1987) propuseram que o Império
Romano, em vez de sucumbir à crise do século III, se renovou e deu origem a
uma civilização original e dinâmica. Porém, foi nos anos 1970 que o conceito de
Antiguidade Tardia ganhou maior expressão e contornos mais precisos com a
obra The World of Late Antiquity (1971), de Peter Brown. Em síntese, Brown
definiu o conceito como um período distinto na história do Mediterrâneo, marcado
por uma revolução social e espiritual (Brown, 1971). Antiguidade Tardia seria o
período entre os séculos III e VIII, caracterizado, primeiramente, pela redução da
importância da civitas clássico/helenística e dos valores a ela intrínsecos e pela
configuração de uma identidade religiosa. Assim, guardadas as variações

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regionais, a Idade Média teria início no fim do I milênio, numa sociedade
mediterrânica profundamente reestruturada pela afirmação do cristianismo.
Diferentes autores têm criticado as perspectivas de continuidade histórica
do conceito de Antiguidade Tardia, enfatizando que nessa leitura culturalista as
rupturas são minimizadas e as estruturas políticas, econômicas e sociais
ganham pouca importância. Esse movimento pode ser representado pela obra
de Andrea Giardina (1949-), que reinterpreta a questão da crise romana,
dissociando as noções de crise e declínio, e dos estudos de Chris Wickham
(1950-). Em O legado de Roma, Wickham apresenta uma nova leitura sobre a
passagem do mundo antigo para a Idade Média, questionando tanto a lógica da
ruptura como a da continuidade. Com base em documentos escritos e em fontes
arqueológicas, o autor evidencia a desaceleração da economia mediterrânica e
o recuo da vida material entre os séculos V e VII, elementos considerados
indícios da passagem da Antiguidade ao medievo (Wickham, 2019).
Esses diferentes olhares historiográficos permitem perceber as variadas
formas de interpretar o fim do mundo antigo e o início da Idade Média. Visa-se
demonstrar a complexidade presente na seleção de marcos delimitadores e
reforçar que o historiador deve estar consciente das escolhas que faz. Portanto,
atualmente, muitas são as demarcações possíveis da passagem da Antiguidade
para o medievo, cada uma delas remetendo a determinada posição
historiográfica ou escolha de abordagem: os séculos II e III, entre o reinado de
Marco Aurélio (161-180) e Dioclesiano (284-305), que expressam a crise do
sistema produtivo romano; o século III e IV, com a institucionalização do
cristianismo no Império; o século V, com o fim do Império Romano do Ocidente;
os séculos VII e VIII, com a expansão do Islã no mediterrâneo; ou ainda o século
IX, com a organização e desestruturação do Império Carolíngio.
Como é possível deduzir, o fim da Idade Média também é objeto de
inúmeras controvérsias. Desde o século XVII, a perspectiva político-institucional
se impôs, resultando na ideia de que o medievo terminou em 1453, com a queda
do Império Romano do Oriente (Bizâncio) para os turco-otomanos. Assim, o
medievo seria o milênio entre o declínio de Roma, no século V, e a ruína de
Bizâncio, no século XV. Ademais, como indicado antes, ao passo que a noção
de Idade Média se constituiu como contraponto ao mundo moderno e,
posteriormente, à sociedade burguesa-capitalista, o fim do medievo foi

14
interpretado pelo viés de uma crise generalizada, o “outono medieval”
celebrizado na obra de Johan Huizinga (1872-1945).
Paralelamente a essa perspectiva de um declínio medieval que seria
superado pelo Renascimento, as leituras econômico-sociais propuseram outra
dimensão negativa para o fim do medievo: a crise do feudalismo. Nessa via, o
final da Idade Média relaciona-se ao momento em que o capitalismo começou a
dar os seus primeiros sinais, as cidades italianas do século XIII com o capitalismo
comercial, e os séculos XIV e XV marcariam o início da transição do feudalismo
para o capitalismo.
A compreensão de permanências entre o século XV e o século XVIII
também aparece em estudos sobre o Estado e suas bases jurídicas e
institucionais. António Manuel Hespanha (1945-2019), por exemplo, defendeu a
continuidade das estruturas políticas entre os séculos XIII e XVIII, reivindicando
o pluralismo político e a manutenção de uma sociedade corporativa no Antigo
Regime. Por outro lado, Perry Anderson, um dos expoentes da historiografia
marxista, argumenta em Linhagens do Estado Absolutista (1995) que o final da
Idade Média estaria relacionado ao surgimento do Absolutismo, que deve ser
visto como um arranjo de forças entre a nobreza e a burguesia em um momento
de transição do feudalismo para o capitalismo.
Por fim, temos a noção de “longa Idade Média”, cunhada por Jacques Le
Goff. Insistindo que o Renascimento do século XVI representou mais um dos
renascimentos pelos quais a Idade Média passou — como o renascimento
carolíngio no século IX e o renascimento do século XII —, e não uma ruptura, Le
Goff propôs que apenas no fim do século XVIII, com a dupla revolução (a
industrial e a de queda do Absolutismo), a Idade Média terminou. Alain Guerreau
e Jérôme Baschet aprofundaram tais argumentos, acrescentando que as bases
da sociedade feudal (religião e economia rural) se prolongaram para além dos
marcos espaço-temporais da Idade Média, alcançando as Américas coloniais.
Desse modo, tal como ocorre para o início da Idade Média, o final do
período comporta diferentes demarcações. Concentrando-se nos séculos XV e
XVI, pode-se usar a queda de Constantinopla, em 1453, como marco; o ano de
1492, tanto pela derrota do reino de Granada para os Reis Católicos, como pela
chegada de Cristóvão Colombo às Américas; ou a primeira metade do século
XVI, com as Reformas protestante e católica, que romperam a unidade da

15
cristandade latina. Novamente, a escolha pelos marcos temporais é uma
ferramenta carregada de sentidos que cabe ao historiador manusear.
Para finalizar o presente tema, cabe brevemente apresentar as
periodizações internas do período medieval, sobretudo em sua experiência
europeia. Tais divisões variam conforme as tradições historiográficas e, no
Brasil, usam-se geralmente duas. A primeira delas define duas Idades Médias:
a Alta Idade Média (séculos V-IX) e a Baixa Idade Média (séculos X-XV). Essa
proposta ainda persiste em muitos manuais escolares, porém é pouco usual no
meio acadêmico. Assumindo as referências da escola historiográfica francesa,
comumente divide-se o medievo em três etapas: a Alta Idade Média (séculos V-
IX), a Idade Média Central (séculos X-XIII) e a Baixa Idade Média (séculos XIV-
XV). Tal divisão permite o estabelecimento de maiores nuances entre os
períodos, ampliando sensivelmente a diversidade interna do milênio medieval.
No entanto, convém ter em vista que tais periodizações não são neutras,
expressam um desprezo dentro da própria Idade Média (a Alta Idade Média é
vista ainda como uma “Idade das Trevas”, em comparação cm o esplendor do
renascimento das cidades e do comércio do medievo central). Ademais, ainda
que nossa discussão se centre no Ocidente, devemos compreender a amplitude
da sociedade medieval mediterrânea — que articula a sociedade muçulmana da
Península Ibérica, do norte da África, da Península Arábica, a sociedade
bizantina (cristãos orientais) — e a diversidade de experiências medievais na
própria Europa, com diferentes núcleos regionais marcados por suas próprias
particularidades, como a Península Ibérica, a Escandinávia, a Península Itálica,
a Europa central e o leste europeu.

NA PRÁTICA

Como vimos, a noção de Idade Média foi concebida, recebida e


apropriada de diferentes formas, desde seu advento como classificação
cronológica até hoje. Nesse sentido, faça o seguinte exercício de reflexão: qual
a noção que você tinha sobre a Idade Média antes da leitura desse material e
qual a noção de Idade Média que você tem a partir de agora? O que mudou, o
que permaneceu? A sua visão de Idade Média estava mais alinhada à
concepção de uma “idade de trevas” ou de uma época romântica idealizada (de
valores de honra, da imagem de castelos, cavaleiros, príncipes e princesas)?

16
Você consegue compreender agora como diferentes olhares e contextos
históricos influenciam as concepções sobre as variadas épocas históricas?

FINALIZANDO

Com este panorama a respeito do conceito de Idade Média no Ocidente,


suas distintas possibilidades de periodizações, suas diferentes interpretações e
apropriações efetuadas o advento de sua noção até hoje, pudemos ampliar
nosso olhar sobre como um período histórico é enquadrado em uma perspectiva
cronológica.
Esse enquadramento nunca é neutro; ele pode ter uma finalidade didática,
um objetivo acadêmico, escolar, pragmático, mas sempre terá marcas da visão
social do tempo em que é concebido e demarcado. Ele também pode ser
utilizado por meios culturais com fins estéticos, de entretenimento, de consumo
e mercado, bem como pode ser utilizado para fins políticos ligados a propósitos
de um determinado presente e contexto, podendo estar totalmente alheio a
concepções éticas e historiográficas comprometidas.
A nós, profissionais ligados à História e, principalmente, aos medievalistas
(profissionais acadêmicos da História Medieval), cabe desvendar e compreender
esses mecanismos de construção, visando a produção e divulgação de um
conhecimento científico amplo, ético, sério e profissional a respeito das
experiências humanas vividas no período que costumamos delimitar como o
milênio medieval.

17
REFERÊNCIAS

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19
HISTÓRIA E HISTORIOGRAFIA
MEDIEVAL OCIDENTAL
AULA 2

Prof. Douglas Mota Xavier de Lima


Profa Mariana Bonat Trevisan
CONVERSA INICIAL

A formação dos reinos medievais e a ascensão do cristianismo no


Ocidente

A Europa medieval nasceu do mundo romano, ou melhor, das


transformações que esse mundo experimentou graças às migrações
bárbaras, à difusão do cristianismo, à descentralização do poder
político e ao fortalecimento da aristocracia rural. (Silva, 2019, p. 15)

Esse trecho serve de roteiro para as discussões que apresentaremos


neste momento da nossa disciplina. Iniciamos com reflexões sobre o legado
romano, tendo em vista que ao longo de toda a Idade Média a herança romana,
com sua forma de governo, legislação, língua e literatura, exerceu forte influência
na Europa Ocidental.
Em seguida, discute-se o tema das migrações bárbaras, pois povos de
múltiplas etnias e culturas, não pertencentes à civilização greco-romana, se
integraram ao mundo romano, dando origem aos reinos ocidentais. Essas
unidades políticas constituem o terceiro item deste texto, focado no estudo das
monarquias do primeiro milênio cristão. Abrem-se, então, dois tópicos
relacionados à difusão do cristianismo no Ocidente: o primeiro, voltado aos
temas institucionais e doutrinários; e o segundo, dedicado às estratégias de
conversão e disseminação do cristianismo.

TEMA 1 – O LEGADO ROMANO

A herança romana é muito mais rica. E a Europa medieval saiu


diretamente do Império Romano. A primeira herança capital é a língua,
veículo da civilização. A Europa medieval fala e escreve em latim, e
quando o latim recuará diante das línguas vulgares após o século X,
as línguas ditas romanas – espanhol, francês, italiano e português –
perpetuarão esse patrimônio linguístico. (Le Goff, 2007, p. 24)

Jacques Le Goff sublinha que a Europa medieval recebeu diferentes


heranças da Antiguidade:

• A indo-europeia, que ofereceu o modelo de sociedade trifuncional


(modelo social marcado por uma camada religiosa/sacerdotal, uma
aristocracia guerreira e uma extensa camada produtora/trabalhadora),
ideologia mobilizada pelos pensadores cristãos para definir o
funcionamento e as hierarquias sociais do medievo.

2
• A grega, que legou à Idade Média o humanismo e a ideia do herói sobre-
humano que, cristianizado, muta-se na figura do mártir e do santo.
• A bíblica, que consistiu na base do saber, da memória e de um vasto
conjunto de referências sobre a política, a economia, o corpo, o porvir etc.
• E a romana, indicada na citação do começo deste tema.

O legado romano compõe, assim, um dos elementos que estruturam o


medievo ocidental, articulando-se às demais heranças e manifestando-se em
várias dimensões: no sistema de estradas, que mesmo com a deterioração de
parte das vias terrestres conseguiu transmitir ao medievo uma complexa rede de
circulação de longa distância; na língua, com o latim sendo empregado tanto na
liturgia como nos assuntos administrativos, além de ser a referência para grande
parte das línguas neolatinas surgidas no medievo; no campo jurídico, posto que
a sociedade romana ofereceu aos séculos seguintes um vasto corpo legal, como
o Codex Theodosium, do século V, e o Corpus Iuris Civilis, do século VI, códigos
de leis que influenciaram, por exemplo, as leis visigodas coevas (como o codex
euricinus e a lex romanavisigothorum) e se tornaram a base da renovação do
direito no Ocidente a partir do século XII; e na estrutura administrativa, com a
divisão em dioceses sendo incorporada pela administração eclesiástica.
Cabe ainda assinalar a influência do legado romano para as referências
políticas e a Igreja. Em termos políticos, observa-se a manutenção de conceitos
da tradição clássica que foram adotados pelo cristianismo e serviram de
sustentação às monarquias, por exemplo, a associação das noções de imperium
e Christianitas, assim como a importância da sacralização da realeza por meio
da herança baixo-imperial (Frighetto, 2008).
Não obstante, foi a Igreja a principal herdeira do Império Romano. Esse
legado se evidencia em termos administrativos, jurídicos, intelectuais,
conceituais e na língua. A aliança entre catolicidade e latinidade é uma das
marcas mais significativas do período, pois o cristianismo soube incorporar e
adaptar diferentes elementos da cultura clássica, tirando proveito das formas de
culto estabelecidas, aproximando a ética cristã do poder político e aceitando os
métodos educativos clássicos como base da doctrina Christiana (Ladero
Quesada, 1989).
Como veremos, essa lenta adaptação do cristianismo ao mundo romano
mediterrânico redefiniu as bases da sociedade clássica, com a Igreja se

3
introduzindo entre o indivíduo, a família e a cidade, isto é, modificando
profundamente a cultura cívica da cidade antiga (Brown, 2009).

TEMA 2 – AS MIGRAÇÕES DOS POVOS BÁRBAROS

Podendo-se encontrar na crise do mundo romano do século III o início


da profunda perturbação de que sairá o Ocidente medieval, é legítimo
considerar as invasões bárbaras do século V com o acontecimento que
precipita as transformações, que lhes dá um aspecto catastrófico e que
lhes modifica profundamente a aparência. (Le Goff, 1983, p. 29)

Os bárbaros não conquistaram o Império, eles se assimilaram


intensamente à sociedade romana, a ponto de, sob a perspectiva
arqueológica, ser muito difícil distingui-los dos romanos, especialmente
a partir do século VI. (Silva, 2019, p. 15)

Os trechos apresentam duas leituras distintas sobre o tema dos povos


bárbaros e, de certo modo, exemplificam a gradativa mudança da perspectiva
historiográfica sobre a questão. Le Goff, ao enfatizar as “invasões”, sobrevaloriza
o aspecto violento e conflituoso da relação entre romanos e bárbaros, remetendo
à imagem de hordas bárbaras que tomaram de assalto o Império e acentuaram
a crise do mundo romano, precipitando a queda de Roma.
Essa visão catastrófica e estereotipada prevaleceu na historiografia até
meados do século passado e, de modo mais atenuado, ainda orienta estudos
que sustentam a proeminência dos povos bárbaros para as transformações
ocorridas no Baixo Império. Não obstante, conforme o trecho de Marcelo Silva,
a historiografia tem reinterpretado o tema e o termo migrações passou a referir-
se à instalação dos bárbaros com uma conotação mais processual e, por vezes,
reduzindo o papel desses povos para as mutações do mundo romano entre os
séculos III e V.
Como indicado no texto anterior, o século III em Roma vivenciou uma
importante crise, por vezes considerada marco para o início da Idade Média, com
implicações na relação do mundo romano com os bárbaros. A crise do século III
foi, sobretudo, uma crise política e econômica. Por um lado, com sucessivas
mudanças de imperadores – apenas em 238, Roma teve seis imperadores
diferentes – acompanhadas da duplicação dos efetivos militares cada vez mais
preponderantes na política romana, o que levou ao cenário da “Anarquia Militar”,
em parte equacionado pela reforma administrativa de Dioclesiano (284 – 305) e
pela reforma no exército empreendida por Constantino (272 – 337).
Por outro lado, tais reformas caracterizaram-se pela ampliação do estado
romano e de sua burocracia, que acarretou o aumento dos custos da máquina
4
estatal e militar, demandando a reforma fiscal e o aumento de impostos (Silva,
Mendes, 2006).
Nesse contexto, uma das principais consequências da crise do século III
foi ter mudado o padrão das relações entre Roma e os bárbaros. Observa-se,
desde então, a presença cada vez mais frequente de bárbaros assentados nas
fronteiras do Império, por meio do sistema de hospitalidade (hospitalitas) e,
principalmente, nos efetivos militares romanos, grupos bárbaros recrutados, em
geral, como federados (foederati).
A modalidade foi usada com os godos, os francos e ampliada a outros
grupos bárbaros que, na categoria de federados, passaram a receber
pagamentos, ocupar postos elevados na estrutura militar e acumular honrarias
romanas, como os títulos de rex (rei) e magister (general). Essa incorporação
não impediu conflitos armados entre bárbaros federados e as autoridades
romanas, no entanto, esses enfrentamentos tiveram mais características de
revoltas do que de invasões estrangeiras. Ademais, outros fatores contribuíram
para a assimilação dos bárbaros, como o casamento e a adoção do latim, sendo
o principal a conversão ao cristianismo, seja em sua vertente ariana, monofisita
ou nicena (Wickham, 2017).
Pelos elementos expostos, podemos concluir os seguintes pontos: a
relação entre bárbaros e romanos não é somente de oposição, pois a infiltração
de grupos bárbaros no mundo romano foi, por vezes, gradual e sancionada pelas
autoridades – consequentemente, cai a noção de uma invasão bárbara
intencional e coordenada; a separação entre romanos e bárbaros tendeu a se
diluir, em especial pelo processo de cristianização e adoção do latim; o reduzido
contingente populacional de bárbaros que penetrou as terras do Império – grupos
minoritários que correspondiam a algumas dezenas de milhares de pessoas –
não necessariamente se acomodou nas províncias imperiais ou não desagregou
as comunidades locais, o que favoreceu a assimilação (Goffart, 2003).
Cabe, por fim, questionar: quem eram os bárbaros? Francos, Alamanos,
Burgúndios, Vândalos, Ostrogodos, Visigodos, Hunos, Saxões, dentre outros.
Provavelmente você já ouviu falar alguns desses nomes para designar os povos
não romanos que invadiram ou migraram ao território imperial. Contudo, desde
meados do século passado, com os novos conhecimentos advindos da
arqueologia e as novas referências epistemológicas e conceituais, o
conhecimento sobre esses povos passou por uma revisão significativa.

5
Partindo do questionamento das fontes romanas que descreveram a
história dos povos bárbaros, com as obras de Tácito (c. 56 – c. 117), Amiano
Marcelino (c. 331 – c. 391) e Procópio de Cesareia (c. 500 – c. 565), a
historiografia tem indicado as limitações dessas narrativas consideradas
etnocêntricas, isto é, que explicaram os bárbaros com base nas categorias da
sociedade romana, pagã ou cristã. Além disso, os estudos têm demonstrado que
a menção aos grupos bárbaros como “povo” ou “tribo” numa acepção moderna
é problemática, visto que são traduções imprecisas dos termos antigos nationes,
gentes, populi e ethnoi (Blockmans; Hoppenbrouwers, 2012).
Essa última questão remete ao problema da atribuição de uma identidade
étnica aos bárbaros. A identificação de determinado grupo como godo,
lombardo, suevo etc., decorre, em geral, das fontes textuais romanas, gregas e
cristãs, etnocêntricas em seus comentários, e dos vestígios materiais, elementos
que dificultam a definição étnica desses grupos, pois não existe objeto
etnicamente inequívoco. Tradicionalmente, os bárbaros foram encarados como
unidades populacionais culturalmente homogêneas, com uma mesma
ancestralidade, costumes, língua e local de origem. Essa perspectiva pode ser
vista no mapa a seguir (Figura 1), representação comumente encontrada em
atlas históricos e livros acadêmicos e didáticos sobre o período do Baixo Império.

Figura 1 – As invasões bárbaras (séculos IV – VI)

Crédito: João Miguel.


6
O mapa pretende mostrar os caminhos percorridos pelos bárbaros no
processo de invasão do Império Romano. Tomando como exemplo o caso dos
Hunos, por meio de uma seta de cor amarela, a imagem apresenta o
deslocamento que atravessou a Ásia e chegou ao Império Romano do Oriente,
ao norte da Itália e à Gália séculos depois. A seta move-se sinuosamente por
várias direções, colocando os Hunos em contato com inúmeras províncias,
populações e regiões do mundo romano, sem que isso interfira na unidade do
povo durante diferentes séculos.
O mesmo raciocínio pode ser aplicado aos demais povos representados
pelas setas do mapa e evidencia a noção de unidade/continuidade cultural
inerente a esse tipo de representação. Na contramão dessa perspectiva,
atualmente entende-se o caráter dinâmico dos grupos étnicos, que, por vezes,
se subdividiam em novos grupos e assumiam novas identidades. Assim,
podemos afirmar que as etnias não são fenômenos objetivos e que os limites
étnicos nunca são estáticos, tornando-se ainda mais dinâmicos e flexíveis em
contextos de migração (Pohl, 2003).
Em síntese, com base nos atuais conhecimentos sobre o tema, podemos
concluir que os bárbaros eram grupos multiétnicos no contexto migratório dos
séculos III e IV e que, portanto, não houve uma origem ou unidade étnica estável
ao longo dos séculos. Gradualmente, ocorreu um processo de formulações
identitárias em constante mutação, uma identidade que mobilizava referências
do contato com outras culturas e de pertencimento étnico, expressas em relatos
de origem e núcleos de tradições comuns, como ritos e cosmogonias igualmente
variáveis (Mantel, 2017). De todo modo, essa leitura não deve ser encarada
como definitiva, e sim como um saber cumulativo e provisório constantemente
modificado por novas investigações.

TEMA 3 – OS REINOS MEDIEVAIS

Na região ocidental do Império Romano os novos governantes


bárbaros criaram reinos por toda a parte, e a monarquia passou a ser
a forma predominante de governo na Europa medieval. A questão é se
os bárbaros apenas estabeleceram essa forma de governo que sempre
haviam conhecido, ou se era uma nova construção que, em parte por
influência das ideias romanas, aos poucos adquiriu sua forma
definitiva. A última hipótese é mais plausível. (Blockmans,
Hoppenbrouwers, 2012, p. 51)

Desde as primeiras páginas do texto desta aula, temos indicado a


importância do legado romano para os séculos medievais, herança que se
7
expressa, entre outras dimensões, na questão institucional. Nesse sentido, não
se deve subestimar as bases jurídicas e conceituais romanas, que serviram de
sustentação às novas monarquias, nem os rituais e insígnias que contribuíram
para legitimar o poder régio.
As monarquias medievais não se estabeleceram sobre o vácuo deixado
por Roma. Apesar disso, deve-se ter cautela em sobrevalorizar esse legado,
evitando considerar que as estruturas administrativas romanas foram
reproduzidas pelos reinos medievais, expressando a passividade dos grupos
bárbaros, ou que essa herança foi superior à capacidade gestora dos bárbaros
(Bastos, 2008).
De todo modo, a partir do século V, vemos toda a região do Império
Romano do Ocidente constituir-se em reinos independentes que não
reivindicavam a legitimidade imperial. Esses reinos não eram homogêneos e, em
diálogo com a antropologia política, a historiografia tem usado termos como
chefaturas, protoestados ou protonações, para designar a diversidade política
dos reinos, que variavam em termos de sucessão – por hereditariedade ou
eleição – e organização administrativa.
Sobre esse aspecto, Chris Wickham (2019) é enfático ao abordar a
dificuldade de manutenção da estrutura política romana por alguns reinos,
principalmente em termos do sistema fiscal, que migra para um sistema fundado
na posse de terras, não na arrecadação de impostos. Para o autor, essa
mudança foi crucial para o estabelecimento dos reinos medievais, afetando a
longevidade de alguns reinos, assim como as relações políticas internas, em
especial a posição das aristocracias.
Em termos de distribuição espacial, observa-se uma dispersão maior dos
reinos no século V, divisão que tendeu a ser substituída por unidades políticas
com maior controle territorial a partir do século VI. Entre esses reinos mais
estáveis e duradouros, podem ser citados o reino dos visigodos, que ocupou a
maior parte da Península Ibérica e estendeu o seu poder ao Loire e ao Ródano,
sendo destituídos apenas com a expansão muçulmana do século VIII; e o reino
dos francos, que gradativamente se impôs sobre a Gália e, entre o século VIII e
o IX, restituiu a autoridade imperial no Ocidente com a dinastia dos Carolíngios.
Outras unidades foram mais efêmeras, como o caso dos burgúndios, na
Gália, conquistados pelos francos no século VI, e os reinos dos vândalos, no
norte da África, e dos ostrogodos, na Itália, conquistados pela expansão de

8
Justiniano. Houve também reinos menores que se desenvolveram sob relações
de dependência com outros reinos, como o caso dos alamanos, bávaros e
turíngios, que gravitavam em torno da realeza dos francos.
A partir do século VII, são observadas mudanças importantes no cenário
político europeu. Uma das mais significativas foi a afirmação do reino dos
francos. Nele, ocorre também a lenta afirmação patrimonial e militar da família
dos pepênidas, grupos vindos da região da Austrásia e que passaram a exercer
uma espécie de tutela sob os reis da dinastia dos merovíngios. Foram esses
maiores domus (“prefeitos do palácio”) que conduziram a reestruturação da
monarquia franca, em especial com Pepino de Landen, o Velho (c 580 – 640) e
Carlos Martel (c 690 – 741), celebrizado pela vitória contra os muçulmanos na
Batalha de Poitiers, em 732.
A transição dinástica completou-se em meados do século VIII, quando
Pepino, o Breve (714 – 768), depôs o último rei merovíngio, fundando a dinastia
dos carolíngios. Nesse contexto, em 754, foi estabelecida uma aliança entre a
monarquia dos francos e o papado a fim de garantir a defesa da Igreja contra as
investidas lombardas.
Esse acordo foi fundamental para a história do Ocidente medieval, pois,
por meio dele, Pepino foi legitimado por Roma e a realeza franca passou a
receber a unção, à maneira dos reis do Antigo Testamento, elemento que
conferiu sacralidade à monarquia dos francos. Ademais, decorre dessa aliança,
já sob o reinado de Carlos Magno (768 – 814), a expressiva expansão territorial
dos francos e a reunificação de parte considerável do antigo Império Romano do
Ocidente – com a Gália, a Itália, a Renânia e a Germânia sob uma única
autoridade; assim como o restabelecimento da unidade imperial, posto que, em
800, Carlos Magno foi coroado Imperador pelo papa.
Para o papado, a aliança com os francos foi igualmente decisiva por
permitir o rompimento dos laços com o imperador romano em Constantinopla,
permitindo a Roma afirmar-se como um verdadeiro poder no Ocidente, cada vez
mais compreendido como a Cristandade latina, isto é, uma unidade política e
religiosa que reunia os cristãos católicos sob a autoridade do Império e de Roma
(Baschet, 2006).
Por fim, outro elemento que impactou o cenário europeu no século VIII foi
a expansão islâmica. Mesmo fora do escopo da nossa disciplina, convém
destacar que, após a conquista de Meca por Maomé, em 630, os sucessores do

9
profeta empreenderam uma rápida expansão do islã pela Arábia e, no século VII,
o poder dos califas já alcançava o Egito, a Pérsia e o norte da África. Dessa
presença no Magreb, em 711, tropas muçulmanas avançaram sobre a Península
Ibérica e, em menos de uma década, conquistaram o reino dos visigodos.
Esse panorama da Europa entre os séculos VII e IX fecha um amplo
quadro histórico que agrega o processo de estabelecimento dos bárbaros no
mundo romano e a formação dos reinos medievais. No cenário do século VIII em
diante, a antiga região do Império Romano do Ocidente já havia passado por
uma mutação profunda. Até o momento, concentramos a atenção nas mudanças
políticas, expressas na divisão da Europa em diferentes reinos cristãos e,
sobretudo, no restabelecimento do poder imperial com os carolíngios. É chegada
a hora de tratarmos de outro processo crucial para tal mutação: a ascensão do
cristianismo no Ocidente.

TEMA 4 – A ORGANIZAÇÃO DA IGREJA

Na nova cena urbana o bispo cristão e sua Igreja não passam de um


elemento. Agora [século IV] pode-se construir numerosas e magníficas
igrejas graças às doações imperiais e segundo o novo modelo imperial,
a basílica, edifício muito semelhante à “sala de audiência” do imperador
e ao trono do juízo de Deus, o imperador invisível da cidade. [...] Por
impressionante que pareça, [...] o cristianismo é periférico a esse
saeculum, mesmo que agora seja a fé nominal dos poderosos. [...] A
questão que se coloca para tais gerações é saber como a fachada
restaurada da antiga cidade romana corre o risco de desmoronar,
deixando o bispo cristão, munido por sua própria definição “não cívica”
da comunidade, livre para intervir como o único ator representativo da
vida urbana nas margens do Mediterrâneo. (Brown, 2009, p. 249, 255)

Escolhemos iniciar esse item a partir do século IV por diferentes motivos.


No período, as comunidades cristãs se encontravam enraizadas no
Mediterrâneo e na Ásia Menor, penetrando o espaço urbano, rural e diferentes
grupos sociais, inclusive, nos meios imperiais; o cristianismo havia se afastado
da matriz religiosa judaica, assumindo uma identidade própria e perfis regionais
particulares. O pertencimento à comunidade havia se estruturado em torno de
três pilares:

1) a conversão, a instrução batismal ou catecumenato, e o batismo


propriamente dito;
2) uma liturgia em torno da eucaristia, de um calendário cristão próprio e de
formas particulares de devoção e piedade instituídas;

10
3) a ascese (disciplina/autocontrole) moral e sexual, assim como o ideal de
virgindade, que foram adotados como valores dento da comunidade.

O lugar de culto havia migrado das casas dos cristãos para a ecclesia
(“Igreja”), em geral uma basílica elevada sobre antigos lugares de culto pagão,
dividida por naves, com local elevado para o sacerdote e acompanhada de um
martyrium – onde se conservavam as relíquias cristãs – e de um batistério (local
para o bastismo).
Ademais, o século IV marca o término do período das perseguições,
sendo marcantes nesse processo o édito de Tolerância (311), de Galério, que
cessou as perseguições, o édito de Milão (313), de Constantino, que concedeu
aos cristãos liberdade de culto, restituição de bens confiscados e igualdade de
direitos com os pagãos, e o édito de Tessalônica (380), de Teodósio, que
instituiu o cristianismo como religião de Estado e interditou os cultos pagãos
(Baumgartner, 2002; Elber; Markschies, 2012).
Esse amplo panorama é útil para compreendermos como no contexto do
fim do Império Romano do Ocidente a Igreja aparece como uma comunidade
coesa, adaptada ao mundo romano e, como sugerido por Peter Brown (2009),
em plenas condições de deixar a sua posição periférica e assumir o papel de
principal herdeira do Império. Cabe então tratarmos da institucionalização da
Igreja e estruturação da doutrina cristã no período.
Desde os éditos de Milão e Tessalônica, o número de cristãos no Império
Romano cresceu acentuadamente, espalhando-se pela Europa, pela África e
Ásia Menor. Estima-se, por exemplo, que de 10 a 20% da população total do
Império, no início do século IV, cerca de 33 milhões de pessoas, os cristãos
passaram a representar 50% no início do século V.
Esse aumento de adeptos foi acompanhado pelo significativo acúmulo de
riquezas, garantindo a afirmação do poder econômico e fundiário das
comunidades cristãs. Tais bens advinham das crescentes doações do Estado e
de particulares, das isenções fiscais, das oferendas pelo ofício dos mortos, dos
dízimos pagos pelas classes mais baixas e pelos bens apropriados dos
santuários pagãos, afinal, uma vez institucionalizada, a Igreja cristã deixou de
ser uma seita perseguida para assumir a posição de perseguidora.
A riqueza da Igreja foi fundamental para a afirmação das autoridades
cristãs na sociedade medieval, tanto pelo fato desses bens estarem divididos
pelas diferentes instituições cristãs, como mosteiros, bispados, paróquias etc., e
11
não concentrados nas mãos dos patriarcas ou do papa, quanto pela relação das
autoridades eclesiásticas com as massas pauperizadas, marginais e excluídas
do mundo romano, que passam a ser parcialmente atendidas pela caridade
cristã, manifesta, por exemplo, na distribuição de alimentos e no cuidado com os
pobres, doentes, viúvas e órfãos (Blockmans, Hoppenbrouwers, 2012).
Para finalizar o tema da institucionalização do cristianismo, a questão dos
bispos merece uma atenção pormenorizada. Em termos de poder e vínculo com
a comunidade, nota-se que, ao menos desde o século II, eles exerciam
autoridade sobre a comunidade cristã, sendo os responsáveis pela condução
dos ritos.
Nesse período, a comunidade era a única responsável pela eleição dos
bispos, cabendo aos pares a ordenação. Um cenário bastante distinto apresenta-
se no século IV, com a institucionalização eclesiástica, o crescimento da
comunidade cristã e a hierarquização de funções do clero. O poder episcopal
altera-se significativamente, com os bispos sendo costumeiramente impostos
pelas autoridades imperiais ou escolhidos pelos pares, cabendo à comunidade
somente a aclamação. Em geral, a seleção dos bispos ocorreu junto a famílias
da elite romana, o que fortaleceu o movimento de aristocratização da Igreja.
Paralelamente, os bispos de uma mesma região passam a agrupar-se em
torno de um metropolita, bispo de uma capital das províncias romanas que
exerce cada vez mais um papel de destaque sobre as comunidades menores e
convoca sínodos para a discussão de questões teológicas e disciplinares
(origem do arcebispado).
Nesse processo, ao menos desde o Concílio de Niceia (325),
prerrogativas especiais são reconhecidas aos bispos de Roma, Constantinopla
e Alexandria, designados como patriarcas. O bispo de Roma, chamado também
de pontifex, destacava-se pela importância política e cultura da cidade e,
gradativamente, assumiu maior independência dos demais patriarcas e afirmou
sua autoridade moral sobre a Igreja na Europa, as bases da chamada primazia
romana (Baumgartner, 2002).
Pelos elementos expostos, compreende-se que os bispos exerceram um
papel-chave na transição do mundo clássico para a sociedade medieval. Eles
eram responsáveis pela preservação da ortodoxia e das práticas religiosas;
garantiam a aplicação das regras e ordens da Igreja; tinham autoridade para
interpretar as escrituras e a doutrina cristã, por vezes, deixando escritos que

12
passavam a constituir essa mesma doutrina; supervisionavam outros clérigos
adscritos dentro dos domínios da diocese; administravam as propriedades do
bispado; exerciam a justiça eclesiástica; e ordenavam outros clérigos. Ademais,
o poder episcopal se manifestava fora dos domínios da Igreja e, a partir do século
V, os bispos assumem o papel de principais autoridades urbanas, atuando
ativamente nas questões econômicas, jurídicas e militares.
Tal como a estrutura institucional e a hierarquia eclesiástica, a doutrina
cristã estava instituída nos séculos IV e V. Nesse período, a base doutrinária da
Igreja estabelecia-se em diferentes pilares: nos evangelhos e escritos paulinos,
coligidos desde a passagem do século I para o II; no texto bíblico do Antigo e
Novo Testamentos traduzidos para o latim, conhecido como Vulgata de São
Jerônimo; nas orientações e cânones dos sínodos e, a partir do quarto século,
dos Concílios; e nos escritos dos padres apologistas (como Clemente de
Alexandria, Santo Hipólito de Roma e São Justino) e da patrística (Santo
Ambrósio de Milão, São Jerônimo e Santo Agostinho de Hipona).
Não obstante, a amplitude do mundo cristão potencializava divergências
entre as comunidades, as quais, por vezes, acentuavam a diversidade regional
do cristianismo (Taylor, 2000). Nesse cenário, ao passo que determinados
dogmas foram aceitos, eles tornaram-se invioláveis e compuseram a ortodoxia,
isto é, a doutrina cristã oficial. Consequentemente, outras doutrinas, escritos –
como os evangelhos não canônicos – e práticas não acomodadas na instituição
eclesiástica, foram rejeitadas e consideradas heréticas. Destarte, a heresia
distingue-se do paganismo, pois o herege é um cristão que resiste ao dogma
adotando práticas ou doutrinas condenadas pela Igreja.
A história do cristianismo foi marcada por inúmeras heresias e, no primeiro
milênio, os principais temas de cisão foram a natureza de Cristo e a Trindade,
ou seja, a discussão sobre a unidade, igualdade ou subordinação do Filho em
relação ao Pai e, noutra fase de disputas teológicas, do Espírito Santo em
relação ao Pai e ao Filho.
As chamadas heresias cristológicas (Quadro 1) demonstram que
diferentes questões teológicas afligiam os meios intelectuais cristãos,
sustentando divisões e rivalidades entre os cristianismos regionais.

13
Quadro 1 – Heresias cristológicas e ortodoxia cristã (sécs. IV – VII)

Heresia Período Liderança Proposta Condenação


Arianismo Séc. IV Ario, sacerdote de Jesus tem natureza Concílio de
Alexandria divina, mas não tem a Niceia (325)
mesma substância do
Pai, sendo uma criação,
espécie de filho adotivo e
não eterno
Monofisismo/ Séc. V - Padres do Egito e Jesus tem apenas uma Concílios de
Monotelismo VII do Oriente natureza (monophysis), a Constantinopla
natureza divina, ou, entre (553 e 681)
as duas naturezas, a
vontade divina prevalece
(monothelésis)
Nestorianismo Séc. V Nestor, patriarca Jesus tem duas naturezas Concílio de
de Constantinopla (duo physeis) unidas Éfeso (431)
numa conjunção
voluntária. Maria aparece
apenas como mãe do
Cristo-Homem, não como
Mãe de Deus (Theotokos)
Ortodoxia: dogma niceno (325) da Santíssima Trindade – um só Deus, mas Nele há três
entidades divinas distintas que são essencialmente iguais; Cristo tem duas naturezas, humana
e divina; dogma mariano de Éfeso (431) – Maria é reafirmada como Mãe de Deus.

As controvérsias teológicas foram parcialmente equacionadas pelos


concílios e sínodos, consolidando um corpo doutrinário perene para a Igreja.
Todavia, tais disputas sustentaram o surgimento de igrejas cristãs separadas.
No contexto dos séculos V e VI, constituíram-se as igrejas jacobita nestoriana na
Síria, a monofisita copta no Egito e a monofisita da Arménia; no século IX,
novamente uma questão dogmática foi a causa principal da cisão entre cristãos,
com o chamado Cisma de Fócio (867), aprofundando a separação entre as
cristandades latina e grega.
A estruturação institucional e doutrinária da Igreja caracterizam a
ascensão do cristianismo no Ocidente, contudo, ao menos até os séculos VII e
VIII, tais processos não resultaram numa condução romana da Cristandade, isto
é, numa adoção generalizada das formas romanas nas diferentes partes da
Europa cristã.
Prevalecia, então, a diversidade dos cristianismos regionais, com suas
respectivas condições religiosas, políticas e sociais, o que contribuiu para o
florescimento de formas de vida religiosa variáveis – do período são conhecidas,
por exemplo, as liturgias visigótica, gálica, irlandesa e romana –, demonstrando
que a primazia romana não se revertia em controle institucional e litúrgico (Kottje,
2012). Para compreendermos melhor esse enraizamento da Igreja nas
14
diferentes regiões da Cristandade, cabe estudarmos a disseminação do
cristianismo na Europa, nosso último tema.

TEMA 5 – A DISSEMINAÇÃO DO CRISTIANISMO

De todos os grupos religiosos do mundo greco-romano, por que um


obscuro grupo de judeus palestinos se espalhou para se tornar a
religião estabelecida do Império Romano em menos de quatro
séculos? (Finn, 2000, p. 295)

A questão apresentada por Thomas Finn é comumente feita por


estudantes de história, intrigados pela vertiginosa ascensão do cristianismo no
mundo romano nos primeiros séculos da Era Cristã. Para acompanhar as linhas
gerais desse processo, destacaremos três aspectos: a inserção espacial da
Igreja, a missionação e as estratégias de conversão.
Como indicado anteriormente, o processo de estruturação da Igreja
ocorreu, sobretudo, nas cidades e em torno da autoridade episcopal. Podemos,
assim, falar de um cristianismo predominantemente urbano que, gradativamente,
ganhou os campos. Tal reorientação acentuou-se no século IV, por um novo
modelo de vida cristã criado pelos “homens do deserto”, cristãos eremitas e
anacoretas que renunciam ao mundo e passam a viver em lugares ermos, sendo
ainda exemplificada pelos estilitas (monges ascetas cristãos que viviam em
pilares), devotados à pregação e ao jejum. Lentamente, esses grupos ascéticos
passaram a formar pequenas comunidades com ideais comuns, constituindo a
vida monástica por meio dos mosteiros.
Enraizado no Império Romano do Oriente, em especial no Egito e na Síria,
a partir do século VI, o monaquismo assumiu importância considerável no
Ocidente, especialmente pelo número de mosteiros criados, pela força do
modelo monacal de vida cristã e pela atividade cultural, intelectual e econômica
dos mosteiros.
Nesse contexto, uma das regras monásticas mais difundidas pela Europa
passa a ser a regra beneditina, baseada nas orientações de Bento de Núrcia (c.
480 – c. 546), fundador do mosteiro de Monte Cassino, na Itália. A regra
estabelecia que seus monges não podiam ter pertences pessoais, deveriam
viver em castidade e sem sair do mosteiro, seguindo as ordens do abade,
autoridade institucional estabelecida pelo bispo da diocese.
A dispersão das instituições cristãs nas cidades e nos campos não pode
ser dissociada de um intenso movimento de missionação igualmente
15
responsável por disseminar o cristianismo em diferentes regiões. Tal apelo,
inerente à mensagem evangélica, tornou-se mais incisivo com a
institucionalização da Igreja no século IV. Até o século de Constantino, o
cristianismo enraizara-se nas partes orientais do mundo romano e nos litorais do
Mediterrâneo. Desde então, acompanha-se uma ampliação do movimento
missionário, em especial na Europa.
Nesse contexto, godos, burgúndios e vândalos ingressaram no território
imperial já convertidos ao cristianismo em virtude da atuação de pregadores
além do limes. Essa conversão se deu sob a doutrina do arianismo, mas não
impediu que esses grupos se assimilassem ao mundo romano e cristão, assim
como não limitou iniciativas da Igreja de trazer tais grupos para o dogma niceno
(decidido no Concílio de Niceia, em 325) , como aconteceu com os visigodos por
meio da conversão do rei Recaredo, em 587.
Outra via foi seguida pelos francos, que permaneceram pagãos até o final
do século V, distinguindo-se pela opção pelo credo niceno desde a conversão
do rei Clóvis, por volta de 496. Na Irlanda, o cristianismo afirmou-se entre os
séculos V e VI, conversão iniciada com as ações de São Patrício (c.385 – 461)
e consolidada com a atividade dos monastérios.
A penetração do cristianismo junto aos anglo-saxões foi um pouco mais
lenta, com a existência de missões de evangelização no século VI, no período
do papa Gregório Magno (590 – 604), e a conversão tornando-se mais efetiva
no século VIII, época de Beda, o Venerável.
Por fim, nas regiões europeias mais ao norte e ao leste, a disseminação
do cristianismo ocorreu a partir dos séculos VII e VIII, com a conversão da região
da Bavária e da zona renana, estendendo-se aos séculos X e XI, com a adoção
do cristianismo na Polônia, na Hungria, na Escandinávia e na Islândia, e com
missões para a cristianização da Rússia e dos eslavos.
O panorama apresentado é útil para compreendermos a expansão do
cristianismo no Ocidente como algo gradual e inconcluído ao final do primeiro
milênio. Não obstante, essa cristianização deve ser entendida como uma
vinculação institucional, não como a superação de práticas comunitárias
consideradas pagãs – como cultos de fertilidade e rituais locais, que
permaneceram ativos até a Idade Moderna – ou uma incorporação dos dogmas
e dos modelos de vida cristã pelas massas de fiéis.

16
Em geral, o cristianismo atingiu o conjunto da população da Cristandade
mais lentamente do que as elites, cristianização caracterizada por uma
demonstração de fé mais exterior, com os ritos, celebrações e práticas públicas,
do que interiorizada, algo que, segundo a historiografia, teria ocorrido apenas a
partir do século XIII ou no contexto das Reformas do século XVI.
Para essa cristianização institucionalizada da Europa, como sugerimos, a
conversão dos reis bárbaros foi fundamental, posto que o ato régio
frequentemente determinava a conversão de todos os guerreiros dependentes
ao senhor. Destarte, tratava-se geralmente de uma conversão coletiva
atravessada pelos laços de clientela, não de um ato individual de fé. Esse modelo
de conversão régia e das elites repetiu-se com frequência em diferentes partes
da Europa, sendo emblemáticos os relatos da conversão dos francos, narrada
por Gregório de Tours, e dos visigodos, descrita por João de Biclara.
Cabe, para finalizarmos nossa aula, atentar às estratégias de conversão
mobilizadas no processo de disseminação do cristianismo no Ocidente. Muitas
delas foram citadas nas páginas anteriores, como a conversão das realezas
bárbaras e, consequentemente, das elites locais; e o combate às práticas
cultuais pré-cristãs, com a destruição de ídolos, rituais de exorcismo e a
construção de igrejas sobre locais de culto pagãos.
Acrescenta-se ainda a gradativa conformação do sincretismo religioso,
isto é, a fusão de elementos religiosos cristãos e pagãos, exemplificado nas
procissões que substituíram rituais pagãos, pela incorporação de festas agrárias
locais e regionais no calendário cristão, geralmente voltadas à celebração de um
santo e pela ampla mobilização de elementos mágicos, como as relíquias,
amuletos e água benta.

NA PRÁTICA

Para esta prática, reflita a respeito das transformações históricas, das


relações de poder e das mudanças culturais ao longo do medievo. Portanto,
pesquise a respeito de locais que eram templos de religiões pagãs e foram
transformados em igrejas cristãs, sobre o significado originário de rituais,
símbolos e comemorações que foram cristianizados e constituem elementos que
integram até hoje de forma diversa a cultura das sociedades ocidentais (tal como
festas do calendário cristão, a exemplo do Natal e da Páscoa, símbolos como a
guirlanda, a árvore de Natal, os ovos de Páscoa etc.).
17
FINALIZANDO

Como pudemos compreender pelo texto desta aula, a formação da


sociedade medieval se deu através de um processo lento, gradual e que mesclou
diferentes povos, culturas, ritos, cultos, formas de administração e poder.
Os aspectos de crise e as mutações sofridas nas dinâmicas econômicas
e de poder no Império Romano foram marcados também pela chegada de novos
povos, vindos de além das fronteiras imperiais, o que resultou em assimilações,
resistências e contestações da dominação romana (exacerbada pela crise).
Tal panorama se somou à difusão, adoção e posterior propagação da
religião cristã e da estrutura eclesiástica no contexto europeu, africano e da Ásia
Menor. No Ocidente europeu, essa difusão ocorreu em meio ao processo de
formação dos reinos romano-bárbaros, que constituíram a base da instituição
monárquica medieval.

18
REFERÊNCIAS

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19
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Paulo: Editora da Unicamp, 2019.

20
HISTÓRIA E HISTORIOGRAFIA
MEDIEVAL OCIDENTAL
AULA 3

Prof. Douglas Mota Xavier de Lima


Profa. Mariana Bonat Trevisan
CONVERSA INICIAL

O feudalismo e a sociedade senhorial

[...] um livro sobre a sociedade feudal pode definir-se como um esforço


para responder a uma pergunta posta pelo seu próprio título: quais
foram as singularidades que mereceram a este fragmento do passado
ter sido destacado dos seus vizinhos? Por outras palavras, o que nos
propomos tentar aqui é a análise e a explicação de uma estrutura
social, com as suas conexões. (Bloch, 1998, p. 14)

O medievalista francês Marc Bloch (1886-1944) foi um dos fundadores da


revista dos Annales e comumente é lembrado como precursor da ampla
renovação que a historiografia vivenciou no século passado. Investigador da
monarquia franco-inglesa da Baixa Idade Média e da vida rural francesa, Bloch
escreveu uma visão de conjunto sobre a particularidade da experiência europeia
entre os séculos IX e XIII, e para tal usou o termo “feudal” como referência. A
terminologia mobilizada por Bloch recua ao século XVIII e permanece em voga
nos meios acadêmicos e no senso comum, com os termos “feudal” e
“feudalismo” sendo frequentemente empregados para tratar da Idade Média ou,
em alguns casos, para proferir preconceitos e visões negativas sobre o período.
O Feudalismo como conceito explicativo do medievo é ainda recorrente
na educação básica, em especial nos livros didáticos. Adotando uma narrativa
que procura um sentido global para a Idade Média, os manuais didáticos
reforçam a perspectiva de que o elemento central para a compreensão do
período medieval é o Feudalismo, orientando o estudo por uma linha definida
pela origem, apogeu e crise do sistema feudal (Pereira, 2017). E essa não é uma
particularidade dos manuais brasileiros, encontramos esse modelo nos materiais
de outros países, como na Argentina, por exemplo (Waiman; Rodríguez, 2019).
Partindo da relevância do termo no meio acadêmico e escolar e das
diferentes perspectivas historiográficas sobre o tema, iniciamos este texto com
uma reflexão acerca do Feudalismo, procurando esclarecer diferentes
significações do conceito, inclusive, indicando limitações para a sua aplicação
hoje. Em seguida, discutimos a dominação senhorial, tratando das formas do
poder aristocrático. Adiante, concentramos nossa atenção na formação da
sociedade cavaleiresca. Por fim, nos dois últimos tópicos, abordamos o tema da
expansão demográfica e produtiva da sociedade medieval, considerando tanto
o crescimento populacional, como o aumento da produção nos campos.

3
TEMA 1 – O FEUDALISMO

Devemos derrubar de uma vez por todas o tirano feudalismo e sua


influência sobre os estudantes de Idade Média deve terminar. Talvez
em sua caída leve consigo esses outros ismos obstinados – senhorial,
escolástico e humanista – que tem dominado durante demasiado
tempo as investigações sobre a vida e o pensamento medieval.
(Brown, 2003, p. 272)

A noção de “sociedade feudal” é adequada para tratar da Idade Média


Ocidental? Se sim, toda a Europa foi marcada pelo feudalismo ou, como afirmava
o modelo de um “feudalismo clássico”, apenas partes da França, do Sacro
Império e da Borgonha? Existiu feudalismo em outras sociedades, como no
Japão e nas Américas, ou apenas o medievo ocidental foi “feudal”? Muitas
perguntas se apresentam ao abordar a questão do feudalismo, sendo possível
uma leitura que acentua as especificidades regionais ou europeias e outras que
buscam um conceito flexível a ponto de ser aplicado a diferentes realidades pelo
mundo. De todo modo, o conceito de feudalismo permanece como elemento
estruturante para a compreensão do medievo, assim, para seguirmos as
provocações de Elizabeth Brown na citação inicial, é necessário apresentarmos
a construção do conceito e gradativamente a suas limitações.
Fundado sobre a palavra latina feudum, que designava posse,
propriedade ou domínio, a palavra “feudalismo” surgiu no final do século XVIII
expressando a base dos privilégios sociais do Antigo Regime, assim como os
vestígios jurídicos do regime combatido pelas revoluções burguesas. No século
XIX, o termo ampliou o seu uso e alcançou o domínio público, passando a
remeter à noção de um sistema, o “regime feudal”.
Em linhas gerais, distinguem-se duas abordagens do termo feudalismo:

1. Restrita: relacionada ao conjunto de relações de vassalidade (honras e


compromissos mútuos, essencialmente aristocráticos), e aos elementos
jurídicos ligados aos benefícios (propriedades, títulos, serviços, etc.)
distribuídos pelos senhores a outros nobres;
2. Ampla: estabelece uma estrutura hierarquizada na qual as relações de
dominação englobam toda a sociedade em suas dimensões políticas,
econômicas, sociais e culturais, caracterizando essa sociedade como
feudal.

Exemplificam essas orientações duas marcantes obras da primeira


metade do século XX: uma delas é O que é a feudalidade? (1944), de

3
François-Louis Ganshof (1895-1980), na qual o autor define o feudalismo como
o conjunto de instituições que criam e regulam obrigações de obediência e de
serviço e obrigações de proteção e de sustento da parte de um senhor para com
o seu vassalo, colocando a ênfase no estudo das relações feudo-vassálicas e
suas instituições; a segunda é o já citado livro de Marc Bloch, A sociedade feudal
(1939), que visou romper com o uso “estritamente jurídico” que identificava o
feudalismo como o conjunto de relações específicas no interior da nobreza,
propondo que o termo caracterizava o conjunto da sociedade medieval. Em
Bloch, numa abordagem interdisciplinar, o feudalismo representa um tipo de
sociedade fundada em laços de proteção e obediência, isto é, em reciprocidades.
Ao longo das décadas seguintes a senda aberta por Bloch foi explorada e
o debate sobre o feudalismo concentrou-se na produção do medievalista
Georges Duby (1919-1996). A partir das investigações sobre a região francesa
do Mâccon entre os séculos IX e XII, o autor observou alguns elementos que
dariam o tom de sua produção: a multiplicação dos castelos, o desenvolvimento
da cavalaria e, principalmente, a configuração do senhorio banal. Em inícios dos
anos 60, Duby se concentrou no estudo do espaço rural, dando destaque para o
processo de estruturação e crise do sistema senhorial e, no livro O Ano Mil
(1967), definiu o momento da ruptura que deu início ao feudalismo, período
marcado pela violência, pelo surgimento e ascensão da cavalaria e pela
senhorialização do poder. Outro aspecto relevante da obra é a importância dada
aos mecanismos mentais ligados à vivência do milênio, movimento expresso na
Paz de Deus1 e nas Cruzadas. Gradativamente, Duby consolidou sua visão
sobre o período, definindo o que chamou de “revolução feudal”, expressão que
simboliza a transformação inaugurada pelo feudalismo e que aparece no
clássico As três ordens ou o imaginário do feudalismo (1978). Em síntese, em
Duby existe uma ênfase maior no político (dissolução do poder monárquico e
desenvolvimento das relações de dependência) em relação às mudanças sociais
e culturais e alguns elementos-chave podem ser observados: a decomposição
do Estado carolíngio; o nascimento do senhorio banal; a formação da cavalaria;

1
A Paz de Deus e a Trégua de Deus foram movimentos incentivados pela Igreja para a limitação
da violência guerreira na Europa da Idade Média Central. A Paz de Deus consistiu em várias
assembleias que objetivavam proteger indivíduos, grupos, locais e bens dos que não guerreavam
e não portavam armas (religiosos, camponeses, trabalhadores). Já a Trégua de Deus previa a
suspensão dos conflitos durante os períodos litúrgicos (Silva, 2019, p. 54).
3
a recomposição da sociedade segundo o modelo de três ordens (clero, nobreza,
camponeses); e a uniformização do status do campesinato, entre servos e livres.
A chamada tese “mutacionista” e globalizante do sistema feudal, que
abarca os trabalhos de Bloch e Duby, encontra-se enraizada na historiografia
internacional e orienta a maior parte dos manuais gerais sobre Idade Média
disponíveis em língua portuguesa. Contudo, esse modelo foi amplamente
revisado a partir da década de 1990. Tal crítica historiográfica se expressa, por
exemplo, no trabalho de Dominique Barthélemy (1953-), em especial no artigo
“La mutation féodale a-t-elle eu lieu?” (“A mutação feudal aconteceu?”) (1992),
que defende que a ênfase na crise das instituições públicas, na violência
generalizada e nas mudanças sociais no seio da aristocracia, é apenas um
modelo de compreensão, sendo necessário superar a ideia de ruptura no Ano
Mil. O autor argumenta que as transformações não configuram uma “revolução
feudal” como defende o modelo mutacionista e os trabalhos de Duby, antes
devemos pensar em ajustamentos sucessivos, sendo as estruturas institucionais
e sociais formas de dependência redesenhadas entre os séculos IX e XI.
Com base nos elementos que expusemos, observamos que ao longo do
século XX o debate acerca do feudalismo concentrou-se, sobretudo, no meio
acadêmico francês, dividindo as investigações entre leituras mutacionistas e
antimutacionistas. No entanto, críticas surgidas em historiografias de diferentes
países reacenderam as discussões em finais do século, sendo um dos principais
exemplos, a obra Fiéis e Vassalos (1994), de Susan Reynolds (1929-), na qual
a autora critica o conceito de Feudalismo como fenômeno único e geral do
medievo europeu, argumentando que ele é uma construção da cultura histórica
francesa pautada nas monografias regionais que tem gerado perspectivas
distorcidas e generalizantes sobre a Idade Média. As críticas de Reynolds, por
mais que não tenham criado consensos historiográficos, contribuíram para o
esvaziamento do Feudalismo como modelo explicativo geral para compreensão
da Idade Média e os recentes balanços sobre a temática evidenciam as
diferentes e divergentes leituras da historiografia nos últimos anos,
interpretações cada vez menos afeitas a generalizações do termo feudal como
caracterizador da sociedade medieval (Abels, 2009; Améndolla Spínola, 2019).
Nesse cenário, observam-se atualmente novas tendências nos estudos
medievais, por um lado, o retorno ao uso restritivo da noção de “feudalismo” para
tratar das relações de vassalagem; por outro, o deslocamento da ênfase nas

3
relações feudo-vassálicas para o foco na noção de “dominação senhorial”. Cada
vez mais deixa-se de falar da Idade Média como uma “sociedade feudal” para
caracterizar o período como uma “sociedade senhorial”, fundada no domínio
social de uma elite militar de senhores de terra sobre um amplo conjunto de
camponeses, livres e não livres, e trabalhadores urbanos. Do mesmo modo,
afasta-se a ideia de crise generalizada da autoridade pública somada à
pulverização do poder entre os nobres e da irrupção da violência cavaleiresca (a
“Anarquia feudal”), para concentrar a análise na fixação espacial da dominação
aristocrática da Idade Média Central (a partir do século X) (Morsel, 2008).

TEMA 2 – A DOMINAÇÃO SENHORIAL

A terra ocupava um lugar central nas sociedades do período medieval.


A maioria esmagadora da população vivia no campo e obtinha, direta
ou indiretamente, os meios de sua subsistência das atividades
agrícolas, silvícolas e pecuárias. Isso é uma constante da história
europeia, pelo menos até o advento da Revolução Industrial, no século
XVIII, não sendo, portanto, uma particularidade do período medieval.
O que caracteriza esse período são as relações de dominação que se
estabeleceram entre, de um lado, os senhores de terras e, de outro,
aqueles que nelas trabalhavam (os camponeses) e mesmo os que
habitavam nas proximidades dos centros de poder senhoriais. (Silva,
2019, p. 43)

A dominação exercida pela aristocracia, a classe dominante do período,


abarcava o controle sobre os homens e a terra, de forma indissociável,
manifestando-se no exercício da justiça, na arrecadação de impostos e na
imposição de obrigações aos vassalos, conjunto de direitos chamados de
consuetudinários (costumeiros). A implementação dessas relações de
dominação articula-se diretamente ao fenômeno de encastelamento do
Ocidente, isto é, processo de ancoragem espacial do poder aristocrático por
meio da multiplicação dos castelos (Morsel, 2008).

3
Figura 1 – Castelos da Idade Média Central (França, séculos XI-XII). À esquerda,
reconstrução do castelo de Saint Sylvain d’Anjou, na França, edifício em madeira
dos séculos XI e XII. À direita, torre (donjon) de Houdan, França, fortificação do
século XII

Créditos: Fred49/Depoit Photos/Imageplus; HJBC/Shutterstock.

Ao vislumbrar tais construções fortificadas, devemos ter cautela, pois os


castelos da Idade Média Central eram edifícios modestos (Figura 1), muito
diferentes da grandiosidade dos castelos da Idade Moderna ou das edificações
neogóticas dos séculos XVIII e XIX, símbolos do turismo na atualidade e motivos
constantes das produções fílmicas e animações infantis desde o século passado.
Até o século XII, os castelos eram comumente feitos em madeira e, nos séculos
seguintes, cada vez mais em pedra, geralmente construídos em colinas, com
edificações que não passavam de uma dezena de metros de altura e com função
prioritariamente defensiva.
Foi a partir do século XIII que os castelos deixaram de ser uma simples
torre ou castro (do latim castrum, que significava espaço fortificado), para
constituírem-se plenamente em locais de habitação dos senhores locais e em
centro simbólico e prático do poder da aristocracia (Baschet, 2006). O
encastelamento do Ocidente participa, assim, de movimentos mais vastos
observados no período, como a reorganização espacial da sociedade medieval
– expressa, por exemplo, no reagrupamento da população em torno de aldeias,
castelos, monastérios e paróquias, pontos de referência relacionados à justiça,
aos tributos e a fé – e o enfraquecimento da autoridade real, acompanhado da

3
disseminação da autoridade e da promoção dos principados e do poder dos
senhores.
A afirmação da dominação senhorial no contexto da Idade Média Central
provocou mudanças consideráveis na extração do excedente agrícola, com as
corveias2 sendo substituídas por pagamentos de taxas anuais e outros
pagamentos em dinheiro, e na exploração da terra, cada vez mais realizada por
meio do arrendamento hereditário ou de curto prazo. Alterou-se ainda a própria
composição da aristocracia, que passa a ser definida pela convergência de dois
grupos distintos, a aristocracia romano-germânica e os milites – grupos de
guerreiros armados recrutados pelos senhores entre as principais famílias locais
e responsáveis pela defesa dos castelos e pela implementação da face coercitiva
da dominação senhorial –, e pelo sangue, manifesto na exaltação das linhagens
e na incorporação do sobrenome aos membros da aristocracia.
As relações internas dessa elite fundiária e militar estruturam-se,
progressivamente, em torno das relações vassálicas, vínculo que estabelecia
obrigações recíprocas entre senhores e vassalos, orientando aqueles à proteção
e distribuição de benefícios, bens imobiliários ou rendas, ou seja, de feudos; e
os dependentes à fidelidade e a prestação de serviços e apoio militar e
financeiro. A vassalidade era também acompanhada por uma série de outros
laços, como pactos de amizade (amicitia), aliança e juramentos de fidelidade,
que ampliavam a solidariedade e a distribuição de poder entre a aristocracia.
No período estudado, o estabelecimento do vínculo de vassalagem
passou a envolver uma dimensão ritualística, a homenagem. Essa era composta
pela expressão verbal (a declaração de fidelidade pelo vassalo ao senhor) e
performática (o ajoelhar, a colocação das mãos juntas entre as do senhor, o
juramento sobre os Evangelhos e, em alguns casos, no beijo – ósculo - entre os
envolvidos) do suserano e do vassalo e pela distribuição de um objeto simbólico
que representava a investidura do feudo propriamente dito.
Não obstante, como temos assinalado desde o início deste texto, convém
não sobrevalorizar a vassalidade como principal relação social da sociedade
medieval. Ela engajava uma proporção reduzida da população, as elites
aristocráticas, algo em torno de 2% do conjunto da sociedade. Deste modo,
como sugere Alain Guerreau (2012), é preferível acentuar a relação de dominium

2
Pagamento em serviço nas terras do senhor.
3
estabelecida em torno do senhorio como característica central do período, posto
que tal categoria constituída pela simultaneidade e unidade da dominação sobre
homens e terras, abarcava segmentos mais vastos da sociedade medieval.

TEMA 3 – GUERREIROS E SOCIEDADE CAVALEIRESCA

Em finais do século IX surge na literatura medieval, para se espraiar


no século XI e até tornar-se um lugar-comum no século XII, um tema
que descreve a sociedade dividida em três categorias ou ordens. As
três componentes dessa sociedade tripartida são, segundo a forma
clássica de Adalberon de Laon, nos princípios do século XI: oratores,
bellatores, laboratores, quer dizer os clérigos, os guerreiros e os
trabalhadores. (Le Goff, 1979, p. 75)

O modelo das três ordens para representar a sociedade medieval é


amplamente conhecido e, por vezes, a construção literária é tomada como
expressão das divisões efetivas daquela sociedade. De todo modo, tal modelo é
útil para compreendermos que a sociedade medieval foi uma sociedade de
ordens ou estamentos, uma sociedade corporativa pautada na desigualdade
jurídica, algo que seria suplantado apenas com as revoluções burguesas e a
afirmação da sociedade capitalista. Considerando que o tema da nossa próxima
aula é a Igreja do Ocidente entre os séculos X e XIII, no presente tópico
concentraremos a atenção no grupo social dos guerreiros.
No período de nosso estudo, observa-se a crescente importância das
milícias de guerreiros equestres em torno dos senhorios, os milites, afirmação
propiciada pelo aperfeiçoamento dos equipamentos e armas de ferro
(armaduras, elmos, espadas e malhas) e pelo recuo da infantaria frente ao
combate montado. Tais cavaleiros advinham de grupos sociais variados, sendo
recrutados em estratos inferiores da aristocracia ou em setores urbanos e
camponeses, como é o caso dos cavaleiros vilãos ibéricos. Num contexto de
profunda militarização da sociedade, que valorizava e santificava o papel dos
guerreiros – exaltados pelos clérigos como paladinos da Cristandade latina e
como defensores da população contra as violências senhoriais –, nota-se a
integração desses grupos no seio da aristocracia, operando uma lenta fusão que,
por volta do século XIII, fez com que nobreza e cavalaria fossem categorias
sobrepostas, posto que dificilmente um nobre não era cavaleiro.
No entanto, isso não resultou numa assimilação completa, pois outros
mecanismos de segregação interna se constituíram, como restrições de acesso
à ordem da cavalaria, hereditariedade do estatuto de cavaleiro ou novas

3
hierarquias entre a nobreza. Assim, nem todos os cavaleiros possuíam castelos
e direitos senhoriais de comandar, punir e explorar, pelo contrário, a maioria vivia
em pequenas propriedades numa condição de existência “semicamponesa” e na
dependência de senhores (Duby, 1994). Nesse contexto, compreende-se a
mobilização constante das milícias de guerreiros nas guerras travadas dentro da
Cristandade, seja como vassalos ou como tropas mercenárias, e nas grandes
campanhas militares nas fronteiras do mundo cristão, assim como a inclinação
dos cavaleiros para uma vida errante, em busca de ascensão social.
Essa conformação de uma sociedade cavaleiresca fomentou o
desenvolvimento de códigos de valores específicos, como a proeza, o vigor
físico, a coragem, a lealdade, a honra, a fidelidade. Valorizava-se nessa
sociedade, portanto, elementos que eram associados a uma masculinidade viril.
Em torno de todos esses valores, afirmou-se uma ética e cultura da nobreza
cortesã, caracterizada pelo controle das tensões e pelo amor cortês, assim como
floresceu a literatura de gesta e os romances de cavalaria. Nesse conjunto, por
exemplo, destaca-se a Matéria da Bretanha, com histórias sobre o rei Arthur e a
demanda do Santo Graal (o cálice sagrado da última ceia de Cristo) temas que
permanecem mobilizando o interesse da indústria cultural na atualidade.
Não obstante, essa cultura leiga da vida cavaleiresca não passou
despercebida pelos meios clericais. Assim, ao menos desde o século X,
acompanhou-se a implementação por parte da Igreja de um amplo movimento
de cristianização e disciplinamento do ethos (modo de ser) cavaleiresco por meio
da noção de miles Christi (“guerreiro de Cristo”), referência usada na convocação
dos cavaleiros para as guerras santas travadas a partir dos séculos XI e XII,
como as Cruzadas na Palestina e na Península Ibérica. Decorrem ainda desse
movimento, por exemplo, o ritual cristão de adubamento, acompanhado de
vigílias e orações; a produção de uma literatura voltada à moralização dos
guerreiros, como o Livro da Ordem da Cavalaria, de Ramón Llull; e a criação de
ordens religiosas militares, como a Ordem dos Templários e dos Hospitalários.
Apesar dos esforços eclesiásticos para a cristianização da cavalaria e
para direcionar o gládio em prol da defesa da Cristandade, convém notar que as
tensões entre a idealização cristã da cavalaria e as oportunidades da vida
cavaleiresca foram uma constante ao longo do medievo. Deste modo, observa-
se a permanência de torneios e justas como celebrações da sociedade

3
cavaleiresca e oportunidades de ascensão, assim como a estruturação da
vivência cavaleiresca em torno de atividades como caça, montaria e falcoaria.

TEMA 4 – O CRESCIMENTO DEMOGRÁFICO: A POPULAÇÃO NA EUROPA


MEDIEVAL

Entre o século XI e o início do século XIV, a população da Inglaterra


teria passado de 1,5 para 3,7 milhões de habitantes; a do domínio
italiano, de 5 para 10 milhões; a da França, de 6 para 15 milhões [...].
Esses dados são suficientes para indicar uma tendência clara: em três
séculos (de fato, essencialmente entre 1050 e 1250), a população da
Europa ocidental dobra, ou mesmo triplica em certas regiões. Tal
crescimento demográfico jamais havia sido alcançado na Europa
desde a Revolução Neolítica e a invenção da agricultura, e não será
mais observada até a Revolução Industrial. Trata-se, claramente, de
um fato maior da história ocidental. (Baschet, 2006, p. 101)

A ausência de recenseamentos e registros regulares de nascimentos e


mortes, dificulta qualquer tentativa de precisão estatística sobre a população
medieval. No entanto, em que pese as imprecisões oferecidas pelos dados
demográficos disponíveis, a virada do primeiro milênio cristão evidencia um
acentuado crescimento populacional, algo singular na história europeia como
indicado no trecho de Jérôme Baschet. Sabe-se que após alguns séculos de
significativo recuo demográfico que acompanha o fim do mundo romano, uma
certa recuperação populacional esboça-se na Europa a partir do século VII
(Tabela 1), crescimento em geral explicado pela estabilização das monarquias
medievais e pela conformação do grande domínio no meio rural.

Tabela 1 – Evolução demográfica da Cristandade Ocidental (em milhões de


habitantes)

3
Múltiplos fatores ajudam a entender tal crescimento demográfico
acelerado. A historiografia indica o recuo das causas de mortalidade, como os
surtos de doenças e os longos períodos de fome, associada à alta da
fecundidade e à melhora do clima. Ademais, o movimento de arroteamento, que
fazia recuar as florestas, os terrenos baldios e as zonas pantanosas, também
explica o crescimento demográfico em busca de novas áreas cultiváveis,
modificando a paisagem dos campos ocidentais e redefinindo as comunidades
rurais por meio do aumento da produção de víveres (Franco Júnior, 2006).
Mais do que um surto de crescimento populacional, a expansão
demográfica do medievo central deve ser compreendida como um aumento
cumulativo e sustentado que, entre o século XI e o século XIII, potencializou
outros processos. Assim, relacionam-se ao crescimento populacional elementos
como o revigoramento urbano e comercial pautado na produção de excedentes,
a diversificação dos ofícios por meio da liberação da mão-de-obra dos campos,
a formação de novos núcleos populacionais no campo e na cidade e o
desenvolvimento da burocracia estatal (Blockmans; Hoppenbrouwers, 2012).
Por fim, cabe assinalar que o crescimento demográfico não foi
homogêneo em toda a Europa, sobressaíram diferenças regionais. A pressão
demográfica foi sentida sobretudo na Península Itálica, na Europa Central
incluindo a Inglaterra, e na Península Ibérica, ao passo que as regiões da
Escandinávia, da Polônia e do Báltico conheceram uma frágil expansão
demográfica no período.

TEMA 5 – O DESENVOLVIMENTO DA PRODUÇÃO AGRÍCOLA

Frenado durante mais de um século pelas invasões normandas,


sarracenas e húngaras, o renascimento da atividade econômica, cujos
sinais precursores se discerniam já na época carolíngia, afirma-se
decididamente na Europa por volta de 950. É neste momento, segundo
parece, nos poucos decênios que precedem o ano mil, que se
propagam rapidamente, nos campos cristãos reconstruídos,
numerosos inventos técnicos de muito grandes consequências,
inventos certamente antigos, mas cujas aplicações no Ocidente
permaneciam até então restritas. [...] Não obstante, tudo indica que o
grande surto do Ocidente medieval está intimamente ligado a uma
renovação fundamental das práticas agrícolas, a uma autêntica
revolução, de ritmo em verdade muito lento, mas que permitindo
produzir mais víveres com menos trabalho, subverte as condições da
vida econômica. (Duby, 1994, p. 35-36)

O crescimento populacional da Idade Média Central não seria possível e


não teria sustentação sem o aumento da produção agrícola, capaz de alimentar

3
uma população cada vez maior e produzir excedentes que revigoraram as trocas
comerciais. Como argumenta Georges Duby, esse progresso agrícola esteve
associado diretamente a inovações e novas práticas de cultivo. Assim, é para a
Europa rural e para o trabalho com a terra que devemos orientar nossa atenção,
a fim de compreender o desenvolvimento agrário do período.
Em termos de uso do solo, dois movimentos são identificáveis na Idade
Média Central: 1) a expansão das terras cultiváveis, por exemplo, pelo avanço
da colonização sobre as florestas, pela extensão do território das aldeias, pela
ocupação de solos pouco propícios para a plantação, pelo represamento dos rios
e pelo uso mais amplo da drenagem das áreas pantanosas; 2) o uso mais
intensivo do solo. É nesse segundo aspecto que se encontram as principais
inovações do período, como o melhor uso de fertilizantes vegetais e animais,
uma maior seleção de cereais mais adaptados à cada região (trigo branco,
centeio, cevada e aveia), a incorporação do arado de aiveca e da tração por meio
do cavalo e a rotação trienal do solo.
O arado de aiveca, ou charrua, gradativamente generalizou-se frente ao
arado antigo, feito de madeira, caracterizando-se por peças ajustáveis (a sega,
a relha e o timão) e feitas de ferro, permitindo ao condutor variar a profundidade
dos sulcos com pequenos movimentos. A nova combinação das peças
possibilitava arrancar ervas daninhas do solo e alcançar terrenos mais pesados,
garantindo por meio do levantar e revirar da terra a renovação dos nutrientes.
Para a generalização desse modelo de arado, foi fundamental o
desenvolvimento da metalurgia artesanal, que contribuiu para a multiplicação
das ferramentas em ferro, como machados, enxadas, foices, ferraduras e peças
para o arado. Tais inovações foram combinadas com o uso cada vez maior do
cavalo como animal de tração ao lado dos bois, visto que o cavalo permitia um
controle mais fácil e rápido e agregava maior força de tração (Figura 2).

3
Figura 2 – Tração animal e instrumentos agrícolas (séc. XV). Calendário do livro
de Horas do Duque de Berry (século XV), representando os meses de março e
outubro. À esquerda, no primeiro plano, vê-se um camponês com um arado de
aiveca puxado por dois bois. À direita, noutra cena de trabalho agrícola, o cavalo
é utilizado como animal de tração atrelado à uma grade responsável por sulcar
a terra

Crédito: Limbourg Brothers-CC/PD.

Diferentes sistemas de gestão do solo são observados na agricultura


medieval, como o repouso de dez anos de parte do solo e uma utilização em
duas partes divididas por quinquênio ou biênio. No entanto, no contexto da
expansão agrícola da Idade Média Central, o sistema de três campos ou rotação
trienal foi adotado amplamente no Ocidente. Nele, somente uma parte do solo
não era cultivada, permanecendo em pousio, ao passo que as outras duas eram
semeadas, em geral, uma com cereais de inverno (centeio e trigo) e outra com
cereais de verão (cevada e aveia) ou legumes. Esse sistema, muito comum nas
grandes propriedades agrícolas, permitia otimizar a produção cerealífera,
gerando duas colheitas anuais, além de adequar a produção de acordo com
demandas comerciais específicas. Porém, a rotação trienal apresentava
desvantagens para as comunidades rurais com campos abertos não cercados,

3
caracterizada pelo cultivo mais atrelado a uma sequência fixa de colheita e,
consequentemente, menos afeita à flexibilidade do modelo de três campos.
Paralelamente a tais inovações relacionadas diretamente ao trato do solo,
convém ainda destacar dois elementos: a ampliação da força hidráulica por meio
do uso do moinho d’água, seja para a moenda de trigo ou para a prensa de óleos.
Conhecido desde o mundo romano, o moinho d’água acompanha o declínio da
escravidão no Ocidente, substituindo gradativamente o moinho movido por
escravos e generalizando-se por volta do século X; em segundo lugar, o
desenvolvimento do artesanato rural, que caracteriza as aldeias pelas oficinas
responsáveis pelo trabalho com pedra, madeira, vidro e lã, pelas cervejarias,
olarias e fornos de pão. Tal produção, por vezes esquecida, ultrapassava o
quadro do consumo familiar e local, atendendo a mercados próximos, o que
indica o dinamismo da economia rural (Baschet, 2006).

NA PRÁTICA

Como indicamos no início do texto, os manuais escolares brasileiros,


mesmo com as diferentes mudanças curriculares, tradicionalmente utilizam o
conceito de Feudalismo como conceito estruturante da Idade Média, definida por
vezes pela ascensão e crise do sistema feudal. Ao longo da nossa aula,
procuramos demonstrar que, nas últimas décadas, a historiografia tende a adotar
a noção de “sociedade senhorial” para caracterizar o medievo, afastando-se da
centralidade das relações feudo-vassálicas e do feudo como elementos-base da
organização social da Idade Média.
Sugerimos para essa prática que você busque um livro didático de História
do Ensino Fundamental (em especial do 6º ou do 7º ano) ou do Ensino Médio
(1º ano), verifique o ano de publicação dele e procure identificar como o manual
escolar selecionado aborda questões como servidão, vassalagem, senhorio e,
em especial, a noção de Feudalismo. Como essa abordagem se difere ou não
do que discutimos aqui?

FINALIZANDO

Nessa discussão conferimos como estão os avanços da historiografia


referente ao medievo sobre a questão do feudalismo e as novas percepções
referentes à compreensão de uma sociedade marcada pela dominação

3
senhorial, para além de uma ênfase no aspecto restrito das relações feudo-
vassálicas.
Investigamos também como se configurou o fenômeno do
encastelamento e o processo de dominação senhorial, analisando as
transformações ocorridas na aristocracia, novas hierarquizações dentro desse
grupo e o desenvolvimento da classe dos milites, que originaram a cavalaria
medieval. Averiguamos como isso gerou também todo um código de valores,
bem como um imaginário social, numa sociedade marcada pela militarização. A
Igreja buscou enquadrar a instituição cavaleiresca e conter as tensões dadas por
essa militarização e disputas entre os nobres. Todavia, as segregações sociais
no interior da nobreza levavam muitos jovens rapazes a uma vida errante, na
qual a ascensão social dependia da glória em batalhas.
Na sequência analisamos transformações importantes dadas na Idade
Média Central: o aumento populacional que gerou uma alteração demográfica
significativa no Ocidente medieval e o processo relacionado da expansão da
produção agrícola no período, que gerou outras consequências, como a
renovação do comércio e das cidades.

3
REFERÊNCIAS

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historian. History Compass, v. 7, n. 3, p. 1008-1031, 2009.

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controversias y propuestas metodológicas en torno a un concepto conflictivo,
1929-2015. Anos 90, Porto Alegre, v. 26, 2019.

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Paulo: Globo, 2006.

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300-1550. Rio de Janeiro: Forense, 2012.

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o período da Europa feudal, os Islã turco e da Ásia mongólica (séculos XI-XIII).
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temático do Ocidente medieval. São Paulo: EDUSC, 2006, v.1, p. 437-455.

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livros didáticos de história. In: ROCHA, H.; REZNIK, L.; MAGALHÃES, M.
(Orgs.). Livros didáticos de história: entre políticas e narrativas. Rio de
Janeiro: FGV, 2017, p. 169-184.

SILVA, M. C. da. História medieval. São Paulo: Contexto, 2019.

3
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argentinos: su abordaje historiográfico (1999-2006). Acta Scientiarum, v. 41,
2019.

3
HISTÓRIA E HISTORIOGRAFIA
MEDIEVAL OCIDENTAL
AULA 4

Prof. Douglas Lima


Profª. Mariana Trevisan
CONVERSA INICIAL

Os séculos medievais revestem-se de especial importância sempre


que pretendemos averiguar até que ponto os ideais religiosos, e as
organizações destinadas a protegê-los e a perpetuá-los, se mostram
influenciados pelo seu ambiente social. [...] Igreja e sociedade
constituíam uma unidade, nada se podendo transformar numa das
suas partes sem provocar transformações semelhantes na outra, o que
constitui uma característica de grande parte da história europeia [...] A
identificação da Igreja com a sociedade organizada constitui a
característica fundamental que distingue a Idade Média, tanto dos
períodos históricos que a antecedem, como dos que lhe sucedem.
(Southern, 1970, p. 14-15)

Richard Southern (1912-2001) foi um notável medievalista inglês do


século XX e legou uma série de contribuições acerca da Idade Média Central,
em especial sobre o pensamento escolástico, a piedade religiosa, o humanismo
medieval e o desenvolvimento das instituições sociais, políticas e religiosas do
período. No trecho, ao tratar especificamente da Igreja no Ocidente, o tema de
nossa aula, Southern nos adverte sobre os perigos de uma abordagem histórica
da Igreja deveras focada nos elementos eclesiásticos e doutrinários e isolada da
história secular. Para o autor, pensar a Igreja durante a Idade Média é considerar
a unidade entre ela e a sociedade, percebendo as relações indissociáveis entre
a Igreja e o todo secular, assim como as reverberações dessas relações no
campo da justiça, da economia, da cultura, da política etc.
Antes de enveredarmos sobre o tema da aula, cabe outro esclarecimento
prévio que pode ser expresso na seguinte interrogação: afinal, o que é a Igreja
medieval? Em aulas anteriores, discutimos a ascensão do cristianismo no
Ocidente, com foco nos elementos institucionais e doutrinários, no entanto, tais
aspectos representam somente uma das faces relacionadas à Igreja medieval.
Como explica Jérôme Baschet (2006), o termo “igreja” (eklesia) designava
inicialmente a comunidade dos fiéis, agregando posteriormente tanto o edifício
onde se reuniam os fiéis e onde se desenrolava o culto cristão como o corpo
eclesiástico, característica que conferia certa plasticidade ao se tratar da Igreja
ora como comunidade ora como instituição. Não obstante, a partir do século XI,
o termo “igreja” passa a ser cada vez mais reservado aos membros eclesiásticos,
ao passo que para designar o conjunto dos fiéis, empregam-se as palavras
christianitas ou populus christianus, sinalizando a separação entre clérigos e
leigos e o reforço dos poderes da instituição eclesial.
A advertência feita pelo historiador inglês, assim como as tendências
acerca da história da Igreja apontadas por Baschet, serão seguidas ao longo
2
deste capítulo, que buscará demonstrar a afirmação da Igreja na Idade Média
Central, discutindo, num primeiro momento, a afirmação papal e a imposição
religiosa sobre as estruturas seculares e, em seguida, as novas entonações do
cristianismo relacionadas ao amplo movimento de renovação religiosa no
período. Noutro momento, serão abordadas as contestações heréticas e como
tais movimentos fomentaram a formação de uma sociedade persecutória. Por
fim, a aula tratará dos elementos culturais relacionados ao tema, considerando
tanto a questão do saber, expresso nas escolas e nas universidades, como
aspectos mais amplos, ligados à arte românica e gótica.

TEMA 1 – AFIRMAÇÃO DA IGREJA NO OCIDENTE: IMPOSIÇÃO DO PODER


PAPAL SOBRE AS ESTRUTURAS SECULARES

O processo que os historiadores se habituaram a nomear “reforma


gregoriana” [...] não pode ser reduzido a seus aspectos mais factuais e
mais ruidosos: a luta entre o papa e o imperador e a reforma moral do
clero. Movimento muito mais profundo e de mais ampla duração que a
fase aguda dos anos 1049-1122, ele visa a uma reestruturação global
da sociedade cristã, sob a firme condução da instituição eclesial. Os
seus eixos principais são a reforma da hierarquia secular sob a
autoridade centralizadora do papado e o reforço da separação
hierárquica entre laicos e clérigos. Trata-se de nada menos que
reafirmar e consolidar a posição dominante da Igreja no seio do mundo
feudal. (Baschet, 2006, p. 190)

No início do segundo milênio, a Igreja ocidental encontrava-se


profundamente envolta nas pressões das aristocracias locais, tendendo a ser
absorvida nas estruturas resultantes dos senhorios e na vida secular. Críticas à
desordem dos costumes do clero (nicolaísmo) – muitos clérigos, especialmente
os seculares, viviam como leigos, não respeitavam o celibato, portavam armas
etc. – e ao comércio das coisas sagradas (simonia) – como sacramentos e
funções religiosas – eram comuns e debilitavam a Igreja e sua imagem. Como
uma forma de resistência a esse processo, os séculos XI e XII marcam um amplo
movimento de reforma, o qual teve como uma de suas principais expressões o
fortalecimento da hierarquia eclesiástica sob a autoridade papal.
Para isso, um dos primeiros alvos dos reformistas foi combater a
investidura laica, uma antiga prática na qual bispos e abades, depois de eleitos,
eram investidos por uma autoridade laica (o rei ou um representante régio) com
símbolos da dignidade espiritual, o báculo e o anel. Dessa prática, comumente
decorria a nomeação episcopal pelos poderes seculares e a intervenção imperial
na escolha do papa.

3
A querela das investiduras foi mais intensa no Sacro Império Romano1,
onde por meio da investidura os bispos recebiam o título de conde ou duque,
detendo uma autoridade secular e, por conseguinte, tornavam-se vassalos do
príncipe.
Um dos primeiros sucessos alcançados pelos reformistas foi a alteração
do procedimento de eleição papal, que no século XI deixou de ser selecionado
pela diocese romana, sob pressão da aristocracia local, e passou a ser escolhido
pelo Sacro Colégio Pontifício, um colegiado de cardeais e bispos influentes. Essa
medida foi reforçada no século XIII, com a realização dos primeiros conclaves,
reunião a portas fechadas que reduziu a interferência secular para a eleição
papal (Blockmans; Hoppenbrouwers, 2012).
Concomitantemente, acompanha-se o fortalecimento teológico das
reivindicações dos papas como principais autoridades da Cristandade, tanto em
termos espirituais, como em questões temporais. Desde os primeiros séculos
medievais é possível notar uma “quase-identificação” entre a Igreja e o Império
e, por mais que o movimento de afirmação do primado papal estivesse presente,
enquanto a figura imperial se manteve assumindo a posição de Vicarius Christi
(“vigário de Cristo”) a situação da supremacia do papa foi de difícil
estabelecimento (Gomes, 1997).
A premissa de S. Paulo de que todo poder vem de Deus foi interpretada
de variadas formas no medievo e o papado tendeu a estabelecer uma leitura que
colocava o pontífice na posição de mediador supremo entre Deus e os homens.
Essas doutrinas, classificadas como hierocráticas, ofereceram o caminho para
a legitimação das intervenções papais nas esferas ditas temporais2. O processo
de fortalecimento eclesiástico alcançaria o seu ápice na noção de potestas
directa no século XIV, período marcado pela promulgação da bula Unam
Sanctam3 (1302) pelo papa Bonifácio VIII (1230-1303). Autores eclesiásticos
como São Bernardo de Claraval (1091-1153), João de Salisbury (c.1110/1120-
1180) e São Tomás de Aquino (1225-1274), contribuíram para essa gradativa

1
Após o declínio carolíngio e a divisão dos territórios imperiais, a parte mais a leste dos domínios
imperiais foi revivida como domínio imperial com a coroação de Otão I (912-973) pelo papa. Na
realidade, o termo Sacro Império Romano passou a ser utilizado somente a partir do século XIII,
mencionando-se antes a noção de translatio imperii (do latim: transferência do Império). O termo
Sacro Império Romano-Germânico passa a ser utilizada apenas a partir do século XVI.
2
Temporais →mundanas, ou seja, distintas das esferas espirituais.
3
Essa bula resultou de uma disputa entre o Papa Bonifácio e o Rei francês Felipe, o Belo, em
torno da doutrina do primado pontifício. Buscou estabelecer o primado do poder papal perante
todos os outros poderes terrenos.
4
afirmação da dignidade episcopal acima da esfera temporal, fortalecendo o
movimento de libertas Ecclesiae que marcou os séculos XI e XII (Souza;
Barbosa, 1997).
Em termos práticos, as reivindicações do poder papal sobre as estruturas
temporais contavam com menos recursos. Sem dispor de instrumentos militares,
as armas usadas comumente pela Santa Sé foram a excomunhão – recorrente
nas disputas contra o Império e alguns monarcas –, a interdição de atividades e
atos, como a suspensão de cultos religiosos em determinadas áreas, e a
acusação de heresia, como o célebre caso dos cátaros no sul da França. Tanto
para o combate às heresias, como para a implementação de guerras santas, em
especial as Cruzadas no Oriente, a Igreja mobilizava, ainda que indiretamente,
o apoio dos poderes seculares, convocando a aristocracia guerreira para
empreendimentos bélicos justificados pela religião (Flori, 2013).
Paralelamente, evidencia-se a expansão dos órgãos administrativos – por
exemplo, a criação do Sacro Colégio, no século XII, que reunia os conselheiros
e os funcionários eclesiásticos administrativos do papa, passando ainda a
agregar clérigos de diferentes regiões da Cristandade – fiscais e jurídicos ligados
ao papado. Nessa última dimensão em particular, ressalta-se que foi no mesmo
século que se institucionalizou a autoridade judiciária suprema do papado sob a
Igreja latina. Todos esses fatores contribuíram para a consumação da primazia
pontifícia e da chamada Monarquia papal.
Para finalizar esse tópico, lembra-se que a imposição da Igreja sobre as
estruturas seculares também se deu por meio dos sínodos e concílios, sendo
o mais simbólico do período o IV Concílio de Latrão, realizado em 1215. Tais
reuniões, em princípio, visavam eliminar as influências seculares dentro do meio
eclesiástico, mas simultaneamente reforçaram a separação entre clérigos e
leigos e os princípios morais religiosos para a vida cristã. Nesse sentido,
produziram-se regulamentos sobre: as relações de parentesco (casamentos,
apadrinhamentos etc.); a prática da confissão; o alinhamento dos sacramentos;
o uso de marcações distintivas nas vestimentas para minorias religiosas, como
judeus e muçulmanos; e a moral do clero, com a afirmação do celibato.
Sobre o matrimônio, cabe mencionar que até então era apenas um
contrato civil, tal como na sociedade romana, mas a partir do século XII passa a
ser um sacramento, o que amplia o controle eclesiástico sobre as estruturas de
parentesco e a reprodução da sociedade (Le Goff, 2007).

5
TEMA 2 – RENOVAÇÃO RELIGIOSA E AS NOVAS ENTONAÇÕES DO
CRISTIANISMO

Em seu conjunto, os impulsos de reforma na primeira metade do século


XII resultaram em uma intensificação e uma diferenciação da vida
religiosa comunitária, que não se manifestaram apenas no
impressionante número de novas fundações. Simultaneamente
cresceu consideravelmente a abrangência social das formas de vida
religiosa e dos impulsos de reforma. Nunca anteriormente tantos
grupos sociais haviam sido incluídos na vida religiosa comunitária nem
nas iniciativas e discussões acerca da reforma da vida religiosa.
(Körntgen, 2014, p. 34)

As palavras de Ludger Körntgen fazem sobressair o contexto de


renovação religiosa que marca a Idade Média Central. As raízes dessa reforma
são costumeiramente creditadas ao movimento de Cluny, no ducado da
Borgonha, responsável por levar a cabo uma reforma das práticas monásticas
em inícios do século X. Cluny foi a primeira abadia onde a prece pela salvação
dos mortos tornou-se uma missão, decorrendo dessa prática a comemoração do
Dia de Finados, igualmente influenciada pelas novas concepções acerca do
lugar das almas falecidas à espera do Juízo Final. No século XI, novamente o
meio monástico protagonizou o movimento de renovação religiosa, destacando-
se as novas ordens dos cistercienses, dos cartuxos e dos premonstratenses.
Gozando de autonomia conventual, elas implementaram esforços por modelos
de vida mais austeros, uma vida apostólica sem excessos e mais ligada à
espiritualidade, contrapontos ao modelo representado por Cluny. Por inclinação
à defesa do trabalho manual dos monges, as novas ordens contribuíram ainda
para uma maior aproximação dos leigos na vida religiosa comunitária.
A renovação monástica citada foi um claro indício da intensificação da
própria vida religiosa em termos mais amplos, um cristianismo de novas
entonações que se abriu aos leigos. Estes foram motivados a se aproximar da
vida comunitária, sem a necessidade de assumir os votos monásticos e sem a
obrigação de participar da liturgia. Assim, o fato novo que marca o período a
partir do século XI é a entrada em cena das massas que aspiravam à salvação,
criando nos séculos seguintes, inclusive, uma santidade leiga, com o
aparecimento de santos de origem popular e urbana (Vauchez, 1995).
Do mesmo modo, afirmaram-se no período novas práticas devocionais e
um processo de interiorização da fé cristã. Exemplificam essa tendência a
retomada do teatro religioso, o desenvolvimento das procissões, da confissão,
do culto mariano e das festas cristãs, acompanhadas de alterações litúrgicas.
6
Ademais, tais movimentos nutriram-se do aprimoramento da iconografia e da
arte religiosa, contribuindo para a multiplicação de objetos de devoção (Figura
1), como relicários, crucifixos e livros de horas, e a afirmação da imagem de um
Cristo sofredor, cada vez mais próximo do homem comum.
Outra face das mutações da vida religiosa no período foi o sensível
crescimento do número de conventos femininos. Minoria até o século XI, desde
então as comunidades religiosas femininas se afirmaram em conventos próprios
ou em mosteiros duplos, onde o abade era encarregado da assistência espiritual
e sacramental das mulheres. Caso emblemático do período é o de Hildegarda
de Bingen (1098-1179), que se tornou conhecida como visionária, escritora e
compositora. Pertencente ao mosteiro de Disibodenberg, nas cercanias de
Mainz, Hildegarda conduziu a separação de sua comunidade feminina,
constituindo um mosteiro exclusivo para mulheres, em Rupertsberg, que gozava
de autonomia econômica e uma forma de vida própria (Körntgen, 2014).

Figura 1 – Cruz de Bonneval (século XIII) / Cruz de procissão com fundo dourado
pontilhado de flores e estrelas e figuras esmaltadas. A face principal representa
a Crucificação: sob a Mão de Deus, o Cristo crucificado, encimado por um anjo,
é ladeado pela Virgem e São João, pela Igreja e pela Sinagoga; aos pés da cruz,
Adão, o primeiro homem, sai de seu túmulo. No lado reverso, o Cristo em
Majestade, rodeado de símbolos dos quatro evangelistas e profetas do Antigo
Testamento

Crédito: Musée de Cluny-França.

7
As críticas ao comportamento do clero e os anseios pelos ideais de
pobreza voluntária e vida apostólica conduziram ao surgimento, no século XIII,
das ordens mendicantes, com destaque para a Ordem dos Frades Menores,
os franciscanos, e a Ordem dos Pregadores, os dominicanos. A criação
dessas ordens representou um dos aspectos mais marcantes das
transformações religiosas vivenciadas no Ocidente, aproximando a Igreja do
revigorado ambiente urbano. São Francisco de Assis (1181-1226) notabilizou-se
pela assimilação da imitatio Christi e pela condenação dos bens materiais,
fundando uma ordem ancorada na penitência e na pobreza. Paralelamente, São
Domingos de Guzmán (1170-1221), fundador dos dominicanos, destacou-se
pela pregação contra as heresias e pelo suporte teológico oferecido ao recém-
criado tribunal da Inquisição. O sucesso de ambas as ordens foi tão marcante
que no início do século XIII, os dominicanos dispunham de cerca de 700
conventos e, no século XIV, a ordem dos franciscanos era composta por cerca
de 1400. Mesmo aceitando uma regra de vida comunitária e ascética,
franciscanos e dominicanos optaram por viver em meio aos fiéis, renunciando à
vida em comunidades rurais isoladas e ao ideal da fuga do mundo. Tal opção
permitiu o enraizamento dos princípios do clero regular no coração das cidades
medievais, com os frades assumindo uma atividade pastoral adaptada às novas
exigências da sociedade medieval (Baschet, 2006).
Outro fator que acompanhou o desenvolvimento das ordens mendicantes
e acentuou a participação dos leigos na vida cristã foi a formação de ramos
femininos dessas ordens, sendo a mais conhecida a Ordem das Clarissas. Clara
de Assis (c.1193-1253), fundadora da ordem, deixou importantes escritos e foi
responsável pelo fortalecimento dos conventos femininos, garantindo a
aprovação de uma nova forma de vida para as mulheres dentro da estrutura da
Igreja. Além disso, marca o período a constituição das Ordens Terceiras, ordens
destinadas a simpatizantes, por vezes casados, que queriam viver de acordo
com o Evangelho, independentemente da adoção dos votos monásticos.
O fervor religioso encontrou ainda formas de expressão mais radicais com
grupos que buscavam modos de vida mais espirituais e ascéticos. Tal via, por
vezes, conduziu-os à crítica ao clero regular e secular, criando problemas de
acomodação nas estruturas da Igreja. Exemplificam essa tendência o movimento
dos valdenses, liderados pelo comerciante Pedro Valdo (1140-1218), e das
beguinas, grupos de mulheres devotas que viviam em comunidades e se

8
sustentavam por meio de trabalhos manuais. Ambos buscavam a vida apostólica
de forma mais intensa e esse modelo os levou a localizarem-se na linha limítrofe
entre a heresia e a ortodoxia, com os primeiros sendo condenados como hereges
e o movimento feminino conseguindo ser absorvido pela Igreja.

TEMA 3 – HERESIAS E PERSEGUIÇÃO

O movimento de reforma da Igreja, principalmente em sua expressão


mais radical, incentivou a crítica ao comportamento e à corrupção do
clero, a recusa da riqueza e o ideal de vida apostólica. Esses ideais,
defendidos por certos grupos ou indivíduos, poderiam ou não receber
a denominação de heresia [...], sua repressão era uma forma de
garantir o monopólio da hierarquia eclesiástica no exercício das
funções sacerdotais diante de grupos, letrados ou não, que, tendo
acesso aos textos e aos ritos sagrados, buscavam imitar ou controlar
o exercício dessas funções. (Silva, 2019, p. 106)

Como argumenta Marcelo Cândido da Silva, os historiadores costumavam


considerar as heresias da Idade Média Central como a expressão de um grande
movimento popular de contestação religiosa, assentado sobre uma nova visão
ética da instituição eclesiástica e da fé cristã. Tal perspectiva, desprezava o fato
de que as heresias foram, sobretudo, a expressão dos discursos daqueles que
as identificavam como tais, logo, que a classificação de determinado movimento
como herege deve ser entendida dentro das disputas estabelecidas, geralmente,
em contextos locais ou regionais. Como estudado anteriormente, o primeiro
milênio cristão conheceu intensas disputas doutrinárias, com vários movimentos
sendo condenados como hereges, em especial, por proposições acerca da
natureza de Cristo. Diferentemente, as heresias do século XII caracterizaram-se
por críticas ao modo de vida do clero (Quadro 1), formando comunidades
religiosas independentes da Igreja e associadas aos ideais de pobreza e de vida
apostólica. Tais movimentos tinham uma conformação socioeconômica variada,
reunindo desde grupos pauperizados às camadas dirigentes locais e regionais,
como no caso dos valdenses e dos cátaros, consequentemente,
representavam perda política e financeira a bispos e párocos locais.

Quadro 1 – Heresias dos séculos XII-XIII

Nome Motivo Condenação


Valdenses Adotavam a pobreza absoluta e proibiam os Excomungados em 1184,
juramentos e a pena de morte. Acreditavam que sobreviveram durante muitos
qualquer leigo poderia realizar o ritual da missa e séculos na clandestinidade.
que a Igreja romana não era a Igreja de Cristo.

9
Cátaros Acreditavam que o mundo foi criado por Satã e que Condenados em diversos concílios
só os puros poderiam chegar a Deus. Negavam a no século XII. Em 1209, foi
matéria, adotando a pobreza absoluta. Condenavam decretada uma cruzada para
a riqueza da Igreja, o casamento e qualquer forma exterminá-los. Foram perseguidos
de juramento. pela inquisição.
Irmãos do Adeptos da pobreza absoluta, consideravam-se Condenados em 1209, foram
livre parte direta de Deus, por terem em si o Espírito posteriormente perseguidos
espírito Santo. implacavelmente pela inquisição.
Fonte: elaborado com base em Macedo, 1996, p. 26.

Outra especificidade do século XII foi que no período o papado assumiu


a dianteira na luta contra as heresias, definindo e difundindo procedimentos
judiciários a serem utilizados na identificação e combate aos hereges. Tais
medidas, compreendidas em conjunto com a emergência do poder monárquico,
levaram Robert Moore (1987) a propor que, a partir do século XI, no contexto de
reforma da Igreja e reforço do poder papal, formou-se uma “sociedade
persecutória”, com o aprimoramento dos instrumentos de perseguição tanto de
hereges quanto de grupos marginalizados, como judeus, muçulmanos, leprosos
e homossexuais. O conceito elaborado pelo historiador britânico tem sido
recorrentemente usado para explicar como a sociedade Ocidental, em termos da
Igreja e do Estado, instituiu mecanismos de discriminação aberta,
estigmatização e perseguição crônica, uma face obscura do desenvolvimento
artístico, intelectual e econômico do período.
Considerados como uma doença em meio à comunidade dos fiéis,
hereges e grupos marginalizados foram coagidos por meio de diversas
maneiras. Para tal, desenvolveu-se um vasto conjunto de textos (manuais de
confessores, manuais de inquisidores, obras sobre a arte de pregar etc.) e
instrumentos de perseguição e punição, sendo o mais emblemático a Inquisição.
Fazendo amplo uso dos procedimentos inquisitoriais, em voga com a retomada
do direito romano no Ocidente, a Igreja sistematizou as medidas de investigação
e condenação dos crimes de fé, promulgando decretos e mobilizando emissários
eclesiásticos, as novas ordens religiosas e os concílios. Tais ações resultaram
na criação dos tribunais da inquisição ao longo dos séculos XII e XIII, comumente
chamados de Inquisição Papal, em contraste com os tribunais formados a partir
do final do século XV, diretamente dependentes do poder monárquico.
Com a inquisição medieval, a denúncia de uma vítima deixou de ser
necessária para a abertura de um processo, podendo este ser iniciado por
determinação de uma autoridade clerical, por vezes baseada em rumores ou em
suspeitas externas ao local de diligência. À justiça eclesiástica competia, assim,

10
não somente reagir a denúncias, mas detectar situações cabíveis de punição.
Concomitantemente, observa-se a redução dos direitos do acusado, pois as
acusações concretas podiam permanecer-lhe desconhecidas, assim como a
identidade do acusador e das testemunhas de acusação. Em síntese, essas
disposições deixavam o suspeito de heresia à mercê de um processo sem
defesa, exposto à arbitrariedade dos acusadores e dos juízes (Ohst, 2014).
Com amplo uso da violência física e psicológica, a inquisição tornou-se
um órgão essencialmente repressivo, responsável por investigar, descobrir e
estabelecer as penas aos infratores. Apesar disso, falar numa inquisição
medieval no singular não deve ofuscar a pluralidade e as limitações dos tribunais
inquisitoriais no período. Tratava-se, de fato, de tribunais locais assumidos por
um bispo ou confiados a frades mendicantes, que objetivavam forçar o
arrependimento e a reintegração à comunidade. As penas variavam, abarcando
a excomunhão individual, a interdição comunitária, a imposição de obrigações
(por exemplo, uso de determinadas vestimentas com identificações de heresia
ou peregrinação a lugares santos), o confisco de bens, a perda do direito de
herança pelos descendentes do herege, a prisão e, em casos limítrofes, a
condenação à morte, geralmente na fogueira.
De todo modo, como um processo de múltiplas faces, a partir do século
XII a Europa ocidental afirmou-se como uma sociedade persecutória, marcada
por um maior controle das instituições civis e eclesiásticas sobre a população.
Uma comunidade cada vez mais fracionada internamente, com seus membros
reafirmando suspeitas e perseguições entre si. Uma escalada do medo, para
usar as palavras de Jean Delumeau (1989), que chegaria ao seu ápice na caça
às bruxas dos séculos XVI e XVII, ou seja, no período que consideramos
Moderno pela cronologia tradicional.

TEMA 4 – IGREJA E SABER: ESCOLAS E UNIVERSIDADES MEDIEVAIS

O “Renascimento do século XII” foi marcado pelo que se denominou


às vezes de verdadeira “revolução escolar”, cuja essência fora
conquistada desde a metade do século, ao menos no que se refere aos
princípios e às linhas diretoras. A definição e o enriquecimento dos
novos saberes, bem como o surgimento de um número suficiente de
indivíduos capazes de assimilá-los e divulgá-los foram tornados
possíveis, em grande medida, pela existência de instituições de ensino
sólidas, mesmo que ainda não estáveis. (Verger, 2001, p. 35)

Como explica Jacques Verger, se podemos falar de um Renascimento do


século XII, para usar o consagrado termo cunhado por Charles Haskins (1870-
11
1937), é porque já existia no Ocidente uma rede de escolas estabelecida e que
serviu de base para uma verdadeira revolução escolar na Europa medieval.
Ao menos desde o século IV, as escolas antigas, ligadas à cultura cívica
do mundo romano, deram lugar a uma rede de escolas eclesiásticas, geralmente
localizadas junto aos mosteiros e sob a autoridade de um abade. Esse processo
conduziu ao quase monopólio da Igreja sobre o ensino, ainda que algumas
escolas leigas tenham persistido na Itália, em cidades como Roma, Ravena e
Bolonha. Tais estabelecimentos religiosos eram destinados, sobretudo, aos
jovens ingressantes na Igreja, mas também recebiam alunos de fora do meio
eclesiástico, como filhos de nobres e camponeses. Nessas escolas o programa
de ensino era, geralmente, o estabelecido por Alcuíno (735-804) para as escolas
carolíngias, pautado nas sete artes liberais: o Trivium (Gramática, Dialética e
Retórica) e o Quadrivium (Matemática, Geometria, Música e Astronomia), com
o método sendo a lectio, isto é, a leitura de trechos de um texto pelo mestre
acompanhada da extração de seu sentido profundo e oculto. Uma das obras
mais emblemáticas desse modelo é Didascalicon, de Hugo de São Víctor (1096-
1141). Apesar disso, a maior parte das escolas dispensavam apenas um ensino
elementar (leitura, escrita e cálculo), concentrando maior atenção na preparação
do jovem para as tarefas litúrgicas, sendo a exceção as escolas catedrais ou de
grandes mosteiros, em geral localizadas em centros urbanos de destaque
(Verger, 1990).
A revolução escolar do século XII tratou-se, inicialmente, de uma
mudança quantitativa, com a multiplicação das escolas, dos mestres e dos
alunos, e o crescimento dos estabelecimentos nas cidades e nos burgos,
colocando em segundo plano as escolas monásticas. Tais escolas urbanas cada
vez mais fugiam do controle clerical, alterando ainda a remuneração dos mestres
e o próprio funcionamento dos estabelecimentos de ensino. Outra característica
dessa revolução foi a renovação da dialética e da lógica, motivada diretamente
pelos aportes da obra de Aristóteles, recém-redescoberta no Ocidente (influência
do contato com os muçulmanos e o mundo bizantino), renovação que influenciou
diretamente o campo do Direito e da Medicina.
Nesse contexto de multiplicação de escolas e de aprofundamento e
diversificação dos ensinamentos, a passagem do século XII para o século XIII
viu surgirem as primeiras universidades na Europa, como as de Bolonha, Paris
e Oxford. Ancoradas na realidade urbana do período, as universidades se

12
difundiram rapidamente pelos reinos europeus e, ainda no século XIII, já
somavam dezenas de estabelecimentos, chegando a quase uma centena em
finais do século XV. Elas constituíam-se como uma corporação de professores
e estudantes, as universitas, que tratava dos interesses comuns e buscava
autonomia e liberdade frente à Igreja e aos poderes seculares. Tal liberdade, no
entanto, não deve ser entendida como uma separação da órbita da Igreja, visto
que a licença papal era imprescindível para o funcionamento das instituições e,
em geral, era o papado que garantia privilégios e protegia mestres e estudantes
contra abusos das autoridades locais. Em termos de método de ensino, as
universidades exploraram sobremaneira a disputatio, o debate oral como uma
disciplina para o ensino de retórica, que associada a lectio, contribuíram para o
desenvolvimento da Escolástica, sistema de ensino medieval por excelência.
Cabe ressaltar que as universidades medievais eram espaços masculinos, de
homens como mestres e alunos, sendo a educação feminina no período mais
restrita a grandes mulheres da nobreza e de famílias de posses, realizada no
âmbito doméstico por preceptores. No entanto, em algumas cidades surgiram
escolas que aceitavam também meninas, bem como houve mulheres que se
tornaram professoras (em geral, junto com seus maridos, em escolas laicas)
(Opitz, 1990, p. 398).
Para finalizar, como sublinha Verger, uma das características mais
marcantes da universidade medieval foi sua vocação universalista, extraída das
fontes antigas e da Revelação e proferida por meio de uma língua igualmente
universal, o latim. Essa tendência marcou a renovação educacional dos séculos
XII e XIII e favoreceu, nos séculos seguintes, o desenvolvimento do humanismo
renascentista. Esse saber cristão mais aberto também é expressão de um tempo
ambíguo, uma sociedade e uma Igreja que se abria intelectualmente, mas que
se fechava por meio de perseguições e segregações.

TEMA 5 – ARTE, RELIGIÃO, IGREJA

Do românico ao gótico é o mundo que muda e, com ele, a maneira de


conceber a função social e ideológica da arquitetura. [...] É assim que
a igreja românica aparece como uma cidade santa fortificada,
prefiguração terrestre da Jerusalém celeste, exibindo suas muralhas
de pedras preciosas, ilha de pureza espiritual em meio à ameaçadora
confusão do mundo. [...] Se o românico era uma arte do muro, o gótico
é uma arte da linha e da luz, sinal indubitável de uma relação com o
mundo mais aberta, menos inquieta com o contato com as realidades
mundanas, tão presentes nas próprias portas das catedrais. (Baschet,
2006, p. 201, 203)

13
A história da arte medieval merece um capítulo à parte e, na
impossibilidade de tal aprofundamento, propomos uma breve caracterização da
arte românica e gótica. Além disso, como será sugerido no item “na prática”,
consideramos que o contato visual, ainda que virtual, com as construções do
período poderá oferecer experiências enriquecedoras, permitindo uma
investigação individualizada.
Como assinalou Raul Glaber (985-1047), o contexto do Ano Mil foi
marcado por um amplo movimento de (re) construção de igrejas na Europa
medieval. Somente no reino francês, por exemplo, foram construídas 500 novas
igrejas e quase uma centena de catedrais, sem contar as milhares de igrejas
paroquiais. O movimento indicado pelo monge francês foi resultado tanto do
crescimento populacional, do desenvolvimento econômico e do aprimoramento
das técnicas do período (por exemplo, do trabalho com vitrais), como do
fortalecimento das instituições eclesiásticas, força manifesta nas alterações
litúrgicas, cada vez mais elaboradas, e nos objetos devocionais. Acrescenta-se
a isso o anteriormente mencionado processo de renovação do cristianismo, que
aproximou ainda mais as comunidades das instituições clericais.

Figura 2 – Igreja românica e igreja gótica / À esquerda: Sé Velha de Coimbra,


monumento do românico português, século XII. À direita: Mosteiro da Batalha
(vila da Batalha, Portugal), emblema do estilo gótico flamejante, século XV

Crédito: Mariana Bonat Trevisan, 2015.

Dois estilos artísticos e arquitetônicos principais destacaram-se no


período: o românico, entre os séculos XI e XIII, e o gótico, entre os séculos XII
e XV. Ambos se manifestaram, sobretudo, nas construções religiosas, mas
também podem ser observados em edifícios civis, como castelos, torres e alguns

14
palácios. Conforme indicado na citação de Jérôme Baschet, é possível identificar
nas diferenças entre os estilos, a mudança vivenciada pela sociedade medieval
no período. Comparando duas catedrais, uma românica e outra gótica, o
historiador francês sugere que a primeira representa uma Igreja que quer ser
uma fortaleza que se defende contra o mundo exterior, uma ilha de pureza
espiritual em meio às ameaças seculares; em contraponto, a catedral gótica,
como filha da cidade e do revigoramento urbano e comercial, pauta-se na luz,
indicando uma relação aberta com o mundo, menos inquieta frete às realidades
mundanas presentes em suas portas, sem deixar de também expressar uma
instituição eclesial triunfante sobre as estruturas seculares.
Como principais características da arte românica, podem-se se indicar:
construções em pedra, com paredes grossas, abóbodas e arcos, num padrão
austero; modelos de plantas em cruz, com uma, três ou cinco naves, divididas
por colunas; interior com pequenas janelas e decorações diversas em pedra. Em
contraste, a arte gótica caracteriza-se pela: verticalização das construções; a
ampliação da luz interior; a generalização do uso de rosáceas no portal central;
e a ampliação das pinturas a óleo e, principalmente, dos vitrais coloridos.

NA PRÁTICA

Há poucas décadas, somente por meio de viagens internacionais –


experiência de difícil acesso a maior parte da população brasileira – era possível
visitar castelos, catedrais e cidades medievais na Europa. Hoje, por intermédio
das tecnologias digitais, é possível ao estudante e ao interessado em geral
explorar inúmeros monumentos medievais. Considerando o tema dessa aula,
nossa sugestão prática é que você faça visitas virtuais a construções religiosas
da Idade Média4.
Escolhemos para a atividade dois mosteiros de Portugal, que além da
riqueza histórica e arquitetônica, oferecem informações em língua portuguesa.
O primeiro mosteiro indicado é o mosteiro de Alcobaça, com construção iniciada
no século XII, e o segundo é o mosteiro de Santa Maria da Vitória (também
conhecido como mosteiro da Batalha), com construção iniciada no século XIV.

4
Caso você tenha familiaridade com a língua inglesa e disponibilidade para ampliar a pesquisa,
sugerimos ainda a visita virtual às catedrais de Canterbury, na Inglaterra (https://www.canterbury-
cathedral.org/virtual-tour/), e de Amiens, na França. Disponível em:
<http://projects.mcah.columbia.edu/amiens-arthum/>. Acesso em: 29 set. 2021.
15
Para buscar informações sobre os mosteiros, sugerimos respectivamente os
sites institucionais: <http://www.mosteiroalcobaca.gov.pt/> e
<http://www.mosteirobatalha.gov.pt/>. Acessos em: 29 set. 2021.
Para visualizar o interior das construções, sugerimos o uso da ferramenta
Google Arts & Culture, aplicativo gratuito que permite a visitação a milhares de
obras e monumentos em mais de 80 países, entre elas os dois mosteiros da
atividade. Como uma forma de visita guiada, propomos um conjunto de
interrogações que podem auxiliar na contextualização de ambos os mosteiros
frente aos temas da aula: qual ordem religiosa foi responsável por cada um dos
mosteiros? Quais as características arquitetônicas das construções? Como a
história dos mosteiros relaciona-se com a história da monarquia portuguesa?
Como os mosteiros relacionavam-se com a produção agrícola da região?

FINALIZANDO

Nessa aula pudemos compreender como a instituição eclesiástica foi ao


longo dos séculos medievais se fortalecendo e se colocando mediadora
essencial entre os cristãos e o divino. Essa mediação e fortalecimento também
implicou em maior controle tanto das aristocracias e poderes laicos de reis e
príncipes, quanto da população em geral, por meio de regulações mediadas por
concílios, encíclicas e legislações canônicas difundidas em diferentes territórios
pelos cleros locais, que respondiam ao papado.
O fortalecimento da instituição eclesial implicou em conflitos entre papas,
imperadores e reis, acabando por revelar a prevalência da chamada hierocracia
(supremacia papal) no Ocidente europeu até quase finais do medievo. A
organização da Igreja levou também a um movimento reformista e iniciativas de
renovação religiosa, com o surgimento de novas ordens regulares e fenômenos
como as ordens mendicantes no mundo urbano na Idade Média Central.
Todavia, as novas entonações do cristianismo levaram ao surgimento de
comunidades religiosas independentes do controle clerical, o que preocupou e
ameaçou a posição da Igreja como grande mediadora da Cristandade. Tal
processo levou ao enquadramento e perseguição dos que foram chamados de
movimentos hereges, com o advento de uma sociedade persecutória. Ao mesmo
tempo, os séculos centrais do medievo viram surgir novas formas de arte e
arquitetura, bem como de um humanismo cristão e de uma expansão do saber
com escolas e universidades.
16
REFERÊNCIAS

BASCHET, J. A civilização feudal: do ano mil à colonização da América. São


Paulo: Globo, 2006.

BLOCKMANS, W.; HOPPENBROUWERS, P. Introdução à Europa medieval,


300-1550. Rio de Janeiro: Forense, 2012.

DELUMEAU, J. História do Medo no Ocidente. 1300-1800. São Paulo: Cia das


Letras, 1989.

FLORI, J. Guerra Santa: formação da ideia de Cruzada no Ocidente cristão.


Campinas, SP: Editora da Unicamp, 2013.

GOMES, F. A Igreja e o Poder: representações e discursos. In: RIBEIRO, Maria


Eurydice de Barros (org.). A vida na Idade Média. Brasília: Editora da UnB,
1997, p. 39-41.

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RAYMUND; M.; BERND; W. (ORG.). História Ecumênica da Igreja. 2. Da Alta
Idade Média até o início da Idade Moderna. São Paulo: Loyola, 2014, p. 5-52.

LE GOFF, J. As raízes medievais da Europa. Petrópolis, RJ: Vozes, 2007.

MACEDO, J. Religiosidade e Messianismo na Idade Média. São Paulo:


Editora Moderna, 1996.

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Western Europe, 950–1250. New York: Basil Blackwell Publishing, 1987.

OHST, M. A igreja no século XIII. In: KAUFMANN, Thomas; KOTTJE, Raymund;


MOELLER, Bernd; WOLF, Hubert. (org.). História Ecumênica da Igreja. 2. Da
Alta Idade Média até o início da Idade Moderna. São Paulo: Loyola, 2014, p. 53-
113.

OPITZ, C. O quotidiano da mulher no final da Idade Média (1250-1500).


KLAPISCH-ZUBER (Dir.). História das Mulheres no Ocidente. Volume 2.
Lisboa: Afrontamento, 1990.

SILVA, M. C. da. História Medieval. São Paulo: Contexto, 2019.

SOUTHERN, R. A Igreja medieval. Coleção História da Igreja, vol.2. Lisboa:


Ulisseia,1970.

17
SOUZA, J.; BARBOSA, J. O reino de Deus e o reino dos Homens: as relações
entre os poderes espiritual e temporal na Baixa Idade Média (da Reforma
Gregoriana a João Quidort). Porto Alegre: EdiPUCRS, 1997.

VAUCHEZ, A. A espiritualidade na Idade Média Ocidental. Séculos VIII a XIII.


Rio de Janeiro: Jorge Zahar Editor, 1995.

VERGER, J. As universidades medievais. São Paulo: Editora da UNESP,


1990.

_____. Cultura, ensino e sociedade no Ocidente nos séculos XII e XIII. São
Paulo: EDUSC, 2001.

18
HISTÓRIA E HISTORIOGRAFIA
MEDIEVAL OCIDENTAL
AULA 5

Prof. Douglas Mota Xavier de Lima


Profª Mariana Bonat Trevisan
CONVERSA INICIAL

Início da Expansão Europeia (Sécs. XI-XIII)

Durante o século XI iniciou-se um movimento de expansão no Ocidente


em diversas regiões e de diferentes formas. A base desse movimento
resultou da estabilidade alcançada pelo Ocidente a partir de meados
do século X, quando as invasões da Ásia central e da Escandinávia
terminaram. A produção agrícola e a população cresceram, e após
algumas gerações as tensões sociais acentuaram-se. [...] A
demonstração mais visível dessas iniciativas foi a procura por novas
áreas de povoamento, tanto nas periferias das antigas cidades da
Europa ocidental quanto em regiões mais distantes. (Blockmans;
Hoppenbrouwers, 2012, p. 293)

O texto dos historiadores Wim Blockmans e Peter Hoppenbrouwers, que


abre a presente aula, nos serve como retomada de algumas discussões já
realizadas anteriormente, e também como ponto de partida para novas reflexões.
Costumeiramente, quando tratamos do tema da expansão europeia, somos
levados ao contexto dos séculos XV e XVI, entendendo que ela está diretamente
relacionada à expansão marítima e comercial iniciada pelos reinos ibéricos e às
conquistas do ultramar. Ademais, ao tomar a dinâmica expansionista como
particularidade da passagem do medievo para a modernidade, cristaliza-se a
ideia de uma Idade Média estagnada, com pouca mobilidade e circulação de
ideias, bens e pessoas. Esses são equívocos que pretendemos corrigir. Na aula
de hoje, convidamos os alunos a recuarem alguns séculos, compreendendo uma
outra expansão europeia: a expansão da Idade Média Central.
Alguns fenômenos dessa expansão já foram descritos, como o
crescimento demográfico e agrícola, o desenvolvimento técnico e o aumento das
terras cultiváveis, assim como a afirmação da Igreja no Ocidente, elemento
igualmente importante para compreender as transformações do período. Na
presente aula, tendo como base tais processos, nosso foco inicial será deslocado
para as relações entre a Europa medieval e as outras civilizações vizinhas (por
vezes, rivais).
Assim, no primeiro tema, com uma abordagem panorâmica,
apresentaremos a mudança de equilíbrio nas relações entre a cristandade latina,
o mundo muçulmano e o império bizantino. Em um segundo momento,
concentraremos a atenção nas cruzadas, uma das principais expressões dessa
nova relação. Nos três temas seguintes, nosso olhar será redirecionado das
questões externas para alguns processos internos, como o revigoramento

2
comercial e urbano. Em nosso último tema, estudaremos a sociedade urbana,
com vistas a caracterizar a vida e o trabalho nas cidades medievais.

TEMA 1 – O OCIDENTE E OS DEMAIS CENTROS DE PODER NO MEDIEVO

Assim, no fim da Alta Idade Média, pode-se iniciar a mudança de


equilíbrio entre o Ocidente e seus rivais bizantinos e muçulmanos. A
cristandade romana concentra suas forças no mesmo momento em
que o Islã e Bizâncio se fragilizam. Os sinais dessa reversão de
tendência, tão hesitante quanto decisiva, multiplicaram-se no século
que cerca o ano mil. (Baschet, 2006, p. 97)

No início do século XI, a Europa medieval permanecia periférica em


termos materiais, econômicos e culturais, em comparação às demais civilizações
do mediterrâneo. Tal contraste se acentuava em comparação com as
civilizações orientais, em especial o Império chinês. A alteração completa dessa
relação ocorreria apenas nos séculos XVIII e XIX, com os desdobramentos da
Revolução Industrial e do Imperialismo europeu. No entanto, as bases do
desenvolvimento europeu remontam à Idade Média Central. Nesse período, os
núcleos opostos imediatos, o mundo bizantino e o mundo muçulmano,
fragmentaram-se por conta de disputas internas e pressões externas, ao passo
que, concomitantemente, sustentada no crescimento demográfico e produtivo, e
em grande parte por seu revigoramento urbano e comercial, a Europa cristã
iniciava um amplo movimento expansionista, em termos populacionais,
religiosos e políticos.
Em relação aos bizantinos, após sucessos da dinastia dos Comnemos,
entre os séculos IX e XI, o território imperial diminuiu gradativamente. Como
exemplo desse processo, temos a formação do domínio turco do sultanato de
Rum, na Anatólia, e a reconstituição do reino búlgaro. Assim, a partir do século
XIII, o Império Bizantino estava reduzido aos Balcãs e a uma parte da Anatólia,
resistindo em Constantinopla às crescentes investidas do Ocidente e do Oriente.
Por sua vez, o mundo muçulmano também viu acentuarem-se as divisões
internas, com destaque para a rivalidade entre os fatímidas do Egito e os turcos-
seljúcidas de Bagdá. Esses últimos foram os protagonistas das tensões com os
cristãos na Palestina. Assim, no contexto de convocação das cruzadas, as duas
grandes potências mediterrânicas, bizantinos e fatímidas, estavam
enfraquecidas e divididas, ao passo que os seljúcidas, conquistadores de
Jerusalém, estavam envolvidos com disputas dinásticas pelo controle do Oriente
Próximo.

3
Abordamos alguns exemplos da expansão europeia da Idade Média
anteriormente, como o arroteamento rural e a fundação de novas vilas agrícolas.
Abordaremos outros serão tratados nos tópicos seguintes, como o crescimento
urbano, a criação de cidades e a ampliação da rede urbana. Por ora, cabe
explorar o tema das Cruzadas, quiçá a principal expressão do expansionismo da
cristandade latina a partir do século XI.

TEMA 2 – CRUZADAS: GUERRA, COLONIZAÇÃO E INTERCÂMBIOS

A convocação do papa Urbano II em Clermont (1095) inaugura uma


nova era, a era das cruzadas. A partir daí, e ao longo de toda a Idade
Média a ideia de cruzada estará presente nos espíritos e marcará
profundamente as mentalidades dos cristãos do Ocidente [...]. Em
Clermont, Urbano II inova. Pela primeira vez um papa se dirige
diretamente aos cristãos do Ocidente para incitá-los, em nome da fé e
do perdão de seus pecados, a pôr a vida terrena em perigo para ir
libertar o Santo Sepulcro, túmulo vazio de Cristo nas mãos dos
muçulmanos havia mais de três séculos. [...] O papa lança assim os
alicerces de uma verdadeira instituição. (Flori, 2013, p. 15)

As cruzadas medievais ainda despertam múltiplos interesses no mundo


contemporâneo, que variam de expressões fílmicas e romances literários a
apropriações de movimentos políticos ultranacionalistas – nesse caso,
anacronismo bastante conveniente a propósitos do presente (Fernandes, 2006,
p. 128). De todo modo, como ponto de partida, cabem alguns esclarecimentos
sobre o termo e a sua aplicabilidade. Tradicionalmente, entende-se por cruzadas
o movimento militar cristão direcionado ao Oriente Próximo, entre 1095 e 1291,
cujo objetivo inicial era auxiliar a Cristandade a retomar os locais sagrados na
Palestina, tomados do Império Bizantino. O avanço turco seljúcida no século XI
havia chegado até Jerusalém, bloqueando as peregrinações à cidade sagrada.
Em 1095, no concílio de Clermont-Ferrand, o papa Urbano II emitiu a
convocação que se tornaria não só um socorro à Terra Santa, mas também um
projeto de expansão da cristandade latina sobre o Oriente.
Para além desse contexto tradicionalmente conhecido das cruzadas, cada
vez mais os historiadores tendem a usar o termo cruzadas para designar outras
expedições:

• Contra pagãos no Báltico (ditas Cruzadas do Norte, séculos XII e XIII),


comandadas por ordens militares e reis católicos da Dinamarca e da
Suécia.

4
• Contra os hereges cátaros no sul da França (a chamada “cruzada
albigense”, no século XIII).
• Contra os muçulmanos na Península Ibérica (longo processo de
expansionismo cristão no território), com conflitos a partir do Norte da
Espanha, que se estenderam desde o século VIII – pleno domínio
muçulmano na região – com avanços e retrocessos, até o século XV,
culminando com a queda de Granada no sul da Espanha, em 1492.
Podemos inserir aqui também o avanço cristão no norte da África, a partir
da conquista portuguesa do porto marroquino de Ceuta, em 1415.
• Por fim, temos as campanhas marítimas e terrestres contra os turcos
otomanos, entre os séculos XV e XVIII.

Outra alteração importante na compreensão das cruzadas refere-se à


explicação do que motivou as expedições. A tese materialista, em voga desde o
início do século passado, e comumente encontrada em manuais escolares,
explica as cruzadas como resultado do crescimento populacional europeu, com
a consequente necessidade de novos domínios em resposta à belicosidade da
nobreza e aos problemas dos secundogênitos (excluídos pelo critério de
primogenitura das heranças familiares). Costuma-se dar ênfase também ao
interesse dos mercadores italianos em expandir mercados no Mediterrâneo
Oriental. Porém, essa leitura mostra-se insuficiente. A definição das cruzadas
implica que elas são peregrinações de guerra sacra e penitencial (sendo
necessário incentivar todos os segmentos sociais a essa causa). Essa
compreensão, sem excluir as motivações socioeconômicas e políticas, nos faz
perceber que as cruzadas foram empreendimentos militares diretamente
relacionados ao cristianismo do período medieval e moderno (Riley-Smith,
2019).
Do final do século XI até o século XIII, foram realizadas no Oriente oito
cruzadas chanceladas oficialmente, convocadas pelo papado e organizadas por
nobres e/ou reis e príncipes. Todavia, existiram também movimentações de
caráter popular, que demonstraram o alcance da afirmação papal que se
delineava no contexto reformista da Igreja (destacamos também a indulgência
– remissão dos pecados –, garantida pelo papa a todos que partissem para a
Terra Santa).
Capitaneada por nobres francos, a primeira cruzada, iniciada em 1096,
em vez de proteger o Império Bizantino (como havia sido requerido pelo
5
imperador Aleixo I ao papa), atacou a Palestina, estabelecendo no Levante um
Estado vassalo do papado Ocidental e, por conseguinte, sem vínculo com o
patriarca de Constantinopla. As vitórias promoveram a formação de colônias
ocidentais no Mediterrâneo oriental, como o principado de Antioquia, os
condados de Trípoli e Edessa, além do reino de Jerusalém, tendo se tornado o
o mais bem-sucedido empreendimento cruzadístico dos cristãos do Ocidente
(Figura 1). Esse empreendimento colonial não se compara às ações promovidas
nos séculos XV e XVI nas colônias atlânticas, porém é uma importante
experiência prévia dos europeus, pois promoveu a presença ocidental na região
da Palestina. Essa maior presença permitiu, por exemplo, que os mercadores
italianos constituíssem uma ampla rede comercial, com entrepostos no Mar Egeu
e no Peloponeso, além de uma colônia em Creta, na qual se produzia cana-de-
açúcar com base em trabalho escravo.

Figura 1 – Estados cruzados em 1135

Crédito: João Miguel A. Moreira.

Outro fator significativo relacionado ao estabelecimento dos reinos


cruzados foi a formação das ordens militares religiosas, como os Templários,
os Hospitalários e os Cavaleiros Teutônicos. Inicialmente responsáveis pelo
acolhimento e proteção dos peregrinos, gradativamente as ordens adquiriram
um relevante papel militar, político e econômico, sendo protagonistas das ações
cristãs no Levante, nos reinos ocidentais e, a partir do século XIII, no Leste

6
europeu, ampliando assim os limites geográficos de expansão da cristandade
latina.
Ao longo do século XII, os cristãos tiveram revezes no Oriente, tal como
aconteceria no contexto da Segunda Cruzada (lançada em 1146), quando
disputas de poder internas abalaram a coesão cristã. A terceira cruzada contaria
com reis do Ocidente, no entanto enfrentou a superioridade numérica e
estratégica das tropas do sultão Saladino, que havia conquistado Jerusalém.
Pela diplomacia, os cristãos ficaram com uma estreita faixa na Palestina e o
direito a peregrinações.
A partir da quarta cruzada (1202), os propósitos cruzadísticos se
mantiveram apenas em teoria, pois a predominância de nobres e comerciantes
(principalmente venezianos), bem como de mercenários pagos para conquistar,
acarretou uma disputa, ainda em território cristão, no Oriente: no caminho para
a Palestina, Constantinopla é saqueada e venezianos dominam a cidade até
1261, criando um império latino no Oriente. Esse episódio acabou provocou
traumas e um maior afastamento entre os bizantinos e a cristandade latina. Os
movimentos cruzadísticos subsequentes, no Oriente, alicerçaram-se em um
discurso religioso que se tornou anacrônico, por conta do processo vivido na
quarta cruzada e das práticas comerciais da época, em um século XIII marcado
por enriquecimento e expansão urbana (Fernandes, 2006, p. 121). Como saldo
das cruzadas, acumularam-se séculos de desgastes e traumas entre diferentes
culturas e religiões.

TEMA 3 – CIDADE MEDIEVAL

De meados do século XII a cerca de 1340, o desenvolvimento da


cristandade latina atinge o seu apogeu. [...] As cidades são uma das
principais manifestações e um dos motores essenciais dessa
culminação medieval. A atividade econômica, cujo centro são as
cidades, chega ao seu mais alto nível. Sob a égide de uma Igreja que
se adapta à evolução e triunfa sobre a ameaça herética,
particularmente viva em certos meios urbanos, uma nova sociedade,
marcada pelo cunho urbano, manifesta-se num relativo equilíbrio entre
nobreza, que participa do movimento urbano mais do que se tem
afirmado, burguesia que dá o tono, se não o tom, à sociedade, e
classes trabalhadoras, das quais uma parte — urbana — fornece a
massa de mão-de-obra às cidades, e a outra — rural — alimenta a
cidade e é penetrada por seu dinamismo. (Le Goff, 1992, p. 1)

O revigoramento comercial e urbano no período medieval é considerado


um dos principais acontecimentos da história europeia anteriores à
industrialização. Fenômeno complexo, teve implicações em questões

7
econômicas, sociais, políticas e culturais. A fim de caracterizar o processo de
desenvolvimento das cidades medievais a partir do século XI, propomos
caracterizar inicialmente três aspectos correlacionados: o crescimento das
cidades a multiplicação das cidades e a expansão da rede urbana.
Primeiramente, o crescimento das cidades, entre os séculos XI e XIII,
caracterizado como expansão demográfica. Nutrido pela imigração de pessoas
provenientes das áreas rurais, tal crescimento manifestou-se em números
absolutos e em termos proporcionais, em relação ao número total de habitantes
de uma região. Isso indica que, cada vez mais, as cidades atraíam as pessoas,
e assim se tornaram um espaço de concentração populacional – e, como
consequência, de bens, serviços e oportunidades. O aumento populacional
também contribuiu para duas outras expressões do fenômeno urbano medieval:
o crescimento vertical e a expansão espacial. Essa tendência à verticalidade
manifesta-se de forma mais explícita na construção das catedrais, em especial
das igrejas góticas, que por vezes chegam a uma centena de metros de altura,
mas pode ser igualmente exemplificada pela edificação de palácios, residências
e monumentos urbanos, como a Torre de Arnolfo do Palazzo Vecchio, em
Florença, com cerca de 94 metros de altura.
O segundo elemento, representado pela ampliação das muralhas, é
ainda mais significativo, pois demonstra o caráter processual da expansão
espacial das cidades medievais. Como ensina Jacques Le Goff (1992), por mais
que nem toda cidade tivesse uma, a muralha foi o elemento mais importante da
realidade física e simbólica das cidades medievais, carregando uma função
identitária associada aos primários objetivos de defesa militar. Ademais, ela
serve de indicativo das transformações vivenciadas pelo espaço ao longo dos
séculos, tanto o recuo urbano no primeiro milênio, como a expansão a partir do
século XI, quando o aumento populacional levou ao surgimento de burgos e
subúrbios nas partes externas, os quais foram gradativamente inseridos dentro
das muralhas, por vezes em um processo de ampliação do limite amuralhado.
Dois casos são elucidativos. Cidade romana de cerca de 100 hectares, Colônia
conheceu uma redução sob o domínio franco, tendo sido destruída pelos
normandos no século IX. Com intensa atividade comercial nos séculos
seguintes, prolongou suas muralhas até o rio Reno. Posteriormente, inseriu os
burgos circundantes em novas muralhas do século XII, levando a superfície da
cidade a apresentar 200 e 450 hectares. Outro caso emblemático é o de Florença

8
(Figura 2). Cidade romana de relevância secundária, conheceu um significativo
crescimento no século XI, quando passou a ocupar as regiões fora de suas
quatro portas. Ao longo dos séculos seguintes, uma série de intervenções foram
desenvolvidas a fim de acomodar o aumento populacional, o que levou à
construção de uma nova muralha, em uma superfície de cerca de 480 hectares
(Benevolo, 1995).
O mapa a seguir representa o processo de ampliação das muralhas da
cidade italiana de Florença. Em verde, o traçado da muralha romana; em
vermelho, a possível muralha comunal do século XI; em azul, os limites dos
muros da comuna no século XII; em laranja, as muralhas no século XIII; o último
contorno é das muralhas do século XIV.

Figura 2 – Mapa das muralhas de Florença

Crédito: João Miguel A. Moreira.

Ainda neste período, houve a multiplicação das cidades. Nessa dimensão,


fazemos referência às cidades que se formaram a partir de núcleos não urbanos,
como castelos, mosteiros, locais de peregrinação e cruzamentos de rotas
comerciais, e também às que foram fundadas a partir do século XI, pelo
movimento de colonização que se prolongou séculos seguintes pela Europa
Central e pelo Leste europeu. Elas diferenciam-se das cidades que se
9
desenvolveram a partir de antigas urbs do período romano. Por vezes, tinham
como característica a tentativa de planejar a ocupação do espaço urbano, com
plantas indicando um esquema concêntrico, centrado na praça principal.
Como terceiro aspecto, lembramos que ocorreu uma expansão da rede
urbana. Ao passo que as cidades pressupõem um circuito de abastecimento
externo, elas estão entrecortadas por vias que a ligam a portos, estradas,
vilarejos etc. Tal rede manifesta-se na estruturação de canais de abastecimento
intrarregionais, ligando cidades entre si e também às áreas rurais de produção.
Ela ganha ainda maior relevo com as grandes rotas comerciais que se ampliaram
ao longo do período, tanto por terra quanto por mar. Essas rotas atravessavam
a Europa central. Por mar, levaram ao estabelecimento de centros comerciais
nas penínsulas itálica e ibérica e no Mar do Norte, movimento que implicou na
consolidação de empórios comerciais, como Lisboa e Porto, cidades cujo
desenvolvimento ficou marcado pelo comércio marítimo.
Veja, no mapa a seguir, algumas rotas comerciais da Europa medieval.
As linhas pretas mostram as rotas da Liga Hanseática; as rotas venezianas estão
em azul; as rotas genovesas em vermelho. Linhas roxas são rotas usadas por
venezianos e genoveses. As linhas pontilhadas representam rotas terrestres e
fluviais.

Figura 3 – Mapa das principais rotas comerciais da Europa medieval

Crédito: LAMPMAN/PD.

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Para finalizar esta seção, cabe destacar outro aspecto relacionado ao
fenômeno urbano medieval. Formadas inicialmente por grupos de comerciantes
e artesãos, as cidades medievais eram submetidas a algum centro de
autoridade, laica ou eclesiástica, relação que por vezes levava a disputas por
autonomia. Gradativamente, as cidades medievais desenvolveram seus próprios
costumes e leis, criando pactos de juramento entre seus habitantes, para garantir
proteção mútua, limitando, ainda que parcialmente, a presença de autoridades
externas à comuna. É nesse sentido que deve ser interpretado o provérbio
alemão do século XIII Stadtluft macht frei (“O ar da cidade liberta”), que aparece
constantemente nas menções à cidade medieval, visando expressar a liberdade
gozada pelos cidadãos do local. Essa foi uma liberdade parcial, que com
frequência esteve associada à dependência direta ao poder régio, mas não deixa
de evidenciar o vigor das cidades medievais enquanto comunidades de
cidadãos.

TEMA 4 – PRIMÓRDIOS DE UMA REVOLUÇÃO COMERCIAL

Uma característica desse comércio, em comparação com a Alta Idade


Média, era que ele não se limitava mais a poucas mercadorias ou a um
estoque pouco variado em pequenas quantidades e com um preço
muito caro. Os comerciantes não vinham só de regiões distantes como
a Síria. A partir do século XIII o comércio passou a ser de venda por
atacado, e cada vez mais incluiu artigos de consumo do dia a dia, como
tecidos, que por muitos séculos foram a fonte de riqueza do norte da
França e de Flandres. Essa mudança só foi possível pelo aumento da
demanda e do poder de compra, além da evolução dos meios de
transporte que atendeu a esse crescimento. (Blockmans;
Hoppenbrouwers, 2012, p. 319)

Múltiplos fatores explicam o que o historiador Roberto Lopez (1910-1986)


chamou de “Revolução comercial” da Idade Média, comumente considerada
como primeira fase da formação do capitalismo, ou capitalismo comercial. Em
primeiro lugar, mesmo com as pressões exercidas pela Igreja na condenação de
empréstimos a juros, a prática da usura, e com a hostilidade aos mercadores, a
partir do século XI surgiram inovações importantes, com impactos de longa
duração, como os sistemas contábeis, as cartas de câmbio, de crédito e de
seguro, além de um primeiro sistema bancário. Oferecendo mais segurança
para as trocas, tais inovações foram acompanhadas pela adaptação do papel-
moeda – elemento comum no império chinês, mas pouco usual na Europa até
então – e pela ampliação dos empórios comerciais, ligando diferentes pontos da
cristandade latina e intensificando o comércio.

11
Entre os séculos XI e XIV, esses fatores alteraram o perfil do comércio
medieval. Caracterizado inicialmente como um negócio itinerante, o mercador
acompanhava as suas mercadorias até o local de distribuição. A venda era
realizada em pequenas lojas e em feiras locais e regionais. Gradativamente,
esse modelo foi substituído pela sedentarização do comércio, o que reduziu o
papel das feiras, mesmo das grandes feiras de Champagne, fortalecendo os
negócios conduzidos por grupos de mercadores, por vezes organizados em
guildas ou hansas (Fourquin, 2000).
As cidades italianas, especialmente Veneza e Gênova, foram pioneiras
nesse processo, tendo construído redes comerciais que ligavam o Mediterrâneo
ao mar do Norte. Também foram responsáveis pelo comércio de longa distância,
como o comércio oriental de especiarias (ver Figura 3). De todo modo, o
dinamismo do sistema comercial do período pressupõe um processo anterior,
com aumento da produção agrícola e artesanal, tal como já estudamos. Essa
produção de excedentes foi fundamental para revigorar as trocas em termos
locais e regionais, formando um comércio variado, marcado por produtos
especializados e de consumo cotidiano. Em que pese a importância do comércio
de longa distância, ele representava apenas 10% do volume total das trocas. A
maior parte da circulação acontecia dentro da Europa.
A nova demanda urbana foi fundamental para esse revigoramento
comercial. Concentrando pessoas e, consequentemente, poder de compra, as
cidades estimulavam a economia rural, sobretudo pelo incentivo à produção
direcionada. Essa relação tendeu a se configurar no longo prazo como
dependência campo-cidade, afetando as áreas fornecedoras próximas, cada vez
mais condicionadas às escolhas citadinas. Um dos exemplos mais comuns
dessa relação é o processo de cercamento dos campos na Inglaterra, com
terras comunitárias rurais sendo cercadas para a criação de carneiros e ovelhas,
prática estimulada pela demanda de lã da indústria têxtil do norte da França e
dos Países Baixos.
Paralelamente, os séculos em questão caracterizam-se por uma
revolução nos transportes. Tal mutação evidencia-se na construção,
manutenção e ampliação de estradas e pontes; na abertura de canais, na
construção de barragens e na organização de portos; assim como no
desenvolvimento dos instrumentos de navegação – como portulanos, mapas e a
bússola, incorporados pelos cristãos ocidentais a partir do contato com os

12
muçulmanos – e das embarcações, cada vez mais adaptadas a grandes cargas
e distâncias. Essas mudanças levaram à intensificação da circulação de
produtos e pessoas, fortalecendo o revigoramento urbano e comercial do
período.

TEMA 5 – SOCIEDADE URBANA

Causa, e ao mesmo tempo efeito, da expansão quase geral do


Ocidente dos séculos XI ao XIII, o crescimento demográfico teve
importantes efeitos sociais que, ao combinarem-se com os progressos
técnicos, desencadearam transformações fundamentais nas relações
sociais de trabalho. Merecem destaque o crescimento da mobilidade
da mão-de-obra e os progressos da “liberdade” do trabalho. (Le Goff,
2006, p. 563)

A pressão demográfica da Idade Média Central permitiu uma maior


divisão e especialização do trabalho. Além disso, intensificou a mobilidade dos
indivíduos, gerando efeitos que se consumaram, principalmente, nas cidades
medievais. Elas tornaram-se grandes canteiros de obras, o que transformou os
estaleiros de construção (catedrais, igrejas, edifícios, pontes, celeiros,
mercados, casas, muralhas etc.) no centro do engenho medieval (Figura 4).

Figura 4 – Representação da construção de Alexandria

Crédito: CC/PD.

O revigoramento urbano impulsionou ainda o comércio de alimentos. Os


principais produtos do grande comércio eram grãos, sal e vinho. No entanto, o
comércio local de pequena escala também se mostrava importante, como a
produção de pães, o comércio de verduras e legumes e o consumo de carne

13
(Figura 5). Nesse último caso, considerando as mudanças nos hábitos
alimentares impulsionadas pela sociedade urbana, Le Goff (1992) indica por
exemplo que, em Toulouse, no ano de 1322, havia 177 açougueiros para uma
população de no máximo 40 mil pessoas – ou seja, uma proporção de 1
açougueiro para cada 226 habitantes.

Figura 5 – Açougue medieval

Crédito: CC/PD.

A divisão do trabalho no meio urbano era acentuada. O desenvolvimento


do artesanato e de outros ofícios cada vez mais especializados conduziu à
formação de associações, mais conhecidas como corporações de ofícios.
Comunidades juramentadas de auxílio mútuo, as corporações de ofício eram
responsáveis pela autorregulamentação da profissão e pela assistência aos seus
membros, ligando-se, em alguns casos, a organizações devocionais próprias,
com a formação de confrarias. Em geral, as oficinas e as corporações
estruturavam-se em três segmentos sociojurídicos: mestres de ofícios,
aprendizes e trabalhadores assalariados. A restrição do acesso ao mestrado
foi sendo progressivamente limitada a vínculos familiares, em especial a partir
do século XIII.
A localização espacial dos ofícios também implicava uma forma de
organização, geralmente resultando de uma tentativa de controle das
autoridades urbanas. Em Montpellier, por exemplo, em 1204, as mudanças de

14
residência foram proibidas; em Toulouse, em 1222, os açougueiros foram
distribuídos em três grupos geográficos; em Estrasburgo, sabemos da existência
de uma rua de carpinteiros, em 1247, uma rua dos serralheiros, em 1266, uma
rua dos tripeiros, em 1286, e um fosso de alfaiates, em 1298. (Le Goff, 1992).
Como vestígio dessa concentração de ofícios iniciada no medievo, que se
perpetuou por alguns séculos, inúmeras cidades europeias (e, inclusive,
brasileiras) mantém os nomes de suas vias como Rua dos Mercadores, Rua da
Selaria, Rua das Adegas etc.
Não obstante, era comum a coexistência de diversas formas de
organização do trabalho, mesmo onde o modelo das corporações existiu, ele não
constituiu o único em uma cidade. Muito trabalho e produção eram realizados
fora das associações de ofício (Melo, 2009). Diferentemente dos mestres e
aprendizes, havia uma massa de jornaleiros (trabalhadores que recebiam por
jornada) entregues ao acaso do mercado, sem contar com nenhuma proteção
corporativa – por conta disso, em situação de vulnerabilidade. A expansão
econômica característica dos séculos de que tratamos permitiu o aumento da
distância entre ricos e pobres. Essa desigualdade se mostrou latente na cidade,
local em que os laços socais eram mais frágeis do que nas comunidades rurais.
Nos primeiros séculos de revigoramento urbano e comercial, o sistema
corporativo foi capaz de oferecer a aprendizagem do ofício e a socialização.
Porém, o fenômeno ultrapassava a capacidade de resposta das instituições
citadinas, o que levou o meio urbano a redefinir a sua relação com a pobreza e
o pobre marginalizado, fazendo emergir a figura do vagabundo – o pobre que
passa a causar medo nas autoridades citadinas. Destarte, foi nos arredores das
cidades em crescimento que a miséria apareceu, junto com o estigma lançado
sobre aqueles que não tinham estabilidade profissional, que estavam fora do
mundo das corporações, ou que exerciam profissões consideradas ilícitas ou
indignas, como carcereiros, barbeiros, carrascos, coveiros, profissionais do
espetáculo e prostitutas (Geremek, 1989).
Para finalizar, ressaltamos a importância do trabalho urbano feminino
(Figura 6). Ainda que não estivessem reunidas em guildas específicas, muitas
mulheres exerciam ofícios especializados, como a tecelagem, e chegaram a
assumir a condução de oficinas ou lojas plenamente. Em geral, essa posição era
alcançada após a viuvez, que legava à mulher os mesmos direitos dos demais

15
membros da guilda. No entanto, muitas mulheres exerciam ofícios não
regulamentados, o que ampliava o estigma contra o trabalho feminino.

Figura 6 – A padaria e o cozimento dos pães

Crédito: CC/PD.

NA PRÁTICA

Na aula de hoje, entre muitos temas, tratamos do trabalho urbano e da


diversidade dos ofícios nas cidades medievais. Como ressaltamos, em certos
casos os trabalhadores organizavam-se em corporações, associações que
serviam como espaço de proteção a grupos ligados a determinado ofício. Do
mesmo modo, assinalamos que nem todos os trabalhadores estavam inseridos
no modelo corporativo, pois havia uma importante massa de indivíduos fora do
mundo das associações. Ciente disso, observe a imagem a seguir.

Figura 6 – Vendedora ambulante de acelgas e espinafre

Crédito: CC/PD.

16
A imagem representa uma mulher, vendedora ambulante de hortaliças em
Paris, entre o final do século XV e o início do século XVI. Por vezes influenciados
pela documentação mais abundante sobre as elites urbanas, ao estudar as
cidades medievais, nos esquecemos da importância do trabalho informal.
Consequentemente, pouco refletimos sobre as condições e os desafios desses
trabalhadores no tempo. O tema, no entanto, é de suma relevância, tanto para o
medievo como para a atualidade. No Brasil, entre 2019 e 2021, dados indicam
que cerca de 40 milhões de pessoas exercem trabalhos informais. Em um
cenário de crise econômica e pandemia, sofrem consequências ainda mais
severas da falta de proteção e regulamentação do trabalho. Assim, como
atividade prática, sugerimos que você pesquise e reflita sobre as condições de
trabalho informal nas cidades medievais e no tempo presente.

FINALIZANDO

A partir do século XI, houve o delineamento de um novo contexto no


Ocidente medieval. O cessar das invasões e das movimentações entre os povos
(como normandos e magiares); a estabilização de reinos e culturas, tendo por
base a expansão e a consolidação do cristianismo entre as realezas e
aristocracias europeias; mais o processo de ampliação e afirmação do poder
papal, se constituíram como processos formadores desse novo momento. A
cristandade latina iniciou uma dinâmica de expansão que revigorou as suas
relações internas e externas (com bizantinos e muçulmanos).
Nos séculos XI a XIII, destaque para movimentações a exemplo das
diferentes cruzadas, com aumento dos deslocamentos (viagens para comércio,
diplomacia e peregrinações), o desenvolvimento nos transportes e nas vias de
comunicação, além do crescimento e da expansão das cidades. O fenômeno
urbano foi uma das mais marcantes características desse período,
desencadeando uma série de processos interligados que modificaram a
sociedade profundamente. Entre especializações e diferentes ofícios, riquezas e
produção, com o tempo se acentuaram as desigualdades e restrições aos que
buscavam os ares de libertação das cidades.

17
REFERÊNCIAS

BASCHET, J. A civilização feudal: do ano mil à colonização da América. São


Paulo: Globo, 2006.

BENEVOLO, L. A cidade na história da Europa. Lisboa: Presença, 1995.

BLOCKMANS, W.; HOPPENBROUWERS, P. Introdução à Europa medieval:


300-1550. Rio de Janeiro: Forense, 2012.

FERNANDES, F. R. Cruzadas na Idade Média. In: MAGNOLI, D. História das


Guerras. São Paulo: Contexto, 2006.

FLORI, J. Guerra Santa: formação da ideia de Cruzada no Ocidente cristão.


Campinas, SP: Editora da Unicamp, 2013.

FOURQUIN, G. História económica do Ocidente medieval. Lisboa: Edições


70, 2000.

GEREMEK, B. O marginal. In: LE GOFF, J. (Dir.) O Homem medieval. Porto,


Portugal: Editorial Presença, 1989.

LE GOFF, J. O apogeu da cidade medieval. São Paulo: Martins Fontes, 1992.

LE GOFF, J. Trabalho. In: LE GOFF, J.; SCHMITT, J.-C. (Org.) Dicionário


Temático do Ocidente Medieval. Bauru, SP: Edusc, 2006. v2. p. 559-572.

MELO, A. R. A. de S. Trabalho e produção em Portugal na Idade Média: o


Porto, c.1320-c.1415. Braga: Universidade de Braga, 2009.

RILEY-SMITH, J. As cruzadas: uma história. Campinas, SP: Ecclesiae, 2019.

18
HISTÓRIA E HISTORIOGRAFIA
MEDIEVAL OCIDENTAL
AULA 6

Prof. Douglas Mota Xavier de Lima


Profª Mariana Bonat Trevisan
CONVERSA INICIAL

Os séculos XIV e XV, na Europa Ocidental, foram palco de


acontecimentos que aparentam marcar o colapso da ordem medieval
[...]. Se tomarmos como referência a peste que, a partir de 1347,
dizimou entre um terço e metade da população da Europa Ocidental,
ou ainda a Guerra dos Cem Anos, que opôs a França à Inglaterra entre
1337 e 1453, fica evidente que essas expressões [“Outono da Idade
Média” e “crise do sistema feudal”] parecem apropriadas. No entanto,
e paradoxalmente, os séculos XIV e XV também foram caracterizados
pela resiliência, ou seja, pela capacidade das sociedades da Europa
Ocidental de reagirem à crise econômica e à depressão demográfica,
através de inovações no âmbito da produção e do comércio [...]. A
afirmação do indivíduo e o fortalecimento das monarquias também
constituíram, em última instância, respostas à depressão demográfica
que se seguiu à peste. (Silva, 2019, p. 115-116)

Os séculos XIV e XV foram séculos de intensos contrastes. De um lado,


as cores sombrias dos surtos de peste, principalmente a grande Peste Negra,
das guerras endêmicas e das crises alimentares que levaram à morte milhões
de pessoas na Europa. De outro, o esplendor do desenvolvimento artístico e
cultural das cidades italianas, com as obras de Giotto (1267-1337), Boccaccio
(1313-1375) e Petrarca (1304-1374), da revolução gerada pela invenção da
imprensa e dos novos horizontes abertos pela navegação atlântica.
Tradicionalmente, esses contrastes foram encarados como expressões de duas
idades históricas distintas e necessariamente opostas: acontecimentos
negativos remetiam à Idade Média, época do atraso, da ruralização e da
barbárie, que definhou numa crise generalizada e sistêmica; acontecimentos
criativos e inovações vinculavam-se à Idade Moderna, séculos da Renascença,
da arte e da cultura, do saber letrado e dos descobrimentos.
Ultrapassando o antagonismo entre o “Outono da Idade Média” e a
“Primavera dos Tempos Modernos”, nosso sexto capítulo abordará as duas
faces dos últimos séculos medievais. O primeiro tópico concentra-se na tríade
de catástrofes do período, a fome, a guerra e a peste, que marca a chamada
crise do século XIV. Em seguida, o foco desloca-se para o cristianismo, tratando
das mudanças religiosas no período, como os problemas institucionais da Igreja,
as novas formas de devoção e a reorientação da vida espiritual. No terceiro item,
a aula discute a emergência do Estado moderno, pautado primordialmente na
guerra e na fiscalidade. As revoltas urbanas e rurais ganham destaque no
penúltimo item e o capítulo termina com reflexões sobre a contínua expansão do
Ocidente em finais do século XV, problematizando se ela foi uma dinâmica de
longa duração ou sinais de novos tempos.

3
TEMA 1 – FOME, PESTE E GUERRA

Até estes últimos anos, o parecer dos historiadores parecia unânime:


os dois últimos séculos da Idade Média haviam conhecido terríveis
dificuldades, verdadeiras catástrofes demográficas, financeiras e
econômicas. Seguia-se, após o período de euforia e de expansão dos
séculos XI-XIII, uma era de contração, de recessão geral. [...] É abusivo
aplicar sem discernimento todas essas visões para o conjunto da
Europa Ocidental. O erro constitui em considerá-la como um todo e
ignorar o extraordinário fracionamento do mundo medieval. (Heers,
1981, p. 195)

Após séculos de expansão demográfica e produtiva, por volta do ano 1300


a sociedade europeia viveu uma estagnação que, em certos aspectos,
representou uma inversão de tendência e iniciou o cenário de crise que marca
os séculos XIV e XV. Os pilares dessa crise são a fome, a peste e a guerra,
fenômeno triplo que, mesmo não sendo desconhecido pela Europa até então,
oferece uma das características mais marcantes do fim do medievo. Não
obstante, como salienta Jacques Heers, deve-se ter cautela em generalizar os
efeitos da tríade de problemas a toda a sociedade medieval europeia. Assim,
buscando evitar generalizações indevidas, mas sem perder a proposta de
síntese da aula, propomos caracterizar cada um dos males do período e os seus
inegáveis efeitos.
Tal como outras sociedades pré-industriais, a crise de subsistência foi
recorrente ao longo da Idade Média, especialmente agravada por problemas
climáticos ou pragas agrícolas. Apesar disso, desde os últimos séculos do
primeiro milênio, as mortalidades devido à falta de abastecimento de víveres
tinham se tornado menos frequentes, voltando a ritmos mais recorrentes e
intensos a partir do século XIV. A maior crise de fome do período ocorreu entre
1315 e 1317, a chamada Fome Geral, com uma sequência de péssimas colheitas
e morte de rebanhos de gado de corte devido às intempéries meteorológicas.
Esse surto de fome foi acompanhado por sucessivas crises alimentares,
causando grave problema de abastecimento em áreas urbanas e rurais e
aumento do preço dos alimentos, especialmente dos grãos, além da morte direta
dos grupos sociais mais pobres. Como consequências encadeadas, pode-se
falar ainda da subnutrição e da ingestão de comidas impróprias, o que contribuiu
para o aumento da mortalidade e deixou inúmeras pessoas mais suscetíveis a
doenças.
Os anos de 1347 e 1348 são simbólicos para representar o segundo pilar
da crise do século XIV: o surto de peste negra na Europa. Vinda da Ásia Central
3
ou Oriental, possivelmente pelas embarcações comerciais, a peste afetou as
áreas do Mediterrâneo e rapidamente avançou para a Península Ibérica, a
Europa Central e do Norte (Figura 1). Comumente a peste negra é referida como
peste bubônica, no entanto as pesquisas atuais levadas a cabo por historiadores
e epidemiologistas continuam revisitando o tema sem chegar a uma conclusão
definitiva. De todo modo, a epidemia do século XIV que assolou a Europa foi
devastadora e dizimou grande parte da população, com estimativas de cerca de
75 milhões de mortos.

Saiba mais
Peste bubônica: esta é um dos tipos de peste causada pela bactéria
Yersinia pestis. A peste bubônica seria contraída essencialmente pelas pulgas
de ratos, inflamando os gânglios linfáticos, gerando os chamados bubões
(nódulos inchados) na pele. Há também a peste septicêmica, que infecciona o
sistema circulatório, sendo mais rara. E, por fim, a peste pulmonar, que causa
infecção pulmonar grave, podendo ocorrer em decorrência da bubônica ou
septicémica, podendo ser transmitida pelas vias aéreas.

Figura 1 – Mapa da peste no século XIV

Crédito: João Miguel.

3
A mortalidade se alastrou de modo acelerado, com os doentes
sucumbindo em poucos dias de infecção. Mais do que o surto, a gravidade da
peste, associada a outras doenças (como varíola, sarampo, gripe etc.) que
também assumiram formas epidêmicas, deu-se por sua recorrência ao longo de
todo os séculos XIV e XV. A título de exemplo, em Portugal registraram-se surtos
posteriores em 1356, 1361-63, 1374, 1383-85, 1389, 1400, 1414-16, 1423, 1429,
1432, 1437-39, 1448-52, 1456-58, 1464, 1472, 1477-81 e 1483-87. Com
correspondência europeia, eles grassaram com maior ou menor intensidade,
atacando todo o reino português ou só parte dele, mas sempre dizimando com
abundância, principalmente os grupos sociais mais vulneráveis (Marques, 1987).
A fim de aplacar as consequências das crises de abastecimento e dos
surtos epidêmicos, uma série de medidas foram adotadas pelas autoridades,
especialmente pelos governos urbanos. Essas ações envolveram a compra de
grãos e a fixação dos preços dos víveres, como formas de combate à escassez
de alimentos; o controle rígido do tráfego de pessoas, o desenvolvimento de
sistemas de quarentena, a redação de regulamentações sanitárias, a construção
de hospitais – que ofereciam assistência aos pobres, peregrinos e doentes – e o
isolamento total das cidades afetadas pela peste, maneiras de reduzir os
impactos das doenças. De certo modo, as ações dos governos para o controle
da fome e da peste expressam o fortalecimento das autoridades laicas em finais
da Idade Média, tendência que seria ainda mais evidente no âmbito da guerra.
Último pilar da crise do século XIV, como uma espécie de “terceiro
cavaleiro do apocalipse”, a guerra ampliou os distúrbios do período. A principal
e mais conhecida foi a Guerra dos Cem Anos (1337-1453), mas uma série de
outras guerras aconteceram no período, como a Guerra de Sucessão
Portuguesa (1383-1385), a Guerra de Sucessão Castelhana (1475-1479), a
Guerra das Duas Rosas (1455-1485) etc. Seus efeitos para a mortalidade foram
menores do que a peste e a fome, tendo como principais consequências o
aumento dos impostos e as pilhagens, violências e destruições causadas pelos
exércitos ambulantes após as batalhas. Ademais, a guerra medieval continuava,
sobretudo, a ser uma luta armada de batalhas, diferentemente da chamada
guerra total inaugurada no século XX. No entanto, as inovações na arte militar
(uso de arcos e bestas, ampliação da infantaria, incorporação da pólvora em
trombas e bombardas etc.), associadas à formação dos primeiros arsenais e ao
maior recrutamento de tropas de mercenários, ampliaram os impactos da guerra,

3
tornando-a um dos mais relevantes instrumentos do Estado moderno em
formação.

TEMA 2 – REORIENTAÇÃO DOS FIÉIS: CISMAS, CONFLITOS E VIDA


RELIGIOSA

A rica vida religiosa da baixa Idade Média fascinou muitas gerações de


historiadores. [...]. Hoje, o ponto de vista em geral aceito afirma que
desde o início os reformadores culpavam a Igreja por exigir demais dos
fiéis e não o contrário, e essa crítica quase nunca era acompanhada
da rejeição total à Igreja, sua ideologia, suas instituições e rituais. Essa
visão é mais apropriada à imagem de uma pluralidade bipolar na vida
religiosa do período medieval tardio. [...] Nunca a vida religiosa cristã
mostrou tanta riqueza de opulência “romana”, nunca o envolvimento
individual na religião foi tão grande, e jamais houve tanto apoio público
aos trabalhos da Igreja. (Blockmans, Hoppenbrouwers, 2012, p. 536-
537)

A intensidade e a riqueza da vida religiosa em finais da Idade Média


podem, preliminarmente, causar estranhamento frente aos distúrbios
institucionais vividos pela Igreja no período. O mais grave foi o Cisma do
Ocidente (1378-1417), que dividiu a cristandade latina em dois pontificados:
Urbano VI, Bonifácio IX, Inocêncio VII e Gregório XII, residindo em Roma, e
Clemente VII e Bento XIII em Avignon; cada qual com sua rede de cardeais de
apoio e príncipes signatários. Em termos de obediência cristã, mesmo que as
vinculações variassem, a Europa ficou dividida entre França, Nápoles, Castela e
Aragão, apoiadores do papa de Avignon, e Inglaterra, Império, Polônia, Hungria
e Portugal, obedientes ao papa de Roma. Ofertas de bulas e indulgências e o
lançamento de excomunhões e interditos seguiram-se de parte a parte, medidas
geralmente neutralizadas pelas ações da cúria oposta. Dessa maneira, a
duplicação dos pontificados e as novas sucessões que se seguiram, mais do que
impactarem a vida religiosa, lançaram descrédito à instituição eclesiástica e ao
papado, avolumando os movimentos reformistas e fomentando o aparecimento
de novos (Helmrath, 2014).
Uma das respostas à crise institucional da Igreja foi o movimento conciliar.
A questão não foi uma novidade do século XIV; pelo contrário, o elemento
colegial constitui algo que acompanha a história da Igreja desde os primórdios,
no entanto, no contexto cismático, as discussões entre orientações monárquicas
– que defendiam a superioridade papal – e tendências corporativas – que
advogavam a prevalência do concílio geral como congregatio fidelium (“a
congregação dos fiéis”) – ampliaram-se, mobilizando um maior número de

3
autores e tratadistas, sendo os mais importantes: Pierre d’Ailly (1350-1420),
Jean Gerson (1363-1429), João de Segóvia (1395-1458) e Nicolau de Cusa
(1401-1464). Aplicando à Igreja o antigo princípio do direito romano (“o que a
todos se refere deve também por todos ser aprovado”), o conciliarismo defendia
que, em caso de ausência de autoridade papal, os cardeais poderiam convocar
um concílio com a incumbência de julgar o papa, devendo ainda os concílios
ganhar periodicidade. Para algumas posições mais extremas, o concílio deveria,
inclusive, subordinar o papa independentemente das circunstâncias.
Em meio a discussões institucionais, quatro concílios ocorreram entre
1409 e 1449, com o Cisma sendo superado por meio da eleição de Martinho V
como único pontífice pelo Concílio de Constança (1414-1418). Não obstante, o
tema da reforma da Igreja foi a grande questão dos debates religiosos conciliares
do século XV. Reunindo milhares de membros do clero e representantes das
autoridades seculares, os concílios quatrocentistas acenaram com a unidade
das cristandades latina e grega, acentuaram padrões de comportamento ao clero
(combate ao concubinato, orientação sobre a liturgia etc.), alimentaram a
segregação dos judeus (uso de trajes com identificação, habitação em
quarteirões separados etc.), orientaram a reforma das ordens, fortaleceram os
sínodos provinciais e diocesanos e condenaram novas heresias, em especial, o
movimento dos hussitas na Boêmia, com João Huss (1369-1415) sendo
queimado na fogueira.
Nesse cenário e nutrindo-se da afirmação das línguas vernáculas,
acompanha-se a formação das chamadas igrejas nacionais, como a Igreja
Galicana na França. Em síntese, em torno do termo igrejas nacionais entende-
se o fortalecimento das monarquias e do Império frente à hierarquia eclesiástica,
processo expresso principalmente na influência régia nas nomeações de bispos,
abades e priores e na intervenção monárquica na arrecadação papal. Na
Península Ibérica, o padroado régio, tão importante para a história das
colonizações atlânticas, também serve de exemplo dessa tendência que
perdurou alguns séculos. Como explicam Blockmans e Hoppenbrouwers (2012),
ao passo que a vida religiosa se intensificava e os desejos de reforma se
ampliavam, a Igreja e o papado se restabeleciam, renunciando ao ideal da
cristandade universal e abandonando o lema da liberdade eclesiástica.
Fora do âmbito institucional, os séculos XIV e XV foram marcados pela
ligação da espiritualidade cristã com novas formas de devoção pautadas na

3
experiência direta com Deus e na espiritualidade interna obtida pela oração. Com
raízes no misticismo cristão – uma tentativa espiritual de atingir a união da alma
com Deus geralmente associada a visões, viagens espirituais e ao êxtase
religioso – e em movimentos de espiritualidade leiga, como o das beguinas, essa
nova corrente de devoção espiritual, conhecida como Devotio Moderna,
manifestou-se primordialmente entre os leigos, desvinculando do meio
monástico os ideais de interiorização espiritual e isolamento. Liga-se a esse
movimento a obra Imitatio Christi, de Thomas de Kempis, texto rapidamente
difundido pela Europa pela nascente imprensa e que oferecia novos horizontes
para a experiência religiosa dos leigos.
Paralelamente aos elementos de interiorização da espiritualidade, o final
da Idade Média também foi movimentado por experiências de exteriorização da
fé. Uma das mais controversas e comumente encarada como causa das
reformas do século XVI foi o sistema de indulgências, por meio do qual o fiel
poderia, mediante obras – por vezes, pagamento em dinheiro –, conseguir a
redução de penas que deveriam ser expiadas na terra ou no purgatório.
Procedimento que remonta à época das cruzadas, as indulgências foram
aumentando a sua importância na Baixa Idade Média, alcançando maior
amplitude no século XV, por exemplo, com a bula Salvator noster, do papa Sisto
IV, que estendeu a remissão das penas aos mortos no purgatório (Leppin, 2014).

Figura 2 – Representação do Juízo Final

Crédito: Jan Van Eyck-CC/PD.

Por fim, essa intensificação da fé também pode ser encarada como


resultado dos distúrbios dos séculos XIV e XV, em especial o avassalador

3
crescimento da mortalidade. Criou-se no período, assim, um horizonte
apocalíptico, manifesto nos movimentos milenaristas, nas procissões de
flagelantes, nos tratados sobre a arte de morrer, na expectativa com a vinda do
Anticristo e na representação da morte. Como explica Jean Delumeau (1989),
nesse cenário de calamidades, o tema do Juízo Final ganhou extraordinária
importância, influenciando uma teologia do fim dos tempos e produções
artísticas que, além dos afrescos e painéis, passaram a ser produzidas em
miniaturas e retábulos (Figura 2).

TEMA 3 – CONSOLIDAÇÃO DAS MONARQUIAS

Os séculos XIV e XV foram marcados pela emergência do Estado


moderno através do fortalecimento das monarquias, sobretudo na
França, na Inglaterra e na Península Ibérica. A máquina administrativa
estatal era custosa, pois incluía um vasto corpo de funcionários,
representantes, além de soldados e oficiais, que necessitavam de
pagamento regular. As guerras, os confiscos de bens e as coletas de
impostos constituíam os únicos meios de se obter esses recursos. [...]
Havia, portanto, uma relação estreita entre guerra e fiscalidade. (Silva,
2019, p. 127-128)

O fortalecimento das monarquias ocidentais e a emergência do Estado


moderno são fenômenos de grande envergadura que marcam a Baixa Idade
Média e se prolongam na Modernidade. Esse processo recua ao século XIII e
caracteriza-se, primordialmente, pelo binômio guerra e fiscalidade, que
transformou o caráter das unidades políticas europeias. Em síntese,
compreende-se que, num contexto de rivalidades constantes entre casas reais,
cada vez mais os monarcas demandaram recursos financeiros, materiais e
serviços para destinarem à preparação e à realização da guerra.
Concomitantemente, essa demanda pressionou ao aumento dos impostos e à
transformação da fiscalidade, que deixou de se sustentar em empréstimos,
cobranças excepcionais e em costumes e direitos senhoriais, e passou a se
basear num sistema contínuo de tributos aplicados ao conjunto dos súditos,
clérigos e leigos, nobres e não nobres.
A arte da guerra modificou-se de diferentes formas ao final da Idade Média
ampliando demasiadamente os seus custos. De um lado, acompanha-se o
progresso tecnológico dos armamentos, exemplificado pelo maior uso das
bestas e pelo aparecimento do canhão e da pólvora (incorporada do Oriente),
revolução na artilharia que tirou a segurança dos castelos e cidades
amuralhadas (Figura 3). De outro, a própria organização da guerra altera-se, com

3
a ampliação dos arqueiros e da infantaria com lanças longas no campo de
batalha – que resultaram no gradativo recuo do protagonismo militar da pesada
cavalaria armada – e a introdução de tropas de soldados mercenários e/ou
recrutados permanentemente sob o pagamento de um soldo. Ademais, nota-se
que a guerra também se justificou por meio da religião: ora associando o inimigo
cristão à heresia, como nas guerras entre Portugal e Castela travadas durante o
Cisma do Ocidente (ambos os reinos se acusavam de hereges e de seguir o
papa falso) e na repressão imperial às revoltas na Boêmia (contra o movimento
hussita/taborita, que pretendia restaurar o cristianismo primitivo e fundar uma
comunidade fraterna baseada na igualdade social e econômica), ora
promovendo santos e devoções dinásticas associados à guerra, como a santa
Joana d’Arc na França (emergida da Guerra dos Cem Anos) e o culto à D.
Fernando, o Infante Santo das empresas bélicas portuguesas no norte da África
contra os mouros.

Figura 3 – A guerra ao final da Idade Média – Batalha de Crecy (1346), entre


França e Inglaterra na Guerra dos Cem Anos

Crédito: Jean Froussart-CC/PD.

As resistências ao fortalecimento das estruturas estatais e ao aumento da


tributação foram intensas e mobilizaram revoltas citadinas/burguesas,
insurreições da aristocracia e condenações do clero. Contudo, como explica
Jean-Philippe Genet (2006), para que os impostos ordinários fossem aplicados
de forma contínua, era necessário que a cobrança gozasse de legitimidade. Para
tal, foram mobilizados discursos jurídicos e ideológicos que justificavam o poder
régio e desenvolvidos mecanismos de consentimento negociado,
particularmente as assembleias representativas, como o Parlamento inglês, o
3
Estado geral francês e as Cortes da Península Ibérica. Assim, pode-se afirmar
que, se a guerra foi o motor da gênese do Estado moderno, sua espinha-dorsal
foi constituída da relação guerra, fiscalidade e assembleias representativas.
Paralelamente, a consolidação das monarquias em finais da Idade Média
também foi marcada pelo desenvolvimento das estruturas administrativas.
Nesse sentido, uma das principais manifestações dessa tendência ocorreu no
âmbito jurídico, com os príncipes não poupando esforços para dar precedência
às suas leis frente à multiplicidade de direitos e costumes. Esse processo
concluiu-se apenas nas revoluções do século XVIII, no entanto, desde o século
XIII, movidos por novas concepções legais (a retomada do direito romano no
Ocidente) e teóricas (as doutrinas aristotélicas sobre a política) e por um corpo
especializado de servidores (os juristas formados nas universidades), são
perceptíveis o fortalecimento dos tribunais do rei e a elaboração de leis gerais
do reino, aplicadas ao conjunto dos súditos. Ademais, ao lado da afirmação
jurídica, um amplo conjunto de esferas administrativas desenvolveu-se, com
setores responsáveis pelas finanças, a guerra, o aconselhamento, burocracia
que encontrava na figura do chanceler seu principal representante. Assinala-se
ainda a importância de outros fundamentos do poder régio, como a heráldica
(escudos, brasões), o cerimonial público, os lemas, insígnias e histórias
genealógicas que reforçavam os laços entre os príncipes e seus súditos.
Por fim, cabe pontuar que a emergência do Estado moderno no medievo,
isto é, de uma organização relativamente centralizada, com base territorial e
instituições permanentes e que gozava de soberania e força bélica, não
representou a homogeneização das estruturas políticas no período. Dessa
forma, tal gênese deve ser compreendida primeiramente como um conjunto de
práticas e referências comuns que foram assumidas pelas unidades políticas.
Em finais da Idade Média, a diversidade política se impunha, existindo desde
comunidades de camponeses livres e pequenas cidades autônomas, aos
principados territoriais, reinos e o Império. Gradativamente, essa diversidade foi
se desfazendo em torno dos estados monárquicos nacionais, com línguas e
tradições próprias, mas essa é uma história de raízes medievais que se prolonga
até a atualidade, afinal constantemente somos surpreendidos por movimentos
separatistas que desafiam a unidade do Estado reivindicando autonomias do
medievo (como o separatismo catalão e basco, na Espanha).

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TEMA 4 – CONTRASTES, DESIGUALDADES E CONTESTAÇÕES SOCIAIS NO
CAMPO E NA CIDADE

Incontestavelmente, tanto no mundo rural como na cidade, conflitos e


tumultos sociais fazem-se mais visíveis e mais intensos do que durante
o século precedente. [...]. Tratar-se-ia da revolta dos mais desprovidos
e dos mais oprimidos, jogados na desesperança desde que um fardo
suplementar vem tornar insuportável uma situação já vacilante? Muitos
historiadores, entretanto, se perguntaram se esses movimentos não
são, ao contrário, um protesto da elite camponesa, quando esta crê
que seus privilégios estejam ameaçados. É o que sugere a geografia
das revoltas. (Baschet, 2006, p. 257-258)

Diante da abundância de fontes escritas, há uma clara sensação de que


o fim da Idade Média foi um período tumultuado pela multiplicação de revoltas
rurais e urbanas. Sabe-se, no entanto, que protestos ocorreram ao longo de toda
a Idade Média, mas os séculos XIV e XV foram propícios para rebeliões por
alguns motivos, como o crescimento das imposições fiscais, as crises
alimentares e os sentimentos anticlericais. Por vezes, esses movimentos foram
encarados como uma luta de classes sociais ou revoltas antissenhoriais, no
entanto, como sugere Jérôme Baschet, as rebeliões do período são complexas
e envolveram diferentes grupos sociais e objetivos.
O principal palco das revoltas foram as cidades. O revigoramento
comercial e urbano dos séculos anteriores fez sobressair uma sociedade cada
vez mais desigual, com o aumento do número de desempregados e a
multiplicação dos pobres e marginais, ao passo que se formaram verdadeiras
aristocracias urbanas que controlavam ofícios e os postos do governo da cidade.
Nesse cenário contrastante, alguns movimentos tiveram uma clara inclinação
popular, como a grande revolta ocorrida em Londres, que começou com a
sublevação de trabalhadores contra novas leis e impostos e conseguiu tomar a
cidade por um curto período; e outros uma orientação mais elitista, como as
revoltas de artesãos de Flandres que atravessaram o século XIV e
estabeleceram o controle de cidades como Ypres, Gand e Bruges pelos “unhas
azuis”, como eram conhecidos os artesãos por causa da tinta dos tecidos que
manchava os dedos (Macedo, 1993).
Uma das revoltas camponesas mais conhecidas do período foi a
jacquerie, na França. Iniciada nas proximidades de Paris em 1358, a revolta se
espalhou por outras partes do reino. Nutrido pela depressão econômica regional,
pelo congelamento dos salários, pelo aumento dos impostos e das pressões
senhoriais, o movimento, composto por alguns milhares de camponeses, durou
3
algumas semanas. Revoltaram-se contra a nobreza, promovendo ataques a
propriedades, massacres, estupros e destruições, antes de ser massacrado
pelas autoridades (Figura 4). A fama da jacquerie foi tão grande que outras
revoltas camponesas do período também ficaram conhecidas pelo termo, como
a jacquerie dos Tuchins, em 1378, grupos de salteadores que viviam em bosques
e atacavam mosteiros, castelos e viajantes, com ações de banditismo.

Figura 4 – Jacquerie na França (1358)

Crédito: Loyset Liédet-CC/PD.

As revoltas populares urbanas e camponesas foram massacradas pelos


governantes e ofereceram pouco perigo ao estabelecimento dos grupos
dominantes. Fora algumas inclinações revolucionárias, em geral tiveram mais
um caráter de reação ao contexto, propondo manutenção de estatutos e
privilégios e lutando contra novas exigências fiscais. Apesar disso, outras
rebeliões, geralmente associadas às elites urbanas, tiveram maior sucesso,
como na resistência a impostos e na oposição a determinadas autoridades em
contexto de crises dinásticas – sendo exemplo o caso da revolução de Avis
(1383-1385), quando grupos citadinos participaram da guerra de sucessão e
apoiaram um dos candidatos ao trono (D. João, Mestre de Avis, e filho bastardo
do rei D. Pedro I), estando ainda presentes nas Cortes de Coimbra (1385)
durante a eleição de D. João I como rei de Portugal. De todo modo, ao menos
pela abundância das fontes, observa-se no final da Idade Média o
desenvolvimento de uma cultura política de revoltas, tanto de trabalhadores

3
quanto das elites locais, cultura essa que se manifestaria nas inúmeras
insurgências dos séculos seguintes.

TEMA 5 – CONTÍNUA EXPANSÃO DO OCIDENTE

Seria, então, bastante abusivo considerar globalmente a Baixa Idade


Média como um tempo de crise e de retração. [...] Os elementos de
crise são inegáveis, mas são, sem dúvida, menos profundos e mais
limitados no tempo do que geralmente se diz. [...] Existe, então, uma
continuidade entre o desenvolvimento da Idade Média Central e a
dinâmica reencontrada do fim da Idade Média, de modo que o elã que
conduz à Conquista das Américas é fundamentalmente o mesmo que
aquele que vemos em marcha desde o século XI. A colonização ultra-
atlântica não é o resultado de um mundo novo, nascido sobre o húmus
em que se decompõe uma Idade Média agonizante. Para além das
transformações, das crises e dos obstáculos, é a sociedade feudal,
prosseguindo a trajetória observada desde a aurora do segundo
milênio, que empurra a Europa para o mar. (Baschet, 2016, p. 273-274)

O trecho de Jérôme Baschet é provocativo ao questionar concepções


enraizadas no meio acadêmico, em especial leituras que partem de uma ruptura
radical entre a Idade Média e a Idade Moderna nos séculos XIV e XV, uma cisão
por vezes expressa em termos como “crise do feudalismo” ou “crise da Idade
Média”, contrastadas com o brilho da renascença italiana e da “descoberta do
homem e do mundo”. Essa visão, infelizmente, ainda é muito comum no Brasil e
frequentemente é encontrada nos manuais escolares e currículos da educação
básica, que tendem a se utilizar do tema das navegações como símbolo dos
tempos modernos para construir uma grande narrativa na qual nosso país se
insere como colônia portuguesa. Apesar disso, cada vez mais os historiadores
têm demonstrado que, mesmo com as relevantes reverberações de alguns
acontecimentos (Queda de Constantinopla, Grandes Navegações,
Renascimento italiano, Reforma religiosa, invenção da imprensa etc.), até o
contexto das revoluções burguesas dos séculos XVII e XVIII, as estruturas
básicas da sociedade medieval permaneceram intactas, com uma sociedade
agrária, hierarquizada como sociedade de ordens e pautada no poder
monárquico. Essa reorientação da perspectiva tem permitido a valorização do
desenvolvimento europeu em finais da Idade Média e alguns exemplos podem
ser úteis.
A imprensa de tipos móveis criada por Guttenberg, na década de 1450, é
considerada a invenção tecnológica e cultural mais importante da Idade
Moderna. Causando uma verdadeira revolução no conhecimento e na
comunicação, gradativamente ela redimensionou a cultura ocidental, pois ao

3
tornar mais rápida a reprodução de livros e escritos, acentuou a passagem da
cultura oral e visual (características do medievo), para uma cultura da escrita e
da leitura (Brotton, 2009). Não obstante, a imprensa quatrocentista e seus
desdobramentos nos séculos seguintes também podem ser compreendidos
como resultados do crescente papel do texto escrito a partir do século XIII,
manifesto na multiplicação de obras religiosas, narrativas de viagens, regimentos
citadinos e de ofícios, textos legislativos, crônicas etc. Do mesmo modo, ao
considerar que a maior parte dos impressos estava relacionada à literatura
religiosa, nota-se que os usos da nova tecnologia se associaram às demandas
da espiritualidade na Baixa Idade Média.
Outro exemplo é a expansão ultramarina e colonial. Costumeiramente
explicada como reflexo da conquista de Constantinopla (1453) pelos turco-
otomanos, da busca por novas rotas de especiarias fora do Mediterrâneo e como
um fenômeno ibérico por excelência, tais percepções tendem a ofuscar as
experiências coloniais no Levante com os estados cruzados e, principalmente, a
intensificação das viagens europeias ao Oriente a partir do século XIII. Ao lado
do célebre Marco Polo (c.1254-1324), mercador veneziano que viveu na corte
de Kublai Khan, inúmeros outros homens empreenderam viagens terrestres e
marítimas ao Extremo Oriente, atuando como missionários, comerciantes,
embaixadores, espiões, entre outras funções, e contribuíram para o contato
intercultural séculos antes da chegada dos europeus às Américas. Assim, as
viagens da Era dos descobrimentos foram uma consequência da dinâmica que
mobilizava a Europa há alguns séculos.
Esses poucos exemplos mostram-se suficientes para demonstrar as
ligações entre alguns acontecimentos que tradicionalmente caracterizam o início
da Idade Moderna com as dinâmicas observadas na sociedade medieval desde
o início do segundo milênio e, em especial, do século XIII em diante. Ademais,
os inegáveis impactos da tríade de problemas da crise do século XIV não
impediram a retomada do crescimento populacional, a ampliação das redes e
das trocas comerciais, a afirmação das estruturas estatais e o desenvolvimento
das cidades e da vida urbana em finais do século XV. Perceber os séculos XV,
XVI e XVII como acelerações progressivas de desenvolvimentos anteriores e
não como uma ruptura em meio à crise generalizada, eis o desafio lançado aos
estudos sobre o fim da Idade Média.

3
NA PRÁTICA

Em meados do século XIV, duas crianças órfãs lutam pela sobrevivência


em meio ao surto de peste negra, à Guerra dos Cem Anos e à perseguição de
inquisidores, num cenário em que a morte está presente em todos os lados. No
início do século XV, um jovem filho de ferreiro sobrevive aos ataques de
Sigismundo, rei da Hungria e da Croácia, contra vilarejos da região da Boêmia e
parte em busca de vingança, devendo, antes de tudo, aprender a se defender.
Esses são, respectivamente, os enredos de dois jogos eletrônicos ambientados
no final da Idade Média: A Plague Tale: Innocence (2019) e Kingdom Come:
Deliverance (2018).
Os videogames são uma das mídias de maior impacto cultural na Era
Contemporânea e cada vez mais dedicam-se a narrativas sobre o passado,
oferecendo gráficos realistas e histórias verossímeis que abrem inúmeras
perspectivas aos historiadores, seja na análise dos jogos como documentos
históricos, seja no uso dos games no ensino de história. Assim, como atividade
prática, sugerimos que você busque informações sobre os jogos, explorando
resenhas e vídeos de apresentação comuns no Youtube, e acesse materiais de
apoio sobre o tema.

Saiba mais
Para iniciar esse contato, indicamos dois podcasts, o programa “Estudos
Medievais”, do Laboratório de Estudos Medievais (LEME), “episódio 1-Games e
História”, que pode ser acessado pelas plataformas Spotify, Anchor, Google
podcasts e no itunes, e o episódio “Kingdom Come: Deliverance”, do podcast
“Pós-Jogo”, do Grupo de Pesquisa ARISE – Arqueologia Interativa e Simulações
Eletrônicas, da USP, disponível nas plataformas Sondcloud e itunes.

FINALIZANDO

Chegando ao final de nossa última aula sobre o Ocidente medieval,


podemos concluir que, como todas as épocas históricas, o medievo foi marcado
por grandes contrastes: inovações, belezas, conhecimentos, arte,
solidariedades, compaixão, mas também explorações, dominações, opressões,
abusos diversos, conflitos, injustiças. Portanto, a Idade Média não pode ser
resumida nem a flores nem a trevas. Como aprendizes da História e do

3
conhecimento historiográfico, pudemos compreender que cada contexto deve
ser analisado em toda a sua complexidade, não cabendo mais realizar
comparações superficiais entre períodos, que, acima de tudo, são delimitações
didáticas construídas também em um contexto histórico específico.
Vivemos em um século XXI também marcado por inúmeros contrastes,
desigualdades, conflitos, injustiças, usos escusos das religiões, censuras,
abusos de poder político e econômico, incluindo mais recentemente também um
momento de “peste” com a pandemia do Covid-19, que se revelou globalmente
desafiador. Os séculos que denominamos de finais da Idade Média, XIV e XV,
revelam-nos uma dinâmica intensa no Ocidente, e pelas suas grandes
especificidades, podem nos ajudar a compreender um pouco mais de nós
mesmos e do período em que vivemos.

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REFERÊNCIAS

BASCHET, J. A civilização feudal: do ano mil à colonização da América. São


Paulo: Globo, 2006.

BLOCKMANS, W.; HOPPENBROUWERS, P. Introdução à Europa medieval,


300-1550. Rio de Janeiro: Forense, 2012.

BROTTON, J. O Bazar do Renascimento – Da Rota da Seda a Michelangelo.


São Paulo: Grua, 2009.

DELUMEAU, J. História do medo no Ocidente – 1300-1800. São Paulo: Cia


das Letras, 1989.

GENET, J-P. Estado. In: LE GOFF, J; SCHMITT, J.-C. (orgs.). Dicionário


temático do Ocidente medieval. Bauru, SP: Edusc, 2006, v. 1, p. 397-409.

HEERS, J. História medieval. São Paulo: Difel,1981.

HELMRATH, J. Cisma, Concílios, Reforma. In: KAUFMANN, T.; KOTTJE, R.;


MOELLER, B.; WOLF, H. (org.). História ecumênica da Igreja – Da Alta Idade
Média até o início da Idade Moderna. São Paulo: Loyola, 2014, v. 2, p. 128-166.

LEPPIN, V. Espiritualidade na Idade Média tardia. In: KAUFMANN, T.; KOTTJE,


R.; MOELLER, B.; WOLF, H. (org.). História ecumênica da Igreja – Da Alta
Idade Média até o início da Idade Moderna. São Paulo: Loyola, 2014, v. 2, p.
195-221.

MACEDO, J. R. Movimentos populares na Idade Média. São Paulo: Moderna,


1993.

MARQUES, A. H. O. Portugal na Crise dos séculos XIV e XV. Lisboa:


Presença, 1987.

SILVA, M. C. da. História medieval. São Paulo: Contexto, 2019.

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