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Historiografia: história da História – O sentido

da História

Tópico A – Historiografia: uma história da História

Já vimos que a História não é uma ciência exata, mas é uma ciência humana,
sujeita a todas as incertezas e flexibilidades da natureza humana. Mas isso não
significa que ela não tenha como objetivo constante a procura da verdade. A
História, para ser escrita, não pode ser fruto de mera imaginação do
historiador... Se pudesse, ele não seria historiador, seria romancista, literato ou
novelista... A História precisa se basear em documentos, obtidos em pesquisas
sérias e bem conduzidas.

Já estudamos, nas aulas anteriores, o conceito de História. Vimos que é um


conceito polissêmico, ou seja, que admite mais de um sentido, podendo ser
concebido e formulado de modos diferentes. De um modo muito geral,
entretanto, podemos adotar a formulação de Marc Bloch, que considerava a
História como sendo “a ciência dos homens no tempo”. Em outras palavras,
para esse historiador francês, a História é uma ciência, ou seja, ela tem um
compromisso com a verdade, e não constitui uma criação livre, à maneira de
uma obra literária. E ela tem um objetivo, que é estudar o gênero humano em
sentido muito amplo, em todas as suas realizações individuais e coletivas, não
de forma estática, mas considerando suas permanências e suas
transformações através dos tempos.

A História vem sendo escrita há muitos séculos, por pessoas muito diferentes
que têm, obviamente, critérios e impostações também muito diferenciadas. Daí
a extrema variedade de interpretações e enfoques que as narrativas históricas
assumiram ao longo dos tempos e continuam, na atualidade, sendo assumidas
pelos historiadores.

Chamamos de Historiografia o estudo de como a História foi no passado, e


continua sendo no momento presente, compreendida e escrita pelos
historiadores. O passado, evidentemente, ocorreu... como ocorreu. Não pode a
realidade dos fatos ser mudada em função de novas interpretações. Mas as
interpretações existem, elas também são fatos e elas também são
acontecimentos históricos. Tudo isso é objeto do estudo e está no âmbito do
estudo da Historiografia.

Ocorreram, no passado, fatos certos, comprovados e inegáveis. Ninguém pode


negar, por exemplo, que em abril de 1500 Pedro Álvares Cabral aportou no
litoral do atual Estado da Bahia, comandando uma esquadra portuguesa que se
dirigia à Índia. Ou que em maio de 1453 os turcos maometanos conquistaram
Constantinopla, em cuja defesa morreu em combate o último imperador grego,
Constantino XI. Mas sobre esses fatos os historiadores fazem suas narrativas e
constroem interpretações diferenciadas, atribuindo-lhes significados
divergentes. Isso porque, como já se viu, a História não é uma ciência exata,
mas é uma ciência humana.

Os historiadores devem, evidentemente, se ater aos fatos, quando estes são


documentados e comprovados, e devem procurar, por meio de suas pesquisas,
apurar conscienciosamente como os fatos verdadeiramente realmente
aconteceram. É por isso que se diz que a História tem um compromisso com a
verdade.

Mas eles têm uma liberdade muito ampla para analisar e interpretar os fatos
históricos, procurando respostas para muitas perguntas.

Por exemplo, eles investigam, nos acontecimentos do passado, as relações de


causa e efeito. O que causou o quê? O que foi consequência do quê? Se dois
acontecimentos ocorreram num mesmo contexto histórico, um deles foi causa
do outro? Ou foi consequência do outro? Ou ambos são decorrência de uma
causa anterior? Ou se trata de acontecimentos absolutamente autônomos em
suas respectivas causas, sem que um tenha a menor relação com o outro?

Na avaliação das ações humanas, de pessoas individuais ou de grupos de


pessoas, assim como dos motivos e intenções que ditaram essas ações,
também é muito grande a margem de liberdade do historiador. Por exemplo,
analisando o fato indiscutível da viagem de Cabral, o historiador pode fazer
inúmeras perguntas:

Quais eram os interesses e quais poderiam ser as intenções e motivações dos


agentes envolvidos na viagem de Cabral? Se a viagem era destinada à Índia,
por que Cabral veio parar no Brasil? Foi por acaso ou foi intencional? Os
portugueses já sabiam anteriormente da existência de um continente sul-
americano, ou foi apenas depois da viagem de Cabral que, pouco a pouco,
tomaram consciência disso? Quais foram as razões mais profundas das
navegações portuguesas em geral, e da viagem de Cabral em particular?
Foram de ordem política, econômica, religiosa, ou por mera curiosidade, ou por
mero gosto pela aventura? Qual foi a importância da Ordem de Cristo, do
Infante D. Henrique, e dos cartógrafos genoveses, catalães e judeus que o
Infante reuniu na Escola de Sagres para o desenvolvimento da navegação
portuguesa? Em que medida o desenvolvimento dessa navegação determinou
a viagem de Cabral?

Essas perguntas, e inúmeras outras levantadas a propósito da viagem de


Cabral, um historiador poderá responder de modos muito diversos, de acordo
com sua criteriologia e sua base teórica de formação.

Que é, então a Historiografia? É o estudo de como os historiadores, ao longo


do tempo, estudaram e entenderam a escreveram a História. Em termos bem
simplificados, Historiografia é a história da Historia.

Dica do professor:
Você viu que, a propósito da viagem de Cabral ao Brasil, em 1500, várias
perguntas foram formuladas neste tópico. Muitas outras poderiam ser feitas.
Habitue-se a sempre levantar muitas perguntas, a respeito dos fatos históricos
que for estudando. Mesmo que você não saiba respondê-las, ou não tenha
elementos para respondê-las, o simples fato de ir levantando questões abrirá
seus horizontes e enriquecerá seu espírito. O valor de um intelectual se mede
muito mais pelo número de problemas que ele é capaz de levantar, do que pelo
número de respostas que ele é capaz de formular.
Tópico B - À procura de um sentido para a História: conceitos
de meta-história e teleologia histórica

Historiografia, como vimos, é a história da História. Mas a Historiografia não é


só isso, ele é algo mais do que isso. Ela é também a busca de um sentido para
a História. A Historiografia procura interpretar não apenas os fatos isolados e
considerados em si mesmos, mas, num âmbito muito mais amplo, estudar os
grandes movimentos da história, procurando discernir leis ou regras que
possam reger a marcha dos acontecimentos históricos.

É o que se chama de meta-história, conceito formado pelo prefixo grego meta,


que significa além de, fora de, e da já conhecida palavra história. Meta-história
se pode conceituar como o estudo dos fatos históricos – ou a reflexão a
propósito deles – na busca de uma explicação para eles.

Entra-se, então, no campo da Filosofia da História, que é um ramo da Filosofia


que se dedica a estudar o possível significado da história humana. A primeira
questão teórica que se pode levantar a esse respeito é se a história tem
realmente um significado, ou se nada mais é do que um caótico suceder de
acontecimentos isolados, sem sentido e sem um fim.

Se a História tem um sentido, pergunta-se o que determina ou causa esse


sentido: será alguém? Será algum fator? De que natureza? Quem, ou o que o
determina?

Se tem uma finalidade, pergunta-se: haveria uma intencionalidade na História?


Se se admite que há intencionalidade, deve-se forçosamente procurar o autor
ou agente racional dessa intenção: quem será? Que objetivos últimos terá em
vista?

Todas essas questões de fundo filosófico são pertinentes e estão no campo de


reflexão de um meta-historiador.

Existe um prefixo grego que exprime intenção ou objetivo final: telos. Na


Filosofia, estuda-se a teleologia, que é um ramo da metafísica que se dedica
ao estudo das finalidades ou dos propósitos das pessoas ou das coisas.

Entre os gregos antigos, Platão e Aristóteles estudaram as causas e as


finalidades das coisas. Na sua ótica, era em função dos fins que podiam e
deviam ser entendidas todas as coisas, desde as puramente materiais até os
seres racionais. Aristóteles estudou na Metafísica as quatro causas que
explicam tudo: causa material, causa formal, causa eficiente e causa final. Um
exemplo permite entender bem o que é cada uma dessas causas. Se num
templo existe uma imagem de Apolo esculpida em mármore, essa imagem tem
as quatro causas: causa material dela foi o mármore, encontrado em estado
bruto numa pedreira; causa formal foi o recorte desse mármore, desbastado
até aparecer o corpo do deus; causa eficiente foi o escultor; causa final é o
próprio Apolo, objeto do culto de seus fiéis. É para Apolo, em última análise,
que convergem todas as operações.
Essas quatro causas são comuns a todos os seres compostos de
matéria. Além dessas quatro, podem ainda concorrer outras causas. Por
exemplo, pode haver causalidade instrumental (no caso do escultor, foram
instrumentos necessários suas mãos e suas ferramentas de trabalho, o buril e
o martelo) e causalidade exemplar (o escultor somente conseguiu projetar e
executar sua estátua porque já conhecia outras representações de Apolo que
lhe serviram de inspiração).

Para Aristóteles, a causa final era a explicação determinante de tudo e cada


ser tende à sua perfeição na medida em que se aproxima da plena realização
do fim para o qual existe. A perfeição do mármore é atingida quando é
trabalhado pelo homem com o objetivo que este tem em vista. E a perfeição do
homem é atingida quando ele tende ao Bem em si mesmo, finalidade a que
todo ser aspira. Somente assim ele cresce em virtude e se aperfeiçoa.

O ensinamento de Aristóteles foi acolhido pelo cristianismo, como veremos no


próximo bloco.

A teleologia tem aplicação a muitos campos do conhecimento humano. Quando


aplicada ao campo dos estudos históricos, temos a teleologia histórica, que é
não somente a procura de um objetivo final para a história, mas também a
análise dos fatos históricos em função do objetivo que existe ou que se supõe
existir.

Dica do professor:

Feche os olhos e reflita profundamente sobre o conteúdo deste tópico. Depois,


responda para si mesmo: a História é uma caótica sucessão de fatos, ao sabor
do acaso? Ou ela tem um sentido? Se tem um sentido, qual seria ele? Pense
nisso. Pegue depois um caderno, ou abra um arquivo no seu computador, e
escreva o que pensa a respeito. Não precisa mostrar para ninguém... apenas
escreva. Habitue-se a colocar por escrito suas reflexões a respeito da História.
De tempos em tempos, releia o que escreveu antes. Você notará que, à
medida que progride em seus estudos, seu pensamento irá sendo enriquecido,
às vezes ele será corrigido, outras vezes será confirmado. O seu evoluir como
estudioso – e futuro professor de História – ficará assim registrado.
Tópico C – As três matrizes do pensamento ocidental

A civilização europeia ocidental e cristã, dentro da qual nos inserimos, é


tributária de três grandes matrizes culturais: a grega, a romana e a judaica.[1] É
claro que intercorreram também influências dos povos germânicos que
invadiram a Europa no primeiro milênio da Era Cristã, dos celtas, dos
maometanos, dos fenícios, dos egípcios, da África negra e outras mais. Mas,
sem dúvida, é muito preponderante a importância das três citadas grandes
matrizes, para a formação do modelo cultural prevalente na Europa e por
extensão no Novo Mundo colonizado pelos europeus.

Vamos, pois, ver como se formou a cultura, dentro da qual se inseriu, por força
da sua formação histórica, o Brasil.[2]

Para entendermos essa formação, deveremos recuar até tempos muito


remotos da Grécia antiga, focalizando o conceito quase intraduzível de paideia.
Podemos conseguir, em outras línguas, palavras que nos permitam nos
aproximarmos do conceito de paideia, mas não encontraremos nenhuma
palavra que nos traduza, singelamente, todo o rico e abrangente significado da
paideia grega.

A ideia fundamental da paideia era a educação, mas uma educação entendida


num sentido muito amplo e, paradoxalmente, muito específico. Paideia vem de
uma palavra (paidos, ou pedos) que significa menino, criança. Paideia era,
pois, uma educação de ou para meninos.

A noção de paideia era profundamente ligada à de aretés, que significa virtude.


A paideia era, pois, um autoaperfeiçoamento, pela via do autoconhecimento. O
autoconhecimento era o caminho adequado para a aquisição das virtudes. Daí
o velho conselho do “Conhece-te a ti mesmo”, que nos chegou pelos romanos,
em latim, como NOSCE TEIPSUM ou SCITO TEIPSUM.

Era, porém, um “conhece-te a ti mesmo” enquanto grego, enquanto membro do


grupo humano muito amplo dos partícipes (exprimamo-nos em termos
modernos) do "greek way of life".

Os gregos, não somente aqueles que habitavam a península balcânica, mas


também os da Ásia Menor e da Sicília, assim como os de Marselha e os de
cidades do Ponto Euxino (Mar Negro), reconheciam-se todos como irmãos de
raça, sentindo entre si uma profunda comunhão de língua (apesar das
diferenças de dialetos regionais), de religião e de costumes, em oposição ao
mundo que designavam como bárbaro, ou seja, o conjunto de todos os povos
que falavam outras línguas que não a grega. O nome de Grécia (Hélade),
porém, jamais teve significação política na Antiguidade; a própria Grécia nunca
constituiu um Estado unido antes das dominações macedônica e romana”
(FLACELIÈRE, Robert, La vie quotidienne en Grèce au siècle de Péricles.
Paris: Librairie Hachette, 1959, p. 7).
Pois bem, o que era esse conjunto de modos de ser, de pensar e de sentir que
caracterizava os gregos, que fazia com que os habitantes da Hélade,
provenientes de pelo menos quatro origens diversas, se considerassem um
todo psicossociológico?

Aqui entra o elemento de Homero, a quem se atribui a autoria, nos séculos IX-
X a.C., das duas grandes epopeias (a Ilíada e a Odisseia) que condensaram
todos os valores e todos os modelos humanos que inspiraram a cultura grega
antiga e – como se verá adiante – mais tarde haveriam de fixar,
conjugadamente com a tradição do pensamento judaico-cristão, as bases do
pensamento de todos os tempos, senão da Humanidade inteira, pelo menos do
mundo ocidental.

Nos primeiros tempos, os gregos antigos não tinham escrita, de modo que as
duas epopeias homéricas eram transmitidas de geração em geração por via
oral, de memória, de cor. Com o surgimento e o desenvolvimento da escrita, a
educação grega se fazia sobre os livros homéricos. A paideia tinha como
objetivo preparar os jovens para ler e escrever os textos homéricos, e, por esse
meio, ler e entender a origem e a especificidade do povo grego. Em outras
palavras, não só para se autoconhecerem, mas para se autoconhecerem
enquanto gregos, distintos dos que não falavam grego e eram designados de
modo genérico, e um tanto depreciativo, como bárbaros.

Essa é uma ideia muito importante para se compreender a especificidade da


paideia. Era em ordem à inserção dos indivíduos no universo cultural e
psicológico da sociedade grega que se desenvolviam os indivíduos. O
aperfeiçoamento individual se ordenava, pois, para o interesse coletivo, para o
bem comum, para o interesse e o serviço daquilo que, muito imperfeitamente,
se poderia designar como Estado. E, dadas as variações das várias poleis
(cidades) gregas, o modo de entender esse serviço também variava. No caso
de Esparta, por exemplo, a vocação militar era muito assinalada e envolvia
ambos os sexos. Já em Atenas, o destaque era para a participação política dos
cidadãos. E muitas outras variações havia, nas numerosas cidades autônomas
que constituíam a Grécia.

Sócrates (c.469-399 a.C.), Platão (c. 428-348 a.C.) e Aristóteles (384-322 a.C.),
cada qual a seu modo, foram os três filósofos máximos da Grécia Antiga e,
também, de toda a Humanidade, em todos os tempos. Eles se abeberaram dos
elementos da paideia, desenvolveram-nos, sistematizaram-nos, teorizaram-
nos, fixaram suas formas definitivas aplicáveis a todos os tempos. E ainda hoje,
milênios decorridos, é sempre nos três grandes mestres gregos que vamos
encontrar luzes para resolver a maior parte dos problemas profundos que
afligem a Humanidade.

Sócrates, como é bem sabido, foi mestre de Platão, que o foi de Aristóteles.

Sócrates nada deixou escrito, mas Platão, seu genial discípulo, divulgou suas
ideias, seu modo de pensar, especialmente sua dialética, seu sistema de
interrogar, sempre permeado de ironia, de ir fazendo com que o interlocutor
descubra, por si mesmo, o que pensa, como pensa, em que medida pensa. Ou,
pelo contrário, ir fazendo com que entre em contradição e acabe reconhecendo
seus erros. É o famoso parto das ideias, a maiêutica, característica do
pensamento socrático.

Sócrates ensinou a pensar, estabeleceu as regras básicas do pensamento


lógico. Seu discípulo Platão aplicou e desenvolveu as ideias do mestre,
teorizando acerca de um mundo ideal que deve servir de baliza e modelo ideal
para a realidade humana. Seu pensamento é dedutivo, parte do geral e se
aplica ao particular, mantendo-se sempre ambos em perfeito equilíbrio.

Não se sabe até que ponto Platão foi estritamente fiel, ao divulgar o
pensamento de Sócrates, até que ponto o reinterpretou e lhe incutiu sua marca
pessoal.

Se Platão foi mais generalista, idealista e utópico, seu discípulo Aristóteles foi
mais específico, sistemático, empírico e cientificista. Desenvolveu e
aperfeiçoou os ensinamentos socráticos e platônicos de um ponto de vista
diverso. Aristóteles era cientista, filho de médico e ele próprio estudou
medicina. Seu método era o estudo dos casos concretos e particulares para, a
partir deles, chegar ao conhecimento e formulação das regras gerais. Seu
pensamento era indutivo, ao contrário de Platão. Mas ambos se completam
admiravelmente. Em ambos se nota o mesmo equilíbrio fundamental da
natureza humana, o geral com o particular, o todo com as partes, a teoria com
a prática.

Um fato para mostrar bem as diferenças entre os dois: Platão escreveu a


República, tratado teórico sobre como deveria ser uma sociedade ideal. É
utópico, mas é utilíssimo e teve importância fundamental para o
desenvolvimento da Ciência política.

O mesmo problema, colocado diante de Aristóteles, teve solução radicalmente


diversa. Aristóteles era prático, era empírico... e dispunha de verbas mais ou
menos inesgotáveis do seu rico protetor Filipe da Macedônia. Pôde, assim,
enviar emissários a todos os povos então conhecidos, coligindo mais de
duzentos relatos de como se governavam em concreto os povos. Foi a partir
desse rico material de pesquisa que teorizou e elaborou sua Política, sobre as
formas de governo.

Ambos, Platão e Aristóteles, por caminhos diferentes influenciaram


profundamente o pensamento político do Ocidente, sendo ambos considerados
ainda hoje, a justo título, luminares da Ciência Política.

Platão foi direto à teoria e sistematizou um regime ideal, embora sabendo-o


irrealizável. Aristóteles partiu do real e chegou à teoria da melhor forma de
governo em tese, e da melhor forma de governo possível. Esses dois caminhos
seguidos indicam duas vertentes, duas variantes do espírito humano.
Correspondem, também, aos dois métodos clássicos do raciocínio filosófico, o
indutivo (do específico para o genérico, do prático para o teórico) e o dedutivo
(do geral para o particular, do teórico para o concreto).
Não se pode dizer, no plano axiológico, que uma dessas variantes seja
superior à outra. Ambas são complementares, ambas se alternam ao longo dos
tempos, às vezes nas mesmas pessoas. E ambas se abeberam em Sócrates e,
mais remotamente, na paideia homérica.

Já na Era Cristã, o pensamento de Platão teve numerosos seguidores, dos


quais, talvez, o maior e mais brilhante tenha sido Santo Agostinho, Bispo de
Hipona e profundo pensador e intelectual fecundíssimo. De conhecimentos
enciclopédicos, escreveu com profundidade e espírito criativo sobre todos os
ramos do conhecimento humano - sempre sem perder de vista a unidade
fundamental desse conhecimento., dando origem a uma ampla escola de
pensamento católico que teve inúmeros seguidores. Talvez o mais célebre e
importante deles tenha sido São Boaventura (século XIII).

Aristóteles teve, na Idade Média, um discípulo igualmente genial, São Tomás


de Aquino, que cristianizou, renovou, desenvolveu e aperfeiçoou o
aristotelismo, num conjunto de mais de cem obras, igualmente abarcativas de
todos os ramos do conhecimento. O pensamento aristotélico-tomista também
privilegia a visão global do conhecimento humano, especialmente na Summa
Contra Gentiles (que é exclusivamente filosófica e faz abstração da
Revelação) e na Summa Theologiae (a qual, como o próprio nome
indica, focaliza temática religiosa e teológica, sem embargo de incorporar
poderosamente o arcabouço filosófico). Aristóteles teve suas ideias relançadas
e aperfeiçoadas por São Tomás de Aquino, contemporâneo e amigo de São
Boaventura. A filosofia aristotélico-tomista ainda hoje tem numerosos
seguidores e marcou profundamente todo o pensamento humano.

Sem Homero, não teria havido Sócrates. Sem Sócrates, não teria havido nem
Platão nem Aristóteles. Mas sem Platão e Aristóteles, talvez Sócrates fosse
lembrado apenas como mais um dos obscuros sofistas de seu tempo. A tríade
é inseparável. São, sem a menor dúvida, os três maiores cérebros da
Antiguidade clássica. Sem essa tríade, talvez Homero fosse mais um dos
incontáveis autores mitológicos esquecidos de todos. Foi a tríade que fez com
que o gênio de Homero fosse reconhecido e admirado em todos os tempos.

Os dois grandes historiadores da Grécia Antiga, Heródoto e Tucídides, que


foram contemporâneos de Sócrates e de Platão, se inserem nessa tradição
cultural.

Heródoto (c.484-c.420 a.C.) escreveu uma obra constituída por nove livros,
geralmente designados como “As histórias de Heródoto”, nos quais narra, com
base em depoimentos dos lutadores, e em tradições orais, a invasão dos
persas na península grega, ocorrida na primeira metade do século V a.C.
Trata-se de uma obra extraordinariamente rica em pormenores interessantes e
que se lê com interesse e gosto ainda em nossos dias. Heródoto receberia, do
romano Cícero, a designação de “Pai da História”, a qual modernamente lhe
continua a ser atribuída, embora sua obra seja, de muitos pontos de vista,
criticada pelos seus elementos fabulosos e mitológicos, assim como pelo fato
de reproduzir depoimentos que aos olhos dos críticos parecem pouco
confiáveis.
Tucídides (c. 460-c. 400 a.C.) escreveu, ao que parece com mais rigor
documental do que Heródoto, uma História da Guerra do Peloponeso, da qual
participou ativamente. Nos oito livros constitutivos dessa obra, narra a Guerra
travada, no mesmo século V a.C., entre as poleis rivais de Atenas e Esparta.

O pensamento da Grécia foi assimilado, adaptado e propagado pelo gênio de


Roma, que chegou a dominar toda a bacia do Mediterrâneo e em sua fase de
máxima expansão dominou considerável parte da Europa, assim como a região
balcânica e o Oriente Próximo. De Roma provêm os idiomas neolatinos,
inclusive o nosso. De Roma recebemos forte contribuição na área do Direito.
Roma também teve grandes historiadores, entre os quais se destaca Tito Lívio
(59 a.C.-17 d.C.), que no seu livro Ab Urbe Condita (desde a fundação da
cidade) narra a história de Roma desde suas origens mitológicas até os tempos
de Júlio César, no século I a.C. Trata-se de obra monumental, composta de
142 livros, dos quais somente 35 foram preservados e são hoje conhecidos.

O terceiro grande componente da nossa cultura ocidental provém da Judeia. A


influência hebreia nos chegou por intermédio do Cristianismo, trazendo o
elemento religioso da revelação divina e na crença de um único Deus. Os livros
sagrados da antiga religião mosaica constituíram o Antigo Testamento cristão,
que foram completados, a partir do século I da Era Cristã, pelos Evangelhos,
pelos Atos dos Apóstolos, pelas Epístolas e pelo Livro do Apocalipse, que
constituem o Novo Testamento cristão.

Tanto o Antigo como Novo Testamento contêm livros de caráter histórico, que
um moderno historiador não eivado de preconceitos antirreligiosos pode e deve
tomar em consideração. Também é de grande interesse o estudo dos escritos
de Flávio Josefo (c.37-c.100 d.C.), historiador judeu que escreveu A Guerra
dos Judeus e Antiguidades Judaicas. No primeiro desses livros Josefo relata a
revolta dos judeus contra o domínio Romano, nos anos 66 a 70 d.C. e a
consequente destruição de Jerusalém pelas tropas de Tito, filho do imperador
Vespasiano e também ele futuro imperador. Josefo participou ativamente dessa
guerra e foi testemunha do cerco e da destruição da cidade e do templo. No
segundo livro, escrito já no final do século I d.C., Josefo traçou a história do
povo hebraico desde suas origens mais remotas até o início da revolta contra
Roma, usando como fontes não apenas os livros históricos da Bíblia, mas
também tradições orais judaicas de interesse para o estudo da História de
Israel e do próprio Cristianismo. Os dois livros costumam modernamente ser
publicados conjuntamente, com o título História dos Hebreus.

Roma, cidade da qual o Apóstolo Pedro foi o primeiro Bispo, se tornou a sede
do Papado e o centro vital e espiritual do Cristianismo em todo o mundo. O
Cristianismo teve igualmente, no mundo grego, enorme expansão e,
cristianizadas, Roma e Grécia continuaram a estender sua influência cultural
pela Europa e pelo mundo afora.

Essas são as matrizes do pensamento original do Ocidente, profundamente


lógico, coerente e completo.
[1] Ernest Renan (1823-1892), um autor bastante controvertido, chegou a
afirmar: “Para um espírito filosófico, ou seja, para um espírito que se preocupe
com as origens das coisas, somente há, no passado da humanidade, três
histórias de primeiro interesse: a história grega, a história de Israel e a história
romana. Essas três histórias reunidas constituem o que se pode designar como
história da civilização, sendo a civilização o resultado da colaboração
alternativa da Grécia, da Judeia e de Roma” – Com essas palavras,
frequentemente citadas, Renan inicia seu livro Histoire du Peuple d´Israël
(Paris: 1889, t. I, p.3). Marc Bloch, falando da civilização ocidental, diz que,
“diferentemente de outros tipos de cultura, ela sempre esperou muito de sua
memória. Tudo a levava a isso: tanto a herança cristã como a herança antiga.
Os gregos e os latinos, nossos primeiros mestres, eram povos historiógrafos. O
cristianismo é uma religião de historiador.” (BLOCH, Marc. Apologia da História
ou O Ofício do Historiador. Tradução de André Telles. Rio de Janeiro, Jorge
Zahar Editor, 2001, p. 42)

[2] No caso concreto do Brasil, é muito grande a contribuição cultural africana e


indígena, que será devidamente valorizada e estudada em diversas disciplinas
do nosso curso, e de modo muito especial na disciplina “Formação da Cultura
Brasileira”.

Dica do professor:

Procure aprimorar sua cultura historiográfica, indo às fontes. Faça um plano de


leituras e vá, pouco a pouco, aumentando seu cabedal de conhecimentos. Leia
as obras de Heródoto, de Tucídides e de Flávio Josefo. Existem traduções
delas facilmente acessíveis ao pesquisador, na internet ou, caso prefira ler “em
papel”, em sebos e livrarias. Garanto que são leituras agradáveis e proveitosas.

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