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AULA 1- A noção de uma História da Antiguidade.

Conceitos fundamentais: Metahistória, Antiguidade, Antiquarismo.

a) A importância da metahistória.

É apropriado que um curso, breve que seja, sobre “História Antiga” comece com
alguns apontamentos sobre a origem histórica da disciplina. A investidura oficial que os
temas históricos recebem quando se convertem em um curso de graduação universitária
possui um pano de fundo histórico que não pode ficar à margem de qualquer
consideração. Nenhum estudo da “História do Brasil” ou da “História do Renascimento”
ou da “História Universal”, estará bem assentado se não dedicar alguma atenção
preliminar ao contexto histórico em que estes temas foram e são propostos aos estudantes.
Nem a história de uma nação, nem a história de um período “antigo” ou “médio” são
objetos autoevidentes de investigação. Antes que eles possam ser estudados, eles
precisam ser inventados, não no sentido espúrio de “criados a partir do nada”, como se
fossem mitos, mas no sentido de “encontrados” ou “descobertos” por alguém, que então
o propõe com vistas a algum ideal. Este sentido original acompanha, embora não
determine, o curso da investigação ao longo das gerações, mesmo que os próprios mestres
da disciplina que venham a surgir dele se esqueçam, ou o desprezem ou ignorem em nome
de um estudo puramente científico, factual, dos eventos.
Estas considerações metahistóricas são especialmente convenientes no que diz
respeito à chamada “história da antiguidade.

b) O sentido metahistórico do estudo da antiguidade.

Para começar, o próprio termo antiguidade não faz referência a nenhum objeto
concreto como um povo ou um evento, ou um período cronológico mas a um lugar no
relativo no tempo. Ao contrário do que ocorre cm a História do Brasil ou da Revolução
Francesa, ou do Barroco, o nome não deixa adivinhar o objeto.
A julgar pelo nome, o objeto de estudo da História Antiga é todo o passado
distante, não contíguo presente. Ora, isto significa que ele confunde-se com o objeto da
ciência histórica enquanto tal, tal como a concebemos hoje. Pois toda história, para ser
digna do nome, é a narrativa de um passado tomado como já antigo, isto é: distante o
suficiente para que o modo preferencial de entendê-lo seja o estudo cuidadoso das fontes
escritas remanescentes, em detrimento do testemunho ocular, por exemplo. Isto é, de uma
antiguidade, que precisa e pode ser recuperada pelo narrador (distinta, portanto, das
antiguidades longínquas, que não o podem, como as Idades Douradas). A narrativa das
Idades Douradas, chamamos mitos; à narrativa do passado próximo, ainda presente,
baseada no testemunho dos eventos, nos inclinamos antes a chamar de ciência política,
sociologia, ou mesmo jornalismo. O que está entre os dois, chamamos história, de acordo
com o uso moderno do termo.
É uma concepção que surgiu com o estudo da civilização greco-romana, que até
hoje são a “Antiguidade Clássica”, pelos humanistas italianos do século XV. A imprecisão
do nome “antiguidade”, que confunde o que deveria ser o objeto de investigação de uma
disciplina em particular com o da disciplina histórica enquanto tal, corresponde ao fato
concreto de que ciência histórica moderna, e antes dela, o que pode ser chamado de
consciência histórica, se desenvolveu a partir do estudo do que até hoje é a “antiguidade”
por antonomásia.
Não por acaso, o primeiro grande historiador moderno foi o historiador do Império
Romano, Edward Gibbon. A obra de Gibbon, escrita na segunda metade do século XVIII,
recolheu os frutos de dois de séculos de cultura humanista. O sábio inglês foi a primeiro
a unir de modo completo e eficiente a ciência e arte da historiografia, isto é, a pesquisa
das fontes e o talento de escritor e homem político. A cultura humanista sobre a qual ele
se baseou tinha concebido e dado os primeiros passos, mas não realizado, esta
possibilidade. Presa que estava aos ideais clássicos, o humanismo só considerava a
segunda destas qualidades como própria do historiador mas não a primeira. Este era visto,
essencialmente, como um retor, um orador publico. A pesquisa documental era deixada a
serviço dos “antiquaristas”, especialistas nas antiguidades romanas, trabalho que não
possuía a dignidade do historiador-orador.
Todavia, a introdução do estudo de fontes epigráficas, arqueológicas,
numismáticas no estudo da história, que terminou por fundar a historiografia científica tal
como a conhecemos hoje, deslocou a antiguidade clássica de seu posto paradigmático.
Enquanto o interesse por Roma e Grécia foi literário, seu lugar de passado ao mesmo
tempo nem tão próximo que não precise ser cultivado nem tão distante que não possa ser
recuperado permaneceu inabalado. Afinal esta é a perspectiva que se deve manter para
estudar com afinco a obras de Cícero, Sêneca, Virgílio, etc. Eles são uma sabedoria
perdida. O esforço de recuperá-las é um esforço de razão. Se, porém a mediação do tempo
antigo passa a se dar através de documentos mudos desprovidos de uma qualquer
sabedoria, esta torna-se uma antiguidade genérica, distinta do presente por estar no
passado mas não mais que isso.
Foi o que aconteceu nos séculos XVIII e XIX. Depois a perspectiva geral e os
métodos de pesquisa desenvolvidos por Gibbon a partir do estudo da antiguidade clássica,
que consistem na união das virtudes do orador e as do antiquarista foram adaptados a
diferentes objetos de estudo histórico, puderam, assim, surgir diversas “antiguidades”
distintas: as antiguidades nacionais, as antiguidades da civilização no oriente, a
antiguidade da humanidade representada pelos povos primitivos. Afinal, se nem todas as
culturas humanas têm Cícero ou Virgílio para apresentar a seu investigador, todas tem
moedas, artefatos, arquitetura. Foi essa diversificação das antiguidades que deu origem
as inumeráveis disciplinas históricas de que hoje se ocupam os historiadores e
antropólogos.
Que a noção de “antiguidade” era antes uma perspetiva a respeito do passado que
o passado concreto, e de que os habitantes de qualquer período histórico poderiam gozar
da dignidade de ser os “antigos” para alguém no presente, desde que vistos sob a
perspectiva apropriada, não era porém, uma ideia do próprio Gibbon mas de um
contemporâneo seu, vinte e cinco anos mais novo, cuja obra, em muitos sentidos, é um
complemento da sua: Jean-Jaqcues Rousseau. O filósofo genebrino foi, de certa forma, o
descobridor de uma nova “antiguidade” - a do homem primitivo – o estudo de cuja história
substituiu, no decorrer dos séculos XIX e XX, o estudo da História Romana como a
história paradigmática, à qual a civilização do presente deveria voltar os olhos para
recuperar suas antigas virtudes.

c) A história da antiguidade depois do desenvolvimento da consciência histórica


moderna.

A nova perspectiva aberta por Rousseau, que coloca a antiguidade greco-latina em


um lugar relativo, menos importante que a antiguidade profunda das origens da
humanidade, não se fez sentir imediatamente no estudo da antiguidade original. Durante
todo o século XIX até a primeira metade do século XX, a perspectiva humanista a respeito
da antiguidade clássica ainda era que prevalecia na obra de grandes historiadores alemães
como Werner Jaeger e Bruno Snell.
Somente a partir da segunda metade do século XX especialmente na França,
devido à influência da obra de Fustel de Coulanges e Jean Gernet, produziu-se um
ambiente em que Grécia e Roma passaram a ser preferencialmente vistas como
civilizações entre outras, não mais como o berço da civilização ocidental, quando não da
civilização enquanto tal. Sua arte, teatro, filosofia e instituições políticas deixaram de ser
vistas como versões primevas da nossa própria civilização, como tais portadoras de
princípios aos quais o ocidente liberal deveria saber retornar para permanecer fiel à
própria identidade. Os historiadores das ideias, da arte, do direito, inspirados pela
pesquisa linguística e antropológica – e também pelo clima de “eclipse da razão”
dominante na filosofia do século XX – aprenderam a notar as diferenças antes que as
semelhanças entre a “antiguidade” e o Ocidente.
A notar, por exemplo, que a “Cidade-Estado” antiga pouco tinha a ver com os
Estados Modernos; que as grandes massas nacionais do presente não são as sucessoras
dos Demos das antigas poleis, e que nossas chamadas democracias em pouco além do
nome se assemelham as democracias antigas; que a imagem que temos o direito romano
ratio scripta é em grande parte uma construção dos juristas modernos.
Perdidas as ilusões da continuidade entre a antiguidade clássica e o ocidente
moderno, as semelhanças entre gregos e romanos e as culturas que o ocidente tinha por
seus outros, como as tribos primitivas e o oriente se tornaram então mais visíveis,
descortinado um horizonte comparativo que terminou por se mostrar imensamente útil
para melhor compreensão das antigas instituições. A importância da religião e do ritual,
da oralidade puderam então aparecer sob uma nova luz. Sua importância não mais quedou
obscurecida pela ilusão de que os antigos eram os avoengos dos modernos.

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