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Título original:

For Special Services

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JOHN GARDNER

POR SERVIÇOS
ESPECIAIS
Tradução de
Mario João Morais

PUBLICAÇÕES EUROPA AMÉRICA

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AGRADECIMENTOS E NOTA DO AUTOR

Tal como sucedeu com a primeira continuação das aventuras de


James Bond, Licença Renovada, endereço os meus mais sinceros agrade-
cimentos aos detentores dos direitos de autor literários, Glidrose Produc-
tions, por me terem convidado a seguir o exemplo de Ian Fleming e tentar
trazer o Sr. Bond para os anos 80. Em especial, os meus agradecimentos
pessoais a Dennis Joss, Peter Janson-Smith e John Parkinson, pela sua pa-
ciência e confiança.
Um agradecimento reconhecido deve também ser enviado a Pe-
ter Israel, do Putnam Publishing Group, e ao meu empresário, Desmond
Elliott, os quais me deram uma assistência e apoio valiosos. Gostaria ain-
da de expressar a minha gratidão pessoal a todos os elementos da Saab
(GB) Ltd., e à Saab-Scania da Suécia, pelo tempo, trabalho, paciência e en-
tusiasmo dedicados para demonstrarem que o Saab de James Bond existe
mesmo. Em particular, devo referir, entre muitos outros, John Smerdon,
Steve Andresia, Phil Hall, John Edwards, Ian Adcock, Peter Seltzer e Hans
Thornquist.
Ao rever a lista de agradecimentos de Licença Renovada, dei-me
conta de ter omitido um nome muito importante: o homem sabedor que,
por sua conta, investigou uma pequena lista de automóveis que fizeram
com que me decidisse a colocar o Sr. Bond num Saab: Tony Snare.
Ian Fleming, como grande artista que foi, tentou sempre — com
algumas autorizações concedidas a todos os autores de ficção — apresen-
tar os factos com veracidade. Tentei fazer o mesmo, excepto num ponto.
Embora o Quartel-General do Comando do NORAD exista, em Cheyenne
Mountain, Colorado, foi-me impossível obter qualquer descrição precisa
do acesso a esta incrível base de defesa. Neste aspecto foi, por conse-

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guinte, necessário inventar um pouco. Todos os satélites espaciais men-
cionados existem e é minha convicção que, neste momento, se desenrola
a corrida à Arma de Feixe de Partículas.
Quanto aos satélites, a única excepção reside naquele a que dei o
nome de Lobo do Espaço. No entanto, estou plenamente convencido de
que o potencial destas armas existe mesmo, e que elas são reais, ainda
que, quando escrevia esta aventura, nenhum país quisesse admitir a exis-
tência em órbita de qualquer arma deste tipo.

Irlanda, 1981
John Gardner

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TRÊS ZEROS

O Centro de Controlo de Tráfego Aéreo Europeu em Maastricht, na


fronteira belga-holandesa, passou o Vôo 12 da British Airways para o Con-
trolo de Londres, em West Drayton, no momento em que o avião acabava
de sobrevoar a costa a algumas milhas de Ostende.
Frank Kennen entrara de serviço há menos de dez minutos quando
aceitou o vôo, instruindo o Boeing Jumbo 747 para descer de 29 000 pés
para 20 000. Era apenas mais um dos muitos aviões assinalados no écran
de radar — uma mancha de luz verde, com o número correspondente, 12,
junto com a altitude e direcção do avião.
Tudo parecia normal. O vôo estava a entrar na última fase do seu
longo caminho desde Singapura via Bahrein. Kennen começou automa-
ticamente a avisar o controlo de aproximação de Heathrow de que o
Speed­bird 12 estava dentro de alcance.
O seu olhar estava pousado no enorme écran de radar. O Speedbird
12 começou a descida e os números indicadores de altitude iam diminuin-
do regularmente no mostrador.
— Speedbird Um-Dois autorizado para dois-zero. Vector... — Parou
a meio da frase, tendo vagamente consciência de que a torre de Hea-
throw lhe pedia que confirmasse a informação. O que via agora no écran
fazia-lhe sentir o estômago andar às voltas. Com uma rapidez dramática,
o indicador com o número 12 — “gritado” pelo emissor do Boeing — tre-
mulou e alterou-se.
Agora, em vez do regular 12 verde, havia três zeros encarnados,
piscando rapidamente.
Três zeros encarnados são o sinal de alarme internacional para des-
vio de aviões.

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Em voz calma, Frank Kennen tentou contactar o avião.
— Speedbird Um-Dois pode passar para dois-zero. “Gritou” afirma-
tivo?
Se houvesse problemas a bordo, a frase passaria por rotina. Não
houve porém qualquer resposta.
Passaram trinta segundos, e Kennen repetiu a pergunta.
Continuava a não haver resposta.
Sessenta segundos.
Nenhuma resposta.
Então, noventa e cinco segundos após o primeiro sinal de alarme,
os três zeros encarnados desapareceram do écran, sendo substituídos
pelo familiar número 12. Kennen ouviu a voz do comandante pelos aus-
cultadores e suspirou de alívio.
— Speedbird Um-Dois confirma sinal de alarme. Emergência agora
terminada. Por favor, alertar Heathrow. Precisamos de ambulâncias e de
um médico. Vários mortos e pelo menos um ferido em estado grave a bor-
do. Repito, emergência terminada. Podemos prosseguir de acordo com as
instruções? Speedbird Um-Dois.
O comandante podia muito bem ter acrescentado: “Emergência
terminada, graças ao comandante Bond.”

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NOVENTA SEGUNDOS

Momentos antes, James Bond acabara de recostar-se, aparente-


mente descontraído e à vontade, num lugar ao pé da asa na parte esti-
bordo da classe de executivos do vôo BA 12.
Na verdade, Bond estava longe de estar descontraído. Por trás do
olhar sonolento e da posição relaxada, o seu espírito estava em total ac-
tividade, enquanto o corpo repousava — enroscado e tenso como uma
mola.
Alguém que observasse de mais perto teria visto também a tensão
por trás dos olhos azuis. Desde o momento em que James Bond entrara
a bordo do avião, em Singapura, que estava pronto para sarilhos — e ain-
da mais a seguir à decolagem do Bahrein. Afinal de contas, sabia que a
carga valiosa embarcara no Bahrein. O mesmo acontecia com os quatro
homens à paisana dos Serviços Aéreos Especiais, também a bordo e espa-
lhados tacticamente pela primeira classe, classe de executivos e turística.

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Não era apenas a tensão deste vôo em particular que estava a per-
turbar Bond, mas o facto de o Vôo BA 12 de Singapura ser a terceira via-
gem de longo curso que fizera como agente de antiterrorismo aéreo em
três semanas. A missão, partilhada com membros dos SAE, surgira como
consequência da assustadora vaga de desvios aéreos que se haviam veri-
ficado em aviões de uma dúzia de países.
Nenhuma organização terrorista reivindicara a responsabilidade,
mas as companhias aéreas mais conhecidas estavam já a ter um decrésci-
mo de passageiros. O pânico estava a espalhar-se rapidamente, ainda que
muitas companhias — e, na verdade, os governos — tivessem tentado
sossegar os viajantes com palavras brandas.
Em cada um dos casos recentes, os terroristas haviam sido duma
crueldade atroz. As mortes entre passageiros e tripulação eram habituais.
Em alguns casos, haviam ordenado aos pilotos que voassem para cam-
pos de aviação afastados, escondidos em regiões perigosas, muitas vezes
montanhosas, da Europa. Havia o caso de um 747, instruído para aterrar
perto dos Alpes suíços, junto a Berna, numa pista provisória escondida
num vale. O resultado foi catastrófico, acabando numa série de corpos
irreconhecíveis, incluindo os dos terroristas.
Em alguns casos, depois de aterragens bem sucedidas, o saque fora
desembarcado e levado em pequenos aviões, enquanto o alvo original
era queimado ou destruído por explosivos. Em todos os casos, a mínima
interferência ou hesitação resultara em mortes súbitas — membros da
tripulação, passageiros e até mesmo crianças.
O pior incidente, até à data, fora o roubo de jóias facilmente trans-
portáveis, no valor de dois milhões de libras. Tendo-se apoderado das
pastas metálicas que continham as gemas, os terroristas ordenaram a
descida e em seguida lançaram-se de pára-quedas. No preciso momento
em que os passageiros deviam estar a suspirar de alívio, o avião explodiu
no céu, devido a um engenho activado por controlo remoto.
As principais companhias aéreas dos Estados Unidos e a British
Airways haviam sido as mais visadas. Assim, após este último incidente
cruciante, umas seis semanas antes, ambos os governos haviam provi-
denciado protecção secreta para todos os alvos possíveis.
Nada acontecera nas últimas duas viagens em que Bond participa-
ra. Desta vez, o seu sexto sentido dizia-lhe que o perigo rondava.
Primeiro, ao embarcar em Singapura, avistava quatro possíveis
suspeitos. Estes quatro homens, vestidos luxuosamente e com todos os
pormenores de homens de negócios, estavam sentados na classe dos exe-
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cutivos: dois a bombordo da secção central, à esquerda de Bond, e outros
dois lá adiante — cerca de cinco filas à sua frente. Todos possuíam uma in-
confundível postura militar, mas no entanto mantinham-se calados, como
preocupados em não chamar a atenção.
Depois, no Bahrein, o motivo de preocupação embarcara: quase
dois biliões de dólares em ouro, moeda e diamantes — assim como três
jovens e uma rapariga. Cheiravam a violência — a rapariga, de cabelo es-
curo, bem parecida, mas de aspecto duro; os três homens, morenos, bem
constituídos, com os movimentos próprios de soldados treinados.
Num dos passeios aparentemente casuais, Bond marcara as suas
posições. Tal como os homens de negócios suspeitos, estavam sentados
aos pares, mas atrás de si, na classe turística.
Bond e os homens dos SAE estavam, evidentemente, armados;
Bond com um novo par de facas perfeitamente equilibradas e bem afia-
das, aperfeiçoadas a partir do punhal de comando Sykes-Fairbairn. Uma
estava no seu local preferido, atada à parte interior do antebraço esquer-
do, e a outra embainhada, horizontalmente, nas costas. Também pos-
suía o revólver de uso altamente restrito, aperfeiçoado por uma firma de
confiança internacional e destinado a ser usado em emergência durante
vôos. Trata-se de uma arma pequena e de calibre 38, com uma potência
mínima. O projéctil é uma bala de fragmentação — apenas mortal a cur-
tíssima distância, pois a sua velocidade é pequena, de maneira a que a
bala se desintegre, evitando a penetração da carcaça do avião.
Os homens dos SAE estavam armados do mesmo modo e haviam
sido treinados exaustivamente, mas Bond não estava muito contente com
a idéia de haver qualquer tipo de revólver a bordo. Um tiro demasiado
perto das paredes, ou de uma janela, podia ainda causar um sério pro-
blema de despressurização. Decidir-se-ia sempre pelas facas, só usando o
revólver se estivesse realmente perto do alvo, e esse “perto” teria de ser
menos de um metro.
O gigantesco 747 inclinou-se ligeiramente, e Bond notou a suave
mudança de ruído dos motores, assinalando o começo da descida. Pro-
vavelmente algures perto da costa belga, pensou, enquanto o seu olhar
vagueava pela cabina, vigilante e expectante.
Uma hospedeira loura e escultural, que dera bastante nas vistas
durante o vôo, estava a entregar latas de refrigerantes a dois dos homens
de negócios algumas filas à frente de Bond. Olhou para o seu rosto e, de
repente, pressentiu algo errado. O seu sorriso mecânico desaparecera e
estava a dobrar-se demasiado, sussurrando para os homens.
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Automaticamente, Bond olhou de relance para a esquerda, na di-
recção do outro par de homens bem vestidos. Durante os segundos em
que o seu espírito se concentrara na hospedeira, os outros dois homens
haviam desaparecido.
Voltando a cabeça, Bond viu um deles, com o que parecia ser uma
lata de cerveja nas mãos, de pé atrás de si no corredor perto da pequena
copa na retaguarda da classe executiva.
Nesta altura já a hospedeira fora para a copa da frente.
No momento em que Bond começou a mover-se, o local transfor-
mou-se num inferno.
O homem atrás de si abriu a lata de cerveja e atirou-a para o corre-
dor. Ao rolar ia enchendo a cabina com um fumo denso.
Os dois homens da frente estavam agora levantados, e Bond avis-
tou a hospedeira novamente no corredor, desta vez com algo na mão. No
extremo oposto, viu de relance o quarto homem de negócios a arremes-
sar também uma granada de fumo, ao mesmo tempo que começava a
correr para a frente, em direcção ao focinho do avião.
Bond estava já de pé, voltando-se para trás. O seu alvo mais próxi-
mo — o homem no corredor atrás de si — hesitou durante um segundo
vital. A faca apareceu na mão direita de Bond como por prestidigitação,
voltada para baixo, polegar para a frente, na posição clássica de combate.
O terrorista não soube o que o atingiu, apenas sentiu dor e surpresa, na
altura em que o punhal de Bond se enfiava mesmo por baixo do coração.
Toda a cabina estava agora cheia de fumo e pânico. Bond gritava
aos passageiros que ficassem nos lugares. Ouvia gritos semelhantes dos
homens do SAE na classe turística, e lá à frente, na primeira e chamada
“suite panorâmica”. Então ouviram-se duas pequenas explosões, que ele
identificou como tiros dos revólveres da segurança, seguidos do estrondo
forte e mais sinistro de uma arma normal.
Sustendo a respiração na nuvem sufocante de fumo, Bond dirigiu­
-se para a copa da classe executiva. Daí sabia que seria possível passar
para estibordo e subir a escada em caracol para a “suite panorâmica” e
para o cockpit. Havia ainda pelo menos três terroristas — possivelmente
quatro.
Ao chegar à copa, ficou ciente de que havia apenas três prováveis.
A hospedeira, ainda agarrando uma metralhadora Ingram modelo 11, es-
tava deitada de costas no meio do fumo, com o peito rasgado por um tiro
à queima-roupa de um dos revólveres dos seguranças.
Continuando a suster a respiração, com a faca preparada, Bond
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passou ao lado do corpo, ignorando os gritos e tosse dos passageiros ater-
rorizados por todo o avião. Acima do barulho ouviu-se uma ordem voci-
ferada por alguém lá à frente: Laranja Um... Laranja Um — o sinal, dado
por um homem da segurança, de que o assalto principal estava a dar-se
no ou perto do cockpit.
Na base da escada de caracol desviou-se de outro corpo, de um
dos homens da equipa dos SAE, inconsciente e com uma ferida feia no
ombro. Então, da curva da escada, avistou a figura agachada de um dos
homens de negócios empunhando uma Ingram, com a coronha encosta-
da ao ombro.
O braço de Bond curvou-se para trás e a faca voou pelo ar, com uma
lâmina tão afiada que se enfiou na garganta do homem pela parte de trás
como uma agulha hipodérmica gigante. O terrorista nem sequer gritou,
enquanto o sangue começava esguichar, como o jacto de uma mangueira,
da carótida cortada.
Agachando-se, Bond trepou, silencioso como um gato, até ao cor-
po, usando-o como um escudo para espreitar para a área superior do
avião.
A porta para o cockpit estava aberta. Lá dentro, um dos “homens
de negócios”, com uma metralhadora nas mãos, dava instruções à tripula-
ção, enquanto o homem que o cobria olhava cá para fora com a já familiar
Ingram — capaz de fazer enormes estragos ao ritmo de 1200 disparos por
minuto — girando num arco mortal de prontidão. Por trás do tabique da
copa superior, a uns dois metros dos terroristas, estava agachado um dos
homens dos SAE, agarrando o revólver junto ao corpo.
Bond olhou-o, e trocaram sinais. Todas as equipas haviam trabalha-
do em conjunto durante uma árdua semana intensiva em Bradbury Lines,
na base do Regimento 22 dos SAE, perto de Hereford. Imediatamente,
ambos os homens perceberam o que tinham de fazer.
Bond passou ao lado do homem caído sobre a escada estreita, ao
mesmo tempo que esticava a mão para tirar a faca que tinha escondida
nas costas. Respirou fundo e em seguida acenou para o homem dos SAE,
que saltou para a frente, disparando ao mesmo tempo.
O terrorista, alertado pelo movimento de Bond, voltou a sua In-
gram na direcção das escadas, no momento em que duas balas do guarda
dos SAE o atingiam na garganta.
O impacte não o levantou nem o fez girar. Apenas tombou para a
frente, morrendo antes de cair no chão.
Quando este caiu, o terrorista que estava no cockpit voltou-se rapi-
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damente. Bond levantou o braço. A faca saiu cintilante e direita como um
alcião, indo cravar-se no peito do terrorista.
A Ingram caiu no chão. Então, Bond e o homem dos SAE, movendo­
-se como um só, abordaram o homem, revistando-o, procurando armas
ou granadas escondidas. O homem ferido arfava, tentando arrancar a faca
com as mãos, com os olhos a rolar ao mesmo tempo que dos seus lábios
ensanguentados saía um grasnar arrepiante.
— Acabou-se — gritou Bond para o comandante do avião, esperan-
do na verdade que assim fosse. Haviam passado quase noventa segundos
desde a explosão da primeira bomba de fumo. — Vou ver lá em baixo —
disse para o homem dos SAE ajoelhado sobre o terrorista ferido.
Em baixo, na secção principal do avião, o fumo já quase se dissipa-
ra, e Bond sorriu alegremente para a pálida hospedeira chefe.
— Acalme-os — disse-lhe. — Está tudo bem. — Deu-lhe uma pal-
madinha no braço e depois disse-lhe para não se aproximar da copa da
classe de executivos.
Dirigiu-se ele para lá, afastando as pessoas e ordenando firmemen-
te aos passageiros que voltassem para os seus lugares. Com um casaco,
cobriu o corpo da hospedeira morta.
Os dois restantes homens dos SAE tinham, sensatamente, perma-
necido na cauda do avião, cobrindo qualquer acção de apoio que tivesse
sido planeada pelos terroristas. Caminhando ao longo do Boeing, James
Bond teve de sorrir para si próprio. Os três jovens e a rapariga de aspecto
duro, de quem suspeitara ao embarcarem no Bahrein, pareciam ainda
mais pálidos e abalados do que os outros passageiros.
Ao subir de novo a escada de caracol, a voz calma do comissário
de bordo chegou através do sistema de intercomunicação, avisando os
passageiros de que em breve aterrariam no aeroporto de Heathrow em
Londres, e pedindo desculpas por aquilo a que chamou “contratempo im-
previsto”.
O agente dos SAE abanou a cabeça quando Bond emergiu na “suite
panorâmica”. O terrorista que servira de alvo à segunda faca de Bond jazia
agora sobre dois lugares vagos, com o corpo coberto com um lençol de
plástico.
— Nada a fazer — disse o agente dos SAE. — Durou apenas uns
minutos.
Bond perguntou-lhe se o homem recuperara a consciência.
—Apenas no fim. Tentou falar.
— Sim?
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— Não consegui perceber nada.
Bond incitou-o a lembrar-se.
— Bem... bem, parecia estar a tentar dizer alguma coisa. No entan-
to não se percebia bem. Pareceu-me qualquer coisa como “inspector”.
Balbuciava e cuspia sangue, mas não há dúvida de que a última parte me
pareceu isso.
James Bond ficou calado. Sentou-se num lugar ali perto, para a
aterragem. Enquanto o 747 gemia, com os flaps totalmente baixados e
os estabilizadores levantados à medida que o avião rolava, tocando su-
avemente a pista 28R, ponderou nas últimas palavras do terrorista. Não,
pensava, era ir longe demais, era uma obsessão do passado. Inspector.
In... spector. Tirando o “in”.
Seria possível depois de tanto tempo?
Não, pensou de novo, fechando os olhos por um momento. O vôo
longo e a súbita acção sangrenta no final deviam ter-lhe dado volta ao
miolo. O fundador Ernst Stavro Blofeld estava, sem dúvida nenhuma,
morto. A ESPECTRO como unidade organizada morrera com Blofeld.
Mas quem poderia ter a certeza? A organização original abarcava o
mundo e outrora tivera participação em praticamente todas as organiza-
ções importantes do crime, assim como em quase todas as forças políti-
cas, segurança e serviços secretos, no chamado mundo civilizado.
Inspector. In... spector. ESPECTRO, a sua velha inimiga, a Organiza-
ção Especial para Contra-espionagem, Terrorismo, Vingança e Extorsão.
Seria possível que uma nova ESPECTRO tivesse aparecido, como uma ter-
rível fénix em mutação, para os assombrar nos anos 80?
Os motores do 747 foram desligados. O sinal sonoro avisou os pas-
sageiros de que podiam desembarcar.
Sim. James Bond decidiu que era altamente possível.

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A CASA NA BAÍA PANTANOSA

Erguia-se, decadente e corrupta, na única zona de terra firme no


meio do pantanal. A baía pantanosa formava canais à sua volta e depois
dividia-se para se juntar a outras e desaparecia no meio de charcos verdes
cheios de vapor.
A cidade mais próxima ficava a dez quilômetros, e as poucas pesso-
as que viviam à beira desse grande charco ensopado, situado perto da Foz

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do rio Mississípi, mantinham-se afastadas da margem empapada mesmo
defronte da casa.
Os mais idosos diziam que fora construída por um inglês louco por
volta de 1820, um grande palácio de onde poderia controlar o pântano.
Mas não foi longe. Teve problemas com uma mulher — segundo algumas
versões, mais de uma — e com toda a certeza a morte estivera presente,
provocada pela febre, pela doença e também pela violência. A casa esta-
va, por certo, assombrada. Ouviam-se barulhos inexplicáveis. Estava tam-
bém protegida pelo seu próprio mal; guardada por cobras, cobras enor-
mes, que não era possível encontrar em mais nenhum ponto do pântano.
Estas grandes cobras — que, para alguns, chegavam a medir nove e até
doze metros — mantinham-se junto à casa, mas, como Askon Delville, o
proprietário do estabelecimento mais próximo, costumava dizer: “Parece
que não incomodam Criton.”
Criton era um surdo-mudo. As crianças fugiam quando o viam e os
adultos não gostavam dele. Mas, tal como sucedia com Criton e com as
grandes cobras, Criton não incomodava Askon Delville.
Aproximadamente uma vez por semana, o surdo-mudo fazia a tra-
vessia numa lancha e depois percorria a pé oito quilômetros até à loja
de Askon com uma lista de coisas necessárias. Recolhida a mercadoria,
percorria de novo a pé os oito quilômetros, metia-se na lancha e desapa-
receria no meio da baía pantanosa.
Havia também uma mulher na casa. Viam-na de vez em quando, e
era certamente ela quem redigia a encomenda que Criton apresentava na
loja de Askon Delville. Era, obviamente, uma bruxa, pois de outro modo
não poderia viver numa casa assombrada.
As pessoas tinham um cuidado especial em se manterem afasta-
das sempre que havia reuniões. Sabiam sempre quando tal iria aconte-
cer. Askon dizia-lhes. E ele sabia-o por causa da lista de Criton. Em dia de
reunião, Criton fazia geralmente duas viagens, pois havia necessidade de
muito mais coisas para levar para a casa. E ao anoitecer, ninguém se apro-
ximava. Ouvir-se-ia barulho — automóveis, lanchas — e a casa, dizia-se,
ficava completamente iluminada. Por vezes, ouvia-se música; e um dia,
há cerca de um ano, o jovem Freddie Nolan — que não tinha medo de
nada — metera-se na sua lancha, cerca de duas milhas rio acima, com a
intenção de dar uma espreitadela e tirar algumas fotografias.
Freddie Nolan nunca mais voltou a ser visto, mas a sua lancha apa-
receu, completamente desfeita, como se tivesse sido apanhada por um
animal enorme ou por alguma cobra.
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Havia uma reunião esta semana.
Ninguém, excepto Criton e a mulher — que dava pelo nome de
Tic — e os visitantes mensais, sabia que o interior da casa era tão sólido
como a pedra sobre a qual fora construída. O exterior de madeira podre
servia apenas para dissimular a pedra, tijolo, vidro e aço, para não falar
numa opulência bastante considerável.
Este mês tinham vindo onze pessoas; duas de Londres, Inglaterra,
duas de Nova Iorque, um alemão, um sueco, dois franceses, um de Los
Angeles, um grandalhão que todos os meses vinha do Cairo, Egipto, e o
Chefe. O Chefe chamava-se Blofeld, embora o seu nome fosse muito dife-
rente no mundo exterior.
Jantaram opiparamente. Depois, após o café e digestivos, o grupo
dirigiu-se para a sala de reuniões, situada nas traseiras da casa.
A grande sala estava decorada em tons de verde-suave. Pesados
cortinados a condizer cobriam as enormes janelas francesas, que davam
para a margem distante da baía pantanosa. Quando o grupo se reuniu,
os cortinados estavam corridos, as luzes da parede estavam acesas, en-
volvidas por tiras de latão sombreado, incidindo sobre os quatro quadros
que constituíam a única decoração — dois Jackson Pollack, um Miró e um
Kline. Este último era uma das obras de arte roubadas durante um dos
recentes assaltos. Blofeld gostava tanto do quadro que mandou colocá-lo
na casa, em vez de o pôr à venda.
Uma mesa de carvalho polido ocupava grande parte do centro da
sala. Estava preparada para onze pessoas, com pastas, bebidas, canetas,
papel, cinzeiros e agendas.
Blofeld colocou-se à cabeceira, enquanto os outros ocupavam os
lugares indicados por cartões com os respectivos nomes. Só se sentaram
após o Chefe o ter feito.
— A agenda para este mês é breve — começou Blofeld. — Apenas
três assuntos: o orçamento, o recente insucesso no Vôo BA 12 e a opera-
ção à qual demos o nome de Cão de Caça. Sr. El Ahadi, o orçamento, se
faz favor.
O cavalheiro do Cairo, Egipto, pôs-se de pé. Era um homem alto e
escuro, muito elegante, com uma voz melosa que encantara muitas rapa-
rigas no seu tempo.
— Tenho o prazer de anunciar — disse — que, mesmo sem aquilo
que esperávamos do Vôo BA 12, as nossas contas bancárias na Suíça, Lon-
dres e Nova Iorque contêm quatrocentos milhões de dólares, cinquenta
milhões de libras e novecentos milhões de dólares, respectivamente. O
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total, de acordo com os nossos cálculos, será suficiente para os nossos
objectivos actuais, e, se as operações correrem de acordo com o orça-
mentado (como prevê o nosso Chefe), esperamos poder duplicar este va-
lor dentro de um ano. Como foi acordado, todos os lucros superiores ao
nosso investimento inicial serão divididos em partes iguais. — Fez o seu
sorriso mais simpático e o grupo recostou-se, descontraidamente, nos
seus lugares.
A mão de Blofeld poisou com força em cima da mesa.
— Muito bem. — A voz adquirira um tom áspero. — Mas o fra-
casso do nosso assalto ao Vôo 12 não tem desculpa. Em especial, depois
de tantos preparativos da sua parte, Herr Treiben. — Blofeld deitou um
olhar de repugnância ao delegado alemão. — Como sabe, Herr Treiben,
em circunstâncias semelhantes, outros membros do comitê executivo do
ESPECTRO pagaram um preço muito elevado.
Treiben, gordo e rosado, um verdadeiro rei do submundo da Ale-
manha Ocidental, sentiu a cor desaparecer-lhe do rosto.
—No entanto—prosseguiu Blofeld —, temos outro bode expiató-
rio. Talvez não saiba, Treiben, mas finalmente apanhámos o seu Sr. De
Luntz.
— Ah? — Treiben esfregou as mãos e disse que também ele procu-
rava um tal Sr. De Luntz. Todos os seus melhores homens procuraram De
Luntz, sem resultado.
— Sim, encontrámo-lo. — Blofeld sorriu e bateu as palmas, produ-
zindo um som que mais se pareceu com um tiro de pistola. — Já que o
encontrámos, acho que ele deve juntar-se aos seus amigos.
Os cortinados que cobriam as grandes janelas afastaram-se, silen-
ciosamente. Imediatamente, as luzes da sala baixaram de intensidade. Lá
fora, parecia pleno dia.
— Um dispositivo de infravermelhos — explicou Blofeld — para
que os guardiães desta casa não se assustem com a luz. Ah, aí está o Sr.
De Luntz.
Um homem calvo, de aspecto assustado, que vestia um fato sujo
e amarrotado, foi conduzido até uma zona situada defronte da janela.
Tinha as mãos amarradas atrás das costas e os pés presos por grilhetas,
arrastando-os à medida que Criton o empurrava. Os seus olhos moviam­
-se descontroladamente para um lado e para outro, como se procurasse
desesperadamente na escuridão uma maneira de escapar de algo não de-
finido, mas indiscutivelmente terrível.
Criton conduziu o homem até um poste de metal, colocado apenas
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a poucos metros do espesso vidro da janela. Lá dentro, os observadores
podiam agora ver que pendia um pedaço da corda que prendia os pulsos
de Luntz. Criton prendeu a corda ao poste, voltou-se, sorriu na direcção
da janela, em seguida recuou e desapareceu.
No momento em que Criton desapareceu, ouviu-se uma pancada
surda vinda da zona mais afastada da janela e o prisioneiro, De Luntz, fi-
cou cercado por uma grelha de metal presa a uma pesada estrutura. Esta
grelha tinha três lados e o topo assemelhava-se a uma pequena baliza
quadrada de hóquei no gelo. A frente aberta acabava quase à beira da
água, a qual ficava a cerca de três metros da janela.
— Que é que ele fez? — perguntou um dos americanos. Chamava­-
se Mascro, o avuncular homem de cabelos brancos de Los Angeles.
— Era o homem de apoio no BA 12. Não foi em auxílio dos seus
camaradas — escarneceu Treiben.
— Sr. Mascro — Blofeld levantou uma mão —, De Luntz contou-nos
exactamente o que aconteceu. Como os outros morreram e quem o fez.
Ah, um dos guardiães já localizou o Sr. De Luntz. Sempre desejei ver se um
pitão gigante consegue comer um homem inteiro.
De pé, por detrás das janelas francesas, o comitê executivo da ES-
PECTRO observava com um horror fascinado. Os raios infravermelhos
proporcionavam uma imagem clara e nítida. Conseguiam ainda ouvir a
infeliz vítima começar a gritar quando descobriu o réptil a entrelaçar-se,
vindo dos grandes juncos, situados junto à margem pantanosa.
A pitão era enorme, medindo pelo menos nove metros, com um
corpo gordo e sólido e uma pesada cabeça triangular. De Luntz encostou­
-se ao poste, começou a puxar e a torcer-se, tentando soltar-se, mas, de
repente, a pitão lançou-se para a frente, enrolando-se no homem.
A criatura movia-se agora com uma rapidez extraordinária, fazendo
círculos no corpo de De Luntz como se se tratasse de uma planta trepa-
deira. Pareceu apenas uma questão de segundos até a cabeça da pitão
se colocar na direcção da sua vítima — as duas interligadas, balouçando,
como se se tratasse de uma obscena dança da morte. Os gritos agonizan-
tes de De Luntz aumentaram de intensidade quando a cabeça da pitão
se postou em frente ao seu rosto, mandíbulas estalando numa fúria exci-
tada. Réptil e presa olharam-se durante alguns segundos, e a assistência
podia ver claramente o abraço mortífero da pitão fechar-se em volta do
corpo do homem.
O corpo de De Luntz tornou-se mole e ambos caíram no chão. Um

18
dos observadores, colocado em posição segura por detrás da janela, ar-
fou ruidosamente. A serpente gigante desenroscara-se com três chico-
tadas rápidas do corpo, e observava agora a sua refeição. As mandíbulas
voltaram-se primeiro para a corda que o prendia, arrancando-a com um
puxão, e em seguida voltaram-se para os pés do corpo.
— Isto é espantoso. — Blofeld estava de pé, muito junto à janela.
—Vejam. A serpente está a tirar-lhe os sapatos.
A pitão contorceu-se, de modo a que a sua cabeça ficasse alinhada
com os pés do corpo, que empurrou, antes de abrir as mandíbulas de um
modo quase inacreditável, fechando-se à volta dos tornozelos do cadáver.
A operação durou quase uma hora; no entanto, o grupo lá dentro
manteve-se fascinado, hipnotizado. A pitão engolia numa série de espas-
mos, descansando, imóvel após cada um, até terem desaparecido os últi-
mos vestígios de De Luntz. Depois estendeu-se calmamente, cansada do
esforço, o seu longo corpo de tal modo inchado que era possível à assis-
tência distinguir com nitidez os contornos do corpo humano comprimido
no meio do corpo da serpente.
— Uma lição interessante para todos nós. — Blofeld voltou a ba-
ter palmas e os cortinados voltaram a fechar-se e as luzes acenderam-se.
Pensativo, o grupo voltou para a mesa, alguns deles brancos e visivelmen-
te abalados com o que haviam presenciado.
O alemão, Treiben (que conhecera bem De Luntz em vida), era o
mais afectado.
— Disse... — começou, com voz trêmula — disse que De Luntz falou
antes de... antes de...
— Sim — anuiu Blofeld. — Falou. Cantou árias completas. Pavarotti
não teria cantado melhor. Até cantou a sua própria sentença de morte.
Aparentemente, estava alguém à nossa espera no Vôo BA 12. Ainda te-
mos que descobrir se alguém falou ou se os carregamentos de alto risco
estão agora a ser protegidos. O plano funcionou na perfeição. A rapariga
fez um trabalho magnífico ao conseguir arranjar lugar no vôo e introduzir
a bordo as latas de fumo e as armas. O ataque verificou-se à hora exacta,
não tenho quaisquer dúvidas. No entanto, De Luntz arranjou um pretexto
para não tomar parte. Disse que ficara preso na cauda do avião. Parece
que havia cinco guardas a bordo do Vôo BA 12. Segundo De Luntz, eram
membros dos Serviços Aéreos Especiais Britânicos.
Blofeld fez uma pausa, olhando-os, um a um. Depois prosseguiu:
— Todos, excepto um.
Os homens sentados à volta da mesa esperaram, e uma atmosfera
19
de expectativa encheu a sala.
— A reorganização desta grande sociedade, da qual todos fazemos
parte — continuou o Chefe —, tem sido muito demorada. Temos estado
em hibernação. Agora, brevemente, o mundo verá que estamos acorda-
dos. Em especial teremos de tratar de um velho inimigo que se revelou
um incômodo constante para o meu ilustre predecessor. O Sr. De Luntz
(que a sua alma descanse em paz) identificou quatro dos guardas do avião
como possíveis agentes secretos dos SAE. Identificou também, com toda
a certeza, o quinto homem... aquele que, devo dizê-lo, nos causou mais
incômodos. Interroguei De Luntz pessoalmente. Meus senhores, o nosso
velho inimigo James Bond estava a bordo daquele avião.
Os rostos à volta da mesa adquiriram uma expressão de dureza;
todos se voltaram na direcção de Blofeld. Por fim, foi Mascro quem falou:
— Quer que contrate um assassino profissional? Antigamente,
quando o seu...
O Chefe interrompeu-o.
— Já foi tentado antes. Não. Não quero isso. Não quero que enviem
especialistas a Londres. Tenho contas pessoais a ajustar com o Sr. Bond.
Meus senhores, estudei um método para tratar dele... chamem-lhe um
engodo, se quiserem. Se resultar, e não vejo motivo para que não resul-
te, em breve teremos o prazer da companhia do Sr. Bond deste lado do
Atlântico. Tenciono tratar dele do mesmo modo que aquele réptil tratou
do desobediente De Luntz.
Blofeld fez uma pausa, olhando à volta da mesa, certificando-se de
que todos estavam concentrados no que acabara de dizer.
— Em breve — prosseguiu Blofeld — estaremos totalmente em-
penhados no planeamento daquilo a que, por decisão mútua, nesta fase
(por razões de segurança) foi dado o nome de Cão de Caça.
O Chefe soltou uma risada.
— Irônico, não é? Tem um toque de classe falar do Cão de Caça.
Cão de Caça, do poema cristão O Cão de Caça do Céu. — A risada trans-
formara-se num sorriso. — O Cão de Caça do Céu ou os Cães de Caça do
Céu, hem? Cães de Caça. Lobos. E bom, sendo o nosso objectivo a grande
ameaça da América, os Lobos do Espaço, que giram à volta do globo em
matilhas, esperando lançar-se sobre as suas vítimas e desfazê-las... e, no
meio disto, o Sr. Bond. Desta vez, a ESPECTRO varrerá o Sr. James Bond da
face do planeta.
Ouviram-se murmúrios de concordância antes de Blofeld, que olha-
va para um pequeno relógio de pulso de ouro, voltar a falar.
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— De facto, neste momento o meu isco já deve ter sido mordi-
do. Em breve, meus senhores, muito em breve estaremos frente a frente
com James Bond. E o mais engraçado é que ele não sabe com quem vai
encontrar-se nem o que lhe está reservado.

4
PENSAMENTOS DE TRAVESSEIRO

James Bond olhou afectuosamente para o rosto de Ann Reilly, cal-


mo e belo a dormir, sobre a almofada a seu lado. Os cabelos cor de palha,
lisos e brilhantes, estavam despenteados em volta do rosto oval. Durante
um breve segundo, fez Bond lembrar-se de Tracy — sua esposa apenas
por algumas horas antes de Ernst Stavro Blofeld a matar a tiro na auto­-
estrada de Munique para Kufstein, quando se dirigiam para a lua-de-mel.
Ann Reilly — membro do mesmo Serviço que Bond, assistente do
Armeiro, e subchefe do sector de Q — era conhecida por todos dentro do
enorme edifício da sede que dava para Regent’s Park como a Q’gira. Uma
alcunha própria para a jovem desinibida, elegante, alta e muito eficiente.
Depois de um começo ligeiramente tremido, Bond e Q’gira haviam­
-se tornado amigos e também aquilo que ela gostava de definir como
“amantes ocasionais”. Esta noite fora dividida em duas partes. Primeiro o
dever — verificação e disparo da nova pistola pessoal de Bond, a Heckler
& Koch VP70, a arma que tanto M como o Armeiro haviam agora decidido
que iria ser usada por todos os agentes dos Serviços.
Bond opusera-se. Afinal de contas, fora-lhe geralmente permitido
escolher a própria arma, e ficara tristíssimo quando a sua Walther PPK de
confiança fora banida do serviço em 1974. Na sua última missão fora se-
veramente criticado por usar uma Browning antiga, ainda que altamente
eficiente. A sua maneira teimosa, 007 lutara pelos seus direitos pessoais
— uma acção aplaudida por Q’gira, defensora do feminismo, o que, por
definição, significava que também defendia algumas causas masculinas.
Mas a palavra de M era lei, o Armeiro fazia executar as regras, e a
Bond fora ordenado, na altura devida, que usasse a VP70.
Ainda que a VP70 fosse bastante maior que a Walther, Bond era
obrigado a admitir que a arma não apresentava qualquer problema no
que dizia respeito ao encobrimento. Dava uma sensação de conforto, com
a coronha mais comprida e o bom equilíbrio. Era também precisa e mor-
tal, calibre 9 mm, com um carregador de dezoito balas e uma capacidade

21
de disparar rajadas semi automáticas de três tiros, quando equipada com
a leve coronha de ombro.
Não havia dúvida de que era também uma arma mortífera, de po-
tência considerável, e nos últimos dias, entre as longas sessões com o seu
velho amigo Bill Tanner, chefe de pessoal de M, acerca do desvio e iden-
tidade dos terroristas, James Bond passara bastante tempo a familiarizar­-
se com a sua nova pistola.
Por isso, essa tarde, desde as cinco até às sete e meia, 007 estivera
na carreira de tiro subterrânea, treinando-se a sacar e disparar a arma
com a perita Q’gira.
Quase desde o primeiro momento em que trabalhara com Q’gira,
Bond começara a ter um enorme respeito pelo seu grande profissionalis-
mo. Não havia dúvida de que sabia o que fazia — desde armamento até
aos mistérios complicados da electrónica. Mas também sabia comportar­-
se como a mais feminina das mulheres.
Nesta noite, após acabarem o treino na carreira de tiro, Ann Reilly
deixou bem claro que, se Bond estivesse livre, ela encontrava-se disponí-
vel até à manhã seguinte.
Depois do jantar num pequeno restaurante italiano — o Campana,
em Marylebone High Street —, o parzinho voltara ao apartamento de
Q’gira, onde haviam feito amor com uma loucura perturbante, como se
qualquer deles tivesse os dias contados.
O frenesim dos seus corpos deixou exausta a ágil Q’gira. Adorme-
ceu quase imediatamente após o último beijo longo e terno. Bond, contu-
do, ficou bem acordado, devendo-se esse estado de alerta à crescente an-
siedade dos últimos dias e também ao que descobrira junto de Bill Tanner.
Os terroristas do BA 12 haviam desencadeado pistas que iam dar
sempre a uma figura alemã do submundo, também envolvida em espio-
nagem política e econômica, um tal Kurt Walter Treiben. Mesmo a hospe-
deira, estava agora provado, puxara os cordelinhos de modo a ser desta-
cada para aquele vôo em especial, e ainda que trabalhasse para a British
Airways há quase três anos, o seu passado também a ligava a Treiben.
Os pontos mais perturbantes eram as palavras proferidas pelo ter-
rorista moribundo, e o facto de Treiben ter estado outrora associado ao
infame Ernst Stavro Blofeld, fundador e chefe da original e multinacional
ESPECTRO.
Uma investigação mais aprofundada conduziu-os a maiores preo-
cupações. De todos os desvios, havia agora uma identificação positiva de
seis homens. Dois eram patifes conhecidos e pagos por Michael Mascro,
22
o maior criminoso de Los Angeles; um podia ser associado com Kranko
Stewart e Dover Richardson, traficantes de droga e gangsters de Nova Ior-
que; dois trabalhavam exclusivamente para Bjorn Junten, um sueco perito
em espionagem por conta própria, cujo serviço privado estava sempre
aberto a quem pagasse mais; enquanto o sexto homem identificado es-
tava ligado com os irmãos Banquette, de Marselha — um par de vilãos
sobre os quais, tanto a polícia francesa como o Serviço de Documentação
Exterior e de Contra-Espionagem, o serviço secreto francês, tentavam há
anos descobrir provas.
Tal como o alemão Treiben, os cabecilhas nestas identificações —
Mascro, Stewart, Richardson, Junten e os irmãos Banquette — tinham as
suas ligações pessoais com Ernst Stavro Blofeld e com a ESPECTRO.
Não restava senão uma conclusão: a ESPECTRO estava viva e de
novo em actividade.
Bond acendeu calmamente um dos seus cigarros especiais de baixo
teor, originalmente feitos para ele por Moreland’s em Grosvenor Street e
agora fabricados — depois de muita discussão e infracção das regras —
por H. Simons, da Burlington Arcade: os fabricantes de cigarros mais re-
centes em Londres. Esta firma concordara em conservar os distintivos três
anéis dourados, junto com o símbolo de marca, em cada um dos cigarros
especialmente manufacturados, e Bond não se considerou nem um pou-
co honrado por ser o único cliente que se podia gabar de fumar cigarros
personalizados feitos por Simmons.
Deitando o fumo para o tecto, consciente da presença de Q’gira
dormindo profunda e calmamente a seu lado, Bond pensou nas outras
mulheres que haviam tido um papel decisivo na sua carreira: Vesper Lynd,
que, depois de morta, parecia moldada como uma esfinge de pedra; Gala
Brand, agora Sra. Vivian, com três crianças e uma bela casa em Richmond
— trocavam cartões de Natal mas nunca mais a vira desde o caso Drax;
Honey Rider; Tiffany Case; Domino Vitale; Solitaire; Pussy Galore; a re-
quintada Kissy Suzuki; a sua última grande conquista, Lavender Peacock,
agora à frente da sua propriedade na Escócia com grande sucesso. Apesar
do calor e afeição genuína que fluía, mesmo a dormir, de Ann Reilly, o es-
pírito de Bond corria desenfreadamente. No entanto, os seus pensamen-
tos acabavam sempre por se voltar para Tracy di Vicenzo — Tracy Bond.
Houvera uma altura em que Bond perdera a memória por um pe-
ríodo de tempo considerável. Porém, peritos haviam-no arrancado à es-
curidão do desconhecido, e os últimos momentos de Ernst Stavro Blofeld
viviam agora clara e nitidamente no seu espírito — Blofeld no seu grotes-
23
co Castelo da Morte japonês, com o jardim envenenado. A última batalha,
na qual Bond estava mal apetrechado para enfrentar o grande homem
que brandia a sua espada mortal de samurai. No entanto fizera-o, com a
maior sede de sangue jamais sentida. Mesmo agora, quando pensava de-
moradamente em Blofeld, Bond sentia uma dor nos polegares; sufocara-o
até à morte com as próprias mãos.
Sim, Blofeld morrera. Mas a ESPECTRO continuava viva.
Bond apagou o cigarro, voltou-se de lado e tentou dormir. Quando,
por fim, a sua consciência era envolvida pela escuridão abençoada, James
Bond continuava a não conseguir descansar. Sonhou, mas sonhou com
Tracy, que tanto amara e acabara por perder.
Acordou sobressaltado. A luz brilhava através das cortinas. Voltan-
do-se para olhar o Rolex em cima da mesa-de-cabeceira, Bond viu que
eram quase cinco e quarenta e cinco.
— Deitar tarde e acordar cedo. — Q’gira soltou uma risada, mexen-
do a mão por baixo dos cobertores como complemento às suas palavras
bem-humoradas.
Bond olhou-a, exibindo um sorriso triunfante. Ela chegou-se para
cima, beijou-o e recomeçaram exactamente onde tinham ficado na noite
anterior, até que foram interrompidos pelo bip-bip-bip do alarme de bol-
so de Bond.
— Raios — bufou Q’gira. — Será que nunca te deixam em paz?
Esticando o braço para agarrar o telefone, Bond recordou-lhe sar-
casticamente que ela própria o chamara, para assuntos de serviço, três
vezes durante a última semana.
— Nunca é o momento exacto — disse, sorrindo resignadamente
enquanto discava o número da sede.
—Transworld Export — disse a voz da telefonista de serviço.
Bond identificou-se. Seguiu-se uma pausa e depois ouviu-se a voz
de Bill Tanner:
— Precisam de ti. Ele está aqui desde madrugada e quer ver-te o
mais depressa possível. Trata-se de algo muito importante.
Bond olhou Q’gira de relance.
— Vou a caminho — disse. Em seguida, pousando o telefone, disse­
-lhe que Bill Tanner o informara de que se tratava de algo muito impor-
tante.
Empurrou-o para fora da cama, dizendo que parasse com as fan-
farronices.
Resmungando, principalmente porque não iria tomar um pequeno­
24
-almoço decente, James Bond fez a barba e vestiu-se enquanto Ann Reilly
preparava o café.
O Saab cinzento-metalizado estava estacionado em frente ao bloco
de apartamentos. Só muito recentemente lhe fora devolvido, totalmente
remodelado, tanto pela Saab como pela firma de segurança que servia
Bond particularmente, com a tecnologia especial incorporada na viatura
turbo. Sem esforço, e em segundos, o carro ganhou uma velocidade con-
siderável.
O tráfego era pouco intenso e bastaram apenas dez minutos de
condução descontraída — durante os quais o carro respondeu como um
puro-sangue aos movimentos dos pés e mãos de Bond — até chegar ao
alto edifício que dava para Regent’s Park. Aí, Bond subiu no elevador até
ao nono andar, dirigindo-se directamente à sala contígua à do gabinete de
M, onde Moneypenny estava sentada à secretária com ar de desânimo.
— ‘dia, Penny. — Bond, embora sentindo-se cansado, encenou um
ar jovial para alegrar a sua antiga namorada.
— Talvez seja um bom dia para ti, James. Estive acordada metade
da noite.
— E quem é que não esteve? — Teve um sorriso de pura inocência.
Moneypenny mostrou um sorriso amarelo.
— Segundo consta, James, deve ter sido com uma rapariga gira do
sector de Q. Acho que fico com o coração despedaçado.
— Penny — Bond dirigia-se para a porta do gabinete de M —, te-
nho só um coração. Foi sempre teu. Serve-te dele sempre que quiseres.
— Uma ova — retorquiu Moneypenny com um acentuado tom de
amargura. — E melhor entrares, James. Ele disse-me que te empurrasse
lá para dentro, textualmente, assim que chegasses.
Bond piscou-lhe o olho, ajeitou o nó da gravata RN, e entrou ao
mesmo tempo que batia à porta.
M parecia cansado. Foi a primeira coisa em que Bond reparou. A
segunda foi na rapariga baixa, bem proporcionada, atlética, mas de sorri-
so incontestavelmente feminino e com cabelo escuro e curto aos caracóis.
Os seus grandes olhos castanhos não se desviaram ao encontrarem
o olhar de Bond. Havia algo de familiar naqueles olhos, como se já os ti-
vesse visto, ou já tivesse sido apresentado antes à rapariga.
— Entre, 007 — dizia M em tom irritado. — Penso que não conhe-
ce esta senhora, mas é filha de um velho amigo seu. Comandante James
Bond... Miss Cedar Leiter.

25
5
CEDAR

Mais tarde, Bond sentiu que devia ter feito figura de parvo, ao fi-
car de pé no gabinete de M, de boca aberta, a olhar para a rapariga. Era
alguém que merecia ser apreciada, mesmo que no momento vestisse
uma saia de ganga e uma camisa. O seu rosto, tal como os seus olhos
castanhos, denotava uma tranquilidade que, Bond sentia-o, escondia um
espírito vivo, preciso e mortal, tal como o seu corpo. A rapariga era uma
especialista. De facto, devia se-lo, se se pensasse no seu pai.
— Bem—foi tudo o que Bond conseguiu dizer.
Cedar abriu-se num sorriso que o fez recordar, com alguma dor, o
seu velho amigo Felix. Era um olhar despreocupado, com uma sobrance-
lha levantada como a dizer: diga o que tem para dizer ou vá para o diabo.
M resmungou.
— Então ainda não conhecia Miss Leiter, 007? — M ainda se referia
a Bond como 007, embora a famosa Secção 00, com licença para matar,
há muito tivesse sido extinta.
Bond soubera que Felix era casado, mas quando tinham trabalhado
juntos, o seu velho amigo da CIA — mais tarde investigador particular —
nunca falara da mulher nem dos filhos.
— Não — Bond respondeu sucintamente, pois apercebera-se agora
daquilo que acabara de ouvir. — Como está o Felix?
Os olhos de Cedar ficaram ligeiramente enevoados, como se aca-
basse de sofrer uma rápida dor física. Quando falou, a sua voz era baixa,
rouca e sem aquilo a que os ingleses chamam sotaque americano. Cha-
mar-lhe-iam médio-Atlântico.
— O papá está óptimo. Colocaram-lhe o último modelo em mem-
bros artificiais. — Desapareceu a sua tristeza momentânea e voltou o sor-
riso. — Tem uma mão nova, uma coisa incrível, diz que consegue fazer
tudo. Passa bastante tempo a fazer tiro e a praticar técnicas de sacar a
arma. Tenho a certeza de que ele gostaria que eu o cumprimentasse.
Numa fracção de segundo, Bond reviveu uma época da sua vida
que preferiria esquecer — a época em que Felix perdera um braço e uma
perna, além de outros danos que exigiram anos de trabalho a cirurgiões
plásticos. James Bond culpava-se muitas vezes pelo que sucedera a Fe-
lix Leiter, embora ambos perseguissem um gangster negro, cuja loucura
sádica constituía quase um perigo único. Buonaparte Ignace Gallia: o Sr.

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Grande. Em todo o caso, Felix teria sido o primeiro a admitir que era uma
sorte estar vivo, depois de ser atacado por um tubarão, ataque esse en-
gendrado pelo Sr. Grande. Enquanto isso, Bond consolava-se pelo facto de
ter acabado com o gangster e do modo mais desagradável possível, em
que o castigo foi igual ao crime.
Rapidamente, Bond acordou do seu devaneio, a tempo de apanhar
a última frase de Cedar Leiter.
—Gostaria que me cumprimentasse?
Ela levantou a cabeça.
— Se soubesse que eu estava aqui.
M resmungou novamente.
— Acho melhor irmos direitos ao assunto, 007. Miss Leiter é uma
dorminhoca, acabada de acordar para a vida. Chegou de madrugada. —
Hesitou, franzindo ligeiramente o sobrolho com ar de desagrado. — A
porta da minha casa. Ouvi o que tinha para me dizer. O chefe de pessoal
está a verificar os seus antecedentes e enviou um criptograma através da
Embaixada dos Estados Unidos.
Bond pediu licença para se sentar e, depois de M ter anuído com
um gesto breve, perguntou qual era o assunto.
— Eu já sei de que se trata. Miss Leiter vai pô-lo ao corrente.
— Oh, por favor, chame-me Cedar, senhor... — Parou ao ver o olhar
seco que M lhe deitou, apercebendo-se de que cometera a maior gaffe de
todos os tempos. M desaprovava veementemente todo o tipo de familia-
ridades, especialmente em assuntos de serviço.
— Comece, Miss Leiter — disse M com rispidez.
A carreira de Cedar começara aos 18 anos como secretária no De-
partamento de Estado. Um ano depois, fora abordada pela CIA.
— Acho que foi por causa do meu pai. — Desta vez não sorriu. —
Mas avisaram-me de que ele nunca deveria saber.
Conservara o seu emprego no Estado, mas frequentara um curso
intensivo nas férias, nos fins-de-semana e, por vezes, à noite.
— Não me queriam no serviço activo. Isso ficou claro desde o iní-
cio. Admitia-se que eu receberia instrução e frequentaria vários cursos
de refrescamento, mas tinha de conservar o meu emprego no Estado.
Disseram-me que poderia vir a ser chamada. Bom, a chamada verificou­-
se a semana passada. Acho que nos mantêm sob escuta. Tencionava fazer
uma viagem breve à Europa. Acabou por se tornar uma viagem oficial
e fui utilizada porque não sou aquilo a que vocês chamam um “rosto”.
— Cedar queria dizer que não era conhecida por nenhum dos grupos da
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espionagem mundial. — Há uma palavra-chave que M tem de transmitir
a Langley e uma palavra-chave de resposta para mostrar que estou auto-
rizada... acho que é disso que estamos agora à espera.
M anuiu, acrescentando que não tinha dúvidas de que Miss Leiter
estava “autorizada”, como ela própria dissera. Com toda a certeza, os do-
cumentos e o pedido que trouxera estavam correctos.
— Vou nomeá-lo, 007, pois trata-se de trabalhar com Miss Leiter
nos Estados Unidos...
—Mas a ES...? — começou Bond.
— O assunto será clarificado dentro de momentos. Vou nomeá-lo
para uma missão especial. Serviço especial para o Governo dos Estados
Unidos. — M pegou em várias folhas de papel colocadas na sua secretá-
ria, e Bond não pôde deixar de ver que a primeira era uma breve nota dac-
tilografada num papel com o timbre presidencial. Era escusado continuar
a discussão com o seu chefe.
— Qual é a história afinal, sir? — perguntou Bond.
— Em poucas palavras — começou M —, diz respeito a um cava-
lheiro que dá pelo nome de Markus Bismaquer.
M deu uma olhadela pelos documentos que tinha na mão e come-
çou a enunciar os pormenores da vida e antecedentes de Bismaquer. Nas-
cido em 1919 em Nova Iorque. Filho único de pais alemão e inglês. Ambos
cidadãos americanos. Ganhou o seu primeiro milhão antes de completar
os 20 anos e três anos depois já era multimilionário. Escapou ao serviço
militar durante a Segunda Grande Guerra por ter sido considerado “inde-
sejável” e era, aparentemente, um membro firme e convicto do Partido
Nazi dos Estados Unidos, algo que tentava esconder, mas sem grandes
resultados. M fez um barulho que poderia ser interpretado apenas como
um sinal de repulsa.
— Vendeu, com grandes lucros, todas as suas quotas em negócios
no princípio dos anos cinquenta e desde então tem vivido como um prín-
cipe do Renascimento. Raramente é visto fora do seu principado, como
se fosse...
— O seu quê? — Bond franziu o sobrolho.
— É uma maneira de dizer, 007. Miss Leiter explica-lhe.
Cedar Leiter respirou fundo.
— Bismaquer é o dono de duzentos e quarenta quilômetros qua-
drados do que foi outrora deserto, cerca de cento e trinta quilômetros
a sudoeste de Amarillo, Texas. E M tem razão quando diz que é o seu
principado. Irrigou a área, construiu lá e praticamente isolou-a. Não há
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qualquer estrada para o Rancho Bismaquer. Só se pode lá chegar de duas
maneiras; há um pequeno aeródromo e ele possui o seu próprio sistema
privado de caminho-de-ferro. Há uma estação, que está encerrada, a vin-
te e quatro quilômetros da cidade, ou seja, Amarillo, e é preciso conhecer
muito bem o Sr. Bismaquer para se dar uma volta de comboio. Se a pessoa
for mesmo desejada, pode viajar de carro; o comboio pode transportar
automóveis e há estradas no rancho, mas dentro do complexo. É um raio
de um lugar: casa enorme, edifícios de apoio, pista para corridas de auto-
móveis, cavalos, pesca, tudo o que se pode desejar.
— Já lá esteve?
— Não, mas vi todas as fotografias tiradas por satélite e vôos de
reconhecimento a grande altitude. Langley tem uma imitação em três
dimensões. Mostraram-ma como parte das informações que me foram
prestadas. Tenho comigo fotografias mais pequenas. Toda a área (duzen-
tos e quarenta quilômetros quadrados) está cheia de cercas e Bismaquer
possui o seu próprio equipamento de segurança.
— Então que é que ele fez de errado? — Bond puxou da sua cigar-
reira metalizada e olhou para M, à espera de um gesto de aprovação. M
anuiu apenas e começou a encher o cachimbo. Cedar recusou um cigar-
ro. — Que é que fez de errado? Para além de ter feito uma batelada de
dinheiro.
—É esse o problema. — Cedar olhou para M de novo incerta.
— Oh, pode continuar, Miss Leiter. 007 tem de saber tudo antes de
terminarmos.
— Até há alguns meses era tudo muito vago — continuou Cedar,
dobrando as pernas por debaixo da cadeira com botões de couro.
M olhou para o tecto, como a apelar a Deus que desse à rapariga
bons modos e compostura.
— Politicamente, Bismaquer foi sempre suspeito mas, aparente-
mente, ninguém se preocupou muito, pois mantém-se sempre afastado.
Existem provas muito concretas de que ele... como se diz?, sempre quis
estar bem com Deus e com o Diabo.
Bond acenou afirmativamente.
— É assim que Bismaquer tem trabalhado ao longo dos anos...
procurando uma maneira de entrar... um modo de conseguir um cargo
político. Nunca ninguém o aceitou. — Riu e, de novo, Bond lembrou-se
de Felix. — Aceitaram o seu dinheiro, mas não a ele. Durante o escândalo
Watergate, soube-se que dinheiro de Bismaquer foi para o famoso fundo
ilegal. E não eram uns trocados. Mas sucessivas Administrações mantive-
29
ram-no ao largo.
— Motivos?
Ela encolheu levemente os ombros, como se quisesse dizer que era
óbvio.
— Existem ainda provas de que Bismaquer tem tentado o acesso a
qualquer Administração, propondo-se tomar conta.
Foi a vez de Bond rir.
—Tomar conta de quê? Do governo dos Estados Unidos?
— Eu sei que parece forçado, mas é exactamente isso que se pensa.
— Cedar olhou-o com frieza. — Pensa que alguns árabes e o seu séquito
são ricos? Deixe-me dizer-lhe que há famílias no Texas que vivem mesmo
como reis. Existem alguns, como em todos os países, que vivem numa
fantasia perigosa. E quando se conjuga a fantasia com uma riqueza imen-
sa...
Bond e M anuíram, percebendo onde ela queria chegar.
— Ainda não abandonou a ideologia nazi? — Bond lançou uma fu-
maça na direcção do tecto.
—É o que a CIA acha.
— Mas um doido desses só é verdadeiramente perigoso se...
— Se estiver a fazer alguma coisa. Não é? — O olhar de Cedar fixou­
-se no de Bond. — Sim, concordo, mas tem havido sarilho, ou pelo menos
indícios. Bismaquer tem recebido um grande número de visitas estranhas
no seu rancho durante o último ano. Além disso, intensificou a segurança
e o pessoal.
Bond suspirou e olhou para M, procurando ajuda.
— Isto é de doidos. Um tipo que vive de fantasias...
— Oiça-a, 007 — disse M, calmamente.
— Está a tramar alguma, não há dúvida. O FBI observava-o e con-
trolava os visitantes e o equipamento que entrava no rancho. Decidiram
transmitir algumas das suas descobertas ao Serviço de Taxas e Impostos.
Este, por sua vez, encontrou possíveis evasões fiscais, o que deu ao STI
e ao FBI algo por onde começar as investigações. Em Janeiro passado,
quatro agentes, dois,de cada órgão, foram tentar falar com Bismaquer.
Desapareceram. O FBI enviou mais dois. Não regressaram. Por isso, a po-
lícia de Amarillo fez-lhe uma visita, e investigou. O amigo Bismaquer não
sabia de nada, e não lhes podia dizer nada. Não havia provas. Por isso, a
polícia veio-se embora e a CIA enviou uma rapariga. Nunca mais ouviram
falar dela. Até que, há cerca de uma semana, foi encontrado um corpo no
pântano perto de Baton Rouge, Florida. O caso foi abafado. Os órgãos de
30
informação não se referiram ao caso. Parece que o corpo estava em muito
mau estado, mas foi identificado como sendo a rapariga enviada pela CIA.
Desde então, apareceram todos os corpos e perto do mesmo local. Dois
deles não puderam ser identificados, mas os outros sim, principalmente
pelos dentes. Toda a gente que tentou apanhar Markus Bismaquer no
Texas apareceu morta na Luisiana.
— E nós temos a ver com isso? — Bond não estava a gostar. Bisma-
quer parecia-lhe ser um maníaco psicopata, com dinheiro de sobra para
gastar, um exército privado e um caso enorme de folie de grandeur.
— Sem dúvida. — Cedar Leiter olhou para M. — Não se importa de
lhe mostrar, sir?
M procurou entre os documentos cuidadosamente empilhados à
sua frente, retirou um e entregou-o a Bond.
Era uma fotocópia nítida de um pedaço de papel rasgado, onde as
palavras dactilografadas eram claramente visíveis. O rosto de Bond adqui-
riu uma expressão sombria à medida que ia lendo:

ans, deve, com certeza, ser destruído. Mas pretendemos ter a certe-
za de que sabia tudo do nosso substan-
e apoiando, em todo o mundo. O impulso inicial será mais evidente
na Europa e no Médio Oriente. Mas
ntualmente, deixará os Estados Unidos completamente
berto. Com uma manipulação cuidadosa podemos ter suces
ividir e governar — ou pelo menos
Espero ansiosamente pela nossa próxima reunião.

Seguia-se a assinatura rabiscada, mas perfeitamente decifrável:


Blofeld.
Bond sentiu como que uma garra nos intestinos.
— Onde...? — começou.
— No forro desfeito das roupas da rapariga da CIA. Arrancadas do
corpo. — Cedar respondeu num tom de voz normal. — Os analistas de
Langley são de opinião que Bismaquer está a trabalhar com uma organi-
zação terrorista que dá pelo nome de ESPECTRO. Disseram-me que era
um perito no assunto, Sr. Bond.
— Blofeld morreu. — Bond também falava em tom calmo.
— A não ser, 007... — M tirou o cachimbo da boca. — A não ser que
tivesse um descendente. Ou um irmão. Ou outra pessoa. Você passou
bastante tempo a convencer-me de que a ESPECTRO está de novo em
31
actividade e por detrás destes ignóbeis desvios de aviões. Agora temos
a prova de que um Blofeld qualquer anda à solta e se associou a um te-
xano muito rico e louco. Esse documento — fez um gesto na direcção da
fotocópia — sugere que Bismaquer e a ESPECTRO estão a preparar algo
que pode provocar o caos no mundo. Deus sabe que existem perigos de
sobra com os governos, a agitação, a incapacidade política, a recessão e
o esgotamento dos recursos... isto a nível oficial. Uma grande operação
por conta própria poderia ser catastrófica; e já sabemos, de experiências
anteriores, que a ESPECTRO pode provocar problemas internacionais.
Quando terminou, alguém bateu à porta e Bill Tanner entrou, de-
pois de M ter dito com voz firme:
—Entre.
Tanner fez um gesto com a cabeça.
— As verificações terminaram, sir. Acabei de receber a mensagem
da Embaixada. Não sabem do que se trata mas disseram que deve ser
muito especial, pois teve prioridade na resposta e veio com a cifra presi-
dencial. Receio que eles tenham ficado um pouco curiosos.
— Bem, espero que lhes tenha cortado a curiosidade, Chefe de Pes-
soal.
Tanner sorriu e, com um aceno, cumprimentou Bond.
M deu uma fumaça no cachimbo e mordiscou a boquilha antes de
continuar.
— 007, um dos outros documentos é uma carta pessoal do Presi-
dente dos Estados Unidos destinada à minha pessoa. Nela refere que a
informação é, na sua opinião, tão sensível que não quer que siga as vias
normais; daí a presença aqui de Miss Leiter. Pede auxílio especial. Por ou-
tras palavras, quer que alguém dos Serviços acompanhe Miss Leiter aos
Estados Unidos e se infiltre na organização de Bismaquer. Sugere alguém,
007? Alguém que conheça bem como funciona essa doença que dá pelo
nome de ESPECTRO?
— Sim. — Bond já sentia a adrenalina a circular. — Sim, claro que
vou. Mas tenho algumas perguntas a fazer a Miss Leiter. Qual é o estado
civil de Bismaquer?
— Casou por três vezes — respondeu. — As duas primeiras esposas
morreram. De causas naturais: um acidente de automóvel e um tumor no
cérebro. A esposa actual é bastante mais nova do que ele. Bela, elegan-
te. Chama-se Nena Bismaquer, mas antes tinha o nome de Nena Clavert.
Nasceu em França. Viveu em Paris, onde conheceu Bismaquer.
— Podemos verificar se isso é mesmo verdade?
32
M anuiu e deitou a Tanner um olhar rápido — uma ordem sem
palavras.
—E a segunda pergunta? — Cedar esticou as pernas.
— Como é que Bismaquer ganhou o seu primeiro milhão? Pressu-
ponho que o resto foi fruto de um investimento cuidadoso.
— Gelados. — Cedar esboçou um sorriso. — Foi o primeiro rei dos
gelados. Arranjou as coisas mais incríveis. Finalmente, um dos grandes
grupos comprou-lhe o negócio. Mas a sua paixão pelos gelados ainda não
morreu. Até tem um laboratório no rancho. Aparentemente, parece de-
terminado em descobrir um método completamente novo e nunca antes
tentado de os fabricar. Está sempre a aperfeiçoar receitas e sabores.
M pigarreou.
— O problema vai ser chegarmos perto, isso é óbvio.
— Para além da mulher e dos gelados, Bismaquer tem outro ponto
fraco — disse Cedar.
Olharam-na, espectantes.
— Gravuras. Gravuras raras. Diz-se que tem uma colecção fabulosa.
E é mesmo uma fraqueza. Os altos postos de Langley interrogaram uma
das poucas pessoas honestas que, nos últimos anos, entraram e saíram
do Rancho Bismaquer. Um negociante de gravuras raras muito conhecido.
— Sabe alguma coisa acerca de gravuras raras, 007? — Pela primei-
ra vez desde que Bond entrara no gabinete, M parecia satisfeito.
— Neste momento, não, sir. — Bond acendeu outro cigarro. — Mas
tenho um pressentimento de que vou aprender bastante depressa.
— E Miss Leiter também. — M permitiu-se um sorriso raro, esten-
dendo a mão na direcção do telefone.

6
GRAVURAS RARAS PARA VENDA

James Bond ficava sempre impressionado com Nova Iorque. As ou-


tras pessoas diziam que estava a ficar pior, a decair rapidamente. Falavam
de como estava a ficar suja e perigosa. No entanto, todas as vezes que
Bond era enviado para lá numa missão, achava que Nova Iorque mudara
pouco desde que a conhecera. Havia certamente mais edifícios e, como
em todas as cidades, mais lugares a evitar à noite. Porém, era escusado
negar que, como cidade, o afectava mais, emocionalmente, do que a sua
querida Londres.

33
Desta vez, contudo, não estava em Nova Iorque como James Bond.
No seu passaporte constava o nome de Prof. Joseph Penbrunner, nego-
ciante em objectos de arte. Cedar Leiter mudara também de nome para
Sra. Joseph Penbrunner, e o casal despertara a atenção dos meios de in-
formação. M e o seu chefe de pessoal já se haviam encarregado disso.
Na noite da chegada de Cedar Leiter a Londres, Bond levara-a da
sede para uma casa secreta numa cavalariça em Kensington, facilmente
vigiada pelo grupo de “amas” aí colocadas.
Bill Tanner chegara havia pouco tempo, para fazer com os dois uma
revisão rápida do disfarce escolhido. Cedar, sendo desconhecida no meio,
não precisava de disfarce; mas Bond precisava de fazer algumas altera-
ções no seu visual e Tanner trouxera algumas idéias.
O disfarce, como Bond muito bem sabia, era melhor quando não
era exagerado — uma mudança de penteado, alguns novos maneirismos
no andar, lentes de contacto, talvez o encher das bochechas com almo-
fadas de borracha (um estratagema pouco utilizado, pois dificultava o
comer e beber), óculos ou um modo diferente de vestir. Estas eram as
coisas mais fáceis e, naquela primeira noite, Bond ficou a saber que iria
usar um bigode grisalho, óculos de lentes grossas, sem graduação, junta-
mente com um desbaste cuidadoso do cabelo que seria completamente
pintado de grisalho. Foi também sugerido que adoptasse uma postura de
pessoa erudita e um andar lento, além de um estilo de discurso bastante
pomposo.
Nos dias seguintes, Bond dirigia-se todos as manhãs à casa de Ken-
sington para trabalhar com Cedar.
M trouxera um homem pequeno, insignificante e sem humor, um
perito em gravuras, em especial trabalhos ingleses raros. O seu nome
nunca foi referido, mas o curso intensivo que ministrou a Bond e Cedar
fê-los, pelo menos, ficarem a conhecer o assunto superficialmente.
Ao fim de uma semana sabiam que, desde as primeiras gravuras
em madeira de Caxton até meados do século XVII, não existiram grava-
dores ingleses de qualquer nível. O verdadeiro esplendor veio do conti-
nente, com mestres como Dürer, Lucas van Leyden e outros. Estudaram
Holbein filho, as primeiras ilustrações inglesas em cobre de John Shute e
continuaram com Hollar, Hogarth e seus contemporâneos, passando pela
chamada tradição romântica, até ao revivalismo e aos elevados níveis de
gravuras e impressão do século XIX.
No terceiro dia, M veio a Kensington, pedindo ao instrutor que se
concentrasse em Hogarth. O motivo foi revelado nessa noite, quando M
34
apareceu de novo, acompanhado por Bill Tanner e por dois dos seus cães­
-de-guarda pessoais.
— Bem acho que conseguimos — anunciou M, sentando-se na ca-
deira mais confortável da sala e franzindo o nariz num gesto de desagrado
para o papel de parede. Tal como em todas as casas dos serviços, o local
possuía as poucas amenidades de um hotel de baixo nível. — Duas coisas
— prosseguiu M. — Nena Bismaquer, nascida Clavert, não tem cadastro.
Segundo, você, Prof. Penbrunner, não está de boas relações com certas
pessoas do mundo da arte. Amanhã, a imprensa poderá ficar louca. De
facto, neste momento andam à sua procura.
— E que é que se supõe que eu fiz? — Bond sentia-se bastante
prudente.
— Não fez grande coisa. — M retomou a sua voz mais profissional.
— Você descobriu um conjunto de gravuras assinadas por Hogarth, e até
agora desconhecidas, não muito diferentes de The Rake’s Progress ou The
Harlot’s Progress. São seis ao todo, maravilhosamente executadas e inti-
tuladas The Lady’s Progress, e posso assegurar-lhe que estão a causar um
enorme furor. Foram totalmente autenticadas. Você tem estado a tentar
manter o caso em segredo, mas acabou por se saber. Segundo se diz, nem
sequer tenciona pô-las à venda em Inglaterra, mas sim levá-las para os
Estados Unidos. Não tenho dúvidas de que vão surgir algumas perguntas
no Parlamento.
Bond mordeu os lábios.
—E as gravuras?
— Falsificações estupendas — respondeu M. — E muito difícil pro-
var o contrário, e custaram uma fortuna aos Serviços. Vão trazê-las ama-
nhã, e tratarei de fazer com que os jornais sejam informados, mesmo an-
tes da sua partida para Nova Iorque na semana que vem.
— Por falar em partir... — Bond conduziu M para a privacidade de
outra sala.
A missão ia ser bastante difícil, pois não podiam contar com a assis-
tência dos serviços secretos americanos ou ingleses até não poder deixar
de ser evitado, simplesmente porque muito poucas pessoas teriam co-
nhecimento da sua presença ou missão.
— Não há qualquer apoio — começou Bond.
— Não é a primeira vez que trabalha sem apoio, James. — M ficou
mais brando e, como estavam só os dois, tratava-o pelo primeiro nome.
— É verdade. Presumo que já trataram do meu armamento pesso-
al.
35
M acenou afirmativamente. Uma pasta com a VP70, munições, as
suas facas preferidas, e ainda as seis falsificações dos quadros de Hogarth,
seria entregue no hotel em Nova Iorque.
— O sector de Q preparou uma ou duas outras coisas que lhe serão
úteis. Haverá uma sessão de tecnologia com Miss Reilly antes de partir.
— Então tenho mais um favor a pedir.
—Peça, e pode ser que lhe seja concedido.
— A Fera Prateada. — Bond olhou bem nos olhos de M, notando
o tremor de dúvida. “Fera Prateada” era a alcunha que alguns membros
dos Serviços haviam dado ao carro pessoal de Bond, o Saab 900 turbo,
propriedade sua e com toda a tecnologia especial incorporada paga do
seu próprio bolso. As piadas acerca de ele ser o brinquedo de Bond tive-
ram como resposta apenas um sorriso educado de 007, e ele sabia que
o major Boothroyd, o Armeiro, andara constantemente à volta da viatura
numa tentativa de descobrir todos os seus segredos: os compartimentos
escondidos, as condutas de gás lacrimogêneo, e os novos aperfeiçoamen-
tos recentemente incorporados no veículo à prova de bala. Mesmo Q’gira,
sem dúvida mandada por Boothroyd, tentara uma acção de Mata Hari
com Bond, para lhe arrancar o segredo à custa do seu charme. Nessa al-
tura, 007 limitara-se a dar-lhe um açoite no delicioso traseiro e a dizer-lhe
que não se devia meter onde não era chamada. Neste momento, estava
prestes a pôr nas mãos de M o que podia ser a sua salvação.
— Que é que tem a “Fera Prateada”?
— Preciso dele na América. Não quero ficar à mercê dos transpor-
tes públicos.
M teve um sorriso passageiro.
— Posso tratar de lhe alugar um, com volante à esquerda e tudo.
— Isso não é a mesma coisa, e sabe que não, sir.
— E você sabe que esse veículo não pertence aos Serviços. Sabe
Deus o que você tem escondido dentro daquela coisa...
— Sir — retorquiu Bond —, desculpe, mas preciso daquele carro e
da documentação.
M pensou, franzindo o sobrolho.
— Vou dormir sobre o assunto. Amanhã dou-lhe uma resposta. —
Mordendo o cachimbo, M saiu, a resmungar baixinho.
Na verdade, Bond não tinha muitas esperanças quanto ao carro,
ainda que fosse para os Estados Unidos em missão especial. Porém, na
tarde seguinte, após uma longa e irritável palestra feita por M sobre o es-
tado das finanças dos Serviços, acabou por obter autorização. Os Serviços
36
tratariam, relutamente, de pôr o Saab nos Estados Unidos.
— Estará lá, pronto e à sua espera, quando lá chegar — disse-lhe M
com ar rabugento.
A chegada — do Professor e da Sra. Joseph Penbrunner, e o seu
Saab — fora, de facto, qualquer coisa de comentado. Mudando a voz para
um timbre formal; pomposo e bastante pastoso, Bond fugiu com toda a
limpeza às perguntas dos repórteres no Aeroporto J. F. K., de Nova Iorque.
Os meios de informação “haviam assumido” que ia vender na América
os quadros de Hogarth recentemente descobertos? Bem, por enquan-
to nada podia adiantar. Não, não tinha nenhum comprador especial em
mente; tratava-se de uma visita pessoal à América. Não, não trazia os
quadros consigo, mas sim, estavam já, podia revelá-lo, em Nova Iorque.
Lá por dentro, o disfarçado Bond estava satisfeito com a mudança
vocal que baseara, de longa memória, na voz do seu velho professor du-
rante aqueles dois infortunados semestres em Eton. Aquele homem fora
um martírio, em todos os sentidos, para Bond, e agora dava-lhe prazer
troçar dele. Ao mesmo tempo, para ter a certeza de que o facto era noti-
ciado na televisão e nos jornais, usou um tom impertinente e malcriado.
Os meios de informação, disse, não estavam realmente interessados na
arte, apenas nos sarilhos que daí poderiam advir.
— Quando chegar à altura — acrescentou, puxando Cedar por en-
tre a multidão —, a única coisa que vos vai interessar é o preço. Dólares,
dólares e mais dólares. É só o que querem saber: o preço.
— Isso significa que está aqui para efectuar uma venda, professor?
— perguntou um dos muitos repórteres, vivamente.
— Isso é da minha conta.
No Hotel Loew’s Drake, na esquina da Rua Cinquenta e Seis com a
Park, esperava-os a pasta. Bond retirou-lhe o conteúdo cuidadosamente,
separando rapidamente as gravuras das armas. As gravuras iriam para o
cofre do hotel. Quanto às armas? Bem, levaria consigo a VP70, enquanto
as facas iriam para os compartimentos especiais, feitos há anos pelo sec-
tor de Q, dentro da sua pasta. Estava tão absorto no que fazia que não
reparou na frieza que se começara a instalar, como uma frente atmosfé-
rica, à volta de Cedar.
Durante os dias passados na casa secreta de Kensington, insistira
em tratá-lo por “Bond”. Quando, delicadamente e com o charme habitu-
al, ele lhe pedira para o tratar por James, Cedar recusara-se terminante-
mente.
— Sei que você e o meu pai foram amigos — dissera, sem o olhar.
37
— Mas agora a nossa relação é profissional. Eu trato-o por Bond, excepto
em público, quando estivermos a fazer de marido e mulher. Você trata-me
por Leiter.
James Bond rira.
— Está bem, faça como quiser. Mas, por mim, receio continuar a
tratá-la por Cedar.
Agora, ao voltar da recepção, onde depositara as gravuras, Bond
foi encontrá-la no meio do quarto, de braços cruzados e a bater com o pé
no chão, numa postura muito atraente, quer fosse essa a sua intenção ou
não.
— Que é que se passa? —perguntou em tom vivo.
— Que é que lhe parece?
Bond encolheu os ombros. Sendo um homem de hábitos, começou
a desfazer as malas, como de costume, atirando mesmo o seu robe felpu-
do para cima da grande cama de casal.
—Não faço a mais pequena idéia.
— Isso aí, para começar — disse, apontando para o robe. — Ainda
não decidimos quem fica com a cama e quem dorme no sofá. No que
me diz respeito, Sr. James Bond, o casamento termina quando estamos
sozinhos.
— Bem, claro. Eu fico com o sofá. — Depois, dirigindo-se para a
casa de banho, Bond olhou-a por cima do ombro. — Não se preocupe, Ce-
dar, comigo está tão segura como se fosse uma freira. E pode ficar sempre
com a cama. Sempre preferi viver da maneira mais difícil.
Podia sentir a petulância dela nas suas costas, mas, quando saiu,
Cedar estava ainda de pé junto à cama, parecendo quase constrangida.
— Desculpe, James. Lamento imenso ter feito uma idéia errada de
si. O meu pai tinha razão. Você é um cavalheiro, na verdadeira acepção
da palavra.
Bond não corou, ainda que “cavalheiro” não fosse a palavra habitu-
al que as senhoras usavam para o definir.
— Venha lá, Cedar. Vamos sair e divertir-nos, ou pelo menos vamos
jantar. Conheço um lugar não muito longe daqui.
Foram a pé até ao elegante Le Perigord, na Rua Cinquenta e Dois
Leste. A refeição não poderia ter sido melhor, admitiu Cedar para si mes-
ma, ainda que fosse Bond a escolher por ambos: asperges de Sologne à la
blésoise — espargos grossos e macios num molho de natas, limão e casca
de laranja, com um cheirinho de Grand Marnier, tudo misturado num cre-
me holandês; filetes de linguado au champagne e uma tarte de Cambrai,
38
de se derreter na boca, feita com pêras.
Enquanto partilhavam uma garrafa de Dom Perignon 69, que Bond
assegurou ser de confiança, Cedar descontraiu-se e começou a apreciar a
ocasião, experimentando ao mesmo tempo uma sensação estranha. Ain-
da que Bond se mantivesse no papel de Joseph Penbrunner, ela achou
que conseguia ver o homem por trás do disfarce, o homem de quem tan-
tas vezes o pai falara. Os olhos azuis e inesquecíveis, o rosto de feições
correctas que sempre lembrara a seu pai Hoagy Carmichael quando novo,
e a boca rígida, quase cruel, que tão inesperadamente adquiria um aspec-
to terno. Atracção magnética era a única frase que podia descrever o que
sentia, e não conseguia deixar de se perguntar quantas outras o haviam
já sentido antes.
Acabada a refeição, voltaram a pé para o Drake, pediram a chave e
meteram-se no elevador até ao terceiro andar.
Os três homens de grande estatura, vestidos com fatos distintos e
bem cortados, convergiram para o casal no momento em que as portas
do elevador se fechavam atrás deles. Antes que Bond tivesse tempo de
meter a mão dentro do casaco para agarrar a coronha da VP70, já lhe ha-
viam agarrado o pulso e tirado a pistola.
— Vamos calmamente até ao seu quarto, está bem, professor? —
disse um deles. — Não há qualquer problema. Estamos aqui apenas para
entregar um convite de alguém que o quer ver, OK?

7
CONVITE FORÇADO

O trabalho em conjunto de Cedar e Bond, na casa secreta de Ken-


sington, incluíra o delinear de uma série de sinais e movimentos a utilizar
numa situação como esta. Bond fez um aceno com a cabeça na direcçâo
do grandalhão que falara, coçou a fronte direita e tossiu. Para Cedar isto
significava: vá com eles, mas preste atenção a mim.
— Não há problema, hem? — O que falou era o maior dos três, al-
guns centímetros mais alto do que Bond, com a estrutura muscular de um
halterofílista e um peito saliente. Os outros pareciam igualmente duros e
bem preparados. Malfeitores profissionais, pensou Bond. Profissionais e
experientes.
O grandalhão tirara a Bond a chave do quarto. Abriu a porta cal-
mamente e fê-los entrar. Um empurrão rápido e forte fez Bond sentar-se

39
numa cadeira, e mãos que mais pareciam chaves inglesas seguraram-lhe
os ombros por detrás. A Cedar foi aplicado o mesmo tratamento.
Passou-se um momento até Bond reparar no quarto homem, de pé
junto à janela, olhando de vez em quando para a rua lá em baixo. Já ali
devia estar quando entraram. Bond reconheceu-o imediatamente como
sendo o homem magro e atlético, de bigode militar bem aparado, pare-
cendo bem vestido de mais para a ocasião no seu smoking castanho, que
o abordara antes no átrio do hotel e lhe entregara um cartão de cantos
dourados. Apresentara-se como sendo Mike Mazzard, dissera qualquer
coisa como tendo estado na recepção à imprensa no aeroporto e que pre-
tendia uma conversa em particular acerca das gravuras. Bond fora bastan-
te brusco e rejeitara a sugestão de tomar calmamente uma bebida num
cassino qualquer, pensando que o homem era um jornalista à procura
de uma entrevista exclusiva, embora não tivesse mencionado o nome de
nenhum jornal. Bond nem sequer vira o cartão com o mínimo de atenção,
antes o pusera no bolso, dizendo que não queria falar com ninguém até
terem tido uma noite de descanso.
— Então, professor — disse o grandalhão, que se colocara no meio
do quarto e que, despreocupadamente, atirava de uma mão para a outra
a grande VP70, qual gorila que brinca com uma pedra. — Com que então
está armado, hem? Sabe servir-se disto?
Bond, representando o seu papel, respondeu de modo pomposo,
pretendendo demonstrar ultraje.
— Claro que sim — vociferou. — Deixem que lhes diga que durante
a guerra...
— E que guerra foi essa, meu amigo? — resmungou o homem que
o segurava. —A Revolução Americana?
Os três grandalhões irromperam em gargalhadas.
— Fui oficial durante a segunda guerra mundial — disse Bond com
dignidade. —Presenciei mais acção do que...
— A Segunda Grande Guerra foi há muito tempo, amigo — in-
terrompeu o grandalhão, tomando o peso da VP70 mesmo em frente a
Bond. — Esta é uma arma muito perigosa. Por que é que anda com ela?
— Protecção — respondeu Bond, rapidamente, à melhor maneira
de Penbrunner.
—É, foi o que eu pensei. Mas para se proteger de quê?
— Assaltantes. Ladrões. Desordeiros como vocês. Pessoas que nos
querem roubar.
— Quando é que vais aprender boas maneiras, Joe Bellini? — per-
40
guntou a voz calma e timbrada vinda da janela. — Estamos aqui com um
convite e não para interrogar o Professor Penbrunner no seu próprio
quarto. Lembras-te?
— Roubá-lo! Não estamos aqui para o roubar — prosseguiu o gran-
dalhão chamado Bellini, com uma delicadeza fingida, o seu rosto deno-
tando uma inocência ofendida. — Tem uns desenhos, não é?
—Desenhos?
— Sim, uns desenhos especiais?
— Gravuras, Joe. — O homem junto à janela falou, desta vez num
tom mais autoritário.
— Sim, gravuras. Obrigado, Sr. Mazzard. Tem umas gravuras feitas
por um tipo chamado Ho... qualquer coisa.
— Hogarth, Joe — recordou Mazzard, sem desviar o olhar da rua.
— Possuo algumas gravuras de Hogarth — disse Bond com firmeza.
— Possui-las e tê-las aqui não é bem a mesma coisa.
— Sabemos que as tem aqui — disse Joe Bellini com uma paciência
trocista. — No cofre do hotel. — Junto à janela, Mike Mazzard voltou-se e
fitou Bond, que se apercebeu nesse instante de que aquele era, de longe,
o mais perigoso dos quatro. Tinha em si uma certa macieza e autoridade.
— Vamos ver se nos entendemos — disse. — Ninguém lhes vai fa-
zer mal. Estamos aqui como representantes do Sr. Bismaquer, que gos-
taria de ver essas gravuras de Hogarth. Chame-lhe um convite. Mas não
tenciona esperar até amanhã por uma resposta. Tem o seu cartão, o que
lhe dei no átrio. Acho que lhe quer fazer uma oferta...
Joe Bellini soltou uma risada.
—Uma oferta que não pode recusar, hem?
Mazzard não achou graça.
— Calado, Joe. É uma oferta honesta. Tudo o que tem a fazer é te-
lefonar para a recepção e pedir que mandem as gravuras cá acima, para
darmos andamento a isto.
Bond sacudiu a cabeça.
— Não pode ser — disse com um sorriso. — Eu tenho uma chave
eles têm outra. Como nos bancos. As gravuras estão depositadas no cofre
— mentiu. — Só eu ou o funcionário de serviço é que as podemos levan-
tar. Nem sequer a minha mulher...
Aliviado, Bond congratulou-se com a sua mudança de planos de úl-
tima hora, quando decidira que as gravuras ficariam mais seguras no com-
partimento secreto do Saab, em especial se precisassem de sair à pressa.
— Como disse o sr. Mazzard — continuou Joe Bellini, mas desta vez
41
toda a delicadeza desaparecera —, não queremos fazer mal a ninguém.
Mas se não quiser cooperar, então o Louis e aqui o Kid — indicando o
homem que segurava Bond — podem fazer coisas muito desagradáveis à
sua senhora.
Mazzard afastou-se da janela, contornou Joe, que continuava a
brincar com a VP70, e parou em frente de Bond.
— Professor Penbrunner. Permita-me que lhe sugira que o senhor
e Joe vão até lá abaixo buscar as gravuras. Depois podemos ir todos até
ao Aeroporto Kennedy. O Sr. Bismaquer enviou o seu jacto privado para
o vir buscar. Esperava que lhe fizesse companhia ao jantar. Agora já é um
pouco tarde. Mas podemos compensar o tempo perdido, e o senhor e a
Sra. Penbrunner ainda podem ter uma boa noite de descanso no rancho.
Garanto-lhe que estarão lá mais confortáveis do que nesta espelunca.
Bom, que me diz?
— Escute aqui, Mazzard — vociferou Bond. — Isto é um ultraje! Já
lhe disse que não queremos qualquer compromisso antes de amanhã. Se
representa realmente esse homem... Bismaquer, como foi que disse que
era o nome...?
— Guarde isso para depois — interrompeu Bellini — e vamos em-
bora. E não tente nada estúpido. — Dirigiu-se a Cedar e, com um gesto
rápido, rasgou-lhe o vestido do pescoço até à cintura, o que serviu para
mostrar que ela não usava soutien.
— Lindo — arfou Louis, olhando por sobre o ombro que ainda aper-
tava com firmeza. — Muito lindo.
— Acaba com isso — ordenou Mazzard. — Não há necessidade de
fazer essas coisas. Peço desculpa, professor, mas bem vê, o Sr. Bismaquer
não está habituado a que lhe digam não. Agora vou buscar as vossas coi-
sas, enquanto o senhor e Joe vão buscar as gravuras. Se nos despachar-
mos, temos tempo à justa para chegarmos ao Aeroporto Kennedy e partir
imediatamente.
Bond anuiu.
— Está bem — disse lentamente e também ele desconcertado, pois
durante um par de segundos achou que era impossível desviar o olhar dos
seios parcialmente expostos de Cedar. — Mas a minha esposa precisa de
mudar de roupa. Podemos levantar as gravuras à saída...
— Vamos buscar as gravuras agora — disse Mazzard insipidamen-
te, cortando qualquer hipótese de argumentação. — Para de mexer na
arma do professor, Joe. Guarda-a no armário. Tens a tua.
Joe Bellini retirou do casaco um pequeno revólver. Tendo mostrado
42
a Bond que estava armado, voltou a guardar a sua arma no bolso e colo-
cou a VP70 em cima da mesa-de-cabeceira.
Mazzard fez um sinal para Kid e as duas chaves-inglesas aliviaram
a pressão dos ombros de Bond. Este mexeu os braços devagar, tentando
normalizar a circulação o mais rapidamente possível. Ao mesmo tempo,
deu uma pequena tossidela e um piparote num fio imaginário na lapela
do casaco — os sinais para que Cedar se preparasse. Em voz alta, disse
que precisava da sua pasta.
— A minha chave está lá dentro. — Fez um gesto na direcção da
pasta, a qual se encontrava ao lado do banco desmontável para bagagem,
feito de aço e lona.
Mazzard apanhou a pasta, tomou-lhe o peso e sacudiu-a várias ve-
zes com rapidez. Satisfeito, entregou-a a Bond.
—Tire apenas a chave e vá com o Joe.
A pasta era uma versão da sua mala original Swaine & Adeney
modificada por Q’gira para ser utilizada por 007 nesta operação. As suas
características principais — um dispositivo mais eficaz baseado num dos
compartimentos escondidos do modelo original — residiam em dois com-
partimentos estreitos, activados por meio de uma mola, cosidos do lado
direito do forro interior. Ao colocar os três indicadores do controlo de
abertura do lado esquerdo em três, e ao colocar os do lado direito em
dois, as molas seriam activadas em intervalos de cinco segundos, saindo
pelo fundo da pasta os cabos das facas Sykes-Fairbairn de Bond.
Enquanto colocava a pasta no colo, Bond avaliou a situação. Encon-
travam-se mesmo numa situação difícil, pois Bond apercebia-se agora de
que não só não tinha opção quanto ao cofre de segurança nocturno como
não podia permitir que aqueles rufias descobrissem os segredos do Saab.
Durante um breve momento considerou a possibilidade de se desfazer
de Joe antes de chegarem ao carro. Tratar de um deles lá fora seria muito
mais fácil do que tentar dominar quatro dentro do quarto. Mas que acon-
teceria então a Cedar? Se desse o alarme, quem sabe o que lhe fariam?
Não podia arriscar. A alternativa — tentar dominar os quatro naquele
momento — parecia não ter qualquer hipótese. Poderia ter a certeza de
que Cedar agiria rapidamente? Um breve olhar na sua direcção, e numa
fracção de segundo enquanto os seus olhares se encontraram, confirmou
que ela estava preparada.
Mazzard era quem se encontrava mais perto de si e teria de ser
o primeiro a ser despachado, decidiu Bond, colocando cuidadosamente
os três indicadores do controlo de abertura do lado esquerdo em três,
43
em seguida pondo a pasta de lado, de modo a que as duas estreitas e
esconsas aberturas para as facas ficassem mesmo por cima da sua coxa
direita. Assim que Mazzard estivesse fora de combate, teria de apanhar
Joe Bellini e confiar na sorte e na surpresa para os outros dois. Tudo de-
pendia de três factores: a sua pontaria, a prontidão de Cedar e a rapidez
de movimentos de Kid.
Deslocou ligeiramente a pasta, colocando em seguida os três in-
dicadores do lado direito em dois. Não se ouviu qualquer ruído quando
Bond deslocou de novo a pasta, metendo a mão por baixo, pronta a re-
ceber a primeira faca cinco segundos depois. Sentiu o cabo deslizar até à
mão direita e, sabendo que tinha apenas cinco segundos até que surgisse
a próxima faca, Bond agiu.
As facas de lançar são tão bem equilibradas que até mesmo um pe-
rito tem dificuldade em fazer com que a arma se comporte como preten-
de. Um lançamento ágil, feito correctamente, deve fazer com que a ponta
da lâmina siga uma trajectória recta e horizontal quanto atinge o alvo.
Bond não queria que ninguém se magoasse, a não ser que isso fos-
se mesmo inevitável. Para que tal acontecesse, ambos os lançamentos
teriam de ser excepcionalmente precisos e, pelo menos, um deles teria de
ser feito de modo a que o pesado botão, acima da pega, atingisse o ponto
a que se destinava, antes da lâmina afiada.
Mal se movendo na cadeira, Bond flectiu o pulso, dando o máximo
de força ao primeiro lançamento. Em seguida estendeu a mão, mesmo a
tempo de receber a segunda faca que saía da pasta.
A primeira faca foi impecavelmente apontada, tendo o cabo atingi-
do Mazzard entre os olhos, produzindo um ruído abafado. Não se chegou
a aperceber de nada, enquanto a sua cabeça era impulsionada para trás
sem emitir qualquer som, indo o corpo cair no chão logo a seguir à faca.
Cedar agiu no mesmo instante que Bond, empurrando com os pés e, em-
pregando todo o seu peso, fez cair a cadeira sobre Louis, o qual foi apa-
nhado desprevenido, distraído pela súbita queda de Mazzard. Bond só se
deu conta do rugido de dor e do embate, quando o homem caiu, impelido
por Cedar e pela pesada peça de mobiliário.
Nesta altura, já a outra faca estava na mão de Bond e o seu corpo
colocou-se na posição precisa para enfrentar Joe, cujas reacções foram
bastante mais rápidas do que 007 previra. Por sorte, o grandalhão con-
seguiu apenas deslocar-se uns centímetros para o seu lado esquerdo e o
cabo da segunda faca bateu com força junto à sua orelha direita.
Como que paralisado, Joe Bellini parou, com uma mão prestes a
44
enfiar-se no bolso que continha o revólver. A faca caiu desajeitadamente
no chão, fazendo um corte na orelha, quase a arrancando. Soltou um grito
estrangulado e cambaleou para diante, caindo sobre Cedar e Louis, que
lutavam no chão.
Kid hesitou por detrás de Bond, que largou a pasta e, pondo todo o
seu peso sobre as pontas dos pés, saltou na cadeira e lançou-se na direc-
ção da VP70 em cima da mesa-de-cabeceira.
Correu para a arma soltando um grito louco de karatê, expulsando
o ar dos pulmões e galgando as três passadas em menos de dois segun-
dos. No momento em que a sua mão apertava a coronha da pistola e o
polegar soltava a patilha de segurança, Bond rodou sobre os calcanhares,
com os braços estendidos e pronto a disparar sobre o menor sinal de pe-
rigo.
A mão direita de Kid estava meio enfiada no casaco quando Bond
gritou:
—Alto. Para!
Kid demonstrou um ajuizado sentido de sobrevivência. Parou, com
a mão hesitando por um segundo e depois — olhando Bond nos olhos —
obedeceu.
Nesse momento Cedar soltou-se, pôs-se de pé com uma velocida-
de espantosa e com as duas mãos aplicou um golpe nas partes laterais
do pescoço de Louis. O homem grunhiu e caiu no chão. Bond, a sorrir,
dirigiu-se a Kid, retirou-lhe do casaco a arma que este se preparava para
utilizar, e em seguida aplicou-lhe uma pancada seca atrás da orelha, o que
fez com que Kid se juntasse aos seus amigos na inconsciência.
— Mude de vestido, Cedar — disse Bond calmamente, e depois,
mudando de idéias: — Não, primeiro dê-me uma ajuda com estes tipos.
Juntos, retiraram as armas aos quatro rufias e Cedar, aparente-
mente, não se apercebeu de que os seus seios estavam completamente
à mostra. Bond procurou no compartimento especial da pasta e retirou
de lá uma pequena caixa selada de plástico, que abriu. Tirou a almofada
com clorofórmio e aplicou-a aos quatro homens que jaziam espalhados
pelo chão.
— Isto é cruel e não muito eficaz, mas sempre é mais fácil do que
tentar dar-lhes comprimidos — disse Bond. — Só se utiliza em emergên-
cias deste tipo. Os métodos antigos e experimentados são muitas vezes os
melhores. Pelo menos, durante meia hora podemos estar descansados.
Amarraram as mãos e pés dos quatro homens com os seus cintos,
gravatas e lenços. Foi então que Cedar viu o que a faca de Bond fizera à
45
orelha de Joe Bellini. Um pequeno pedaço da parte superior fora cortado,
deixando uma extremidade ensanguentada a abanar, presa apenas à pon-
ta exterior por um pequeno pedaço de tecido. Bond extraiu da pasta, que
continha de tudo, uma pomada para ajudar a estancar o fluxo de sangue.
Prontamente, Cedar voltou a colocar a extremidade no sítio e prendeu-a
o melhor que sabia com fita adesiva que retirou do armário da casa de
banho.
Por fim, apercebeu-se de que estava meio despida e, sem o míni-
mo de embaraço, despiu-se até ficar apenas em calcinhas brancas justas,
enfiou uns jeans e vestiu uma camisa, enquanto Bond metia desajeita-
damente as suas coisas dentro das malas. De repente, recordou-se do
cartão de cantos dourados que enfiara no bolso, quando encontrara pela
primeira vez Mike Mazzard no átrio do hotel. Retirou-o e examinou-o.
Num dos lados via-se uma espécie de brasão com uma letra B dese-
nhada e por baixo as palavras “Markus Bismaquer”, tudo isto embelezado
com ornamentos curvos. Mais abaixo, em pequenas letras maiúsculas ne-
gras, liam-se as palavras: ENTREPRENEUR — AMARILLO, TEXAS. Nas cos-
tas do cartão encontrava-se uma pequena mensagem rabiscada por mão
desajeitada:

Prof. e Sra. Penbrunner:

Queiram conceder-me a honra de serem meus convidados


por alguns dias. Traga os Hogarths. Verá que valerá a pena. O meu
chefe da Segurança, Mike Mazzard, acompanhá-los-á até ao meu
jacto privado no Aeroporto Kennedy.
M.B.

Encavalitado em baixo, escrito em jeito de reflexão tardia, lia-se


uma insistência que dizia que deviam chegar a horas do jantar dessa noite
e um número de telefone no caso de surgir algum problema. Bond passou
o cartão a Cedar.
— Vamos então até Amarillo. De carro, acho eu — disse concisa-
mente. — Não vão estar à espera disso. Tem todas as suas coisas?
Bond viu uma ruga de preocupação percorrer o rosto de Cedar.
— A sua reputação vai precedê-lo, James. — Fez um breve sorriso
cintilante ao utilizar o seu primeiro nome.
— Refere-se ao facto de um velho como Penbrunner utilizar facas
de lançar e aplicar uns golpes de karatê? — perguntou Bond, voltando a
46
colocar as facas nas molas da pasta.
— Exactamente.
Pensou por um momento.
— Bismaquer anda atrás de nós. Em breve verá que não somos
paus-mandados. Será interessante ver como reage. Agora, vamos embo-
ra.
— E estes? Vai chamar a polícia?
— Não vamos querer gritar “ó da guarda”. Vou deixar algum di-
nheiro e a chave dentro dum envelope na lavadaria. Reparei que deixam
a porta aberta. Por sorte, esta porta tem uma fechadura de madeira à
antiga, do tipo que não pode ser aberta por dentro sem uma chave. Não
vão ter pressa em contactar a recepção para os deixar sair e vai demorar
algum tempo até ao conseguirem.
Bond baixou-se para ver se conseguia encontrar outra chave no
bolso de Mazzard, e retirou de lá uma chave-mestra que este deveria ter
obtido mediante o suborno de uma das criadas de quarto.
— Está na hora de irmos — disse repentinamente. — Vamos pela
escada das traseiras.

8
AVISOS DE MORTE

Não pararam para olhar para o outro lado do rio, para aquele mag-
nífico céu brilhante, com luzes emanando dos contornos dos arranha­-
céus, com as enormes torres gêmeas do World Trade Center a transmiti-
rem a tudo o resto uma sensação de pequenez. Precisavam de aumentar
a distância entre eles e os rufias de Bismaquer. Bond teve também tempo
de pensar. Se, como suspeitavam, Bismaquer fazia parte da ESPECTRO e
era, possivelmente, o novo Blofeld, o seu adversário poderia já ter-se-lhes
antecipado.
Bond aprendera a nunca subestimar a ESPECTRO. Isto era particu-
larmente importante, agora que reemergira num mundo onde as princi-
pais organizações terroristas operavam frequentemente em estreita liga-
ção com Moscovo. M e outros altos postos, quer dos Serviços Secretos
quer do MI5, realçavam constantemente o facto de as acções terroristas
corresponderem quase inevitavelmente a acções dos soviéticos. Nos ve-
lhos romances de acção da sua adolescência, Bond lera vezes sem conta
histórias de professores loucos ou gênios que tinham como objectivo do-

47
minar o mundo. Na altura, o jovem Bond interrogara-se acerca do que
os loucos ou maus vilões fariam ao mundo logo que o conseguissem do-
minar. Agora sabia-o. A ESPECTRO e outras organizações do mesmo tipo
— com laços estreitos com a Russia e com a ideologia comunista — de-
dicavam-se a colocar lentamente toda a humanidade debaixo da pata de
uma sociedade dominada pelo estado; um estado que controlava todas
as acções e pensamentos do indivíduo, ao ponto de decidir qual a música
que poderia ser escutada e quais os livros a ler.
Ao esmagar a ESPECTRO, James Bond daria um grande passo pela
verdadeira democracia — não os ideais sujos e pouco convincentes que,
ultimamente, pareciam atravessar o Ocidente.
Agora, a sua missão consistia em superar o inimigo.
A sua primeira reacção fora dirigir-se ao Texas e enfrentar Bisma-
quer — seguindo perigosamente os seus impulsos. Reflectindo, enquanto
conduzia com destreza o Saab por entre o transito, Bond decidiu que seria
melhor esconder-se num lugar qualquer durante uns dias.
— Se nos vigiarmos mutuamente — disse a Cedar —, e não dermos
nas vistas, em breve descobriremos quais são as verdadeiras intenções de
Bismaquer. Qualquer pessoa com ligações com a ESPECTRO teria agora
um exército de informadores do submundo à nossa procura.
Foi Cedar quem sugeriu Washington.
— Não me refiro nem à área metropolitana nem a Georgetown,
mas sim a um local que fique perto. A saída da auto-estrada principal
existem grandes motéis onde podemos ficar.
A idéia fazia sentido. Logo que chegaram ao ramal, Bond acelerou
o turbo até uma velocidade segura que era o máximo permitido, em se-
guida ligou o controlo de cruzeiro. Alcançaram o Distrito de Columbia por
volta das três da madrugada, ambos atentos a quaisquer perseguidores.
Bond conduziu-os à volta de parte dos viadutos circulares de Capital, de-
pois localizou finalmente a auto-estrada de Anacostia, onde descobriram
uma saída com o letreiro de um motel.
O local escolhido era suficientemente grande para alguém se per-
der durante vários dias — cerca de trinta andares, com um parque de
estacionamento subterrâneo, onde o Saab podia ficar escondido. Preen-
cheram o registro de entrada separadamente, como Miss Carol Lukas e Sr.
John Bergin, e ficaram alojados em quartos contíguos no vigésimo andar,
com varandas das quais se podia ver a faixa verde de Anacostia Park e
o rio. Ao longe, apontou Cedar, podiam apenas vislumbrar as pontes de
Anacostia e da Rua Onze, onde a Doca da Marinha de Washington era
48
uma mancha na paisagem.
Dois dias, calculou Bond. Dois dias escondidos e mantendo os olhos
bem abertos. Então, poderiam dirigir-se para oeste e, usando as suas pa-
lavras, conduzir como um louco.
— Com sorte, chegaremos a Amarillo em quarenta e oito horas.
Paramos uma noite num sítio qualquer, para recuperar energias, e nessa
altura já saberemos se Bismaquer tem alguém a seguir-nos. Caso contrá-
rio...
— Vamos direitos ao covil da fera — Cedar concluiu a frase por ele.
Parecia suficientemente calma acerca do que os aguardava, embora nem
um nem outro conseguisse esquecer o destino dos seus colegas, retirados
mortos e putrefactos dos pântanos da Luisiana.
Na varanda do quarto de Bond, e enquanto a madrugada se abatia
sobre a distante Washington, fizeram os seus planos.
— É altura de alterarmos os nossos disfarces — anunciou Bond.
Estavam registrados no hotel com novos nomes, mas Bond fora vis-
to com aquilo a que ele gostava de chamar “chapéu à Penbrunner”. Agora
que eliminara a cor grisalha dos cabelos, tirara o bigode e os óculos, para
além do cabelo mais ralo, que voltaria a crescer com rapidez suficiente, já
parecia quase o mesmo.
Cedar seria facilmente reconhecida pelos capangas de Bismaquer,
e por isso, durante uma hora, alterou o seu aspecto — um novo pentea-
do, escureceu as sobrancelhas e pôs uns óculos com lentes grossas. Com
estes simples meios, alterou completamente o seu visual.
O problema principal, na perspectiva de Bond, consistia em manter
uma vigilância cuidada aos homens de Bismaquer.
— Seis horas cada um. No átrio principal — decidiu ele. Era a única
maneira. — Procuramos pontos estratégicos e fixamos rostos. Se um ou
todos os elementos desse miserável quarteto aparecer, então tomaremos
as medidas necessárias. Dois dias e acho que estaremos livres deles. —
Tomaram então a decisão final: deixar o motel no final da noite do dia
seguinte. Antes de iniciarem a viagem, Bond abandonaria o seu disfarce e
Cedar voltaria ao seu aspecto normal.
A rotina começou de imediato. Sortearam quem faria o primeiro
turno de guarda. Cedar perdeu e dirigiu-se ao átrio para a vigília de seis
horas.
Antes de descansar, Bond verificou rapidamente a sua bagagem,
cuja peça mais importante era a pasta. As facas estavam de novo nas
aberturas, mas ele retirou uma e prendeu-a ao ante-braço esquerdo an-
49
tes de examinar os restantes artigos contidos na pasta: o estojo de sobre-
vivência pessoal do Sector de Q.
A secção superior continha papéis, um diário e o equipamento
normal de qualquer homem de negócios: máquina de calcular, canetas e
utensílios similares. Na secção inferior, à qual se tinha acesso por meio de
painéis sobre gonzos e deslizantes, Q’gira reunira aquilo a que chamava
material de apoio: uma pequena S&W de cano curto, modelo “Polícia de
Trânsito”, com um cano de quatro polegadas e munições de reserva; uma
série de gazuas de aço endurecido enfiadas num anel, onde também se
encontrava um pé-de-cabra estreito de três polegadas e outras ferramen-
tas miniatura, todas fabricadas segundo as especificações de Q’gira; um
par de luvas de couro acolchoadas; meia dúzia de detonadores guardados
num compartimento bem isolado de um pequeno pedaço de explosivo
plástico e um bocado de rastilho.
A princípio, haviam pensado em juntar um dispositivo electrónico
para detonações, mas no último momento decidiu-se que cerca de doze
metros de corda de nylon de meia polegada, juntamente com alguns gan-
chos miniatura, seriam artigos de maior necessidade. Ainda que a corda
fosse estreita e fácil de esconder, ocupava espaço, não deixando lugar
para qualquer outro equipamento de trepar mais sofisticado. Se necessá-
rio fosse, Bond usaria o mínimo indispensável. Tudo o que se encontrava
dentro do compartimento secreto estava protegido por espuma moldada
e cortada à medida de cada objecto.
Depois de verificar a VP70 e os carregadores extra, 007 estendeu­
-se na cama, caindo rapidamente num sono profundo e revigorante, do
qual foi acordado cinco horas depois pelo telefonema de despertar que
havia pedido.
— São oito horas, a temperatura é de vinte graus e o dia está agra-
dável. Um bom dia para si...
— Obrigado—respondeu Bond e a voz continuou a tagarelar.
— São oito horas e um minuto, a temperatura é de vinte graus e o
dia está agradável. Um bom dia para si...
— Para si também — respondeu Bond à voz computadorizada.
Bond tomou um duche, barbeou-se, vestiu umas calças escuras e
uma das suas camisas de algodão preferidas, e em seguida enfiou um par
de sandálias de sola de corda. Um casaco curto azul-marinho ocultava o
coldre e a VP70 automática. No momento exacto, James Bond substituiu
Cedar no átrio do hotel.
Não falaram; apenas uma troca de olhares e um aceno com a cabe-
50
ça efectivaram a mudança. Em breve Bond descobriu que se podia obser-
var o átrio, tanto de um lugar na cafetaria como do bar.
Naquele primeiro período de vigia — durante o qual 007 comeu
uma grande quantidade de presunto, dois ovos estrelados com batatas
fritas e visitou o bar, onde tomou um vodka-martini — não viu ninguém
mostrar fotografias ao pessoal da recepção, nem apareceu nenhum dos
quatro brutamontes de Nova Iorque.
Assim se passaram as quarenta e oito horas sem o menor vestígio
de qualquer perseguidor. Entre os turnos de vigia, Bond e Cedar viam os
noticiários na TV. Não viram qualquer referência a homens encontrados
amarrados e amordaçados no Hotel Drake em Nova Iorque, nem ao desa-
parecimento do Prof. Penbrunner, da Sra. Penbrunner e das suas gravuras.
Ou Bismaquer conduzia um jogo de paciência ou os seus lacaios
efectuavam uma busca infrutífera.

Nem Bond nem Cedar se aperceberam de que um paquete de olhar


atento reparara nas suas chegadas e saídas pontuais ao átrio do hotel. O
paquete aguardou vinte e quatro horas e, em vez de comunicar o facto à
gerência, fez um telefonema para Nova Iorque.
Durante a chamada foi interrogado intensamente acerca do aspec-
to do homem e da mulher. No outro lado da linha, o homem com quem
falara recostou-se e pensou um pouco. Era um dos muitos agentes in-
cluídos na lista de pagamentos de um grande consórcio, cuja natureza
criminosa desconhecia. No entanto, o que o detective particular sabia era
que o consórcio procurava um homem e uma mulher. As descrições eram
diferentes das que lhe deram, mas com umas pequenas alterações este
casal poderia muito bem ser o mesmo pelo qual era oferecido um bônus
generoso.
Demorou cerca de dez minutos a decidir-se. Por fim, pegou no te-
lefone e discou um número. Quando se ouviu uma voz do outro lado da
linha, o detective particular perguntou:
—Está?! O Mike está aí?

— Ou os despistámos — disse Bond na segunda noite no motel —


ou estarão todos à nossa espera algures na estrada para Amarillo. — Deu
uma dentada numa grande sanduíche de atum, que empurrou com um
gole de água Perrier. Após a sua última vigia, Cedar trouxera comida da
cafetaria. Sanduíches de atum não eram propriamente o estilo de Bond,
mas pareciam ser as favoritas de Cedar. Ela estava muito silenciosa, a pen-
51
tear-se e a voltar à aparência normal.
— Que é que a preocupa? — perguntou Bond, reparando no ar de
preocupação no rosto da rapariga reflectido no espelho.
Demorou bastante a responder. E depois:
—Vai ser muito perigoso, James?
Até agora, Cedar Leiter apenas mostrara sinais de grande profissio-
nalismo.
— Não está a perder a coragem, Cedar? — perguntou.
De novo uma pausa.
— Não, não é bem isso. Mas gostava de saber quais as probabilida-
des. — Afastou-se do espelho e atravessou o quarto até onde ele estava
sentado. — Compreende, James, tudo isto é um pouco irreal para mim.
Claro que tive instrução, muito boa até, mas a instrução sempre me pare-
ceu... bem, um pouco fantástica. Talvez tenha estado demasiado tempo
atrás duma secretária e, pelos vistos, atrás da secretária errada.
Bond riu, não deixando no entanto de sentir uma contracção ner-
vosa no estômago, pois sentia ansiedade quando enfrentava uma ameaça
da ESPECTRO.
— Pode crer, Cedar, que é muito mais perigoso andar pelos corre-
dores do poder. Nunca me sinto bem quando tenho de estar sentado e
assistir a essas reuniões sem fim, a partilhar segredos com os mandarins
de Whitehall (no seu caso os elementos do Estado) ou com os militares.
Em Londres, todas as pessoas do meu Serviço parecem homens sombrios
e sem rosto. Nunca se sabe qual é a nossa posição. Mas no campo repete­-
se a velha história; tem de se ter sangue-frio, ousadia e muita sorte.
Bebeu outro gole de água Perrier.
— Isto é mesmo um sarilho, por duas razões. Primeiro, não temos
uma equipa de apoio adequada, ninguém a quem possamos recorrer.
— E a segunda? — perguntou a rapariga.
— E a pior parte. Se se tratar mesmo da ESPECTRO, então estamos
a enfrentar um inimigo duro e impiedoso. Além disso, nutrem um ódio
pessoal por mim. Matei o seu chefe original, por isso querem vingança;
e quando a ESPECTRO tem sede de vingança não deixa as coisas meio
feitas. Com eles não se pode esperar que as coisas sejam rápidas e sem
dor. Se ficar na mó de cima, a ESPECTRO assegurará que cada um de nós
seja submetido ou a um terror absoluto ou àquilo que os regulamentos
costumavam chamar uma morte dolorosa e demorada. Cedar, se quiser
afastar-se da missão, tem de mo dizer aqui e agora. É uma óptima colega
e gostaria de a ter comigo. Mas se não é capaz... bem, é melhor que nos
52
separemos agora.
Os grandes olhos castanhos de Cedar dissolveram-se num olhar
que Bond identificou como suplicante e perigoso.
— Não, estou consigo até ao fim, James. É claro que estou nervosa,
mas não o vou deixar mal. Cumpriu a sua parte. — Foi a vez de ela rir.
— Admito que, a princípio, estava preocupada. O meu pai fez-me uma
descrição bastante lúgubre de si. Uma ocasião chamou-lhe um espada-
chim libertino. Acho que ainda tem um pouco de espadachim. Quanto ao
libertino, ainda não tive tempo... — Ela aproximou-se, pondo um braço à
volta do seu pescoço.
Bond segurou a sua mão e, com cuidado, afastou o braço. O seu
sorriso tinha um tom de tristeza.
— Não, Cedar. E não pense que não me sinto lisonjeado e tentado.
Seria sensacional. Mas é a filha de um dos meus melhores amigos e de um
dos homens mais corajosos que jamais conheci.
Mesmo assim, numa ocasião e num local diferente, James Bond
sabia que teria levado Cedar para a cama, onde lenta e languidamente
faria amor com ela.
— Vá lá, vamos embora — disse, ouvindo a secura da sua própria
voz. — Quando chegarmos lá abaixo, quero que pague a conta, enquanto
eu vou buscar o carro.
Cedar anuiu, pegando no telefone e avisando a recepção de que
sairiam dentro de quinze minutos.
— Por favor pode preparar as nossas contas? E mande alguém bus-
car a bagagem dentro de dez minutos.
Bond já estava a acabar de fazer as malas.
— Também pode fazer a consulta do mapa — arreganhou os den-
tes. — E para que queremos nós um paquete? Para levar a bagagem para
baixo? Esse é geralmente o trabalho de quem me acompanha.
Baixou-se, mesmo a tempo de evitar uma escova de cabelo que
Cedar lhe atirou à cabeça.
Enquanto Bond e Cedar estavam nisto, uma limusina preta parou
junto à entrada, vinte andares abaixo. Bond teria descrito os ocupantes
com precisão. Ao volante, encontrava-se um homem escuro, bronzeado
e ágil, com um nariz ligeiramente arqueado. A seu lado, estava sentada
uma figura alta e peituda, que vestia um fato escuro e um chapéu de
certo modo fora de moda e de abas largas. Atrás, via-se um homem com
feições de roedor, cuja magreza de rosto não coincidia com os ombros
largos e mãos grandes. Um quarto homem, com um bigode à militar, de
53
quem Bond esperaria que vestisse, com ostentação, roupas caras, não se
encontrava no carro. Esta acção devia-se exclusivamente a Joe e, se Maz­
zard não gostava, que fosse para o inferno. Ninguém fazia pouco de Joe
Bellini e se ficava a rir.
— Façam o que têm a fazer — ordenou Joe Bellini. — Louis e eu
vamo-nos fazer passar por polícias. Está bem?
Joe e Louis saíram do carro, entraram no átrio, atentos a tudo o que
se movia, e dirigiram-se aos empregados da recepção, a quem mostraram
as carteiras de couro que continham distintivos da polícia. Seguiram-se
algumas perguntas sucintas e mostraram fotografias para identificação.
Dois dos empregados identificaram rapidamente o Prof. Penbrun-
ner e a Sra. Penbrunner, indicando o número dos seus quartos e o facto
de se terem registrado com nomes diferentes.
— Passa-se alguma coisa? — perguntou uma das raparigas, pare-
cendo preocupada.
Bellini fez-lhe um sorriso deslumbrante.
— Nada de grave, querida. Ninguém tem de ficar preocupado. Ape-
nas temos de tomar conta deles. O professor é um homem importante.
Vamos manter-nos afastados e ser discretos. — Continuou, dizendo que
tinha outro homem lá fora, no carro, e que ficaria muito agradecido se os
seus homens pudessem inspeccionar o local, apenas por precaução.
Não haveria qualquer problema. Os recepcionistas comunicariam
ao gerente de serviço. Havia mais alguma coisa que pudessem fazer para
ajudar? Sim, havia. Joe Bellini fez-lhes, de chofre, mais uma dúzia de per-
guntas e, em menos de cinco minutos, obteve todas as respostas preten-
didas.
De novo no carro, Bellini recapitulou o plano uma vez mais.
— Chegamos mesmo a tempo — disse a Kid, que se encontrava ao
volante. — Vão sair dentro de minutos. Tens os intercomunicadores?
A sua orelha latejou por debaixo do emplastro limpo e fresco. No
hospital tinham-lhe feito o melhor que sabiam, embora existisse o receio
de que não sarasse, pois Joe deixara passar bastante tempo até receber
os cuidados necessários. A sua mão continuava a mexer na ferida, en-
quanto instruía Kid para observar os elevadores, os quais felizmente es-
tavam agrupados e podiam ser facilmente vistos dum ponto estratégico
escondido no vigésimo andar. Não havia escadas nas traseiras, por isso ou
se saía por ali ou pela saída de emergência.
— Louis e eu estaremos no complexo de manutenção por debaixo
do edifício. Não se deixem ver e não os deixem escapar. Usem o interco-
54
municador. Perceberam?
Joe Bellini, com Louis à espera, apertando um potente intercomu-
nicador, saiu de novo da limusina e entrou no edifício. Kid estacionou o
carro e seguiu os dois.
Tendo recebido instruções precisas do pessoal ansioso por coope-
rar com a polícia, Joe e Louis desceram os quatro lances de degraus de
cimento até ao complexo situado na cave, de onde eram controlados a
electricidade, o aquecimento, o ar condicionado e os elevadores.
O engenheiro de serviço era um jovem esperto, de rosto fresco,
que pareceu admirado quando viu entrar os dois estranhos e que ficou
ainda mais admirado quando mergulhou na inconsciência após Louis lhe
ter aplicado um golpe com a mão direita.
Bellini trabalhou com rapidez, verificando os vários grupos de ins-
trumentos e interruptores que controlavam o normal funcionamento
do hotel, parecendo-lhe que estava na sala das máquinas de um transa-
tlântico. Demorou dois minutos a encontrar a secção que controlava os
elevadores. Retirando do bolso uma pequena caixa oblonga, localizou as
secções em que precisava de trabalhar e abriu a caixa, deixando ver um
conjunto de chaves de fendas.
Cada um dos quatro elevadores era accionado por um grupo de
controlos distinto, e os próprios elevadores eram cabinas normais, pu-
xadas electricamente com um sistema suplementar para cada unidade:
gerador, motor, interruptores de limite final, contrapesos, tambor e rol-
danas suplementares, além dos habituais dispositivos de segurança, des-
tinados a cortar a energia e a aplicar travões que pareciam garras. Cada
componente eléctrico possuía três fusíveis, por isso era mínima a possibi-
lidade de todos falharem num elevador.
Cuidadosamente, Joe Bellini começou a desenroscar as caixas de
fusíveis de cada cabina de elevador. Enquanto o fazia, Louis aplicou uma
forte torquês nos selos de metal espesso das quatro alavancas com o
dístico “PARA SOLTAR O TAMBOR PERIGO!” por cima do conjunto de
instrumentos e fusíveis. As alavancas que soltavam os tambores destra-
varam os reguladores de velocidade que controlavam os tambores que
enrolavam e desenrolavam os cabos principais do elevador. Depois de
desbravado, um tambor ficava a girar livremente. Só os engenheiros de
manutenção precisavam de soltar os tambores deste modo, e mesmo só
quando a cabina em questão estivesse isolada e colocada no fundo da
caixa e encostada à mola especial.
Soltar o tambor com a cabina em movimento, representaria morte
55
certa para os ocupantes, se não fossem os dispositivos de segurança e
seus apoios.
Seis minutos depois, os quatro elevadores corriam grave perigo.
As caixas dos fusíveis estavam desaparafusadas, os fusíveis à vista e ao
alcance de Bellini, e as alavancas para soltar os tambores podiam ser em-
purradas a todo o momento.
Recuando para observar o seu trabalho, ouviram de repente uma
voz familiar e nítida no intercomunicador.
— Céus — sussurrava Kid com urgência para o aparelho —, chegá-
mos mesmo a tempo. Saíram do quarto. A bagagem já desceu. Vêm aí. E
ela, não há dúvida. Ele parece diferente, mas é ele. São eles, Joe.
No vigésimo andar, Cedar, e Bond de pasta na mão, caminhavam
despreocupadamente em direcção aos elevadores. O hall do elevador es-
tava decorado com grande plantas frondosas. Bond, agora de costas para
as plantas, premiu o botão de descida.
Na cave, diante dos fusíveis a descoberto, Joe Bellini esperava, com
a chave de parafusos na mão, enquanto o braço direito de Louis pairava
sobre as quatro alavancas de soltar os tambores. A terceira cabina parou
no vigésimo andar. Com um sorriso, Bond deixou Cedar entrar, seguindo-a
depois. As portas fecharam-se silenciosamente, e James Bond carregou
no botão para o átrio.
Ao fazê-lo, a voz de Kid ecoou pela sala de manutenção, lá em bai-
xo.
— Cabina três! Meteram-se na cabina três!
Joe Bellini arrancou rapidamente todos os fusíveis da caixa que
controlava a cabina três. Ao mesmo tempo, Louis fez descer a alavanca de
soltar o tambor da mesma cabina.
Bond sorriu para Cedar.
—Aqui vamos nós, então. Rumo ao Oeste.
— Os carros rolam... — As palavras de Cedar ficaram a meio quan-
do as luzes se apagaram e ambos foram atirados para o lado. A cabina do
elevador deu uma guinada e em seguida começou a cair pela conduta a
uma velocidade doentia e crescente.

9
QUANDO AS COISAS COMEÇAM A AQUECER

Cedar abriu a boca para gritar, mas não emitiu qualquer som, con-

56
torcendo apenas o rosto numa careta de terror. Bond, mal a vendo na
escuridão, não chegou a saber se o som fora abafado pelos barulhos hor-
ríveis do elevador que caía, inclinando-se e batendo contra os lados da
caixa.
No entanto, durante aqueles segundos, Bond teve a sensação de
estar a ouvi-la — um horrível grito de terror, que parecia ir diminuindo de
intensidade, como se ele não estivesse junto dela, mas ainda ao cimo da
caixa do elevador. Era uma experiência estranha, como se metade do seu
espírito permanecesse desligado.
— Segure-se! — O grito de Bond perdeu-se no meio do estrondo
cacofónico do metal e da madeira, combinado com um ruído semelhante
ao do vento e com a pressão nos ouvidos. Quando a cabina iniciara a que-
da, tinha a palma da mão frouxamente apoiada sobre um dos varões que
estavam presos ao longo de três lados da cabina. Foi por puro reflexo que
apertou os dedos ao primeiro solavanco, antes de a longa queda começar.
Uma imagem da cabina, estilhaçada em pedaços irreconhecíveis no
fundo da caixa, piscava intermitentemente no espírito de Bond.
Desde o vigésimo andar, com uma velocidade crescente, passaram
pelo décimo quinto... décimo quarto... décimo terceiro... décimo segun-
do... décimo primeiro... inconscientes da sua posição na caixa, sabendo
apenas qual o horror final que em breve os esperava.
Então, com uma sucessão de estrondos e estremeções, causados
pelo matraquear das partes laterais contra o metal, o milagre aconteceu.
Lá em baixo, no complexo de manutenção, Bellini e Louis já haviam
começado a fugir. A sua fuga seria fácil no meio do pânico que se seguiria,
a qualquer momento, quando a cabina se desintegrasse contra a enorme
mola no fundo da caixa. Porém, Joe Bellini não podia saber que os ele-
vadores do motel haviam sido construídos com um esquema antigo de
segurança extra, que não dependia de complicada electrónica.
Ao longo de toda a caixa havia dois cabos metálicos, cujo uso não
era afectado pela perda de energia. Estas cordas grossíssimas eram enfia-
das frouxamente através dos ganchos dos travões de segurança, debaixo
do próprio elevador. A própria acção da cabina numa descida desenfrea-
da fazia esticar os cabos, exercendo pressão para dentro, resultando na
activação de dois dos ganchos, um de cada lado na frente da cabina do
elevador.
Nos primeiros segundos do mergulho, um destes dispositivos auto-
máticos de “último recurso”, na parte direita da cabina, fora despedaçado
pelo raspar do metal contra metal. O cabo do lado esquerdo aguentou­-
57
se, fazendo lentamente uma pressão para dentro. Finalmente, quando
passavam pelo décimo primeiro andar, o travão de segurança estalou, e
o gancho saiu automaticamente. Como uma mão humana tentando de-
sesperadamente agarrar-se a alguma coisa, o travão metálico atingiu um
dos dentes da calha, soltou-se, bateu num segundo, depois num terceiro.
Dentro da cabina, houve uma sucessão de pancadas ecoantes e vi-
brantes. Toda a plataforma se inclinou para a direita, e cada sacudidela
parecia abrandar a queda. Então, ao som do rasgar da madeira e metal,
a cabina inclinou-se completamente para a direita. Bond e Cedar, ambos
tentando agarrar-se ao corrimão, tiveram consciência de uma parte do
tecto a ser despedaçada, do rasgar provocado pelo abrandar, e em segui-
da da paragem final de quase quebrar os ossos, que fez soltar-se a parte
dianteira do chão.
A mão de Cedar soltou-se.
Desta vez Bond ouviu o seu grito, e mesmo na obscuridade aliviada
pela luz que entrava através do tecto estilhaçado, viu Cedar escorregar
para a frente, e as pernas a desaparecerem pela parte dianteira do chão.
Continuando a agarrar firmemente o corrimão, lançou-se para fora,
conseguindo apanhá-la por um pulso, ainda que inseguramente.
— Aguente-se. Tente agarrar-se a alguma coisa. — Bond pensou
que estava a falar com calma, até ouvir o eco da sua voz perturbada. In-
clinou-se o máximo possível para a frente, deixando por um segundo de
agarrar o corrimão, e então apertou com força o pulso de Cedar.
Todo o elevador rangia debaixo deles, e o chão vergava como um
bocado de cartão, de tal maneira que era visível quase toda a caixa lá por
baixo. Lentamente, encorajando-a, incitando-a a tentar agarrar-lhe o bra-
ço com a outra mão, Bond começou a puxar Cedar para dentro da cabina.
Ainda que não fosse muito robusta, Cedar Leiter parecia-lhe agora
pesar uma tonelada. Centímetro a centímetro, puxou-a de novo para den-
tro da cabina. Os dois juntos equilibravam-se precariamente, quase em
bicos de pés, agarrando-se ao corrimão.
Era impossível dizer quanto tempo a cabina se conseguiria manter
assim, precariamente comprimida na caixa. Bond podia apenas garantir
uma coisa: a não ser que algum peso fosse retirado, as hipóteses diminu-
íam a cada minuto que passava.
— Como é que eles vão...? — começou Cedar em voz baixa.
— Não sei se eles conseguem. — Bond olhou para baixo. Milagrosa-
mente, viu que a sua pasta ainda ali estava, presa entre os pés. Movendo­-
se com cuidado, parando após cada mudança de posição, estendeu a mão
58
para baixo para alcançar a pasta.
Mesmo esta simples acção provou a urgência da situação, pois
cada mudança de postura fazia com que a cabina rangesse, balouçasse
e chiasse.
Calmamente, explicou o que tencionava fazer. Equilibrando a pasta
contra o corrimão, Bond abriu os fechos. Com cuidado, tacteou dentro
dos compartimentos escondidos, à procura da corda de nylon, das luvas,
do conjunto de gazuas e ferramentas e de um dos pequenos ganchos.
Os ganchos suportariam imenso peso. Na posição de fechados e
guardados, cada um deles media cerca de dezessete centímetros de com-
primento, mais ou menos, oito de largura, e apenas cerca de cinco centí-
metros de espessura. Foram necessários três movimentos para abrir um
deles, que depois de aberto formava um círculo de cerca de oito garras
todas presas a uma firme base de aço.
Com as luvas calçadas, as ferramentas e gazuas penduradas no
cinto por uma correia e mola, e a corda enrolada sobre um braço, Bond
fechou a pasta. Entregou-a a Cedar, dizendo-lhe que não a largasse por
nada deste mundo, e em seguida, prendeu ao gancho a corda de nylon.
Inclinou-se para a frente, uma mão ainda no varão, para espreitar
para baixo através do chão despedaçado. Os lados da caixa eram perfeita-
mente visíveis, assim como a grelha de vigas metálicas.
Pegando num bocado de corda e enrolando-a na mão esquerda,
Bond deixou cair o gancho através da abertura que formava a parte da
frente do chão. Foram precisas três ou quatro sacudidelas à corda, antes
de o gancho se prender no lugar certo à volta de uma das vigas de reforço,
cerca de metro e meio abaixo da cabina. Com cuidado, Bond arreou a cor-
da, tentando calcular o comprimento exacto da corda que seria preciso,
para ficar a salvo da cabina e para baixo do gancho.
Teria de cair na vertical, para que o gancho não saísse do lugar, mas
se resultasse poderia então servir-se das calhas do elevador e das vigas
transversais, para trepar de novo para lá.
Bond explicou todo o plano a Cedar, tentando dar-lhe o máximo
de pormenores. Então, com um sorriso e um piscar de olho, segurou a
corda, enrolou-a à sua volta na simples e velha posição de rappel — com
a corda passando simplesmente sob o braço direito, continuando pelas
costas abaixo e por entre as pernas, e depois subindo de novo para a mão
esquerda por baixo do braço. Não havia tempo para métodos de seguran-
ça improvisada ou para técnicas de corda dupla.
Lentamente, deixou-se deslizar para a frente, sentindo a cabina a
59
mover-se e a estremecer, à medida que o seu peso se deslocava. Era agora
ou nunca. Então, quando se aproximava da abertura final, toda a cabi-
na começou a vibrar. Seguiu-se um ruído áspero, como se o metal que o
segurava fosse ceder a qualquer momento. De repente, estava livre da
cabina e a cair, tentando controlar a queda, mantendo o corpo direito e
tão próximo da parede da caixa quanto ousava. As vibrações metálicas
do elevador pareciam rodeá-lo, e a queda nunca mais acabava, até que a
súbita sacudidela da corda se fez sentir nas suas costas, braços e pernas.
Como Bond receara, o peso da queda fez esticar a corda de nylon.
Em seguida, a tensão aliviou-se e sentiu-se a subir de novo como um ioiô.
Não era preciso mais do que um balanço mais forte da corda para cima,
para que o gancho se soltasse.
Todo enrolado, e quase não acreditando, Bond deu consigo pendu-
rado, baloiçando com força contra a parede de cimento e vigas. A corda
enfiou-se mais no seu corpo. Bond sentiu os músculos a protestar, en-
quanto os pulsos e mãos lutavam para se aguentar.
Gradualmente, conseguiu focar o pequeno mundo fechado à sua
volta: cimento sujo, vigas com vestígios de ferrugem, óleo e, lá em baixo,
a caverna escura que parecia descer em direcção ao inferno.
Tinha agora os pés firmemente apoiados contra a parede e con-
seguiu olhar para cima. A cabina estava entalada na conduta, mas não
se sabia por quanto tempo. A secção superior de madeira abrira já uma
enorme fenda. Era apenas uma questão de tempo até que a fenda se
alargasse e acabasse por se dividir e ceder. A cabina cairia então pesada-
mente para um lado.
Teriam um fim horrível, se isso acontecesse. Porém, Bond tinha a
certeza de que seria bem à maneira da ESPECTRO.
Respirou fundo e chamou Cedar.
— Daqui a um minuto estou aí para a ir buscar. — Afastando-se da
parede com um impulso dos pés, deixou que a corda deslizasse por entre
as mãos, até quase tocar na viga mais próxima. Quando as solas de corda
dos sapatos bateram no metal, Bond agarrou bem a corda, apoiando-se
na grande calha oleada.
A rede de vigas era razoavelmente fácil de subir, e Bond trepou com
rapidez, mantendo a corda firmemente enrolada à sua volta, até alcançar
o gancho. Aí, parou até recuperar o fôlego, ouvindo a cabina ressoar devi-
do à brisa que subia pelo túnel da caixa. Vagamente, no meio do chiar dos
ruídos metálicos, pareceu--lhe ouvir outros sons — gritos e um martelar
regular.
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O chão vergado da cabina estava a cerca de metro e meio da sua
cabeça. Soltando o gancho, trepou um pouco mais, encontrando final-
mente um lugar apropriado entre as vigas para tornar a fixá-lo, desta vez
a menos de meio metro por baixo da cabina.
Voltando o corpo de modo a poder encostar as costas à parede,
Bond tornou a gritar para Cedar, dando-lhe as ordens num tom de voz
destinado a obter obediência imediata.
— Vou atirar a corda aí para dentro. Ate a pasta e depois deixe-a
descer lentamente. Mas não perca a corda. Segure-a até eu dizer.
Nesta altura já puxara para cima toda a parte da corda, que pendia
como uma cobra pela conduta, até quase se perder de vista. Segurando­
-se às vigas com uma mão, Bond enrolou alguns centímetros de corda à
volta da outra. Então, com um grito de “Pronta?”, e depois da resposta
afirmativa de Cedar, apontou o novelo de corda para a abertura do chão
da cabina.
O novelo de corda voou como uma seta. Durante um ou dois se-
gundos viu que corda lançada pela abertura deslizava de novo para fora.
Então parou, e ouviu-se a voz filtrada de Cedar.
—Apanhei-a.
Cerca de um minuto depois, a pasta, agora atada à extremidade da
corda, descia lentamente na sua direcção.
Cedar foi soltando a corda até Bond lhe gritar para parar. Com di-
ficuldade, estendeu as mãos, agarrou a pasta, e equilibrando-se sobre a
viga, desfez o nó. Prendeu um dos fechos metálicos da pasta ao gancho do
cinto. Então gritou a Cedar que puxasse a corda e a agarrasse bem.
— Enrole-a à volta dos pulsos e dos ombros, se quiser — gritou. —
Depois desça daí. São cerca de dez metros até ao próximo andar e portan-
to até às próximas portas. Se conseguirmos lá chegar, teremos um apoio
seguro, e eu tentarei abrir o raio das portas. Desça quando estiver pronta.
Ela desceu depressa. Demasiado depressa. Bond viu as suas pernas
a aparecer, e a corda a passar por ele. Então sentiu a pancada, quando o
ombro dela o atingia.
Teve consciência do gancho a aguentar o esforço e da cabina a des-
locar-se sobre a sua cabeça. Mas nesta altura já perdera o equilíbrio, e
tentava agarrar-se à corda que oscilava à sua frente.
Apertou as mãos em volta da corda de nylon, e ficaram ambos a ba-
loiçar suavemente, um por cima do outro, batendo nas paredes da caixa.
— Vamos descer um de cada vez — disse, com falta de ar. — É só ir
descendo até à plataforma do andar seguinte. A corda deve dar mesmo
61
à justa.
Ouviu-se a voz de Cedar, excitada e sem fôlego.
— Só espero que aguente com o nosso peso.
— Agüenta, não há problema. Lembre-se apenas de se segurar
bem.
— Acha mesmo que me ia esquecer disso? — gritou ela, ao mesmo
tempo que começava a descer, mão após mão e com a corda enrolada à
volta dos tornozelos.
Bond seguiu o exemplo de Cedar, tentando imitar o seu ritmo, de
modo a reduzir o balanço da corda. Já estava suficientemente magoado
das pancadas que dera contra as vigas. Por fim, viu por baixo de si que
Cedar já lá chegara, e que estava de pé sobre a plataforma estreita, se-
gurando ainda a corda com ambas as mãos, os pés afastados e o corpo
inclinado para a frente.
Estava a gritar-lhe qualquer coisa.
— Está alguém do outro lado das portas — ouviu-a gritar. — Disse­-
lhes que estamos aqui.
Acenando afirmativamente, Bond continuou a descida, até sentir
que os pés tocavam na plataforma. No mesmo momento, ouviu-se um si-
bilar e as portas abriram-se. Um comandante dos bombeiros e outros três
homens de uniforme e capacete afastaram-se para o lado, boquiabertos,
quando Cedar e Bond entraram para o corredor.
— Ah, os bombeiros vieram fazer uma visita — disse Bond. Depois
cambaleou, sentindo a tensão tomar conta de si. Cedar agarrou-lhe o bra-
ço e ele respirou fundo.
Os bombeiros e o pessoal do hotel juntaram-se à sua volta. Bond
vez sinal a um médico que não precisava dele e pediu que o levassem
imediatamente para baixo.
—Temos de apanhar um avião—acrescentou.
No caminho, sussurrou algumas instruções a Cedar.
— Pague a conta, e tente obter o máximo de informações. Depois,
escape-se e vá ter comigo ao Saab. Não estamos interessados em muitas
perguntas, e muito menos em câmaras.
Ela anuiu em silêncio, e quando chegaram no átrio cheio de gente e
barulho, Bond desapareceu. Nem mesmo Cedar o viu ir-se embora,
— Um dos meus truques para desaparecer — disse-lhe mais tarde.
— E fácil, quando se sabe como.
De facto era relativamente fácil. Bond baseava-se sempre no prin-
cípio de que, no meio de uma multidão confusa e insegura, a única coisa
62
a fazer era ser decidido: um movimento determinado, numa direcção de-
finida, assumindo o ar de um homem que sabe precisamente para onde
vai e porquê. Resultava nove em cada dez vezes.
No parque de estacionamento subterrâneo, Bond não se dirigiu di-
rectamente para o Saab; ficou à espera, escondido atrás de outro carro,
mesmo em frente. Passou-se mais de meia hora até Cedar aparecer, vinda
a correr do elevador de serviço.
Bond saiu do esconderijo logo que viu que ela estava só.
— Disse-lhes que tinha de ir à casa de banho — disse Cedar. —
Também querem falar consigo. Perguntas e mais perguntas. Temos que
nos despachar.
Daí a segundos estavam dentro do Saab, e alguns minutos depois
já estavam lá fora, com o motor do carro a rugir pela Anacostia Freeway.
— Você é o navegador — disse-lhe Bond. — Vamos para Amarillo,
Texas.
Enquanto o instruía, Cedar transmitiu-lhe todas as informações
que recolhera.
— Não há dúvida que se tratava dos nossos amigos de Nova Iorque
— disse. — Tenho as descrições deles. — Continuou a explicar como eles
haviam fingido ser detectives, pedindo instruções sobre o complexo de
manutenção, e como o homem de serviço fora encontrado inconsciente.
— Parece que avariaram os controlos de todos os elevadores — acrescen-
tou. — Apanhavam-nos, fosse qual fosse o que usássemos.
Bond fez um sorriso sombrio.
— Eu bem lhe disse. Quando a ESPECTRO quer matar alguém, não
gosta de o fazer de uma maneira limpa. Bem, pelo menos sabemos o que
precisamos de saber. Primeiro Bismaquer queria ter-nos como hóspedes,
depois tentou mandar matar -nos. Dá-me a impressão que vai ter de con-
tentar-se com a primeira opção.
Ao proferir estas palavras, o choque atrasado apoderou-se de si.
Abrandou ligeiramente, e após um minuto ou dois a reacção passou. Res-
pirando fundo, deitou um olhar a Cedar.
— Vamos ter de parar no caminho para comprar nova bagagem.
Pelo menos temos o essencial, incluindo as gravuras. — As gravuras ha-
viam ficado escondidas num dos muitos compartimentos do Saab. — Por
isso, minha querida Cedar... — sorria de novo. Depois relaxou e a sua boca
retomou a linha dura e cruel —... por isso agora é que as coisas começam
a aquecer.

63
10
A ESTRADA PARA AMARILLO

Durante a noite seguiram a uma velocidade regular, de madrugada


passaram perto de Pittsburgh, prosseguindo de novo para oeste. O Saab,
com o controlo de cruzeiro ligado, devorava quilômetros e, durante aque-
le primeiro longo dia, pararam apenas para tomar uma refeição ligeira e
meter gasolina. O carro, afinado na perfeição antes de ser transportado
de avião para a América, rodava sobre as largas auto-estradas de quatro
faixas como um jacto à solta.
Um pouco antes de anoitecer já haviam chegado até perto de
Springfield, Missuri. Bond saiu da auto-estrada e conduziu o carro até um
pequeno motel, onde ficaram registrados em cabinas separadas, Cedar
como Sra. Penbrunner e Bond usando o seu próprio nome.
Já antes do incidente com o elevador, Bond explicara a Cedar a sua
táctica.
— Mesmo que Bismaquer não conheça a minha verdadeira identi-
dade, tenho de lá entrar assumindo-me como eu próprio.
Cedar estava preocupada.
— Não estará a abusar da nossa sorte, James? Já me disse que a
ESPECTRO tem por si um ódio especial. Por que não continuar no papel
de Penbrunner enquanto for possível?
Bond abanou a cabeça.
— Não vai enganá-los durante muito tempo, se é que os enganou
até agora, o que duvido. Mas você não é conhecida. A Sra. Penbrunner
passará provavelmente, e poderemos ter alguma vantagem em fazê-los
crer que estou aqui para tomar conta de si.
Continuava ainda preocupada quando chegaram ao motel.
— Está a constituir-se em alvo. Será que isso não o preocupa?
— Claro que sim, mas já o fiz antes. De qualquer modo, Cedar, acre-
dita mesmo que o grande Markus Bismaquer se daria o trabalho de nos
eliminar dentro de um elevador se não soubesse que se tratava da mi-
nha pessoa? Pense nisso. Primeiro, aparece o quarteto medonho com um
convite; Bismaquer solicita o prazer de ver as gravuras de Hogarth, antes
de qualquer outra pessoa. Em seguida, nós conseguimos desaparecer.
Agindo como era de esperar, quer dizer, usando os velhos métodos da ES-
PECTRO, conseguem localizar-nos perto de Washington e sem o auxílio de
qualquer departamento policial. Pense nisso, Cedar, e verá como eles são

64
eficientes. Sempre o foram. Por isso, encontram-nos e tentam aplicar-nos
a tal viagem rápida de elevador. Nada de delicadezas acerca das gravuras
de Hogarth. Apenas a morte, súbita, e um modo muito feio de morrer.
Ela acenou afirmativamente.
— Acho que tem razão. Mas ainda me parece uma loucura a idéia
de aparecermos no Famoso Rancho de Bismaquer...
— Não é a primeira vez que um cordeiro encurralado consegue
apanhar um lobo.
— E os cordeiros acabam muitas vezes no altar dos sacrifícios —
contrapôs Cedar. — Com as goelas cortadas.
— Azar o nosso, cordeiros. — Bond fez um sorriso sardónico. —
Lembre-se, Cedar, de que também dispomos das nossas armas. O facto é
que não tenho qualquer alternativa. A nossa missão consiste em desco-
brir se Markus Bismaquer está a dirigir tudo isto; se se trata realmente da
ESPECTRO reconstruida; e, o mais importante, o que estão a tramar. Nós
somos intrometidos, tal como os outros. Eles ficaram feitos em postas.
Porquê?
A conversa prosseguiu, nos quartos e de novo no carro quando
se dirigiram a Springfield para se reabastecerem e ainda à mesa de um
pequeno restaurante, onde Bond referiu que a tarte de galinha era uma
das melhores que alguma vez comera e Cedar insistiu que deveria experi-
mentar a maçã Jonathan, uma deliciosa mistura de maçãs verdes, natas,
xarope e ovos.
De volta ao motel, desembrulharam os pacotes, encheram as ma-
las de viagem recém-compradas e combinaram uma série de sinais, no
caso de surgir alguma complicação durante a noite.
Em seguida, Bond inspeccionou o motel e redondezas, dando aten-
ção especial aos automóveis estacionados. Satisfeito, regressou à sua ca-
bina, preparou um novo par de jeans, uma camisa, um par de botas e
um blusão. Depois, gozou as delícias de um duche — primeiro quente a
escaldar, seguido de água gelada. Refrescado, pôs a VP70 debaixo da al-
mofada, colocou uma cadeira encostada à porta e fechou as janelas antes
de se deitar.
Adormeceu quase no mesmo instante em que a sua cabeça tocou
na almofada. Já há muito que aprendera a arte de descansar, deixando
que os problemas e ansiedades desaparecessem do seu espírito, nunca
caindo, no entanto, num sono verdadeiramente profundo enquanto de-
sempenhava uma missão. Era óbvio que dormia, mas o seu subconsciente
continuava activo, preparado para o despertar instantaneamente.
65
A noite passou sem incidentes, excepção feita a um sonho momen-
tâneo, mesmo antes de acordar, em que a cabina do elevador se trans-
formava numa espécie de satélite espacial. O sonho iria ficar registrado
no espírito de Bond e, mais tarde, interrogou-se se fora uma estranha
premonição.
Por volta do meio-dia do dia seguinte já haviam passado por
Oklahoma City. O Saab, fresco devido ao ar condicionado interior, guin-
chou, graças à alta potência do seu turbo, ao longo do infindável solo
plano de pradaria e deserto que conduzia até à orla das Grandes Planícies
e à faixa estreita do Texas.
Uma vez mais, pararam o menos possível e por volta das nove da
noite atravessaram Amarillo, contornando a cidade de modo a entrar pela
parte oeste, partindo do princípio de que possíveis vigias procurariam o
Saab ao longo das estradas de acesso leste.
Tal como anteriormente, escolheram um motel pequeno e obscu-
ro. Saíram do carro e o calor atingiu-os como se estivessem dentro de um
alto-forno. Já começara a anoitecer, as luzes acendiam-se e as cigarras
cantavam a mesma ária por entre as árvores e a relva seca. Homens e
mulheres vestiam jeans, botas e stetsons de abas largas. Chocado, Bond
apercebeu-se de que tinham mesmo chegado ao Oeste.
O gerente conduziu-os lentamente a um bloco contíguo de quartos,
disse que havia um saloon e um restaurante do outro lado da rua se não
quisessem servir-se da cafetaria do motel, e depois deixou-os entregues
aos seus planos.
— Bem, Cedar, e que tal se comêssemos? —perguntou Bond.
A comida provou ser a melhor tijela de chili que cada um comera
de há muito. Mas Cedar parecia nervosa quando se despediram à porta
do seu quarto e Bond, apercebendo-se da sua ansiedade, disse-lhe que
não se preocupasse.
— Lembre-se de tudo o que lhe ensinaram — disse — e de tudo o
que fizemos juntos. Se conseguirmos o que pretendemos, basta que um
de nós se safe. Um de nós avisa os seus contextos, os meus ou ambos. Es-
tamos os dois metidos nisto, Cedar. A nossa missão consiste em investigá­
-los, obter provas e, se estão a tramar alguma coisa suja, detê-los. Não se
esqueça, às seis da manhã.
Ela mordeu o lábio, acenando afirmativamente.
— Está tudo bem, não está? — Bond procurou uma pista nos seus
olhos.
Ela suspirou profundamente.
66
— Claro que não, e você sabe-o — sorriu, esticando-se para o bei-
jar no queixo. — E tem razão. Carradas de razão. E embora não possa
ser, gostaria que o meu pai estivesse aqui. Ele adoraria trabalhar de novo
consigo.
— Deixe-se de sentimentalismos, Cedar. É tão boa como o seu pai
e tenho a sensação de que vai demonstrá-lo dentro em breve. Agora, va-
mos dormir.
Bond estendeu-se na cama, vestido, com a automática junto a si.
Dormitou, adormeceu e acordou de um salto quando a chamada de des-
pertar tocou às cinco e meia.
Depois de tomar um duche, de se barbear e vestir, Bond estava
pronto para receber Cedar, que entrou no seu quarto com um tabuleiro
com um frasco de café e waffles quentes com xarope. Explicou que a cafe-
taria estava aberta vinte e quatro horas por dia. Às seis em ponto, Bond,
sentado na cama e bebendo pequenos goles de café, discou o número
que havia surripiado a Mike Mazzard em Nova Iorque.
O telefone tocou durante quase trinta segundos. Atendeu-o uma
voz masculina, embora Bond demorasse um instante a perceber que era
um homem que se encontrava do outro lado, pois a voz era fina, aguda,
estridente e com tendência para desafinar.
—Rancho Bismaquer.
— Ligue-me a Markus Bismaquer. — Nada de “por favor” ou outras
delicadezas.
—Acho que ainda está a dormir. Só se levanta às seis e meia.
— Então vá acordá-lo. Isto é muito importante. Fez-se uma pausa
demorada. E depois:
— Quem quer falar-lhe?
— Diga-lhe apenas que represento o Prof. Penbrunner. Tenho comi-
go a Sra. Pembrunner e estou ansioso por falar com Bismaquer.
Novo silêncio.
—Disse que o seu nome era...?
— Não disse. Apenas represento o professor, mas se quiser dizer a
Bismaquer... e nós temos muito que conversar... pode dizer-lhe que o meu
nome é Bond. James Bond.
007 não estava seguro, mas pareceu-lhe detectar uma ligeira para-
gem de respiração do outro lado da linha. Obviamente, a resposta chegou
rápida como uma bala.
— Vou acordá-lo imediatamente, Sr. Bond. Se representa o Prof.
Penbrunner, tenho a certeza de que ele vai querer ser informado.
67
Seguiu-se uma longa espera. E depois ouviu-se outra voz na linha:
macia, delicadamente arrastada e amigável, com um riso profundo e
agradável.
—Markus Bismaquer.
Bond acenou afirmativamente para Cedar.
— O meu nome é Bond, Sr. Bismaquer. A Sra. Penbrunner está aqui
comigo. Tenho poderes para representar legalmente o Prof. Penbrunner
o qual, segundo penso, desejaria conhecer.
— Exactamente. Sr. ... ah... Bond, não foi o que disse? Sim, sim,
convidei o Prof. Penbrunner e a Sra. Penbrunner a deslocarem-se até aqui
no meu jacto particular. Acho que não lhes conveio. Deixe-me colocar-lhe
a grande questão. Tem os Hogarth consigo?
—A Sra. Penbrunner e as gravuras. Ambas.
— Ah! E a competência legal? O que significa que podemos fazer
negócio.
— Se é mesmo isso que pretende, Sr. Bismaquer.
Bismaquer soltou uma risada.
— Se as gravuras são as mesmas que têm recebido tantos elogios,
isso é a única coisa que pretendo. Onde é que se encontra?
—Amarillo — respondeu Bond rapidamente.
— Num hotel? Permita que mande aí Walter, Walter Luxor, o meu
sócio, para o ir buscar...
— Dê-me apenas instruções. Tenho carro e um bom sentido de
orientação.
— Compreendo. Sim, sim. Está bem, Sr. Bond... — A voz profunda
deu instruções simples para sair de Amarillo, e outras ligeiramente mais
complicadas quanto ao ponto em que tinham de sair da auto-estrada e
seguir por estradas secundárias até à estação de monocarril.
— Se lá conseguir estar às dez, providenciarei para que o comboio
esteja à sua espera. Tem uma secção para automóveis. Deve trazer o seu
até ao rancho. — Nova risada. — Vai precisar dele para se deslocar cá
dentro.
— Estaremos aí às dez em ponto. — Bond desligou e voltou-se para
Cedar. — Bem, Sra. Penbrunner, ele pareceu-me muito descontraído.
Apanhamos o monocarril às dez. Está a puxar o jogo para o seu campo.
Pareceu-me um cavalheiro muito sereno. — Acrescentou que estaria à
nossa espera o sócio de Bismaquer, um tal Walter Luxor. — Sabe alguma
coisa a seu respeito?
Cedar disse que havia uma ficha. Parecia ser um bobo inocente e
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deveria ser ainda rapaz, quando Bismaquer o colocou no velho negócio
dos gelados.
— Tem estado com ele desde então. Não sabemos muito a seu res-
peito. Na verdade, é uma espécie de secretário glorificado, embora Bis-
maquer lhe chame sempre o seu sócio.
Por volta das nove e quinze estavam de novo na estrada. Cedar
seguia as instruções que Bond rabiscara durante a conversa com Bisma-
quer. Oito quilômetros depois da saída da cidade, alcançaram o desvio.
Também repararam que eram seguidos.
Na neblina dourada surgida com o sol, Bond e Cedar podiam distin-
guir com nitidez o BMW 528i preto, que os seguia a uma distância confor-
tável, e os dois homens não identificáveis sentados no banco da frente.
— Guarda de honra? — perguntou Bond em voz alta. Pensou em si-
lêncio: Guarda de honra? Ou uma equipa de assassinos profissionais? In-
clinou-se calmamente na direcção de Cedar e premiu um dos botões pre-
tos quadrados do painel de instrumentos. Silenciosamente, abriu­-se um
compartimento que deixou ver a grande Magnum Ruger Super Blackhawk
.44 que sempre trazia no carro, parte da tecnologia de gênio, privada e
muito secreta, incorporada na viatura sem o conhecimento do Armeiro.
A Magnum .44 servia apenas para deter seres humanos. Bond gos-
tava de pensar que, se necessário, também conseguia deter um carro.
Uma bala deste magnífico revólver de acção simples, colocada no sítio
certo, podia destruir um motor.
— Eh, é... grande — Cedar respirou fundo.
— É mesmo. Uma pequena protecção suplementar, se for neces-
sário.
No entanto não foi preciso utilizar a Blackhawk. Podia ver-se a es-
tação de monocarril a uns bons dezasseis quilômetros de distância — um
edifício baixo, colocado atrás de uma alta vedação de arame.
Quando lá chegaram, repararam que a vedação tinha cerca de sete
metros de altura, era do tipo Cyclone de barreira dupla e tinha afixados
grandes avisos pintados a vermelho onde se podia ler: PERIGO. ESTA VE-
DAÇÃO E AS OUTRAS MAIS À FRENTE SÃO PERIGOSAS. QUALQUER
TOQUE OU TENTATIVA PARA AS ULTRAPASSAR PROVOCARÁ MORTE
INSTANTÂNEA POR ELECTROCUSSÃO. Por baixo deste aviso pouco ami-
gável, via-se uma caveira vermelha e os dois raios, sinal internacional para
electricidade.
A vedação apenas podia ser atravessada passando por dois pesa-
dos portões de aço fechados a sete chaves. Num dos lados dos portões,
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via-se uma pequena casa de madeira e uma grande zona de cimento que
conduzia, como podiam agora ver, ao edifício oblongo da estação.
Saíram da casa dois homens que vestiam calças castanho-amare-
ladas e camisas azuis com a insígnia “Segurança Bismaquer”. À cintura
traziam pistolas enfiadas em coldres e caçadeiras de repetição debaixo
do braço.
Bond baixou um dos vidros automáticos.
—Estão à nossa espera. Sra. Penbrunner e Sr. Bond.
— O monocarril chega às dez. — Os homens pareciam gêmeos, ge-
rados por duas enormes esculturas humanas de Epstein. Ambos tinham
perto de dois metros de altura; eram grandes, bronzeados e tinham um
olhar mesquinho.
Pelo espelho retrovisor, Bond podia ver o BMW, parado bem lá
atrás. As luzes do BMW piscaram duas vezes e um dos guardas rosnou:
— Acho que está bem — disse, falando pelo nariz à moda do Texas,
e olhou em seguida para o seu companheiro. — Desliga aquela coisa. —
Fez um aceno na direcção da casa de madeira.
— Aquilo é a sério? — Bond apontou para o letreiro.
— Não tenha dúvidas.
—Já matou alguém?
— Muita gente. No rancho têm autorização para o fazer. Se alguém
morrer não há nenhuma lei que possa fazer alguma coisa. Fica ligado à
noite. Só o desligam quando alguém entra ou sai. Amigo, aqui tem-se pri-
vacidade... se tiver dinheiro para a pagar.
O outro homem saiu da casa, abriu os pesados ferrolhos e os dois
guardas abriram os portões.
— Isto é que é rapidez — gritou aquele com quem Bond estivera
a falar. — Não gostam que isto fique desligado mais tempo que o neces-
sário.
Com cuidado, Bond conduziu o Saab lá para dentro, observando os
guardas que fechavam os portões. Um deles voltou para dentro da casa.
Pelo espelho, Bond viu que o BMW desaparecera. Tudo parte do serviço,
pensou. Logo que o Saab estivesse nos domínios de Bismaquer, as amas-
-secas podiam ser retiradas rapidamente. Premiu novamente o botão do
painel de instrumentos. Ouviu-se um silvo e o compartimento da Blackha-
wk voltou a fechar-se, mesmo no instante em que o primeiro guarda se
abeirava do lado do condutor.
—Amigo, sabia que tem o volante do lado errado?
Bond anuiu com delicadeza.
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— E um carro inglês — explicou. — Bem, não é o carro, mas sim o
volante.
— Isso. Ouvi dizer que por lá conduzem do lado errado. — O gi-
gante texano pensou por um momento. — Aponte o carro para aquelas
portas e aguente. Está bem? Não saia do carro ou fica tão morto que nem
um boi congelado. Certo?
— Certo — concordou Bond.
Na parede do edifício oblongo à sua frente viam-se grandes portas
de metal. Bond encolheu os ombros e olhou para Cedar.
— Acho que não se pode refilar nada — murmurou com sotaque
texano, quebrando a tensão e fazendo Cedar soltar uma risada.
A instrução de Cedar incidira na apertada segurança no Rancho Bis-
maquer e, se a ESPECTRO estivesse envolvida, Bond já tinha idéia do que
iria encontrar. Mas a dimensão de tudo isto apenas poderia provocar uma
admiração furtiva. Não havia estradas que conduzissem até ao grande
Rancho Bismaquer, apenas o monocarril protegido por vedações eléctri-
cas mortais, altas como muros de prisão, e os guardas autômatos. Bond
também se interrogava acerca do carro que os seguira, o BMW. Seria que,
após o incidente com o elevador, teriam estado sob discreta vigilância
desde que tinham saído de Washington?
Mergulhado nestes pensamentos, Bond retirou do bolso a sua ci-
garreira metalizada, ofereceu a Cedar um cigarro que ela recusou, e acen-
deu um Simmons. Sentiu um formigueiro de preocupação. Não o sentira
quando tinham iniciado a longa viagem em Inglaterra; e desde então, a
vida fora recheada de incidentes: a tentativa de rapto em Nova Iorque, a
queda do elevador e depois a longa e rápida viagem até ao Texas. Agora,
parado e na iminência de entrar no mundo de Bismaquer, Bond sabia que
não devia pensar demasiado nas possibilidades mais mórbidas. Como M
diria: “Preocupe-se no momento, 007, e não com antecedência”.
Não tiveram de esperar muito tempo.
As dez em ponto, Bond sentiu o carro vibrar ligeiramente. Abriu a
janela e ouviu o pesado gemido duma turbina. O sistema de Bismaquer
era, por certo, uma suspensão em forma de V, um enorme carril com o
comboio suspenso por cima, de modo a parecer que o comboio estava
espetado e suspenso sobre o carril. Sim, naturalmente, repetiu Bond para
si mesmo, só o melhor para o Sr. Bismaquer.
O gemido da turbina aumentou de intensidade. Não conseguiam
ver o veículo a chegar, mas um dos guardas avançou lentamente até às
portas à sua frente, abriu uma caixa de metal na parede e premiu um
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botão. Silenciosamente, as portas abriram-se.
Uma rampa comprida estendeu-se para cima. O guarda acenou na
direcção e Bond ligou o motor, subindo a rampa em primeira.
Subiram cerca de sete metros até a rampa se nivelar e se tornar
num túnel ligeiramente curvo, qual versão enorme dos tubos utilizados
para o embarque de aviões. Por sua vez, este túnel conduziu-os até ao
interior do comboio.
Homens com uniformes semelhantes aos dos guardas, mas com
o símbolo dourado “Serviços Bismaquer” nas suas camisas azuis, deram
instruções a Bond para se colocar em posição. Logo que o carro estava
correctamente parado, um dos homens aproximou-se e abriu a porta.
Falou-lhes delicadamente e sem sotaque.
— Sra. Penbrunner, Sr. Bond. Bem-vindos. Por favor, deixem o carro
aqui. Travado.
Um outro homem de Bismaquer abriu a porta a Cedar. Quando a
porta se fechou, Bond — que já havia ligado o dispositivo automático de
travamento — trancou-a. Depois saiu, com a pasta na mão, e trancou a
sua porta.
— As chaves ficarão em segurança comigo, senhor. — O homem
estava de pé, à espera.
Bond não sorriu.
— Comigo estarão sempre mais seguras — disse. — Se quiser mu-
dar o carro de lugar, vá-me chamar.
O rosto do homem manteve-se impávido.
— O Sr. Luxor está à vossa espera.
De pé, ao fundo do compartimento, encontrava-se um homem
quase esquelético, com um rosto que parecia uma caveira, sobre o qual
fora muito esticada uma pele fina e quase transparente. Até os olhos
eram muito cavados. Walter Luxor parecia um morto-vivo.
— Sra. Penbrunner. Sr. Bond — A voz tinha o mesmo tom agudo e
desafinado que Bond ouvira ao telefone naquela manhã. — Bem-vindos.
— Bond viu Cedar estremecer ao cumprimentá-lo. Um segundo depois,
Bond soube porquê; era na verdade o mesmo que apertar a palma da
mão dum cadáver — fria, flácida e viscosa. Se alguém apertasse com mui-
ta força, pensou, ficaria com uma mão cheia de osso em pó.
Luxor conduziu-os até uma carruagem de linhas belas, com cadei-
ras giratórias almofadas, mesas pregadas ao chão e uma hospedeira atra-
ente e pronta a servir bebidas.
Mal haviam acabado de se sentar quando a turbina gemeu, decres-
72
cendo de intensidade quando saiu da estação e ganhando velocidade,
suavemente.
Mesmo a esta altura, Bond conseguiu ver, dos dois lados da linha,
as vedações eléctricas Cyclone, de protecção. A sua volta, o deserto e a
planície estendiam-se no horizonte.
A hospedeira aproximou-se e perguntou o que gostariam de tomar.
Bond pediu um vodca-martini muito grande, pouco mexido, transmitin-
do-lhe as instruções precisas. Cedar e Luxor pediram xerez.
— Uma excelente escolha — disse Luxor. — O xerez é uma bebida
muito civilizada. — Sorriu, mas não podia existir humor num rosto como
o seu, apenas uma caricatura repugnante da morte.
Para os pôr à vontade, Walter Luxor continuou a falar.
— Hoje, Markus, só tinha no carril o transportador de viaturas e as
carruagens club. Quando forem embora talvez os deixe optar.
— Optar por quê? — perguntou Bond.
— Carros de monocarril. — Luxor estendeu as mãos ossudas em
forma de garra. — Markus tem várias réplicas famosas feitas de modo
a adaptarem ao sistema; uma das suas idiossincrasias. Até possui uma
réplica da carruagem especial da Rainha Vitória, uma da carruagem pre-
sidencial, uma réplica perfeita da usada pelo Czar Nicolau e uma cópia
da carruagem onde foi assinado o armistício da Primeira Grande Guerra.
Essa já não existe. Hitler obrigou os franceses a assinarem aí a paz separa-
da, mas foi destruída mais tarde.
— Eu sei — disse Bond abruptamente.
O rosto era horrível, mas a voz aguda e estrangulada era quase in-
tolerável.
— Porquê réplicas? — perguntou Bond concisamente.
— É uma boa pergunta. — Walter Luxor prosseguiu: — Como sabe,
Markus é um grande coleccionador. Prefere o autêntico. Tentou comprar
a carruagem da Rainha Vitória para a modificar, mas na altura não estava
à venda. Fez o mesmo com as outras. Não estavam à venda. Se aparecer
uma boa no mercado, será provavelmente ele quem oferecerá mais. É
geralmente sempre assim. Não estariam aqui se ele não quisesse as gra-
vuras Hogarth.
— Quase não estávamos — observou Bond, mas Luxor preferiu não
ouvir ou ignorar a observação.
A hospedeira chegou com as bebidas. Bond aprovou; era um dos
melhores martinis que alguma vez tomara, excepção feita aos preparados
por si próprio. Luxor falava com Cedar, enquanto Bond olhava pela enor-
73
me janela. O monocarril parecia ter atingido uma velocidade superior a
duzentos e quarenta quilômetros por hora e, no entanto, parecia deslizar
sem esforço sobre a planície. Era o mesmo que voar a baixa altitude, mas
sem turbulência.
A viagem durou pouco mais de quinze minutos. Depois, suavemen-
te, a velocidade diminuiu. Bond viu três ou quatro grandes secções de
vedação Cyclone mais à frente, depois uma parede alta e espessa com
arame no topo com uma altura de, pelo menos, sete metros.
Ao passarem a parede, o monocarril abrandou e parou. E o mais
surpreendente foi a mudança dramática de cenário — uma visão momen-
tânea de verdura e árvores — antes de serem envolvidos pelas paredes
brancas e curvas da estação.
— Tem lugar no seu carro para mim? — Luxor olhou Bond, que sen-
tiu repulsa ao verificar que, mesmo olhando com atenção para aqueles
olhos cavados, não existiam muito vestígios de vida.
— Há muito espaço — replicou Bond.
— Óptimo. Indico-lhes o caminho. O Rancho Bismaquer é muito
grande, embora, como é óbvio, não se possa deixar de ver a casa grande.
Fica muito perto da estação.
Assim que desceram a rampa de desembarque, repararam que
aquilo podia ser o exterior de qualquer pequena estação de caminho-de­-
ferro da América.
Sem dúvida, esta era outra das colecções de Bismaquer; uma pe-
quena estação do princípio do século, provavelmente retirada de uma
cidade-fantasma.
Bond olhou à sua volta. Minutos antes estivera olhar para a relva
do deserto, seca, castanha e comida pelo sol. Agora, com a grande pare-
de a desaparecer à esquerda e à direita, era como se estivessem noutro
país. Havia relva e árvores, estradas alcatroadas que saíam da estação,
avenidas rodeadas por árvores e até mesmo uma pequena ponte sobre
um riacho.
—Volte à direita — disse Luxor — e siga sempre em frente pela es-
trada principal. — Bond ouviu Cedar suspirar de admiração. A sua frente,
no meio de relva luxuriante, estava uma enorme casa branca. Degraus lar-
gos conduziam a um pórtico, onde colunas quadradas se erguiam até ao
tecto liso. O telhado, inclinado sobre o resto da casa, apresentava telhas
vermelhas que contrastavam com o branco.
Havia abrunheiras à frente da casa e dos lados da estrada, e Bond
pensou vagamente que até já a vira antes.
74
—Tara—sussurrou Cedar. — É Tara.
—Tara?—Bond estava desconcertado.
— E tudo o Vento Levou. O filme, o livro de Margaret Mitchell. É a
casa do filme. Você sabe, James, Vivien Leigh, Clark Gable...
— Ah — disse Bond.
— Quanta esperteza da sua parte. — O guincho de excitação de
Walter Luxor cresceu de intensidade. — As pessoas geralmente demo-
ram mais tempo a descobrir. Pensam que viram fotografias. Markus ficou
apaixonado pela casa quando viu o filme, comprou os projectos à MGM e
decidiu construi-la aqui. Ah, aí está Markus.
Bond parara o Saab defronte dos largos degraus, por onde descia
agora, em passo rápido, um homem grande como um urso com o rosto
torcido num sorriso. A voz, contrastando directamente com a de Luxor,
era profunda, áspera e envolvente.
— Sra. Penbrunner! Por que não veio também o seu esposo? Ah,
este deve ser o Sr. Bond. Vamos até à varanda tomar uma bebida. Temos
muito tempo até ao almoço.
O rosto era rosado e bochechudo; o rosto bem lavado de um bebê
ou de um querubim idoso. Ou, especulou Bond, um diabo? Lentamente,
saiu do Saab. Este americano grande, que vestia um fato branco amarro-
tado, devia ter perto de 70 anos, cabelo prateado e escovado, mas, no
entanto, estava cheio de energia e ria com um entusiasmo quase infantil,
num modo nitidamente estudado para fazer que as pessoas gostassem
de si à primeira vista. Poderia ser este o novo Blofeld? O chefe da ressus-
citada ESPECTRO?
— Vamos Sra. Penbrunner — ouviu Bismaquer dizer. — Vamos, Sr.
Bond, eu sei que estamos no Texas, mas sei preparar os melhores cock­
tails de hortelã do mundo. E esta? Cocktails de hortelã à moda do Texas;
— Mais uma vez aquele riso grunhido e contagioso. — Enche-se o copo
com gelo picado, deita-se gim e junta-se um raminho de hortelã. — Bis-
maquer arfou de agrado da sua própria receita e em seguida voltou-se
para observar Bond, que subia os degraus lisos.
Sim, pensou Bond, observando os olhos brilhantes de alegria deste
bilionário cor-de-rosa, branco e prateado. Sim, o novo Blofeld pode bem
ser este tipo de homem.
Então viu o magro Walter Luxor, cujo rosto esquelético e pálido es-
tava encoberto pela sombra do pórtico. Ou será Luxor? Vivendo na som-
bra de toda esta riqueza, com fácil acesso ao poder?
A verdadeira missão de Bond começava agora. Com uma vingança.
75
11
O RANCHO BISMAQUER

James Bond recusou delicadamente o explosivo cocktail de hortelã


de Markus Bismaquer, escolhendo em vez disso outro vodca-martini.
— Claro, claro! — exclamou Bismaquer. — Tudo o que quiser. Nun-
ca obrigo um homem a comer ou beber o que não quer. Quanto às mu-
lheres...? Bem, isso é diferente.
— Significa que...? —interrompeu Bond concisamente.
Um criado de casaco branco apareceu, vindo das portas principais,
e ficou de pé à espera, atrás de um grande carrinho-bar. Porém, Bisma-
quer gostava de servir ele próprio os seus convidados. Olhou-o por cima
das garrafas, com as mãos pousadas, com uma máscara de surpresa no
rosto querubínico.
—Desculpe, Sr. Bond. Ofendi-o?
Bond encolheu os ombros.
— Você disse que nunca se devia forçar um homem a comer ou
beber o que não quer, e depois deu a entender que com as mulheres era
diferente.
Bismaquer relaxou.
— Uma piada, Sr. Bond. Apenas uma piada, entre homens munda-
nos. Ou talvez não seja um homem mundano?
— Já me têm acusado de o ser. — Bond não deixou cair a máscara.
— Continuo a não perceber por que razão as mulheres devem ser trata-
das de maneira diferente.
— Só queria dizer que por vezes têm de ser persuadidas. — Voltou­-
se para Cedar. — Não gosta de ser persuadida, às vezes, Sra. Penbrunner?
Cedar riu.
— Depende do tipo de persuasão.
A voz aguda de Walter Luxor juntou-se à conversa.
— Acho que Markus estava a tentar fazer uma piada baseada no
velho ditado que diz que quando uma mulher diz “não” o que quer dizer
é “talvez”...
— E quando diz “talvez”, quer dizer “sim” — replicou Bismaquer.
— Estou a perceber. — Bond aceitou o martini, assumindo um tom
de voz que dava a impressão de ser um homem sem humor. Calculava
que, ao lidar com alguém como Bismaquer, todo ele grunhidos e garga-
lhadas, era melhor adoptar um papel oposto.

76
— Bem, à nossa. — Bismaquer ergueu o copo. — Depois, talvez, Sr.
Bond, possamos ver os Hogarths. Há tempo antes do almoço.
Bond anuiu em silêncio e depois disse:
— Tempo é dinheiro, Sr. Bismaquer.
— Oh, que se lixe o tempo. — Bismaquer sorriu. — Eu tenho o
dinheiro, você tem o tempo. E se não tiver, eu compro. Quando os hóspe-
des vêm de tão longe até cá, gostamos de os distrair. — Fez uma pausa,
como que apelando para Cedar. — Vão ficar por uns dias, não vão? Já
tratei mesmo de mandar abrir as cabanas de hóspedes.
— Um dia ou dois não vai fazer diferença, pois não, James? — Ce-
dar olhou de um modo suplicante, dando-lhe ênfase necessária.
Bond suspirou, virando para baixo os cantos da boca.
— Bem, acho que...
—Vá lá, James, se quiser eu posso sempre chamar o Joseph.
— É consigo — disse Bond, fingindo mau humor.
— Combinado, então. — Bismaquer esfregou as mãos. — E agora,
podíamos... seria possível ver as gravuras?
Bond olhou para Cedar.
— Se não vir inconveniente, Sra. Penbrunner.
Cedar fez um sorriso doce.
— Você é que tem a última palavra a dizer, James. O meu marido
deixou isso nas suas mãos.
Bond hesitou.
— Bem, não vejo nenhum inconveniente. No entanto, acho que
devia examiná-las dentro de casa, Sr. Bismaquer.
— Por favor... — Bismaquer parecia saltar, mudando o peso do
enorme corpo de um pé para o outro. — Por favor, chame-me Markus.
Você agora está no Texas.
Bond anuiu novamente. Tirou do bolso as chaves do carro e desceu
as escadas em direcção ao Saab.
As gravuras estavam numa pasta especial à prova de calor, primo-
rosamente guardadas num estreito compartimento falso, debaixo da pra-
teleira móvel do enorme porta-bagagens do Saab. Sem dar hipótese aos
homens que estavam no pórtico de ver o esconderijo, Bond retirou a pas-
ta, fechando em seguida o porta-bagagens.
— Belo carrinho — disse Bismaquer do pórtico, lançando ao Saab
um olhar condescendente que parecia de certa forma um pouco artificial.
— Seria capaz de bater a maior parte dos carros comerciais da sua
classe.
77
— Ah — Bismaquer fez um sorriso de orelha a orelha. Uma onda
de felicidade quase tangível percorreu o corpo enorme. — Bem, teremos
de tirar isso a limpo. Tenho alguns carros e uma pista. Talvez pudéssemos
organizar qualquer coisa. Um Grande Prêmio local.
— Por que não? — Bond fez um gesto com a pasta, olhando na
direcção da casa.
— Oh, sim, sim! — Bismaquer tremia de excitação dos pés à ca-
beça. — Vamos deixar a Sra. Penbrunner nas mãos de Walter. Depois de
almoço, mando que vos indiquem onde são as cabanas dos convidados.
Depois faremos uma visita guiada ao Rancho Bismaquer, do qual, Jim, me
orgulho muito.
Apontou em direcção às grandes portas, deixando Bond entrar no
hall enorme, fresco, com chão de parque e que dava para uma escadaria
imponente. Para além de tudo o mais, Markus Bismaquer tinha um certo
estilo.
— Para a sala das gravuras. — Bismaquer conduziu-o por um corre-
dor amplo e arejado, e ao fundo abriu um par de portas duplas.
Bond quase abriu a boca de surpresa. A sala não era grande, mas
as paredes eram altas e delas estavam projectados biombos a intervalos
regulares.
Quase todo o espaço da parede estava coberto, e mesmo com a
instrução limitada que tivera na casa secreta de Kensington, Bond conse-
guia identificar algumas das gravuras ali penduradas.
Havia pelo menos quatro Holbeins raríssimos, algumas cartas de
jogar de valor inestimável, embora de cores horrorosas, uma gravura a co-
res assinada por Baxter, que fora designada pelo instrutor de Bond como
quase impossível de obter, e um conjunto do que pareciam ser Bewicks
originais, da famosa História Geral dos Quadrúpedes. Além das paredes,
as gravuras cobriam também os biombos salientes. Vinda de colunas
escondidas algures, música barroca inundava a sala, dando-lhe uma at-
mosfera agradável e tranquila. O chão era de madeira bem polida, e o
único mobiliário era constituído por cadeiras de costas altas, colocadas
a intervalos regulares, e uma mesa grande, posta no vão da única janela,
muito alta, que ficava no extremo oposto da sala. Também estas peças de
mobiliário, supôs Bond, deviam ser antiguidades sem preço.
— Tem de concordar que se trata de uma bela colecção, não é, Jim?
— Bismaquer esperava pacientemente no extremo da sala, visivelmente
orgulhoso do seu local de exposição.
— Costumam tratar-me por James — corrigiu Bond, continuando
78
com ar sombrio. — Mas, sim, diria que se trata de aquisições ponderadas
e sensatas. Joseph Penbrunner disse-me que você tinha duas paixões na
vida...
— Só duas? — Bismaquer ergueu uma sobrancelha, numa expres-
são querubínica, de gozo, que parecia algo incongruente num corpo tão
grande.
— Gravuras e gelados. — Bond alcançou a mesa, ao mesmo tempo
que Bismaquer soltava uma gargalhada.
— O seu Prof. Penbrunner está mal informado. Tenho muitas outras
paixões além das gravuras e gelados. Mas tenho a sorte de ter juntado
uns cobres enquanto era jovem. Walter Luxor é um conselheiro financeiro
muito experiente, assim como amigo e colega. A fortuna original duplicou,
triplicou, quadruplicou. — As mãos sapudas de Bismaquer gesticulavam
no ar, como imitando a acumulação de riqueza. — Na verdade, o homem
é um gênio. Quanto mais satisfaço os meus gostos, mais as minhas posses
se multiplicam! — Estendeu a mão para agarrar as gravuras. Por um se-
gundo, Bond interrogou-se se homem seria suficientemente conhecedor
para perceber de imediato que se tratava de falsificações. De qualquer
modo, era demasiado tarde para se preocupar com isso. Então, brusca-
mente, Bismaquer mudou de assunto. — A propósito, tem de desculpar o
aspecto estranho de Walter. Parece um pau de virar tripas, bem sei, como
se o pudesse partir em dois. Mas as aparências iludem. Não o aconselho
a tentar. A sério, é forte como um cavalo. Foi um acidente de automóvel.
Gastei uma fortuna a tentar que o reconstruíssem dos pés à cabeça. —
Continuou Bismaquer. — O corpo ficou gravemente destruído, e as quei-
maduras eram horrendas. Contratamos os cirurgiões mais caros. Tiveram
de fazer enxertos em quase todo o rosto. Uma das paixões de Walter é a
velocidade. É um condutor muito bom. De facto, quando organizarmos o
tal Grande Prêmio de que falei, vamos pô-lo a correr contra Walter.
Enxertos de pele e um corpo inteiramente novo? Bond ficou a cis-
mar. Na verdade, Blofeld fora sufocado até à morte, mas não sabia o que
poderia ter acontecido depois disso. Seria possível que...? Não, o melhor
era deixar as coisas seguirem o seu curso normal, e pôr de lado as fanta-
sias.
— Os Hogarths, por favor, James.
Com enorme cuidado, Bond abriu a pasta, tirando para fora cada
gravura com o papel protector e colocando-as por ordem sobre a mesa,
antes de retirar o papel de seda.
The Lady’s Progress era um motivo típico de Hogarth. As primei-
79
ras duas gravuras ilustravam a Lady vivendo num luxo de frivolidade e
riqueza. A terceira retratava a sua decadência, quando se descobria que
o marido, agora morto, tinha uma multidão de credores, o que a deixava
sem um tostão. As últimas três gravuras mostravam as várias fases da sua
desintegração, transformada em prostituta pela bebida, acabando final-
mente como uma caricatura horrível do seu anterior eu: vermelha, abjec-
ta e porca no meio da ralé imunda de Londres do século XVII.
Bismaquer inclinou-se sobre as gravuras numa atitude de reverên-
cia.
— Notável — sussurrou. — Perfeitamente notável. Veja o por-
menor, James, os rostos. E os garotos, ali, a espreitar por aquela janela.
Podia-se passar uma vida inteira apenas a admirá-las. Todos os dias se
descobriria algo de novo! Diga-me, quanto pede por elas?
Porém, Bond não estava interessado em se comprometer. O Prof.
Penbrunner não tinha ainda a certeza se queria vender.
— Você seria o primeiro a admitir, Markus — disse, ainda que não
fosse nada a favor do tratamento familiar pelos nomes próprios —, que
é difícil avaliar artigos como estes. São únicos. Nenhum outro conjunto
parece ter sobrevivido. Mas são genuínas. Tenho os documentos de au-
tenticação no carro.
— Tenho de tê-las — disse Bismaquer, dominando-se. — Tenho
mesmo de...
— Tens de ter o quê, Markus?
A voz baixa, clara, e com um vestígio ameaçador de sotaque, veio
da porta, que nem Bismaquer nem Bond haviam sentido abrir-se.
Ambos voltaram as costas à mesa, Bond quase repetindo o movi-
mento, enquanto Bismaquer soltava um grunhido de agrado.
— Ah! Vem cá que te quero apresentar James Bond, querida. Está
aqui em nome do Prof. Penbrunner. James Bond, esta é Nena, minha mu-
lher.
Bond já estava preparado para que Nena Bismaquer fosse mais
nova do que o marido, mas não tanto. A rapariga — pois, no máximo,
podia ter vinte e poucos — parou à entrada, onde os raios de sol que
entravam pela grande janela a iluminavam. Era a entrada de uma actriz.
Vestindo uns jeans excepcionalmente bens cortados, uma camisola
de seda azul-forte e um lenço estampado atado ao pescoço, Nena Bisma-
quer dirigiu a Bond um sorriso estudado para fazer até o mais misógino
dos homens ajoelhar-se a seus pés.
Era alta, quase tanto como Bond, as pernas eram compridas e a sua
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passada era firme e larga. Enquanto atravessava a sala, Bond viu imedia-
tamente que Nena Bismaquer era o tipo de pessoa que se sentia à von-
tade em qualquer lugar. Tinha aquele equilíbrio especial que combinava
todos os atributos que mais admirava numa mulher: estilo, graça e uma
capacidade óbvia de se dedicar a ocupações atléticas do gênero a que, em
alguns círculos, se chama os grandes espaços exteriores.
A medida que ela se aproximava, sentiu uma carga, algo indubita-
velmente químico, que passava entre eles. Dizia-lhe que ela seria mais do
que atlética, também nos espaços interiores.
Se o fogo fosse preto, então os seus olhos seriam um exemplo, ne-
gros cor do ébano, assim como o cabelo comprido que lhe caía sobre os
ombros, casualmente puxado para trás do lado esquerdo, como se tivesse
sido penteado com a mão. O fogo escuro brilhava com uma sabedoria que
se estendia para além da sua juventude óbvia. O resto parecia perfeita-
mente proporcionado com o corpo. O nariz era longo e afilado, a boca um
pouco solene, o lábio inferior ligeiramente mais espesso do que o supe-
rior, dando-lhe um toque de sensualidade que para Bond era mais do que
insinuante. O seu aperto de mão era firme. Uma mão que podia acariciar
ou segurar com força as rédeas de um cavalo a todo o galope.
— Sim, sei quem é o Sr. Bond. Acabei de conhecer a Sra. Penbrun-
ner, e é um prazer conhece-lo a si... posso também tratá-lo por James?
— Claro.
— Bem, trate-me por Nena. Com que extravagância está você a
tentar o meu marido, James? Com as gravuras de Hogarth, de que ele
tem falado?
Bismaquer não conseguiu conter um pequeno ronco de riso, e aca-
bou por desatar a rir às gargalhadas. Abraçou a mulher com força, levan-
tando-a do chão e embalando-a como a uma boneca.
— E quem é que falou em extravagância? — Estremeceu com as
alegres risadas, como um Pai Natal de Verão, sem barba.
Bond não pode deixar de ver o breve olhar sombrio no rosto de
Nena Bismaquer, quando o marido a pôs no chão, com os braços ainda à
sua volta, e puxando-a na direcção da mesa. Quase parecia evitar que ele
lhe tocasse.
— Olha só para elas, minha querida! Uma maravilha. Não existem
nenhumas iguais no mundo. Olha para aquele pormenor... o rosto daque-
la mulher. Olha para aqueles homens ali, bêbados que nem cachos...
Bond observava-a enquanto examinava as gravuras, uma por uma.
Um sorriso que começou nos olhos acabou por se estender aos lábios, ao
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mesmo tempo que um dedo comprido e impecavelmente cuidado apon-
tava para a última gravura.
— Aquele ali podia ter sido tirado da vida real, chéri. — Deu uma
gargalhada melodiosa, aguda e sem malícia. — Pareces mesmo tu.
Bismaquer soltou um bramido brincalhão de raiva fingida, levan-
tando as mãos bem alto.
— Cabra! — gritou.
— Então, quanto é que pede? — Nena Bismaquer voltou-se para
Bond.
— Não há um preço feito. — Fez-lhe um sorriso franco, olhando-a
bem nos olhos. Durante um segundo, pareceu-lhe detectar neles um ves-
tígio de escárnio. — Nem sequer lhe posso garantir que estejam à venda.
— Então porquê...? — O seu rosto continuava calmo.
— Markus convidou o professor e a esposa. Queria ser o primeiro
a ver as gravuras.
— Vá lá, James. O que você quer dizer é o primeiro a fazer uma
oferta. — Bismaquer não parecia ter mudado, e no entanto havia algo
entre marido e mulher. Algo intangível, mas que existia.
Nena hesitou e depois disse que o almoço estaria pronto daí a pou-
co.
—Mais tarde levá-los-emos às cabanas dos hóspedes. —E que tal
uma volta ao rancho, minha queridinha?
Parou à porta.
— Óptimo, Markus. Por que não? Tu acompanhas a Sra. Penbrun-
ner, e eu faço de guia a James. Que tal?
Bismaquer riu de novo.
— Vou ter que ficar de olho em si, James, se o deixar sozinho com
a minha mulher.—Deitou-lhe o seu olhar querubínico.
No entanto, Nena desaparecera. Agora é que era altura de tocar no
assunto, pensou Bond, e antes de dar hipótese a Bismaquer de continuar
a falar, perguntou abruptamente:
—Markus, que foi aquilo do convite ao Prof. Penbrunner?
O rosto branco e rosado virou-se para ele, num misto de admiração
e inocência.
— Aquilo o quê?
— Penbrunner pediu-me para o substituir. Para ser franco, ele não
queria que Cedar, a Sra. Penbrunner, viesse. Foi ela quem insistiu.
— Mas porquê? Não...
— A história, tal como os Penbrunner me contaram, é que o seu
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convite foi entregue à força.
—Força?
—Ameaças. Armas.
Bismaquer abanou a cabeça, espantado.
— Ameaças? Armas? Tudo o que fiz foi mandar o jacto para Nova
Iorque e pedi a Walter que organizasse tudo com a firma cujos serviços
às vezes usamos... serviços de investigações particulares e guarda-costas.
Tratava-se de um simples convite, e um guarda para assegurar que tanto
as gravuras como os Penbrunner chegavam ao avião em segurança.
—E qual é o nome da firma?
— O nome? É Segurança Mazzard. Do Mike Mazzard.
— Um rufia, Markus.
— Um rufia? Não diria isso. Já nos tratou de montes de pequenas
coisas.
— Você tem o seu próprio pessoal de segurança, Markus. Para quê
usar uma agência de Nova Iorque?
— Não acho que... — começou Bismaquer. — Mas... Céus! Armas,
ameaças? O meu próprio pessoal? Mas são rapazes daqui, só os utilizo
aqui mesmo. Você quer dizer que os homens de Mazzard ameaçaram
mesmo os Penbrunner?
— Segundo a Sra. Penbrunner e o Prof. Penbrunner, Mazzard foi
quem falou e os três grandalhões armados apoiaram-no.
— Oh! meu Deus! — Abriu a boca. — Vou ter de falar com Walter.
Foi ele quem tratou de tudo. Foi mesmo por isso que o Prof. Penbrunner
não quis vir?
— Por isso e porque o tentaram matar. A ele e à Sra. Penbrunner.
— Tentaram? Meu Deus, James! Não tenha dúvidas de que vou
descobrir o que se passou! Talvez Mazzard tivesse percebido mal? Talvez
Walter tivesse dito alguma coisa...? Céus, lamento imenso. Não fazia a
menor idéia! Se for preciso, mandamos cá vir Mazzard. Pode apostar o
que quiser em como ele estará aqui ainda hoje!
Um gongue soou discretamente algures dentro de casa.
— O almoço — anunciou Bismaquer, visivelmente abalado.
Fora uma actuação brilhante, Bond era obrigado a reconhecer. O
amigo Bismaquer era um actor de grande talento. Podia também dar-se
ao luxo de cometer pequenos erros com convites, e de negar a respon-
sabilidade. Bond teria de instruir Cedar, para mencionar casualmente os
factos completos acerca da tentativa de assassínio no elevador.
Antes de irem para a fresca e agradável sala de jantar, com as ja-
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nelas de persianas corridas, criados silenciosos e mobiliário americano
colonial, Bond deu uma escapadela até ao Saab, voltando a guardar as
gravuras em segurança. A refeição acabou por ser animada, embora can-
sativa. Bond ficou a saber que Bismaquer gostava sempre de ser o centro
das atenções, de modo que a sua éminence grise — Walter Luxor — e
Nena Bismaquer se tornassem apenas parte da sua corte.
O seu anfitrião era excessivamente orgulhoso do rancho, e ficaram
a saber bastante acerca do rancho Bismaquer, antes de o verem realmen-
te. Comprara aquele grande espaço de terreno pouco depois de fazer a
sua primeira grande golpada — a venda do negócio de gelados.
— A primeira coisa que fizemos foi construir o aeródromo — disse­
-lhes. Desde então, a pista fora bastante aumentada. — Tinha de ser. A
maior parte da água, pelo menos a de uso doméstico, é trazida de avião
de dois em dois dias. Temos uma rede de canalizações subterrâneas, mes-
mo à saída de Amarillo, mas tem dado problemas, e usamo-la principal-
mente para irrigação.
Uma vez começado o trabalho, Bismaquer tivera de pôr por ordem
as suas prioridades. Um terço da terra era para pastagens.
— Paisagens e tudo o mais. Temos aqui uma bela manada. E pouco
vulgar, mas na realidade compensa o que se gasta em divertimento. — O
divertimento, como gostava de lhe chamar, estava contido nos restantes
cento e sessenta quilômetros quadrados, que haviam também sido irriga-
dos e ajardinados com cargas maciças de terra fértil e árvores já adultas,
trazidas para ali de avião ou de tractor.
— Você, James, referiu que ouvira dizer que eu tinha apenas duas
paixões: coleccionar gravuras e os gelados. Bem, não são só essas. Acho
que sou coleccionador de quase tudo. Temos um óptimo estábulo de car-
ros, desde os antigos até aos modernos, e também alguns bons cavalos.
Sim, os gelados ainda ocupam um pouco do meu tempo...
— Há um laboratório e uma pequena fábrica aqui mesmo no ran-
cho. — Esta foi a única vez que Luxor conseguiu abrir a boca.
— Oh, essas. — Bismaquer sorriu. — Bem, suponho que também
extraímos daí algum dinheiro. Sou ainda consultor de várias companhias.
Gosto de criar novos sabores, novos gostos para o paladar. Distraio-me.
Prepara-se o estranho carregamento volumoso, depois despacha-se. As
vezes, as companhias rejeitam-no. É demasiado bom, acho eu. Não lhe
parece que o paladar das pessoas está a ficar mais suave? — Não esperou
por uma resposta e continuou, falando-lhes agora dos alojamentos es-
peciais construídos para o pessoal. — Temos aqui para cima de duzentos
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homens e mulheres. — Falou também do luxuoso centro de conferências
que ocupava um par de quilômetros quadrados. Estava abrigado dos es-
paços principais por um muro espesso de plantas e árvores bem cuidadas.
— Na verdade, é uma selva, mas uma selva bem tratada.
O centro de conferências era, no entanto, outra fonte de rendimen-
to. Era utilizado por grandes companhias, mas apenas quando Bismaquer
o permitia, ou seja, umas quatro ou cinco vezes por ano.
— De facto, está para haver uma conferência daqui a poucos dias,
acho eu. Não está, Walter?
Luxor anuiu em concordância.
— E há isto, claro está. Tara, possessão de que muito me orgulho. É
qualquer coisa, não é, James?
— Fascinante.
Bond perguntava-se o que iria realmente dentro da cabeça de Bis-
maquer. Quanto tempo levaria até fazer uma oferta para as gravuras,
se realmente as queria? Depois disso, que planos tinha ele para os seus
convidados? Ainda que Bismaquer tivesse agido da maneira mais natural
possível, devia, nesta altura, saber quem Bond era. O próprio nome sig-
nificaria bastante para o sucessor de Blofeld. E que seria esta conferência
daí a poucos dias? Um encontro das estrelas da ESPECTRO? O Rancho
Bismaquer era o lugar apropriado para o novo chefe da ESPECTRO — um
mundo extravagante, no qual a fantasia se misturava bem com as duras
realidades da extorsão e do terrorismo.
Quando algo particularmente desagradável acontecia, Bismaquer
podia, como todos os bons paranóicos, esquecer-se do que acontecera,
ocupando-se com os novos sabores de gelados, conduzindo na sua pista
de corridas privativa ou simplesmente descansando na verdadeira fanta-
sia hollywoodesca da enorme casa, Tara. E tudo o vento levou.
— Bem vocês querem refrescar-se — disse Bismaquer, acabando a
refeição abruptamente. — Tenho de discutir uma coisa com Walter. Sabe
a que me refiro, James. Vou mandar um guia levá-los às cabanas, e de-
pois, por volta das quatro, vamos buscá-los para a visita ao rancho. Aí às
quatro e meia, está bem?
Tanto Bond como Cedar disseram que estava óptimo, e Nena falou
pela primeira vez:
—Não te esqueças, Markus, sou eu quem vai com James.
A já familiar gargalhada.
— Claro que sim, querida! Achas que eu ia perder a oportunidade
de passar algum tempo a sós com a nossa encantadora Cedar? São as
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duas cabanas que arranjaste, não são querida?
Nena Bismaquer disse-lhe que sim, e quando iam a sair da sala de
jantar, ela encostou-se a Bond.
— Estou ansiosa por lhe mostrar o lugar, James. — Fez um olhar de
quem não estava na brincadeira. — E também por falar consigo.
Não havia dúvidas. Nena estava a querer transmitir-lhe uma men-
sagem.
Lá fora, esperava-os uma camioneta em frente ao Saab, com uma
bandeira escarlate presa a uma antena traseira.
— Os rapazes vão indicar o caminho até às cabanas — disse Bisma-
quer. — Entretanto, não se preocupe, James, vou tirar a limpo aquilo que
me contou. Ah, e esta noite quero falar de negócios consigo. A sério. Vou
fazer uma oferta pelas gravuras. A propósito, não pense que não reparei
na rapidez com que as levou de novo para fora da casa.
— E a minha missão, Markus. — Bond agradeceu-lhe a refeição de-
liciosa, e, quando partiam no Saab, Cedar começou a rir.
— Bolas, que encenação! — exclamou.
— Refere-se ao convite para ficar alguns dias?
— Isso, entre outras coisas.
— Tudo para nos fazer sentir como em casa e à vontade.
— Óptimo — disse Bond. — Markus é um verdadeiro rei. Parecia
inocente como uma criança quanto aos patifes de Nova Iorque.
— Tocou nesse assunto com ele? — Cedar franzia o sobrolho, en-
quanto Bond lhe contava a conversa com o seu anfitrião.
Estavam agora a cerca de quilômetro e meio da casa, e continu-
avam a seguir a camioneta, que rodava a uma velocidade regular à sua
frente.
— Quaisquer que sejam os alojamentos — avisou Bond —, temos
de partir do princípio de que estão sob escuta. Assim como os telefones.
Se quisermos falar, deveremos fazê-lo ao ar livre. — Quando estivessem
a visitar o rancho, disse Bond, deviam escolher lugares para explorar. —
O centro de conferências vai ter de ser um deles. Mas vai haver outros.
Podemos ter menos tempo do que pensamos, Cedar, e é melhor come-
çarmos imediatamente.
—Hoje à noite, por exemplo?
—Exactamente.
Cedar riu de novo.
—Acho que você vai estar muito ocupado.
— Que quer dizer com isso?
86
— Quero dizer Nena Bismaquer. Ela está pronta a enfiar os sapatos
caríssimos debaixo da sua cama, assim que você o deseje, James.
— A sério? — Bond tentou fazer uma entoação inocente, mas lem-
brava-se vivamente do olhar de Nena e do modo como lhe falara. O facto
de ser casada com Markus Bismaquer traria obviamente as suas compen-
sações, mas talvez houvesse coisas que a fantasia do rancho e de Tara não
pudessem oferecer. — No caso de você ter razão — pensava alto —, se
houver alguma verdade nisso, Cedar, tratarei de que não nos incomodem
esta noite. O céu pode esperar.
Cedar Leiter deitou-lhe um olhar duro.
—Talvez — disse. — E o inferno pode?
A paisagem apresentava já algumas mudanças.
— Só de pensar em tudo que aquele homem mandou transportar
para este lugar! — disse Cedar, abanando a cabeça de espanto. Haviam
percorrido cerca de quinze quilômetros e subiam agora para uma crista
ladeada por uma mata espessa de abetos. O camião fez sinal para a es-
querda, virou para um caminho por entre uma mata de sempre-verdes, e
depois, inesperadamente, para uma ampla clareira.
As duas cabanas ficavam em frente uma da outra, com uma distân-
cia de cerca de dez metros entre elas. Estavam optimamente construidas,
com pequenos alpendres e pintadas de branco.
— Querem ter a certeza—murmurou Bond.
— A certeza de quê?
— De que ficamos neutralizados aqui. Há apenas uma entrada atra-
vés das árvores. Estamos rodeados e é fácil vigiarem-nos. Vai ser difícil,
Cedar. Difícil sair. Apostava que têm monitores de TV e alarmes electróni-
cos, e ainda alguns corpos bem vivos no meio das árvores. Mais tarde dou
uma olhada. A propósito, você está armada?
Cedar abanou a cabeça tristemente, sabendo que Bond tinha ra-
zão. As duas cabanas eram lugares onde os hóspedes podiam facilmente
ser vigiados.
— OK, tenho uma Smith & Wesson na pasta. Depois empresto-lha.
O condutor do camião esticou a cabeça para fora.
— Escolham à vontade — gritou. — Uma boa estada.
— É uma variante dos motéis — disse Bond alegremente —, mas
sentia-me mais seguro em Tara.
Cedar sorriu.
— Francamente, querido James — respondeu —, estou-me nas tin-
tas.
87
A uns trinta quilômetros dali, num pequeno escritório com paredes
amarelo-esverdeado e apenas o essencial — uma secretária, ficheiros e
cadeiras —, Blofeld ligava um número de Nova Iorque.
— Segurança Mazzard—responderam de Nova Iorque.
— Quero falar com o Mike. Diga-lhe que é o Chefe.
Alguns segundos depois, Mike Mazzard estava do outro lado da li-
nha.
— E melhor vires até cá imediatamente — ordenou Blofeld. — Te-
mos problemas.
Mazzard fez um estalido com a língua.
— Já vou a caminho. Mas é preciso tratar de outras coisas para a
conferência. Estarei aí daqui a uns dois dias. Mais cedo, se conseguir.
— O mais depressa possível. — Não havia dúvidas acerca do tom
irritado na voz de Blofeld. — Já meteste água de mais, e temos aqui Bond
como um alvo fácil.
—Logo que eu puder. Quer tudo bem feito, não quer?
— Lembra-te apenas disto, Mazzard. A casa da baía pantanosa tem
guardiões muito esfomeados.
Blofeld poisou o telefone e encostou-se para trás, a pensar na pró-
xima jogada da ESPECTRO. Tanto tempo e tantos planos, e depois aque-
le cretino do Mazzard quase deitara tudo a perder. Ninguém o mandara
matar Bond, e Mazzard estava sempre com o dedo a jeito no gatilho. A
seu tempo, pensou Blofeld, algo teria de ser feito em relação ao Sr. Mike
Mazzard.
CÃO DE CAÇA. Blofeld sorriu ao pensar nas palavras. Lá bem alto,
acima da Terra, naquele preciso momento, os americanos tinham os seus
cães de caça em força no espaço, e mais de reserva. Afirmavam que ne-
nhuma destas armas estava no espaço, mas tratava-se apenas de um sub-
terfúgio. Dentro de poucos dias, a ESPECTRO deitaria a mão a todas as
informações acerca destes Cães de Caça do Céu — os Lobos do Espaço
— e que plano, que engenho, que lucros! Só os soviéticos pagariam uma
fortuna pelas informações.
Desde a concepção do Cão de Caça, houvera a necessidade de um
bode expiatório principal, e, bem no fundo do espírito de Blofeld, Bond
fora sempre o indicado para o papel. Agora James Bond estava no Texas
— apanhado na armadilha, no engodo e no enredo. Pronto para o papel
escolhido e para a morte vergonhosa que Blofeld planeara para ele.
Os acontecimentos em Washington — ainda que não programados
e contrários às instruções — deviam ter abalado o britânico, mas Blofeld
88
tinha outras idéias em mente, outras actividades para deixar Bond des-
concertado. Só no fim a morte chegaria ao Sr. James Bond.
Blofeld começou a rir.

12
VISITA GUIADA

As cabanas eram idênticas, com excepção dos nomes: Sand Creek e


Fetterman. Se Bond bem se recordava, estes eram os nomes de dois mas-
sacres sangrentos das guerras índias, ocorridos por volta de 1860. Sand
Creek, se a sua memória não lhe falhava, constituiu um acto de traição
revoltante que culminou com a chacina de velhos, mulheres e crianças.
Nomes agradavelmente escolhidos para as cabanas das visitas.
Mesmo ao estilo de Blofeld, tal como todo o rancho. E Bond não
ficou surpreendido ao ver que os interiores das cabanas eram tão espaço-
sos e bem mobilados como tudo o resto. Cada qual tinha uma grande sala
de estar com televisão, estéreo e vídeo; quartos que envergonhariam até
os dos hotéis mais imponentes e grandes casas de banho, equipadas com
chuveiro e jacuzzi. A única diferença residia nos quadros. Sand Creek os-
tentava uma grande reprodução da tela de Robert Lindneux que descrevia
o massacre, enquanto a outra cabana continha uma reprodução ampliada
da impressa na Harpers Weekly que descrevia a batalha de Fetterman.
Os telefones, como em breve descobriram, estavam ligados apenas
à casa principal. Seria impossível contactarem um com o outro, e Bond
sentiu-se incomodado ao verificar que nenhuma das cabanas tinha fecha-
dura ou chave. Estes convidados não tinham qualquer privacidade.
Atiraram uma moeda ao ar para sortear as cabanas. Bond ficou
com a Fetterman e ajudou Cedar a transportar a sua bagagem para a Sand
Creek.
— Só virão buscar-nos às quatro e trinta — disse a Cedar —, por
isso, dou-lhe dez minutos e depois podemos fazer um pequeno reconhe-
cimento.
Era essencial, pensou Bond enquanto desfazia as malas, descobrir
os segredos do Rancho Bismaquer o mais rapidamente possível. Ao me-
nos, tinha o Saab. O seu equipamento podia ficar dentro do carro fecha-
do e aí estaria seguro. Um Saab normal era suficientemente difícil para
qualquer suposto ladrão. O modelo personalizado de Bond — com um
forte revestimento à prova de bala e outros extras — estava equipado

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com sensores que activavam alarmes, no caso de alguém tentar forçar a
entrada. Contudo, por agora estava mais preocupado com a sua seguran-
ça pessoal e não tinha quaisquer ilusões quando ao modo como haviam
sido isolados neste outeiro arborizado.
Cedar, seguindo o exemplo de Bond, estava pronta — vestindo uns
jeans novos, uma camisa e um casaco de franjas típico do Oeste — no
tempo que lhe fora concedido. Bond também mudara de roupa, saindo
da cabana vestindo um fato leve de cor creme comprado em Springfield.
Tal como Cedar, também ele tinha calçado botas de couro e também al-
terara a posição do coldre da VP70 — prendendo-o ao cinto e rodando-o
até ficar atrás da anca direita.
Sozinho na sua cabana, abrira a pasta. Agora, entregava a Cedar o
pequeno revólver e munições.
— Estou pronta para qualquer coisa — disse Cedar, pestanejando
na sua direcção.
— Vamos fingir que estamos envolvidos emocionalmente — disse
Bond em voz baixa, pegando-lhe na mão enquanto caminhavam em di-
recção ao carreiro sujo entre as árvores.
— Eu não preciso de fingir, James. — Olhou-o de relance, apertou a
sua mão com força e chegou-se mais a ele.
Bond sentiu mais uma vez a tentação impensável. Cedar, com aque-
les grandes olhos castanhos, seria capaz de seduzir um santo.
— Não faça isso, querida — murmurou. — Já é bastante difícil. O
seu pai é o meu melhor amigo americano e você é, sem dúvida, a menina
dos seus olhos. Por favor, não complique mais as coisas.
Ela suspirou.
— Oh, James, às vezes consegue ser tão complicado. Já ninguém
pensa duas vezes nestas coisas. — Manteve-se silenciosa até estarem
bem no meio das árvores e depois,acrescentou entre dentes: — E tenha
cuidado com a Bismaquer. E capaz de o comer vivo, não tenha dúvidas.
Por causa de quaisquer observadores, verdadeiros ou electrónicos,
fizeram com que parecesse um passeio casual, mas ambos se mantiveram
alerta e de olhos bem abertos. Mesmo assim, não viram qualquer equipa-
mento de vigilância.
— Talvez vigiem por meio de um radar ou qualquer outro siste-
ma instalado em Tara — disse Bond, pensando em voz alta, enquanto
saíam da protecção das árvores. O outeiro proporcionava-lhes uma vista
soberba do rancho. Em baixo, cerca de oito milhas à frente, erguia-se uma
verdadeira cidadezinha com edifícios de tijolo e barro — os alojamentos,
90
pensou Bond, do pessoal de Bismaquer, enquanto à direita, o branco res-
plandecente de um edifício com a forma de um T brilhava à luz do sol.
Conseguiam ver que esta grande estrutura ficava junto ao muro protector,
e que estava rodeada por uma densa camada de verdura.
— A selva controlada — disse Bond, fazendo um aceno na direcção
do complexo. — Deve ser o centro de conferências. Temos de lhe deitar
uma olhada.
— Pela selva? — Cedar franziu as sobrancelhas. — Imagino o que
devem ter para ali escondido. Vê? Há uma espécie de fosso no orla exte-
rior e vedação junto aos edifícios.
Bond pensou na possibilidade de haver ali animais selvagens, rép-
teis ou mesmo plantas venenosas. O anterior chefe da ESPECTRO sabia
tudo acerca de jardins venenosos — havia um no Castelo da Morte no
Japão. As pessoas podiam ser mantidas fora ou presas no interior do com-
plexo do centro de conferências, através de centenas de meios diferentes,
para não falar nos dispositivos mais mundanos, tais como as vedações de
alta voltagem, semelhantes às utilizadas para proteger o monocarril.
A visão em si era certamente empolgante, mas Bond fez um esforço
para se concentrar. Entrar no centro de conferências constituía um dos
objectivos mais essenciais.
Havia ainda o laboratório de Bismaquer, o qual, suspeitavam, era
o longo edifício situado perto da estrada principal do rancho e que pas-
sava por baixo do ponto onde se encontravam. O laboratório parecia um
alvo fácil, embora Cedar chamasse a atenção para um segundo edifício,
parecido com um armazém, construído nas traseiras do laboratório e par-
cialmente camuflado com árvores. Uma estrada larga, saída das traseiras,
entrelaçava-se e finalmente curvava-se par apanhar a estrada principal.
Muito ao longe, cobertas por uma neblina azulada, viam-se as
pastagens; e da sua posição vantajosa conseguiam mesmo distinguir os
pequenos pontos que constituíam o gado. Era também aparente que o
outeiro não era o ponto mais elevado. À esquerda do centro de confe-
rências, a terra de Bismaquer inclinava-se ligeiramente até chegar a um
amplo planalto onde fora construído o aeródromo, um planalto suficien-
temente comprido, ambos acharam, para receber aviões muito grandes.
Como a confirmar isto, ouviu-se o ruído súbito dum motor que
ecoava por toda a propriedade e, enquanto observavam, um Boeing 747
elevou-se no ar.
— Se tem capacidade para Jumbos, conseguem aterrar e descolar
aqui quase todos os tipos de aviões. — Os olhos de Bond semi-cerraram­
91
-se ao olhar a luz quente e desagradável. — Outro alvo. Recapitulemos,
Cedar. Precisamos de dar uma olhadela ao edifício de conferências, ao
laboratório de Bismaquer, ao aeródromo...
— E, deste lado, à estação de monocarril. — Cedar apertou ainda
mais a sua mão. — Para o caso de termos de sair por ali. Pelo menos, já
sabemos o que nos espera do outro lado.
— Os irmãos Drácula e uma rápida tostagem na vedação. — A boca
de Bond fechou-se num sorriso cruel. — Bismaquer pode ter muita ale-
gria e muito dinheiro, mas este sítio tresanda como uma estrumeira. Tem
um pequeno exército de prevenção, um belo palácio de diversões, mais a
pista de corridas, onde quer que ela seja, além do gado. Bismaquerlândia,
a resposta do Texas à Disneylândia. Mas sabe uma coisa, Cedar? Por de-
trás de todos os divertimentos e animação, quase consigo sentir o cheiro
da ESPECTRO. Tem todos os esplendores excessivos que teriam agradado
ao seu falecido e não lastimado fundador, Ernst Stavro Blofeld.
Bond, como um general que planeia a táctica da batalha, desejou
ter consigo uns binóculos ou material com que pudesse fazer um mapa.
Pouco depois, Cedar perguntou-lhe se achava que conseguiriam sair.
— Só o tentaremos depois de termos a certeza de duas coisas, e
bem sabe quais são.
Ela anuiu e o seu rosto adquiriu uma expressão dura.
— O que é que a ESPECTRO está a preparar, se é esta a sua base...
— É a sua base, não há dúvida.
— ... e qual é o verdadeiro culpado.
— Certo. — O rosto de Bond manteve-se impassível. — Quem é
que acha? Bismaquer ou Walter Luxor?
— Ou Lady Bismaquer, James.
— Está bem, ou por que não Nena Bismaquer? Mas eu aposto em
Bismaquer. Tem todos os sintomas do paranóico: uma capa de Pai Natal,
uma obsessão por riqueza e poder e quer sempre mais. Eu voto nele e
Walter Luxor é o seu eunuco-chefe.
— Não esteja tão seguro quanto ao eunuco. — Cedar engoliu em
seco. — Ao almoço fiquei sentada a seu lado. Aquelas mãos têm ten-
dência para não estarem quietas. — O pensamento arrepiou-a. — E não
posso fechar a porta do meu quarto.
Bond afastou-a da beira do outeiro para inspeccionar mais uma vez
o bosque.
— Devem ter algum sistema de vigia — disse, após meia hora de
busca infrutífera. —Acho que devemos tentar despistar os cães de guarda
92
que nos vão colocar esta noite, e depois damos uma volta por nossa con-
ta. Olá... — Estacou ao ouvir o barulho dum motor vindo da estrada por
debaixo do outeiro e agarrou o braço de Cedar. — Deve ser o grupo dos
cicerones. Não se esqueça, agora vão separar-nos, mas depois do jantar
em Tara temos de nos manter juntos. Certo?
— Combinado, Sr. Bond. — Cedar levantou-se para lhe dar um bei-
jo rápido no queixo. — E não se esqueça do que eu disse acerca da Lady
Dragão.
— Não faço promessas. — A máscara de seriedade de Bond desa-
pareceu por um momento. — A minha velha ama costumava dizer que as
promessas são como os ovos: foram feitas para serem quebradas.
— Oh, James...
Saíram do meio da vegetação e dirigiram-se à clareira no momento
em que Bismaquer, enorme ao volante de um Mustang GT vermelho, que
parecia um carro de corridas, chegava no meio de uma nuvem de poeira.
O Mustang guinchou ao parar atrás do Saab. Por volta de 1966, pensou
Bond, reconhecendo o carro. Provavelmente com um motor 289 V-8.
Nena estava sentada ao lado do marido, de cabelos soltos ao vento
e rosto radiante, corada pelo que fora provavelmente uma viagem rápida.
Saltou do carro num único movimento gracioso, às suas longas pernas
desviando-se da porta com muita agilidade.
— Bela máquina. — Bond arreganhou os dentes. — Não me impor-
tava de tomar conta dela, se é que ainda pensa no Grande Prêmio.
— Posso oferecer-lhe uma competição muito mais excitante, James
— respondeu Bismaquer. — Mas mantém-se, está bem. Está tudo prepa-
rado. Mais tarde dou-lhe os pormenores. Estão prontos? Que cabanas
ocupam? Ou estão os dois na mesma? — Soltou uma risada maliciosa,
mas sem olhar de soslaio.
— Cedar está na Fetterman e eu na Sand Creek — disse Bond rapi-
damente, alterando as cabanas antes que Cedar pudesse deixar escapar
a verdade. Se Luxor era um devasso, talvez fosse melhor tentar apalpar
Bond durante a noite.
— Estão prontos, James? — Os olhos de Nena Bismaquer, cintilan-
tes um momento antes, adquiriram de repente uma expressão séria en-
quanto fitava Bond.
— Quer arriscar-se a vir no Saab? — perguntou.
— Ela corre todos os riscos. — Bismaquer rebentou de riso. — Ve-
nha, Cedar. Vou mostrar-lhe o que é conduzir, e um bocadão da melhor
terra de Bismaquer.
93
Bond abriu o Saab, indicando a Nena o lugar do passageiro. De
acordo com Bismaquer, a “grande excursão” durava perto de três horas,
mas desta vez iria ser mais curta. O jantar estava marcado para as sete e
meia.
— Quero estar meia hora consigo e com aquelas gravuras, James.
Encontramo-nos na pista às seis e quarenta e cinco. Nena indica-lhe o
caminho. Porte-se bem, e se não puder portar-se bem...
Bond perdeu as últimas palavras de Bismaquer, abafadas pelo pro-
fundo rugido da ignição do Saab. Então, com um aceno, fechou a porta e
o ruído diminuiu até um barulho surdo e suave.
Sentada no seu lugar, Nena Bismaquer virou-se para ele.
— OK, James. Vou mostrar-lhe o melhor do orgulho e alegria de
Markus.
— Consigo ver daqui. — Bond sorriu. Era fantástica, e a sua cor sau-
dável e bronzeada competia com os seus incríveis olhos negros.
Ela riu, com um som musical que percorreu toda a escala.
— Não acredite nisso. O Rancho Bismaquer é o seu único orgulho
e alegria. Vamos, deixe-me mostrar-lhe isto; seguimos pela estrada pano-
râmica.
Arrancaram, tomando a estrada em direcção à pequena cidade que
albergava o pessoal do rancho. Viam-se relvados limpos, um pequeno
parque onde brincavam crianças e Bond podia ver homens e mulheres a
fazerem a vida normal de qualquer cidade — fazendo compras no grande
armazém, trabalhando nos pátios, estendendo a roupa. A atmosfera de
normalidade era quase sinistra. Havia até uma pequena igreja com um
campanário de madeira. Tal como tudo no rancho, a cidade parecia o ce-
nário de um filme.
Enquanto passavam, Nena acenava às pessoas e Bond reparou num
carro-patrulha com os dísticos laterais “Segurança Bismaquer”.
—Polícia da Estrada?—perguntou.
— Claro. Markus acredita na lei e na ordem. Acha que assim as pes-
soas se esquecem de que vivem numa área fechada. Sabe, James, estas
pessoas raramente saem daqui.
Bond não fez qualquer comentário, limitando-se a prosseguir e a
seguir as suas instruções. Foram até ao extremo da pastagem e voltaram
para trás pela estrada do aeroporto. Era óbvio que ele e Cedar tinham
razão; isto não era uma simples pista de aterragem no meio do deserto,
mas um aeroporto de grande escala.
— Chama-se Aeroporto Internacional Bismaquer, quer crer? — O
94
tom de voz de Nena parecia de troça espalhafatosa.
—Acredito. Para onde vamos agora?
Deu-lhe instruções e em breve circulavam perto do mato, seme-
lhante a uma selva, que rodeava o centro de conferências. Bond pergun-
tou se aquilo se destinava a manter as pessoas afastadas, embora sou-
besse muito bem, pelas observações feitas do outeiro, que se tratava
precisamente disso.
— Oh, mantê-los fora ou mantê-los dentro. Na verdade é para os
manter dentro. Aparecem aqui as pessoas mais estranhas para assistir
às conferências e têm tendência para meterem o nariz onde não devem.
Markus gosta da sua privacidade. Vai ver, logo que tenha feito negócio
consigo e lhe tenha mostrado todos os seus brinquedos põe-no fora qua-
se sem dar por isso.
Bond abrandou o carro, olhando constantemente para a alta e im-
penetrável vegetação.
— Não tem bom aspecto. Também tem um fosso à volta. Existem
ali dragões para desencorajar os habitantes?
— Não é nada assim tão mau; mas não consegue passar se não
tiver uma catana e alguma destreza. Tem um quilômetro de mato e algu-
mas partes são bastante perigosas. E uma alta vedação. No entanto, nós
podemos entrar.
— Bem, alguém tem de o fazer. Presumo que são vocês quem esco-
lhe o pessoal. A não ser que entrem e saiam de helicóptero.
— Os delegados às conferências entram, de facto, vindos de heli-
cóptero, mas aqui, eu mostro-lhe. Siga essa faixa verde durante mais três
quilômetros, aproximadamente.
— ... uma linda francesa a fazer num mundo de sonho como este —
disse Bond, como se falasse consigo mesmo.
Fez-se uma pausa momentânea, durante a qual 007 se amaldiçoou,
pensando que avançara depressa de mais. E depois:
— Também me interrogo. — A voz de Nena caíra, o brilho desapa-
recera. — Constantemente. — Novo silêncio antes de continuar. — Oh, é
uma longa história, complicada e não muito edificante, James. No meio
dela, pareço uma pesquisadora de ouro. Sabia que os pesquisadores de
ouro têm sempre a sobremesa que merecem?
— Pensei que tinham diamantes, casacos de pele de marta, car-
ros vistosos, apartamentos de luxo e, na maioria das noites, zabaglione,
creêpes suzette ou profiteroles para as suas merecidas sobremesas.
— Oh, isso também. Mas pagam um preço. Aqui, siga em frente.
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Comece a abrandar. — A estrada quase contornava a alta vedação e mu-
ros, onde no outro lado, Bond sabia-o, havia apenas vegetação seca e
pedras, estendendo-se quase até Amarillo.
—Estacione aqui — ordenou Nena.
Bond parou o Saab e depois, obedecendo à ordem de Nena, saiu
do carro.
Ela atravessou a estrada e ajoelhou-se, como se tivesse medo de
ser vista.
— Eu não devia revelar segredos de família. — O seu sorriso, quan-
do levantou a cabeça, pareceu dirigido como uma lança ao coração de
Bond. Isto é uma loucura, disse para si mesmo, pura e simples. Nena Bis-
maquer fora, literalmente, uma desconhecida até há algumas horas atrás;
contudo, já sentia inveja do áspero Markus Bismaquer. Sentiu um enorme
desejo de saber tudo sobre ela: o seu passado, infância, pais, amigos, do
que gostava e não gostava, pensamentos e idéias.
Dentro da sua cabeça tocavam avisos de alarme, puxando teimosa-
mente o seu espírito para a realidade do momento.
Nena Bismaquer estava ajoelhada junto ao que parecia ser uma
tampa de metal pequena e circular, com cerca de trinta centímetros de
diâmetro, que parecia ter algo a ver com drenagem. Uma argola de metal
estava embutida no meio da tampa e Nena abriu-a com facilidade, levan-
tando a espessa placa redonda como se fosse tão leve como plástico.
— Está a ver? — Mostrou-lhe um volante em forma de U que se
encontrava na reentrância. — Preste atenção. — Ao puxar o volante, um
bloco de pedra, situado na beira da estrada, desceu lentamente, como
se estivesse colocado em cima de um elevador hidráulico. O bloco tinha
cerca de metro e meio quadrado. Quando desceu até cerca de trinta cen-
tímetros abaixo da superfície, ouviu-se o silvo distante provocado pelos
hidráulicos. A laje deslizou para o lado, deixando ver, em baixo, uma câ-
mara larga e ladrilhada. Viam-se apoios para as mãos e pés ao longo da
parede que ficava mais próxima da estrada.
— Acho que não devemos descer. — A sua voz, geralmente calma,
denotava um ligeiro nervosismo. — Mas a câmara vai dar a degraus e a
um túnel que termina no edifício principal no gabinete dum porteiro. Lá
em baixo, há um dispositivo para abrir e fechar e outro no outro extre-
mo. E apenas uma das engenhocas de Markus. Poucas pessoas sabem
da existência disto. O pessoal em serviço no centro de conferências entra
sempre por aqui e geralmente na véspera da chegada de uma delegação.
A comida é transportada de helicóptero e isto funciona como uma saída
96
de emergência em caso de sarilho.
Bond achou estranha a sua escolha das palavras.
— Que tipo de sarilhos? — perguntou.
— Já lhe disse. No meio dos delegados às conferências há pessoas
muito estranhas. Markus tem a mania da segurança. Tem toda a razão, é
claro. Oh, talvez eu não devesse ter-lhe mostrado isto. Venha, vamos em-
bora daqui. — Baixou-se e voltou a puxar a alavanca. A laje de pedra, em
cima dos suportes hidráulicos, deslocou-se no sentido contrário. Quando
estava colocada no sítio, Nena voltou a colocar a pequena tampa circular
no seu lugar e, com o pé, espalhou poeira em cima da tampa.
De novo no carro, parecia um pouco nervosa.
— Para onde vamos agora? — perguntou Bond, dando a impressão
de que o espectáculo da entrada escondida fora um acontecimento inte-
ressante mas sem importância.
Ela olhou para o relógio. Ainda tinham mais de quarenta e cinco
minutos até se encontrarem com Bismaquer.
— Vá pela estrada que conduz às cabinas. — Falou impulsivamente.
—Eu digo-lhe onde deve voltar.
Bond conduziu o Saab na direcção do outeiro arborizado. No en-
tanto, em vez de seguirem pela estrada rodeada de árvores, ela disse-lhe
para contornar o outeiro pelo lado esquerdo. A sua frente, Bond viu que
havia outra estrada que ia dar ao outro lado do terreno inclinado, sufi-
cientemente larga para carros e camiões.
A meio da subida, Nena apontou para uma saída, à direita, no meio
das árvores, e em breve encontravam-se numa pequena clareira escura
e rodeada de árvores, apenas com espaço suficiente para fazer inversão
de marcha.
— Tem um cigarro? — perguntou depois de ele ter desligado a ig-
nição.
Bond tirou do bolso a cigarreira metalizada e acendeu dois cigarros.
Reparou que os dedos dela tremiam. Nena deu uma longa fumaça, expe-
lindo lentamente o fumo.
— Olhe, James. Fui parva. Desculpe. Não sei por que o fiz, mas
peço-lhe que não diga a Markus que lhe mostrei a entrada para o cen-
tro. — Abanou a cabeça e repetiu: — Não sei por que o fiz. Bem vê, ele...
bem, ele fica furioso com estas coisas. Deixei-me levar. Uma cara nova,
uma pessoa simpática, percebe-me? — As mãos dela pareciam divagar na
direcção das suas, dedos entrelaçando-se nos dedos.
— Sim, acho que percebo. — O toque da sua mão era como um
97
pequeno choque eléctrico.
De repente, ela riu.
— Oh, céus. Não sou muito esperta, pois não? Podia ter feito chan-
tagem consigo, Sr. James Bond.
— Chantagem? — Preocupação e irritação puseram em franja os
nervos de Bond.
Ela levantou a mão, fazendo subir o braço de Bond com os dedos a
apertarem-se.
— Não se preocupe. Por favor. Não diga a Markus que revelei um
segredo de estado e eu não mencionarei o facto de você ser um... oh,
como é que se diz? Um falso comerciante? Um vigarista? Por estas bandas
usam outra expressão em calão...
— Um impostor? — perguntou Bond.
— Serve. — De novo o riso deslizante. — Uma boa descrição. Im-
postor. — Pronunciou a palavra deliciosamente como “empustore”.
— Nena, eu não sei...
— James. — Com a mão livre, abanou um dedo em frente dele. —
Tenho-o nas minhas mãos, meu caro, e Deus sabe como preciso de um
bom homem nas minhas mãos.
—Anda não sei o que é que...
Fê-lo calar.
— Escute. Markus é sempre o grande perito. Percebe de carros e
cavalos e de certeza que percebe de gelados. De facto, de gelados é mes-
mo a única coisa de que percebe. Mas gravuras? Tem livros, sabe do que
gosta, mas não é um perito. Mas eu sou. Alguns anos atrás, e antes de
eu ser a Sra. Bismaquer, estudei arte. Em Paris, comecei a estudar aos
doze anos de idade e a minha especialidade eram gravuras. Você tem um
conjunto de Hogarths desconhecidos. São únicas, é o que Markus me diz
sempre. Valem uma fortuna.
— Sim. E estão autenticadas. E eu ainda não disse que estão à ven-
da, Nena.
Ela fez um sorriso triunfante.
— Não, e não pense que eu não sei que esse truque já é muito
velho, James. Acena com elas, é isso? Não tem a certeza de que quer
vender? Olhe.
Continuando a falar, pegou-lhe na mão, ainda agarrada à sua, e
apertou-a no meio das suas coxas. O gesto foi tão natural, como se mal se
apercebesse do que acabara de fazer, mas Bond sentiu uma súbita dificul-
dade em respirar normalmente.
98
— Oiça, James. Você sabe que não existem conjuntos de gravuras
de Hogarth por descobrir. Você sabe-o. Eu sei. Tal como sei que as que
tem são falsificações muito boas. São tão boas que não duvido que gera-
ções futuras acreditarão que se trata de Hogarths originais. Tornar-se-ão
Hogarths verdadeiros. Sei como funciona o mercado. Uma falsificação de
uma obra de arte, se for manipulada convenientemente, transforma-se
em verdadeira. De uma maneira ou de outra, você já conseguiu conven-
cer algumas pessoas de que são verdadeiras; tem a autenticação, se é que
não é falsificada.
— Não é. — Bond sabia que não devia admitir qualquer ilegalida-
de. — Mas por que é que está tão segura de que se trata de falsificações?
Apenas as viu de relance.
Ela chegou-se mais, até os seus ombros se tocarem, e a sua cabeça
estava tão perto que conseguia sentir-lhe o cheiro do cabelo — não um
aroma destilado, preparado por uma fábrica cara, mas sim o verdadeiro
aroma do cabelo humano, cuidado, contendo a sua própria fragrância in-
definivel.
— Sei que são falsificações, porque conheço o homem que as fez.
De facto, já as tinha visto. Trata-se de um inglês chamado... o nome é vari-
ável..., ou Miller ou Millhouse ou será que é Malting? — Nena fez então a
Bond uma descrição precisa e pormenorizada do pequeno perito que tão
diligentemente ensinara ambos na casa secreta de Kensigton.
Raios, disse Bond para si mesmo. M fora excepcionalmente descui-
dado. Por outro lado, o seu chefe era uma raposa velha e manhosa, capaz
de preparar uma pista para a ESPECTRO seguir, não se preocupando com
o perigo que Bond podia correr.
— Bem, Nena, isso para mim é tudo novidade — mentiu, espe-
rando que não se notassem os sinais de choque no seu rosto e nos seus
olhos.
Quando falou, a voz de Nena dava a impressão de que estava com
falta de ar.
— James, eu não vou contar nada. Por favor, não lhe fale do túnel.
Não lho devia ter mostrado e... oh, James, às vezes ele assusta-me...
A sua mão soltou-se, os seus braços estenderam-se, enquanto pu-
xava os lábios dele para junto dos seus.
Houve um instante, logo a seguir a os seus lábios se tocarem, em
que Bond pensou ouvir a voz distante de Cedar dizer-lhe: “Ela vai comê-lo
vivo, não tenha dúvidas.”
No entanto, James Bond chegara a um ponto em que não se im-
99
portava mesmo nada de ser comido vivo pela espantosa Nena Bisma-
quer. Com a considerável experiência que possuía, não se lembrava de
alguma vez ter sido beijado deste modo. Começou com uma leve carícia,
quando os seus lábios se encontraram, prosseguiu com uma sensação de
formigueiro quando as suas bocas se abriram como uma só e as pontas
das suas línguas se tocaram, se afastaram e se tocaram de novo. Por fim,
ambas as bocas se renderam desejosamente e o beijo tornou-se quase
um microcosmo de todo o acto sexual. Os seus lábios, bocas e línguas
deixaram de ser órgãos separados e tornaram-se num só, esticando-se,
explorando e estendendo-se apaixonadamente.
Inconscientemente, Bond agarrou o seu corpo, mas a mão de Nena
segurou-lhe o pulso, mantendo-o afastado até que, ofegantes, ambos ce-
deram lentamente.
— James... — Falou quase num sussurro. — Pensei que a arte de
beijar tinha morrido.
— Bom, parece estar viva, de saúde e dentro dum automóvel Saab
no meio do Texas. — Não pretendeu ser leviano e, pela maneira como
falou, não foi essa a sensação que transmitiu.
Ela olhou para o relógio.
— Temos de ir. — Os olhos desviaram-se dos dele por um instante.
— Tenho de lhe perguntar uma coisa. — Voltou a cara e ficou a olhar em
frente. — Você e a Sra. Penbrunner, Cedar...?
— Sim?
— São...? Bem, há...?
— Somos amantes?
— Sim.
— Não. De modo nenhum. O marido de Cedar é um dos meus me-
lhores e mais íntimos amigos. Mas, Nena, isto é uma loucura. Markus...
— Matá-lo-ia. — Parecia muito calma. — Ou mandava matá-lo. Tal-
vez o mate, de qualquer modo. Em todo o caso, ia avisá-lo. Agora faço-o
contra a minha vontade, porque o que eu mais gostaria era que ficasse
aqui para sempre. Mas preferia tê-lo aqui vivo. Querido James. Deixe-me
dar-lhe um conselho: vá-se embora. Vá logo que puder. Tire de Markus
o que puder, mas faça-o esta noite, e depois parta o mais rapidamente
possível. O mal está aqui. Mais do que sonha.
— O mal?
— Não posso falar-lhe disso. Na verdade, eu própria não sei muito,
mas o que sei assusta-me. Markus pode parecer um palhaço simpático...
um ursinho rico, impetuoso, divertido e generoso. Mas o urso tem garras,
100
James, garras terríveis e um poder que se estende muito para além deste
rancho. De facto, muito para além da América.
— Quer dizer que é um criminoso?
— Não é assim tão simples. — Abanou a cabeça. — Não posso ex-
plicar. Posso, talvez, ir ter consigo esta noite? Não, esta noite não posso.
Não há hipótese. Se ainda aqui estiver amanhã... e, se seguir o meu con-
selho, já terá partido... mas se estiver cá, posso ir ter consigo?
— Faça favor. — Bond não conseguiu encontrar palavras eloquen-
tes. Nena parecia à beira de um precipício escondido dentro de si.
— Temos de ir. Mesmo que cheguemos tarde, ele é todo sorrisos,
mas depois é um inferno para mim.
Em silêncio, Bond limpou a boca enquanto Nena se servia do es-
pelho de maquilhagem para limpar os lábios e passar uma escova pelo
cabelo. Enquanto seguiam, Bond perguntou-lhe se ela conseguia explicar
qual era o seu papel no meio daquilo.
— Apenas os factos.
Falou rapidamente, enquanto lhe dava instruções. Nena Clavert,
fora esse o seu nome, fora uma órfã que vivia em Paris com uma paixão
pela arte! Um tio ajudara-a na sua educação, mas quando chegou aos 20
anos, ele era um homem doente. Trabalhou como criada em part-time e
prosseguiu os seus estudos, vivendo de um salário miserável. Finalmente,
começou a pensar que havia apenas uma saída.
— Pensei seriamente em tornar-me uma prostituta. Agora é melo-
dramático e dá vontade de rir. No entanto, na altura parecia ser a única
resposta razoável. Havia falta de empregos e eu precisava de dinheiro, o
suficiente para viver com conforto, para aprender e pintar.
Então surgira o americano rico, Bismaquer.
— Fez-me a corte da mesma maneira que lemos nos livros. Presen-
tes generosos, vestidos, refeições nos melhores lugares. E não me tocava,
não me tocou com um dedo sequer: o perfeito cavalheiro.
Finalmente, Bismaquer pedira-lhe para ser sua esposa. Ela ficou
preocupada devido à grande diferença de idades; mas ele dissera não ti-
nha qualquer importância. Se se tornasse demasiado idoso e inútil, ela
poderia fazer a sua vida.
— Foi só quando me trouxe para aqui que fiquei a conhecer o ver-
dadeiro homem que existia por detrás daquela natureza generosa. Sim,
existe um criminoso, uma ligação... terrível. Mas também há outras coi-
sas: o seu temperamento violento, que só os que lidam com ele conse-
guem ver. E claro, as suas preferências...
101
— Sexuais?
— E espantoso para um homem da sua idade. Tenho de o admitir.
Mas é sexualmente..., como se diz James?..., ambivalente. Por que é que
pensa que tem sempre aqui Walter Luxor, aquela caveira? Não é só pela
sua esperteza para tratar dos negócios. Ele... bem... ele e Luxor...
A sua voz arrastou-se, e depois voltou a adquirir a calma habitual.
— Às vezes passam-se meses que não me procura. Depois, tudo
muda. Oh, quando quer é insaciável... Volte aqui — ordenou. — Tenho de
parar de falar, ou ele vê como é que eu estou. Não lhe dê o menor indício,
James. O mais pequeno indício.
Seguiram por uma pequena estrada, que os conduziu à volta das
traseiras dos macios relvados que rodeavam Tara, continuaram por entre
árvores, altas e espessas, que explicavam por que Cedar e Bond não con-
seguiram ver a pista de corridas do ponto vantajoso que desfrutavam no
outeiro.
As árvores constituíam uma barreira por toda a parte — um dispo-
sitivo que Bismaquer muito gostava de utilizar em todo o rancho. Desta
vez, escondiam um enorme circuito oval, suficientemente largo para re-
ceber três ou quatro carros. Os ângulos no extremo mais próximo da casa
formavam curvas ligeiras, mas a meio caminho do lado mais afastado via­
-se uma chicane desagradável, seguida de uma angustiante curva em co-
tovelo, enquanto o ângulo seguinte — na ponta distante do mal acabado
circuito oval — tinha quase a forma de um Z.
Uma volta completa à pista devia medir doze quilômetros e Bond,
com visão experimentada, detectou os seus riscos e os pontos muito pe-
rigosos.
No extremo oposto via-se uma bancada inclinada de madeira; em
baixo, viam-se os fossos e as garagens. O Mustang vermelho estava a che-
gar junto à bancada, onde a figura esquelética de Luxor estava de pé, pre-
parada para saudar Bismaquer e Cedar.
Bond conduziu o Saab à volta da estrada de acesso, a qual corria
paralelamente ao circuito. Enquanto se aproximavam, Bismaquer e Cedar
tornaram-se claramente visíveis, de pé junto a um carro prateado, como
o Saab de Bond, com Walter Luxor ao volante.
— Tenha muito cuidado, James. — Nena parecia readquirido o seu
autocontrolo. — Quando está ao volante, Walter torna-se um homem pe-
rigoso. É um perito, conhece esta pista como as suas mãos e consegue
atingir velocidades incríveis. E o que é pior, desde que sofreu um acidente
nunca mais teve medo, nem do que lhe possa acontecer a si nem a qual-
102
quer adversário.
— Eu também não sou assim tão mau — disse Bond, ouvindo a
raiva que sentia por Bismaquer e Luxor profundamente embutida na sua
voz. — Se querem fazer esta corrida, acho que posso ensinar umas coisas
a Walter Luxor, em especial se a corrida for limpa. Só irei correr contra
pessoas do meu nível. — Parou, enquanto se aproximavam do grupo e
identificou o outro carro dourado. — E parece que vou ter umas hipóteses
razoáveis, e espaço suficiente. — Parou o Saab, abriu a porta e deu a vol-
ta para ajudar Nena Bismaquer a sair, enquanto Markus se aproximava,
dando-lhe uma palmada nas costas e emitindo outra das suas gargalha-
das, que agora se tornavam irritantes.
— Gostou? Não é fantástico? Vê por que tenho tanto orgulho no
Rancho Bismaquer?
— É um lugar e pêras. Comparado com isto, qualquer condado de
Inglaterra parece uma pequena quinta. — Bond sorriu, olhando Cedar. —
Eh, Cedar? Não é uma maravilha?
— É mesmo qualquer coisa — respondeu. Só Bond poderia ter no-
tado o tom de ironia e só Bond reparou no olhar furioso dirigido directa-
mente a Nena Bismaquer.
— Amanhã — disse Bismaquer em voz alta, fazendo um floreado na
direcção do carro prateado. — Acha que tem adversário à altura, James?
Walter vai correr comigo. Amanhã de manhã, acho eu. Que tal?
Bond olhou para Luxor, sentado ao volante daquele modelo Mus-
tang — o Shelby American GT 350. Fora um carro de corridas muito popu-
lar e competitivo no final dos anos 60; tinha uma estrutura mais leve, um
sistema de exaustão livre e um motor 289 V-8.
— Claro que está um pouco ultrapassado. — Bismaquer soltou uma
risada. — E já tem treze anos. Mas acho que é capaz de competir consigo
nesta pista, mesmo com o seu turbo. Aceita, James?
Bond estendeu uma mão.
— Claro que aceito. Deve ser divertido.
Bismaquer voltou a cabeça, falando na direcção de Luxor.
— Amanhã, Walter. Por volta das dez da manhã, antes que o tempo
fique muito quente. Oito voltas. OK, James?
— Até dez, se quiser. — Se era fanfarronice que queriam, podiam
contar consigo.
— Óptimo. Vou convidar alguns dos rapazes. Não há nada de que
gostem mais do que uma boa corrida. — E em seguida, com uma mu-
dança brusca, Bismaquer voltou-se para Nena. — Bom, vamos regressar.
103
Tenho umas coisas a fazer esta noite e antes de jantar tenho de conversar
aqui com o jovem James. Acho que as senhoras também se querem re-
frescar um pouco.
Nena fez a Bond um sorriso imperturbável.
— Agradeço-lhe ter aturado a minha palestra acerca das maravi-
lhas do Rancho Bismaquer, James, gostei de lho mostrar.
— O prazer foi meu. — Bond abriu a porta a Cedar, que por sua vez
agradeceu a Bismaquer. Ligaram os motores e Bismaquer, com a esposa a
seu lado, indicou-lhe o caminho até Tara.
— “Muito obrigado por ter aturado a minha palestra, James.” —
imitou Cedar. — “Oh, o prazer foi meu, Nena; o prazer foi meu.” Você é
um pulha, James Bond.
— Possivelmente. — Bond falou num tom sarcástico. — Mas apren-
di muita coisa. Por exemplo, Nena Bismaquer pode ser a única ajuda que
temos aqui dentro. E também que não precisamos de nos apressar por
causa do centro de conferências. Há uma entrada fora da estrada. Não há
problema. Acho que as actividades para esta noite terão de se limitar ao
laboratório e ao edifício por trás dele. Gostou da companhia de Bisma-
quer?
Cedar, momentaneamente silenciada pelas notícias de Bond, pare-
cia estar a contar para si própria.
— Bem... — Terminou. — Para lhe ser franca, Bond, não confiaria
em nenhum deles; e se Nena não fosse uma predadora, diria que Bisma-
quer é maricas.
—Acertou à primeira — disse Bond.
— Oh, que sorte. — Cedar fez um sorriso afectado, enquanto volta-
vam para a estrada principal de Tara. — Eu ‘tar doente, Miss Scarlett, eu
‘tar doente.

James Bond, com um grande vodca-martini na mão, estava senta-


do à varanda em frente de Markus Bismaquer. Walter Luxor pairava mais
atrás.
— Bom, vamos lá, James. — Bismaquer colocara de lado, por ago-
ra, a sua personalidade cordial. — Ou as gravuras estão à venda ou não
estão. Quero uma resposta directa. Estivemos com rodeios, e agora estou
pronto a fazer-lhe uma proposta.
Bond bebeu um gole, colocou o copo em cima de uma mesa a seu
lado e acendeu outro cigarro.
— Está bem, Markus. Como disse, acabaram-se os rodeios. Tenho
104
instruções muito precisas. As gravuras estão à venda...
Bismaquer deixou escapar um suspiro de alívio.
— ... estão à venda para serem leiloadas em Nova Iorque, daqui a
uma semana.
— Eu não vou a nenhum leitão... — começou Bismaquer, parando
quando Bond levantou uma mão.
— Estão à venda em leilão público, em Nova Iorque, daqui a uma
semana, a não ser que antes me ofereçam um certo preço. Mais: as mi-
nhas instruções são no sentido de que existe uma reserva muito firme
para todo o conjunto; e eu não posso revelar essa reserva a qualquer
comprador potencial.
— Bem... — começou de novo Bismaquer. — Ofereço-lhe...
— Espere — interrompeu Bond. — Antes devo avisá-lo de que, fora
do leilão, a primeira oferta pelas gravuras será a única aceite. O que sig-
nifica, Markus, que se oferecer um valor abaixo da reserva secreta fica
sem hipóteses. O meu representante dará instruções ao leiloeiro para não
aceitar licitação de uma pessoa ou pessoas ligadas a alguém que já tenha
feito uma licitação particular. Por outras palavras, terá de ser muito cui-
dadoso.
Pela primeira vez naquele dia, Bond pensou que conseguia detec-
tar traços de malevolência no rosto de Bismaquer.
— James — começou finalmente —, posso fazer-lhe duas pergun-
tas?
— Pode. Responder-lhe-ei à minha vontade.
— Está bem. Está bem. — Bismaquer parecia desorientado. — A
primeira é fácil. A minha experiência diz-me que todos os homens têm
um preço. Presumo que é corrompível?
Bond abanou a cabeça.
— Não, quanto a isto ninguém me pode subornar. A Sra. Penbrun-
ner encontra-se aqui. Em todo o caso, assumi uma obrigação legal. Qual
é a segunda pergunta?
—A reserva baseia-se num valor verdadeiro?
— Não existe nenhum valor verdadeiro. As gravuras são únicas.
Mas, para lhe dar algumas esperanças, a reserva baseia-se num preço que
se calcula ser a média entre o mínimo e o máximo que poderiam atingir
num leilão público. Eu não percebo de computadores, mas foi assim que
se chegou a esse valor.
A sua volta, as cigarras haviam começado a chilrear. Começava a
anoitecer e, ao longe, a lua, grande e amarela, começava a mostrar-se no
105
céu sem nuvens e já um pouco escuro. No silêncio, Bond ouviu Bismaquer
tossir.
E depois:
— Está bem, James, faço uma tentativa. Um milhão de dólares.
De facto, Bond inventava tudo, sem qualquer valor em mente. Ago-
ra, sorria para dentro, enquanto falava.
— Mesmo em cheio, Markus. São suas. Que propõe? Chamo o Prof.
Penbrunner? Apertamos as mãos ou quê?
— Oh, James, meu amigo, você fez-me sofrer. Acho que temos de
avançar com isto. Diga-me, conseguia reunir um milhão de dólares? Refi-
ro-me a agora, neste momento.
— Quem, eu?
— É a si que estou a perguntar.
— Não neste instante. Mas num dia ou dois, sim. Sim, conseguia.
— Você é jogador?
— Já aconteceu. — Bond pensou nas muitas mesas de jogo, pó-
quer, cassinos e clubes privados, onde jogara.
— OK. Vou dar-lhe a maior oportunidade da sua vida. Amanhã vai
correr contra Walter. Um carro dos finais dos anos 60 contra o seu rápi-
do turbo. Ofereci um milhão de dólares por essas gravuras. Se conseguir
bater Walter na pista, de bom grado pagarei o milhão e juntarei outro
milhão pelo seu esforço.
—É muito generoso...
Mas Bond parou quando Bismaquer levantou a mão.
— Calma aí, rapaz. Ainda não acabei. Ofereci um milhão. Se Walter
o vencer, não recebe nada pelo seu esforço; eu fico com as gravuras e
você pagará por mim.
Era uma cena subtil, um jogo baseado no conhecimento que Mar­
kus Bismaquer tinha de Luxor, do Shelby American GT e da pista, mas não
deixava de ser um jogo. Excepto que, Bond sabia, se Bismaquer fosse o
novo Blofeld — ele ou Luxor —, ninguém iria receber nada pelas gravuras.
Bismaquer jogava consigo, contando que Bond mordesse o isco e, muito
provavelmente, morreria naquele quente circuito cheio de curvas perigo-
sas.
Ao passo que se recusasse...?
Mostrando a Bismaquer o seu sorriso mais encantador, Bond anuiu.
Na escuridão que se formava, estendeu-se para apertar a mão do gran-
dalhão.
— Combinado — disse James Bond, sabendo que aquela palavra
106
podia muito bem significar a sua própria sentença de morte.

13
DEMONSTRAÇÃO DE FORÇA

— Que diabo podemos fazer agora? — perguntou Cedar, acenando


alegremente para os Bismaquer e Walter Luxor de dentro do Saab.
— Sente-se quietinha, aperte o cinto de segurança e prepare-se
para alguma turbulência. — Bond mal mexia os lábios. Em voz alta, gritou
para Bismaquer, de pé no pórtico: — Vemo-nos amanhã de manhã. No
circuito. Às dez em ponto.
Bismaquer anuiu e acenou-lhes. O camião, à frente, começou len-
tamente a guiá-los pelo caminho.
A seguir ao café e brande, Bismaquer e Luxor haviam pedido licen-
ça para se retirar.
— Quando se é dono de uma extensão de terreno como esta — dis-
sera Markus Bismaquer —, há que tratar de imensa papelada, e esta noite
é a altura de o fazer. De qualquer forma, vocês dois já devem estar com
sono. Durma bem, James. Amanhã tem a corrida.
Bond concordara, dizendo que conseguiam facilmente voltar às ca-
binas sem um guia. Porém, o camião estava ali, pronto e à espera, e não
havia nada capaz de fazer Bismaquer mudar de idéias.
E assim tinham um guia, um facto que reduzia grandemente as hi-
póteses de fingirem que se tinham perdido e de efectuarem um reconhe-
cimento completo ao rancho.
Bond chegou o Saab à traseira do camião, apertando o condutor
ao voltarem para a estrada principal que atravessava o rancho. Podiam,
claro, segui-lo, voltar para as cabanas, e em seguida, no Saab, tentar a
sorte nas estradas abertas. Mas Bond tinha poucas dúvidas de que o guia
do camião ficaria a vigiá-los.
— Provavelmente deixa-nos ao pé das cabinas e depois mete-se
algures no meio das árvores, onde pode ficar de olho em nós. Depois do
que vimos, ou não vimos, esta tarde, tenho a impressão de que Bisma-
quer prefere a vigilância humana à electrónica. Tem uma porção de gente
a trabalhar para ele, até mesmo a sua própria patrulha de estrada.
Cedar gesticulou na escuridão.
—Então estamos encurralados?
— Até certo ponto. No entanto, o tempo escasseia. Precisamos de

107
dar uma olhadela naquele laboratório, e já agora gostava de lhe mostrar
exactamente como se entra no centro de conferências. Ou melhor como
é que eu entro lá. Tem o cinto bem apertado?
Ela resmungou um “sim”.
— OK. O que ouviu hoje faz com que não tenha problemas de cons-
ciência. — Bond sorriu para si próprio. — Não me importo de magoar
algumas pessoas.
Saíram da estrada principal e dirigiram-se para o outeiro. Faltavam
cerca de sete quilômetros. É preciso apanhá-lo no meio das árvores, pen-
sou Bond, esticando o braço para baixo, de modo a premir outro dos bo-
tões que soltava os óculos de visão nocturna que trazia sempre consigo.
Os óculos consistiam numa caixa de controlo oblonga, com uma ex-
tremidade almofadada que se adaptava à cabeça. Os controlos de brilho
e focagem estavam no lado direito, e à frente havia duas lentes salientes,
como um par de pequenos binóculos.
Usando apenas uma mão, prendeu o dispositivo à cabeça e ligou-o.
Bond passara muitas horas a treinar-se, guiando na escuridão total,
apenas com a ajuda dos óculos de visão nocturna, que já usara também
uma vez em acção. Proporcionavam uma imagem quase nítida na escuri-
dão, o suficiente para permitirem à pessoa que os usasse ver claramente
até uma centena de metros.
Feitos os ajustamentos, Bond chegou o Saab muito para junto da
traseira do camião. Faltava agora cerca de quilômetro e meio para o ou-
teiro.
Sucintamente, explicou a Cedar o que ia fazer.
— Daqui a um minuto vai ficar muito escuro. Então seguir-se-á um
pouco de acção e depois bastante luz. Com sorte, ele vai sair da estrada
sem danificar demasiado a camioneta. Vamos precisar dela para nós.
Estavam quase a chegar ás árvores.
— OK. Segure-se. — Bond desligou as luzes do Saab e viu, com os
óculos especiais, a camioneta vacilar ligeiramente na estrada. Por um se-
gundo, o condutor poderia muito bem ver os contornos do Saab, mas
ficaria intrigado, e a escuridão atrás de si distrai-lo-ia.
Bond não se deixou ficar atrás por muito tempo. Desviando o carro,
carregou suavemente no acelerador. O ponteiro do conta-rotações subiu
rapidamente, ultrapassando o limite das 3000, e fazendo accionar o tur-
bo.
O Saab disparou, com o turbo a adquirir o gemido normal, quando
ultrapassaram o camião. Bond apertou o condutor de modo a que, na
108
escuridão, se visse forçado a encostar. Devia ter visto o vulto ultrapassá­-
lo, e em seguida a luz dos faróis apanhou o Saab em cheio, antes de este
desaparecer para a zona escura, não deixando quaisquer rastos de luz.
— Ele agora vai aumentar de velocidade, e tentar apanhar-nos —
disse Bond. — Segure-se bem.
Sem abrandar consideravelmente, conservou o pé sobre o travão,
reduzindo na caixa e torcendo o volante. O Saab fez uma derrapagem
bem controlada, e Bond, reduzindo uma segunda vez, torceu o carro, de
modo a ficar voltado em sentido contrário.
— Deve estar em cima de nós a qualquer momento. — A sua voz
era calma, como a de um experiente piloto de combate conduzindo a sua
esquadrilha para o ataque. Estendeu a mão para junto do pequeno bo-
tão, colocado mesmo atrás da alavanca de mudanças. As luzes do camião
aproximavam-se agora rapidamente. Daí a um segundo o Saab ficaria per-
feitamente visível para o condutor.
Ainda na zona de escuridão, Bond premiu o botão. Outro dos seus
instrumentos de equipamento personalizado entrou em acção. A matrí-
cula dianteira do Saab subiu e, ao mesmo tempo, um farol de avião ins-
talado por trás da matrícula e por baixo do pára-choques, acendeu-se,
emitindo um enorme cone de luz branca e ofuscante.
O camião foi apanhado em cheio pelo feixe, e Bond podia imaginar
o condutor a esforçar-se por dominar o volante, cobrindo os olhos com
uma mão, e os seus pés lutando com o travão e a embraiagem.
O camião rodou para um lado, embateu contra uma árvore, e de-
pois, descontrolado, voltou-se de lado. O condutor estava livre do brilho
ofuscante da luz, mas era demasiado tarde. O camião deslizou na estrada,
balançando violentamente à medida que as rodas blocadas obrigavam o
veículo a girar. As rodas traseiras bateram contra a berma e, com um sú-
bito repelão, o pequeno camião pareceu arremessar-se contra as árvores
antes de parar abruptamente.
— Bolas! — Bond começou a tirar os óculos de visão nocturna. —
Fique aqui! — gritou para Cedar, enquanto agarrava na lanterna, tirava do
coldre a VP70 automática, e saía do Saab, a correr.
O camião estava inclinado contra as árvores, com um dos lados bas-
tante amolgado. Não havia sinais de vidros partidos. Já do condutor não
se podia dizer o mesmo, pois estava deitado para trás na pequena cabina,
com a cabeça pendurada de um modo bem familiar para Bond. A força
do impacte tinha dado um esticão na cabeça do homem, partindo-lhe o
pescoço.
109
Abrindo a porta com esforço, Bond tomou o pulso do condutor.
Devia ter morrido instantaneamente, sem saber o que acontecera. Por
um breve segundo, James Bond sentiu uma dor de remorso. Não quisera
matar o homem: algumas escoriações e nódoas negras teriam sido sufi-
cientes.
O condutor morto fazia parte da segurança de Bismaquer, e quan-
do Bond pegou no corpo para o tirar da camioneta, as suas reservas men-
tais foram aliviadas pelo facto de uma grande Magnum Smith & Wesson
.44 —Modelo 29, pensou Bond — pender, num coldre, da sua anca. Pro-
vavelmente tivera razão: o homem da segurança era cão-de-guarda, as-
sim como guia.
Empurrou o corpo para fora da estrada e para o meio da erva, entre
as árvores, investigando a área com a lanterna, para se certificar de que
conseguia encontrá-la de novo. Uma vez bem escondido o cadáver, Bond
tirou-lhe a Smith & Wesson, voltou para o camião e tentou pô-lo a traba-
lhar. Pegou imediatamente, parecendo estar a trabalhar razoavelmente,
quando recuou, raspando um pouco nas árvores. O depósito estava a três
quartos e os outros indicadores apresentavam-se normais. Bond condu-
ziu o camião até ao lado do Saab, mantendo os olhos desviados da luz
brilhante que emanava como uma explosão de magnésio da frente do
turbo prateado.
— Acha que consegue conduzir o camião? — perguntou a Cedar,
que saiu do Saab quase antes de Bond desligar o motor.
Nem sequer se deu ao trabalho de responder, e limitou-se a subir
lá para dentro, pronta para o substituir. Bond disse-lhe que seguiria atrás
dela pelo monte acima e que parasse ao pé das cabinas.
Já de novo no Saab, fez descer a matrícula, apagando o farol de
avião, ligou os faróis dianteiros, e pôs o carro a trabalhar. Cedar conduziu
lentamente o camião pela subida. Com uma inversão rápida e bem exe-
cutada em três fases, o Saab seguiu no seu rasto, e chegaram às cabinas
sem mais incidentes.
Aí, Bond explicou-lhe exactamente o que tencionava fazer e que
caminhos tomariam. O Saab ficaria no seu local habitual, trancado e com
os sensores de alarme ligados. O reconhecimento seria feito de camião.
— E menos provável que nos mandem parar se virem o distintivo
de Bismaquer.
Planearam descer rapidamente em direcção à área do centro de
conferências, para que Cedar aprendesse a manejar o mecanismo do tú-
nel, depois passar pela estação de monocarril, e por fim voltariam à zona
110
do laboratório.
— Devíamos deixar o camião escondido algures e ir a pé — avisou
Bond. — Depois, quando voltarmos para aqui, acho que o nosso pobre
amigo caído na estrada vai ver-se envolvido noutro acidente... desta vez
pela encosta abaixo. — Pôs a funcionar os sensores do sistema de alarme
do Saab, trancou o carro, e estava pronto a pôr-se ao volante do camião
— com a Smith & Wesson do guarda na mão — quando lhe ocorreu outra
idéia.
— Cedar, só por uma questão de segurança, é capaz de ser boa
idéia, pormos uns chumaços nas camas, para pensarem que lá estamos.
Quem sabe o que o Bismaquer ou Luxor têm preparado para nós? Sabe
como fazê-lo?
Cedar respondeu asperamente que fazia isso desde adolescente,
deu meia volta e dirigiu-se à Sand Creek. Bond acendeu um cigarro e diri-
giu-se calmamente à Fetterman. Levou muito pouco tempo a enfiar almo-
fadas debaixo dos lençóis finos. Na escuridão, o chumaço feito na cama
passaria certamente por um vulto de uma pessoa a dormir.
Cedar já estava junto do camião, à espera, quando Bond voltou.
Levava a Heckler & Koch VP70 à anca, e colocou a Smith & Wesson do
homem da segurança no chão do camião. Cedar ainda tinha o revólver
sobressalente, e Bond não se esquecera de se equipar com o molho de
gazuas e ferramentas do sector Q, assim como com a lanterna do Saab.
Desceram a encosta, com as luzes laterais acesas e em ponto mor-
to — uma sensação estranha. Apenas o suave ruído das rodas sobre o
caminho, o ressoar da deslocação do ar, e a leve brisa através da abóbada
silenciosa de abetos.
Bond carregou lentamente na embraiagem quando alcançaram a
estrada secundária. Nesta altura já se via a lua. Podiam facilmente ter
seguido à luz do luar, mas isso só iria levantar suspeitas, por isso Bond
ligou os faróis e voltou à direita, seguindo por uma estrada de uns vinte e
quatro quilômetros que os levou até à beira do muro principal e da selva
que rodeava o centro de conferências.
Foram apenas precisos alguns minutos para localizar e mostrar
como funcionava a entrada de mecanismo hidráulico para o túnel, e de-
pressa estavam de novo na estrada, mantendo-se perto do perímetro ex-
terior do rancho e em estradas que, no mundo normal, seriam chamadas
secundárias.
— A conferência está a intrigar-me — disse Bond, conduzindo com
mais cuidado que o habitual. — Quando os delegados começarem a che-
111
gar, quero ver se dou uma espreitadela rápida. Se a ESPECTRO planeou
alguma operação em grande escala, este seria o lugar ideal para a reunião
de esclarecimento.
— Começam a chegar amanhã à noite — disse-lhe Cedar, incapaz
de disfarçar uma certa dose de gozo.
— Sim?
— Disse-me a sua amiga Nena. Na sala de maquilhagem, como ela
tão delicadamente lhe chama, antes do jantar. O primeiro grupo chega de
avião amanhã à tardinha, quero dizer hoje à tardinha — uma vez que já
passava da meia noite.
— Bem, se ainda estivermos inteiros, acho que vou assistir a uma
das discussões.
A estação do monocarril estava deserta, embora o comboio, com
a rampa de veículos no lugar, parecesse estar permanentemente pronto
a partir. A vista não havia guardas ou carros de patrulha de Bismaquer.
Bond voltou à estrada, passando bem longe da vedação que rodeava os
relvados de Tara. Ainda havia luzes acesas no casarão, e, depois de terem
percorrido os três quilômetros até às árvores que emolduravam o edifício
comprido por trás do laboratório, era evidente que havia lá dentro pes-
soas a trabalhar.
A parte das traseiras parecia estar deserta, mas o edifício mais pe-
queno estava tão iluminado como uma árvore de Natal.
Deixaram o camião rio meio das árvores, a uns doze metros do edi-
fício maior que, visto mais de perto, e como haviam calculado, parecia
ser um armazém. A entrada tinha grandes portas de correr. As janelas,
protegidas com barras, estavam dispostas na parte lateral do armazém,
às escuras, mas, mesmo mais de perto, era impossível ver lá para dentro.
Continuaram a avançar, mantendo-se agachados. Bond forçava a
vista à luz da lua, atento à possibilidade de haver guardas de segurança,
enquanto Cedar vigiava a retaguarda, com o revólver de cano curto na
mão.
Havia um intervalo entre o edifício mais pequeno do laboratório
e o armazém. Olhando por entre os dois, Bond viu que estavam ligados,
provavelmente por uma passagem estreita. Então chegaram às primeiras
janelas do laboratório. A luz, muito intensa, lançava um feixe de claridade
em direcção à relva, quase chegando até as árvores.
Endireitando-se, um de cada lado da janela, Cedar e Bond esprei-
taram lá para dentro.
Várias mulheres vigiavam a maquinaria, todas vestidas com fatos­-
112
macaco brancos, o cabelo completamente enrolado em turbantes e luvas
de borracha nas mãos. Nos pés, tinham calçado o tipo de botas de cano
curto, geralmente usado nos blocos operatórios dos hospitais.
As mulheres trabalhavam com uma eficiência calma e experiente,
mal trocando palavras.
— Uma fábrica de gelados — segredou Cedar. — Levaram-me a ver
uma quando era pequena. Vê aquela máquina de pasteurizar lá ao fundo?
É ali que deitam os ingredientes: leite, natas, açúcar e corantes.
Por meio de gestos e das palavras essenciais, Cedar referiu as fa-
ses normais da produção de gelado feito em fábricas. Bond franziu o so-
brolho, um pouco espantado pelo facto de ela saber como a mistura era
aquecida na máquina de pasteurizar para matar as bactérias, antes de ser
filtrada para a tina de homogenização. Dali, podia claramente ver a série
de tubos frios para mexer e esfriar a mistura, e o enorme tanque de aço
inoxidável, que controlava o fluxo para o congelador. Depois as unidades
que moldavam o gelado em blocos, antes de uma passadeira sem fim le-
var os blocos acabados para uma sala frigorífica com porta de metal. Visto
da janela, parecia excepcionalmente eficiente.
Bond fez um gesto com a cabeça, incitando Cedar a andar para
diante. Agachando-se junto à parede, sussurou:
— Você parece ser perita no assunto. Quão profissional é este sis-
tema?
— Muito. Inclusivamente, pelo aspecto, usam mesmo natas e leite
a sério. Nada de químicos.
— E aprendeu tudo isso só com uma visita de estudo a uma fábrica?
Cedar riu.
— Gosto de gelados— sussurou. — É interessante. Mas aquilo ali
dentro é algo de profissional. Pequeno, mas profissional.
—Acha que podem produzir o suficiente para comercializar?
Ela anuiu, acrescentando:
— Em pequena escala, sim. Mas é provavelmente para consumo
local.
Bond agarrou a mão de Cedar, puxando-a na direcção da secção se-
guinte. As janelas eram mais pequenas, e desta vez deram consigo a olhar
o interior de um grande laboratório. Tubos de ensaio, tinas, e intrincado
equipamento electrónico, estavam dispostos quase em grande escala.
O laboratório não tinha ninguém, excepto um guarda da segurança
de Bismaquer que estava de pé em frente a uma porta no lado oposto.
— Bolas! — Bond chegou os lábios ao ouvido de Cedar. — Se está
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qualquer coisa a acontecer, então é aqui. Vamos ter de recuar e dar a
volta pelo outro lado.
— Dê-me as gazuas. — Cedar tocou-lhe na mão. — Vou ver se con-
sigo dar uma olhadela dentro do armazém, enquanto você experimenta
as janelas a seguir à esquina.
Recuaram ao longo da parede. Bond entregou-lhe o conjunto de
gazuas, quando alcançaram as portas de correr da entrada. Deixou Cedar
a lutar com elas, enquanto rastejava para diante, tentando calcular a posi-
ção exacta das janelas, em relação à sala do laboratório principal. Depois
de se enganar por duas vezes, descobriu a janela certa. Espreitando lá
para dentro pelo canto esquerdo, viu Bismaquer e Walter Luxor andando
de um lado para o outro numa pequena sala vazia, semelhante a uma
cela. Observando com mais atenção, pode ver nitidamente que se tratava
de facto de uma cela — uma cela acolchoada. Havia duas cadeiras macias
presas ao centro do chão, ambas ocupadas por empregados de Bisma-
quer em uniforme. Decorria uma animada conversa entre os dois homens
sentados e Bismaquer e Luxor.
Bond, ainda agachado, colou o ouvido contra a janela e conseguiu
perceber o que se dizia lá dentro. Bismaquer parara de pontuar a con-
versa com as alegres risadas. Agora parecia realmente sério, o seu corpo
estava tenso e os gestos eram discretos.
— Então, Tommy — dizia para um dos homens sentados. — Então
dás-me as chaves da tua casa, deixas-me ir até lá e possuir a tua mulher
à força, não é?
O homem chamado Tommy riu-se entre dentes.
—Tudo o que quiser, chefe. Faça favor.
As suas palavras eram distintas, claras e parecia estar absolutamen-
te seguro de si.
O outro homem juntou-se à conversa.
— Seja o que for, desde que isso dê prazer a alguém. Leve também
as minhas chaves. Não há problema. Leve o carro. Eu gosto é de ver as
pessoas divertirem-se. Eu? Eu faço o que me mandam. — Também este
falava com perfeita naturalidade, como alguém que sabia muito bem o
que queria dizer, sem estar sob stress ou influência.
— Querem continuar a trabalhar aqui? — Foi Luxor quem fez a per-
gunta.
— Por que não? — respondeu o segundo homem.
— Detestava ir-me embora. Isto aqui é óptimo — acrescentou o
homem chamado Tommy.
114
— Ouve bem, Tommy. — Bismaquer fora até ao outro lado da sala
e estava agora junto à janela. Não fosse o vidro protector e Bond poder­-
lhe-ia tocar. — Importavas-te muito se, depois de violar a tua mulher, a
matasse também?
— A vontade, Sr. Bismaquer. O que quiser. Tome, eu dou-lhe as cha-
ves. Já lhe disse.
Luxor juntara-se ao chefe. Ainda que falasse baixo, Bond ouviu tudo
o que disse.
— Dez horas, Markus. Dez horas, e ainda estão ambos sob o efeito.
— Notável. É melhor do que alguma vez esperámos. — Bismaquer
aumentou o tom de voz. — Tommy, tu amas a tua mulher. Fui ao vosso
casamento. Vocês fazem um bonito par. Por que razão me deixarias fazer
uma coisa tão horrível?
— Porque o senhor é meu superior, Sr. Bismaquer. O senhor dá as
ordens, eu obedeço. E assim que as coisas são.
— Discutirias as ordens do Sr. Bismaquer? — perguntou Luxor, com
a voz desafinada aumentando de intensidade.
— Por que havia de fazê-lo? Como acabei de dizer, é assim que as
coisas são. Como no exército. Recebemos ordens de um superior e obe-
decemos.
— Sem discussão?
— Claro.
— Claro. — O outro homem anuiu. — E assim que as coisas são.
Ao pé da janela, Bismaquer murmurou algo que Bond não conse-
guiu perceber, e abanou a cabeça como se não quisesse acreditar.
Luxor voltou-se, e por um segundo Bond pensou que o morto-vivo
o veria através do vidro.
— Estranho talvez, Markus. Mas um verdadeiro passo em frente.
Conseguimos, meu amigo. Pense só nos resultados.
Bismaquer franziu o sobrolho, e Bond apercebeu-se do seu tom. A
voz era fria, gelada como uma tempestade de neve.
— Estou a pensar nos resultados... — Bond não conseguiu ouvir
o resto, pois baixou-se e, tendo ouvido o suficiente, começou a recuar
discretamente ao longo da parede. Havia alguém que se movia na sua
direcção, e, instintivamente, a VP70 foi parar à mão de Bond.
Segundos depois, relaxou. O vulto que avançava com uma rapidez
excepcional era Cedar.
— Vamos embora. Depressa. — Quase lhe faltava o ar. — Por pouco
não fui vista por um guarda de segurança. Aquele armazém... têm lá con-
115
geladores com gelado de sobra para abastecer o estado do Texas durante
um mês.
Quando chegaram ao camião, o espírito de Bond trabalhava a todo
o vapor. Pôs o motor a trabalhar, esperou alguns minutos até largar a em-
braiagem e arrancou lentamente.
As estradas estavam vazias.
— Então eles estão a armazenar grandes quantidades de gelado
— disse, no momento em que chegavam ao desvio de saída da estrada
principal.
— É o que me parece. — Cedar recuperava o fôlego. — O armazém
está dividido em enormes frigoríficos. Eu já espreitara três deles quando
apareceu o tal guarda. Graças a Deus não tinha deixado uma das portas
abertas, pois são pesadíssimas, e tinha fechado quase completamente as
portas do armazém, deixando apenas uma greta para poder fugir rapida-
mente.
Bond perguntou-lhe se estava absolutamente segura de não ter
sido vista.
— Tenho a certeza absoluta. Senão ele tinha vindo logo atrás de
mim. Fiquei encostada a um daqueles depósitos enormes e frios. Ele en-
trou até meio do armazém e depois voltou para trás... para trás, em direc-
ção à secção do laboratório.
— Óptimo. Quer ouvir agora as más notícias? — Quando alcança-
ram o outeiro e começavam a subir a ladeira para as cabanas, Bond aca-
bou de lhe dizer o que vira e ouvira pela janela da cela acolchoada.
—Então têm lá dentro dois tipos de aspecto absolutamente nor-
mal, dispostos a obedecer até mesmo às ordens mais incríveis, como, por
exemplo, permitir que as suas mulheres sejam violadas e assassinadas?
— Cedar estremeceu.
Bond pensou que não era estranho que ela parecesse tão incrédu-
la.
— É isso. Tipos muito normais. Pelo que consegui ver, não se pode
ter a certeza, mas Bismaquer e Luxor devem ter andado a administrar­-
lhes qualquer droga. Disseram que o efeito durara dez horas, e se pen-
sarmos na cela acolchoada, restam poucas dúvidas de que aqueles dois
homens são cobaias humanas.
— Drogados até à ponta dos cabelos.
— Sim. O que me preocupa é que não tinham nem ar nem voz de o
estarem. Estavam a receber ordens e a acatá-las, nada mais. Mas ordens
que iam contra qualquer raciocínio ou consciência. Porquê, Cedar? Fazer
116
das pessoas assassinos inconscientes ou coisa parecida? Porquê?
— Como?—retorquiu ela. — Por que é que parou?
Bond disse-lhe para ficar na cabina.
— Receio que tenhamos de levar o condutor para o cimo da encos-
ta. Vou metê-lo lá atrás. Não há necessidade de você fazer estes trabalhos.
Cedar disse-lhe que era uma atitude muito galante da sua parte,
mas que os cadáveres não a incomodavam. No entanto, ficou no camião
enquanto Bond arrastava o condutor morto até lá e o metia na parte de
trás, voltando depois ao local para tapar quaisquer rastos entre as árvo-
res.
— Se arranjaram uma droga que não altera o aspecto exterior... —
começou Cedar, quando Bond voltou.
— Pois é. — Continuou a subir o monte. — Não tem efeitos secun-
dários. Não gaguejavam nem falavam de maneira arrastada. Eram pesso-
as a funcionar normalmente...
— Excepto num aspecto. — Cedar continuou uma cadeia mútua de
pensamento. — Estão prontos a obedecer a ordens que, em circunstân-
cias normais, seriam discutidas ou desobedecidas.
— É uma arma fora de série — disse Bond. Depois, quando chega-
ram ao pé das cabinas, perguntou: — E os gelados? Acha que esse podia
ser o sistema de distribuição?
— Têm quantidades suficientes daquela porcaria. —Pensei que
gostava de gelados.
— Estou rapidamente a perder o vício.
Saltaram para fora do camião, e desta vez Cedar colaborou na tare-
fa horrível de pôr o morto ao volante. Bond certificou-se de que não ha-
viam deixado nada no camião, e voltou depois a pôr o revolver no coldre
do condutor. Cedar insistiu mesmo em se enfiar a custo ao lado de Bond,
quando este pôs o motor a trabalhar e, inclinado sobre o corpo, conduziu
lentamente o camião de novo para a descida.
Quando alcançaram o topo da vertente mais escarpada, parou, pu-
xou o travão de mão e ajudou Cedar a sair.
O motor trabalhava bem e as rodas estavam ligeiramente voltadas
de lado. Acenando a Cedar para que saísse do caminho, Bond inclinou-se
pela janela do lado do condutor e soltou o travão de mão.
Deixou-se ir por alguns metros antes de saltar. Depois, levantando­-
se, Bond ficou a observar o camião a ganhar velocidade e a ziguezaguear
na estrada.
Fascinado pelo resultado, mal reparou que Cedar, a seu lado, enfia-
117
va o braço no seu.
Podiam seguir o camião, graças aos faróis, na sua descida louca e
desenfreada da vertente. Depois ouviram o primeiro estrondo quando o
camião esbarrou contra as árvores. Os feixes de luz dos faróis pareciam
dançar, para cima e depois para baixo, e rodopiar como uma roda de fogo
preso. O movimento das luzes era acompanhado por estrondos metáli-
cos, à medida que o veículo começava a desfazer-se.
Levou cerca de vinte segundos. Depois um silvo seguido de uma
explosão, quando o camião ficou finalmente todo amassado e o depósito
de gasolina se incendiou com o impacte.
— Parece que as árvores estão vivas — murmurou Cedar.
— Os povos antigos tinham-nas como algo vivo e sagrado — disse
Bond. As sombras e movimentos estranhos criados pelo fogo também lhe
davam uma sensação antiga e assustadora. — Os povos modernos tam-
bém. Alguns deles. As árvores são coisas vivas. Eu percebo-a.
— E melhor irmos embora. — Cedar soltou o braço e deu meia
volta bruscamente, como se não fosse capaz de estar mais tempo a obser-
var os destroços. — Aquele fogo vai ser visto em toda a parte. Não tarda
nada, temos visitas.
Bond alcançou-a e caminharam em direcção à clareira e às cabinas.
— Temos muito em que pensar — disse, ao chegarem à porta da
Sand Creek.
— Bastante, Cedar. Leva-me a pensar se não seria melhor ir embora
agora, entregar às autoridades as informações que temos, e fazê-los en-
trar aqui à força. — Ao mesmo tempo que falava, Bond sabia que não era
isso que deviam fazer.
— Não me importava nada de sair daqui já. — Cedar beijou-o na
face, e depois tentou chegar-se mais a ele, mas Bond impediu-a delica-
damente. Ela deu um suspiro profundo. — Eu sei. Eu sei, James. Como
também sei que você não tenciona realmente ir-se embora até termos
provas concretas e todas as conclusões tiradas.
Bond disse-lhe que realmente assim era.
— OK. — Cedar encolheu os ombros. — Desde que também con-
siga implicar a Lady Dragão. Isso dar-me-ia uma grande satisfação. Boa
noite, James. Durma bem.
Bond ia a passar pelo Saab em direcção à Petterman. Já tinha a mão
na maçaneta da porta, quando Cedar começou a gritar na outra cabina.

118
14
INSECTOS REPELENTES

A VP70 automática estava na mão de Bond quando chegou à porta


da cabina de Cedar, segundos após o primeiro grito.
A sua perna direita desferiu uma forte pontapé, desfazendo a ma-
çaneta e arrancando a porta das dobradiças. Bond saltou para o vão da
entrada e depois para o lado, a VP70 segura com as duas mãos e com a
palavra “Quieto” já nos lábios.
Mas apenas lá estava Cedar de pé à porta do quarto, recuando re-
pugnada e tremendo de medo.
Bond atravessou a sala. Apertou-lhe o ombro, pronto a disparar so-
bre qualquer coisa — animal, réptil ou homem — que se encontrasse no
quarto.
Então, foi a sua vez de recuar involuntariamente. O quarto estava
cheio delas — formigas grandes, escuras, arrepiantes e malévolas. Tapa-
vam o chão, as paredes e o tecto. A própria cama tornara-se negra, num
mar móvel e constante de insectos.
Havia centenas delas, a mais pequena devia medir uns bons três
centímetros, amontoando-se, tentando alcançar a cama, onde o boneco
era agora um monte negro e agitado.
Bond bateu com a porta atrás deles e em seguida olhou para medir
o espaço que restava entre a porta e o chão.
— Acho que são carregadeiras, Cedar. Formigas-carregadeiras. Fora
do seu meio ambiente e à procura de comida.
Se fossem formigas-carregadeiras, pensou Bond, não estavam ali
por acidente. Essas formigas viviam em zonas áridas e armazenavam se-
mentes para se alimentar. Nunca poderiam ter chegado até ali vindas do
deserto — pelo menos, nunca em tão grande número.
O outro facto que hesitou em mencionar era que uma ferroada
de uma daquelas formigas podia ser dolorosa; podia mesmo, em certas
circunstâncias, ser perigosa. Mas centenas, talvez alguns milhares dos
grandes insectos fora do seu ambiente natural, excitados e possivelmente
frustrados por não encontrarem comida, era outra coisa. Várias ferroadas
daquelas formigas enraivecidas seriam mortais.
— Só há um modo de lidar com elas. — Bond empurrou Cedar para
fora da cabina, olhando rapidamente para trás, certificando-se de que ne-
nhuma formiga avançara até à sala de estar. Fechou a porta atrás deles.

119
Bond conduziu-a apressadamente até à sua cabina, pondo um bra-
ço à sua volta. Uma vez lá dentro, disse-lhe para ficar na sala.
— Fique abaixada. Certo? — Em seguida, dirigiu-se rapidamente ao
quarto, à procura da pasta.
Regulando os controlos de abertura, Bond abriu a pasta, deslocan-
do e levantando o fundo falso até encontrar o que precisava; um pequeno
detonador e uns centímetros de cordão rápido. Rapidamente, introduziu
o cordão no pequeno centro de metal do detonador e, desrespeitando
todas as regras, atarrachou o cordão ao detonador com os dentes. Os
seus velhos instrutores teriam certamente desaprovado tal procedimen-
to. “Assim pode ficar sem os dentes e sem o seu equipamento de beijar,
Sr. Bond”, costumavam dizer-lhe.
Procurando mais no fundo da pasta, Bond apanhou um dos sacos
que continham explosivos plásticos. Rasgou uma pequena secção e amas-
sou a plasticina até esta adquirir uma forma semelhante a uma bola de
golfe.
Com o cordão e o detonador bem afastados do plástico, Bond saiu
de novo do quarto e — avisando de novo Cedar para que não se mexes-
se — saiu a toda a pressa do quarto em direcção ao Saab. Trabalhando
com rapidez, desligou os sensores de alarme, abriu o porta-bagagens e
procurou.
Encontrou imediatamente o depósito sobressalente. Já há alguns
anos que Bond raramente viajava sem, pelo menos, dez litros de gasolina
suplementar num depósito de plástico, preso por arames no espaçoso
porta-bagagens.
A porta da Sand Creek, Bond desenroscou a tampa do depósito,
moldando a bola de plástico com os lábios. Continuando a manter o de-
tonador e o cordão bem afastados, parou à porta do quarto, antes de em-
purrar com força o detonador para dentro do plástico. O único problema
consistia agora em acender o cordão sem activar os vapores da gasolina.
Com cuidado, Bond abriu a porta, o seu corpo arrepiado perante
a visão de um quarto em movimento, em ondas obscenas, com insectos
gordos e rastejantes. Colocando o depósito do lado de dentro da porta, ti-
rou do bolso o seu isqueiro Dunhill. Manteve-o numa posição baixa, bem
afastado dos vapores da gasolina, e acendeu-o. A chama apareceu. Ra-
pidamente, Bond chegou-a ao cordão, que se incendiou imediatamente.
Fechando a porta cuidadosamente para evitar que a bomba artesa-
nal tombasse, Bond afastou-se e saiu lentamente. Anda, nunca corras, foi
como te ensinaram; se corresse aumentaria a possibilidade de cair perto
120
de uma carga já colocada.
Acabara de chegar à porta da Fetterman quando o tosco dispositivo
explodiu com um estampido surdo. A explosão fez subir a gasolina numa
bola de fogo, saindo pelo tecto da cabina, como uma mão de chamas
brilhantes que tenta agarrar o vazio, voltando depois para dentro, de tal
modo que o interior da Sand Creek em poucos segundos se transformou
num inferno.
A porta da Fetterman abriu-se de rompante. Por um instante, Bond
pensou que isso se devia ao efeito da explosão, quando a maçaneta lhe
fugiu da mão. Mas era Cedar que estava ali de pé e de boca aberta de
espanto. Bond empurrou-a para dentro, fazendo-a perder o equilíbrio, e
deixou-se cair em cima dela. Lá fora, as fagulhas e o fumo elevavam-se no
ar e caíam sobre a clareira.
— Deixe-se ficar assim, Cedar. — Bond apercebeu-se de que estava
a prender a rapariga e que quase estava escarranchado em cima dela.
— Se se mantiver nessa posição, James, terei todo o gosto nisso.
Mesmo após o choque — primeiro com as formigas e depois com o
súbito rebentamento da bomba —, Cedar era capaz de brincar.
Rapidamente, Bond rolou para o lado.
— Deixe-se estar deitada — ordenou, e em seguida dirigiu-se de
novo para a porta.
Pedaços de destroços a arder estavam espalhados por toda a área.
Com um admirável sentido das prioridades, Bond verificou rapidamen-
te que nenhum bocado de madeira ou material incandescente atingira
o Saab. Em seguida, voltou-se para a cabana que tinha o nome de Fet-
terman, andou em seu redor, assegurando-se de que ali não deflagrara
qualquer incêndio secundário.
Só então dois factos vitais ocuparam o seu pensamento. Do primei-
ro já Bond se apercebera: era impossível que uma colônia tão grande de
formigas-carregadeiras tivesse ido parar ali acidentalmente. Mas o segun-
do era ainda mais evidente: era óbvio que as formigas se destinavam a
matar e o alvo era o próprio Bond.
Ou não tinha dito a Bismaquer que era ele quem ficava em Sand
Creek, e precisamente para proteger Cedar, que pensara ser dos dois o
mais vulnerável?
Já conseguia ouvir o barulho dos motores; lá em baixo, carros apro-
ximavam-se. Bismaquer, ou Luxor, quisera dar cabo de Bond.
Quando a ajuda — se assim se podia chamar — chegasse, duas
coisas poderiam acontecer: Bismaquer e os seus capangas, ao verem que
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Bond e Cedar se encontravam desarmados, tentariam aplicar uma justiça
rápida e brutal, ou então aproveitariam a situação e separá-los-iam, colo-
cando Bond ou Cedar em Tara.
O que quer que viesse a acontecer, era pouco provável que tives-
sem oportunidade de ficarem a sós nos dias mais próximos. Tinha de ar-
quitectar um plano rápido e imediato, antes que alguém chegasse.
Rapidamente, Bond dirigiu-se à cabina onde Cedar estava sentada,
com uma bebida forte nas mãos.
— As minhas roupas — disse ela em tom pesaroso, mesmo antes
de Bond ter oportunidade de falar. — Tudo o que comprámos. Tudo quei-
mado, James, nem sequer fiquei com um par de calcinhas.
Bond foi incapaz de resistir à resposta óbvia.
— Não se preocupe. Tenho a certeza de que Nena Bismaquer tra-
tará disso.
Cedar esboçou uma resposta, mas Bond fê-la calar. Se ficassem se-
parados, disse, teriam de arranjar uma maneira de contactarem. Entre-
gando-lhe a outra chave do Saab, disse-lhe onde o carro ficaria escondi-
do se de repente lhe acontecesse alguma coisa. Ela teria de arranjar um
modo de se safar de onde quer que a instalassem.
— Se tiver razão e se os delegados a esta conferência começarem
a chegar esta noite, vou tentar entrar no centro de conferências amanhã
de manhã, cedo. — Bond hesitou, lembrando-se do que combinara com
Nena Bismaquer para essa noite. — Meia-noite — disse. — A meia-noite
de amanhã. Se eu não estiver lá, safe-se na noite seguinte. Se o carro tiver
desaparecido, já sabe que tive que a abandonar; mas, Cedar, só o faria
como último recurso, e voltarei, provavelmente com um exército de pes-
soal do FBI, da CIA e polícia estadual. Por isso, esteja preparada.
Bond estava ainda a obrigar Cedar a repetir onde ficava o escon-
derijo do carro e os pontos de encontro, quando duas camionetas e um
carro chegaram rapidamente à clareira.
— Eh!. Ó da casa! James, Cedar, estão bem? — A voz de Bismaquer
ecoava vinda lá de fora, sobrepondo-se a uma algaraviada de gritos e or-
dens.
Bond dirigiu-se à porta.
— Estamos aqui abrigados, Markus. Não sei se sabe, mas isto não
são maneiras de tratar os seus convidados.
— O quê?
A enorme figura de Bismaquer apareceu apenas a poucos metros
da porta. Atrás de si, Bond viu o rosto de Nena e pareceu-lhe detectar
122
uma expressão de alívio ao ver que ele se encontrava bem.
— Que raio aconteceu aqui? — Bismaquer gesticulava na direcção
do esqueleto queimado que antes fora a cabina Sand Creek. As pessoas
amontoavam-se em redor das ruínas e Bond reparou que os homens de
Bismaquer já vinham preparados, pois uma das camionetas estava equi-
pada com um grande depósito de espuma pressurizada. E já um grupo de
criados de Bismaquer começara a extinguir os restos do incêndio.
— Havia... — começou Cedar.
— Havia por ali uns bichos — disse Bond, casualmente, encostan-
do-se à soleira da porta — , por isso fui até ao carro, onde trago sempre
um pequeno estojo de primeiros-socorros. Queria encontrar o repelente
de insectos. Cedar ouviu-me e pensou que se tratava dum intruso. — Riu.
— Na realidade foi engraçado. Tenho de explicar. Quando antes lhe dis-
semos que eu estava na Sand Creek e Cedar na Fetterman, nós fizemos
confusão. De facto, era precisamente ao contrário. Mas quando regressa-
mos esta noite, Cedar decidiu que afinal preferia ficar na Fetterman. Não
gostou do quarto da Sand Creek. Estávamos cansados e, aparentemente,
dormiríamos vestidos, por isso nem sequer nos preocupámos em mudar
as nossas coisas. Pensámos apenas em mudar de roupa amanhã. Todas as
coisas de Cedar estavam ali — fez um gesto com a cabeça na direcção das
ruínas —, mas as minhas coisas estão intactas. Mas Cedar tem apenas as
roupas que traz no corpo...
— As gravuras? — interrompeu Bismaquer. — Estão bem? Não ti-
nha...
—As gravuras estão bem, garanto-lhe.
— Graças a Deus.
— Markus — interrompeu Bond asperamente —, você parece um
alcoólico num naufrágio que pergunta: “O brande salvou-se?”, em vez de
perguntar: “Quantas pessoas se salvaram?”
— É isso. — Nena aproximou-se do grupo junto à porta. — És mes-
mo insensível, Markus. James podia ter morrido.
— Quase. Que é que utiliza para cozinhar nestas cabinas? Gás en-
garrafado?
— Na verdade... — começou Bismaquer.
— Bom, algum idiota deve ter deixado uma botija defeituosa.
Acendi um cigarro e deixei-o no cinzeiro do quarto. Mal tinha acabado de
chegar ao carro quando, bum, foi tudo pelos ares.
— Oh, James, eu não teria deixado que isto sucedesse... É terrível!
— Nena olhava-o de um modo que o fez recordar o cheiro do seu cabelo
123
e o beijo trocado no meio do denso arvoredo. Bond achou que era extre-
mamente difícil desviar o olhar. Então apercebeu-se de que outro carro
subia a rampa.
Bond deu um passo na direcção de Bismaquer.
— Já que estamos a falar nisso — continuou no seu tom agressivo
—, e aqueles malvados bichos?
— Os bichos?— Bismaquer olhou em redor, como se estivesse
prestes a ser atacado por uma praga de vespões.
— Sim, os bichos. Criaturas grandes, pretas, desagradáveis, iguais
a enormes formigas.
— Oh, meu Deus. — Bismaquer deu um passo atrás. — Não me
diga que eram formigas-carregadeiras?
— Acho que sim. — Bond começava a despejar a sua raiva. — Tem
muitas por aqui, Markus? Se tem, por que não nos avisou? Será que as
formigas-carregadeiras...?
— Sim, podem matar. — Por um segundo, quando Bismaquer falou,
pareceu esconder qualquer medo.
—E então? Aparece disto com muita frequência?
Bismaquer não olhou Bond nos olhos.
— Às vezes. Mas não muitas.
— Eram centenas. Podíamos ter ambos morrido. Acho que não está
a levar isto muito a sério, Markus.
No entanto, o que quer que Markus pudesse ter respondido foi in-
terrompido pela chegada brusca de outro carro. Luxor estava ao volante,
acompanhado por dois homens da segurança. Mal tinha parado — levan-
tando uma nuvem de poeira — quando Luxor chamou Bismaquer em voz
alta.
Bismaquer dirigiu-se a ele um pouco rápido de mais para a paz de
espírito de Bond. Perguntou-se se seria Luxor quem mandava. Falavam
em voz baixa e a cabeça-caveira de Luxor movia-se num monólogo rápido.
— Você fica bem aqui esta noite, James? — Nena entrara na cabina.
— Podemos ambos ficar aqui — replicou Cedar. — Deitamos à sor-
te para ver quem fica no sofá.
— Nem pensar, minha querida. — Nena fez um sorriso doce. —
Ficará no quarto de hóspedes em Tara. E primeiro vou arranjar-lhe umas
roupas. Se me disser quais são os tamanhos que veste, mando uma das
minhas raparigas à cidade. Emprestava-lhe algumas das minhas, mas re-
ceio que lhe estejam demasiado compridas e talvez um pouco apertadas.
— É tão gentil — disse Cedar entre dentes, de modo a que mal a
124
conseguissem ouvir.
— Cedar volta para a casa para passar lá a noite, Markus. — Nena
voltou-se quando Bismaquer se aproximava deles.
— Óptimo. — Falou quase sub-repticiamente. — James, sucedeu
mais outra coisa. Desagradável como um raio. O tipo que os trouxe até
aqui, aquele que seguiram. O da camioneta...
— Sim?
— Que aconteceu quando ele os deixou?
Bond encolheu os outros e franziu o sobrolho.
— Que quer dizer? Despediu-se e foi-se embora.
— Ouviram alguma coisa depois disso?
Bond pensou por uns momentos.
— Não. Fomos para a minha cabina, ouvimos música e tomámos
uma bebida. Foi então que decidimos mudar de cabanas. Cedar disse que
preferia esta a Sand Creek. Acho que foi por causa do quadro. Eu com-
preendo-a: um grupo de brancos a cavalo a matar rapazes, mulheres e
crianças. Mas porquê as perguntas, Markus?
Bismaquer franziu a testa.
— O vosso guia era um homem muito bom...
—Fisher? — perguntou Nena com uma réstia de ansiedade.
Bismaquer anuiu.
— Sim. Um dos melhores.
— Que aconteceu? — Nena Bismaquer estava agora deveras alar-
mada e não o conseguia esconder.
Markus respirou fundo.
— Parece que esta noite estragou tudo. O problema com Fisher é
que ele... bem, gostava de beber uns copos de vez em quando.
— Não resiste à bebida quando está em baixo. Conheço os sinto-
mas. — Bond não parecia preocupado.
— Já agora, conto-lhe. O trabalho de Fisher consistia em... como
dizê-lo?... bem, tomar conta de vocês. Tinha instruções para ficar no meio
das árvores, certificar-se de que não havia problemas, como, por exem-
plo, com animais. Há alguns por aqui.
— Como, por exemplo, formigas-carregadeiras? — perguntou
Bond.
— Animais — repetiu Bismaquer.
— E em vez disso foi tomar uma bebida? — perguntou Cedar, rapi-
damente.
Bismaquer abanou a cabeça.
125
— E já não era a primeira. Já tomara algumas. Talvez fosse tomar
mais umas quantas.
— Fosse? — perguntou Nena.
— A camioneta saiu de estrada. Está queimada no meio das árvo-
res, no fundo da colina. Estávamos com tanta pressa em chegar aqui, que
nem reparámos. Foi Walter quem a viu.
— E Fisher? — A boca de Nena estava meio aberta.
— Desculpa, querida. Sei que gostavas de o ter por aqui. Fisher
ficou queimado.
— Oh, meu Deus. Queres dizer...?
— Como uma acha. Foi muito desagradável. — Bismaquer olhou
de Bond para Cedar e repetiu o movimento. — Têm a certeza de que não
ouviram nada?
— Nada.
— Absolutamente nada.
— Pobre Fisher. — Nena voltou-se, com o rosto enrugado. — A sua
esposa..
— Seria preferível que fosses tu a dar-lhe a notícia, minha querida
— disse Bismaquer, peremptório, voltando-se.
— Claro, Markus. Mas primeiro vamos instalar Cedar em Tara. —
Nena avançou na direcção do marido. — E depois — deu um pequeno
suspiro —, depois vou dar a notícia a Lottie Fisher.
— Óptimo. Sim. — Era óbvio que o pensamento de Bismaquer já
estava noutro lado. — Acha que fica bem, James?
Bond disse que sim e depois, sorrindo, perguntou se o Grande Prê-
mio ainda se mantinha.
— Quer dizer, depois de tudo isto?
Com a luz vinda da cabina e dos faróis, podia ter imaginado que
uma nuvem percorrera o rosto de Bismaquer antes de o grandalhão falar.
— Oh, sim, James. E claro que isto foi uma coisa infeliz, mas o Gran-
de Prêmio não sofre qualquer alteração. As dez da manhã. Walter está
ansioso. E eu também.
— Então, lá nos encontramos. Na pista, ‘noite, Cedar. Durma bem e
não se preocupe com isto.
— Oh, isto é o que menos me preocupa. — Cedar fez-lhe um sorriso
falso. — Boa noite, James.
— Encontramo-nos amanhã, James. — Nena olhava-o fixamente.
Desta vez não se tratava do efeito das luzes no meio das árvores; o fogo
estava bem fundo nos seus olhos negros, e o sorriso falava de maravilhas
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a revelar na noite seguinte.
Quando todos saíram da clareira, James Bond verificou se o Saab
estava em segurança e depois dirigiu-se à cabina. Bloqueou a porta com
a cadeira e inspeccionou as frestas das janelas, procurando possíveis pon-
tos de entrada. Uma segunda dose de formigas-carregadeiras, se estives-
se a dormir, seria difícil de aguentar.
Levou dez minutos a voltar a colocar as coisas na pasta, depois, sem
se despir, estendeu-se na cama, mas com a Heckler & Koch automática
bem junto a si.
Nena falara no mal. Bond conseguia agora senti-lo, como se o Ran-
cho Bismaquer estivesse vivo com malevolência. Já antes sentira vestígios
da ESPECTRO naquele lugar; mas agora o cheiro era muito forte. Já antes
se vira envolvido com eles e os seus instintos estavam bem afinados pela
organização e para o seu primeiro chefe, Ernst Stavro Blofeld. Mesmo ago-
ra, sozinho nesta cabana num outeiro arborizado, situada, paradoxalmen-
te, no meio do deserto, o cheiro nítido de Blofeld chegava até ali, vindo
do inferno para onde Bond o enviara durante o encontro final no Japão.
Um destes homens estava de algum modo ligado ao seu velho ini-
migo. Qual? Luxor ou Bismaquer? Não tinha a certeza, mas sabia que em
breve descobriria a verdade.
Pensou na delegação que chegaria dentro de doze horas, na sinistra
peça que vira representada na cela almofada do laboratório junto à fá-
brica de gelados. Assumiu que se tratava de uma droga hipnótica — uma
“pílula da felicidade” que eliminava todos os escrúpulos morais, deixando
a vítima com um aspecto exterior normal, mas incrivelmente manobrável.
Olhou para o relógio. Eram quase cinco da manhã e em breve ama-
nheceria. Dentro de vinte e quatro horas teria de se esconder, literalmen-
te, no solo; tinham de entrar no túnel do centro de conferências. Bond
sorriu na escuridão, pensando na ironia se se tratasse afinal de mais uma
conferência de negócios vulgar, chata e perfeitamente honesta. No entan-
to, a sua experiência dizia-lhe que isso não era verdade. O seu treino, a
sua lógica e as situações anteriores em que combatera a ESPECTRO, esta-
vam bem vivos, colocando o seu espírito e sentidos numa rota de colisão
com o seu destino.
Antes disso, enfrentaria Walter Luxor na pista de corridas, alega-
damente por um milhão de dólares, mas era óbvio que havia muito mais
em jogo. Confiante nas suas possibilidades e nas do seu carro, Bond, no
entanto, estava bem consciente do perigo. Depois disso, e antes de em-
barcar na sua missão solitária, haveria Nena, com o seu corpo delicioso e
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com aqueles olhos negros estranhamente resplandecentes.
O espírito de Bond girava em círculos. Blofeld? Bismaquer? Luxor?
A conferência? A ESPECTRO? Os gelados? O Grande Prêmio?... Nena...
Nena Bismaquer, infeliz e presa ao mal daquele lugar. Por um momento,
Cedar percorreu o seu pensamento, e de novo sorriu na escuridão, sa-
bendo que se não tivesse tamanha consideração pelo seu pai, Felix Leiter,
Cedar também se tornaria noutro passatempo. Mas, como hipnotizado, o
pensamento de Bond voltou-se para Nena, e adormeceu com a imagem
dela no seu rosto e com o cheiro do seu cabelo junto a si — como iria
acontecer, muito em breve.

15
GRANDE PRÊMIO

O Sol subia no céu limpíssimo, e podia já sentir-se o calor dormente


do dia. Dentro de mais ou menos uma hora estaria um calor abrasador.
Era um daqueles dias para estar à sombra a tomar bebidas geladas, sem
fazer nada a não ser passar o tempo com um bom conversador — de pre-
ferência do sexo feminino, pensou Bond.
Não dormira muito tempo, e há muitos anos que aprendera a tirar
partido de pequenos períodos de descanso. Passara uma hora a verificar
o Saab. Este tipo de pessoas tinha sempre truques na manga, mas o Saab
turbo de 007 não lhes ficava atrás, ainda que não pudesse contar com a
sorte. O Saab tinha de estar perfeito. Mesmo tendo um motor especial,
Bond estava confiante que o Shelby-American, conduzido por Walter Lu-
xor, teria muito poucas hipóteses.
Com o turbocompressor à máxima potência, um Saab 900 normal
pode facilmente atingir uma velocidade de cruzeiro de 200 quilômetros
por hora. Além disso, as restrições proíbem que os modelos comerciais
excedam este máximo, e o próprio turbocompressor limita normalmente
o rendimento dentro dos 200 quilômetros por hora. Mas se se aumen-
tar a pressão da linha de combustível para reforçar a potência, e se se
adicionar o equipamento especial de conversão para rally, obtém-se um
rendimento realmente elevado.
De facto, Bond sabia de algumas forças policiais que utilizavam
Saab turbos com estas variações.
“Para que queremos um turbo se não conseguimos alcançar um
turbo comercial?”, dissera um oficial de polícia.

128
O próprio Bond já alcançara para cima de 280 quilômetros por hora
em pista, depois de lhe terem instalado no carro o novo sistema de injec-
ção a água, e não via qualquer razão para não o fazer hoje. Não receava a
possibilidade de algum pneu estourar — mesmo com uma bala bem colo-
cada —, pois o seu carro personalizado tinha pneus Michelin Autoporteur,
semelhantes aos TRX, que são estandardizados. Os Autoporteurs possu-
íam características apenas segredadas no meio da indústria de motores.
Não havia qualquer problema, pensava Bond, ao conduzir, com o
ar condicionado no máximo, a fera prateada pela estrada lateral paralela
ao circuito.
Markus Bismaquer, com Nena e Cedar, estava bem à vista em fren-
te da bancada, que parecia já estar três quartos cheia. O pessoal de Bis-
maquer resolvera obviamente aparecer — talvez à força — para assistir a
uma ocasião tão especial.
Conduziu o Saab pela estrada escorregadia que ia dar às boxes e
parou junto ao grupo de Bismaquer. Não se viam sinais de Walter Luxor e
do Shelby-American.
— Você está mesmo com ar de piloto, James. — O sorriso de Nena
Bismaquer era tão natural e acolhedor que Bond não conseguiu resistir
à tentação de a beijar na face, coisa que normalmente detestava. Então
apercebeu-se de que Cedar Leiter lhe deitava um olhar duro e reprovador.
— ‘dia, Cedar — disse alegremente, beijando-lhe ambas as faces.
— Dois, para dar sorte. — Sorriu.
Por uma questão de conforto, Bond vestia um fato de treino azul­
-claro e vermelho — comprado em Springfield juntamente com as ou-
tras coisas — e pouco mais. Mesmo com o ar condicionado ligado, sabia
que iria sentir bastante calor ao volante, especialmente se Walter Luxor
o pressionasse.
— James, espero que tenha dormido como um justo — rosnou
Bismaquer com o seu júbilo habitual, dando uma palmada nas costas de
Bond com força suficiente para lhe deixar a pele a latejar.
— Claro que sim. Como uma pedra. — Bond olhou Bismaquer bem
de frente. Não havia quaisquer vestígios de tensão da noite anterior.
— Quer dar umas voltas de treino antes de começarmos, James?
De fora parece fácil, mas garanto-lhe que a chicane e o ziguezague no
extremo oposto são tramados. Tenho obrigação de saber. Fui eu que fiz
os planos.
Bond acenou na direcção das bombas de gasolina.
— Está bem, vou dar uma volta ou duas para ter uma idéia das
129
dificuldades. Depois posso encher o depósito, ver o óleo e tudo o resto?
— Tem uma equipa à sua disposição, James. — Bismaquer apontou
para cinco dos seus homens, vestidos com fatos-macaco. — Isto é a sério.
Quer tirar para fora o pneu sobressalente, no caso de precisar de mudar?
Está tudo ao seu dispor. —Eu cá me arranjo. Dez voltas, não é?
— Sim. E não se esqueça, a equipa está aqui, se precisar de ajuda.
Temos comissários de pista, para o caso de alguma coisa correr mal.
Detectara Bond alguma coisa na voz de Bismaquer? Uma insinua-
ção? Como se esperasse que alguma coisa corresse mal? Bem, teria de
esperar para ver. No final, podia ser que fosse o melhor condutor e não o
melhor carro, o primeiro a cortar a linha de chegada.
Bond acenou para o grupo, piscou o olho a Cedar, e meteu-se de
novo no Saab. Pôs as luvas e ajustou os óculos Polaroid.
Abrandando sobre a grelha, Bond deitou um último olhar aos ins-
trumentos. Duas voltas para dar sorte, pensou. A primeira mais lenta — a
uns 120 onde possível — e uma segunda mais rápida, esticando o Saab
até perto dos 170, mas não ultrapassando esse limite. É bom conservar
os trunfos na manga. Sorriu, meteu a primeira, soltou o travão de mão
e arrancou. Ganhou velocidade, servindo-se da caixa, e meteu a quarta
quando o velocímetro atingiu os 80, dando ao carro um pouco mais de
potência para elevar as rotações a mais de 3000. Depois, accionando o
turbo — com o gemido reconfortante — atingiu os 120 à hora, certinhos.
Na primeira volta, Bond não meteu a quinta. Testou o motor, ao
mesmo tempo que fazia o reconhecimento da pista a uma velocidade re-
lativamente baixa.
Da grelha até à chicane havia uns bons quatro quilômetros de rec-
ta. Porém, uma vez chegados à chicane, tanto o carro como o condutor
se apercebiam dela. A pista, vista à distância, dava a idéia de apenas es-
treitar antes de uma curva em forma de S alongado, bonita mas apertada.
Apenas quando o Saab saiu da última curva do S é que Bond se apercebeu
de que a chicane terminava com uma lomba inesperada, feia e pronuncia-
da — como uma pequena ponte em arco.
As curvas não apresentavam problemas, mesmo a 100 à hora, não
exigindo senão uma pequena torção do volante — esquerda, direita... es-
querda, direita. O estabilizador curvo do Saab e o seu peso mantinham a
máquina colada à pista. Bond só se apercebeu do perigo quando estava
em cima da lomba.
A 100, o carro levantou vôo por um segundo, ao sair da fácil curva
final. Por um momento, as quatro rodas ficaram no ar, e foi necessária
130
uma concentração considerável para se manter na trajectória, quando os
pneus a girar tocaram na pista, guinchando na superfície de macadame.
Bond expirou, libertando todo o ar dos pulmões, apercebendo-se
dos perigos que a lomba poderia criar a grandes velocidades. Segurou o
carro à saída da curva para o outro quilômetro e meio de recta, antes da
curva de noventa graus mais óbvia e difícil.
Manteve o carro a 120, reduzindo na caixa apenas no último mi-
nuto, entrando na curva à direita em terceira, mas sem desacelerar, de
modo a evitar qualquer tendência do carro para derrapar para fora. Uma
vez mais, o Saab respondeu bem. Para Bond, curvar a grandes velocida-
des neste carro era o mesmo que estar agarrado à estrada por uma mão
invisível. Quando a pressão era mesmo a sério, sentia-se a traseira do
carro a ser puxada para baixo pela velocidade do fluxo de ar apanhado no
estabilizador curvo.
Saiu da curva com o velocímetro ainda a marcar os 120 à hora. Oi-
tocentos metros de recta — nos quais, à máxima potência, podia de novo
aumentar a velocidade. Resistindo à tentação, Bond manteve o carro a
120, meteu a quarta, e ao entrar na difícil curva em Z reduziu para segun-
da, fazendo baixar drasticamente a velocidade para os 80.
A curva em Z era realmente muito feia. Para as coisas serem feitas
como devia ser, pensou Bond, teria de ter treinado durante mais tempo.
Era realmente preciso rodar o volante, e mesmo a esta velocidade, não
era possível meter de novo a quarta, e acelerar regularmente até aos 120,
antes de sair da última curva apertada do Z. Era preciso ter muito cuidado
ali.
O resto era fácil. Mais ou menos cinco quilômetros de recta, segui-
dos de uma ligeira curva à direita. Mais dois quilômetros e meio, depois a
segunda curva à direita e os últimos dois quilômetros até passar de novo
na grelha.
A última curva, descobriu Bond rapidamente, tinha uma aparência
enganadora, pois apertava repentinamente. Mas, de maneira geral, não
era nada de transcendente. Na primeira passagem, reduziu para terceira
quando o ângulo se fechava, fazendo subir o número de rotações, e au-
mentando de novo a velocidade logo à saída da curva, para entrar numa
longa recta que passava pelas bancadas e que continuava por mais cinco
quilômetros antes da chicane.
A quilômetro e meio das bancadas, Bond meteu a quinta e come-
çou a aumentar a velocidade. Atingiu os 160 ao passar pelas bancadas,
que àquela velocidade não eram mais do que uma mancha, e manteve o
131
andamento até um quilômetro antes da chicane.
Entrou nas curvas ligeiras a 140, abrandando para 120 na curva
final ao chegar à lomba — para a qual não estava preparado — com o
ponteiro ainda perto da mesma marca. O Saab descolou do topo da lom-
ba, direito como uma flecha, com Bond à espera do impacte quando as
quatro rodas tocassem a pista. Aterraram todas ao mesmo tempo e Bond
aliviou o volante de modo a corrigir qualquer desvio.
Suavemente, aumentando para os 160, Bond chegou-se à direita
de modo a ter bastante espaço para curvar. Ou vai ou racha, decidiu. En-
trava na curva apertada à direita a uns 130 e mantinha a velocidade, con-
fiante em que o peso, os pneus e o estabilizador lhe permitiriam controlar
o carro.
Os dígitos no mostrador à sua frente — e o ponteiro — não baixa-
ram nem um pouco. 130 certinhos durante toda a curva, embora Bond
desse consigo a inclinar o corpo para a direita, como para compensar, e as
rodas derrapassem um pouco para a esquerda.
Conseguia fazê-lo. A curva à direita podia ser feita — se correcta-
mente encostado à direita — a 130 quilômetros à hora, e possivelmente
mesmo a 160.
Isto já não era tão fácil na curva em Z. Aí, era preciso reduzir na
caixa: travão, acelerador, travão, acelerador; e a mesma operação nova-
mente até sair do outro lado e, aí, prego a fundo.
O Saab executou a primeira das duas curvas finais a 150, sem qual-
quer problema, abrandando, com uma redução na caixa, na parte mais
apertada da segunda.
Chegou à recta final ainda a 150, deixando decrescer a velocidade
regularmente, até as bancadas e as boxes parecerem deslocar-se na sua
direcção. 70, 50, 30... foi abrandando até parar.
Através do pára-brisas viu o rosto de Bismaquer, que apresentava
uma pequena ruga de preocupação entre os olhos. Walter Luxor, que apa-
recera agora, com um fato de piloto de corridas decorado com as insíg-
nias de Bismaquer, não lhe ligou nenhuma. Estava ocupado com o Shelby­
-American prateado, ao qual a sua equipa dava uma revisão geral final.
Bond deixou-se ficar sentado por um momento, observando o ve-
ículo que iria competir com o seu, tentando relembrar tudo o que sabia
sobre o carro.
O Ford Mustang de competição original tivera um sucesso excep-
cional nos seus dias: primeiro e segundo lugares na Volta à França de
1964, na classe de turismo, onde os seus muitos modelos mostraram um
132
óptimo rendimento. O GT 350, como era designada a derivação do Mus-
tang do Shelby-American, tinha as linhas suaves do modelo coupé, tendo
como alterações exteriores mais óbvias um grande funil de ar por cima do
capot e funis de ar junto às rodas traseiras. As primeiras versões tinham
geralmente uma estrutura de fibra de vidro em volta do capot e havia
um sem-número de possíveis combinações de motor e transmissão jun-
tamente com o necessário equipamento especial para evitar a trepidação
sentida ao curvar com a suspensão incorporada no Mustang.
Por aquilo de que se conseguia lembrar, Bond achou o carro mais
leve do que os Mustangs seus progenitores, mas capaz de velocidades
bem acima dos 200. Aquele que olhava agora, através do pára-brisas do
Saab, parecia à primeira vista ser um original, mas quanto melhor o via,
mais dúvidas tinha Bond. A chapa tinha um aspecto muito sólido — uma
espessura indefinida, pensou. Era igual a um Shelby-American, mas ape-
nas nas linhas. Os pneus, podia ver, eram muito resistentes, e se o design
original tinha de ser um factor de preocupação a velocidades muito altas,
Bond mesmo assim gostaria de dar uma vista de olhos debaixo daquele
capot. Bismaquer, sendo quem era, não iria certamente opor um carro de
série melhorado, como este, a um Saab turbo. Fosse qual fosse o motor
que lá estava escondido, era com certeza, como o de Bond, um turbo.
Saindo do lugar do condutor, Bond dirigiu-se rapidamente para o
carro, chamando em voz alta, a alguns passos da máquina, para atrair a
atenção de Luxor.
Bismaquer moveu-se com uma agilidade inesperada, numa tenta-
tiva de impedir que Bond se aproximasse demasiado — movimento que
acabou por ser bem sucedido, mas não antes que Bond conseguisse pôr a
mão sobre o capot. Não havia dúvidas, era aço de primeira qualidade. Po-
dia senti-lo debaixo da palma da mão. Também a suspensão —pela rápida
pressão que Bond conseguira fazer — parecia muito firme.
— Boa sorte, Walter... — começou Bond, quando Bismaquer o afas-
tou do Shelby-American. — Só queria desejar boa sorte a Walter. — Bond
franziu a testa, como se estivesse ofendido, sentindo a enorme mão de
Bismaquer em volta do seu braço, puxando-o literalmente para longe.
— Walter não gosta que o distraiam antes de uma corrida, James
— resmungou Bismaquer. — Não se esqueça de que ele é um velho pro-
fissional.
— E isto é uma corrida amigável, com uma importante aposta por
fora entre nós, Markus. — Bond parecia calmo, embora a preocupação se
começasse já a fazer sentir como um formigueiro no seu espírito.
133
Bismaquer tinha provavelmente um carro capaz de um elevado
rendimento, mas não podia saber da existência da injecção a água ou
do aumento de potência do Saab. No entanto, Bond não tinha quaisquer
dúvidas sobre Luxor. Tinha de enfrentar um homem que sabia bem o que
era correr, e — o que ainda era uma vantagem maior — um homem que
conhecia a pista de Bismaquer de trás para a frente.
— OK, Markus. Diga ao seu profissional, da minha parte, que es-
pero que ganhe o melhor. É só isso. Agora, posso encher o depósito do
Saab?
Bismaquer deitou-lhe um olhar vazio. Havia qualquer coisa terri-
velmente sinistra naquele olhar, pois os olhos estavam inexpressivos e a
boca mostrava um mau-humor indolente — não havia vestígios de bobo
expansivo. Com uma certa frieza na boca do estômago, Bond reconheceu
o olhar.
Era uma expressão que vira muitas vezes, a expressão de morte de
um assassino profissional. Um assassino contratado, prestes a cumprir a
sua missão.
Tão depressa como apareceu, assim se desvaneceu o olhar, e Bis-
maquer sorriu, todo o seu rosto se iluminando.
— Os meus rapazes fazem isso, James.
— Não, obrigado. — Bond preferia tratar de tudo pessoalmente:
gasolina, óleo, hidráulica, resfriador.
A revisão final demorou cerca de vinte minutos, depois do que
Bond se dirigiu para junto de Bismaquer, que conversava amigavelmente
com Nena e Cedar.
— Estou pronto — anunciou Bond, olhando para cada um dos três.
Seguiu-se um breve silêncio. Depois, Bismaquer acenou afirmati-
vamente.
— Se quiser vir tirar à sorte as posições na grelha...
— Oh... — Bond riu. — Vamos manter isto uma coisa entre amigos.
Certamente podemos fazê-lo aqui. Tenho a certeza de que Walter não se
importava...
— James — disse Bismaquer brandamente. Detectara Bond sinais
de ameaça? Ou estava apenas nervoso, e a deixar-se assustar por som-
bras verbais? — James. Você tem de compreender Walter. Ele leva isto
muito a sério. Vou ver se está pronto.
Deixado a sós com as senhoras, Bond nem sequer tentou fazer con-
versa.
— Por agora despeço-me, minhas senhoras — disse, com um sorri-
134
so vitorioso. — Até depois da corrida.
— Por amor de Deus, Bond, tenha cuidado. — Cedar caminhou a
seu lado por um momento, falando em voz baixa. — Estes sacanas que-
rem dar cabo de si. Não corra riscos desnecessários. Não vale a pena. Por
favor.
— Não se preocupe. — Bond acenou alegremente, voltando-se
para ver Bismaquer, que se aproximava com Walter Luxor.
Luxor foi correctíssimo. Apertaram as mãos, disseram “Que ganhe
o melhor”, e atiraram uma moeda ao ar para tirar à sorte a posição de
partida na grelha. Bond perdeu. Luxor ficou com a faixa de dentro do lado
direito.
Solenemente, Bismaquer disse em voz alta:
— Esta corrida constará de dez voltas completas ao circuito. O nú-
mero de voltas de cada um estará afixado nas boxes a cada passagem.
O de Walter a vermelho e o seu, James, a azul. Serei o director de pista,
e vocês vão obedecer às minhas instruções. Conduzirão os carros até às
vossas posições na grelha, e depois desligarão os motores. Vou-me colo-
car na tribuna do director de partida... ali... e levantar a bandeira. Ambos
terão de indicar que me vêem perfeitamente, fazendo um sinal com os
polegares para cima. Descreverei então um movimento circular com a
bandeira e vocês porão os motores a trabalhar. Quando estiverem ambos
prontos, farão novamente sinal. Depois disso, levantarei a bandeira, farei
uma contagem decrescente de dez até zero e baixarei a bandeira. Podem
então partir. A bandeira não descerá outra vez, até que o carro vencedor
passe pela tribuna no fim da décima volta. Percebido?
Bond conduziu lentamente o Saab ao seu lugar na grelha. Houvera
pouco tempo para pensar em tácticas, e o seu pensamento corria agora
velozmente. Não tinha uma idéia concreta do nível que iria enfrentar, por
isso a sua primeira tarefa seria avaliar a actuação do condutor rival e res-
pectivo carro.
Esperava que a impressão causada durante as duas voltas de treino
fosse que ele forçara o Saab quase até ao limite. Tinha que decidir a sua
táctica imediatamente, ou não teria qualquer hipótese.
Ao colocar o Saab no lugar, Bond tomou a decisão final. Deixaria Lu-
xor tomar a dianteira durante, pelo menos, as primeiras cinco voltas. Isto
dar-lhe-ia uma experiência valiosa do circuito a diferentes velocidades, e
permitir-lhe-ia ver se Luxor era capaz, como suspeitava, de barrar qual-
quer tentativa de ultrapassagem, através de manobras verdadeiramente
perigosas.
135
No princípio da sexta volta, desde que Bond conseguisse igualar a
perícia de Luxor e que o Saab fosse suficientemente potente para com-
petir, mantendo-se chegado, começaria a esforçar-se. Depois, uma vez à
frente, Bond podia soltar a potência de reserva e disparar para a vitória.
Se conduzisse com um pouco de arrojo, mas dentro dos limites de segu-
rança tanto do carro como do circuito, havia uma boa possibilidade de se
conseguir distanciar de Luxor pelo menos meia volta. Deveria ser essa a
sua posição, o mais tardar, na oitava volta.
Bismaquer olhava-o. Bond levantou o polegar, e a bandeira come-
çou a descrever um círculo. O motor de Luxor começou a trabalhar com
um rugido, mostrando uma potência superior àquela que seria de esperar
sob o capot de um Shelby-American.
O Saab gemeu baixinho, e Bond olhou em volta, registrando a dis-
tância entre os dois carros e, ao mesmo tempo, dando de caras com o
olhar encovado de Luxor. Parecia trespassá-lo com uma expressão de ódio
intenso.
Bond olhou em frente e fez sinal a Bismaquer.
A bandeira subiu, Bond meteu a primeira, soltou o travão de mão e
suspendeu o pé direito por cima do acelerador.
A bandeira desceu.
O suposto Shelby-American abanou a traseira ao partir rapidamen-
te da grelha. Com uma partida assim tão rápida, Luxor estava disposto a
derrotá-lo completamente. Ao começar a ganhar velocidade, Bond com-
preendeu que o condutor de Bismaquer tencionava alcançar o máximo
de vantagem o mais depressa possível. Premiu o acelerador, accionando
rapidamente o turbo e vendo a velocidade aumentar.
Nesta altura, já Luxor devia ir a uns 160 na recta antes da chicane.
Bond continuou a aumentar a pressão, ouvindo o turbo gemer como o
motor de um jacto quando meteu a quinta, ultrapassando os 190 e apro-
ximando-se da traseira inclinada do carro de Luxor.
Era agora uma questão de centímetros, e Bond foi forçado a desa-
celerar e reduzir na caixa, ficando colado a Luxor à velocidade de 160. Viu
as luzes de travagem a tremular ao chegarem à chicane. Bond preferiu
reduzir na caixa em vez de usar o travão, afrouxando o carro através do
ziguezague da chicane, com o velocímetro a marcar os 120, no momento
em que Luxor parecia voar sobre a lomba final.
Bond alcançou a lomba a apenas 120 quilômetros à hora, e aliviou
a pressão no volante, até sentir que a estrutura sólida do Saab estava de
novo em contacto com a pista. Então usou a caixa, e premiu o acelerador.
136
O limite de segurança de Luxor parecia ser os 160, e Bond seguiu­
-o através da curva de noventa graus sem diminuir a velocidade. Deixou
que o Saab fosse sugado na esteira do Shelby--American — para a direita
e depois tudo à direita, sentindo os pneus traseiros a protestar, à medida
que se agarravam à pista. Dez habilidades iguais àquela e a borracha co-
meçaria realmente a ficar queimada, pensou Bond. No momento em que
assimilara este facto estava na curva em Z.
Aqui Luxor tinha a sua própria técnica — usar o travão constante-
mente nas curvas em cotovelo, mas acelerando, mesmo durante as pe-
quenas rectas entre elas.
Passaram e entraram na recta seguinte. Bond apercebeu-se de que
deviam ter feito o Z a um mínimo de 110 e a um máximo de 130. Luxor
era, sem dúvida, não apenas um perito e técnico confiante, mas também
um homem com nervos de aço. No entanto, nesta longa recta, mal ultra-
passou os 160 com o seu carrinho prateado.
Antes de alcançarem a primeira das duas últimas curvas, Bond che-
gou à conclusão de que Luxor conduzia a uma média de 160 à hora, com
60, talvez 80 de reserva para as rectas quando era preciso.
Era uma boa técnica. O circuito exigia grande perícia a alta veloci-
dade, assim como muito trabalho e concentração. Tenta imaginar as suas
intenções, murmurava Bond para si próprio.
Se bem percebera, Luxor iria manter este ritmo até às últimas três,
possivelmente quatro voltas, e depois — certo de que Bond estava cansa-
do e a conduzir o Saab à máxima velocidade possível — aceleraria, adian-
tando-se, utilizando a máxima potência.
Passaram pelas bancadas. Bond, de relance, viu que o velocímetro
à sua frente passava um tudo nada dos 160. Luxor afastara-se um pouco
mais.
Talvez fosse altura de mudar de táctica, em vez de esperar mais
tempo. Pelo menos nesta volta manter-se-ia colado a ele. Depois decidiria
quando fazer a sua primeira ultrapassagem.
Depois de completada a segunda volta e quando passavam, a guin-
char, pelas bancadas, Bond estava a suar, num trabalho árduo, ainda relu-
tante a usar os travões, e mantendo a velocidade sob controlo com mu-
danças e acelerador.
Este seria o local ideal, decidiu, quando se aproximavam da chica-
ne. Quando terminasse a terceira volta, tentaria a ultrapassagem.
O Saab estava a menos de dois metros da traseira quadrada do car-
ro de Luxor, quando saíram da última curva da terceira volta. Era agora,
137
pensou, vendo Luxor desviar-se ligeiramente para a esquerda. Não havia
realmente espaço suficiente, mas se Luxor obedecesse às regras, teria
que deixar Bond passar.
Uma ligeira pressão no volante e o Saab deslizou para a direita,
aproximando-se bastante do Shelby-American. Um pouco mais para a di-
reita. Bond viu a berma da pista demasiado perto da sua roda dianteira,
mas continuou a acelerar, metendo a quinta e premindo a fundo o pedal.
O turbo reagiu, e ele sentiu o arranque de potência, como um motor a
jacto. O focinho do Saab estava a avançar, já a meio do chassis de Luxor,
indubitavelmente prestes a ultrapassar.
Então, com um horror desconcertante, Bond viu Luxor voltar brus-
camente, atravessando-se à sua frente, e aumentando a velocidade de
modo a que Bond fosse quase obrigado a travar a fundo para evitar bater
na parte lateral do outro carro. Numa fracção de segundo, o Saab estava
de novo atrás e a perder terreno. Sacana, rosnou Bond para si. Reduziu na
caixa, abrandando para fazer a chicane. Uma vez passada, premiu de novo
o acelerador, aproximando-se tanto que entraram na curva de noventa
graus quase colados.
Desta vez, Bond sentiu uma instabilidade considerável, quando o
Saab derrapou para a esquerda nos últimos momentos da curva. Não era
para admirar, tendo em conta os dígitos do velocímetro. Marcava 170, e
na altura em que se apercebeu que a velocidade aumentara para 200,
estavam já sobre o ziguezague da curva em Z.
Tenta na recta seguinte, pensou Bond. Obriga o sacana a sair da
pista, se for preciso. O Saab tinha suficiente peso para o fazer.
Saíram do Z com Luxor ainda a acelerar, e Bond, decidido a não per-
der um centímetro, tentando colocar-se em posição de ultrapassagem.
Foi então que aconteceu.
Mais tarde, percebeu que não podia provar absolutamente nada.
As culpas seriam atribuídas a um turbo demasiado aquecido ou a outra
coisa qualquer. No entanto, nessa altura, viu perfeitamente a manobra e
a acção.
Luxor acelerou ligeiramente, distanciando-se um pouco — um me-
tro, um metro e vinte, no máximo. Quando Bond premiu o acelerador
do Saab, viu nitidamente o pequeno objecto que caía do pára-choques
traseiro do carro de Luxor. Por uma fracção de segundo, pensou que Luxor
estava com problemas, que o esforço estava a causar o desmantelamento
de algum componente traseiro. Mas o silvo que ouviu debaixo do Saab
tornou a verdade bem patente.
138
Luxor ejectara um tipo qualquer de dispositivo incendiário, pronto
a inflamar-se ao tocar a pista.
Depois disso, tudo o que Bond viu foi um lençol de chamas à volta
do carro, envolvendo-o, e depois extinguindo-se rapidamente.
Estavam a cerca de meio caminho da penúltima curva, e James
Bond, a princípio, pensou que o truque falhara. A chama envolvente não
podia ter durado mais do que um segundo e, àquela velocidade, tê-lo-ia
provavelmente ultrapassado. Então, com o mesmo sentido de choque, o
alarme de incêndios tocou e a luz vermelha começou a piscar no tablier.
Uma das últimas coisas que Bond mandara instalar no Saab era o
DEUGRA, relativamente recente, sistema de detecção e extinção de in-
cêndios dentro da viatura, comercializado na Grã-Bretanha pela Graviner.
Detectores de temperatura estabelecida — regulados para uma tempera-
tura alta adequada ao Saab — controlavam o motor e a parte inferior do
carro, especialmente as zonas adjacentes ao depósito de combustível. As
entranhas do sistema estavam situadas bem no interior do enorme porta­
-bagagens do Saab. Numa base protegida, estava apoiado um contentor
estanque de crómio e aço, cheio, sob pressão, com o mais eficiente dos
extintores, Halon 1211. Do contentor partiam condutas de pulverização
em direcção ao compartimento do motor e a todas as partes do carro, em
especial à parte inferior.
O extintor disparava automaticamente quando os detectores assi-
nalavam um alarme categórico de incêndio, ao mesmo tempo que todo o
sistema podia ser activado manualmente, premindo um botão no tablier.
A luz e o sinal sonoro de aviso accionavam-se automaticamente, no mo-
mento em que o calor fazia disparar os sensores.
Neste caso concreto, as chamas haviam envolvido o carro, alcan-
çando a parte inferior e, por conseguinte, activando o sistema sem inter-
ferência de Bond.
Em poucos segundos, dez quilos de Halon 1211 percorriam o Saab,
desde a parte inferior até ao compartimento do motor, extinguindo o
fogo imediatamente e não deixando estragos no seu rasto, visto as pro-
priedades do Halon não serem prejudiciais aos componentes do motor,
circuitos eléctricos ou aos seres humanos. O Halon também não é corro-
sivo e, uma vez extinto o fogo, a taxa de evaporação era tão rápida que
não deixava resíduos.
Bond, perfeitamente consciente do que se estava a passar, reduziu
na caixa, travou, e fez as duas curvas finais a uns moderados 100. Foi ape-
nas quando já estava na recta comprida, a seguir às bancadas, e sabendo
139
que estava a entrar na quinta volta, que Bond puxou de novo pelo carro,
ficando aliviado por não sentir qualquer alteração na resposta do motor.
Luxor, no entanto, estava bem longe — uns bons três quilômetros à
frente, a entrar na chicane. Bem dentro da sua cabeça, onde a raiva estava
efervescente, Bond desejava manter a calma. Luxor tentara deliberada-
mente queimá-lo vivo na pista, esperando que o dispositivo incendiário
fizesse explodir o depósito de gasolina do Saab, e provavelmente também
o turbocompressor.
Acalmando-se com firmeza, Bond não desviava o olhar da pista à
sua frente. Ia metendo as mudanças ao aumentar a potência, rugindo ao
longo da recta em direcção à chicane. A velocidade ultrapassou os 160,
até os pequenos dígitos verdes no painel se fixarem nos 200.
Bond reduziu na caixa, entrando mesmo assim na chicane a uma
velocidade superior às passagens anteriores. O Saab levantou vôo como
um avião a descolar, e depois saltou primeiro sobre a traseira, quase des-
controlado. Bond lutava com o volante. O écran de árvores que orlava a
pista apareceu no seu campo de visão. Ouviu os protestos dos pneus até
endireitar novamente o carro, aumentando um pouco a velocidade, e de-
pois abrandando à medida que se aproximava do Z.
Daí para a frente, era uma questão de utilizar a velocidade nas rec-
tas, sem sequer tentar esticar o Saab ao máximo, para ganhar terreno a
Luxor, que ia agora cheio de entusiasmo, agarrando-se à sua posição de
comando.
Foram necessárias mais duas voltas até o Saab ficar colado ao seu
adversário. Então, focinho com pára-choques, passaram uma vez mais a
meta e entraram na oitava volta. Bond procurava a sua oportunidade,
desviando-se e pressionando, enquanto Luxor aumentava cada vez mais
a velocidade.
Walter Luxor estava de cabeça perdida, concluiu Bond. Quanto
mais ele pressionava, mais riscos corria Luxor. A sua condução era ainda
impecável, travando qualquer tentativa feita por Bond, mas a velocidade
parecia embriagá-lo completamente. Arriscou-se a fazer a chicane, a cur-
va de noventa graus e o Z, muito perto dos limites máximos de segurança.
Nona volta. Só mais uma a seguir àquela, e depois tudo estaria
acabado. Pela penúltima vez as bancadas passaram por eles como uma
mancha. Bond apercebeu-se que estava involuntariamente a ranger os
dentes. Quaisquer que fossem as consequências, tinha de haver alguma
maneira de ultrapassar Luxor se queria ganhar.
A idéia esboçou-se rapidamente. Uma hipótese em mil. Um risco
140
que poderia acabar em desgraça. Passaram a chicane. Desta vez Luxor
abrandou ao alcançar a lomba. Talvez os nervos do condutor estivessem,
finalmente, a ficar em franja. Agora, seguia-se a curva de noventa graus,
perigosa e mortal.
Luxor endireitou o carro, chegando-se bem à direita — as rodas
quase tocavam a relva na berma da pista —, de modo a fazer a curva cas-
tigadora a 160. Bond, mais ou menos um metro atrás, acelerava também
para perto dos 160.
Luxor entrou na curva, mantendo-se do lado direito, contrariando a
tensão, para ficar junto à berma tanto tempo quanto possível, antes que
pressão e velocidade puxassem o carro para a esquerda. Atingiu o ponto
máximo de viragem, e o carro, sob a pressão da curva, velocidade e es-
forço de rotação, começou a derrapar. Um toque no travão fê-lo abrandar
ligeiramente.
Era o momento por que Bond esperara: aquele segundo antes de
Luxor ser arrastado para a esquerda e forçado a abrandar. Bond aprovei-
tou a sua última oportunidade.
Em vez de seguir directamente na esteira de ar do carro de Luxor, o
Saab desviou-se subitamente, chegando-se para a esquerda. Bond rodou
o volante, sentindo a pressão a puxar o Saab ainda mais para a esquerda
do que queria, corrigindo com o volante, torcendo-o um pouco à direita,
e sabendo que, se as rodas ficassem blocadas, entraria em pião e sairia
da pista.
O Saab estava à deriva. Então, por um segundo, apareceu um espa-
ço — estrada livre na curva, do lado esquerdo de Luxor. Daí a um momen-
to, o carro de Luxor seria atirado para aquela zona livre — tal como acon-
tecera em todas as outras vezes ao fazerem a curva de noventa graus.
Mas naquela fracção de tempo, Bond sentiu o Saab estável. Carregou no
acelerador, sentindo o estabilizador do Saab a puxar a traseira do carro
para baixo. O seu próprio corpo foi impelido para trás contra as costas do
assento, quando era accionada a potência máxima.
Quase em voz alta, Bond rezou para que o constante aumento de
velocidade superasse a tendência de derrapagem para a esquerda, e para
que conseguisse segurar ainda o Saab na curva, sem tocar na berma. O
turbocompressor gemeu com uma intensidade crescente, que parecia ir
acabar numa explosão.
Então, subitamente, o barulho cessou. O Saab disparou pelo lado
de fora do Shelby-American em derrapagem, com os dígitos do velocíme-
tro quase a atingirem os 220. Bond endireitou as rodas e acelerou.
141
Foi por pouco que a frente do carro de Luxor não roçou na traseira
do Saab, quando Bond fez a ultrapassagem. Por um momento, a carroce-
ria baixa e o pára-brisas do outro carro pareciam encher o espelho retro-
visor do Saab. Então, atrasou-se alguns centímetros. Quando abrandaram
para entrar no Z, Luxor conseguiu manter-se perto, como se estivessem
ligados por um cabo. Porém, quando Bond saiu da última curva em coto-
velo, foi metendo as mudanças até à quinta, ao mesmo tempo que o seu
pé direito ia carregando suavemente no acelerador.
O Saab, finalmente com a pista livre à sua frente, arrancou para
diante. Atingiu os 240 na recta, abrandou para fazer as duas curvas, e, no
início da última volta, deixou o carro mostrar o que valia. A certa altura,
antes da chicane, os dígitos atingiram o número mágico de 280, e depois
ainda um pouco mais na recta final. Luxor estava agora com um atraso de
uns bons cinco ou seis quilômetros.
Bond apenas começou a reduzir ao dirigir-se às duas últimas cur-
vas, permitindo que a velocidade baixasse. Em seguida, fez a volta su-
plementar, a uma velocidade relativamente moderada, deixando que o
motor se estabilizasse e que ele próprio se acalmasse.
Vira a expressão sombria e zangada de Bismaquer, ao baixar a ban-
deira axadrezada, proclamando Bond vencedor.
No entanto, quando o Saab parou finalmente nas boxes — com a
multidão da bancada a aplaudir, ainda que o seu homem saísse vencido
— Bismaquer parecia ter recuperado a calma.
— Foi uma corrida limpa, James. Limpa e emocionante. Não há dú-
vida que esse seu carro sabe o que é andar.
Bond, com o suor a escorrer, não respondeu imediatamente, vol-
tando-se para observar Walter Luxor — o seu rosto esquelético agora ain-
da mais ameaçador que habitualmente — a parar o carro atrás de si.
— Não sei se foi muito limpa, Markus — respondeu Bond por fim.
— Se aquilo é mesmo um Shelby-American transformado, vou ali e já ve-
nho. E no que diz respeito ao fogo-de-artifício...
— Pois é, que foi que aconteceu ali? — O rosto rosado e desprezível
de Bismaquer era uma máscara de inocência.
— Parece-me que Walter deve ter estado a dar umas fumaças rá-
pidas num cigarro e atirou fora o fósforo. Estou ansioso pelo meu bônus,
Markus. Foi uma óptima corrida. Agora, se me dá licença... — Voltou as
costas, e dirigiu-se para o Saab, que necessitaria certamente da sua assis-
tência.
Mas Bismaquer não o largou.
142
— Bem, esta noite acertamos todas as dívidas, James. Refiro-me ao
dinheiro. E fico com as gravuras. Mas, depois, receio que a minha hospi-
talidade tenha de acabar. Jantar às sete e meia. Apareçam às sete e assim
podemos tratar dos negócios antes da refeição. Está bem?
— Óptimo.
— Lamento, mas vou ter de lhes pedir que partam de manhã. Com-
preenda, temos a tal conferência... as primeiras pessoas chegam esta noi-
te...
— Pensei que se mantinha afastado das conferências. — Bond es-
tava já meio dentro do Saab, a soltar a alavanca interior de abertura do
capot.
Bismaquer hesitou e depois riu. Não era a gargalhada estrondosa
habitual, mas um riso nervoso, surdo e prolongado.
— Sim, sim, é verdade. Não suporto conferências. Na verdade, já
nem suporto multidões. Acho que foi isso que acabou por me convencer
a desistir da política. Sabia que houve uma altura em que tive ambições
políticas?
— Não, mas não me espanta—mentiu Bond.
— Geralmente mantenho-me afastado das conferências que se re-
alizam aqui. — Bismaquer parecia estar à procura de palavras. — Bem
vê — continuou —, bem, estas pessoas que chegam esta noite são todos
engenheiros do ramo automóvel. Walter é um perito. — O seu rosto es-
boçou lentamente um arreganhar de dentes manhoso. — Acho que já
sabe isso nesta altura. Quer acreditar que foi ele quem construiu aquela
réplica do Shelby com as próprias mãos?
— Incluindo os extras? — Bond levantou as sobrancelhas.
Bismaquer deu uma gargalhada estrondosa, como se aquilo tudo
não passasse de uma boa piada. Qualquer um de nós podia ter morrido
na pista por causa daquele carro, pensou Bond, e no entanto Bismaquer
acha graça.
O grandalhão mal parou para respirar.
— Bem, como se trata de engenheiros e... Bem, Walter vai discursar
amanhã de manhã; qualquer coisa sobre mecânica, não sei bem o quê.
Feito parvo, e para lhe fazer a vontade, prometi assistir também. Por isso
não vou ter muito tempo livre para fazer as honras da casa a Cedar e a si.
Bond anuiu.
— Está certo. Partimos de manhã, Markus. — Em seguida, dirigiu-
-se ao carro.
— Sirva-se do churrasco — gritou Bismaquer por cima do ombro.
143
Bond perguntou-se quando começaria a acção, enquanto observa-
va o homem robusto a afastar-se, com aquele andar pesado e arrastado.
Ou Bismaquer ia deixá-los sair do rancho e mandava dar cabo deles lá
fora, ou tratava disso cá dentro. Se se desse a segunda hipótese, então
tudo iria por água abaixo. Entre outras coisas, precisava de falar com
Nena, e depois esconder-se no centro de conferências, que era a sua últi-
ma esperança de obter informações úteis. Se Bismaquer agisse primeiro,
toda a missão teria sido em vão.
Desde o início que Bond tivera a certeza de que os espectaculares
e mortais desvios de aviões faziam parte do plano da ESPECTRO ressusci-
tada. Tratava-se de uma operação de recolha de fundos para algo muito
maior. Tudo o que sentira e vira desde a sua chegada aos Estados Unidos,
e em particular ao Rancho Bismaquer, apontava para um golpe de enor-
mes proporções arquitectado pela ESPECTRO. Era aqui que residia o cerne
da questão, assim como o sucessor de Ernst Stavro Blofeld.
Agora, após as palavras de Bismaquer, sabia que seria necessário
desaparecer a qualquer momento, mesmo que isso implicasse abandonar
Cedar nas mãos das feras. Luxor ou Bismaquer?, perguntou-se. Qual deles
era o novo Blofeld? Qual deles era a chave?
A preocupação de Bond ia aumentando enquanto verificava o Saab,
recuando-o em seguida em direcção às bombas de gasolina. Pelo menos,
mandaria encher o depósito e pôr óleo e um resfriador, se lhe deixassem.
Luxor nem sequer se dera ao trabalho de se aproximar para lhe
apertar a mão ou felicitá-lo pela vitória. Pior ainda, Cedar desaparece-
ra sem trocarem uma palavra, pressionada, juntamente com Nena, pelo
pessoal de segurança.
Depois do aumento de adrenalina causado pelo perigo da corrida,
James Bond sentia agora uma reacção quase semelhante a uma depres-
são. Não se via Bismaquer em lado algum, e apenas um ou dois cozinhei-
ros velavam pelo churrasco deserto. Bond foi até lá e serviu-se de um bife
enorme, pão e café. Pelo menos não morreria com fome.
Tratou rapidamente do Saab, ao mesmo tempo que deitava uma
olhadela às bancadas, que estavam a esvaziar-se. A única coisa que podia
fazer era acautelar-se, voltar à cabina, e depois partir apressadamente,
esconder-se e esperar até à noite. Então iria jantar a Tara, armado até aos
dentes, com fortes esperanças de que Bismaquer não mandasse que o
apanhassem, e a Cedar, antes que ele pudesse esconder-se e obter algu-
mas respostas,
À medida que o Saab se afastava das boxes, era observado do cimo
144
das bancadas por um homem de bigode à militar, que vestia um casaco
branco de seda. O carro desapareceu, dirigindo--se para o bosque.
Mike Mazzard sorriu e abandonou a bancada.

16
NENA

Mesmo às onze e trinta, a noite parecia ter perdido muito pouco


do calor do dia.
Bond, que vestia agora calças escuras, camisola de gola alta preta
e um casaco curto — para esconder a VP70 e o coldre —, estava deitado
no meio das árvores, tapado com ramos e fetos já recolhidos durante a
tarde.
A sua volta, os ruídos dos animais nocturnos, combinados com o
trinar das cigarras, já formavam um ambiente natural. A sua audição era
suficientemente boa para poder distinguir de entre uma série de chama-
mentos e cantos, e seria capaz de captar qualquer som humano se al-
guém se aproximasse.
Nalguns aspectos, os acontecimentos do dia foram perfeitamente
normais. Bond, ao voltar à cabina, tomara um duche rápido, mudara de
roupa e certificara-se de que tudo estava preparado para uma fuga rápi-
da. Estendera, em cima da cama, as roupas para o jantar dessa noite e
guardara tudo o resto, incluindo a pasta, de novo com todo o seu equipa-
mento, a qual guardou no Saab.
Tudo o que tinha consigo era o conjunto de gazuas e ferramentas,
a Heckler & Koch e os carregadores de reserva. Fez rapidamente todas
estas operações rotineiras, vestindo as roupas que usava agora, à excep-
ção de uma camisa preta durante o dia, em vez da camisola de gola alta,
a qual, pensou, seria mais apropriada para a noite.
O seu esconderijo fora construído com igual pressa no meio das
árvores e a um canto da clareira, permitindo uma boa observação da en-
trada da cabina e do Saab. Bond permaneceu aí até ao anoitecer, foi-se
embora pouco depois das seis e vestiu o fato leve, calçou uns sapatos
decentes, e pôs uma gravata, antes de seguir para Tara.
Bismaquer estava como sempre bem disposto, distribuindo bebi-
das na varanda. Cedar parecia fresca, com uma saia e blusa azul-escura,
enquanto Nena estava radiosa, com os seus olhos escuros brilhando e
com aquele riso deslizante que soava como música aos ouvidos de Bond.

145
Mal chegou, Nena perguntou-lhe o que queria tomar, olhando-o
nos olhos, e durante esse momento fez-lhe um sinal que significava que
não se esquecera do seu encontro.
Cedar estava calma, mas também ela parecia fazer sinais a Bond,
como querendo dizer que precisavam de falar.
Walter Luxor, sentado, de mau-humor e quase não falando, era o
único que destoava. Tinha um mau perder, pensou Bond, e era um ho-
mem com coisas mais importantes no seu espírito do que prestar atenção
às trivialidades que pareciam fluir naturalmente da boca de Markus Bis-
maquer.
Após tomarem uma bebida, Bismaquer sugeriu a Bond que, se este
trouxera as gravuras, podiam agora concluir o negócio.
— Sou um homem de palavra, James. — Soltou uma risada. — Em-
bora não goste, como toda a gente, de me desfazer do meu dinheiro.
Bond desceu os degraus em direcção ao Saab, recolheu as gravuras
e seguiu Bismaquer para dentro de casa.
Dirigiram-se de imediato à sala das gravuras, onde, sem delongas,
Bond entregou as gravuras em troca de uma pequena pasta que Bisma-
quer abriu.
— Conte-o, se quiser — resmungou, satisfeito. — Só que, se o fizer,
não terá tempo para jantar. Está todo aí. Um milhão para o Prof. Penbrun-
ner e outro para si.
— Confio em si. — Bond fechou a pasta. — É um prazer fazer negó-
cio consigo, Markus. Se eu tiver mais alguma coisa...
— Estou certo de que vou precisar de novo de si, James. — Bisma-
quer deitou-lhe um olhar rápido e quase duvidoso. — De facto, tenha a
certeza absoluta. Agora, se não se importa, regresse para junto dos outros
enquanto eu guardo isto. Tenho horror a que alguém saiba onde guardo
os meus tesouros raros.
Bond pegou na pasta.
— E esta precisa de ficar fechada e segura. Obrigado, Markus.
Ao voltar de novo ao pórtico, Bond encontrou apenas Cedar.
— Nena foi falar com o cozinheiro e o morto-vivo desapareceu —
disse-lhe Cedar rapidamente.
Bond já descera metade dos degraus. Chamou-a em voz baixa:
—Venha, ajude-me a guardar isto.
Foi ter com ele ao carro e imediatamente Bond detectou as vibra-
ções de medo que emanavam dela, como um animal.
— Estão mesmo a preparar alguma importante, James. Meu Deus,
146
preocupei-me consigo durante a corrida.
— Eu também não estava muito satisfeito, Cedar. Preste atenção.
— Disse-lhe, em poucas palavras, que, se ficassem os dois a sós no fim
do jantar, ele regressaria à cabina. — Vou fazer como planeámos, só que
Bismaquer já deu ordens para que partamos amanhã de manhã. Suspeito
que tencionam deixar-nos sair e depois apanhar-nos, mas posso estar en-
ganado. Também há a hipótese de nos apanharem aqui, esta noite. Ainda
tem aquela arma?
Fez um breve aceno com a cabeça, e, sussurrando, disse-lhe que es-
tava presa à parte de dentro da sua coxa, e que era muito desconfortável.
— Certo. — Bond, depois de colocar a pasta no porta-bagagens, fe-
chou-o à chave. — Depois do jantar, logo que puder, quero que venha cá
fora. Não se aproxime nem do outeiro nem da cabina, mas de madrugada
tente dirigir-se ao local que lhe falei, onde eu vou esconder o Saab. Roube
um carro, vá a pé, faça como quiser. Mas saia. Não se aproxime muito,
esconda-se e observe. As horas de encontro são as que combinamos.
— OK. No entanto, tenho algumas coisas a dizer-lhe, James.
— Então seja rápida.
— Eles sabem exactamente quem somos e o que somos — come-
çou. — E Mike Mazzard chegou ontem à noite.
— E os outros três rufias?
— Não sei, mas Mazzard ouviu das boas de Luxor por não ser ca-
paz de controlar os seus homens. Aparentemente, agiram sem ordens
em Washington. Não lhe iria acontecer nada, James. Quanto a mim, não
estou tão certa (a propósito, sabem que o meu nome é Cedar Leiter), mas
querem-no vivo a si.
— E a corrida?
— Foi para o desorientar. Assim como as formigas-carregadeiras.
Eles sabiam que você não estava naquela cabina. Não há dúvida de que
as formigas eram para mim. Aparentemente, você é intocável. Devia ter
ouvido o que Luxor disse a Mazzard. Tenho a certeza de tudo isto, James.
Ouvi tudo. As ordens são para o vigiar, mas não para o matar.
— Bem...
— E não é tudo. Aconteceu qualquer coisa no armazém.
Bond fez uns ruídos inquiridores.
— Vi por acaso. Ao fim da tarde, um camião frigorífico saiu do meio
das árvores, nas traseiras do armazém, e havia lá, pelo menos, mais dois.
O primeiro camião dirigiu-se ao aeródromo. Estão a transportar os gela-
dos.
147
A testa de Bond enrugou-se enquanto pensava.
— Quem dera que soubéssemos mais — murmurou. — Talvez ama-
nhã à noite isso já seja possível. No entanto, tenha muito cuidado; se se
trata de uma actividade criminosa ou terrorista e se tivermos desapare-
cido, vão virar isto de pernas para o ar à nossa procura. Eu...— Parou,
apercebendo-se de que alguém acabara de chegar ao pórtico.
Um segundo depois, Nena Bismaquer falou.
— James? Cedar? Ninguém vos chamou? O jantar está servido.
Subiram os degraus, e Cedar entrou primeiro, deixando Bond con-
duzir Nena pelas grandes e altas portas. Ela deixou Cedar seguir bem à
frente e em seguida voltou-se, falando a Bond em voz baixa.
— James. Depois do jantar, estarei consigo logo que puder. Por fa-
vor, tenha cuidado. Isto é muito perigoso. Temos de falar.
Bond apenas fez uma vénia para indicar que compreendera. Os
olhos negros transmitiam aos seus olhos um olhar suplicante, bastante
apropriado à sofisticada e bela francesa que seguia agora à sua frente,
com passo largo e altivez na direcção da sala de jantar.
Por isso, Bond esperava agora no seu esconderijo no meio das ár-
vores. Por Nena? Quase de certeza, pensou. Embora pudesse muito bem
tratar-se de outra pessoa. Durante o jantar, o ambiente estivera um pouco
tenso e, em duas ocasiões, Bismaquer mudara repentinamente de dispo-
sição, primeiro pelo modo como falou com os criados e depois com Nena.
Talvez já não conseguisse disfarçar o nervosismo. Por aquilo que tanto ele
como Cedar haviam observado, algo estava para acontecer. Se, na ver-
dade, Bismaquer fosse o novo Blofeld, a máscara poderia estar prestes a
cair.
Seria significativo, interrogou-se deitado no escuro, que Walter Lu-
xor não tivesse ficado para jantar? De acordo com Bismaquer, o esqueleto
saíra para preparar o seu discurso para o dia seguinte.
Luxor ou Bismaquer? Bond ainda se interrogava, e os seus olhos
— agora habituados à escuridão — estavam atentos ao mais pequeno
movimento.
Mexeu-se para olhar para o relógio. O mostrador brilhava clara-
mente. Onze e trinta e cinco e, nesse momento, ouviu o barulho distante
de um motor.
Bond voltou a cabeça, tentando calcular a direcção. O som aproxi-
mava-se vindo de baixo. Um pequeno carro, pensou, enquanto ouviu com
nitidez uma mudança de velocidade e de barulho do motor, à medida que
iniciava a subida da longa estrada, por entre as árvores.
148
Cerca de cinco minutos mais tarde, um feixe de luz entrou na cla-
reira, seguido do pequeno carro, um pequeno modelo desportivo de cor
preta, que Bond não conseguiu identificar imediatamente.
O carro parou mesmo atrás do Saab. A fechar-lhe o espaço de ma-
nobra, pensou Bond. Se quisesse sair rapidamente, teria de desimpedir o
caminho com uma curva rápida.
O condutor desligou o motor e as luzes. Através do ar nocturno,
Bond ouviu o roçar da seda. Mal conseguia distinguir Nena Bismaquer, de
pé junto ao carro, e ouviu-a chamar em voz baixa.
—James? James, está aí?
Bond movimentou-se com cuidado. Atravessou a clareira, com a
mão junto ao coldre da VP70. Só o ouviu quando estava quase por detrás
dela.
— Oh, meu Deus. Oh, James, não faça isso. — A tremer, Nena agar-
rou-se a ele.
—Disse-me para ter cuidado. — Bond sorriu.
Nena Bismaquer ainda trazia o mesmo vestido que usara ao jantar
— um vestido de seda plissada em tons de preto e branco, muito simples
mas revelador do seu estilo e personalidade particulares. Simples talvez,
pensou Bond, tocando com a mão no tecido macio e provocante, mas
apostaria o vencimento de um mês em como aquela criação custara uma
fortuna.
— Podemos ir lá para dentro, James? Por favor. — Os lábios dela es-
tavam perto dos seus. Mais uma vez, Bond sentiu o seu aroma especial, o
cabelo limpo e fresco, embora agora estivesse misturado com algo muito
caro: o toque de uma essência, provavelmente única e feita especialmen-
te para a esposa de Markus Bismaquer. Por um instante, Bond sentiu uma
pontinha de ciúme. Então, ela insistiu de novo. — Por favor, James, vamos
entrar, por favor.
Bond deu um passo em frente, deixando Nena entrar primeiro na
cabina, e depois acendeu a luz. Quase no mesmo instante em que a porta
da cabina se fechou, ela estava nos seus braços, tremendo, e afastando-se
em seguida.
— Eu não devia ter vindo. — A sua voz tinha o mesmo tom ofegante
que escutara no Saab quando se beijaram pela primeira vez.
— Porquê, então? — Bond abraçou-a, sentindo-a a voltar-se na sua
direcção, com as suas pernas a encostarem-se com força.
— Que acha? — Ela levantou o rosto, beijou-o nos lábios, e de-
pois voltou a afastar-se rapidamente. — Não. Ainda não. Não sei o que
149
se passa, James. Tudo o que lhe posso dizer é que Markus e Walter estão
a tramar alguma. Estão a fazer algo verdadeiramente perigoso, James.
É tudo o que sei, tudo o que lhe posso dizer. Os dois escondem tudo de
mim. Chegaram homens ontem à noite, vindos do Leste, de Nova Iorque.
Ouvi parte da conversa. Walter disse que se não conseguisse vencer hoje
a corrida...
— Você pareceu-me bastante descontraída na pista.
— Não tinha hipótese de o avisar, James. Você viu. Estava rodeada
por homens de Markus. Tem de fugir, James.
— Markus pediu-nos para sairmos amanhã.
— Sim. Sim, eu sei... mas... — Ela chegou-se mais. — Mas eles estão
à espera, eu sei. Há muita gente nova por aqui, e acho que o rancho está
cercado de cães e sermiblindados. Acha lógico, semiblindados?
— Sim, teriam utilidade no deserto. — Bond não lhe disse que par-
tilhava das suas preocupações. Bismaquer agia verdadeiramente como
um cão-pastor, conduzindo-os para os braços dos assassinos que os es-
peravam.
— Oiça, Nena. — Afastou-a, segurando-lhe os ombros, excitado
pela sua presença, pela pele macia tocando as suas mãos e pelo contacto
com a seda. — Escute com atenção. Cedar vai-se embora. Eu vou-me em-
bora. Vamos desparecer. Não amanhã, como Markus pretende, mas sim
esta noite, ou então às primeiras horas do dia. Sei que se está a preparar
algo, por isso vamo-nos esconder aqui, no rancho, até que um de nós
possa fugir.
— Se for você, James não arrisque. Pelo que ouvi, o rancho está
mesmo cercado. É por causa do dinheiro, talvez? Não sei.
Nos instantes de silêncio que se seguiram, ouviu-se o barulho forte
de um pesado avião que sobrevoava o rancho. Nena olhou na direcção
das vigas da cabina.
— Deve ser parte da delegação a chegar. Há dois vôos esta noite.
Ou é isso, ou é um dos transportes de mercadorias de Markus...
— Transportes de mercadorias?
Soltou uma risada breve e nervosa.
— Oh, aqueles malditos gelados. Está a preparar qualquer coisa
criminosa, horrível, eu sei, mas não deixa os gelados por um instante. Ar-
ranjou um novo sabor, e vendeu-o a um distribuidor qualquer. Toneladas
dele. Estão a carregá-lo esta noite.
Gelados enviados a um distribuidor, pensou Bond. Seria puro ou
misturado com alguma droga horrorosa congeminada por Luxor e Bisma-
150
quer? A droga que vira actuar, transformando homens em monstros dó-
ceis, capazes de obedecer, mesmo se isso significasse vender as próprias
mulheres e entes queridos.
— Onde é que se vai esconder? — perguntou ela.
— Não! — Bond foi brusco. — E melhor que não saiba de nada, pois
assim não lhe poderão fazer nada. Vamos apenas desaparecer. Aguarde,
Nena. Aguarde. Providenciarei para que venha alguém. E então tudo es-
tará terminado.
— Voltarei a vê-lo?
— Claro que sim.
Sentiu a mão dela descer até à sua coxa.
— Não tenho mais tempo. — Chegou-se mais, sussurrando-lhe ao
ouvido. — James, no caso de acontecer alguma coisa... — Não precisou
de terminar a frase.
Carinhosamente, Bond conduziu-a na direcção do quarto, dirigiu­-
se à cama e acendeu o candeeiro.
— Não, meu querido James. Luzes, não. No escuro.
— Isso é um pouco antiquado... — Faça-me a vontade .Luzes não.
Anuiu, apagou a luz e despiu-se, ouvindo o barulho do deslizar da
seda do vestido, que ela despia pela cabeça.
Nu e deitado na cama, Bond estava prestes a colocar a automática
perto de si, quando um instinto súbito lhe disse para voltar a acender a
luz...
—Desculpe, Nena. Preciso de alguma luz.
Ela soltou um pequeno grito, quando a lâmpada se acendeu, reve-
lando um corpo elegante, macio e bronzeado, e umas longas e magníficas
pernas. Vestia apenas um soutien de seda e umas calcinhas. Na altura,
desapertava o soutien.
— James. Eu pedi-lhe... — Deteve-se, apercebendo-se de que a sua
voz se tornava cortante como uma chicotada.
Bond desculpou-se.
— Desculpe. Estou nervoso, Nena, é só por isso. Acho que não de-
vemos estar às escuras. Você é tão bela, por isso para quê a modéstia?
O rosto dela enrugou-se ao dirigir-se lentamente para a cama.
— Você acabaria por descobrir. Tal como Markus descobriu. Toda
a gente. Não posso evitar, James. Não sou uma mulher completa. Não
queria que me visse. Sempre foi assim. Eu... eu... eu sinto-me deformada,
e não gosto que as pessoas...
Tocando-lhe com a mão, puxou-a para a cama. A boca de Nena
151
abriu-se e encostou-se à dele, e de novo mergulharam num remoinho de
emoções, em que as bocas representavam os desejos dos seus corpos.
Ela afastou-se logo a seguir.
— A luz, James. Será que podemos...?
— Mostre-me. — Bond esta determinado. — Seja o que for, não
deve haver mal em ver...
Ela deslizou lateralmente, com as mãos no fecho do soutien. Bond
reparou que ela não o conseguia olhar nos olhos.
— Nasci assim, James. Desculpe. Algumas pessoas, e Markus é uma
delas, acham isto revoltante.
Tirando o soutien, revelou a verdade. O lado esquerdo do peito
era macio e liso como o de um jovem, de formas perfeitas, mas sem seio
feminino. No lado direito via-se a bela curva de um seio glorioso—cheio
e dourado.
Estranhamente, talvez por que o seu único seio fosse tão maravi-
lhoso, uma semiesfera perfeita com um mamilo erecto castanho e rosado
bem proporcionado, aquela singularidade parecia a Bond mais erótica.
Puxou-a para si, pondo uma mão no seio.
— Querida, bela Nena. Você é única. E linda. Não há nada de re-
voltante em si. De certeza que não é uma mulher incompleta. Deixe-me
demonstrá-lo.
Lentamente, entremeando as suas acções com beijos, Bond aca-
bou de a despir e ela enrolou-se à sua volta de modo a que, durante cerca
de uma hora, desapareceu o mal que os cercava naquela ilha no meio do
deserto, estranha e artificial — transportando-os a outros mundos e sen-
sações, reduzindo, eventualmente, os dois seres humanos a um só pela
magia do amor.
Nena saiu por volta das quatro da manhã, com beijos constantes e
advertências preocupadas para que Bond se mantivesse atento.
— Voltarei a vê-lo, James? Diga-me que o voltarei a ver.
Bond beijou-a na boca com força e disse-lhe que de certeza volta-
riam a estar juntos.
— Se... — disse ela por fim, quando se aproximavam do seu carro
— ... se alguma coisa correr mal, James, confie em mim. Se acontecer
aqui, farei os possíveis por ajudar. Amo...
Bond interrompeu-a com um último beijo.
— É demasiado fácil de dizer. — Sorriu na escuridão. — Pense ape-
nas no que tivemos e espere que se repita.
Ficou de pé junto do Saab, no meio da clareira, vendo as luzes do
152
carro desaparecerem por entre as árvores. Então, refrescado e limpo pelo
contacto amoroso da outra pessoa, Bond juntou as suas coisas, meteu-se
no Saab e arrancou, utilizando apenas as luzes de presença. Desceu pela
estrada, depois entrou na que contornava o outeiro, subiu pelo outro lado
até ao atalho escondido onde estivera com Nena, a ouvir a sua história
de pobreza em Paris e o sonho de riqueza que se tornara amargo com
Bismaquer.
Escondendo o carro o melhor possível, iniciou a última longa cami-
nhada que o levaria até ao centro de conferências.
Não faltava muito para o amanhecer — menos de duas horas, pen-
sou — por isso Bond, que vestia ainda roupas ligeiras, trazendo consigo
apenas a Heckler & Koch automática com munições extra e o conjunto
de gazuas e ferramentas, adoptou a velha técnica de marcha veloz dos
comandos, que consistia em alternar o passo rápido com a corrida.
A viagem foi mais longa do que previra e a escuridão da noite já
dera lugar àquela média luz cinzenta que antecede o amanhecer, quando
atingiu a tampa de abertura na orla da selva. A tampa de metal soltou­-
se facilmente e Bond accionou a grande alavanca que ficava por baixo,
observando e desejando que a grande laje de pedra se deslocasse mais
depressa sobre os suportes hidráulicos.
Logo que a entrada ficou livre, voltou a colocar a tampa de metal,
desceu até à câmara ladrilhada e olhou em redor à procura do mecanismo
que Nena lhe garantira que existia e que fechava a entrada por dentro.
Descera uns bons quatro metros e podia ver a entrada para o túnel, ilumi-
nada por pequenas lâmpadas azuis que brilhavam à distância.
O mecanismo estava ali, perto do último degrau de pegas de metal.
Puxando a alavanca para baixo fez o som hidráulico parecer ainda mais
próximo, e o túnel pareceu vibrar quando a laje de pedra se ergueu e
ficou colocada no seu lugar. A luz fraca que antes entrava pela abertura
desaparecera agora, e Bond estava banhado pela baixa e tênue luz azul
que nem sequer se reflectia nos ladrilhos brancos.
O túnel formava uma curva no topo, até uma altura de cerca de
dois metros e meio, e era suficientemente largo para um homem com
a estatura de Bond poder esticar os braços e tocar nas paredes com as
pontas dos dedos.
A partir da câmara inicial, podia-se seguir sempre em frente pela
arcada do túnel, e Bond não andara muito quando reparou que o chão
apresentava uma ligeira inclinação descendente. Tal como esperara, não
se ouvia qualquer ruído nem existia humidade fria. Os mocasins de sola
153
de corda, que escolhera por uma questão de conforto, faziam muito pou-
co barulho; mesmo assim, tomou a precaução de parar de minuto a mi-
nuto e de ficar à escuta de quaisquer sons vindos de frente ou de trás. Se
o complexo já estivesse a ser utilizado, havia sempre a possibilidade de
a gente de Bismaquer utilizar esta entrada para se deslocar livremente
entre o rancho e o centro.
Não viu ninguém, embora a caminhada fosse longa — mais ou me-
nos quilômetro e meio, calculou Bond. O solo primeiro descia, depois pa-
recia endireitar-se durante umas centenas de metros, antes de voltar a
subir. No outro lado, a subida era mais íngreme. Depois da marcha rápida
que fizera desde o outeiro, Bond podia agora sentir os músculos das coxas
protestando com uma dor incomodativa.
Prosseguiu lenta e penosamente, e tão silencioso como antes. Em
breve, o caminho que seguia começou a subir, a tornar-se cada vez mais
inclinado e a formar uma curva apertada. Então, e sem que nada o fizesse
supor, o túnel alargou-se e podia ver-se o fundo; outra entrada em forma
de arco para uma câmara, esta mais comprida do que a entrada da estra-
da.
Em frente a Bond encontrava-se uma parede macia e ladrilhada.
Voltou-se para examinar a câmara e lembrou-se de que Nena lhe dissera
que também havia um mecanismo nesta ponta, que ia dar ao gabinete
de um porteiro. No entanto, ela não lhe fornecera pormenores acerca
do dispositivo. Tudo o que Bond conseguia ver eram as paredes macias e
ladrilhadas, banhadas pela luz azul. Não se viam quaisquer caixas, tampas
de metal ou patilhas.
A sua lógica dizia-lhe que a parede à sua frente, ao entrar na câma-
ra, constituía a saída mais provável. Mais: parecia que, se a porta ficava
nas traseiras de um gabinete, o puxador, ou o que quer que fosse utiliza-
do, teria de estar situado à altura da mão.
Partindo do centro da parede, Bond começou a examinar os ladri-
lhos individuais um por um, percorrendo as filas metodicamente. Em-
purrou e sondou os ladrilhos um a um até que, cerca de quinze minutos
depois, descobriu o sítio certo. O ladrilho deslizou para trás sobre uma ca-
lha de metal, que funcionava como a porta de uma garagem. Por detrás,
encontrava-se uma maçaneta perfeitamente normal.
Com cuidado, experimentou a maçaneta. Parte dos ladrilhos mo-
veu-se e, enquanto Bond recuava, uma secção completa transformou-se
numa porta com dobradiças. A porta moveu-se silenciosamente e com
grande facilidade. No outro lado via-se uma parede de estuque com pra-
154
teleiras, que formavam um ângulo para a esquerda, de modo que a porta
ao deslocar-se levava consigo parte das prateleiras.
Bond passou, segurando a porta até ter verificado o puxador do ou-
tro lado, o qual estava, de facto, escondido directamente por debaixo de
uma das prateleiras. Só então deixou que a porta atrás de si se fechasse.
O gabinete tinha pouco espaço, mas era o suficiente para um ho-
mem de constituição normal se esconder atrás da porta, a cerca de metro
e meio das prateleiras.
Logo que a porta secreta se fechou, Bond teve de esperar um mo-
mento até que os seus olhos se pudessem adaptar à escuridão total, an-
tes de se dirigir para a saída do gabinete.
Rodou novamente o puxador com cuidado e, desta vez, empurrou
a porta para fora.
Depois da luz azul e do silêncio do túnel, era surpreendente ouvir
ruídos. Vozes de homens e mulheres ecoavam à sua volta. A passagem
onde Bond se encontrava —junto à porta do gabinete — estava cheia de
luz. Uma janela, quase adjacente, deixou-o ver que já havia amanhecido
completamente e que a luz do sol entrava por ali.
A longa viagem desde o outeiro e a longa caminhada pelo túnel
tinham demorado muito mais tempo do que imaginara. Olhando para o
relógio, Bond viu que eram quase sete e trinta. Pelo menos, não teria de
esperar tanto. Mas onde esperar? Como poderia infiltrar-se na conferên-
cia sem ser imediatamente descoberto?
Deixando aberta a porta do gabinete para uma fuga rápida, Bond
deu alguns passos no interior da passagem. As vozes eram muito altas e
pareciam estar próximas, possivelmente a seguir à curva no fim da pas-
sagem, a uns sete metros. Os sons fizeram-no lembrar qualquer coisa e
demorou uns momentos a seleccionar as várias combinações na sua ca-
beça — a conversa animada, o tinir de louça. Estava perto de uma sala de
jantar comum.
Da janela, Bond podia ver em frente um amplo relvado, no meio
do qual fora embutida uma grande pedra branca em forma de H. Mais ao
longe, via-se uma alta vedação de arame e, atrás, uma parede, acima da
qual se via claramente o verde da selva. Estava a olhar directamente para
uma pista para helicópteros.
Voltando-se na direcção do gabinete, Bond descobriu um par de
portas duplas, cada uma com um painel de vidro espesso e claro na meta-
de superior. Uma legenda escrita a letra de ouro bem desenhada indicou­
-lhe que as portas conduziam à sala de conferências. Atravessou a passa-
155
gem para espreitar pelo painel de vidro e, de imediato, deslocou-se para
o lado para não ser visto.
A espreitadela rápida permitiu ver um salão luxuoso, semelhante a
um teatro moderno e muito requintado. Fila após fila de cadeiras de re-
costar bem acolchoadas descreviam um amplo semicírculo, interrompido
pelas coxias, que o cortavam como raios de sol. Em frente das cadeiras en-
contrava-se um palco largo, já preparado com uma mesa grande e, atrás,
doze cadeiras. Em frente à mesa, e no meio do palco, um microfone pa-
recia estar de guarda ao grande púlpito do orador, enquanto atrás, como
uma cortina de fundo de cenário, se encontrava um écran de cinema.
O salão de conferências não estava vazio. Pelo menos doze homens
da segurança de Bismaquer passavam pela sala, dois deles com cães e
alguns equipados com aparelhos de detecção de explosivos e aparelhos
de escuta.
Estavam, era óbvio, a inspeccionar o salão antes de ser utilizado.
Bond interrogou-se se seria antes do discurso de Walter Luxor aos enge-
nheiros de automóveis. Ou seria realmente Markus Bismaquer quem iria
falar na reunião?
Alerta, Bond apercebeu-se de que alguns dos homens da seguran-
ça de Bismaquer estavam muito perto do outro lado das portas do salão
de conferências. Silenciosamente, recuou para dentro do gabinete do
porteiro, com a Heckler & Koch firme na sua mão e com a patilha de se-
gurança destravada. Os homens da segurança podiam muito bem passar
por ali; por outro lado, outros homens de Bismaquer podiam estar agora
a passar pelo túnel.
Mal acabara de entrar no gabinete, a porta não completamente
fechada, quando ouviu o som das vozes dos homens da segurança que
entravam na passagem. As vozes eram bastante nítidas, apenas a uns cen-
tímetros de distância.
— OK?—perguntou um.
— Dizem que está tudo bem, pá — disse uma segunda voz. Depois
ouviu-se uma terceira voz.
—Viste por debaixo daquele maldito palco, não viste, Joe?
— Sim, pela tampa de acesso até lá abaixo à esquerda. Até levei a
lanterna. Está tudo limpo como um sabonete novo. Se não contares com
a sujidade e as aranhas.
Ouviu-se um coro de risadas e Bond calculou que a inspecção já
havia terminado.
—A que horas é que eles chegam? — perguntou alguém.
156
— As senhoras e os cavalheiros têm de estar nos seus lugares, pron-
tos e à espera, às oito e quarenta e cinco. Foi essa a ordem. Oito e qua-
renta e cinco em ponto.
— Bem, então temos muito tempo. Vamos comer qualquer coisa.
— Blofeld vem? — Foi o homem chamado Joe quem perguntou e
Bond sentiu os cabelos do pescoço eriçarem-se de expectativa.
—Acho que sim. Mas não é ele quem vai falar. Nunca é.
— Não. Que pena. OK, rapazes, vamos dizer às pessoas onde têm
de estar e quando...
As vozes desvaneceram-se, a claridade diminuiu, desaparecendo
depois por completo. Bond ouviu o barulho de botas a ressoar na passa-
gem. A brigada de limpeza retirara-se.
Bond não teve de pensar no que fazer a seguir. Saiu do gabinete,
com a arma ainda na mão, e olhou para os dois lados da passagem. Nin-
guém. Segundos depois, estava dentro do salão de conferências, descen-
do a correr por uma das coxias e dirigindo-se para o que a voz descrevera
como “a tampa de acesso” à esquerda do palco.
Descobriu-a cinco segundos depois, uma tampa vulgar com dobra-
diças e um anel de metal escondido para a levantar. Bond levantou a tam-
pa e passou para debaixo do palco, sessenta e cinco segundos depois de
ter saído do gabinete do porteiro.
Agora só lhe restava esperar. As oito e quarenta e cinco, os delega-
dos começariam a chegar. E pouco depois chegaria Blofeld. Não o Blofeld
que matara, mas o novo Blofeld. O nome estava agora em aberto e em
breve, Bond sabia-o, poderia identificar o homem de entre os seus dois
suspeitos. Seria Luxor ou o próprio Bismaquer? Sabia em quem iria apos-
tar.

17
LOBO CELESTIAL

Deitado, em silêncio, no escuro por debaixo do palco do salão de


conferências, Bond reflectiu de novo na questão de Blofeld, o original, o
primeiro chefe da ESPECTRO. Seria o seu sucessor, o chefe actual, um pa-
rente? Em organizações deste tipo, uma cadeia de comando não exigiria
necessariamente um grau de parentesco. No entanto, tendo conhecido e
combatido Ernst Stavro Blofeld, Bond sabia que existira nele um vestígio
de ambição dinástica. O Rei está morto; viva o Rei.

157
Quando Blofeld morrera às suas mãos, certamente que tinham sido
feitos preparativos para um futuro chefe, mesmo que essa pessoa não
surgisse imediatamente, e de certeza que se passara um longo período de
tempo antes do renascimento da ESPECTRO.
Bond pensou na arrogância, astúcia e loucura do Blofeld original
— a figura obscura que vira pela primeira vez, graças a relatórios, e que
operava por detrás da organização de fachada Fraternité Internationale
de la Résistance Contre l’Opression, em Paris, no Boulevard Haussmann.
Um homem com muitas caras, na verdade. Para Blofeld, o disfarce
fora um modo de vida, e todos aqueles rostos partilhavam do mesmo
objectivo absoluto: uma total crueldade e determinação.
Bond pensou na linhagem conhecida: meio polaco, meio grego,
nascido em Gydnia e um mago em questões de dinheiro. Se o novo Blo-
feld fosse seu parente, então Bond ainda tinha contas a ajustar. A morte
daquela que fora a sua amada esposa, apenas por algumas horas, já fora
vingada. Ernst Stavro Blofeld já pagara por isso com a punição máxima;
mas, agora, Bond fazia de novo um voto em silêncio: qualquer pessoa
remotamente relacionada com o Blofeld original também teria que pagar.
A luz da sua própria felicidade fora extinta sem compaixão. Então, porquê
mostrar compaixão agora?
Sentiu-se envolvido pela fadiga e pensou em Nena. Se alguém exi-
gia compaixão, esse alguém era essa senhora deslumbrante, inegavel-
mente maltratada pelo marido e psicologicamente desequilibrada por
uma deformidade que a fazia sentir-se apenas parcialmente mulher. Claro
que isto era um disparate, como Bond lhe demonstrara. Pobre desgraça-
da. Quando isto terminasse, pensou, Nena precisaria de cuidados muito
especiais. A imagem dela, nua na sua cama, surgiu-lhe nítida no espírito,
e foi com esta imagem que Bond adormeceu.
Acordou de um salto. Ouviu barulho de alguém a conversar. Sa-
cudindo o sono como um cão, Bond espreguiçou-se e preparou-se para
ouvir. Do outro lado, uma grande assembléia de homens e mulheres já se
encontrava reunida. Olhou para o seu Rolex, que brilhava na escuridão.
Eram quase nove horas.
Cerca de um minuto depois, diminuiu o murmúrio da assistência.
Foi substituído por aplausos que aumentaram de intensidade, enquanto
Bond ouvia passadas fortes no palco por cima de si.
Lentamente, os aplausos diminuíram. Ouviu-se tossir, pigarrear e
depois uma voz — não a de Bismaquer, como esperara, mas a voz de cana
rachada de Walter Luxor. No entanto, havia uma diferença. Quando Luxor
158
falou, mudaram as estranhas notas agudas. O horrendo homem desfigu-
rado parecia ter encontrado uma nova confiança, testando as suas cordas
vocais até captar a acústica da sala, na qual a voz se tornava mais grave.
— Minhas senhoras e meus senhores. Membros do conselho exe-
cutivo da ESPECTRO. Chefes das secções mundiais da nossa organização.
Bem-vindos. — Luxor fez uma pausa. — Como vêem, o nosso Chefe, Blo-
feld, está entre nós, mas pediu-me para ser eu a falar-lhes. Sou eu que
tenho estado em todo o planeamento da operação, à qual, até agora, nos
temos referido simplesmente como CÃO DE CAÇA. Não percamos muito
tempo com os preliminares. O tempo escasseia. Sabemos, desde o início,
que, quando o momento chegasse, seria rapidamente, deixando muito
pouco tempo de manobra. Esse momento chegou. Para vos descansar,
devem primeiro ficar a saber duas coisas. As grandes somas de dinheiro
ganhas com aquelas ousadas e, devo dizê-lo, engenhosas operações em
aviões mostraram ser mais do que suficientes para os nossos objectivos.
Em segundo lugar, desde há algum tempo que temos um cliente para o
objectivo principal da nossa operação actual. Se tudo correr bem, os lu-
cros do CÃO DE CAÇA não só encherão os cofres da ESPECTRO como pro-
porcionarão a cada um dos membros da nossa organização um óptimo
dividendo pelo seu investimento.
Bond ouviu o irromper de aplausos, os quais desapareceram tão
abruptamente como haviam principiado. Luxor parecia mexer e pôr em
ordem os seus documentos. Bond ouviu-o pigarrear e prosseguir.
— Não tenciono fazer disto uma maratona de esclarecimentos. No
entanto, existem certos pontos estratégicos e tácticos que primeiro vos
devo esclarecer. Isto é necessário para que possam entender completa-
mente a situação militar e política. O mundo, como bem sabemos, parece
estar permanentemente à beira do caos. Existem as guerras habituais, ter-
rorismo, escaramuças e rumores de guerra. As pessoas têm medo. Deverá
ser óbvio, para todos nós, que muitos dos seus medos são fomentados e
manipulados pelos militares e políticos das chamadas superpotências. As-
sistimos ao aumento de marchas, manifestações e grupos de pressão, em
especial no âmbito das potências ocidentais. Estes grupos de acção são
motivados pelo medo: o medo de um holocausto nuclear. Por isso, como
ouvimos e vemos, as pessoas descem à rua, numa tentativa de impedirem
aquilo que consideram ser uma corrida às armas nucleares. Nós sabemos,
como é óbvio (assim como todos os grandes estrategas militares), que
todo o negócio de uma corrida convencional às armas nucleares constitui
uma clara má orientação. Os agitadores, os loucos e as pessoas mal infor-
159
madas vêm apenas uma ameaça nuclear. — Soltou uma pequena risada
arrogante. — O que não vêm é que os papões (as bombas de neutrões,
os mísseis de cruzeiro, os mísseis balísticos intercontinentais) são apenas
armas provisórias, meios temporários de ataque e defesa. O mesmo se
aplica aos sistemas de detecção de costa a costa e às idiotices que se
dizem acerca dos sistemas de aviso atempado aerotransportados, como
o avião—sentinela AWAC. Todas estas coisas são como fisgas, para serem
utilizadas como substitutos até que o novo armamento entre em acção. O
problema é o medo, o medo de que os lares, os países, e as vidas huma-
nas estejam em jogo. Aqueles que vão para a rua manifestar-se só sabem
pensar em termos de guerra aqui, neste planeta. Não vêm que, dentro
de muito poucos anos, os MBIC1 e os mísseis de cruzeiro serão anula-
dos, ultrapassados, inúteis. Deixa-se propositadamente que a chamada
corrida às armas domine a opinião pública, enquanto as superpotências
prosseguem na verdadeira corrida às armas; a corrida que proporcionará
as verdadeiras armas de ataque e defesa, a maioria das quais não será, de
modo algum, utilizada aqui neste planeta, na Terra.
Ouviu-se um murmúrio na assistência, antes de Luxor prosseguir.
— O que estou prestes a contar-lhes é já do conhecimento gene-
ralizado dos principais cientistas e peritos militares do mundo. A corrida
às armas não está agora a ser orientada para o armazenamento e instala-
ção táctica de armas nucleares e de neutrões, embora seja exactamente
isso o que a propaganda soviética e americana pretendem que as pessoas
pensem. Não. — Luxor deu uma pancada no púlpito, o que fez vibrar as
vigas e as tábuas por cima da cabeça de Bond. — Não. A corrida às ar-
mas preocupa-se apenas com uma coisa: a perfeição da arma absoluta
que tornará totalmente impotentes todas as outras armas nucleares exis-
tentes. — Luxor soltou de novo a sua gargalhada aguda. — Sim, minhas
senhoras e meus senhores, este é o sonho do cientista louco, as tramas
das histórias de ficção científica do passado. Mas, agora, a ficção transfor-
mou-se em realidade.
Bond susteve a respiração, já sabendo o que se seguiria. Tinha a
certeza de que Luxor iria falar da ultra-secreta Arma de Feixe de Partícu-
las.
— Até há pouco tempo — prosseguiu Luxor —, a União Soviética
estava sem dúvida à frente, no programa de desenvolvimento daquilo a
que se dá o nome de Arma de Feixe de Partículas, um dispositivo carrega-

1 Mísseis Balísticos Intercontinentais. (N. do T.)

160
do de partículas, muito semelhante a um laser, a que se juntam propaga-
dores de microondas. Essa arma já se encontra na sua fase final, e pode
funcionar, e funcionará, como escudo: uma barreira invisível, para repelir
qualquer possibilidade de ataque nuclear. Como disse, pensou-se que a
Arma de Feixe de Partículas estava mais desenvolvida na União Soviética
do que nos Estados Unidos. Sabemos agora que as duas superpotências
se encontram equiparadas no seu desenvolvimento. Dentro de poucos
anos (muito poucos anos), a balança do poder pode pender dramatica-
mente para um dos lados ou tornar-se absoluta para os dois. Isto porque
o Feixe de Partículas destina-se a neutralizar, com eficácia, quaisquer dos
sistemas existentes de propagação nuclear. As superpotências podem es-
calar milhões de mísseis de cruzeiro, MBIC ou bombas de neutrões lan-
çadas por lança-foguetes. Não ganharão nada com isso. Por conseguinte,
não estão a armazenar estas armas. O Feixe de Partículas, uma vez ope-
racional, impedirá qualquer país de desferir um ataque nuclear conven-
cional. O Feixe de Partículas significa a neutralização absoluta. Um beco
sem saída. Sucata no valor de biliões de dólares guardada em silos por
todo o mundo. Se uma superpotência conseguir vencer a corrida ao Feixe
de Partículas, então essa potência terá o mundo nas mãos. A corrida às
armas depende desta superarma de defesa; o tempo urge e deve evitar­
-se qualquer acção nuclear até que a corrida esteja ganha. Por sua vez,
isto significa que precisamos de entender cabalmente qual o verdadeiro
significado da acção nuclear; e para isso, temos de olhar, não para aqueles
mísseis e bombas horrorosos, mas sim para os dispositivos estratégicos
que possibilitam a sua utilização.
Incomodado, Bond mudou de posição. Sabia que tudo o que Luxor
dizia fazia sentido, mesmo que para qualquer leigo parecesse ficção am-
biciosa. Bond tinha a vantagem de, com outros agentes do Serviço, ter
recebido instruções resumidas. Passara horas a examinar dados técnicos
e a ler longos, embora simplificados, relatórios sobre a Arma de Feixe
de Partículas. Como Luxor dizia, era um facto, e tanto os Estados Unidos
como a União Soviética estavam agora muito iguais neste projecto: a mais
importante corrida às armas da história.
Luxor começara a falar dos actuais satélites altamente avançados e
de momento no espaço, em órbita ou estacionários, operacionais e total-
mente activos; toda uma série de equipamento que tornava possível uma
confrontação e conflagração nuclear imediata.
— Trata-se, na verdade, de uma questão de velha estratégia militar
— continuou Luxor. — A História pode sempre ensinar a Humanidade. O
161
problema é que para aprendermos com a História (em especial no que diz
respeito a questões militares), o Homem tem de se adaptar. Por exemplo,
a Segunda Guerra Mundial começou com um fracasso para a maior parte
da Europa, porque o pensamento militar dos chamados Aliados se basea-
va na estratégia de guerras anteriores. Mas o mundo mudou, e com essas
mudanças surgiu uma nova estratégia. Agora, neste momento crucial da
História, temos de pensar, em termos estratégicos, num ambiente muito
diferente. Um senador americano disse uma vez que quem controla o
espaço controla o mundo. Há ainda uma velha máxima militar que diz
que se deve sempre controlar o ponto mais elevado do terreno. Ambas
as afirmações são verdadeiras. Agora, o ponto mais elevado do terreno é
o espaço, e o espaço controla o potencial nuclear das nações, até que a
corrida ao Feixe de Partículas esteja ganha ou perdida. Por isso, membros
da ESPECTRO, é nossa missão proporcionar aos nossos clientes actuais os
meios para controlar o espaço até que a corrida esteja ganha.
Luxor prosseguiu, fornecendo inúmeras informações acerca dos
satélites actuais em uso — os satélites de reconhecimento: Reconsats,
e investigadores electrónicos, Big Bird e Key Hole II; os satélites de radar,
como o sistema White Cloud; os satélites meteorológicos militares Block
5D-2, que transportam grupos de células solares aumentando-lhes a lon-
gevidade, além de uma ampla e muito precisa cobertura das condições
meteorológicas do mundo.
A ansiedade de Bond aumentou. Os factos, simples e incompletos,
respeitantes a estes satélites podiam ser obtidos com facilidade. Mas
Walter Luxor demonstrava possuir um conhecimento muito superior a
quaisquer dados publicados. As informações que agora transmitia à as-
sembléia da ESPECTRO eram altamente classificadas.
O mesmo se passou quando falou dos satélites de comunicações
militares — o DSCS-2, o DSCS-3 e os sistemas Fltsatcom de comunicações
navais. Tinha ainda informações altamente confidenciais sobre os SDS —
Sistemas de Dados de Satélites — que localizavam e controlavam todo o
equipamento do espaço. O homem, Bond conseguia ouvir, sabia com pre-
cisão do que falava; e a maior parte era considerado altamente secreto e
sensível dos dois lados do Atlântico.
Ao fim de quase hora e meia, Luxor anunciou que se seguiria um
intervalo para uma bebida leve. De novo Bond ouviu os passos por cima
de si e escutou, concentrado, enquanto a assistência abandonava a sala.
Por instantes pensara que o plano da ESPECTRO incidia sobre os
progressos dos Estados Unidos com a Arma de Feixe de Partículas, mas
162
isto, compreendia agora, não era verdade. O seu objectivo centrava-se
nos sistemas de satélites já em actividade. Os alvos primários em qual-
quer guerra nuclear convencional — que se alterariam com o advento
da Arma de Feixe de Partículas — seriam sempre os satélites de comuni-
cações e de reconhecimento, pois constituíam o coração da força militar
numa época de guerra de longo alcance.
Mas onde é que a ESPECTRO pretendia atacar? Como o faria e qual
seria o seu alvo? Lentamente, James Bond apercebeu-se de todas as im-
plicações da CÃO DE CAÇA. Claro. CÃO DE CAÇA. Por que não pensara nis-
so antes? Cão de Caça? Lobo? Os Lobos do Espaço, como lhes chamavam.
Nisso, os Estados Unidos estavam bem à frente. O alvo da ESPECTRO eram
os Lobos do Espaço. Mas antes de Bond poder continuar a sua linha de
pensamento, ouviram-se sons vindos do auditório e as pessoas começa-
vam já a regressar. Minutos depois, foi revelado qual o alvo e qual a acção.
Rapidamente, Luxor pediu a atenção da assistência e iniciou a se-
gunda parte do seu esclarecimento de um modo vivo e conciso.
— O longo preâmbulo durante a nossa primeira sessão — começou
— foi necessário para chegarmos ao âmago do nosso projecto. O controlo
do espaço, minhas senhores e meus senhores, representa a capacidade
de neutralizar os olhos e os ouvidos do inimigo no espaço. Pensou-se,
desde há muito, que os soviéticos tinham uma capacidade razoável, em-
bora limitada, de controlo do espaço. Podiam, em teoria, neutralizar os
satélites dos Estados Unidos num período de vinte e quatro horas. Pen-
sou-se também que os Estados Unidos não dispunham de tal capacidade.
No entanto, nos últimos dezoito meses, ficou demonstrado que isto não
é verdade. Os satélites assassinos, como são chamados, surgiram como
as armas actuais essenciais. Armas poderosas. Esse poder, caros colegas,
está inteiramente nas mãos dos Estados Unidos. Claro que tem sido nega-
da a existência em órbita de qualquer desses satélites. Mas não há dúvida
de que os Estados Unidos têm já no espaço, pelo menos, vinte satélites
assassinos equipados com laser e disfarçados de satélites meteorológi-
cos. Têm ainda a capacidade de lançarem mais de duzentas armas deste
tipo numa questão de minutos.
Luxor fez de novo uma pausa.
Bond sentiu a ansiedade na garganta e uma vibração, como um
martelo, nas extremidades nervosas. Mais uma vez, vira os documentos
e sabia a verdade.
— O nosso problema — continuou Luxor —, ou melhor, o problema
do nosso cliente, reside no facto de estes satélites se encontrarem pro-
163
tegidos por um dos mais bem sucedidos esquemas de segurança jamais
instalados pelos Estados Unidos. Sabemos que os satélites dispõem de
armas laser; que têm uma capacidade de caça insuperável, e que estes
factos estão registrados em fitas de computador e microfilmes: os seus
números, localização, confirmação das órbitas actuais, posição dos silos,
ordem de batalha. Todas estas informações existem e, como é natural, os
nossos clientes pretendem obtê-las. Todas as informações referentes aos
satélites assassinos encontram-se no Pentágono. Mas os americanos têm
sido tão cuidadosos no isolamento de cada secção de informações, que as
nossas duas fontes no interior do Pentágono comunicaram, há alguns me-
ses, que o seu roubo era completamente impossível. De facto, perdemos
muito tempo a tentar obter deste modo microfilmes e outro tipo de docu-
mentação. Todas as tentativas foram infrutíferas. No entanto, existe outro
método. Por volta de 1985, estas armas, que em gíria militar têm o nome
de Lobos do Espaço, serão controladas e accionadas através do See-Sok,
uma abreviatura de um nome demasiado longo: Centro de Operações de
Consolidação do Espaço do Comando de Defesa Aérea Norte-Americana.
Ouviram-se gargalhadas discretas, que pareceram desanuviar um
pouco a tensão no interior da sala. Luxor prosseguiu, dizendo que o See­-
Sok já estava a ser construído. Estavam a ser feitas grandes modificações
na Base da Força Aérea de Peterson, não muito longe do quartel-general
do NORAD — Comando de Defesa Norte-Americano —, bem no meio da
montanha Cheyenne, no Colorado.
— E até o See-Sok estar operacional — a voz de Luxor tinha de novo
um tom agudo —, até a pista de Peterson estar transformada, os Lobos do
Espaço são,controlados a partir do QG do NORAD na montanha Cheyen-
ne. É esse, caros membros da ESPECTRO, o ponto fraco. Devido ao facto
de o QG do NORAD controlar os Lobos do Espaço, todas as informações
devem estar à disposição do quartel-general. E é isso que acontece. Têm
estado escondidas em segmentos, no Pentágono, e estão reunidas nas
fitas de computador em Cheyenne Mountain.
Tudo isto era verdade, Bond podia confirmá-lo. Mas a verdadeira
questão estava ainda por responder. Como entrar no bem protegido QG
do NORAD e retirar as fitas de computador que continham todos os por-
menores acerca dos Lobos do Espaço?
Bond tinha a sensação de que, de acordo com as instruções de
Blofeld, Luxor estava prestes a responder à questão. Pelo menos, pensou
Bond, sabia agora que Blofeld era Bismaquer, Luxor era o especialista em
muitos campos, mas o planeamento final pertencia ao chefe da ESPEC-
164
TRO: Markus Bismaquer, fabricante de gelados e proprietário do Rancho
Bismaquer.
— Operação Lobo Celestial — anunciou Luxor. — E esse o verda-
deiro nome para o projecto CÃO DE CAÇA. Objectivo: penetrar no quartel­
-general do NORAD e retirar todas as fitas de computador que contêm
informações sobre os Lobos do Espaço dos Estados Unidos. Método?
Considerámos duas possibilidades e rejeitámos uma, a mais óbvia: um as-
salto, utilizando todas as forças da ESPECTRO. No entanto, o nosso chefe,
Blofeld, descobriu uma alternativa verdadeiramente brilhante.
À medida que Luxor começava a explicar a Operação Lobo Celestial,
muitas das peças obscuras do puzzle começavam a encaixar-se.
— A simplicidade — afirmava Luxor — é muitas vezes a resposta
para todas as coisas. Aqui, neste mesmo rancho, fizemos duas coisas que
nos forneceram a chave de Cheyenne Mountain. Em primeiro lugar, como
sabem, temos aqui dentro uma fábrica de gelados. Além disso, estabele-
cemos vários contactos, inclusive para fornecer os distribuidores de pro-
dutos alimentares das bases militares. Um deles é o único distribuidor do
quartel-general do NORAD.
Luxor fez uma pausa. Bond conseguia imaginá-lo a fazer aquele ar-
reganhar escancarado e horrível.
— Minhas senhoras e meus senhores, acabámos de enviar a esse
distribuidor um fornecimento de gelados para quatro dias. Parece que se
consomem muitos gelados no NORAD... deve ser por causa da atmosfera
que envolve a montanha e pelas longas horas passadas nos subterrâneos.
Sabemos que mais de noventa por cento do pessoal consome gelados
regularmente. Além do mais, a grande remessa que acabámos de enviar
não é de qualidade normal. Aperfeiçoámos também a última palavra em
felicidade: um narcótico suave, inofensivo e sem efeitos secundários. Pro-
duz uma sensação eufórica de bem-estar, uma capacidade de trabalho
normal, mas elimina o sentido moral do bem e do mal. Qualquer pessoa
que tome uma dose mínima obedecerá, sem hesitar, às ordens de um su-
perior. Esse alguém será até capaz de matar o melhor amigo ou o cônjuge
muito amado.
Bond anuiu para si mesmo, pensando nos dois homens que obser-
vara na cela acolchoada do laboratório.
— E o mais importante — Luxor parecia verdadeiramente satisfeito
consigo mesmo — é que os testes mais recentes demonstraram que os
efeitos do nosso gelado da felicidade podem durar até doze horas. Ama-
nhã, por volta do meio-dia, o carregamento entrará em Cheyenne Moun-
165
tain. Temos informações fidedignas de que a distribuição começará ama-
nhã à noite. Isto significa que a Operação Lobo Celestial começa depois de
amanhã a seguir ao almoço. Entramos pura e e simplesmente, pedimos
as fitas de computador dos Lobos do Espaço e eles entregam-nas. Além
disso, farão um sorriso de felicidade, enquanto cometem este grave acto
de traição.
— É assim tão simples? — perguntou alguém da assistência.
— Não exactamente. — A voz de Luxor emanava confiança.
— Como é natural, alguns oficiais, técnicos e soldados irão rejei-
tar a nossa sobremesa. Dez por cento, de acordo com as nossas últimas
informações. Por conseguinte, podemos encontrar uns pequenos aborre-
cimentos. Além disso, como se lembram, a droga só produz efeito se as
ordens forem dadas por alguém com a autoridade de um posto mais ele-
vado. Por isso, tencionamos fazer com que o QG do NORAD receba uma
inspecção de surpresa feita por um general de quatro estrelas. De facto,
trata-se do novo inspector-geral da Defesa Aerospacial. Providenciei para
que o comandante do NORAD seja avisado da sua chegada cerca de uma
hora antes de entrar, acompanhado por, digamos, vinte ou trinta ajudan-
tes e pessoal militar. Claro que todos estarão armados e prontos a tratar
dos poucos infelizes que rejeitarem o nosso gelado. Uma cena triste, te-
nho de admitir. Morrer por não se gostar de uma sobremesa tão deliciosa.
Ouviram-se risadas na sala, e uma voz perguntou quem era o feli-
zardo que iria usar as quatro estrelas.
Seguiu-se um silêncio terrível. Foi como se a pessoa que fez a per-
gunta, a brincar, de repente se apercebesse do que acabara de dizer, co-
metendo um erro terrível, só pelo facto de ter perguntado.
Bismaquer, pensou Bond, Blofeld em pessoa seria o general de
quatro estrelas. Mais ninguém. Então ouviu-se a voz de Luxor, arrepiante,
como um pedaço afiado de gelo que lhe enfiavam à força nas goelas.
— Temos alguém muito especial em mente para essa missão — dis-
se, irritado. — Na verdade, alguém muito especial. Pobre homem. Receio
que não consiga sobreviver à provação. Agora temos de assentar nos pla-
nos, horas, armas e vias de saída. Por favor, o mapa.
Era quase meio-dia. Dentro de doze horas, pensou Bond, Cedar es-
taria com o Saab junto à estrada da entrada do túnel. Se tivesse sorte.
Entretanto, Bond tinha doze horas para continuar escondido, escutando
por debaixo do palco, ordenando os factos no seu espírito. Depois, logo
que o salão estivesse vazio, teria de encontrar um sítio onde esperar até
poder percorrer em segurança o caminho de volta pelo túnel. Depois dis-
166
so, admitindo que Cedar chegaria à hora certa, teriam de conseguir sair
ou arranjar maneira de Bond chamar a atenção e fornecer a Cedar as
informações necessárias para que ela pudesse obter auxílio.
Em qualquer dos casos, um deles tinha que se safar. Até a verdadei-
ra corrida às armas pela Arma de Feixe de Partículas estar ganha ou per-
dida, os Estados Unidos, e possivelmente todas as potências ocidentais,
precisavam dos satélites Lobo do Espaço, pois constituíam a única grande
vantagem em relação a qualquer agressor.
No meio da sua própria tensão, 007 reconheceu uma probabilidade
arrepiante: a única pessoa em todo o Ocidente que podia ainda evitar o
desastre era... James Bond.

18
TÁCTICA DE CHOQUE

Bond estivera ansioso por sair do túnel, para uma noite de céu azul
e estrelas a brilhar como diamantes. Mas, na verdade, ao sair pela aber-
tura na berma da estrada, o que encontrou foi um ar húmido e quente e
um céu de trovoada. Lá ao longe, uma sucessão de relâmpagos faiscava
e estalava, enquanto os trovões distantes ribombavam — como se o céu
tivesse tomado a seu cargo a iniciativa de um ataque.
Inspirou profundamente, ansiando por ar fresco, mas inalou ape-
nas os enjoativos odores húmidos da zona da selva. Murmurando agressi-
vamente, Bond manejou a alavanca, fazendo deslizar a laje de pedra para
o seu devido lugar.
Escondido por tanto tempo sob o palco do salão de conferências,
Bond vira-se forçado a manter-se quieto e em silêncio, e a respirar aquele
ar bafiento, durante a maior parte das nove horas. Agora sentia-se pre-
cisado de um duche e, não menos importante, de uma muda de roupa.
O trabalho do dia terminara finalmente à tardinha, e, quando o
caminho parecia estar livre, Bond arrastara-se para fora — com a cabe-
ça agora a abarrotar de pormenores acerca da Operação Lobo Celestial:
locais, métodos de transporte, armas, pontos de encontro, imprevistos.
Agora sabia tudo o que era preciso, sobre a enorme e perigosa partida
destinada a ser pregada no QG do NORAD em Cheyenne Mountain —
tudo excepto a identidade do protagonista principal: quem iria fazer o pa-
pel de general de quatro estrelas, inspector-geral da Defesa Aerospacial
dos Estados Unidos.

167
O salão estava vazio, e a urgência da missão de Bond oprimia-lhe o
espírito. Os Lobos do Espaço eram, com certeza, o elo mais importante do
actual sistema de defesa ocidental. Sozinhos, poderiam deter a ameaça
de qualquer conflagração nuclear. Qualquer emergência crucial faria agir
os Lobos do Espaço, que vagueavam bem acima do mundo. Um escudo
para todos os continentes. Todas as potências da NATO estavam secre-
tamente atentas à situação, assim como à capacidade de outros Lobos
do Espaço, prontos a serem postos em órbita, enquanto as suas rotas de
perseguição eram controladas e operadas, a partir das salas operacionais
bem dentro da montanha Cheyenne, no Colorado.
Bond soubera do plano para mudar o centro de controlo opera-
cional, mas fazia sentido. Ninguém tinha quaisquer dúvidas — dentro
dos corredores secretos do poder — de que os próximos anos antes do
aperfeiçoamento da Arma de Feixe de Partículas seriam tão cruciais para
o mundo como aqueles em que o primeiro canhão veio substituir a cata-
pulta de cerco e a balista.
De pé à beira da estrada, esforçando-se por ver qualquer sinal do
Saab e de Cedar, Bond pensava nas acções que se realizavam agora: os
camiões frigoríficos prontos a transportar a carga mortal de gelados de
aspecto inofensivo para o QG do NORAD, e nos próprios Lobos do Espaço,
na órbita da Terra.
Era quase meia-noite e continuava a não haver sinais de Cedar. O
nervosismo de Bond ia aumentando à medida que esperava, agachado,
na orla da selva. Então, cerca de dez minutos depois da meia-noite, ouviu
o ruído do motor do Saab. As luzes laterais aproximavam-se rapidamente,
vindas da direcção do outeiro arborizado.
No rosto de Cedar estava patente o tipo de tensão que Bond sentia.
Os seus olhos estavam vermelhos e as suas reacções eram rápidas, nervo-
sas e agitadas. Tal como Bond, vestia uns jeans escuros e uma camisola.
Ao saltar para a porta do Saab, Bond viu que ela tinha o revólver a jeito,
perto da alavanca de mudanças, onde facilmente lhe pudesse deitar a
mão.
— Estão à nossa procura. Por toda a parte — arfou. — Continuo ao
volante?
Bond disse-lhe para se deixar estar e para se dirigir à estação de
monocarril:
— Não vale a pena. — A sua voz estava descontrolada. — Manda-
ram bloquear a maior parte das estradas, e há guardas na estação.
Bond tirou do coldre a grande pistola automática.
168
— Então, teremos de abrir caminho a tiro. Se avistar alguma bar-
ricada, volte para outro lado. Eles não podem tapar todas as estradas.
Se tivermos de usar as armas para subir para o monocarril, e se depois
no outro extremo for preciso lidar com os gêmeos horrendos que nos
abriram os portões para entrar, paciência. Desde os avisos acerca de Pearl
Harbor que não apareceram informações tão importantes como aquelas
que agora possuo... só que desta vez vão acreditar. Oiça, tenho de as par-
tilhar consigo, Cedar, para o caso de apenas um de nós conseguir escapar.
Começou a transmitir-lhe as informações, fornecendo-lhe apenas
os factos mais importantes. Quando terminou, Cedar repetiu o que Bond
lhe dissera, acrescentando:
— Vamos ambos tentar escapar, James. Não me estou a ver a fazê­
-lo sozinha.
Manteve-se em estradas secundárias, por vezes desviando-se de
carreiros e caminhos, castigando o Saab sobre relva e piso irregular. Em
breve, estavam à vista de Tara. Filas de holofotes iluminavam toda a área
em volta, enquanto os clarões distantes dos relâmpagos pareciam aproxi-
mar-se lentamente. Mesmo dentro do carro, conseguiam ouvir os fortes
trovões cada vez mais perto.
No fim, acabou por ser a tempestade o que os ajudou. Como na
maior parte dos climas desérticos, as mudanças de tempo eram extremas
e espectaculares. Enquanto se mantinham junto aos muros circundantes,
protegidos por árvores, os trovões e relâmpagos varriam a região impeli-
dos por um violento vendaval — uma nuvem maciça de trovoada, como
uma bigorna, suspensa exactamente por cima do Rancho Bismaquer.
Atrás de si, trouxe uma chuva torrencial.
Mal conseguiam ver através do pára-brisas, mesmo com os limpa­-
pára-brisas à velocidade máxima, e a tempestade parecia ter forçado os
guardas a abrigarem-se. Aguardando um pouco — a cerca de oitocentos
metros da estação de monocarril —, Bond esperava pela primeira aberta,
enquanto a chuva os chicoteava, batendo no carro como balas de espin-
garda sobre chapa blindada.
Cedar disse que, tanto quanto sabia, o monocarril estava a postos.
— Faziam tenção de transportar carros daqui para fora de manhã
cedo — disse, explicando-lhe que a sua própria fuga fora dificultada pelo
facto de haver mais homens e guardas dentro da casa. — Finalmente,
acabei por me encher de coragem e fui dar um passeio. Markus viu-me
e perguntou-me o que estava a fazer. Disse-lhe apenas que precisava de
apanhar ar. Depois disso, desatei a correr como uma lebre. Não corria
169
tão depressa desde quando era caloira no colégio e saí com o capitão da
equipa de futebol.
— Ele apanhou-a? — perguntou Bond.
— Claro, James. Passado um bocado, comecei a correr mais deva-
gar. Por que não? Ele era giro.
Nesta altura da conversa, a chuva pareceu abrandar ligeiramente.
— E agora. — Bond falava rapidamente, dando-lhe instruções. —
Guie a toda a velocidade. Não se preocupe com os tiros. Aqui dentro, não
nos podem atingir. Desde que consiga ver por entre a chuva, vá direito
à rampa do monocarril e leve-nos ao compartimento do transporte de
veículos.
— Sabe conduzir um monocarril? — gritou Cedar quando arranca-
ram.
Bond respondeu-lhe que havia uma primeira vez para tudo. Percor-
reram uns duzentos metros dentro da estação de monocarril, sem serem
avistados. Então, algum guarda da segurança deve tê-los visto de relance
por entre a chuva.
Bond viu o carro a aproximar-se atrás deles, depois deixou de o ver,
quando um forte aguaceiro puxado por uma rajada de vento caiu entre
os dois carros. Então apareceu outro carro, vindo do lado direito, quando
se deslocavam paralelamente à estação. Cedar esticou a cabeça para a
frente, quase contra o pára-brisas, à procura da rampa.
As luzes dos dois carros — atrás e à direita — apareciam e desapa-
reciam no meio da chuva. Então o Saab estremeceu, quando uma bala
atingiu a chapa blindada do lado de Bond. Outras duas esmagaram-se no
vidro espesso e impenetrável da janela do condutor.
Mas as condições atmosféricas salvaram-nos. A chuva, que abran-
dara por um momento, voltou de súbito a cair com grande intensidade,
como se baldes gigantes estivessem a ser despejados do céu.
— Ali! — gritou Cedar, apercebendo-se de que estavam pratica-
mente ao lado da rampa e quase passavam por ela sem a ver. Espreitan-
do, com ar sombrio, pelo pára-brisas, recuou, meteu a primeira, e condu-
ziu suavemente as rodas do Saab para cima da passagem coberta que os
levaria ao monocarril.
Bond interrogou-se se os carros que os perseguiam, conseguiriam
orientar-se no meio daquela chuvada, ou se teriam mesmo percebido
para onde o Saab se dirigia. Cedar acendera agora ao faróis dentro do
túnel escuro, e parecia não haver ninguém a persegui-los.
Um minuto mais tarde, as luzes do Saab iluminaram as grandes
170
portas corrediças, e entraram de rompante na carruagem de transporte,
parando no local exacto, sobre a calha de travagem.
Bond gritou a Cedar para fechar as portas, ao mesmo tempo que
saltava do Saab, rezando para que a entrada para a cabina do condutor
não estivesse fechada. Quando lá entrou, ouviu o som pesado e gratifi-
cante das portas a fecharem-se. Agora era uma questão de utilizar o bom
senso e de perceber os controlos.
A chuva continuava a cair e batia contra as grandes janelas da ca-
bina. Um pequeno banco fixo estava colocado em frente de um painel
horizontal de alavancas e instrumentos. Para alívio de Bond, todos eles
pareciam identificados. Um botão vermelho com dois interruptores por
baixo tinha escrito ao lado: “Turbina: Ligada/Desligada”. Ligou os inter-
ruptores e premiu o botão, ao mesmo tempo que passava revista aos
outros controlos. O acelerador era um braço metálico que se movia em
semicírculo através de terminais espaçados. O mecanismo de travagem
ficava perto dos seus pés, e tinha um dispositivo secundário à direita do
acelerador. Encontrou o indicador de velocidade, os limpa-pára-brisas, os
faróis, e uma série de botões com a indicação de: “Portas: Automático,
Fechar/Abrir”.
Ao premir o botão vermelho, ouviu-se um gemido vibrante e recon-
fortante, à medida que a turbina começava a funcionar. Bond carregou
em todos os botões necessários para fechar as portas automáticas, ligou
os limpa-pára-brisas e os faróis, soltou os travões e deslocou o braço do
acelerador com incerteza.
Não esperava uma reacção tão repentina. O comboio deu um so-
lavanco, aguentou o esforço e depois partiu da estação com muita sua-
vidade. Cedar estava agora a seu lado, a espreitar pelas grandes janelas
dianteiras, tentando ver a via férrea por entre a chuva, à medida que o
potente farol penetrava o aguaceiro.
Bond aumentou a potência, depois passou o acelerador para a ra-
nhura seguinte, vendo o indicador de velocidade aumentar para os 110
quilômetros por hora. A 130, pareciam estar a deixar para trás a tempes-
tade. Estava a desvanecer-se tão rapidamente como se tinha formado,
pois agora apenas chuviscava, e o único e longo carril tornara-se visível
dentro do cone de luz brilhante que emanava do focinho do comboio.
De cada lado, a vedação protectora electrificada erguia-se ameaça-
dora, compelindo Cedar a perguntar o que fariam no fim da linha.
— Eles vão estar à nossa espera. Espingardas e vedações electrifi-
cadas, tudo.
171
— Preocupe-se quando lá chegarmos. — Bond aumentou a potên-
cia e depois perguntou a si próprio, em voz alta, se o comboio conseguiria
suportar o impacte de entrar pela estação dentro.
— Se estivéssemos dentro do carro, ficaríamos protegidos.
— Não se o comboio se voltar — disse Cedar. — Arremessar-nos-ia
pelo interior do comboio, James. É natural que haja pára-choques no fim
da linha.
—E eles vão estar à espera—reflectiu Bond.
O monocarril continuava a sua viagem, com a velocidade a aumen-
tar, como se estivesse a flutuar sobre uma macia almofada de ar. Não se
sentia qualquer vibração e, agora que a chuva parara, tinham uma visão
perfeita do caminho.
Bond ficou a pensar por uns momentos. Havia mais ou menos dez
minutos que o comboio estava em andamento. Suavemente, soltou um
pouco o acelerador, e depois disse a Cedar que fosse buscar, ao Saab, o
revólver e os óculos de visão nocturna.
Enquanto ela o fazia, soltou ainda mais o acelerador, sentindo o
comboio a abrandar com uma ligeira vibração.
— Daqui a um minuto vou desligar os faróis — disse a Cedar quan-
do ela voltou. — Há apenas uma maneira de fazer isto. Usando os óculos
de visão nocturna e parando um bom bocado antes. Você fica aqui a to-
mar conta disto, enquanto eu vou até lá, a pé, pela linha férrea.
Estava escuro como breu por trás do feixe do enorme farol. Ao lon-
ge, a tempestade continuava enfurecida e ocasionalmente via-se a luz dos
relâmpagos a faiscar e a desaparecer.
Bond prendeu os óculos, tirou a VP70 para fora, colocou-a sobre
o painel de instrumentos e continuou a abrandar a turbina. Em seguida,
desligou as luzes.
Agora, deslizavam lentamente numa escuridão total. Cedar estava
de pé ao lado de Bond, com uma mão sobre o seu braço, enquanto ele
olhava para fora, através dos óculos de visão nocturna. A linha descrevia
uma curva ligeira, e teria de calcular a que distância estariam da estação
do deserto. A cerca de quilômetro e meio, pensou, reduzindo a acelera-
ção para a ranhura seguinte, e depois parando de acelerar por completo,
ao mesmo tempo que travava suavemente.
A cabina do condutor tinha a sua própria porta de correr, que deve-
ria presumivelmente destravar—se quando as outras portas estivessem
programadas para “Automático/Abrir”. Devia também haver degraus no
lado de fora da cabina que o levariam, pelo menos, até meio da descida.
172
Depois disso, seria uma longa queda.
Com a economia habitual, Bond disse a Cedar exactamente o que
se propunha fazer.
— Com isto, consigo ver de noite — disse, tocando nos óculos. —
Depois de eu destravar as portas, a turbina tem de ser desligada e você
vai ficar aqui sozinha, enquanto eu caminho silenciosamente ao longo da
linha.
— James, tenha cuidado com as vedações protectoras. — Um ligei-
ro tremor na voz de Cedar deixava transparecer o seu estado de espírito.
— Não se preocupe com isso. Nada me fará concentrar tão bem
como aquelas safadas daquelas vedações. — Na escuridão, Bond obser-
vava através dos óculos, procurando detectar qualquer movimento em
frente do comboio. — Se estiverem à espera, e não tenho dúvidas que
estão, imagino que os irmãos Grimm ficarão intrigados com o facto de
termos parado antes e com as luzes apagadas. Se tiver sorte, pelo menos
um deles virá ver, e isso é tudo o que preciso. Depois de lhes ter tratado
da saúde, desligado a corrente e aberto os portões, volto para aqui rapi-
damente. A sua missão é ficar aqui e matar, matar mesmo, seja quem for
que tente subir para o comboio. Sou a única pessoa que você pode deixar
entrar nesta geringonça, certo?
Anuiu, com um “Sim” categórico.
Bond ligou os botões da porta automática e desligou a turbina.
Como esperara, a porta da cabina abriu-se facilmente.
— OK, Cedar. Volto o mais depressa possível. — Espreitou lá para
baixo, avistando os degraus que conduziam à parte de baixo da cabina.
Ajustando os óculos de visão nocturna para o máximo de brilho e
alcance, Bond saiu da cabina e começou a descer.
Na base do comboio, parou e esticou o pescoço para ver a linha
férrea. Pelos seus cálculos, devia ser uma queda de cerca de quatro me-
tros e meio. Entre os pilares de betão que sustentavam a linha férrea e a
vedação electrificada havia uns bons três metros e meio.
Agarrando-se ao último degrau, Bond deixou cair o corpo. Ficou
pendurado no ar, baloiçando ligeiramente, até ter controlado a oscilação
do corpo, e depois olhou para a escuridão lá em baixo, pôs-se em posição
e largou as mãos. O solo era plano e firme. Bond aterrou na perfeição,
com os joelhos flectidos e sem sequer cambalear ou rolar.
Na altura em que os seus pés tocaram o solo, sacou da automática
e ficou imóvel e em silêncio, espreitando por trás dos óculos e apurando
o ouvido.
173
A noite parecia anormalmente silenciosa, e sentia-se o cheiro ado-
cicado distinto e característico do deserto após uma chuvada. Não detec-
tou qualquer movimento. Segurando a pistola junto à coxa, Bond come-
çou a avançar junto aos pilares altos de betão que sustentavam a linha
férrea, reparando com um certo alívio que havia degraus, provavelmente
por questões de manutenção, de três em três pilares.
De vez em quando, Bond parava para escutar e olhar com atenção.
Embora de grande estatura, conseguia caminhar tão silenciosa e sorratei-
ramente como um felino. Daí a dez minutos, a estação do deserto estava
já bem à vista.
Haviam desligado as luzes, de modo a tornar difícil a aproximação
do comboio, e agora não tinha dúvidas de que detectara movimento à sua
frente. Um vulto alto caminhava lentamente na sua direcção, mantendo­-
se junto aos pilares.
O homem trazia uma espingarda, não debaixo do braço, mas em
posição de disparar, e afastada do corpo à boa maneira profissional, com
a coronha a poucos centímetros do ombro e o cano apontado para baixo.
Bond desviou-se para o lado, encostando-se atrás de um pilar. Daí
a pouco, conseguia ouvir distintamente o homem que se aproximava. Um
profissional, concluiu Bond, pois o único som que se ouvia era o da respi-
ração baixa e controlada.
O caçador devia ter pressentido o perigo instintivamente. A cerca
de meio metro do pilar onde Bond se encontrava, parou, escutando em
todas as direcções. Então, Bond viu aparecer o cano da espingarda.
Esperou até que o homem passasse pelo pilar antes de agir — tão
rápido e mortal como uma cobra. A pesada automática de Bond estava
firmemente equilibrada na sua mão direita. Recuou o braço, e depois lan-
çou-o para a frente com toda a força que 007 conseguia reunir. Quando
desferiu o murro na escuridão, o caçador pressentiu movimento. Tarde
de mais. O pulso de Bond flectiu-se, de modo a que toda a força do soco
se concentrasse por trás do cano da VP70, e, estendendo completamente
o braço na altura do impacte, atingiu o alvo mesmo abaixo do ouvido
direito do homem.
Ouviu-me um breve sibilar da vítima a expelir o ar dos pulmões, e
depois qualquer coisa parecida com um gemido, antes de cair para trás.
Bond tentou agarrar o homem inconsciente, mas era tarde de mais. A
vedação protectora de malha apertada estremeceu, lançando faíscas azu-
ladas que acabaram por envolver o corpo do homem, no momento em
que caiu contra os fios grossos, contorcendo-se e esperneando ao ser per-
174
corrido por uma elevada voltagem.
O cheiro a carne queimada e chamuscada chegou às narinas de
Bond, quase o fazendo vomitar. Porém, daí a um momento tudo acabara,
e o guarda jazia imóvel, afastado da vedação pela força do choque, e a sua
arma, uma Winchester de repetição, estava quase entre os pés de Bond.
Mesmo com os óculos de visão nocturna, o clarão da vedação elec-
trificada deixou traços de luz a flutuar na visão de Bond. Quaisquer idéias
de contar com o elemento surpresa caíam por terra. Pestanejando para
desanuviar os olhos, Bond pôs um joelho no chão, apanhou a Winchester
e voltou a meter a automática no coldre.
A Winchester de repetição estava carregada e pronta a disparar. Ao
mesmo tempo que as suas mãos tocavam na arma, Bond ouviu um grito,
a menos de cinqüenta metros:
— Mano? ‘tás bem, mano? Apanhaste-o?
O outro guarda, o gigante gêmeo do morto, avançava pesadamente
ao longo do carreiro estreito entre os pilares e a vedação, atraído pelo cla-
rão e pelo barulho. Bond ergueu a Winchester, apontou-a para o centro
do vulto que se aproximava e gritou:
— Não se mexa. Largue a arma. O seu irmão já teve a conta dele.
Pare.
O homem parou realmente, mas apenas para apontar a Winchester
na direcção de onde vinha a voz de Bond. Antes dos primeiros disparos,
Bond enfiou-se atrás de um pilar, saiu pelo outro lado, e pôs de novo a
espingarda em posição.
O homem abriu fogo, disparando ao acaso, esperando, enraivecido,
por um tiro de sorte. Bond disparou uma vez, apontando para baixo, com
precisão. As pernas do alvo pareceram ser puxadas para trás sob o seu
corpo, e a força do disparo fê-lo cair de barriga para baixo. Ouviu-se um
grito prolongado de dor, seguido de um soluçar. Depois, o silêncio.
Bond revistou cuidadosamente o corpo do guarda electrocutado.
Não encontrou lá quaisquer chaves, por isso avançou com cautela, desco-
nhecendo os reforços que Bismaquer poderia ter enviado para a estação
do deserto.
O outro guarda estava inconsciente, mas sobreviveria. As pernas,
atingidas pelo tiro, sangravam bastante, mas não em esguicho, o que sig-
nificava que nenhuma artéria fora cortada.
Bond revistou-o completamente. Também hão tinha quaisquer
chaves. Os guardas, concluiu, deviam ter sido apanhados desprevenidos
e haviam deixado as chaves na pequena casa, donde também se contro-
175
lava a vedação eléctrica. Ou isso, ou então havia outros à espera, prontos
a apanhar Bond e Cedar.
Aproximou-se lentamente do fim da linha, com a Winchester pron-
ta a disparar, e avançou de lado, em direcção aos edifícios baixos.
Silêncio. Não detectou qualquer movimento ao alcançar as plata-
formas onde estava estendida a rampa motorizada, pronta a ser encosta-
da ao monocarril.
Manteve-se junto aos edifícios, bem no meio da escuridão, a ob-
servar.
Nada.
Por fim, Bond deixou o abrigo e caminhou rapidamente para a casa,
que ainda tinha as luzes acesas. Não havia lá ninguém. Parecia não haver
sinais de vida, nem do lado de dentro da vedação nem do lado de fora, no
caminho deserto.
As chaves estavam pousadas sobre uma mesa perto das grandes
caixas de fusíveis, e da alavanca principal que controlava as vedações. Em
menos de um minuto, Bond desligara o interruptor-mestre, pegara nas
chaves, e, depois de atirar a Winchester contra a vedação para se certifi-
car de que já não estava activada, abriu os portões principais, afastando­
-os ao máximo para os lados, de modo a poderem passar por ali com o
Saab, após o conduzirem para fora do comboio.
Se a sorte se mantivesse, dentro de uma hora estariam em Amarillo
a telefonar às pessoas indicadas.
A correr, fez rapidamente o caminho de volta. O guarda ferido ain-
da não recuperara a consciência, mas começara a gemer. O seu irmão
jazia em silêncio, fumegando das roupas e carne queimadas.
Por fim, Bond viu o comboio à sua frente e por cima de si. As portas
laterais abauladas pendiam sobre a borda da plataforma, sustentada pe-
los pilares. Sem hesitar, Bond trepou pela escada metálica mais próxima.
Havia um espaço na plataforma, com cerca de um metro e vinte, de aço
— com uma camada de betão — entre a borda do pilar e o enorme carril.
Pondo-se em pé, Bond deslocou-se lateralmente ao longo desta
passagem estreita, até ficar em frente da parte dianteira do comboio.
Tendo apenas espaço para se ajoelhar, conseguia ver o lado pendente e
comprido do monocarril. A porta da cabina continuava aberta, e a escada
lá estava, conduzindo ao local, por baixo dele, onde antes se deixara cair.
Agora, os degraus estavam fora do seu alcance. Endireitando-se,
Bond, recuou alguns passos e depois inclinou-se para a frente com as
mãos juntas, e o mais para a esquerda do focinho metálico do comboio
176
que era possível sem escorregar.
A inclinação do seu corpo era obviamente demasiada, por isso des-
locou cuidadosamente os pés para a frente, flectindo os joelhos e não
tirando os olhos da linha de aros em forma de D alongado, que desciam
da cabina. Se as suas mãos agora escorregassem, Bond cairia de cabeça,
da plataforma que sustentava o carril e o comboio.
Desta vez, precisava de um pouco mais de agilidade. Quando sol-
tasse as mãos do metal macio, teria de saltar, tentando lançar-se em di-
recção à escada da cabina, que agarraria, esperando conseguir segurar-se
bem.
Respirou fundo, flectiu de novo os joelhos, e depois, com um im-
pulso, atirou-se para fora da plataforma, usando toda a sua perícia para
colocar o peso do corpo para a frente, junto da parte lateral do comboio.
Tocou num degrau com a palma da mão, mas não com suficiente firmeza.
Estava a cair, e esbracejava, tentando agarrar os degraus, à medida que
passavam por ele. A queda durou apenas um segundo, mas deu a impres-
são de durar uma eternidade. Então todo o seu corpo rangeu, e um braço
quase foi arrancado do encaixe, quando a mão esquerda se fechou em
volta do penúltimo degrau.
Durante um segundo ou dois, Bond ficou a baloiçar, preso por um
braço, até finalmente se agarrar com ambas as mãos. Mais um segundo
para recuperar o fôlego, e começou a subir com firmeza.
Quando o seu rosto chegou ao nível da porta da cabina, Bond gri-
tou lá para dentro:
— Está tudo bem, Cedar, voltei. Já vamos sair daqui. — Içou-se para
dentro da cabina, ligeiramente ofegante.
Cedar não estava lá. Também não respondeu quando voltou a cha-
má-la.
Bond correu para o painel de controlo para ligar os interruptores
das luzes. Todo o comboio se iluminou, e, ao mesmo tempo, a porta da
cabina fechou-se inexplicavelmente. Foi até lá, e forçou a alavanca manu-
al, mas sem resultado.
Voltando-se, Bond chamou Cedar uma vez mais. Empunhava de
novo a arma, enquanto se dirigia ao compartimento de veículos. O Saab
estava no mesmo sítio, mas continuava a não haver sinais de Cedar. Então,
quando ali estava de pé, a porta que dava para a cabina, assim como a do
extremo oposto, fecharam-se simultaneamente.
— Cedar? — gritou Bond. — Onde está? Aqueles sacanas apanha-
ram-na?
177
Quem respondeu foi uma voz sem corpo, que lhe causou um arre-
pio.
— Oh, sim, Sr. Bond. A Sra. Penbrunner não vai longe, assim como o
senhor. Por que não se descontrai, Sr. Bond?. Descontraia-se e descanse.
Era a voz de Walter Luxor, fina e abafada, que chegava através de
um altifalante.
Apanhado de surpresa, Bond levou alguns segundos a aperceber­-
se de outro fenômeno — um odor no ar, estranhamente agradável, mas
que se entranhava nas narinas. Então viu a tênue nuvem, que parecia de
fumo, subindo de uma grelha no chão. Gás. Um tipo qualquer de gás.
Percebeu.
De um modo quase desarticulado, Bond teve consciência de que
estava a reagir com mais lentidão. O seu cérebro levava mais tempo a to-
mar decisões. Oxigênio. Sim, era isso. Tinha oxigênio. No carro: a máscara
de oxigênio, que se encontrava por debaixo do lugar do passageiro.
Deslocava-se agora em câmara lenta, ao mesmo tempo que o seu
cérebro continuava a repetir: “Oxigênio... oxigênio... “, sem parar.
A mão de Bond estendeu-se para a porta do Saab, abriu-a, e o seu
corpo inclinou-se, voltando-se para dentro do carro. Então sentiu-se es-
corregar, a cair por um longo declive, um plano inclinado que ia dar a um
cinzento cada vez mais escuro, até parecer estar a deslocar-se no espaço,
e o mundo ficar negro, enquanto todo o conhecimento se desvanecia.

19
GENERAL DE QUATRO ESTRELAS

Houve um breve momento, ao recuperar a consciência, em que


James Bond soube quem era: James Bond, agente do SIS, com o prefixo
especial 00. Número 007.
Esse conhecimento durou um ou dois segundos e foi acompanhado
por uma sensação de que estava a flutuar em água morna e agradável,
como que suspenso. Ouviu ainda uma voz que falava acerca de Haloperi-
dol. Identificou o nome — uma droga, um tranquilizante de acção hipnó-
tica. Seguiu-se uma pequena picada, quando a agulha furou a pele. James
Bond deixou de existir.

Céus, que horas eram? Estivera a sonhar. Sonhos vivos, quase pe-
sadelos, dos seus tempos na academia. Havia vozes no sonho. A mãe e o

178
pai, que Deus os guarde. Amigos, a instrução e a sua primeira missão após
conclusão do curso.
O general James A. Banker tacteava desajeitadamente a mesa-de­-
cabeceira à procura do relógio digital. Três da madrugada. Não devia ter
tomado aquele último uísque. Tinha que deixar de beber. Desde a sua
recente promoção, tivera demasiadas noites como esta.
A suar, deixou-se cair pesadamente na almofada e adormeceu ime-
diatamente.
Observando pelo vidro de infravermelhos, Walter Luxor voltou-se
para Blofeld.
— Está a correr bem — guinchou. — Temos muito tempo. Agora
vou dar-lhe um bocado de experiência de guerra. — Puxou o microfone
para si e começou a falar calma e suavemente.
Abaixo, via-se um quarto, com uma decoração muito militar: um
quarto de oficial, semelhante aos das bases, funcional e apenas com pou-
cas fotografias pessoais e recordações para quebrar a austeridade.
No seu sono hipnótico profundo, o general James A. Banker não
tinha total consciência da voz sussurrante que lhe chegava aos ouvidos
vinda da almofada.
— Bem, general — dizia a voz —, sabe exactamente quem é. Sabe
e lembra-se de coisas da sua infância, da sua instrução e da sua ascensão
profissional. Vou dizer-lhe mais qualquer coisa acerca dessa ascensão.
Mais coisas acerca do seu serviço activo, e muitas mais acerca das suas
funções actuais. — A voz iniciou uma descrição longa e viva do trabalho
do general até à época do Vietname, e, depois, das suas missões especiais
durante essa guerra. Continha actos de bravura e episódios de medo. Mo-
mentos de desespero e a morte de amigos. Alguns dos incidentes foram
revividos quase completamente e até incluíram efeitos sonoros: o troar
das armas e as vozes de outras pessoas.
O general James A. Banker murmurou durante o sono, voltou-se
e acordou de novo. Céus, sentia-se mal; e, de manhã, tinha uma missão
a cumprir. Muito importante. Tivera mais sonhos. Conseguia lembrar-se
deles tão bem como conhecia a sua esposa, Adelle. Vietname. Sonhara
com a coragem, o sangue e o inferno do Vietname.
Desesperadamente, tentou chamar Adelle, mas ela, mal a sua ca-
beça tocava a almofada, partira para a terra dos sonhos. Adelle irritava-se
quando a chamava a meio da noite.
O general interrogou-se quanto tempo demoraria até encontrar a
casa indicada por ela. Seria nesse fim-de-semana que ela chegaria para
179
dar outra olhadela? Esperava sentir-se melhor de manhã, caso contrá-
rio iria fazer a inspecção como um morto-vivo. Dormir. Tinha que dormir
mais. Voltou a olhar para o relógio. Ainda eram só quatro horas. Era muito
cedo para se levantar. Tentaria dormir mais um pouco.
Suavemente, o general regressou aos seus sonhos desordenados,
e, com a mesma suavidade, Walter Luxor, junto à janela que dominava o
quarto, começou novamente a falar.
Apenas fizera isto uma vez, e mesmo dessa vez tivera mais tempo.
Tapando o microfone com a mão, disse a Bismaquer:
— Nada mal, sabe. Lá no fundo ele acredita mesmo que é um ge-
neral de quatro estrelas. Isto é muito bom para um trabalho de vinte e
quatro horas. Vou reforçar a dose.
Enquanto Luxor falava, abriu-se a porta do quarto lá em baixo e
apareceu a grande figura de Mike Mazzard. Olhando para cima para o es-
conderijo invisível e fazendo um movimento de rotação, Mazzard, andan-
do nas pontas dos pés, aproximou-se da cama, pegou no relógio e alterou
as horas, tal como lhe haviam ordenado.
Luxor recomeçou a falar. Também se sentia cansado. Sabia que, ge-
ralmente, a técnica demorava bastante mais de vinte e quatro horas, mas
como a vítima apenas tinha que mudar de personalidade por um período
relativamente curto, estava convencido de que isto poderia ser feito com
êxito total.
Haviam começado logo que trouxeram Bond do rancho. Injecções
de Haloperidol e outros hipnóticos, seguidos de breves sessões pormeno-
rizadas de implantação audio-hipnótica, primeiro para transmitir à vítima
uma desorientação total e depois para regressar ao normal, mas com no-
vas memórias e uma nova identidade.
A técnica exigia doses pequenas e frequentes — implantando
idéias e recordações que, sabiam-no, seriam rejeitadas um dia após pas-
sar o efeito. Mas um dia era mais do que suficiente.
Desde o início que Bond se revelara incômodo. Era alguém que ti-
nha de ser isolado e destruído tão rápida, e se possível tão naturalmente,
quanto era preciso. Foram estas as primeiras instruções de Blofeld. Mas
a mente de Blofeld podia mudar e, com essa flexibilidade e inteligência
viva, surgiam grandes idéias.
Depois do falhanço de Luxor na pista, tornara-se necessário apa-
nhar Bond vivo. Blofeld tornara-se subitamente peremptório nesse as-
pecto.
A princípio, haviam planeado que outro candidato desempenhas-
180
se o papel de general. Na verdade, Luxor praticara essa mesma técnica
no homem em questão, até ao ponto de exaustão. Como consequência,
morrera.
Então, Blofeld, tendo conseguido atrair ao Texas o velho inimigo
da ESPECTRO, escolhera Bond, apanhara-o desprevenido, e agora, com o
tempo a passar e com a absoluta necessidade de o novo general dormir
descansadamente, pelo menos três horas, Luxor apercebeu-se da mara-
vilhosa ironia de todo aquele plano. Bond, no papel de general, podia su-
cumbir em Cheyenne Mountain, o que deixaria muita gente terrivelmente
embaraçada.
Luxor falou durante mais quinze minutos, e depois desligou os mi-
crofones.
— Não me atrevo a falar mais. Ele ficará um pouco desorientado,
mas atribuirá isso a uma noite bem bebida. Implantei-lhe isso com muita
firmeza. Pelo menos, tem o seu general de quatro estrelas. Blofeld, sugiro
que informe Mazzard pessoalmente. Aquele homem tem de morrer na
montanha e de preferência enquanto ainda pensar que é o general James
A. Banker.
Blofeld sorriu.
— A ironia é total. Vou tratar disso. Agora, feche isso e deixe-o dor-
mir.

Finalmente, o general Banker conseguia descansar. Os sonhos ti-


nham desaparecido e dormia como um justo. Foi só ao acordar que teve
outro tipo de sonho, estranhamente erótico, acerca de uma mulher com
um só seio. Até pensou que se debruçava sobre ele. Num dado momento,
ouviu mesmo uma voz, embora não conseguisse distinguir se era mascu-
lina ou feminina.
— James — disse a voz —, meu querido James. Tome estes compri-
midos. Vá... — Uma mão acariciou-lhe a cabeça, levantou-a, e ele sentiu
qualquer coisa dentro da boca e um copo junto aos lábios. Estava sedento
e bebeu o que lhe davam, sem resistência. — Demoram umas horas a fa-
zer efeito — disse a voz. — Mas quando fizerem, você será novamente o
mesmo. Que Deus o ajude. E que Deus me ajude por fazer isto.
Quando foi arrancado do sono por um sargento que lhe servia,
como de costume, o seu café simples, doce e a ferver, aquele era o único
sonho de que o general conseguia lembrar-se. Tinha consciência de não
ter dormido bem, mas isso devia-se à horrível festa da noite passada.
Tinha um gosto horrível na boca e uma sensação de enjôo no estô-
181
mago; mas, pelo menos, estava suficientemente bem para cumprir a sua
missão.
O general barbeou-se, tomou um duche e começou a vestir-se. Por
vezes, James, pensou, não te reconheço vestido desta maneira. Para o ge-
neral fora sempre surpreendente pensar que conseguira chegar tão longe
na sua carreira. Mas ei-lo aqui, um general de quatro estrelas, com muita
experiência de combate, uma bela esposa e um trabalho exigente. Ser o
general-inspector da Defesa Aerospacial dos Estados Unidos era mesmo
qualquer coisa de importante.
A batida na porta anunciava a aparição habitual do seu ajudante, o
major Mike Mazzard, o qual entrou calmamente após ordem do general,
fazendo a continência como de costume.
— Bom dia, meu general. Como se sente hoje?
— Terrível, Mike. Sinto-me como se tivesse sido arrastado por vá-
rios pântanos, apanhado febre suína e engolido dejectos da latrina.
Mazzard riu.
— Com todo o respeito, meu general, a culpa é toda sua. Aquela
festa foi mesmo de mais.
O general anuiu.
— Eu sei, eu sei. Não me diga nada, e, por amor de Deus, não diga
nada à minha mulher. Vou ter que me emendar, Mike.
— Deseja o pequeno-almoço, sir? Podemos...
— Nem pensar, Mike. Nem pensar. Outra dose de café ajudaria bas-
tante.
— Vou tratar disso, sir. Aqui?
— Por que não? Assim poderíamos tratar dos assuntos para hoje,
sem interrupção. Acho que será você quem terá de tratar da maior parte
das coisas.
— Tut-tut, meu general. Um bom bostoniano como o senhor. —
Mazzard parou junto à porta. — Quer saber uma coisa engraçada, sir?
— Acha que devo ouvi-la?
— Bem, trata-se de novo daquela coisa de Boston. Ouvi dizer a um
dos oficiais. Ele disse que o senhor era um bostoniano de gema, e que
toda a gente via isso pelo modo como fala...
— Sim?
— O engraçado, sir, foi que ele disse: “Ponham no general Banker
um daqueles chapéus de coco, um fato de fantasia e um chapéu de chuva,
e dir-se-ia que acabara de sair de um banco britânico.”
O general anuiu.
182
— Estou sempre a ouvir estas coisas, Mike. No Vietname, um jorna-
lista britânico pensou que eu era um dos dele. No entanto, não me sinto
envergonhado. — Fez um sorriso malicioso. — Acha que preciso dumas
aulas? Aprender a dizer “páhssaro” e “assurdo” como dizem em Brooklin?
Mazzard arreganhou os dentes e foi buscar mais café.
Luxor esperava fora do quarto.
— Então?
— Espantoso. — Mazzard sacudia a cabeça. — Não queria acredi-
tar. Será que vai durar?
— O suficiente, major Mazzard. O suficiente. Já recebeu ordens de
Blofeld?
— Tratarei disso pessoalmente, com todo o gosto. Não se preocu-
pe. E agora, quanto ao café do general?

Cerca de duas horas antes, um jovem capitão, que trabalhava no


Pentágono, no Departamento de Informações do Espaço, entrara de ser-
viço mais cedo. Ainda lá se encontrava o reduzido pessoal de serviço noc-
turno, mas ninguém prestou muita atenção ao capitão. Era tido como um
trabalhador incansável.
No entanto, nesta altura da manhã, o equipamento telétipo de co-
municações (de uso pessoal do seu superior, o general encarregado da
Administração de Defesa Aérea e do Espaço) não estava a funcionar. O
jovem capitão tinha consigo um conjunto de chaves, que davam para o
gabinete do general e para a máquina de telétipo.
O pequeno conjunto de gabinetes encontrava-se vazio quando o
capitão entrou, fechando com cuidado a porta atrás de si. Em seguida,
ligou a máquina de telétipo e começou a transmitir.
A primeira mensagem era destinada ao comandante da Base Aérea
de Peterson Field, Colorado. O texto dizia:

ESTEJA PREPARADO UM PEQUENO CONTINGENTE ARMADO CONS-


TITUÍDO APROXI. POR DOIS OFICIAIS, QUATRO SARGENTOS E TRINTA
SOLDADOS DO PESSOAL DA ADMINI. AÉREA ESPAÇO CHEGAM POR VIA
TERRESTRE ESTA MANHÃ STOP DOIS GENERAL JAMES A. BANKER INSPEC-
TOR DEFESA AÉREA ESPACIAL CHEGARÁ VIA HELICÓPTERO AUTORIZAÇÃO
ATERRAGEM QUATRO-UM-DOIS PARA RV COM ESTE GRUPO E SEGUE
PARA QG NORAD STOP PEÇO DISPENSE TODAS AS CORTESIAS E ASSISTÊN-
CIA STOP ACUSE A RECEPÇÃO E DESTRUA STOP.

183
Assinou a comunicação com o nome e posto do seu superior. Dez
minutos depois, chegou o sinal de recepção acusada e entendida.
A segunda mensagem era dirigida ao comando do QG do NORAD,
Cheyenne Mountain, Colorado. Dizia:

COMO FAVOR AVISO-O QUE O MEU INSPECTOR-GERAL — GENERAL


JAMES A. BANKER — IRÁ VISITÁ-LO PARA UMA INSPECÇÃO NÃO PREVISTA
STOP PEÇO QUE LHE SEJAM PRESTADAS TODAS AS ATENÇÕES STOP NÃO
REPITA NEM O INFORME DESTE AVISO PRÉVIO STOP ACUSE A RECEPÇÃO
E DESTRUA.

Também esta foi assinada com o nome e posto do superior do capi-


tão. O sinal de recepção acusada e entendida chegou com um imprevisto:

LAMENTO OFICIAL COMANDANTE DE LICENÇA POR UM DIA HOJE


STOP TRATAREI PESSOALMENTE VER SE ESTÁ TUDO EM ORDEM STOP.

Estava assinada por um coronel, na sua qualidade de comandante


interino.
O capitão sorriu, rasgou todas as cópias, e em seguida pegou no
telefone para discar um número com o indicativo do Texas.
Quando lhe responderam, perguntou pelo capitão Blake.
— Desculpe, sir, parece-me que é engano. — A voz do outro lado da
linha era aguda, fina e com um ligeiro guinchar.
— Eu também peço desculpa, mas não faz mal. Devo ter discado
mal o número. Espero não o ter incomodado.
— De maneira nenhuma — replicou Walter Luxor. — Adeus.
O general Banker e o seu ajudante, major Mike Mazzard, saíram da
messe de oficiais e foram saudados com elegância por dois soldados que
faziam serviço de guarda. Quando estavam a sair, foram também sauda-
dos por outros oficiais. Pelo menos dois deles fizeram uma observação ao
general.
— Que grande festa ontem à noite, sir.
— Já estou a ganhar reputação — resmungou o general. — Não
quero nada para esta noite, Mike. Trate disso. Deitar cedo. Certo?
— Como quiser, sir.
O helicóptero Kiowa já estava parado em frente à messe de oficiais,
com as pás girando com indolência.
— Oh, não — gemeu aborrecido o general. — Vamos fazer toda a
184
viagem naquilo, Mike?
— Receio bem que sim, sir.
— Bem, espero que esteja bom tempo para voar. Não me parece
que hoje esteja suficientemente bem para aguentar muitos balanços.
—A previsão meteorológica é excelente, sir.
Tinham-se sentado à volta de uma mesa com uma grande cafeteira
de café, enquanto o ajudante do general revia o programa do dia.
— Voamos directamente daqui até à Base Aérea de Petersen, onde
deverão estar dois camiões com cerca de trinta soldados, alguns sargen-
tos e dois oficiais: o capitão Luxor e um outro. Estarão lá só para vista. A
não ser que decida que a segurança principal do Centro de Operações de
Combate do NORAD precisa de ser testada. O seu carro e o seu condutor
também lá estão à espera, sir.
— Óptimo. E vamos directos para Cheyenne Mountain?
— Seguimos pela entrada número dois. E o melhor trajecto. Con-
duz-nos directamente aos níveis das instalações de comando principais.
Referiu no seu memorando que o objectivo consistia em testar a pronti-
dão e em examinar a estrutura do posto de comando. Era essa a priori-
dade.
— Sim, estou a recordar-me...
— ... que iríamos fazer uma rápida aparição? — Mazzard concluiu
por ele. — Exacto. A questão do Lobo do Espaço.
O general franziu o sobrolho.
— A minha memória começa a falhar, Mike? Sim, eu não ia pedir—
lhes à queima-roupa que me entregassem as fitas de computador para as
guardar pessoalmente?
— Era essa a idéia. Há um regulamento que trata das fitas do L. E.
Estão seladas, são reservadas e fazem parte da lista dos Muito Secretos.
Lá, ninguém tem ordem para as entregar ou mesmo deixar que alguém
as veja. O objectivo consiste em testar a reacção a uma ordem dada por
um oficial general.
— OK, veremos se resulta. — Ainda estavam a discutir o assunto,
quando o general entrou para o helicóptero Kiowa, cumprimentou o pi-
loto e apertou o cinto de segurança. Mazzard entrou a bordo a seguir ao
general e ocupou o lugar a seu lado.
Alguns momentos mais tarde, as pás giravam e o pequeno helicóp-
tero levantou vôo, com o focinho mais baixo, deu meia volta e depois
subiu — rumo a noroeste, em direcção ao Colorado.

185
20
CHEYENNE MOUNTAIN

O general dormitou um pouco durante o vôo e parecia sentir me-


nos os efeitos da ressaca, quando o piloto se voltou no lugar, e apontou
para baixo. Voavam a grande altitude, no céu azul sobre o Colorado. Ao
longe, os picos da montanha erguiam-se em entalhes dentados e finos de
rocha.
Alguns minutos mais tarde, desceram em direcção a Peterson Field
e à escolta que esperava o general. Mazzard ajudou o general Banker a
sair do helicóptero, e perguntou-lhe se queria passar revista aos homens
perfilados em frente às viaturas. O general deitou-lhes um olhar negligen-
te, anuiu e caminhou até eles, sendo saudado por um capitão horrivel-
mente magro, cujo rosto parecia uma caveira.
— Capitão Luxor, sir. — O oficial fez a continência e conduziu o ge-
neral ao longo das fileiras.
— Já o conheço, capitão? — O general olhou Luxor fixamente.
— Não, sir.
Quando se dirigiam ao carro, com Luxor a uma distância suficiente
para que não os pudesse ouvir, o general Banker murmurou para Ma-
zzard:
— Aquele capitão. Tenho a certeza de já ter visto aquela cara, Mike.
— O que viu foi a fotografia dele, meu general. — O major falava
também em voz baixa. — Em todos os jornais. Um cirurgião plástico co-
nhecido fez um trabalho espantoso com ele. O pobre tipo ficou com a cara
toda queimada no Vietname.
— Sacanas — praguejou o general.
A escolta era impressionante: dois motociclistas à frente, seguidos
por uma viatura blindada de transporte de pessoal M113, completamen-
te equipada com a sua tripulação de dois homens e parte das tropas de
combate, com a pesada Browning 12.7 instalada na sua base curva gira-
tória.
O carro do general Banker seguia atrás do 113, enquanto outra
VBTP (viatura blindada de transporte de pessoal) lhe protegia a retaguar-
da.
O general não conhecia o condutor do carro, e achou que ele fora
feito com os restos das esculturas do monte Rushmore. Na realidade, a
sua farda de sargento parecia ser demasiado justa para ele, mas conduzia

186
bem e era muito correcto. O general teria preferido o seu condutor habi-
tual, cujo nome lhe escapava de momento.
O major Mazzard estava sentado no banco traseiro com o general,
enquanto o capitão de cicatrizes horrendas ocupava o lugar da frente, ao
lado do condutor. A pequena escolta afastava-se lentamente do heliporto
em direcção aos portões principais de Peterson Field, com o galhardete
colorido do general a esvoaçar no lado esquerdo do capot, e com a ban-
deira das estrelas e riscas do outro lado.
As cancelas foram levantadas sem hesitação e o guarda saiu cá para
fora, para apresentar armas quando o carro passou, enquanto outros ofi-
ciais e soldados se punham em sentido e faziam continência, como exigia
o posto elevado de um general de quatro estrelas.
A hora prevista, viajaram a uma velocidade regular pelas encostas,
por estradas estritamente militares. A área estava bem policiada, tanto
pela Força Aérea como pelo Exército, mas ninguém fez qualquer tentati-
va de os mandar parar ou pedir identificação. Os pequenos destacamen-
tos de polícia limitavam-se a pôr-se em sentido à passagem da escolta.
O general estava impressionado — dois homens em motos, mais dois a
tripular cada uma das VBTP. Também contou doze ou treze soldados de
combate em cada VBTP, incluindo um jovem oficial. Trinta e dois homens,
possivelmente mais. Contando com o seu condutor, Mazzard e o capitão,
a força compunha-se de, pelo menos, trinta e cinco homens. Muito bem,
e todos armados com Ml 6 e pistolas. Mike Mazzard, o capitão e o seu
condutor também tinham armas à cintura. Que general poderia desejar
melhor protecção?
— Tratou de tudo na perfeição, Mike. — O general sorriu. — Uma
óptima organização. Muito bem.
— Limitou-me a fazer uns telefonemas, meu general. Bem sabe que
foi isso, sir.
Estavam agora a subir as montanhas e passaram por uma estrada
lateral, assinalada com um letreiro militar em forma de seta onde estava
escrito: Q. G. do NORAD.
— Aquele é o caminho que vai dar à entrada principal, sir disse-lhe
Mazzard. — Nós subimos mais oito quilômetros por esta estrada, e vol-
tamos para trás para entrar pela parte lateral. É uma espécie de entrada
de serviço para as salas de controlo. Acho que nesta altura já alguém de
Peterson os deve ter informado. Provavelmente estão todos nervosos, à
volta dos edifícios da entrada principal.
— Também já devem saber nesta entrada — resmungou o general.
187
— Não são parvos, estes tipos. Já todos sabem. Vão estar à nossa espera
no lugar exacto por onde vamos entrar.
Passaram mais ou menos dez minutos até a escolta chegar à estra-
da lateral seguinte, devidamente assinalada como NORAD 2.
— Aqui vamos, então, sir. Sente-se mesmo melhor? — Mazzard es-
ticou o pescoço para a frente para olhar bem o general, e o capitão de
rosto encovado voltou-se para trás.
— O general não se sente bem?
— Capitão — rosnou o general Banker —, quando dão a um ho-
mem um posto elevado e de responsabilidade, quando está longe da mu-
lher enquanto lhe arranjam casa, e quando está a viver na base, faz por
vezes figura de parvo. Não estou doente, mas consumi muito líquido de
limpeza a noite passada.
O capitão emitiu um som que o general interpretou como sendo
bem-humorado.
Voltando-se para Mazzard, o general prosseguiu:
— Sinto-me um pouco como um boneco. Você vai-me orientando,
está bem? Se você me guiar, não terei problemas.
— Não se preocupe, sir, não é a primeira vez que fazemos isto.
— Claro que não. — O general anuiu. Lá de cima vinha o ruído de
um helicóptero, voando a baixa altitude, como se estivesse a seguir a es-
colta.
Encontravam-se agora numa brecha, talhada na rocha sólida, rode-
ados pelas enormes paredes oblíquas. Então, saindo da brecha para um
desvio à esquerda, a estrada cinzenta alargava-se, e uma poeira branca
caía sobre eles como chuva, à medida que chegavam a uma extensão de
macadame.
A montanha erguia-se à sua frente, e quilômetro e meio mais adian-
te havia um par de portões sólidos com um enorme círculo de vedação
Cyclone em cada um dos lados. Grandes vigas de aço estavam colocadas a
intervalos regulares, e sobre cada uma havia uma câmara em movimento
constante. Por trás da vedação, um cacho de edifícios estendia-se até à
superfície rochosa da montanha Cheyenne.
Havia dois GI em frente aos portões. Quando a escolta apareceu,
um deles voltou-se para gritar para a pequena casa à direita dos portões.
Ainda não estavam a cem metros dos muros, quando apareceu um oficial
saído de um portão mais pequeno, junto à casa da guarda.
A escolta abrandou, e os dois motociclistas da frente descreveram
um círculo, um para a esquerda, outro para a direita, de modo a chega-
188
rem-se mais ao carro. A primeira VBTP virou também para a direita, e
depois rodou sobre o eixo, de modo a ficar voltada para dentro. Muita
precisão e disciplina militar. O general ficou, uma vez mais, muito impres-
sionado. Estes homens sabiam o que estavam a fazer. Voltando-se para
Mazzard, disse:
— Você faz as apresentações, está bem, Mike? Como de costume.
Nada de espalhafatos. Eu manter-me-ei ligeiramente à parte.
O major Mazzard parecia muito satisfeito, quando as janelas auto-
máticas deslizaram para baixo e o oficial do NORAD, um jovem capitão, se
aproximou do carro.
Sim, pensou o general, também aqui estavam bem preparados.
Olhando para a frente através da vedação Cyclone, podia ver que já lá
estava uma guarda de honra, agora a formar na área plana interior junto
aos portões.
O jovem oficial do NORAD fez a continência, como se a sua vida
dependesse disso, e Mozzard falou-lhe concisa e friamente.
— General Banker, inspector-geral, Defesa Aerospacial dos Estados
Unidos, para uma inspecção oficial à vossa base, capitão. — Entregou-lhe
um documento de aspecto impressionante, que o capitão apenas olhou
de relance. Sabia que se tratava de gente importante, só pelo aspecto.
— Muito bem, meu major. — O capitão do NORAD sorriu. Voltou-se
para ordenar que abrissem os portões. — Estamos encantados por vê-lo,
meu general. A base está à sua disposição. Se houver qualquer coisa que
possamos fazer para tornar a sua viagem mais agradável...
— Não se pressupõe que seja agradável, capitão — retorquiu o ge-
neral asperamente. — Estou aqui para ver as salas de operações e fazer
algumas perguntas. Está a perceber, capitão?
O sorriso do oficial do NORAD não se desvaneceu.
— Como queira, meu general. Estamos à sua inteira disposição. Fa-
çam o favor de entrar.
— O general está ansioso por entrar na montanha o mais depressa
possível —interrompeu Mazzard.
— Certo, sir. O nosso comandante interino está já à vossa espera
nas Operações. Não levarão muito tempo a chegar até lá.
Os portões estavam abertos, e passaram entre eles, seguidos por
uma das VBTP. A outra permaneceu fora do perímetro, rodando de modo
a ficar voltada para a estrada. As tropas que transportava desembarcaram
e tomaram posições defensivas. Em poucos minutos, a equipa do general
tinha a entrada numero dois do QG do NORAD bem isolada.
189
Quando o carro parou, a guarda de honra pôs-se em posição de
sentido e apresentou armas.
— Aquele jovem oficial parecia um pouco informal, Mike — mur-
murou o general ao sair do carro.
— Sim. Vou saber o seu nome. Provavelmente, não teve muitos
contactos com inspectores generais, sir, e pensou que aquela abordagem
amistosa seria a melhor.
— Trate de saber o seu nome. — O general começara a parecer
irritadiço.
— Não quer passar revista àquela guarda de honra, pois não, meu
general? — perguntou Mazzard. Porém, o general, apesar da ressaca, pa-
recia decidido a fazer tudo como devia ser. Lentamente, passou ao longo
das fileiras de homens, parando de três em três para fazer algumas per-
guntas.
No fim da última fileira, o general mandou o comandante da guar-
da destroçar, retribuiu a continência e depois olhou para o jovem capitão
do NORAD que os tinha recebido.
— Certo — resmungou. — Quero que o capitão me leve, juntamen-
te com o meu ajudante e aqui o capitão...
— Luxor — disse prontamente o oficial magro e defeituoso.
— Capitão Luxor.
— Sim. — O general deitou a Luxor um olhar de poucos amigos.
— Sim, é isso. Major Mazzard e capitão Luxor. Mais ninguém, só nós os
quatro entraremos. E desejo conhecer o vosso comandante.
Mazzard, junto ao general, perguntou rapidamente:
— O meu general não acha que meia dúzia de homens devia...?
— Não, major. — O general foi muito firme. — Não há necessidade
de que vejam alguma coisa. Nem sei mesmo para que trouxemos uma
escolta deste tamanho. Não, nós vamos e damos uma olhada. Agora va-
mos lá. Não quero passar aqui o dia. Só nós os quatro. — Mesmo antes
de terminar, o general começou a caminhar decididamente, com as costas
direitíssimas, em direcção ao grupo de edifícios juntos à parte da frente
da rocha.
Seguia bem à frente de Mazzard e Luxor, enquanto o capitão do
NORAD se aproximou rapidamente, trotando mesmo atrás do general.
— O comandante, meu general...
— Sim?
— Bem, meu general. Como já disse, temos um coronel de serviço
à sua espera. O comandante está de licença hoje, meu general. Acho que
190
devia ter sido informado.
O general anuiu.
— Não há problema nenhum. O coronel serve tão bem como outro
qualquer.
Os edifícios, construídos contra a superfície rochosa, não passavam
de um disfarce defensivo para a entrada. De construção sólida, reforçada
a aço, alojavam apenas alguns oficiais administrativos, sendo o seu prin-
cipal objectivo bloquear o túnel que conduzia ao interior da montanha.
O jovem capitão ainda não parava de falar.
— Na entrada principal, do outro lado, temos um parque subterrâ-
neo para estacionamento de viaturas, e outras instalações — ia dizendo.
— Aqui trata-se, na verdade, de uma espécie de entrada das traseiras. —
Passaram por um par de portas de aço, que se abriram quando o capitão
fez pressão com a mão num pequeno écran.
Por trás das portas de aço o mundo era outro. A passagem estrei-
tava num corredor metálico, com largura suficiente para deixar passar
apenas um homem de cada vez. O corredor, por sua vez, conduzia a um
pequeno posto de comando, ocupado por quatro fuzileiros robustos que
guardavam a entrada seguinte, com portas deslizantes de aço.
Os fuzileiros, apesar do seu aspecto imaculado, eram prestáveis e
decididos. Após uma palavra do capitão do NORAD, um dos fuzileiros fa-
lou para um intercomunicador branco e depois desviou-se para o lado, ao
mesmo tempo que as portas à prova de explosões deslizavam silenciosa-
mente.
O general e os seus acompanhantes não sabiam realmente o que
encontrariam no interior da montanha. No que dizia respeito ao gene-
ral, supunha que a sua imagem mental seria colorida por outras insta-
lações semelhantes que visitara, ainda que todas elas parecessem um
pouco estúdios cinematográficos. Estava à espera de elevadores maiores
que transportassem o pessoal para as entranhas da montanha, ou carros
abertos, como os que existem nas modernas minas de carvão.
Afinal, não havia tais dispositivos. Depois de passarem por aquelas
portas, já estavam no interior da montanha, numa grande câmara circular
— uma área de recepção, recortada no interior da rocha nua. O ar con-
dicionado mantinha uma temperatura confortável e agradável, e o chão
estava forrado com carpetes, embora o local fosse, basicamente, uma ca-
verna embelezada.
Atrás de quatro grandes secretárias estava sentado um pessoal es-
tranhamente desinteressado, encarregado de operar os detectores elec-
191
trónicos de aparelhos de escuta, armas e explosivos. O general insistiu em
verificar cada uma destas secretárias, antes de ser apresentado a um co-
ronel alto e bronzeado, que usava as asas de piloto e ostentava um núme-
ro exagerado de medalhas. O coronel vinha acompanhado por uma equi-
pa de uns quatro oficiais, sendo a maior parte majores. Todos pareciam
andar à volta da mesma idade — trinta e muitos ou quarenta e poucos.
O coronel fez a continência, apresentou-se, e ao seu pessoal, pediu
desculpa pela ausência do comandante, e ofereceu ao general o que cha-
mou de “todas as facilidades possíveis”.
O general Banker anuiu, observando que o coronel e os seus ho-
mens estavam armados. Depois apresentou os dois oficiais que o acom-
panhavam.
O coronel, que nessa manhã se sentia invulgarmente bem disposto,
reparara imediatamente que o general Banker vestia a farda número um,
enquanto os seus oficiais usavam fardas de combate e estavam armados.
Achou um pouco esquisito, mas não viu nada de mal nisso. Antes de sair
da sala de controlo, recebera também uma mensagem estranhíssima, do
portão principal, dizendo que o destacamento de tropas do general iso-
lara a entrada número dois do QG, tomando posições tanto no interior
como no exterior da vedação.
Agora aparecia-lhe um general invulgarmente calado, por isso o
coronel explicou que os quatro oficiais que o acompanhavam se haviam
oferecido como voluntários para continuar de serviço.
— Por direito deviam estar agora a acabar os seus turnos. — O co-
ronel fez um sorriso orgulhoso. — Mas todos se ofereceram para continu-
ar de serviço, para que o meu general possa obter todas as informações
que deseja. — Continuou a explicar que, em serviço, estes oficiais super-
visionavam os vários postos de comando, a sala de controlo principal e os
monitores. — Aqui, quando se está de serviço, são seis horas de concen-
tração total. — Parecia excepcionalmente sério ao falar do trabalho. —
Os oficiais de serviço neste momento não estão em condições de poder
responder a todas as suas perguntas, meu general.
O general agradeceu ao coronel pela consideração dos seus ofi-
ciais, e pediu-lhes opinião sobre o que deveria ver primeiro.
— Aquilo que desejar, meu general. Estamos à sua disposição. Veja
o que quiser, e, se desejar, assuma o controlo. Ninguém se incomoda-
rá. Somos pessoas sérias que desempenham uma missão muito especial,
mas temos de o deixar ver tudo e fornecer-lhe todas as informações de
que necessitar.
192
Para um oficial sério, o general achou que o coronel perdera re-
pentinamente o raciocínio. Um pouco informal de mais para um homem
no comando, pensou. Então o major Mazzard intrometeu-se na conversa.
— Acho que o general está particularmente interessado em ver
como controlam os Lobos do Espaço.
O general levantou uma mão.
— Bem, não nos vamos precipitar, major. O coronel sabe como isto
funciona. Afinal, esta é uma das bases mais importantes de todo o país...
— Bem — disse o coronel lentamente e em tom afectado. — Bem,
seríamos certamente os primeiros a saber, se alguma coisa estivesse erra-
da, se é a isso que se refere, sir. Aconselhá-lo-ia a ver primeiro o controlo
de operações principal.
— Como queira — anuiu o general Banker.
O coronel apontou na direcção de outro par de portas à prova de
explosão, no centro da parede semicircular por trás das secretárias de
segurança.
— Faça o favor, sir. — O general seguiu o coronel do NORAD ao
longo da carpeta macia e pelas portas, com todos os outros oficiais atrás,
incluindo Mazzard e Luxor. Do outro lado das portas havia uma passa-
gem ampla que conduzia a um corredor que se bifurcava em forma de T.
Olhando para a esquerda e para a direita, o general viu grandes portas de
vaivém, dispostas a intervalos regulares ao longo da passagem transver-
sal. Mesmo em frente havia portas semelhantes onde, em letras grandes
e brancas, se podia ler: GALERIA: OPERAÇÕES.
O coronel desviou-se para o lado, para deixar entrar o general
Banker, e os outros oficiais seguiram-no respeitosamente.
Encontravam-se numa ampla plataforma panorâmica, equipada
com cadeiras e um écran alto de vidro espesso e curvo. A vista da galeria
era impressionante e virtualmente única.
Debaixo deles ficava um vasto anfiteatro, ocupado por cerca de
cem homens e mulheres, cada um sentado por trás de uma série de com-
putadores e instrumentos electrónicos — teclados, visores e outro equi-
pamento complexo. Cada uma daquelas pessoas em serviço parecia estar
completamente concentrada no seu trabalho, premindo ocasionalmente
uma tecla ou outra, ou falando para um microfone.
A um nível superior, na parede enorme e curva no extremo oposto,
havia três grandes projecções electrónicas Mercator, todas elas mapas do
mundo. Sobre cada projecção estavam filas de relógios digitais, mostran-
do a hora exacta em cada uma das muitas zonas da Terra. Mas o mais
193
importante eram as linhas coloridas que atravessavam lentamente as pro-
jecções. Linhas azuis e verdes, brancas brilhantes, pretas, cor de laranja
e até mesmo linhas que se dividiam em tons diferentes e segmentados.
O general soltou um lento assobio. Recordava-se de ver versões
mais pequenas de coisas como esta, mas nunca nada numa escala tão
grande.
— Ficar-lhe-ia grato, coronel, se nos dissesse alguma coisa sobre
todo este espantoso aparato. — Sorriu.
O coronel começou a falar, num tom estranho e monocórdico, ex-
plicando a utilização e objectivo do controlo principal.
As três projecções mostravam o número exacto de satélites conhe-
cidos e outro equipamento espacial em órbita. A projecção da esquerda
mostrava todos os satélites que não pertenciam ao E. U. A., e a da direita
o equipamento americano, enquanto a projecção do centro controlava
todas as novas indicações.
Ao mesmo tempo, este écran central podia ser programado, num
instante, para mostrar todos, tanto os americanos como os não america-
nos, e até mesmo a justaposição dos satélites.
— É também a chamada projecção de aviso prévio — disse-lhes o
coronel. — Qualquer potência estrangeira que lance algo de novo para o
espaço, será detectada no écran central.
Todos estes enormes mapas electrónicos eram controlados e ope-
rados pelos técnicos sentados no anfiteatro, enquanto estes, por sua vez,
recebiam informações de um grande número de fontes.
— Qualquer coisa de novo seria transmitida pelas nossas estações
de detecção, em terra ou em órbita. O nosso próprio equipamento é pas-
sado através de postos individuais de comando dentro deste complexo.
— Pelas palavras do coronel, tudo parecia muito simples, mas quem visse
aquela sala não podia deixar de ficar pasmado.
O coronel continuou a falar:
— Por exemplo, os satélites de reconhecimento Big Bird e Keyho-
le II estão representados na projecção da direita, mas o seu trabalho é
controlado pelo seu próprio posto de comando, que fica no corredor por
onde se entra para esta galeria. Claro está que todas as informações en-
viadas por estes satélites são transmitidas para outras estações.
— Por exemplo, se houver alguma coisa nova... digamos, da União
Soviética, é imediatamente detectada. Em poucos segundos, o nosso SDS,
Sistema de Dados de Satélites, transmite os pormenores. Entra em acção
antes de saber exactamente do que se trata, mas quando isto acontece é
194
tudo muito rápido, e acontece muito frequentemente.
Prosseguiu, explicando como cada sistema de satélites tinha o seu
próprio quartel-general a trabalhar independentemente. Os satélites me-
teorológicos, por exemplo, transmitiam os seus dados directamente aos
centros meteorológicos, e o mesmo acontecia com os satélites de reco-
nhecimento em órbita.
— De certa maneira, somos como patrulhas de polícia. — O coronel
falava directamente para o general Banker. — Podemos ver o que está lá
em cima, verificar, transmitir as informações e tomar medidas. Mas não
somos responsáveis pelas tarefas individuais.
— Excepto no que diz respeito aos Lobos do Espaço — disse o ma-
jor Mazzard, à direita do general.
O coronel anuiu. Esse era um projecto muito especial, disse.
— O general gostaria de ver o posto de comando do Lobo do Espa-
ço? É possivelmente o maior que aqui temos.
O major Mazzard e o capitão Luxor responderam ambos pelo ge-
neral Banker. Sim, o general gostaria muito de ver o posto de comando
do L. E.
— Tudo o que desejar, meu general. — O coronel conduziu-os para
fora da galeria das operações, e depois para a esquerda, ao longo do cor-
redor, até chegarem a umas portas de vaivém, onde se podia ler “Contro-
lo SA”. “Satélite Assassino”, explicou o coronel, indicando-lhe o caminho
para uma ampla sala.
Lá dentro reinava a semiescuridão. Na parede oposta brilhava uma
versão mais pequena das projecções electrónicas Mercator (linhas ver-
melhas em movimento cobriam o céu), enquanto três homens, um oficial
e dois sargentos-mor, velavam pelo computador e pelos controlos.
— Aqui está. — O coronel apontou com uma mão. Então falou mais
alto, para que os três homens que controlavam o posto de comando do
Lobo do Espaço o pudessem ouvir. — Meus senhores, este é o general
Banker, inspector-geral da Defesa Aerospacial. Está apenas a dar uma
olhada — disse em voz alta.
O general Banker voltou-se para Mazzard, preparando-se para lhe
fazer uma pergunta.
— Está ar lembrar-se, não está, meu general? — insinuou Mazzard.
— É o oficial mais graduado aqui.
Banker franziu o sobrolho e olhou em volta. O coronel estava jun-
to dele, enquanto os outros oficiais estavam todos à entrada. O capitão
Luxor encontrava-se por trás dos acompanhantes do coronel, lá fora no
195
corredor.
— Meu general, as fitas e as folhas impressas do computador —
incitou Mazzard, ao seu lado direito.
— Claro. Desculpe, Mike. — O general sorriu e depois levantou a
voz. — Não quero incomodá-los, meus senhores, mas qual de vós coman-
da este posto?
O oficial sentado à frente do banco central de controlo levantou
uma mão. —Sir.
— Quer ter a gentileza de retirar as fitas do computador e empa-
cotar todas as folhas impressas disponíveis, por favor? Preciso de as levar
comigo para as estudar — disse o general calmamente.
O oficial no comando levantou-se lentamente, e murmurou:
— Com certeza, sir.
Depois, dirigiu-se à parte de trás da enorme consola. Daí a alguns
minutos tinha as grandes bobinas de fita empacotadas, sobre as quais
colocou uma série de caixas chatas metálicas, que continham as folhas
impressas do computador.
— O meu general deseja mais alguma coisa? — perguntou o oficial.
— Não, é tudo — respondeu Mazzard pelo general. — Traga-as
para aqui.
O oficial que comandava o posto Lobo do Espaço começou a dirigir­
-se para eles na semiescuridão.
Então, rápida e surpreendentemente, o general Banker saltou para
a frente do coronel e esticou uma mão para lhe arrancar a pistola do col-
dre.
Ao mesmo tempo, o general gritou:
— Pare! Não entregue isso! E vocês, agarrem os dois oficiais que
me acompanham. Não são quem pretendem ser. Já! Agarrem-nos já!
Tudo acontecera nessa manhã, durante a viagem de helicóptero
para Peterson Field.
O general, sentindo-se decididamente enjoado devido à festa da
noite anterior, fechara os olhos, com a idéia de dormitar um pouco. Mas,
logo que se descontraiu, o general Banker começou a sentir uma tontura,
seguida de estranhas experiências mentais.
Primeiro, pensou que se tratava de algo grave, como um ataque
de coração. Sentiu-se desmaiar, e começou a ver uma série de imagens a
projectarem-se no seu espírito.
Era como um filme a rodar do fim para o princípio, a grande ve-
locidade, interrompido por coisas estranhas que não conseguia identi-
196
ficar devidamente. Havia recordações recentes, imediatamente após a
sua promoção; cenas dos tempos do Vietname; e momentos anteriores,
como se a bobina o estivesse a levar de volta à infância.
As imagens que se interpunham eram muito estranhas. Uma mu-
lher com um seio viera dar-lhe comprimidos. Pelo menos, achava que era
ela, pois sentia o cheiro do seu cabelo. Nena. Tara. Cedar. Bond, James
Bond. 007.
O general abriu os olhos e apercebeu-se de que não era o general
James A. Banker. Sentindo-se ainda um pouco tonto, foi inundado pela
verdade, como se uma janela se abrisse no seu espírito.
Ela viera dar-lhe os comprimidos com este fim. Então e ali, no he-
licóptero, Bond nem sequer tentara perceber como o haviam drogado e
incutido em si outra personalidade, por meio de hipnose. Tudo o que o
preocupava, agora, era como conseguir manter aquele papel até ao me-
lhor momento possível. Esse momento chegara.
Quando se voltou repentinamente para agarrar o grande Colt .45
do coronel, Bond apercebeu-se de que Mazzard estava a sacar da sua
arma, ao mesmo tempo que gritava:
— Não dêem ouvidos ao general! Não liguem ao que ele diz! O
homem está doido! Não obedeçam às suas ordens.
A pistola de Mazzard saiu do coldre um segundo atrasada. O braço
de Bond estava levantado e o troar dos dois tiros lembrou explosões gi-
gantescas que ecoaram na sala.
Mazzard foi arrancado do chão. Por um segundo, o seu corpo ficou
suspenso no ar, com o sangue a jorrar-lhe do peito, e depois foi atirado
para trás contra a parede. Imediatamente, Bond voltou-se à procura de
Luxor.
O homem esquelético desaparecera.
Com toda a autoridade de que podia dispor, Bond gritou para que
repusessem as fitas de computador no lugar.
— Coronel, ponha os seus homens em acção, e depressa. As tropas
que vieram comigo não têm intenções pacíficas. Trate das posições de
defesa.
O coronel hesitou por um instante. O posto de comando tresanda-
va a cordite e a morte. Dois dos outros oficiais estavam também de armas
na mão, mas pareciam não saber o que fazer. Desde o momento em que
ali chegara, Bond reconhecera os efeitos da sinistra droga de Bismaquer.
Quase haviam entregado realmente as fitas. Agora era uma questão de
impedir que as levassem à força.
197
Bond gritou de novo as ordens, desta vez exigindo saber o que
acontecera a Luxor.
— Ele foi... depois de o meu general disparar para... ele foi-se em-
bora — gaguejou um dos oficiais do NORAD.
— Coronel, as suas defesas. Contacte com a base mais próxima.
Vão precisar de auxílio — ordenou Bond, em tom firme.
Como para dar mais ênfase à ordem, toda a sala estremeceu com o
estrondo surdo de uma explosão, vinda da direcção da entrada principal.
Apareceu um fuzileiro à entrada da sala.
— Estão a disparar granadas antitanque contra o bloco de entrada,
sir! — gritou para o coronel, que já se dirigira ao telefone mais próximo.
Ouviu-se outro estrondo, que fez estremecer o complexo da mon-
tanha.
Bond olhou para o fuzileiro.
— Onde está o oficial que entrou comigo?
— Meu general?
— Aquele que tinha cara de caveira...
— Ouviram-se tiros vindos daqui e ele passou por nós a correr, di-
zendo que tinha de ir buscar auxílio.
O complexo tremeu de novo, devido à explosão de outra granada.
— É este o auxílio que ele foi buscar — disse Bond. — Reúna toda a
gente que puder. O coronel está a contactar com o exterior. Esta base está
a ser atacada. Não se trata de um exercício. É mesmo a sério.
Nesta altura, já todos se tinham apercebido do perigo. Bond vol-
tou-se para o coronel.
— Vão tentar entrar à força, rapidamente — disse, esforçando-se
por se manter calmo. — Vão abrir o caminho com granadas antitanque...
— Pelo barulho, são M72. — O coronel estava branco como a cal.
— Não percebo o que aconteceu. Quase entregámos...
— Não se preocupe, coronel, a culpa não é sua. O facto é que
aqueles sacanas vão abrir caminho à força, com catanas se for preciso. Se
aquela caveira está lá fora, então eles serão ainda mais decididos. De que
é que dispomos, no que diz respeito a defesas?
O coronel deu umas ordens rápidas aos seus oficiais, que hesita-
ram, até Bond — apercebendo-se das características da droga de Bisma-
quer — lhes dizer que obedecessem.
— Os soldados lá fora estão a ripostar. — O coronel engoliu em
seco. — Estão a sair-se bem, acho eu. Já vêm reforços a caminho, mas o
problema é aqui. Dentro da montanha. Já rebentaram com as primeiras
198
portas, e a secção que dá para a área de recepção está agora a ser atingi-
da. Deduzo que estejam perto das portas...
— E quando rebentarem com essas portas, os que restam vão en-
trar em magote através da entrada estreita. Que é que nós temos?
— Algumas granadas, as armas que temos nos coldres e um par de
AR 18.
— Vá buscar as Armalites, então. Rápido! — A AR 18, segundo Bond
sabia, era a mais recente arma Armalite comercial. Era totalmente auto-
mática, com uma média de 800 disparos por minuto, e cujos carregadores
continham vinte munições. Seguiu o coronel até ao armário das armas,
colocado na parede, junto às portas da galeria de operações.
Bond sentiu o conforto da arma nas suas mãos, e foi guardando
dentro do casaco da farda os carregadores que o coronel lhe entregava,
introduzindo na arma.
Quando se afastaram do armário, uma explosão maior irrompeu da
área de recepção, e vários soldados recuaram aos tropeções pela entrada
para o complexo principal.
Um deles era o fuzileiro com quem Bond falara antes.
— Conseguiram entrar, rebentaram com as portas da recepção —
arfou o homem, e Bond viu que ele apertava com força um rasgão no
ombro, e que o sangue já pingava por entre os dedos.
Ao alcançar as portas para a área ampla e circular de recepção,
Bond apercebeu-se rapidamente da carnificina. As secretárias estavam
despedaçadas e havia corpos por toda a parte, alguns mortos, outros cho-
rando de dor devido aos ferimentos.
O fumo alastrava para a área de recepção, vinda da entrada princi-
pal à sua frente.
O ataque seria feito através da passagem estreita, um homem de
cada vez, pensou Bond. Encostou-se contra a parede, apertando a arma
contra a anca.
Pelo canto do olho, viu o coronel adoptar uma posição semelhante.
Um dos oficiais que estivera com eles no comando do Lobo do Espaço
estava caído de costas a um metro, com um enorme rasgão na garganta.
Bond achou que Bismaquer já tinha muito por que pagar.
Então, por entre o fumo, os homens da ESPECTRO começaram a
entrar na área de recepção.
Tanto o coronel como Bond abriram fogo ao mesmo tempo, dispa-
rando uma rajada dupla de balas para o buraco onde antes estavam as
portas de aço de correr.
199
— É como matar peixes num barril, meu general — gritou o coro-
nel, pois os soldados da ESPECTRO, encurralados na passagem estreita,
entravam na área de recepção como carneiros a serem conduzidos para
um matadouro.
Com as AR 18 a matraquear, o coronel e Bond ceifavam os atacan-
tes, à medida que eles apareciam por entre o fumo. As balas lançavam­-
nos para trás, atiravam-nos para o lado, trespassavam-nos, até que, de
repente, se fez um silêncio sobrenatural.
Por fim, o fumo começou a dissipar-se, e até mesmo Bond se re-
traiu ao ver os estragos que haviam causado. Então, recarregou a arma,
preparando-se.
Lá fora, ouviu-se outra explosão e depois um grito.
— Meu coronel? Meu coronel? Há oficiais do NORAD aí dentro?
— Sim — gritou o coronel. — Diga o seu nome e posto. Que é que
se passa?
— Aqui já estão arrumados, sir. A outra VBTP ficou retida na estra-
da, por forças da entrada principal. E o sargento Carter quem fala.
O coronel anuiu para Bond.
— Não há problema, meu general. Conheço Carter.
Bond pensou que seria melhor continuar a fazer-se passar por um
general de quatro estrelas durante mais algum tempo.
Pelo menos, isso impediria que fossem feitas perguntas indiscretas.
A sua preocupação principal, agora que a Lobo Celestial fora destroçada,
centrava-se em Cedar Leiter. Depois, e logo que soubesse o que lhe acon-
tecera, iria dar caça a Bismaquer.
Lá fora, havia mais um amontoado de cadáveres. As equipas médi-
cas tratavam os feridos e retiravam os mortos. A única VBTP ainda ardia,
e viam-se grandes buracos na vedação Cyclone.
Vindas do fundo da estrada e fora do campo de visão, ainda se ou-
viam rajadas ocasionais de espingardas e automáticas.
— Como é que vai isso? — gritou o coronel para uma equipa de
três homens, ajoelhados diante de um radiotransmissor de campanha.
Respondeu-lhe um sargento. Vinha mais auxílio a caminho e a outra VBTP
estava quase destruída e as tropas na iminência de serem desbaratadas.
— Anda não consigo perceber como quase lhes demos aquilo —
murmurou o coronel em voz baixa. — Não me sinto bem com o que acon-
teceu.
— Vai acabar por perceber. A culpa não foi sua, coronel. Também
se serviram de mim...
200
O sargento junto do rádio disse ao coronel que se encontrava um
helicóptero civil a quilômetro e meio de distância.
— É uma mulher. Persiste em contactar, pedindo autorização para
aterrar. Quer saber se está aqui um tal Sr. Bond, sir.
— Deixe-a aterrar — ordenou Bond, servindo-se ainda da sua posi-
ção. — Sei do que se trata. Tragam-na aqui. — Podia muito bem tratar-se
de Bismaquer, a apontar uma pistola à cabeça de Cedar ou de Nena, mas
esse era o único meio de se safar rapidamente. Por outro lado, poderia
conduzi-io rapidamente a Bismaquer, e isso era algo a que Bond não po-
dia resistir. Recordou-se de que um helicóptero seguira a escolta até à
entrada.
— Dou autorização, sir? — perguntou o homem do rádio ao coro-
nel.
— Se o nosso general o diz. Sim.
Bond dirigiu-se ao sargento do rádio.
— Você não gosta de gelados, pois não, sargento? — perguntou,
depois de ter presenciado um homem esclarecer com o seu superior uma
ordem dada por um general de quatro estrelas.
Pegando no microfone, o homem sacudiu a cabeça.
— Detesto essa merda, sir. Nem consigo olhar para aquilo. — Dei-
tou a Bond um olhar intrigado, enquanto começava a pedir ao helicóptero
que descesse.
Bond despediu-se rapidamente do coronel, dizendo que voltaria
logo que pudesse.
— Se houver algum problema, contacte a Casa Branca. Diga que
encontrou um Sr. Bond. Eles esclarecerão tudo, acho.
Era óbvio que o coronel estava baralhado, ao observar o pequeno
insecto de metal branco descer suavemente nas instalações do complexo,
desviando-se para o lado no último momento, com perícia, para evitar a
VBTP queimada, um monumento final à tentativa falhada de Bismaquer
contra a segurança de Cheyenne Mountain.
O pequeno helicóptero constituía uma versão moderna, de dois lu-
gares, do velho Bell 47. Bond conseguia ver apenas uma figura sentada,
que usava um capacete de plástico transparente. Não era Bismaquer, com
toda a certeza. Esta figura era esguia, vestia um fato-macaco branco e
usava um capacete.
Ela já abrira a porta e voltava-se para descer, quando Bond chegou
junto do aparelho.
— Oh, James. Graças a Deus. Oh, graças a Deus que você está bem.
201
— Nena Bismaquer enrolou os braços à volta do pescoço de Bond, agar-
rando-o como se não pudesse suportar que ele voltasse a desaparecer­-
lhe.
Cansado, preocupado com a segurança de Cedar, ansioso por des-
cobrir se Luxor se escapara e por saber onde Bismaquer se escondera, Ja-
mes Bond, mesmo assim, sentia que talvez fosse bom nunca largar Nena.

21
BLOFELD

Já estava a escurecer quando o helicóptero sobrevoou, a baixa alti-


tude, os pântanos da Luisiana. Nena inclinou-se para a frente na direcção
dos controlos, tentando localizar o marco que dissera que se encontrava
ali.
Haviam permanecido apenas alguns minutos no complexo da base
do NORAD, enquanto Bond lhe lançava perguntas. Que acontecera? Como
é que ela conseguira ir até ali? Sabia o que acontecera com Cedar?
Corada e excitada, Nena respondeu-lhe tão rapidamente quanto
ele fizera as perguntas. Nos primeiros tempos no Rancho Bismaquer, o
marido ensinara-lhe a pilotar um helicóptero. Tirara o brevet de piloto há
um ano. Fora a sua salvação.
Acordando a meio da noite — há umas boas quarenta e oito horas
atrás — ouvira ruídos. Bismaquer parecia não estar em casa, por isso ela
desceu as escadas e viu Luxor com outros homens. Tinham Cedar com
eles.
Então chegou o seu marido. Deu ordens. Ela não fazia qualquer
idéia do que se estava a passar, mas ouviu falar em levarem Bond no ou-
tro helicóptero. Ouviu ainda Bismaquer dizer-lhes onde se encontrariam
quando tudo terminasse.
— Ainda não sei a que é que esse tudo se referia. Falaram de
Cheyenne Mountain, é tudo. Meu Deus, fica tão elegante com esse uni-
forme, James. Agora preciso de saber o que se passa.
Dir-lhe-ia mais tarde. Agora precisava dos factos urgentes. Onde
estava Bismaquer? Que acontecera a Cedar?
— Vai levá-la para a Luisiana. Sei exactamente para onde, e Luxor
também se vai dirigir para lá. — O seu rosto, até então brilhando de pra-
zer, tornou-se, de repente, sombrio. — É horrível, James. Sei o que lhe
vão fazer. Markus levou-me até lá uma vez. Nunca pensei em lá voltar. As

202
pessoas da zona conhecem-me e, se nos apressarmos, deveremos lá estar
muito antes de Markus chegar com Cedar. Eles vão por estrada. Foi sem-
pre ela quem eles quiseram que morresse, James. Eu sei. Ouvi Markus
dizer que foi ela quem tentaram matar com as formigas-carregadoras.
Horrível. Ele queria-o vivo, mas Cedar devia morrer. Peço a Deus que che-
guemos a tempo, porque pressinto o que lhe irão fazer agora.
Minutos depois, estavam no ar e agora, depois de um vôo longo e
regular, viam os pântanos e as baías pantanosas deslizarem na obscurida-
de abaixo deles.
Bond estava agradavelmente surpreendido com o nível de pilota-
gem de Nena. Ela controlava o helicóptero com perícia e muita aptidão,
como se estivesse habituada a voar todos os dias.
— Oh, vôo sempre que posso. — Riu. — Foi sempre um modo de
me ver livre de Markus por algum tempo. É engraçado, soube sempre
que, quando finalmente o deixasse, o faria de helicóptero.
Ligara as luzes de aterragem principais, abrandou quase até o heli-
cóptero ficar a pairar, espreitou para baixo e, de repente, exclamou:
— Ali! É ali. Naquela ponta de terra entre as duas baías pantanosas.
Bond achou que, mesmo tendo em conta a luz, a casa parecia em
bastante mau estado.
— Vai ver. — Riu-se novamente. — Markus tem lá duas pessoas a
tomar conta da casa. O exterior é apenas um disfarce, tal como a caixa de
um prestidigitador que esconde a verdade. Lá por dentro, é um palácio.
Ela inclinou o pequeno Bell para descer, dizendo a Bond que pen-
sava que existia do outro lado da baía pantanosa um local onde podia
aterrar.
— Markus tem aqui uma série de lanchas, só que eu não quero
apanhar a que se encontra mais perto da estrada. Seria melhor que não
soubesse que estamos aqui.
Bond concordou. O que mais lhe convinha era a surpresa total para
a confrontação final com Bismaquer, o novo Blofeld. Interrogou-se acerca
do que aconteceria à ESPECTRO, agora que havia falhado a dispendiosa e
engenhosa tentativa para se apoderar dos segredos do Lobo do Espaço.
— Ainda não lhe agradeci. — Voltou-se para olhar Nena, concentra-
da no solo lá em baixo.
— Por o ter tirado de Cheyenne Moutain?
O helicóptero tremulou, e em seguida desceu suavemente. Nena
desligou os interruptores. O motor parou, e eles mantiveram-se sentados,
as pás penetrando o ar e produzindo um som ruidoso quando começaram
203
a parar.
— Não, Nena, pelo que fez por mim depois de me terem drogado e
hipnotizado. Como conseguiu entrar e dar-me o antídoto?
Ela fez uma pausa.
— Oh, isso? Bem, eu tinha de fazer alguma coisa. Era óbvio que lhe
tinham dado a dose máxima. Apenas tive de rezar para que tivesse esco-
lhido o medicamento indicado.
— Bem, escolheu e resultou. Na verdade, muito rapidamente. Você
salvou o dia, Nena. Você impediu realmente que o plano resultasse, im-
pediu os planos de Markus e Luxor.
A escuridão fechou-se sobre eles como uma parede. Nena teve de
voltar a ligar as luzes.
— James, vai-me contar tudo, não vai? Tudo. Apenas ouvi parte.
Pareceu-me muito complicado, difícil e ousado. Iriam mesmo receber
muito dinheiro por aquilo que pretendiam?
— Biliões. — Bond encerrou o assunto. — Agora vamos procurar a
lancha. Estou esfomeado, preciso de um banho e apetecia-me descansar
antes de me encontrar face a face com o seu venenoso marido.
— Sim — disse ela, desapertando o cinto de segurança. — Sim, é
bastante venenoso, não é?
Encontraram a lancha exactamente no sítio onde ela disse que es-
taria. Presa à frente da lancha encontrava-se um pequeno holofote com
pouca dispersão, que Nena ligou após o motor começar a trabalhar.
Quando chegaram às águas que rodeavam a velha casa em ruínas,
acendeu-se uma luz, vinda do que parecia ser a entrada. Bond preparou­-
se para sacar a.45, mas Nena deteve-o.
— Não há problema, James. E apenas um surdo-mudo que Markus
tem aqui. Chama-se Criton.
—Admirável — murmurou Bond.
— Criton ou a mulher, Tic. É uma excelente cozinheira.
Não tem que se preocupar com a comida, James. Sim, vejo-o agora.
E Criton a indicar-nos o caminho.
A lancha parou junto a um pequeno cais e o surdo-mudo de aspec-
to mal-humorado desceu com ligeireza para ajudar a prender a embarca-
ção ao cais. Criton fez a Nena uma pequena vénia, mas não ligou a Bond,
o qual manteve a .45 preparada, por uma questão de segurança.
Ela tinha razão quanto à casa. Ao subir os podres degraus de ma-
deira em direcção à porta principal, Bond manteve as suas reservas mas,
uma vez lá dentro, a coisa mudou de aspecto. As pessoas esqueciam ime-
204
diatamente a camuflagem, pois o interior era belo, imaculado e cheio de
estilo e bom gosto.
Nena falava com Criton, olhando-o de frente e pronunciando as
palavras cuidadosamente, enquanto Bond olhava à sua volta as pesadas
cortinas de seda, as antiguidades e as flores frescas que pareciam ter sido
colhidas apenas há algumas horas.
— O Sr. Bismaquer já cá esteve?—perguntou Nena.
Criton abanou a cabeça. Negativo.
— Vê se me percebes, Criton — prosseguiu. — Levas a lancha e vais
pô-la onde não a vejam. OK?
Anuiu.
— Depois dizes a Tic que precisamos de comer e de beber. No quar-
to principal.
Criton anuiu vigorosamente, arreganhando os dentes.
— Agora, o mais importante. Percebes? O mais importante. O Sr.
Bismaquer está a chegar. Logo que venha a caminho, numa lancha, acor-
da-nos. Imediatamente. Vais vigiar toda a noite. Se o fizeres, dou-te um
bom presente. OK?
O surdo-mudo anuiu, como se tentasse deslocar o pescoço.
— Ele vai fazê-lo. — Nena olhou Bond fixamente. — Estamos em
segurança, James. Podemos descontrair-nos. Criton avisa-nos quando
Markus aparecer; então estaremos prontos para o receber.
— Tem a certeza?
— Absoluta.
Ela pegou-lhe na mão, puxou-o carinhosamente e conduziu-o pelas
escadas.
O quarto principal era enorme, com carpetas tão espessas que era
possível deitar-se nelas e dormir sem recorrer a lençóis. A própria cama
era característica do estilo de Bismaquer: uma enorme cama dourada de
quatro colunas, com a cabeceira talhada e brilhando com folha de ouro —
um grande B surgia, saliente, no meio das ornamentações.
A casa de banho dispunha de banheira, chuveiro e jacuzzi. Bond
concluiu que tinha apenas metade da dimensão do quarto.
Mais tarde, enrolados em roupões turcos, sentaram-se na cama
para comer uma deliciosa sopa de caranguejo e quiabo a qual, assegurava
Nena, era considerada pela população local como um grande afrodisíaco.
Bond, que à chegada se sentia perto da exaustão, não sabia se de-
via agradecer à sopa ou aos poderes femininos naturais de Nena. Mas
fizeram amor várias vezes — com energia concentrada e prazer mútuo
205
crescente — antes de apagarem as luzes e se embalarem, mutuamente
para adormecer.
A princípio, Bond pensou que estava a sonhar, que o tiro fazia ape-
nas parte de um pesadelo imediatamente esquecido. Abriu os olhos de
repente, e permaneceu imóvel durante um segundo, escutando na escu-
ridão.
No entanto, no momento seguinte soube que não se tratava de um
sonho. Mais dois disparos fortes. Estendeu a mão para tocar Nena, mas
ela não estava ali.
Acendeu a luz e estendeu a mão na direcção do roupão turco e da
.45, ao mesmo tempo que os seus pés tocavam a carpeta.
O roupão estava ali, mas a grande automática — que colocara cui-
dadosamente junto à cama—desaparecera.
Mal vestiu o roupão, voltou a apagar a luz e, às apalpadelas, dirigiu­
-se à porta. O eco dos disparos parecia ainda repercutir-se na casa. Foi lá
em baixo, pensou, flectindo os joelhos e tocando a carpeta com os pés
nus, silenciosamente.
Parou, ao cimo da escada, para escutar mais uma vez. Pareceu-lhe
ouvir sons vindos de detrás de uma porta, adjacente ao grande pilar do
corri mão talhado, no fundo da escada. Por debaixo da porta via-se uma
réstia de luz. Nena, pensou, com o coração a bater com força. Bismaquer
chegara e o surdo-mudo não os avisara. Ou então ela decidira fazer tudo
sozinha.
Desceu as escadas mais depressa, parando por um momento junto
à porta, ouvindo os sons abafados que vinham do outro lado. Gradual-
mente, os sons ganharam formas — um murmúrio choroso e suplicante.
Sem demora, Bond abriu a porta com um pontapé, mesmo a tempo de
ver representado o último acto do drama de Bismaquer.
Era uma sala comprida. A maior parte do espaço estava ocupado
por uma mesa de carvalho polido e cadeiras colocadas cuidadosamente
à sua volta. A parede oposta parecia feita de vidro. Mas foi o quadro vivo
junto a esta enorme janela que fez paralisar Bond, à entrada da porta.
Era uma cena grotesca. Caído junto à parede via-se o rosto rosado
de Markus Bismaquer, com um ombro e as pernas cobertas de sangue,
onde as três balas se haviam enfiado, nas rótulas e no braço. O rosto de
querubim estava alterado. Era agora uma criança que sofria, aterrorizada.
De pé, junto a ele, completamente nua, encontrava-se Nena, com o
seu seio magnífico, como apanhado por um holofote. Tinha na mão o Colt
.45, que apontava directamente à cabeça de Bismaquer, enquanto ele im-
206
plorava na sua dor, pedindo-lhe que parasse. O urso estava finalmente
dominado e desamparado.
Ela pareceu não ver, ou mesmo reparar, que Bond estava ali. Por
sua vez, ficou momentaneamente tão abalado com aquela visão, que per-
maneceu demasiado tempo pregado e hipnotizado.
— Soube sempre que nunca foste verdadeiramente dedicado, Mar­
kus. — O riso deslizante transformara-se num grito áspero, enquanto o
terno sotaque francês era agora gutural, duro e grosseiro. Não, Markus.
Podia ter-te poupado, mas tu não tiveste cuidado. O britânico, Bond, dei-
tou tudo a perder. Quando já o tínhamos preparado... com a nova perso-
nalidade bem implantada nele... apareceste, vindo da minha cama, sem
dúvida, pois ele disse-me que sentira o cheiro do meu cabelo. Foste ter
com ele e encheste-lhe a boca de comprimidos para acordar, não foi? Ou-
tro dos teus amores, Markus? Apaixonaste-te por ele? Tal como te apai-
xonaste por aquela cabra da Leiter? Tudo o que se move, hem? Luxor, eu,
Leiter, Bond. Bem, não há motivo para te conservar durante mais tempo...
marido.
Bond deu um salto quando ela premiu o gatilho e a cabeça de Bis-
maquer se desintegrou como um balão cheio de sangue, salpicando o
corpo nu de Nena.
— Meu Deus. Sua cabra. — Por um instante, Bond pensou que não
o dissera em voz alta. Mas Nena Bismaquer voltou-se rapidamente, com o
cano mortal do Colt a apontar com firmeza para o peito de Bond.
O seu rosto mudara e, com a luz clara, Bond conseguia ver que
parecia mais velha. O cabelo estava desgrenhado e os seus olhos ardiam
agora de ódio. Foram os olhos que lhe revelaram tudo. Por mais que os
tentasse esconder, mesmo com lentes de contacto, os olhos de Ernst Sta-
vro Blofeld eram negros; negros como o próprio Príncipe das Trevas.
Nena fez um sorriso desigual, e esse sorriso revelou a sua paranóia.
— Bem, James Bond. Finalmente. Lamento que tenha sido forçado
a observar esta cena desagradável. Pensava mesmo em poupá-lo, até que
você me agradeceu por lhe ter dado os comprimidos para acordar. Foi
então que soube que ele tinha de morrer. É uma pena. A sua maneira, era
bastante esperto.
A minha organização tem sempre lugar para químicos com um to-
que de gênio, como Markus Bismaquer. Mas receio que não tivesse estô-
mago para isto.
Deu um passo na direcção de Bond, mas depois mudou de idéias.
— Apesar de tudo, e tenho de reconhecer que em algumas áreas
207
você tem valor, não me parece que tenhamos sido realmente apresenta-
dos. O meu nome é Nena Blofeld. — Riu. — Devo dizê-lo, o seu é James
Bond e reclamo a minha recompensa.
— Filha dele? — A voz de Bond mal se ouvia.
— A minha recompensa — continuou. — Estabeleci um preço pela
sua cabeça, pronto a ser reclamado já há algum tempo. Está surpreendi-
do? Surpreendido por ter conseguido enganar a sua gente e os america-
nos? Sabíamos que iria ser chamado, Sr. James Bond, o perito em assun-
tos da ESPECTRO. Sim, à distância eu atraí-o, James. E você caiu. Agora eu
posso reclamar a minha recompensa, para mim própria. Tanto quanto eu
sei, você matou o meu pai. Ele avisou-me a seu respeito, mesmo quando
eu era criança.
—E a sua mãe? — Bond tentar jogar com o tempo.
Do fundo da garganta, produziu um som de repúdio que pareceu
um vômito.
— Sou ilegítima, embora saiba quem ela era. Uma prostituta fran-
cesa que viveu uns anos com ele. Que eu saiba, nunca a vi. Eu amava o
meu pai, Sr. James Bond. Ensinou-me tudo o que sei. Legou-me a orga-
nização, a ESPECTRO. É tudo o que precisa de saber. Markus já morreu.
Agora é a sua vez.
Ela levantou o Colt, no momento em que Bond mergulhava na di-
recção do lado da mesa, e nesse mesmo instante surgiu junto à porta a
figura delicada e empoeirada de Walter Luxor, que gritava:
— O local está cercado, Blofeld. A polícia está aqui, por toda aparte!
Ela disparou, e Bond viu lascas de madeira a saltarem da mesa, a
cerca de trinta centímetros da sua cabeça. Rodando o corpo, agarrou-se
às pernas da pesada cadeira mais próxima e puxou-a, no momento em
que Walter Luxor se lançava na sua direcção, colocando-se directamente
no caminho do disparo seguinte de Nena Blofeld.
A bala foi enfiar-se no lado esquerdo do peito de Luxor, fazendo-o
girar como um pião contra a parede. Pareceu ficar pregado durante um
segundo, antes de começar a escorregar, um esqueleto em queda, dei-
xando atrás de si um rasto vermelho.
Bond ouviu Blofeld arfar, praguejar e nesse momento em que ela
estava ainda desnorteada, reuniu todas as suas energias, levantou a pesa-
da cadeira e fez um esforço supremo para a arremessar com toda a força
a Nena Blofeld.
A cadeira pareceu pairar, quase suspensa no ar, quando ela tentou
evitá-la. Mas a necessidade de sobrevivência, o ódio por qualquer mem-
208
bro da família Blofeld e uma reserva escondida de forças, foram suficien-
tes para os objectivos de Bond.
A parte de baixo do assento da cadeira atingiu-a em cheio no peito.
As quatro pernas manietaram-lhe os braços e toda a força do impacte
lançou-a de costas contra a janela.
Ouviu-se um barulho repugnante de vidros partidos, e depois um
grito terrível. Nena Blofeld foi atirada para o solo duro, que formava um
declive, em direcção aos densos juncos e à água da baía pantanosa.
Os gritos continuaram e Bond ficou imóvel, transfigurado, com o
que aconteceu depois. Quando Blofeld tocou o solo, caiu, vinda da es-
curidão, uma gaiola de metal protegida por uma estrutura emaranhada
de arames apertados. Ao mesmo tempo, ganhou vida a área junto à ja-
nela partida. A gaiola, Bond podia ver, tinha um tecto e três lados que se
abriam à frente e que se estendiam até aos juncos.
Quando a gaiola desceu, diminuiu a intensidade da luz na sala,
mas mesmo assim ainda tinha luz suficiente para ter uma visão razoável
dos répteis que avançavam, contorcendo-se. Pelo menos duas — embo-
ra Bond tivesse a nítida sensação de que havia mais por perto — eram
pitãos mortais, enormes e gordas, que mediam dez ou mais metros de
comprimento.
Quando as criaturas deslizaram por cima do corpo que gritava e
esperneava, Bond ouviu a cadeira estalar como se se tratasse de contra-
placado. Então os gritos cessaram. Apercebeu-se de que outras pessoas
entravam na sala e, pelas costas, reconheceu uma delas como o seu velho
amigo, Felix Leiter.
Leiter coxeou na direcção da janela, com luvas pretas enfiadas nas
mãos dos seus membros artificiais. Bond viu Leiter levantar os braços e
juntar as mãos. Desviou o olhar após a terceira explosão, quando Felix
enfiava uma bala na cabeça de cada pitão e, no caso de estar esmagada,
mas ainda não morta, dava o golpe de misericórdia a Nena Blofeld.
— Vamos, James. — Era Cedar, a seu lado, quem o conduzia para
fora da sala cheia de cadáveres.
Alguns minutos mais tarde, no hall da casa da baía pantanosa, ela
contou-lhe rapidamente o que lhe acontecera no monocarril.
— Eu não podia matá-los a todos. Disse-me para matar qualquer
pessoa que tentasse entrar. Eram, pelo menos, uma dúzia. Talvez já se
encontrassem a bordo quando deixámos o rancho. Fugi rapidamente.
Desculpe, James, tentei apanhá-lo, avisá-lo, mas passou-se tudo tão de-
pressa. Não me atrevi a gritar. Eles pareciam estar em todo o lado. Não
209
conseguia ver. Devemos ter-nos desencontrado por centímetros. A única
coisa em que tropecei foi num corpo.
— Como...? — começou.
— A pé. Saí pelo portão e meti-me pela noite dentro. Quando fi-
nalmente cheguei a Amarillo, já era demasiado tarde para fazer alguma
coisa. Não existe mesmo nada entre aquela estação e a cidade. Então as
coisas tornaram-se mais claras, e começaram a chegar informações vin-
das de Cheyenne Mountain. Nessa altura, já o papá havia chegado com
muitas outras pessoas. Finalmente, localizaram o helicóptero de Madame
Bismaquer. Foi assim que o seguiram até aqui. Disse-lhe sempre que ela
não prestava.
Bond limitou-se a abanar a cabeça. Ainda não estava em si.
Felix Leiter entrou no hall.
— E bom voltar a encontrar-te, James, velho amigo. — O seu sor-
riso ainda continha aquela boa disposição e impetuosidade de que Bond
sempre gostara, confiara e admirara. — Acho que sabes que a minha filha
está apaixonada por ti, James. — Novo sorriso rápido. — Como seu pai,
espero que faças dela uma mulher honesta... ou desonesta. Qualquer das
hipóteses serve, só para a manter sossegada.
— Papá! — disse Cedar, com uma voz chocada que não enganava
ninguém.

22
PARA JAMES BOND: A DÁDIVA DE UMA FILHA

Cedar Leiter e James Bond estavam de pé na varanda do quarto


dele em Maison de Ville, Nova Orleãs, a admirar a paisagem. Algures, por
perto e por baixo deles, um pianista tentava recriar o tema de Art Tatum,
Aunt Hagars Blues. Cedar e James estavam a discutir.
— Mas você disse que seria diferente se eu não fosse filha do seu
velho amigo, James. Será que não pode esquecer isso?
— É difícil. — Bond tornara-se monossilábico, em especial desde
que falara ao telefone com M, o qual lhe parecera excepcionalmente sa-
tisfeito e lhe dissera para tirar duas semanas de licença. “Não, 007, tire
antes um mês. Desta vez, você merece-o. Na verdade, foi um óptimo tra-
balho.”
— Que quer dizer com esse “é difícil”? — Cedar tornara-se petu-
lante. — Você já disse tudo, James. Que me levava para a cama como um

210
tiro se...
— Se não fosse o seu pai, sim. E não se fala mais no assunto.
— Não é incesto!
— Mas não ficaria bem. — Bond sabia muito bem que, se aconte-
cesse, ficaria muito bem. Mas...
— Oiça. Tenho tempo livre. E você também. Ao menos, vamos par-
tir e fazer umas férias juntos. — Ela levantou as mãos, com as palmas
voltadas para ele. — Sem compromissos, James. Prometo, sem compro-
missos.
Cedar colocou imediatamente as mãos atrás das costas e cruzou os
dedos, à maneira do velho ritual de infância que permitia mentir.
Bond suspirou.
— OK. Mas só para a manter calada. E aviso-a, Cedar, se tenta algu-
ma coisa, que Deus me perdoe... e já tenho idade para ser quase seu pai...
se não lhe aqueço esse lindo traseiro.
— Ora. Promessas. — Cedar soltou uma risada. Mantiveram-se si-
lenciosos por um momento e depois ela agarrou-lhe a mão.
— Não é mesmo fantástico? Aquele céu, todo aveludado, e as es-
trelas?
Não o sabiam, mas naquele preciso momento era lançado um fo-
guetão do Cosmodromo do Norte da Russia, perto de Plesetsk, para o sul
de Arcângel. Poucos minutos mais tarde, apareceu um sinal luminoso no
centro de projecção da sala de controlo principal do centro NORAD em
Cheyenne Mountain.
Segundos depois, o posto de comando do Lobo do Espaço, situado
mesmo ao lado da passagem do Controlo Principal, colocava numa órbita
semelhante uma das suas plataformas equipadas com armas laser, para
se aproximar do novo objecto não identificado.
Nos trinta minutos que se seguiram, o Lobo do Espaço manteve­-
se dentro do alcance, até o Sistema de Dados de Satélites identificar o
objecto recém-lançado como mais um satélite meteorológico Meteoro.
Só então é que o Lobo do Espaço foi retirado calmamente, e colocado de
novo na sua órbita normal.
Mas Cedar e James Bond não sabiam nada disto. Apenas estavam
ali a admirar as estrelas, com a mão de Bond a apertar cada vez mais a
palma da mão de Cedar. Deu-lhe um pequeno apertão.
— OK, filha — perguntou —, para onde é que quer ir?
— Bem... — A resposta de Cedar foi interrompida pela campainha
do telefone.
211
— Olá, James. — A voz de Felix Leiter fez Bond sentir-se estranha-
mente culpado. — Estou no bar e está aqui uma encomenda para ti, velho
amigo — disse-lhe Felix.
— Desço dentro de dois minutos. — Bond pousou o telefone. — Era
o seu pai. Com um chicote, acho eu. — Disse a Cedar para esperar por ele
que depois sairiam para jantar.
No entanto, Felix não se encontrava no bar, nem em nenhuma das
salas públicas do hotel. Mas o barman disse a Bond que um homem coxo
estivera ali. Na recepção, havia uma encomenda e uma nota para o Sr.
Bond.
Não havia dúvida. Havia para ele uma encomenda pesada, muito
bem embrulhada, e um envelope cuidadosamente dactilografado. Bond
rasgou o envelope. Lá dentro encontrava-se outro envelope selado e uma
nota. “Abre primeiro a encomenda”, dizia. “É de alguém muito importan-
te. Depois, abre o envelope. Felix.”
Bond levou a encomenda para o bar, pediu um vodca-martini,
acendeu um dos seus cigarros H. Simmons, feitos de encomenda, e de-
sembrulhou cuidadosamente o pacote. Lá dentro encontrava-se uma
caixa grande, semelhante às feitas para jóias caras. Esta continha o selo
presidencial, gravado em relevo na tampa.
Lentamente, Bond soltou o fecho e levantou a tampa. Sobre um
fundo de seda especialmente moldado, via-se um revólver Police Positive
.38, revestido a prata. Gravadas, ao longo do cano, liam-se as palavras:
“Para James Bond. Por Serviços Especiais.” Seguia-se a assinatura e o títu-
lo do Presidente dos Estados Unidos da América.
Bond fechou a caixa e abriu o outro envelope. Continha um único
cartão, manuscrito com muito cuidado. Dizia: “Para James Bond: a dádiva
de uma filha — ou o que quiseres que ela seja.”
Estava assinado “Felix Leiter” e, enquanto Bond o lia, sabia que as
férias planeadas com Cedar iriam ser divertidas e com uma relação pura-
mente platônica.
Lá em cima, esperando por Bond, Cedar tinha outras idéias e am-
bos eram teimosos como mulas.
Dentro de um táxi e a caminho do aeroporto, Felix Leiter riu-se para
si próprio.

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POSFÁCIO

Em 1941 (Ian) Fleming acompanhou o almirante Godfrey aos Esta-


dos Unidos, com o objectivo de estabelecer relações com as organizações
de serviços secretos americanas. Em Nova Iorque, Fleming conheceu Sir
Williams Stephenson, “o canadiano calmo”, o qual viria a tornar-se seu
amigo para toda a vida. Stephenson deixou que Fleming participasse
numa operação clandestina, levada a cabo contra um perito em cifras ja-
ponês, que possuía um escritório no Rockefeller Center. Mais tarde, Fle-
ming romanceou esta história e utilizou-a na sua primeira aventura de
James Bond, Cassino Royale (1953). Stephenson apresentou ainda Fle-
ming ao general William Donovan, o qual acabara de ser nomeado coor-
denador de informações, um cargo que operava no âmbito da presidência
do Gabinete de Serviços Estratégicos e, na altura, da Agência Central de
Informações. A pedido de Donovan, Fleming redigiu um extenso memo-
rando, onde descrevia a estrutura e funções de uma organização de ser-
viços secretos. Este memorando veio a constituir, posteriormente, parte
da carta-patente do GSE e, consequentemente, da CIA. Como reconheci-
mento, Donovan ofereceu a Fleming um revólver Colt Police Positive .38
com a inscrição: “Por Serviços Especiais”.

Joan DelFattore
Universidade de Delaware

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