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osebodigital.blogspot.com
John Gardner

Missão no Gelo

Tradução de
Alfredo Barcellos

Editora Nova Fronteira

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Para

Peter Janson-Smith

com os meus agradecimentos

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NOTA DO AUTOR

Gostaria de agradecer aos que me prestaram uma ajuda valiosa no


preparo deste livro. Primeiro, a meus bons amigos Erik Carlsson e Simo
Lampinen, que me hospedaram no Círculo Ártico. A John Edwards, que
me sugeriu ir à Finlândia e tornou possível a viagem. A Ian Adcock, que
não perdeu o controle, e permaneceu calmo, quando o levei, durante
um passeio pelos campos no norte da Finlândia, no início de fevereiro de
1982, não apenas uma, mas três vezes sobre os montes de neve.
Entre os cavalheiros finlandeses, agradeço também ao diplomata
Bernhard Flander, que fez a mesma coisa comigo num lugar um pouco
mais embaraçoso — bem na fronteira entre a Finlândia e a Rússia. Ambos
agradecemos ao exército finlandês por nos tirar de lá.
Os agradecimentos não estariam completos sem a inclusão de Phi-
lip Hall, que me deu tanto apoio, durante todo o tempo.
1983
JOHN GARDNER

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Incidente em Trípoli
O complexo da Missão Militar-Comercial da República Popular So-
cialista da Líbia está cerca de 15 quilômetros a sudeste de Trípoli. Próximo
da costa, o Complexo encontra-se protegido de olhos curiosos, cercado
por fragrantes eucaliptos, ciprestes altos e pinheiros. Visto de cima, pode
ser facilmente considerado uma prisão. A área em formato de rim é de-
limitada por três cercas separadas, com seis metros de altura, cada uma
encimada por um metro de arame farpado e eletrificado. À noite, cachor-
ros vagueiam entre as cercas, enquanto patrulhas regulares, em carros
blindados Cascavel, circulam além do perímetro. Os prédios do conjunto
são essencialmente funcionais. Há alojamentos baixos, de madeira, para
as forças de segurança; duas estruturas mais confortáveis servem de ‘ho-
téis’ — uma para alojar qualquer delegação militar estrangeira, a outra
para seus correspondentes líbios.
Entre os ‘hotéis’, ergue-se um bloco imponente, de um só andar.
Suas paredes têm mais de um metro de espessura, a solidez é disfarçada
pelo acabamento de estuque rosa e uma fachada em forma de arco, que
lembra um claustro. Os degraus levam a uma porta principal, o interior é
cortado ao meio por um corredor. Escritórios administrativos e uma sala
de rádio estendem-se à esquerda e à direita desse corredor, que termi-
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na abruptamente numa porta dupla, alta e maciça, dando para uma sala
comprida e estreita, que contém apenas uma imensa mesa de reunião e
cadeiras, além de equipamentos para a exibição de filmes, videoteipes e
slides.
Não há janelas nesta sala, a mais importante do Complexo. O ar
condicionado mantém uma temperatura uniforme. A única outra entrada
é uma pequena porta de metal no fundo, para o acesso do pessoal de
faxina e da segurança.
O Complexo da Missão Militar-Comercial é usado cinco ou seis ve-
zes por ano e suas atividades são constantemente controladas — da me-
lhor forma possível — pelas agências de informações das democracias
ocidentais.
Na manhã do acontecimento havia, talvez, 140 pessoas trabalhan-
do no conjunto.
As pessoas nas capitais do Ocidente que se mantinham atentas às
ocorrências no Oriente Médio sabiam que se fechara um acordo. Embora
fosse mínima a probabilidade de um comunicado oficial, a Líbia eventu-
almente receberia mais mísseis, aviões e armamentos diversos, a fim de
aumentar seu arsenal já bem equipado.
A sessão final deveria começar às 9:15 h e ambas as partes ative-
ram-se rigorosamente ao protocolo. As delegações líbia e soviética, cada
uma formada por cerca de vinte pessoas, encontraram-se na frente do
prédio de estuque rosa. Depois das habituais saudações cordiais, todos
entraram, atravessaram o corredor até a porta dupla, que foi aberta, si-
lenciosamente, por dois guardas armados.
Cerca da metade das duas delegações já se adiantara pela sala
quando todo o grupo se imobilizou de repente, chocado pela cena com
que se defrontava.
Dez vultos vestidos de maneira idêntica formavam uma meia-lua na
outra extremidade da sala. Usavam túnicas de combate e calças cinzentas
de brim, ajustadas em botas de couro. A aparência tornava-se ainda mais
sinistra pela rede fina de camuflagem que lhes cobria o rosto, presa por
boinas pretas; cada uma delas ostentava um emblema prateado — uma
caveira sobre as letras N.S.A.A. —, rodeado por relâmpagos.
Era incrível, pois oficiais líbios haviam verificado a sala menos de 15
minutos antes das duas delegações chegarem à frente do prédio.
Os dez vultos assumiram a postura clássica de disparo — perna es-

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querda para a frente, joelho inclinado, a coronha da pistola ou rifle auto-
mático comprimida contra o quadril. Dez canos apontaram para os dele-
gados já na sala e para os que ainda se encontravam no corredor. Por dois
ou três segundos, a cena parecia estática. Depois, em meio a uma onda
de caos e pânico, os disparos começaram.
As dez armas automáticas sistematicamente despejaram uma chu-
va de balas pela porta, atravessando carne e osso, num alarido ampliado
pelo ambiente fechado.
A barreira de fogo durou menos de um minuto, mas quando cessou
todos os delegados soviéticos e líbios, à exceção de seis, estavam mortos
ou fatalmente feridos. Só então os soldados líbios e os agentes de segu-
rança entraram em ação.
O pelotão de extermínio era excepcionalmente disciplinado e bem
treinado. O tiroteio inicial, que se prolongou por cerca de 15 minutos,
liquidou apenas três invasores, enquanto permaneceram na sala. Os
outros escaparam pela porta de metal dos fundos, ocupando posições
defensivas dentro do conjunto. A batalha subseqüente matou mais vinte
pessoas. Ao final, todo o pelotão de dez homens morrera, os corpos ao
lado dos de suas vítimas, como peças de um estranho quebra-cabeça.
Às nove horas da manhã seguinte, hora de Greenwich, a Reuters
recebeu uma mensagem pelo telefone. Poucos minutos depois o texto foi
transmitido para os meios de comunicação do mundo inteiro.
A mensagem dizia:

Às primeiras horas desta madrugada três aviões leves, voando bai-


xo para fugir ao radar, desligaram os motores e planaram sobre o prote-
gido Complexo da Missão Militar-Comercial, nos arredores de Trípoli, a
capital da República Popular Socialista da Líbia.
Uma unidade do Serviço Ativo do Exército de Ação Nacional So-
cialista (National Socialist Action Army — N.S.A.A.) lançou-se de pára-
quedas, sem ser percebida, no perímetro do Complexo.
Mais tarde, neste mesmo dia, a unidade desfechou um golpe vi-
goroso contra o fascismo internacional, executando diversas pessoas por
disseminarem ainda mais a perniciosa ideologia comunista, que constitui
uma ameaça à paz e estabilidade do mundo.
É com orgulho que lamentamos a morte desta unidade do Serviço
Ativo enquanto realizava a sua nobre missão. A unidade pertencia à nossa

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Primeira Divisão, uma tropa de elite.
A represália contra a confraternização ou o comércio entre indiví-
duos ou países comunistas e não-comunistas será rápida. Vamos isolar o
bloco comunista do resto do mundo livre.
Este é o Comunicado Número Um do Alto Comando do N.S.A.A.

Na ocasião, não ocorreu a ninguém o fato particularmente sinistro


de que as armas usadas pelo grupo do N.S.A.A. fossem todas de fabri-
cação russa: seis metralhadoras leves Kalashnikov R.P.K. e quatro rifles
A.K.M., extremamente eficazes. Num mundo acostumado ao terrorismo,
o ataque foi apenas uma manchete entre muitas para os meios de comu-
nicação, que apresentava o N.S.A.A. como um pequeno grupo de fascistas
fanáticos.
Pouco menos de um mês depois do que passou a ser conhecido
como ‘incidente em Trípoli’, cinco membros do Partido Comunista Britâni-
co ofereceram um jantar a três visitantes do Partido Comunista da União
Soviética, que se encontravam em Londres numa missão amistosa.
O jantar se realizou numa casa não muito longe de Trafalgar Squa-
re. O café acabara de ser servido quando a campainha da porta da frente
tirou o anfitrião da mesa. Uma grande quantidade de vodca, trazida pelos
russos, fora consumida por todos os presentes.
Os quatro homens parados diante da porta da casa usavam unifor-
mes paramilitares, iguais aos do ‘incidente em Trípoli’.
O anfitrião, um membro proeminente e vociferante do Partido Co-
munista Britânico, foi morto ali mesmo na porta. Os outros quatro britâ-
nicos e três russos, liquidados em poucos segundos.
Os assassinos desapareceram e não foram presos.
As autópsias das oito vítimas revelaram que morreram de tiros dis-
parados por armas de fabricação russa — provavelmente pistolas auto-
máticas Makarov ou Stetchkin. A munição foi identificada como proce-
dente da União Soviética.
O Comunicado Número Dois do Alto Comando do N.S.A.A. foi
transmitido às nove horas de Greenwich da manhã seguinte. Desta vez, a
unidade do Serviço Ativo pertencia ao ‘Kommando Adolf Hitler’.
Nos doze meses subseqüentes, nada menos de trinta ‘incidentes’,
envolvendo assassinatos múltiplos, foram reivindicados pelo Alto Coman-
do do N.S.A.A. e se tornaram manchetes.

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Em Berlim Ocidental, Bonn, Paris, Washington, Roma, Nova Iorque,
Londres (pela segunda vez), Madri, Milão e diversas cidades do Oriente
Médio, morreram comunistas proeminentes, junto com pessoas empe-
nhadas em conversações oficiais ou simplesmente amigáveis com eles.
Entre os assassinados havia três notáveis líderes sindicais, da Inglaterra e
Estados Unidos.
Alguns membros dos pelotões de extermínio também perderam a
vida, mas não houve prisioneiros da organização. Em quatro ocasiões ho-
mens do N.S.A.A. se suicidaram para escapar à captura.
Todos os assassinatos foram executados com rapidez e cuidadoso
planejamento, revelando um alto nível de precisão militar. Depois de cada
incidente era emitido o inevitável Comunicado do Alto Comando, em lin-
guagem bombástica, comum a todas as ideologias. Cada comunicado ofe-
recia detalhes sobre a suposta unidade do Serviço Ativo envolvida. No-
mes antigos, como Primeiro Kommando Eichmann e Divisão SS Heinrich
Himmler, reavivaram terríveis recordações do infame Terceiro Reich. Para
os serviços policiais e de segurança do mundo essa era a única constante,
a única pista. Nada se descobriu através dos cadáveres dos homens e mu-
lheres do N.S.A.A. Era como se surgissem de repente, plenamente cres-
cidos, nascidos no N.S.A.A. Legistas se esforçaram em oferecer pequenas
indicações; agências de segurança investigaram essas pistas; serviços de
pessoas desaparecidas também entraram em ação. Mas tudo terminava
num beco-sem-saída.
Houve um jornal que parecia ser um cartaz de algum filme dos anos
40:

Eles surgiram do nada, mataram, morreram ou desaparece-


ram... retornando a seus covis. Esses partidários da sinistra Era Na-
zista voltaram de suas covas para se vingarem de seus vencedores?
Até o momento, grande parte do terrorismo urbano foi motivada
por ideais esquerdistas. O eficiente N.SA.A. acrescenta uma dimen-
são nova e ainda mais inquietante.

Contudo, nas sombras desse mundo oculto e secreto das comuni-


dades de informações e segurança, havia pessoas que começavam a se
agitar apreensivamente, como se despertassem de pesadelos para desco-
brir os sonhos convertidos em realidade. Começou com um intercâmbio

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de opiniões e depois, cautelosamente, de informações. E finalmente tudo
se encaminhou para uma aliança estranha e sem precedentes.

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Uma Atração por Louras


Muito antes de ingressar no Serviço, James Bond usara um siste-
ma mnemônico particular para guardar números de telefone. Dispunha
agora dos números de mil ou mais pessoas-arquivos, que podiam ser re-
cordados instantaneamente no computador de sua memória. A maioria
dos números relacionava-se com o trabalho e, portanto, era melhor não
escrevê-los.
Paula Vacker nada tinha a ver com o trabalho. Paula era rigorosa-
mente diversão e prazer.
Em seu quarto no Hotel Intercontinental, na extremidade norte da
Mannerheimintie, a larga artéria de Helsinki, Bond discou o número do
telefone. Tocou duas vezes e depois uma mulher atendeu, falando em
finlandês. Bond disse, num inglês respeitoso:
— Paula Vacker, por favor.
A telefonista finlandesa passou a falar com a maior naturalidade na
língua de Bond:
— A quem devo anunciar?
— Meu nome é Bond. . . James Bond.
— Um momento, por favor, Mr. Bond. Vou verificar se Miss Vacker
pode atender.
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Silêncio. Depois um estalido e a voz que ele conhecia tão bem:
— James? Onde você está, James?
O sotaque era apenas ligeiramente afetado pelo tom cadenciado,
comum aos escandinavos.
Bond respondeu que estava no Intercontinental.
— Aqui? Aqui em Helsinski?
Ela não se deu ao trabalho de disfarçar sua satisfação.
— Isso mesmo, aqui em Helsinski. A menos que a Finnair se tenha
enganado.
— A Finnair é como os pombos-correios — comentou Paula, soltan-
do uma risada. — Quase nunca se engana. Mas é uma surpresa e tanto.
Por que não me avisou que viria?
— Eu próprio não sabia — mentiu Bond. — Uma súbita mudança
nos planos.
Isso pelo menos era verdade. Uma pausa e ele acrescentou:
— Como eu tinha de passar por Helsinki de qualquer maneira, achei
que não podia deixar de fazer uma parada. Uma espécie de capricho.
— Capricho?
— Isso mesmo. Como poderia passar por Helsinki sem ver Paula, a
Bela?
Ela riu. . . uma risada autêntica. Bond imaginou-a, a cabeça inclina-
da para trás, a boca aberta, deixando à mostra os dentes maravilhosos e
a delicada língua rosa. O nome de Paula Vacker indicava as suas ligações
suecas. Uma tradução literal do sueco a transformava em Paula, a Bela. E
o nome era perfeitamente apropriado.
— Está livre esta noite?
Seria uma noite insípida se ela não estivesse disponível. Paula tor-
nou a soltar a sua risada especial, transbordando de humor e sem a estri-
dência de algumas mulheres profissionais.
— Para você, James, estou sempre livre. Mas nunca fácil.
Era uma piada antiga, feita inicialmente pelo próprio Bond.
Na ocasião, mais do que adequada.
Era primavera quando aconteceu, o tipo de primavera londrina que
faz as moças dos escritórios darem a impressão de que gostam de ir para
o trabalho, quando os parques se transformam em tapetes amarelos de
narcisos.
Os dias começavam a se alongar e havia uma festa do Foreign Offi-

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ce, a fim de lubrificar as engrenagens do comércio internacional. Bond
estava ali a trabalho — com a missão de observar rostos. Houve uma dis-
córdia por isso, pois a segurança interna era uma atribuição do M.I.5, não
do Serviço de Bond. Contudo, o Foreign Office, sob cujos auspícios a festa
se realizava, impusera a sua vontade. Relutantemente, ‘Cinco’ concordou,
sob a condição de que também estivessem dois agentes seus.
Do ponto de vista profissional, a festa foi um fracasso. Paula, no
entanto, era outro assunto.
Bond não teve dificuldade em descobri-la no outro lado da sala
apinhada: era impossível deixar de percebê-la. Era como se nenhuma
outra mulher tivesse sido convidada. . . e as outras não gostaram nada,
especialmente as mais velhas e as femmes fatales do Foreign Service, que
sempre freqüentavam essas festas.
Paula estava de branco. Tinha um bronzeado que dispensava a aju-
da de cremes ou loções, uma pele que, se existissem iguais, levaria as
firmas de maquilagem à falência, cabelos louros tão abundantes e lisos,
tão pesados, que davam a impressão de que não sairiam do lugar mesmo
sob um forte vendaval. E como se tudo isso ainda não bastasse, era es-
belta, sensual, com grandes olhos castanhos e lábios moldados para uma
só finalidade.
Os primeiros pensamentos de Bond foram exclusivamente profis-
sionais. Ela daria um ótimo pega-moscas, concluiu ele, sabendo que na
Finlândia isso era difícil de se conseguir. Permaneceu a distância por um
longo tempo, certificando-se de que ela não estava acompanhada. E de-
pois se apresentou, dizendo que o ministro lhe pedira que cuidasse dela.
Dois anos depois, em Roma, Paula revelou que o próprio ministro tentara
conquistá-la no início da noite. . . antes da chegada da senhora ministro.
Ela estava em Londres por uma semana. Naquela primeira noite,
Bond a levou para jantar no Ritz, que Paula achou ‘exótico’. Chegando ao
seu hotel, ela lhe deu um fora. . . gentilmente, mas com firmeza.
Bond apertou o cerco. Primeiro, tentou impressioná-la, mas ela não
gostou do Connaught, Inn, Tiberio’s, Dorchester, Savoy ou o Royal Garden
Roof; o chá no Brown’s só lhe arrancou o comentário de ‘divertido’. Ele
estava prestes a levá-la pelo circuito do Tramp’s e do Annabel’s quando
Paula descobriu sozinha o Au Savarin, na Charlotte Street. Era ‘dela’ e o
patron vinha sentar-se à mesa, ao final das refeições, e trocavam histórias
picantes. Bond não tinha certeza quanto a isso.

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Tornaram-se amigos rapidamente, descobrindo interesses comuns
— velejar, jazz, as obras de Eric Ambler. Houve também outro esporte, fi-
nalmente consumido na quarta noite. Bond, conhecido por seus padrões
exigentes, admitiu que ela merecia a medalha de ouro. Por sua vez, ela
lhe concedeu uma medalha de prata. Mas isso também era algo sobre o
que ele não tinha certeza.
Continuaram bons amigos ao longo dos anos, como primos que se
beijavam. . . para pôr em termos brandos. Encontraram-se muitas vezes
por acaso, em lugares tão insólitos como Nova Iorque e o porto francês
de Dieppe, onde ele a vira pela última vez, no outono passado. Naquela
noite, em Helsinki, Bond teria a primeira oportunidade de ver Paula em
seu próprio território.
— Jantar? — perguntou ele.
— Se eu puder escolher o restaurante.
— Não escolhe sempre?
— Quer vir me buscar?
— Isso e outras coisas.
— No meu apartamento. Seis e meia? Tem o endereço?
— Gravado no meu coração, Paula.
— Você diz isso a todas as mulheres.
— A quase todas. . . mas sou sincero. E tenho uma atração especial
pelas louras.
— Você é um traidor, hospedando-se no Intercontinental. Por que
não se torna finlandês e vai para o Hesperia?
— Porque lá os botões dos elevadores dão choques elétricos.
— Isso também acontece no Intercontinental. É um problema do
frio e do aquecimento central. . .
— . . . e dos tapetes. Sei disso. Mas estes são choques mais dispen-
diosos e não estou pagando. Aqui, eu mesmo posso carregar a bateria e
também levar luxuosos choques elétricos.
— Tome cuidado com tudo o que tocar. Qualquer metal dá choques
no interior dos prédios nesta época do ano. Tome um cuidado especial no
banheiro, James.
— Usarei sapatos de solas de borracha.
— Não era nos seus pés que eu estava pensando. Fico feliz por seu
capricho, James. Vejo-o às seis e meia.
Ela desligou antes que Bond pudesse dar uma resposta. Lá fora, a

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temperatura girava em torno dos 25° C abaixo de zero. Bond esticou os
músculos e depois relaxou, pegando a cigarreira na mesinha de cabeceira
e acendendo um cigarro — um dos ‘especiais’, produzidos para ele, num
acerto com H. Simmons, de Burlington Arcade.
O quarto estava bem aquecido e ele experimentava uma satisfação
intensa ao soprar uma lufada de fumaça para o teto. A missão certamente
tinha suas compensações. Naquela manhã Bond se livrara de temperatu-
ras de 40° C abaixo de zero, pois o verdadeiro motivo de sua presença em
Helsinki se relacionava a uma recente viagem ao Círculo Ártico.
Janeiro não é a época mais agradável do ano para se visitar o Árti-
co. Mas quando se quer fazer algum treinamento de sobrevivência de na-
tureza clandestina, nas mais rigorosas condições de inverno, o território
finlandês do Círculo Ártico é tão bom quanto qualquer outro.
O Serviço acreditava em manter seus agentes no auge da forma e
treinados em todas as técnicas modernas. Era esse o motivo para o de-
saparecimento de Bond, pelo menos uma vez por ano, a fim de trabalhar
com o Regimento 22 do Serviço Aéreo Especial, o SAS, perto de Hereford.
Era também a explicação para as suas viagens ocasionais a Poole, em Dor-
set, com o objetivo de se atualizar nos equipamentos e táticas do Esqua-
drão Especial de Botes dos Fuzileiros Reais.
Apesar de a antiga seção de elite Duplo-0, com sua ‘licença para
matar no cumprimento do dever’, estar agora desativada, Bond desempe-
nhava muitas vezes o papel de 007. O ríspido chefe do Serviço, conhecido
de todos como M, fora bastante explícito quanto a isso:
— No que me diz respeito, você continuará a ser 007. Assumirei
total responsabilidade por você e, como sempre, continuará a aceitar
apenas as ordens e missões dadas pessoalmente por mim. Há momentos
em que este país precisa de alguém para resolver impasses de qualquer
maneira, um autêntico instrumento cego. . . e juro que vai ter isso.
Em termos mais oficiais, Bond era o que o Serviço americano cha-
mava de ‘carta seca’, um agente autônomo com plena liberdade para
realizar missões especiais, como a efetuada durante o conflito das Ilhas
Falkland, em 1982. Chegara a aparecer, sem ser identificado, num noticiá­
rio de televisão, mas isso passara, como todas as coisas.
Para manter Bond no mais alto nível de eficiência, M geralmente
providenciava pelo menos um extenuante exercício de campo por ano.
Desta vez era um trabalho num clima mais frio e as ordens foram apre-

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sentadas subitamente, deixando a Bond pouco tempo para se preparar, a
fim de enfrentar a provação.
Durante o inverno, alguns membros de unidades do SAS realizavam
um treinamento regular na neve da Noruega. Naquele ano, como um ris-
co adicional, M providenciara para que Bond embarcasse num exercício
de treinamento no Círculo Ártico, sob disfarce, sem o pedido de permis-
são e o consentimento do país em que iria operar, a Finlândia.
A operação, que não tinha implicações sinistras ou sequer ameaça-
doras, previa uma semana de exercícios de sobrevivência, na companhia
de uma dupla do SAS e de dois oficiais do SBS.
Esses militares teriam ainda mais dificuldades do que Bond, pois
precisariam efetuar duas travessias de fronteira clandestinas — da No-
ruega para a Suécia e depois, ainda secretamente, através da fronteira
finlandesa, indo ao encontro de Bond na Lapônia.
Ali, por sete dias, o grupo “viveria do cinto”, como se dizia, sobrevi-
vendo com as necessidades mínimas que levavam em cintos especiais. A
missão era de sobrevivência em condições inóspitas, enquanto permane-
ciam sem serem vistos ou identificados.
A essa semana seriam acrescentados mais quatro dias, nos quais,
tendo Bond como líder, haveria uma incursão fotográfica e de captação
de sons ao longo da fronteira finlandesa com a União Soviética. Depois
disso, o grupo se separaria — os militares recolhidos por um helicóptero
numa área remota, e Bond seguindo por outro curso.
Não havia qualquer dificuldade à cobertura de Bond na Finlândia.
Ele ainda precisava testar o seu Saab Turbo — a Fera Prateada, como o
chamavam — nas condições inclementes de inverno.
A Saab-Scania promovia, todos os anos, uma rigorosa Corrida de In-
verno no Círculo Ártico, próxima à estação de esquis finlandesa de Rova-
niemi. Foi fácil conseguir um convite para participar da corrida: bastaram
dois telefonemas. Em menos de 24 horas, o carro de Bond — com todos
os ‘extras’ secretos, acrescentados a expensas da Communications Con-
trol Systems — fora embarcado para a Finlândia. Bond seguiu de avião
para Rovaniemi, através de Helsinki, a fim de se encontrar com alguns
peritos, como seu velho amigo Erik Carlsson e o esperto Simo Lampinen.
A corrida se prolongou por uns poucos dias. Depois de pedir ao
gigantesco Erik Carlsson que cuidasse da Fera Prateada, Bond deixou o
hotel próximo a Rovaniemi às primeiras horas de uma madrugada extre-

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mamente fria.
Os trajes de inverno, ele pensou, não contribuiriam em nada para
melhorar sua imagem junto às mulheres na Inglaterra. A roupa de bai-
xo térmica não é muito propícia para determinadas atividades. Por cima,
usava um macacão esportivo, uma suéter grossa de gola rulê, uma calça
de esquiar acolchoada e um blusão, além das botas Mukluk. O capuz tér-
mico, o cachecol, o gorro de lã e os óculos de proteção resguardavam
sua cabeça. Luvas térmicas Damart, dentro de luvas comuns de couro,
protegiam-lhe as mãos. Um pequeno pacote continha as coisas de que
precisaria, inclusive a sua própria versão do cinto militar especial.
Bond avançou através da neve, que chegava aos joelhos nos trechos
mais fáceis, tomando cuidado para não se afastar da trilha que definira
anteriormente. Um movimento errado à esquerda ou à direita poderia
lançá-lo nos amontoados de neve, profundos o suficiente para cobrirem
um carro pequeno.
A motoneta para a neve se encontrava exatamente no lugar indica-
do pelos instrutores. Ninguém faria perguntas sobre a maneira como lá
chegara. As motonetas para neve são máquinas difíceis de se manipular
com o motor desligado. Bond levou cerca de dez minutos para tirar aque-
la de seu esconderijo, sob rígidos galhos de pinheiros. Ele a empurrou
até o topo de uma encosta, que se estendia por quase um quilômetro.
Um empurrão e a máquina se deslocou para a frente, dando o tempo
suficiente para Bond saltar sobre o selim e enfiar as pernas nos anteparos
protetores.
Silenciosamente, a motoneta deslizou pela longa encosta, parando
quando o peso e o impulso cessaram. Embora o som se propagasse facil-
mente através da neve, ele já estava bastante longe do hotel para ligar o
motor com toda a segurança — depois de se orientar pela bússola e con-
ferir o mapa com uma pequena lanterna. O motor entrou em funciona-
mento. Bond passou a mudança e iniciou a jornada. Levara 24 horas para
se encontrar com os companheiros da missão de treinamento.
Rovaniemi fora uma escolha ideal. Era possível deslocar-se rapida-
mente de lá para as áreas mais desoladas do norte. Ficava também a duas
ou três horas de viagem, numa motoneta, dos pontos mais acessíveis da
fronteira fino-russa; e estava próximo de locais como Salla, o cenário da
grande batalha entre russos e finlandeses em 1939-40. Ao norte, a zona
de fronteira tornava-se mais inóspita.

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Durante o verão, aquela parte do Círculo Ártico não chega a ser de-
sagradável; no inverno, porém, quando predominavam as nevascas, con-
dições de congelamento total e neve pesada, a região pode ser traiçoeira
e fatal para os imprudentes.
Quando tudo terminou, concluídos os exercícios com os homens
do SAS e do SBS, Bond esperava estar exausto, precisando de repouso,
sono e relaxamento, como só poderia encontrar em Londres. E duran-
te os piores momentos do treino, seus pensamentos invariavelmente se
voltavam para o conforto de seu apartamento em Chelsea. Assim, ficou
surpreso ao descobrir, duas semanas depois, quando voltou a Rovaniemi,
que o corpo transbordava de uma energia e de um vigor que há muito
tempo não experimentava.
Chegou de madrugada e dormiu no Ounasvaara Polar Hotel, onde a
Saab mantinha a sua sede de testes de inverno. Depois, deixou um recado
para Erik Carlsson, dizendo que enviaria instruções sobre a Fera Prate-
ada, que pegara uma carona até o aeroporto e embarcara no primeiro
vôo para Helsinki. Até então, seu plano era fazer uma conexão direta para
Londres.
Só quando o DC9-50 se aproximou do aeroporto Vantaa, em Hel-
sinki, por volta de 12:30 h, James Bond pensou em Paula Vacker. O pensa-
mento foi crescendo, certamente estimulado pela sensação recém-desco-
berta de bem-estar e vigor físico.
Quando o avião pousou, os planos de Bond já estavam completa-
mente mudados. Não havia um dia fixado para o seu retorno a Londres.
Além disso, tinha uma licença atrasada, embora M o tivesse instruído a
voltar assim que pudesse escapar da Finlândia. Ninguém sentiria a sua
ausência durante dois ou três dias.
Pegou um táxi no aeroporto e seguiu- diretamente para o Intercon-
tinental, onde se hospedou. E assim que chegou ao quarto, jogou-se na
cama e telefonou para Paula. Seis e meia no apartamento dela. Ele sorriu,
na expectativa.
Não havia a menor possibilidade de Bond imaginar que o simples
ato de ligar para uma antiga namorada e convidá-la para jantar mudaria
tão radicalmente sua vida durante as semanas seguintes.

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3

Facas ao jantar
Depois de tomar um banho de chuveiro quente e fazer a barba,
Bond vestiu-se cuidadosamente. Era agradável tornar a pôr um terno
cinza de gabardina bem cortado, uma camisa azul Coles, uma das suas
prediletas gravatas de tricô Jacques Fath. Mesmo no rigor do inverno, os
hotéis e bons restaurantes de Helsinki preferiam que os homens se apre-
sentassem de gravata.
A Heckler & Koch P7, que substituía a VP70, mais pesada, estava
confortavelmente no coldre de mola sob a axila esquerda. A fim de se
livrar do frio intenso, Bond desceu para o saguão do hotel com o seu
Crombie British Warm. O capote dava-lhe uma aparência militar — espe-
cialmente com o capuz de pele —; o que sempre era vantajoso nos países
escandinavos.
O táxi seguiu para o sul, descendo a Mannerheimintie. A neve já
fora removida das ruas principais, as árvores vergavam ao seu peso, al-
gumas enfeitadas — como se fosse Natal — por pingentes de gelo nos
galhos. Próximo ao Museu Nacional, com sua torre apontando para o céu,
uma árvore parecia se agachar como um monge encapuçado segurando
uma adaga reluzente.
Por cima de tudo, através do ar gelado, Bond podia divisar os do-
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mos iluminados da Catedral Upensky — a Grande Igreja. Compreendeu
por que os cineastas usavam Helsinki quando desejavam filmar uma cena
supostamente passada em Moscou.
As duas cidades são tão diferentes entre si quanto o deserto e a
selva. Os prédios modernos da capital finlandesa foram projetados e exe-
cutados com talento e beleza, em contraste com os horrendos monstros
clonados de Moscou. Porém, nos bairros mais antigos de ambas as cida-
des, a imagem de espelho se torna fantástica — nas ruas transversais e
pequenas praças, onde as casas se apoiam umas nas outras, as fachadas
ornadas lembram o que Moscou já foi, nos bons e maus tempos de an-
tigamente, na época dos czares, dos príncipes e da desigualdade. Agora,
refletiu Bond, eles tinham simplesmente o Politburo, os comissários, a
KGB — e a desigualdade.
Paula morava num prédio de apartamentos de frente para o Par-
que da Esplanada, na extremidade sudeste da Mannerheimintie. Era uma
parte da cidade que Bond nunca visitara antes e por isso o trajeto foi uma
mistura de surpresa e prazer.
O parque é um longo jardim, estendendo-se entre as casas. Havia
indícios de que no verão seria um lugar idílico, com árvores frondosas,
flores multicoloridas e trilhas para os namorados. Agora, em pleno inver-
no, o Parque da Esplanada assumia uma nova e original função. Artistas
das mais variadas idades e talentos transformaram o lugar numa galeria
ao ar livre de esculturas de neve. Formas e figuras, criadas com amor no
início do inverno, erguiam-se em meio à neve recente dos últimos dias.
Eram massas abstratas, peças tão delicadas que até se imaginava que só
podiam ser esculpidas em madeira ou pacientemente trabalhadas em
metal. Havia uma certa agressividade ao lado das curvas contemplativas
de paz, onde alguns animais, de forma naturalística ou apenas sugeridos
em blocos angulosos, se enfrentavam ou expunham as bocas vazias do
inverno para os transeuntes apressados, encolhidos pelo frio.
O táxi parou quase em frente a uma obra em tamanho natural,
mostrando um homem e uma mulher enlaçados, num abraço do qual só
poderiam separar-se com o calor da primavera.
Em torno do parque, os prédios eram essencialmente antigos, com
uns poucos edifícios modernos que pareciam novos estados-tampões co-
brindo os hiatos da história viva.
Sem qualquer motivo lógico, Bond imaginara que Paula residia num

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prédio novo e espetacular. Em vez disso, descobriu que vivia numa casa
de quatro andares, com as janelas fechadas e uma recente pintura verde,
enfeitada por flores de neve que pendiam como jardineiras; havia linhas
congeladas pelos arabescos e calhas, como se os vândalos de dezembro
tingissem de branco as partes mais vulneráveis da fachada.
Duas curvas empenas de madeira dividiam a casa, que só possuía
uma entrada: uma porta de vidro destrancada. Logo depois da porta, uma
fileira de caixas de correspondência indicava quem morava onde, em car-
tões individuais dentro de pequenas molduras. O vestíbulo e a escada não
tinham carpete, o cheiro agradável de cera misturava-se agora às fragrân-
cias apetitosas das cozinhas.
Paula morava no terceiro andar — 3A — e Bond, desabotoando o
capote, começou a subir. Notou que havia duas portas em cada patamar,
à esquerda e à direita, sólidas e bem construídas, com botões de cam-
painha e cópias dos cartões emoldurados nas caixas de correspondência.
No terceiro patamar, viu o nome de Paula Vacker elegantemente
gravado num cartão de visita, sob a campainha do 3A.” Por simples curio-
sidade, Bond olhou para a porta do 3B. Seu ocupante era um certo ma-
jor A. Nyblin. Imaginou um militar reformado, hibernando entre quadros
marciais, livros sobre estratégia e romances de guerra — talvez a maior
preocupação das editoras finlandesas — para manter vivas as memórias
das três guerras de independência que a nação travara contra a Rússia:
primeiro contra a Revolução, depois contra a invasão, e finalmente lado a
lado com a Wehrmacht.
Bond apertou a campainha de Paula com força e por bastante tem-
po, depois recuou para ser devidamente observado pelo olho mágico.
Soou o chocalhar de uma corrente e em seguida a porta se abriu — lá es-
tava ela, usando uma longa túnica de seda, com uma faixa sobre a cintura.
A mesma Paula de sempre, convidativa e atraente.
Bond viu os lábios dela se mexerem, como se tentasse pronunciar
as palavras de boas-vindas. No instante seguinte compreendeu que não
era a mesma Paula. As faces estavam pálidas, uma das mãos tremia, segu-
rando a porta. E no fundo dos olhos havia o brilho inconfundível do medo.
A intuição, como ensinam no treinamento do Serviço, é uma coisa
que se aprende através da experiência: não se nasce com ela, como se
fosse um sentido extra.
— Sou apenas eu, chegando do além-mar — disse Bond, em voz

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alta, ao mesmo tempo em que esticava um pé para a frente, o lado do
sapato contra a porta. — Contente por eu ter chegado?
Enquanto falava, Bond agarrou Paula pelo ombro com a mão es-
querda, virando-a e puxando-a para o patamar. Sua mão direita já pegara
a automática. Em menos de três segundos, Paula estava encostada na
parede, junto à porta do major Nyblin, enquanto Bond entrava de lado no
apartamento, a Heckler & Koch pronta para entrar em ação.
Havia dois homens. O nanico, de rosto bexiguento, estava à esquer-
da de Bond, encostado na parede, de onde apontava um revólver que
parecia um Charter Arms Undercover 38. No outro lado da sala — não
existia vestíbulo — um grandalhão, de mãos imensas, a cara de um pu-
gilista fracassado, estava parado junto a um lindo conjunto cromado de
sofá e poltrona, estofado em couro. Suas feições características incluíam
um nariz que parecia uma espinha enorme e inflamada. Não empunhava
qualquer arma.
O revólver do nanico levantou-se à esquerda de Bond e o granda-
lhão começou a se adiantar. Bond cuidou primeiro da arma. A Heckler &
Koch pareceu deslocar-se apenas uma fração na mão de Bond, ao baixar
com toda força no punho do nanico. O revólver foi arremessado para lon-
ge, um grito de dor se sobrepôs ao barulho de osso fraturado.
Mantendo a Heckler & Koch apontada para o homem maior, Bond
usou o braço esquerdo para virar o nanico e colocá-lo à sua frente, como
um escudo. Ao mesmo tempo, levantou o joelho violentamente. O pe-
queno pistoleiro se encolheu, e com a mão boa tentou em vão proteger a
virilha. Ele ganiu como um porco e, contorcendo-se, caiu aos pés de Bond.
O maior parecia não se impressionar com a automática, o que indi-
cava grande coragem ou deficiência mental. Àquela distância, uma Heck-
ler & Koch pode destruir boa parte de um ser humano.
Bond passou por cima do corpo do nanico, dando um golpe para
trás com o calcanhar direito. Levantando a automática, os braços estendi-
dos, gritou para o oponente que avançava:
— Pare ou vai morrer!
Era mais uma ordem do que um aviso, pois o dedo de Bond já com-
primia o gatilho. O homem de nariz pustulento não obedeceu. Em vez dis-
so, sugeriu num péssimo russo que Bond cometesse incesto com a mãe.
Bond mal percebeu quando ele se desviou. O homem era melhor
do que imaginara e muito rápido. Quando ele se virou, Bond deslocou-se

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para acompanhá-lo com a automática. E foi só nesse instante que sentiu
a dor intensa e anormal no ombro direito.
Por um segundo, a pontada de agonia fez Bond perder o controle.
Seus braços baixaram, enquanto o pé do inimigo levantou. Bond com-
preendeu que não se pode acertar em relação às pessoas durante todo o
tempo. Era a coisa autêntica, um espetáculo ao vivo: um assassino treina-
do, certeiro e experiente.
Além dessa descoberta, Bond teve consciência de três coisas que
ocorreram simultaneamente: a dor em seu ombro; a arma sendo chutada
de sua mão, voando e batendo na parede; e, por trás dele, o gemido do
nanico, diminuindo de intensidade enquanto fugia, descendo a escada.
Nariz-de-espinha se aproximava rapidamente, um ombro abaixado,
o corpo de lado.
Bond deu um passo rápido para trás e à direita, contra a parede.
Ao se deslocar, percebeu o que lhe causara a dor no ombro. Na verga da
porta estava cravada uma faca de 25 centímetros, com a lâmina descre-
vendo uma curva na direção da ponta. Era uma faca de esfolar, do tipo
usado com grande eficiência pelos lapões para retirar a pele da carcaça
das renas.
Subindo abruptamente, os dedos de Bond fecharam-se em torno
do cabo. O ombro estava agora entorpecido pela dor. Deslocou-se rapida-
mente para um lado, a faca bem firme na mão direita, a lâmina para cima,
polegar e indicador à frente do cabo, na posição de ataque. Sempre use a
posição de golpear, haviam-lhe ensinado, jamais empunhe uma faca com
o polegar para trás. Nunca se defenda com uma faca; ataque sempre.
Bond virou-se na direção de Nariz-de-espinha, com os joelhos ligei-
ramente dobrados e um pé à frente para ter maior equilíbrio, na postura
clássica do combate com faca.
Nariz-de-espinha conhecia as regras, mas isso não deteve a sua in-
vestida. Bond imaginou que se tratava de um atirador de facas que pou-
co conhecia de armas de fogo. Tinha certamente outras facas, pois havia
agora mais uma em sua mão direita. Um prestidigitador.
— O que disse sobre minha mãe? — resmungou Bond, num russo
melhor que o de seu adversário.
Nariz-de-espinha sorriu, mostrando os dentes manchados.
— Agora vamos ver quem é bom, Mr. Bond. Moveram-se em círcu-
lo; Bond chutou para longe um banquinho, ampliando com isso a arena

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para o combate. Nariz-de-espinha começou a jogar sua faca de uma mão
para outra, muito ágil com os pés, movendo-se o tempo todo, reduzin-
do o círculo. Era uma tática bem conhecida para confundir o oponente:
mantenha-o sempre em dúvida e o atraia para mais perto, atacando em
seguida.
Venha, pensou Bond, venha, chegue mais perto, venha para mim.
Era justamente o que Nariz-de-espinha fazia, alheio ao perigo de terminar
a espiral próximo demais. Bond manteve os olhos fixos nos do homem,
os sentidos totalmente sintonizados na faca inimiga a faiscar, pulando de
uma mão para outra, o cabo batendo na palma com um baque firme a
cada troca.
O fim chegou abrupta e rapidamente.
Nariz-de-espinha aproximou-se de Bond, continuando a jogar a faca
de uma mão para outra. Bond adiantou-se bruscamente, a perna direita
projetou-se num golpe simulado, o pé entre as pernas do antagonista. Ao
mesmo tempo, Bond passou a faca da mão direita para a esquerda. Fingiu
que devolvia a faca à mão direita, como o adversário esperava.
Era aquele o momento. Bond percebeu os olhos do grandalhão se
deslocarem ligeiramente na direção em que a faca deveria estar. Nariz-de-
espinha ficou indeciso por uma fração de segundo. A mão esquerda de
Bond ergueu-se quatro ou cinco centímetros, faiscou para a frente e para
baixo. Houve um retinir de aço contra aço.
Nariz-de-espinha estava no ato de jogar a faca de uma mão para
outra. A lâmina de Bond acertou a outra em pleno ar, jogando-a no chão.
Num reflexo automático, o grandalhão se abaixou, estendendo a mão
para a faca. A faca de Bond subiu.
O grandalhão empertigou-se no mesmo instante, soltando um gru-
nhido. Levou a mão ao rosto, no qual a faca de Bond abrira um horrendo
desfiladeiro vermelho, da orelha ao queixo. A mão de Bond tornou a su-
bir, rapidamente, a faca cortando a mão protetora. Desta vez, Nariz-de-
espinha soltou um rugido de dor e raiva.
Bond não queria matar. . . não na Finlândia, não naquelas circuns-
tâncias. Mas não podia deixar aquilo assim. Os olhos do grandalhão arre-
galaram-se de medo e incredulidade quando Bond tornou a atacar. A faca
subiu de novo, mais duas vezes, deixando um talho irregular na face do
outro, removendo um lóbulo da orelha.
Nariz-de-espinha não queria saber de mais nada. Cambaleou para

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um lado e se encaminhou para a porta, a respiração ofegante. Bond con-
cluiu que o homem possuía mais inteligência do que julgara inicialmente.
A dor voltou ao ombro de Bond, trazendo agora uma sensação de
vertigem. Não tinha a menor intenção de seguir o provável agressor, cujos
passos pesados podiam ser ouvidos na escada de madeira.
— James? — Paula voltara à sala. — O que devo fazer? Chamar a
polícia ou. . . ?
Parecia apavorada, o rosto muito pálido. Bond pensou que prova-
velmente ele também não parecia um amante ansioso.
— Não, Paula. Nada de polícia aqui. — Ele arriou na cadeira mais
próxima. — Feche a porta e passe a corrente. Depois dê uma olhada pela
janela.
Tudo parecia rodar em torno dele. Uma surpresa, pensou Bond va-
gamente, Paula fez o que mandei. Geralmente ela argumentava. Não se
dá ordens a mulheres como Paula.
— Vê alguma coisa?
A impressão de Bond era de que sua própria voz soava muito dis-
tante.
— Há um carro partindo. Carros estacionados. Não vejo qualquer
pessoa. . .
A sala pareceu girar, depois voltou ao foco normal.
— . . . James, seu ombro.
Bond podia sentir o cheiro dela ao seu lado.
— Conte o que aconteceu, Paula. É importante. Como eles entra-
ram? O que fizeram?
— Seu ombro, James.
Ele olhou para o ombro. O tecido grosso do capote o salvara de um
ferimento mais grave. Mesmo assim, a faca atingira a carne e o sangue
agora escorria, formando uma mancha escura e úmida no capote.
— Conte o que aconteceu — repetiu Bond.
— Você está ferido. Tenho que dar uma olhada. Chegaram a um
acordo e Bond despiu-se até a cintura. Um talho feio corria diagonalmen-
te pelo ombro, a faca cortara a carne por mais de um centímetro de pro-
fundidade. Usando desinfetante, água quente, gaze e esparadrapo, Paula
limpou o ferimento e fez um curativo, enquanto contava a história. Pare-
cia calma, mas Bond notou que suas mãos tremiam ligeiramente. Os dois
assassinos haviam chegado dois ou três minutos antes de Bond tocar a

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campainha.
— Eu estava um pouco atrasada. — Ela fez um gesto vago, indican-
do o chambre de seda. — A corrente não estava passada e imaginei que
fosse você. Nem mesmo espiei pelo olho mágico.
Os intrusos forçaram a entrada, empurrando-a para trás no instan-
te em que abrira a porta, dizendo-lhe o que fazer. E também descreveram
em detalhes o que fariam com ela se não obedecesse.
Bond concluiu que, nessas circunstâncias, Paula fizera a única coisa
possível. Em seu próprio caso, no entanto, havia questões que só pode-
riam ser respondidas através dos canais do Serviço. Isso significava que
deveria voltar a Londres, por maior que fosse a sua vontade de perma-
necer na Finlândia. O próprio fato de os dois homens entrarem no apar-
tamento de Paula poucos minutos antes de sua chegada indicava que
provavelmente esperavam que seu táxi parasse no Parque da Esplanada.
— Obrigado pelo aviso que me deu na porta — murmurou Bond,
acomodando da melhor forma possível o ombro já enfaixado.
Paula sorriu.
— Não pensei em avisá-lo. Estava simplesmente apavorada.
— Você apenas agiu como se estivesse apavorada. — Bond sorriu-
lhe. — Sei distinguir quando as pessoas estão apavoradas de verdade.
Ela se inclinou, beijou-o, depois franziu o rosto.
— Ainda estou apavorada, James. Totalmente apavorada, se quer
saber a verdade. O que tem a me dizer sobre aquela arma e a maneira
como você reagiu? Pensei que fosse apenas um funcionário superior do
governo.
— E sou mesmo. Do governo e muito superior.
Bond estava pronto para fazer as perguntas mais importantes, mas
Paula atravessou a sala e foi pegar a pistola automática. Devolveu-a ner-
vosamente.
— Eles voltarão, James? Há possibilidade de eu ser atacada outra
vez?
— Por algum motivo, uma dupla de vagabundos estava atrás de
mim — disse Bond, abrindo as mãos. — Não sei por quê. Às vezes realizo
missões um pouco perigosas. . . daí a arma. Mas não há qualquer razão
que eu possa imaginar para aqueles dois homens tentarem me pegar
aqui, em Helsinki.
Acrescentou que poderia descobrir a resposta em Londres e que

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Paula estaria absolutamente segura depois de sua partida. Já era muito
tarde para pegar o último avião da British Airways para Londres. Portanto,
teria de esperar pelo primeiro vôo da Finnair no dia seguinte, pouco de-
pois das nove horas da manhã.
— Lá se foi o nosso jantar, Paula.
O sorriso de Bond visava a funcionar como um pedido de descul-
pas. Paula disse que havia comida em casa. Podiam jantar ali mesmo. A
voz dela começou a tremer. Bond resolveu que era melhor iniciar as per-
guntas pelo lado positivo, antes de cuidar do problema mais importante:
como os prováveis assassinos descobriram que estava em Helsinki e —
particularmente — como souberam que iria visitar Paula?
— Você tem um carro aqui por perto, Paula?
Ela tinha um carro e uma vaga exclusiva lá fora.
— Talvez eu lhe peça um favor mais tarde.
— Seria maravilhoso.
Paula ofereceu-lhe um sorriso encorajador, do tipo peça-tudo-o-
que-quiser.
— Antes de chegarmos a isso, porém, há coisas mais importantes
que preciso saber.
Bond fez as perguntas óbvias, rapidamente, pressionando-a por
respostas imediatas, sem lhe dar tempo de evitar qualquer coisa ou pen-
sar no que diria.
Falara com amigos ou colegas na Finlândia a respeito dele, desde
quando haviam se conhecido? Claro. Fizera a mesma coisa em algum ou-
tro país? Claro. Podia se lembrar do número de pessoas com quem falara
sobre ele? Ela enunciou alguns nomes, os óbvios — amigos mais chega-
dos, pessoas com quem trabalhava. Lembrava-se de outras pessoas por
perto quando falara de Bond? Pessoas que não conhecia? Era provável,
mas Paula não podia fornecer detalhes.
Bond passou aos acontecimentos mais recentes. Alguém estava em
sua companhia no escritório quando ele telefonara do Intercontinental?
Não. Havia algum meio de outra pessoa ter escutado a ligação? Claro. Al-
guém poderia escutar tudo da mesa telefônica. Falara com alguém depois
da ligação, dissera a alguém que ele estava em Helsinki e iria buscá-la às
seis e meia? Só a uma pessoa.
— Eu ia me encontrar com uma colega de outro departamento.
Combinamos discutir um trabalho durante o jantar.

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O nome dessa mulher era Anni Tudeer e Bond passou um longo
tempo a extrair informações a seu respeito. Finalmente ele ficou em si-
lêncio, levantou-se, foi até a janela e olhou para a rua, entreabrindo a
cortina.
Lá embaixo, a paisagem parecia desolada e um pouco sinistra, as
esculturas brancas congeladas projetavam sombras pela camada de gea-
da no solo. Dois vultos pequenos, envoltos em casacos de pele, avança-
vam pela calçada do lado oposto. Havia vários carros estacionados na rua.
Dois seriam ideais para uma vigilância: as posições em que se achavam
estacionados proporcionavam uma ótima visão da porta do prédio. Bond
teve a impressão de ver um movimento no interior de um desses carros,
mas resolveu tirar isso da cabeça, até chegar o momento oportuno. Vol-
tou à sua cadeira.
— O interrogatório já acabou, James?
— Não foi um interrogatório. — Bond tirou a cigarreira do bolso e
ofereceu um dos seus Simmons especiais. — Talvez um dia eu lhe mostre
como é um interrogatório de verdade. Lembra-se de que eu ia lhe pedir
um favor?
— Peça o que quiser e receberá.
Bond explicou que deixara sua bagagem no hotel e precisava ir para
o aeroporto. Poderia ficar no apartamento até quatro horas da madruga-
da, depois seguir no carro dela até o hotel, pagar a conta e apanhar suas
coisas, antes de ir ao aeroporto?
— Posso dar um jeito para que tragam seu carro de volta, Paula.
— Não vai guiar um carro a parte alguma, James. — Ela parecia
obstinadamente séria. — Tem um ferimento grave no ombro. Precisará de
tratamento, mais cedo ou mais tarde. Claro que pode ficar aqui até quatro
horas da madrugada. . . mas depois eu o levarei ao hotel e ao aeroporto.
Mas por que tão cedo? O primeiro vôo não sai antes das nove horas. E
você pode fazer uma reserva daqui.
Mais uma vez, Bond reiterou que ela não estaria segura enquanto
permanecesse em sua companhia.
— Você estará livre de mim se eu chegar bem cedo ao aeroporto.
Além disso, terei uma vantagem. Nos aeroportos há sempre meios de se
encontrar lugares onde ninguém nos poderá pregar surpresas desagradá-
veis. E não posso usar o telefone por motivos óbvios.
Ela concordou, mas continuou intransigente em relação a uma coi-

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sa: guiaria o carro de qualquer maneira. Sendo Paula, Bond acabou con-
cordando.
— Você já está parecendo melhor, James. — Deu-lhe um beijo no
rosto. — Quer um drinque?
— Você sabe do que eu gosto.
Ela foi à cozinha e preparou um jarro com o seu martíni predileto.
Cerca de três anos atrás, em Londres, Bond lhe ensinara a receita, que al-
gumas publicações tornaram padrão para muitas pessoas. Depois da pri-
meira dose, o latejar no ombro de Bond tornou-se menos intenso. Com o
segundo, sentiu-se quase de volta ao normal.
— Adoro esse chambre.
A mente começou a dizer coisas ao corpo, que prontamente reagiu,
alheio ao ferimento. Paula presenteou-o com um sorriso tímido.
— Para dizer a verdade, James, eu já havia feito o jantar. Não tinha
a menor intenção de sair. Estava preparada para você quando aqueles. . .
aqueles brutamontes apareceram. Como está o ombro?
— Não me impediria de jogar xadrez ou qualquer outro esporte
entre quatro paredes.
Com um movimento súbito, ela tirou a faixa da cintura. O chambre
se abriu.
— Disse que eu sabia do que você gostava, James. Pois se está com
vontade. . .
— Não sinto vontade de nada além disso. . .
Já era quase meia-noite quando finalmente comeram. Paula pôs a
mesa com velas e ofereceu um jantar memorável: lagosta em galantina,
salmão defumado e uma deliciosa musse de chocolate. Às quatro horas
da madrugada, vestida para o frio intenso do amanhecer, ela desceu com
Bond.
Com a P7 fora do coldre, Bond aproveitou as sombras para sair fur-
tivamente à rua. Foi até o outro lado, atravessando a rua escorregadia
de gelo, aproximou-se primeiro de um Volvo e depois de um Audi. Havia
um homem no Volvo, adormecido, a cabeça recostada no assento, a boca
aberta, mergulhado nos pesadelos que os homens de guarda devem ter
durante a noite. O Audi estava vazio.
Bond fez um sinal a Paula, que prontamente se dirigiu em passos
firmes para o seu carro. Pegou logo na primeira tentativa, o cano de des-
carga lançou densas nuvens no ar gelado. Paula guiava com a eficiência de

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uma pessoa acostumada a andar na neve e gelo durante longos perío­dos
do ano. No hotel, Bond apanhou a bagagem e pagou a conta sem qual-
quer contratempo. Ninguém os seguia quando Pauia partiu para o norte,
na direção de Vantaa.
Oficialmente o aeroporto Vantaa só é aberto às sete horas da ma-
nhã. Mas há sempre pessoas por lá. Às cinco horas, a impressão que ofe-
rece é associada a um gosto amargo na boca de cigarros em excesso, café
a todo instante e o cansaço da espera por trens ou aviões noturnos, em
qualquer parte do mundo.
Bond não permitiu que Paula ficasse. Assegurou que telefonaria de
Londres o mais cedo possível e se beijaram afetuosamente, em despedi-
da.
Havia algumas pessoas varrendo o principal salão de partida, onde
Bond escolheu seu ponto de espera. O ombro recomeçou a latejar. Di-
versos passageiros tentavam dormir em cadeiras confortáveis, guardas
circulavam aos pares, procurando por encrencas que nunca aconteciam.
O movimento intenso começou pontualmente às sete horas. Bond
já se colocara junto ao balcão da Finnair, a fim de ser o primeiro da fila.
Havia lugar de sobra no vôo 831 da Finnair, com partida prevista para as
9:10 h.
A neve começou a cair por volta das oito horas. Já se tornara in-
tensa quando o grande DC9-50 decolou, às 9:12 h. Helsinki desapareceu
rapidamente, numa tempestade de confete branco, logo substituída por
uma vasta camada de nuvem, sob um céu azul.
Exatamente às 10:10 h, horário de Londres, o mesmo avião aproxi-
mou-se da cabeceira da pista 28 de Heathrow. As rodas tocaram no chão,
as turbinas Pratt & Whitney uivaram em reversão, a velocidade foi grada-
tivamente diminuindo, enquanto o pouso era concluído.
Uma hora depois, ]ames Bond chegou ao grande prédio em frente
ao Regent’s Park, o quartel-general do seu Serviço. A essa altura, o ombro
latejava como uma dor de dente deslocada, o suor escorria-lhe da testa e
sentia-se tonto.

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4

Sopa à Madeira
— Eles eram realmente profissionais? M já fizera essa pergunta três
vezes.
— Não tenho a menor dúvida quanto a isso — respondeu Bond,
como já fizera antes. — E ressalto mais uma vez, senhor, que eu era o alvo.
M soltou um grunhido.
Estavam sentados em sua sala, no 9.° andar do prédio: Bond, M e
seu chefe de gabinete, Bill Tanner.
Assim que entrara no prédio, Bond pegara o elevador direto ao 9.°
andar, seguindo para a sala que era o domínio incontestável da eficiente
secretária de M, Miss Moneypenny. Ela sorrira de satisfação ao vê-lo.
— James. . .
Mas ao perceber que Bond cambaleava, saíra correndo de sua
mesa para ajudá-lo a sentar-se.
— Isso é maravilhoso, Penny — murmurara Bond, tonto da dor e
fadiga. — Você tem um cheiro espetacular. Todo de mulher.
— Está enganado, James. Sou toda Chanel. Mas você é uma mistura
de suor, anti-séptico e um vestígio de algo mais. . . provavelmente um algo
mais que Patou.
M saíra, participava de uma reunião do Comitê Conjunto de Infor-
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mações. Assim, dez minutos depois, com a ajuda de Miss Moneypenny,
Bond estava na enfermaria, entregue aos cuidados de duas enfermeiras
do plantão permanente. O médico de serviço já se encontrava a caminho.
Paula estava certa: o ferimento precisava de cuidados e antibióti-
cos, além de alguns pontos. Por volta das três horas da tarde, Bond já se
sentia muito melhor, o suficiente para ser levado a uma reunião com M e
seu chefe de gabinete.
M jamais usava uma linguagem rude, mas a impressão que dava
agora era a de um homem prestes a ceder a essa tentação.
— Fale-me de novo sobre a tal garota. Essa tal de Vacker.
Inclinou-se sobre a mesa, enchendo o cachimbo apenas pelo tato,
os olhos castanhos fixados em Bond. . . como se 007 não merecesse con-
fiança.
Meticulosamente, Bond relatou o que sabia a respeito de Paula.
— E a tal amiga que ela mencionou?
— Anni Tudeer. Trabalha na mesma agência, numa posição similar
à de Paula. Ao que parece, operam em conjunto numa conta especial,
promovendo no momento uma organização de pesquisa química sediada
em Kemi. Fica no norte, mas no lado de cá do Círculo Ártico.
— Sei onde fica Kemi — disse M, bruscamente. — É preciso pousar
lá a caminho de Rovaniemi e de todos os outros lugares do norte.
Fez uma pausa, inclinando a cabeça na direção de Tanner, antes de
acrescentar:
— Poderia fornecer os nomes aos computadores? Descubra se te-
mos alguma coisa. Talvez até pedir ajuda a Cinco. Pergunte-lhes se têm
alguma coisa em seus arquivos.
Bill Tanner acenou com a cabeça e saiu da sala. Fechada a porta, M
recostou-se na cadeira.
— Qual é a sua avaliação pessoal, 007?
Os olhos castanhos brilhavam e Bond pensou que M talvez já tives-
se a verdade arquivada na cabeça, junto com mil outros segredos. Esco-
lheu cuidadosamente as palavras:
— Acho que fui marcado durante o exercício no Ártico ou quando
voltei a Helsinki. E de alguma forma conseguiram grampear meu telefone
no hotel. Foi isso ou Paula. . . uma possibilidade que considero muito
remota. Ou alguém com quem ela falou. Sem dúvida foi uma operação
ocasional, pois até o avião pousar nem eu sabia da minha permanência

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em Helsinki. Mas eles agiram depressa e não tenho a menor dúvida de
que estavam a fim de me liquidar.
M tirou o cachimbo da boca, apontando a haste para Bond como
uma batuta.
— Quem são eles?
Bond deu de ombros, sentindo uma pontada de dor com o movi-
mento.
— Paula disse que lhe falaram em finlandês. Experimentaram russo
comigo. . . um sotaque horrível. Paula achou que eram escandinavos, mas
não finlandeses.
— Não respondeu à minha pergunta, 007. Quem são eles?
— Pessoas capazes de contratar talentos não finlandeses. . . pro-
fissionais.
— Mas por que contratá-los?
M estava imóvel, a voz suave.
— Não faço amigos facilmente.
— Dispense as brincadeiras, 007.
— Está certo — Bond suspirou. — Pode ter sido um contrato para
me eliminar. Talvez remanescentes da Spectre. Sem dúvida, não a KGB...
ou pelo menos isso é bastante improvável. Pode ter sido qualquer uma de
meia dúzia de organizações menores.
— Chamaria o Exército da Ação Nacional Socialista de um grupo
menor?
— Não é o estilo deles, senhor. Procuravam alvos comunistas. . .
sempre com estardalhaço, inclusive com folhetos de propaganda.
M permitiu-se um tênue sorriso.
— Eles não poderiam estar usando uma agência de propaganda,
007? Como a agência em que Miss Vacker trabalha?
— Ora, senhor!
Uma exclamação, como se M tivesse enlouquecido.
— Tem razão, Bond, não é o estilo deles. . . a menos que quisessem
eliminar sumariamente alguém considerado uma ameaça.
— Mas eu não sou. . .
— Eles não poderiam saber. Jamais imaginariam que você parou
em Helsinki apenas para bancar o conquistador. . . um papel que se torna
cada vez mais cansativo, 007. Não tinha instruções para voltar direto a
Londres assim que concluísse o exercício no Ártico?

37
— Ninguém insistiu nisso. Pensei. . .
— Não estou absolutamente interessado no que você pensou, 007.
Queríamos que voltasse imediatamente. Em vez disso, foi se divertir em
Helsinki. Pode ter comprometido o Serviço e a si mesmo.
— Eu. . .
— Você não podia saber. — M parecia ter abrandado um pouco. —
Afinal, simplesmente despachei-o para um exercício no frio, uma aclima-
tação. Assumo a responsabilidade. Deveria ter sido mais explícito.
— Explícito?
M se manteve em silêncio por um minuto. Acima de sua cabeça,
o Trafalgar original, de Robert Taylor, revelava a determinação e caráter
de M. Esse quadro durava há dois anos. Antes, havia o Cape St. Vincent,
de Cooper, emprestado pelo Museu Marítimo Nacional. E antes disso. . .
Bond não podia lembrar, mas sempre existiram quadros de vitórias navais
britânicas. M possuía aquela arrogância que colocava a fidelidade ao país
em primeiro lugar, contando ainda com uma convicção inabalável na in-
vencibilidade das forças militares britânicas, em quaisquer circunstâncias.
M finalmente voltou a falar:
— Temos uma operação de certa importância em andamento no
Círculo Ártico, 007. O exercício foi um aquecimento. . . se me permite usar
essa palavra. Um aquecimento para você. Em suma, você vai participar
dessa operação.
— Contra quem?
Bond ficou aguardando a resposta, que demorou um pouco.
— Contra o Exército da Ação Nacional Socialista.
— Na Finlândia?
— Perto da fronteira russa. — M inclinou-se ainda mais para a fren-
te, como alguém preocupado em evitar que outros escutem. — Já temos
um homem lá. . . isto é, tínhamos. Ele está voltando. Não há necessidade
de entrar em detalhes. Mas, basicamente, a causa foi um choque de per-
sonalidades com os nossos aliados, Toda a equipe saiu para se reagrupar
e se encontrar com você. Antes, é claro, receberá as minhas instruções.
— E quem constitui a equipe?
— Estranhos companheiros, 007. Muito estranhos. Receio termos
perdido alguma coisa da surpresa tática, em decorrência de sua aventura
amorosa em Helsinki. Esperávamos que você entrasse em ação desperce-
bido e ingressasse na equipe sem que os neofascistas tomassem conhe-

38
cimento.
— Mas quem forma a equipe? — insistiu Bond.
M tossiu, ganhando tempo.
— Uma operação conjunta, 007. Uma operação excepcional, orga-
nizada a pedido da União Soviética.
Bond franziu o rosto.
— Estamos atuando em conjunto com o Centro Moscou?
M assentiu bruscamente.
— Isso mesmo. . . — Uma breve pausa, como se ele desaprovas-
se. — E não apenas o Centro Moscou. Também estamos envolvidos com
Langley e Tel Aviv.
Bond deixou escapar um assobio baixo, que provocou um altear
das sobrancelhas e uma contração dos lábios de M.
— Eu disse que eram estranhos companheiros, 007.
Bond murmurou, como se mal pudesse acreditar:
— Nós, KGB, CIA, Mossad. . . os israelenses.
— Exatamente. — Com o segredo revelado, M passou a demons-
trar algum entusiasmo pelo assunto. — Operação Quebra-Gelo. Os ame-
ricanos deram o nome, é claro. Os soviéticos aceitaram, já que eram os
requerentes. . .
— A KGB pediu cooperação?
Bond ainda estava incrédulo.
— Através dos canais secretos. Quando tomamos conhecimento,
os poucos que sabiam mostravam-se desconfiados. E logo depois recebi
um convite para ir a Grosvenor Square,
— E descobriu que eles também haviam sido solicitados?
— Exatamente. E por ser a Companhia, certamente eles sabiam
que a mesma coisa acontecera com o Mossad. Em um dia, promovemos
uma reunião das partes.
Bond gesticulou, perguntando silenciosamente se podia fumar. De-
pois de fazer um pequeno gesto com a mão, M continuou a falar, só pa-
rando de vez em quando para acender ou reacender o cachimbo.
— Analisamos a coisa sob todos os ângulos. Procuramos pelas ar-
madilhas. . . e há algumas, é claro. . . examinamos as opções se a situação
escapasse ao nosso controle, depois resolvemos indicar os agentes para a
operação. Queríamos pelo menos três de cada. Mas os soviéticos protes-
taram: era demais, seria prejudicial expandir muito etc. e tal. Finalmente

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nos encontramos com o negociador da KGB, Anatoli Pavlovich Grinev. . .
Bond sorriu.
— Coronel da Primeira Diretoria, Terceiro Departamento. Cobertu-
ra de primeiro-secretário, adido comercial em KPG.
— O próprio.
KPG significava Kensington Palace Gardens, mais especificamente
o número 13 — onde funcionava a embaixada russa. O Terceiro Depar-
tamento da Primeira Diretoria da KGB cuidava exclusivamente das ope-
rações que envolviam o Reino Unido, a Austrália, a Nova Zelândia e a Es-
candinávia.
— Um homenzinho de orelhas de abano — acrescentou M.
Era uma boa descrição do astucioso coronel Grinev. Bond já tive-
ra contatos com o homem e confiava nele tanto quanto confiaria numa
bomba defeituosa.
— E ele explicou? — Bond não estava realmente perguntando. —
Disse por que a KGB queria a nós, a CIA e o Mossad numa operação con-
junta em território finlandês? Eles não têm as melhores relações com o
SUPO para cuidarem de tudo diretamente?
SUPO era o serviço secreto finlandês.
— Não é tanto assim — respondeu M. — Já leu tudo o que temos
sobre o NSAA, 007?
Bond assentiu e acrescentou:
— O pouco de que dispomos. . . os relatórios detalhados sobre os
trinta e tantos assassinatos bem-sucedidos. Não há muito mais além dis-
so. . .
— Há a Análise Conjunta de Informações. Estudou essas cinqüenta
páginas?
Bond confirmou que lera.
— Eles elevam o Exército da Ação Nacional Socialista de uma pe-
quena organização terrorista fanática a algo mais sinistro. Não estou mui-
to certo de que as conclusões estão corretas.
— É mesmo? — M fungou. — Pois eu tenho certeza absoluta, 007.
Os homens do NSAA são mesmo fanáticos, mas as principais comunida-
des de informações e segurança do mundo estão de acordo: são coman-
dados e condicionados pelos antigos princípios nazistas. Pretendem de
fato o que apregoam. . . e, ao que parece, atraem mais e mais pessoas a
cada dia que passa. As indicações são de que os líderes se consideram os

40
arquitetos do Quarto Reich. O alvo, no momento, é o comunismo organi-
zado. Mas recentemente surgiram dois outros elementos.
— Quais são?
— Explosões recentes de anti-semitismo por toda a Europa e nos
Estados Unidos. . .
— Não há qualquer ligação comprovada. . .
M ergueu a mão para silenciá-lo.
— . . . e pegamos um deles.
— Um membro do NSAA? Mas ninguém. . .
— Não foi anunciado. Está bem escondido, nós impuse-mos um
segredo total.
Bond perguntou se o ‘nós’ referia-se literalmente ao Reino Unido.
— É claro. Ele está aqui mesmo, neste prédio. Na ala dos hóspedes.
M apontou para baixo, indicando o grande centro de interrogatório
no porão. O quartel-general fora modificado quando os cortes no orça-
mento da defesa privaram o Serviço de seu ‘lugar no campo’, onde os
interrogatórios costumavam ser realizados.
M acrescentou que o homem fora capturado “depois daquele últi-
mo negócio em Londres”, uma referência ao assassinato, seis meses an-
tes, de três altos funcionários civis britânicos, em plena luz do dia, no mo-
mento em que deixavam a embaixada soviética, depois de negociações
de caráter comercial.
Um dos assassinos tentara se matar com um tiro, ao se ver cercado
pelos homens do SPG.
— A mira dele não era das melhores. — M sorriu, sem qualquer hu-
mor. — Cuidamos para que sobrevivesse. A maior parte do que sabemos
baseia-se no que ele contou.
— Então ele falou?
— Muito pouco. — M deu de ombros. — Mas o que revelou nos
permite ler nas entrelinhas. Poucas pessoas sabem desses fatos, 007. Só
estou lhe contando para que não duvide mais de que estamos no caminho
certo. Temos quase certeza de que o NSAA é global e cresce a cada dia
que passa. Se não forem contidos neste estádio, acabarão se convertendo
num movimento aberto, que pode tornar-se tentador aos eleitores de
muitas democracias. Evidentemente, o interesse dos soviéticos é indireto.
— Por que então trabalhar com eles?
— Porque nenhum serviço de informações, do Bundesnachrichten-

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dienst ao SDECE, descobriu qualquer outra pista. . .
— E daí?
— Nenhum, à exceção da KGB.
Bond não moveu um músculo.
— Certamente eles não sabem o que temos — continuou M. —
Mas ofereceram uma pista de grande importância. O armeiro do NSAA.
Bond inclinou a cabeça para a frente.
— Eles sempre usaram armamentos russos. Portanto, suponho. ..
— Não suponha coisa alguma, 007. Essa é uma das primeiras regras
de estratégia. A KGB dispõe de provas convincentes de que o equipamen-
to do NSAA é astuciosamente roubado na União Soviética e despachado
para o exterior, provavelmente por um finlandês, a diversos pontos de re-
colhimento. É por isso que eles queriam uma operação clandestina, sem
o conhecimento do governo finlandês.
— E por que nós?
Bond começava a entender a situação.
— Eles alegam que necessitam do apoio de países não pertencen-
tes ao bloco oriental. Os israelenses constituem uma escolha óbvia, já que
Israel pode ser o próximo alvo. A Inglaterra e os Estados Unidos represen-
tariam uma frente formidável diante do mundo, se estiverem envolvidos.
Os soviéticos dizem também que o interesse é comum.
— E acredita neles, senhor?
M assumiu uma expressão afável, sem sorrir.
— Não. . . ou pelo menos não inteiramente. Mas também não creio
que haja por trás disso algum plano sinistro, uma armadilha complicada
para os três serviços de informações.
— Há quanto tempo vem sendo realizada a Operação Quebra-Ge-
lo?
— Seis semanas. Pediram especificamente por você, mas eu queria
testar o gelo, se me entende.
— E o gelo está firme?
— Agüentará o seu peso, 007. Ou pelo menos penso que agüenta-
rá. Mas sem dúvida há um perigo novo agora, depois do que aconteceu
em Helsinki.
Fez-se silêncio por um minuto. Ao longe, por trás de uma porta
maciça, um telefone tocou. Bond rompeu o silêncio:
— O homem que foi designado. . .

42
— Dois homens, na verdade. Cada organização tem um dirigente
instalado em Helsinki. É o homem de ação que estamos removendo. Du-
dley. . . Clifford Arthur Dudley. Residente em Estocolmo há algum tempo.
— Um bom agente. — Bond acendeu outro cigarro. — Já trabalhei
com ele.
Fora um complicado trabalho de vigilância sobre um diplomata ro-
meno em Paris, dois anos atrás. Bond acrescentou:
— Muito ágil. Eficiente e engenhoso. Disse que houve um choque
de personalidade?
M não olhou diretamente para Bond. Levantou-se e foi até a janela,
cruzando as mãos nas costas, enquanto olhava para Regenfs Park. E res-
pondeu, falando bem devagar:
— Isso mesmo. Deu um soco na boca de nosso aliado americano.
— Cliff Dudley?
M virou-se. Exibia a sua expressão maliciosa.
— Fez isso por instrução minha. Ganhando tempo, como eu disse,
testando o gelo. . . e esperando que você se aclimatasse, se pode me
entender.
Novamente um momento de silêncio, outra vez rompido por Bond:
— E eu devo me juntar à equipe.
— Isso mesmo. — M parecia estar agora um pouco distraído. —
Todos se retiraram. Você deverá encontrá-los o mais depressa possível.
Por falar nisso, já escolhi o ponto de encontro. Gosta do Reid’s Hotel, em
Funchal, na Ilha da Madeira?
— É melhor do que uma kota dos lapões no Círculo Ártico, senhor.
— Ótimo. Vamos lhe dar todas as instruções. Se já estiver prepara-
do, partirá amanhã à noite. Mas receio que, depois da Ilha da Madeira, o
Ártico será a próxima escala. Há muito trabalho para fazer. Deve compre-
ender que não se trata de uma canja de galinha, como se costumava dizer
antigamente.
— Nem mesmo uma sopa à Madeira, senhor?
M soltou uma risada curta. . . uma risada de verdade.

43
44
5

Encontro no Reid’s
Bond acabou não deixando Londres tão depressa como se espera-
va. Havia muito a ser preparado e os médicos ainda insistiam numa veri-
ficação completa. Bill Tanner apresentou os resultados do levantamento
sobre Paula Vacker e sua amiga Anni Tudeer.
Havia informações curiosas e um pouco inquietantes. Paula era
sueca de nascimento, embora tivesse assumido a cidadania finlandesa.
Aparentemente, o pai pertencera ao Corpo Diplomático sueco. Havia a
anotação de que ele possuía “tendências de extrema direita”.
— Provavelmente significa que o homem é nazista — resmungou
M.
A possibilidade deixou Bond preocupado, e as palavras de Bill Tan-
ner perturbaram-no ainda mais:
— É bem possível. Mas uma coisa é certa: o pai de sua amiga é ou
foi um nazista.
O que Tanner tinha a dizer deixou Bond ansioso por uma oportuni-
dade de se encontrar o mais depressa possível com Paula; ou, mais espe-
cificamente, com Anni Tudeer.
Os computadores tinham poucas informações sobre a moça, mas
revelaram muito sobre seu pai, um ex-oficial de alta patente do exército
45
finlandês. O coronel Aarne Tudeer pertencera ao estado-maior do coman-
dante-em-chefe da Finlândia, o grande marechal Mannerheim, em 1943.
No mesmo ano, quando os finlandeses se aliaram ao exército alemão con-
tra os russos, Tudeer aceitara um posto com a Waffen SS. Embora Tudeer
fosse antes de tudo um soldado, era evidente que sua admiração pela
Alemanha nazista e particularmente por Adolf Hitler não tinha limites. Ao
final de 1943, Aame Tudeer fora promovido a SS-Oberführer e transferido
a um posto na Alemanha.
Tudeer desapareceu quando a guerra terminou, mas havia fortes
indícios de que continuava vivo. Os caçadores de nazistas ainda o man-
tinham na lista de procurados, pois entre as muitas operações em que
desempenhara um papel proeminente figurava a ‘execução’ de cinqüenta
prisioneiros de guerra, recapturados depois da famosa Grande Fuga da
Stalag Luft III, em Sagan, em março de 1944.
Mais tarde, Tudeer lutou bravamente durante a histórica e sangren-
ta marcha da II Divisão Panzer SS (‘Das Reich’), de Montauban à Norman-
dia. Era notório que, durante aquelas duas semanas de junho de 1944,
foram cometidos atos de violência desenfreada, que desafiavam as regras
normais da guerra. Um deles fora a matança de 642 homens, mulheres e
crianças, incendiados na aldeia de Oradour-sur-Glane. Aarne Tudeer tive-
ra uma participação ativa no episódio.
— O homem pode ser antes de tudo um soldado — disse Tanner —,
mas é também um criminoso de guerra. Apesar de ser hoje um aposenta-
do idoso, ainda é procurado pelos caçadores de nazistas. Há informações
confirmadas sobre sua presença na América do Sul durante a década de
1950, mas é quase certo que voltou à Europa nos anos 60, depois de uma
eficiente troca de identidade.
Bond arquivou a informação na cabeça; perguntou se havia alguma
possibilidade de estudar quaisquer documentos e fotografias existentes.
— Eu não poderia voltar a Helsinki, encontrar-me com Paula e co-
nhecer Anni Tudeer?
Bond olhou fixamente para M, que sacudiu a cabeça.
— Lamento, 007. O tempo é essencial. Toda a equipe deixou a zona
operacional por dois motivos: primeiro, conhecê-lo e pô-lo a par de toda a
situação; segundo, planejar o que calculam ser o estádio final da missão.
Eles pensam que sabem de onde vêm as armas, como são entregues ao
NSAA. . . e, o que é mais importante, quem dirige as operações do NSAA

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e de onde.
M tornou a encher o cachimbo, recostou-se na cadeira e continuou
a falar. Sob muitos aspectos, o que revelou era suficiente para deixar Bond
de cabelos arrepiados.
Eles ficaram no quartel-general até altas horas da noite. Depois,
Bond foi levado ao seu apartamento em Chelsea e aos ternos cuidados
de May, sua formidável governanta. Bastou um olhar para que ela lhe
ordenasse que fosse direto para a cama, no tom de uma babá antiquada.
— Parece completamente esgotado, Mr. James. Vá se deitar. Leva-
rei um jantar leve numa bandeja. E agora trate de se meter na cama.
Bond não sentia a menor vontade de discutir. May apareceu pouco
depois com um prato de salmão defumado e ovos mexidos, que Bond
comeu enquanto examinava a pilha de correspondência que encontrara
à sua espera. Mal terminara a refeição quando a fadiga o dominou. Sem
qualquer resistência, mergulhou num sono profundo e revigorante.
Quando acordou, Bond constatou que May o deixara dormir até
tarde. Os números no relógio digital, na mesinha-de-cabeceira, indicavam
que eram quase 10 horas. O telefone tocou poucos minutos depois.
M o chamava com urgência.
O tempo extra passado em Londres proporcionou dividendos.
Bond não só recebeu informações detalhadas sobre os seus colegas na
Operação Quebra-Gelo, mas também teve oportunidade de conversar
longamente com Cliff Dudley, o agente a quem estava substituindo.
Dudley era um escocês baixo, duro, belicoso, um homem que Bond
respeitava.
— Se eu tivesse mais tempo, James, provavelmente descobriria
toda a verdade. Mas era a você que ele queriam. M deixou-me isso bem
claro antes da minha partida. Terá de se manter de costas para a parede,
James. Nenhum dos outros tomará conta de você. O Centro Moscou cer-
tamente quer alguma coisa, mas o caso cheira a traição. Talvez eu seja
desconfiado por natureza, mas o garoto deles está escondendo alguma
coisa. Ele tem uma dúzia de ases à mão e aposto que todos no mesmo
terno.
O “garoto deles”, como Dudley o chamava, não era desconhecido
para Bond, pelo menos em reputação. Nicolai Mosolov tinha muita re-
putação e nada era agradável. Conhecido por seus amigos da KGB como
Kolya, Mosolov falava inglês, inglês-americano, alemão, holandês, sueco,

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italiano, espanhol e finlandês fluentemente. Agora, aproximava-se dos
quarenta anos. Fora um dos alunos mais brilhantes da escola de treina-
mento básico perto de Novossibirsk e trabalhara durante algum tempo
com o Grupo de Apoio Técnico da Segunda Diretoria da KGB — na prática
uma unidade de arrombadores profissionais.
No prédio em frente do Regent’s Park, Mosolov era também conhe-
cido por diversos pseudônimos. Era Nicholas S. Mosterlane nos Estados
Unidos, Sven Flanders na Suécia e outros países escandinavos. Conhe-
ciam-no, mas nunca o haviam agarrado. . . nem mesmo como Nicholas
Mortin-Smith, em Londres.
— Do tipo homem-invisível — comentou M. — Camaleão. Funde-
se com a paisagem e desaparece quando se pensa que está acuado.
Bond também não se sentiu muito feliz com o seu companheiro
americano em Quebra-Gelo. Brad Tirpitz, conhecido nos círculos profis-
sionais como ‘Bad’ Brad, era um veterano da velha escola da CIA. Sobrevi-
vera a diversos expurgos no quartel-general de sua organização, em Lan-
gley, na Virgínia. Para alguns, Tirpitz era uma espécie de herói impetuoso,
do gênero fazer-ou-morrer, uma legenda viva. Havia outros, porém, que
o encaravam sob um ângulo diferente: como um agente capaz de usar
métodos altamente discutíveis, um homem que considerava que o fim
sempre justificava os meios. E os meios podiam ser, como um dos seus
colegas ressaltara, “absolutamente brutais, pois ele tem o instinto de um
lobo faminto e o coração de um escorpião”.
Ou seja, pensou Bond, seu futuro estava nas mãos de um bruta-
montes do Centro Moscou e um impetuoso de Langley, que tendia a atirar
primeiro e fazer perguntas depois.
O resto das instruções e os exames médicos consumiram o que so-
brava daquele dia, bem como uma parte da manhã seguinte. Assim, foi
somente na tarde do terceiro dia que Bond embarcou no vôo da TAP para
Lisboa, onde passou para o Boeing 727 da ponte aérea com Funchal.
O sol estava baixo, quase encostando na água, projetando grandes
manchas vermelhas contra os rochedos, quando o avião de Bond, agora
a menos de duzentos metros de altitude, passou pela Ponta de São Lou-
renço, a fim de efetuar a curva excitante, em baixa altitude, que é o único
meio de alcançar a pista pequena e precária em Funchal, empoleirada
entre os rochedos como o convés de pouso de um porta-aviões.
Menos de uma hora depois, um táxi deixou-o no Reid’s Hotel. A

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manhã seguinte descobriu-o a procurar Mosolov, Tirpitz ou a terceira pes-
soa do grupo de Quebra-Gelo, a agente do Mossad, que merecera uma
descrição entusiasmada de Dudley:
— Uma jovem absolutamente mortífera, com cerca de 1,70 m de
altura, pele clara, o corpo copiado da Vênus de Milo, só que com os dois
braços. E a cabeça é diferente.
— Diferente até que ponto? -— indagara Bond.
— Deslumbrante. Eu diria que beira os trinta anos. Muito, muito
boa. Eu detestaria ter de me lançar contra ela.
Bond não pôde resistir a um gracejo:
— No sentido profissional, é claro.
Para M, a agente israelense era um talento desconhecido. O nome
era Rivke Ingber. O arquivo registrava apenas “Nenhuma informação”.
Assim, James Bond esquadrinhava agora as duas piscinas do hotel,
os olhos ocultos por óculos escuros, observando rostos e corpos.
Por um momento, seus olhos se fixaram numa loura alta e seduto-
ra, num biquíni Cardin, cujo corpo desafiava qualquer descrição normal.
Não há lei que proíba olhar, pensou Bond, enquanto a mulher mergulha-
va na água quase morna. Ele mudou a posição do corpo na cadeira de
lona, estremecendo ligeiramente com a pontada de dor no ombro, quase
que inteiramente curado. Continuou a observar a loura a andar, as pernas
compridas e adoráveis se movendo, enquanto mexia os braços indolente-
mente, numa sensualidade quase consciente.
Bond sorriu mais uma vez pela escolha de M para o local de encon-
tro. O Reid’s era um dos poucos hotéis, entre as arapucas das excursões
de turismo das Canárias a Corfu, que mantinha os seus padrões, na cozi-
nha e no serviço, datando dos anos 30. A loja do hotel vende lembranças
dos velhos tempos, como fotografias de Sir Winston e Lady Churchill, ti-
radas em jardins exuberantes. Velhos empertigados, com bigodes impe-
cavelmente aparados, sentavam-se nos salões arejados para ler; jovens
casais, vestidos por Yves Saint-Laurent e Kenzo, juntavam-se a damas ido-
sas, de títulos importantes, no famoso terraço do chá. Bond meditou que
se encontrava no território do ‘mordomo-cuida-disso’. Parecia não haver
a menor dúvida de que os companheiros de M freqüentavam aquele des-
vio do tempo idílico com a regularidade de um relógio Patek Philippe.
Estendido ali, Bond podia cobrir a piscina e a área em que as pes-
soas tomavam sol. Não havia sinal de Mosolov. Não havia sinal de Tirpitz.

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Poderia reconhecer os dois facilmente pelas fotografias que estudara em
Londres. Não havia qualquer fotografia de Rivke Ingber, e Cliff Dudley limi-
tara-se a sorrir sugestivamente, dizendo a Bond que ele não levaria muito
tempo para descobri-la.
As pessoas se encaminhavam agora para o restaurante da piscina,
aberto em dois lados e protegido por arcadas de pedra rosa. As mesas
estavam postas, garçons esperavam, um bar chamava, um bufê comprido
oferecia todos os tipos de saladas e carnes frias. Havia também, se o clien-
te assim desejasse, sopa quente, quiche, lasanha ou cannelloni.
Almoço. Os hábitos antigos de Bond acompanharam-no à Ilha da
Madeira. O ar quente e o sol da vigília da manhã produziam a necessidade
agradável de algo leve para o almoço. Vestindo um roupão, Bond encami-
nhou-se para o bufê. Pegou algumas fatias finas de presunto e começou a
escolher entre as diversas e atraentes saladas.
— Não aceita um drinque, Mr. Bond? Para quebrar o gelo?
A voz dela era suave, sem sotaque.
— Miss Ingber?
Bond não se virou para olhá-la.
— Isso mesmo. Há algum tempo que o estou observando. . . e creio
que você a mim. Vamos almoçar juntos? Os outros também já chegaram.
Bond virou-se. Era a loura espetacular que ele vira na piscina. Ela
agora usava um biquíni preto e a carne visível tinha um brilho bronzeado,
a cor das folhas de faia no outono. O contraste de cores — pele, o tecido
preto do biquíni, os cachos dourados admiráveis — tornava Rivke Ingber
não apenas extremamente desejável, mas também uma lição objetiva de
saúde e cuidado com o corpo. O rosto brilhava em exuberância, imacula-
do, clássico, quase nórdico, a boca firme, olhos escuros em que um espí-
rito de humor parecia faiscar, quase sedutoramente.
— Reconheço que levou a melhor sobre mim, Miss Ingber. Shalom.
— Shalom, Mr. Bond. . .
A boca rosada abriu-se num sorriso que parecia franco, convidativo
e completamente genuíno.
— Chame-me de James.
Bond anotou mentalmente aquele sorriso. Ela já segurava um pra-
to, contendo uma pequena porção de peito de galinha, algumas fatias de
tomate e uma salada de arroz e maçã. Bond gesticulou para uma mesa
próxima. Ela seguiu na frente, o corpo flexível, um balançar ligeiro e sen-

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sual dos quadris. Colocando o prato com cuidado sobre a mesa, Rivke
Ingber automaticamente deu um pequeno puxão na calcinha do biquíni,
passando os polegares por dentro da parte traseira e puxando para cima
das nádegas perfeitas e empinadas. Era um gesto executado naturalmen-
te, sem pensar, incontáveis vezes todos os dias por mulheres nas praias e
piscinas; executado por Rivke Ingber, no entanto, o movimento transfor-
mava-se num convite sexual, aberto e provocante.
Agora, sentada diante de Bond, ela tornou a oferecer-lhe o sorriso,
passando a ponta da língua pequena pelo lábio superior.
— Seja bem-vindo a bordo, James. Há muito tempo que eu deseja-
va trabalhar com você... — Uma breve pausa. — ... o que é mais do que
posso dizer a respeito de nossos colegas.
Bond observou-a fixamente, tentando penetrar nos olhos escu-
ros... algo excepcional numa mulher com a cor de Rivke. Seu garfo estava
suspenso entre o prato e a boca quando ele perguntou:
— É tão ruim assim?
— Pior ainda. Suponho que esteja informado sobre o motivo por
que o seu antecessor nos deixou. . .
— Não. — Bond assumiu uma expressão inocente. — Tudo o que
sei é que fui subitamente transferido para esta missão, sem muito tempo
para instruções. Disseram que a equipe. . . uma mistura muito estranha,
diga-se de passagem. . . faria um relato detalhado.
Ela tornou a sorrir.
--Houve o que se pode chamar de um choque de personalidades.
Brad Tirpitz mostrou-se comigo o grosseiro habitual. Seu homem acertou-
o na boca. Fiquei um pouco aturdida. Afinal, poderia controlar Tirpitz so-
zinha.
Bond levou um pouco de comida à boca, mastigou e engoliu, de-
pois perguntou sobre a operação. Rivke lançou-lhe um olhar brejeiro, sob
as pálpebras ligeiramente abaixadas. Levou um dedo aos lábios, ironica-
mente, murmurando:
— Assunto proibido. Uma isca. . . é isso o que sou. Devo atraí-lo
para a dupla de peritos. Todos devemos estar presentes durante a sessão
de informações com você. Para dizer a verdade, acho que eles não me
levam muito a sério.
Bond sorriu.
— Então nunca ouviram o mais importante ditado a respeito de seu

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serviço. . .
— Somos bons em nosso trabalho porque a alternativa é terrível
demais para se cogitar.
Ela pronunciou as palavras sem qualquer inflexão, quase como uma
lição decorada.
— E você é mesmo boa, Rivke Ingber?
Bond mastigou mais um pouco de comida.
— Um pássaro pode voar?
— Nossos colegas, então, devem ser muito estúpidos,
Ela suspirou.
— Não, James, não são estúpidos. Apenas chauvinistas. Não têm
confiança em trabalhar com mulheres. É só isso.
— Nunca tive esse problema.
O rosto de Bond permaneceu impassível.
— Foi o que ouvi dizer.
Rivke parecia subitamente afetada. Talvez fosse um aviso de ‘man-
tenha-se a distância’.
— Portanto, não vamos falar agora sobre Quebra-Gelo.
Ela sacudiu a cabeça.
— Não se preocupe. Vai ouvir o suficiente quando subirmos ao en-
contro dos rapazes.
Bond percebeu uma insinuação de advertência até mesmo na ma-
neira como ela o fitava. Era como se a possibilidade de amizade tivesse
sido oferecida e depois abruptamente cortada. Com a mesma rapidez,
Rivke voltou a se comportar como antes, os olhos escuros fixos nos de
Bond.
Terminaram a refeição sem que Bond tentasse novamente abordar
o assunto Quebra-Gelo. Falou sobre Israel — que conhecia bem — e seus
diversos problemas, mas não tentou levar a conversa para a vida particu-
lar dela.
— Está na hora de nos encontrarmos com os rapazes, James.
Ela passou um guardanapo pelos lábios, desviando os olhos para o
prédio do hotel.
Mosolov e Tirpitz provavelmente observavam de sua varanda, disse
ela. Tinham quartos contíguos no 4.° andar; as varandas proporcionavam
uma boa vista dos jardins e permitiam uma vigilância constante da área
da piscina.

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Bond e Rivke dirigiram-se para vestiários separados, de onde saí-
ram com roupas adequadas; Rivke numa saia preta e blusa branca, Bond
em sua calça esporte predileta, camisa estampada de algodão e mocas-
sins. Juntos, entraram no hotel e subiram no elevador para o 4.° andar.
— Olá, Mr. James Bond.
Mosolov era tão indefinido quanto os peritos afirmavam. Podia ter
qualquer idade, de vinte e poucos anos a quase cinqüenta.
— Kolya Mosolov — disse ele, apertando a mão de Bond.
O aperto não demonstrou coisa alguma, os olhos castanhos pare-
ciam opacos, recusando-se a sustentar firmemente o olhar de Bond.
— É um prazer trabalhar com você.
Bond presenteou-o com o seu sorriso mais encantador, ao mesmo
tempo que absorvia tudo o que podia do homem: mais para baixo, ca-
belos louros, um penteado sem qualquer estilo definido, mas paradoxal-
mente impecável. Não havia uma característica inconfundível — ou assim
parecia — no homem ou nas roupas: uma camisa marrom quadriculada,
de mangas curtas, calça esporte que dava a impressão de ter sido cortada
por um aprendiz de alfaiate num dia particularmente ruim, um rosto que
parecia mudar com os ânimos e luzes diferentes, envelhecendo ou per-
dendo vários anos.
Kolya indicou uma cadeira, embora Bond não percebesse ao certo
como o fez — pois foi sem gestos e sem mover o corpo.
— Conhece Brad Tirpitz?
O inglês parecia impecável, até mesmo coloquial, com o ligeiro ves-
tígio de um sotaque de subúrbio londrino.
A cadeira continha Tirpitz, um homem grande, esparramado, mãos
imensas e rudes, rosto que parecia esculpido em granito. Os cabelos eram
grisalhos e bem curtos, quase no nível do couro cabeludo. Bond ficou sa-
tisfeito ao perceber os vestígios de uma equimose e de um pequeno talho
na boca excepcionalmente pequena do homem. Tirpitz levantou uma das
mãos indolentemente, numa espécie de saudação.
— Oi. — A voz era áspera, como se tivesse passado muito tempo a
aprender seu sotaque com os bandidos do cinema. — Seja bem-vindo ao
clube, Jim.
Bond não encontrou qualquer vislumbre de boa acolhida ou satis-
fação no americano.
— Prazer em conhecê-lo, Mr. Tirpitz.

53
Bond fez questão de ressaltar o mister.
— Brad — resmungou Tirpitz.
Desta vez havia a insinuação de um sorriso nos cantos de sua boca.
Bond acenou com a cabeça.
— Sabe do que se trata?
Kolya Mosolov falava quase como se pedisse desculpas pelo incô-
modo.
— Apenas um pouco. . .
Rivke interveio, sorrindo para Bond:
— James me disse que foi enviado para cá repentinamente. Não
recebeu maiores informações de seu pessoal.
Mosolov deu de ombros, sentou-se e indicou outra cadeira. Rivke
acomodou-se na cama, cruzando as pernas.
Bond aceitou a cadeira oferecida, empurrando-a contra a parede,
numa posição em que podia observar os outros três. E que também lhe
proporcionava uma boa vista da janela e da varanda. Mosolov respirou
fundo.
— Não temos muito tempo. Precisamos sair daqui dentro de 48
horas e retornar à área operacional.
Bond gesticulou para o quarto.
— É seguro falar aqui?
Tirpitz soltou uma risada brusca.
— Não se preocupe com isso. Verificamos o lugar. Meu quarto é ao
lado, este fica no canto do prédio. E a todo instante faço uma inspeção.
Bond virou-se para Mosolov, que esperava pacientemente, quase
com subserviência, durante a breve interrupção. O russo aguardou mais
um segundo antes de tornar a falar:
— Acha isso estranho? A CIA, Mossad, minha gente e a sua. . . todos
trabalhando juntos?
— Foi o que pensei inicialmente.
Bond pareceu relaxar. Aquele era o momento para o qual M o ad-
vertira. Havia uma possibilidade de que Mosolov escondesse determina-
das informações. Se assim fosse, ele precisaria do máximo de cautela.
— Achei muito estranho, é verdade, mas depois, pensando me-
lhor... Afinal, estamos todos no mesmo negócio. As perspectivas podem
ser diferentes, mas não há motivo para que não possamos trabalhar jun-
tos, pelo bem comum,

54
— Correto — disse Mosolov, bruscamente. — Agora vou lhe dar as
informações necessárias.
Fez uma pausa, olhou ao redor, apresentando uma boa imitação de
um acadêmico míope e um tanto distraído.
— Rivke, Brad, acrescentem por favor qualquer coisa que por acaso
eu omitir.
Rivke assentiu e Tirpitz riu desagradavelmente.
— Muito bem. — A transfiguração outra vez: Kolya passou do pro-
fessor distraído para o executivo incisivo, no comando da situação. Era
um prazer observar, pensou Bond. — Muito bem, farei um relato breve e
objetivo. A missão, como talvez já sabe, Mr. Bond, envolve o Exército da
Ação Nacional Socialista, uma ameaça comprovada ao meu país e tam-
bém a seus países. Os fascistas ao estilo antigo.
Tirpitz tornou a soltar sua risada desagradável.
— Tão antigos que chegam a estar mofados.
Mosolov ignorou-o. Parecia ser a única maneira de lidar com as
piadinhas de Brad Tirpitz.
— Não soü um fanático. — Mosolov baixou a voz. — Também não
sou obcecado pelo NSAA. Contudo, como os seus governos, creio que
essa organização já é bastante grande e cresce cada vez mais. É uma ame-
aça. . .
— Já disse isso. — Brad Tirpitz tirou do bolso uma maço de Camels,
bateu com o lado no polegar, tirou um cigarro e acendeu-o, com um fós-
foro de papel. — Vamos ser mais objetivos, Kolya. O Exército da Ação
Nacional Socialista está deixando vocês, soviéticos, com o maior cagaço.
— Uma ameaça ao mundo — continuou Kolya. — Não apenas à
Rússia Soviética e ao bloco oriental.
— Mas vocês são o alvo principal — insistiu Tirpitz.
— E nós estamos implicados, Brad, como você sabe muito bem. É
por isso que o meu governo procurou o seu pessoal. E também os gover-
nos de Rivke e de Mr. Bond. — Ele tornou a virar-se para Bond. — Como
pode ou não saber, todas as armas usadas nas operações do NSAA são
de procedência soviética. O Comitê Central só recebeu essa informação
depois do quinto incidente. Outros governos e agências desconfiaram
que estávamos fornecendo armas a alguma organização, possivelmente
do Oriente Médio, que por sua vez as entregava ao NSAA, o que não era
verdade. A informação resolveu um problema para nós.

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— Alguém estava metendo a mão na massa — interveio Brad Tir-
pitz.
— Exatamente. — Mosolov falou rispidamente. — Na primave-
ra passada, durante uma inspeção local de arsenais, a primeira em dois
anos, um oficial superior do Exército Vermelho descobriu uma enorme
discrepância: uma inexplicável perda de armamentos. Todos da mesma
fonte.
Levantou-se, atravessou o quarto para alcançar uma pasta, de onde
tirou um grande mapa, que abriu no carpete.
— Aqui. — O dedo apontou para o papel. — Perto de Alakurtii. Te-
mos um grande depósito de material bélico...
Alakurtii fica cerca de sessenta quilômetros a leste da fronteira
finlandesa, dentro do Círculo Ártico — cerca de duzentos quilômetros a
nordeste de Rovaniemi, onde Bond permanecera durante a sua recente
expedição. Kolya continuou:
— Esse depósito foi atacado no inverno passado. Pudemos identifi-
car todos os números de série das armas usadas pelo NSAA. E não resta a
menor dúvida de que tudo saiu de Alakurtii.
Bond perguntou o que estava faltando. O rosto de Kolya manteve-
se impassível enquanto apresentava a relação:
— Kalashnikovs, RPKs AKs AKMs, pistolas Makarov e Stetchkin, gra-
nadas RDG-5 e RG-42. . . Uma quantidade grande, com munição.
— Nada mais pesado do que isso?
Bond fez a pergunta de forma casual, como se fosse mera curiosi-
dade. Mosolov sacudiu a cabeça.
— Já é o suficiente. Desapareceram em grandes quantidades.
Primeiro ponto negativo, pensou Bond. Ele já sabia, por intermé-
dio de M, que dispunha de suas próprias fontes, que Kolya omitira as ar-
mas mais significativas: uma grande quantidade de antitanques RPG-7V,
equipados com foquetes de diferentes tipos de ogivas — convencionais,
químicas e nucleares —, bastante grandes para destruírem uma cidade
pequena e devastarem uma região num raio de oitenta quilômetros do
ponto de impacto.
— Esse equipamento desapareceu durante o inverno, quando man-
tínhamos uma pequena guarnição na Base Lebre Azul, como chamamos
o depósito. O coronel que fez a descoberta usou de bom senso. Não disse
nada ao pessoal de Lebre Azul, limitando-se a comunicar diretamente ao

56
GRU.
Bond assentiu. Era de se prever: o Glavnoye Razvedyvatelnoye
Upravleniye — o Serviço de Informações Militares Soviético, uma orga-
nização ligada de forma umbilical à KGB — era a fonte natural a ser infor-
mada.
— O GRU acionou uma dupla de monges. . . como eles chamam os
agentes secretos que trabalham em escritórios do governo ou unidades
militares.
— E eles cumpriram as ordens sagradas? — indagou Bond, sem
sorrir.
— Mais do que isso. Identificaram os culpados. . . sargentos ganan-
ciosos, que estavam sendo pagos por uma fonte externa.
Bond interveio:
— Portanto, já sabem como o material foi roubado. . .
Kolya sorriu.
— Como e para onde foi transportado. Temos certeza absoluta de
que, no inverno passado, a carga foi levada através da fronteira finlan-
desa. É uma fronteira difícil de se vigiar, embora muitos trechos estejam
minados e tenhamos cortado quilômetros e quilômetros de árvores. As
pessoas ainda passam de um lado para outro todos os dias. É o caminho
seguido pelo material.
— Mas não sabem qual foi a primeira direção tomada?
Era a segunda pergunta de Bond destinada a testar o agente sovié-
tico. Mosolov hesitou.
— Não temos certeza. Nossos satélites estão tentando determinar
uma possível localidade e nossos homens vigiam atentamente o principal
suspeito. Mas os fatos permanecem indefinidos.
James Bond virou-se para os outros.
— São igualmente indefinidos para vocês dois?
— Só sabemos o que Kolya nos contou — respondeu Rivke, calma-
mente. — Esta é uma operação amistosa.
— Langley forneceu-me um nome que ninguém mencionou até
agora e isso é tudo.
Brad Tirpitz obviamente não diria mais nada e por isso Bond per-
guntou a Mosolov se tinha um nome a enunciar. Houve uma pausa pro-
longada. Bond esperou pelo nome revelado por M na última noite, na sala
do 9.o andar do prédio em frente ao Regenfs Park.

57
— Ainda não há certeza. . .
Mosolov não desejava ser induzido. Bond abriu a boca para falar,
mas Kolya apressou-se em acrescentar:
— Na próxima semana. A essa altura, na próxima semana, pode-
mos ter tudo definido. Os monges do GRU informam que outra carga
está prestes a ser roubada. É por isso que dispomos de tão pouco tempo.
Como equipe, a nossa função é obter provas do roubo, depois seguir o
mesmo caminho das armas. . . até o seu destino final.
— E acha que o homem que receberá as armas será o conde Kon-
rad von Glöda?
Bond fez a pergunta com um sorriso largo. Kolya Mosolov não dei-
xou transparecer qualquer sinal de emoção ou surpresa. Brad Tirpitz sol-
tou uma risada.
— Londres tem a mesma informação de Langley.
— Quem é Von Glöda? — perguntou Rivke, sem tentar disfarçar seu
choque. — Ninguém me falou de algum conde Von Glöda.
Bond tirou a cigarreira de metal do bolso traseiro da calça, colocou
entre os lábios um cigarro H. Simons, fino e branco, acendeu, tragou e
soprou a fumaça num longo jato.
— Meu pessoal... e a CIA também, ao que parece. . . têm informa-
ções de que o principal homem da NSAA na Finlândia é um certo conde
Konrad von Glöda. Isso é verdade, Kolya?
Os olhos de Mosolov ainda estavam enevoados.
— É um nome em código. Não há sentido em fornecer essa infor-
mação agora.
— Por que não? Está escondendo mais alguma coisa, Kolya?
Bond não sorriu desta vez.
— Apenas que eu esperava levá-lo ao refúgio de Von Glöda na Fin-
lândia na próxima semana, quando realizarmos a nossa missão de vigilân-
cia em Lebre Azul, Mr. Bond. Também esperava que me acompanhasse à
Rússia para observar tudo pessoalmente.
James Bond mal podia acreditar: um homem da KGB convidando-o
para a teia de aranha, sob o pretexto de testemunhar o roubo de uma
grande quantidade de armas. E não havia agora qualquer meio de de-
terminar se Kolya Mosolov fazia o convite como uma etapa genuína da
Operação Quebra-Gelo ou se Quebra-Gelo não passava de uma armadi-
lha cuidadosamente elaborada para atrair Bond ao território soviético.

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M o advertira sobre essa última possibilidade, antes da partida de
Bond para a Ilha da Madeira.

59
60
6

Amarelo x Prateado
Os quatro membros da equipe de Quebra-Gelo combinaram se en-
contrar para o jantar. Mas Bond tinha outras idéias. As advertências de
M sobre a duplicidade entre o quarteto tornaram-se patentes durante a
breve sessão no quarto de Kolya.
Não fosse a pressão de Brad Tirpitz, o nome do conde Konrad von
Glöda não seria mencionado; e, segundo M, esse homem misterioso era
um elemento essencial em qualquer investigação conjunta de segurança.
Kolya também não se dera ao trabalho de fornecer todos os detalhes so-
bre os armamentos mais perigosos desaparecidos do depósito de mate-
rial bélico conhecido como Lebre Azul.
Sem dúvida, Brad Tirpitz estava tão bem informado quanto Bond,
mas parecia que Rivke se encontrava muito no escuro. Toda a operação,
inclusive a idéia de observar um segundo grande roubo no lado russo da
fronteira, não parecia de bom augúrio.
Embora o encontro ao jantar estivesse combinado, Kolya ainda in-
sistira que os quatro membros de Quebra-Gelo deveriam deixar a ilha,
partindo para a área operacional nas próximas 48 horas. Um ponto de
encontro fora até definido e aceito por todos.
Bond sabia que deveria fazer algumas coisas antes de se juntar aos
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outros no clima terrível do Círculo Ártico. Havia diversos vôos no aero-
porto de Funchal durante a manhã de domingo. Assim, com toda certeza,
Kolya apresentaria várias sugestões, ao jantar, sobre a melhor maneira de
se separarem e viajarem isoladamente. Mas James Bond não esperaria
pelas instruções de Kolya Mosolov.
Ao deixar o quarto, apresentou suas desculpas a Rivke — que de-
sejava a sua companhia num drinque no bar — e foi para seus aposentos.
Em menos de 15 minutos, James Bond estava num táxi, a caminho do
aeroporto.
Houve uma longa espera. Era sábado e ele perdera o avião das três
horas. Só partiu no último vôo da noite, às dez horas, que naquela época
do ano só é realizado às quartas, sextas e sábados.
Durante o vôo, Bond refletiu sobre o seu próximo movimento. Sa-
bia, quase com certeza, que seus colegas começariam a chegar a Lisboa
depois do primeiro avião da manhã de domingo. Bond preferia estar lon-
ge, já seguindo para Helsinki, muito antes de qualquer deles chegar ao
continente.
Teve sorte. Tecnicamente, nenhum vôo deixava Lisboa depois da
chegada do último avião de Funchal. Mas o vôo da tarde da KLM para
Amsterdã atrasara consideravelmente por causa das condições meteoro-
lógicas desfavoráveis na Holanda, e havia um lugar vago a bordo.
Bond desembarcou no aeroporto Schiphol, em Amsterdã, às qua-
tro horas da madrugada. Pegou um táxi e foi direto para o Hilton Interna-
tional onde, mesmo àquela hora, conseguiu fazer uma reserva no vôo 846
da Finnair, que partia para Helsinki às cinco e meia da tarde.
Em seu quarto, Bond verificou rapidamente a valise e sua pasta
especial, com os equipamentos ocultos para as duas facas de comando
Sykes Fairburn e a automática Heckler & Koch P7. Tudo estava devida-
mente protegido, a fim de não aparecer nas máquinas de raios X dos ae-
roportos ou durante investigações de segurança. Era um esquema que a
assistente do armeiro do Setor Q — Ann Reilly, conhecida por todos como
Que-coisa — aperfeiçoara a tal ponto que não fornecia os detalhes técni-
cos nem mesmo ao pessoal de seu departamento.
Depois de muita argumentação, especialmente de Bond, o armeiro
concordara com a Heckler & Koch, de 9 mm, automática, para substituir a
desajeitada VP70. A arma era mais leve e parecia com sua velha e amada
Walther PPK, agora banida por todos os serviços de segurança.

62
Antes de tomar um banho de chuveiro e deitar-se, Bond enviou
um telegrama para Erik Carlsson, em Rovaniemi, com instruções sobre o
Saab. Pediu depois que o acordassem às 11:15 h, com o café da manhã.
Dormiu serenamente, apesar de os problemas relativos a Mosolov,
Tirpitz e Ingber — particularmente Mosolov — pressionarem sumamen-
te. Despertou revigorado, mas ainda dominado por esses pensamentos.
Depois de comer o de sempre, ovos mexidos com bacon, torradas,
geléia e café, Bond ligou para o número em Londres onde poderia encon-
trar M numa manhã de domingo. Conversaram em duplo sentido, como
fora determinado sempre que Bond falasse com seu chefe em telefone
aberto, durante uma missão. Estabelecido o contato, Bond fez a M o rela-
to sobre o que acontecera:
— Conversei com os três fregueses, senhor. Estão interessados,
mas não posso ter certeza absoluta de que comprarão a mercadoria.
— Eles lhe disseram tudo a respeito de seus planos?
M parecia excepcionalmente jovial ao telefone.
— Não. Mister Leste mostrou-se cauteloso em relação ao diretor
de que falamos. Devo dizer que Virgínia parecia conhecer a maior parte
dos detalhes, enquanto Abraão deu-me a impressão de estar completa-
mente no escuro.
— Ah. . .
M esperou.
— Leste quer que eu o acompanhe até a fonte da última remessa.
Diz que uma outra deverá ser despachada a qualquer momento.
— É bem provável.
— Mas devo informar que ele não me forneceu os detalhes com-
pletos da última carga.
— Eu disse que haveria essa possibilidade.
Quase se podia ver M sorrindo de satisfação por ter acertado.
— Seja como for, seguírei outra vez para o norte no fim da tarde.
— Já tem algumas cifras? — perguntou M, dando a Bond a oportu-
nidade de fornecer as referências do ponto de encontro.
Bond já verificara as coordenadas e transmitiu os números, repe-
tindo para que M conferisse; estavam deliberadamente misturados, cada
par invertido.
— Muito bem — disse M. — Vai por ar?
— Por ar e por terra. Já providenciei para o carro estar à espera. —

63
Bond hesitou. — Há mais uma coisa, senhor.
— O que é?
— Lembra-se da dama? Aquela com quem tivemos um problema...
afiada como uma faca?
— Claro.
— E a amiga dela, a que tem um pai esquisito?
Referia-se a Anni Tudeer. M grunhiu uma afirmativa.
— Precisarei de uma fotografia para o reconhecimento.
— Não sei. Pode ser difícil. Tão difícil para você quanto para nós.
— Eu agradeceria, senhor. Creio que é essencial.
— Verei o que posso fazer.
M não parecia estar convencido.
— Mande assim que puder. Por favor, senhor.
— Não sei. . .
— Se for possível. Tornarei a entrar em contato quando tiver mais
notícias.
Bond desligou abruptamente. Outra relutância por parte de M, algo
que Bond nunca experimentara antes. Já acontecera quando Rivke Ingber
foi mencionada durante a sessão de instruções em Londres. E tornava a
acontecer agora, na primeira insinuação de uma identificação positiva de
Anni Tudeer, que para Bond não passava de um nome mencionado por
Paula Vacker.
O DC9-50 da Finnair — o vôo 846, de Amsterdã para Helsinki — ini-
ciou a aproximação final às 9:45 h daquela noite. Olhando para as luzes
lá embaixo, difusas pelo frio e pela neve, Bond se perguntou se os outros
três já teriam chegado à Finlândia.
Caíra mais neve no curto prazo de sua última visita. O avião pousou
numa pista que era como um talho aberto nas pilhas de neve a se ergue-
rem nos dois lados, mais altas do que o próprio DC9-50.
A partir do momento em que entrou no terminal os sentidos de
Bond tornaram-se extremamente aguçados. Não só ficou atento a qual-
quer sinal dos três parceiros, mas também a qualquer outra pessoa que o
pudesse estar vigiando. Tinha bons motivos para se lembrar do seu últi-
mo encontro com dois assassinos naquela linda cidade.
Bond pegou um táxi e seguiu para o Hesperia Hotel, uma escolha
calculada. Queria cobrir sozinho o percurso para o ponto de encontro e
era bem possível que Mosolov, Tirpitz e Rivke Ingber já estivessem, se-

64
paradamente, a caminho. Se qualquer membro do grupo procurava por
Bond, o Intercontinental certamente estaria vigiado.
Pensando nisso, Bond foi extremamente cauteloso em seus mo-
vimentos — demorou a pagar o táxi para olhar ao redor, esperou alguns
segundos diante das portas do hotel e esquadrinhou o saguão no instante
em que entrou.
E mesmo quando indagava à moça na recepção sobre o Saab Turbo,
Bond colocou-se num bom ponto de observação.
— Creio que vocês receberam um carro aqui. Um Saab 900 Turbo.
Prateado. Em nome de Bond. . . James Bond.
A moça na recepção franziu o rosto, irritada, como se tivesse coisas
mais importantes a fazer do que verificar carros entregues no hotel em
nome de hóspedes estrangeiros.
Bond pediu um quarto para uma noite e pagou adiantado. Mas não
tinha a intenção de passar a noite em Helsinki, se o carro tivesse chegado.
A viagem de Rovaniemi a Helsinki, naquela época do ano, levava cerca de
24 horas, se não houvesse nevascas e as estradas não ficassem bloquea-
das. Erik Carlsson deveria cobrir o percurso facilmente, com sua grande
habilidade e experiência de antigo piloto de corrida.
Ele conseguira, num tempo impressionante. Bond previa uma es-
pera, mas a moça na recepção informou que o carro já estava ali e sacudiu
as chaves como para demonstrar isso.
Bond subiu para o quarto, tirou um cochilo de uma hora e depois
começou a se preparar para o trabalho. Vestiu uma roupa ártica: um ma-
cacão de atleta sobre a roupa de baixo Damart, calça para esquiar acol-
choada, botas Mukluk, uma suéter grossa de gola rulê, o blusão de frio,
produzido pela tol-ma oy na Finlândia para o Saab. Antes de pôr o blusão,
Bond ajustou o coldre da Heckler & Koch P7, projetado especialmente
pelo Setor Q. Era ajustável e podia ser colocado em diversas posições, do
quadril ao ombro. Desta vez, Bond puxou as tiras firmemente, deixando o
coldre atravessado no meio do peito. Verificou a P7, carregou-a e enfiou
nos bolsos do blusão diversos pentes sobressalentes, cada um com dez
balas.
A pasta continha tudo o que ele poderia precisar, à exceção das
roupas, que estavam na valise. Quaisquer outros armamentos necessá-
rios — ferramentas, lanternas e vários artefatos pirotécnicos — encontra-
vam-se no carro.

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Enquanto se vestia, Bond ligou para Paula Vacker. Tocou 24 vezes,
sem que ninguém atendesse. Tentou o escritório, mesmo sabendo que
não haveria ninguém lá numa noite de domingo.
Praguejando silenciosamente — pois a ausência de Paula implicava
um trabalho extra antes de partir —, Bond terminou de se vestir: ajeitou
um capuz Darmat na cabeça, colocando por cima um confortável gorro de
lã, protegeu as mãos com luvas térmicas de motorista. Enrolou ainda um
cachecol de lã no pescoço e guardou no bolso os óculos de proteção, sa-
bendo que, se tivesse de deixar o carro em temperaturas abaixo de zero,
era essencial cobrir todas as áreas do rosto e das mãos.
Finalmente, ligou para a recepção, a fim de comunicar que estava
deixando o hotel. Seguiu direto para o estacionamento, onde o 900 Turbo
parecia cintilar sob as luzes.
A valise foi para a mala traseira do carro. Bond verificou se ali es-
tava tudo o que solicitara: a pá, duas caixas de alimentos, foguetes de si-
nalização e a equipagem de lançamento de cabo Pains-Wessex Speedline,
capaz de projetar um cabo de 275 metros a uma distância de 230 metros
com rapidez e precisão.
Bond já abrira a frente do carro, a fim de desligar os controles de
alarme. Em seguida, conferiu o resto do equipamento: os compartimen-
tos secretos que continham mapas e os foguetes de sinalização, além do
novo e grande revólver Ruger Redhawk 44 Magnum, que era agora o seu
armamento adicional — uma arma capaz de deter um homem e até mes-
mo um carro, se manejada devidamente.
Apertou um botão de aparência inocente no painel e uma gaveta
deslizou para trás, revelando meia dúzia de objetos em formato de ovo, as
chamadas ‘granadas de exercício’, na verdade granadas de atordoamento,
usadas pelas forças especiais britânicas. Por trás dessa ‘caixa de ovos’ ha-
via quatro granadas mais letais — as L2A2, um equipamento padronizado
do exército britânico, derivado da M26 americana.
Abrindo o porta-luvas, Bond verificou que a bússola continuava no
lugar. Havia ainda um bilhete de Erik: Boa sorte no que quer que esteja
fazendo. E acrescentava: Não se esqueça do que lhe ensinei sobre o pé
esquerdo! Erik.
Bond sorriu, recordando as horas que passara com Carlsson para
aprender as técnicas de frear com o pé esquerdo, rodopiar e controlar o
carro no gelo denso.

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Por fim, contornou o Saab, a fim de certificar-se de que os pneus
estavam em ordem. Era uma longa viagem até Salla, cerca de mil quilô-
metros, bastante fácil com bom tempo, mas árdua e perigosa com o gelo
e a neve do inverno.
Depois de verificar os controles do carro, como um piloto de avião
antes da decolagem, Bond ligou a unidade de orientação superior, um
equipamento semelhante ao caça Saab Viggen, porém modificado e ajus-
tado. O mostrador fornecia em digitais a velocidade e reserva de com-
bustível, além das linhas graduadas convergentes, que ajudavam um mo-
torista a guiar com segurança — pequenos sensores de radar indicavam
quaisquer pilhas de neve, à esquerda ou à direita, eliminando assim a
possibilidade de colisão com algum acúmulo de neve profundo e irregular.
Antes de partir para Salla, Bond ainda tinha de fazer uma visita par-
ticular. Ligou o carro, deu marcha à ré, fez a manobra e subiu pela rampa.
Entrou na rua Mannerheimintie e seguiu para o Parque da Esplanada.
As estátuas de neve ainda decoravam o parque; o homem e a mu-
lher continuavam unidos no abraço; e quando trancou o carro, Bond teve
a impressão de ouvir um grito distante, muito longe através da cidade,
como de um animal ferido..
A porta de Paula estava fechada, mas havia algo de estranho. Bond
percebeu imediatamente, com o sentido extra que provém da longa ex-
periência. Abriu rapidamente dois botões no meio do blusão para facilitar
o acesso à Heckler & Koch. Encostou a ponta do pé direito da bota Mukluk
na quina da porta e empurrou levemente. A porta deslocou-se para trás,
solta nas dobradiças.
Por reflexo, a pistola automática estava na mão de Bond no ins-
tante em que ele constatou que a fechadura e a corrente haviam sido
arrancadas. Com um olhar rápido, notava-se o emprego de força bruta —
certamente não era um arrombamento sofisticado. Deslocando-se para
um lado, Bond permaneceu imóvel, prendendo a respiração, escutando:
nenhum som no interior do apartamento de Paula ou no resto do prédio.
Lentamente, Bond se adiantou. O apartamento estava na maior
confusão: móveis e objetos quebrados, espalhados por toda parte. Cami-
nhando em silêncio, a P7 firme em sua mão, dirigiu-se para o quarto. A
mesma coisa. Gavetas e armários abertos, roupas espalhadas. Até o edre-
dom fora cortado em pedacinhos. Passando de um cômodo a outro, Bond
encontrou a mesma devastação — e nenhum sinal de Paula.

67
Todos os sentidos de Bond diziam-lhe que saísse dali, deixasse
como estava, talvez telefonasse para a polícia, depois de estar longe de
Helsinki. Podia ser simplesmente um assalto, talvez um seqüestro, dis-
farçado para dar a impressão de assalto. Uma terceira possibilidade, no
entanto, era a mais provável, pois havia uma ordem paradoxal em meio
ao caos, os indícios de uma busca determinada. Alguém procurava por
algo específico.
Bond percorreu os cômodos pela segunda vez, rapidamente. Havia
agora duas pistas — três, com o fato de que todas as luzes estavam ace-
sas.
Sobre a cômoda, de onde se removera os cremes e a maquilagem
de Paula, havia um único objeto. Bond apanhou-o cuidadosamente, vi-
rando-o e sopesando-o na mão. Uma peça valiosa de recordação da Se-
gunda Guerra Mundial? Não, era algo mais pessoal, algo mais significati-
vo: uma Cruz de Cavaleiro alemã, pendendo da típica fita preta, branca
e vermelha, com um fecho de folhas de carvalho. Uma grande honra. A
gravação no outro lado era perfeitamente visível: “SS-Oberführer Aarne
Tudeer. 1944.”
Bond colocou a medalha no bolso. Ao virar-se, ouviu um tinido,
como se tivesse chutado algo metálico no chão. Esquadrinhou o carpe-
te e avistou um brilho fosco junto à perna de metal de uma mesinha-
de-cabeceira. Outra condecoração? Não, desta vez era um emblema de
campanha, também alemão: um bronze escuro, encimado por uma águia,
com um mapa tosco do extremo norte da Finlândia e Rússia gravado, a
palavra LAPÔNIA na parte superior. O emblema da Wehrmacht para o
serviço no extremo norte, também com uma gravação no reverso, mas
datado de 1943.
Bond meteu-o no bolso, junto com a Cruz de Cavaleiro, e se enca-
minhou para a porta. Não havia manchas de sangue em qualquer parte
e ele só podia torcer para que Paula simplesmente tivesse se ausentado,
numa viagem de negócios ou prazer.
De volta ao Saab, ligou o aquecimento e saiu do Parque da Espla-
nada. Voltando à Mannerheimintie, seguiu para a Rota 5, que o levaria à
longa viagem até o norte, contornando as cidades de Lahti, Mikkeli, Va-
rkaus. Entraria pela Lapônia, Círculo Ártico e Kuusamo, até chegar ao Ho-
tel Revontuli, pouco antes de Salla, o ponto de encontro combinado com
os outros membros de Quebra-Gelo.

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Fazia um frio intenso quando Bond saiu do apartamento de Paula.
Era possível sentir o cheiro de neve no ar; a geada formava-se quase visi-
velmente em torno dos prédios de Helsinki.
Assim que deixou a cidade, Bond concentrou-se totalmente em
guiar, levando o carro aos limites permitidos pelas condições da estrada e
da visibilidade. As principais estradas finlandesas são excepcionais, mes-
mo no extremo norte. Ali, nas profundezas do inverno, removedores de
neve mantêm abertas as artérias principais, embora na maior parte do
tempo como uma superfície de gelo sólido.
Não havia lua e pelas oito ou nove horas seguintes Bond apenas
teve noção do branco ofuscante, refletido quando os faróis incidiam so-
bre a neve, dissipando-se subitamente quando extensos acres de pinhei-
ros surgiam abrigados da neve.
Bond não tinha a menor dúvida de que os outros viajariam pelo
ar, mas queria preservar a sua mobilidade, mesmo sabendo que teria de
abandoná-la em Salla. Para atravessar a fronteira com Kolya, ambos pre-
cisariam deslocar-se furtivamente pelas florestas, através de lagos, sobre
colinas e vales, na região desolada do inverno do Círculo Ártico.
O mostrador digital do Saab era extremamente valioso — um siste-
ma quase completo de orientação, indicando a Bond como a neve estava
acumulada nos dois lados da estrada. Quanto mais avançava para o nor-
te, mais espaçadas eram as aldeias. Naquela época do ano, havia apenas
umas poucas horas que podiam ser classificadas como ‘dia’. O resto era
crepúsculo, aparentemente perpétuo, ou a total escuridão.
Parou duas vezes, a fim de encher o tanque do Saab e comer algu-
ma coisa. Por volta das quatro horas da tarde — embora, com a escuridão,
pudesse ser meia-noite — o carro já o levara a cerca de quarenta quilô-
metros de Suomussalmi. Agora, encontrava-se relativamente próximo à
fronteira russo-finlandesa, a poucas horas do Círculo Ártico. Mas ainda
havia uma boa distância a percorrer. E até aquele momento as condições
do tempo não eram especialmente hostis.
Por duas vezes o Saab enfrentou trechos de neve intensa, levanta-
da em turbilhões brancos e ofuscantes por ventos fortes. Mas a cada vez
Bond seguira em frente, ultrapassando as nevascas e torcendo para que
fossem isoladas. E o eram. O tempo estava tão estranho que ele também
teve de enfrentar densos nevoeiros, formados por súbitas elevações na
temperatura, o que o retardou ainda mais do que a neve.

69
Havia ocasiões em que o Saab seguia por longas retas de estrada
gelada, passando por pequenas comunidades entregues à vida cotidiana,
com luzes acesas nas lojas, vultos encapuçados andando pelas calçadas,
mulheres puxando pequenos trenós de plástico, repletos de artigos com-
prados em pequenos supermercados. Saindo da cidadezinha ou aldeia,
parecia não haver mais nada além da paisagem interminável de neve e
árvores, alguns caminhões, um carro voltando para a última comunidade.
Havia também gigantescas carretas; transportando troncos e avançando
lentamente.
A fadiga crescia em pequenas ondas. Bond parava ocasionalmente,
deixando que o frio intenso penetrasse no carro por um momento, e des-
cansava por alguns minutos. De vez em quando mastigava um tablete de
glicose, abençoando o conforto do banco ajustavel do Saab.
Depois de cerca de 17 horas na estrada, Bond viu-se a trinta quilô-
metros do cruzamento entre a Rota 5 e o caminho que o levaria para o
leste, sobre a estrada na direção leste-oeste entre Rovaiemi e a zona fron-
teiriça de Salla. O cruzamento está 150 quilômetros a leste de Rovaiemi e
pouco mais de quarenta a oeste de Salla.
A paisagem iluminada pelos faróis permanecia inalterada, a neve
prolongava-se até um horizonte invisível, grandes florestas, embranque-
cidas pelo gelo, subitamente castanhas e até verdes, como se estivessem
camufladas, em trechos que escapavam à fúria total das nevascas ou não
eram afetados pela forte geada. Ocasionalmente Bond vislumbrava uma
clareira com uma kota coberta de neve — a tenda dos lapões, feita de
estacas e pele, muito parecida com a de alguns índios norte-americanos
— ou com o que restava de uma cabana de troncos, derrubada pelo peso
da neve.
Bond relaxava, lutava com o volante, corrigindo, alerta a qualquer
mudança súbita, enquanto acelerava o Saab a uma velocidade segura,
através do gelo e da neve compacta. Já podia farejar o êxito: a chegada ao
hotel sem precisar de transporte aéreo. E podia também ser o primeiro a
chegar ao ponto de encontro — uma honra adicional.
Encontrava-se agora num trecho solitário da estrada, sem nada
pela frente, além da bifurcação a dez quilômetros, e muito pouco entre
esse ponto e Salla, exceto o estranho acampamento lapão e as cabanas
de veraneio desertas. Reduziu a velocidade para percorrer uma longa cur-
va. Ao fazê-lo, virando à direita, percebeu algumas luzes à frente. Bond

70
desligou os faróis e tornou a acender, por um segundo, a fim de verificar
o que havia na frente. Divisou um gigantesco removedor de neve amare-
lo, com todas as luzes acesas, a imensa pá projetada como a proa de um
encouraçado.
Não era um moderno limpa-neve, mas um monstro corpulento. O
limpa-neve mais usado naquela parte do mundo possuía uma enorme
estrutura, com uma cabina de vidro grosso, proporcionando o máximo
de visibilidade. Andava em grandes lagartas, como as de um tanque de
guerra. A pá era operada à frente do veículo por pistões hidráulicos que
podiam alterar o ângulo ou a altura numa questão de segundos.
As pás dessas máquinas enormes eram de aço, com formato em V e
cerca de três metros de altura, curvas nas extremidades afiladas, a fim de
que a neve e o gelo fossem empurrados para os lados e depois arremes-
sados para longe, através do impulso.
Embora parecessem desajeitadas, as máquinas podiam dar marcha
à ré, mover-se e girar com a eficiência de um tanque pesado. Ainda mais:
eram especificamente projetadas para manterem a mobilidade nas piores
condições possíveis de inverno.
Os finlandeses resolveram há muito tempo o problema de neve e
gelo em suas principais estradas. Aqueles monstros muitas vezes eram
acompanhados por limpa-neves menores, que removiam o restante da
neve e do gelo da primeira investida.
Essa não!, pensou Bond. Onde havia aquelas máquinas, quase sem-
pre havia os vestígios de uma nevasca. Praguejou silenciosamente, pois
seria muito azar, depois de superar duas nevascas, ser apanhado pelas
conseqüências de uma terceira.
Passando a mudança, espiou pelo espelho retrovisor. Lá atrás, tam-
bém com todas as luzes acesas, surgiu um segundo limpa-neve, presu-
mivelmente saindo de um desvio na estrada por onde acabara de passar.
Bond deixou que o carro deslizasse alguns segundos em ponto
morto, depois tornou a pisar no acelerador, avançando lentamente. Se
havia muita neve pela frente ou a leste, deveria passar o mais depressa
possível, deixando o caminho aberto para a máquina monstruosa.
Mas Bond percebeu nesse instante que o limpa-neve à frente ocu-
pava o meio da estrada. Olhando mais uma vez pelo espelho retrovisor,
constatou que também havia um limpa-neve por trás. Bond sentiu os ca-
belos da nuca se arrepiarem com o pressentimento de perigo. Passou por

71
uma estrada transversal e um olhar à direita revelou que a estrada se en-
contrava relativamente desobstruída. Portanto, as máquinas não estavam
ali em sua função normal, mas com um propósito mais sinistro.
Bond estava a apenas três segundos da estrada transversal quando
entrou em ação, virando o volante à direita, pisando no freio com o pé
esquerdo, sentindo a traseira começar a deslizar na derrapagem inevitá-
vel, para depois calcar o acelerador e girar o Saab, numa volta controlada.
Numa fração de segundo, Bond mudara de direção. Acelerou novamente,
corrigindo a derrapagem da traseira, que poderia levá-lo a um segundo
giro pela camada de gelo na estrada.
O limpa-neve por trás estava bem mais perto do que calculara. Ao
aumentar a velocidade, concentrando-se no carro a fim de corrigir qual-
quer derrapagem ao primeiro sinal, a massa de metal sólido tornou-se
maior, avançando diretamente para cima do Saab.
Teria sorte se chegasse à estrada transversal antes da máquina. Em-
bora não houvesse tempo para olhar, Bond sabia que o outro limpa-neve
também aumentara a velocidade. Se não chegasse ao cruzamento a tem-
po, seria lançado contra a neve acumulada à beira da estrada — enter-
rando tão fundo a frente do Saab que o carro ficaria à mercê de qualquer
um — ou seria espremido pelas duas máquinas, que esmagariam o carro
com suas curvas lâminas de aço.
Uma das mãos deixou o volante por um segundo a fim de apertar
dois botões no painel. Houve um silvo baixo enquanto o sistema hidráu-
lico abria dois compartimentos secretos. Agora, as granadas e o Ruger
Super Redhawk estavam ao seu alcance. Assim como o cruzamento. Bem
à sua frente.
O limpa-neve à sua frente, rebrilhando amarelo e aço à luz dos fa-
róis do Saab, estava a cerca de 12 metros do cruzamento. Esquivando-
se como um pugilista, Bond começou a virar à direita. Viu o limpa-neve
desviar-se para a esquerda, aumentando a velocidade, numa tentativa de
cortar a passagem do Saab.
E depois, quase que no último momento, quando faltava pouco
para completar a curva, Bond virou o volante ainda mais bruscamente
à direita, com o pé esquerdo outra vez no freio, e em seguida acelerou
fundo.
O carro girou como um avião; os pés de Bond deixaram o freio e o
acelerador ao mesmo tempo, no instante em que o carro estava no meio

72
do giro, começando a se deslocar de lado para a estrada oposta — a que
seguiria se virasse à esquerda.
Corrigindo o volante e voltando a acelerar com suavidade, Bond
sentiu o Saab reagir, como um animal perfeitamente controlado, e a tra-
seira derrapar ligeiramente. Corrigir. Derrapar. Corrigir. Acelerar. E o carro
estava alinhado, avançando com segurança, acompanhado à esquerda e
à direita pelas massas gigantescas das duas máquinas.
Ao se esquivar da lâmina do limpa-neve mais perigoso — agora à
sua direita —, Bond estendeu a mão para as granadas. Pegou uma L2A2 e
arrancou o pino com os dentes. Abriu um pouco a porta do carro e largou
a granada em sua esteira. O ar terrivelmente frio penetrou no interior do
carro, enquanto Bond se esforçava para fechar a porta. Sentiu o solavanco
quando a traseira do Saab roçou a lâmina de aço do limpa-neve à direita.
Por um segundo, pensou que o contato o lançaria para fora da pis-
ta, na neve acumulada nos lados da estrada secundária na qual seguia.
Mas o carro permaneceu firme e Bond recuperou o controle, ouvindo a
neve no lado espumar para o alto, ao ser atingida pelos pára-lamas. O es-
paço mal dava para levar o carro através da estrada menor, entre os mon-
tes brancos. Nesse instante, mais atrás, soou a explosão da granada. Um
rápido olhar ao espelho — pois não devia desviar os olhos da estrada e do
mostrador na altura da cabeça — revelou uma flor vermelho-escura de
chama elevando-se da parte de baixo de um dos limpa-neves amarelos.
Com um pouco de sorte, a granada seria suficiente para imobilizar aquela
máquina durante dez minutos ou mais, enquanto a outra a empurrasse
para fora do caminho.
De quaquer forma, calculou Bond, mesmo naquela ravina estreita
e perigosa, flanqueada de neve, podia correr mais depressa do que qual-
quer limpa-neve. Isto é, qualquer limpa-neve por trás. Não contara com
mais uma máquina monstruosa, bem à frente, com os faróis varando a
escuridão, ofuscando-o ao surgir aparentemente do nada. Desta vez, não
havia espaço para desviar.
Lá atrás, com alguma sorte, um limpa-neve estaria fora de ação e o
outro só poderia seguir depois que a passagem fosse desobstruída. Mas
na frente surgia um terceiro monstro amarelo, com a neve projetando-
se de suas entranhas. Era bem possível, pensou Bond, que houvesse um
quarto esperando em silêncio, as luzes apagadas, no outro lado do cru-
zamento.

73
Como numa operação militar clássica, alguém armara uma embos-
cada para Bond. No lugar certo e no momento certo.
Mas Bond não tentou especular sobre a lógica ou a informação que
permitiria a alguém preparar uma armadilha. O limpa-neve amarelo ti-
nha os faróis fixados no Saab; mesmo com o clarão, Bond pôde divisar a
lâmina curva descer até quase perfurar o gelo no meio da estrada; suas
entranhas ainda jogavam neve para os lados e para trás, com a mesma
facilidade de uma lancha espadanando água, em alta velocidade.
Com a mente em disparada, Bond avançou até onde podia e parou
o carro. Ficar lá dentro seria uma loucura. Tinha de encarar a situação
como uma manobra militar. Estava encurralado e só havia uma coisa a
fazer: deter o limpa-neve que avançava em sua direção.
O Redhawk, com sua carga Magnum 44, ação dupla e rápida, era a
arma de que precisava agora. Bond pegou-o, meteu duas granadas L2A2
nos bolsos do blusão e abriu a porta. Antes de sair, apanhou uma das
granadas de atordoamento — ‘relâmpagos’, como eram chamadas pelo
pessoal do SAS.
O chão estava duro e o frio intenso atingiu Bond como água gelada.
Deslocou-se para a traseira do carro e se lançou na neve, à esquerda. A
neve estava macia e pulverosa. Num segundo a neve alcançou-lhe a cin-
tura, e ele continuou a afundar ainda mais. Bond recuou, flexionando as
pernas, como se se ajoelhasse. Afundou ainda mais, até ficar soterrado
quase na altura dos ombros.
Mas era uma posição nova e muito diferente para travar um com-
bate. O clarão dos faróis do limpa-neve e do refletor sobre a cabina desa-
pareceu. Através dos óculos de proteção, Bond avistou dois homens nos
controles. O veículo mais pesado deslocava-se, virando em sua direção.
Não havia a menor dúvida. Preparavam-se para o golpe final — cortar a
Fera Prateada ao meio. Prateado contra amarelo, pensou Bond. Levantou
o braço direito, a mão esquerda ainda segurando a granada de atordoa-
mento, o punho esquerdo sob o punho direito para firmar a mira.
O primeiro tiro apagou o refletor no alto da cabina; o segundo
espatifou o pára-brisa. Bond mirara alto. Não queria matar, se pudesse
evitá-lo.
Uma das portas se abriu e um vulto começou a descer. Nesse mo-
mento Bond baixou o Redhawk, passando-o para a mão esquerda, e com
a direita pegou a granada de atordoamento. Arrancou o pino e arremes-

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sou o sólido ovo verde, com toda a força de que era capaz, na direção do
pára-brisa espatifado da cabina do limpa-neve.
A granada deve ter explodido dentro da cabina. Bond ouviu o es-
trondo, mas desviou os olhos. O clarão certamente causaria uma cegueira
temporária, a explosão poderia romper os tímpanos dos ocupantes.
Levantando o revólver, Bond saiu da neve, quase nadando através
da substância densa até poder ficar de pé e avançar, com alguma cautela,
na direção do limpa-neve.
Um dos homens estava caído, inconsciente, ao lado da máquina
monstruosa; o que tentara saltar, calculou Bond. O outro, ao volante do
limpa-neve, tinha os braços diante do rosto e balançava de um lado para
o outro, gemendo em harmonia com o vento, que uivava pelo funil da
estrada.
Bond encontrou uma alavanca, subiu na cabina pelo lado do mo-
torista e abriu a porta. Algum instinto deve ter alertado o motorista para
o perigo iminente, pois ele se encolheu todo. Bond acertou-o na nuca,
vigorosamente, com o cano do Ruger. O homem mergulhou no sono sem
mais protestos.
Alheio ao frio, Bond puxou o homem para fora, arrastando-o até a
frente do limpa-neve e largando-o ao lado do companheiro, antes de vol-
tar à cabina. O motor do limpa-neve estava ligado. Bond teve a impressão
que estava um quilômetro acima dos sistemas hidráulicos e da imensa
pá. A profusão de alavancas e controles era desanimadora, mas o motor
ainda pulsava. Tudo o que interessava a Bond era tirar aquele monstro da
estrada ou pelo menos ultrapassar o Saab e deixá-lo numa posição em
que bloquearia a passagem do outro limpa-neve, ainda no cruzamento.
Afinal foi muito simples. O mecanismo normal funcionava com um
volante, a alavanca de mudança e o acelerador. Bond levou três minutos
para avançar com o monstro, contornar o Saab e depois atravessá-lo na
estrada. Desligou o motor, retirou as chaves e jogou-as longe, para as du-
nas de neve. Os dois homens ainda estavam desmaiados, provavelmente
sofreriam de ulcerações do frio, além dos danos aos tímpanos. Era mui-
to pouco a pagar, pensou Bond, por tentarem trinchá-lo em fragmentos
congelados.
De volta ao carro, pôs o aquecimento no máximo a fim de secar,
guardou o Redhawk — depois de recarregá-lo — e as granadas em seus
respectivos esconderijos, tornou a apertar os botões para fechá-los e con-

75
sultou o mapa.
Se o limpa-neve percorrera toda a pista, era de se prever que esti-
vesse desobstruída até a estrada principal para Salla. Mais duas horas e
chegaria lá. Mas acabou levando quase três horas, pois a pista era sinuosa
e voltava atrás em muitos trechos, antes de alcançar a estrada principal.
Dez minutos depois de meia-noite Bond finalmente avistou o gran-
de cartaz iluminado que anunciava o Hotel Revontuli. Mais alguns minu-
tos e lá estava a saída da estrada, o prédio em forma de meia-lua, a pla-
taforma de esquiar, uma pista de descida e o teleférico, subindo por trás
da estrutura.
Bond estacionou o carro e ficou surpreso ao constatar que o capô
e o pára-brisa já estavam cobertos por uma camada de gelo poucos se-
gundos depois de desligar o motor. Mesmo assim, era difícil acreditar que
fizesse tanto frio. Saltando, Bond ajeitou os óculos de proteção e cuidou
para que o cachecol lhe cobrisse o rosto. Tirou a valise e a pasta do carro,
ligou os sensores e alarmes, acionou o mecanismo central da tranca.
O hotel era moderno, em madeira e mármore. Um saguão amplo,
com um bar. Pessoas conversavam, riam e bebiam no bar. Ao se dirigir
para a recepção, Bond foi saudado por uma voz familiar.
— Oi, James! — disse Brad Tirpitz. — O que o atrasou? Passou o dia
inteiro esquiando?
Bond assentiu, removendo os óculos de proteção e desenrolando
o cachecol.
— Estava uma noite agradável para um passeio — comentou, im-
passível.
Era esperado na recepção e por isso não levou mais que dois minu-
tos para reservar um quarto. Tirpitz voltara ao bar — onde bebia sozinho,
conforme Bond notou — e nenhum dos outros estava à vista. Bond preci-
sava dormir um pouco. O plano era se encontrarem ao café da manhã, no
dia seguinte, depois que toda a equipe chegasse.
Um carregador pegou sua valise. Bond já estava se voltando para
os elevadores quando a moça na recepção informou que havia uma en-
comenda expressa, via aérea, para ele. Era um envelope pardo, com um
cartão no verso.
Assim que o carregador saiu do quarto, Bond trancou a porta e
abriu o envelope. Lá dentro havia apenas uma folha de papel e uma foto-
grafia. M escrevera de próprio punho: Esta é a única fotografia disponível

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da pessoa referida. Por favor, queira destruí-la. Pelo menos saberia como
era Anni Tudeer, pensou Bond. Estendeu-se na cama e levantou a foto-
grafia.
Sentiu o estômago se contrair, os músculos retesarem. O rosto que
o fitava da fotografia era o de Rivke Ingber, sua colega do Mossad. Anni
Tudeer, a amiga de Paula, filha do oficial finlandês nazista da SS, ainda
procurado por crimes de guerra, era Rivke Ingber.
Com uma lentidão meticulosa, James Bond pegou uma caixa de
fósforos no cinzeiro na mesinha-de-cabeceira, riscou um e ateou fogo ao
bilhete e à fotografia.

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78
7

Rivke
Há anos que Bond acalentava o hábito de tirar pequenos cochilos e
controlar o sono — mesmo sob tensão. Também adquirira a capacidade
de transmitir problemas ao computador de sua mente, deixando que o
subconsciente funcionasse enquanto dormia. Geralmente acordava com
a mente lúcida, às vezes com uma nova visão das dificuldades e sempre
revigorado.
Depois da viagem excepcionalmente longa e árdua desde Helsinki,
Bond sentia a fadiga natural, embora a mente se mantivesse ativa, com
um turbilhão de enigmas conflitantes.
Não havia nada que pudesse fazer de imediato em relação ao ar-
rombamento e destruição do apartamento de Paula em Helsinki. Sua
maior preocupação era a segurança da moça. Dois ou três telefonemas
pela manhã poderiam esclarecer essa questão.
Muito mais perturbador era o ataque das máquinas monstruosas.
Como deixara a Ilha da Madeira repentinamente, seguindo para Helsinki
através de Amsterdã, aquele atentado só podia significar uma coisa. Al-
guém vigiava todos os pontos de entrada na Finlândia. Devem tê-lo ob-
servado no aeroporto e depois tomaram conhecimento de sua partida.
Era evidente que alguém desejava tirá-lo do caminho; já o deseja-
79
vam antes mesmo de ele ter conhecimento da missão: isso explicava o
atentado a faca no apartamento de Paula.
Dudley, destacado para a missão enquanto M esperava pelo retor-
no de Bond, expressara claramente que desconfiava de Kolya Mosolov.
Bond, por sua vez, tinha outras idéias e a última descoberta — a de que a
agente do Mossad, Rivke Ingber, era a filha de um oficial finlandês da SS
procurado por crimes de guerra — era muito mais alarmante.
Bond deixou que esses problemas penetrassem em seu pensamen-
to, enquanto tomava um banho de chuveiro e se preparava para dormir.
Por um momento pensou em comer, mas depois optou contra. Era me-
lhor jejuar até a manhã seguinte, quando tomaria o café com os outros
— desde que todos chegassem ao hotel.
Bond teve a impressão de ter adormecido há poucos minutos
quando as batidas se infiltraram em sua consciência. Seus olhos abriram-
se bruscamente. As batidas continuavam — suaves, aos pares, na porta.
Sem fazer qualquer barulho, Bond tirou a P7 de baixo do travessei-
ro e atravessou o quarto. As batidas eram insistentes. Duas, uma pausa
prolongada, mais duas.
Mantendo-se à esquerda da porta, as costas contra a parede, sus-
surrou:
— Quem está aí?
— Rivke. . . Rivke Ingber, James. Preciso falar com você. Deixe-me
entrar, por favor.
A mente de Bond desanuviou-se. Havia diversas respostas às inda-
gações com que Bond se confrontara quando fora dormir. Uma delas era
tão óbvia que já a levara em consideração. Se Rivke era mesmo a filha
de Aarne Tudeer, podia haver facilmente um vínculo entre ela e o Exér-
cito da Ação Nacional Socialista. Ela devia ter apenas trinta anos, 31 no
máximo, o que significava que talvez passara os anos de formação em
algum esconderijo com o pai. Se esse fosse o caso, então Anni Tudeer
podia perfeitamente ser uma agente neofascista de penetração, operan-
do no Mossad. Era também possível que tivesse sido avisada de que os
britânicos estavam próximos de descobrir sua verdadeira identidade. E
era ainda possível que desconfiasse que os colegas de Bond não seriam
avessos a omitir a informação para a CIA e a KGB. Já acontecera antes, e
Quebra-Gelo demonstrava ser uma aliança instável.
Bond olhou para o mostrador luminoso do seu Rolex Oyster Per-

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petual. Eram quatro e meia da madrugada. Psicologicamente, Rivke não
poderia ter escolhido um momento mais oportuno.
— Espere um instante — sussurrou Bond.
Tornou a atravessar o quarto, pôs um roupão e recolocou a auto-
mática Heckler & Koch debaixo do travesseiro.
Ao abrir a porta, Bond concluiu de imediato que ela viera desarma-
da. Havia bem poucos lugares em que poderia esconder alguma coisa no
traje que usava: um penhoar branco, opalescente, caindo solto sobre uma
camisola justa, transparente. Era o bastante para fazer qualquer homem
baixar a guarda: o corpo bronzeado completamente visível sob o tecido
fino, o contraste espetacular de cor, ressaltado pelo brilho louro dos cabe-
los, os olhos suplicantes numa insinuação de medo.
Bond deixou-a entrar no quarto, trancou a porta e virou-se. Seu
olhar desceu rapidamente pelo corpo de Rivke e pensou: ou ela é uma
superprofissional ou uma loura bastante imbecil.
— Não sabia que você já estava no hotel — disse Bond, calmamen-
te. — Seja bem-vinda.
— Obrigada. Posso sentar, James? Lamento profundamente . . .
— O prazer é todo meu. Por favor. . . — Indicou uma cadeira. —
Posso pedir alguma coisa para você? Ou prefere um dos drinques da ge-
ladeira?
Rivke sacudiu a cabeça.
— Isso é uma tolice. — Ela olhou ao redor, como se estivesse deso-
rientada. — Uma estupidez.
— Quer falar sobre isso?
Um aceno rápido.
— Não me julgue uma idiota completa, James, por favor. Sou muito
eficiente com os homens, mas Tirpitz. . .
— Você me disse que podia cuidar dele, que poderia tê-lo feito
antes, quando o meu antecessor o esmurrou.
Ela permaneceu em silêncio por um momento. Quando falou, foi
bruscamente, uma pequena explosão:
— Pois eu estava enganada, não é mesmo? E isso é tudo. — Uma
pausa. — Desculpe, James. Eu deveria ser altamente treinada e confiante.
Mas. . .
— Mas não consegue controlar Brad Tirpitz?
Ela sorriu com o tom zombeteiro de Bond e respondeu da mesma

81
forma:
— Ele não entende nada de mulheres. — O rosto dela se contraiu, o
sorriso desapareceu dos olhos. — Ele tem sido extremamente desagradá-
vel. Tentou entrar à força em meu quarto. Completamente embriagado.
Deu a impressão de que não desistiria facilmente.
— Quer dizer que nem mesmo o acertou com a bolsa?
— Ele estava realmente assustador, James.
Bond foi até a mesinha-de-cabeceira, pegou a cigarreira e o isquei-
ro. Abriu a cigarreira e ofereceu a Rivke, que sacudiu a cabeça. Bond acen-
deu um cigarro e soprou a fumaça para o teto.
— Não está combinando, Rivke.
Sentou-se na cama, de frente para ela, observando atentamente o
rosto atraente, à procura de qualquer indício de verdade.
— Sei disso. — Ela falava muito depressa. — Mas não podia ficar
sozinha no quarto. Você não tem idéia de como ele estava. . .
— Você não é uma flor murcha, Rivke. Normalmente não procura
a proteção do homem mais próximo. É uma atitude de volta-à-era-das-
cavernas. . . tudo o que pessoas como você detestam e desprezam.
— Desculpe. — Ela fez menção de se levantar, por um segundo sua
raiva tornou-se quase tangível. — Irei embora e o deixarei em paz. Preci-
sava apenas de companhia. O restante dessa suposta equipe não oferece
companhia a ninguém.
Bond estendeu a mão, segurando-a pelo ombro, empurrando-a de
volta à cadeira.
— Fique, Rivke. Mas, por favor, não me considere um imbecil. Po-
deria controlar Brad Tirpitz, bêbado ou sóbrio, com um movimento de
pestanas. . .
— Não é verdade.
A trama, pensou Bond, remontava ao tempo do Jardim do Éden,
o golpe mais antigo da história. Mas quem era ele para discutir? Se uma
mulher bonita entra em seu quarto no meio da noite, pedindo proteção
— mesmo que ela seja perfeitamente capaz de cuidar de si mesma — age
assim por um motivo. Mas isso acontece no mundo real, não naquele
labirinto de segredos e duplicidades em que Bond e Rivke viviam e tra-
balhavam.
Dando mais uma profunda tragada no cigarro, Bond tomou a deci-
são essencial. Rivke Ingber estava sozinha em seu quarto, sabia quem ela

82
era realmente. Antes que ela fizesse qualquer outro movimento, talvez
fosse melhor para ele colocar as cartas na mesa.
— Há duas semanas, Rivke, talvez menos. . . parece que perdi a
noção do tempo. . . você fez alguma coisa quando Paula Vacker lhe falou
da minha presença em Helsinki?
— Paula? — Ela parecia genuinamente perplexa. — James, não te-
nho a menor idéia. . .
Ele se inclinou para a frente, pegando as mãos dela.
— Nosso ofício gera amigos esquisitos, Rivke, às vezes estranhos
inimigos. Não quero me tornar seu inimigo. Mas você precisa de amigos,
minha querida. Eu sei quem você é.
A testa dela se franziu, os olhos tornaram-se cautelosos.
— Claro que sabe. Sou Rivke Ingber. Trabalho para o Mossad. E sou
uma cidadã israelense.
— Não conhece Paula Vacker?
Não houve a menor hesitação.
— Conheço. Foi há muito tempo e cheguei a conhecê-la bem. Mas
não a vejo há. . . Ora, deve ter pelo menos três ou quatro anos.
— E não esteve em contato com ela recentemente? — Bond podia
ouvir o tom da própria voz, um pouco desdenhosa. — Não trabalha com
ela em Helsinki? Não tinham um jantar marcado. . . que Paula cancelou...
pouco antes de sua partida para o encontro na Ilha da Madeira?
— Não.
Direto, franco, objetivo, categórico.
— Nem mesmo sob o seu nome verdadeiro. . . Anni Tudeer?
Ela aspirou fundo e depois exalou, como se quisesse expelir todo o
ar do corpo.
— Esse é um nome que prefiro esquecer.
— Aposto que sim.
Ela retirou as mãos abruptamente.
— Por favor, }ames, aceitarei aquele cigarro agora.
Bond deu-lhe um dos seus H. Simmons especiais e acendeu-o. Ela
tragou fundo, deixou que a fumaça escapasse pela boca.
— Você parece saber de muita coisa, Bond. Eu deveria deixar que
me contasse toda a história.
A voz era fria, desaparecera o tom amistoso, até mesmo sedutor,
de antes. Bond deu de ombros.

83
— Sei apenas quem você é. E também conheço Paula Vacker. Ela
me contou que informou a você que nos encontraríamos em Helsinki. Fui
ao apartamento de Paula. Havia dois especialistas em facas vigiando-a,
dispostos a me tratarem como um quarto de boi.
— Já lhe disse que Paula não fala comigo há anos. Além de saber
meu antigo nome e talvez que sou filha de um ex-oficial da SS. o que mais
você sabe?
Bond sorriu.
— Apenas que você é linda. Nada sei a seu respeito, exceto o que
classifica de seu ‘antigo nome’.
Ela assentiu, o rosto controlado, como uma máscara.
— Foi o que pensei. Muito bem, Mr. James Bond, contarei a história
toda, a fim de que possa acertar os ponteiros. Depois disso, acho melhor
ambos tentarmos descobrir o que está havendo. . . o que aconteceu no
apartamento de Paula. . . E eu gostaria de saber como Paula Vacker entra
nessa história.
— O apartamento de Paula foi vasculhado. Estive lá ontem, antes
de deixar Helsinki. Houve também um pequeno entrevero com três. . . ou
quatro. . . máquinas de remover neve, quando eu vinha para cá. Tudo in-
dicava que as máquinas queriam remodelar meu carro. . . comigo dentro.
Alguém não me quer aqui, Anni Tudeer. . . ou Rivke Ingber, qualquer que
seja o seu nome verdadeiro.
Rivke franziu o rosto.
— Meu pai era. . . é. . . Aarne Tudeer. Conhece a história dele?
— Era do estado-maior de Mannerheim e aceitou o convite dos
nazistas para se tornar um oficial da SS. Bravo, impiedoso, um criminoso
de guerra procurado.
Ela acenou com a cabeça.
— Eu não sabia dessa parte até os 12 anos. — Rivke falava suave-
mente, mas com uma convicção que Bond sentiu ser genuína. — Ao deixar
a Finlândia, meu pai levou diversos oficiais e alguns soldados e sargentos.
Naquele tempo, como você sabe, muitas esposas seguiam os militares.
No dia em que partiu da Lapônia, meu pai pediu uma jovem viúva em
casamento. Boa família, com extensas propriedades. . . principalmente
florestas. . . na Lapônia. Minha mãe era parte lapã. Ela aceitou e ofereceu-
se para acompanhá-lo. E viveu horrores que você nem poderia supor.
Rivke sacudiu a cabeça, como se ainda não acreditasse nas ações

84
da mãe. Tudeer casara um dia depois de deixar a Finlândia. A esposa per-
manecera a seu lado até o colapso do Terceiro Reich. Fugiram juntos.
— Minha primeira casa foi no Paraguai — continuou Rivke. — Não
sabia de nada, é claro. Só mais tarde compreendi que falava quatro lín-
guas quase desde o início. . . finlandês, espanhol, alemão e inglês. Vivía-
mos numa comunidade no meio da selva. Bastante confortável. . . mas as
recordações de meu pai nada têm de agradáveis.
— Fale-me sobre isso — pediu Bond.
Pouco a pouco, ele foi arrancando toda a história. E era, na verda-
de, uma história antiga. Tudeer era autocrático, bêbado, brutal, sádico.
— Eu tinha dez anos quando fugimos. . . minha mãe e eu. Para mim,
foi como uma brincadeira. Estava disfarçada como uma criança índia. Par-
timos de canoa e depois, com a ajuda de alguns guaranis, chegamos a
Assunção. Minha mãe era muito infeliz. Não sei como foi possível, mas
ela conseguiu passaportes para nós duas. . . passaportes suecos, além
de alguma espécie de subsídio. Voamos para Estocolmo, onde passamos
seis meses. Mamãe ia todos os dias à embaixada finlandesa. Acabamos
por receber passaportes finlandeses. Mamãe passou o primeiro ano em
Helsinki, obtendo o divórcio e uma indenização por suas propriedades
perdidas. . . que ficavam aqui, no Círculo Ártico. Morávamos em Helsinki,
e tive a primeira experiência de escola. Foi onde conheci Paula. E nos tor-
namos boas amigas. Isso é tudo.
— Tudo? — repetiu Bond, alteando as sobrancelhas.
— O resto foi bastante previsível.
Rivke começou a tomar conhecimento dos fatos relativos do pai
quando estava na escola.
— Aos 14 anos, eu já sabia de tudo e me sentia horrorizada, angus-
tiada porque meu pai abandonara o seu país para ingressar na SS. Acho
que se tornou uma obsessão. . . um complexo. Quando tinha 15 anos,
concluí o que tinha de fazer com a minha vida.,
Bond já ouvira muitas confissões, durante interrogatórios. Depois
de anos de experiência, desenvolve-se um sentido em relação a elas. Ele
seria capaz de apostar que a história de Rivke era autêntica — pois era
relatada rapidamente, com um mínimo de detalhes. As pessoas que agem
de maneira dissimulada quase sempre falam demais.
— Vingança? — perguntou ele.
— Uma espécie de vingança. Não, essa é a palavra errada. Meu pai

85
nada teve a ver com o que Himmler chamou de Solução Final. . . o pro-
blema judeu. . . mas estava comprometido, era uma criminoso de guerra
procurado. Comecei a me identificar com a raça que perdera seis milhões
de vidas nas câmaras de gás e nos campos de concentração. Muitas pes-
soas já me disseram que reagi de forma exagerada. Mas eu queria fazer
algo concreto.
— Tornou-se judia?
— Fui para Israel ao completar vinte anos. Mamãe morreu dois
anos depois. A última vez que a vi foi no dia em que deixei Helsinki. Em
seis meses, tomei as primeiras providências para a conversão. Sou agora
judia, na medida em que alguém que nasceu cristão pode sê-lo. Em Isra-
el, tentaram tudo o que podiam para me fazer desistir. . . mas continuei,
cheguei até a prestar serviço militar. Foi o que enfim valeu. Ela fez uma
pausa, sorrindo, agora de orgulho.
— O próprio Zamir mandou chamar-me, interrogou-me. Não pude
acreditar quando me contaram quem ele era. . . Coronel Zwicka Zamir,
o chefe do Mossad. Ele arranjou tudo. Eu já era uma cidadã israelense.
Iniciei um treinamento especial para ingressar no Mossad. Tinha um novo
nome. . .
— E a parte da vingança, Rivke? Você já havia expiado a culpa de
seu pai. . . e a vingança?
— Vingança? — Os olhos dela se arregalaram. Depois franziu a tes-
ta, a ansiedade insinuou-se no rosto. — Acredita em mim, não é mesmo,
James?
Nos segundos que transcorreram antes da resposta, a mente de
Bond repassou os fatos. Ou Rivke era a melhor atriz que já conhecera ou
era totalmente sincera, como concluíra antes. Esses sentimentos tinham
de ser confrontados com o seu longo e íntimo conhecimento de Paula
Vacker. Desde o primeiro encontro, Bond nunca desconfiara que Paula
pudesse ser qualquer outra coisa que não uma mulher encantadora, in-
teligente e trabalhadora. Mas se Rivke estava dizendo a verdade, Paula
tornava-se uma mentirosa e possivelmente uma cúmplice na tentativa
de assassinato. Os artistas da faca haviam-no acuado no apartamento de
Paula, é verdade, mas ela cuidara dele e ainda o levara ao aeroporto. Era
evidente que alguém indicara a sua presença na estrada para Salla. O que
só poderia ser feito em Helsinki. Paula? Bond retornou à ligação com Pau-
la e disse:

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— Há motivos para que eu não acredite em você, Rivke. Conheço
Paula há muito tempo. Quando a vi pela última vez, ela me falou a seu
respeito, Anni Tudeer, e foi bastante específica. Disse que Anni Tudeer
trabalhava com ela em Helsinki.
Rivke sacudiu a cabeça, lentamente.
— A menos que outra pessoa esteja usando meu nome. . .
— Nunca trabalhou na área dela. . . em propaganda?
— Você está brincando comigo. Já disse que não. Contei a história
da minha vida. Conheci Paula na escola.
— E ela sabia quem você era? Sabia quem foi seu pai?
— Sabia. — Com suavidade: — Você pode esclarecer tudo facil-
mente, James. Ligue para o escritório, verifique. Pergunte se alguma Anni
Tudeer trabalha lá. Se trabalha, então existem duas Anni Tudeers. . . ou
Paula está mentindo.
Inclinou-se para a frente e acrescentou, incisivamente:
— Estou lhe dizendo, James, que não existem duas Anni Tudeers.
Paula está mentindo e eu gostaria de saber por quê.
— Eu também gostaria — murmurou Bond, balançando a cabeça.
— Então acredita em mim?
— Não há sentido em você mentir agora, quando todos os fatos po-
dem ser conferidos. Pensei que conhecia Paula muito bem, mas agora...
A verdade é que meus instintos dizem para acreditar em você. Podemos
fazer um levantamento, mesmo daqui, certamente de Londres. E Londres
já diz que você é Anni Tudeer.
Bond sorriu para ela. Assim, bem de perto, era uma jovem absolu-
tamente adorável.
— Acredito em você, Rivke Ingber. Veio direto do Mossad e só dei-
xou de fora uma coisa. . . a questão da vingança. Não posso acreditar
que você deseja simplesmente expiar as culpas de seu pai. Quer vê-lo na
cadeia ou morto. Qual das duas coisas?
Rivke deu de ombros, um gesto provocante.
— Não tem realmente importância, não é mesmo? O que quer que
aconteça, Aarne Tudeer morrerá.
A voz musical alterou-se por um instante, firme como aço, depois
recuperou a suavidade, com uma risada insinuante.
— Sinto muito, James. Eu não deveria tentar qualquer manobra
com você. Brad Tirpitz era mesmo um estorvo esta noite, mas eu poderia

87
perfeitamente cuidar dele. Talvez eu não seja a profissional que julgava.
Fui bastante ingênua para pensar que poderia enganá-lo. Atraí-lo.
— Atrair? Para que teia?
Bond, 99 por cento convencido dos motivos e alegações de Rivke,
ainda mantinha de reserva um por cento de cautela.
— Não exatamente para uma teia. — Ela estendeu a mão, encos-
tando os dedos na palma de Bond. — Para ser franca, não me sinto segura
com Tirpitz nem com Kolya. Queria ter certeza de que você estaria do
meu lado.
Bond largou a mão de Rivke, pondo os seus próprios dedos nos
ombros dela.
— Estamos num negócio à base de confiança, Rivke. Ambos pre-
cisamos ter a confiança de alguém, porque também não estou satisfeito
com o esquema, assim como você. Mas uma coisa de cada vez. Tenho de
lhe perguntar simplesmente porque desconfio: por acaso sabe se o seu
pai está envolvido com o NSAA?
Ela não parou para pensar:
— Está, sim, com toda certeza.
— Como sabe?
— É por isso que estou aqui, o motivo pelo qual me entregaram,
esta missão. Em Israel, efetuaram análises de computador logo depois
do primeiro incidente do Exército da Ação Nacional Socialista. Era natural
que procurassem pelos antigos líderes. . . membros do partido, homens
da SS, os que escaparam da Alemanha. Diversos nomes afloraram. Meu
pai era um dos primeiros da lista. Terá de aceitar minha palavra pelo res-
to, mas o Mossad tem provas de que ele está intimamente ligado. Não é
coincidência que as armas estejam saindo da Rússia através da Finlândia.
Ele está aqui, James. . . novo nome, quase um novo rosto, todos os ele-
mentos de uma nova identidade. Há também uma nova amante. Ele é
bastante vigoroso, apesar da idade. Sei que está aqui.
— Uma ave de rapina — comentou Bond, com um sorriso irônico.
— E estamos na temporada de caça, James. Meu querido pai está
em ação. Mamãe costumava dizer que ele se considerava um novo Führer,
um Moisés nazista, disposto a levar seus filhos de volta à terra prometida.
Pois os filhos estão crescendo em força, o mundo anda tão confuso que
os jovens e submissos aceitarão qualquer ideologia simplória. Basta você
olhar para o seu próprio país. . .

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Bond se irritou.
— Que ainda tem de eleger ou permitir que um louco assuma o po-
der. Temos uma determinação que sempre se manifesta. . . às vezes com
algum atraso, admito. . . para endireitar tudo.
Rivke exibiu uma expressão de arrependimento.
— Está bem, está bem, desculpe. . . Todos os países têm seus defei-
tos. — Mordeu o lábio, permaneceu distante por alguns segundos. — Por
favor, James. Tenho um trunfo, uma informação privilegiada. Preciso de
você do meu lado.
Vá em frente, pensou Bond. Mesmo que tenha quase certeza, en-
gula a isca inteira, porém mantenha o um por cento de cautela e perma-
neça alerta.
— Está certo. Mas o que me diz dos outros, Brad e Kolya?
— Brad e Kolya estão empenhados em jogo de morte e glória. Não
tenho certeza se operam juntos ou um contra o outro. São bastante sérios
e ao mesmo tempo não são. Isso parece uma estupidez? Um paradoxo?
Pois é a verdade. Observe-os.
Fitou Bond nos olhos, fixamente, como se tentasse hipnotizá-lo.
— Tenho a impressão. . . é apenas uma intuição. . . de que tanto a
CIA quanto a KGB querem esconder alguma coisa. Algo relacionado com
o NSAA.
— Eu apostaria em Kolya — comentou Bond, jovialmente. — Afinal,
foi a KGB quem nos chamou. A KGB nos procurou. . . aos Estados Unidos,
Inglaterra e Israel. Creio ser possível que tenham descoberto alguma coi-
sa além de um simples vazamento de armas para o Exército da Ação Na-
cional Socialista. Isso pode ser uma parte, mas o que haverá além disso?
Algo horrendo?
Rivke aproximou a cadeira para a extremidade da cama em que
Bond sentara.
— Acha que, além do vazamento de armas, eles descobriram mais
alguma coisa que poderá assumir maiores proporções? Algo que não po-
dem controlar?
— É uma teoria. Bastante plausível. — Ela estava tão perto que
Bond podia cheirá-la, sentir os vestígios de perfume, além do odor natural
de uma mulher atraente. — Somente uma teoria. Mas é possível. Tudo
isso foge às características da KGB. Normalmente eles se fecham. Mas
agora tiraram a máscara e pedem ajuda. Estarão nos atraindo para algu-

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ma armadilha? Tomando-nos por otários? Assim, quando vier a verdade
à tona, qualquer que seja, estaremos todos implicados. Israel, os Estados
Unidos e a Inglaterra arcarão com toda a culpa. É um esquema bastante
insidioso, como os russos tanto gostam.
— E acabaríamos como panacas — murmurou Rivke, suavemente.
— Isso mesmo, panacas.
Bond perguntou-se o que seu velho chefe, de mentalidade ultra-
conservadora, acharia da expressão. M detestava gíria, sob qualquer for-
ma.
Rivke disse que, se havia alguma possibilidade de trama da KGB
para desacreditá-los, seria ainda mais sensato fazer um pacto para se
manterem unidos.
— Precisamos vigiar as costas um do outro, James, mesmo que a
teoria não resista.
Bond presenteou Rivke com seu sorriso mais encantador, inclinan-
do-se para ela, os lábios a poucos centímetros de sua boca.
— Está absolutamente certa, Rivke. Mas confesso que me sentiria
muito mais feliz se pudesse vigiar a sua frente.
Os lábios de Rivke, em resposta, pareciam examinar a boca de
Bond. E depois:
— Não me assusto facilmente, James, mas isso está me deixando
nervosa. . .
Os braços dela subiram, enlaçando-o pelo pescoço, os lábios se ro-
çaram, primeiro numa carícia suave. A consciência de Bond advertia-o a
tomar cuidado. Mas as advertências foram cauterizadas no incêndio dos
lábios em contato.
Pareceu uma eternidade antes que os lábios se separassem. Ri-
vke, ofegante, permaneceu colada a Bond, a respiração quente perto do
ouvido dele, enquanto murmurava palavras carinhosas. Lentamente, ele
levou-a da cadeira para a cama, onde se estenderam colados, corpo con-
tra corpo, as bocas tornando a se encontrar, até que, juntas, como em
resposta a algum sinal inaudível, as mãos entraram em ação.
O que começara por sensualidade ou como um ato de necessida-
de — duas pessoas sozinhas, reagindo a um desejo natural de conforto e
confiança — tornou-se gradativamente terno, gentil, até mesmo amoro-
so.
Bond, ainda vagamente consciente da pequena dúvida que perma-

90
necera no fundo de sua mente, perdeu-se num instante naquela criatura
maravilhosa, cujo corpo parecia reagir ao seu de uma forma quase telepá-
tica. Eram como dois dançarinos perfeitamente sintonizados, capazes de
prever os movimentos um do outro.
Somente mais tarde, com Rivke enrascada sob as cobertas, acon-
chegada nos braços de Bond como uma criança, é que eles voltaram a
falar sobre trabalho. As poucas horas passadas juntas foram apenas um
breve refúgio da dura realidade da profissão que exerciam. Passava ago-
ra das oito horas da manhã. Outro dia, outra incursão pelos perigos do
mundo secreto.
— Em benefício desta operação, vamos trabalhar juntos. — Bond
sentia a boca excepcionalmente seca. — Isso nos dará a cobertura neces-
sária. . .
— E também. . .
— E eu a ajudarei a despachar o SS-Oberführer para o inferno.
— Por favor, James querido, por favor. . .
Ela o fitou, o rosto franzido num sorriso que falava apenas em pra-
zer — não em iniqüidade ou horror, apesar de ela já estar suplicando pela
morte de seu odiado pai. O ânimo logo tornou a mudar: serenidade, o
riso nos olhos e nos cantos da boca.
— Quer saber de uma coisa? Esta é a última coisa que pensei que
pudesse acontecer. . .
— Ora, Rivke, deixe disso. Não pode chegar ao quarto de um ho-
mem às quatro horas da madrugada, praticamente despida, sem que lhe
ocorra essa possibilidade.
— Claro que esse pensamento existia. — Soltou uma risada. —
Apenas não acreditei que pudesse acontecer. Imaginava-o profissional
demais, achei que era tão determinado e bem treinado que conseguiria
resistir a qualquer coisa.
A voz de Rivke se atenuou ao acrescentar:
— Senti-me atraída por você no instante em que o vi. . . mas não
deixe que isso lhe suba à. cabeça.
— Não subiu.
Bond riu. . . e o riso ainda não havia cessado quando ele estendeu
a mão para o telefone.
— Está na hora de verificar se podemos descobrir alguma coisa so-
bre a nossa suposta amiga Paula.

91
Começou a discar para o apartamento em Helsinki, enquanto olha-
va com admiração para Rivke, que vestia a seda fina e transparente que
passava por uma camisola.
O telefone tocou no outro lado da linha. Ninguém atendeu. Bond
desligou.
— O que acha, Rivke? Ela não está no apartamento. Rivke sacudiu
a cabeça.
— Telefone para o escritório dela, é claro. . . mas continuo sem
entender. Fomos muito amigas, mas por que ela precisava mentir a meu
respeito? Não faz sentido e você diz que ela era uma boa amiga. . .
— Por muito tempo. E nunca percebi nada de estranho em Paula.
Nada disso faz sentido.
Bond estava agora de pé, dirigindo-se para as portas do guarda-
roupa. O blusão estava pendurado lá dentro. Tirou do bolso as duas me-
dalhas e jogou-as através do quarto. Caíram na cama, tilintando. Seria o
último lance a fazer em qualquer rondar persistente de suspeita.
— O que acha dessas coisas, querida?
Rivke estendeu a mão e segurou as medalhas por um momento.
Soltou um pequeno grito, tornou a largá-las na cama, como se estivessem
em brasa.
— Onde?
Essa única palavra era suficiente, disparada rapidamente, como um
tiro.
— No apartamento de Paula Vacker. Em cima da cômoda.
Todo o humor de Rivke se desvanecera.
— Não via essas coisas desde que era criança. — Estendeu a mão
para a Cruz de Cavaleiro, tornou a pegá-la, virou-a. — Viu? O nome dele
está gravado no verso. Meu pai tem a Cruz de Cavaleiro, com Folhas de
Carvalho e Espadas. No apartamento de Paula?
As últimas palavras ressoavam com espanto e incredulidade.
— Bem em cima da cômoda, para qualquer pessoa ver.
Ela tornou a largar a medalha sobre a cama e depois aproximou-se
dele, levantando os braços e enlaçando-o pelo pescoço.
— Pensei que sabia de tudo, James. . . mas o que está realmente
acontecendo? Por que Paula? Por que as mentiras? Por que a Cruz de Ca-
valeiro de meu pai e o Emblema da Campanha do Norte. . . de que ele se
sentia particularmente orgulhoso, diga-se de passagem. . . mas por quê?

92
Bond apertou-a firmemente.
— Haveremos de descobrir. Não se preocupe. Estou tão interessa-
do quanto você. Paula sempre pareceu tão. . . tão franca, sincera.
Depois de um minuto ou pouco mais, Rivke se afastou.
— Terei de pôr a cabeça em ordem, James. Não quer sair para es-
quiar comigo?
Ele fez um gesto negativo.
— Tenho de falar com Brad e Kolya. . . e pensei que ficaríamos ve-
lando um pelo outro.
— Preciso sair um pouco ao ar livre. — Ela hesitou, antes de acres-
centar: — Nada me acontecerá, James querido. Voltarei a tempo para o
café da manhã. Apresente minhas desculpas se eu me atrasar um pouco.
— Tome cuidado, por favor.
Rivke acenou com a cabeça. E depois disse, timidamente:
— Foi uma coisa realmente sensacional, Mr. Bond. Pode se tornar
um hábito.
— Espero que sim.
Bond tornou a abraçá-la e se beijaram junto à porta. Depois que ela
saiu, Bond voltou à cama, a fim de pegar as medalhas de Aarne Tudeer.
Sentia-se que a fragrância de Rivke estava por toda parte, ela ainda pare-
cia estar ali.

93
94
8

Tirpitz
James Bond estava profundamente perturbado. A não ser por uma
dúvida mínima, tudo dizia que Rivke Ingber era digna de confiança, exata-
mente o que ela dissera ser: a filha de Aarne Tudeer; a moça que assumira
a fé judaica; e que agora, até mesmo segundo Londres, era uma agente
do Mossad. Contudo, sentia-se abalado pelo mistério de Paula Vacker. Ela
fora íntima de Bond ao longo dos anos, jamais lhe dera o menor motivo
para não pensar nela senão como uma jovem inteligente, divertida e tra-
balhadora, que se destacava em sua profissão. Mas diante de Rivke e dos
últimos acontecimentos, Paula parecia se transformar de repente num
ídolo de pés de barro.
Um pouco mais lentamente que o habitual, Bond tomou um banho
de chuveiro, fez a barba e vestiu-se — uma calça grossa de cavalaria, uma
suéter de lã preta, com gola rulê, e um blusão de couro, para encobrir a
P7, que ajeitou no lugar depois de verificar o mecanismo. Acrescentou
um par de pentes de reserva, prendendo-os num bolso especialmente
costurado atrás da calça.
O traje, completado por mocassins de couro macio, seria quente o
bastante para o interior do hotel. Ao sair do quarto, Bond decidiu que dali
por diante não iria a parte alguma sem a arma.
95
Parou no corredor, consultando o Rolex. Eram quase nove e meia. A
agência de Paula já devia estar aberta. Voltou ao quarto, com a intenção
de ligar para Helsinki — desta vez para o escritório de Paula. A mesma te-
lefonista que o saudara no dia daquela ligação fatídica, que parecia agora
ter ocorrido há muito tempo, atendeu em finlandês.
Bond falou em inglês e a telefonista respondeu na mesma língua,
exatamente como fizera na outra ocasião. Ele pediu para falar com Paula
Vacker e a resposta foi imediata, taxativa — e não de todo inesperada, o
que deixou Bond um pouco surpreso consigo mesmo:
— Lamento, mas Miss Vacker está de férias.
— É mesmo? — Bond simulou desapontamento. — Prometi que a
procuraria. Por acaso sabe para onde ela foi?
A telefonista pediu-lhe que esperasse um instante. Voltou a falar
depois de um longo minuto:
— Não temos certeza do local exato, mas ela comentou que iria
esquiar no norte. . . frio demais para mim. Já está bastante ruim por aqui.
— Muito obrigado. Ela viajou há muito tempo?
— Partiu na quinta-feira, senhor. Não quer deixar algum recado?
— Não, obrigado. Tenho certeza de que a encontrarei na próxima
vez em que vier à Finlândia.
Bond tratou de desligar. Paula seguira para o norte, como todos
eles. Bond olhou pela janela. Quase se podia ver o frio — como se fosse
possível cortá-lo com uma faca —, apesar do céu azul e do sol brilhante.
Aqueles céus incríveis, por mais azuis que fossem, não continham qual-
quer calor; e o sol brilhava como uma luz ofuscante, refletida de um ice-
berg. Os sinais, vistos da segurança de um quarto de hotel, podiam ser
traiçoeiramente enganadores naquela parte do mundo, como Bond sabia
muito bem. Dentro de uma hora ou pouco mais, o sol poderia desapare-
cer, substituído pela neve ou por uma geada visível e compacta, apagando
toda e qualquer claridade.
O quarto ficava nos fundos do prédio, oferecendo uma vista com-
pleta do teleférico, com a pista de esquiar e a curva da rampa de salto.
Vultos pequenos, aproveitando o breve período de claridade e atmosfera
limpa, embarcavam no teleférico em constante movimento, subindo cada
vez mais alto, como pequenos insetos pretos contra a neve. Outros já efe-
tuavam a longa descida, fazendo curvas ou disparando em linha reta, com
os corpos agachados para a frente e os joelhos encurvados.

96
Rivke podia ser um daqueles pontos escuros, pensou Bond, des-
lizando pela cintilante paisagem branca. Ele quase podia sentir a excita-
ção de uma descida em alta velocidade. Por um segundo, desejou tê-la
acompanhado. Depois, com um último olhar para a paisagem nevada, o
branco quebrado apenas pelos esquiadores, o teleférico em movimento
e os pinheiros nos dois lados da pista, verdes e marrons, adornados como
árvores de Natal pela neve congelada, Bond levantou-se, deixou o quarto
e dirigiu-se para o restaurante.
Brad Tirpitz estava sozinho, sentado em uma mesa de canto, perto
das janelas, contemplando a mesma paisagem que Bond acabara de ob-
servar do quarto. Percebeu a chegada de Bond e negligentemente levan-
tou um braço, numa mistura de saudação e identificação.
— Oi, Bond. — O rosto contraiu-se ligeiramente. — Kolya pede des-
culpas. Atrasou-se a providenciar algumas motonetas de neve.
Ele inclinou-se através da mesa e acrescentou:
— Ao que parece será esta noite. . . ou nas primeiras horas de ama-
nhã, para ser mais exato.
— O que será esta noite? — indagou Bond formalmente, a perfeita
imagem do inglês reservado.
— O que será esta noite? — Tirpitz ergueu os olhos para os céus.
— Kolya afirmou que esta noite, amigo Bond, um carregamento de armas
sairá de Lebre Azul. . . lembra-se de Lebre Azul? O depósito de material
bélico deles, perto de Alakurtii?
— Ah, isso. . .
Bond dava a impressão de que o roubo de armas de Lebre Azul era
a última coisa que podia interessá-lo. Pegando o cardápio, concentrou-
se na longa lista de pratos disponíveis. Quando o garçom se aproximou,
limitou-se a fazer seu pedido habitual, insistindo na necessidade de uma
xícara grande de café.
— Importa-se que eu fume?
Tirpitz era lacônico ao ponto de falar como os sinais índios.
— Desde que você não se importe que eu coma.
Bond não sorriu. Talvez fosse o seu condicionamento na Marinha
Real e por trabalhar todos aqueles anos ligado a M, mas considerava fu-
mar enquanto alguém está comendo como algo quase tão grave quanto
fumar antes do Brinde da Lealdade.
— Fico contente por Kolya não estar aqui, Bond. — Tirpitz aproxi-

97
mou sua cadeira. — Queria trocar uma palavra a sós com você.
— É mesmo?
— Tenho um recado para você. Felix Leiter manda lembranças. E
Cedar manda o seu amor.
Bond experimentou uma ligeira pontada de surpresa, mas não dei-
xou transparecer qualquer reação. Seu melhor amigo nos Estados Unidos,
Felix Leiter, fora um dos homens mais importantes da CIA; a filha de Felix,
Cedar, também fora treinada pela Companhia. E Cedar inclusive atuara
com ele, demonstrando uma bravura excepcional, numa recente missão.
— Sei que não confia em mim, mas é melhor pensar duas vezes,
irmão — acrescentou Tirpitz. — Pense bem, pois talvez eu seja o único
amigo que possui por aqui.
Bond acenou com a cabeça.
— É possível.
— Seu chefe transmitiu-lhe sólidas instruções. O mesmo aconteceu
comigo em Langley. Provavelmente, ambos recebemos as mesmas infor-
mações, e Kolya não está querendo revelar o resto. O que estou querendo
dizer é que precisamos trabalhar juntos. O mais estreitamente que puder-
mos. Aquele russo filho da puta não nos vai fornecer todos os detalhes e
imagino que tem algumas surpresas reservadas para nós.
— Não devíamos todos trabalhar juntos?
Bond procurou falar de maneira afável, urbana.
— Não confie em ninguém. . . a não ser em mim.
Embora tivesse tirado um maço do bolso, Tirpitz não fez qualquer
menção de acender um cigarro. Houve uma pausa na conversa, enquanto
o garçom servia o pedido de Bond, ovos mexidos com bacon e café. De-
pois que ele se afastou, Tirpitz continuou:
— Se eu não tivesse falado lá na Ilha da Madeira, a maior ameaça
não seria sequer mencionada. . . o tal falso conde. Você tinha a informa-
ção sobre ele, assim como eu. Konrad von Glöda. Kolya não ia nos falar
sobre isso. Sabe por quê?
— Por quê?
— Porque Kolya está trabalhando nos dois lados. Alguns elemen-
tos da KGB estão envolvidos nesses roubos de armas. Nosso pessoal em
Moscou nos transmitiu essa informação há várias semanas. Acaba de ser
liberada para o consumo por Londres. Você provavelmente receberá a
informação no momento oportuno.

98
— Qual é a história, então?
Era Bond quem agora estava sendo lacônico. Brad Tirpitz parecia
confirmar a teoria que ele já discutira com Rivke.
— Um conto de fadas. — Tirpitz soltou uma risada. — A notícia de
Moscou é de que uma facção insatisfeita dos altos escalões da KGB. . . um
grupo muito pequeno. . . aliou-se a uma fração igualmente insatisfeita do
Exército Vermelho.
Esses dois grupos, acrescentou Tirpitz, fizeram contato com o nú-
cleo do que posteriormente emergiria como o Exército da Ação Nacional
Socialista.
— Eles são idealistas, é claro — disse Tirpitz, rindo. — Fanáticos.
Homens trabalhando dentro da União Soviética para subverter o ideal co-
munista pelo terrorismo fascista. Estavam por trás do primeiro roubo de
armas de Lebre Azul e foram apanhados, até certo ponto. . .
— Que ponto?
— Foram apanhados, mas os fatos completos nunca vieram à tona.
Eles são como a Máfia. . . ou como nós mesmos, pensando bem. Seu pes-
soal cuida dos seus, não é?
— Somente quando podem escapar impunes.
Bond colocou uma garfada de ovo na boca e apanhou uma torrada.
— Pois os rapazes da Praça Dzerzhinsky conseguiram manter quie-
to, até agora, o militar que os pegou em Lebre Azul. Mais do que isso,
estão conduzindo a sua operação clandestina conjunta com um dos seus
próprios homens no comando. . . Kolya Mosolov.
— Está querendo dizer que Kolya vai fracassar?
Bond virou-se, fitando Tirpitz nos olhos.
— Não só vai fracassar deliberadamente, como também cuidará
para que a próxima remessa de armas deixe a Rússia. Depois disso, pare-
cerá que o camarada Mosolov acabou morrendo em meio a tanta neve e
gelo. Adivinhe quem sobrará para bancar o bode expiatório?
— Nós?
— Isso mesmo, nós. Na verdade, o plano está destinado a você,
amigo Bond. O corpo de Kolya nunca será encontrado. Desconfio que o
mesmo não acontecerá com o seu. É claro que Kolya acabará voltando da
sepultura. Outro nome, outro rosto, outra parte da floresta.
Bond acenou com a cabeça vigorosamente.
— É mais ou menos o que pensei. Nunca me passou pela cabeça

99
que Kolya me levaria à União Soviética para testemunhar o roubo das
armas apenas por diversão.
Tirpitz exibiu um sorriso sem qualquer humor.
— Como você, companheiro, já vi de tudo: Berlim, a Guerra Fria,
Vietnã, Laos, Cambodja. E esta é a maior traição de todos os tempos. Pre-
cisa de mim, irmão. . .
— E desconfio que você também precisa de mim. . . irmão.
— Certo. Se você jogar à minha maneira, fizer como eu mandar. . .
como a Companhia mandar. . . enquanto estiver bancando o boneco de
neve no outro lado da fronteira. . . se fizer isso, vigiarei sua retaguarda
para que nós dois terminemos inteiros.
— Antes de eu perguntar o que teria de fazer, há uma questão im-
portante a esclarecer.
Bond não estava mais achando graça na conversa. Antes fora Ri-
vke quem queria um favor dele. agora era Tirpitz: isso acrescentava uma
nova dimensão à Operação Quebra-Gelo. Todos queriam pelo menos um
aliado, e Bond desconfiava que seria abandonado ou apunhalado pelas
costas à primeira dificuldade.
— Qual é? — perguntou Tirpitz.
Bond percebeu que se distraíra com a chegada de novos hóspedes,
que eram tratados pelos garçons como se fossem a própria realeza.
— O que me diz de Rivke? Era isso o que eu queria perguntar. Va-
mos deixá-la numa fria com Kolya?
Brad Tirpitz pareceu ficar atônito.
— Bond, Rivke Ingber pode ser uma agente do Mossad, mas acho
que você sabe quem ela é realmente. Seu Serviço deve ter lhe informa-
do...
— A filha de um oficial finlandês aliado aos nazistas e que ainda
figura na lista dos criminosos de guerra procurados? Claro que sei.
— Sim e não. — A voz de Tirpitz se alteou. — Todos sabemos da-
quele pai filho da puta. Mas ninguém sabe com certeza em que lado da
linha a garota está. . . nem mesmo o Mossad. Não fomos informados
quanto a isso, mas vi sua ficha no Mossad. E posso lhe garantir que nem
mesmo eles têm certeza.
Bond falou calmamente:
— Pois eu acredito que ela é sincera. . . completamente leal ao
Mossad.

100
Tirpitz soltou um grunhido irritado.
— Muito bem, acredite no que quiser, Bond. Mas o que me diz do
homem?
— Que homem?
— O suposto conde Konrad von Glöda. O sujeito que está por trás
dos roubos de armamentos e provavelmente comanda toda a operação
do NSAA. . . ou melhor, dirige todo o NSAA. Reichführer-SS von Glöda.
— O que há com ele?
— Está querendo dizer que ninguém do seu lado forneceu o quadro
todo do caso?
Bond deu de ombros. M fora preciso e minucioso, mas ressalta-
ra que havia determinadas coisas em relação ao misterioso conde Von
Glöda que não podiam ser provadas. M, meticuloso como era, recusava-
se a aceitar meras probabilidades como se fossem fatos.
— Irmão, você está mesmo metido numa encrenca. O papai trans-
tornado e afastado de Rivke Ingber, o SS-Oberführer Aarne Tudeer, é
também o Rei do Gelo desta pequena saga. Aarne Tudeer é o conde Von
Glöda, um nome dos mais apropriados.
Bond umedeceu os lábios com café; sua mente estava em dispa-
rada. Se Tirpitz lhe fornecera a informação correta, Londres sequer o su-
gerira. Tudo o que M lhe transmitira fora o nome, a possibilidade de que
ao menos estivesse por trás do contrabando de armamentos e o fato de
ser quase certo de que o conde providenciava pontos de escala entre a
fronteira soviética e o destino final das cargas. Não houvera menção a Von
Glöda e Tudeer serem a mesma pessoa.
— Tem certeza?
Bond recusava-se a deixar transparecer qualquer coisa senão uma
calma indiferente.
— Tanta certeza quanto a noite segue o dia. . . o que acontece bem
depressa por aqui. . .
Tirpitz parou de falar abruptamente, olhando através do restauran-
te e fixando-se no casal que recebera uma acolhida tão entusiástica dos
garçons.
— Quem podia imaginar? — Os cantos da boca de Tirpitz se con-
traíram ainda mais para baixo. — Dê uma olhada, Bond. Lá está o homem
em pessoa. O conde Konrad von Glöda e sua mulher, conhecida simples-
mente como a Condessa.

101
Ele tomou um gole de café.
— Eu disse que era um nome apropriado. Em sueco, Glöda significa
Brilho. Em Langley, nós lhe demos o apelido de Vaga-lume. Ele brilha com
o ouro dos saques nazistas e deve estar juntando tudo agora como co-
mandante do NSAA. E é também um inseto. Vou capturar pessoalmente
esse inseto.
O casal parecia distinto. Bond observara os casacos de pele grossos
e caros serem levados quando eles chegaram. Agora, sentavam-se como
se possuíssem a Lapônia, quase como um príncipe da Renascença e sua
dama.
Konrad von Glöda era alto e musculoso. Mantinha-se empertigado.
Era também uma dessas pessoas que não são consumidas pela idade.
Podia ser um homem de cinqüenta anos, de boa aparência, ou um velho
de setenta anos bem conservado, pois é impossível calcular a idade de um
homem cujo rosto e estrutura óssea são tão firmes e delicados. Ostentava
uma cabeleira grisalha. Enquanto falava com a Condessa, recostava-se na
cadeira, usando uma das mãos para gesticular. A outra repousava no bra-
ço da cadeira. O rosto moreno, irradiando saúde, possuía uma animação
que não estaria deslocada num jovem executivo. Não restava a menor dú-
vida, pelo brilho nos olhos castanhos, o queixo aristocrático e o empinar
arrogante da cabeça, de que ali estava um homem que jamais passaria
despercebido. Brilho era mesmo a palavra.
— Como um astro? — sussurrou Tirpitz.
Bond acenou com a cabeça. Bastava olhar para o homem para se
entender que ele possuía essa qualidade tão procurada: carisma.
A Condessa também se comportava com o ar de alguém que dispu-
nha dos meios e da capacidade para comprar ou se apoderar de qualquer
coisa que desejasse. Apesar de ser impossível calcular a idade do conde,
ela era obviamente muito mais jovem. Dava a impressão de uma pessoa
que prezava seu corpo e suas condições físicas. E também de que todos os
esportes e exercícios eram como uma segunda natureza. Bond admirou
a beleza da pele suave da mulher, o penteado gracioso dos cabelos escu-
ros, as feições clássicas. Refletiu que, entre as preferências dela, incluía-se
sem dúvida o mais antigo esporte praticado entre quatro paredes.
Bond ainda observava discretamente o casal quando um garçom se
aproximou da mesa apressadamente.
— Mr. Bond?

102
Bond assentiu.
— Há um telefonema para o senhor. Na recepção. Miss Paula Va-
cker deseja falar-lhe.
Bond levantou-se abruptamente, percebendo a expressão um pou-
co irônica nos olhos de Brad Tirpitz.
— Problemas?
A voz de Tirpitz parecia ter-se abrandado, mas Bond recusou-se a
reagir. Concluíra que ‘Bad’ Brad devia ser tratado com a cautela reservada
às cascavéis.
— Apenas uma ligação de Helsinki.
Começou a se afastar, interiormente aturdido, sem entender como
Paula conseguira localizá-lo. Ao passar pela mesa dos Glödas, Bond per-
mitiu-se um olhar direto e aparentemente desinteressado para o casal. O
conde levantou a cabeça, seus olhos encontraram-se com os de Bond. A
expressão era de uma maldade quase tangível, um ódio que Bond ainda
sentia muito depois de ter passado pela mesa, como se os olhos brilhan-
tes do conde penetrassem por trás de sua cabeça.
A recepcionista indicou uma cabina pequena, semi-aberta, com um
telefone. Bond chegou lá em duas passadas, tirando o fone do gancho e
falando imediatamente:
— Paula?
— Um momento, por favor — disse a telefonista.
Houve um estalido e a sensação de que alguém estava no outro
lado da linha.
— Paula? — repetiu ele.
Se interrogado depois, Bond não poderia jurar que a voz era de
Paula, mas daria uma certeza de 90 por cento. Incomum no sistema tele-
fônico finlandês, a ligação não estava boa, a voz parecia abafada, como se
saísse de uma câmara de eco.
— James, imagino que será a qualquer momento. Diga adeus a
Anni.
Seguiu-se uma risada longa e estridente, que se afastou, como se
Paula deliberadamente deslocasse o fone para longe dos lábios, antes de
repô-lo lentamente no gancho.
A testa de Bond franziu-se, uma preocupação intensa espalhou-se
por todo o seu corpo.
— Paula? Está querendo dizer. . . ?

103
Parou, sabendo que não havia sentido em falar com um aparelho
mudo. Diga adeus a Anni. . . Mas por quê? E, de repente, lhe ocorreu.
Rivke estava na pista de esquis. Ou talvez não tivesse chegado lá. Bond
correu para a porta do hotel. A mão já estava estendida para abri-la quan-
do uma voz soou bruscamente em suas costas:
— Não pense nisso, Bond. Não, vestido como está. — Brad Tirpitz
se aproximou. — Duraria menos de cinco minutos lá fora. Está bem abaixo
do ponto de congelamento.
— Vá me buscar alguma coisa, e depressa, Brad.
— Ora, pegue as suas próprias coisas. Que diabo está acontecen-
do?
Tirpitz hesitou, deu um passo para o vestiário, que ficava perto da
recepção.
— Explicarei depois. Rivke está lá fora, na pista de esquis. Tenho o
pressentimento de que ela corre perigo.
Ocorreu-lhe que Rivke Ingber talvez não estivesse nas encostas.
Paula dissera “imagino que será a qualquer momento”. O que quer que
fora planejado talvez já tivesse acontecido.”
Tirpitz voltou com as suas próprias roupas de sair nos braços: bo-
tas, cachecol, óculos de proteção, luvas e casaco acolchoado.
— Basta me dizer e farei o que puder — disse ele, a voz autoritária.
— Pegarei as suas coisas para mim. Sempre tomo a precaução de manter
o meu equipamento de inverno à mão.
Bond já estava tirando os sapatos e calçando as botas. Era óbvio
que não havia como argumentar com Tirpitz. Virou-se para a fileira de
elevadores.
— Se Rivke estiver nas encostas, faça-a descer o mais depressa pos-
sível. . . e inteira — gritou Bond, apertando o botão.
Chegando ao seu quarto, Bond levou menos de três minutos para
vestir as roupas de sair. Enquanto se arrumava, olhava constantemente
pela janela, na direção do teleférico e da encosta. Tudo parecia normal;
continuava a parecer quando finalmente alcançou a base do teleférico,
apenas seis minutos depois de sair da recepção.
A maioria das pessoas já voltara ao hotel, pois terminara o melhor
período para esquiar. Bond reconheceu o vulto de Brad Tirpitz, parado
junto à cabana próxima ao teleférico, acompanhado de duas pessoas.
Bond aproximou-se e perguntou:

104
— E então?
— Eles telefonaram lá para cima. O nome dela consta da lista. Está
descendo agora. Usa um traje de esquiar vermelho. Quero que me conte
toda a história, Bond. Tem alguma relação com a operação?
— Conto depois.
Bond esticava a cabeça, estreitando os olhos por trás dos óculos de
proteção, esquadrinhando a parte superior da encosta nevada, à procura
de Rivke.
A crista da montanha era como uma sucessão de degraus, esten-
dendo-se por cerca de um quilômetro e meio. O topo da pista encontrava-
se oculto, mas o resto era devidamente assinalado, cheio de curvas, in-
trincado, passando entre pinheiros em determinados trechos, em outros
com uma descida tão suave que parecia plana, enquanto alguns pontos,
extremamente perigosos, eram íngremes e retos.
O último meio quilômetro era fácil, uma descida suave, longa, reta.
Dois jovens em trajes de esquiar pretos, gorros de lã listrados de branco,
concluíam habilmente o que fora obviamente uma descida veloz desde o
topo. Executavam manobras ostentosas, rindo e fazendo muito barulho.
— Lá vem ela. — Brad passou para Bond o binóculo com que es-
quadrinhava a parte superior da pista. — De vermelho.
Bond levantou o binóculo. Rivke era evidentemente muito boa,
descendo de lado e em ziguezague pela encosta mais íngreme, saindo em
linha reta, reduzindo a velocidade quando a neve se tornava mais plana
e tornando a aumentá-la ao se aproximar e começar a descer a longa
encosta final. Foi nesse instante, quando ela estava a menos de meio qui-
lômetro deles, que a neve nos dois lados deu a impressão de entrar em
erupção, ao mesmo tempo em que uma grande névoa branca se erguia
por trás. No centro da flor de neve, um fogo súbito — vermelho, depois
branco — elevou-se para o céu.
O som da explosão abafada alcançou-o um segundo depois de
Bond ver o corpo de Rivke virar-se em pleno ar, lançado para o alto com
a erupção da neve.

105
106
9

Resgate
Bond experimentou a angústia do horror impotente, enquanto ob-
servava pelos óculos de proteção a névoa de neve que se elevava. O vulto
vermelho, girando como uma boneca de trapos, desapareceu em meio
à chuva branca, enquanto as poucas pessoas próximas a Tirpitz e Bond
jogavam-se ao chão, como se estivessem sob fogo de morteiro. Brad Tir-
pitz, como Bond, permaneceu de pé. Sua única ação foi pegar o binóculo
e levá-lo aos olhos.
— Ela está lá. Acho que desmaiada. — Tirpitz falava como um ob-
servador de tiro num campo de batalha, chamando os aviões ou orien-
tando a artilharia. — O rosto virado para cima, meio coberta pela neve. A
cerca de cem metros do lugar.
Bond recuperou o binóculo para verificar pessoalmente. A neve
pousava e ele podia divisar o vulto claramente, braços e pernas estendi-
dos. Outra voz soou atrás deles:
— O hotel já chamou a polícia e uma ambulância. Não está muito
longe, mas nenhum grupo de resgate conseguirá chegar lá em cima muito
depressa. A neve está fofa demais. Terão de trazer um helicóptero.
Bond virou-se. Kolya Mosolov estava parado perto deles, também
com um binóculo levantado.
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A mente de Bond se acelerara ao máximo nos instantes seguintes
à explosão. O telefonema de Paula — se fora mesmo Paula — confirmava
quase tudo o que Rivke dissera, reforçando as suas conclusões anteriores.
Paula Vacker não era o que parecia. Armara a emboscada para Bond no
apartamento, durante a primeira visita a Helsinki. De alguma forma, ela
tomara conhecimento dos jogos noturnos com Rivke e também a marca-
ra. Paula providenciara aquele incidente na encosta nevada com incrível
precisão. Sabia onde Bond se encontrava; sabia onde Rivke estava; sabia
o que fora preparado. A soma de tudo isso só podia resultar numa coisa:
Paula tinha alguma espécie de acesso aos quatro membros de Quebra-
Gelo. Bond tratou de afastar os pensamentos para um canto da mente.
— O que acha?
Virou-se para Kolya por um segundo, antes de tornar a olhar para
a encosta.
— Já falei. Um helicóptero. O centro da pista é compacto, mas Ri-
vke afundou na neve macia. Se queremos uma ação rápida, só pode ser
com um helicóptero.
— Não era disso que eu estava falando — explicou Bond, brusca-
mente. — O que acha que aconteceu?
Kolya deu de ombros, sobre as muitas camadas de roupas de in-
verno.
— Acho que foi uma mina. Ainda existem algumas por aqui. Da
Guerra de Inverno russo-finlandesa ou da Segunda Guerra Mundial. Mes-
mo depois de todo esse tempo. E também se deslocam. . . no início do in-
verno, com as primeiras nevascas. É isso mesmo, acho que foi uma mina.
— E se eu lhe dissesse que fui avisado sobre isso?
— É verdade — confirmou Brad, o binóculo ainda fixado no ponto
vermelho que era Rivke. — Bond recebeu alguma espécie de mensagem.
Um telefonema.
Kolya parecia desinteressado.
— Teremos de conversar a respeito. Mas onde estão a polícia e o
helicóptero?
Como se fosse uma queixa, um Saab Finlândia da polícia chegou
derrapando ao estacionamento principal do hotel; parou a poucos metros
do lugar onde estavam Kolya, Tirpitz e Bond. Dois guardas saltaram. Kolya
prontamente se aproximou deles, falando em finlandês, como se essa fos-
se a sua língua natal. Houve alguns gestos insólitos e depois Kolya tornou

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a virar-se para Bond, murmurando uma imprecação obscena em russo.
— Eles não podem “trazer um helicóptero até aqui antes de meia
hora. — Kolya parecia furioso. — E a equipe de resgate também vai de-
morar.
— Temos então. . .
Bond foi interrompido abruptamente por Brad Tirpitz:
— Ela está se mexendo. Consciente. Tentando se levantar. Não, caiu
de novo. Acho que tem alguma coisa nas pernas.
Bond perguntou a Kolya se o carro da polícia tinha um megafone.
Houve outra conversa rápida. Depois, Kolya gritou para Bond:
— Tem, sim!
Bond já se afastava, correndo tão depressa quanto podia pelo ter-
reno congelado, com a mão enluvada já abrindo um bolso do blusão para
tirar as chaves do carro.
— Aprontem o megafone! — gritou ele em resposta. — Vou tirá-la
lá de cima!
As trancas do Saab estavam bem oleadas e tratadas com um anti-
congelante. Assim, Bond não teve qualquer dificuldade para abrir. Desli-
gou os sensores de alarme, depois foi para a traseira, levantou a mala, ti-
rou um par de cordas grossas e o tambor grande, que era o Pains-Wessex
Speedline. Tornou a fechar a mala, rearmou os alarmes, voltou apressa-
damente à base da pista de esqui, onde um dos guardas, parecendo meio
inibido, segurava um megafone Graviner.
— Ela está sentada lá em cima — informou Tirpitz, quando Bond se
aproximou. — Acenou uma vez, indicando que não pode mais se mexer.
— Certo.
Bond estendeu a mão e pegou o megafone do guarda. Acionou a
alavanca e virou-se na direção de Rivke. Tomou cuidado para evitar que o
metal encostasse em seus lábios.
— Se pode me ouvir, Rivke, levante um braço. Aqui é James.
A voz, ampliada pelo aparelho a um volume dez vezes maior do
que o normal, ressoou em torno deles. Bond viu o movimento e Tirpitz,
observando pelo binóculo, confirmou:
— Ela levantou um braço.
Bond verificou mais uma vez se o megafone estava diretamente
virado para Rivke.
— Vou disparar um cabo, Rivke. Não se assuste. É impulsionado por

109
um foguete, que deve passar perto de você. Indique se entendeu.
O braço levantou de novo.
— Quando o cabo a alcançar, acha que pode passá-lo em torno do
corpo, sob os braços?
Outra afirmativa com o movimento do braço.
— E acha que podemos descê-la depois, bem devagar?
Resposta afirmativa.
— Se for impossível, se sentir alguma dor enquanto a puxamos
para baixo, levante as mãos. Está me entendendo?
Outra vez o sinal afirmativo.
— Certo, então.
Bond virou-se para os outros, dando instruções. O Pains-Wessex
Speedline é uma unidade completa de lançamento de cabo. Parece um
cilindro pesado, com uma alça para carregar e o mecanismo de disparo na
parte superior. Trata-se, comprovadamente, da melhor unidade de lan-
çamento de cabo do mundo. Bond removeu a capa de plástico protetora
na frente do cilindro, expondo o foguete, bem protegido, no centro, e os
275 metros de cabo compacto, que ocupava a maior parte do espaço.
Puxou a ponta solta do cabo e instruiu os outros para que a prendessem
rapidamente no pára-choque traseiro do Finlândia. Colocou-se quase que
diretamente abaixo do vulto vermelho na neve.
Quando o cabo estava preso, Bond retirou o pino de segurança na
parte posterior da alça, depois levou a mão para a empunhadura por trás
da proteção do gatilho. Fincou os calcanhares das botas Mukluk na neve
e se adiantou quatro passos pela encosta acima. A neve estava macia e
profunda à direita da pista larga — onde era compacta e dura como rocha,
só permitindo a subida com a ajuda de equipamento de escalada no gelo.
Quatro passos e Bond afundava quase até a cintura. Mas a posi-
ção era relativamente boa para um disparo com o cabo, cuja extremidade
pendia frouxa do pára-choque traseiro do Finlândia.
Equilibrando-se, Bond afastou o cilindro do corpo, deixando que
encontrasse o ponto correto de equilíbrio. Quando teve a certeza de que
o foguete não atingiria Rivke, puxou o gatilho.
Houve um baque seco quando o percussor bateu na ignição. No
instante seguinte, com uma velocidade espetacular e uma nuvem de fu-
maça, o foguete disparou pelo ar claro, puxando o cabo em sua esteira,
parecendo tornar-se mais rápido a cada metro.

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O foguete passou a uma boa distância do corpo de Rivke, mas pela
pista, levando o cabo diretamente por cima dela, para cair com um baque
abafado. Por um segundo, o cabo pareceu pairar em seu arco, tremendo
no ar parado. Depois, com uma perfeição quase controlada, começou a
cair — uma serpente comprida e marrom, correndo de um ponto acima
do lugar em que Rivke estava caída.
Bond recuou através da neve densa para junto dos outros, tornan-
do a pegar o megafone das mãos de um dos guardas.
— Levante o braço se puder puxar o cabo e enrolar em seu corpo.
A voz de Bond ressoou outra vez pelas encostas. Apesar do frio in-
tenso, diversas pessoas haviam saído para acompanhar o resgate. Outras
espiavam pelas janelas do hotel. O som da sirene de uma ambulância
aumentava de intensidade.
— O binóculo, por favor.
Bond estava ordenando, não pedindo. Tirpitz entregou-lhe. Bond
ajustou o controle serrilhado, focalizando Rivke.
Ela parecia estar caída num ângulo estranho, afundada até a cintu-
ra na neve, embora houvesse indícios de neve compacta e gelo em torno
do lugar. Pelo que podia perceber do rosto da moça, Bond teve a impres-
são de que ela sentia dor. Penosamente, Rivke puxou o cabo, trazendo a
extremidade lá de cima. O processo pareceu se prolongar por um longo
tempo. Rivke — obviamente angustiada, sofrendo com o frio, além da dor
— parava a todo instante para descansar. O ato simples de puxar o cabo
transformara-se numa grande batalha. Através do binóculo, Bond teve a
impressão de que ela puxava um peso morto na extremidade do cabo.
De vez em quando, ao perceber que ela titubeava, Bond a estimu-
lava; a voz saía muito forte pelo megafone e ecoava em torno deles. Rivke
conseguiu finalmente puxar todo o cabo e iniciou a batalha para enrolá-lo
no corpo.
— Por baixo dos braços, Rivke — instruiu Bond. — Amarre e vire o
nó para as suas costas. Levante as mãos quando estiver pronta.
Depois de uma eternidade as mãos se levantaram.
— Muito bem. Começaremos agora a puxá-la para baixo, tão sua-
vemente quanto pudermos. Estará sendo arrastada pela neve macia. Mas
não se esqueça de levantar os braços se ficar muito doloroso. Agüente
firme, Rivke.
Bond virou-se para os outros, que já haviam desamarrado o cabo

111
do pára-choque do Finlândia. Lentamente, foram esticando o cabo até a
base da encosta.
Bond tivera consciência da chegada da ambulância, mas agora
registrava sua presença pela primeira vez. Havia uma equipe completa,
inclusive um jovem médico barbudo. Bond perguntou para onde a leva-
riam. O médico, que se chamava Simonen, informou que eram de um
pequeno hospital de Salla.
— Depois disso — murmurou ele, levantando as mãos num gesto
indeciso —, tudo dependerá dos ferimentos dela.
Foram necessários quase 45 minutos para puxar Rivke até uma dis-
tância onde se poderia alcançá-la. Ela estava semi-inconsciente quando
Bond, avançando com dificuldade pela neve, se aproximou. Ele orientou
os que puxavam o cabo para que a arrastassem suavemente até o fundo
da encosta.
Rivke gemeu, abrindo os olhos enquanto o médico se aproximava.
Reconheceu Bond imediatamente.
— O que aconteceu, James?
A voz era fraca, quase sumindo.
— Não sei, amor. Você sofreu uma queda.
Sob os óculos de proteção e o cachecol que lhe cobria o rosto, Bond
sentiu a ansiedade gravada em suas próprias feições, assim como as man-
chas brancas denunciadoras de ulceração do frio, visíveis nas partes ex-
postas do rosto de Rivke.
Depois de um momento, o médico tocou no ombro de Bond, afas-
tando-o. Tirpitz e Kolya Mosolov ajoelharam-se ao lado da moça, enquan-
to o médico murmurava:
— Pela aparência, ela está com as duas pernas fraturadas. — Ele
falava um inglês excelente, como Bond já constatara na conversa ante-
rior. — Ulcerações do frio, como já observou, hipotermia aguda. Temos
de levá-la depressa.
— O mais depressa que puderem. — Bond segurou a manga do
médico. — Posso ir ao hospital mais tarde?
— Claro.
Ela desmaiara outra vez e Bond nada podia fazer além de recuar e
observar, a mente confusa, enquanto prendiam Rivke na maca e a embar-
cavam na ambulância. Imagens pareciam se sobrepor em sua cabeça: o
frio no momento, o gelo e a neve, a ambulância se encaminhando para a

112
saída do estacionamento do hotel. Tudo isso explodia entre visões indese-
jáveis no seu banco de memória: uma estrada diferente; calor; sangue por
todo o carro; um guarda austríaco fazendo perguntas intermináveis sobre
a morte de Tracy. Esse pesadelo — a morte de sua única esposa — sempre
espreitava do mundo da mente de Bond.
Como se as duas imagens subitamente se fundissem, ele ouviu
Kolya dizer:
— Precisamos conversar, James Bond. Tenho de fazer algumas per-
guntas. Devemos estar prontos para esta noite. Está tudo combinado,
mas agora temos uma pessoa a menos. Deveremos tomar outras provi-
dências.
Bond assentiu, voltando lentamente para o hotel. No saguão, com-
binaram de se encontrarem no quarto de Kolya às três horas da tarde.
Em seu quarto, Bond abriu a pasta e acionou os mecanismos in-
ternos de segurança que soltavam o fundo e os lados falsos, tudo res-
guardado pelo engenhoso artefato de proteção de Que-coisa. Tirou uma
unidade retangular de um dos compartimentos laterais. Era vermelha,
não maior que um maço de cigarros. Era o VL34, chamado de ‘protetor
de privacidade’, possivelmente um dos menores e mais perfeitos apare-
lhos eletrônicos de detecção de microfones ocultos. Ao chegar, na noite
anterior, Bond ‘varrera’ o quarto e constatara que estava limpo, mas não
ia correr qualquer risco agora.
Puxando a antena retrátil, ligou o pequeno aparelho e começou a
vasculhar o quarto. Em poucos segundos, uma série de luzes começaram
a se acender no painel dianteiro. Depois, enquanto a antena apontava
para o telefone, uma luz amarela acendeu. Era a indicação de que havia
um transmissor e microfone em algum ponto na área do telefone.
Localizado o microfone, Bond revistou cuidadosamente todo o
quarto. Havia dois pequenos alarmes, perto dos aparelhos de rádio e te-
levisão, mas o sinal amarelo não tornou a se acender. Em poucos minutos,
concluiu que o único microfone instalado no quarto era o do telefone.
Examinando o aparelho, não demorou a descobrir que continha uma ver-
são moderna do antigo e familiar dispositivo que transforma um telefone
num transmissor, proporcionando um serviço 24 horas por dia. Mesmo
no outro lado do mundo, um operador pode captar não só os telefone-
mas, mas também qualquer coisa que se disser no quarto onde se encon-
tra o aparelho.

113
Bond retirou o microfone, levou-o para o banheiro e o esmagou
sob o calcanhar da Mukluk, antes de jogar no vaso e puxar a descarga.
— Assim perecem todos os inimigos do Estado — murmurou, com
um sorriso amargo.
Era quase certo que os outros estivessem cobertos por microfones
como aquele — ou similares. As dúvidas permaneciam: como e quando o
microfone fora instalado, como haviam calculado com tanta perfeição o
atentado contra a vida de Rivke? Paula teria de se movimentar com extre-
ma rapidez para agir contra Rivke — ou qualquer um deles. Isto é, pensou
Bond, a menos que o Hotel Revontuli se encontrasse tão infiltrado que as
coisas já estivessem preparadas muito antes de eles chegarem.
Para conseguir isso, no entanto, Paula — ou quem estivesse orga-
nizando aqueles contramovimentos — precisaria estar informada da con-
versa na Ilha da Madeira. Como Rivke se tornara uma vítima, ela já estava
limpa. E Brad Tirpitz ou Kolya? Bond descobriria muito em breve a ver-
dade sobre os dois. Se a operação relacionada com o depósito russo de
material bélico, conhecido como Lebre Azul, fosse realmente desfechada
naquela noite, talvez todas as cartas fossem postas na mesa.
Bond despiu-se, tomou um banho de chuveiro, vestiu roupas con-
fortáveis. Estendeu-se na cama, acendendo um dos seus cigarros Sim-
mons especiais. Depois de duas ou três tragadas, esmagou a ponta no
cinzeiro e fechou os olhos, resvalando para um cochilo.
Despertando com um sobressalto, Bond olhou para o relógio. Eram
quase três horas. Foi até a janela e olhou para fora. A paisagem nevada pa-
receu mudar enquanto estava ali parado. O branco se alterava enquanto
o sol se punha. E depois veio a magia do que chamam, no Círculo Ártico,
de ‘o momento azul’, quando o branco ofuscante da neve e gelo no solo,
rochas, prédios e árvores adquirem uma tonalidade azul-esverdeada, por
um minuto ou dois, antes do crepúsculo.
Chegaria atrasado para o encontro com Kolya e Tirpitz, mas não
podia evitar. Bond foi ao telefone, agora limpo, e pediu à telefonista uma
ligação para o hospital em Salla. Ela atendeu prontamente. Ele prestou
atenção à discagem e registrou o número. Seu primeiro pensamento, ao
despertar, fora para Rivke.
A recepcionista do hospital falava um inglês fluente. Bond pergun-
tou por Rivke e ela lhe pediu que esperasse um momento. A mulher final-
mente voltou à linha:

114
— Lamento, mas não tenho nenhuma paciente com esse nome.
— Ela foi internada há pouco tempo — disse Bond. — Depois de
um acidente no Hotel Revontuli. Na pista de esqui. Hipotermia, ulceração
do frio, pernas fraturadas. Mandaram uma ambulância e um médico. . . —
Fez uma pausa, tentando recordar o nome. — . . . dr. Simonen. . .
— Lamento, senhor, mas não há ninguém aqui com esse nome. O
hospital é pequeno e conheço todos os médicos.
— Barbudo. Jovem. Ele me disse que eu poderia procurá-lo.
— Lamento, senhor, mas deve haver algum equívoco. Nenhuma
ambulância foi enviada ao Revontuli hoje. Acabei de verificar. Nenhuma
mulher foi internada e não temos nenhum dr. Simonen. Mais do que isso,
não temos nenhum jovem médico barbudo. . . mas eu bem que gostaria
que tivéssemos.
Bond indagou se não havia outro hospital nas proximidades. Não. O
mais próximo ficava em Kemijärvi e não prestariam um serviço de emer-
gência naquela área. Nem o hospital de Pelkosenniemi. Bond pediu os
telefones desses dois hospitais e também o da polícia local. Agradeceu,
desligou, tornou a ligar.
Em menos de cinco minutos já tomara conhecimento de toda a
extensão da terrível notícia. Nenhum dos dois hospitais atendera a uma
emergência no hotel. E mais: a polícia local não tinha um Saab Finlândia
operando nas estradas naquele dia. Nenhum carro da polícia fora enviado
ao hotel. Não havia qualquer possibilidade de engano. A polícia conhecia
o hotel muito bem; tão bem que os guardas realizavam ali o treinamento
de esquis.
Todos lamentavam muito.
E Bond também. Além de se sentir profundamente abalado.

115
116
10

Kolya
James Bond estava furioso.
— Está querendo dizer que não faremos coisa alguma para salvar
Rivke?
Ele não gritou, mas a voz era fria, incisiva, como o gelo enfeitando
as árvores além da janela de Kolya.
— Informaremos à organização dela. — Kolya parecia despreocu-
pado. — Mais tarde, porém, depois que tudo acabar. Não dispomos de
tempo para sair agora pela neve à sua procura. Se ela não aparecer, o
Mossad terá de procurá-la. O que diz a Bíblia? Que os mortos enterrem
os mortos?
O controle de Bond chegava ao fim. Já quase o perdera por duas
vezes, desde que se juntara aos outros membros da Operação Quebra-
Gelo, no quarto de Kolya. O russo abrira a porta prontamente, quando
ele batera. Bond passara por ele, com um dedo nos lábios e a outra mão
segurando o detector VL-34, como um talismã.
Brad Tirpitz exibira um sorriso sarcástico, que se transformara
numa expressão murcha de desagrado quando Bond encontrara outro
microfone no telefone de Kolya, além de artefatos eletrônicos adicionais
sob o carpete e no rolo de papel higiênico.
117
— Pensei que tivesse se encarregado da varredura — dissera-lhe
Bond, bruscamente, olhando desconfiado para Tirpitz.
— Revistei todos os nossos quartos assim que chegamos. Inclusive
o seu, companheiro.
— Também disse que os quartos estavam limpos na Ilha da Madei-
ra.
— E estavam.
— Mas então como eles. . . quem quer que eles sejam. . . consegui-
ram nos encontrar aqui?
Impassível, Tirpitz insistira que esquadrinhara os quartos à procura
de equipamentos eletrônicos.
— Tudo estava limpo. Na Madeira e aqui.
— Então temos um vazamento. Um de nós. . . e sei que não sou eu
— disse Bond, asperamente.
— Um de nós? De nós?
A voz de Kolya tornara-se desagradável. Até aquele momento,
Bond não tivera oportunidade de relatar a Kolya os detalhes do telefo-
nema de advertência que recebera, supostamente, de Paula. E o fez ago-
ra, observando o rosto do russo se alterar. As feições de Mosolov eram
como o mar, pensou Bond. Desta vez foi da ira para a placidez, depois
a preocupação, enquanto Bond descrevia como a manobra poderia ser
executada. Quem operava contra eles sabia de muita coisa das suas vidas
particulares.
— Não era uma mina antiga que explodiu na encosta — declarou,
sombriamente. — Rivke é muito boa com esquis. Também não sou dos
piores e devo calcular que você não é um novato, Kolya. Nada sei em
relação a Tirpitz. . .
— Sei me manter em pé num par de esquis. — Tirpitz assumira a
expressão de um colegial mal-humorado.
A explosão na encosta, continuou Bond, talvez foi acionada por um
sistema de controle remoto.
— Eles também podem ter usado um atirador, postado no hotel. Já
se fez isso antes. . . uma bala ativando uma carga explosiva. Pessoalmen-
te, acredito mais no controle remoto, pois se vincula a todo o resto: o fato
de que Rivke estava na encosta, de que recebi uma ligação que provavel-
mente coincidiu com o momento em que ela iniciava a descida.
Bond fez uma pausa, abrindo os braços.

118
— Eles nos acuaram aqui. Já removeram um de nós, o que lhes
torna mais fácil apertar o cerco aos outros. . .
— E o conde Von Glöda esteve aqui para o café da manhã, com sua
mulher. — Tirpitz emergiu de seu mau humor. Apontou para Kolya Moso-
lov. — Sabe de alguma coisa a respeito disso?
Mosolov fez um pequeno aceno com a cabeça.
— Eu os vi. Antes do incidente na encosta. Quando voltava ao hotel.
Bond seguiu o que Tirpitz começara:
— Não acha que já é tempo, Kolya. . . o momento de revelar tudo o
que sabe sobre Von Glöda?
Mosolov fez um gesto para indicar que não compreendia por que
toda aquela pressão.
— O suposto conde Von Glöda é um dos suspeitos. . .
— O único suspeito — interveio Tirpitz, bruscamente.
— A força provável por trás das pessoas que todos estamos tentan-
do descobrir — acrescentou Bond.
Kolya suspirou.
— Ele não foi mencionado nas reuniões anteriores porque eu es-
perava provas positivas. . . inclusive da localização de seu quartel-general
de comando.
— E tem essas provas agora?
Bond aproximou-se de Kolya, quase ameaçando-o.
— Tenho. — Firme e decidido. — Tudo o que precisamos. É parte
da sessão desta noite.
Kolya fez uma pausa, como se ponderasse a conveniência de se
aprofundar nas informações.
— Vocês dois já sabem quem Von Glöda realmente é?
Era como se ele pretendesse desfechar algum golpe de misericór-
dia. Bond assentiu.
— Sabemos.
— E também o relacionamento com a nossa colega desaparecida
— acrescentou Tirpitz.
— Ótimo. — O tom de Kolya era ligeiramente irritado. — Podemos
então continuar.
— E deixar Rivke entregue aos lobos.
O pensamento ainda enfurecia Bond. Calmamente, Kolya virou a
cabeça, os olhos entraram em choque com os de Bond.

119
— Permita-me sugerir que Rivke estará muito bem. Podemos deixá-
la entregue aos lobos, como você disse. Prevejo que Rivke Ingber reapare-
cerá quando chegar o momento oportuno. Enquanto isso, se quisermos
descobrir as provas que servirão para destruir o Exército da Ação Nacional
Socialista. . . e esse é o motivo exclusivo de nossa presença aqui. . . deve-
mos iniciar a operação desta noite com alguma cautela.
— Que assim seja — murmurou Bond, contendo a raiva.
O objetivo da operação, conforme Kolya Mosolov já adiantara, era
testemunharem e possivelmente fotografarem o roubo de armas do de-
pósito de material bélico conhecido como Lebre Azul, localizado nas pro-
ximidades de Alakurtii. Kolya abriu no chão um mapa detalhado da área.
Estava todo marcado, cruzes em vermelho, diversos percursos em preto,
azul e amarelo.
O indicador de Kolya pousou numa cruz vermelha ao sul de Alakur-
tii, sessenta quilômetros além da fronteira russa e a cerca de 75 quilôme-
tros do lugar onde estavam naquele momento.
— Fui informado de que todos nós somos bem treinados em moto-
netas de neve. — Ele olhou primeiro para Tirpitz e depois para Bond, que
assentiram. — Fico contente em saber disso, pois estaremos sob grande
pressão. A previsão do tempo para esta noite não é boa. Temperaturas
muito baixas, melhorando um pouco depois de meia-noite, quando se
espera uma pequena nevasca, tornando depois a cair.
Kolya ressaltou que viajariam por um terreno difícil, nas motonetas
de neve, durante a maior parte da noite.
— Assim que eu soube que Rivke estaria no hospital. . .
— Onde ela não está.
Kolya ignorou a interrupção de Bond, continuando impassivelmen-
te:
— ... tomei outras providências. Precisamos de pelo menos quatro
pessoas para o que temos de fazer. Devemos cruzar a fronteira russa sem
qualquer ajuda do meu pessoal, seguindo um percurso que talvez tam-
bém seja usado pelos veículos do NSAA. A idéia era deixar duas pessoas
ao longo do percurso como vigias, enquanto Bond e eu seguiríamos até
Alakurtii. Minha informação é de que o comboio do NSAA chegará por
volta das três horas da madrugada, de acordo com o oficial no comando
de Lebre Azul e seus subordinados.
O carregamento dos veículos a serem usados levaria apenas uma

120
hora. Kolya previa que empregariam os APC anfíbios, provavelmente uma
das muitas variantes do BTR russo.
— Eles já estão com tudo pronto, conforme disse o meu pessoal.
Bond e eu tiraremos fotografias e faremos um videoteipe, com lentes in-
fravermelhas, se necessário. Mas creio que haverá claridade suficiente.
Lebre Azul fica no fim do mundo e ninguém se lembrará de ter muita
cautela durante o carregamento. Os cuidados maiores serão no percurso,
especialmente durante a travessia da fronteira. Em Lebre Azul, porém,
todos os refletores deverão estar acesos.
— E onde Von Glöda entra nessa história?
Bond estivera examinando o mapa e seus hieróglifos. Não estava
muito satisfeito. O caminho além da fronteira parecia mais do que difícil
— através de bosques densos, lagos congelados e longas extensões de
campo aberto, coberto de neve, que no verão seria tundra plana. Basica-
mente, no entanto, eram os trechos de floresta que mais o preocupavam.
Sabia o que era navegar e encontrar uma trilha, com uma motoneta de
neve, entre aquelas vastas massas escuras de pinheiros. Kolya exibiu um
sorriso meio furtivo.
— Glöda estará aqui.
O dedo pairou sobre o mapa por um instante, depois espetou uma
área assinalada por retângulos e quadrados. O mapa indicava que ficava
logo depois da fronteira finlandesa, um pouco ao norte do ponto pelo
qual deveriam cruzar.
Tanto Bond quanto Tirpitz inclinaram-se para a frente. Bond me-
morizou rapidamente as coordenadas do mapa. Kolya continuou a falar:
— Estou 99 por cento convencido de que o homem que sua gente
chama de ‘Vaga-lume’, Brad, permanecerá refugiado ali esta noite. E es-
tou igualmente convencido de que o comboio de Lebre Azul terminará no
mesmo ponto.
— Uma certeza de 99 por cento? — Bond alteou uma sobrancelha
inquisitivamente, a mão se levantou para empurrar a pequena mecha de
cabelos caída na testa. -— Por quê? Como?
— Meu país. . . — O tom de Kolya Mosolov não ostentava qualquer
chauvinismo ou orgulho especial. — . . . meu país tem uma pequena van-
tagem, sob o ponto de vista geográfico.
Seu dedo circulou toda a área do mapa assinalada pelos retângulos
vermelhos.

121
— Pudemos exercer uma considerável vigilância sobre essa área
nas últimas semanas. Outra vantagem é que agentes em terra efetuaram
amplas investigações. Ainda restam diversas posições defensivas em ru-
ínas nesta parte da fronteira. Pode-se encontrar os vestígios de defesas
em muitos países da Europa. . . na França, por exemplo, até mesmo na
Inglaterra. A maioria está intacta, mas fora de uso; as paredes exterio-
res parecem bastante sólidas, mas com o interior desmoronando. Creio
que podem imaginar quantas casamatas e fortificações foram construídas
nesta região durante a Guerra de Inverno e depois da invasão nazista da
Rússia.
— Eis algo que posso confirmar.
Bond sorriu, como se tentasse comunicar a Kolya que não era intei-
ramente alheio àquela parte do mundo.
— Meu pessoal também tem conhecimento.
Tirpitz não ficaria para trás.
— Ah...
O rosto de Kolya iluminou-se no que poderia passar por um sorriso
afável. Silêncio, por cerca de meio minuto. Depois, Kolya balançou a ca-
beça, o estranho truque da súbita transformação facial convertendo sua
expressão na de um sábio.
— Depois de sermos alertados para o que estava acontecendo em
Lebre Azul, nosso Departamento de Operações Especiais recebeu ordens
expressas. Satélites e aviões a grande altitude tiveram seus percursos al-
terados. E acabaram revelando-nos isto.
Tirou de baixo do mapa uma pequena pasta de plástico transparen-
te e começou a passar uma série de fotografias. Eram várias, obviamen-
te tiradas de avião de reconhecimento — provavelmente o Mandrake,
Mangrove ou Brewer-D russos, todos ideais para esse tipo de operação.
Mesmo em preto e branco, as fotografias mostravam extensas áreas de
terreno revolvido. Foram tiradas durante os meses do final do verão e
início do outono, antes da neve. Na maioria, era inconfundível a entrada
de alguma grande casamata de concreto.
As outras fotografias eram de um tipo que tanto Bond quanto Brad
Tirpitz conheciam: fotos de satélites de reconhecimento militar, muitos
quilômetros além da terra, com câmaras e lentes diversas. A mais inte-
ressante era a que mostrava, em cores firmes, mudanças na estrutura
geológica.

122
— Pusemos em ação um dos nossos satélites Cosmos de informa-
ções militares. Muito bom, hein?
Os olhos de Bond deslocaram-se das fotografias do satélite para as
pequenas marcas no mapa. As fotos, ampliadas, revelavam que um traba-
lho considerável se processara abaixo da superfície da terra. As texturas e
cores tornavam evidente que o prédio fora bem construído, com o uso de
muito aço e concreto. Era uma estrutura simétrica, com todos os indícios
de um complexo subterrâneo, completo e ativo.
— Não tenho apenas as fotografias. — Kolya pegou outra pasta,
que continha as plantas do que só podia ser uma imensa casamata. — Fo-
mos alertados pelas fotos do satélite. E depois nossos agentes entraram
em ação. Havia alguns mapas interessantes da área, usada por ocasião da
Guerra de Inverno e posteriormente. Engenheiros militares finlandeses
construíram um vasto depósito subterrâneo de armamentos exatamente
neste local, ao final da década de 1930. Era bastante grande para aco-
modar pelo menos dez tanques, além de munição e oficinas. A entrada
principal da casamata era grande. . . aqui.
Apontou para as fotografias e o desenho no mapa.
— Pelas informações de nossos agentes em campo e registros exis-
tentes, sabemos que a casamata nunca foi usada. Há cerca de dois anos,
no entanto, durante o verão, houve informações de uma intensa ativida-
de na área. . . operários, tratores, toda a parafernália habitual. Não resta
a menor dúvida de que é o covil de Von Glöda.
O dedo começou a circular entre as marcas no mapa.
— A entrada principal, aqui, foi reformada e fechada. É bastante
grande para a passagem de veículos. E há muito espaço lá embaixo para
guardá-los.
Eram provas claras e convincentes. O complexo parecia vasto, divi-
dido em duas áreas: uma para veículos e depósitos, a outra uma colmeia
de alojamentos. Pelo menos trezentas pessoas poderiam viver ali, ano
após ano. A entrada maior era paralela a um acesso menor, ambos des-
cendo suavemente até uma profundidade aproximada de trezentos me-
tros, “o suficiente para enterrar muitos corpos”, como disse Kolya.
— Acreditamos que é o lugar em que todos os corpos estão en-
terrados. — Kolya não exibiu qualquer sinal de humor. — Pessoalmente,
acho que é o quartel-general e o posto de comando de controle de plane-
jamento do Exército da Ação Nacional Socialista. Tornou-se também uma

123
escala fundamental das armas e munições roubadas de bases do Exército
Vermelho. Essa casamata reformada, na minha opinião, é o coração do
NSAA.
Tirpitz olhou para Kolya ao falar; o sarcasmo em sua voz era quase
tangível:
— Portanto, tudo o que devemos fazer é tirar algumas lindas foto-
grafias dos seus militares traindo o país, depois seguir os veículos de volta
à casamata. O aconchegante Palácio de Gelo.
— Exatamente.
— Sem qualquer dificuldade. Só nós três. . . e eu, ao que presumo,
funcionando como uma escora na fronteira, onde qualquer idiota de mio-
lo mole pode me acertar como uma lebre.
— Não se você for tão bom quanto dizem — comentou Kolya, re-
tribuindo na mesma moeda. — Tomei a liberdade de convocar alguém do
meu pessoal. . . porque há dois pontos de travessia.
Indicou outra linha, um pouco mais ao norte do percurso que se-
guiria com Bond, explicando que as duas travessias da fronteira deviam
ser cobertas.
— Originalmente, eu queria Rivke aqui em cima, para qualquer
emergência. Com a ausência dela, precisávamos de mais alguém e tratei
de providenciar.
Houve uma breve pausa, rompida por Bond:
— Quero saber uma coisa, Kolya.
— Pode falar.
O rosto do russo estava virado para Bond, desarmado e franco.
— Se tudo transcorrer de acordo com os planos. . . se obtivermos
as provas e seguirmos o comboio de volta à casamata, que você diz estar
aqui. . . — Bond apontou no mapa. — . . . depois que fizermos tudo isso,
qual será o próximo movimento?
Kolya nem parou para pensar.
— Garantimos a obtenção das provas. Depois, fazemos uma de
duas coisas: comunicamos tudo às nossas respectivas agências ou, se pos-
sível, terminamos o trabalho pessoalmente.
Bond não fez qualquer comentário adicional. Kolya indicara um fim
de jogo dos mais interessantes. Se ele estava mesmo envolvido em al-
guma conspiração da KGB-Exército Vermelho, a ação de “terminar o tra-
balho pessoalmente” seria um método tão bom quanto qualquer outro

124
de encobrir as coisas para sempre. Ainda mais, calculou Bond, se Kolya
Mosolov providenciasse para que Bond e Tirpitz não voltassem. Enquanto
isso, se a teoria de conspiração era procedente, o comando do NSAA já
poderia estar se transferindo para outro esconderijo, outra casamata.
Eles continuavam a conversar, entrando em minúcias: onde as mo-
tonetas de neve estavam escondidas, o tipo de câmaras que usariam, o
ponto exato em que Tirpitz ficaria e a posição do novo agente de Kolya,
identificado apenas como Mujik, uma piada de Kolya ou, como ele alegou,
um mujik — na antiga Rússia a designação do camponês, considerado
inferior por lei.
Depois de uma hora de discussão, Kolya entregou os mapas a Bond
e Tirpitz. Cobriam toda a área, amostras típicas da cartografia militar, os
percursos pela fronteira marcados com lápis de ponta fina, bem como a
localização de Lebre Azul e os retângulos indicando o complexo subterrâ-
neo que já chamavam apenas de Palácio de Gelo. Lebre Azul e Palácio de
Gelo, garantiu Kolya, estavam assinalados na escala exata.
Sincronizaram os relógios e marcaram um encontro à meia-noite.
Deveriam deixar o hotel, separadamente, entre 11:30 e 11:40 h.
Bond voltou ao seu quarto, em silêncio, tornou a pegar o VL34
para examiná-lo meticulosamente. Já estavam longe os dias, pensou ele
de passagem, em que se podia vigiar um quarto deixando pequenas las-
cas de palito de fósforo na porta ou nas beiradas de gavetas. Nos velhos
tempos, um pouquinho de algodão podia operar maravilhas. Agora, no
entanto, na era dos microaparelhos, a vida se tornara mais sofisticada e
consideravelmente mais difícil.
Haviam entrado mais uma vez em seu quarto durante a reunião.
Agora, não era apenas o microfone automático no telefone, mas também
toda uma série de aparelhos de escuta, como apoio: um por trás do es-
pelho no banheiro; outro nas cortinas, impecavelmente costurado; um
terceiro disfarçado como botão na pequena caixa de costura, com agu-
lhas e linhas, na dobra da pasta com papel timbrado do hotel; e mais um,
engenhosamente ajustado dentro de uma lâmpada nova, na mesinha de
cabeceira.
Bond fez três varreduras. A pessoa que realizava aquele trabalho
certamente conhecia o ofício. Enquanto destruía os diversos microfones,
ele se perguntou se o novo aparelho no telefone não seria um embuste,
na esperança de que não continuasse na busca depois de encontrá-lo.

125
Depois de certificar-se de que o quarto estava limpo, Bond abriu
seu mapa. Já tirara da pasta uma bússola de bolso militar, que pretendia
levar naquela noite. Usando um pequeno bloco de papel fino e um cartão
de crédito como régua, Bond começou a fazer cálculos e a traçar percur-
sos no mapa — anotando as posições exatas que deveriam seguir na tra-
vessia da fronteira e na localização de Lebre Azul. Anotou também as dire-
ções na saída de Lebre Azul, pelo percurso previsto e por sua alternativa.
Conferiu ainda os ângulos e direções que os levariam ao Palácio
de Gelo. Durante todo o tempo em que trabalhava, Bond sentia-se in-
quieto — uma sensação que experimentara mais de uma vez desde o pri-
meiro encontro na Ilha da Madeira. Conhecia a causa básica. Já operara
ocasionalmente em conjunto com outro agente de seu próprio serviço
ou de alguma organização aliada. Mas Quebra-Gelo era diferente. Agora
era obrigado a atuar em equipe e Bond não era um homem de equipe
— especialmente uma equipe que continha elementos tão passíveis de
desconfiança.
Os olhos vasculharam o mapa, como se procurasse por uma pista.
E de repente, sem que tentasse realmente descobrir, surgiu-lhe uma res-
posta.
Arrancou uma das folhas do pequeno bloco, colocou-a cuidadosa-
mente sobre as indicações do Palácio de Gelo e riscou a lápis as linhas que
indicavam a extensão da casamata subterrânea. Em seguida acrescentou
a topografia local. Isso feito, Bond deslocou o papel transparente numa
direção nordeste pelo mapa, cobrindo o equivalente a cerca de 15 quilô-
metros.
O movimento diagonal transportou o Palácio de Gelo através da
zona da fronteira para a Rússia. E mais: a topografia local ajustava-se com
perfeição, inclusive os níveis ao redor, áreas de bosque e linhas de rios de
verão. A topografia em geral era muito similar, mas naquele caso tornava-
se extraordinária. Ou os mapas haviam sido especialmente impressos ou
existiam dois locais — um em cada lado da fronteira —, exatamente iguais
em todos os detalhes topográficos.
Com a mesma concentração, Bond copiou a possível posição se-
cundária do Palácio de Gelo em seu mapa. Depois, calculou mais algumas
posições com a bússola. Era possível que o quartel-general de Von Glöda
e a primeira escala do comboio de armas se localizasse não na Finlândia,
mas no lado russo da fronteira. Mesmo se levando em conta a semelhan-

126
ça da paisagem por toda a região, era muita coincidência encontrar dois
locais exatamente idênticos, separados por apenas 15 quilômetros.
Bond pensou na posição das entradas do Palácio de Gelo. As duas
estavam viradas para o lado russo. Se ficava mesmo no lado russo da
fronteira, ele tinha de lembrar que aquela área da União Soviética já per-
tencera à Finlândia — antes do grande conflito, a Guerra de Inverno de
1939-40. Mas, de qualquer forma, era estranho que as entradas das for-
tificações originais estivessem viradas para a Rússia; especialmente se as
casamatas fossem construídas antes da guerra russo-finlandesa de 1939;
não tão estranhas se erguidas depois da paz, quando extensas áreas, in-
clusive uma boa parte daquela região, foram cedidas à União Soviética
após a rendição finlandesa em 13 de março de 1940.
Para Bond, era bem possível que o Palácio de Gelo fosse de origem
russa. Se era realmente o quartel-general da organização fascista conhe-
cida como Exército da Ação Nacional Socialista, então demonstrava duas
coisas: o líder do NSAA era ainda mais astucioso do que Bond pensara; e
a coação e a traição dentro do Exército Vermelho, GRU e KGB podiam ser
mais amplas do que qualquer um já concebera.
O trabalho seguinte de Bond era o de transmitir alguma mensagem
a M. Poderia simplesmente ligar para Londres do telefone em seu quarto.
Estava agora livre de aparelhos de escuta; mas como saber se as chama-
das não eram controladas através da mesa telefônica do hotel?
Rapidamente, Bond gravou na memória os registros de bússola e
coordenadas, usando o seu comprovado método mnemônico. Rasgou de-
pois os papéis e removeu várias folhas por baixo do bloco. Jogou tudo no
vaso e puxou, a descarga. Esperou por um momento, a fim de ter certeza
de que tudo fora levado.
Colocando todos os utensílios para sair, Bond deixou o quarto e
desceu para o seu carro. Entre os muitos equipamentos secretos que le-
vava no Saab, um fora recentemente instalado pelo Setor Q. Na frente
da alavanca de mudança havia o que parecia ser um radiotelefone per-
feitamente normal, um instrumento inútil, a menos que houvesse uma
unidade-base num raio de quarenta quilômetros. Mas quarenta quilôme-
tros não serviam para Bond, assim como um telefone comum também
lhe era inútil, nas atuais circunstâncias. O telefone do Saab dispunha de
duas grandes vantagens. A primeira era uma pequena caixa preta, da qual
pendia um par de terminais. Não era muito mais do que um par de cas-

127
setes, um por cima do outro. Bond tirou-a de seu esconderijo, por trás do
porta-luva.
Reativando os sensores de alarme, voltou ao hotel através do gelo
e da neve compacta, subindo para o seu quarto. Sem querer correr qual-
quer risco, Bond efetuou uma rápida varredura com o VL34. Ficou aliviado
ao constatar que o quarto continuava limpo, depois de sua breve ausên-
cia. Desatarraxou rapidamente a placa inferior do aparelho telefônico. Li-
gou depois os terminais da pequena caixa preta, removeu o fone do gan-
cho e o manteve à mão. O avançado sistema eletrônico contido naquela
pequena caixa garantia-lhe agora uma unidade-base facilmente disponí-
vel, da qual podia operar o telefone do carro. O acesso ao mundo exterior,
usando ilegalmente o serviço telefônico finlandês, estava assegurado.
Havia ainda a segunda vantagem do telefone do carro. Voltando ao
Saab, Bond apertou um dos botões pretos quadrados, sem qualquer indi-
cação, no painel. Por trás do compartimento do telefone, uma portinhola
deslizou para o lado, revelando um pequeno teclado de computador e
uma minúscula tela — um scrambler telefônico de extrema complexida-
de, que podia ser usado para proteger a voz ou enviar mensagens que se
imprimiriam numa tela compatível, no prédio em frente ao Regenfs Park.
Bond apertou as teclas para ligar o telefone do carro com sua uni-
dade-base. Batendo o código de transmissão da Finlândia e o código de
recepção para Londres, acrescentou o número do quartel-general de seu
Serviço. Transmitiu em seguida o código exigido e começou a enviar a
mensagem em linguagem aberta. Apareceu em sua tela, como também
aconteceria no prédio do quartel-general, numa confusão de letras agru-
padas. Seria decifrada rapidamente para leitura na tela do quartel-gene-
ral.
Toda a transmissão levou cerca de 15 minutos, com Bond encolhi-
do dentro do carro às escuras, iluminado apenas pelo brilho da pequena
tela. Ele estava consciente do acúmulo de gelo nas janelas. Um vento não
muito forte soprava lá fora e a temperatura continuava a cair. Depois que
toda a mensagem foi transmitida, Bond fechou o compartimento secreto,
reativou os sensores e voltou ao hotel. Mais uma vez, por medida de se-
gurança, efetuou uma varredura no quarto e depois removeu a unidade-
base do telefone do hotel.
Mal acabara de guardar a unidade-base na valise — pretendendo
levá-la de volta ao Saab antes que começasse a verdadeira ação da noite

128
— quando houve uma batida na porta. Agora, agindo de acordo com as
regras do Serviço, Bond pegou a P7 e foi até a porta, tirando a corrente
silenciosamente antes de perguntar quem estava ali.
— Brad — foi a resposta. — Brad Tirpitz.
‘Bad’ Brad Tirpitz parecia um tanto abalado quando entrou no
quarto. Bond notou uma palidez nítida e uma cautela evidente nos olhos
do americano.
— O filho da puta do Kolya. . . — murmurou ele.
Bond gesticulou para a poltrona.
— Sente-se e descarregue. O quarto está limpo agora. Tive de var-
rê-lo mais uma vez, depois do encontro com Kolya.
— O mesmo aconteceu comigo.
Um sorriso lento espalhou-se pelo rosto de Tirpitz, parando pouco
antes dos olhos, como sempre. Era como se um escultor tivesse trabalha-
do devagar nas feições rochosas, mas subitamente desistisse.
— Mas peguei Kolya no ato. Já conseguiu definir quem está traba-
lhando para quem?
— Não exatamente. Por quê?
— Deixei uma pequena lembrança no quarto de Kolya, depois da
sessão. Limitei-me a enfiar por baixo da almofada da poltrona. E tenho
escutado desde então.
— E posso adiantar que não ouviu boa coisa a seu próprio respeito.
Bond abriu a geladeira, perguntou a Tirpitz se desejava um drinque.
— O que você for tomar. Tem toda razão. É verdade o que se costu-
ma dizer. . . nunca se ouve boa coisa da gente.
Bond misturou rapidamente um par de martínis, entregou um copo
a Tirpitz.
— Muito bem. — Tirpitz tomou um gole, alteando as sobrancelhas
num gesto elogioso. — Muito bem, companheiro, Kolya deu diversos tele-
fonemas. Trocou de língua várias vezes e não pude entender a maior par-
te. . . de um modo geral, uma linguagem ambígua. Mas entendi a última
conversa. Ele falou com alguém sem rodeios. Em russo. A viagem desta
noite, amigo, vai nos levar ao fim da linha.
— É mesmo?
— É, sim. Eu terei o mesmo tratamento de Rivke. . . bem na fron-
teira, a fim de parecer uma mina antiga. Sei até qual será o local exato.
— O local exato?

129
— Não é um terreno morto. . . se me permite a expressão. . . mas
em um campo aberto. Vou lhe mostrar.
Tirpitz estendeu a mão para o mapa de Bond. Ninguém, de confian-
ça ou não, veria o mapa de Bond, particularmente agora que ele registra-
rá ali a possível localização do Palácio de Gelo.
— Você é um filho da puta desconfiado, Bond.
O rosto de Tirpitz voltou a ser de granito duro, lascado, anguloso
— e perigoso.
— Basta me dar as coordenadas.
Tirpitz enunciou os números. Mentalmente, Bond calculou a loca-
lização aproximada em relação a toda a área de operações. Fazia sentido
— uma mina de controle remoto num local onde eles poderiam estar, a
poucos metros dos campos realmente minados.
— Ainda não ouviu o que está reservado para você — acrescentou
Tirpitz. — Organizaram uma saída espetacular para você, Mr. Bond.
— E o que estará reservado para Kolya Mosolov? — disse Bond,
com uma expressão quase inocente.
— Também pensei nisso. Pensamos da mesma forma, amigo. Esse
é o trabalho típico de mortos-que-não-falam.
Bond assentiu, tomou um gole de martíni, acendeu um cigarro.
— Então é melhor você contar logo o que está reservado para mim.
Parece que vai ser uma noite longa e fria.

130
11

Safári na Neve
James Bond tinha de reduzir a velocidade a cada minuto para lim-
par a camada de geada dos óculos de proteção. Não poderiam ter es-
colhido uma noite pior. Até mesmo uma nevasca, pensou ele, teria sido
preferível.
— Um safári na neve — como dissera Kolya, rindo.
A escuridão parecia aderir a eles; ocasionalmente se dissipava para
oferecer um lampejo de visibilidade, depois tornava a se adensar, como
vendas sopradas em seus rostos. Era preciso toda a concentração para se-
guir o homem na frente. O único conforto era que Kolya, conduzindo a co-
luna, tinha o seu pequeno farolete aceso, virado para baixo. Bond e Tirpitz
seguiam-no sem luzes, acompanhando com a maior dificuldade aquele
rápido fogo-fátuo de inverno. As três grandes motonetas de neve Yamaha
avançavam ruidosamente pela noite, fazendo barulho suficiente, pensou
Bond, para atrair quaisquer patrulhas num raio de 15 quilômetros.
Depois da conversa prolongada com Brad Tirpitz, Bond se prepa-
rara com um cuidado ainda maior do que o habitual. Primeiro, houve o
trabalho de arrumação — pegou tudo o que não seria necessário e levou
para o Saab, do qual outras coisas deveriam ser recolhidas. Trancando a
pasta e a valise na mala do carro, Bond sentara ao volante. E, ali, tivera
131
todos os motivos para agradecer ao santo, qualquer que fosse, que velava
pelos agentes em missão.
Acabara de recolocar a unidade-base do telefone em seu esconde-
rijo, por trás do porta-luvas, quando o pequeno ponto de luz vermelha,
ao lado do telefone do carro, começara a piscar rapidamente. Bond ime-
diatamente apertara o botão que proporcionava acesso ao computador
scrambler e sua tela. A luz vermelha indicava que uma mensagem de Lon-
dres estava depositada no sistema.
Num instante Bond processou as etapas de ativamento. Poucos
segundos depois a tela estava repleta de grupos de letras. Mais alguns
movimentos dos dedos de Bond sobre o teclado fizeram com que a con-
fusão se tornasse ainda maior, para depois removê-la completamente. O
instrumento zumbiu e soltou estalidos, enquanto seu cérebro eletrônico
começava a resolver o problema. Uma linha em movimento de linguagem
direta apareceu na tela. A mensagem dizia:

DO CHEFE DO SERVIÇO PARA 007 MENSAGEM RECEBIDA DEVO


AVISAR PARA SE APROXIMAR VON GLÖDA COM EXTREMA CAUTELA RE-
PITO EXTREMA CAUTELA POIS NÃO HÁ IDENTIFICAÇÃO POSITIVA REPITO
POSITIVA QUE VON GLÖDA SEJA COM CERTEZA CRIMINOSO DE GUERRA
NAZISTA PROCURADO AARNE TUDEER FORTE POSSIBILIDADE QUE SUA
TEORIA SEJA CORRETA SE CONTATO FOR FEITO ME AVISE IMEDIATAMEN-
TE E VOLTE DO CAMPO É UMA ORDEM BOA SORTE M

M estava preocupado o bastante, pensou Bond, para recolher a


linha se ele chegasse perto demais. A palavra ‘linha’ levantou outras ex-
pressões em seus pensamentos: ‘fim da linha’; ‘linha de fogo’; ser ‘traído
por toda a linha’. Todas elas se aplicavam ao caso atual.
Depois de trancar o carro e acionar os alarmes, Bond voltou ao ho-
tel, pediu comida e um novo suprimento de vodca. O acerto era de que
todos os três permaneceriam em seus quartos até o momento do encon-
tro nas motonetas de neve.
Um garçom idoso levou o pedido de Bond numa mesinha com ro-
das. A refeição era simples, sopa de ervilha com pedaços de carne, um
excelente salame de rena.
Enquanto comia, Bond compreendeu lentamente que seu nervo-
sismo com a missão, a Operação Quebra-Gelo, não era inteiramente uma

132
decorrência das desculpas que levantara em relação a suas atitudes ope-
racionais, como trabalhar sozinho, contar apenas com seu profissionalis-
mo e intuição. Havia outro elemento — um elemento que surgira com o
nome Aarne Tudeer e a ligação desse nome com o conde Von Glöda.
Bond pensou em outros indivíduos poderosos com quem já trava-
ra batalhas perigosas, muitas vezes solitárias. Lembrou-se ao acaso de
pessoas como Sir Hugo Drax, mentiroso e trapaceiro, a quem derrotara,
expondo-o como um batoteiro, antes de levá-lo para outro tipo de ba-
talha. Auric Goldfinger fora da mesma espécie, um Midas, a quem Bond
desafiara no campo do esporte, assim como na zona mais profunda e pe-
rigosa da batalha. Blofeld — ainda havia muitas coisas sobre Blofeld que
gelavam o sangue de Bond. E afloraram pensamentos sobre Blofeld e sua
filha, com quem Bond recentemente tivera de se defrontar.
Mas Konrad von Glöda — ou melhor, Aarne Tudeer — parecia ter
lançado um crepúsculo opressivo sobre toda aquela missão. Um enorme
ponto de interrogação.
— Glöda é igual a Brilho — dissera Bond, em voz alta.
Ele se perguntara se o homem não possuiria um estranho senso
de humor, se o pseudônimo não conteria uma mensagem. Uma chave
para sua personalidade? Glöda era um código, um fantasma, vislumbrado
apenas no restaurante do Hotel Revontuli — um homem idoso, mas em
excelente forma, bronzeado, cabelos prateados, de porte militar. Se Bond
o encontrasse em algum clube londrino, não hesitaria em tirar uma con-
clusão: ali estava um militar reformado. Não havia a aura de iniqüidade
em torno de sua pessoa. Não havia como se prever.
Por um segundo fugaz, Bond teve a estranha sensação de uma
gelada e pegajosa mão, a lhe descer pela espinha. Como ainda não se
defrontara com Von Glöda nem possuía um dossiê completo sobre o ho-
mem, Bond sentiu uma inquietação excepcional. Naquela fração de tem-
po, chegou a especular se afinal encontrara um adversário à sua altura.
Respirou fundo, convencendo-se mentalmente. Não, Konrad von
Glöda não o derrotaria. Mais do que isso: se houvesse contato com o falso
conde, 007 ignoraria as instruções de M. James Bond não podia abando-
nar a arena e fugir de Von Glöda — ou Tudeer — se ele realmente fosse
o responsável pelas atividades terroristas do NSAA. Se havia alguma pos-
sibilidade de exterminar essa organização, Bond não a deixaria escapar.
Sentiu voltar a sua autoconfiança — outra vez um lutador solitário,

133
sem nenhum aliado, ali, sob o terrível frio do Ártico. Rivke desaparecera e
ele lamentava o fato de não haver tempo para procurá-la. Kolya Mosolov
merecia tanta confiança quanto um tigre faminto e ferido. Brad Tirpitz?
Podiam ser aliados no papel, mas Bond não era capaz de depositar uma fé
total no americano. Haviam elaborado um plano alternativo para prevenir
o atentado que, segundo Tirpitz, seria cometido contra a sua vida. Mas
isso era tudo. Os elos de confiança entre os dois ainda não eram firmes.
Naquele momento, antes mesmo de a noite cair, Bond tomou uma
decisão. Agiria sozinho, com suas próprias regras. Não dobraria sua von-
tade a ninguém.
E agora eles avançavam, entre sessenta e setenta quilômetros ho-
rários, derrapando e corcoveando pela trilha irregular, a cerca de um qui-
lômetro da fronteira russa e paralelo a ela.
As motonetas de neve — conhecidas pelos turistas como ‘Skidoos’
— podem andar na neve e no gelo a uma velocidade vertiginosa. De-
vem ser controladas com extremo cuidado. Com uma aparência sinistra,
capo largo e esquis projetando-se para a frente, as motonetas de neve
possuem lagartas com espigões que as movimentam, proporcionando o
impulso inicial, que aumenta rapidamente, enquanto os esquis deslizam
pela superfície. Há pouca proteção para o motorista — ou qualquer pas-
sageiro — além do pára-brisa. Na primeira viagem, as pessoas tendem a
manejar a motoneta de neve como motocicletas. Mas uma motocicleta
pode virar em ângulos agudos, enquanto uma motoneta de neve tem de
fazer a volta num círculo muito mais amplo. Há também uma tendência
para que alguém inexperiente estique a perna. Só faz isso uma vez, e aca-
ba no hospital com uma fratura, pois a perna simplesmente se enterra na
neve, sendo jogada para trás pela velocidade da motoneta.
Os ecologistas protestam com veemência contra o uso dessa má-
quina, alegando que os espigões já esburacaram e destruíram a textura
da terra sob a neve. Mas não resta a menor dúvida de que o veículo alte-
rou o padrão de vida no Ártico — particularmente para os nativos nôma-
des da Lapônia.
Bond mantinha a cabeça abaixada e era rápido em suas reações.
Uma volta exigia considerável energia, especialmente em neve profun-
da e dura, pois se devia virar os esquis com o guidom, depois mantê-los
assim, estremecendo, enquanto se tentava recuperar a posição normal.
Seguir alguém como Kolya apresentava outras dificuldades. Podia-se facil-

134
mente cair nos sulcos deixados pela motoneta da frente, o que acarretava
problemas de maneabilidade, pois era como estar preso nos trilhos de
um bonde. E se o guia cometesse algum erro, era quase certo tropeçar
sobre ele.
Bond tentava voltear atrás de Kolya, derrapando de um lado para
outro, levantando os olhos continuamente para vislumbrar o caminho à
frente, através do pequeno clarão da lanterna do russo. Às vezes ele se
desviava demais, o que ocasionava um balanço, primeiro à direita, depois
à esquerda, subindo quase a ponto de perder o controle, para depois se
recuperar, forçando ao máximo as barras de direção.
Mesmo com o rosto e a cabeça inteiramente cobertos, o vento e
o frio entravam em Bond como navalhas afiadas. Ele flexionava os dedos
constantemente, com medo de que ficassem entorpecidos.
Bond fizera tudo o que estava ao seu alcance para viajar devida-
mente preparado. A automática P7 estava no coldre atravessado em seu
peito, dentro do blusão acolchoado. Não havia a menor possibilidade de
sacá-la rapidamente, mas pelo menos estava ali, com bastante munição
de reserva. A bússola pendia de uma correia em seu pescoço, segura
dentro do blusão. Alguns dos equipamentos eletrônicos menores esta-
vam espalhados em seu corpo, os mapas lhe eram acessíveis, no bolso na
coxa da calça acolchoada de esquiar. Uma das longas adagas de comando
Sykes Faifburn estava presa em sua bota esquerda e uma faca menor de
esfolar renas, usada pelos lapões, pendia do cinto.
Nas costas, Bond levava uma pequena mochila que continha outras
coisas: um macacão branco com capuz, para o caso de haver necessidade
de camuflagem na neve, três granadas de atordoamento e duas bombas
de fragmentação L2A2.
As árvores pareciam tornar-se mais densas, mas Kolya se desviava
com facilidade, pois conhecia o percurso. Como a palma da mão, pensou
Bond, mantendo sua posição dois metros atrás do russo e consciente de
que Brad Tirpitz seguia em algum ponto às suas costas.
Estavam descrevendo uma curva. Bond podia senti-lo, embora o
movimento não fosse claro. Kolya levava-os por aberturas entre as árvo-
res, virando à esquerda e à direita. Mas Bond sentiu que se deslocavam
cada vez mais para a direita — para leste. Mais um pouco e deixariam a
cobertura das árvores. Haveria então um quilômetro, ou pouco mais, de
campo aberto, depois outro bosque, a longa descida para o vale, onde

135
uma faixa larga se estendia através das florestas para assinalar a fronteira
e dissuadir as pessoas de tentarem uma travessia.
Emergiram das árvores abruptamente. Mesmo na escuridão, a tran-
sição foi enervante. Sentiam-se quase seguros dentro da floresta. Agora,
a escuridão dissipava-se ligeiramente, enquanto a neve os envolvia com
uma cor cinzenta. A velocidade aumentou, uma corrida em linha reta,
sem qualquer desvio ou mudança súbita de direção. Kolya parecia ter fi-
xado um percurso e acelerado ao máximo a sua motoneta. Bond seguiu-o,
desviando-se um pouco para a direita e permanecendo um pouco atrás, o
que era possível agora, pois estavam em campo aberto.
O frio tornou-se mais intenso, pela falta de abrigo ou apenas por-
que a velocidade agora era maior. Talvez fosse também porque estavam
viajando há quase uma hora e o frio começara a penetrar em seus ossos,
mesmo com todas as camadas de roupas de aquecimento.
Bond avistou à frente a massa de árvores seguinte. Se Kolya os le-
vasse através daquela nova linha de floresta em alta velocidade, chega-
riam ao declive aberto em apenas dez minutos.
O vale da morte, pensou Bond, pois era lá embaixo, no leito aberto
do vale, a zona de proteção da fronteira, que haveria a armadilha para
Brad Tirpitz. Haviam elaborado a teoria no hotel, no quarto de Bond. O
momento se aproximava, as motonetas levantavam nuvens de neve em
torno deles. Quando chegasse, Bond não poderia parar ou voltar, a fim
de verificar se as medidas preventivas haviam funcionado. Tinha de con-
fiar no senso de oportunidade e na capacidade de sobrevivência de Brad
Tirpitz.
Entraram no meio das árvores — como se passassem da claridade
para a escuridão instantânea de uma catedral toda apagada. Galhos de
pinheiros roçavam no corpo de Bond, batiam em seu rosto, enquanto ele
manejava as barras de direção: esquerda, direita, em frente, esquerda
outra vez. Houve um momento em que quase calculou de maneira errada
uma curva, sentindo a frente de um dos esquis encostar na base de uma
árvore oculta pela neve. Outro momento difícil foi quando ele pensou que
seria projetado da motoneta, ao passar por raízes grossas, cobertas pelo
gelo, com a máquina derrapando perigosamente. Mas Bond agüentou fir-
me, manipulando os controles, endireitando a motoneta.
Desta vez, quando emergiram das árvores, a paisagem à frente
parecia mais clara, apesar dos óculos de proteção estarem cobertos por

136
uma camada de geada. O vale branco estendia-se para os dois lados, a
encosta descia suavemente e se tornava plana, depois subia pelo outro
lado, na direção de um verdadeiro regimento de árvores, alinhadas como
que em posição de batalha.
Outra vez em terreno aberto, a velocidade aumentou. Bond sentiu
a dianteira da motoneta baixar com a pressão do motor. Esforçava-se ago-
ra para impedir que a máquina resvalasse.
Enquanto desciam, a sensação de vulnerabilidade tornou-se mais
intensa. Kolya lhes dissera que aquele percurso era constantemente usa-
do por pessoas que efetuavam a travessia da fronteira, pois não havia uni-
dades de patrulha em 15 quilômetros de cada lado e raramente os guar-
das realizavam incursões noturnas. Bond torcia para que Kolya estivesse
certo. Mais um pouco e estariam no fundo do vale — meio quilômetro
de gelo plano —, antes de subirem para o outro lado e se embrenharem
entre as árvores da Mãe-Rússia. Antes disso, porém, Brad Tirpitz estaria
morto — pelo menos era isso o que fora planejado.
A mente de Bond reconstituiu uma viagem que efetuara no inver-
no, há muito tempo, através da Zona Leste, para Berlim Ocidental. O gelo
e a neve não eram tão terríveis e letais como agora, mas recordava-se da
passagem pela barreira, vindo de oeste, em Helmstedt, onde o aconse-
lharam a seguir pela auto-estrada através da Zona Leste, sem qualquer
desvio. Nos primeiros quilômetros a estrada era flanqueada por bosques.
Vira claramente as altas torres de madeira, com seus refletores, soldados
do Exército Vermelho em trajes brancos de inverno, agachados entre as
árvores à beira da estrada. Seria isso o que os aguardava no outro lado do
vale, acima da encosta?
Chegaram ao fundo do vale, iniciaram o percurso reto e plano. Se
Brad estava certo, toda a coisa aconteceria dentro de poucos minutos —
dois ou três, no máximo.
Kolya aumentou a velocidade, como se estivesse disparando para
ficar bem longe deles. Bond continuou a segui-lo, mas deixou-se ficar um
pouco atrás, rezando para que Tirpitz estivesse certo. Mexendo-se no se-
lim duro, Bond olhou para trás. Para seu alívio, a motoneta de Brad ficara
bem distante, exatamente como haviam planejado. Não podia saber se
Tirpitz ainda estava lá em cima, pois só conseguia divisar o vulto escuro e
indistinto da motoneta reduzindo a velocidade.
Bond virava a cabeça quando aconteceu. Era como se estivesse

137
contando os segundos, calculando o ponto exato. Não seria intuição?
A explosão ocorreu em seguida. Tudo o que viu foi o clarão violento
no lugar em que o vulto escuro e opaco corria por trás — depois o verme-
lho intenso de uma chama, contornos amplos, brancos, fosforescentes,
iluminando a coluna de neve que se elevava dentro da noite.
E depois o barulho, o estampido duplo, que atordoou os seus tím-
panos. As ondas de choque atingiram a motoneta de Bond, martelando-o
pelas costas e desviando-o do curso.

138
12

Lebre Azul
No momento da explosão, os reflexos de Bond entraram automa-
ticamente em ação. Acionou os controles, reduzindo a velocidade, a mo-
toneta deslizando para o lado numa longa derrapagem, diminuindo até a
parada inevitável. Antes mesmo que percebesse, Bond já se encontrava
junto à motoneta de Kolya.
— Tirpitz! — gritou Bond, sem chegar a ouvir a própria voz, com
os ouvidos formigando do frio e ensurdecido pela passagem das ondas
de choque. Estranhamente, percebeu que Kolya lhe gritava alguma coisa,
embora não fosse capaz de entender muito bem as palavras.
— Pelo amor de Deus, não fique ao meu lado! — gritou Kolya, es-
tridentemente, a voz se alteando como o vento dentro de uma nevas-
ca. — Tirpitz está liquidado. Deve ter se afastado do curso e bateu numa
mina. Não podemos parar. A morte nos espera se pararmos. Mantenha-se
diretamente atrás de mim, Bond. É a única maneira.
Uma pausa breve e Kolya repetiu:
— Diretamente atrás de mim!
Desta vez Bond compreendeu as palavras nitidamente. Estava aca-
bado. Um olhar para trás revelou um débil clarão, os fragmentos da mo-
toneta de Tirpitz ardendo na neve. E, depois, Bond ouviu o zunido da mo-
139
toneta de Kolya, disparando pelo gelo. Ele também acelerou e foi atrás,
mantendo-se perto e diretamente atrás do russo.
Se o plano dera certo, Tirpitz já estaria se deslocando nos esquis
que escondera na motoneta uma hora antes de partirem,
A idéia fora largar os esquis, bastões e mochila cerca de três minu-
tos antes do ponto em que Kolya planejara liquidá-lo. Um minuto depois,
Tirpitz prenderia a direção de sua motoneta e saltaria, rolando pela neve,
acelerando no último momento. Com o cálculo exato do momento e al-
guma sorte, ele poderia cair bem antes da explosão e recolher os esquis
calmamente. Depois teria tempo suficiente para alcançar o ponto de en-
contro combinado com Bond.
É melhor tirá-lo da mente, pensou Bond. Considere Tirpitz morto. É
você sozinho e mais ninguém.
A encosta do outro lado não era fácil e Kolya manteve o máximo de
velocidade possível, como se estivesse ansioso em alcançar a cobertura
proporcionada pelas árvores. Estavam na metade da encosta quando os
primeiros flocos de neve começaram a cair em torno deles.
Alcançaram finalmente as árvores e sua escuridão. Kolya parou,
gesticulando para que Bond se aproximasse e inclinando-se para falar. A
não ser pela suave pulsação dos motores em ponto morto, havia silêncio
entre os pinheiros altos. Kolya não parecia gritar e desta vez suas palavras
soaram perfeitamente claras.
— Lamento muito o que houve com Tirpitz. Poderia ter sido qual-
quer um de nós. Talvez tenham alterado a posição das minas. E agora
estamos com menos um.
Bond limitou-se a acenar com a cabeça, sem dizer nada.
— Siga-me como um carrapato — continuou Kolya. — Os dois pri-
meiros quilômetros não são fáceis, mas depois estaremos num curso re-
lativamente largo. Uma estrada, na verdade. Qualquer sinal do comboio
e desligarei minha lanterna, parando em seguida. Assim, trate de parar
se minha luz se apagar. Esconderemos as motonetas quando chegarmos
perto de Lebre Azul e cobriremos o resto do percurso a pé, levando as
câmaras.
Ele bateu nas mochilas presas atrás de sua motoneta e acrescen-
tou:
— Será uma caminhada curta através das árvores. Cerca de qui-
nhentos metros.

140
Será bem divertido, pensou Bond.
— Se desenvolvermos uma boa velocidade, chegaremos dentro de
uma hora e meia — informou Kolya. — Está pronto?
Bond tornou a assentir.
Kolya avançou lentamente com sua máquina. Fingindo verificar o
equipamento, Bond puxou a correia do pescoço, tirando a bússola. Abriu-
a com alguma dificuldade por causa das luvas, colocou-a na palma da
mão e baixou a cabeça para observar o mostrador luminoso. A agulha pa-
rou e ele pôde se orientar. Estavam aproximadamente no lugar que Kolya
dissera. O verdadeiro teste, portanto, seria mais tarde, se conseguissem
seguir o comboio de Lebre Azul ao Palácio de Gelo.
Bond tornou a guardar a bússola dentro do blusão, empertigou-se
e levantou um braço para indicar que estava pronto. Avançaram lenta-
mente, cobrindo os dois quilômetros difíceis quase num ritmo de cami-
nhada. Era óbvio que devia haver uma trilha mais larga levando àquele
trecho protetor de floresta, se o comboio vinha mesmo da Finlândia.
Como Kolya previra, no entanto, depois de passarem pelo primeiro
trecho encontraram uma trilha larga, coberta de neve, dura e compacta,
relativamente sólida, mas com alguns sulcos profundos. Talvez, no final
das contas, Kolya estivesse fazendo um jogo limpo. Os sulcos sugeriam
a passagem anterior de veículos, mas era impossível determinar se isso
acontecera recentemente. O frio era agora tão intenso que qualquer coisa
pesada, rompendo a superfície da neve congelada, deixaria sulcos igual-
mente duros em poucos minutos.
Kolya começou a aumentar a velocidade. Bond seguiu-o facilmente,
pela superfície plana. Apesar de entorpecido pelo frio que lhe enregelava
os ossos, começou a especular. Kolya demonstrara uma eficiência quase
inacreditável na passagem da fronteira, particularmente ao atravessar as
florestas. Era impossível que não tivesse efetuado aquele mesmo percur-
so antes — e muitas vezes. Para Bond, fora uma ocasião de concentração
incessante, enquanto Tirpitz ficara bem para trás, durante a maior parte
do percurso. Agora, Bond tinha outra vez a impressão de que Brad Tirpitz
não chegara perto sequer durante a passagem em ziguezague através das
árvores.
Será que Tirpitz também já cruzara a fronteira antes por aquele
percurso? Sem dúvida, era uma possibilidade. Pensando melhor, Bond
ficou ainda mais desconcertado, pois Kolya mantivera um ritmo rápido

141
mesmo nos trechos mais difíceis, sem fazer qualquer consulta à bússola
ou aos mapas para se orientar. Era como se tivesse viajado através de
meios externos. Rádio? Talvez. Nem ele nem Tirpitz viram Kolya sem os
trajes grossos ao se encontrarem junto às motonetas. O russo os teria
levado com a ajuda de algum sinal direcional? Seria fácil esconder fones
sob o capuz térmico. Bond anotou que devia procurar fios ligados à mo-
toneta do russo.
Se não era o rádio, então haveria uma trilha marcada? Era também
uma possibilidade. Bond estava tão absorvido em se manter na esteira
de Kolya que dificilmente poderia notar pequenas luzes ou refletores ao
longo do percurso.
Outro pensamento lhe ocorreu. Cliff Dudley, seu antecessor em
Quebra-Gelo, não revelara que tipo de trabalho a equipe realizara no Cír-
culo Ártico, antes de sua briga com Tirpitz e o encontro na Ilha da Madei-
ra. M não sugerira — ou dissera expressamente — que eles queriam Bond
na equipe desde o início?
O que teriam feito aqueles representantes de quatro agências di-
ferentes? Era possível que já tivessem penetrado na União Soviética? Já
teriam efetuado um reconhecimento em Lebre Azul? Mas quase todas as
informações concretas foram fornecidas por Kolya — pela Rússia. Eram
fotografias de aviões de reconhecimento em grande altitude, as fotos de
satélite, para não mencionar o recolhimento de informações em terra por
agentes especiais.
Falara-se da busca por Von Glöda, de sua identificação como o su-
premo comandante do NSAA e até mesmo como Aarne Tudeer. Mas Von
Glöda apresentara-se tranqüilamente ao café da manhã no hotel, reco-
nhecido por todos. E ninguém parecera estar muito preocupado com isso.
Se Bond começara por não confiar em ninguém, o sentimento se
convertera agora em profunda suspeita de todas as pessoas relacionadas
com a Operação Quebra-Gelo. E isso incluía até o próprio M, que se fecha-
ra como uma ostra na hora de entrar em detalhes.
Seria possível, especulou Bond, que M o lançasse deliberadamènte
numa situação insustentável? Enquanto deslizavam e sacolejavam pela
neve, a resposta tornou-se evidente. Sim: era uma velha manobra do Ser-
viço. Enviar um agente experiente para uma situação, quase às cegas, e
deixá-lo descobrir a verdade por si mesmo. A verdade para 007, que mais
uma vez o pressionava, era a de que estava absolutamente sozinho, por

142
conta própria. A conclusão a que chegara antes, particularmente, era na
realidade a base do raciocínio de M. Nunca houvera uma ‘equipe’, no sen-
tido estrito da palavra, mas apenas representantes de quatro agências,
trabalhando juntos, embora separados.
O pensamento martelou a mente de Bond, enquanto manobrava
a motoneta em alta velocidade, seguindo Kolya pela neve e pelo gelo in-
termináveis. Perdeu toda a noção do tempo, consciente apenas do frio e
do ronco do motor, da faixa branca interminável por trás da máquina de
Kolya.
E depois, gradativamente, Bond percebeu uma luz, em algum lugar
à sua frente e à esquerda — a noroeste —, elevando-se intensa do meio
das árvores. Poucos momentos depois, Kolya apagou a pequena luz de
sua lanterna. Diminuía a velocidade, encaminhando-se para as árvores à
esquerda da estrada. Bond colocou-se ao seu lado.
— Vamos empurrar as motonetas para dentro do bosque — sussur-
rou Kolya. — É naquela direção. . . Lebre Azul, com todas as luzes acesas,
resplandecendo como se fosse a comemoração do Dia do Trabalho.
Estacionaram as motonetas e as camuflaram da melhor forma pos-
sível. Kolya sugeriu que pusessem os trajes brancos de neve.
— Estaremos em neve profunda, por cima do depósito. Como te-
nho óculos noturnos, não precisa se incomodar com nada de especial.
Bond, no entanto, já se sentia incomodado. Enquanto vestia a ca-
muflagem de neve, abriu o blusão com os dedos entorpecidos. Pelo me-
nos agora poderia sacar rapidamente a automática P7. Também conse-
guiu tirar da mochila uma granada de atordoamento e uma bomba de
fragmentação L2A2 e as colocou nos bolsos do traje branco e largo, com
capuz, que agora o cobria.
O russo parecia não ter percebido coisa alguma. Ele tinha uma arma
no quadril e não se dava ao trabalho de escondê-la. Os óculos noturnos
estavam pendurados do pescoço. Na escuridão, Bond teve a impressão
de perceber um sorriso no rosto versátil, enquanto Kolya lhe entregava
a câmara infravermelha automática. O russo levava um equipamento pe-
queno de vídeo-teipe preso ao cinto, a câmara por baixo do binóculo.
Kolya gesticulou para o ponto em que a claridade parecia explodir
para o alto, entre as árvores, atrás de uma encosta acima deles. O russo
seguiu na frente, com Bond em seus calcanhares — uma dupla de silen-
ciosos fantasmas brancos, passando por uma terra de ninguém, deslocan-

143
do-se de uma árvore para outra.
Alcançaram em poucos passos a base da encosta. O topo da eleva-
ção estava iluminado pelas luzes, que projetavam seus fachos para cima,
do outro lado. Não havia sinal de guardas ou sentinelas. De início Bond
achou a caminhada difícil, suas pernas ainda estavam rígidas do frio da
longa viagem de motoneta.
Ao se aproximarem da crista, Kolya fez um sinal, com a palma da
mão, para se abaixarem. Juntos, avançaram agachados pela neve profun-
da, que cobria as raízes e as bases dos troncos. Lá embaixo, num esplen-
dor de luz, estava o depósito de material bélico conhecido como Lebre
Azul. Depois de se esforçar para enxergar através da escuridão e da neve
por mais de três horas, Bond foi obrigado a fechar os olhos contra o súbito
choque de arcos de lâmpadas e potentes refletores. Não era de surpreen-
der, pensou ele, fugazmente, enquanto olhava para baixo, que os homens
de Lebre Azul se deixassem induzir com relativa facilidade a cometer um
ato de traição, vendendo armas, munições e equipamentos militares. Vi-
ver o ano inteiro naquele lugar — desolado e inóspito durante o inverno,
infestado de mosquitos durante o curto verão — seria suficiente para ten-
tar qualquer homem, mesmo que fosse apenas pela emoção.
Enquanto seus olhos se ajustavam, Bond pensou na vida melancóli-
ca daqueles homens. O que haveria para se fazer num lugar como aquele?
Os jogos noturnos de cartas? Beber? Era um lugar perfeito para alcoóla-
tras. A passagem monótona dos dias, a espera de uma pequena licença,
que provavelmente acarretava uma longa viagem, as visitas ocasionais a
Alakurtii, que pelos seus cálculos ficava a seis ou sete quilômetros de dis-
tância. E o que poderia haver em Alakurtii? O café de gosto esquisito, a
mesma comida feita por mãos diferentes, um bar onde se poderiam em-
briagar. Mulheres? Talvez. Algumas mulheres lapas, nascidas na Rússia,
presas fáceis de doenças e de soldados brutais e vulgares, pensou Bond.
A sífilis e outras doenças venéreas deviam vicejar. Os casos ocasionais de
estupro eram abafados, silenciados com dinheiro, a fim de os soldados de
Lebre Azul permanecerem tranqüilos.
Os olhos de Bond clarearam agora. Examinou Lebre Azul sem qual-
quer desconforto: um retângulo comprido e largo, sem árvores, sendo
que algumas já haviam recomeçado a crescer, ultrapassando a cerca alta
de arame, com os topos farpados e os refletores. Um par de portões al-
tos estava aberto, imediatamente abaixo deles. A estrada, serpenteando

144
através das árvores, fora desobstruída de neve e gelo. As disposições den-
tro do perímetro eram impecáveis e ordenadas. Uma casa de guarda, com
torres de madeira e refletores potentes nos dois lados, erguia-se perto
dos portões. A estrada prolongava-se pelo meio da base, com cerca de
250 metros de extensão. Os depósitos situavam-se nos dois lados dessa
estrada interna, grandes estruturas Nissen, parecendo cabanas, com te-
lhados curvos e corrugados, cada um com a sua rampa.
Tudo fazia sentido. Os veículos podiam entrar direto, carregar ou
descarregar nas rampas, depois continuar pela estrada até o outro lado
do perímetro, onde fariam a volta. Qualquer entrega ou recolhimento po-
deria ser efetuado com grande rapidez: os caminhões ou veículos blinda-
dos entravam, carregavam ou descarregavam, seguiam até o outro lado,
faziam a volta e retornavam pelo mesmo caminho.
A circulação de Bond fora ligeiramente restaurada pela escalada da
encosta. Mas o frio começou a penetrá-lo novamente. Tinha a sensação
de que neve derretida fluía por suas veias e artérias, enquanto seus ossos
eram feitos do mesmo gelo que pendia dos galhos das árvores, afiado,
reluzente, como incontáveis espadas de Dâmocles.
Bond observou que por trás dos depósitos havia cabanas de tron-
cos compridas, certamente os alojamentos, refeitórios e centros de re-
creação. Tudo era perfeitamente simétrico. Bastava tirar a cerca de arame
e as rampas, acrescentar uma igreja de madeira, e tinha-se todos os ele-
mentos de uma pequena aldeia, construída em função de uma pequena
fábrica.
Bond olhou para a esquerda. Kolya já gravava a cena para a posteri-
dade, a câmara de vídeo-teipe zumbindo, enquanto comprimia o gatilho,
ajustava a lente, apertava outra vez. Bond suspendeu a pequena câmara
infravermelha carregada. Apoian-do-se nos cotovelos, levantou os ócu-
los de proteção e comprimiu o visor de borracha contra o olho direito,
focalizando a lente. Nos minutos subseqüentes, tirou 35 fotografias da
transferência de armamentos em Lebre Azul.
A informação de Kolya era impecável. As luzes estavam acesas, não
havia qualquer preocupação com a segurança. Junto das rampas estavam
quatro veículos grandes de transporte de tropas, os BTR 50 — exatamen-
te como Kolya previra. Parecia até que o homem usava uma bola de cris-
tal, pensou Bond. Era bom demais para ser verdade.
Os BTR russos eram fabricados em diversos modelos: o transporte

145
de tropas anfíbio, com lagartas, para dois tripulantes e vinte homens; o
transportador de canhão; ou o tipo que se encontrava diretamente abaixo
deles. Esses eram exclusivamente destinados ao transporte de cargas por
terrenos difíceis. Possuíam o mínimo essencial, com a maior parte da blin-
dagem removida, com lagartas, até mesmo um equipamento de trator na
frente, a fim de remover escombros, gelo, neve densa ou árvores caídas.
Os veículos estavam pintados com um cinza idêntico, as capotas abaixa-
das pelos lados, revelando porões de metal retangulares, em que caixas e
engradados estavam sendo colocados, com extrema rapidez e eficiência.
Os tripulantes dos BTR postavam-se a um lado, como se estivessem
acima do trabalho manual de arrastar e levantar a carga pesada. Um ho-
mem de cada BTR falava ocasionalmente com o sargento que comandava
o carregamento, na rampa, anotando os itens numa prancheta.
Os homens que realizavam o trabalho vestiam uniformes de faxina,
com os emblemas do posto perfeitamente visíveis. Tais uniformes eram
obviamente usados por cima de trajes de inverno mais grossos. As ca-
beças estavam cobertas por gorros de lã, com abas laterais que desciam
quase até o queixo. Os gorros tinham na frente a famosa estrela do Exér-
cito Vermelho.
Grupos de dois homens, no entanto, usavam um traje diferente, o
que levou Bond a franzir a testa e sentir um súbito embrulho no estôma-
go. Sob os casacos de couro, podia-se ver calças grossas, azul-marinho, os
pés metidos em botas de cano alto. Usavam protetores nas orelhas, mas
por cima apenas boinas simples, com um emblema brilhante. O conjunto
lembrava nitidamente a Bond uma outra era, um mundo diferente.
Kolya estendeu o braço com os óculos noturnos, apontando para a
parte da frente da primeira rampa.
— O oficial no comando — sussurrou ele.
Bond pegou os óculos, ajustou-os e avistou dois homens conver-
sando. Um deles era um tripulante de um BTR, o outro um vulto corpu-
lento, de rosto pálido, envolto por um sobretudo, tendo nos ombros as
insígnias de subtenente, a listra vermelha perfeitamente visível através
dos óculos noturnos.
— Aqui só há sargentos e soldados — informou Kolya, ainda num
sussurro. — Homens basicamente desajustados ou com problemas em
outras unidades. É por isso que foram subornados com tanta facilidade.
Bond acenou com a cabeça, devolvendo os óculos.

146
O depósito conhecido como Lebre Azul parecia muito próximo,
uma ilusão causada pela claridade intensa e pela geada, que pairava no
ar como tentáculos. Lá embaixo, os homens que trabalhavam pareciam
expelir vapor pelas bocas e narinas, como cavalos estafados, enquanto
as ordens eram dadas rapidamente, abafadas pela atmosfera. Eram gru-
nhidos russos, exortando os homens a trabalharem ainda mais depressa.
Bond captou até o som de uma voz:
— Mais depressa, seus idiotas. Lembrem-se do dinheiro que vão
receber quando isso acabar e nas garotas que virão amanhã de Alakurtii.
Terminem logo o trabalho e depois poderão descansar.
Um dos homens virou-se para o sargento que dissera isso e gritou:
— Precisarei de todo o descanso se a Gorda Olga aparecer. . .
O resto se perdeu no ar, mas as risadas sugeriram que a conclusão
era obscena.
Bond virou a bússola na extremidade da correia, olhando sub-
repticiamente e fazendo alguns cálculos mentais, rápidos. Nesse instante
houve um rugido lá embaixo. O motor do primeiro BTR entrara em fun-
cionamento. Homens enxameavam ao redor, desdobrando as abas largas
e prendendo-as nos lugares.
Os outros BTR já estavam quase totalmente carregados. Homens
trabalhavam em seus porões, efetuando os ajustamentos finais, prenden-
do a carga com correias e cordas. O segundo motor foi ligado.
— É hora de descermos — sussurrou Kolya.
Viram o primeiro veículo dirigir-se lentamente para a curva ao final
do perímetro. O comboio levaria pelo menos 15 minutos para dar a volta
e entrar em fila.
Lentamente, Bond e Kolya desceram a encosta. Lá embaixo, fica-
ram imóveis por um momento, deixando que os olhos se reajustassem à
escuridão. Depois se afastaram entre as árvores, seguindo para o local em
que as motonetas estavam escondidas.
— Vamos esperar que eles passem. — Kolya falou como um coman-
dante. — Os BTR têm motores que parecem leões furiosos. Os tripulantes
não ouvirão coisa alguma quando dermos a partida.
As luzes ainda cortavam o céu, projetando-se de Lebre Azul, mas
agora, na quietude, o som dos motores dos BTR assumiam um tom rouco,
agressivo. Bond fez outro cálculo rápido, esperando estar certo. O baru-
lho aproximou-se deles e começou a ressoar pelas árvores.

147
— Eles estão em movimento — disse Kolya, cutucando-o.
Bond inclinou-se para a frente, tentando avistar o comboio pela
estrada. As reverberações dos motores tornaram-se mais altas. Mesmo
com a acústica distorcida pelo gelo e pelas árvores, podia-se distingui-las,
avançando à esquerda de Bond e de Kolya.
— Pronto — murmurou Kolya.
Ele parecia subitamente nervoso, quase em pé no selim de sua mo-
toneta, virando rispidamente a cabeça.
O ronco dos motores reduziu-se para um murmúrio. Chegaram ao
cruzamento da estrada, pensou Bond. Depois, ouviu nitidamente o motor
de um BTR aumentar de velocidade, com a passagem da mudança. Todos
os sons adquiriram a mesma intensidade. Kolya ergueu-se ainda mais no
selim. O ruído dos motores tornou-se uniforme e firme. Os quatro veícu-
los estavam agora na mesma trilha, avançando na mesma velocidade, em
comboio. Alguma coisa estava errada. Bond levou um ou dois segundos
para compreender que os ecos dos motores estavam diminuindo. Kolya
praguejou em russo.
— Eles estão seguindo para o norte! — As palavras saíram como
um grunhido, mas depois sua voz tornou-se suave: — Não tem problema.
Significa que estão voltando pelo percurso alternativo. Meu agente os co-
brirá. Está pronto?
Bond assentiu e ambos ligaram as motonetas. Kolya avançou pela
neve, ganhando velocidade rapidamente.
O barulho dos BTR era audível mesmo com o ruído dos motores das
motonetas. Eles conseguiram manter-se a uma distância razoável — com
o último veículo pouco visível — por dez ou 11 quilômetros. O pequeno
comboio permaneceu na estrada principal. Bond calculou que estavam
perigosamente próximos de Alakurtii. Nesse instante Kolya fez-lhe um si-
nal para que virasse à esquerda, reentrando pelo bosque, só que agora o
caminho era relativamente largo, a neve profunda e dura, com os sulcos
profundos e recentes deixados pelos BTR.
Parecia ser um aclive interminável. Deveriam voltear constante-
mente para evitar os sulcos perigosos dos BTR. O motor da motoneta de
Bond protestava incessantemente contra o esforço, enquanto o próprio
Bond se esforçava em manter a direção.
Se estavam realmente voltando para a fronteira, aquele era um
percurso através dos campos, que deveria levá-los quase ao ponto em

148
que haviam penetrado no lado russo, através das árvores. Por um longo
tempo, tudo indicava ser justamente esse o rumo: sudoeste. Depois de
cerca de uma hora, no entanto, a trilha se bifurcava. Os BTR viraram à
direita, seguindo para noroeste.
Houve um momento em que Kolya achou que estavam perto de-
mais e fez sinal para que parassem. Bond mal teve tempo de tirar a bús-
sola e consultar o mostrador luminoso. Se os BTR prosseguissem no curso
atual, terminariam com toda certeza muito perto da posição que Bond
determinara para o Palácio de Gelo, se estivesse no lado russo.
Kolya tornou a parar depois de mais alguns quilômetros, fazendo
um gesto para que Bond se aproximasse.
— Atravessaremos dentro de poucos minutos.
Ele falou alto. O vento batia agora em seus rostos, penetrando pe-
las roupas protetoras e trazendo-lhes o ruído intenso do comboio de BTR.
— Meu substituto deve estar lá na frente. Portanto, não fique sur-
preso se outra motoneta se juntar a nós.
— Não deveríamos passar por um campo aberto nesse ponto? —
perguntou Bond, com toda a inocência que era capaz de exibir, sob o frio
cortante.
— Não por este caminho. Lembra-se do mapa?
Bond lembrava-se nitidamente do mapa. Também podia ver suas
próprias marcações, a maneira como o Palácio de Gelo estava localiza-
do no lado russo da fronteira. Por um instante, pensou em dar um tiro
em Kolya, esquivar-se do outro agente russo, certificar-se de que os BTR
carregados entravam na casamata e depois sair da União Soviética tão
depressa quanto a motoneta pudesse levá-lo.
O pensamento perdurou só por um momento. Vá até o fim, disse
uma voz, emergindo do seu íntimo.
Só 15 minutos depois é que viram a outra motoneta. Um vulto es-
guio, abrigado contra o frio, estava empertigado no selim, aguardando o
momento de avançar.
Kolya levantou a mão e a outra motoneta arrancou, tomando a
dianteira. Lá na frente, os BTR avançavam ruidosamente pela estrada
através da floresta, que naquele trecho mal podiam passar.
Meia hora e nenhuma mudança de direção. Uma tênue claridade
espalhava-se pelo céu. E depois, abruptamente, Bond sentiu os cabelos
da nuca se arrepiarem. Até aquele momento, podiam ouvir nitidamen-

149
te os motores dos BTR, mesmo acima dos três motores das motonetas.
Agora, o único barulho audível era o que eles próprios faziam. Automati-
camente, Bond diminuiu a velocidade, desviando-se para evitar um sulco
fundo. Nesse instante divisou a silhueta clara do novo agente de Kolya, lá
na frente. Mesmo com o equipamento de inverno, Bond teve a impres-
são de reconhecer os contornos da cabeça e dos ombros. O pensamento
abalou-o por um instante e nessa fração de tempo tudo aconteceu.
À frente deles, um clarão súbito cortou as árvores. Bond avistou o
último BTR e o que parecia um vasto penhasco de neve erguendo-se aci-
ma deles. Depois, as luzes tornaram-se mais intensas, brilhando por todos
os lados — até mesmo, ao que parecia, de cima. Os refletores deixaram
Bond com a sensação de que estava nu, surpreendido em campo aberto.
Derrapou com a motoneta, tentando fazer uma curva fechada no pouco
espaço disponível, pronto para escapar, a mão mergulhando por dentro
do blusão, em busca da pistola. Mas os sulcos abertos na neve pelos BTR
tornaram a curva impossível.
Em seguida eles emergiram das árvores, na frente, por trás, dos
lados: vultos em uniformes cinzas, capacetes pretos, casacos compridos,
forrados com pele de ovelha, convergindo para o trio, com rifles e metra-
lhadoras faiscando à luz dos refletores.
Bond sacara a automática, mas deixou que pendesse de sua mão.
Não era o momento para um duelo de morte. Até mesmo 007 sabia quan-
do todas as chances eram desfavoráveis.
Olhou para a frente. Kolya permanecia sentado em sua motoneta,
empertigado. O outro agente desmontara e voltava, passando por Kolya,
aproximando-se de Bond. Ele reconhecia o jeito de andar, assim como
julgara reconhecer a cabeça e os ombros.
Abaixando a cabeça contra o clarão de um refletor virado em sua
direção, Bond viu as botas dos homens cercarem-no. O barulho da neve
gelada tornou-se mais alto, à medida que o agente de Kolya se aproxima-
va. Uma mão enluvada estendeu-se e arrancou a pistola. Estreitando os
olhos, Bond levantou o rosto.
O vulto puxou o cachecol, levantou os óculos de proteção, depois
removeu o gorro de tricô, deixando que os cabelos louros caíssem pelos
ombros. Rindo jovialmente e falando com um zombeteiro e teatral sota-
que alemão, Paula Vacker fitou James nos olhos.
— Herr James Bond, para você a guerra está acabada.

150
13

O Palácio de Gelo
Os homens uniformizados aproximaram-se. Mãos revistaram Bond,
tiraram as granadas e a mochila. Não pegaram a faca de comando na bota
Mukluk: uma pequena vantagem.
Paula ainda ria quando os homens arrancaram Bond da motoneta
e começaram a empurrá-lo para que avançasse pela neve. Ele estava com
frio e cansado. Por que não? Um desmaio poderia proporcionar algumas
vantagens. James Bond ficou inerte, deixando que dois dos homens uni-
formizados sustentassem seu peso. Deixou a cabeça pender, mas acompa-
nhou o progresso através das pálpebras quase que totalmente fechadas.
Saíram das árvores para uma clareira semicircular, que terminava
numa encosta lisa, como uma pequena pista de esquiar. Era a casama-
ta — o Palácio de Gelo —, pois imensas portas, camufladas de branco,
abriam-se no lado da encosta. O calor parecia projetar-se do interior in-
tensamente iluminado.
Vagamente, Bond percebeu uma entrada menor, à esquerda. Com-
binava com as plantas originais do lugar fornecidas por Kolya. Duas áreas:
uma para depósito de armas e manutenção, outra para alojamentos.
Ouviu um motor ser ligado e avistou um BTR — o último — passar
pela abertura e depois desaparecer pela longa rampa interior. Bond sabia
151
que essa rampa descia profundamente na terra.
Paula riu outra vez. Por perto, um motor de motoneta entrou em
funcionamento. A motoneta de Bond passou, guiada por um dos guardas.
Kolya murmurou alguma coisa em russo e Paula respondeu.
— Vai se sentir melhor daqui a pouco — disse um dos guardas que
arrastava Bond, um inglês de forte sotaque. — Tomará um trago lá dentro.
Encostaram-no na parede, logo depois das portas maciças. Um dos
homens levou um frasco aos lábios de Bond. O fogo pareceu se acender
em sua boca, queimando-o até o estômago. Engasgado, Bond balbuciou:
— O que. . . o que era?
— Leite de rena e vodca. Gostou?
— Gostei.
Bond fez um esforço para recuperar o fôlego. Não havia como si-
mular inconsciência depois de tomar aquela água de fogo, Sacudiu a ca-
beça e olhou ao redor. O cheiro de diesel flutuava dos fundos da caverna.
A larga rampa de acesso era íngreme.
Lá fora, os guardas entravam em formação, numa coluna de três.
Bond percebeu que todos vestiam o mesmo uniforme cinza: botas de in-
verno e calças largas, casacos forrados de pele, com os bolsos enviesados,
as insígnias mal aparecendo nas golas das túnicas. Os oficiais usavam bo-
tas de cano longo e — possivelmente — culotes sob os capotes.
Kolya estava de pé ao lado de sua motoneta, ainda conversando
com Paula. Pareciam absorvidos. Paula tornara a por o gorro e o cachecol,
protegendo-se do frio. Em determinado momento, Kolya chamou um ofi-
cial, em tom autoritário, como se pudesse dar ordens à vontade a todos
os que ali se encontravam.
Os guardas marcharam para o interior da casamata, passando por
Bond e os dois homens que o vigiavam, armados com AKM russas, a única
nota incongruente num cenário estranhamente teutônico. A tropa desa-
pareceu pela rampa abaixo, com as botas ressoando em uníssono sobre
o concreto reforçado, até que veio a ordem para romper o passo, como
uma precaução contra a possibilidade do ritmo constante causar alguma
falha estrutural.
Kolya e Paula dirigiram-se para a vasta abertura como se dispuses-
sem de todo o tempo do mundo. Além deles, entre as árvores, Bond avis-
tou um par de kotas, as habitações parecidas com as tendas dos lapões.
A fumaça elevava-se de uma fogueira entre as kotas. Um vulto estava de-

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bruçado sobre um caldeirão, uma mulher em traje lapão: saia preta muito
grossa e toda adornada, sobre uma calça semelhante a uma perneira, os
pés envoltos por botas de pele, a cabeça coberta por gorro e xale de tricô,
luvas nas mãos. Antes que Paula e Kolya alcançassem a entrada, um ho-
mem aproximou-se da mulher. Ele também usava o traje colorido, blusão
todo desenhado, um capote preto com bordados pendurado nos ombros.
Por trás das kotas, em algum lugar indefinido, uma rena resfolegou.
Houve um estalido metálico no alto do teto curvo, seguido por uma
sucessão de estridentes apitos de advertência. Paula e Kolya aceleraram
os passos, enquanto começava o silvo de um equipamento hidráulico. As
grandes portas de metal baixaram lentamente, uma cortina de segurança
contra o mundo exterior.
— Que surpresa, hein, James? — disse Paula, tornando a tirar o
gorro de lã.
Ele percebeu agora que Paula usava um blusão de couro por cima
de um tipo de uniforme. Atrás dela, Kolya mudou de posição, deslocando-
se como um pugilista. Ele sabia como se adaptar, pensou Bond.
— Não chega a ser uma surpresa tão grande assim. — Bond fez um
esforço para sorrir. O blefe, agora, parecia ser a única saída. — Meu pes-
soal sabe. Conhece até a localização desta casamata.
Os olhos de Bond deslocaram-se para Kolya, enquanto acrescen-
tava:
— Deveria ser mais cuidadoso, Kolya. Os mapas não eram muito
bem-feitos. Não é provável que se encontre duas áreas idênticas, exata-
mente com a mesma topografia, separadas por uma distância de 15 a 20
quilômetros. Vocês estão expostos.
Por uma fração de segundo, teve a impressão de que o rosto de
Kolya demonstrava preocupação.
— O blefe, James, não vai levá-lo a coisa alguma — declarou Paula.
— Ele quer ir conosco? — indagou Kolya.
Paula assentiu.
— No momento apropriado. Creio que podemos levar James agora
pela rota cênica. Mostrar-lhe toda a extensão do Führerbunker...
— Essa não! — Bond soltou uma risada. — Eles a pegaram de jeito,
hein, Paula? Por falar nisso, por que não deixou aqueles homens me liqui-
darem no seu apartamento?
Ela exibiu um pequeno sorriso azedo.

153
— Porque você era bom demais para eles. Além do mais, o acordo
é pegar você vivo e não morto.
— Acordo?
— Cale-se! — disse Kolya bruscamente para Paula..
Ela acenou com a mão, num gesto elegante, de que isso não tinha
a menor importância.
— Ele saberá muito em breve. Não resta tanto tempo assim, Kolya.
O chefe tem o que você queria, como foi prometido. Os estoques atuais
serão transferidos dentro de um ou dois dias. Não há mal algum.
Kolya Mosolov deixou escapar um grunhido impaciente.
— Estão todos aqui, certo?
Ela sorriu, acenando com a cabeça.
— Todos.
— Ótimo.
Paula voltou a concentrar sua atenção em Bond.
— Gostaria de conhecer o lugar? Será uma espécie de passeio. Está
disposto?
Bond suspirou.
— Acho que sim, Paula. Mas é uma pena o desperdício de uma
mulher tão espetacular.
— Chauvinista. — Ela não falou de forma hostil. — Muito bem, va-
mos dar o nosso passeio. Mas primeiro. . .
Virou-se para os guardas e acrescentou, rispidamente:
— Revistem-no. Meticulosamente. Esse homem tem mais escon-
derijos do que um contrabandista grego. Procurem por toda parte — mas
por toda parte mesmo!
Os guardas procuraram por toda parte e descobriram tudo — e não
se mostraram gentis na revista. Em seguida, Paula e Kolya colocaram-se
ao lado de Bond. Os dois guardas, com as AKM prontas para entrarem em
ação, seguiram a poucos passos de distância. Depois de alguns metros, a
rampa tornou-se mais íngreme. Desviaram-se para o lado esquerdo, onde
havia um passadiço, com um corrimão e degraus.
A casamata fora obviamente construída com extrema eficiência.
Um ar quente os envolvia. No alto das paredes, Bond percebeu tubula-
ções de água e de óleo, condutos de ar condicionado e todos os outros
sistemas para a manutenção da vida subterrânea. Havia também peque-
nas caixas de metal, embutidas no concreto a intervalos, indicando uma

154
espécie de sistema de comunicações internas. Todo o lugar era bem ilumi-
nado, com lâmpadas nas paredes e no meio do teto em forma de arcada.
A passagem foi se alargando enquanto desciam. Bond viu que lá embaixo
se abria um gigantesco hangar.
Bond ficou impressionado com as dimensões da casamata. Os qua-
tro BTR que haviam recolhido as armas em Lebre Azul estavam alinhados
junto aos outros quatro — todos pareciam reduzidos a proporções de
brinquedos pela vastidão do hangar.
Equipes de homens uniformizados descarregavam os armamentos
que haviam acabado de chegar. Pilhas de caixotes e engradados eram re-
movidas em pequenos tratores e levadas para câmaras cuidadosamente
separadas, equipadas com portas à prova de fogo e enormes trancas rota-
tivas de metal. Aarne Tudeer — ou conde Von Glöda — não estava dispos-
to a correr qualquer risco. Os homens trabalhavam com sapatos de solas
de borracha, a fim de que não houvesse nenhuma possibilidade de faís-
cas ativarem as munições. Bond calculou que ali devia haver armamentos
suficientes para uma guerra, pelo menos o suficiente para manter uma
operação terrorista meticulosamente planejada ou mesmo uma ação de
guerrilha por até um ano.
— Como vê, somos eficientes. Mostraremos ao mundo que não
estamos brincando.
Paula sorriu enquanto falava, evidentemente com imenso orgulho.
— Não há armamentos nucleares ou de nêutrons? — indagou
Bond.
Paula riu outra vez — uma risada desdenhosa.
— Eles receberão armamentos nucleares, químicos ou de nêutrons,
se algum dia precisarem — garantiu Kolya.
Bond manteve os olhos atentos, observando tudo, do número de
compartimentos de armas e munições à prova de fogo aos passadiços
largos, no meio da parede, por toda a área. Também contou as portas de
saída, fazendo o registro mental para tentar descobrir aonde levavam.
Pensou em Brad Tirpitz. Se escapara à explosão, ainda havia uma possibi-
lidade de que tivesse conseguido chegar a algum ponto de observação e
não se encontrasse muito longe, ainda em condições de levantar o alar-
me.
— Já viu o suficiente?
A pergunta — de Kolya — era incisiva e sarcástica.

155
— Chegamos à hora dos martínis, não é mesmo?
Bond relaxou. Não havia outro jeito. Pelo menos poderia descobrir
em breve toda a verdade sobre Von Glöda e as operações do Exército da
Ação Nacional Socialista. Já sabia o básico a respeito de Paula, que ela
pertencia ao aparato para-militar de Von Glöda, que Kolya se envolvera
de alguma forma com a operação. Houvera também uma referência a um
acordo. A perspectiva não lhe agradava. Permaneça relaxado, obtenha
todas as informações que puder, depois tente encontrar um meio de es-
capar.
Bond julgou localizar a cabina principal de controle, por trás de um
passadiço, dominando a vasta área subterrânea. As grandes portas da ca-
samata certamente seriam operadas de lá, talvez também os sistemas de
aquecimento e ventilação. Ele teve de lembrar a si mesmo, no entanto,
que aquela era apenas uma parte mínima de toda a casamata. Os aloja-
mentos, que ele já sabia ficarem ao lado, seriam mais complexos.
— Hora dos martínis? — repetiu Kolya. — Talvez. O conde é gene-
roso em sua hospitalidade. Imagino que encontraremos alguma refeição
já preparada.
Paula confirmou que certamente seria servida uma refeição.
— Ele é um homem muito compreensivo. Especialmente com os
condenados, James. Como os imperadores romanos que alimentavam re-
giamente seus gladiadores.
— Tive o pressentimento de que seria algo assim.
Ela sorriu jovialmente, presenteou Bond com um breve aceno de
cabeça e seguiu na frente pela enorme extensão de concreto, o barulho
de suas botas ressoando fortemente. Levou-os por uma das portas de
metal da parede da esquerda. Falou a um pequeno microfone embutido
na parede; com um estalido, a porta se abriu. Paula virou-se, sorrindo
novamente.
— Há segurança absoluta entre as diversas seções da casamata.
As portas de interligação só se abrem a padrões de vozes determinados.
O sorriso jovial outra vez. Passaram pela porta, que se fechou ime-
diatamente.
Naquele lado, os corredores eram tão desolados e simples quanto
na outra área. As paredes eram do mesmo concreto áspero — certamen-
te reforçadas com aço, pensou Bond. As tubulações dos diversos sistemas
corriam descobertas pelas paredes.

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Parecia que o setor de alojamentos era do mesmo tamanho que
a área de depósito, material bélico e garagem. A disposição também era
simétrica, com cruzamentos de corredores e túneis.
O corredor de entrada levava a uma passagem maior, cruzada por
outras em ângulos retos. Olhando para a esquerda, Bond avistou portas
de metal à prova de fogo, uma das quais estava aberta, permitindo a vista
até o fundo da passagem. Calculou que outras passagens levavam ao tú-
nel principal. No lado esquerdo, ao que parecia, ficavam os alojamentos.
Para sair, era preciso passar por essa área e — o que era bem provável —
por algum controle na porta principal.
Kolya e Paula levaram-no para a direita. Passaram por mais duas
portas de metal, atravessaram outro corredor, com portas nos dois lados.
Ouviam-se vozes, o barulho ocasional de máquinas de escrever. A segu-
rança parecia rigorosa e Bond avistou guardas armados por toda parte,
alguns nas portas, outros na curva dos corredores.
Mas todo o ambiente mudou depois que passaram pela terceira
porta de metal. As paredes não eram mais de pedra áspera, mas forradas
com juta, em tons suaves. Os condutos dos sistemas de aquecimento,
água, ar e eletricidade estavam escondidos, nos dois lados, por sanefas
decorativas. As portas nos dois lados tinham agora janelas embutidas,
através das quais viam-se homens e mulheres em uniformes, trabalhando
em escrivaninhas ou cercados por equipamentos eletrônicos e de rádio.
O mais sinistro de tudo, pensou Bond, eram as fotografias e car-
tazes emoldurados que ocasionalmente pendiam nas paredes. Os rostos
eram bem conhecidos de Bond e também seriam de qualquer estudioso
do período nazista.
À frente havia mais um conjunto de portas de metal. No outro lado,
o chão estava coberto por um tapete grosso. Paula levantou a mão. O
grupo parou.
Estavam agora numa espécie de ante-sala. Havia, no outro lado, um
par de portas de pinheiro, envernizadas, flanqueadas por colunas dóricas
e dois homens em uniformes de um azul-escuro, quepes com emblemas
de caveira, botas reluzentes, braçadeiras em três cores — vermelho, preto
e branco —, exibindo a suástica, cintos e coldres de couro lustrosos. As
caveiras de prata destacavam-se nos seus quepes.
Paula falou rapidamente, em alemão. Um dos homens acenou com
a cabeça, bateu nas portas altas e desapareceu no outro lado. O outro

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homem fitou Bond com um sorriso sugestivo, a mão deslocando-se cons-
tantemente para o coldre.
Os minutos foram passando, até que as portas finalmente se abri-
ram. O primeiro homem reapareceu, acenando com a cabeça para Paula.
Os dois homens seguraram as maçanetas e puxaram as portas. Paula to-
cou no braço de Bond e entraram na sala, deixando os dois guardas para
trás.
A única coisa que Bond viu, ao entrar, foi o imenso retrato de Adolf
Hitler feito por Fritz Erler, dominando tudo o mais existente na sala. Ocu-
pava quase toda a parede dos fundos e o impacto era tão vigoroso que
Bond ficou paralisado, olhando atordoado, por quase um minuto inteiro.
Estava consciente da presença de outras pessoas e de que Paula se em-
pertigara em posição de sentido, erguendo um braço na saudação fascis-
ta.
— Gosta, Mr. Bond?
A voz soou do outro lado de uma mesa grande, papéis impecavel-
mente arrumados, telefones de diversas cores e um pequeno busto de
Hitler.
Bond desviou os olhos do quadro para fitar o homem por trás da
mesa. O mesmo semblante curtido pelo tempo, porte militar — mesmo
sentado —, cabelos grisalhos impecavelmente penteados. O rosto não
era de um velho. O conde Von Glöda, como Bond já notara no hotel, era
um homem favorecido por feições quase jovens — clássicas, ainda bo-
nitas, mas com olhos que não continham qualquer brilho de prazer. No
momento, estavam fixados em Bond como se apenas o medissem para
encomendar o caixão.
— Só vi fotografias até agora — disse Bond, calmamente. — Não
gostei. Portanto, se essa é a coisa real, também não gosto.
— Ah. . .
— Devia tratar o conde como Führer.
O conselho foi de Brad Tirpitz, comodamente refestelado numa
poltrona, ao lado da mesa.
Bond não se surpreendia mais com coisa alguma. O fato de Tirpitz
também participar da conspiração só o fez sorrir e acenar de leve com a
cabeça, como a indicar que deveria ter desconfiado da verdade.
— Quer dizer que, no final das contas, conseguiu evitar a mina?
Bond procurou imprimir um tom casual à pergunta. A cabeça de

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granito de Tirpitz fez um lento movimento de negativa.
— Receio que esteja se referindo ao homem errado, James, meu
velho.
Von Glöda soltou uma risada sem qualquer humor, enquanto Tir-
pitz acrescentava:
— Duvido muito que tenha visto alguma fotografia de Brad Tirpitz.
‘Bad’ Brad sempre foi cuidadoso. . . como o nosso Kolya. . . em relação
a fotografias. Mas fui informado que, no escuro, com a luz por trás, fico
muito parecido com ele. Receio que Brad não tenha conseguido escapar.
Saiu de circulação para sempre. . . e muito antes da Operação Quebra-
Gelo ser desfechada.
Houve um movimento na mesa, um barulho com as mãos, como
se Von Glöda tivesse chegado à conclusão de que estava sendo negligen-
ciado.
— Desculpe, mein Führer. — Tirpitz mostrava-se genuinamente de-
ferente. — Era mais fácil explicar diretamente a Bond.
— Eu darei as explicações. . . se houver necessidade de alguma.
— Führer, a última remessa de armas acaba de chegar — falou Pau-
la, a voz pouco reconhecível para Bond. — Estará pronta para ser remeti-
da dentro de 48 horas.
O conde inclinou a cabeça, fixou os olhos em Bond por um segundo
e depois os desviou para Kolya Mosolov.
— Tenho agora os meios de cumprir a minha parte do acordo, ca-
marada Mosolov. Seu preço está aqui: Mr. James Bond. Tudo como pro-
meti.
— Ótimo.
Kolya não parecia satisfeito nem desgostoso. A palavra revelava
apenas que algum acordo fora consumado.
— Führer...
Paula não pôde continuar, pois Bond interrompeu-a bruscamente,
numa explosão.
— Führer? Chama esse homem de Führer. . . Líder? Vocês estão
loucos, todos vocês! E principalmente você! — Um dedo apontou para o
homem por trás da mesa. — Aarne Tudeer, procurado por crimes come-
tidos durante a Segunda Guerra Mundial. Um oficial da SS insignificante,
que recebeu essa honra duvidosa dos nazistas que lutavam com tropas
finlandesas contra os russos. . . contra o povo de Kolya. Conseguiu ago-

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ra reunir um pequeno grupo de fanáticos, vestiu-os como figurantes de
Hollywood, providenciou todos os aparatos. . . e só por isso pensa ter o di-
reito a ser chamado de Führer? Qual é o seu jogo, Aarne? Onde tudo isso
vai levá-lo? Uma poucas operações terroristas, uns poucos comunistas
mortos nas ruas. . . um sucesso ínfimo. Aarne Tudeer, em terra de cegos
quem tem um olho é rei. Você só tem um olho e vesgo ainda por cima. . .
A explosão, visando a produzir o máximo de fúria, foi interrompi-
da abruptamente. Brad Tirpitz — ou quem quer que fosse o homem —
levantou-se de um salto, erguendo o braço para desferir uma violenta
bofetada com as costas da mão na boca de Bond.
— Silêncio. — A ordem partiu de Von Glöda. — Silêncio! Sente-se,
Hans.
Desviou sua atenção para Bond, que sentia o gosto salgado de san-
gue na língua. Se não tomasse cuidado, pensou Bond, Hans ou Tirpitz,
quem quer que fosse, também receberia uma bofetada muito em breve.
— James Bond, você está aqui apenas para um propósito. — Os
olhos de Von Glöda estavam mais vidrados do que nunca. — Explicarei no
momento oportuno. Mas. . .
Fez uma pausa, deixando a última palavra se prolongar, depois re-
petiu-a.
— Mas há coisas que desejo partilhar com você. Há também coisas
que espero que você partilhe comigo.
— Quem é esse cretino disfarçado como Brad Tirpitz?
Bond queria lançar tantas provocações quanto pudesse, mas Von
Glöda parecia inabalável, acostumado à obediência absoluta.
— Hans Buchtman é meu SS-Reichführer.
— Seu Himmler?
Bond soltou uma risada.
— Não há motivo para rir, Mr. Bond. — Moveu a cabeça ligeiramen-
te. — Fique ao alcance de um chamado, Hans. . . lá fora.
Tirpitz — ou Buchtman — bateu os calcanhares, fez a antiga e bem
conhecida saudação nazista e depois se retirou. Von Glöda virou-se para
Kolya.
— Lamento, meu caro Kolya, mas nossos negócios terão de ser pro-
telados por algumas horas. . . talvez um dia. Pode me fazer essa gentileza?
Kolya acenou com a cabeça.
— Acho que sim. Fizemos um acordo e entreguei-lhe a sua parte na

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barganha. O que tenho a perder?
— É verdade, Kolya. . . o que você tem a perder? Paula, cuide dele.
E fique com Hans.
Ela aceitou a ordem com um ‘Führer’, pegou o braço de Kolya e
levou-o para fora da sala.
Bond estudou o homem atentamente. Se aquele era mesmo Aarne
Tudeer, ele preservara a aparência e o físico de uma maneira excepcional.
Seria possível que. . .? Não, Bond sabia que não devia especular mais.
— Muito bem, agora posso falar.
Von Glöda levantou-se, as mãos cruzadas nas costas, um vulto alto
e empertigado, um soldado da cabeça aos pés. Pelo menos isso ele era,
refletiu Bond, não o amador militar desprezível que Hitler demonstra-
ra ser. Aquele homem era superior, vigoroso, parecia tão astuto quanto
qualquer comandante militar experiente. Bond afundou numa cadei-
ra. Não esperaria que fosse convidado. Von Glöda elevava-se sobre ele,
olhando para baixo.
— Para deixar tudo bem claro e acabar com qualquer esperança
que ainda possa lhe restar — começou o pretenso Führer —, o residente
de seu Serviço em Helsinki. . . através do qual você deveria operar. . .
— O que há com ele? — indagou Bond, sorrindo.
Um número de telefone — isso era tudo o que ele tinha em termos
de contato com o residente em Helsinki. Embora a instrução em Londres
fosse precisa sobre o aproveitamento do homem na Finlândia, Bond nun-
ca pensara em recorrer a ele, pois a experiência lhe ensinara há muitos
anos que se devia evitar os agentes residentes como a peste.
— Seu residente foi. . . para usar o termo em voga. . . ‘retirado de
circulação’, assim que você partiu para o Ártico.
— Ah. . .
Bond parecia enigmático.
— Uma precaução. — Von Glöda acenou com a mão. — Triste, mas
necessária. Havia um substituto para Brad Tirpitz. Tive de tomar cuidado
com minha filha, mas Kolya Mosolov agiu por minhas ordens. Seu Serviço,
a CIA e o Mossad, todos tiveram seus controladores removidos. Os conta-
tos telefônicos. . . ou rádio, no caso do Mossad. . . passaram a ser cober-
tos por meus homens. Portanto, amigo Bond, não espere que a cavalaria
venha em seu socorro.
— Nunca espero a cavalaria. Não confio em cavalos. São animais

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temperamentais na melhor das hipóteses. E desde aquele negócio em
Balaclava, o Vale da Morte, não perco mais tempo com a cavalaria.
— É um humofista e tanto, Mr. Bond. Particularmente para um ho-
mem em sua atual situação.
Bond deu de ombros.
— Sou apenas um entre muitos, Aarne Tudeer. Por trás de mim há
uma centena e por trás mais mil. O mesmo acontece com Tirpitz e Rivke.
Não posso falar por Kolya Mosolov, pois não compreendo os motivos dele.
Bond fez uma pausa de um segundo, antes de continuar:
— Suas próprias ilusões, Aarne Tudeer, podem ser explicadas por
um psiquiatra principiante. O que representam no final das contas? Um
grupo terrorista neonazista, com acesso a armas e pessoas. Uma organi-
zação internacional. Com o tempo, o terrorismo se tornará um ideal, algo
por que valerá a pena lutar. O movimento crescerá, você passará a ser
uma força que terá de ser levada em consideração nos conselhos mun-
diais. E de repente. . . bingo!. . . você conseguiu o que Hitler não pôde
alcançar, um Quarto Reich em escala mundial.
Bond soltou uma risada seca.
— Parece muito fácil, só que não dará certo. Não é mais possível.
Mas de que maneira conseguiu que alguém como Mosolov. . . um mem-
bro dedicado do Partido, dos altos escalões da KGB. . . o seguisse, mesmo
que seja apenas durante uma parte do caminho?
Von Glöda fitou Bond placidamente.
— Sabe qual é o departamento de Kolya na Primeira Diretoria da
KGB, Mr. Bond?
— Não.
O sorriso fino, olhos duros como diamantes, os músculos faciais
mal se mexiam.
— Ele pertence ao Departamento V. . . que há muitos anos costu-
mava ser chamado de SMERSH.
Bond teve um vislumbre de luz.
— A SMERSH possui a lista de alvos. São muitos nomes. . . pessoas
que são procuradas não mortas, mas vivas. Pode imaginar qual é o pri-
meiro nome nessa lista, James Bond.
Bond nem precisava pensar duas vezes. A SMERSH sofrera muitas
mudanças, mas possuía, como um departamento do Serviço russo, uma
memória longa.

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— Isso mesmo. — Von Gloda acenou com a cabeça. — Procurado
por subversão e crimes contra o Estado. Morte aos espiões, Mr. Bond.
Uma pequena informação antes da morte. James Bond é o primeiro da
lista da SMERSH, e há muito tempo. Eu precisava de uma ajuda espe-
cífica. Alguma coisa para me livrar, como dizer, de algumas dificuldades
com determinados cavalheiros da KGB. Até mesmo a KGB, como todos os
homens, tem um preço. O preço da KGB era você, James Bond. Entregue
em bom estado, ileso. Você me possibilitou tempo, armas, um acesso ao
futuro. Mais tarde, Kolya o levará para Moscou e para aquele lugarzinho
encantador que eles possuem na Praça Dzerzhinsky.
O que passava por um sorriso desapareceu por completo.
— Eles esperaram muito tempo. E já que estamos falando nisso,
nós também. Estamos esperando desde 1945.
Acomodou o longo corpo na cadeira diante de Bond.
— Vou lhe contar toda a história. Poderá então compreender que
estou adquirindo o Quarto Reich e o futuro político do mundo pelo sim-
ples ato de enganar a União Soviética e vender um espião inglês. . . James
Bond, que eles tanto querem. São homens tolos, muito tolos, ao arrisca-
rem o futuro de sua ideologia por um inglês.
O homem era um desvairado. Bond sabia disso, mas possivelmente
o mesmo acontecia com muitos outros. Escutem, pensou ele. Escutem
todos o que Von Glöda tem a dizer. Escutem a música e as palavras, talvez
depois encontrem a resposta verdadeira e a saída.

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164
14

Um Mundo para Heróis


— Depois que a guerra terminou e o Führer morreu, bravamente,
em Berlim. . . — começou Von Glöda.
— Ele tomou veneno e deu um tiro em si mesmo — disse Bond. —
Não foi uma brava morte.
Von Glöda pareceu não ouvi-lo.
— ... pensei em voltar à Finlândia, talvez me esconder lá. Os Aliados
tinham meu nome em suas listas, mas possivelmente eu ficaria seguro.
Seguro. . . mas um covarde.
Enquanto a história se desenrolava — o esconderijo na Alemanha,
depois o contato com grupos organizados de fuga, Spinne e Kamera-
denwerk —, Bond compreendeu claramente que não lidava apenas com
um velho nazista, vivendo dos sonhos da glória passada que acabara no
Bunker em Berlim.
— Os romancistas chamam de Odessa, mas essa foi na verdade
uma noção um tanto romântica. . . uma organização indefinida para aju-
dar as pessoas a escaparem. — Von Glöda quase que meditava para si
mesmo. — O trabalho importante foi realizado por membros dedicados
da SS que tiveram o bom senso de perceber o que podia sair errado.
Como muitos outros, ele se deslocara incessantemente por diver-
165
sos lugares.
— Deve saber, é claro, que Mengele. . . o Anjo da Morte de Aus-
chwitz. . . permaneceu em sua cidade, natal por quase cinco anos, sem ser
descoberto. Com o passar do tempo, porém, todos nós partimos.
Primeiro, Von Glöda e a esposa foram para a Argentina. Depois, ele
estivera na vanguarda dos que se esconderam numa comunidade remota
e bem protegida no Paraguai. Estavam todos lá, os nazistas procurados.
Mas Aarne Tudeer — como ainda era conhecido na ocasião — tornara-se
insatisfeito com a companhia deles.
— Todos eles só faziam representar. Quando Peron ainda estava no
poder e também mais tarde, não hesitavam em se mostrar abertamente.
Havia até comícios e concentrações. . . concursos de beleza. . . Miss Nazis-
ta 1959. O sonho do Führer se tornaria realidade.
Von Glöda soltou um grunhido de repulsa, indignado.
— Mas era tudo conversa fiada. Eles viviam de sonhos e permitiam
que os sonhos se tornassem a sua essência. Perderam a coragem, aban-
donaram seu heroísmo, tornaram-se cegos à verdade da ideologia que
Hitler lhes oferecera. Hitler estava certo. Se o nacional-socialismo fosse
reduzido a cinzas, uma fênix tinha de se erguer dessas cinzas. . . caso con-
trário, antes do final do século o comunismo dominaria a Europa e depois
o mundo.
Von Glöda exortara os poucos que ainda se apegavam ao sonho de
que o momento de entrar em ação era o da transição, quando o mundo
parecia perder o rumo, quando todos clamavam por alguém para liderá-
los.
— Esse seria o momento. Inevitavelmente, o regime comunista he-
sitaria, antes de lançar todo o seu poderio para a conquista do mundo.
— Não é exatamente o que está acontecendo.
Bond sabia que sua única esperança era estabelecer alguma espé-
cie de vínculo comum com aquele homem. . . como um refém deve fazer
com seus captores.
— Não? — Houve uma risada genuína nesse momento.
Não, a situação é melhor do que jamais poderíamos imaginar. Veja
o que está acontecendo no mundo. Os soviéticos se infiltraram nos sindi-
catos e governos, até mesmo na Inglaterra e Estados Unidos. . . e saberão
tirar todo o proveito disso. Tem de concordar que o bloco oriental está
lentamente desmoronando por si mesmo. No ano passado, mostramos

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ao mundo o que se pode fazer, com umas poucas operações bem plane-
jadas. . . começando com o Incidente de Trípoli. Este ano será diferen-
te. Estamos agora mais bem armados e equipados. Temos mais partidá-
rios. Ganharemos acesso a governos. No próximo ano, o Partido tornará
a emergir, abertamente. Mais dois anos e seremos outra vez uma força
política de verdade. Hitler será reabilitado. A ordem será restaurada e o
comunismo. . . o inimigo comum. . . será varrido do mapa da história. As
pessoas estão clamando por ordem. . . uma nova ordem, um mundo de
heróis, não de camponeses e vítimas de um regime.
— Sem vítimas? — perguntou Bond.
— Entende perfeitamente o que estou querendo dizer, Mr. Bond.
É claro que a escória deve acabar. Mas, depois disso, haverá uma raça
superior. . . não apenas uma raça superior alemã, mas uma raça superior
européia.
O homem conseguira convencer algum dos nazistas antigos no Pa-
raguai de que tudo isso era possível.
— Há seis anos eles me entregaram uma grande quantia — disse,
orgulhosamente. — A maior parte do que fora deixado em contas na Su-
íça. Eu assumira um novo nome ao final da década de 1960. . . ou talvez
seja melhor dizer que reassumi. Há vínculos genuínos entre minha família
e os Von Glödas, agora extintos. Voltei por diversas vezes e há quatro anos
passei a trabalhar intensamente. Viajei pelo mundo inteiro, Mr. Bond, or-
ganizei, conspirei, separei o joio do trigo.
Von Glöda se animava cada vez mais, à medida que prosseguia no
relato.
— Eu planejava começar os supostos atos terroristas no ano passa-
do. O problema, como sempre, foi de armas. Podia treinar os homens. . .
há recrutas suficientes, muitos instrutores experientes. Mas armas cons-
tituem outro problema. Seria difícil para mim posar como a OLP, Brigada
Vermelha ou mesmo o IRA.
A esta altura, ele já voltara definitivamente para a Finlândia. Sua
organização começava a tomar forma. Só tinha dois problemas: armas e
um quartel-general. E fora então que tivera uma idéia.
— Vim para cá. Conhecia muito bem a região. Descobri que me
lembrava ainda melhor do que imaginara.
Ele se lembrava particularmente da casamata, construída inicial-
mente pelos russos e melhorada pelos soldados alemães. Von Glöda resi-

167
dira em Salla por seis meses, usando as conhecidas rotas de ‘contrabando’
para entrar e sair da Rússia. Surpreendentemente, descobrira que grande
parte da casamata ainda estava intacta. Procurara abertamente as autori-
dades soviéticas, com autorização do Conselho de Comércio da Finlândia.
— Houve prolongadas negociações, mas acabaram me permitindo
que trabalhasse aqui, procurando por minerais. Não fui muito específico,
mas era um bom investimento. Não custa nada aos soviéticos.
Outros seis meses, com equipes trazidas da África, América do Sul
e até mesmo Inglaterra, e a nova casamata estava pronta. Durante esse
período, Von Glöda fizera contato com dois depósitos de material bélico
nas proximidades.
— Um deles foi fechado no ano passado. Obtive os veículos deles.
Eu consegui os BTR. . . — Von Glöda bateu no próprio peito — . . . da mes-
ma forma como diz os negócios com aqueles imbecis traiçoeiros de Lebre
Azul. Eles se venderam por nada. . .
— Venderam a si mesmos e muito equipamento. . . inclusive, sou
capaz de apostar, foguetes que você ainda não usou.
Bond encaixou a informação insinuantemente, recebendo em troca
um olhar penetrante.
— Muito em breve — murmurou Von Glöda, balançando a cabeça.
— Daqui a um ano usaremos as armas pesadas. . . e muito mais.
Silêncio. Von Glöda estaria esperando por parabéns? Possivelmen-
te.
— Parece que você está conseguindo dar um grande golpe. Bond
fez o comentário ironicamente, mas Von Glöda levou-o a sério.
— Tem toda razão. É mesmo uma grande idéia comprar armamen-
tos dos sargentos e soldados russos, que não têm a menor noção de sua
própria ideologia. . . muito menos da ideologia do NSAA. Idiotas. Cretinos.
Silêncio outra vez.
— E depois o mundo os alcança? — sugeriu Bond.
— O mundo? Acho que sim. As autoridades cairão em cima deles e
correrão para mim em busca de proteção. Creio que podemos nos orgu-
lhar de nossos sucessos até agora. Mil homens e mulheres aqui, nesta ca-
samata. Cinco mil homens em campanha. . . espalhados pelo mundo. Um
exército que cresce a cada dia que passa; ataques aos principais centros
do governo por toda a Europa e nos Estados Unidos, tudo planejado até
os mínimos detalhes; e os armamentos prontos para embarque. Depois

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da próxima ofensiva, nossa diplomacia. Ao final, teremos o maior exército
e a maior quantidade de adeptos em todo o mundo ocidental.
— O mundo feito para heróis? — Bond tossiu. — Nada disso. Está
em inferioridade. . . em armamentos e homens.
— Engana-se, Mr. Bond. Durante este inverno, já enviamos daqui
uma grande quantidade de equipamentos e armas. Entraram na Finlândia
clandestinamente. Esperam agora o embarque para o exterior como má-
quinas operadoras e implementos agrícolas. Meus métodos de fornecer
suprimentos às minhas tropas são altamente sofisticados.
— Sabíamos que estava transportando as armas através da Finlân-
dia.
Von Glöda riu de verdade.
— Em parte porque eu queria que soubessem. Há outras coisas,
no entanto, que você não deve saber. Assim que esta carga estiver a ca-
minho, estarei pronto para transferir minhas forças para mais perto das
bases européias. Já temos casamatas preparadas. Isso, como você pode
imaginar, é um dos problemas que o envolvem.
Bond franziu o rosto, sem compreender. Mas Von Glöda estava ago-
ra absorvido no relato sobre a maneira como lidara com os homens de
Lebre Azul. O negócio fora fechado e tudo transcorrera sem problemas
por algum tempo. Mas, subitamente, o comandante — “um homem de
pouca imaginação” — aparecera em pânico no Palácio de Gelo. Fora efe-
tuada uma inspeção local e dois coronéis do Exército Vermelho acusavam
a cada um e a todos... inclusive o suboficial no comando. Von Glöda suge-
rira que o suboficial reagisse com toda dignidade e pedisse aos coronéis
uma investigação pela KGB.
—- Eu tinha certeza de que eles concordariam. Se há uma coisa
que gosto nos russos é sua capacidade de transferir responsabilidades. O
suboficial e seus homens em Lebre Azul estavam descobertos. Os coro-
néis, apavorados com a quantidade de material desaparecido. Todos se
viam acuados num fogo cruzado. Todos queriam passar o problema para
outros. E quem melhor do que a KGB para assumir tudo?
Bond não podia deixar de admitir que o conde Von Glöda demons-
trara um bom senso excepcional. Um incidente como aquele seria evitado
pela Diretoria (Terceira) das Forças Armadas. O desaparecimento de gran-
des quantidades de armas e munições, nas vastidões geladas do Ártico,
não atrairia a Terceira Diretoria. Independente de todo o resto, o suposto

169
novo Führer conhecia a estratégia e a mentalidade russa. Depois do GRU,
o trabalho acabaria com o Departamento V. A idéia por trás dessa iniciati-
va era de que, se o Departamento V entrasse em ação, não haveria vestí-
gio de qualquer coisa quando terminasse. . . nada de armas desaparecidas
e ninguém para interrogar. Provavelmente ocorreria um acidente trágico
num depósito de munição — uma explosão matando todos os homens.
— Eu disse ao idiota do suboficial para alertar qualquer um da KGB
que aparecesse. Disse a ele para falar comigo. Primeiro alguns homens
do GRU estiveram em Lebre Azul. Permaneceram apenas por dois dias. E
depois Kolya apareceu. Tomamos alguns drinques. Ele não fez perguntas.
Indaguei sobre o que mais precisava, em todo o mundo, para consolidar
sua carreira. Fechamos o acordo aqui, nesta sala. Lebre Azul deixará de
existir dentro de uma semana. Ninguém fará investigações. Nenhum di-
nheiro trocou de mãos. Kolya queria apenas uma coisa. Você, Mr. James
Bond. Você, numa bandeja. Funcionei simplesmente como um mestre de
marionetes. Expliquei a ele como pegá-lo. Eu teria umas poucas horas
com você. Depois disso, o Departamento V. . . com quem já se confrontou
muitas vezes pelo nome de SMERSH. . . o terá por inteiro. Pelo resto da
vida. Ou da morte, é claro.
— E você continua a formar o Quarto Reich? — disse Bond. — E o
mundo vive feliz para sempre?
— Mais ou menos isso. Mas estou atrasando tudo. Meu pessoal
encontra-se à sua espera. . . para conversarem. . .
Bond levantou a mão.
— Não tenho o direito de perguntar, mas poderia me dizer se tam-
bém inspirou a operação conjunta? CIA, KGB, Mossad e meu Serviço?
Von Glöda assentiu.
— Disse a Kolya como fazer, como substituir o pessoal. Não mani-
pulei para que o Mossad enviasse minha própria filha atrás de mim.
— Rivke.
Bond lembrou-se da noite no hotel.
— Isso mesmo. É como ela se chama agora, pelo que me informa-
ram. Rivke. Comporte-se, Mr. Bond, e talvez eu fique enternecido e per-
mita que a veja antes de partir para Moscou.
Então ela estava viva e ali, no Palácio de Gelo. Bond fez um esforço
para não deixar transparecer qualquer emoção. Limitou-se a dar de om-
bros.

170
— Não disse que o seu pessoal queria conversar comigo?
Von Glöda voltou à sua mesa.
— As autoridades em Moscou o querem muito, mas meu pessoal
também deseja conversar com você a respeito de determinadas ques-
tões.
— É mesmo?
— Sim, Mr. Bond. Sabemos que o seu Serviço tem um dos nossos
homens. . . um soldado que fracassou no cumprimento do dever.
Bond tornou a dar de ombros, o rosto impassível, com uma incom-
preensão simulada.
— Meus soldados são leais e sabem que a causa está acima de
tudo. É por isso que temos sido bem-sucedidos até agora. Nada de pri-
sioneiros. Todos os membros do NSAA prestam um juramento, a morte
antes da desonra. Nenhum dos meus homens caiu prisioneiro em todas
as operações no ano passado.. . exceto. . .
Ele deixou as palavras pairarem no ar por um momento e depois
acrescentou:
— Não gostaria de me contar, James Bond?
— Nada tenho para contar.
— Acho que tem. A operação contra três funcionários civis britâni-
cos, quando deixavam a embaixada russa. Pense bem, Bond.
Bond já pensara à frente dele. Lembrava-se das instruções de M e
da expressão solene de seu chefe quando se referira ao interrogatório do
único homem do NSAA capturado, guardado no prédio do quartel-gene-
ral. . . o homem que tentara se matar com um tiro. O que fora mesmo que
M dissera? Que a mira do homem não era muito boa. Mas sem detalhes.
— Meu palpite é de que qualquer informação arrancada daquele
prisioneiro seria fornecida a você, antes de seu encontro com Kolya. -—
A voz de Von Glöda baixara para quase um sussurro. — Preciso saber. . .
tenho de saber. . . o que o traidor entregou. E vai me dizer, Mr. Bond.
Bond conseguiu arrancar uma risada do fundo da garganta resse-
quida.
— Sinto muito, Von Glöda. . .
— Führerl — berrou Von Glöda. — Será tratado como todo mundo
e me chamará de Führer.
— Um oficial finlandês que desertou para os nazistas? Um finlan-
dês-alemão com ilusões de grandeza? Não posso chamá-lo de Führer.

171
Bond falou calmamente, sem imaginar o que estava provocando.
— Renunciei a qualquer nacionalidade. Não sou finlandês, não sou
alemão! Não foi Goebbels quem proclamou os sentimentos de Hitler? O
povo alemão não tinha o direito de sobreviver porque se mostrara de-
ficiente. Não correspondeu aos ideais do grande movimento nazista. O
povo alemão deveria ser exterminado para que um novo Partido pudesse
surgir e prosseguir na obra. . .
— Mas não foi exterminado.
— Não faz diferença. Minha lealdade é com o Partido e com a Eu-
ropa. Com o mundo. Agora é o raiar do Quarto Reich. Até mesmo essa
informação tão pequena é necessária para mim. . . e você irá fornecê-la.
— Não tenho conhecimento de qualquer prisioneiro do NSAA. Não
tenho qualquer informação sobre um interrogatório.
O homem empertigado diante de Bond parecia subitamente estar
convulsionado pela raiva. Os olhos ardiam.
— Vai me contar tudo o que sabe. Todo mundo no Serviço britânico
conhece o NSAA.
— Não tenho nada a lhe contar, pois não sei de nada. De qualquer
forma, o que você poderia fazer? Para continuar em sua própria luta, tem
de me entregar a Kolya. . . é a sua parte no acordo, em troca de silêncio.
— Não seja ingênuo, Mr. Bond. Posso sair daqui com meus homens
e todo material militar em 24 horas. Kolya também vendeu sua alma à
ambição. Imagine o seu poder pessoal ao aparecer na Praça Dzerzhinsky
com você. . . o homem procurado pela SMERSH há tanto tempo. Pensa
que os superiores de Kolya sabem o que ele está fazendo? Claro que não.
Kolya tem o senso do dramático. . . como todos os bons agentes e solda-
dos. Para o Departamento V da Primeira Diretoria, Kolya Mosolov está
numa missão de investigação de armamentos desaparecidos nesta área.
Ninguém virá procurar por aqui durante algum tempo, se não receberem
notícias dele. Compreende agora, James Bond? Você me proporcionou
tempo, mais nada. Uma oportunidade de concluir minhas transações com
armas e de escapar tranqüilamente. Kolya Mosolov é dispensável. E você
é dispensável.
A mente de Bond disparou através da lógica. O exército terrorista
neonazista de Von Glöda realmente executara operações bem-sucedidas
no ano passado. Além disso, o próprio M declarara firmemente que o
Exército da Ação Nacional Sócialista era levado a sério por todos os gover-

172
nos ocidentais. A gravidade de M e sua advertência seguiram-se aos co-
mentários sobre o homem do NSAA capturado vivo e agora encarcerado
no prédio em frente ao Regent’s Park. Isso significava que o homem deve-
ria ter revelado o suficiente para que o Serviço tivesse informações sobre
a força e os esconderijos de Von Glöda. A resposta, concluiu Bond, era
de que seu próprio Serviço, se não também os outros, sabia exatamente
onde ficava o quartel-general secreto de Von Glöda naquele momento,
possivelmente também a localização do próximo posto de comando.
— Portanto, sou dispensável por causa de um prisioneiro — disse
Bond. — Um homem, que pode ou não ser prisioneiro do meu Serviço.
Isso é ótimo, quando se pensa nos milhões que seu antigo Führer mante-
ve em cativeiro, assassinou nas câmaras de gás ou matou com trabalhos
forçados. Agora, um único homem detém o equilíbrio.
— Uma boa tentativa, Mr. Bond — respondeu Von Glöda, secamen-
te. — Seria mesmo, se fosse tão simples. Mas a questão é da maior impor-
tância e peço que a trate assim. Não posso correr riscos.
Fez uma pausa, como se considerasse a melhor maneira de trans-
mitir a gravidade da situação a Bond. E depois acrescentou:
— Não há ninguém aqui, nem mesmo no meu estado-maior, que
saiba a localização exata do meu próximo quartel-general. Nem Kolya,
cujo caminho ao poder foi engendrado e oferecido por mim, nem Paula,
nem Buchtman. . . Tirpitz para você. Nenhum deles sabe.
Outra pausa, um suspiro.
— Infelizmente, no entanto, há umas poucas pessoas que possuem
essas informações em suas cabeças, embora involuntariamente. Os ho-
mens e mulheres que me aguardam neste momento no novo quartel-
general obviamente sabem. Mas há outros. Por exemplo, a unidade que
executou a operação em Kensington Palace Gardens, diante da embaixa-
da soviética, passou pelo novo posto de comando, para receber as instru-
ções, a caminho de Londres.
Bond agora compreendia a importância.
— Foi desse novo e altamente secreto quartel-general que eles par-
tiram para a missão. Sabemos da situação de todos, menos de um. Minha
informação é de que ele fracassou na tentativa de se suicidar, ao ser cap-
turado pelo seu Serviço. É um homem bem treinado, mas até mesmo os
oficiais mais hábeis podem cair em armadilhas. Sabe muito bem como
se pode somar dois mais dois, Mr. Bond. Preciso saber de duas coisas.

173
Primeiro, se ele revelou a localização do meu novo quartel-general, onde
pretendo me estabelecer dentro em breve. Segundo, onde ele está sendo
mantido prisioneiro.
— Nada sei a respeito de qualquer prisioneiro do NSAA.
Von Glöda contemplou Bond com uma expressão impassível, com-
pletamente destituída de qualquer emoção.
— Talvez esteja dizendo a verdade. Duvido muito, mas é possível.
Tudo o que quero é a verdade. Minha impressão pessoal é de que você
sabe onde ele está e tomou conhecimento de tudo o que disse. Somente
um tolo o enviaria numa missão sem pleno conhecimento dos fatos.
Von Glöda podia ser muito esperto, pensou Bond. Não restava a
menor dúvida de que tinha um bom olho para os detalhes e um cérebro
arguto. Mas seu último comentário não deixava dúvidas sobre sua total
ignorância sobre as questões de segurança. Bond também se sentiu ofen-
dido pela insinuação de que M era um tolo.
— Acha mesmo que eu teria acesso a todos os fatos?
Bond permitiu-se um sorriso indulgente.
— Tenho certeza absoluta.
— Pois então o tolo é você, não meus superiores.
Von Glöda soltou uma risada brusca e seca.
— Faça como quiser, mas eu não corro riscos. Descobrirei a verdade
de qualquer maneira. Podemos levar um homem ao limite. Se nada tem
a dizer, nada dirá e saberei que há pouco perigo. Se souber apenas onde
meu homem está sendo mantido, tal informação poderá ser transmitida
a Londres. Ele pode estar no lugar mais inacessível, mas minha equipe em
Londres arranjará um meio de chegar a ele. . . com tempo de sobra.
Uma das equipes de Von Glöda conseguiria penetrar no quartel-
general do Serviço? Por mais que Bond duvidasse, não se sentia propenso
a fazer o teste.
— E se eu quebrar e mentir para você? E se eu lhe disser que há
mesmo um prisioneiro. . . embora lhe assegure agora que não tenho o
menor conhecimento. . . e que ele nos forneceu todas as informações de
que precisamos?
— Então você saberá também a localização do meu novo posto de
comando, Mr. Bond. Como pode ver, não tem a menor possibilidade de
ganhar.
Não pelo seu manual, pensou Bond. O homem não podia perceber

174
nada que não fosse preto ou branco.
— Outra coisa. — Von Glöda levantou-se. — Usamos aqui as técni-
cas de interrogatório mais antigas. Dolorosas, mas eficientes. Ainda não
confio no que o amigo Kolya chamaria de interrogatório químico. Pense
no que vai enfrentar agora, Mr. Bond. Um extremo desconforto, para di-
zer o mínimo. Planejo levá-lo ao limiar da dor. Os médicos me dizem que
ainda não nasceu o homem que não quebre sob o método que usaremos.
— Mas não sei de nada.
— Então não vai quebrar e eu saberei. Por que então não evita o
pior? Fale-me a respeito do prisioneiro. . . onde ele está, o que revelou.
Os segundos tiquetaqueavam, quase audíveis, na cabeça de Bond.
Nesse instante a porta se abriu e o homem que Bond conhecera como
Brad Tirpitz entrou, seguido pelos dois guardas que estavam na ante-sala.
Eles levantaram o braço em saudação.
— Sabe qual é a informação que preciso desse homem, Hans — dis-
se Von Glöda. — Use todos os métodos de persuasão. Agora.
— Jawohl, mein Führer.
Os braços levantaram-se ao mesmo tempo, calcanhares batendo.
Os dois guardas convergiram para Bond e seguraram-no pelos braços.
Ele sentiu algemas envolverem seus pulsos, dedos fortes apertarem-no,
arrastarem-no da sala.
Não foram além da ante-sala. Tirpitz/Buchtman adiantou-se e
apertou um ponto na parede, revelando um painel que deslizou para trás,
com um estalido.
Buchtman passou pela abertura, seguido por um dos guardas, com
a mão segurando o blusão de Bond. O outro guarda segurava os pulsos
algemados de 007. Um na frente e outro atrás. Bond logo descobriu o
motivo. Entraram num corredor estreito, que só dava para a passagem de
um homem de cada vez.
Ficou evidente que desciam, depois de meia dúzia de passos. Não
demoraram a chegar a uma escada de pedra, iluminada por luzes azuis
fracas, embutidas nas paredes a intervalos; uma corda passava por argo-
las de metal num lado, servindo como corrimão.
O progresso foi lento, pois a escada descia interminavelmente.
Bond tentou calcular a profundidade, mas logo desistiu. Os degraus pa-
reciam tornar-se cada vez mais íngremes. Em determinado ponto havia
uma pequena plataforma, dando para uma câmara aberta. Ali, Buchtman

175
e os dois guardas puseram capotes e luvas. Nada ofereceram a Bond, que
mesmo no traje de inverno do exterior começou a sentir a lufada de frio
intenso que subia lá de baixo.
Os degraus tornaram-se cada vez mais escorregadios. Bond sentiu
formações de gelo nas paredes enquanto continuavam a descer. Entraram
finalmente numa caverna intensamente iluminada, circular, as paredes de
rocha natural, o chão aparentemente de gelo, puro e grosso.
Grossas vigas de madeira estendiam-se pela caverna, passando
pelo centro. Um equipamento de guincho estava preso às vigas, com uma
longa corrente de metal pendendo e terminando no que parecia ser um
gancho de âncora.
Um dos guardas sacou sua pistola e permaneceu perto de Bond.
O outro abriu uma caixa de metal, grande, coberta de gelo, da qual tirou
uma serra pequena, com motor.
A respiração dos quatro homens, naquela masmorra congelada,
engrossava o ar em nuvens. Bond sentiu o cheiro de gasolina do motor da
serra, no instante em que foi acionado.
— Nós a mantemos bem protegida. — Buchtman não perdera o
sotaque americano. — Muito bem.
Acenou com a cabeça para o guarda com a pistola e acrescentou:
— Tire as roupas do filho da puta.
Bond sentiu as mãos começarem a lhe tirar as roupas, enquanto
observava a serra cortando o chão da cela, fazendo lascas de gelo voarem
em todas as direções. Mesmo com as roupas, o frio já se tomara insupor-
tável. Agora à medida que as camadas de roupas eram removidas, seu
corpo parecia envolto por um manto invisível de agulhas afiadas. Bucht-
man sacudiu a cabeça para o homem com a serra.
— Ele está cortando uma linda banheira para você, James, meu
velho. — Uma risada. — Estamos aqui muito abaixo do nível principal da
casamata. A água sobe depressa no verão. Um pequeno lago natural. Vai
conhecer esse lago muito bem, James Bond.
Enquanto ele falava, a serra rompeu o gelo, mostrando que tinha
pelo menos meio metro de espessura. O guarda passou então a cortar um
círculo, o centro diretamente abaixo da corrente que pendia do guincho.

176
15

O Frio da Morte
Abriram as algemas. A essa altura, James Bond estava com frio de-
mais para resistir. A remoção da metade superior de suas roupas pareceu
não fazer qualquer diferença. Mal podia se mexer e tinha a impressão de
que até mesmo o desejo de estremecer lhe era negado.
Um dos guardas puxou os braços de Bond para a frente do seu cor-
po inteiramente nu, tornou a prender as algemas. O metal nos pulsos
parecia queimar.
Bond começou a se concentrar. Tente se lembrar de alguma coisa...
Esqueça o frio... Feche os olhos... Veja apenas um ponto no universo, dei-
xe o ponto aumentar.
O barulho das correntes, e Bond ouviu mais do que sentiu os pul-
sos algemados serem presos ao gancho. A vertigem por um momento,
enquanto levantavam o guincho. Os pés deixaram o chão, ele girou e ba-
lançou, a corrente subindo. Dor intensa agora, os punhos algemados su-
portavam toda a pressão. Braços estendidos, dando a impressão de que
seriam arrancados. O entorpecimento outra vez. Não importava a pressão
nos braços, ombros e pulsos, pois a temperatura enregelante agia quase
como um anestésico.
Estranhamente, a coisa que importava era o balançar e o giro. Bond
177
normalmente não reagia à desorientação, enquanto voava, fazia acroba-
cias aéreas em alta velocidade ou os vários outros testes de stress du-
rante a inspeção de aptidão física anual. Agora, no entanto, ele sentiu a
bílis subir pela garganta, à medida que o balanço se tornava mais regular
— como um pêndulo — e o giro diminuía, primeiro para um lado, depois
para outro.
Abrir os olhos era tão doloroso quanto qualquer outra coisa. Uma
luta intensa contra a fina camada de gelo se formando nas pálpebras. Mas
necessário, pois precisava desesperadamente de algum ponto fixo para
focalizar. Os lados gelados da caverna surgiram à sua frente, a luz por cima
projetando cores, amarelos, vermelhos, azuis. Era impossível manter a
cabeça levantada, com os braços estendidos por cima sustentando todo
o peso do corpo.
A cabeça de Bond caiu para a frente. Por baixo dele, um olho imen-
so, escuro, vultos se movendo em volta, o olho se virando indolentemen-
te, estreitando, enviesando. Levou um momento para que o cérebro en-
torpecido compreendesse que o olho não se movia. A ilusão decorria do
seu próprio balanço, na extremidade da corrente. As agulhas continuavam
a investir contra seu corpo. Pareciam estar por toda parte a um tempo,
depois se localizavam — espetando seu couro cabeludo, deslocando-se
para uma coxa, envolvendo os órgãos genitais.
Concentre-se. Bond esforçou-se em alcançar uma perspectiva
apropriada, mas o frio era como uma barreira, uma parede gelada que
impedia seu cérebro de funcionar. Mais. Concentre-se mais.
Bond finalmente fixou-se no olho, quando o movimento de balanço
e giro cessou. O olho era um círculo aberto no gelo, a escuridão era a água
gelada lá embaixo. Lentamente, baixavam a corrente, seus pés pareciam
agora pairar diretamente sobre a água.
Agora uma voz. Tirpitz/Buchtman:
— James, meu velho, a coisa será terrível. Deve nos contar tudo an-
tes de continuarmos. Sabe o que queremos? Basta responder sim ou não.
O que eles queriam? Por que aquilo estava acontecendo? O próprio
cérebro de Bond dava a impressão de estar congelando. O quê?
— Não — ele ouviu a própria voz balbuciar.
— Seu pessoal tem um dos nossos homens. Duas perguntas. Onde
ele está aprisionado em Londres? O que ele contou aos interrogadores?
Um homem? Preso em Londres? Quem? Quando? O que ele conta-

178
ra? Por alguns segundos, a mente de Bond se desanuviou. O soldado do
NSAA, mantido no quartel-general em Regent’s Park. O que ele contara?
Não tinha a menor idéia. Mas não especulara a respeito? Claro. O homem
devia ter contado muita coisa. Não diga nada. Em voz alta, Bond falou:
— Não sei de nada a respeito de nenhum prisioneiro. Nada sobre
interrogatórios.
A voz era irreconhecível, ecoando pelas paredes da caverna natu-
ral. A outra voz flutuou até ele, cada palavra exigia um grande esforço de
Bond para reconhecer ou compreender.
— Muito bem, Jim, seja como quiser. Perguntarei outra vez dentro
de um minuto.
Lá de cima, o matraquear de alguma coisa. A corrente. Seu corpo
descendo para o olho preto. Sem qualquer motivo, Bond pensou de re-
pente que perdera todo o olfato. Estranho. Por que a ausência de olfato?
Concentre-se em outra coisa. Esforçou-se, lançando a mente num novo
curso. Um dia de verão. O campo. Árvores frondosas. Uma abelha zum-
bindo por cima de seu rosto e podia sentir o cheiro. . . o sentido de olfato
estava de volta, uma mistura de relva e feno. A distância, o som de alguma
máquina agrícola ronronando serenamente. Não diga nada. Não sabe de
nada, exceto isso. . . o feno e a relva. Nada. Não sabe de nada.
Bond ouviu o estrépito final da corrente no instante em que atingia
o meio do olho preto. O cérebro até registrou que uma fina camada de
gelo já se formara sobre a água. E depois a folga da corrente largou-o no
centro. Deve ter gritado, pois a boca se encheu de água. O sol. O carvalho.
Braços sendo arrastados pela corrente. Não podia respirar.
A sensação não era de frio cortante, apenas de extrema mudança.
Tanto podia ser água fervente como congelada. A única sensação cons-
ciente de Bond, depois do choque inicial, era a do corpo envolto por uma
dor ofuscante, como se os olhos — janelas para o cérebro — fossem quei-
mados por uma luz branca.
Ainda vivia, embora só estivesse consciente disso por causa da dor.
O coração batia no peito e na cabeça como timbales.
Não havia como saber por quanto tempo haviam-no mantido sob
o gelo. Engasgou, fazendo um enorme esforço para respirar; todo o corpo
se sacudia em espasmos, como um fantoche manipulado por um mestre
convulsivo.
Abrindo os olhos, Bond descobriu que estava outra vez suspenso

179
acima do olho cortado no gelo. E foi então que o frio de verdade o envol-
veu, o tremor enquanto balançava de um lado para outro, enquanto as
agulhas se transformavam em farpas, esfolando-lhe a pele.
Não. Seu cérebro rompeu-se pela dor do frio. Não, aquilo não esta-
va acontecendo. A relva; fragrâncias de verão; sons de verão; o trator se
aproximando; o farfalhar de uma brisa nos galhos do carvalho.
— Muito bem, Bond, isso é apenas uma amostra. Está me ouvindo?
Ele respirava normalmente, mas as cordas vocais não pareciam
funcionar direito. Finalmente:
— Estou, sim.
— Sabemos até que ponto ir, mas não se engane pensando que
nunca iremos além. O limite. Onde nosso homem está aprisionado em
Londres?
Bond ouviu de novo a própria voz como se não lhe pertencesse:
— Não sei de nenhum homem preso em qualquer lugar.
— O que ele contou ao seu pessoal?
— Não sei de nenhum homem.
— Como quiser.
Outra vez a corrente no matraquear da morte. Deixaram-no ficar lá
embaixo, comprimido pela corrente, por um longo tempo — ou então ele
permaneceu consciente por mais tempo do que antes. Fez um enorme
esforço para respirar; a neblina vermelha misturava-se com uma luz bran-
ca, que parecia derreter cada músculo, cada veia, cada órgão. E depois o
bendito alívio da escuridão, logo dissolvido pela dor, enquanto o corpo nu
balançava suavemente, mais uma vez retirado da piscina de gelo.
O ar frio da masmorra tornou a segunda vez ainda pior. Não apenas
agulhas, mas pequenos animais, roendo e mordendo a carne entorpeci-
da; os órgãos mais sensíveis em agonia, a tal ponto que Bond lutou com as
algemas e o gancho, querendo baixar as mãos para cobrir a virilha.
— Há um homem do Exército de Ação Nacional Socialista sendo
mantido prisioneiro em Londres. Onde ele está?
O verão. Tente. . . Tente o verão. Mas aquilo não era o verão, ape-
nas os dentes terríveis, pequenos e afiados, mordendo a pele, os múscu-
los, a carne.
O homem do NSAA estava no quartel-general em Regent’s Park.
Haveria algum mal em contar? Verão. As folhas verdes do verão.
— Está me ouvindo, Bond? Diga-nos e as coisas se tornarão mais

180
fáceis.

O verão está chegando,


Cante, cuco. . .

— Não sei. Não sei de prisioneiro. . . Ninguém. . . Desta vez a voz


saiu do interior de sua cabeça, a frase cortada de maneira abrupta en-
quanto a corrente descia ruidosamente, mergulhando-o na massa gélida.
Ele lutou, sem pensar no que faria ou poderia fazer se as algemas
se desprendessem. Era puro reflexo: o corpo automaticamente lutava
pela vida, encurralado em um elemento no qual não poderia sobreviver
por muito tempo. Estava consciente de que os músculos não reagiam, o
cérebro cessava de operar racionalmente. Dor insuportável. Escuridão.
Vivo e balançando outra vez. Bond se perguntou quão perto paira-
va entre a vida e o desconhecido, pois a dor branca se concentrava agora
em sua cabeça — uma explosão ofuscante, lancinante, cintilante, dentro
do crânio.
A voz gritava, como se tentasse alcançá-lo através de uma grande
distância:
— O prisioneiro, Bond. Onde estão guardando o prisioneiro? Não
seja tolo. Sabemos que ele está em algum lugar da Inglaterra. Basta nos
dizer qual o lugar. O nome. Onde ele está?
O quartel-general do meu Serviço. Perto do Regent’s Park. Trans­
world Export. Ele dissera isso? Não, nada houvera, apesar de as palavras
se formarem claramente em seu cérebro, esperando para saírem.

As folhas verdes de verão. Verão está chegando. Tempo dp verão. A


última rosa do verão. . .

Víboras atacando seu cérebro. Depois as palavras: a voz alta de


Bond.
— Nenhum prisioneiro. Não sei de qualquer prisão...
O barulho do gelo ao seu redor, o líquido quente e vermelho, ofus-
cante, depois a agonia, enquanto o corpo despertava mais uma vez. Fora,
balançando e pingando, ofegando, cada centímetro do corpo dilacerado.
O cérebro, que até então computara extremos de temperatura e de sofri-
mento como animais roendo, serpentes e agulhas, finalmente atingira a

181
fonte real de dor. Frio. Frio da morte. A morte pelo lento congelamento.
O sol era deslumbrante. Tão quente que o suor escorria da testa de
Bond para os olhos. Nem mesmo podia abrir os olhos e sabia que bebera
demais. Bêbado como um lorde. Por que bêbado como um lorde? Bêbado
por um níquel, caindo de bêbado por dois níqueis.
O balanço acabou. Riso: riso de Bond. Geralmente não se embria-
gava, mas agora era diferente. Tão alto como. . . tão alto como alguma
coisa. . . Quando? No Quatro de Julho? Pelo menos sentia-se bem. Que o
mundo passasse. Tonto. . . tonto. . . escuridão. Ia desmaiar. Vomitar. Não,
sentia-se muito bem para isso. Felicidade. . . muito feliz. . . A escuridão
chegando, envolvendo-o. . . Apenas um indício do que realmente era en-
quanto a noite o tragava. Frio da morte.
— James. . . James. . . — A voz familiar. Longe, muito longe, de ou-
tro planeta. — James. . .
Uma mulher. A voz de uma mulher. E depois ele a reconheceu. Ca-
lor. Estava deitado e quente. Uma cama? Seria uma cama?
Bond tentou se mexer e a voz repetiu seu nome. Estava mesmo
envolto por cobertores, deitado numa cama, o quarto era quente. . .
— James. . .
Com extremo cuidado, Bond abriu os olhos, sentindo as pálpebras
arderem. E depois se mexeu, lentamente, pois cada movimento era dolo-
roso. Finalmente virou a cabeça para a voz. Os olhos demoraram alguns
segundos para entrarem em foco.
— Oh, James, você está bem. Aplicaram-lhe respiração artificial.
Apertei a campainha. Disseram para chamar alguém depressa quando o
trouxeram.
O quarto era como qualquer outro quarto de hospital, só que não
tinha janelas. Na outra cama, as pernas levantadas e engessadas, estava
Rivke Ingber, o rosto animado e feliz.
E depois o pesadelo voltou, Bond compreendeu o que passara. Fe-
chou os olhos, mas viu apenas o olho escuro, frio, circular, de água conge-
lante. Mexeu os pulsos e a dor voltou nos pontos em que as algemas de
aço lhe haviam cortado a carne.
— Rivke. . .
Foi tudo o que conseguiu dizer, pois sua mente sofreu o assalto de
outros demônios. Teria contado? O que falara? Podia lembrar das per-
guntas, mas não de suas respostas. Uma cena de verão surgiu em sua

182
mente... relva, feno, um carvalho, um zumbido a distância.
— Beba isto, Mr. Bond.
Ele não vira a moça antes, mas ela estava corretamente vestida em
uniforme de enfermeira, aproximava de seus lábios uma xícara com um
líquido quente, fumegante.
— Caldo de carne. Quente, mas precisa de coisas quentes. Vai ficar
bom. Não se preocupe com coisa alguma agora.
Bond, recostado nos travesseiros, não tinha força nem disposição
para resistir. O primeiro gole do caldo de carne fez os anos recuarem. O
gosto lembrou-o de um passado muito distante — como uma peça musi-
cal evoca uma memória há muito esquecida. Bond recordou uma infância
que se perdera há muito tempo, o cheiro anti-séptico da enfermaria da
escola, os calafrios da gripe de inverno em casa. Engoliu mais, sentindo
o calor espalhar-se por suas entranhas. Com o calor interior, os horrores
também voltaram: a masmorra de gelo, o frio terrível, terrível demais,
enquanto era mergulhado na água congelante.
Teria falado? Por mais que vasculhasse o cérebro não foi capaz de
determinar. No meio das imagens vividas e satânicas da tortura, não havia
memória do que mais se passara entre ele e os interrogadores.
Deprimido, olhou para Rivke. Ela o fitava, os olhos suaves e gentis,
exatamente como se mostraram no hotel, ao amanhecer. Os lábios dela
se mexeram, silenciosamente, mas Bond pôde facilmente entender qual
era a mensagem: “James, eu o amo.”
Ele sorriu e deu-lhe um pequeno aceno de cabeça, enquanto a en-
fermeira inclinava a xícara, a fim de que pudesse beber mais.
Estava vivo. E Rivke estava ali. Enquanto ele vivesse, ainda havia
uma possibilidade de que o Exército de Ação Nacional Socialista pudesse
ser detido e o Führer eliminado do novo mapa do mundo que tão ansio-
samente queria desenhar.

183
184
16

Sócios no Crime
Depois do caldo de carne, Bond recebeu uma injeção e a enfermei-
ra falou alguma coisa sobre ulcerações do gelo.
— Mas não é nada que possa preocupar — acrescentou ela. — Es-
tará bom dentro de poucas horas.
Bond olhou para Rivke e começou a dizer alguma coisa, mas sumiu
numa nuvem de sono. Mais tarde, não pôde determinar se fora ou não
um sonho, mas tinha a impressão de que houvera um período de vigília,
com Von Glöda parado ao pé da cama. O homem alto sorria — insinuante
e diabólico.
— Eu disse que lhe arrancaríamos tudo o que precisássemos, Mr.
Bond. Melhor do que drogas, produtos químicos. Espero não termos ar-
ruinado a sua vida sexual. Acho que não. De qualquer forma, agradeço a
informação. Uma grande ajuda para nós.
Ao despertar, finalmente, Bond estava mais ou menos convencido
de que não fora um sonho, tão vivida era a imagem de Von Glöda. Hou-
vera sonhos, no entanto, sonhos sobre o mesmo homem: sonhos em que
Von Glöda aparecia com o uniforme nazista, cercado pelos aparatos do
poder, numa espécie de comício de Nuremberg.
Um onda de terror percorreu-o, enquanto voltava a memória do
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terrível sofrimento na água gelada. Passou depressa. Sentia-se melhor
agora, embora aquietado pelas drogas que tomara. E sentia-se ansioso
em continuar. Não tinha alternativa. Ou encontrava uma saída do labirin-
to de Von Glöda ou fazia a inevitável viagem a Moscou, ao encontro da
confrontação final com o que costumava ser conhecido como SMERSH.
— Está acordado, James?
Nos poucos segundos de retorno ao mundo, Bond esquecera a pre-
sença de Rivke no quarto. Virou a cabeça, sorrindo.
— Enfermaria mista. O que mais vão inventar?
Ela riu, inclinando a cabeça para as duas grandes massas de gesso,
suspensas por roldanas, que eram as suas pernas.
— Mas não há muito que possamos fazer. O que é uma pena. O
nojento do meu pai esteve aqui há pouco.
Confirmava tudo. O discurso de Von Glöda não fora um sonho.
Bond praguejou silenciosamente. Quanto teria revelado, sob a dor e a de-
sorientação do mergulho no gelo? Não havia como saber. Rapidamente,
calculou as possibilidades de uma equipe determinada do NSAA entrar no
prédio de Regent’s Park. Seria de oitenta contra um. Mas só precisariam
infiltrar um homem. Isso aumentaria as possibilidades; e se ele dera a
informação, o NSAA certamente já teria instruído seus homens. Era tarde
demais para avisar M.
— Parece preocupado, James. Que coisas terríveis lhe fizeram?
— Levaram-me a passear num país das maravilhas de inverno, mi-
nha querida. Nada tão horrível assim. Mas o que me diz de você? Teste-
munhei o acidente. Pensamos que fora levada por uma ambulância de
verdade e pela polícia. Obviamente, estávamos enganados.
— Eu descia a encosta final, ansiosa em me encontrar de novo com
você. E de repente. . . nada. Despertei com muita dor nas pernas e meu
pai ao lado. Aquela mulher estava com ele. Mas acho que ela não está
aqui agora. Eles tinham uma espécie de hospital organizado. As pernas
quebradas e ainda duas costelas. Engessaram-me, levaram-me para uma
longa viagem e acordei aqui. O conde diz que é o seu posto de comando,
mas não tenho a menor idéia de onde nos encontramos. As enfermeiras
são cordiais, mas não me dizem coisa alguma.
— Se meus cálculos estão corretos. . .
Bond virou de lado, a fim de poder falar mais facilmente com Rivke
e fitá-la ao mesmo tempo. Havia sinais de tensão em torno dos olhos dela

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e sentia-se obviamente em grande desconforto, por causa do gesso nas
pernas e da tração.
— Se estou certo, aqui é uma casamata muito grande, situada a dez
ou 12 quilômetros da fronteira finlandesa. No lado russo.
— No lado russo?
Rivke escancarou a boca, os olhos arregalados de espanto. Bond
assentiu.
— Seu amado papai deu um golpe e tanto. — Fez uma careta, trans-
mitindo uma certa admiração. — Não se pode deixar de admitir que ele
tem se mostrado excepcionalmente esperto. Procuramos pistas por toda
parte e durante todo o tempo ele operava do lugar mais improvável...
dentro do território soviético.
Rivke riu suavemente, o som mesclado de amargura.
— Ele sempre foi esperto. Quem haveria de procurar na Rússia pelo
quartel-general de um grupo fascista?
— Tem razão. — Bond ficou em silêncio por um momento. — Suas
pernas estão muito mal?
Ela levantou a mão, num gesto de desamparo.
— Pode ver pessoalmente.
— Ainda não lhe deram qualquer terapia? Não deixaram você ten-
tar andar. . . mesmo com muletas ou um Zimmer?
— Está brincando comigo. Não chego a sentir muita dor. É mais
desconfortável. Por quê?
— Tem de haver uma saída deste lugar e não irei embora sozinho,
deixando-a para trás. — Fez uma pausa, como se firmando a decisão. —
Não agora que a encontrei, Rivke.
Quando tornou a fitá-la, Bond teve a impressão de vislumbrar uma
umidade nos olhos grandes.
— É maravilhoso de sua parte, James, mas se há uma saída deve
tentar escapar sozinho, por si mesmo.
Bond franziu a testa. Se havia uma saída, ele conseguiria voltar a
tempo? Trazer ajuda? Converteu as respostas em palavras.
— Acho que o tempo não está do nosso lado, Rivke. Não, se lhes
contei o que penso. . .
— Contou?
— Ser mergulhado em água quase gelada, sem as roupas, não é fá-
cil. Desmaiei duas vezes. Eles queriam as respostas para duas perguntas.

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Bond explicou que só sabia de uma resposta, mas podia adivinhar
a outra.
— Que espécie de perguntas?
Em poucas palavras, Bond falou do homem do NSAA que fora cap-
turado em Londres, antes de poder cometer suicídio.
— Seu pai tem um novo posto de comando. Esse homem dispõe de
informações suficientes para alertar nosso pessoal. O pior é que o prisio-
neiro de Londres provavelmente não sabe disso. Seu pai maníaco enviou
um grupo a seu novo posto de comando para instruções, antes da partida
para Londres. Nossos interrogadores, como os de vocês no Mossad, não
são tolos. As perguntas certas proporcionarão as respostas necessárias.
— Acha então que o seu Serviço já sabe onde esse novo lugar. . .
esse segundo posto de comando. . . está localizado?
— Não se pode ter certeza absoluta. Mas se eu contei aos interro-
gadores de Von Glöda que estamos com o homem e que ele vem sendo
interrogado, conseguirão somar facilmente as respostas. Tenho a impres-
são de que seu pai vai transferir todo mundo daqui bem depressa.
— Não falou que eram duas perguntas?
— Eles também queriam saber onde o prisioneiro está sendo guar-
dado. Isso não constitui um problema. Há uma possibilidade de que um
homem consiga se infiltrar até ele, mas qualquer ataque em larga escala
seria inteiramente impossível.
— Por quê, James?
— Mantemos um centro de interrogatório especial no porão do
nosso quartel-general, em Londres. Ele está preso lá.
Rivke mordeu o lábio.
— E acha mesmo que contou a eles?
— Há uma possibilidade. Você disse que seu pai esteve aqui an-
tes. Lembro vagamente. Ele deu a impressão de que já sabia. Você estava
acordada. . .
— Estava.
Rivke desviou os olhos por um instante, sem encontrar os dele.
Agentes do Mossad, pensou Bond, tendem a optar por uma pílula de sui-
cídio em vez de enfrentarem um interrogatório que possa comprometê-
los.
— Acha que falhei no meu Serviço e nessa aliança profana de que
supostamente participamos?

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Rivke permaneceu em silêncio por um segundo.
— Não, James. Obviamente, você não tinha alternativa. Nada disso.
Eu estava pensando no que meu pai disse. . . e Deus sabe por que ainda
o chamo de pai. Ele não é realmente meu pai. Quando chegou, ele disse
alguma coisa sobre informações que você fornecera. Eu cochilava, mas
ele parecia sarcástico. Agradeceu-lhe pela informação.
Bond sentiu o desespero dominá-lo. M enviara-o às cegas para
uma situação difícil, embora não pudesse culpar o chefe por isso. O ra-
ciocínio de M fora de que o melhor, para Bond, era dispor do mínimo de
conhecimentos. Como ele próprio, era quase certo que M fora enganado
pelo que transpirara: a eliminação do verdadeiro Brad Tirpitz, a traição de
Kolya Mosolov em conluio com Von Glöda. E havia então a duplicidade
de Paula Vacker. O desespero provinha de saber que deixara seu país ao
desamparo e falhara com seu Serviço. Pelas regras de Bond, esses eram
os pecados essenciais.
A essa altura, Von Glöda talvez estivesse empenhado na rotina de
mudança: arrumando tudo, organizando o transporte, carregando os BTR
com todos os armamentos e munições que pudessem transportar, des-
truindo documentos. Bond se perguntou se Von Glöda teria alguma base
temporária — além do novo posto de comando —, da qual pudesse ope-
rar. Ele queria agora sair dali o mais depressa possível, mas podia demorar
até 24 horas.
Bond correu os olhos ao redor, a fim de verificar se suas roupas
estavam ali. Havia um armário em frente à cama, mas não era bastan-
te grande para conter roupas. O resto do quarto estava vazio, apenas os
apetrechos normais de um quarto de hospital particular: outro armário
pequeno na frente da cama de Rivke; uma mesa, com copos, uma garra-
fa e equipamentos médicos, no canto. Nada de útil, ao que ele pudesse
perceber.
Havia trilhos para um biombo em torno de cada cama, duas lâmpa-
das — por cima das cabeceiras da cama —, uma luz fluorescente no teto,
as grades de ventilação habituais.
Ocorreu-lhe a idéia de que poderia dominar a enfermeira, despi-la
e tentar sair disfarçado de mulher. Mas a idéia era evidentemente ridícu-
la, pois Bond não tinha um corpo que se prestasse a uma representação
feminina. Além do mais, só o pensar nisso fazia-o sentir-se tonto outra
vez. Imaginou quais as drogas que teriam lhe aplicado depois da tortura.

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Se Von Glöda ia cumprir seu acordo com Kolya — o que parecia al-
tamente improvável —, a única chance de Bond seria uma fuga da escolta
de Kolya Mosolov.
Houve um ruído lá fora, no corredor. A porta se abriu e a enfermei-
ra entrou, radiante, engomada, anti-séptica.
— Tenho notícias — disse ela, animadamente. — Os dois irão em-
bora muito em breve. O Führer decidiu levá-los com ele. Vim avisá-los que
serão transferidos dentro de poucas horas.
— A hora dos reféns — comentou Bond, suspirando.
A enfermeira sorriu jovialmente, dizendo que já esperava por isso.
— E como sairemos daqui? — Bond tinha a vaga noção de que po-
deria ajudar se a mantivesse falando, ao menos para obter alguma infor-
mação. — Num BTR? Ou num Snowcat? No quê?
O sorriso da enfermeira persistia.
— Irei com vocês. Está em perfeitas condições, Mr. Bond, mas con-
tinuarmos preocupados com as pernas de Miss Ingber. Imagino que ela
prefira ser chamada de Miss Ingber. Devo ficar com ela. Iremos todos no
avião particular do Führer.
— Avião?
Bond nunca imaginara que eles tivessem instalações de vôo.
— Isso mesmo. Há uma pista entre as árvores. É mantida perma-
nentemente desobstruída, mesmo nas piores condições do tempo. Te-
mos dois aviões aqui. . . equipados com esquis para o inverno, é claro. . .
além do jato do Führer, um Mystère-Falcon adaptado. Muito rápido, mas
capaz de pousar em qualquer lugar. . .
— E pode também decolar de qualquer lugar? — indagou Bond,
pensando na neve e no gelo entre as árvores.
— Quando a pista está desobstruída. — A enfermeira parecia tran-
qüila. — Não se preocupe com nada. Sempre colocamos queimadores de
gelo ao longo da pista quando o Führer decola.
Ela parou à porta por um instante.
— Há alguma coisa de que precisem?
— Que tal um pára-quedas? — sugeriu Bond.
A enfermeira perdeu a jovialidade pela primeira vez.
— Farão uma refeição pouco antes de partirem. Até lá, tenho ou-
tras coisas a fazer.
A porta fechou e eles ouviram o estalido da chave girando na fecha-

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dura, pelo lado de fora.
— Está acabado — disse Rivke. — Se alguma vez pensou a respeito,
James querido, pode desistir: não haverá um chalé para nós, com roseiras
na entrada.
— Eu tinha mesmo pensado nisso, Rivke. E nunca perco a esperan-
ça.
— Conhecendo meu pai, ele bem que gostará de nos largar de seis
mil metros de altura.
Bond soltou um grunhido.
— Isso explica a reação da enfermeira quando falei em pára-que-
das.
— Psiu! — Rivke fez um gesto abrupto. — Tem alguém no corredor.
Diante da porta.
Bond olhou para ela. Nada ouvira, mas Rivke parecia subitamen-
te alerta, até nervosa. Bond moveu-se — surpreso ao descobrir que as
pernas e braços funcionavam com facilidade e rapidez. A ação pareceu
até produzir uma nova vivacidade em seu corpo. Perdeu inteiramente a
sensação de estar drogado. Censurou a si mesmo, compreendendo que
violara outra regra elementar ao ficar conversando com Rivke, sem se pre-
ocupar em fazer uma verificação mínima de seu estado.
Bond correu, sem sentir o menor constrangimento pela nudez, até
a mesa no canto, pegou um copo e voltou igualmente depressa para a
cama. Sussurrou para Rivke:
— Posso quebrar o copo no momento em que for necessário. É
surpreendente como vidro quebrado pode ser eficaz.
Ela concordou, a cabeça inclinada, escutando. Bond ainda não ou-
via nada. De repente, com uma rapidez e brusquidão que pegou até mes-
mo Bond desprevenido, a porta abriu-se e Paula Vacker estava no quarto.
Ela se moveu silenciosamente — “como raio lubrificado”, confor-
me diria May, a governanta de Bond. Antes que Rivke ou Bond tivessem
tempo de reagir, Paula se postara entre as camas. Bond vislumbrou a sua
automática P7, levantada duas vezes, ouviu o retinido de vidro quando
Paula quebrou as duas lâmpadas por cima das cabeceiras das camas com
a coronha da arma.
— Mas o quê. . . ? — Bond começou a perguntar, compreendendo
que isso não fazia a menor diferença, pois a iluminação provinha basica-
mente da luz no teto.

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— Fique quieto.
A P7 circulava de uma cama para outra, Paula recuou para a porta,
meio agachada, puxou um embrulho para dentro do quarto, depois tor-
nou a fechar a porta e trancou-a.
— Os equipamentos eletrônicos, James, estavam dentro daquelas
lâmpadas. Cada palavra. . . toda a sua conversa com a meiga Rivke... foi
transmitida ao conde Von Glöda.
— Mas. . .
— Já chega. — A P7 estava apontada agora para Rivke, não para
Bond. Com o pé, Paula empurrou o embrulho na direção da cama de
Bond. — Vista isso. Vai se tornar um oficial do exército do Führer por
algum tempo.
Bond levantou-se e abriu o embrulho. Havia uma roupa de baixo
térmica, meias, uma suéter grossa de gola rulê, o uniforme cinza de in-
verno, mais botas, luvas e um gorro de pele. Começou a se vestir rapida-
mente.
— O que está acontecendo, Paula?
— Explicarei quando chegar o momento — respondeu ela, brusca-
mente. — Apenas continue o que está fazendo. Teremos de fazer tudo so-
zinhos. Kolya caiu fora e agora somos só nós dois. Sócios no crime, James.
Pelo menos sairemos daqui.
Bond já estava quase inteiramente vestido. Dirigiu-se para a porta.
— E Rivke?
— O que há com ela?
— Não podemos tirá-la daqui. De que lado você está, afinal?
— Por mais surpreendente que isso possa parecer, James, do seu.
Mais do que se pode dizer da filha do Führer.
Enquanto ela falava, Rivke entrou em ação. Paula recuou e Bond
viu a ação meio indistinta. Com uma facilidade alarmante, Rivke tirou as
pernas do gesso, virou-se de lado e saiu da cama, a mão empunhando a
coronha de uma pequena pistola. Não havia uma única marca em seu cor-
po e as pernas supostamente quebradas funcionavam como as de uma
atleta. Paula praguejou, gritando para que Rivke baixasse a arma.
Bond, ainda segurando as últimas peças de roupa que faltava vestir,
viu toda a coisa como se fosse em câmara lenta: Rivke, apenas de calci-
nha, levantando o braço em que estava a arma, enquanto os pés pousa-
vam no chão; os braços de Paula estendendo-se para a posição de tiro;

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Rivke ainda se adiantando, depois o estampido alto da P7, ressoando pelo
quarto; uma nuvem de fumaça da arma turbilhonando; o rosto de Rivke
desintegrava-se numa neblina de sangue e osso, enquanto o corpo, arre-
messado para trás pelo impacto, passava por cima da cama.
E depois o cheiro de pólvora queimada. Paula tornou a praguejar.
— A última coisa que eu queria. O barulho.
Por um dos poucos momentos em sua vida, James Bond sentiu que
perdia o controle. Já reconhecera o início de emoções fortes em relação a
Rivke. Conhecia a traição de Paula. Equilibrado agora nas pontas dos pés,
Bond preparou-se para fazer uma última e desesperada tentativa, um sal-
to para a arma de Paula. Mas ela simplesmente jogou a P7 para ele, pegou
a arma pequena de Rivke.
— É melhor você ficar com isso, James. Pode precisar. Talvez tenha-
mos sorte. Roubei a chave da enfermeira e afastei-a sob um falso pretex-
to. Não há ninguém nesta ala, é possível que o tiro não tenha sido ouvido.
Mas vamos precisar de asas nos pés.
— Mas do que está falando? — perguntou Bond, suspeitando da
verdade mesmo enquanto falava.
— Explicarei tudo depois. Mas será que não compreende? Não
contou nada sob tortura e por isso o meteram neste quarto com Rivke.
E você revelou tudo à filha do Führer, porque confiava nela. Ela é a assis-
tente do pai, sempre foi. E pelo que ouvi dizer, ela tinha a esperança de
um dia se tornar o primeiro Führer mulher. Vamos agora? Temos de sair
daqui. Sócios no crime. . . como eu disse.

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194
17

Um Acordo É um Acordo
Paula usava um capote grosso e bem recortado sobre o uniforme
com que Bond a vira pela última vez. As botas eram visíveis sob o capote,
e para completar o efeito acrescentara um gorro de pele militar.
Bond olhou para a cama que até um momento antes acomodara
Rivke. As peças de gesso obviamente eram encaixes falsos, o que confir-
mava as acusações de Paula. Sentiu-se nauseado pela visão da parede de
trás, salpicada de sangue e tecido humanos, como um quadro surrealista.
Ainda podia sentir o cheiro de Rivke no quarto.
Virou-se, pegando o gorro de pele de oficial que Paula lhe trouxera.
Ao longo da Operação Quebra-Gelo, as alianças pareciam ter se deslo-
cado de um lado para outro, numa sucessão de incertezas angustiantes.
Bond ainda não podia estar seguro quanto às verdadeiras intenções de
Paula, mas pelo menos ela parecia falar a sério sobre a saída da casamata.
Isso significava colocar alguma distância entre ele e o conde Von Glöda, o
que constituía uma perspectiva das mais agradáveis.
— Para os guardas, estou agindo por ordens do Führer — disse Pau-
la. — Há um passe padronizado para todos.
Entregou-lhe um pequeno quadrado de plástico branco, como um
cartão de crédito.
195
— Não chegaremos perto das oficinas ou dos depósitos de armas.
Mantenha a cabeça abaixada se encontrarmos alguém que já o viu antes
e fique perto de mim. Deixe que eu fale tudo, James. A saída é pela casa-
mata menor e nossas chances são boas. Estão correndo freneticamente
por aqui desde que Von Glöda deu a ordem de mudança. . . depois que
você contou tudo a Rivke. . .
— Sobre o que eu.. .
— Sobre nada — disse Paula bruscamente. — Tudo no momento
oportuno. Apenas confie em mim, ao menos uma vez. Como você, não
estou nisso por diversão.
A mão enluvada pousou no braço de Bond por um instante.
— Acredite em mim, James. Eles o pegaram através daquela mu-
lher e eu não tive como avisá-lo. E ainda usaram o truque mais antigo do
mundo. Ponha o prisioneiro com alguém em quem ele confie e depois
escute a conversa.
Ela tornou a rir, antes de acrescentar:
— Eu estava com Von Glöda quando levaram as gravações. Ele deu
um pulo de dez metros. Idiota. Estava absolutamente convencido. . . pois
você sobreviveu à tortura sem dizer nada. . . e não havia motivo para se
preocupar. E agora, James, fique perto de mim.
Paula abriu a porta e saíram para o corredor. Detiveram-se por um
instante, enquanto ela voltava a trancar a porta, pelo lado de fora. O cor-
redor estava vazio, revestido de ladriIhos brancos, com um cheiro de de-
sinfetante pairando no ar. À direita e esquerda havia outros quartos de
hospital. Ao final do corredor, que ficava à esquerda, havia uma porta de
metal. Von Glöda era bem organizado. Paula seguiu na frente em direção
à porta de metal.
— Mantenha a arma escondida, James, mas pronta para resistir até
o final, como Custer. Se houver um tiroteio, as nossas possibilidades não
são as melhores.
A mão de Paula estava enfiada no bolso direito do capote, onde
pusera a pistola de Rivke. O corredor além da enfermaria era bem de-
corado, as paredes cobertas de juta, com fotografias e cartazes emoldu-
rados, como os que Bond vira a caminho da suíte pessoal de Von Glöda.
Por isso, ele calculou que estavam no centro da casamata, provavelmente
num corredor paralelo ao caminho que levava às acomodações do novo
Führer.

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Paula insistiu em seguir ligeiramente à frente. Bond, com os dedos
enluvados comprimindo a P7 no bolso, permaneceu dois passos atrás e
um pouco à esquerda, quase roçando na parede. Era praticamente a po-
sição de um guarda-costas.
O corredor bifurcou-se depois de dois ou três minutos. Paula virou
à direita, subiu degraus acarpetados, que levavam a um pequeno corre-
dor, ao final do qual havia uma porta dupla, com pequenos painéis cober-
tos de arame. Passaram para o que devia ser um túnel principal. Estavam
outra vez entre paredes toscas, as tubulações visíveis. Paula olhava para
trás a intervalos de poucos segundos, certificando-se de que Bond ainda
a acompanhava. Viraram à esquerda e o simples ato de andar mostrou a
Bond que estavam subindo, num aclive suave.
O aclive tornou-se mais íngreme e chegaram a um passadiço, à
direita, igual ao da entrada na casamata, inclusive com tábuas no chão
e uma corda entre argolas como corrimão. Ali, como na entrada maior,
havia portas e corredores nos dois lados. Pela primeira vez desde que
deixara a enfermaria, Bond teve consciência do barulho — vozes, o ruído
de botas, um grito ocasional, o som de pés correndo.
Olhando para os corredores secundários, Bond vislumbrou todos
os sinais de atividade intensa, porém controlada. Homens carregavam
pertences pessoais, arquivos de metal, caixas e documentos; outros pa-
reciam estar esvaziando escritórios; alguns até carregavam braçadas de
armas. A maioria parecia se encaminhar para a esquerda, confirmando o
senso de orientação de Bond. Tinha certeza agora de que se encontravam
no túnel principal, que os levaria à entrada da casamata menor.
Seis soldados desceram pela encosta, em passo acelerado, bem
treinados, os rostos virados para a frente. O sargento no comando orde-
nou uma saudação a Paula e a Bond.
Agora, lá na frente, um pequeno destacamento montava guarda
ao que parecia ser o obstáculo final. O túnel terminava abruptamente,
fechado por uma maciça porta de aço. Perto do teto, Bond avistou os me-
canismos hidráulicos para levantar a porta. Mas havia também uma outra
porta fechada, pequena, de metal, no lado direito.
— Será agora — murmurou Paula. — Tome cuidado. Não hesite
e, pelo amor de Deus, deixe que eu fale tudo. Assim que sairmos, siga à
esquerda.
Ao se aproximarem da saída, Bond constatou que o destacamento

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consistia de um oficial e quatro homens, todos armados. Perto da porta
havia uma máquina pequena, como a roleta automática das estações de
metrô. A quatro passos da saída, Paula disse, em alemão:
— Preparem-se para nos deixar sair. Estamos sob as ordens pesso-
ais do Führer.
Um dos soldados encaminhou-se para a porta, enquanto o oficial
dava um passo à frente, postando-se ao lado da máquina.
— Está com seu passe, senhora? E o senhor?
Faltava pouco agora.
— Claro — respondeu Paula.
Ela tirou o cartão de plástico com a mão esquerda. Bond imitou-a.
— Ótimo. — O oficial tinha o rosto azedo e rabugento de um ve-
terano que fazia tudo segundo os regulamentos. — Sabem alguma coisa
sobre essa súbita ordem de mudança? Só temos ouvido rumores.
— Sei de muita coisa. — A voz de Paula era dura. — Vocês todos
serão informados no momento oportuno.
Estavam agora quase em cima do oficial.
— Dizem que temos de sair em 24 horas. Não será fácil.
— Já passamos por muitas dificuldades antes.
Não havia qualquer emoção na voz de Paula, enquanto ela entre-
gava o cartão para ser conferido pela máquina. O oficial pegou os dois
cartões, colocou-os numa abertura no alto da máquina, um de cada vez,
depois esperou, enquanto uma sucessão de luzes acendia e apagava,
acompanhada de um suave zumbido.
— Boa sorte, qualquer que seja a missão de vocês. Devolveu os
cartões. Bond acenou com a cabeça. O soldado junto à porta já estava
abrindo os ferrolhos. Paula agradeceu ao oficial e Bond imitou-a, fazen-
do a saudação nazista. Calcanhares bateram e ordens foram gritadas, en-
quanto a porta era aberta.
Poucos segundos depois eles estavam lá fora, o frio intenso envol-
vendo-os, como uma camada de gelo. Estava escuro e Bond — sem o
relógio de pulso — perdera toda a noção do tempo. Não havia como de-
terminar de imediato se era o final da tarde ou a iminência do amanhecer.
A escuridão total dava a impressão de que estavam no meio da longa
noite ártica.
Avançaram para a esquerda, seguindo as pequenas luzes azuis de
orientação que delineavam o exterior da casamata. Sob a neve, Bond po-

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dia sentir o metal duro da ‘estrada’ de corrente que devia ter sido insta-
lada em torno de todo o posto de comando. Haveria um piso similar na
pista do aeroporto de Von Glöda.
As portas principais da casamata erguiam-se, brancas, acima deles.
Ao passarem, Bond compreendeu que Paula o levava ao pequeno abrigo
de concreto onde haviam sido guardadas as motonetas de neve. Podia
divisar o círculo de árvores à direita e lembrou que, ao ser atraído até
ali por Kolya, saíra subitamente da proteção do bosque para ser envolto
pelas luzes fortes.
Paula parecia não ter esquecido coisa alguma. Ao chegarem à es-
trutura baixa e pequena, encostada no paredão rochoso, ela tirou do bol-
so uma argola com chaves, presa numa corrente fina.
O abrigo recendia a óleo e o interruptor junto à porta, acionado,
não proporcionou muita claridade. As motonetas estavam impecavel-
mente estacionadas, parecendo insetos gigantescos, aconchegados uns
aos outros, em hibernação.
Paula dirigiu-se à primeira máquina que servia a seu propósito —
uma Yamaha grande, comprida e preta, muito maior do que as motonetas
providenciadas por Kolya para a travessia da fronteira.
— Espero que não se importe se eu guiar.
Paula já verificava o combustível. Na tênue claridade, Bond podia
apenas sentir — não ver — o sorriso petulante nos lábios dela.
— E para onde vamos, Paula?
Ela levantou os olhos, observando-o através da semi-escuridão.
— Meu pessoal tem um posto de observação cerca de dez quilôme-
tros daqui. — A mão esquerda acenou para o sul. — Fica abrigado num
bosque, mas em terreno elevado. De lá, pode-se ver todo o Palácio de
Gelo e a pista.
Ela virou a motoneta, colocando-a em posição, a fim de poderem
disparar direto pela porta. A mão de Bond empunhou o cabo da P7,
— Perdoe-me, Paula. Há muito tempo que nos conhecemos, mas
a minha impressão é de que você está de alguma forma envolvida com
Von Glöda ou Kolya. Esta operação não tem sido correta desde o início.
Praticamente ninguém é o que parecia ser. Eu gostaria apenas de saber
quem você é e quem é esse ‘pessoal’ a que se referiu.
— Ora, James, deixe disso. Todas as nossas informações dizem que
007 é um dos melhores agentes da Inglaterra. Oh, desculpe, oficialmente

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você não é mais 007, não é verdade?
Bond sacou a P7, lentamente.
— Meu instinto me diz que você é da KGB, Paula.
Ela inclinou a cabeça para trás e riu.
— KGB? Errado, Bond. Vamos logo. Não nos resta muito tempo.
— Irei depois que você me falar. E aguardo a prova depois... mesmo
que você seja da KGB.
— Idiota. — Uma risada amistosa desta vez. — Sou da SUPO, Ja-
mes, há muito tempo, antes mesmo de nos conhecermos. Para dizer a
verdade, meu querido James, nosso encontro não foi totalmente casual.
Seu Serviço já está informado.
SUPO? Era possível. SUPO era a abreviatura de Suojelu-poliisi, a
Força Policial de Proteção. A agência de informações e segurança finlan-
desa.
— Mas. . .
— Provarei isso nas próximas duas horas, James. E agora, pelo amor
de Deus, vamos embora. Há muito o que fazer.
Bond concordou. Montou na traseira da motoneta, atrás de Paula,
enquanto ela ligava o motor, engrenava e saía suavemente do abrigo. Lá
fora, desmontou e voltou para fechar a porta. Poucos segundos depois
embrenhavam-se pelas árvores.
Por um minuto, Paula nem mesmo se deu ao trabalho de acender o
farol da motoneta. Guiava a Yamaha como se fosse parte do seu corpo, zi-
guezagueando com uma precisão que deixou Bond aturdido e sem fôlego.
Ela pusera óculos e estava bem agasalhada, mas a única proteção de Bond
era o corpo de Paula, enquanto o vento uivava em torno deles.
Os braços de Bond enlaçavam firmemente a cintura de Paula. Em
determinado momento — com outra de suas risadas maravilhosas, que o
vento levou para trás — Paula tirou a mão da direção e levantou os braços
de Bond. As mãos dele ficaram sobre os seios de Paula, através do capote
grosso.
O percurso não era nada fácil. Passaram pelo fundo de uma ravina
cheia de árvores, depois subiram por uma encosta íngreme. E durante
todo o tempo esgueiraram-se entre as árvores. Paula praticamente não
reduzia a velocidade, qualquer que fosse o terreno. Mantendo o acelera-
dor de mão ao máximo, ela levava a motoneta entre aberturas nas árvo-
res, deixava que subisse perigosamente por encostas íngremes, mas dava

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um jeito de sempre manter o controle.
Finalmente diminuiu a velocidade, derrapando da esquerda para
a direita numa crista, seguindo o que era certamente uma trilha natu-
ral. Subitamente, dois vultos emergiram do lado da trilha. Os olhos agora
bem ajustados à noite, Bond divisou os contornos de metralhadoras con-
tra a neve.
Paula parou, depois levantou um braço. Bond percebeu sua mão
procurando pela P7. Houve uma conversa curta e sussurrada entre Paula
e o maior dos homens, que vestia um traje lapão e exibia um enorme
bigode, que o fazia parecer ainda mais um salteador. O outro era alto e
magro, com um dos rostos mais malignos que Bond já vira, afilado como
o de uma fuinha, olhinhos pequenos, deslocando-se depressa de um lado
para outro. Para o seu próprio bem, Bond torcia para que Paula tivesse
finalmente lhe contado a verdade. Não gostaria de se descobrir à mercê
de qualquer daqueles homens.
— Eles estão cuidando das duas kotas que armamos aqui — in-
formou Paula, virando a cabeça para Bond. — Tenho quatro homens no
total. Dois deles vão até lá a intervalos regulares, a fim de checar o equi-
pamento de rádio e manter as fogueiras acesas. Parece que está tudo
seguro. Os outros dois estão no acampamento neste momento. Disse a
eles que vamos direto para as kotas. . . você precisa comer e eu tenho de
transmitir uma mensagem para Helsinki, por ondas curtas. Eles a retrans-
mitirão para Londres. Quer comunicar alguma coisa a seu chefe. . . M?
— Apenas os detalhes do que está acontecendo e o lugar onde es-
tou. Sabe para onde Von Glöda irá?
— Eu lhe direi depois que falar com Helsinki — declarou Paula, tor-
nando a ligar o motor.
Bond acenou com a cabeça vigorosamente.
— Está certo.
Avançaram quase a passo, os dois lapões se postaram na frente e
atrás da motoneta. Bond inclinou-se para a frente e sussurrou:
— Paula, eu lhe darei um tiro se estiver me levando para um pas-
seio.
— Cale a boca e confie em mim. Sou a única em quem pode confiar
por aqui. Certo?
Poucos metros além do bosque, no alto da crista, havia duas kotas.
As peles de rena que cobriam as estruturas de madeira surgiam, escuras,

201
contra a neve. A fumaça elevava-se das estacas cruzadas no topo. Lá em-
baixo, pensou Bond, seria difícil avistá-las contra os pinheiros altos. Paula
parou a Yamaha e os dois saltaram.
— Usarei o rádio imediatamente. — Paula apontou para a kota da
direita e Bond pôde divisar as antenas, no alto. — Meus dois homens es-
tão lá. Pedi a Aslu para ficar de guarda do lado de fora.
Apontou para o lapão de aspecto maligno e acrescentou:
— Niiles irá com você para a outra kota, onde a comida está no
fogo.
O lapão de bigode grande, Niiles, sorriu, acenando com a cabeça
em encorajamento. A metralhadora apontava para o chão.
— Está bem, Paula — murmurou Bond.
O cheiro da fumaça de lenha envolveu-o quando ainda estavam
a meia dúzia de passos da kota. Niiles adiantou-se, levantou a aba de
pele e espiou. Depois de certificar-se de que tudo estava seguro, acenou
para Bond se aproximar. Entraram juntos na kota. Bond sentiu, no mes-
mo instante, os olhos arderem com a fumaça. Tossiu, limpou os olhos,
contemplou tudo ao redor. O tênue nevoeiro de fumaça gradativamente
subiu para a abertura no alto da tenda. Misturava-se com o cheiro forte e
agradável de comida. Os olhos de Bond ajustataram-se o suficiente para
distinguir os sacos de dormir, cobertores e pratos cuidadosamente arru-
mados no interior da tenda.
Niiles largou sua arma e fez um gesto para que Bond sentasse.
Apontou para o caldeirão borbulhando sobre o fogo, ardendo num bura-
co quadrado, escavado na terra. Niiles levou a mão à boca.
— Comida. — Balançou a cabeça, jovial. — Comida. Boa. Coma.
Bond balançou a cabeça em resposta. Niiles pegou um prato e uma
colher, foi até a fogueira, inclinou-se, começou a servir-se do que parecia
uma espécie de guisado.
E no momento seguinte o lapão estava estatelado, gritando, sobre
o fogo. Levara uma rasteira. Um dos cobertores pareceu assumir forma
humana. Antes que Bond pudesse sacar sua pistola, a voz de Kolya soou
calmamente do outro lado do fogo:
— Nem pense nisso, James. Estaria morto antes de encostar a mão
na coronha.
Acrescentou alguma coisa em finlandês para Niiles, que rolava para
longe do fogo e sentava agora, aconchegando a mão contra o peito.

202
— Eu deveria ter imaginado — disse Bond, tão calmamente quanto
Kolya. — Estava tudo fácil demais. Paula só podia estar me levando para
um baile.
— Paula? — O rosto de Kolya ficou à mostra por um momento, ao
clarão da fogueira. — Acabei de dizer a esse bandido para me entregar
sua metralhadora. Eu o matarei se tentar alguma coisa. Pessoalmente,
gostaria de estar mais bem armado quando Paula chegasse aqui. O fato,
James, é que estou agindo sozinho. Em inferioridade numérica. Mas te-
nho amigos à espera e não pretendo voltar a Moscou de mãos vazias.
A mente de Bond começou a funcionar no problema imediato: de-
veria tentar avisar Paula? Como poderia lidar com Kolya Mosolov, ali e
agora? Os olhos deslocaram-se cuidadosamente pelo interior escuro da
kota, enquanto Niiles, machucado, empurrava lentamente a metralhado-
ra na direção de Kolya, com o pé.
— Pelo que disse, imagino que vai me levar com você. Bond obser-
vava atentamente através da fumaça.
— Era esse o acordo que eu tinha com o porco fascista do Von
Glöda. — A risada de Kolya foi genuína. — Ele pensava que podia dirigir
impunemente uma operação nazista no território da União Soviética.
— No entanto, ele está dirigindo. E todas as suas operações terro-
ristas foram bem-sucedidas. Acostumou-se às armas russas e agora vai
embora.
Kolya sacudiu a cabeça lentamente.
— Não há possibilidade de Von Glöda escapar.
— Ele ia me levar embora. De avião. Talvez até já tenha partido.
— Não, não partiu. Tenho observado e escutado. Seu amado jati-
nho particular não deixou a pista. Nem mesmo tentará decolar antes do
amanhecer. Ainda nos restam duas horas.
Portanto, faltavam duas horas para o amanhecer. Pelo menos Bond
tinha agora uma noção do tempo.
— Como pode detê-lo?
— Já foi tudo acionado. Von Glöda tem uma força militar em terri-
tório soviético. Serão destruídos ao amanhecer. A Força Aérea Vermelha
transformará a casamata num caldeirão do inferno. — O rosto de Kolya
iluminou-se com um sorriso. — Infelizmente, nossa base de Lebre Azul
também será destruída. Um erro lamentável, mas que resolve todos os
problemas.

203
Bond pensou por um momento.
— Então vai dizimar Von Glöda e seu pequeno exército, rompendo
a parte dele no acordo, mas ficando com a sua?
— Ora, meu caro James. . . um acordo é um acordo. Mas às ve-
zes não dá certo para um dos participantes. Como eu poderia deixá-lo ir
embora, meu amigo? Especialmente se levarmos em consideração que o
meu departamento. . . que você conhecia como SMERSH. . . vem tentan-
do pegá-lo há muito tempo. Na verdade, o meu acordo com Von Glöda
sempre foi ligeiramente unilateral.

204
18

Ataque Aéreo
Houve silêncio por vários segundos, depois Mosolov disse algumas
palavras a Niiles, que ainda gemia.
— Não há necessidade de desperdiçar um boa comida — disse
Kolya, suavemente. — Mandei-o endireitar o caldeirão e atiçar o fogo.
Não creio que ele tente alguma estupidez. Quero que você saiba que te-
nho alguns homens aqui e já capturaram Paula. Portanto, acho que a me-
lhor coisa. . .
Parou no meio da frase, subitamente aspirando o ar. A fumaça
adensou por um segundo, depois se dissipou rapidamente enquanto Nii-
les fazia as chamas subirem. Bond percebeu que a cabeça de Mosolov
era puxada para trás. Uma mão lhe segurava os cabelos, enquanto outra
encostava uma faca de rena em sua garganta. O fogo aumentou o clarão
no interior da tenda e o rosto maligno de Aslu tornou-se visível por trás
do ombro de Kolya.
— Desculpe, James. — Paula acabara de entrar na tenda, passando
pela aba de couro, e empunhava uma pesada automática. — Não quis
lhe contar, mas meus homens viram Kolya chegar aqui há cerca de duas
horas. Você foi uma isca.
— Eu não me importaria se me contasse. — Bond parecia amargo.
205
— Estou acostumado a ser usado como uma ovelha amarrada.
— Mais uma vez desculpe, James. — Paula adiantou-se pela kota.
— Tínhamos outros problemas. O camarada Mosolov trouxe alguns com-
panheiros. Seis deles. Aslu e Niiles cuidaram de todos, depois que viram
Kolya seguramente refugiado aqui dentro. É por isso que sou uma mulher
livre e não uma prisioneira da KGB. . .
— Há muitos mais. . . — começou Mosolov, mas logo mudou de
idéia e se calou.
— Tome cuidado, Kolya — disse Paula, jovialmente. — A faca de
Aslu contra a sua garganta é afiada como uma guilhotina. Ele pode cortar
sua cabeça com um só golpe.
Ela virou-se para Niiles e disse-lhe algumas palavras rapidamente.
Um sorriso estampou-se no rosto grande do lapão, a expressão parecen-
do sinistra ao clarão bruxuleante da fogueira. Levantando a mão quei-
mada com extremo cuidado, aproximou-se de Mosolov, recuperou sua
metralhadora, tirou a automática e começou a revistar o russo.
— Eles são como uma dupla de garotos — comentou Paula. — Dis-
se-lhes que o despissem, levassem para o bosque e o amarrassem numa
árvore.
— Não deveríamos mantê-lo conosco até o último momento? —
sugeriu Bond. — Você disse que ele trouxe homens. . .
— Já cuidamos de todos.
— Pode haver mais. Ele programou um ataque aéreo ao amanhe-
cer. Já vi Kolya em ação e não me agradaria perdê-lo de vista.
Paula pensou por um instante, acabou cedendo, deu novas ordens
aos lapões. Kolya manteve-se em silêncio, quase soturno, enquanto lhe
amarravam as mãos e os pés, punham uma mordaça em sua boca e o
empurravam para um canto da kota.
Paula acenou com a cabeça para Bond, orientando-o para a saída.
Lá fora, disse em voz baixa:
— Você tem toda razão, é claro, James. Alguns homens de Kolya
ainda podem estar por perto. É melhor mantê-lo aqui. Só estaremos real-
mente seguros quando estivermos de volta à Finlândia, mas. . .
— Mas, como eu, você quer ver o que acontece ao Palácio de Gelo
— arrematou Bond, sorrindo.
— Isso mesmo. Depois que tudo acabar, acho que podemos soltá-
lo e deixar que seus amigos o encontrem. . . a menos que você queira

206
levar a cabeça dele para Londres.
Bond comentou que seria um estorvo levarem Kolya. E ofereceu
seu veredicto final:
— É melhor nos livrarmos dele pouco antes de partirmos.
Até lá, tinham muito o que fazer, como transmitir a mensagem de
Paula para Helsinki e a de Bond para M. Na kota do rádio, Bond começou
a apalpar os bolsos.
— É isso o que está procurando? — indagou Paula, mostrando a
cigarreira e o isqueiro de ouro.
— Você pensa em tudo.
— Talvez eu tenha de provar isso depois.
Mesmo com a presença dos lapões na kota, Paula Vacker inclinou-
se e beijou Bond suavemente. . . e depois outra vez, com mais intensida-
de.
Havia na kota um potente transmissor de ondas curtas, com equi-
pamentos para o código morse e linguagem clara. Havia também um arte-
fato de transmissão rápida, permitindo que uma mensagem fosse grava-
da e depois transmitida numa fração de segundo, podendo ser decifrada
no receptor. Tais mensagens apareciam, muitas vezes, como um bip de
estática nos fones de ouvintes que controlavam as transmissões de sinais.
Bond observou por alguns minutos, enquanto Paula transmitia a
mensagem para Helsinki. Não restava a menor dúvida de que Paula era
extremamente profissional. Ela trabalhava mesmo para a SUPO, algo que
ele deveria ter imaginado anos antes, considerando-se a profundidade do
relacionamento. Ele já perguntara o nome de guerra de Paula e ficara de-
liciado ao saber que, para a operação contra Von Glöda, ela era conhecida
como Vuobma, o termo lapão designante do curral em que as renas são
mantidas para a procriação.
Com todo o seu equipamento — à exceção da Heckler & Koch P7
— perdido ou no Saab, ainda estacionado no Hotel Revontuli, Bond não
tinha qualquer método para codificar sua mensagem. Enquanto Paula
operava o transmissor, um dos lapões que passara a maior parte do tem-
po na kota do rádio permaneceu ao seu lado. O outro foi despachado para
vigiar a casamata e a pista de pouso.
Finalmente, depois de algumas tentativas frustradas, Bond compôs
uma mensagem apropriada, que dizia o seguinte:

207
VIA QG CHETENHAM PARA M PT QUEBRA-GELO ROMPIDA MAS
OBJETIVO DEVE SER ALCANÇADO AMANHECER HOJE PT VOLTANDO MAIS
DEPRESSA POSSÍVEL PT MAIS URGENTE REPITO MAIS URGENTE TIRE SUA
MELHOR GARRAFA ADEGA PT OPERO ATRAVÉS VUOBMA FINAL 007

O 007 provocaria alguma contrariedade, mas não havia como evi-


tar. Suas instruções para a transferência do prisioneiro eram óbvias. Tal-
vez não fosse o melhor, mas se algum posto de escuta do NSAA captasse
a mensagem não teria grande importância, pois talvez já soubessem onde
se encontrava o prisioneiro. Portanto, se interceptada, a mensagem só
alertaria o NSAA para o fato de o prisioneiro ser transferido de prisão. Às
pressas e sem os acessórios indispensáveis, era o melhor que Bond podia
fazer.
Depois de concluir a transmissão de sua mensagem, Paula apanhou
o papel de Bond, acrescentou sua codificação para garantir a recepção no
QG em Cheltenham, através do Departamento de Comunicações de seu
próprio Serviço, gravou numa fita e em seguida despachou pelo sistema
de transmissão rápida.
Tudo concluído, eles debateram a questão sobre a melhor maneira
— sugerida por Bond — de manterem a casamata sob constante vigilân-
cia. O ataque aéreo ao amanhecer era a maior preocupação; depois disso,
seria preciso escapar o mais depressa possível, abandonando Kolya Mo-
solov e cruzando a fronteira, sem correr riscos.
— Pode encontrar o caminho de volta? — perguntou a Paula.
— De olhos fechados. Eu lhe darei todas as informações mais tarde,
mas já posso lhe adiantar que não há qualquer problema quanto a isso.
Só que sairemos daqui, mas efetuaremos a travessia depois de escurecer.
Por intermédio de Paula, Bond deu ordens para que a kota do rá-
dio fosse desmontada e colocada nas grandes motonetas de neve que os
lapões haviam escondido ali por perto. Organizou também períodos de
descanso; um dos lapões foi instruído para acordá-los com antecedência
suficiente para desmontarem a outra kota antes do ataque aéreo.
— Mosolov é um estorvo, mas teremos de mantê-lo por tanto tem-
po quanto possível — declarou ele.
Paula deu de ombros e murmurou:
— Deixe tudo com os meus lapões. Eles saberão cuidar de Kolya.
Mas Bond não queria que o russo fosse morto, a não ser como um

208
último recurso. Todas as providências foram acertadas, as ordens emiti-
das.
Enquanto a kota do rádio era desmontada, eles passaram ao outro
abrigo. Um uivo assustador foi trazido pelo vento, através das árvores,
prolongado, logo seguido de outro.
— Lobos — informou Paula. — No lado finlandês, as patrulhas de
fronteira tiveram um ano difícil. A maioria encontrou pelo menos dois
lobos por semana e já apareceram três ursos desde o Natal. Este inverno
está terrível. E você não deve acreditar nessas histórias de que os lobos
não são perigosos. Num inverno difícil, quando há escassez de alimento,
eles atacam qualquer coisa. . . homem, mulher ou criança.
Niiles, a mão enfaixada, já alimentara Kolya, encostado no canto da
kota. Anteriormente, Bond advertira a Paula de que não deveriam, sob
hipótese alguma, discutir os planos na presença dele. Ignoraram o russo,
embora houvesse um lapão bem armado por perto, mantendo-se sempre
em vigilância.
O guisado de rena feito por Niiles estava delicioso. Comeram com
satisfação, enquanto o lapão balançava a cabeça e sorria feliz. No pouco
tempo em que estava no posto de observação de Paula, Bond já adquirira
uma profunda admiração por seus duros e animados assistentes lapões.
Enquanto comiam, Paula pegou uma garrafa de vodca e fizeram um brin-
de ao sucesso final, entornando juntos os copos de papel e gritando Kip-
pos, a tradicional saudação finlandesa.
Depois da refeição, Paula acomodou-se com Bond num dos gran-
des sacos de dormir. Mosolov parecia ter cochilado. Não demorou muito
para que o casal, depois de vários abraços ternos, também dormisse. Fo-
ram despertados por Aslu, sacudindo Bond pelo ombro, vigorosamente.
Paula já fora acordada e informada por Aslu que havia alguma atividade
na casamata.
— E ainda falta pelo menos meia hora para o amanhecer — anun-
ciou ela.
— Certo.
Bond assumiu o comando. A kota seria desmontada imediatamen-
te. Um dos lapões ficaria ali, sob a cobertura das árvores, vigiando Moso-
lov, enquanto os outros se concentravam no ponto de observação.
Em menos de cinco minutos, Paula e Bond juntaram-se a Niiles, que
estava entre as rochas e a neve, na crista, esquadrinhando o panorama lá

209
embaixo com um par de óculos noturnos. Atrás deles, os outros lapões de
Paula cuidavam de levantar acampamento, silenciosamente. Bond avis-
tou Kolya sendo empurrado em direção às árvores por Aslu, que o cutuca-
va com uma metralhadora.
Bond ficou espantado com a vista, mesmo na semi-escuridão, que
anunciava o amanhecer em cerca de vinte minutos. Do posto de obser-
vação de Paula, através da pequena clareira entre as árvores e o teto
rochoso da casamata, a vista era inteiramente desimpedida. Tornava-se
evidente agora que a entrada para o Palácio de Gelo fora construída num
paredão rochoso, como um gigantesco degrau, em formato de uma meia-
lua irregular, no centro de uma floresta densa. As árvores haviam sido
habilmente removidas, apenas o suficiente para permitir o mínimo de es-
paço na frente das entradas principais. Outros caminhos, abertos através
de árvores, rocha e gelo, circulavam a casamata, subindo para a área mais
aberta, sobre a elevação rochosa.
Ao sul e mais acima do pico, a floresta era rompida por caminhos
cuidadosamente abertos, através dos quais se podia avistar uma pista lar-
ga, cinzenta, desaparecendo entre as árvores. Não havia qualquer sinal de
avião. Bond presumiu que o jato Mystère-Falcon e os outros dois aviões
de pequeno porte estavam escondidos em hangares de concreto, cons-
truídos na rocha que ajudava a formar o teto da casamata.
Na semi-escuridão e àquela distância, não era possível fazer um
cálculo preciso sobre a extensão da pista. Bond sabia que uma decolagem
entre árvores não deixava muita margem de erro. Mas Von Glöda já de-
monstrara sua capacidade na maioria das coisas; portanto, era improvável
que a pista representasse um perigo maior, no pouso ou na decolagem.
Abaixo deles, o exército particular de Von Glöda estava prestes
a partir. Os refletores encontravam-se acesos sob as árvores, as portas
grandes abertas, diante da rampa que descia para o interior do Palácio de
Gelo. Um jato de luz projetava-se de dentro por cima das árvores. Paula
disse algumas palavras a Niiles e depois virou-se para Bond.
— Ainda não saiu nada. Não apareceram veículos ou aviões. Mas
Niiles diz que há muita atividade de tropas entre as árvores.
— Vamos torcer para que Kolya tenha sido eficiente e os russos os
alcancem a tempo — murmurou Bond.
— Quando eles chegarem, é melhor nos enterrarmos na neve e
fingir que somos rocha — sugeriu Paula. — Acho que as instruções de

210
Kolya foram bastante precisas, mas não gostaríamos que um míssil perdi-
do surgisse aqui por cima.
Mal ela acabara de falar e o som de um zumbido de jato tornou-se
audível, a uma grande distância, como um gemido carregado pelo vento.
Foi nesse instante que o sol despontou a leste, vermelho como sangue.
Eles se entreolharam e Bond levantou as mãos, cruzando os dedos enlu-
vados, num desejo de boa sorte. Mudando um pouco de posição, os três
observadores tentaram afundar o mais possível na neve. Bond estreme-
ceu. Não percebera como estava com frio — os sentidos esquecidos, en-
quanto se concentrava na casamata lá embaixo, cerca de um quilômetro
de distância. Mas logo até esse breve momento de desconforto foi esque-
cido, quando duas explosões pareceram sacudir o ar em torno deles. Ao
longe, na direção nordeste, houve uma sucessão de clarões alaranjados,
de grande intensidade. Uma coluna de fumaça elevou-se acima das árvo-
res.
— Lebre Azul — disse Paula, em voz alta, como se tivesse de gritar
contra o barulho. — Eles. . .
As palavras seguintes foram inteiramente abafadas. As ondas de
choque supersônicas deslocavam-se à frente dos aviões. Um rugido cres-
cente envolveu Paula, Bond e Niiles, anunciando o que aconteceria dali a
um momento, no claro amanhecer.
Os dois primeiros aviões surgiram sobre as árvores, nivelados, pas-
sando à direita do esconderijo do trio, nem disparando nem largando coi-
sa alguma. Passaram pelo ar frio com torvelinhos de vapor em torno das
asas, pois as temperaturas muito abaixo de zero produziam esteiras mes-
mo em tão baixa altitude. Pareciam dardos prateados, flechas de extrema
precisão, caudas altas, as asas viradas, formando uma espécie de delta.
Como se controlados por um só homem, os dois aparelhos viraram-se
para o céu e subiram numa escalada impressionantemente veloz, ruidosa,
até se transformarem em pequenos pontos prateados, afastando-se para
o norte.
— Fencers — murmurou Bond.
— Fencers? — repetiu Paula, sem entender.
— É o apelido da OTAN para esses aparelhos. — Os olhos de Bond
esquadrinhavam o céu, à procura da próxima onda, que desfecharia o
primeiro ataque. — São os Su-19. Muito perigosos. Caças-bombardeiros
de ataque em terra. O poder de fogo deles é terrível, Paula.

211
No fundo da cabeça, Bond quase podia ouvir os detalhes do Fencer
a crepitar, como uma transmissão de computador. Potência: duas turbinas
ou jatos de empuxo de 9.525 kg. Velocidade: Mach 1,25, ao nível do mar;
Mach 2,5 em altitude. Teto: 18 mil metros; subida inicial de 12 mil metros
por minuto. Armamento: um canhão de 23 mm Gsh-23, cano duplo, um
mínimo de seis mísseis, de uma ampla variedade, ar-ar ou ar-terra, tele-
guiados ou não. Raio de combate: oitocentos quilômetros, com todos os
armamentos. Tudo isso somado dava um avião de guerra extremamente
eficaz e letal. Um fato que nem mesmo os mais otimistas peritos da OTAN
podiam negar.
Depois de localizarem o alvo, os dois aparelhos da frente chama-
riam o restante da esquadrilha — ou quem sabe um grupo de esquadri-
lhas — e transmitiria as coordenadas e instruções, provavelmente através
de um pequeno teclado. Os pilotos já estariam informados da ordem de
ataque. O rápido reconhecimento permitiria que se efetuasse uma série
de mergulhos em ângulos de cerca de 45° — talvez de diferentes dire-
ções, os pares de aviões orientados e controlados para se lançarem em
ondas sucessivas, calculadas em frações de segundos. Bond pensou nos
pilotos soviéticos — extremamente eficientes no comando dos Fencers
— concentrando-se em seus equipamentos eletrônicos, velocidade, alti-
tude, tempo, ângulo de mergulho, aprontando as armas, olhando cons-
tantemente para o céu, suando sob os macacões e capacetes.
O primeiro ronco de aproximação veio da esquerda, imediatamen-
te acompanhado por um segundo, que parecia estar diretamente sobre
eles.
— Lá vamos nós!
Bond viu a cabeça de Paula virar enquanto ele levantava os olhos.
Os relâmpagos prateados surgiram do céu, agora azul, à esquerda. Ele
tinha razão. Os Fencers vinham aos pares, os narizes abaixados, no clás-
sico mergulho de ataque a terra. Viram nitidamente os primeiros mísseis
deixarem as asas, chamas brancas longas e depois esteiras alaranjadas,
os dardos mortíferos cortando o céu. Dois mísseis de cada aparelho, to-
dos os quatro atingindo a frente da casamata, penetrando e explodindo.
Flores de fogo ofuscaram os olhos dos três observadores, antes que a
explosão atingisse seus ouvidos.
Enquanto os dois aviões se desviavam para a esquerda e se afasta-
vam, o segundo par desceu da direita de Bond e Paula. Esteiras idênticas,

212
depois as flores de fogo no alvo, em seguida as explosões. Os mísseis pe-
netravam pela rocha, aço e concreto antes de explodirem. Bond obser-
vava, fascinado, tentando identificar os mísseis. Quando o terceiro par
surgiu, da direita, ele pôde acompanhar os mísseis em toda a trajetória.
Teve a impressão de que eram os AS-7, chamados pela OTAN de Kerries,
um tipo com diversas especificações, teleguiados ou não. Dispunham
também de ogivas diferentes, de explosivos comuns a cargas de ação re-
tardada, para penetração em rocha ou blindagem.
Lá embaixo, depois de apenas três ataques — usando uma dúzia de
mísseis Kerries — o Palácio de Gelo parecia prestes a se romper em dois.
O estrondo das explosões ainda ecoava.
Através da inevitável mortalha de fumaça, eles podiam divisar o
terrível clarão vermelho do fogo projetar-se pelas portas abertas, saindo
do estacionamento dos veículos e depósito de armas.
Uma quarta e uma quinta onda de Fencers projetaram-se pelo céu
frio; os mísseis pareciam pairar no ar por alguns instantes, enquanto os
aparelhos desviavam e subiam, zunindo — em seguida os foguetes dispa-
ravam à frente, em linhas retas de fogo, até desaparecerem na fumaça e
chamas, e explodirem poucos segundos depois, com rugidos que pare-
ciam cada vez mais fortes.
De seu observatório panorâmico, o lapão, Paula e Bond não conse-
guiam desviar os olhos daquele espetáculo de destruição. O céu parecia
agora repleto de aviões, um par seguindo-se ao outro, com a precisão
de pilotos veteranos. Os ouvidos deles eram atingidos por sucessivas on-
das de choque supersônicas, seus olhos ofuscados pelos relâmpagos, en-
quanto os foguetes atingiam incessantemente o alvo.
A casamata tornou-se quase invisível, sua presença era indicada
apenas pela coluna de fumaça preta e as línguas vermelhas de fogo que se
elevavam para o céu. Finalmente surgiu um par de Fencers da esquerda,
num ângulo de ataque excepcionalmente baixo. Não dispondo mais de
mísseis, os aparelhos vasculharam a fumaça e o fogo com seus canhões.
Os dois subiram um instante depois, quase que diretamente por
cima da coluna de fumaça. E não demorou muito para que houvesse um
grande estrondo, seguido de um barulho quase vulcânico. A princípio,
Bond pensou que os Fencers tivessem encostado as asas e colidido por
cima do alvo; mas depois a fumaça negra converteu-se numa enorme
bola de fogo, expandindo-se gradativamente, primeiro laranja, depois

213
branca e finalmente um vermelho-sangue. O chão tremeu e puderam
sentir a neve e a terra se deslocarem sob seus corpos, como se ocorresse
subitamente um terremoto, contra todas as leis da natureza.
O calor queimou-lhes os rostos quando a bola de fogo se ergueu
acima deles. Línguas de fogo projetaram-se na direção do lugar em que
estavam, contornaram as árvores. Em seguida a bola de fogo turbilho-
nou, como um redemoinho, enquanto um estrondo colossal os atingia.
Bond estendeu a mão bruscamente, empurrando a cabeça de Paula para
a neve, ao mesmo tempo em que comprimia seu rosto para baixo, pren-
dendo a respiração.
O calor finalmente diminuiu. Os dois aviões haviam desaparecido.
Lá em cima, podiam divisar outros aviões, ganhando altitude e circulando.
Quando Bond olhou para baixo tudo se tornou claro.
Onde antes existira a casamata havia agora apenas uma gigantesca
cratera, cercada de árvores em chamas ou arrancadas. O fogo subia do
fundo da cratera. Podia-se contemplar a cena fantástica de fragmentos de
alvenaria e aço amontoando-se sobre um labirinto de corredores e pare-
des em ruínas. Os escombros pareciam os de um prédio bombardeado e
lançado num abismo.
As explosões e incêndios, causados pela constante penetração dos
mísseis Kerries, acabaram por detonar todos os carregamentos acumu-
lados de munições, bombas, gasolina e outros materiais bélicos, numa
única e gigantesca explosão. O resultado fora a destruição total do Palácio
de Gelo de Von Glöda, apenas sete ou oito minutos depois de desfechado
o ataque.
A fumaça adensava-se e depois se dissipava, havia um e outro jato
de fogo, em meio aos incêndios. Além do estranho crepitar, não havia
qualquer outro som. Apenas o cheiro terrível de devastação subia até o
local onde eles se encontravam, acima do que fora antes uma fortaleza
profunda e aparentemente inexpugnável.
— Kristos — balbuciou Paula. — O que quer que possa acontecer a
Kolya, ele teve sua vingança.
Foi somente quando ela falou que eles compreenderam que sua
audição voltara. Ainda um pouco aturdidos pelo que haviam testemunha-
do, dirigiram-se ao local de acampamento de Paula. Bond seguiu para o
ponto no bosque em que Aslu vigiava Kolya.
Ele percebeu antes dos outros, reagindo prontamente com uma or-

214
dem rápida para que os lapões se espalhassem e se abaixassem. Jogou-se
no chão, puxando também Paula.
— Fique aqui — sussurrou Bond, todos os sentidos agora alerta, a
P7 na mão. — Diga aos seus homens para me darem cobertura, se alguma
coisa acontecer.
Bond se ergueu e correu para a frente, meio agachado, através das
árvores, preparado para qualquer coisa. Aslu parecia ainda mais bizarro
na morte. Pelas marcas na neve, Bond calculou que ele fora liquidado por
quatro homens, usando facas para não fazerem barulho. A garganta do
lapão estava cortada, mas havia outros ferimentos, indicando que esse
fora apenas o ato final de uma luta. Aslu lutara tenazmente, mesmo pego
de surpresa.
Não havia o menor sinal de Kolya Mosolov. Até a pessoa mais ob-
tusa não teria a menor dificuldade em compreender que aquele não era
um lugar dos mais saudáveis para se permanecer. Enquanto voltava para
junto de Paula, Bond especulava se as motonetas estariam intactas e se
Kolya desfecharia o seu contra-ataque imediatamente.
Mais tarde, Paula contaria a Bond que Aslu trabalhava com ela há
muitos anos, fora um dos seus mais leais operadores no lado russo da
fronteira. Agora, no entanto, ela transmitiu a notícia aos outros sem o me-
nor tremor na voz. Olhando-se atentamente, porém, podia-se perceber
como a morte de Aslu a deixara profundamente abalada.
Bond deu ordens, incisivas, rápidas, objetivas. Um dos lapões deve-
ria verificar as motonetas. Se ainda estivessem escondidas e funcionando,
o grupo tentaria uma fuga rápida. O receio maior e mais óbvio era de
que os homens que resgataram Kolya ainda estivessem por perto, prontos
para atacarem.
— Cuide para que seus homens estejam preparados para lutar. . .
abrir caminho a fogo, se for necessário — disse Bond a Paula.
Niiles afastou-se, voltando poucos minutos depois com a informa-
ção de que as motonetas estavam intactas, sem indicação de terem sido
encontradas.
Bond podia compreender agora por que os lapões haviam se mos-
trado um inimigo tão formidável contra o poderio do exército russo, em
1939. Eles se deslocavam entre as árvores com rapidez e astúcia, dando
cobertura uns aos outros, avançando alternadamente, tornando-se às ve-
zes praticamente invisíveis, até mesmo para Bond.

215
Paula estava junto, pois levaria o grupo ao outro lado da fronteira.
Quando Bond alcançou a motoneta, com ela, os três lapões já ligavam
os motores. O rugido das quatro motonetas pareceu sacudir as árvores.
Bond esperava uma chuva de balas sobre eles a qualquer momento.
Paula estava no selim da Yamaha grande — com Bond atrás — em
poucos segundos. Partiram imediatamente, adquirindo velocidade, zigue-
zagueando entre as árvores, seguindo para o sul. Até aquele momento,
nenhum problema.
A viagem durou quase duas horas. Bond, mesmo com o frio e a po-
sição incômoda atrás de Paula, pôde perceber que os três lapões os cer-
cavam, espalhavam-se, avançavam, cobrindo-os contra uma emboscada,
ao longo de todo o percurso. Houve um momento, ao diminuírem a velo-
cidade num trecho particularmente difícil, em que Bond teve a impressão
de ouvir o barulho de outros motores — outras motonetas. De uma coisa
tinha certeza: Kolya Mosolov não deixaria que escapassem impunes para
a Finlândia. Devia estar seguindo-os, de perto, ou aguardando no ponto
em que calculava que Paula tentaria efetuar a travessia para a liberdade.
Bond pensava até na possibilidade de Kolya solicitar outro ataque aéreo.
Finalmente, pararam, entre as árvores, sobre o grande vale aberto
que separa a Rússia da Finlândia, estendendo-se como um rio seco e arti-
ficial de norte para sul.
Bond decidiu que deveriam imediatamente assumir posições de-
fensivas. Ficou com Paula, ao lado da Yamaha, enquanto os três lapões
sumiam entre as árvores, formando um triângulo em torno dos dois. Es-
perariam ali até que estivesse bastante escuro para cruzarem até a Fin-
lândia.
— Acredita que vamos conseguir? — perguntou Bond a Paula, com
um sorriso, testando a coragem e determinação dela. — Eu gostaria de
não acabar tudo passando sobre uma mina.
Paula manteve-se em silêncio por alguns segundos.
— Se prefere ir a pé, sozinho. . . — começou ela, com alguma as-
pereza na voz.
— Tenho toda confiança em você, Paula.
Bond inclinou-se e beijou-a. Ela estava tremendo, mas não era de
frio. James Bond compreendia perfeitamente como ela se sentia. Se Kolya
pretendia agir enquanto eles ainda estavam no lado russo, isso não iria
demorar.

216
Lentamente, a claridade foi diminuindo. Bond sentiu a tensão se
acumular dentro dele. Niiles se acomodara confortavelmente numa for-
quilha no alto de um pinheiro. Bond não podia vê-lo — nem o vira subin-
do —, sabia apenas porque o lapão informara a Paula para onde ia. Por
mais que tentasse, aguçando os olhos, Bond não podia avistar o homem;
o crepúsculo, baixando rapidamente, tornava ainda mais difícil. Subita-
mente, o ‘momento azul’ chegou, o nevoeiro verde-azulado refletido da
neve, alterando a perspectiva.
— Pronta?
Bond virou-se para Paula e viu-a assentir. No instante em que seus
olhos deixaram o pinheiro onde Niiles estava escondido, eles ouviram o
primeiro tiro. Vinha diretamente do pinheiro, o que indicava que o lapão
descobrira os homens de Kolya. O som ainda ecoava pelo ar quando so-
aram os tiros seguintes. Pareciam vir de um semicírculo à frente, dentro
das árvores: tiros isolados, acompanhados pelo matraquear mortífero de
uma metralhadora.
Era impossível avaliar a força do inimigo ou se estava avançando.
Tudo o que Bond sabia era que se travava, à frente, um tiroteio de alguma
intensidade.
Embora o ‘momento azul’ ainda não tivesse se transformado intei-
ramente na escuridão, não havia sentido em continuar a esperar. Paula já
dissera que os lapões estavam preparados para conter todos os homens
enviados por Kolya, enquanto eles tentavam escapar. Era chegado o mo-
mento de testar essa promessa.
— Vamos! — gritou Bond para Paula.
Como uma boa profissional, Paula não hesitou. O motor da Yamaha
disparou, Bond montou atrás. A máquina arrancou em diagonal para ter-
reno aberto e desceu pela encosta gelada na direção do vale, sem árvo-
res, que os levaria à segurança.
O tiroteio era mais intenso. A última coisa que Bond viu, através
da nuvem de neve pulverizada, foi um vulto caindo, dos galhos de um
pinheiro. Não era o momento apropriado para informar a Paula que Niiles
se juntara a seu amigo Aslu.
A escuridão envolveu-os por completo depois de percorrerem
meio quilômetro. O tiroteio ainda soava lá atrás. Os dois últimos lapões
lutavam tenazmente, mas Bond sabia que era apenas uma questão de
tempo. Tudo dependia da força de Kolya Mosolov. Tentaria segui-los em

217
motonetas de alta potência? Ou, como um tático, o russo preferiria lançar
uma chuva de balas sobre o vale?
A resposta chegou quando estavam quase no fundo do vale, com
mais três ou quatro quilômetros de percurso difícil antes de alcançarem
a encosta do outro lado e a segurança das árvores. Acima do barulho do
motor, Bond percebeu um ruído sobre eles. No instante seguinte o ter-
reno foi iluminado por um foguete luminoso, preso num pequeno pára-
quedas, projetando uma luz ofuscante no gelo e na neve compacta.
— É seguro ziguezaguear? — gritou ele no ouvido de Paula, pen-
sando nas minas.
Ela virou a cabeça para trás, gritando:
— Já vamos descobrir!
Paula deu uma guinada na direção e a motoneta deslizou violen-
tamente para o lado, no instante em que Bond ouvia o sinistro crepitar
de balas cortando o ar à esquerda. Paula tornou a dar uma guinada, de-
monstrando uma força física que as pessoas descobrem em momentos
de desespero. A motoneta virava e derrapava, às vezes ziguezagueando,
deslocando-se de lado, andando em frente, em linha reta, acelerada ao
máximo.
O primeiro foguete luminoso se consumia, mas as balas ainda zum-
biam em torno deles. Bond experimentou, de repente, uma estranha mis-
tura de raiva e de frustração. Estavam ambos encolhidos na motoneta,
enquanto as balas luminosas, vermelhas e verdes, passavam junto a eles.
Levou um momento para compreender a causa de sua reação. Seu instin-
to fora o de ficar no lado russo e combater Kolya Mosolov, em vez de fugir.
A cabeça zumbia com o velho ditado: “Aquele que luta e foge, vive para
lutar outro dia.” Mas não lhe era natural correr de uma luta. No fundo,
porém, sabia que era necessário. Paula e ele tinham uma missão a con-
cluir — voltar sãos e salvos — e aquela era a única chance.
As balas ainda passavam por eles, embora o foguete luminoso ti-
vesse se apagado. E logo houve outra explosão, indicando um segundo
foguete luminoso. Desta vez, as armas pararam de disparar. Em vez disso,
eles ouviram o ruído assustador de um trem expresso em alta velocidade;
pelo menos era o que parecia, até que o morteiro caiu, bem atrás e à
esquerda. A explosão foi ensurdecedora e seguiu-se uma segunda é uma
terceira, todas atrás deles.
Paula levava a Yamaha ao limite, ainda usando as manobras de des-

218
vio, mas contando com as retas para desenvolver velocidade. Houve mo-
mentos em que Bond, colado a ela, teve a impressão de que alçariam vôo.
O silvo de morteiros tornou a se manifestar; desta vez à direita e
na frente, três relâmpagos alaranjados, ofuscando-os por completo, na
escuridão, o clarão perdurando nas retinas.
O que mais preocupava Bond era a posição dos morteiros. Primeiro
caíram atrás, agora caíam na frente, o que só podia significar uma coisa:
os homens de Kolya enquadravam o alvo. As possibilidades eram de que
as próximas bombas caíssem pelo menos na mesma linha em que esta-
vam, a menos que Paula conseguisse ultrapassar o alcance. Ela certamen-
te fazia tudo o que podia, acelerando ao máximo, a Yamaha levantando
uma cortina de neve e de gelo.
E através dessa neblina branca, a encosta do outro lado — o acesso
às árvores e à Finlândia — já se tornava visível.
Houve mais um momento terrível, quando ouviram os zunidos e as
explosões das bombas caindo pela última vez. Mas a velocidade máxima
que Paula arrancara da motoneta lhes proporcionara a dianteira de que
precisavam. Houve meia dúzia de explosões desta vez, mas todas muito
atrás. A menos que a motoneta atingisse uma mina — e já houvera muitas
oportunidades para que isso acontecesse —, eles conseguiriam escapar.
Enquanto Paula e Bond faziam a sua tentativa desesperada de al-
cançar a fronteira finlandesa, dois homens emergiram das rochas à es-
querda das ruínas fumegantes do que fora o Palácio de Gelo de Von Glöda.
Não havia ninguém para observá-los no crepúsculo que se adensava.
Desde os horrores do ataque daquela manhã, os homens haviam
trabalhado freneticamente no único e minúsculo fragmento da casamata
que milagrosamente permanecera intacto: um abrigo de aço e concreto,
que alojava um pequeno Cessna 150 Commuter, cinzento, com esquis sob
o trem de aterrissagem triangular. Enquanto a última claridade se dissipa-
va, eles conseguiram finalmente abrir as portas empenadas.
O avião parecia intacto, mas a pista se encontrava esburacada e
coberta de fragmentos. O mais alto dos homens deu algumas instruções
a seu companheiro, em tom amigável. O homem, apesar de ter se esfor-
çado ao máximo antes, dirigiu-se de bom grado para a pista, afastando o
que podia, limpando umas poucas centenas de metros de curso improvi-
sado na frente do Cessna.
O motor do avião pegou, com uma tosse esporádica, depois aquie-

219
tou-se para esquentar, num zumbido agradável.
O outro vulto retornou, subiu para o lado do homem mais alto.
O pequeno avião avançou cautelosamente, como se o piloto testasse a
resistência da pista. O piloto virou-se então para o companheiro, levan-
tando o polegar, no sinal de que estava tudo bem. Abaixou o controle do
flape, para obter o máximo de força de sustentação. Um segundo depois,
ele acelerou, suavemente. O motor alcançou o máximo e o Cessna avan-
çou, sacolejando, adquirindo velocidade, o piloto deslizando de um lado
para outro, a fim de evitar os pontos ruins da pista. Com um solavando,
o Cessna alcançou um trecho curto de gelo reto, pareceu ganhar mais
alguns quilômetros horários de velocidade em solo e começou a roçar
apenas na superfície irregular.
Árvores assomaram à frente, tornando-se mais altas a cada se-
gundo. O piloto sentiu o momento de reação do aparelho, com o peso
se transferindo para as asas. Suavemente, puxou o manche. O nariz do
Cessna elevou-se. O aparelho pareceu hesitar por um segundo, depois
projetou-se à frente, equilibrado a apenas uma curta distância do solo,
mas adquirindo velocidade aerodinâmica a cada segundo. O piloto man-
teve a aceleração máxima, equilibrando um pouco para dar ao aparelho
um pouco mais de peso na cauda. A hélice pegou o ar. O nariz caiu ligei-
ramente, a hélice pegou firme, o pequeno avião encontrou a estabilidade
procurada, o nariz para cima, subindo sempre. Passaram pelas copas dos
pinheiros por uma questão de centímetros.
O conde Konrad Von Glöda sorriu, fixou um curso e levou o Cess-
na ao seu próximo objetivo. Aquele dia fora uma derrota, uma derrota
fragorosa, mas ele ainda não estava liquidado. Havia homens, legiões de
homens, esperando para se colocarem sob o seu comando. Mas, antes,
tinha contas a acertar. Grato, acenou com a cabeça para o rosto grosseiro
de Hans Buchtman, a quem Bond conhecera como ‘Bad’ Brad Tirpitz.
Paula e Bond chegaram ao Hotel Revontuli às duas horas da ma-
drugada. Bond foi direto para o Saab, a fim de enviar uma mensagem
cuidadosamente codificada para M. Quando voltou à recepção, encontou
um bilhete à sua espera. Dizia o seguinte:

Estamos na suíte 5, meu querido James. Por favor, podemos dormir


e esperar até a tarde antes de partirmos para Helsinki? Todo o meu amor,
Paula.

220
P.S. Não estou realmente tão cansada neste momento. Já pedi
champanha e uma boa porção do excelente salmão defumado deste ho-
tel.

Com muita satisfação, Bond recordou as delícias ocultas de Paula e


suas habilidades particulares. Muito animado, dirigiu-se para o elevador

221
222
19

Contas a Acertar
Conversaram quase durante toda a viagem de volta a Helsinki, no
Saab.
— Há muitas coisas de que ainda preciso saber.
Bond, agora revigorado, depois de um banho de chuveiro e vestido
em roupas limpas, entrou no assunto logo depois que saíram de Salla.
— Por exemplo?
Paula encontrava-se no estado a que se costuma designar como
languidez. Envolta em peles, parecendo mais uma mulher do que a coisa
que chamara de “uma trouxa de roupas térmicas”, ela sacudiu os sedosos
cabelos louros e aconchegou a cabeça no ombro de Bond.
— Quando a SUPO desconfiou pela primeira vez de Aarne Tudeer...
ou conde Von Glöda, como ele prefere agora se intitular?
Ela sorriu, parecendo muito satisfeita consigo mesma.
— Foi obra minha. Sabe, James, nunca entendi por que você nunca
descobriu. Sei que a minha cobertura era boa, mas você nem chegou a
desconfiar?
— Fui tolo o bastante para aceitá-la pelo que parecia. — Bond res-
pirou fundo. — Mandei checá-la uma vez. Nada apareceu. É difícil dizer
isso agora, mas houve ocasiões em que estranhei como esbarrávamos um
223
com o outro em lugares distantes, com tanta freqüência.
— Ah. . .
— E você ainda não respondeu à minha pergunta, Paula.
— Sabíamos que ele estava metido em alguma coisa. Toda aquela
história de que fui colega de escola de Anni Tudeer é verdadeira. A mãe
trouxe-a de volta à Finlândia e a conheci nessa ocasião. Mas quando sou-
be, oficialmente, muito depois da SUPO me recrutar, que Anni ingressara
no Mossad, simplesmente não pude acreditar.
— Por quê?
Por um instante, a mente de Bond desviou-se da estrada. Qualquer
menção a Anni Tudeer estava fadada a revolver recordações desagradá-
veis.
— Por que não acreditei que ela era uma agente do Mossad genuí-
na? — Paula não hesitou. — Eu a conhecia muito bem. Ela era a paixão de
Aarne Tudeer. E também o amava profundamente. Eu sabia como só uma
mulher pode saber. Em parte era por algumas coisas que ela disse, em
parte por intuição. Todos sabiam de seu pai, é claro, nunca houve qual-
quer segredo. O segredo de Anni era que sofrera uma lavagem cerebral
aplicada pelo pai. Acho que ele já definira um papel para Anni, mesmo
quando ela era pequena. É quase certo que se manteve em contato per-
manente com a filha, aconselhando-a, instruindo-a. Era o homem apro-
priado para ensinar a Anni como se infiltrar no Mossad.
— O que ela conseguiu muito bem. — Bond olhou para o rosto bo-
nito ao seu lado. — Por que me falou no nome dela, quando a interroguei,
depois da luta a faca no seu apartamento?
Paula suspirou.
— Por que pensa que foi, James? Eu me encontrava numa situação
difícil. Era a única maneira de fazer uma insinuação.
— Está bem. E agora me conte toda a história.
Paula Vacker estava envolvida no caso do NSAA desde o início —
antes mesmo do primeiro incidente em Trípoli. A SUPO, através de infor-
mantes e de observadores, sabia que Tudeer voltara à Finlândia, assumira
o nome de Von Glöda e parecia estar empenhado em alguma coisa além
da fronteira, na Rússia.
— Depois que todas as agências começaram a investigar o Exército
da Ação Nacional Socialista, sugeri que podia ser obra de Tudeer. Por cau-
sa disso, meus superiores deram ordens para que me infiltrasse. Passei a

224
freqüentar os lugares certos, dizer as coisas certas. Deu resultado. Tornei-
me uma saudável ariana nazista.
Não demorara muito para que Von Glöda entrasse em contato. E
Paula explicou:
— Acabei sendo designada para agente de sua equipe em Helsinki.
Em outras palavras, tornei-me uma traidora, com pleno conhecimento
dos meus superiores.
— Que se abstiveram de passar a informação a meu Serviço?
Ainda havia muitas coisas que Bond não entendia.
— Não. A SUPO estava preparando um dossiê. E foi então que se
desencadeou a tempestade no Palácio de Gelo. . . por causa de Lebre
Azul. . . e não havia mais necessidade de qualquer relatório. Os superio-
res de Kolya arquitetaram a Operação Quebra-Gelo e eu deveria estar lá
para a sua proteção. Creio que o seu Serviço foi posto a par de tudo mais
tarde... depois que você já havia partido para o Palácio de Gelo.
Bond refletiu sobre isso por alguns quilômetros. E acabou comen-
tando:
— Acho difícil engolir. . . toda essa história sobre Quebra-Gelo e o
acordo com Kolya.
— É difícil acreditar para quem não esteve lá, para quem não co-
nhecia a insídia de Von Glöda e a mente astuciosa de Kolya Mosolov. — Ela
soltou uma risada alegre. — Ambos eram maníacos, loucos por poder...
embora cada um à sua maneira. Fiz a viagem de Helsinki ao Ártico, indo
à casamata, uma dúzia de vezes. Estava lá, merecendo toda a confiança,
quando a bomba explodiu.
— Lebre Azul?
— Isso mesmo. Tudo aconteceu realmente. Não se pode deixar de
tirar o chapéu a Von Glöda. Ele demonstrou uma frieza incrível. Mas acho
que os soviéticos vigiavam-no mais do que ele imaginava.
— Tenho minhas dúvidas. — Bond entrou numa curva gelada de-
pressa demais, derrapou, pisou no freio com o pé esquerdo, saiu da der-
rapagem acelerando, recuperou o controle do carro numa questão de se-
gundos. — Sabia que um general britânico disse que os russos deveriam
ser premiados com uma medalha de pau por inépcia? Eles são capazes
de fazer as coisas mais estúpidas. Conte-me o que aconteceu com Lebre
Azul.
— Fui plenamente aceita dentro do chamado círculo íntimo do

225
Führer. Ele dificilmente nos deixava esquecer como fora esperto ao su-
bornar aqueles sargentos idiotas de Lebre Azul. Pagava-lhes uma ninharia
pelo equipamento e eles pareciam não se preocupar com a possibilidade
de serem apanhados.
— Mas foram.
— Tem razão. Eu estava presente quando tudo aconteceu. O gordo
suboficial foi correndo à casamata. Como todos os outros, não passava de
um camponês de uniforme. Estava apavorado, mas Von Glöda tratou-o de
maneira extraordinária. Devo admitir que o homem sabia ser excepcio-
nalmente frio em momentos críticos. Mas sem dúvida ele acreditava em
seu destino como o novo Führer. Nada podia sair errado, e cada homem
tinha seu preço. Ouvi-o dizer ao comandante de Lebre Azul que mandas-
se o pessoal do exército chamar o GRU. Sabia que passariam o problema
para a KGB. Por mais estranho que possa parecer, deu certo. Mais depres-
sa do que um piscar de olhos, Kolya Mosolov estava lá.
— E pediu minha cabeça numa bandeja.
Paula exibiu um sorriso sugestivo.
— Não foi bem assim. Kolya nunca teve a intenção de permitir que
Von Glöda escapasse impune. Estava apenas manobrando, dando-lhe cor-
da. Você conhece os russos. O problema de Kolya era a necessidade de
abafar o escândalo de Lebre Azul. Por outro lado, creio que Von Glöda se
imaginava o Demônio a tentar Cristo. E ele chegou a oferecer a Kolya a
realização de seu maior desejo.
— E Kolya disse: J. Bond?
— O sonho louco de Von Glöda era ter poder para controlar o mun-
do. Kolya não pensava tão alto assim. Tudo o que ele queria era abafar
Lebre Azul. . . o que implicava liquidar a operação de Von Glöda. Poderia
resolver tudo sozinho, em dois dias. Mas Von Glöda, sendo o homem que
era, acionou as suas ilusões de grandeza. E acabou contagiando a imagi-
nação de Kolya.
Bond balançou a cabeça.
— Kolya, o que você mais quer no mundo? Kolya pensa: que você
suma, camarada Von Glöda, e que a história de Lebre Azul seja abafada.
Mas, em voz alta, ele diz: James Bond.
— Isso mesmo. A antiga SMERSH. . . Departamento V, como cha-
mam agora. . . queria você. E por isso ele pediu você. — Paula riu. — E
então Von Glöda teve a desfaçatez de fazer um trato, exigindo que Kolya

226
fizesse todo o trabalho. Afinal, foi por intermédio de Kolya que a CIA, o
Mossad e o seu Serviço foram envolvidos. E foi por intermédio de Kolya
que você, James, ganhou um convite especial. Em suma, foi Kolya quem
armou tudo.
— Por instruções de Von Glöda? Não parece muito plausível.
— Não parece, James, até se levar em conta as personalidades en-
volvidas e suas motivações. Como eu disse, Kolya não tinha a menor in-
tenção de deixar Von Glöda escapar. Mas sua sede de poder e ascensão
levou-o a aproveitar toda a organização de Von Glöda para atrair você à
Rússia. Foi preciso muito trabalho, os mapas especialmente impressos, o
substituto de Tirpitz. . .
— Conseguir a designação de Rivke para a equipe? — sugeriu Bond.
— Von Glöda sugeriu que Kolya pedisse por ela, assim como sugeriu
Tirpitz dos americanos. Kolya, é claro, queria você. . . passou horas usan-
do o telefone de Von Glöda, falando com o Centro Moscou. Eles resistiram
a princípio, mas Kolya inventou alguma história. Seus superiores acaba-
ram concordando e fizeram os pedidos formais aos Estados Unidos, Israel
e Inglaterra. Todos ficaram furiosos quando você não pôde se apresentar
imediatamente. O tal de Buchtman chegou primeiro. Ele era um contato
de Von Glöda. Foi enviado para se encontrar com Tirpitz e liquidá-lo. E de-
pois Rivke chegou à Finlândia. Foi um problema. Eu tinha de me manter a
distância durante a maior parte do tempo. Von Glöda designou-me como
elemento de ligação com Kolya, o que era bastante conveniente. A essa
altura, o Centro Moscou já dera liberdade de ação a Kolya, Pensavam que
ele simplesmente estava limpando um ninho de dissidentes na frontei-
ra finlandesa e dando um sumiço em Lebre Azul, usando os americanos,
britânicos e israelenses para bodes expiatórios, caso alguma coisa saísse
errada. Creio que eles estavam convencidos de que o NSAA era apenas
uma pequena célula de fanáticos.
Paula fez uma pausa, pegou um dos cigarros de Bond e depois con-
tinuou:
— Para mim, Rivke foi a parte mais difícil. Não me atrevia a encon-
trá-la e Kolya queria que algumas mensagens fossem transmitidas para
ela em Helsinki. Eu tinha de dar um jeito sem recorrer a uma terceira
pessoa. Todos aguardavam ansiosamente pela oportunidade de pegá-lo.
Rivke entrou em cena quando Von Glöda imaginou um plano para ser
usado em alguma emergência. . .

227
— Que plano?
Ela suspirou.
— O que me deixou ciumenta. Rivke deveria insinuar-se em seu
coração e depois desaparecer, para o caso de Von Glöda precisar usá-la
numa armadilha para você. O suposto atentado naquela encosta precisou
de muita organização. . . e muita coragem da parte de Anni. Mas ela sem-
pre foi uma boa ginasta. . . como você certamente descobriu.
Bond resmungou:
— Acha que Von Glöda tinha alguma idéia de que não lhe seria
permitido escapar?
— Sem dúvida ele desconfiava de Kolya. Por isso, eu atuava como li-
gação com os russos. Von Glöda queria saber de tudo. E depois chegamos
ao ponto em que nosso nobre Führer precisava saber do homem que seu
pessoal capturou na Inglaterra. Você já estava sob sentença de morte. E
o mesmo acontecia com Kolya. O plano de Von Glöda era levar todos os
seus homens para a Noruega.
— Noruega? Era lá o seu novo posto de comando?
— Foi o que me disseram os meus chefes. Mas eles também sabiam
de outro esconderijo de Von Glöda na Finlândia. Calculo que era para lá
que todos estavam seguindo quando houve o ataque aéreo determinado
por Kolya.
Viajaram em silêncio por um longo trecho. Bond repassou mental-
mente os fatos.
— Meu problema é que Von Glöda foi o primeiro inimigo que en-
frentei a distância — comentou ele, finalmente. — A maioria das minhas
missões permitiu-me chegar perto, conhecer o homem com quem lidava.
Von Glöda nunca me permitiu chegar perto.
— Era a força dele. Não deixava que ninguém conquistasse sua
confiança total. . . nem mesmo a mulher com quem circulava. Acho que
Anni... Rivke... foi a única pessoa que realmente o conhecia.
— E você não o conhecia bem?
A voz de Bond estava cheia de suspeita.
— Como assim?
O tom de Paula era frio, como se estivesse ofendida.
— Há ocasiões em que não confio totalmente em você, Paula.
Ela respirou fundo.
— Depois de tudo o que fiz?

228
— Mesmo depois de tudo o que fez. Por exemplo: quem eram
aqueles dois sujeitos no seu apartamento, os homens das facas?
— Eu estava imaginando quando você voltaria a falar deles. — Pau-
la se afastara, virando o corpo em sua direção. — Acha que fui eu quem
armou a emboscada?
— Passou-me pela cabeça.
Paula mordeu o lábio.
— Não, meu caro James. — Ela suspirou. — Não, não fui eu. Mas
tive de entregá-lo. Como posso explicar? Como eu disse, nem Von Glöda
nem Kolya jogavam abertamente. Todos estavam numa posição de não-
vencer, como dizem. Eu trabalhava sob as instruções da SUPO e também
sob as ordens de Von Glöda. A situação tornou-se quase impossível a par-
tir do momento em que me tornei o contato de Kolya. Ele estava sempre
chegando e saindo de Helsinki. Você apareceu de repente e meus chefes
tinham de saber. Eu não podia deixar de entregá-lo, James. Sei agora que
não deveria ter falado coisa alguma.
— Está tentando dizer que a SUPO ordenou que informasse a Kolya.
É isso?
Ela assentiu.
— Kolya imaginou que poderia capturá-lo em Helsinki e depois
despachá-lo para o Ártico e para a Rússia, por conta própria. Sinto muito.
— E o que me diz dos limpa-neves?
— Que limpa-neves?
Paula mudou. Poucos momentos antes estivera na defensiva, de-
pois arrependida. Agora estava visivelmente surpresa. Bond relatou o in-
cidente no caminho de Helsinki para Salla. Ela pensou por um momento.
— Meu palpite é Kolya outra vez. Sei que o aeroporto e os hotéis
estavam vigiados por seus próprios homens. . . em Helsinki, é claro. Sabe-
riam para onde você estava seguindo. Acho que Kolya teria muita dificul-
dade de empacotá-lo e despachar para a Rússia sem recorrer às fórmulas
de Von Glöda.
Ao final da viagem, Bond estava virtualmente convencido pelas
explicações de Paula. Como ele dissera, nunca tivera tempo de chegar
perto do autocrático Von Glöda; e compreendia, pela experiência vivida,
o estranho choque de poder entre dois homens determinados, como Von
Glöda e Kolya.
— Seu apartamento ou o meu? — perguntou Bond, ao chegarem

229
aos subúrbios de Helsinki.
Ele estava quase satisfeito com as respostas de Paula, é verdade,
mas uma pequena dúvida ainda persistia no fundo de sua mente, pois
nada na Operação Quebra-Gelo fora o que parecia. Estava na hora de jo-
gar o seu trunfo.
— Não podemos ir para o meu apartamento. — Paula tossiu ligeira-
mente. — Está na maior confusão. Foi arrombado, James. . . de verdade.
Nem tive tempo de comunicar à polícia.
Bond levou o carro para o acostamento da estrada e parou.
— Sei disso. — Inclinou-se para o porta-luvas, tirou a Cruz de Ca-
valeiro e o Emblema de Campanha de Von Glöda, largando no colo de
Paula. — Encontrei essas coisas sobre a cômoda quando estive lá, e vi o
apartamento vasculhado, antes de seguir para o encontro no Ártico. Por
um segundo, Paula ficou furiosa.
— Então por que diabo não usou? Poderia ter mostrado a Anni.
Bond afagou-ihe a mão.
— E mostrei. Ela identificou. O que me deixou preocupado, muito
desconfiado. De você. Onde foi que conseguiu essas coisas?
— Com Von Glöda, é claro. Ele queria que fossem limpas. O ho-
mem era obsessivamente orgulhoso de suas condecorações, da mesma
forma que era obsessivo com o próprio destino. — Um grunhido de repul-
sa subiu-lhe pela garganta. — Ora, eu deveria ter imaginado que aquela
mulher daria um jeito de virá-lo contra mim.
Bond pegou as medalhas e tornou a guardar no porta-luvas.
— Muito bem, você passa — disse ele, aliviado. — Vamos nos dar
um presente. Ocuparemos a suíte nupcial no Intercontinental. Gosta da
idéia?
— E você gosta disso?
Paula apertou-lhe a mão, passando um dedo pela sua palma. Não
tiveram qualquer dificuldade em encontrar um quarto e o serviço perma-
nente do Intercontinental proporcionou comida e bebida com um mínimo
de espera. A viagem, as explicações e o longo relacionamento pareciam
ter removido todas as barreiras.
— Vou tomar uma chuveirada — anunciou Paula. — E depois pode-
remos nos divertir. Não posso falar por você, mas acho que não há neces-
sidade de nossos respectivos Serviços saberem que voltamos a Helsinki,
pelo menos durante as próximas 24 horas.

230
— Acha que não devemos chamar? Sempre podemos dizer que
ainda estamos em ação.
Paula pensou por um momento.
— Talvez eu ligue depois para o meu serviço de recados. Se meu
controlador tem alguma coisa urgente, deixa um número lá. E você?
— Tome a sua chuveirada e depois farei a mesma coisa. Sincera-
mente, creio que M não esperaria qualquer coisa de mim antes de ama-
nhã de manhã.
Paula presenteou-o com um sorriso deslumbrante e dirigiu-se para
o banheiro, levando uma pequena valise.

231
232
20

Destino
James Bond sonhou. Era um sonho freqüente: o sol e uma praia,
que ele reconhecia muito bem como o trecho diante de Royale-les-Eaux.
O passeio de oito quilômetros à beira-mar era como outrora, não a coisa
espalhafatosa e vulgar que se tornara posteriormente. No sonho de Bond,
a vida e o tempo estavam parados, aquele era o lugar que se lembrava
da infância e juventude. Uma banda tocava. Os canteiros tricolores de
sálvias, alissos e lobélias desabrochavam numa profusão de cores. Estava
quente e ele sentia-se feliz.
O sonho muitas vezes lhe ocorria quando estava feliz; e aquela noi-
te certamente lhe proporcionara felicidade. Juntos, Bond e Paula haviam
escapado das garras de Kolya Mosolov, seguindo para Helsinki e ali. . .ali
as coisas haviam sido melhores do que esperavam.
Paula saiu do banheiro usando apenas uma camisola transparente,
o corpo radiante, uma fragrância sedutora que Bond jamais conhecera.
Antes de tomar seu banho, Bond fizera uma ligação para Londres,
um número especial reservado para as mensagens gravadas de M. Se
houvesse alguma novidade — em resposta à mensagem em código envia-
da do Saab, em Salla — Bond saberia agora. Ele ouvira a voz de M, numa
mensagem breve, deliberadamente ambígua, quase de congratulações a
233
Bond e também confirmando que Paula trabalhava para a SUPO. Não po-
dia haver mais surpresas, pensara Bond.
Paula tomou a iniciativa, fazendo amor como uma espécie de hors-
d’oeuvre; depois de um breve descanso, em que ela falou e riu do quase
encontro deles com a desgraça, Bond recomeçou por onde ela parara.
Agora havia paz, segurança e calor. Calor, exceto por um ponto frio
em seu pescoço, atrás da orelha. Ainda meio adormecido, Bond passou a
mão pelo ponto frio. E a mão entrou em contato com algo duro, vagamen-
te desagradável. Os olhos se abriram bruscamente e ele sentiu o objeto
frio ser comprimido contra seu pescoço. Royale-les-Eaux fora substituída
por uma realidade hostil.
— Sente-se, quietinho, Mr. Bond.
Bond virou a cabeça para ver Kolya Mosolov afastar-se. Uma pesa-
da Stetchkin, ainda mais volumosa com o silenciador ajustado ao cano,
apontava para a garganta de Bond, fora de seu alcance.
— Mas como. . .?
Bond parou de falar, pensando em Paula. Virou-se para encontrá-la
profundamente adormecida a seu lado. Mosolov riu, uma risada quase
insólita; mas Kolya era um homem de muitas vozes.
— Não se preocupe com Paula — disse ele, confiante. — Os dois
deviam estar muito cansados. Cuidei da fechadura, entrei, apliquei uma
pequena injeção e circulei sem perturbar nenhum dos dois.
Bond praguejou silenciosamente. Não era próprio dele: baixar a
guarda e permitir que o sono o dominasse por completo. Fizera todo o
resto. Lembrava de ter até efetuado uma varredura no quarto em busca
de equipamentos eletrônicos, no momento em que chegaram.
— Que espécie de injeção? — indagou Bond, tentando não parecer
muito preocupado.
— Ela dormirá profundamente por seis ou sete horas. Tempo sufi-
ciente para fazermos o que é necessário.
— O quê?
Mosolov gesticulou com a Stetchkin.
— Vista-se. Há um trabalho que precisa ser concluído. Depois disso,
faremos uma pequena viagem. Tenho até um passaporte novinho para
você. . . só para ter certeza. Deixamos Helsinki de carro, depois pegamos
um helicóptero e finalmente um jato, à nossa espera. Já estaremos longe
quando Paula despertar para alertar alguém.

234
Bond deu de ombros. Havia pouco que pudesse fazer, embora a
mão se deslocasse discretamente para o travesseiro, sob o qual colocara
a P7, antes de adormecer. Kolya Mosolov enfiou a mão por dentro do
blusão, que usava aberto, puxando-o para o lado, a fim de mostrar a P7
metida em sua cintura.
— Achei que estaria mais segura. . . comigo.
Bond pôs os pés no chão. Olhou para o russo.
— Você não desiste facilmente, não é mesmo, Mosolov?
— Meu futuro depende de levá-lo.
— Morto ou vivo, ao que parece — comentou Bond, levantando-se.
— De preferência vivo. O negócio na fronteira deixou-me muito
preocupado por causa disso. Mas agora posso concluir o que foi come-
çado.
— Não estou entendendo. — Bond dirigiu-se para a cadeira onde
deixara as roupas. — Seu pessoal poderia ter me pegado em qualquer
momento dos últimos anos. Por que agora?
— Trate apenas de se vestir.
Bond começou a fazê-lo, mas continuou a falar.
— Diga-me por quê, Kolya. Por que logo agora?
— Porque é o momento certo. Há anos que Moscou o queria. Hou-
ve um momento em que o queriam morto. Agora, as coisas mudaram.
Fico contente que você tenha sobrevivido. Reconheço que foi uma péssi-
ma decisão permitir que nossos homens atirassem em você. . . mas foi no
calor do momento.
Bond resmungou, baixo. Mosolov continuou: — Agora, como eu
disse, as coisas mudaram. Desejamos apenas conferir determinadas in-
formações. Primeiro, faremos um interrogatório químico. E depois tere-
mos um bom trunfo para uma troca. Vocês estão com dois homens que
fizeram um excelente trabalho no quartel-general de comunicações em
Cheltenham. Tenho certeza de que haverá uma troca no momento opor-
tuno.
— É por isso que Moscou entrou no jogo desde o início, envolven-
do-se com Von Glöda e seus funcionários?
— Em parte, sim. — Kolya Mosolov brandiu a pistola. — Vamos
logo. Há outro trabalho a ser feito antes de deixarmos Helsinki.
Bond meteu a calça de esquiar.
— Em parte, Kolya? Em parte? Uma operação um tanto dispendio-

235
sa, não é mesmo? Apenas para me pegar. . . e você quase me matou.
— Acompanhar os planos desvairados de Von Glöda ajudou a nos
livrarmos de outros pequenos embaraços.
— Como Lebre Azul?
— Lebre Azul e outras coisas. A morte de Von Glöda terá de ser o
remate.
— Como assim?
Bond levantou os olhos bruscamente. Kolya Mosolov assentiu.
— É de fato espantoso. Nossos homens fizeram uma demonstração
impressionante, não é mesmo? Não dava para imaginar que alguém pu-
desse sobreviver. Mas Von Glöda conseguiu escapar.
Bond achava difícil acreditar. M não sabia disso, com toda certeza.
Bond perguntou onde o pretenso líder do Quarto Reich se escondera.
— Ele está aqui. — Mosolov falou como se a informação fosse ób-
via. — Em Helsinki. Reagrupando, como diria. Reorganizando. Pronto para
começar tudo de novo, a menos que seja detido. E tenho de detê-lo. Seria
no mínimo embaraçoso, se Von Glöda pudesse continuar suas operações.
Bond já estava quase que inteiramente vestido.
— Está me levando. . . de volta à Rússia. Pretende também cuidar
pessoalmente de Von Glöda?
Ele ajustou a gola rulê da suéter.
— Claro. Você é parte do meu plano. Devo também me livrar do
amigo Von Glöda, Aarne Tudeer ou como quer que ele prefira se chamar
na sepultura. O momento é oportuno. . .
— Que horas são? — perguntou Bond.
Kolya, sempre o profissional, nem precisou olhar para o relógio.
— Cerca de 7:45 horas da manhã. Como eu estava dizendo, o mo-
mento é oportuno. Von Glöda tem alguns dos seus homens aqui, em Hel-
sinki. Viaja para Londres, via Paris, esta manhã. Aposto que o louco imagi-
na que pode promover alguma manifestação em Londres. E creio que há
também o problema do agente do NSAA aprisionado pelo seu pessoal. E
sem dúvida ele quer se vingar de você, Bond. Portanto, considero que o
melhor é oferecê-lo como um alvo. Ele não será capaz de resistir.
— Tem razão.
Bond sentira uma profunda depressão ao pensar que Von Glöda
ainda estava vivo. Agora, seria usado como isca. . . e não seria pela pri-
meira vez, desde que aquela missão começara. Todo o espírito de Bond

236
se revoltava contra a perspectiva. Tinha de haver uma saída. Se alguém ia
pegar Von Glöda, seria Bond.
— O vôo de Von Glöda parte às nove horas — acrescentou Moso-
lov. — Seria um atrativo irresistível se James Bond estivesse sentado em
seu próprio carro, diante do aeroporto de Vantaa. Von Glöda certamente
viria do terminal. Ele não saberá que tenho meios. . . talvez um tanto anti-
quados. . . de providenciar para que você fique quietinho dentro do carro:
algemas, outra pequena injeção, um pouco diferente da que apliquei em
Paula.
Acenou com a cabeça para a cama, onde Paula ainda estava pro-
fundamente adormecida.
— Você está louco. — Embora dissesse isso, Bond sabia que ele era
de fato a única pessoa cuja presença poderia atrair Von Glöda. — Como
conseguiria?
O sorriso de Mosolov era malicioso.
— Seu carro, Mr. Bond, não está equipado com um telefone um
tanto especial?
— Não são muitas as pessoas que sabem disso.
Bond estava verdadeiramente consternado por Kolya saber do tele-
fone. E perguntava-se o que mais o russo saberia.
— Pois eu sei e tenho os detalhes. A unidade-base para o telefone
do carro precisa passar por um aparelho comum, ligando o sistema ao
do país em que esteja operando. A unidade-base, por exemplo, pode ser
ajustada ao telefone deste carro. Vamos ligar a sua unidade-base aqui e
seguir para o aeroporto. Quando chegarmos lá, você estará devidamente
algemado e incapaz de se mexer. Mas, pouco antes de chegarmos, usarei
o telefone do carro para chamar o aeroporto e pedir que localizem Von
Glöda. Ele receberá uma mensagem. . . de que Mr. James Bond está lá
fora, no estacionamento, sozinho e desarmado. Creio que eu poderia até
dar o recado em nome de Paula. Ela não se importaria. E quando Von
Glöda sair, eu estarei por perto. Kolya fez uma pausa, afagando a Ste-
tchkin.
— Com uma arma como esta, as pessoas pensarão que foi um ata-
que cardíaco. . . pelo menos inicialmente. Já estaremos longe quando des-
cobrirem a verdade. Tenho outro carro à espera. Tudo será muito rápido.
— Não há a menor chance. Você nunca conseguirá escapar.
Mas Bond sabia que havia todas as possibilidades de Mosolov con-

237
seguir escapar. Era o tipo do plano frio e audacioso que muitas vezes dá
certo. Mas Bond ainda tinha uma última esperança. Mosolov cometera
um erro, pensando que o telefone do Saab exigia uma unidade-base ajus-
tada ao sistema telefônico. Aquela seria uma chamada local e o equipa-
mento eletrônico no carro tinha um raio de operação de quarenta quilô-
metros. Um erro assim era justamente do que Bond precisava.
— Dê-me as chaves do carro — disse Kolya, levantando a Stetchkin.
— Iremos juntos. Você pode me dizer como fazer com a unidade-base.
Bond pareceu pensar por um longo momento. Mosolov insistiu:
— Você não tem alternativa.
— Tem razão — disse Bond finalmente. — Não tenho alternativa.
Não me agrada ir para Moscou com você, Mosolov, mas também estou
ansioso em tirar Von Glöda de circulação. Não é fácil usar a unidade-base.
Há diversas rotinas que devo processar para chegar ao esconderijo. Mas
você estará me cobrindo durante todo o tempo. Estou pronto. Por que
não cuidamos de tudo logo de uma vez?
Kolya concordou, olhou para o vulto imóvel de Paula, depois enfiou
a Stetchkin no bolso. Gesticulou para que Bond pegasse as chaves do car-
ro e a do quarto, depois seguisse na sua frente.
Atravessando o corredor, Mosolov manteve-se três passos atrás de
Bond. No elevador, permaneceu num canto. . . o mais distante possível.
Não restava a menor dúvida de que o russo era bem treinado. Um movi-
mento de Bond e a Stetchkin entraria em ação, silenciosamente, deixando
007 com um buraco no corpo. Foram para o estacionamento e se aproxi-
maram do Saab. Bond virou-se cerca de três passos do carro.
— Preciso tirar as chaves do bolso. Certo?
Kolya não disse nada, apenas sacudiu a cabeça, mexendo a pistola
dentro do bolso, a fim de lembrar Bond de sua presença. Bond tirou as
chaves do bolso, os olhos corriam de um lado para outro. Não havia mais
ninguém no estacionamento, absolutamente ninguém à vista. O gelo fa-
zia barulho sob seus pés, sentia o suor escorrer das axilas, debaixo das
roupas quentes.
Chegaram ao carro. Bond destrancou a porta do motorista, depois
virou-se para Kolya.
— Tenho de ligar a ignição. . . não acionar o motor, apenas ligar a
parte elétrica, a fim de operar as trancas.
Kolya tornou a concordar e Bond inclinou-se no banco do motoris-

238
ta, inseriu a chave na ignição. Disse a Kolya que tinha de sentar ao volante
para abrir o compartimento do telefone. Kolya concordou mais uma vez.
Bond sentiu a pistola automática apontando através do blusão do russo
e compreendeu que a surpresa e a rapidez eram agora as suas únicas
aliadas.
Bond apertou o botão preto no painel, a mão esquerda baixando
para a posição apropriada. Houve um pequeno zunido de gás, enquanto
o sistema hidráulico abria o compartimento secreto. Um segundo depois
o enorme Ruger Redhawk caiu em sua mão esquerda.
Treinado a usar armas com as duas mãos, estimulado pela neces-
sidade de rapidez, o corpo de Bond virou-se apenas ligeiramente, o re-
lâmpago da cápsula Magnum queimando sua calça e blusão, ao disparar
quase antes de o revólver deixar o seu esconderijo.
Kolya Mosolov não soube de nada. Num instante estava pronto
para puxar o gatilho da Stetchkin com o silenciador, escondido dentro do
blusão, no momento seguinte um clarão ofuscante, uma dor súbita e de-
pois a escuridão, o fim.
A bala levantou o russo, acertando-o logo abaixo da garganta, qua-
se arrancando a cabeça do corpo. Os calcanhares rasparam o gelo quando
ele tombou para trás, virando ao bater no chão, deslizando por um metro
e meio depois de cair.
Mas Bond não viu nada disso. No mesmo instante em que dispa-
rou, a mão direita bateu a porta do carro. O Redhawk voltou ao compar-
timento, a chave na ignição foi virada. O Saab entrou em funcionamento.
A mão de Bond moveu-se com calma e precisão, apertando o botão para
fechar o compartimento do Redhawk. Engrenou a mudança, prendeu o
cinto de segurança, soltou o freio e partiu suavemente, enquanto os de-
dos ajustavam os controles de ar quente e o aquecedor na janela traseira.
Ao se afastar, Bond ainda teve um vislumbre do que restara do russo: um
amontoado no gelo, uma poça vermelha a se expandir. Entrou com o car-
ro na Mannerheimintie, derrapando, metendo-se no tráfego escasso que
seguia na direção do aeroporto de Vantaa.
Depois de se ajustar ao tráfego, Bond estendeu a mão e ativou o
radiotelefone, que fora o engano fatal de Kolya Mosolov. Era uma ligação
local simples, não precisava da unidade-base, pois o agente residente,
sob cujo controle Bond oficialmente operava, devia se encontrar em um
ponto qualquer a menos de 15 quilômetros do Saab, avançando a toda

239
velocidade para o aeroporto.
Bond apertou o número, pelo tato, sem olhar, pois seus olhos ago-
ra tinham de estar em toda parte. A campainha tocou sem que ninguém
atendesse. Sob certos aspectos, isso deixou Bond satisfeito. O residente
estava longe do seu telefone, mas pelo menos Bond tomara as providên-
cias oficiais.
Guiou com cuidado, respeitando os limites de velocidade, pois a po-
lícia finlandesa é extremamente vigilante aos que andam mais depressa
do que o permitido. O relógio no painel, ajustado ao horário de Helsinki,
dizia que passavam cinco minutos das oito horas. Ele chegaria a Vantaa
por volta das oito e meia — talvez bem a tempo de alcançar Von Glöda.
O aeroporto estava apinhado, como qualquer outro terminal in-
ternacional, no momento em que Bond entrou. Estacionara o Saab num
lugar facilmente acessível. Levava agora o pesado Ruger Redhawk dentro
do blusão, o longo cano enfiado pela cintura da calça e virado de lado. As
escolas de treinamento ensinavam que nunca se deve imitar os filmes e
meter uma arma por dentro da calça apontando para a perna; sempre
se deve virar o cano para o lado. Se houvesse um acidente, o cano apon-
tado para baixo implicaria em perder o pé, na melhor das hipóteses. Na
pior, um homem poderia perder o que um instrutor insistia em chamar
de ‘equipamento nupcial’ — uma expressão que Bond sempre achara ex-
tremamente vulgar. Vire a arma para o lado, pela coronha; pode-se ficar
queimado, mas o infeliz ao lado é que ficará com a bala.
O relógio no salão das partidas internacionais indicava que falta-
vam dois minutos para as oito e meia.
Avançando depressa, abrindo caminho através da multidão, Bond
chegou ao balcão de informações e perguntou pelo vôo das nove horas
para Paris. A moça mal consultou seus registros. Era o vôo AY 873, via Bru-
xelas. Não seria chamado pelo menos por mais 15 minutos, já que havia
um atraso no abastecimento.
Bond concluiu que não havia necessidade, por enquanto, de lançar
um chamado por Von Glöda. Se os companheiros do homem estivessem
por perto para vê-lo partir, haveria ainda uma possibilidade de acuá-lo
naquele lado do terminal. Caso contrário, Bond teria de blefar para atraí-
lo do outro lado.
Mantendo-se por trás de todas as coberturas possíveis, Bond foi
passando pelos quiosques, procurando colocar-se perto da passagem na

240
extremidade esquerda do complexo que levava ao controle de passapor-
tes e aos salões do setor de embarque.
No outro lado dessa área, com janelas altas, havia um café, separa-
do do complexo principal por uma barreira baixa, de treliça, coberta por
flores artificiais. A esquerda, quase junto ao lugar em que Bond agora se
encontrava, ficava a seção de controle de passaportes, todas as pequenas
cabinas ocupadas por funcionários.
Bond começou a esquadrinhar os rostos na multidão, procurando
por Von Glöda. Passageiros de partida atravessavam a todo instante o
controle de passaportes. O café estava repleto de viajantes, a maioria sen-
tada em mesas baixas e redondas.
Inesperadamente, quase que pelo canto do olho, Bond avistou sua
presa: Von Glöda levantava-se de uma das mesas no café.
O pretenso herdeiro do império desmoronado de Adolf Hitler pare-
cia ser tão bem organizado em Helsinki quanto o fora no Palácio de Gelo.
As roupas eram impecáveis. Até mesmo no sobretudo cinza o homem
exibia um porte militar, as costas empertigadas, um porte que o distinguia
dos mortais comuns. Não se poderia imaginar, pensou Bond por um ins-
tante, que Tudeer considerasse que o mundo era seu destino.
Ele estava cercado por seis homens, todos elegantemente vestidos
— e todos parecendo ex-militares. Seriam mercenários? Von Glöda falou
aos homens em voz baixa, pontuando as palavras com movimentos rápi-
dos das mãos. Bond levou um ou dois segundos para compreender que os
movimentos eram similares aos do falecido Adolf Hitler.
O sistema de alto-falantes crepitou e tocou o pequeno jingle de
aviso. Bond tinha certeza que seria anunciado o vôo para Paris. Von Glöda
inclinou a cabeça para escutar, mas também aparentemente concluíra,
antes de o jingle terminar, que era o seu vôo. Solenemente, apertou a
mão de cada homem e olhou ao redor, à procura de sua bagagem de mão.
Bond aproximou-se da barreira de treliça. Decidiu que havia gente
demais no café para se arriscar a pegar Von Glöda ali. O melhor momento
seria quando o homem deixasse o café e se dirigisse ao controle de pas-
saportes.
Ainda oculto pela multidão em constante movimento, Bond des-
viou-se para a esquerda. Von Glöda parecia olhar ao redor, como se aler-
tado para algum perigo.
O jingle acabou e a voz do locutor saiu pelos incontáveis alto-fa-

241
lantes, excepcionalmente clara e forte, quase insuportável. Bond sentiu
o estômago se contrair. Parou abruptamente, sem tirar os olhos de Von
Glöda, que também parou, muito rígido, o rosto se alterando com as pa-
lavras.
— Mr. James Bond, queira fazer o favor de comparecer ao balcão
de informações no segundo andar.
Estavam no segundo andar. Bond olhou ao redor rapidamente, pro-
curando pelo balcão de informações, consciente de que Von Glöda tam-
bém se virava. O locutor repetiu:
— Mr. James Bond, favor comparecer ao balcão de informações.
Von Glöda virou-se inteiramente. Tanto ele como Bond deviam ter
visto o homem ao mesmo tempo, parado ao lado do balcão de informa-
ções: Hans Buchtman, a quem Bond conhecera inicialmente como Brad
Tirpitz. Quando seus olhos se encontraram, Buchtman avançou na dire-
ção de Bond, a boca se abrindo, palavras flutuando, perdidas no barulho
e na confusão geral.
Por um instante, Von Glöda olhou para Buchtman, franzindo o ros-
to, incrédulo. E depois, finalmente, avistou Bond.
Toda a cena pareceu ficar paralisada por uma fração de segundo. E,
depois, Von Glöda disse alguma coisa a seus companheiros. Eles começa-
ram a se espalhar, enquanto Von Glöda pegava sua valise e deixava o café
apressadamente.
Bond seguiu em frente, numa tentativa de interceptá-lo, conscien-
te de que Buchtman avançava pela multidão. A mão de Bond tocou na
coronha do Redhawk no momento em que as palavras de Buchtman final-
mente alcançaram seus ouvidos:
— Não, Bond! Não! Queremos ele vivo!
Aposto que sim, pensou Bond, enquanto puxava o Redhawk e se
aproximava de Von Glöda, cruzando rapidamente à sua frente. Não havia
como deter Bond agora.
— Pare, Tudeer! — gritou ele. — Jamais conseguirá pegar o avião!
Pare agora!
Pessoas começaram a gritar e Bond, a poucos passos de Von Glöda,
percebeu que o líder do Exército da Ação Nacional Socialista empunhava
uma pistola Luger na mão direita, parcialmente oculta pela valise na mão
esquerda.
Bond ainda puxava o Redhawk, que parecia não querer sair de sua

242
cintura. Ele tornou a gritar, olhando para trás e vendo que Buchtman con-
tinuava a avançar, agora empurrando as pessoas em seu caminho. Em
meio ao pânico irrompendo ao seu redor, Bond ouviu Von Glöda gritar
histericamente, enquanto se voltava para ele:
— Não me pegaram ontem! É a prova da minha missão! A prova do
meu destino!
Como em resposta, o cano do Redhawk se desprendeu. A mão de
Von Glöda se levantou, a Luger apontando para Bond, que caiu sobre um
joelho, esticando o braço e o Redhawk. A mão de Von Glöda e a Luger
ocuparam toda a visão de Bond, enquanto ele tornava a gritar:
— Está acabado, Von Glöda! Não seja idiota!
E depois o jato de chama do cano da Luger, o dedo de Bond aper-
tando duas vezes o gatilho do Redhawk.
As explosões foram simultâneas e uma enorme mão pareceu arre-
messar Bond para o lado. As cabinas do controle de passaportes giraram
à sua frente e ele se esparramou pelo chão, enquanto Von Glöda se con-
torcia e girava, recuando, como um animal ferido, ainda gritando:
— Destino... Destino. .. Destino. . .
Bond não podia compreender por que estava no chão. Vagamente,
vislumbrou um funcionário do controle de passaportes jogar-se ao chão,
em busca de abrigo, por trás de sua cabina. Depois, ainda esparramado,
apontou o Redhawk para Von Glöda, que parecia tentar mirar de novo
com a Luger. Bond disparou outro tiro e Von Glöda largou a Luger, deu um
passo para. trás, enquanto sua cabeça desaparecia numa densa névoa
vermelha.
Foi somente então que a dor dominou Bond. Sentia-se terrivelmen-
te cansado. Alguém segurava seus ombros. Havia muito barulho. E depois
uma voz:
— Não foi possível evitar, Jimmy. Você acertou o filho da puta. Está
tudo acabado agora. Já chamaram uma ambulância. Você vai ficar bom.
A voz disse mais do que isso, mas toda claridade se desvaneceu dos
olhos de Bond, todo som desapareceu, como se alguém deliberadamente
desligasse o volume.

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244
21

Não Pode Ser o Paraíso


O túnel era muito comprido, com paredes brancas. Bond especulou
se estava de volta ao Círculo Ártico. E depois sentiu que flutuava. Quente
e frio, alternadamente. Vozes. Música suave. O rosto de uma mulher, in-
clinado sobre ele, chamando-o pelo nome:
— Mr. Bond. . .? Mr. Bond. . .?
A voz parecia cantar, o rosto era realmente bonito. Ela era loura,
parecia cercada por um halo. James Bond abriu os olhos e contemplou-a.
Isso mesmo, um anjo louro, com um halo branco.
— Eu consegui chegar? Não, não é possível. Não pode ser o paraíso.
Ela riu.
— Não é o paraíso, Mr. Bond. Está no hospital.
— Onde?
— Em Helsinki. E há pessoas aqui que desejam vê-lo.
Sentiu-se subitamente muito cansado.
— Mande-as embora. — A voz era engrolada. — Estou muito ocu-
pado agora. O paraíso é sensacional.
E depois recuou, resvalando pelo túnel, que se tornara escuro e
quente. Podia ter adormecido durante horas, semanas ou meses. Não ha-
via pontos de referência. Mas quando finalmente despertou, Bond tinha
245
consciência apenas da dor no lado direito do corpo. O anjo sumira. Em
seu lugar, um vulto familiar, sentado em silêncio numa cadeira perto da
cama.
— Voltou para nós, 007? — perguntou M. — Como se sente?
As recordações voltaram, como uma sucessão de cenas de um fil-
me antigo. O Círculo Ártico; motonetas de neve; Lebre Azul; o Palácio de
Gelo; o posto de observação de Paula; as bombas; depois as últimas horas
em Helsinki. O cano da Luger. Bond engoliu em seco. A boca estava muito
seca.
— Não muito ruim, senhor. — Ele se lembrou de Paula, prostrada
na cama. — E Paula?
— Ela está bem, 007.
— Ótimo.
Bond fechou os olhos, recordando tudo o que acontecera. M per-
maneceu em silêncio. Bond estava impressionado. Era muito raro o chefe
deixar os limites seguros do prédio em Regent’s Park. Bond acabou abrin-
do os olhos outra vez.
— Na próxima vez, senhor, espero que me dê todas as informações.
M tossiu.
— Achamos que era melhor você descobrir por si mesmo, 007. A
verdade é que nós próprios não tínhamos certeza de nada. A idéia era
lançá-lo na ação e atiçar o fogo.
— E parece que foi bem-sucedido.
O anjo louro entrou. Era uma enfermeira.
— Não deve cansá-lo demais — advertiu M, num inglês impecável,
desaparecendo em seguida.
— Você se meteu no caminho de duas balas — comentou M, apa-
rentemente despreocupado. — As duas acertaram na parte superior do
peito. Não houve lesões mais graves. Voltará a estar de pé dentro de uma
ou duas semanas. Providenciarei um mês de licença depois que tiver alta.
Tirpitz ia nos levar Tudeer, mas você não tinha alternativa naquela situa-
ção.
M inclinou-se e apertou a mão de Bond paternalmente, o que era
incomum.
— Bom trabalho, 007. Muito bom.
— Bondade sua, senhor. Mas eu tinha a impressão de que o nome
verdadeiro de Brad Tirpitz era Hans Buchtman, um assecla de Von Glöda.

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— Era o que eu tinha de fazê-lo pensar, Jimmy. — Pela primeira vez,
Bond percebeu que Tirpitz também se encontrava no quarto. — Lamento
o que aconteceu. Tudo saiu errado. Eu tinha de ficar com Von Glöda. Acho
que esperei demais. Foi pura sorte não termos morrido. Os aviões russos
fizeram um trabalho eficiente. Nunca vi uma coisa assim.
— Sei disso. Observei tudo. — Apesar do seu estado, Bond não
podia evitar alguma irritação com o americano: — Mas por que aquela
história de Buchtman?
Tirpitz lançou-se a uma explicação prolongada. Cerca de um ano
antes, a CIA o instruíra para fazer contato com Aarne Tudeer, desconfiada
de ele estar envolvido em negócios de armas com os russos.
— Encontrei-o em Helsinki — disse Tirpitz. — Falo alemão muito
bem e tinha os antecedentes devidamente preparados, com o nome de
Hans Buchtman. Foi com esse nome que me apresentei e insinuei que
podia ser uma possível fonte de armas. Também fiz insinuação de que
tinha uma grande semelhança física com um agente da CIA chamado Brad
Tirpitz. Era uma medida de segurança e foi compensadora. Acho que sou
uma das poucas pessoas vivas que matou a si mesma, se entende o que
eu quero dizer.
A enfermeira voltou com um jarro de água e os avisou que só pode-
riam ficar por mais alguns minutos. Bond perguntou se não seria possível
tomar um martíni. A enfermeira ofereceu-lhe um sorriso formal.
— Não havia muito que eu pudesse fazer em relação à tortura ou
para tirá-lo de lá mais cedo — continuou Tirpitz. — Não podia sequer
alertá-lo sobre Rivke, pois não sabia de nada. Von Glöda não me confi-
denciava muita coisa, não me contou a armadilha na enfermaria, até ser
tarde demais. E a informação do meu pessoal era meio idiota, para dizer
o mínimo.
Tem toda razão nisso, pensou Bond, vagamente. Tornou a resvalar
para o túnel escuro. Quando voltou, poucos momentos depois, apenas M
estava no quarto.
— Ainda estamos capturando os remanescentes, 007 — dizia M.
— O resto dos homens do NSAA. Acho que os liquidamos para sempre.
M fez uma pausa. Parecia satisfeito.
— Não posso imaginar alguém mais para reativar o que restou. . .
graças a você, 007. Apesar da falta de informações.
— Faz parte do serviço — comentou Bond, sarcasticamente.

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Mas o comentário entrou por um ouvido de M e saiu pelo outro,
como no provérbio.
Depois que M se retirou, a enfermeira voltou para certificar-se de
que Bond estava confortável.
— Você é mesmo uma enfermeira? — perguntou ele, desconfiado.
— Claro. Por que pergunta, Mr. Bond?
— Apenas conferindo. — Bond conseguiu exibir um sorriso. — Não
quer jantar comigo esta noite?
— Está numa dieta rigorosa, mas se quer alguma coisa especial,
posso trazer o cardápio. . .
— Jantar fora. . .
Ela deu um passo para trás, fitou-o nos olhos. Bond pensou que
ela fora feita de um molde há muito quebrado. Raramente se via outros
corpos assim. Apenas ocasionalmente. Como Rivke. Ou Paula.
— Meu nome é Ingrid — disse a enfermeira, friamente.
— E eu adoraria jantar com você assim que estiver plenamente re-
cuperado. E plenamente mesmo. Lembra-se do que me disse na primeira
vez em que recobrou a consciência, depois que foi baleado?
Bond sacudiu a cabeça no travesseiro.
— Você disse: “Não pode ser o paraíso.” Mr. Bond. . . James. . .
talvez eu lhe mostre o que é o paraíso. Mas não antes de estar completa-
mente curado.
— O que não levará muito tempo. — A voz veio da porta.
— E se alguém vai mostrar a Mr. Bond o paraíso que é Helsinki,
serei eu.
Paula Vacker entrou no quarto.
— Ah. . .
Bond sorriu debilmente. Tinha de admitir que Paula levava vanta-
gem mesmo em comparação com a enfermeira espetacular.
— Ah, mesmo, James. No instante em que eu viro as costas, você
começa a flertar com enfermeiras. Esta é a minha cidade e enquanto você
estiver aqui. . .
— Mas você estava dormindo!
Bond estampou no rosto um sorriso cansado.
— Mas estou desperta agora. Oh, James, você me deixou tão pre-
ocupada!
— Não deveria se preocupar comigo.

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— Não? Mas já cuidei de tudo. Seu chefe. . . eie é muito simpático,
por falar nisso. . . disse que posso tomar conta de você por duas semanas,
depois que sair daqui.
— Simpático? — repetiu Bond, incrédulo.
Inclinou a cabeça para trás, resvalando mais uma vez pelo túnel
escuro, enquanto Paula se inclinava para beijá-lo.
Naquela noite, apesar de todas as recordações, o Ártico, os terro-
res, as traições incessantes, James Bond dormiu sem sonhos nem pesa-
delos.
Despertou quase ao amanhecer e logo voltou a dormir. Desta vez,
como sempre acontecia quando estava contente, sonhou com Royale-les-
Eaux. Como fora no passado.

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