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003, julho 1949

A popularidade do romance policial e de


mistério é enorme. Desde o começo do século e,
principalmente, depois da primeira guerra
mundial, é crescente o sucesso desse gênero de
literatura. Os leitores possuem,
conseqüentemente, alto padrão de julgamento e
agora exigem o que há de melhor no gênero. Só
os romances genuinamente bons conseguem os
interessar. Os escritores recebem esse desafio a
seu talento e procuram responder à altura. Daqui
a necessidade de selecionar ao público as
melhores histórias.

Mistério magazine, uma seleção dirigida pelo


famoso Ellery Queen, e cujo primeiro número agora
apresentamos, seleciona as histórias mais notáveis e
sempre inéditas, tanto do ponto de vista do enredo quanto
da caracterologia, do estilo e da viabilidade. Amanhã será
uma estante clássica, uma enciclopédia das melhores
histórias policiais e de mistério escritas em nossa época.
Publicada originariamente em inglês, esta revista é agora
editada em francês, alemão, espanhol e português, com
circulação de milhões de exemplares, o que permite
enfrentar as despesas pra localizar e adquirir as melhores
histórias.

Os leitores brasileiros já estão familiarizados com o nome


Ellery Queen, pois inúmeras traduções em grandes tiragens
divulgam entre nós os romances policiais de sua autoria.
Mas o que talvez não saibam é que Ellery Queen é o
pseudônimo de dois escritores, dois primos que escrevem
em colaboração: Frederico Dannay e Manfredo B. Lee. Em
1929, ainda muito jovens, estavam tranqüilamente em seu
escritório comercial, em Bruclem, quando, sem mais
aquela, resolveram escrever uma história pra concorrer ao
prêmio anual de romance policial. Escreveram O mistério
do chapéu romano e conquistaram, pasmos, o primeiro
prêmio. O livro foi impresso e alcançou tiragem inédita.
Frederico e Manfredo fecharam o escritório e se dedicaram,
de corpo e alma, ao romance policial.

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003, julho 1949

edição brasileira do Ellery Queen's mystery magazine


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Histórias de detetive
James Yaffe
Paulo Dawn em
A cinza de senhor Kiroshibu
Stuart Palmer
Hildegarda Withers em
A dama de Dubuque
Allan Vaughan Elston
Evan Keith em
Veredito retardado
HF Heard
Senhor Mycroft em
A aventura de senhor Montalba, exequista
Anthony Boucher
Nique Noble em
QL 696. C9
John Dickson Carr
Doutor Gideão Fell em
O outro problema
Georges Simenon
G-7 em
Morte na aldeia
Histórias de crime
Ben Hecht
Crime sem paixão
Susan Glaspell
Um júri de suas iguais
Marc Connelly
Inquérito judicial
MacKinlay Kantor
Galeria de delinqüente

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003 julho 1949


Mistério magazine é a edição brasileira de Ellery Queen's mystery magazine. Copirraite de The American Mercury, Inc. Publicação
mensal da Revista do Globo SA. Henrique d'Avila Bertaso, diretor. Porto Alegre, Rio Grande do Sul, Brasil. Redação, gerência e
oficinas: Rua Barros Cassal, 82 e 86, telefone 9-1112. Endereço telegráfico Reviglobo. Preço: Número avulso em todo o Brasil Cr$

Digitalizado em janeiro de 2016

Tradução de Lino Vallandro


Composto e impresso nas oficinas gráficas da Livraria do Globo, de José Bertaso & ciª,

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No número anterior apresentamos o primeiro conto policial


escrito por James Yaffe, que o escreveu com apenas 15 anos.
Eis a segunda produção do jovem Yaffe, outra aventura de
Paulo Down e seu departamento de crime impossível.
Do jovem Yaffe, com 16 anos quando escreveu este conto,
sempre se pode esperar que diga e faça as coisas mais
surpreendentes. Por exemplo: Na carta que acompanhava o
manuscrito do segundo conto, o menino-escritor fez esta
assombrosa declaração: De passagem, asseguro que o
método usado pra cometer o crime impossível em A cinza
de senhor Kiroshibu é perfeitamente válido, pois
experimentei.
No fim deste conto mais comentário do diretor desta
revista. Agora, jogo limpo: Primeiro ler o conto!

A cinza de senhor Kiroshibu


James Yaffe

S
e sentou no carro-restaurante do expresso da Flórida. O pequeno e calmo cavalheiro
japonês sentado em sua frente o olhou através dos óculos de aro de tartaruga e sorriu
amavelmente. Paulo Dawn retribuiu o sorriso e se embrenhou no cardápio. O
japonês voltou a lidar com a alcachofra.
Paulo tomou nota mentalmente da sopa de aspargo, mas não conseguiu concentrar a
atenção nos pratos. Os olhos se desviaram sobre o cardápio, e Paulo fitou o cavalheiro
japonês, de aparência bem-cuidada vestido com gosto impecável, quase irritante. Comia
alcachofra com delicadeza e refinamento de dar inveja a senhorita Emília Post.1 Tipo
destituído de imaginação, sem senso humorístico e extremamente meticuloso, foi o
veredito de Paulo.
— Essas pessoas meticulosas sempre perdem tantas coisas boas da vida. — Pensou.
As coisas boas da vida de Paulo eram três: Palavra cruzada, uma imaginação que o
levaria rapidamente a outros lugares quando as coisas ficavam enfadonhas e o DCI,
departamento de crime impossível, que na seção de homicídio da chefatura de polícia de
Nova Iorque constituía a mais obscura dependência, da qual era o chefe supremo.
Uma coisa excitava seu interesse: O cavalheiro japonês pusera uma urna na mesa, em
sua frente. Era uma urna negra, de cobre, ligeiramente parecida cum vaso pra flor, e
cuidadosamente tampada. Em torno dela havia uma decoração esverdeada, parecia um
dragão, pensou. Muito curioso, estava preocupado com aquela estranha urna negra. Qual
seria o conteúdo? Por quê o japonês a poria na mesa?
Enquanto olhava fixamente a urna do cavalheiro japonês, notou que o dono o estava
fitando. Ergueu os olhos e deu com o amável sorriso do oriental.
— Queiras desculpar.
Os olhos de Paulo se voltaram prontamente ao cardápio.
Mas o japonês continuou sorrindo. Queria entabular conversa. Paulo tinha a fisionomia
franca e aberta que leva as pessoas a puxar conversa. Em toda sua vida pessoas
inteiramente estranhas o abordaram em estação ferroviária, vestíbulo de hotel e elevador
e muito a contragosto ouvia suas preocupações particulares.
1
Emily Post (~27.10.1872–25.09.1960). Famosa autora ianque de livros sobre etiqueta. O nome de Emília Post se tornou sinônimo,
ao menos na América do Norte, de etiqueta e boa maneira. Mais de meio século depois da morte seu nome ainda é usado em título de
livro de etiqueta. https://en.wikipedia.org/wiki/Emily_Post Nota do digitalizador

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— Estavas admirando minha urna. Estimo saber que aprecias obras de arte.
Paulo estremeceu. Sua féria ficaria estragada. Se viu discutindo arte com o japonês até
chegarem a Maiame. Disse, carrancudo:
— É um tanto invulgar.
O japonês sorriu.
— Serve prum fim invulgar. Se me dás licença, sou doutor Rovardo Kiroshibu. De
Irmãos Kiroshibu, Cerâmica Oriental. Talvez conheças a firma.
Paulo sacudiu a cabeça, fazendo votos pra que a conversação terminasse ali. Mas não.
— És Paulo Dawn, conhecido investigador criminal. É fácil reconhecer por causa das
fotografias nos jornais.
Paulo fez que sim e procurou se mostrar lisonjeado.
— Estávamos bastante a par de teu trabalho. Eu e meu falecido irmão Henrique. A
ciência do raciocínio dedutivo não é desconhecida entre os membros da raça japonesa.
Paulo disse que estimava muito saber o interesse de Rovardo, e seus olhos mais uma
vez pousaram na estranha urna negra que, silenciosa e perturbadora, continuava na mesa.
Rovardo sorriu, inclinou a cabeça e um fulgor divertido brilhou nos olhos.
— Talvez como homem que dedica muito tempo à solução de enigma, queiras
examinar meu humilde problema.
Paulo murmurou que se achava em féria.
— Lamento! — Disse Rovardo, olhando tristemente o chão. — Teria muita honra em
receber conselho dum grande especialista. Minha dificuldade se relaciona com a urna que
observavas.
Paulo levantou os olhos. Então o cortês doutor Kiroshibu estava preocupado com a
urna! A curiosidade crescia rapidamente.
— Qual é teu problema?
Rovardo sorriu.
— Me alegro de ver teu interesse. Temo que nalgum momento da longa viagem a urna
seja roubada.
— Por quê?
— Por causa do grande valor do conteúdo.
— O quê há dentro da urna? — Perguntou Paulo, tentando fingir não se interessar
muito.
— É uma história cheia de complexidade.
— A condensarei. Há uma semana meu irmão e sócio Henrique Kiroshibu se reuniu
aos ilustres antepassados.
— Morreu?
— Tal como dizes. Ao dispor de suas propriedades e bens terrenos, Henrique
presenteou a mim sua parte em nosso negócio, além de vários interesses financeiros, cuma
condição de natureza extremamente singular.
Paulo acendeu um cigarro e soprou um anel de fumaça de tamanho satisfatório.
— Qual condição?
— Pediu que seu corpo fosse queimado, cremado, e que eu transportasse a cinza a
Maiame, Flórida, lugar do qual muito gostava, e as espalhasse na água.
— Então irás a Maiame, pra atirar a cinza de teu irmão ao Atlântico.
— Exatamente.
— E a urna?
— Contém a cinza.
Paulo contemplou um segundo anel de fumaça que subia até se desfazer no ar.
Nunca estivera sentado à mesa-de-jantar com a cinza dum homem Era uma experiência
nova, e queria a saborear. Fechou os olhos e pensou o quão perto estava de tomar sopa

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em companhia dum cadáver. Mas cinza era algo diferente. Não era o mesmo que um
cadáver. Dificilmente se poderia tornar uma pitada de cinza e dizer: Isto era o olho
direito de Henrique, ou Isto fazia parte do estômago. Coisa desnorteante a tal cinza.
Abriu os olhos cum sobressalto ao ouvir a macia voz de Rovardo.
— Gostarias de ver?
— Ver o quê?
— A cinza de meu irmão.
Paulo encolheu os ombros.
— Por quê não?
O sorriso calmo e benigno de Rovardo se ampliou desprendendo a tampa da urna.
Henrique era de indefinível cor acinzentada, e enchia apenas metade da urna.
Rovardo fechou a urna e continuou a sorrir com sossegada expressão de triunfo.
Com falta doutra coisa a dizer, Paulo perguntou:
— Quanto pesa?
Imediatamente se arrependeu da fria observação. Esquecera um momento que o monte
de cinza existente naquela urna representava o resto do amado irmão do imperturbável
doutor Henrique.
Mas Rovardo continuou impassível.
— Cinza muito leve, urna muito pesada. A pegues, por favor.
Paulo pegou a urna e quase a deixou cair. Sua aparência era enganadora. Dava a
impressão de pesar apenas 2kg mas devia pesar mais de 10kg. Paulo disse:
— Uma coisa eu não posso compreender: A cinza dum homem é... enfim, é um artigo
extremamente... especializado. Quero dizer, há muito pouca procura a cinza humana no
mercado. Com outras palavras: Como mercadoria, falando economicamente, a cinza de
teu irmão nada vale. Então por que acreditas que alguém se daria ao trabalho de roubar o
que pode ser considerado uma droga?
Doutor Rovardo inclinou a cabeça.
— Compreendo a lógica de teu raciocínio. Mas esqueceste uma circunstância
importante. Talvez não seja a cinza que o ladrão deseja obter, mas a urna.
Paulo estava perplexo.
— Há pouco me disseste que alguém roubaria a urna por causa do valioso conteúdo.
— E é exatamente o que eu queria dizer. Roubarão a urna por causa da cinza. Neste
país há muitos colecionadores de vaso oriental de especial significado. Até há pouco
tempo esta urna negra não tinha significado especial, portanto nenhum valor pra tais
colecionadores. Mas a urna adquiriu valor nos últimos dias. Foi usada pra transportar a
cinza de meu irmão a Maiame. Talvez possas imaginar o sentimento de orgulho e de
triunfo que encheria o coração dum colecionador que conseguisse incluir na coleção a
urna usada pra transportar a cinza do maior negociante de cerâmica do mundo. E se a
cinza ainda estivesse intata dentro da urna, teria um valor ilimitado!
Paulo ouviu muitas histórias absurdas no exercício do seu cargo no DCI, mas sua
imaginação era bastante forte pra assimilar a maior parte delas sem grande dificuldade.
Contudo, cinza humana como motivo de roubo era algo novo em sua vida. Estava
incrédulo.
— Crês realmente que algum colecionador desejaria a cinza de teu irmão?
Rovardo se curvou ansiosamente a ele.
— Tomes a cinza. Leves a tua cabine. As escondas e protejas contra todo perigo e as
devolvas intatas quando chegarmos a Maiame. Garanto generosa remuneração.
Paulo se sentiu tentado. O caso era bastante singular, e o encargo parecia fácil. Mas
não era um crime impossível. No momento não se tratava de crime. E Paulo sempre se

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especializara em crime impossível. Em Nova Iorque se recusava a aceitar problema ,a não
ser que apresentasse não só dificuldade mas impossibilidade.
— Perdão. Não posso aceitar o caso.
Rovardo se mostrou extremamente desconsolado.
— É tua resposta definitiva?
— Acho que sim.
Rovardo se ergueu da mesa e se afastou ao longo do corredor. Paulo ficou olhando,
perplexo, enquanto Rovardo desaparecia na porta que levava ao outro carro.
Foi a última vez que Paulo viu o japonês vivo.
Uma palavra de 6 letras que signifique búfalo aquático da África do Sul2 serviria muito
bem às 11:30h daquela noite. Paulo, com seu pijama novo, estava sentado no leito inferior
8 sem conseguir dormir. Coçava o queixo e o pijama o coçava. Uma revista de palavra
cruzada aberta em sua frente. O grande detetive tinha ar muito detetivesco ao velejar no
oceano de palavras que constituíam o enigma 14. Os enigmas 1 a 13 foram debulhados
durante a última hora e meia.
Umas pancadas leves e rápidas interromperam o curso do pensamento. Alguém batia
na cabeceira do seu leito. Era o servente.
— Vás embora.
— Senhor Dawn, o sinhô tá acordado?
— Não. Falo dormindo. Vás embora.
Uma grande mão cor de chocolate se introduziu entre as dobras da cortina que cobriam
o leito, tateando. A observou, fascinado, até ela se chocar com seu ombro.
— Á! O sinhô taí! Senhor Dawn, acorde, sim? Houve um acidente!
Paulo se endireitou.
— Desastre de trem?
— Não sinhô. Uma morte. O chefe de trem disse que o sinhô tava no trem e que eu
viesse te procurá em seguida.
Paulo ficou irritado. Não gostava que o interrompessem no meio dum enigma de
palavra cruzada.
— Bom, se ele precisa de mim, terá que me aceitar em pijama.
— Sim sinhô.
— E em pijama azul!
Conseguiu se desvencilhar das cobertas da cama. Desabotoou a cortina que rodeava o
leito, enquanto procurava o chinelo com as pontas do pé. Subitamente percebeu estar
tiritando. Era uma noite fria, o trem estava em movimento. Preferiria ficar no leito mas
seguiu com docilidade o servente ao longo do escuro corredor, entre filas de caixas
acortinadas que continham gente. Os dois passaram ao vagão seguinte.
O chefe de trem era um homem cansado, de meia-idade, com óculos obliquamente na
ponta do nariz. O encontraram com ar muito aflito diante da porta fechada duma cabine.
Junto ao chefe de trem estava um gordo e volumoso cavalheiro chinês vestindo um
purpurino roupão. O chefe do trem se apresentou simplesmente como Simms, e ao
cavalheiro chinês como senhor Oscar Kung. Disse, umedecendo os lábios:
— É um alívio te ter aqui, senhor Dawn. Como és funcionário da lei, e tudo o mais…
— Um funcionário em féria. O que parece haver de anormal?
Simms se voltou ao gordo cavalheiro chinês.
— É melhor contar, senhor Kung.
— Muita honra. — Oscar tinha voz cheia e profunda de barítono e o queixo balançava
acompanhando as palavras. — Sou o ocupante da cabine situada junto a esta. Há 5
minutos fui despertado de profundo sono por um tiro de revólver vindo, sem dúvida, desta
2
Búfalo aquático da África do Sul. A palavra em inglês é caffer (Syncerus caffer). Nota do digitalizador

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cabine. Me levantei da cama e bati nesta porta. Sem resposta. Procurei abrir a porta mas
vi que estava trancada por dentro. Chamei o chefe do trem.
— E mandei chamar a ti. — Continuou o chefe de trem. — Aconteceu algo nessa
cabine. Alguém deu um tiro. Agora não atende dentro e a cabine está fechada a chave.
Arrombemos a porta, pois quero ter um detetive a nosso lado quando entrarmos.
Paulo inquiriu:
— Quem é o ocupante desta cabine?
— Um japonês. Doutor Kiro-não-sei-o-quê.
— Kiroshibu.
Então o pequeno japonês estava dentro da cabine fechada, com a cinza do irmão.
Rovardo tinha medo de acontecer algo, e aconteceu.
O peso conjugado de Simms, do servente, de Paulo e do maciço Oscar venceu a
resistência da porta. A fechadura cedeu e a porta se abriu.
A cabine de Rovardo era igual às outras do trem. Continha um leito superior e um
inferior, um pequeno sofá e um lavatório. O leito superior estava fechado a chave.
Os olhos dos quatro homens se cravaram no leito inferior. As cortinas estavam abertas
e o leito na maior desordem: Cobertores atirados, com as pontas pendentes nas bordas do
leito, travesseiros amontoados num canto, rugas e saliências em toda parte, indicando o
ter havido furiosa luta.
E na cama estava Rovardo. Mesmo da porta se via o horrendo buraco na testa e o
sangue que borbulhara da ferida e escorrera no rosto. Estava estendido em confortável
posição, com os braços estirados naturalmente ao lado do corpo e metido em amplo
quimono branco. O cadáver era a única nota pacífica no leito. A boca ainda vincada cum
sorriso cético e meio divertido.
— Não convém tocar nele. — Disse Paulo. — Servente, procures um médico no trem
e o tragas em seguida.
O servente saiu apressado. O aflito Simms perguntou:
— O que achas?
— Não há arma perto do cadáver. Deve ser homicídio.
O chefe de trem ficou perplexo.
— Mas não pode ser homicídio. A porta estava fechada por dentro. Se for homicídio,
que fim levou o criminoso?
— Perdão. — Interveio Oscar — O assassino não pode ter abandonado o local do
crime por causa da porta fechada. Ainda deve estar aqui. Sugiro que passemos revista na
cabine.
— Nada há o que revistar. — Disse Simms. — Não há ligação com outro
compartimento nem armário. Diabos! Tenho certeza de que não há passagem secreta!
Oscar, impassível, inclinou a cabeça.
— És sensato, mas sugiro revistar embaixo da cama e do sofá e no leito superior.
— O leito superior! — Exclamou Simms. — Ninguém se esconderia no leito superior
fechado, pois morreria sufocado.
— Talvez já morrera. — Disse Paulo — Veremos.
Olharam embaixo da cama, no leito superior e embaixo do sofá. Nem sinal do
assassino. Bateram nas paredes, procurando abertura secreta. Experimentaram a janela.
As paredes eram maciças. A janela estava firmemente fechada e não havia buraco de bala.
O chefe de trem estava embasbacado.
— Kiroshibu foi assassinado a bala dentro desta cabine. Mas não há sinal de revólver.
A porta estava fechada por dentro. Não há outra entrada. A peça está vazia. Aonde foi o
assassino? Será que se transformou em nuvem de fumaça?
— Parece que sim. — Disse Oscar, subitamente. — Pois eis a cinza no chão.

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Paulo se ajoelhou. No centro da cabine estava a urna negra que contivera a cinza de
Henrique Kiroshibu, agora espalhada em todo o assoalho. As reuniu e recolocou na urna.
— Parece que o assassino não teve tempo de as levar.
Deixaram a cabine, fechando a porta atrás de si.
Doutor Erwin Wilkirts viajava a Maiame com a esposa. Protestou vigorosamente
quando o tiraram do calor da cama pra olhar um cadáver. Mas efetuou o exame, nada
descobrindo de surpreendente. A vítima expirara cerca de 11:15h. Tivera morte
instantânea. A bala penetrara na cabeça, pouco acima da têmpora.
— Uma coisa digo: — Observou doutor Wilkins, depois de terminado o exame e
retirado o cadáver. — Aquele homem não morreu na cama. Foi assassinado no centro da
peça, caiu ao chão, o assassino arrastou o corpo ao leito inferior e o colocou naquela
posição. Se vê o rastro de sangue em toda a peça. Passai bem, senhores. Boa caça.
Paulo ficou a sós com o chefe do trem.
— Eu só queria saber por que o assassino faria algo assim. — Comentou Simms,
cocando a cabeça. — Arrastar um cadáver em toda a cabine. Coisa insensata.
— Talvez pusera o cadáver na cama a fim de deixar espaço no centro da cabine —
Disse Paulo.
— Espaço pra quê?
— Pra desaparecer. Vês? Isso não se pode fazer em qualquer lugar, principalmente se
há um cadáver atravancando a peça. Desaparecer não é uma coisa muito diferente de
decolar em avião. É preciso espaço.
Simms tornou a coçar a cabeça.
— Sim. Parece lógico.
Paulo assumiu ar sério.
— Telegrafaste às autoridades da cidade mais próxima?, pra prepararem investigação.
— Sim, senhor. Mas demorará pra chegar à primeira parada. Achei que te
encarregarias pessoalmente do caso.
Era então um crime impossível, apropriado ao departamento de Paulo, que respondeu:
— Está bem. Me encarregarei do caso.
— Queres interrogar os suspeitos? Seria um pouco inconveniente despertar todos os
passageiros, mas se necessário…
— Começarei contigo, Simms. Contes o que sabes sobre Rovardo. Quem era, que jeito
tinha, essas coisas todas.
— Nada. Só falou duas vezes comigo. Primeiro quando me entregou a . Segundo
quando perguntou sobre a urna.
Os olhos de Paulo brilharam.
— O que queria saber sobre a urna?
— Perguntou se a companhia se responsabilizaria por volumes deixados no vagão-
bagageiro. Respondi que só aceitamos volumes grandes, como baú, cesto ou animal.
Agradeceu. Só isso.
Paulo estava pensando em voz alta:
— Primeiro procurou entregar a urna à companhia, depois atentou a impingir a mim.
Que impressão Rovardo te causou?
Simms refletiu um momento.
— Cavalheiro sossegado. Ensimesmado, se compreendes o que quero dizer, mas muito
dissimulado.
Paulo se sentou confortavelmente no sofá.
— Não gostas dos japoneses. Por quê?
— Meu filho está nas ilhas Salomão.

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Oscar tinha ligação com o consulado chinês em Nova Iorque. Estava de viagem a
Maiame a negócio, com a esposa e o filho. O gordo chinês apresentou Paulo a senhora
Kung, uma tranqüila senhora de meia-idade com o mesmo sorriso malicioso do marido,
e a Oscar júnior, um rapazola magrela como um palito, a antítese do pai em tudo, que
ficou sentado respeitosamente na ponta do sofá enquanto os pais respondiam às perguntas
de Paulo. Oscar disse:
— Repito, senhor Dawn: No momento do crime eu roncava forte no leito inferior. Meu
honorável filho, que ocupa o leito superior, pode confirmar a verdade dessa declaração.
— Roncavas mais alto que uma máquina rebitadora, papai. — Disse Oscar júnior, com
sotaque que lembrava mais a Bróduei que Cantão.
— Meu honorável filho se expressa pitorescamente. Despertei quando foi dado o tiro
de revólver, meti apressadamente os pés em meu amplo chinelo e saí na noite. Já sabes o
resultado de minha investigação.
— Não ouviste som na cabine de doutor Rovardo enquanto esperavas diante da porta?
— Nenhum. Mas o ouvido deste velho é muito imperfeito.
— E tu?, senhora Kung. Dormiste toda a noite?
Paulo viu senhora Kung olhar o marido com hesitação. Oscar inclinou a cabeça de
maneira quase imperceptível. A mulher disse:
— Nada ouvi na noite inteira.
— Tens o sono pesado?
— Sim.
Paulo se voltou novamente a Oscar.
— Qual era tua opinião sobre doutor Rovardo?
Antes que Oscar pudesse responder, Oscar júnior acudiu, com voz aguda:
— Eu não gostava da cara do sujeito!
Oscar se virou ao filho.
— Na linguagem da gíria ianque, bico calado! — E se voltou novamente a Paulo.
— Jovem muito impulsivo, mas a opinião não difere muito da minha. A aparência
pessoal de doutor Rovardo era pouco atraente.
Paulo se inclinou a Oscar.
— Disse ou fez algo que te aborreceria?, senhor Kung.
Oscar sorriu sagazmente.
— A velha idéia da inimizade entre as raças sem dúvida se aninhava em tua cabeça,
senhor Dawn. O chinês senhor Kung e o japonês doutor Kiroshibu. Queres saber se
eliminei o bom doutor simplesmente porque era japonês. Homicídio, a princípio se diria.
Não, senhor Dawn. Estás enganado. Noutra época eu era um moço de sangue quente mas
envelheci e o sangue esfriou.
Paulo se ruborizou um pouco. O rechonchudo cavalheiro chinês era mais esperto do
que pensara. Má estratégia subestimar tal adversário.
— Me referia a algo mais que aversão natural, senhor Kung. Nunca te encontraste com
doutor Kiroshibu antes?
— Felizmente não.
— E tu?, senhora Kung.
— Não era meu conhecido.
— Nunca ouvira falar sobre doutor Kiroshibu?, senhor Kung.
— Á! Sim. A firma Irmãos Kiroshibu, Cerâmica Oriental não era desconhecida da
embaixada chinesa ou, se é o caso, do FBI ianque.
Paulo franziu a testa.
— O quê há de errado com a firma?

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— Nada de mal. Apenas suspeito. Desde o princípio da guerra a firma é suspeita de
muitas coisas. Contrabando de entorpecente, sabotagem, espionagem e homicídio.
Empresa muito interessante.
— Muito. Um dos sócios morreu há pouco tempo. Não é?
— Viste a cinza de Henrique Kiroshibu. Deve ser verdade.
— Algo de suspeito nisso?
— Morte resultante de pneumonia, creio.
— Senhor Kung, tens idéia sobre esse crime? Como achas que foi cometido? A quem
o atribuis?
— Aos deuses. — Senhora Kung respondeu.
— Minha esposa não tem medo de parecer uma velha supersticiosa aos olhos da nova
geração mas compartilho seu modo de ver. Rovardo teve o fim merecido por uma vida de
crime e violência. Foi morto pelos deuses.
Paulo fez uma careta de incredulidade.
— Se os deuses o mataram, por que não o fizeram de maneira habitual, cum raio?
— É uma questão que nunca poderemos esclarecer.
Paulo saiu da cabine de Oscar, fechou a porta, que se abriu imediatamente, Oscar
júnior apareceu no umbral e seguiu Paulo no corredor.
— Quero dizer que também tenho uma teoria.
Paulo o olhou com curiosidade.
— Achas que Rovardo foi morto pelos deuses?
— Nada disso! Foi morto por alguém que estava naquela cabine.
— Quem?
Oscar Júnior se aproximou mais e falou cum sussurro misterioso.
— O irmão.
— O irmão!
— Isso mesmo. Esse tal Kiroshibu matou o irmão. O espírito do irmão, que ainda
pairava em torno da cinza, se vingou e matou Kiroshibu. Simples. Hem?
— Maravilhosamente simples. E como a cinza se desfez da arma?
— Ainda tento esclarecer isso.
O servente do expresso da Flórida era um jovem assustado que não se chamava Jorge.
— Sam. O que sabes a respeito do caso?
Sam nada sabia e estava ansioso pra provar. Carregara as malas de Rovardo e nada
mais. Não vira o japonês durante o resto da noite e não tinha opinião sobre o crime. Era
apenas um pobre servente, que trabalhava e fazia sacrifício pra seguir um curso por
correspondência, e não queria saber de história com assassino. Não, sinhô.
Paulo estava preocupado. Uma porta fechada por dentro, um revólver desaparecido,
uma urna funerária emborcada, um assassino que estendeu cuidadosamente o cadáver nu
na cama e depois sumiu. Nada havia de verossímil em tudo aquilo. Rovardo fora
assassinado mas não podia ter sido assassinado.
Voltou à cabine do crime. A urna ainda estava no chão, com cinza até a metade. A
agarrou pensativamente. Estava muito leve.
Encostou o queixo na mão e ficou olhando a urna como um adivinho olha a bola-de-
cristal. Algo se agitava dentro da cabeça. A urna pesada estava muito mais leve! Então
percebeu tudo! Largou bruscamente a urna no chão, quase derramando a cinza.
Vários, passageiros sobressaltados testemunharam o pouco decoroso espetáculo dum
jovem de olhos um tanto esbugalhados arremetendo no corredor do expresso da Flórida
à 1h da madrugada, berrando ao chefe de trem. Encontrou Simms enroscado num sofá,
no vagão de fumante.
— Simms, desistirei!

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Simms murmurou algo, sonolentamente.
— Estou dizendo que desistirei!
— Desistir de quê?
— Do caso. Do crime impossível da cabine. Me retirarei. Desisto.
— Então abandonarás o caso?
— É decididamente psíquico!
Paulo deixou Simms coçando a cabeça. Voltou, a tropeção, ao leito, completou a
palavra que significava búfalo aquático da África do Sul, e em 2 minutos roncava tão
forte quanto Oscar, o volumoso cavalheiro chinês.
Maiame estava quente, animada e cheia de homens de uniforme cáqui. Paulo passara
dez dias lá. O único resultado positivo que podia exibir era uma insolação. Se esquecera
do caso de Rovardo e da cinza.
Estava sentado num bar próximo ao hotel, quando ouviu atrás uma voz conhecida.
— Senhor Dawn. Quanto prazer em te rever.
Paulo se virou e deu com o vulto maciço e o queixo sorridente de Oscar.
— Oscar Kung! É realmente um grande prazer. Te sentes. Tomes uísque com soda.
Oscar acomodou penosamente o imenso corpo numa pequena cadeira de bar.
— Perdão, mas a bebida nacional ianque, que é uísque com soda, produz efeitos
drásticos em meus órgãos internos. Aceitarei um pequeno Tom Collins, se não houver
inconveniente.
O empregado foi buscar as bebidas e os dois homens se encararam.
— Não estás mais gordo, senhor Kung.
Oscar se inclinou.
— Nem tu mais bem-informado. A julgar pelo que li sobre os progressos do caso
Kiroshibu.
— Continuam sempre no mesmo lugar. Não é? Ainda não puderam descobrir como
foi cometido o crime. Estou satisfeito em ter abandonado logo o caso.
— Os policiais rurais são mais zelosos que hábeis. Mas algo continua me intrigando.
Um homem de tua natureza inquiridora nunca se conforma em deixar um trabalho ou um
problema na metade. Desconheço a razão que te levaram a sair do caso Kiroshibu, mas
tenho certeza que nunca o farias se não soubesses a solução.
Paulo fitou o velho chinês e percebeu o malicioso brilho nos olhos. Oscar presumira o
segredo.
— Está bem, senhor Kung. Confessarei. O caso está resolvido. Sei como foi cometido
o crime. Mas, acredites: Não tenciono contar à polícia!
Paulo tratou de responder às perguntas que lia nos olhos de Oscar.
— O que primeiro me pôs no caminho certo foi quando levantei do chão a urna que
continha a cinza. O crime estava consumado e a urna estava no assoalho da cabine. A
agarrei e vi que estava leve! Isso era muito singular, considerando que doutor Kiroshibu
me mostrara a mesma urna no jantar, extremamente pesada! Continha cinza quando a
agarrei no jantar. Continha a mesma cinza quando a agarrei depois do crime. Havia apenas
uma explicação possível. A urna encerrava algo além da cinza na hora do jantar. E, fosse
o que fosse, não estava mais ali depois do crime. Alguém o retirara da urna. Parecia
razoável conjeturar que o misterioso objeto fora retirado pelo assassino. O móbil do crime
era o roubo. Não da cinza, como doutor Kiroshibu dissera a mim, mas sobre algo
escondido sob a cinza. O que seria? Por que doutor Kiroshibu temia que fosse roubado?
Por quê estava escondido em lugar tão insólito? Ainda não tenho certeza da resposta mas
não importa.
Oscar inclinou ponderosamente a cabeça.

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— És muito arguto, senhor Dawn. Os objetos escondidos sob a cinza na urna de doutor
Kiroshibu eram pequenos tubos metálicos de entorpecente. Doutor Kiroshibu era um
agente do governo japonês, encarregado de distribuir droga nociva entre os soldados
aquartelados em Maiame. Trabalhando pro governo ianque, tomei medida a fim de
impedir que aquelas drogas chegassem a Maiame. Tive sucesso.
— Bom, bom.
— Eu disse a Kiroshibu que aquela cinza, como mercadoria, era uma verdadeira droga.
Acertei sem querer. Permitas felicitar a ti e a teu filho, Oscar júnior, um jovem assassino
muito hábil.
Oscar Kung suspirou.
— Isso é o que mais lamento. A necessidade de obrigar meu honorável filho a cometer
um crime. Mas era uma boa causa e Oscar júnior parece muito pouco impressionado com
o assunto. Até declarou que foi divertido. Esta sanguinária nova geração!
— Que rapazinho!
— Mas me dirás como encontraste a solução?
— O homicídio foi realizado com ilusão ótica. Era um crime impossível. Ao menos
parecia. Eu só podia imaginar um modo de como fora cometido. A porta estava fechada
por dentro. O assassino não podia ter saído da cabine. Portanto, como fizeste ver então, o
assassino estaria na cabine quando entramos. Mas onde? Não havia passagem secreta.
Não estava atrás da porta. Não estava sob a cama, sob o sofá nem no leito superior. Parecia
que o assassino se desmanchara no ar, porque procuramos em toda parte. Mas um lugar
não foi revistado, onde nem tocamos. A cama! O cadáver de doutor Kiroshibu estava
estendido na cama, por isso não nos aproximamos dela. Mas na verdade o leito era o
esconderijo mais óbvio. Estava em extrema desordem, como se houvera uma luta nele.
Mas por quê tal desordem? Kiroshibu fora morto no meio da cabine. Não havia razão pro
leito estar revolto. A não ser que o assassino o revolvera intencionalmente. E por quê faria
isso? A resposta é que nada há tão enganador quanto uma cama em desordem. Quando
menino eu costumava dispor travesseiros na cama de modo a fazer crer, a meus pais, que
estava dormindo. O truque sempre deu resultado. Razão: As saliências, reentrâncias e
vincos duma cama produzem perfeita ilusão ótica. O fato é que olhando dalguma distância
uma cama em desordem é impossível dizer se há alguém deitado.
Isso é particularmente certo se há um cadáver estendido na cama, desviando a atenção
do resto do leito, e se o ocupante clandestino da cama é um rapazola delgado, de 13 anos,
capaz se enfiar num espaço exíguo. Então percebi que teu extraordinário filho o fizera.
Entrou no quarto, matou doutor Kiroshibu com o revólver paterno, tirou da urna os
pacotes de entorpecente, colocou o cadáver na cama, se meteu na cama embaixo do
cadáver e, quando nos retiramos, deixando o caminho desimpedido, escapuliu da cabine.
Deve ter sido uma proeza difícil, mas conseguiu, sem dúvida cuidadosamente adestrado
de antemão por Oscar Kung sênior.
Oscar fitou Paulo, admirado, e riu.
— Senhor Dawn, também és extraordinário. Mas por que não denunciaste o crime à
polícia?
Paulo sorriu.
— Compartilho tua natural aversão aos japoneses, senhor Kung.

Agora que já leste, esperamos que com prazer, o segundo
caso de Paulo Dawn, solucionador de crime impossível, nosso
diretor fez a seguinte pergunta pouco protocolar:
Qual é o defeito do conto de senhor Yaffe?
Descobriste? Ou não pudeste ver a floresta por causa das

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árvores? Pra solucionar esse mistério dentro doutro
mistério, ir ao final.

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A dama de Dubuque, nossa velha amiga Hidegarda


Withers, é a história duma mulher desprezada, esse fenômeno
vulcânico cheio de fúria e rumor que significa homicídio

A dama de Dubuque
Stuart Palmer

A
mais poderosa arma que Hermíone Lapham conhecia era o grande talão de
cheque encima de sua escrivaninha. O agarrou, mas a jovem sacudiu os
compridos cachos louros e exclamou:
— Ó! Não!
— Então o que queres?, senhorita Pender.
— Quero Paulo Séverance! Não deve se casar com tua filha na próxima semana, como
foi dito nas colunas sociais dos jornais. — Os olhos de Élsia Pender estavam orlados de
negro e eram dum azul do matiz particularmente turvo que uma criança obteria com sua
primeira caixa de lápis-de-cor. — Depois do que fomos um ao outro, isso não é justo!
Eu… eu…
Hermíone manteve a calma.
— Vamos, minha cara. Trarei algo pra beber.
Se levantou vivamente e saiu da sala, roçagando a longa saia de veludo na espessa
pelagem do tapete aubusson.3 Ao entrar no corredor pareceu ouvir um som de passos se
afastando precipitadamente. Franziu as sobrancelhas. Pensou:
— Se pode ter certeza de que os criados sempre escutarão coisas como esta.
Não podia ter levado mais de dois ou três minutos pra chegar à biblioteca e encher um
cálice de conhaque, mas quando voltou à sala Élsia desaparecera.
Hermíone se aproximou da escrivaninha, ficou olhando durante um momento a gaveta
aberta e a fechou com cuidado. Ergueu o cálice, bebeu o conhaque cum trago e estendeu
a mão ao telefone.
— Soring 3-100, por favor. Sim. Departamento de polícia? Aqui é senhora J Vance
Lapham, avenida Parque 1324. Quero comunicar o furto duma automática 32.
Na tardinha estavam três pessoas no gabinete de inspetor Oscar Piper, chefe da divisão
de homicídio da chefatura de polícia.
— E é por isso que vim pedir ajuda ao inspetor. — Concluiu Hermíone, dirigindo um
sorriso amável à solteirona de chapéu esquisito, uma criatura angulosa com esmerada
aparência de professora.
— Mas não sou propriamente detetive. — Objetou senhorita Hildegarda Withers.
— Mas assumiste por tua conta o papel de mosca varejeira do departamento. —
Acudiu o inspetor. — Podes perder tempo com essas coisas mas nós não. A seção de
homicídio só investiga assassínio depois que acontece.
— Além disso, — acrescentou Hermíone — o tipo habitual de detetive, com chapéu
coco e pés chatos, não serviria. Talvez eu devesse ter me limitado a dar parte do roubo da
pistola mas sinto que é meu dever…
— Uma automática 32 é um brinquedo perigoso na mão duma moça histérica —
Reconheceu Hildegarda, pensativamente. — Por quê achas que essa tal Élsia escolheria
teu jantar desta noite como o melhor cenário prum homicídio?

3
O tapete aubusson possui desenhos florais clássicos mesclados com formas geométricas e medalhões
característicos da renascença francesa do século 14. De composição fina e sem pêlo, o aubusson que inicialmente fora fabricado na
França e utilizado pela realeza, hoje é fabricado na China com a mesma padronagem e qualidade que o tornou tão famoso.
http://www.bykamy.com.br/tapetes/classico/tapete-aubusson.html Nota do digitalizador

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A viúva sorriu debilmente.
— Sou um pouco culpada por isso. Quando ouvi a trágica história da moça, a velha
história de sempre, sugeri que Élsia aparecesse nesta noite em meu apartamento e falasse
diante do doutor, que, segundo Élsia, se recusou à ver. Pensei…
— Pensaste que isso seria um remédio heróico pra tua filha! — O inspetor mordeu o
charuto. — Querias que ela soubesse do caso abruptamente, a queima-roupa?
Hermíone fez um sinal afirmativo e estremeceu:
— Mas não imaginei haver perigo de… de violência.
— Pedi que não postastes homens de uniforme ali, pra vigiar. Se a moça aparecer,
espero descobrir a verdade discretamente, sem escândalo. Talvez possa a dissuadir. Mas
achei que seria boa idéia ter a mão alguém responsável, por via das dúvidas.
— Compreendo. — Disse Hildegarda. — Sou uma medida de precaução.
— Sim. Mais ou menos isso. Serás apresentada como tia Marta, tia de Corina, vinda
de Dubuque. Não terás dificuldade em te passar por uma parente excêntrica, do faroeste.
— Muito obrigada. — Retorquiu Hildegarda, cum sorriso contrafeito. — Jantar às 8h?
Desenterrarei meus brincos de coral e o vestido de organza bordada.
Hildegarda entrou no apartamento dos Lapham ainda cedo, a tempo pruma breve
palestra com Corina, que dalgum modo conseguia se parecer ao mesmo tempo com sua
mãe e cuma flor de estufa. Algo de orquidáceo e caro, pensou Hildegarda.
— Encantada em te ter como tia — Estava dizendo a moça. — Mas não sei o motivo
de tudo isso. Alguém anda de olho nas jóias da família? Porque, se andam, é melhor
experimentar os cofres subterrâneos do banco…
— Não sei muito mais do que tu. — Confessou Hildegarda — Só vim porque me
pediram. Talvez seja algo relacionado à contribuição de teu falecido pai ao fundo de
beneficência da polícia. Mas deixemos isso. Digas quem estará aqui nesta noite.
Corina sorriu.
— Apenas os Hemple, vizinhos nossos quando morávamos em Georgetown. E o filho
deles, Vaughan, meu primeiro namorado. Depois temos doutor Parkhill, que parece uma
rã mas é muito bonzinho. E Paulo Séverance, naturalmente.
— Seu noivo? Fales sobre ele.
— Paulo é perfeitamente aceitável. Notas uma cicatriz aqui em meu queixo?
Hildegarda sacudiu negativamente a cabeça.
Corina sorriu, radiante.
— Isso é por causa de Paulo. Bati o rosto num pára-brisa, no verão passado, em Rota
Postal, numa noite, quando Vaughan Hemple esqueceu de se desviar duma árvore. Fiquei
bastante esfolada mas Paulo Séverance me arranjou a cicatriz tão bem quanto se poderia
desejar. Dizem que é o mais hábil especialista em cirurgia plástica do país. Foi assim que
o conheci.
— Estás muito apaixonada?
— Apaixonada? — Corina encolheu os ombros, com toda a sabedoria mundana dos
vinte anos. — Afinal o que é o amor? Só sei que Paulo não é muito feio e dança rumba
toleravelmente.
Hermíone interrompeu a conversa nesse ponto pra anunciar a Corina a chegada dos
outros convidados. Um momento depois Hildegarda foi apresentada a doutor Séverance,
alto, de rosto rechonchudo e infantil. Tipo um pouco macio, pensou, mas, apesar do que
ouvira a respeito, se sentiu favoravelmente inclinada a ele no momento em que o homem
lhe tomou a mão entre os dedos magros e sensíveis.
— Então és tia Marta! És bem como Corina descreveu.
— Sabe improvisar uma mentira. — Pensou.
— É melhor ir me acostumando a te chamar também de tia Marta.

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Ela inclinou a cabeça.
— Te dedicas à cirurgia plástica? Quando fizeres parte da família decerto terei
operação grátis.
— Mas minha cara senhora! — Séverance fez um amplo sorriso amistoso. — Seria
loucura modificar teu rosto. A personalidade é coisa rara. E quem quer ficar parecida com
todo mundo?
— Eu não me importaria… — Começou mas percebeu que o médico olhava o outro
lado da sala, onde Corina lhe fazia sinal de socorro. Parecia cercada por um musculoso
centro-avante, um jovem amorenado de mãos enormes e risada estrondosa. Naturalmente,
seria Vaughan Hemple.
— Com licença. — Disse, vivamente, doutor Séverance.
Quando ele se afastou, Hildegarda se sentiu abandonada. Alguns homens têm essa
qualidade. diabos os levem!
Tal qualidade não era compartilhada pelo vizinho de mesa de Hildegarda, um homem
com cara de rã, completamente calvo, que revelou ser doutor Parkhill, companheiro de
consultório de Séverance. Disse, cum sorriso:
— Á! Sim! Sou o sócio-ajudante. Alguns homens ficariam despeitados ao ficar em
posição de subordinado a um homem mais moço. Mas é tolice. Paulo Séverance ensinaria
a qualquer um. É capaz de tirar um pedaço da pele de teu estômago...
— Realmente! — Ofegou Hildegarda, percebendo que as outras palavras cessaram e
que todos a olhavam.
— ...e o transplantar ao rosto, pra substituir uma parte destruída. É magnífico pra tratar
queimadura.
Vaughan Hemple interrompeu, com certo azedume na voz:
— Afinal de conta isso não é um trabalho meio ridículo prum homem adulto, num
momento deste?: Fazer as mulheres parecerem mais moças do que são, e tudo o mais!
Alguém lhe fez sinal de silêncio mas Vaughan bebera um ou dois copos de vinho. Por
isso um íntimo ressentimento parecia crescer.
— Acho que a época é prum homem entrar em cheio na luta. — Disse, olhando
Séverance significativamente.
— Vaughan acabou de receber o questionário da junta de recrutamento .— Disse a voz
da mãe, orgulhosa e um pouco trêmula. — Creio que também estarás de uniforme um dia
destes. Não é?, doutor Séverance.
Séverance nada disse. Olhava Corina sobre a mesa. Uma lenta vermelhidão subia ao
longo do pescoço. Houve profundo silêncio durante um instante. Depois todos se
sobressaltaram ao ouvir a campainha soar repentina e dramaticamente ao longe.
Hermíone deixou cair o garfo e olhou Hildegarda, que olhou doutor Séverance. A
professora pensou o que faria pra impedir ele ser assassinado, supondo que se tratasse da
tal Élsia Pender arremetendo sala a dentro atirando com a pistola roubada. Não podia
pedir ao cirurgião se esconder embaixo da mesa.
Mas o mordomo anunciou, com horror e consternação na voz:
— Um policial!, madame.
Chegara apenas alguns esbaforidos passos na frente do policial, que era inspetor Piper.
Hermíone se levantou de repente.
— Mas, com efeito, inspetor. Julguei que estivesse entendido.
Ele inclinou a cabeça com ar de fadiga.
— Perdão, minha senhora. Não demorarei, nem 1 minuto.
Se aproximou mais da mesa e circunvagou os olhos nas fisionomias dos convidados.
Enfim passou diante de Hildegarda, sem aceno amistoso, e parou diante de doutor
Séverance.

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— É necessário tua presença no consultório, doutor.
Séverance se mostrou extremamente surpreso.
— Pra quê?
— Compreenderás ao chegar.
O inspetor abriu rapidamente a mão, exibiu o distintivo de ouro na palma. O médico
se ergueu devagar, se virou como pra dizer algo a Corina, e, com a mão do inspetor em
seu braço foi à porta, onde dois paisanos o tomaram a seu cargo e levaram embora.
Inspetor Piper se voltou novamente à mesa de jantar e, balançando nos calcanhares,
observou os comensais. Mas Hildegarda não tinha olhos pra ele. Estava olhando Corina,
petrificada na cadeira, parecendo notar que Vaughan acariciava o ombro dela.
Hermíone explodiria, mas o inspetor levantou a mão, — Te acalmes, minha senhora.
Posso me sentar?
Se atirou à cadeira que Séverance desocupara e começou, em tom de palestra cordial:
— Seria bom que soubésseis, meus amigos, que quando doutor Séverance chegar ao
consultório meus rapazes mostrarão o cadáver duma moça chamada Élsia Pender caído
no chão atrás da escrivaninha, morta por um tiro no seio esquerdo, desfechado a queima-
roupa cuma automática 32.
Era evidente que inspetor Piper tencionava dizer algo mais mas houve uma
interrupção. Corina se esvaiu silenciosamente e desapareceu sob a mesa. Hildegarda
murmurou:
— Então ama o tratante! Que Deus a proteja!
Aquilo dispersou a reunião da sala-de-jantar. Corina foi levada a seu quarto do andar
superior nos braços robustos do antigo namorado, enquanto as mulheres se azafamavam
em torno, exclamando.
No saguão, Hildegarda deteve o inspetor.
— Oscar, se queres saber…
— Não quero saber. Nesta vez o caso está perfeitamente claro. — Mesmo assim
inspetor Piper tinha ar um pouco preocupado, recordando conflitos anteriores. — Olhes
aqui!, Hildegarda. A moça foi ao consultório de Séverance e o ameaçou, de modo que ele
arrancou sua pistola da mão e lhe deu um tiro no peito. Não há outra explicação.
— Me ocorre mais de meia dúzia de hipóteses. — Que tal suicídio?
Ele sorriu com superioridade.
— Examinamos essa hipótese. Principalmente porque havia uma confissão de suicídio
ao lado do corpo.
— Hum-hum!
— Hum-hum, coisa nenhuma! A carta estava numa linguagem muito bonita e florida
pra ser da tal moça. Além disso: Fora escrita na máquina do consultório e assinada a
máquina.
Hildegarda nada disse.
— Séverance não se atreveu a imitar a assinatura dela. Compreendes? Além disso…
— E as mãos da moça? Alguma queimadura de pólvora?
Ele sacudiu a cabeça.
— As provas de nitrato deram negativo. Examinamos também as luvas. Eram bem
novas, sem marca de pólvora. — Então Piper deu o golpe decisivo — Mas o que
realmente elimina a hipótese de suicídio é o fato dela ter recebido dois tiros!
Hildegarda diria algo mas se calou cuma cotovelada do inspetor. Doutor Parkhill se
aproximava. Piper o chamou cum sinal.
— Trabalhas pra Séverance?
— Trabalho consigo, por favor. Tenho interesse de 25% na clínica. Mas, inspetor, essa
tua idéia de Séverance ter algo que ver com…

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003, julho 1949
— Conhecias Élsia?
— Trabalhou pra nós no verão passado durante cerca de quatro meses. Séverance lhe
fez um transplante de pele no rosto e no pescoço há um ano. Queimadura por ácido. Um
caso difícil. Não tinha dinheiro, de modo que pagou a operação trabalhando como
encarregada do consultório. Sempre a considerei um tipo reservado, inacessível. Mas
cuma cara como a minha todas as mulheres são assim.
Doutor Parkhill sorriu filosoficamente.
— Sabias sobre a intriga amorosa entre Séverance e a pequena Élsia?
O outro hesitou.
— Se houve, certamente a conservaram em segredo. Achei que Séverance a repelira,
como fazia com todas as moças que se apaixonavam por si.
— Nessa vez foi o contrário. — Volveu Piper, com ar sombrio. A que horas Séverance
deixou a clínica hoje na tarde?
— Cerca das 2h. Fiquei até as 4h, revelando fotografia. Fotografamos todos nossos
pacientes antes e depois da operação.
— Então Séverance voltou. Talvez tivesse um encontro marcado pra mais tarde com a
moça. Ou a levou até lá, sabendo que o lugar estaria deserto. — Piper encolheu os ombros.
— É só isso, doutor. Dês teu endereço ao guarda à porta, pra caso precisarmos de ti.
Hildegarda subiu a escada, com intenção de se oferecer pra ajudar a reanimar a linda
Corina. Alcançou a porta do quarto a tempo de ouvir a voz clara e insistente de Hermíone:
— Mas Vaughan tem razão, minha querida. Penses na sorte que tiveste disso acontecer
antes de vos casardes. Eu devia ter percebido que algo ia mal quando o homem insistiu
em apressar o casamento.
— Queria que o casamento se realizasse em seguida porque… porque espera ser
convocado. Será capitão-tenente do corpo médico da reserva naval! — Corina falava em
voz fraca. — Disse que é pra isso que serve a cirurgia plástica: Praticam em tempo de paz
a fim de desenvolver a técnica a empregar nos feridos .
— Isso é o que disse. — A voz de Vaughan vibrava de ciúme — Olhes aqui!, meu
bem. Há apenas um meio de evitar a publicidade. Fujas comigo nesta noite a Greenwich,
ou Carolina do Norte. Assim ficarás livre de tudo.
— Não posso. — A voz de Corina estava ainda mais débil. Hildegarda se afastou na
ponta dos pés.
O inspetor a esperava no saguão do andar térreo.
— Pronta?, Hildegarda. Pararei um instante na repartição, pra entregar meu uniforme,
e depois te levarei até casa.

Estavam no carro da chefatura, que corria na direção sul, quando o inspetor se inclinou
à professora.
— Deixes disso, Hildegarda. Não podes admitir, ao menos uma vez, que estou certo?
Precisas procurar sempre o improvável, o impossível? Nunca houve um caso tão simples.
— Menos as luvas novas.
— Hem? Te acalmes, Hildegarda. Séverance percebeu que Élsia estragaria seu plano
de desposar um dote de 7 milhões de dólares, então a liquidou e tentou aparentar suicídio.
— Tentativa inepta, Oscar. Mas não me deu a impressão de homem inepto.
— Muita gente é inepta quando comete um crime.
— Concordo. Séverance não é o único homem que deseja se casar com ela e com os
milhões dela.
O inspetor se limitou a resmungar, em resposta a essa observação um tanto óbvia.
Então Hildegarda bateu no cotovelo dele.
— Oscar, seria muito incômodo parar um momento no consultório de Séverance?

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— Pra quê? — Piper franziu a testa. — Não gostas de ver cadáver. E os rapazes devem
estar com Séverance.
Mas ela insistiu.
— Não é que eu duvide que ele seria o assassino. Ninguém mais tinha motivo
suficiente. Mas em considerarão àquela moça quero esclarecer um pouco a situação.
— Está bem.
E foi assim que Séverance, desviando os olhos dos dedos acusadores de três detetives
da seção de homicídio, encontrou a fisionomia eqüina de Hildegarda à porta de seu
gabinete de consulta.
— Ó! Tia Marta! — Disse com sua voz cálida. — Quanta bondade?
Ela o desenganou do parentesco em termos bem claros.
— Moço, vim pra dar a ti uma oportunidade de confessar. Não o crime. Mas quando
encontraste o cadáver de Élsia Pender, por que julgaste necessário escrever aquela falsa
confissão de suicídio?
Paulo Séverance demorou longo tempo pra responder.
— Não fui quem escreveu.
Hildegarda mostrou ter perdido todo interesse nele. Olhou um momento o corpo
estatelado de Élsia atrás da escrivaninha, viu o casaco marrom escuro, usado mas
elegante, e o atrevido chapéu vermelho. Seus olhos pararam na confissão de suicídio,
aquela carta, evidentemente forjada, com a berrante falsidade de sua assinatura a máquina.
Agarrou e examinou o par de luvas novas que resistira à prova de nitrato. — Um par de
luvas pretas de camurça.
— Satisfeita?, Hildegarda. — Perguntou o inspetor. — Se estás, quero ir à chefatura e
apresentar meu relatório.
— Estou.
E seguiu Piper obedientemente, sem olhar o afável cirurgião, que transpirava entre os
três detetives. Mas no automóvel bateu de leve no ombro do inspetor.
— Oscar, faças um favor: Mandes um aviso à rádio-patrulha, pra deter um carro guiado
por senhor Vaughan Hemple. Deve levar a passageira Corina Lapham, em direção a
Greenwich ou Carolina do Norte.
— Hem? — Foi só o que o inspetor pôde dizer.
— Não quero dizer que o prendam, propriamente. Não o podes deter como testemunha
importante ou algo assim?
— Poderia. — O inspetor disse com desconfiança — Olhes aqui!, Hildegarda…
— Depois disso vamos à residência doutra testemunha. Não sei o endereço, mas o
detetive que estava à porta da casa de Hermíone deve saber.
O carro da chefatura estacou diante dum pequeno e elegante edifício de apartamento
da rua 60, zona leste da cidade.
— Olhes!, Hildegarda. — Explodiu o inspetor — Te acompanho porque uma ou duas
vezes acertaste. Mas aviso…
— Sei o que faço. — Disse ela, fazendo interiormente os mais fervorosos votos pra
que assim seja.
Entraram no pequeno vestíbulo. O inspetor estendeu a mão a um dos botões de
campainha.
— Todos, menos esse. — Hildegarda disse precipitadamente.
Se adiantou a ele, apertando meia dúzia de botões. Alguém abriu o trinco, no alto, os
dois empurraram a porta e entraram.
A escada era estreita, escura e tênue cheiro de couve velha, verniz e inseticida.
Hildegarda disse:
— Aqui estamos: 3A.

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Parou, levantando a mão pra bater. Então farejou, franzindo o longo nariz e piscando
os olhos.
— Céus! Acertei!
Outro cheiro, novo e penetrante, vinha através da porta.
— O quê é isto? — Exclamou o inspetor, e bateu com força.
Depois de apreciável demora, a porta foi aberta por doutor Parkhill. Quando viu quem
era, sua cara de rã se tornou um ponto de interrogação em forma humana mas recuou e se
inclinou.
— Entrai!
Entraram numa pequena sala-de-estar, onde o fogo chamejava alegremente na lareira.
Parkhill convidou, amável:
— Vos sentai, por favor. Calculei que precisaríeis de nova informação.
— Sim. — Disse Hildegarda. — Principalmente depois do que aconteceu. Ou ainda
não sabes? Doutor Séverance apresentou um álibi perfeito. Simplesmente não pode ter
matado Élsia. Esteve diante duma junta da marinha entre as 5h e as 7h. Élsia foi
assassinada mais ou menos às 6h. Desejas modificar ou acrescentar algo a tuas
declarações?
Parkhill não respondeu. Ficou fitando o fogo. Enfim sacudiu a cabeça.
Mas Hildegarda se levantou.
— Seria melhor modificar tuas declarações. — Aconselhou ao médico. — Vejo que
queimaste as luvas que Élsia trazia quando se matou. E a verdadeira confissão de suicídio?
Parkhill ficou em pé subitamente.
— Sim. Também as queimei! O quê fareis agora?
Hildegarda suspirou fundo mas o homem continuou:
— É verdade. Eu estava na câmara escura quando ouvi um tiro. Saí e ali estava ela,
cum bilhete escrito a mão, onde jogava todas as culpas em Paulo. Eu sabia que a moça
era maníaca, pois atirara ácido em si no ano passado porque um astro de cinema que nem
conhecia recusou suas propostas de casamento. Élsia tinha uma paixão terrível por Paulo.
Mas vi uma oportunidade de me vingar dele por ter me conservado em segundo plano
todo esse tempo. Substituí a carta autêntica por uma falsificada e as luvas que ela usava
por novas.
— Na próxima vez — Hildegarda disse suavemente — te lembres de que uma moça
de bom-gosto nunca usaria luva preta com casaco marrom escuro. Foi um grande erro.
Parkhill não parecia preocupado.
— Sei qual é minha situação. Não podeis me acusar de muita coisa. Dois ou três anos,
por ocultar prova.
— É verdade. — Concordou o inspetor. Ficaram todos em pé. Hildegarda se
aproximou da porta. — Tu, Parkhill, tudo calcularas. Apenas esqueceste que Élsia levou
dois tiros. O primeiro errou o coração mas o segundo acertou em cheio. A tentativa de
suicídio não seria fatal, mas agarraste a pistola e…
Era uma alocução vigorosa e dramática mas intempestiva. Porque, de repente, Parkhill
tirou sob a almofada do sofá a seu lado uma pequena e feroz automática.
O inspetor ficou petrificado. Senhorita Hildegarda desmaiou ou pareceu desmaiar. De
qualquer modo, caiu de costas contra a parede cum grito confrangedor. Talvez fora apenas
por acaso que bateu a mão no comutador e deixou o aposento em relativa obscuridade.
A pistola detonou duas vezes e voou contra a parede fronteira com o pontapé que Oscar
Piper deu na mão do médico. Hildegarda acendeu a luz da sala, e todas as luzes se
apagaram pra doutor Parkhill, em cuja cabeça o inspetor aplicou uma coronhada com a
própria pistola.
Piper disse enquanto os dois tomavam café num bar a uma quadra da chefatura:

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003, julho 1949
— Consegui compreender tudo, menos uma coisa: Por que me fizeste mandar um aviso
à rádio-patrulha? Pra deterem aquele rapaz Vaughan. O apanhamos junto aos pais, e estão
mais furiosos que galinhas molhadas. Tudo inutilmente.
— Então Corina não ia consigo?
O inspetor sacudiu a cabeça.
— Consigo! Digo uma coisa: Aquela pequena esteve mais ativa que um decorador
maneta. Contratou um advogado e os Pinkerton, pra defender seu precioso doutor
Séverance, telefonou a dois senadores e um deputado e quase arrombou a porta da
chefatura. — Piper suspirou — Tudo isso entre as 9h e as 11h da noite.
— Eu sabia que ela o amava. — Murmurou Hildegarda — Alguns homens são assim.
Diabos os levem!

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003, julho 1949
Evan Keith se tornou detetive por necessidade, pra
reabilitar seu nome. A investigação ia e vinha entre São
Francisco e Honolulu, com parada de dez anos em São
Quentã.
Em Honolulu o caso deleitaria a alma de Charlie Chan.
Em São Francisco a busca no passado seria exatamente o
que o médico recomendara a Sam Spade. Mas é preciso
reconhecer que mesmo com o grande Charlie e o grande Sam
a seu lado, mesmo com tão ilustre assistência profissional Evan
Keith não realizaria o melhor e mais perfeito trabalho de
elucidar um crime ocorrido havia dez anos.

Veredito retardado
Allan Vaughan Elston

O
homem alto e pálido se apressou a desembarcar na prancha da tripulação. Seu
traje novo e barato era dum tom azul um pouco vivo demais, que não assentava
muito bem. Os olhos também eram azuis mas o rancor lhes dava uma dureza de
aço. Os trazia fitos em sua frente, como decidido a ignorar todas as distrações tais como
as moças que perambulavam na praia, os coqueiros e a brilhante luz solar.
No armazém das docas o guia telefônico lhe forneceu o endereço procurado. Então
saiu e perguntou ao motorista dum táxi o preço da corrida até lá.
— 2 dólares. — Disse o motorista havaiano.
— 1 dólar. — Propôs o homem, que viera de São Francisco trabalhando como
limpador das máquinas pra pagar a passagem. Não podia oferecer mais, pois nada havia
nos bolsos do informe traje azul, afora algum troco miúdo e uma pistola 38 de segunda
mão.
A arma estava num dos bolsos laterais do casaco. O homem alto e pálido tinha a mão
naquele bolso quando, 20 minutos depois, bateu a uma porta num dos subúrbios mais
aristocráticos de Honolulu, que foi aberta por um mordomo de pele morena.
— Valácio K Wharton mora aqui? Gostaria de falar consigo.
— Nome, por favor. — Perguntou o criado.
— Evan Keith. Acabo de chegar no Matsônia.
— Esperes, por favor.
O criado desapareceu. Logo voltou, dizendo:
— Podes entrar.
Evan o seguiu a um jardim onde a água dum chafariz caía com ruído musical. Uma
enjoativa fragrância tropical enchia o ar. Teve impressão de amarelos vivos e vermelhos
chamejantes e viu majestosas palmeiras reais num retângulo em torno dum tanque.
Na beira do tanque um homem de calção se enxugava. Enfiou um roupão e se adiantou
a encontro de Evan. Seu sorriso era hesitante e o olhar parecia dizer: Quem és? Algum
vendedor de aparelho? Mas podia ser simulado, pensou Evan. Aquele homem tivera
tempo de se dominar depois de ouvir o nome do visitante.
Em voz alta, Valácio disse:
— O quê posso fazer por ti?, senhor Keith.
Cum gesto manual, indicou as cadeiras de jardim, fundamente estofadas. Depois se
sentou e pegou uma caixa de charuto.
— Não, obrigado.
Viu que Wharton era um homem corpulento e rubicundo, de boca pequena e lábios
finos num rosto largo. Não muito mais de quarenta, calculou.
— Não te conheço. Não é? — Murmurou Wharton.

24
003, julho 1949
— É verdade. Também não te conheço.
— Tens carta de apresentação?
— Dificilmente teria. Passei os últimos dez anos na…
Evan se conteve. Quase dissera na cana. Era tão fácil descambar à gíria de seus ex-
companheiros de cela. E tão difícil recordar que antes de São Quentã houvera uma
Estanforde e um parque Menlo na vida de Evan. A expressão de azedume se acentuou no
olhar enquanto emendava:
— Passei os últimos dez anos na prisão.
— Wharton parecia estar controlando cuidadosamente sua reação. Tinha o ar dum
homem que conta até 10 antes de se arriscar. — Pensou Evan.
— Na prisão? Por quê?
— Por um assassínio que não cometi. Me condenaram a 15 anos e me libertaram depois
de 10, há justamente uma semana.
De novo Wharton esperou, como refletindo se devia escutar com tolerância ou chamar
os criados pra pôr na rua o ex-presidiário. Depois acendeu um charuto e começou a fumar
vigorosamente. A fumaça ocultava em parte o rosto largo, dum vermelho cor-de-vinho.
No meio da fumaça veio a cautelosa resposta:
— Á! Sim?
— Durante meu terceiro ano de prisão recebi um presente. Eram dez maços de cigarro,
enviados anonimamente no correio, ao cuidado do diretor da prisão. Supus que algum
antigo companheiro de colégio tivera pena de mim, mas que não quisesse se comprometer
indo me visitar ou escrevendo, de modo que se limitava a mandar alguns cigarros. Mas
em meu sexto ano de prisão, aquilo reaconteceu. Um presente anônimo. Nessa vez foi
uma nota de 100 dólares, enviada no correio a minha mãe, que, privada de meu auxílio,
estava doente e vivia a custa das instituições de assistência social. O fato se repetiu na
terceira vez durante meu nono ano de penitenciária. Nessa vez era uma nota de 500
dólares enviada a minha mãe. Chegou muito tarde, porque morrera algumas semanas
antes. Um ano depois desse terceiro presente anônimo, eu fui libertado.
Após alguns segundos de silêncio, Wharton disse:
— Interessante, Keith. Mas por que contas a mim?
— Quando saí da penitenciária chegara à conclusão que a idéia dum ex-colega
compadecido não era aceitável. Quem me estimasse o bastante pra fazer aquilo, iria me
visitar. Ao menos escreveria. De modo que tinha de ser outra pessoa. Alguém que não se
atrevia a me visitar mas não podia se esquecer de mim. Só uma pessoa se enquadrava
nessa descrição, Wharton.
Valácio Wharton tirou do bolso do roupão um lenço de seda e o passou no rosto.
Depois tentou continuar a fumar mas o charuto se apagara. Então esperou mais tempo
antes de responder.
— Acho que não estou entendendo bem.
A voz estava irritada.
— Minha conclusão é de que os presentes foram enviados pelo homem que realmente
cometeu o crime. Não parece lógico?
Outra vez a pausa de dez segundos.
— Não. — Wharton respondeu em voz lenta e precisa. — O verdadeiro assassino seria
o último homem capaz de fazer uma coisa dessas.
— O verdadeiro assassino, se supondo que tenha uma consciência normal, seria o
primeiro e o único homem capaz de fazer isso. E fez. Consegui provar.
Wharton reacendera o charuto. No meio da fumaça a contestação sobressaltada:
— Conseguiste provar?

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003, julho 1949
— Durante meu último ano de prisão refleti bem sobre o caso. O remetente era um
homem rico, a julgar pela nota de 500 dólares. Os três presentes traziam todos o carimbo
de São Francisco, onde vivia minha mãe, mas calculei que o remetente não morava lá.
Doutro modo provavelmente saberia da morte de minha mãe e não mandaria o terceiro
presente. Assim concluí que é um homem que só vai a São Francisco de vez em quando.
Pelos carimbos eu sabia as datas de três dessas viagens. E presumia que um homem rico
se hospedaria num dos melhores hotéis.
Assim, no dia de minha libertação andei correndo os dez hotéis principais de
São Francisco. Pedi a lista dos hóspedes registrados naquelas três datas. Nos
primeiros sete hotéis fui repelido. Mas no oitavo me deram uma chance. O
gerente foi cordial comigo, não sei por quê. Deu uma busca nos arquivos.
Quando não encontrei o que procurava, perguntou se podia fazer algo por mim.
Expliquei que acabava de sair da prisão e estava tentando reabilitar meu nome.
Então se ofereceu pra telefonar aos gerentes dos outros hotéis principais. Deu a
entender que, se eu voltasse a eles, talvez fosse mais bem recebido.
No fim obtive três listas de nomes de cada um dos dez hotéis. O que eu
procurava era um nome que estivesse registrado em todas as três datas: Uma
data de sete anos atrás, uma de quatro anos atrás e uma do ano passado. E
encontrei nas listas do St. Francis hotel: O mesmo hóspede se registrara lá na
primeira data, na segunda e também na terceira. Seu nome é Valácio K Wharton,
e mora em Honolulu.
Wharton pareceu se acalmar. Desta vez não esperou pra dizer:
— É verdade que faço uma viagem de negócios a Frisco mais ou menos de três a três
anos e sempre me hospedo no St. Francis. Mas é absurdo julgar que mandei presente a
um condenado. Te baseias em números, Keith, mas teu cálculo está errado.
— Ainda não terminei o cálculo. Minha próxima coluna de algarismo é esta: A vítima
do homicídio se chamava Ronaldo Bruce, de modo que percorri a vizinhança da casa de
Bruce perguntando. Alguém ouvira falar sobre um tal Valácio K Wharton? Sim,
antigamente um Valácio K Wharton morava na casa ao lado da dos Bruce. Wharton e
Bruce pertenciam ao mesmo clube de golfe. Perguntei que fim levara Wharton. E soube
que saíra do país havia cerca de dez anos. Continuei indagando até saber o dia exato da
partida. Era o dia seguinte ao do assassínio a Bruce.
Nessa vez Wharton contou longamente até 10 antes de responder.
— Vim a Honolulu com a intenção de ficar apenas um mês. — Disse com cautela —
Mas gostei tanto que me estabeleci definitivamente aqui. Se estás me acusando de
homicídio, por que não falas com a polícia?
— Falta ainda o elo, o motivo do crime. — Evan confessou francamente.
Todo esse tempo conservara a mão no bolso direito do casaco. Wharton notou que
havia algo volumoso ali, e raias pálidas surgiram na vermelhidão de seu rosto. Protestou
em voz rouca:
— Tudo o que dizes se baseia em conjetura. O que tens no bolso?
— Uma pistola.
— Não te atreves a me matar! Serias enforcado por isso: Duas condenações…
— Sim. Seria minha segunda condenação. — Atalhou Evan, rispidamente. Mas tu e
eu sabemos que a primeira foi por teu crime. Me deixaste apodrecer dez longos anos na
prisão e tentaste adormecer tua consciência. 10 maços de cigarro. Depois 100 dólares;
depois 500. Isso fez com que te sentisses mais tranqüilo.
Wharton não cessava de fitar com temerosa fascinação aquela saliência no bolso do
casaco. Evan tirou a mão do bolso.
— Eu trouxe o revólver pra evitar que me matasses.

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003, julho 1949
— Já mataste uma vez e poderias tentar novamente Enquanto isso eu gostaria de
recomeçar a vida cuma ocupação decente. Na qualidade de ex-presidiário, só posso
conseguir empregos mal pagos, como o que tenho agora, de limpador de máquina num
navio. Minha única esperança é provar num tribunal que foi tu, e não eu, quem matou
Ronaldo Bruce.
Evan virou as costas abruptamente e saiu do jardim. Um portão o conduziu a uma rua
lateral. Se afastou a passos rápidos numa vereda ladeada de magnólia, em direção à zona
comercial.
Tinha de voltar a seu navio, que em breve encetaria a viagem de regresso a São
Francisco. E depois? No dia que passaria em terra, em São Francisco, continuaria a
investigar a relação entre Wharton e Bruce. E cada vez que o navio aportasse em Honolulu
faria carga sobre o próprio Wharton. Talvez o homem fraquejasse se insistisse.
Evan desceu uma ladeira a passos largos e chegou a um parque com edifícios públicos
num lado e uma gigantesca figueira da Índia no centro. Os galhos da árvore desciam ao
chão formando novas raízes. Havia ali um banco. Parou pra descansar. Olhou com
curiosidade aquela árvore de 30m, e depois um jovem português que namorava uma moça
japonesa num banco próximo. E então concentrou os pensamentos em Valácio Wharton
e Ronaldo Bruce.
Se recordou com aguda nitidez de pormenor da única ocasião em que vira Bruce, dez
anos atrás, em São Francisco. Evan, havia pouco saíra da universidade guiando um
pequeno e reluzente automóvel novo numa avenida dum bairro residencial. Bruce, num
pesado sedã, descera estrepitosamente no portão de sua casa, e se dera a colisão. Ninguém
se ferira mas o carro de Evan se despedaçara.
Houvera a habitual discussão acalorada, cada um afirmando que a culpa era do outro.
A áspera troca de palavras atraíra uma multidão, que ouvira Evan exigir que Bruce
pagasse o conserto, e ouvira Bruce recusar e Evan exclamar furioso:
— Se não pagares arrancarei teu couro.
Então Evan chamara um mecânico, pra levar o destroço a uma oficina. O conserto fora
avaliado em 170 dólares. Com a conta na mão, voltara à casa de Bruce. Insistia em que
ele pagasse a indenização. Mas ao atravessar o gramado da casa, dera como cadáver de
Bruce estendido na relva. Junto a ele estava o cacete com que o feriram. Evan, chocado,
apanhara o objeto porque lhe parecera ser um dos raios da roda da frente de seu carro.
Estava parado junto ao cadáver, com aquilo na mão, quando dois criados de Bruce o
encontraram.
Culpado fora o veredicto do júri.
Evan se recordou do estalido duma máquina fotográfica no momento em que o
levavam a fora do tribunal. Ouviu o mesmo ruído então. Se virou nervosamente mas viu
que era apenas uma turista com a máquina voltada à curiosa figueira.
Se levantou e se afastou a passos rápidos, passando diante do edifício do correio a
caminho ao cais. Um gemer estrídulo de guindaste ecoava no armazém das docas quando
o atravessou aonde o Matsônia estava atracado.
Então, no momento em que subiria na prancha da tripulação, um chinês idoso lhe tocou
no braço.
— Por favor. És senhor Keith?
— Sou.
— Isso é pro senhor, por favor. — O chinês sorriu amistosamente e estendeu uma carta
fechada.
O envelope trazia o nome de Evan e nada mais. Abriu e encontrou um bilhete de apenas
uma linha. Estava escrito numa letra arredondada, feminina:
Por favor, não procures VKW antes de falar comigo

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003, julho 1949
Um amigo
Evan leu duas vezes o bilhete, depois encarou o mensageiro com desconfiança. O
chinês era grisalho, enrugado, vestido com apuro. Talvez fosse o chefe da criadagem
dalguma residência distinta.
— Quem o mandou?
— Venhas, por favor. Te levarei até lá.
O mensageiro se inclinou, depois voltou as costas e se encaminhou com dignidade a
fora do armazém. Parecia não ter dúvida de que Evan o seguiria.
Talvez fosse uma cilada. Wharton podia ter mandado aquele oriental com o fim de
atrair Evan a algum lugar retirado, onde, por ordem sua, o matariam sem risco.
Que outra explicação haveria? Quem além de Wharton saberia o motivo da presença
de Evan na cidade?
Então Evan pôs a mão no bolso e acariciou o revólver. Endireitou os ombros e seguiu
o mensageiro chinês até a rua. O homem o conduziu a um cupê estacionado ali. Evan
entrou, com a mão no bolso. O guia se sentou à direção e pôs o carro em movimento.
Entraram numa rua paralela à praia. Evan não tardou a notar que estavam passando
diante de belas propriedades e hotéis que dum lado davam àquela rua e no outro lado ao
mar.
O carro transpôs o portão dum hotel e seguiu ao longo duma avenida ladeada por
brilhantes flamboiãs. Estacou diante do hotel. O chinês anunciou:
— A pessoa que mandou a carta está no jardim, perto do relógio solar, por favor.
Evan desceu e entrou no vestíbulo do hotel. Ainda seria uma cilada, embora a
probabilidade parecesse menor. Aquele era, evidentemente, um hotel respeitável, não
uma armadilha de assassino. O outro lado do vestíbulo principal tinha vista à praia de
Uaiquiqui.
Saiu ao jardim calçado de laje e viu um relógio solar, junto ao qual havia um divã-
balanço com toldo. O balanço estava de costas a ele mas a oscilação revelou a presença
dalguém.
Atravessou o jardim ao lado do mar e então viu uma mulher jovem sentada sozinha no
balanço. Quase em seguida sentiu a impressão de já a ter visto anteriormente. Não se
lembrava onde.
Seu olhar hesitante provocou um sorriso na mulher. Um leve rubor acompanhou o
sorriso, e Evan compreendeu que fora ela que mandara o bilhete. Estava com roupa de
viagem e uma grinalda de flor de gengibre, e não parecia amorenada o bastante ao
permanecer muito tempo em Honolulu.
— Não queres te sentar?, senhor Keith.
Notou um quê de nervosismo na voz. Se sentou numa cadeira-de-balanço diante dela.
— Por que mandaste chamar a mim?
— Pra te dissuadir. Estás enganado a respeito de Valácio Wharton.
Então era isso! Evan ficou decepcionado. De modo que Wharton se servia duma
mulher bonita pra protestar inocência! Disse friamente:
— Teu bilhete chegou muito tarde. Porque já falei com Wharton.
A expressão alarmada com que ela o ouviu parecia genuína.
— Estiveste em casa dele? Não?
— Queres saber se brigamos? Não. Apenas disse o que sei.
— Mas na realidade nada sabes. Estás apenas conjeturando.
— Conjeturando o quê?
— Que ele mandou a ti três presentes.
— E não mandou? — Evan a perscrutou com o olhar. A menos que ela estivesse em
contato com Wharton, como poderia saber aquelas coisas?

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003, julho 1949
— Ele não mandou. — Respondeu a moça.
Um olhar de desarmante sinceridade se cruzou com o de Evan. Então notou que não
era uma mocinha mas uma mulher madura, mais ou menos de sua idade, 31 anos.
— Por quê faria? — Argumentou ela — A consciência não o levaria a isso. Porque
Valácio Wharton não tem consciência.
— Quem és?
A pergunta pareceu a surpreender.
— Não sabes? Sou Pamela Bruce.
Então ele se lembrou. A vira durante o julgamento, dez anos atrás. Era a viúva de
Ronaldo Bruce.
— Acreditaste que fosse eu o criminoso?
O Não de Pamela veio vivamente, quase veemente.
— Não acreditei que fosses culpado. Depois, quando já fazia três anos que estavas na
prisão, aconteceu algo que me fez duvidar ainda mais.
— O quê?
— Um antigo vizinho foi me visitar. Eu quase não me lembrava mais dele. Me levou
a jantar e me falou sobre sua vida no Havaí.
Valácio Wharton?
Ela fez um gesto afirmativo.
— E antes de nos separarmos me propôs casamento. Quando recusei, foi embora. Isso
aconteceu há sete anos.
— E isso te fez pensar?
— Me fez recordar que quando ele morava ao lado, muitas vezes jogávamos golfe e
tênis. E se mostrava discretamente atencioso. Não fez declaração clara, mas uma mulher
sabe quando um homem gosta dela. Então me lembrei doutra coisa. Valácio deixara São
Francisco no dia seguinte à morte de Ronaldo. E nunca fez saber onde estava, senhor
Keith, até tua condenação.
— E por isso concluíste que era culpado?
— Não. Simplesmente percebi que podia ser, pois aquilo sugeria um motivo. Mas eu
não tinha certeza pra o acusar. Quanto a ti, estava certa que eras inocente. De modo que
mandei cigarro a ti.
Evan compreendeu instantaneamente que não havia coincidência. Os cigarros
chegaram na primeira das três datas, mas apenas porque a presença de Wharton em São
Francisco naquele dia fizera Pamela se recordar de Evan.
— Depois mandaste dinheiro a minha mãe? —
Ela inclinou a cabeça.
— Passei três anos sem tornar a ver Wharton. Então veio me visitar novamente, me
levou a jantar, e outra vez me propôs casamento. De modo que aquilo reavivou minha
suspeita e me fez pensar em ti com lástima. Já então eu ouvira falar sobre a situação de
tua mãe. O mesmo aconteceu três anos depois. Não percebes?
Evan percebia claramente. Três vezes, com intervalos de três anos, Wharton viera ao
continente. De cada vez propusera casamento a ela e fora recusado. E em cada ocasião a
proposta provocara a mesma reação em Pamela.
— Isso explica os presentes. — Disse Evan. Mas não explica por que estás aqui em
Honolulu.
— Quando foste libertado, há uma semana, pensei que os empregadores talvez te
repelissem. Nesse caso eu poderia ajudar. Pertenço ao corpo diretor da companhia
Indústrias Bruce, de modo que pedi conselho a Sam Wang.
— Quem é Sam Wang?

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003, julho 1949
— Um velho criado chinês que, a bem dizer, foi quem me criou. Discuti o caso com
Wang. Concordou que uma jovem viúva não podia decentemente esperar à porta da prisão
pra cumprimentar o homem condenado pela morte de seu marido. Então Wang disse que
procuraria saber quais eram seus planos, e que te ajudaríamos de forma discreta.
Evan a olhou, e a expressão de azedume desapareceu dos olhos. Disse Obrigado,
senhora Bruce, e as palavras lhe pareciam insípidas e estupidamente inadequadas.
— Mas Wang me telefonou que tentavas conseguir emprego num hotel. Disse que
estiveras em sete hotéis e foras repelido, e que agora esperas que te atendam no hotel
Presidio. Eu conhecia bem o gerente do presídio. Telefonei a ele e pedi que te desse
emprego.
Evan a olhou, atônito.
— Então foi por isso que me deram uma chance lá?
— Uma hora depois me telefonou pra dizer que não pediras emprego. Disse que só
querias examinar os registros correspondentes a três datas antigas.
— Eram as datas em que eu enviara aqueles presentes.
— Então sabias exatamente o que eu procurava! E sabias que eu encontraria o nome
de Valácio K Wharton registrado naquelas três datas.
— De modo que mandei Wang investigar o que pretendias fazer. Me avisou que
compraras uma pistola de segunda mão e que te empregaras como limpador de máquina
num navio pronto a partir a Honolulu. Calculei com quê intenção.
— Pensou que eu procuraria Wharton e lhe daria uns tiros? Por que não telegrafaste à
polícia de Honolulu?
— Dizendo o quê? Que um homem que acabava de cumprir pena na prisão pela morte
de meu marido vinha procurar, com intenção belicosa, outro homem que nesse intervalo
tentara se casar comigo? E que a polícia devia o impedir e lhe tirar a arma?
Evan riu, contrafeito.
— Tens razão. O caso não podia ser resolvido assim.
— De modo que Wang e eu viemos de avião pra resolver pessoalmente.
— E agora que já resolveste, o quê mais queres?
— Justiça, tanto a ti quanto a Wharton. — Disse Pamela.
— É exatamente esse meu programa. — Disse Evan. — A reabilitação pra mim e a
condenação pra Wharton.
— Tens certeza de que é culpado?
— Seria capaz de apostar minha cabeça.
— Eu também. — Disse Pamela.
— Então o apanharemos.
— Como?
— Uma voz interrompeu, cortês:
— Pra ti, senhora Bruce.
Um empregado estava ali cum telefone. O longo fio da linha secundária se estendia
através de metade do jardim.
Pamela agarrou o aparelho e atendeu ao chamado.
— Alô. É senhora Bruce
Então Evan viu sua expressão se alterar. Havia uma tensão inquieta na voz ao
responder sucessivamente:
— Como soubeste que eu estava na cidade? No jornal da tarde? Á! É claro! Publicam
os nomes de todas as pessoas que chegam no avião. Como estás?, senhor Wharton. Jantar
nesta noite? Por favor, nem terminei de desarrumar as malas ainda. Bom… Então amanhã.
Adeus.
Ela desligou e volveu os olhos perturbados a Evan.

30
003, julho 1949
— Tens razão. — Disse Evan, sombriamente. — Ele não tem consciência.
— Detesto ver esse homem. Mas teremos melhor probabilidade de êxito se ele não
perceber minha suspeita. Não achas?
Evan aprovou decididamente:
— O conserves na ilusão. O chames de Wally. O mantenhas engambelado até a
próxima vez que eu voltar de São Francisco.
Pamela concordou. Sabia, naturalmente, que o Matsônia fazia uma viagem de ida e
volta entre Havaí e o continente toda quinzena.
Exatamente duas semanas depois, Wharton atendeu ao telefone de sua residência de
Honolulu. Se animou ao ouvir a voz de Pamela.
— Queres vir hoje na tarde?, Wally. Tenho um assunto pra tratar contigo.
Wharton exultou. Ela o chamara novamente de Wally, tal como fazia quando eram
parceiros no tênis, havia dez anos. E jantara consigo três vezes naquelas duas semanas.
Pensou:
Tudo sai bem pra quem aprende a se controlar e a contar até dez. Mesmo que se tenha
de contar dez longos anos enquanto se espera uma mulher.
Foi ao hotel de Pamela e estacionou o carro na alameda de entrada. Se fez anunciar na
portaria. O encarregado telefonou ao apartamento de Pamela:
— Senhor Wharton está te procurando, senhora Bruce.
A voz de Pamela respondeu:
— Mandes subir.
Seu apartamento do segundo andar era formado por uma sala, uma sacada, um quarto
e um banheiro.
Sam Wang atendeu à porta, se inclinou, pegou o chapéu e a bengala do visitante e o
conduziu na sala até a sacada.
Patrícia se ergueu pra o cumprimentar. A fisionomia parecia séria. Perturbada mesmo.
— Creio que temos de enfrentar algo desagradável, Wally. Estou nervosa por causa
disso.
Seu jeito o deixou perplexo.
— O que há?, Pamela.
Depois decidiu que ela estava mais embaraçada que perturbada.
— Prometes não te ofender?, Wally. — Disse Pamela, ansiosamente.
Quando ela falava assim se sentia disposto a prometer tudo. Wharton se sentou num
sofá de junco. Tirou do bolso um charuto, cortou a ponta, e um sorriso vincou o rosto
largo e rosado.
— Gosto dum bom mistério, Pamela.
Ela se sentou em sua frente e perguntou de repente.
— Te lembras dum homem chamado Evan Keith?
Wharton se retesou. Quase ouvia o relógio tiquetaquear no bolso dez vezes antes que
respondesse:
— Keith? É o homem que matou Ronnie?
— É o homem que foi condenado pelo crime — Disse ela — Agora saio de São
Quentã. Parece que, está trabalhando no Matsônia.
— Espero que não te molestou.
— Esteve aqui hoje, logo depois que o navio atracou. Tem uma obsessão, Wally.
— Uma quê?
— Está convencido que foi tu quem matou Ronnie.
Novamente os dez segundos de espera. Wharton estava decidindo se devia dizer Sei:
Me procurou há duas semanas e me lançou em rosto a acusação ou Isso é
ridículo! Adotou um meio-termo, dizendo:

31
003, julho 1949
— O que te faz pensar que fui eu?
— Por exemplo: Afirma que tinhas um motivo pro crime. Acha que o motivo era eu.
— Deve estar atacado do que chamam loucura dos presos.
— Mesmo assim acho que devíamos o tratar com bondade, argumentar. Podes ouvir
as provas que julga ter reunido e mostrar que é tudo ilógico e impossível. Compreendes?
Wharton umedeceu os lábios finos e compridos.
— Compreendo.
— De modo que pedi pra voltar às 5h. Não te importas em falar consigo. Não é?
Quando o telefone tornou a chamar, Wang o trouxe a Pamela. O encarregado da
portaria comunicou:
— Um senhor Keith está te procurando senhora Bruce.
— Faças o favor de o mandar subir.
Wharton se preparou. A melhor tática, decidiu, seria tratar Keith com superioridade,
se mostrar cortês, mas como quem fala cuma criança.
Ouviram uma batida à porta e Wang foi atender. Depois Wang voltou à sacada,
conduzindo Evan. Fez uma rígida mesura diante de Pamela e olhou Wharton fixamente
como homem disposto a tudo.
Pamela foi amável:
— Queres te sentar?, senhor Keith.
Wharton gostou da maneira como ela enfrentava aquela situação difícil. Estava
agradando o homem lhe alisando as penas eriçadas. Wharton procurou adotar a mesma
atitude.
— Veremos se discutimos o caso, Keith. — Sugeriu com voz gutural — Me refiro a
tua obsessão de que matei Ronnie Bruce.
Evan se sentou perto de Pamela. Propôs abruptamente:
— Reconstituirei o crime pra ti.
— Pois não. — Wharton falava em tom cordial. Evan disse:
— Naquele dia de 1931 houve uma colisão em tua rua. Os ocupantes dos dois carros
discutiram de quem era a culpa. Se reuniu uma multidão de espectadores, entre eles tu.
Ouviste eu dizer a Bruce: Se não me pagares o conserto arrancarei tua pele.
Desejavas que eu o fizesse. Querias te ver livre de Bruce por um motivo que não
trataremos agora. Naquele anoitecer viste Bruce caminhando entre os arbustos que havia
na frente da casa. Saíste à rua e pegaste um raio de roda, um dos pedaços de meu carro
que ficaram ali. O usaste pra matar Bruce. Foi assim, em linhas gerais.
Wharton contou dez pulsações. Depois, com tolerante unção, ligeiramente satírico,
respondeu:
— Naturalmente que eu sabia que vinhas duma garagem com a conta do conserto na
mão, e que…
— Não posso provar que sabias que eu estava a caminho. — Atalhou Evan. — O que
posso provar é que descobriste tarde demais que havia uma testemunha de teu crime.
Wharton sentiu ferroadas ardentes no rosto. Puxou um lenço de seda, não tanto pra
enxugar o rosto quanto pra o ocultar de Pamela. Conseguiu responder, não muito irritado:
— Dizes que havia uma testemunha de meu crime? Quem? Por favor, não me deixes
na incerteza.
E Wharton se voltou pra ver que efeito aquilo produzia em Pamela. O olhar dela o
tranqüilizou. Parecia dizer: Tenhas paciência com o coitado, Wally.
— Se não havia uma testemunha, por que deixaste a cidade com tanta precipitação?
Como eu estava preso pelo crime, não tinhas motivo pra te afligir, a não ser que estivesses
com medo dalguma testemunha.

32
003, julho 1949
— O homem estava blefando, baseado simplesmente em suposição. — Decidiu
Wharton. Assegurou a si que os blefadores nunca vencem ao mostrar as cartas. Tudo o
que se tinha a fazer era ficar firme e pagar pra ver.
De modo que Wharton, rindo consigo mesmo, perguntou a Evan:
— Mas quem foi essa testemunha?, se não é segredo.
Evan não lhe deu atenção, preferindo explicar diretamente a Pamela:
Enquanto meu navio estava em São Francisco nesta última viagem, eu dispunha dum
ou dois dias em terra. De modo que fui à polícia cuma lista de três datas: 19 de junho de
1934, 6 de junho de 1937 e 2 de agosto de 1940.
Wharton sabia que eram as três datas em que se registrara no St. Francis hotel.
Pamela perguntou a Evan:
— Mas por quê a polícia se interessaria?
— Não se interessou. — Disse Evan. — Então perguntei se houve crime não
esclarecido nalguma dessas datas. Examinaram os arquivos da primeira data e disseram
que não. Examinaram os da segunda e disseram que não. Depois olharam os arquivos
correspondentes à terceira data e disseram que sim, que em 2 de agosto de 1940 um
pequeno advogado de porta de hospital, Max Gorman, foi encontrado assassinado em seu
gabinete. O crime ainda não estava esclarecido.
Wharton estava perfeitamente rígido, como uma coluna de gelo, se passaram mais de
dez pulsações antes que pudesse retorquir descaradamente:
— Muito bem. Eu estava em São Francisco naquele dia. E 1 milhão de outras pessoas
também.
Evan continuou a falar diretamente a Pamela:
— O nome nada significava pra mim. Mas a profissão do homem me chamou a
atenção. Esses advogados sempre aparecem depois de choque de automóvel. A morte de
Bruce se dera depois dum choque de automóvel. A relação ainda era muito tênue mas
reavivou minha memória. Voltei à garagem onde consertaram meu carro há dez anos. O
proprietário ainda é o mesmo. Recapitulamos juntos o incidente. Cada um completava as
vagas lembranças do outro. Recordamos que enquanto eu esperava a avaliação entrou um
advogadinho de ar velhaco, que viu o carro despedaçado e me perguntou se estava ferido.
Respondi que não. Isso me eliminava como um possível cliente, de modo que me
perguntou quem era a outra pessoa envolvida no acidente. Eu disse o nome. Foi embora
e me esqueci logo do caso, Pouco depois também saí em direção à casa de Bruce. Não
sabia que Max Gorman, me precedendo dez minutos pra perguntar se Bruce estava ferido
e se queria mover processo, chegara à frente da casa justamente a tempo de presenciar o
assassínio de Bruce por Wharton.
Wharton se ergueu, e seus joelhos quase vergaram.
— Creio que isso já foi bastante longe, Pamela. Não achas?
O fato de ela não responder nem o olhar o assustou mais que qualquer coisa que Evan
dissera.
Evan continuou:
— Então procurei a família de Gorman e me informei de qual era seu banco. No banco
declarei que estava investigando a morte de Gorman. Entreguei uma lista de três datas.
— As mesmas três datas? — Pamela perguntou.
— Só duas eram as mesmas. Substituí a data da morte de Gorman, em 1 940, pela do
assassínio de Bruce, em 1931. Pedi ao banqueiro que visse se fora feito depósito
particularmente grande por Gorman nessas três datas. Não foi fácil. A princípio o
banqueiro nada quis me mostrar. Então fui procurar o juiz que me condenou há dez anos.
Está aposentado: O encontrei em seu clube. Eu disse o que descobri até então. E como se
pôs em atividade! Me levou ao banco em seu carro e teve uma conversa particular com o

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banqueiro. Então o banqueiro examinou a velha conta-corrente de Gorman. Descobriu
que no dia seguinte à morte de Bruce, Gorman depositara 3000 dólares. Na data de 1934,
Gorman depositou 5000 dólares. E na de 1937 tornou a depositar 5000 dólares.
Evan se voltou a Wharton e continuou:
— Te cansaste de comprar o silêncio dele, Wharton. E assim, na viagem ao continente
em 1940, puseste termo àquilo. Sim. Havia um milhão doutras pessoas na cidade mas
desse milhão só uma deixou a cidade na primeira das quatro datas e voltou em cada uma
das outras três.
— Coincidência. — Alegou Wharton, desesperadamente.
— Tríplice coincidência. — Evan escarneceu — Como ver cair três penas de ganso
selvagem na mesma chaminé no mesmo dia, de três a três anos.
Ainda assim, Wharton não percebera quanto o laço se estreitava em torno de seu
pescoço. Ouviu Pamela dizer:
— Contes aonde foste depois com tua lista de data, Evan.
A expressão de Pamela estava diferente. Wharton compreendeu que todo esse tempo
ela estivera em combinação com Evan.
— Ainda com aquele honesto juiz a meu lado fui à companhia telefônica
Transpacífico. Que chamadas foram feitas de São Francisco a Honolulu naquelas três
datas ou pouco antes? Descobri que, logo antes do assassínio de Gorman, pedira ligação
a Wharton em Honolulu, quem partiu imediatamente de avião a São Francisco.
Wharton perguntou com voz rouca:
— O quê pretendes fazer?
— Já foi feito. — Evan disse. — A ordem de prisão foi emitida. A polícia está
esperando junto a teu carro.
Wharton se aproximou do parapeito da sacada. Olhou a baixo e viu seu carro
estacionado na alameda de entrada do hotel. Junto a ele estavam quatro policiais. Três
eram da força local e o outro usava o uniforme de inspetor da polícia de São Francisco.
Evan Keith se levantou e ficou ao lado de Pamela. Wharton os olhou e contou até dez.
Não dez pulsações de prudência mas uma por cada ano que roubara da vida de Evan. Uma
por cada ano que esperou Pamela.
Depois Wharton se voltou e viu Sam Wang com chapéu e bengala na mão. Wang disse:
— Vás, por favor.

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Em 1941 The Vanguard press editou A taste for honey
(Sabor de mel), de HF Heard. O segredo da personagem
principal do livro foi astuciosamente guardado pelos editores,
os críticos e o conhecedor-entusiasta que tanto elogiou a obra.
Christopher Morley escreveu Quanta delícia esse livro
encerra pra todo apreciador de novela policial, e o
qualificou de a mais encantadora novela de mistério de
1941. Vincent Starrett lhe chamou a mais original
contribuição à literatura policial dos últimos anos.
Qual era o segredo da personagem de senhor Heard? Se
tratava dum detetive chamado senhor Mycroft. O encontramos
em seu retiro, onde se dedicava à apicultura. Embora certo
nome não aparecesse no livro, ficava cada vez mais claro
que senhor Heard escrevera um pastiche do grande mestre.
No ano seguinte, 1942, senhor Heard apresentou uma
segunda aventura de senhor Mycroft, em forma de novela,
Resposta paga. Novamente a aclamação foi estrondosa.
Christopher Morley o expressou de maneira brilhante a dizer
que Pra gostos que se filiam à rua Padeiro e seus
irregulares, a obra de senhor Heard é tão saborosa quanto
o quegiri temperado com caril de senhora Hudson.4
De modo que o diretor desta revista, enfim percebendo o
que havia, escreveu a senhor Heard. Por que não um conto
sobre senhor Mycroft? Senhor Heard respondeu: É mesmo:
Por que não? E numa manhã que sob todos os outros aspectos
era triste e ventosa chegou um grande envelope que continha
A aventura de senhor Montalba, exequista.
O leitor tem diante de si uma experiência estranha e rica,
pois há muitos aspectos notáveis nesse conto. É, se aprouver
a sua fantasia, um pastiche dAquele cujo nome não se pode
dizer, com senhor Mycroft desempenhando cabalmente o
papel do único e inimitável, e senhor Sidney em lugar do
afobado médico. Ou, se preferir, poderá deixar de lado as
possibilidades associativas e aceitar A aventura de senhor
Montalba, exequista como esse raro tipo de conto detetivesco
onde se combina pura ficção policial com pura fantasia.
Dificilmente o real e o irreal são compatíveis numa história: A
narrativa detetivesca está geralmente presa à Terra pelas
exigências realísticas da fria lógica e da credibilidade: A

4
Rua Padeiro, Baker street em inglês, se refere a Sherlock Holmes, o detetive de Artur Conan Doyle.
https://pt.wikipedia.org/wiki/Mrs._Hudson: Senhora Hudson é uma personagem ficcional da literatura do reino unido criada pelo
médico e escritor escocês sir Artur Conan Doyle. É a proprietária da casa de ficção número 221B da rua Padeiro, onde mora o detetive
Sherlock Holmes, protagonista principal dos romances e contos policiais de Conan Doyle. Holmes divide seus aposentos com doutor
Watson, antes dele se casar com Mary Morstan. A senhoria dos dois solteirões foi mencionada em primeira vez no romance O signo
dos quatro, embora já seja dona do prédio onde Holmes e o biógrafo do detetive se instalam no romance Um estudo em vermelho.
Cuida dos aposentos, prepara refeição, recebe telegrama e encaminha os clientes ao detetive. Seu nome é mencionado em vários
contos: O carbúnculo azul, A faixa malhada, O tratado naval, A casa vazia, Os dançarinos, A segunda mancha, Vila Glicínia, O
desaparecimento de dona Frances Carfax, O detetive agonizante, A pedra Mazarino e Os três Garrideb. Também aparece no romance
O vale do terror. No conto O tratado naval, Holmes disse que sua arte culinária é um pouco limitada mas como escocesa tem um bom
conceito do que seja um café-da-manhã. Na aventura Pedro Negro Watson disse que aprecia a excelente refeição matinal preparada
por senhora Hudson. No romance O signo dos quatro, senhora Hudson gritou de indignação ao ver o bando de garotos maltrapilhos e
de pés descalços, os irregulares da rua Padeiro, subir a escada e irromper na sala-de-estar de Holmes. No conto A segunda mancha
levou, numa bandeja, a Holmes o cartão-de-visita duma mulher que o consulta. https://pt.wikipedia.org/wiki/Kedgeree: Quegiri,
kedgeree é um prato nacional britânico, com origem no kitchari ou khichdi indiano. Se prepara misturando peixe defumado
(geralmente haddock), arroz, limão, caril (curry), ovos cozidos e salsa fresca. A origem remonta os contatos entre militares de origem
inglesa e escocesa com as tradições indianas, a partir de meados do século 14. Durante a era vitoriana era um prato servido frio,
normalmente como café-da-manhã. Atualmente se admite frio ou quente e é marca de alimentação típica do verão, pela leveza e toques
marcantes e acentuados. Nota do digitalizador

35
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fantasia, noutra parte, tem asa: Pode se elevar à estratosfera
do incompreensível e mesmo do sobrenatural. Senhor Heard
conseguira emulsionar o azeite e a água do realismo e da
fantasia onde tantos fracassaram antes?
Porém o mais notável neste conto é talvez o próprio senhor
Montalba. Ou, antes, o que representa. Certamente Montalba
é o mais extraordinário armador que já apareceu em letra-de-
fôrma, e sua empresa funerária a mais estupendamente
grandiosa que já se imaginou. Será possível tratar a própria
morte com chiste pungente, com malícia mortífera? Julgai por
vós. O curioso e fantástico tratamento do tema por senhor
Heard e sua horrenda taxidermia não são pra estômago
delicado.

A aventura de senhor Montalba,


exequista
HF Heard

P uxei nervosamente o cordão da campainha. Do interior da casa veio um grave


clangor musical. Puxes o cordão e terás tua canção, pensei, cuma risadinha.
Sempre faço trocadilho quando estou nervoso. E também sempre percebo uma
porção de coisas insignificantes. Reparei que a casa era realmente de excessivo bom-
gosto. A porta era de mogno, tão polido que parecia de tartaruga. Seu rico matiz fulvo
estava encaixilhado num belo arenito, em tom amarelo avermelhado claro e uma
granulação demasiadamente perfeita pra provir duma pedreira. A fachada se erguia em
perfeitas proporções até uma cornija em forma de balaustrada onde se viam a decentes
intervalos, contra o céu azul, elegantes urnas de bordas largas. Um cavalheiro
realmente bem-vestido sempre contém algo antigo, citei mentalmente. A casa era
uma obra de arte tradicional, novinha em folha.
Um som me fez descer os olhos à terra. A porta se abrira. Nela estava um homem que,
melhor do que a casa, ilustrava minha observação. Vestia um traje matinal de finíssima
lã penteada cor de pomba, com gravata cinza prateada no pescoço e luvas cinzentas de
pele de cabrito nas mãos. Disse Entres, por favor. Obedeci e um criado negro, de libré
marrom, me desembaraçou do chapéu e da bengala, antes que me voltasse bastante
presença de espírito pra começar:
— Vim…
— Tenho o máximo prazer em mostrar a ti. — Disse o homem, cortando o principal
de minha explicação. Me vi conduzido lentamente num longo corredor, enquanto do
contraste com nossa marcha processional, se derramava a jorro em meus ouvidos uma
torrente da mais volúvel tagarelice que já ouvi. — É aqui a entrada do exequiário.
— Do quê?
— Á! Não sabes? Le mot juste, creio que me permitirás. Me ocorreu num instante, e
contigo percebi que poderia dar le coup de grâce 5em toda a concorrência. Está
patenteado, é claro, assim como o processo, naturalmente. Mas o que é um processo sem
um nome? Na verdade, creio que se tivesse de escolher entre explorar o processo ou o
nome escolheria o nome. Sem dúvida, o processo é fascinante pro técnico, e está claro
que a gente tem interesse como especialista. Mas e o público? Quer uma palavra e, o que

5
Le mot juste (A palavra certa). Le coue de grâce (O golpe de misericórdia). Em francês. Nota do digitalizador

36
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é mais, uma palavra não descritiva. A nossa é uma profissão-chave justamente por isso.
Empreendemos — a palavra foi pronunciada num tom apenas um pouco mais acentuado
— a tarefa de possibilitar que as pessoas digam o indizível. Foi onde percebi minha
oportunidade. Os outros se contentavam em seguir o gosto do público ou, se quiseres, o
desgosto do público. Fui o primeiro a mostrar que as modas podiam ser inventadas. Se
isso se dá com a roupa, por que não com o funeral? A profissão se aferrava ao passado.
A tradição do luto? O que era aquilo além duma confissão de derrota, cobrir tudo, celebrar
o acontecimento na noite, conservar tudo na sombra? Fui o primeiro a dizer: Solicitamos
o mais atento exame e tomamos o público em nossa plena confidência. Na
verdade já era mais que tempo prua romper a tradição. Armadores, empresas funerárias?
Reconheço que eram bem intencionados. Mas sabes quê lugar está calçado de boas
intenções! Queriam que as pessoas enfrentassem a morte com sóbria lucidez. Mas essa
boa gente estava mais que um pouco arrasada Percebi. Agora o público não tem
necessidade de enfrentar a morte, ao menos a alheia. Aeternitas resolveu esse problema.
Nunca ouviste falar sobre Aeternitas? Naturalmente esta nossa época é da especialização.
Mas Aeternitas ultrapassou um pouco as fronteiras. Era uma invenção alemã. A usaram
com êxito comercial considerável no grande jardim zoológico de Berlim. Como? Leves
até casa um de nossos hóspedes. Tenhas um animal de estimação eternizado.
Ali estavam, enroscados em sólido sono, gatos, cães, leõezinhos, macacos raros. A lista
de perdas do zoológico fora capitalizada, um prejuízo convertido em lucro. Os mortos
pagavam os vivos. Além do mais, não havia limite de tamanho. Do escaravelho ao
elefante, era tudo a mesma coisa. Não havia truque de taxidermia. O que se recebia era
um animal de verdade, tão real que se o cortássemos lado a lado teríamos uma seção
transversal perfeita, com todos os órgãos. Foi isso, reconheço, o que me fez pensar.
Conheces todas aquelas histórias românticas de corações conservados em vasos e cofres
de ouro. Naturalmente, se poderia ter assim, desculpes minha dissertação anatômica, um
pedaço de cartilagem mas um coração não. Mas com Aeternitas logo vi que ali estava a
oportunidade de preservar o órgão na forma perfeita, com as curvas cheias, e duro. Bem…
Não tão duro quanto pedra mas com boa matéria plástica capaz de resistir ao manuseio e
a uma razoável quantidade de lágrimas não demasiado amargas, sem perder o brilho. Mas
por que se limitar ao coração, por que não ir diretamente à preservação total da pessoa?
Quem andaria dum lado a outro cum coração num vaso, se pudesse ter o finado inteiro,
sentado em sua casa? Deprimente? Não mais deprimente que uma fotografia! Tétrico,
horrendo? Tudo isso, asseguro, é vieux jeu, o frisson duma era que tinha de ser macabra
faute de mieux.6 Aeternitas é a vitória da sanidade e do sanitarismo sobre o falso e
bolorento romantismo. Foi meu primeiro golpe. Tornes a encontrar teu ente querido
em minha sala de recepção e o leves até casa! Pra quê o deixar na tumba se
pode o ter à mesa? Dali aos grupos completos era apenas um passo.
Senhor Montalba abriu de par-a-par uma porta no fim do comprido corredor ao longo
do qual despejara seu solilóquio. A peça era ampla. Em largas janelas à esquerda, um
jorro de luz dourada, muito mais cheia que a emitida por nosso Sol cotidiano caía em
raios oblíquos sobre um fino tapete persa. Se via através da janela. No exterior o chão
cintilava maciamente em alvura de neve.
— O conforto engastado na pureza. — Sussurrou senhor Montalba a meu ouvido — É
isso o que queremos durante o… — fez uma pausa, não tanto pra procurar a palavra certa
pra causar maior impressão em mim — …durante o reajuste às novas relações.
Ao lado da janela estava uma alegre lareira, onde troncos que chegaram a um grau
perfeito de incandescência continuavam ardendo indefinidamente. Aquilo era tão
obviamente apropriado que se limitou a agitar a mão enluvada em sua direção. Duas belas
6
Vieux jeu (fora de moda), frisson (emoção), faute de mieux (na falta de coisa melhor), em francês. Nota do digitalizador

37
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cadeiras sheraton7 estavam colocadas uma a cada lado da lareira e os ocupantes olhavam
meditativamente o fogo.
— Iluminação perfeita pruma impressão repousada. A luz branda e vacilante dá uma
sensação de paz, sem rigidez solene. Vejas que os sorrisos parecem quase animados. Nos
orgulhamos de nossos sorrisos e achamos que merecem a melhor iluminação pra lhes
realçar o efeito. Qualquer coisa de fixo seria pior que uma atitude de desalento.
Procuramos obter uma expressão de bom-humor tranqüilo, e concordarás que
conseguimos. Quando o ente querido volta até casa permanentemente — a palavra foi
pronunciada com ênfase — preparamos sempre o regresso. Temos planejada uma série
de cenários pra todos as bolsos, desde o mais simples canto confortável individual até a
ala familiar a ser acrescentada às mansões. Acabamos de completar um projeto
verdadeiramente ambicioso. O velho mordomo da família está sentado numa pequena
peça do fundo, olhando com satisfação algumas reproduções perfeitas em aço inoxidável,
da prata da família e com o pano de arear ainda na mão. Na sala da frente estão os avós,
um de cada lado da lareira, com algumas cadeiras disponíveis pros parentes que entram
durante um instante ou vêm definitivamente. Em cima, ao piano, está a filha, a
encantadora tísica, e, virando as páginas da música, o jovem que, quando a moça se
eternizou, quase teve o coração despedaçado, mas está perfeitamente calmo e senhor de
si. Keats veria ultrapassada sua urna grega — Até sempre ele amará e ela será bela.
Acima deles está o quarto das crianças, presidido, como é natural, pela velha e querida
governante inclinada sobre o anjinho no berço e o menino de dois anos que contempla a
chama da lareira com infantil solenidade.
— Não sou da imprensa. — Finalmente consegui dizer.
— Á! Perdão. O estilo de senhor Montalba se modificou num abrir e fechar de olhos.
— Peço perdão. Abrimos há pouco tempo esta nova mansão, e, como é natural,
despertamos muita curiosidade inteligente. Julguei que pertencesses a uma revista
feminina. Mas — já tinha meus dedos entre suas mãos enluvadas — Vieste pedir nosso
serviço? Tens um ente querido pronto ou quase pronto pra ser eternizado? Por favor, não
te sobressaltes. Gostamos que nos dêem um pouco de antecipação. Às vezes faço visitas
prévias, pra realizar um pequeno estudo do natural: Apanhar a atitude ao vivo,
compreendes. Muitos combinam tudo comigo antecipadamente. Então posso, como
direi?, evitar hiato embaraçoso.
Enfim logrei interromper aquele caudal-de-letes8 comercializado.
— Senhor Montalba, vim perguntar se recebeste o resto dum senhor Sibon.
— Resto! — Exalou a palavra como um fumante resiste à primeira baforada dum fumo
ordinário. — Por favor. A mais inadequada das palavras. Mesmo relíquia tem um quê de
abandono inteiramente desnecessário. Forma é a palavra indicada. Tudo o que dizemos e
fazemos é em boa forma, na melhor das formas, mesmo. Recebemos a forma, um ou dois
retoques prestimosos, e o próprio mármore e os dourados monumentos de príncipes não
se lhe comparam em durabilidade.
Não cedi terreno.
— Recebeste a forma de senhor Sibon?

7
Cadeira sheraton O estilo de Thomas Sheraton a princípio parecia com o Luís XVI, sendo depois influenciado pelos
estilos diretório e império. O móvel que fabricava era de estrutura delicada, tinha linhas retas e curvas em segmento em lugar das
curvas serpentinas de Hepplewhite. Sheraton também publicou um livro, The cabinet-maker and upholsterer drawing book (Manual
do marceneiro e do estofador). Seus desenhos influenciara a produção inglesa durante muito tempo. Como ornamentação empregava
a marchetaria e aplicações de placas de porcelana. http://historiadascadeiras.blogspot.com.br/ Nota do digitalizador
8
Caudal de letes: Segundo a mitologia clássica o rio Letes fica no Inferno (Hades), onde os mortos se banham e esquecem a existência
anterior. Na comédia de Dante, Letes é um rio do Purgatório, onde as almas penitentes se banham e se purificam pra ter acesso ao
Paraíso. Letes também é o córrego que flui através da gruta que Virgílio e Dante atravessaram pra chegar do Inferno ao Purgatório
(Canto 34). http://carlosvaz.blogspot.com.br/2005/02/sobre-o-rio-letes.html Ó!, Virgílio. És aquela fonte donde em rio caudal
brota a eloqüência? Falei, curvando, vergonhoso, a fronte. (Canto 5) Nota do digitalizador

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— Um parente?
— Não. Apenas um conhecido.
— Bom… — A voz se tornou confidencial — Sem dúvida. Isto é um procedimento
pouco profissional, senhor…
— Silchester.
— Senhor Silchester, precisamos ter nossas normas. Estou certo que compreenderás.
Os parentes mais próximos têm direito, embora eu me desvaneça em poder dizer que lhes
conquistamos de tal modo a confiança que quase sempre renunciam a tais direitos. Pra
todos os outros sim, inclusive os parentes consangüíneos, nada, até o dia da apresentação.
Mesmo assim farei uma exceção a teu favor. Não tenho dúvida em dizer que desde o
momento em que te vi percebi que tens decidida vocação. Gosto dessa palavra de origem
religiosa. Nossas profissões são tão nitidamente paralelas. Sim. Senhor Sibon está aqui,
descansando.
— Então está vivo?
Senhor Montalba tomou um ar malicioso.
— Descansando foi o que eu disse. A vida é tão agitada. Sempre procurando preservar
as aparências. E agora será preservado. A preservação é praticamente nominal. Incluímos
no preço uma garantia de dez anos e um serviço de inspeção.
— Quando morreu?
— Mais uma vez: Estou procedendo de maneira pouco profissional. O coração acima
da cabeça, compreendes. Mas por que não? Não és da imprensa. E não posso deixar de
me sentir encantado ao tratar com outro entusiasta, como vejo que és. Senhor Sibon foi
um de meus primeiros clientes que utilizou nosso serviço antecipado. Quando sentiu que
estava, como dizemos, perdendo forma, mandou me chamar. De modo que eu pude estar
em seu apartamento quando (mais uma frase que pusemos em circulação) fez a
transferência. É tão aconselhável pra evitar que a transformação sofra hiato, como eu já
disse. Não teve indisposição prolongada. Nada mais que uma pequena palpitação. A
calma é ainda mais apreciada por todos quando o coração esteve um pouco febril.
Parou e pôs a mão gorda em meu ombro. Ela pousou ali, como um pombo pesado e
quente e depois me deu um leve empurrão. Com a outra mão comprimiu o lambril da
terceira parede do vasto aposento. O lambril girou a trás e senhor Montalba me empurrou
na passagem assim aberta, me murmurando ao ouvido:
— Terás o privilégio de ver um recém-chegado antes de o adaptarmos ao cenário,
A porta se fechou atrás de nós. Estávamos num corredor escuro, com fracas luzes cor-
de-rosa no teto. Outra porta se abriu. Se acendeu uma luz alaranjada. A peça era pequena
mas pintada cum tom rosa alegre. Continha apenas uma peça de mobília: Uma cadeira.
Mas era uma cadeira confortável. E assim o ocupante parecia pensar. Dormitando
calmamente nela estava Sibon. O reconheci logo por o ter visitado antes. Me aproximei
vivamente e toquei o ombro,
— Ó! Não devias fazer isso! — Mesmo sem olhar a trás, senti o sorriso no murmúrio
de senhor Montalba.
— Mas não pudeste resistir. Não é? Também não pude resistir à tentação de fazer a
experiência contigo. Somos dois entusiastas. Eu sabia.
Pois eu recuara ainda mais vivamente do que ao me aproximar. O ombro que toquei
estava duro e rígido como pau.
— Não compreendes? Naturalmente, não posso deixar de ficar satisfeito. É uma
repetição do caso da voz do dono. Não é? Mas nessa vez são os olhos, não os ouvidos,
que têm uma ilusão perfeita. Entretanto, espero que não sofreras choque. Hás de
reconhecer que fiz o possível pra evitar choque.

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Meu espírito estava num desagradável torvelinho. Precisava pôr em ordem minhas
impressões. Em primeiro lugar, aquele detestável taxidermista era, sem dúvida, um
entusiasta. Não dava importância aos vivos. Amava os cadáveres. Um moderno
desenterrador de cadáver, um ressuscitador, um… não um caçador-de-cabeça mas um
ladrão de corpo civilizado. Em segundo lugar, Sibon estava morto, sem dúvida. Aquele
contato horrivelmente firme o demonstrava com muda eloqüência. O repugnante processo
de preservação já o transformara num bloco sólido. Me lembrei de que, na breve
entrevista antes de sua morte, ainda tivera tempo de se queixar do coração, que realmente
parecia não estar em bom estado.
Agora só me restava agradecer a senhor Montalba, exequista, e ir embora a fim de
apresentar meu relatório. Me voltei. Me olhava com tranqüila satisfação.
— Os parentes de senhor Sibon não virão o buscar?
— Parece que infelizmente não tinha.
— Então?
— Também em confidência, posso dizer que adquiriu um lugar pra si.
— Um lugar?
— Sim. Antes de ires embora, faças o favor de examinar mais uma seção de nosso
serviço.
Me conduziu a fora da peça e apagou a luz. Seguimos ao longo do corredor de luz
rósea. Na extremidade havia uma porta grande. Senhor Montalba a abriu. Esse movimento
evidentemente pôs em ação um órgão, que começou a tocar. Vimos na frente um amplo
coro de igreja. Em todos os lados havia banco. Alguns estavam vazios mas muitos
ocupados pelos componentes duma congregação, uns ajoelhados e outros sentados.
— Muitos clientes nossos, principalmente quando a atmosfera doméstica não foi de
todo favorável, preferem um ambiente mais eclesiástico. O lar é sagrado mas aqui temos
outra santidade elegível.
Certamente que era. Incenso ao olfato. Velas elétricas e vitrais aos olhos. Um discreto
canto gregoriano aos ouvidos.
Bati em retirada. Aquilo era final e definitivo. Sobre o derradeiro mistério, senhor
Montalba estendera a mais espessa cortina de impostura que a humanidade já tecera. E
ali, Sibon, ou tudo o que a lei o procuraria seu, o corpo de Sibon ficaria seguro (imaculado
seria a palavra que senhor Montalba sugeriria) no mais intenso cheiro de santidade. Que
evasão ao mais hábil dos escroques internacionais!, justamente quando um traje de
presidiário ou uma gravata de cânhamo era preparado pra si.
Senhor Montalba me acenou da porta.
— Venhas nos ver outra vez, e, naturalmente, quando sentires necessidade de tal
serviço, não te esqueças que o nosso é, e sei que não estou me gabando, incomparável.
Chamei um táxi e voltei a nosso hotel. Como de costume, senhor Mycroft não mostrou
surpresa quando contei minha história invulgar. Vendo que não comentava, o que é
sempre um tanto exasperante, acrescentei pra rematar:
— A missão da qual me encarregaste pôs termo ao caso.
— Por quê? — Perguntou, com uma espécie de ingenuidade irritante.
— Ora! Vi Sibon e, fato desagradável mas convincente, até toquei nele.
— Isso prova que escapou de nós?
— Quando fui o ver contigo, estive tão perto de si quanto estou de ti. Nesta tarde estive
igualmente próximo do que resta de si.
— Sim. Mas sabia por quê fôramos até lá. Se o jogo não estivesse preste a terminar,
eu não teria te levado. Isso me proporcionaria uma segunda testemunha e impediria que
Sibon, pois era gascão e muito impulsivo, cedesse a algum impulso melodramático, que,
embora fatal pra sua esperança, seria ainda mais fatal pra mim.

40
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— Mas estava mesmo doente.
— É possível. Mas te lembres que depois que o criado saiu pra o avisar sobre nossa
visita, embora nos fizesse esperar algum tempo, foi quem nos mandou entrar.
— Não entendi.
— Por acaso eu disse que esperava isso de tua parte?
— Mas vi o cadáver, e não viste!
— Se eu aceitar tua conclusão, talvez tenhas licença de pôr em dúvida a premissa
inicial.
Aprendi a deixar senhor Mycroft em paz quando está assim. Me atrevo a crer que,
tendo razão com tanta freqüência, muitas vezes quando os outros o julgavam errado, isso
lhe transtornou ligeiramente o espírito. De modo que me limitei a perguntar:
— Então por que me mandaste até lá em vez de ires pessoalmente?
— Mas está claro que isso era um erro. Percebi no momento em que terminava de
dizer. — E o tranqüilo xeque-mate de senhor Mycroft: — Porque achei que senhor
Montalba e tu vos entenderíeis melhor que ele e eu.
Não me deixou opção além de sair do quarto. Mas quando eu saía o mestre se abrandou
como de costume:
— Faças o favor de te lembrar que fizeste algo que eu não poderia ter feito. Não estou
dizendo que não foste logrado. Na realidade não sei. Mas reconheço que conseguiste
trazer a mim muito mais informação do que eu esperava. Agora, senhor Silchester, se
queres usar teu outro dom admirável, mandando trazer a nossa pequena sala-de-estar um
daqueles jantares tão bem planejados, enquanto organizas teu plano estratégico estudarei
este outro jogo e verei se realmente está tão encerrado como parece. Au revoir, durante
uma hora.
Deixei bastante alegre meu sagaz amigo. No fim de conta, como dissera mais duma
vez, éramos complementares, o que de sua parte constituía um cumprimento.
Certamente, o que quer que senhor Mycroft pensasse de mim como mensageiro, não
me deixava dúvida quanto a sua opinião sobre a qualidade de maître d'hotel. O hotel onde
nos hospedamos durante esse caso era um grupo de bangalôs servidos por uma excelente
cozinha central. Lá, junto cum ótimo chefe de estado-maior, preparei algo que mesmo
durante o planejamento me tirou da boca o gosto das substâncias preservativas de senhor
Montalba. Quando se realizou o ataque, senhor Mycroft justiçou dignamente algumas
lagostas decapitadas que absorveram um molho de vinho branco e esperavam a sentença
em torradas com anchova. Mexeu o creme no borche, observando com olho profissional
o branco e o carmesim se entremisturarem. Com destreza de cirurgião expôs à luz as
trufas e castanhas que o faisão assado escondia dentro. Demonstrou com segurança
técnica a estrutura da bombe glacée.9 Depois desmontou cuma lança cavalheiresca os
anjos a cavalo que fechavam a marcha.
Enquanto tomávamos café, disse:
— Não sei se esclarecerei esse pequeno mistério do empresário fúnebre tão bem
quanto resolveste hoje o eterno problema do menu. Temos que recordar exatamente onde
estamos. Se percebendo exatamente onde se está se pode ver além do que se imagina.

9
Au revoir (adeus), maître d'hotel (mordomo), em francês. Bombe glacée (pudim-sorvete), em francês, bombe em
inglês, é uma sobremesa-sorvete congelada num molde esférico, de modo a se assemelhar a uma bala de canhão. Borche (borsch,
borscht ou borshtch) (em russo e ucraniano борщ, em polaco barszcz; em lituano barščiai, em romeno borș), é uma sopa tradicional
em diversos países do leste Europeu: Ucrânia, Polônia, Rússia, Romênia, etc. A sopa é normalmente preparada com beterraba, que dá
um forte coloração vermelha. Outros ingredientes costumeiros são repolho, cenoura, pepino, batata, cebola, tomate, cogumelo e carne,
vinagre (alternativamente, algumas receitas indicam limão), às vezes feijão. O prato costuma ser servido com nata (creme-de-leite) e
batatas cozidas, ou kasha, uma papa de cereal. https://pt.wikipedia.org/wiki/Borsch Nota do digitalizador

41
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Aquilo era um exórdio típico e promissor. Emiti um som que descobrira ser a
antífona10 perfeita, uma espécie de hum, intermediário entre Muito bem! e Como assim?
— Em primeiro lugar, temos o próprio Sibon, que está ficando velho. Os verdadeiros
escroques nunca têm velhice sadia. Sem dúvida, Sibon é um escroque de alto coturno e
raramente se digna empreender golpe de menos de 50 mil dólares. Naturalmente, no
apogeu da carreira nunca seria outré11 o bastante pra andar armado. Seu nome sempre
terá lugar de honra nos anais do crime, porque podemos dizer que realmente abriu a vasta
mina inexplorada que eram os palácios dos rajás hindus. Antes os escroques apenas
apanhavam os peixes tropicais que nadavam até suas redes na água do setentrião. Se
contentavam com o roubo dalguma pedra de valor, de vez em quando, e um pouco de feia
chantagem por causa dalguma mulher branca que nada tinha de feia. Mas Sibon teve a
coragem de sair pra desbravar esse campo ubérrimo. Dizem que teve algumas aventuras
igualmente singulares. Se um homem se deixa apanhar naquela paragem, não é
propriamente detido, mas dividido. O rajá costuma conservar uma parte da anatomia da
pessoa como garantia de seu regresso. É evidente que Sibon ainda está praticamente
intato, deixando de lado aquele problemático mal do coração. Mas tem um processo de
extradição a se fechar cada vez mais em torno de si. Está velho e talvez doente. Sem
dúvida, está mais do que pronto pra ser esquecido. Mas isso não é o mesmo que dizer
sane está pronto pra ir aonde todas as coisas se esquecem. O desejo de Sibon, e precisamos
conhecer seu desejo pra saber o possível paradeiro, é desaparecer.
Em segundo lugar está minha pessoa. Procuro Sibon porque suas atividades
passadas despertaram minha curiosidade profissional. Estou pronto pra lhe
deitar a mão. Fui o ver há cerca de dois dias em companhia de ti porque queria
que se mantivesse firme, e achava que o faria se soubesse que eu estava quase
pronto a dar o bote. Tudo saiu bem como te recordas. Não perdeu a cabeça ao
nos ver. E quando não a perde eu de bom grado trocaria a minha pela sua.
Percebeu logo que eu não iria o ver se tivesse todas minhas provas na mão, mas
que iria quando estivesse quase pronto, pra ver em que pé estavam as coisas.
Não há dúvida que estava doente mas sua enfermidade era deliciosamente
oportuna. Repito: Um homem que sofre um mal cardíaco realmente grave não
manda embora o criado pra receber pessoalmente as visitas não convidadas.
Soubemos hoje na manhã que tivera um ataque fatal durante a noite e, de acordo
com a higiene moderna, o armador, peço perdão a senhor Montalba, o exequista
mais em moda levara a forma. Gosto dessa palavra. Senhor Sibon podia estar
em mau estado mas certamente estava em boa forma. Assim, em terceiro lugar
entras tu. Visitas senhor Montalba e perguntas se senhor Sibon se estabeleceu
na derradeira morada. As perguntas diretas são as melhores, principalmente
quando feitas…
Parou um momento e pensei que diria por pessoas simples, mas repetiu o
qualificativo feliz:
— …de maneira direta. Mas então a história começa a se desenrolar muito
mansamente. Isso nunca se dá com o verdadeiro crime, assim como com o verdadeiro
amor. A recepção que senhor Montalba fez a ti… Ergueu os olhos a mim com aquele seu
sorriso largo e torto. — Senhor Silchester, fomos companheiros de caçada muito tempo
e aprendemos a apreciar os talentos e singularidades um do outro. Sei, reconheço, que
enquanto eu daria um competente cirurgião ou farmacêutico, conseguirias algo mais que
um êxito moderado como maître d'hôtel. Mas como empresário fúnebre, ainda que se

10
Antífona: Versículo cantado pelo celebrante antes e depois dum salmo. Essa função deu origem ao estilo do canto antifonal.
http://www.dicionarioinformal.com.br/ant%C3%ADfona/ Nota do digitalizador
11
Outré (exagerado), em francês. Nota do digitalizador

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fazendo chamar exequista, nunca? Por quê senhor Montalba te acolheu com o honroso
tratamento de confrade?
— Pensou que eu fosse da imprensa.
— Isso foi apenas a princípio. Aliás, os representantes da imprensa não são confrades
de profissionais como senhor Montalba. São irmãos de sangue da polícia. Ambos
preferem uma presa viva e palpitante a imagens de cera. Não. Fizeste tanto succès fou,
com esse modista da morgue que me despertou a curiosidade. Deixemos Sibon dormir.
Talvez esteja dormindo tão profundamente quanto acreditaste. Mesmo os escroques
procurados pela policia morreram muito oportunamente, pra eles. Não há demasiada
coincidência nisso. Sem dúvida, ser perseguido depois dos 50 anos não é bom pro
coração. Mas reconheço que tua descrição do atual dono da forma dele me intrigou. Tenho
de ir observar pessoalmente. No fim de conta, até que eu inspecionar o corpo, como dizem
os juízes de inquérito, não poderei dar o caso como oficialmente terminado.
Na manhã seguinte nosso táxi parou sob a porta cochère do edifício Montalba. Ao
descermos ergui os olhos à frontaria. Nada havia de misterioso, mesmo na fachada lateral
do prédio. As janelas estavam abertas, com flor nos peitoris. Então dei com os olhos
nalguém que nos fitava junto a um grande vaso de goivo amarelo e de miosótis. Achei
que o observador, percebendo também ser observado, recuasse a cabeça. Mas seu olhar
de tranqüila curiosidade se prolongou demais. Claro! Eu já devia ter percebido. Era uma
forma que estava tomando ar, de modo a mostrar aos clientes que encantador efeito estival
se conseguiria quando a estação cálida tornasse a meditação junto à lareira um
anacronismo.
Quando tornei a baixar os olhos a porta já se abrira e senhor Mycroft estava
perguntando sobre senhor Montalba, pois não fora ele que atendera. Em seu lugar um
exequista mais moço se inclinou e nos fez entrar. Um substituto do mestre, modelado no
mesmo uniforme de traje matinal cinza-pérola.
— Senhor Montalba estará convosco num momento.
E ficamos a sós num pequeno e alegre gabinete que dava a um patiozinho, onde se via
uma amendoeira em plena e quase excessiva florescência.
— Pelo que vejo, o mestre conhece seu eclesiastes. — Disse senhor Mycroft, olhando
a árvore.
Mas eu me curvara pra acariciar um esplêndido gato persa cinzento, que modorrava
num banco junto à janela. Quase colidi com senhor Mycroft ao recuar, Naturalmente o
belo animal estava frio e duro como um bloco de pedra.
— Não esperavas encontrar aqui algo além de formas. Não é? — Observou senhor
Mycroft. — O negócio funerário de animal se desenvolveu de tal modo, com o
sentimentalismo moderno, que se tornou um serviço acessório lucrativo demais pra não
ser combinado com o tráfico humano.
A porta se abriu.
— Voltaste trazendo outro interessado. Uma visita de antecipação! Muito sensato.
Com o avançar dos anos aprendemos a agarrar o tempo no cabelo12 e a tomar todas as
providências adequadas. E, como disse ontem, na qualidade de artista, não falando agora
em meu outro papel de conselheiro familiar, também aprecio imensamente a oportunidade
prum estudo preliminar, pra colher uma impressão da própria vida, da vida fugaz, que
talvez posteriormente eu tenha a permissão, o privilégio, de tornar duradoura e colocar
12
Succès fou (sucesso selvagem), cochère (transporte), em francês. Agarrar o tempo no cabelo. Cairos, o deus da oportunidade, era
filho de Zeus e de Tique, a divindade da fortuna e prosperidade. Descrito como um belo jovem calvo cum cacho de cabelo na testa,
era um atleta e tinha agilidade incomparável. Resplandecente e na flor da juventude, tinha duas asas nos ombros e nos joelhos. Se
assemelhava a Dioniso, com as bochechas vermelhas e a pele delicada. Sempre nu, corria rapidamente e só era possível o alcançar o
agarrando no topete, ou seja, o encarando de frente. Depois de passar era impossível o perseguir, pegar ou trazer de volta. Na entrada
do estádio, em Olímpia, havia dois altares: Um consagrado a Hermes, simbolizando os jogos, e o outro a Cairos, a oportunidade.
http://eventosmitologiagrega.blogspot.com.br/2011/08/kairos-o-deus-das-oportunidades.html Nota do digitalizador

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muito acima das vagas corrosivas do tempo. E se assim posso me exprimir, que nobre
presença conservaremos imutável aqui, pro futuro. Quantas vezes, confesso, tenho de
improvisar um pouco. Por mais que estude uma forma, com a apreciação mais generosa
possível, ela permanece obstinadamente estéril. A própria morte não pode enobrecer os
que tiveram uma vida vulgar.
Pensei quê-diabo pensaria senhor Mycroft sobre aquele ataque. Nada pensou.
Simplesmente o ignorou. Pelos modos, não lhe pareceu cômico nem digno de nota. Eu já
notara isso em senhor Mycroft. Quando sentia que o interlocutor estava representando um
papel, ficava demasiadamente interessado em o observar e procurar adivinhar a razão
daquilo, pra se divertir ou se desconcertar. E, a sua maneira curiosa, senhor Montalba era
puramente um ator, numa série de papéis estudados: Artista, conselheiro familiar, gerente
de empresa. Evidentemente também não dava importância se um de seus papéis não
produzia o efeito desejado. Com a mesma rapidez com que um caçador que errou o tiro
torna a carregar e a atirar, experimentava logo outra fala preparada.
— Mas querias dizer a mim algo confidencial. — O conselheiro familiar era,
naturalmente, todo discrição, tato e sinuosa deferência.
— Tiveste a bondade de mostrar a meu amigo senhor Silchester tua última obra-prima.
Tive o privilégio de estudar senhor Sibon ao natural. Apreciaria muito a oportunidade de
o ver em Aeternitas.
Eu estava convencido que senhor Montalba resistiria a semelhante ataque frontal. No
fim de conta tinha a mão sua fórmula dos parentes consangüíneos. Senti uma nova e, devo
dizer, desagradável surpresa quando a sugestão de senhor Mycroft foi recebida com outra
efusão de prazer sintético.
— Encantado, encantado! Eu disse a senhor Silchester que é um verdadeiro privilégio
examinar a obra-prima, como tiveste a bondade de se exprimir, antes de encaixada no
cenário. Mas as normas nunca devem ser rígidas. Na verdade meu lema poderia ser o da
própria Vida: A boa forma nunca é rígida. Acolho com satisfação a oportunidade de
comparar impressões com outro conhecedor da forma Sibon.
Fôramos conduzidos, acompanhados por essa cortina-de-fumaça verbal, através da
sala de conservação póstuma, com luz solar, fogo de lareira e carne humana sintéticos,
àquele corredor que levava ao último santuário. Se abriu a pequena porta à esquerda, e ali
estava Sibon, tão imóvel quanto as estátuas de Mêmon e ainda mais silencioso.
A única alteração era que a luz parecia ainda mais benigna, mais rosada, Quando,
porém, me animei a olhar a forma demasiado sólida de Sibon, foi com repugnância que a
examinei. O interesse de senhor Mycroft era igualmente grande mas sem repugnância. A
observava com pequenos murmúrios de admiração. Ergui os olhos e vi a figura de senhor
Montalba se animar momentaneamente cum cintilar de triunfo.
— Admites que é um bonito trabalho?, senhor Mycroft.
— Realmente notável.
Tirou do bolso um enorme óculos de aro de tartaruga e os enganchou no nariz. Eu
ficaria muito menos surpreso se puxasse um par de algemas e as fechasse em torno dos
pulsos de senhor Montalba. Sabia que os olhos do meu velho mestre-escola eram mais
agudos que os d outra pessoa. Costumava dizer: Colher indício exercita os músculos
oculares. Só o que me ocorreu foi que a luz rosada lhe perturbara temporariamente a
visão. Mas era evidente que o óculos de nada lhe servia. Mais evidente ainda era que não
estava acostumado a usar. Pois, mal se inclinara pra estudar o corpo em sua frente, os
óculos escorregaram no comprido nariz tão rapidamente, que, antes que pudesse os
agarrar, caíram em cheio na mão gorda de Sibon, que descansava sobre os joelhos.
— Perdão. Faz pouco tempo que uso óculos. Em minha admiração, estava ansioso pra
não perder os detalhes verdadeiramente magníficos.

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Apanhou prontamente o óculos e o meteu no bolso.
— Muita bondade. — Murmurou, se voltando a senhor Montalba, que já se inclinava,
nos indicando o caminho da porta. — É realmente maravilhoso. Quem pode negar o
progresso, quando finalmente vemos que o tempo foi detido?
— Me alegro em saber que aprecias nosso esforço pra completar e rematar o moderno
programa de desenvolvimento social.
Os dois esgrimistas mascarados continuaram o assalto até que a porta da frente se
fechou entre eles. Eu não sabia decidir qual dos dois marcara mais ponto. Nenhum parecia
ter atingido o adversário.
No automóvel, talvez seja desnecessário dizer, senhor Mycroft não me esclareceu
melhor. Quando chegamos a nosso apartamento, continuou em silêncio. Peguei um livro.
Mas se sentou tranqüilamente. Então, após alguns minutos, o vi se mexer. Pôs a mão no
bolso do casaco e tirou aquele óculos, os olhou, e não através deles. Examinava a
charneira direita. A moveu e depois puxou um pedaço de papel de carta. Movendo outra
vez a charneira, pareceu satisfeito e pôs de lado o óculos, pegando a folha de papel. Então
tirou do bolso do colete sua melodramática lente e começou a examinar o papel.
Cansado de observar essa atividade rotineira, tão rotineira quanto a dum gato lavando
os bigodes quando o rato escapou temporariamente, agarrei, pra me distrair, o óculos que
senhor Mycroft abandonara. Experimentei uma das lentes e depois a outra. Finalmente as
pus no nariz.
— Mas isso. — Comecei. E então o absurdo objeto caiu em meu nariz tal como no
exequiário escorregara do apêndice nasal de senhor Mycroft. O ruído da queda e minha
frase inacabada fizeram senhor Mycroft levantar os olhos.
— Estás surpreso com a simplicidade dessas lentes? Óculo foi feito, como o
demonstraste, antes pra cair do que pra ficar firme. Mas examinando bem verás que são
bastante penetrantes, a sua maneira. Há sangue em teu dedo.
Vi que produzira um pequeno mas nítido corte numa das juntas dum dedo ao tentar
impedir a queda daquele absurdo óculos de palco.
— Não sei por que andas com óculos falso que não fica parado no nariz e é tão malfeito
que arranha os dedos.
Eu estava um pouco irritado. Mas senhor Mycroft voltara a examinar seu pedaço de
papel. Depois de passar iodo em meu dedo vi senhor Mycroft se levantar, buscar seu
microscópio e colocar o precioso papel sob a objetiva. Mas isso não o satisfez. Foi buscar
uma lanterna elétrica pra aumentar a luz. No fim de conta, pensei, talvez estivesse mesmo
com a vista fraca. Mas a lanterna também não pareceu ajudar muito. A largou e começou
a mexer no precioso pedaço de papel cuma haste de vidro que tirou dum frasco.
Subitamente aquilo pareceu o entediar. Pôs de lado o microscópio sem se dar ao trabalho
de tirar o papel que observara e disse encima do ombro Tenho de fazer uma visita e
saiu da sala. Mas voltou um ou dois minutos depois, dizendo:
— Ainda não é muito tarde pra fazer uma visita.
— Pensei que já fizeste uma. — Observei. Mas não pareceu me ouvir, e mostrava
esperar que o acompanhasse. O endereço que deu ao chofer quando entramos no táxi,
hotel Magnifique, me levou a conjeturar que outra vez tentaria obter informação do
amável mas ultradiscreto gerente, sobre o falecido hóspede. A resposta do encarregado
da portaria, Monsieur Sibon não está, foi um golpe. Senhor Mycroft o aparou com Mas
o criado deve estar. Deixarei um recado a ele. 1 ou 2 minutos após ficamos diante
da porta do luxuoso apartamento do falecido Sibon. Não fomos repelidos ali. A porta foi
aberta pelo criado, bem vestido e muito francês, que nos recebera na visita anterior. Como
na outra vez, se curvou tão profundamente que a barba negra e pontuda deve ter se
espetado na gravata, nos apresentando ao mesmo tempo uma massa de cabelo preto liso

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como seda. Pareceu que tivera um ligeiro sobressalto ao ouvir a pergunta abrupta de
senhor Mycroft: Monsieur Sibon está em casa? Depois, se curvando ainda mais, o
criado respondeu com tremor na voz:
— Não sabias?, senhor. Foi chamado.
Eu estava pensando se aquilo seria um eufemismo pra expressar que Sibon caíra nas
mãos extremamente cativantes de senhor Montalba, quando o criado acrescentou:
— Deixou um bilhete pra ti. Eu não sabia que vinhas nesta noite. O bilhete está na
despensa.
Recuou a uma pequena porta lateral que evidentemente levava aos aposentos dos
criados. A porta se fechou atrás. Mas senhor Mycroft se adiantou a tempo de impedir que
fosse aferrolhada. A puxou a trás, e o segui. Nos lançamos na pequena despensa quando
a porta do outro lado se fechava.
— Na sala-de-jantar! — Gritou senhor Mycroft, girando nos calcanhares.
Voltamos atrás, atravessamos correndo a sala-de-jantar e entramos na cozinha.
Chegando, ouvimos o som do elevador de serviço que começava a zumbir junto à escada
do fundo. Em cinco segundos atingimos a escada apenas a tempo de ver o chão do
elevador que subia.
— Na escada!
Senhor Mycroft já galgara meia dúzia de degraus. Eu não podia imaginar pra quê
perseguia o criado dum morto mas senti que não podia abandonar agora meu velho amigo.
Sorte que Sibon gostava do retiro discreto dum último andar, de modo que tínhamos
apenas um lance de escada pra subir. Quando desembocamos no terraço vi o criado
olhando a trás em nossa direção com a fisionomia tensa perfeitamente visível sob a luz
do elevador. Pra meu alívio, não quis nos enfrentar. E como até o mais pequeno cão
persegue um touro que foge, comecei a correr atrás de senhor Mycroft. A superfície do
terraço do Magnifique não só é extensa mas cheia do que os jogadores de golfe chamam
azar. Tropecei em cano, rodeei chaminé na esteira da cauda de cometa do casaco de
senhor Mycroft, bati o pé em calha. Foi num acidente desses que me transviei, e só depois
de espiar atrás de meia dúzia de chaminés encontrei senhor Mycroft ajoelhado. Junto a si
estava o criado, sentado um pouco negligentemente contra a guarnição dum cano. Estava
muito esbofado, muito mais que algum de nós, embora tivera a vantagem da subida no
elevador. Então o ouvi dizer, ofegando, a senhor Mycroft:
— No bolso superior esquerdo de meu colete. Depressa. É amital sódico.
Sem palavra, senhor Mycroft fez o que o outro pedia e pôs algo na boca dele e
comentou pausadamente:
— Não devias praticar esses exercícios.
O criado disse com voz débil:
— Corri porque estava assustado, e meu coração fraquejou.
— Não. Entendes a língua tão bem quanto eu. Eu disse exercícios, não exercício. O
coração não fraquejou só por causa da corrida no terraço.
Ouvi o criado dizer: Como sabes? e fiquei desorientado como nunca. E a resposta
de senhor Mycroft — Porque estou tão bem-disposto. — completou meu aturdimento.
Mas nenhum dos dois prestava atenção a minha ignorância. Estavam inteiramente
ocupados um com outro. Mas era evidente que senhor Mycroft se lembraria de mim logo
que eu lhe fosse útil. Estava segurando o criado, como ou por quê, não pude ver na
escuridão, e disse sem virar a cabeça:
— Desças e tragas o médico do hotel em seguida.
Cinco minutos depois eu voltava com o competente profissional que o Magnifique
tinha a disposição dos hóspedes. Trazíamos duas lanternas. Assim que encontramos

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senhor Mycroft, vi que o criado desaparecera. Em seu lugar, parecendo muito menos
genuíno que a criação de senhor Montalba, estava Sibon.
— Doutor Armstrong, — disse senhor Mycroft, que se virara a nós — faças o favor de
examinar o corpo. Creio que agora está morto.
O médico se ajoelhou ao lado de senhor Mycroft. Um momento depois ouvi dizer:
— Sim. Não há dúvida. Está bastante flácido. Mas não entendi. Como?
— Estavas perfeitamente justificado, considerando tuas premissas. — Respondeu
Mycroft. — Devo reservar à polícia os como e os porquê. Um policial em traje civil ficou
postado durante a última hora na entrada principal, a meu pedido. Se queres ter a bondade
de ficar cuidando do corpo, direi uma palavra a si. Venhas, senhor Silchester.
A palavra foi das mais breves. Ambos pareciam se entender bem. O homem
discretamente vestido, que tinha o ar dum agente de seguro, atravessou o vasto salão de
entrada e desapareceu em direção ao fundo do edifício.
— Não terão necessidade de nós até amanhã na manhã. Mesmo tu não precisas vir. —
Senhor Mycroft disse a mim. — Creio que deves estar farto até do mais moderno dos
necrotérios. E o lugar onde a forma de Aristide Sibon descansará nesta noite e será
entrevistada amanhã não é um exequiário muito atraente. Agora vamos ao jantar.
Apesar de nossa caçada terminar em morte, devo dizer que ambos fizemos justiça a
nossa refeição noturna. Minha curiosidade reviveu. Era evidente que senhor Mycroft
também estava refeito e disposto a alimentar meu espírito como eu lhe alimentara o corpo.
Naturalmente, comecei no fim:
— Doutor Armstrong não assinara a certidão de óbito de Sibon, há um ou dois dias?
— Certamente que sim. Sem isso, nem a lábia de senhor Montalba proporcionaria a
posse da bela e desejada forma.
— Mas não entendi!
— Não achas que podíamos omitir o óbvio? — Perguntou senhor Mycroft, sorrindo.
— A história tem alguns pontos que, admito, só poderiam ser compreendidos cum
conhecimento muito especializado. Em primeiro lugar, estamos de acordo em que doutor
Armstrong é competente. Doutor Armstrong viu Sibon vivo, e, com igual convicção, o
viu morto. A certidão de óbito diz que foi Síncope. Mas te lembras da observação do
médico? Está bastante flácido.
— Sim. É uma observação natural. Simplesmente queria dizer que estava morto.
— Não. Mais que isso. Significava que na última vez que doutor Armstrong atestara a
morte, Aristide Sibon não estava flácido.
— Mas tinha de estar, pra ser dado como morto. Como doutor Armstrong estava de
serviço no hotel, deve ter sido chamado em seguida.
— Então Sibon não podia deixar de estar flácido, ou, pra sermos exatos, que o corpo
não podia estar rígido, em estado de rigor mortis, durante tempo considerável?
Fiz um sinal afirmativo. Não era um assunto agradável à sobremesa mas eu sabia o
suficiente das condições póstumas pra ter certeza. Volveu senhor Mycroft:
— Não! Um choque nesses casos de enfermidade cardíaca causar aparecimento da
rigidez logo depois da morte. Afinal de conta a causa mortis nesses casos é uma cãibra
no coração, que imediatamente se espalha a todos os outros músculos. Justamente porque
doutor Armstrong era um bom médico, não se surpreendeu. Mas como estudou em escolas
que sabem mais sobre os músculos do que sobre o espírito, se enganou.
A resposta Mas não entendi! me subiu à boca como um soluço, e como tal foi
censurada por um sacudir de cabeça do mestre.
— Hás de recordar que Sibon fizera da índia seu campo de ação. Passou muitos anos
no país, enganando rajás. Entretanto, Sibon e eu temos uma coisa em comum: Sempre
estudamos bem o terreno. Tudo o que cai em nossa rede é peixe. Num lado os rajás e suas

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jóias, no outro os iogues e suas jóias no lótus. Ambos são produtos da Índia. Ora! Se
alguém quer se ocultar, e, certamente, é a maior necessidade dum escroque depois de dar
um golpe, nunca poderá se ocultar tão bem quanto estando sepultado. Nosso hábil Aristide
aprendeu o truque dos háti que consiste em engolir a língua e controlar a respiração, o
método usado pra provocar autocatalepsia. Assim faz saber que sofre do coração, e o
manda examinar pelo médico no momento em que o coração fazia as mais estranhas
cabriolas, pois o controle das pulsações cardíacas é um dos exercícios preliminares pra
suspender a vida. Então Sibon combinou com senhor Montalba, que o leva ao exequiário,
onde realiza o truque decisivo, o que se pode chamar de verdadeira morte simulada.
Infelizmente mandei visitares antes do tempo aquela interessante dupla. Aristide precisou
fazer o papel de sócio passivo. Não tinha habilidade o bastante pra voltar a si
espontaneamente. Nem uma pessoa em dez, tendo aprendido a entrar em catalepsia, pode
sair dela por esforço próprio. É preciso que a façam voltar a si.
Uma coisa não sei, um detalhe pequeno mas cômico: Senhor Montalba, que
serviria, literalmente, de ressuscitador, teria retardado a volta de Sibon ao mundo
porque não teve outro remédio, porque não conseguiu libertar o parceiro da
prisão física tão rápido quanto esperavam, ou porque não pôde resistir à
tentação de te ludibriar? Um homem que vive lidando com cadáver pode ter um
senso humorístico pessoal. O que, estou certo, foi combinado é que Sibon
deixaria sua forma no exequiário, e se por acaso eu ou meu fiel amigo
aparecêssemos, ou a polícia, seria mostrada a certidão e também o cadáver.
Mas foste cedo demais.
— Cedo demais?
— Sim, porque o substituto não estava pronto.
— Substituto?
— Naturalmente, estava em preparação um perfeito modelo pra substituir nosso
temporariamente rígido Sibon.
— Um substituto! Mas isso não passa de suposição!
Em resposta, senhor Mycroft se limitou a dizer:
— Olhes aqui!
Pusera o microscópio em cima da mesa, ainda com o pedaço de papel sob a objetiva.
Mas então me fez pôr o olho no instrumento enquanto executava o ritual da lanterna
elétrica seguida pelo toque com a haste de vidro. Vi no campo visual uma volumosa massa
que lembrava um bloco de jade.
— Essa lanterna dá bastante calor. — Disse a meu ouvido. — Mas vejas que o pedaço
de resina não amolece. Portanto não é cera de parafina a base do tratamento da Aeternitas.
Mas essa essência, na ponta da haste de vidro, começa a amolecer o material.
De fato. Quando a haste tocou a massa no microscópio, começou a perder a forma.
Senhor Mycroft guardou o microscópio.
— Esse espécime não é dum cadáver tratado pelo processo Aeternitas mas dum
modelo de guta-percha. Eu sabia que com a iluminação do quarto teria que tocar na forma
pra me certificar. A luz cor-de-rosa é o diabo. Nada se pode ver claramente mas se tem a
impressão que sim. É por isso que os médiuns gostam de iluminação rósea. Além do mais,
eu precisava obter uma amostra, por isso mandei fazer aqueles óculos com a aresta duma
das charneiras afiada como navalha, formando uma pequena pá. Tomei o cuidado de
mandar fazer óculos que não assentasse bem e caísse inevitavelmente do nariz na mão da
forma quando eu me inclinasse prà admirar. Ao apanhar meu desajeitado óculos foi fácil
arrancar com a pequena lâmina uma amostra da pele.
— Então vi o verdadeiro Sibon!

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— Tiveste essa honra. Provavelmente senhor Montalba achou melhor mostrar que
Sibon estava lá. Como o modelo não estava pronto e temia uma visita assim, conservou
Sibon em transe. Se sentindo em segurança, teria, sem dúvida, feito o escroque voltar a si
muito antes. Mas não queria correr o risco de ser encontrado sem o cadáver, e, no caso de
se ordenar uma busca, descobrirem um modelo em preparação. Seria muito embaraçoso.
De modo que preferiu o risco de conservar o parceiro adormecido, obrigado a permanecer
como estava e nem responder quando lhe falassem.
— Um risco?
— Á! Sim. E considerável. O manteve em estado catalético mais tempo do que seria
prudente. Certamente, um homem em condição de saúde extraordinariamente boa pode
permanecer adormecido durante dias. Mas Sibon não. Esses exercícios não são
recomendáveis pro coração, e Sibon tinha um mal cardíaco em conseqüência do esforço
pra se ocultar ou pelo esforço oposto, de ficar em atividade. Talvez por ambas as coisas.
Depois que te retiraste, senhor Montalba o fez voltar a si e o substituiu pelo modelo. Então
Sibon voltou ao Magnifique. O lugar mais seguro prum perseguido é a própria casa, desde
que a pessoa se disfarce. Então se disfarçara como seu criado.
— Mas onde estava o criado?
— Era o próprio. Uma caracterização bastante bem-feita. Não achas? Te lembres que
quando fomos o visitar houve uma demora. O criado saiu pra o chamar e depois o grande
homem teve a gentileza de vir nos receber pessoalmente. Essa pausa, é claro, foi porque,
em linguagem teatral, estava dobrando os papéis e teve de fazer uma transformação
rápida. Assim que descobri que a forma era um modelo de guta-percha, tive a certeza que
Sibon estava no hotel. O chamado telefônico que fiz então foi pra avisar à polícia pra
guardar as saídas do andar térreo e deter o criado de senhor Sibon se tentasse sair. Depois
disso, eu sabia que correria ao terraço. Esses homens estão sempre observando seus meios
de fuga, assim como um pássaro se vira depois de cada bicada numa minhoca. É uma
segunda natureza. Mas se sentiria em segurança no disfarce, cum cadáver a lhe servir de
álibi longe dali. Só fugiria quando aparecêssemos. Calculei que seria fácil o alcançar na
fuga, pois tinha certeza que, com todos aqueles exercícios catalépticos, o coração não
estaria em boa condição. Mesmo assim, julguei que o apanharíamos vivo. Esses dois
indivíduos, Sibon e Montalba, são, por natureza, uma espécie de saltimbanco. Mas um
levou a simulação além do que convinha. Se alguém brinca com a morte, essa sinistra
jogadora pode o levar a sério.

Novo comentário sobre Senhor Montalba, exequista


Depois de ler em prova a introdução do diretor desta
revista, o autor, senhor HF Heard, negou que A aventura de
senhor Montalba, exequista seja fantasia. Os argumentos de
senhor Heard são interessantes e convincentes:
Sustento que o enredo de A aventura de senhor
Montalba, exequista não é fantasia, porque Aeternitas foi
uma invenção alemã autêntica. Possuí um espécime
adquirido em Berlim. E porque é possível aprender a
simular um ataque catalético. A pessoa pode ficar longos
períodos sem respirar. Também nesse caso, conheci um
homem que fazia demonstração do truque. Então por quê
dizer que o conto é fantasia?
Por quê?, na verdade.

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Lembrados de Nique Noble, o avinhado detetive da
divisão amalucada? Eis outra vez, sempre espantando aquela
mosca imaginária de seu comprido nariz.
Os contos policiais surgem e passam, mas os que mais
apreciamos e que recordamos durante mais tempo são os que
seguem a grande tradição, os pura-uva, que obedecem às
regras do jogo e são lidos avidamente. O conto de senhor
Boucher é pura ficção policial da escola moderna, vigoroso
na trama e no desenlace, eminentemente honesto e tirado do
material fornecido pela imprensa diária.

QL 696. C9
Anthony Boucher

O
cadáver da bibliotecária fora retirado da cadeira giratória mas o tenente
investigador Donaldo MacDonald permaneceu ao lado da escrivaninha. Era seu
segundo caso de homicídio e ainda não estava bastante calejado pra usar a
cadeira recentemente ocupada por um cadáver. Continuou em pé e, se voltando às quatro
pessoas, uma das quais era um assassino:
— Terminado nosso trabalho regular de investigação, tomei o depoimento de cada um
de vós. Mas antes de entregar o relatório recapitularei esses depoimentos na presença de
todos vós. Se algo não estiver bem, me avisai.
O gabinete da bibliotecária da sucursal Serafim Pelayo da biblioteca pública de
Losângeles era uma peça pequena. As três testemunhas e o assassino (mas quais eram as
testemunhas e qual o assassino?) estavam sentados num grupo. A moça de vestido
cinzento, Estela Swift, bibliotecária assistente se moveu, inquieta, na cadeira e disse:
— Foi tudo tão… tão confuso e horrível.
Donaldo inclinou a cabeça com simpatia.
— Sei. A moça que encontrou o cadáver. — Tinha os olhos secos então, mas os nervos
continuavam tensos. — Lamento insistir nisso, mas…
O olhar de Donaldo examinou as outras três pessoas: Senhora Cora Jarvis, bibliotecária
da seção infantil; uma gatinha lanuda; James Stickney, freqüentador da biblioteca,
homem um tanto jovem, sem gravata e de cabelo desgrenhado; Norbert Absolute,
professor secundário, homem magro e de ar quase ascético, de 40 e tantos anos. Um
deles… Donaldo:
— Imediatamente antes do crime senhorita Benson, bibliotecária da sucursal, estava
sozinha neste gabinete, escrevendo a máquina. Parece que — e Donaldo indicou com um
gesto a folha de papel no cilindro da máquina — se tratava duma lista de substituições
pedidas. Só se pode entrar neste gabinete passando naquelas estantes, às quais só se pode
chegar via portaria. Senhora Jarvis, estavas em serviço na portaria, e, segundo declaraste,
somente estas três pessoas estavam então entre as estantes. Separadas pelas estantes,
nenhuma podia ver as outras duas ou a porta deste gabinete.
Parou. O esguio professor falou.
— Mas isso é ridículo, senhor oficial. Simplesmente porque eu estava examinando as
estantes, procurando algumas idéias novas pra minhas leituras fora da biblioteca.
O descabelado Stickney respondeu.
— O tenente tem razão. Compares nossas declarações e verás que tem de ser um de
nós. Agüentes firme, companheiro.
— Obrigado, senhor Stickney. Essa é a atitude mais sensata. Agora, o tiro que matou
senhorita Benson, a julgar pelo ângulo e posição, foi disparado daquela porta. A arma foi

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abandonada no local. Todos afirmastes ter ouvido o tiro do respectivo lugar e correstes a
cá. Foi Estela quem abriu a porta e descobriu o cadáver. Como é muito compreensível,
desmaiou.
Senhora Jarvis ficou cuidando dela enquanto senhor Stickney tinha suficiente presença
de espírito pra telefonar à polícia. Todos ficastes sob mútua vigilância e ninguém entrou
nesta peça até nossa chegada. Certo?
A pequena senhora Jarvis inclinou a cabeça.
— Meu-deus!, tenente, como deixas tudo bem claro! Devias ser catalogador, como
senhorita Benson.
— Catalogadora? Mas senhorita Benson não era chefe da sucursal?
— Mas tinha uma alma de catalogadora. — Disse senhora Jarvis, com ar sombrio.
— Esta lista que datilografava quando foi morta. Donaldo tirou o papel da máquina.
— Quero que cada um a examine e me diga se entende o último item.
O fim da lista dizia o seguinte: Davies:
Missão em Moscou (2 exemplares)
Kerman: A defesa não pode ganhar a guerra
FIC
MacInnes: Acima de susp QL 696. C9
A folha passou de mão a mão, sem provocar mais que um franzir de sobrancelhas e
um sacudir de cabeças.
— Muito bem. — Donaldo pegou o bloco de endereço telefônico de cima da
escrivaninha. — Agora, alguém pode dizer por quê uma bibliotecária tomaria nota do
número do telefone do escritório federal de investigação?
A pergunta provocou uma reação definida em Stickney, uma espécie de impaciência
irônica, mas foi Estela quem respondeu, e, coisa bastante estranha, cuma risada:
— Nossa querida senhorita Benson… Naturalmente, teria o número do FBI
Necessidade profissional.
— Não entendi muito bem.
— Vejas: Alguns bibliotecários sustentam a teoria de que a melhor maneira dum
bibliotecário colaborar no trabalho de defesa é observando quais pessoas consultam
determinados livros. Por exemplo: Se alguém está sempre pedindo todas as obras que
existam sobre altos explosivos, ficamos sabendo que é um sabotador perigoso e tem o
plano de fazer voar o aqueduto, de modo que o denunciamos aos geméns.13
— Falando sério. Isso parece um pouco ridículo.
— Não sei, tenente. Além dos catálogos por ficha e do estudo sobre as aves, havia
outra coisa que senhorita Benson amava. Era a América. Não achava que isso fosse
ridículo.
— Compreendo. E nenhum de vós tem mais algo a acrescentar?
Senhor Absolute anunciou:
— Tenho de corrigir 50 temas hoje na noite e…
Donaldo encolheu os ombros.
— Está bem. Podeis ir embora. Mas recordai que podereis ser chamados pra prestar
novas declarações a qualquer momento.
— E a biblioteca? — Perguntou senhora Jarvis. — Suponho que sou a substituta
imediata e…

13
Gemém. Em inglês G-men significaria Homens do governo. G-men (No Brasil G-men contra o império do crime) é um filme ianque
de 1935, gênero policial, dirigido por William Keighley prà Warner Bros. O filme conta uma versão dos primeiros anos do FBI:
Federal Bureau of Investigation of the United States ou Polícia Federal de Estados-Unidos. http://pt.wikipedia.org/ Nota do
digitalizador

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003, julho 1949
— Falei via telefone com a chefe do departamento de sucursal, que concordou que o
melhor é conservar fechada a sucursal até acabar a investigação. Mas pedirei a ti e a
senhorita Swift vos apresentarem amanhã como de costume. A chefe do departamento
estará aqui e poderemos conferenciar novamente sobre assunto a respeito da biblioteca.
— E amanhã eu devia ter uma hora de história. Bom… — Suspirou a bibliotecária da
seção infantil — Não terei que preparar uma nova história hoje na noite.
Deixado só, Donaldo se voltou à escrivaninha, pôs o bloco em cima da mesa, junto ao
telefone, e discou o número que lhe chamara a atenção. Custou a se comunicar com a
autoridade competente e a estabelecer as credenciais, mas enfim conseguiu a promessa
dum relatório completo sobre todas as informações fornecidas por Alice Benson ao FBI.
Uma voz perguntou ansiosamente:
— Achas que foi isso?
Donaldo se virou. Era a bibliotecária assistente, a moça de vestido cinzento e cabelo
castanho dourado.
— Senhorita Swift!
— Eu não queria vir espionar mas tinha vontade de saber. Senhorita Benson era muito
boa, e… e fui quem a encontrou, e… Achas mesmo que foi isso? Que ela descobriu
alguma coisa pro FBI e que por isso…?
— Parece provável. — Disse, pausadamente — Como tudo faz crer, mantinha a melhor
relação com o pessoal. Não possuía muito dinheiro e era velha demais prum caso
passional. Parece que Absolute e Stickney a conheciam apenas ligeiramente, como
freqüentadores assíduos da sucursal. Que móbil nos resta além dessa história do FBI?
— Achávamos tão engraçado. Fazíamos troça dela, dizendo que era uma gemoça. E
agora, tenente, tens de descobrir quem a matou.
Os lábios da moça se comprimiram firmemente e os olhos brilharam. Donaldo decidiu:
— Venhas comigo.
— Aonde?
— Te levarei à casa em automóvel. Mas pararemos no caminho pra falar cum homem,
e me ajudarás a contar todos os fatos deste caso esquisito.
— Quem é? Um superior teu?
Donaldo hesitou.
— Sim disse finalmente. — Um superior meu.
Contou a história de Nique Noble enquanto o automóvel os levava: Tenente Nique uns
doze anos atrás fora o mais hábil solucionador de problema do departamento. Seu capitão
se envolvera num escândalo sórdido e conseguira se livrar deixando o inocente Nique
pagar o pato. Nessa ocasião a mulher de Nique precisava urgentemente duma operação
cirúrgica e não pudera fazer. O homem, viúvo e desonrado, decaíra até...
— Ninguém sabe onde mora ou de quê vive. Só se sabe é que pode ser encontrado
numa casa de pasto de Norte Main, bebendo xerez barato a copo. O xerez é tudo o que
lhe resta na vida, e também a capacidade de tornar claro como água o mais obscuro
problema. Nalguma parte do espírito daquele ébrio existe uma máquina de precisão que
classifica e distribui os fatos mais absurdos, de maneira a formarem o inevitável padrão.
É o último tribunal de apelação pra caso esquisito, e deus-sabe que este é um dos tais. QL
696. C9… A divisão amalucada, DPLA, é como o chamam os rapazes.
A moça teve um pequeno estremecimento ao entrar no café Chula Negra. Não era um
ponto de freqüência da elite. Não que fosse uma reles espelunca, tampouco. Não tinha
vitrola nem mulher pra atrair o freguês. Apenas um balcão e alguns compartimentos
reservados, onde os mexicanos de Losângeles comiam e bebiam.
Donaldo se lembrou qual dos reservados era o retiro habitual de Nique. O homenzinho
estava sentado com os olhos fitos no copo de xerez cheio até a metade, como se não se

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003, julho 1949
movera desde a última vez em que MacDonald o vira, depois do caso dos relógios
parados. Tinha a pele duma alvura baça e a fisionomia fina e aguçada. Os olhos eram dum
azul tão pálido que as íris eram quase invisíveis. Donaldo disse:
— Olá! Te lembras de mim?
Uma mão magra e sulcada de veias azuis golpeou o nariz pontudo. Os olhos pálidos
pousaram nos dois recém-chegados.
— MacDonald. — Nique sorriu debilmente. — Prazer em te ver. Te sentes. —
Relanceou os olhos a Estela. — Tua?
Donaldo tossiu.
— Não. Senhorita Swift e eu temos uma história a contar.
Os olhos de Nique brilharam cum fulgor mortiço.
— Dificuldade?
— Dificuldade. Queres ouvir? Nique tornou a bater no nariz.
— Mosca. — Explicou à moça. — Está sempre ali.
Não havia mosca. Bebeu o resto do xerez.
— Contes.
MacDonald contou mais ou menos nos mesmos termos em que recapitulara o caso
diante do grupo reunido na biblioteca. Quando terminou, Nique ficou em silêncio tanto
tempo que Estela olhou o copo apreensiva. Então Nique fez um ligeiro movimento,
acenou a uma garçonete, apontou o copo vazio e disse a Estela:
— Essa mulher, Benson. Como era?
— Muito boa pessoa. — disse Estela — Mas, naturalmente, era uma catalogadora.
— Catalogadora?
— Não és bibliotecário. Não podes compreender o que significa isso. Mas ao que ouvi
dizer, quando se vai a uma escola de biblioteconomia (nunca fui, sou simples auxiliar) a
maior parte passa trabalho com os sistemas de organização de catálogo. Mas algumas se
revelam catalogadoras natas. São uma raça a parte. Sabem um pouco de tudo. Conhecem
todos os sistemas de classificação, o dewea, o biblioteca do congresso, até, o último
número. Sabem precisamente quantos espaços de margem se deve deixar em cada linha
dum cartão datilografado, conhecem bibliografia como a palma da mão e sentem arrepio
na alma se encontram uma coisinha errada. Têm olhos de águia e memória de elefante.
— Com essa preparação. — Disse Donaldo — bem teria descoberto algo pro FBI.
— Podia. — Disse Nique. E depois à moça: — Passatempos?
— Os de senhorita Benson? Antes da guerra era uma devota apreciadora de ave, e,
naturalmente, sendo como era, tinha conhecimento ornitológico verdadeiramente
quiranescos.14 Mas nos últimos tempos só pensava em descobrir espião e sabotador.
— Estou quase certo que é nesse sentido que devemos investigar, por mais ridículo
que pareça. — Observou Donaldo. — A pista do FBI indicará quem é nosso homem, e
ainda há esperanças de esclarecimento com os relatórios de laboratórios sobre as
impressões digitais e sobre o resultado do teste de parafina.
— Testes. — disse Nique, com desdém. — Só o que conseguis é ensinar aos
criminosos o que não devem fazer.

14
Quiranesco se refere a John Francis Kieran, colunista desportivo do The New York times (1927-1943) e palestrante regular no
popular programa radiofônico e televisivo Information, please (Informação, por favor) morreu ontem em sua casa em Rockport,
Massachustes, com 89 anos. Iniciou a carreira como jornalista esportivo no The New York times mas acabou sendo considerado
enciclopédia ambulante, um ornitólogo e naturalista, uma personalidade popular do rádio, erudito e filósofo. Como autor de História
Natural de Nova Iorque ganhou o maior prêmio dado pra história natural pela John Burroughs society. Nas palavras dum amigo,
Kieran tinha a mente dum professor universitário e o linguajar dum motorista de táxi 10ª avenida. Seu impressionante tesouro de
conhecimento, abrangendo praticamente todos os assuntos, desde a vida sexual do porco-da-terra [ou oricteropo (Orycteropus afer).
No original aardvark] ao processo de zimose, fizeram com que alguns o chamassem doutor sabe-tudo, quem muitas explicava sua
erudição dizendo apenas ter memória fotográfica. http://www.nytimes.com/1981/12/11/obituaries/john-kieran-columnist-radio-host-
naturalist.html Nota do digitalizador

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— Mas se tudo isso falhar temos uma mensagem da própria senhorita Benson dizendo
quem a matou. E é sobre isso que eu queria consultar contigo.
Apresentou o papel tirado da máquina de escrever.
— É bastante claro o que aconteceu. Ela escrevia a máquina, levantou os olhos e viu
o assassino cuma pistola na mão. Se escrevesse o nome dele, o homem veria e destruiria
o papel. Então deixou esta indicação cifrada. Não pode fazer parte da lista que
datilografava, senhor Jarvis
Estela declarou que isso não é sinal usado no serviço comum da biblioteca. E a palavra
que está logo acima ficou na metade.
— Essas letras e números são as últimas palavras dela. És capaz de ler e interpretar?
Os lábios pálidos de Nique se moveram levemente.
— Q L seis nove seis ponto C nove. — Se inclinou a trás e os olhos vidraram —
Nomes.
— Nomes?
— Os nomes dos quatro.
— Á! Norbert Absolute, o professor; James Stickney, de profissão indefinida; senhora
Cora Jarvis, a bibliotecária da seção infantil; e aqui senhorita Estela Swift.
— Sim. — Os olhos de Nique se reanimaram. — Obrigado, Donaldo. Interessante
problema. Darei a prova amanhã.
Estela arregalou os olhos.
— Então ele… — Donaldo sorriu.
— Estás fazendo farol pra impressionar a moça, senhor Noble. Não pretendes fazer
crer que resolveste assim, no mais, essa história do QL. Não é?
— Lápis.
Donaldo, admirado, entregou um lápis. Nique pegou um guardanapo de papel,
rabiscou duas palavras, o dobrou e deu a Estela.
— Não. Agora guardes. Mostres depois a ele. Fazendo farol! Preciso mais prova! Em
breve terei. Comuniques a mim os relatórios do laboratório e do FBI.
Donaldo se ergueu, de testa franzida.
— Comunicarei.
— Mas como podes…
— Adeus, senhor Noble. Muito prazer em te conhecer.
Mas Nique não parecia ter ouvido o adeus de Estela. Olhava o copo, descontente com
o que via ali.
Donaldo freou diante da casa de cômodo onde a moça morava.
— Talvez eu precise de esclarecimento técnico sobre biblioteconomia durante a
investigação deste caso. Em breve nos veremos de novo.
— Obrigada pela condução. E por me apresentar àquele homem esquisito. Nunca
esquecerei como… Parece… Nem sei… Parece coisa doutro mundo. Não achas?
Um pequeno tremor percorreu o corpo flexível.
— Sabes? Não és exatamente o que eu esperava que uma bibliotecária fosse. Sempre
as imaginei como criaturas de blusa chata, óculos e toucado complicado. Naturalmente,
senhora Jarvis também não é assim, mas tu…
— Uso óculos mesmo, quando estou trabalhando. — Confessou Estela. — E também
não és exatamente como eu esperava que um policial fosse. Doutro modo eu não os teria
conservado a distância até agora. — Passou a mão no cabelo solto e esvoaçante e
trocadilhou: — Devias me ver quando estou bem toucada.
— Está combinado. Começaremos com um jantar e…
— Jantar! — Exclamou ela. — O guardanapo!
Remexeu na bolsa.

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— Não direi o que escreveste porque não seria correto, mas só pra verificar…
Abriu o guardanapo de papel.
Não disse mais, apesar de toda a insistência de Donaldo. Se despediu cum aceno. Foi
com olhos arregalados de espanto e pavor que viu o policial pôr o carro em movimento e
se afastar.
Donaldo olhou, contrariado, os relatórios sobre os testes de parafina dos quatro
suspeitos. Tudo negativo. Nenhum sinal de que alguém usara recentemente arma-de-fogo.
Nique tinha razão. Só o que se conseguia era ensinar aos criminosos o que não deviam
fazer. Ficam sabendo das manchas de nitrato na pele, de modo que um lenço enrolado em
volta da mão… O telefone chamou.
— Aqui fala Lafferty. Departamento local de Losângeles, FBI. Queres saber quais
foram as informações mandadas por Alice Benson?
— Por favor.
— Muito bem. Ela nos entregou realmente um extenso relatório sobre um homem que
só lia códigos, cifras, métodos de sabotagem, explosivos e sabe-deus o quê mais. Parecia
um curso por correspondência do perfeito quinta-colunista. Investigamos o caso. É um
pobre-diabo dum autor de conto pra revistinha. Estava procurando saber como se tornar
espião e sabotador. Sim. Mas pra escrever sobre eles. Submetemos o sujeito a um
interrogatório. Está livre de suspeita.
— Nome.
— Jaime Stickney.
— Conheço. É só?
— Enviaremos um relatório completo mas, em essência, é isso. Consta que a tal
senhorita Benson descobriu algo mais, que ainda não aprontara pra nos mandar. Mas se
for de tanta utilidade como a outra história é bom vigiar aquela biblioteca. Há algo lá.
— Como assim?
— Já em três ocasiões, nos dois últimos meses seguimos a pista de suspeito até aquela
sucursal Serafim Pelayo. E não eram ratos-de-biblioteca. Nada faziam de estranho nem
entravam em contato com alguém. Mas é muita coincidência pruma pequena sucursal da
biblioteca pública. Fiques de olho aberto.
— E se descobrires algo talvez possamos trabalhar em colaboração.
— Obrigado. Comunicarei. — Donaldo pendurou o fone. — Então Stickney fora
interrogado pelo FBI devido à denúncia de senhorita Benson. Vingança pelo vexame?
Um motivo demasiadamente mesquinho. Mesmo assim o telefone tornou a chamar.
— Tenente MacDonald? Aqui é senhora Jarvis. Te lembras de mim?
— Me lembro muito bem. Te ocorreu mais algo a respeito de…?
— Sim. Me ocorreu. Acho que descobri o que quer dizer aquela história do QL. Ao
menos parece que encontrei o meio de descobrir o que quer dizer. Vejas…
Houve um ruído forte e áspero. Senhora Jarvis soltou um gemido.
— Senhora Jarvis! O quê há? Algo…
— Else… — Donaldo a ouviu dizer com voz débil. Então a comunicação foi
interrompida.
— Ferimento contuso. — Disse o cirurgião da polícia — Escapar, sem dúvida. Mas
não poderá falar antes de vários dias e não se pode saber se recordará muito.
— Else. — Disse Donaldo. A palavra soou como uma imprecação.
— Avisaremos logo que ela puder falar contigo. Pronto, rapazes. Vamos.
Estela estremeceu ao ver os padioleiros se afastando.
— Pobre Cora. Quando o marido voltar de Lockheed e souber! Eu devia jantar com
eles nesta noite, e cheguei aqui e encontrei a ti…
Donaldo olhou com ar sombrio a estatueta de metal.

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O troféu esportivo do pobre-diabo. E se servem disto pra atacar a mulher dele. Quê-
diabo vens fazer aqui? — Perguntou, ao ver o vulto esguio de Norberto Absolute aparecer
no umbral da porta. O professor explicou:
— Moro ali no outro lado da rua, tenente. Quando vi os carros e a ambulância,
naturalmente… Não digas que houve outro!
— Não chegou a tanto. De modo que moras no outro lado da rua? Senhorita Swift,
podes ficar aqui pra dar a notícia a senhor Jarvis? Será mais fácil de tua parte que dada
por mim. Irei à casa de senhor Absolute, pra trocar duas palavras consigo.
Absolute fez um sorriso forçado.
— Muito prazer em receber tua visita, tenente.
O pequeno apartamento do professor era confortavelmente sóbrio. Donaldo observou
que os livros eram escolhidos com gosto invariável. Os volumes de bibliotecas públicas
colocados sobre uma mesa pareciam formar um absurdo contraste.
— Fiques a vontade, tenente. O que, aliás, não tenho dúvida que farás. Sobre o quê
queres falar comigo?
— Primeiro posso usar teu telefone?
— Certamente. Enquanto isso prepararei um drinque. Quer brândi?
Donaldo fez que sim e discou o número do Chula Negra. Absolute saiu da peça. Uma
voz mexicana atendeu, e Donaldo mandou chamar Nique. Enquanto esperava, agarrou
distraidamente um daqueles aberrantes volumes de biblioteca pública. O pegou um pouco
descuidadamente, e o livro se abriu. Uma tira de papel, talvez um marcador de página,
caiu dentre as folhas. Notou que havia letras e números datilografados:
9hrO5 j4hOo8tg5e4dOw68j4…
— Aqui é Noble.
— Muito bem. — A atenção de Donaldo se desviou da tira de papel. — Escutes.
Comunicou os resultados dos testes e a informação do FBI, e terminou com a agressão
a senhora Jarvis. Absolute apareceu à porta um momento, olhou Donaldo, o livro e a tira
de papel.
— E assim — concluiu Donaldo — temos outra vez uma última mensagem. Else.
— Else. — Repetiu pensativamente a voz de Nique.
— Alguma pergunta?
— Não. Telefone amanhã na manhã. Talvez ainda nesta noite. Então direi.
Donaldo desligou, franzindo a testa. Aquele papel… De repente descobriu. Era o velho
código datilográfico, tão fácil de escrever e de decifrar. Pra cada letra usar a tecla que fica
logo acima. Topara com a mensagem naquele código, num caso recente. Decerto poderia
o decifrar de cabeça. Evocou a imagem dum teclado de máquina. As letras e algarismos
se transformaram em:
Informenolugardecostume…
Senhor Absolute voltou cuma bandeja e dois copos de brande. O rosto magro tentou
um sorriso de anfitrião.
— Bebidas, tenente.
— Obrigado.
— E agora podemos… Ou gostarias de provar bolo de queijo?
— Não te incomodes.
— Não é incômodo.
Saiu. Donaldo olhou a mensagem cifrada e os copos. Os trocou rapidamente. Então
ouviu um leve ruído no lado de fora da porta, um suspiro de expectação confirmada, e o
som de passos que se afastavam. Sorriu e tornou a alterar a posição dos copos.
Senhor Absolute voltou cum pratinho de bolo de queijo e com a garrafa de brândi.
— Ao êxito de tua investigação, tenente.

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003, julho 1949
Ergueram os copos. Senhor Absolute tomou um sorvo cauteloso, depois despejou
tranqüilamente seu copo na janela.
— Me sobrepujaste em astúcia, tenente. — Observou, com ar despreocupado. — Não
esperava que conhecesses o truque duplo. Te subestimei, e peço desculpa.
Tornou a encher seu copo, e os dois beberam. Era um brândi de ótima qualidade,
extraordinariamente bom pro salário dum professor. Donaldo disse:
— De modo que estamos pondo de lado toda dissimulação?
Senhor Absolute encolheu os ombros.
— Viste aquele papel. Foi uma imperdoável negligência minha. Estás armado e não
estou. Seria tolice dissimular quando podes tão facilmente examinar o resto desses livros.
Donaldo, com a mão junto ao coldre que tinha embaixo do ombro disse:
— Era um plano bastante bom. Certos livros previamente combinados serviam de
veículo. Um leitor que encontrasse as mensagens por acaso ou um bibliotecário comum
não prestaria atenção. Tudo serve de marcador de página num livro de biblioteca.
Algumas mensagens se perderiam, mas a segurança compensava essas perdas. Preparavas
as mensagens em casa, as levavas dentro dos livros, de modo que não eras visto as
introduzindo em público.
— Reconstituis de maneira admirável, tenente.
— E quem as recebia?
— Não sei. O plano foi elaborado de tal modo que nenhum homem denunciaria outro.
— Mas senhorita Benson descobriu. Tinha de ser eliminada.
Senhor Absolute sacudiu a cabeça.
— Não espero que me creias, tenente. Mas sei tanto sobre a morte de senhorita Benson
quanto tu.
— Vamos, Absolute. O fato de reconheceres essas atividades é eqüitativo a uma
confissão de…
— Era mesmo eqüitativo a palavra que querias empregar?, tenente.
— Não sei. Minha língua está confusa e a cabeça também. Não sei o quê tenho.
Senhor Absolute sorriu, lentamente e com grande prazer.
— Claro, tenente. Acreditaste mesmo que eu te subestimara? Naturalmente, pus
narcótico nos dois copos. Então qualquer que escolhesses… Eu não tinha mais que
despejar o meu e tornar a encher.
Donaldo ordenou a sua mão se mover em direção ao coldre. A mão nem deu
importância.
— Algo que gostarias de ouvir?, enquanto ainda podes ouvir. — Senhor Absolute
perguntou brandamente.
A sala começou uma persistente oscilação circular.
Nique enxugou os lábios pálidos, tornou a enfiar no bolso o frasco de xerez, e entrou
na sede da biblioteca. Se aproximando do guichê de informação, na rotunda, entregou um
pedaço de papel à moça de serviço. No papel estava escrito a lápis:
QL 696. C9
A moça ergueu os olhos, perplexa. — Perdão, mas…
— Else. — Disse Nique, com hesitação.
A fisionomia da empregada se animou.
— Á! Naturalmente. Mas compreendes. Nesta biblioteca nós…
O estrondo da porta ao ser arrombada ajudou a desanuviar o cérebro de Donaldo. O
tiro produziu ondulações enérgicas que lhe romperam as teias de entorpecente do crânio.
A água fria na cabeça e o café quente no estômago completaram a obra.

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Enfim acendeu um cigarro e se sentiu mais ou menos humano. Aquele homem enorme
com cara de lua cheia, conforme depreendeu, era Lafferty, do FBI. A moça, reconhecera
no primeiro instante: Era Estela.
— …e o ferimos quando tentava escapar na janela. — Lafferty disse — O médico
provavelmente nos fará adiar o interrogatório até amanhã. Então terás o assassino cozido
e temperado, Mac.
Donaldo levantou a mão pra segurar o alto da cabeça.
— Há duas coisas que não compreendo. Primeiro: Como vieste?
Lafferty fez um sinal com a cabeça, indicando Estela, que disse:
— Comecei a me lembrar de certas coisas depois que saíste com senhor Absolute. Me
lembrei principalmente de senhorita Benson ter dito ontem que tinha mais elementos pro
FBI e que estava espantada de ver certa gente mostrar tão absoluta falta de patriotismo.
Então riu. Eu não sabia por quê. Só há pouco percebi que era porque fizera um trocadilho
sem querer. Havia outras coisas também, de modo que eu…
— Recebemos hoje um bilhete de senhorita Benson. — Acrescentou Lafferty — Ainda
não chegara a minhas mãos quando telefonei. Fazia promessas vagas, sem citar nome,
mas concordava em linhas gerais com o que Estela disse, por isso viemos investigar.
Quando encontramos a porta fechada a chave e soubemos que estavas aqui.
— Ótimo. E deus-sabe o quanto estou agradecido a ambos. Mas meu outro enigma:
Quando, ainda há pouco, Absolute confessou todos os detalhes do plano de entrega das
mensagens, pensando que eu não ficaria vivo pra contar, mesmo assim continuou a negar
saber sobre o crime. Não posso deixar de pensar…
Ao voltar a seu gabinete, Donaldo encontrou uma nota:
Da biblioteca pública perguntam se pediste enviar um livro da sede à sucursal
Serafim Pelayo amanhã na manhã. Um homem chamado Noble fez o pedido e
indicou teu nome. Favor confirmar.
Enquanto continuava, Donaldo sentiu a cabeça mais tonta do que nunca, e pensou quê-
diabo estaria confirmando.
A sucursal Serafim Pelayo não foi aberta ao público na manhã seguinte mas estava
bastante cheia. Fora, na sala de leitura, esperava senhor Absolute envolto em atadura, sob
a guarda de Lafferty; o desgrenhado Jaime Stickney, cum sargento da seção de homicídio;
Hante Jarvis, com os olhos remelentos por ter passado uma noite em claro junto à
cabeceira da esposa; e senhorita Frumpeter, chefe do departamento de sucursal,
aguardando, impaciente, o fim daquela interrupção no funcionamento bem lubrificado de
sua seção.
No gabinete estavam Donaldo, Estela e Nique. Nesse dia a moça usava um vestido
vermelho cum fecho metálico avolumando sedutoramente a curva do seio. Donaldo tinha
na mão o livro enviado pela sede, e Nique segurava seu frasco, dizendo:
— Fácil. Else não é um nome. São as letras LC. Senhorita Swift se referiu a alguns
sistemas de classificação. Entre eles o da biblioteca do congresso.
— Claro. — Concordou Estela. — Não o empregamos na biblioteca de Losângeles.
detalhado demais pruma biblioteca pública. Mas é estudado nas escolas de
biblioteconomia. Eu, naturalmente, não o conhecia, pois sou apenas auxiliar. Mas senhor
Jarvis percebeu de quê se tratava; e senhorita Benson, coitada, devia saber quase de cor.
Donaldo leu o título na lombada do livro:
— Classificação da biblioteca do congresso de Estados-Unidos. Q: Ciência.
Estela suspirou.
— Graças-a-deus. Eu estava com medo que fosse literatura inglesa. Donaldo sorriu.
— Não sei se teus pais conheciam muito ou muito pouco a história literária, quando te
deram o nome de Estela Swift.

59
003, julho 1949
Nique bebeu e resmungou:
— A diante.
MacDonald abriu o livro e começou a folhear.
QL, Zoologia. QL 600, Vertebrados. QL 696, Aves, lista sistemática
(subdivisões, A-Z)
— Aves? — Disse Estela, admirada. — Era o passatempo preferido de senhorita
Benson, sim, mas…
Donaldo foi percorrendo a página com os olhos:
.A2, Accipitriformes (Águia, falcão, etc.)
.A3, Alciformes (Mergulhão, mergulhão-periquito15)
Alectorideos, ver Gruiformes
— Lindos nomes. Se ao menos tivéssemos um suspeito chamado Gruiformes... Ponto
C sete — prosseguiu — Coraciiformes, ver também… Á! Aqui estamos: Ponto C nove,
Cipselídeos…
O livro caiu das mãos. Estela abriu o fecho metálico e tirou a pequena pistola que
contribuíra a aumentar o volume do seio. Nique estendeu vivamente a mão, derrubando
o frasco de xerez, e segurou o pulso. A pistola parou a meio caminho da boca da moça,
se virou a baixo e deflagrou em direção ao assoalho. A bala atravessou o volume do
sistema de classificação LC, logo acima da linha que dizia:
.C9, Cipselídeos (Swifts)

Foi um Donaldo sóbrio e amargurado que desdobrou o guardanapo de papel tirado da


bolsa da detida e leu, em estirados rabiscos:
Stella Swift
— A confissão dela é bastante clara. Mãe alemã, família na Europa, pressão e ameaça.
Foi ela que inventou o sistema de mensagem através dos livros da biblioteca, e o
controlava sem que o soubessem as próprias pessoas que o utilizavam, como Absolute.
Depois de errar com respeito a Stickney, senhorita Benson acertou com Este… com a
mulher Swift. Tinha de ser eliminada, portanto. Isso trouxe outras necessidades: Agressão
a senhora Jarvis quando ela descobriu mais do que convinha. O sacrifício de Absolute,
um subordinado insignificante, como bode expiatório pra explicar as novas informações
de senhorita Benson ao FBI. Mas como, diabos!, adivinhaste isso?, logo no princípio do
caso.
— Padrão. Tinha de se ajustar. — Seu nariz franziu, e enxotou a mosca inexistente. —
Senhorita Benson era catalogadora. Aquela história de QL tinha que ser número dum
livro. Não pelo sistema usado aqui ou reconhecido facilmente, mas por algum sistema.
Vejas os nomes: Cora Jarvis, Jaime Stickney, Norberto Absolute, Estela Swift. Swift era
o único sobrenome que podia ter número de classificação.
— Mas não te arriscaste demais dando aquele guardanapo? Olhes o que aconteceu a
senhora Jarvis.
Nique sacudiu a cabeça.
— Ela era a única pessoa que sabia que me consultaras. Se me atacasse mostraria o
jogo. Muito esperta pra fazer algo assim. Além disso, eu estava acostumado a me arriscar,
quando… Deixou inacabada a referência ao tempo em que fora o melhor tenente
investigador de Losângeles.

15
Mergulhão-periquito. No original Auk (Aethia psittacula), mergulhão. Aukland, terra do mergulhão. Nota do digitalizador

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003, julho 1949
— Pegamos uma assassina, e destruímos uma cadeia de espionagem. — Disse
Donaldo. Olhou o lugar onde Estela estivera quando abrira o fecho metálico do vestido.
O sol que entrava na janela reluzia no cabelo da moça, — Mas diabos me levem se te
agradeço!
— Compreendo — disse Nique, melancólico. Agarrou o frasco derrubado e,
silenciosamente, deu graças ao céu porque ainda restava um bom gole de xerez.

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Este é mais um conto onde aparece doutor Gideão Fell,
célebre detetive das novelas de John Dickson Carr

O outro problema
John Dickson Carr

N o clube dos detetives ainda se fala sobre aquela noite em que doutor Gideão Fell
desceu ao vale de Somersete, o homem com quem conversou no crepúsculo,
junto ao lago e o crime que parecia ter saído do próprio lago. A verdade sobre o
crime é conhecida há muito tempo mas sempre se faz uma pergunta depois de ouvir a
história.
A aldeia de Grayling Dene ficava a 1500m em direção ao poente. E as janelas do fundo
da casa olhavam até lá. Era uma casa comprida, de tijolo vermelho, com empena, situada
numa depressão entre os ásperos morros, com tijolo escurecido como um velho quadro.
Nenhuma luz se via dentro, embora a relva estivesse em bom estado de conservação e a
sebe aparada.
Atrás da casa havia uma longa extensão de água reluzindo ao sol poente, pois o lago
ornamental, de cerca de 50m de largura, chegava quase às janelas. No meio do lago, numa
ilha artificial, havia um pequeno pavilhão. Ligeira brisa começava a soprar, apesar do
calor, e o vale estava animado por uma conferência de folha.
Os últimos raios solares mostravam que todas as janelas da casa, exceto uma, tinham
pequenos vidros em forma de losango. A única exceção era uma janela no alto, gradeada,
numa empena, a mais alta da casa, e que desembocava na estrada de Grayling Dene.
No crepúsculo dois homens desceram do cimo do morro. Um era alto e magro. O outro,
que usava chapéu de abas largas e reviradas, era grande e imensamente gordo e parecia
ainda mais volumoso contra a linha do horizonte por causa da grande capa escura que
ondulava atrás. Mesmo daquela distância se podiam ouvir as risadinhas que lhe animavam
os vários queixos e desciam ao longo do colete. Os dois caminhantes estavam entretidos,
como de costume, em violenta discussão. De vez em quando o maior parava e se
entregava a uma tirada oratória, floreteando a bengala. Mas pararam ao passar diante do
lago e da casa escura.
— Eis um exemplo. — Observou superintendente Hadley. — Digas o que disseres.
Isto é solidão demais pra mim. Prefiro mil vezes a cidade.
— Não estamos sós. — Disse doutor Gideão.
O lugar parecera tão deserto que Hadley teve um pequeno sobressalto ao ver um
homem em pé na beira do lago. Contra o clarão avermelhado que refletia na água, viram
que era um homem baixo, de roupa preta bem cuidada e chapéu de pano branco. Parecia
inclinado a diante, espreitando a água. O vento sussurrou novamente, e o homem se
voltou.
— Não vejo cisne. Alguém vê algum?
Nada perturbava a tranqüilidade da água.
— Não. — Disse doutor Fell, com a mesma gravidade. — Haveria algum?
— Devia haver um. — respondeu o homenzinho, inclinando a cabeça — Morto, com
sangue no pescoço, flutuando ali.
— O mataram? — Perguntou doutor Fell, depois duma pausa. Comentava, mais tarde,
que isso parecia uma pergunta ridícula mas que se então afigurava adequada entre as luzes
do dia e as do cérebro.
— Ó! Sim. — Respondeu o homem, inclinando novamente a cabeça. — O mataram,
como outros… seres humanos. Olho, ouvido e garganta. Ou talvez fosse melhor dizer
ouvido, olho e garganta, pra observar a ordem.

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003, julho 1949
Hadley falou com brusquidão.
— Espero que não estejamos invadindo a propriedade. Sabíamos que as terras eram
cercadas, naturalmente, mas nos disseram que os proprietários estavam ausentes e não se
importariam que cortássemos caminho aqui. Fell, acha que devíamos…?
— Perdão. — Disse o homenzinho, com voz de tão calma lucidez que Hadley tornou
a se virar a ele. Pelo que podiam ver na penumbra, o homem tinha uma fisionomia boa,
plácida, um tanto ascética e estava sorrindo. — Perdão — repetiu, em tom curiosamente
conciliador. — Eu não devia dizer aquilo. Vede: Passei muito tempo preocupado com o
caso. Há trinta anos que procuro a verdadeira explicação. Quanto a invadir a propriedade,
também não sou dono desta terra, embora vivera aqui. Há ou havia um banco aqui,
certamente. Posso vos deter durante algum tempo?
Hadley nunca pôde compreender bem como aquilo se deu, mas era tal a fascinação da
hora, do lugar ou do homenzinho grave e sincero, que pouco depois ele se sentou numa
enferrujada cadeira de ferro, junto ao lago cada vez mais escuro, pensando. Disse em tom
de quem se desculpa:
— Sou José Lessing. Se nunca, ouvistes falar sobre mim, não creio que ouvistes falar
sobre meu padrasto. Mas houve tempo em que tinha fama como especialista em olho,
ouvido e garganta. Doutor Harvey Lessing era seu nome. Naquela época, me refiro à
família, sempre vínhamos passar as férias de verão. É difícil expor detalhes biográficos
de maneira clara. Talvez seja melhor me servir de datas, como se o assunto tivesse
verdadeira importância, como numa obra histórica. Éramos quatro filhos. Três eram filhos
de doutor Lessing e sua primeira mulher, que morreu em 1899. Eu era enteado. Ele se
casou com minha mãe em 1901, quando eu tinha 17 anos. Lamento dizer que ela morreu
três anos depois. Doutor Lessing era um homem bondoso mas infeliz na escolha de suas
esposas.
O homenzinho parecia estar sorrindo tristemente.
— Formávamos um grupo normal, contente e feliz, apesar do cinismo de Brownrigg,
que era o mais velho. Os olhos, ouvidos e garganta nos perseguiam: Era dentista. Creio
que está morto. Era um homem robusto, muito sorridente. O rosto tinha um brilho baço
de manteiga. Era um atleta fora de forma. Costumava dizer que era capaz de arrancar
dente com a mão. Gostava muito de noz. Sempre o recordo sentado à mesa entre dois
castiçais de prata, sorrindo, cum monte de noz em sua frente e um pequeno quebra-noz
na mão. Harvey júnior era o segundo. Faziam bem em o chamar de Júnior. Era do tipo
jovial, buliçoso, corado e simpático. Nunca se sentava numa cadeira sem a virar primeiro
ao outro lado. Sempre dizia Alô!, meninos quando entrava numa peça, e nunca saía dela
sem deixar a porta aberta pra entrar de novo. E principalmente estava quase sempre em
cima da água. Tínhamos um esquife e uma barca em nosso lago. Acreditai que tem 3m
de profundidade? Júnior sempre se vestia a caráter pra isso, solenemente como se
estivesse no Tâmisa, envergando uma camiseta de listas vermelhas e brancas e um
chapéu-de-palha do tipo muito usado então. Eu disse que estava quase sempre no lago
mas, naturalmente, não depois do chá. Essa era a hora em que doutor Lessing fazia a sesta
no pavilhão.
O pavilhão, revestido de trepadeira, estava quase invisível então. Mas todos olharam
a construção, muito sugestiva no meio do lago.
— A moça, Marta, era a terceira. Tinha quase a minha idade, e eu a queria muito.
José Lessing espremeu as mãos e disse:
— Não intercalarei desnecessariamente uma história de amor, senhores. Pra falar
verdade, Marta era noiva dum jovem oficial dum regimento de linha, Artur Somers, e o
esperava aqui o tempo todo quando aconteceram aquelas coisas. Eu o conhecia bem, pois
era seu confidente na família.

63
003, julho 1949
Quero acentuar que verão quente e agradável foi aquele. O lugar tinha mais
ou menos a aparência atual, apenas creio que era mais verde. Eu estava
satisfeito por ter saído da cidade. De acordo com a paixão de doutor Lessing
pelas ocupações úteis, me empregaram num departamento de ótica duma
joalheria. Sempre tive habilidade com as mãos. Acredito que fosse então um
rapazola magro, irritadiço e desconfiado, mas todos foram muito bons pra mim
depois da morte de minha mãe, talvez exceto o luzidio Brownrigg. Mas pra mim
aquele verão se concentra em torno de Marta, com o cabelo castanho levantado
no alto da cabeça, o vestido branco de ombros entufados, jogando croquete na
grama verde e rindo. Eu já disse que isso foi há muito tempo.
Na tarde de quinze de agosto todos tencionávamos sair. O próprio Brownrigg
tinha a intenção de deixar a casa depois duma espécie de lanche que tomamos
às duas da tarde. Olhai à direita, senhores. Vede aquela janela saliente no meio
da casa, sobre o lago? Era ali que puseram a mesa.
Doutor Lessing foi o primeiro a se levantar da mesa. Ia sair cedo pra dormir a
sesta no pavilhão. Era uma tarde quente, sonolenta como o ruído duma
aparadora de relva. O sol cozia os velhos tijolos e fulgurava na água. Júnior fizera
uma espécie de cais em miniatura na beira do lago, mais ou menos onde
estamos sentados. A barca e o esquife estavam estacionados ali.
Nas janelas abertas vimos doutor Lessing descer ao cais com o sol na parte
calva da cabeça. Levava um travesseiro numa mão e um livro na outra. Pegou o
esquife. Nunca pôde manejar direito a barca, e prum homem de sua dignidade
era irritante tentar.
Marta foi a segunda a se retirar. Deu uma risada e saiu correndo, como
sempre fazia. Então Júnior disse Até logo, pessoal, ou algo assim, e saiu a
passo largo, deixando a porta aberta. Fui embora pouco depois. Júnior perguntou
a Brownrigg se queria sair, e Brownrigg disse que sim. Mas estava com preguiça,
e ficou, cuma pilha de noz na frente. Embora se afastasse da mesa por causa
da luz, permaneceu ali toda a tarde, diante do lago.
Naturalmente, o que Brownrigg dissesse ou pensasse não teria importância.
Mas aconteceu que um jardineiro chamado Róbinson se lembrou de aparar sebe
neste lado da casa. Donde estava podia ver todo o lago. Sem movimento
naquela tarde. O pavilhão, como podeis ver, tem duas portas: Uma voltada à
casa e a outra no lado oposto, cobertas por toldos de listas brancas e vermelhas,
como a camiseta de Júnior, de modo que não se podia ver o interior. Mas durante
toda a tarde o pavilhão permaneceu tranqüilo, contrastando com resplendor
deslumbrante da água e aquele arvoredo no outro lado. Nenhum barco se
afastou da margem. Ninguém entrou no lago pra andar. Não havia ondulação na
água além da que seria produzida pelos cisnes, pois tínhamos dois, ou pela fonte
que alimentava o lago.
Cerca das 6h estávamos todos de volta à casa. Quando as sombras
começaram a se estender, creio que algo de vazio naquela tarde nos alarmou.
Doutor Lessing estaria lá, pedindo algo. Não estava. Gritamos mas não
respondeu. O barco a remo continuava amarrado junto ao pavilhão. Brownrigg,
com suas maneiras tranqüilamente autoritárias, disse a mim pra acordar o velho.
Me lembrei de que havia apenas a barca e eu a guiava muito mal, pois cada vez
que o tentava só conseguia a fazer andar em volta ou virar. Mas Júnior disse:
Vamos, meu velho. Aprenderás a manejar melhor a barca. Darei a ti uma
mão.

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003, julho 1949
Nunca esquecerei quanto tempo levamos pra chegar até lá, eu cambaleando
com o esforço de impelir a vara, enquanto Júnior me ajudava. Doutor Lessing
estava deitado, no lado esquerdo, quase de bruços, num canapé de vime. Tinha
o rosto afundado no travesseiro, de modo que apenas se via uma madeixa das
suíças ruivas. A mão direita pendia ao chão, com o dedo encostado nas páginas
dum livro aberto, Três homens num bote.16
Notamos logo que parecia haver algum, isto é, que algo saía do ouvido. Não
sabíamos mais, exceto que estava morto. A arma nunca foi encontrada. Morrera
durante o sono. O médico nos disse que a ferida fora feita por algum instrumento
redondo de ponta aguçada, mais grosso que um grampo de chapéu mas não tão
grosso quanto um lápis, que atravessou o ouvido e atingiu o cérebro.
José Lessing pausou. Uma lufada de vento soprou nas árvores da margem fronteira,
agitando as frondes sob a clara luz das estrelas. O homenzinho permanecia sentado,
inclinando repetidas vezes a cabeça a si. Os outros dois viam o chapéu branco se mover.
— Deveras? — Doutor Gideão, num tom quase indiferente. Estava recostado a trás em
seu banco, e, com a capa e o chapéu de abas largas e reviradas, parecia o vulto enorme
dum bandido. Estava aparentemente olhando Lessing com curiosidade sobre os óculos.
— E de quem suspeitaram?
— Suspeitaram de mim.
Prosseguiu no mesmo tom de quem se desculpa.
— Em todo o grupo só eu sabia nadar. A natação era meu único talento. Está muito
escuro pra mostrar, mas conquistei uma pequena medalha, que conservo na corrente de
meu relógio desde que a recebi quando era rapaz.
— Mas — exclamou Hadley — disseste que ninguém…
— Explicarei, se não me interromperdes. Naturalmente, a polícia julgou que o móbil
era o dinheiro. Doutor Lessing era rico, e o dinheiro devia ser dividido em partes quase
iguais entre nós. Já disse que sempre foi muito bom pra mim. Primeiro, a polícia procurou
averiguar onde estivera cada um de nós durante a tarde. Brownrigg ficara sentado na sala-
de-jantar ou disse que ficara. Mas havia o jardineiro pra provar que não ele nem alguém
mais descera ao lago. Marta (era ridículo, mas investigaram até os passos de Marta)
estivera cuma amiga, não recordo o nome, que viera buscar em seu fáeton17 pra irem jogar
cróquete.18 Júnior não tinha álibi, pois saíra pra passear no campo. Mas — acrescentou
com toda a simplicidade — todos sabiam que seria incapaz de fazer isso. Eu era o intruso,

16
Três homens num bote (Three man in a boat). Não fosse Jerome K Jerome (1859-1927) um dos maiores vultos do humor
inglês e tudo o que haveria a dizer acerca de Três homens num barco caberia na genérica etiqueta livro de bordo. Afinal estamos (são
palavras do autor) diante o registo fiel das peripécias vividas por Jorge, Harris e J (já pra não falar do cão!) ao longo duma passeata
no imponente Tâmisa. As coisas se complicam quando o suposto relato se revela a súmula de episódios tanto mais hilariantes quanto
se pretender os comparar a uma simples viagem de barco. Publicado em primeira vez em 1889, foi entusiasticamente recebido na
Inglaterra e Eua, sagrando Jerome mestre de gerações de profissionais da comédia. Os três protagonistas eram genuínos: Harris era
Carl Hentschel, um polaco que muita gente confundia cum alemão. Jorge era George Wingrave. Jerome completa o trio que costumava
apanhar o comboio em Ricamundo pra passar os domingos no rio. Montmorency, o cão, também existiu, e o episódio com a chaleira
se baseou num incidente real, tal qual as explorações dos três homens se basearam nas experiências de Jerome e de seus dois amigos.
http://www.wook.pt/ficha/tres-homens-num-barco-ja-para-nao-falar-do-cao-/a/id/95469 Nota do digitalizador
17
Fáeton (Phaeton, Phaéton), é também (além da personagem da mitologia grega, Faéton, Faetonte) a designação dum tipo
de automóvel descoberto com assentos de espaldar alto que protegem os passageiros do banco traseiro. Podem ter duas fileiras de
assento um fáeton duplo, ou três fileiras um fáeton triplo. https://pt.wikipedia.org/wiki/F%C3%A1eton_(autom%C3%B3vel) Nota do
digitalizador
18
Cróquete, croqué no Brasil (croquet) é um jogo recreativo, posteriormente transformado em desporto, que constitui em golpear
bolas de madeira ou plástico através de arcos encaixados no campo. Aparentemente o jogo foi inventado na Irlanda cerca de 1830,
sendo um derivado do golfe. Na Inglaterra, em 1850, era passatempo dos aristocratas. Cerca vinte anos depois, em 1870, se expandiu
nas colônias britânicas. Atualmente é jogado no Canadá, Estados Unidos, Austrália e França e nunca chegou a se popularizar como
desporto mundial, sendo mais praticado como recreação. O jogo aparece no desenho-animado Wicket Wacky, episódio de Pica-Pau
(Woody woodpeaker). https://pt.wikipedia.org/wiki/Croquet Não confundir com críquete. Nota do digitalizador

65
003, julho 1949
talvez seja melhor dizer patinho-feio, e reconheço que era um rapaz sarcástico e
desagradável.
Foi assim que inspetor Deering achou que cometi o crime. Em primeiro lugar,
pensou, me certifiquei de que todos estariam fora de casa naquela tarde. Assim,
quando depois fosse descoberto o crime, toda a gente suporia que o assassino
simplesmente fora e voltara na barca. Ninguém ignorava que eu não sabia guiar
a barca. Percebei?
Depois (pensou o inspetor) fui ao arvoredo na outra margem do lago, as
árvores estão alinhadas com o pavilhão e as janelas da sala-de-jantar. O lago é
raso naquele lado, e a margem é coberta de junco. Pensou que tirei a roupa,
ficando cum traje de banho interior. Pensava que entrei na água, me ocultando
no juncal e que nadei mergulhado até o pavilhão.
Reconheço que 20m embaixo dágua não é muita coisa prum bom nadador.
Achavam que Brownrigg não me ver sairia da água porque entre nós havia a
espessura do pavilhão. Róbinson podia ver todo o lago, menos aquela parte
atrás do pavilhão. Mas eu também não os via. Pensaram que entrei de arrasto
sob o toldo, levando a arma no peito, dentro da roupa de banho. O calor intenso
secaria logo a roupa. Era assim, creio, que julgavam ter eu matado o ancião que
sempre se mostrou bom pra mim.
A voz do homem se tornara irritada e aturdida.
— Eu disse que não fiz isso. — Continuou, com ar esperançoso — Disse e repeti várias
vezes que não. Mas não creio que acreditassem. É por isso que todo esse tempo andei
pensando. Foi idéia de Brownrigg. Me fizeram comparecer ante uma espécie de conselho
de família reunido na biblioteca, como se eu roubara geléia. Marta estava chorando, mas
creio que chorava de puro medo. Nunca soube se manter à altura numa crise. Ficava
irritadiça e parecia mais frágil. De qualquer modo, não é agradável pensar num assassino
se aproximando dalguém adormecido no calor da tarde. Júnior, aquele bom rapaz,
procurou tomar minha defesa e pedir imparcialidade mas eu lia a mesma idéia na
expressão do rosto. Brownrigg presidia a reunião, maciamente, sorrindo com a cabeça
atirada a trás.
— Temos de crer que o mataste, ou acreditar no sobrenatural. — Disse
Brownrigg — O lago é assombrado? Não. Acho que podemos afastar essa
hipótese. — Apontou o dedo a mim. — Tu, maldita cobrinha, és um mandrião, e
querias aquele dinheiro.
— Mas vede: Eu tinha uma poderosa arma contra eles e a utilizei. Reconheço que fui
inescrupuloso, mas eu estava tentando demonstrar minha inocência, e sempre nos
ensinaram que o Demônio se deve combater com fogo. Quando falei sobre essa arma, até
o maxilar de Brownrigg tremeu. Brownrigg era, dentista, Harvey júnior estava estudando
medicina. Qual era minha arma? Esse é o ponto principal da questão. Mas não era a
opinião da família o que eu tinha a temer, era a opinião de inspetor Deering.
Não me prenderam porque não havia prova o bastante, mas em todas as
noites eu temia que a prisão acontecesse no dia seguinte. Aqueles dias que se
seguiram ao enterro foram excessivamente quentes e a suspeita era como roupa
interior de lã, naquele calor. Os acessos de mau-humor de Marta começavam a
irritar os nervos do próprio Júnior. Uma vez pensei que Brownrigg bateria nela.
Marta sentia angustiosa necessidade da presença do noivo, Artur Somers.
Embora ele escrevera que chegaria a qualquer momento, ainda não conseguira
licença do coronel.
E então o lago recebeu mais alimento.

66
003, julho 1949
Olhai a casa, senhores. Não sei se a luz é bastante forte pra ver daqui. Olhai
a casa, a mais alta janela, embaixo da empena. Vede?
Houve um silêncio, preenchido pelo tumulto das folhas.
— É gradeada. — Disse Hadley.
— Sim. — Concordou o homenzinho. Preciso descrever o quarto. É uma peça pequena
e quadrada. Tem uma porta e uma janela Na época sobre a qual estou falando não havia
mobília. A mobília fora tirada alguns anos antes, e era mobília de tipo um tanto especial.
Desde então o quarto estivera fechado. A chave ficava numa caixa, no quarto de doutor
Lessing mas, naturalmente, jamais alguém entrava naquela peça. Uma das mulheres de
doutor Lessing morrera lá em certo estado. Eu já disse que não tivera sorte com as esposas.
Nem se atreveram a envidraçar a janela.
O homenzinho acendeu vivamente um fósforo. A chama breve pareceu juntar seu rosto
ao deles. Viram que tinha um cachimbo na mão esquerda. Mas a chama do fósforo
mostrou pouca coisa além dos olhos brandamente voltados a cima e do fato de que o
cabelo branquicento (de textura tão grosseira que parecia caiado) eram um tanto
compridos.
— Na tarde de 22 de agosto recebemos uma visita inesperada do solicitador da família.
Não havia alguém pra o receber além de mim. Brownrigg se fechara em seu quarto da
frente, cuma garrafa de uísque: Estava bêbado ou disse que estava. Júnior saíra. Na última
semana, procuráramos ocupar o espírito nalgo mas Júnior não podia remar nem eu
trabalhar em minha oficina. Não se considerava isso decoroso. Creio que se embriagar
era considerado a coisa mais decorosa. Fazia alguns dias que Marta não se sentia bem.
Não estava doente o bastante pra ficar acamada mas permanecia deitada num canapé, em
seu quarto de dormir.
Olhei a dentro do quarto antes de descer e falar ao solicitador. A peça estava
decorosamente abafada com postigos e cortinas de veludo, como todos os
outros quartos. Bem podeis imaginar que devia estar muito quente ali. Marta
estava reclinada no canapé cum frasco de sal, e uma lâmpada de globo branco
ardia numa mesinha redonda ao lado. Me lembro que o vestido branco parecia
engomado. O cabelo estava preso no alto da cabeça e tinha no peito um
reloginho de ouro. Além disso as pálpebras estavam tão inchadas que pareciam
quase orientais. Quando perguntei como se sentia, começou a chorar e atirou
um livro a mim.
Então desci. Conversava com o solicitador quando se deu o fato. Estávamos
na biblioteca, na parte dianteira da casa, e não ouvíamos distintamente. Mas
ouvimos algo. Foi por isso que subimos ao andar superior. Até o solicitador
correu escada acima. Marta não estava em seu quarto. Descobrimos onde
estava porque a porta que acessava a escada do sótão estava aberta.
Fazia um calor ainda mais intolerável em cima, embaixo do forro. A porta do
quarto gradeado estava entreaberta. Junto a ela, no lado de fora, estava uma
criada, creio que que se chamava Jane Dawson, encostada na ombreira e
tremendo como as fitas de seu boné. Todo som paralisara na garganta mas a
mulher apontou a dentro.
Eu já disse que era um quartinho nu e sujo. O sol baixo entrava chamejante
na janela, desenhando a sombra das grades no vestido branco de Marta, que
estava caída quase no meio do quarto, com o calcanhar torcido sob o corpo
como se virado antes de cair. A levantei e procurei falar consigo mas algo
redondo e de ponta aguçada, um tanto mais grossa que um grampo de chapéu,
fora cravada no olho direito, penetrando no cérebro.
Mas havia mais ninguém no quarto.

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003, julho 1949
A declaração da criada foi clara e precisa. Vira Marta sair do quarto de doutor
Lessing. Marta corria, tão depressa quanto a saia permitia. Tropeçou uma vez,
e a criada julgou a ter ouvido soluçar. Jane disse que Marta fora à porta do sótão
como se o Diabo a perseguisse. Jane, preferindo qualquer coisa a ficar sozinha
no corredor escuro, a seguiu. Viu Marta chegar ao alto da escada e abrir a porta
do quartinho. Quando Marta entrou correndo, Jane teve a impressão que não
tentara fechar a porta, mas que a porta se encostara por si depois de entrar.
Percebei?
O que quer que assustara Marta, Jane não se atreveu a seguir dentro do
quarto, ao menos durante alguns segundos, e depois já era tarde demais. A
criada nunca soube descrever exatamente a espécie de som que Marta emitiu.
Foi algo que afugentou os pássaros das trepadeiras e fez os cisnes no lago
levantar vôo. Mas a criada não tardou a recuperar presença de espírito suficiente
pra empurrar a porta cum dedo e espiar na abertura.
Excetuando Marta, a peça estava vazia.
Os três ficamos nos olhando mutuamente. A declaração da criada era
inatacável, e todos sabíamos que era uma testemunha verídica. A própria polícia
não a pôs em dúvida. Jane disse ter visto Marta entrar naquele quarto mas que
não vira sair alguém. Não desviara os olhos da porta nem era provável que o
fizesse. Mas quando espiou, pra ver o que acontecera, havia ninguém na peça
além de Marta. Isso era fácil de comprovar, pois não havia lugar onde alguém
pudesse estar. Não poderia ter sido cegada pela luz? Não. Poderia alguém ter
se esgueirado a fora sem que visse? Jane sacudiu a cabeça com tanta
veemência que quase desprendeu o cabelo.
A janela, é desnecessário dizer, era inacessível. As barras de ferro estavam
presas firmemente a distância não maior que a largura duma mão, e era
impossível subir até lá. Não havia saída além da porta e da janela. Tampouco
havia, como é mesmo a palavra?, mecanismo secreto.19 Nosso amigo inspetor
Deering se certificou disso. Algo creio conveniente mencionar: Apesar do estado
das paredes e do forro, o assoalho do quarto estava bem varrido e limpo. O
vestido de ombros entufados de Marta estava quase imaculado, branco como
seu rosto.
Aquele homicídio era incrível. Não quero dizer simplesmente que era incrível
com relação às circunstâncias físicas, mas também que ali estava a morta, nas
férias de verão. É possível que parecesse mais morta porque nunca a
conhecêramos bem quando viva. Marta era, ao menos pra mim, apenas uma
risada, algumas faceirices, um par de olhos castanhos. Se sentia mais a
ausência do que se sentiria a duma pessoa mais cheia de vida. E nas férias de
verão, com aquele sol quente e a rede de tênis pronta pra ser estendida.
Nessa tarde saí pra caminhar com Júnior aqui na margem do lago, no
escurecer, quem tentando expressar algo disso que acabei de dizer. Parecia
aturdido. Não sabia por que Marta subira àquele quartinho pardo, e não cessava
de perguntar qual seria a razão. Parecia incapaz de se acostumar à idéia de que
nossa féria fora interrompida, e muito menos que o foi pelo assassínio de seu
pai e da irmã.
Havia uma luz avermelhada no lago contra a qual as árvores se recortavam
como rendas escuras, e passávamos diante do arvoredo perto do juncal. O que
me recordo mais vividamente é a fisionomia de Júnior nessa tarde. Tinha o
chapéu atirado a trás, como o usava habitualmente. Olhava além do juncal, onde
19
Mas se for secreto… Nota do digitalizador

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a água se agitava levemente, como se o lago fosse o mau gênio do lugar e
guardasse um segredo. Quando Júnior falou, mal lhe reconheci a voz: Meu-
deus! Mas isso está no ar!
Havia algo branco boiando perto do juncal, girando muito lentamente, cuma
espécie de garra descorada, se arrastando atrás dela na água. Era um cisne que
morrera por causa dum talho no pescoço que quase o cortara de lado a lado.
O pescamos cum gancho de barco.
E ficou em silêncio.
No comprido banco de ferro a capa de Gideão se moveu um pouco. Hadley ouviu a
respiração ofegante de cólera reprimida, como o ruído duma chaleira fervendo.
— Foi o que pensei. — Disse Gideão com voz grave, e acrescentou com mais aspereza:
— Olhes aqui! É preciso acabar com essas tolices.
— Como? — Volveu José, evidentemente surpreso.
— Com licença. — Disse Gideão, e Hadley declarou mais tarde que nunca sentiu tanta
satisfação em ver girar aquela bengala, ou em ouvir aquela voz cordata se acalorar numa
controvérsia: — Quero perguntar: Juras por algo que te seja sagrado, se é que existe, pois
duvido, que não conheces a verdadeira explicação?
— Juro. — Disse o outro, em tom sério, e inclinou a cabeça.
Gideão ficou em silêncio um instante e falou em tom argumentativo:
— Então farei outra pergunta: Nunca atiraste uma flecha ao ar?
Hadley se virou.
— Pareces ouvir falar sobre bicho-papão. — Disse, exasperado. — Ora, vamos!
Decerto não pensas que aquela moça foi morta por alguém que atirasse uma flecha ao ar.
Não é?
— Ó! Não! — Gideão disse em tom mais pensativo. — Eu estava falando em sentido
figurado, como o menino dos versos. Nunca atiraste uma pedra quando menino? Não pra
acertar mas pelo puro prazer de atirar. Nunca trepaste em árvore? Não gostavas de brincar
de pirata, se vestindo como um e brandindo uma espada? Creio que não. É por isso que
vives numa luz rarefeita e lúgubre e não gostas de romantismo, sentimentalismo, bom
uísque e das coisas mais nobres deste mundo. E é também por isso que não percebes a
inverossimilhança de vários aspectos do caso.
Pra começar: Os pássaros não costumam fugir das trepadeiras, em bando, só
ao ouvir alguém gritar. Com o vivo e ruidoso Júnior na casa, seria de calcular
que os pássaros estivessem habituados. Ainda menos costumam os cisnes
saltar a fora dágua e bater as asas por causa dum grito longínquo. Não são tão
sensitivos. Mas nunca viste um garoto atirar uma pedra a uma parede? Nunca
viste um garoto atirar uma pedra à água? Os pássaros e os cisnes só poderiam
se assustar se algo batesse tanto na parede quanto na água. Enfim, algo caindo
daquela janela gradeada.
Depois: Mulheres assustadas não correm a um sótão, principalmente a um
sótão ligado a tal recordação. Descem ao andar inferior, onde poderão encontrar
um protetor. Marta não estava assustada. Subiu àquele quarto com algum
propósito. Qual propósito? Não iria buscar algo lá, pois nada havia no quarto. O
quê teria em mente? A única coisa que sabemos que a preocupava era o ansioso
desejo de ver chegar o noivo. Fazia semanas que o esperava. Aquele quarto tem
algo de peculiar: A janela é a mais alta da casa, e só dali se pode ver bem a
estrada que leva à aldeia.
Suponhamos que alguém dissera que avistara Artur Somers na estrada. Era
muito longe, naturalmente, e esse alguém reconhecia que talvez estivesse
enganado.

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Hum. Sim. A armadilha estava preparada, como vede. Marta demorou apenas
o tempo suficiente pra buscar a chave na caixa do quarto do pai, e soluçou de
alívio. Mas quando entrou no quarto um sol forte se derramava nas grades da
janela, dando em cheio no rosto, e a estrada fica longe. Era essa, creio, a
armadilha. Pois no peitoril da janela daquele quarto, nunca usado e que alguém
varrera pra apagar as pegadas, esse alguém colocara muito oportunamente
um… hem?, Hadley.
— Um binóculo. — Disse Hadley, se levantando na obscuridade. Gideão argumentou,
com sua respiração asmática:
— Mas ainda havia um inconveniente. Pegues um binóculo e tentes usar numa janela
gradeada onde as barras estão a menor distância entre si que a largura da mão. As barras
atrapalham. A todo lado que se volte se choca com elas. Perturbam a visão e irritam a
pessoa. Além disso, há um sol forte pra complicar a situação. Em tua impaciência, creio
que viraras o binóculo de lado e o passaras através das grades. Então, o segurando
firmemente contra uma das barras, com as duas mãos, olharas no binóculo.
Gideão completou em um tom ferozmente expressivo:
— Mas aquele não era um binóculo vulgar. Marta notara que a imagem das lentes era
indistinta. Com o binóculo estava em posição, procurou ajustar o foco mexendo na
pequena roda que há no meio do instrumento, que girou como o gatilho de arma de fogo,
libertou uma mola, e uma aguçada ponta de aço saltou da lente direita e se cravou no olho.
Caiu o binóculo, que estava do lado de fora da janela. O peso do binóculo arrancou a
ponta de aço do olho. Foi esse objeto que ao cair cortou o pescoço do cisne antes de
desaparecer na água.
Fez uma pausa. Tirou do bolso um charuto mas não o acendeu.
— Os solicitadores atarefados não costumam ir a uma casa inesperadamente. Só
quando chamados. Brownrigg estava bêbado e Júnior ausente. Havia ninguém no fundo
da casa pra ver cair o binóculo. Pois nessa vez o assassino precisava dum álibi respeitável.
A jovem Marta, a única pessoa que poderia ser atraída a semelhante armadilha, tinha de
ser sacrificada, pra evitar a prisão que ameaçava alguém desde que a polícia descobrira
como doutor Lessing fora assassinado. Havia apenas um homem que falara com Marta
poucos minutos antes dela morrer. Havia apenas um homem que era empregado no
departamento de ótica duma joalheria e que confessou que tinha aqui sua oficina de
trabalho. Havia apenas um homem bastante hábil com as mãos…
Gideão parou, resfolegando, e se virou a Lessing:
— Não sei por quê não te prenderam.
— Me prenderem?! — Disse o homenzinho, inclinando a cabeça. — Mas que faz um
mês que saí de Broadmoor.
Houve súbita crepitação. O homem acendera outro fósforo.
— Tu… — Gritou Hadley, e parou — De modo que foi Tua mãe que morreu naquele
quarto? Então por quê, diabos!, nos fizeste ficar aqui ouvindo essas histórias de pesadelo?
— Não. — Disse o outro, com impaciência — Não compreendeis. Eu não queria saber
quem matou doutor Lessing e a pobre Marta. O que me preocupava era o outro problema.
E no entanto procurei dizer qual era esse problema. Vede que não foi minha mãe quem
morreu louca. Foi a deles. A de Brownrigg, de Harvey e de Marta. Era por isso que
estavam tão ansiosos pra fazer crer que eu era o culpado, pois não suportariam a outra
hipótese. Eu não disse que tinha uma arma contra eles, uma arma que fazia tremer o
próprio Brownrigg, e que a utilizei? Pensam que não me meteriam na prisão em seguida
se a louca fosse minha mãe? Hem? Naturalmente, — explicou em tom de desculpa — no
julgamento tiveram de jurar que a louca era minha mãe, pois ameacei dizer a verdade em
pleno tribunal se não fizessem isso. Vede que doutro modo eu seria enforcado. Ficavam

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apenas Brownrigg e Júnior. Brownrigg era dentista, Júnior seria médico, e se o povo
soubesse… Mas não é esse o problema. A mãe deles era louca, mas eram inofensivos.
Matei doutor Lessing. Matei Marta. Sim. Mas sou inteiramente normal. Por quê fiz aquilo,
há tantos anos? Por quê? Não há ordem racional na natureza das coisas, nenhuma
explicação preste mundo infernal?
O fósforo se contorceu numa brasa vermelha, bruxuleou e se apagou. O que
recordavam mais claramente era o cabelo grosseiro, que parecia caiado na escuridão, os
olhos e as mãos curiosamente sugestivas. Então José Lessing se levantou. A última coisa
que viram foi seu chapéu branco que aparecia e desaparecia no outro lado da relva, sob
as árvores floridas.

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Talvez o leitor vira o filme interpretado por Claude Rains e
Margo.20 Apostamos que nunca leu o soberbo conto no qual
o filme se baseou! Aqui temos Ben Hecht em todo o fulgor de
seu talento.

Crime sem paixão


Ben Hecht

L ou Hendrix olhou a dama que fingira amar nos últimos seis meses, mas, sendo
advogado, nada disse. Era um cavalheiro capaz de escutar imperturbavelmente
uma explosão de histeria feminina mais tempo que o normal. Isso, diria, se devia
a seu espírito desprendido e analítico. Além do quê, os fatos que se desenrolavam então
naquele aposento de mulher seguiam um padrão familiar. Já oito ou nove vezes senhor
Hendrix fora o herói de cenas culminantes como aquela, quando entrava em sua vida um
novo amor, exigindo adeuses análogos.
A jovem que gritava nessa vez era uma ninfa das salas de espetáculo, conhecida como
Brownie. Seu nome era Carmen Browne. Dançava com muita perícia no clube El bravo,
onde, destituída de plumagem como uma enguia, figurava à frente do número As aves-
do-Paraíso. Nesse número era arrebatadora em Um sonho de mulheres belas.
Por quê uma sereia tão jovem e deliciosa como Brownie ficaria tão transtornada com
a defecção amorosa de senhor Hendrix, era um problema pra quem conhecesse o referido
cavalheiro ou que o observasse apenas um minuto. Ele não era um romeu, adônis nem
desses tipos viris que costumamos associar mentalmente à prática da sedução mas um
homenzinho com aquela desagradável aparência imaculada que nos recorda,
instantaneamente, um lobo em pele de cordeiro. Um desses elegantes amigos da boa-vida,
com cara de menino cansado e sarcástico. Tinha suíças um pouquinho compridas demais,
sorriso muito persistente (como o duma dançarina de balé) e uma voz muito suave pra
enganar, talvez exceto uma mulher, com respeito a sua composição espiritual. Mas
sempre se pode esperar das damas se deixar enganar pela combinação de suavidade e
suíça.
Brownie, que entre as colegas era considerada não só uma grande leitora de livro mas
uma espécie de autoridade prática em matéria de características masculinas, se enganara
de maneira surpreendente com Lou Hendrix. Por mais que esbravejasse agora, nada
conseguia contra aquele paladino-da-lei, que, sem mais nem menos, procurava dar o que
denominava a lata.21 Enquanto seu monólogo de grito, invectiva e soluço continuava,
começou a entender tudo. Percebia, muito tarde, que estava lidando com o mais untuoso
hipócrita, velhaco e patife que se encontraria numa busca de sete dias na Bróduei, que, de
acordo com os cronistas que Brownie mais admirava, é o principal ponto de reunião dos
animais de rapina de todo o mundo.
Olhando em torno de si o bonito apartamento onde senhor Hendrix a instalara, e
dominara suas amigas durante seis meses, e donde teria de sair, terminado o sonho de
amor, Brownie se estendeu no divã e encheu seus sibaríticos aposentos cuma barulhada
verdadeiramente romântica. De acordo com as palavras mais coerentes da lacrimosa
beldade, parece que estava inocente de toda a leviandade cum certo Eddie White, ex-herói
desportista universitário, e que, desde que deixara o dito Eddie, cujo interesse amoroso
20
Crime sem paixão (Crime without passion) é um filme ianque de 1934, do gênero drama criminal, dirigido por Ben Hecht e Charles
MacArthur. É o primeiro dos quatro filmes que ambos escreveram, produziram e dirigiram prà Paramount Pictures. Segundo o câmera
Lee Garmes, na verdade foi quem dirigiu de 60% a 70% do produto final. Claude Rains mostra o rosto em primeira vez no cinema, já
que em O homem invisível (The invisible man), seu primeiro trabalho, só se ouve sua voz. https://pt.wikipedia.org/wiki/Crime_sem_Paix%C3%A3o Nota
do digitalizador
21
Dar a lata: (Brasileirismo popular) Rejeitar namoro ou paquera, dar o fora nalguém, despedir, exonerar.
http://auleteuol.w20.com.br/nossoaulete/lata Nota do digitalizador

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ela rejeitara antes de entrar em cena o número As aves-do-Paraíso, nunca mais lhe
permitira a tocar. Estava sendo injustamente acusada, Brownie se lamuriou. Depois, se
sentando, com os olhos esverdeados se esbugalhando de raiva até parecerem um par de
cabeças de serpente. Brownie riu, desdenhosamente, como diria, e declarou que não se
deixava lograr por senhor Hendrix e seu pretenso ciúme. Queria a abandonar porque não
a amava mais. Estava falando sobre ela e procurava a mandar às favas, pura e
simplesmente.
Senhor Hendrix, inteiramente desmascarado, não respondeu. Brownie, anunciando
que ninguém a faria de trouxa, tornou a cair no divã, golpeou algumas almofadas com os
punhos, e os soluços sacudiram o corpo. O telefone tocou. Brownie se endireitou no divã.
— Provavelmente é pra ti.
— É mais provável que seja senhor White. — Volveu senhor Hendrix.
O sarcasmo fez com que Brownie ficasse em pé.
— Sé for pra mim, digas que não estou aqui. — Disse senhor Hendrix.
Brownie tomou o fone.
— Quem? Não está aqui. Não sei quando virá. Não o estou esperando.
Desligou e olhou rancorosamente senhor Hendrix.
— De seu escritório — Disse. — Sempre me fazendo mentir!
— Podias ter sido um pouco mais cortês. — Disse senhor Hendrix.
A crueldade dessa sugestão fez Brownie voltar ao divã e a sua dor. Os soluços
recomeçaram. Senhor Hendrix continuou a observando com tranqüilidade admirável, se
bem que odiosa. Seu coração estava muito longe, com outra garota. Mesmo deixando de
lado esse fator, mas senhor Hendrix sentiu que fazia bem em se livrar duma admiradora
tão barulhenta como aquela. Não gostava de tipos emotivos. Com gritaria tendiam a atirar
na janela todo divertimento, pois esta era a idéia que senhor Hendrix fazia de cupido.
Na verdade a alma de senhor Hendrix era uma espécie de armário de louça, e tinha
firme aversão a cascos enfurecidos. Pertencia àquela tribo de dom-joões, bastante
numerosos na Bróduei, que nunca se enforcam por amor. Considerava lágrima falta de
espírito esportivo, e o pesar verdadeira chantagem. A beleza, e por beleza senhor Hendrix
entendia principalmente aquelas deliciosas e ágeis Vênus dos tablados de cabarés, fora
posta na Bróduei (se não no mundo) pro prazer do homem, e, certamente, não pra seu
aturdimento e desespero. Nosso advogado vivia elegantemente, se bem que um tanto
odiosamente, de acordo com essa concepção.
Uma porção de coisas, todas evidentes pro analítico senhor Hendrix, se agitavam no
espírito de Brownie e a faziam se lamuriar: O vingativo prazer de Eddie ao a ver
abandonada por seu sucessor; as risadinhas dissimuladas dos cronistas, dançarinas,
garções e boas-vidas que pra ela constituíam o mundo; a diminuição do prestígio de
sereia, talvez até a rebaixassem do posto no número As aves-do-Paraíso; e, de envolta
com todas essas considerações, a coragem daquele homem, a deixar como se fosse uma
qualquer! Quanto ao lado mais passional do caso, havia a dor no coração por perder
alguém que ela tão estupidamente amara e acreditara, e por perder o ridículo sonho
matrimonial que acariciara durante meio ano. Como era muito orgulhosa, Brownie
preferia não se referir a esses últimos aspectos em seu desvario.
Senhor Hendrix, ainda conservando sua melhor pose forense de razão e superioridade,
observava em silêncio. Pensou se o que vira naquela criatura impulsiva e quase
analfabeta, com suas pernas musculosas e a fisionomia infantil, prà achar encantadora ou
mesmo desejável. Mas não teve muito tempo de meditar sobre esse problema de
idealização. Brownie, cum berro que lhe provocou um prurido na base da espinha, pulou
do divã, olhou desvairadamente em redor e então, emitindo uma série de sons agudos, se
lançou contra os adornos de seu ninho de amor. Arrancou um reposteiro, atirou dois vasos

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ao chão, despedaçou uma cadeira contra a parede, quebrou a fotografia emoldurada de
senhor Hendrix contra a borda do piano, tirou um relógio da escarpa da chaminé e o
arremessou ao chão, e ia ao chapéu-coco de senhor Hendrix, que ele pusera numa cadeira
perto da porta, quando, com exclamação inesperada, ele a empurrou.
Ao defender seu chapéu, o advogado recebeu uma pancada que o fez girar em torno
de si. Um objeto atingiu atrás da orelha. As pontas dos sapatos de Brownie lhe
maltrataram as canelas. Recuou. Mas a histeria, que observava de maneira tão fria e
analítica, parecia ter sido subitamente injetada, como um vírus, em sua corrente
sanguínea. Começara com o prurido na base da espinha. Exasperado pela dor dos golpes,
e cheio duma espécie de fluido elétrico que emitia imprecações em sua cabeça, o pequeno
advogado começou a gritar mais forte que sua ex-amante. Avançou à mulher, levando na
mão, quase sem perceber, um grande castiçal de bronze.
O que fizera aquele bonifrate, tão famoso pela calma, estratégia e cinismo em suas
duas atividades gêmeas do amor e da lei, abandonar tão completamente a personalidade
normal, só Deus, que então não estava ao lado de senhor Hendrix, poderia dizer. Talvez
um ou dois psiquiatras também pudessem o conjeturar. Mas ali estava, demasiadamente
fora de si pruma análise, própria ou alheia, arremetendo contra a linda Brownie como um
pequeno troglodita, gritando e brandindo no ar o pesado objeto de bronze.
Não havia precedente na vida de senhor Hendrix pra semelhante reviravolta nem
indício em suas anteriores aventuras amorosas, de que a paixão pudesse de tal forma cegar
suas faculdades e o ódio dominar o coração. Mas estava cego e cheio dum clamoroso ódio
que lhe exigia algo. Pelas imprecações que escaparam de senhor Hendrix durante essa
escaramuça preliminar com o castiçal, se depreendia que o que odiava eram as mulheres.
As odiava e detestava com fúria demoníaca. Anunciando o fato, tornou a brandir o objeto,
e com isso se exaltou ainda mais. O castiçal batera em cheio na cabeça de Brownie, a
atirando sobre o tapete. Senhor Hendrix, sem fôlego ficou praguejando e trejeitando ao
lado dela como um assassino.
Lentamente a raiva se desfez. O terror invadiu o coração e sentiu calor na nuca.
Brownie continuava na mesma posição em que caíra. Se curvou. O crânio estava fendido.
Corria sangue. Os olhos estavam fechados. As pernas, expostas numa atitude
incongruentemente graciosa, inertes. Encostou o ouvido ao peito. O coração não batia.
Permaneceu vários minutos contendo a respiração e escutando maquinalmente os ruídos
do exterior. Diminuiu a sensação de sufoco nos pulmões, e o espírito calmo e analítico de
senhor Hendrix voltou nas pontas dos pés ao teatro do crime como um cúmplice
retardado.
Brownie jazia morta na pedra de sua lareira. Não mais apareceria à frente das coristas
no número As aves-do-Paraíso, no clube El bravo. Mas senhor Hendrix não perdeu tempo
em examinar esse aspecto sentimental do caso. Cometera um assassínio, sem intenção, é
verdade. Até em defesa-própria, se considerando os fatos. Mas não, a defesa-própria não
serviria, rapidamente pensou senhor Hendrix. Acudiram em tropel a seu espírito todos os
aspectos, lacunas, dificuldades, improbabilidades e preconceitos do caso. E em menos de
1 minuto o pequeno advogado se submetera a julgamento sob a alegação de defesa-
própria e se declarara culpado.
Desde moço senhor Hendrix estivera em íntimo contato com o crime. O encarava com
aquela compreensão amoral e intelectual que contribui à formação de certo tipo de
excelente advogado. Em sua atividade profissional, defendendo um criminoso, senhor
Hendrix sempre fora como um cirurgião imperturbável. A culpa era uma doença que
podia ser curada, não por uma operação na alma da vítima mas por um processo de
prestidigitação mental que convencia um júri sobre a inexistência da culpa. Senhor

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Hendrix diria que servia uma causa além do bem e do mal, a de arrebatar as vítimas de
acidentes momentâneos às conseqüências injustamente duradouras de seus atos.
Assim, muito mais que a maioria dos homens que seriam defrontados pela estranha e
horrível situação de cometer inesperadamente um assassínio, senhor Hendrix estava
preparado pra seu novo papel de criminoso. Conhecia todos os recursos, todas as
armadilhas da defesa num caso como aquele. Conhecia a psicologia da acusação. E cuma
mente experimentada, embora ainda um pouco febril, via os detalhes perfeitos por meio
dos quais sua culpa poderia ser curada, as provas ideais, indiretas e persuasivas, mediante
as quais um júri seria induzido à absolvição.
Em menos de 1 minuto senhor Hendrix teve uma visão completa do caso, percebendo
claramente as dificuldades e obstáculos, que tratou de aplanar.
Mas como um crítico teatral que, depois de assistir a representação de peças durante
anos com sutil e íntima compreensão, é repentinamente chamado ao palco e, com as luzes
da ribalta ferindo os olhos, convidado a desempenhar o papel cujas palavras conhece e
com cuja mímica e entonação ideais sempre sonhou, senhor Hendrix sentiu o pânico do
estreante. Saber e agir eram fenômenos surpreendentemente diversos. Foi isso o que
retardou o cauteloso advogado durante mais 1 minuto durante o qual o cliente de senhor
Hendrix, com o coração batendo e o rosto pálido, pedia rapidez e até falava em fuga.
Mas no fim do segundo minuto senhor Hendrix afastara o ignominioso cliente a um
canto do cérebro, o fizera se sentar, digamos assim, à mesa do advogado com instrução
de ficar em silêncio, e tomara conta do caso. Se curvou e olhou o relógio caído no chão.
O vidro do mostrador estava quebrado. O relógio parara, com os ponteiros marcando
3:58h. As reflexões de senhor Hendrix eram rápidas, quase como se soubesse em vez de
pensar. Podia adiantar os ponteiros às 5h. Podia deixar o local sem ser visto, se possível,
e se incorporar durante as próximas duas horas a um grupo de futuras testemunhas,
permanecendo com elas desde as 4:10h até as 7h. Seria a prova de que não estava no
apartamento na hora do crime. Senhor Hendrix examinou o relógio de pulso de Brownie.
Também estava parado. Marcava quatro horas e um minuto. Os dois relógios,
evidentemente sincronizados pela proprietária, contavam uma história vívida e
substancialmente correta. A luta começara às 3:58h. A mulher fora morta às 4:01h. Teria
que adiantar 1h o relógio de pulso, a fim de conservar aquele interessante desacordo entre
os dois relógios parados.
O telefone chamou. Senhor Hendrix se endireitou sem tocar em ponteiro. Já previra
uma chamada telefônica, e, a prevendo, compreendera que o ardil de adiantar os relógios
era estúpido. Às 3:50h Brownie atendera ao telefone, e o homem do quadro de ligações
no vestíbulo registraria a hora da palestra. Às 4:03h, senhor Hendrix consultou seu
relógio, ela deixava de atender. Outros chamados telefônicos viriam antes das 5h, nenhum
dos quais seria atendido por ela, fornecendo assim uma importante série de testemunha
contra o fato de que a mulher assassinada estava viva entre as 4h e as 5h, tornando assim
praticamente inútil o álibi praquele período. Havia também a possibilidade dos vizinhos
terem ouvido a discussão e reparado a hora dos gritos. E, acima de tudo, havia a
possibilidade de entrar alguém, antes das 5h, uma criada ou o corretor de imóvel (Brownie
o consultara sobre seu projeto de subalugar o apartamento).
Era pra antes das 4:01h que senhor Hendrix precisava dum álibi. Sabia já quais eram
seus pontos essenciais. Às 3:50h, Brownie, viva, dissera a alguém via telefone,
provavelmente Tom Healey, de sua banca de advocacia, que ele não estava no
apartamento. Os olhos de senhor Hendrix permaneciam fixados em seu relógio de pulso
enquanto examinava mentalmente os pró e contra. Eram 4:04h. Olhou o vulto estirado no
chão, teve um arrepio mas continuou firme. Lhe ocorrera outro aspecto do caso. Sorriu
debilmente, chocado com o que quase fora uma advertência. Devia não apenas arranjar

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um álibi pra si mas fortalecer com indícios tendentes a provar que outra pessoa cometera
o crime. Inventaria um assassino fictício, deixaria pros olhos penetrantes da acusação uma
pista que levasse a outra nunca encontrada mas sempre presente no caso.
Havia impressão digital de Brownie no relógio quebrado, na cadeira partida, no retrato
despedaçado. Aquilo não estava bem. Revelaria que era Brownie quem tivera um acesso
de fúria, despedaçando coisas, exigindo algo que resultara em seu assassínio. Uma
situação dessa, trazida à luz pela acusação, facilmente indicaria Lou Hendrix, que se sabia
ser seu amante. Não!, disse vivamente. Seria o agressor que, exigindo algo de Brownie,
tivera acesso de cólera, quebrara todos aqueles objetos e desferira o golpe fatal. Senhor
Hendrix estabeleceu indiciariamente o fato, apagando cum lenço de seda as impressões
digitais de Brownie nos objetos em questão. Limpou também, com mais cuidado ainda,
o castiçal de bronze. A ausência de impressão digital indicava um pouco de cálculo do
criminoso depois do ato, mas isso era legítimo e normal. Homens profundamente
exaltados, havia precedentes do fato, se lembravam de destruir indício.
À porta, posto o chapéu, o sobretudo e as luvas, senhor Hendrix parou. Repetiu
cuidadosamente a si que Brownie fora atacada por algum pretendente cheio de ciúme de
senhor Hendrix, seu verdadeiro amado, como o demonstrava a destruição da fotografia.
Mas por quê ela não se servira da pistola que a polícia encontraria na gaveta da
escrivaninha, a meio metro do lugar onde estava o corpo? Havia, sem dúvida, explicações
normais que podiam ser apresentadas. Mas senhor Hendrix não as admirava sob o ponto
de vista legal. Durante 15 preciosos segundos o advogado Hendrix pesou a questão. Nesse
intervalo senhor Hendrix mais propriamente escutou que pensou. Ouvia a acusação
mostrar ao júri que o motivo de Carmen Browne não lançar mão daquela arma pra se
defender era o fato de não esperar um ataque do criminoso, porque ele era alguém muito
conhecido e contra quem ela não pensava em se armar. E, ainda mais, porque o criminoso,
perfeitamente familiarizado com o local, sabia tão bem quanto Carmen Browne onde
estava a pistola, impedindo que a vítima usasse a arma. Todas essas considerações,
percebeu, apontavam de revés a seu cliente. O advogado tirou a pistola da gaveta e a
enfiou no bolso do casaco. Teria cuidado ao se desfazer da arma. O espírito de senhor
Hendrix demorou teimosamente numa dúzia de casos onde uma tentativa de destruição
de prova depois do crime fora o elemento denunciador da culpa. Mas senhor Hendrix
assegurou com firmeza, a seu cliente, que seria mais cauteloso nesse ponto que nas
defesas anteriores.
Com a pistola no bolso do casaco saiu do apartamento. Sabia que agora estava
inteiramente nas mãos do acaso. Uma porta que se abrisse, um vizinho que aparecesse,
destruiriam num instante sua defesa. Mas não se deu acontecimento adverso. Tinha que
descer três andares. Escutou às ornamentais portas dos elevadores. Os dois aparelhos
estavam subindo. Desceu os três lances de escada a passos rápidos e, tranqüilo agora,
antes como um jogador que como um advogado, recapitulou as possíveis reviravoltas da
sorte.
Entrara no apartamento às 3h da manhã em companhia de Brownie. Mas como era seu
hábito preservar uma respeitabilidade superficial diante dos empregados do edifício,
embora julgasse que eles sabiam muito bem o que acontecia, subira com Brownie na
escada. O encarregado do quadro de ligação, oculto no recanto no vestíbulo, não os vira
entrar, e tampouco o ascensorista de serviço, pois nenhum dos dois estava à vista então.
Se agora deixasse o edifício com igual sorte de não ser disto, sua defesa estaria em bom
caminho.
O vestíbulo estava vazio mas não cometeu o erro de escapar muito apressadamente,
afagando a presunção de que nenhum olhar o observara. Conhecia muito bem a
possibilidade duma testemunha inesperada, e parou pra examinar o local. O encarregado

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das ligações, semi-oculto em seu escaninho, estava de costas ao vestíbulo, lendo um
jornal. Os dois elevadores tinham subido. Não havia mais alguém.
Ao chegar à rua parou novamente, espreitando a testemunha inesperada. Muitas vezes,
se recordou sombriamente, suas melhores causas foram perdidas pela aparição, no banco
de testemunha, daqueles erráticos e imprevisíveis indivíduos que viram o acusado.
Avistou dois exatamente daquele tipo. Duas mulheres caminhavam na rua, mas a suas
costas, se afastando do edifício. Passou um caminhão de carga. Notou que o chofer
conversava com o companheiro, e nenhum desses passantes olhou em sua direção. Havia
mais ninguém
Voltou a atenção às janelas do outro lado da rua. Somente as dos três primeiros andares
tinham importância. De altura maior, a identificação era impossível, ou ao menos bastante
contestável. As janelas estavam desocupadas. Quanto às janelas do edifício diretamente
acima de si, ninguém o veria dali se caminhasse rente à parede.
Satisfeito com essa rápida mas concentrada observação, se pôs a caminho. Se podendo
chamar heroísmo a vitória do intelecto sobre os nervos, da razão sobre os impulsos, então
aquele janota sorridente e de ar tranqüilo, com o chapéu-coco e o confortável sobretudo,
bem podia ser denominado um herói. A inocência, e mesmo a despreocupação, se
manifestava em cada movimento. No fato de se recusar, apesar de forte curiosidade, a
olhar a hora no relógio de pulso, um gesto delator se alguém o observasse, havia algo de
semelhante ao elevados propósitos que distinguiam os antigos ascetas. Ao dobrar a
esquina, ainda imperturbável, ainda suavemente rítmico nos movimentos, olhou a trás,
pra se certificar de que nenhum táxi entrara naquela rua. Não viu algum.
Chegou à 6ª avenida, e começou a avançar mais depressa. Tinha de andar quatro
quadras, e os olhos, por força do hábito, procuraram um táxi. Mas, de sobreaviso contra
toda variedade de testemunha, sacudiu a cabeça e continuou a pé. Sorriu ao recordar que
em seu apartamento a cama estava desfeita. Acabava de se deitar, na noite anterior,
quando Brownie telefonara pedindo ir a encontrar. Assim a arrumadeira, que nunca
chegava antes do meio-dia, estabeleceria muito simplesmente o fato de que ele dormira
em casa. Isso era desnecessário, certamente, a menos que algum transeunte vira Brownie
entrar em seu apartamento em companhia dum homem às 3h da manhã.
Senhor Hendrix chegou a um cinema da 6ª Avenida. Observou cuidadosamente a
pequena multidão que esperava pra comprar entrada, e se incorporou à fila. Poucos
minutos após foi introduzido no recinto limitado por cordões, no fundo da sala-de-
projeção. Escapuliu vivamente e foi no escuro ao outro lado do prédio. Se aproximou
dum dos porteiros e perguntou onde poderia comunicar a perda dum par de luvas. Depois
de breve colóquio, foi conduzido à seção de achados e perdidos. Ali, muito loquaz e
afável, explicou o contratempo. Não costumava, disse sorrindo, ser tão descuidado com
suas coisas mas o filme fora tão interessante que esquecera as luvas. Então deu seu nome,
endereço e uma descrição das luvas perdidas, e viu cum fulgor de profunda satisfação
criadora que a hora também era anotada no talão usado pra registrar aqueles assuntos.
4:18h, escreveu o homem, e senhor Hendrix, consultando seu relógio, fingiu surpresa.
Era tão tarde assim? Santo-deus! Perdera a noção do tempo. Era um filme bem longo.
O funcionário dos achados e perdidos, ante a afabilidade de senhor Hendrix, concordou
que o filme era um pouco mais comprido que de costume mas valia a pena assistir até o
fim, ao que senhor Hendrix anuiu calorosamente.
Saindo do cinema recapitulou o caso até o momento. O corpo principal do álibi fora
assentado. Estivera assistindo um filme entre as 2:30h e as 4h. Sua presença prolongada
até as 4:18h naquele cinema fora registrada por escrito. Também tivera o cuidado de
escolher um filme que já vira, de modo que pudesse contar o enredo se fosse interrogado
nas próximas horas. E também podia apresentar um motivo pra ver aquele filme. A

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película tratava da personalidade e da carreira dum fictício promotor público. Um
jornalista amigo de senhor Hendrix, redator duma coluna de comentário, pedira que
contribuísse com alguns parágrafos sobre as inverossimilhanças do argumento sob o
ponto de vista legal.
A próxima escala seria um elegante fala-solta22. Tomou um drinque, se entreteve em
palestra com o empregado do bar, seu conhecido e perguntou a hora exata, pra acertar o
relógio. Às 4:50h entrou numa cabine telefônica do estabelecimento e ligou a seu
escritório. Perguntou se alguém procurara se comunicar consigo naquela tarde. Tom
Healey, o funcionário de serviço na banca, respondeu como senhor Hendrix esperava.
Disse que tentara o encontrar pra tratar dumas disposições, mas que não conseguira
localizar o paradeiro. Nesse ponto senhor Hendrix simulou uma ligeira irritação. Aonde
o incompetente rapaz chamara? Senhor Healey disse que procurara em todos os lugares
possíveis, inclusive o apartamento de Brownie.
Ao receber essa informação, se dirigindo mentalmente a uma das suas futuras
testemunhas principais, mudou de voz. Assumiu um tom de manifesta cólera, pois
conhecia a débil capacidade de observação e indolência da memória das pessoas.
Perguntou, acremente, se senhor Healey falara com Brownie. Recebendo resposta
afirmativa, disse:
— Podes me dizer em que tom ela respondeu quando perguntaste se eu estava lá?
— Não me lembro. — Disse senhor Healey.
— Penses bem. Preciso saber.
— Bom… Agora que penso no caso, me pareceu um pouco brusca ou perturbada.
— Á! — Disse senhor Hendrix. E, pra surpresa do subordinado, dirigiu um epíteto
ofensivo à dama
— Não quero mais que me chames ao apartamento dela. — Acrescentou, erguendo a
voz. O empregado, senhor Healey, disse que não tornaria a fazer, mas senhor Hendrix
continuou como se muito furioso pra ouvir a promessa: — Nada mais tenho com aquele
número telefônico. Entendeste? Esqueças, simplesmente. Mais algum chamado?
— Não.
— Muito bem! — Disse senhor Hendrix, e desligou batendo furiosamente o fone no
gancho.
Saiu do bar com o passo leve que, pros companheiros de banca de senhor Hendrix,
sempre anunciava a perspectiva duma absolvição. Agora que desaparecerá inteiramente
o prurido na base da espinha, e também aquele irritante calor na nuca como se estivesse
recebendo o hálito dos representantes do ministério público, senhor Hendrix começou a
se sentir, não só mais tranqüilo, mas até se divertindo. Podia ouvir a acusação caindo na
armadilha que acabava de preparar.
Pergunta: Então senhor Hendrix disse pra não procurar mais se comunicar
consigo no apartamento de senhorita Browne?
Resposta: Sim, senhor.
E senhor Hendrix olhava com ar significativo o júri que via mentalmente:
Senhores do conselho de sentença, considerai isso. Como se, tendo cometido
um crime, o réu fosse inepto o bastante pra se denunciar com tão estúpida
observação a um amanuense de banca de advocacia, uma pessoa habituada

22
Fala-solta. No original, speakeasy (conversa-franca). O termo speakeasy, se tornou popular durante os anos 1920 pra identificar
bares, restaurantes, salões e salas-de-baile onde as bebidas eram vendidas ilegalmente. A 18ª emenda da constituição ianque e o
decreto Volstead, proibiam a venda de bebida com mais de 0,5% de álcool. Pra serem admitidos num estabelecimento que servisse
bebida alcoólica os clientes eram obrigados a falar baixo ou de forma discreta de modo a não atrair atenção. Antes de entrar, os clientes
eram avaliados através dum pequeno postigo. Em 1929 na cidade de Nova Iorque o número de fala-soltas era cerca de 32.000. Em
The historical dictionary of the 1920’s. http://www.speakeasy-bar.com/ Nota do digitalizador

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por dever de ofício a recordar o que ouve. Não um estranho qualquer, notar bem,
mas um homem experimentado e perspicaz.
Caminhando lépido e satisfeito na rua, pigarreou e sentiu vontade de rir. Nunca um
caso lhe dera tanto prazer. Que prova psicológica sutil mas importante, pra demonstrar
sua inocência, era o fato de dizer a Healey justamente o que dissera. Que perfeita prova
do fato de ser vítima duma evidente coincidência ao dizer que nada mais tinha com
Brownie, quando ela estava morta no apartamento. Nenhum culpado diria isso.
Duma farmácia onde passava, fez outro chamado telefônico, a Brownie. Ao pedir
ligação ao encarregado do edifício, foi tomado de aguda excitação. Durante um momento
oscilou diante dos olhos a imagem do corpo de Browne, estendido graciosa e
horrivelmente a seus pés. Desejou que o crime fora descoberto, embora ainda houvesse
possibilidade de aperfeiçoar a defesa. Mas o encarregado ligou calmamente ao
apartamento de Brownie. O homem disse, depois duma pausa:
— Ela não atende.
— Aqui é senhor Hendrix. Ela não esteve em casa? A procurei o dia inteiro.
— Não a vi desde que entrei de serviço.
— Há quanto tempo?
— Há cerca de três horas.
— Obrigado.
Dissera a Tom Healey que cortara a relação com Brownie, e agora tentava falar com
ela. Sorrindo, considerou esse paradoxo em nome do cliente.
Isso revelava, senhores do conselho de sentença, um homem desvairado um
amante cheio de confusão em conseqüência de… de quê? Do fato, senhores,
de meu cliente sentir ciúme da atenção que descobrira estarem sendo dirigidas
por alguém a Carmen Browne; de não acreditar nos protestos de inocência da
pobre moça, e, afastado dela pelas suspeitas, se ver atraído novamente a ela
por seu profundo amor. Ciúme, senhores do conselho de sentença, das atenções
dirigidas a Carmen Browne pelo homem que naquela tarde entrara no
apartamento da moça, e contra o qual se defendera até ser ferida de morte.
Pra retocar esse aspecto do caso, voltou ao edifício de apartamento onde Brownie jazia
sem vida. Foi ao encarregado do quadro de ligação, que o saudou pelo nome. Teve de
dominar um estranho impulso que o fez empalidecer a pele em torno da boca. Se sentira
impelido a perguntar ao homem se vira senhor Hendrix anteriormente no edifício, se não
o vira durante os poucos momentos em que atravessara o vestíbulo, 1 hora antes.
Espantado com esse impulso, senhor Hendrix ficou em silêncio algum tempo, notando
que o empregado o olhava com curiosidade.
Pergunta: Como parecia estar o acusado?
Resposta: Confuso.
— Senhores do conselho de sentença, como poderia estar um homem atormentado por
ciúme enquanto, contra todas as injunções do orgulho, perguntava sobre a mulher que
julgava o trair?
— Senhorita Browne não chegou depois que telefonei?
— Não a vi.
— Entregues este bilhete quando ela chegar.
Escreveu na parte inferior duma carta comercial que trazia no bolso.
Querida, se és inocente, não me tortures mais. Me dês uma oportunidade de
acreditar em ti. Estou disposto a esquecer o que ouvi ou julguei ouvir ao telefone.
Sempre teu Lou.
Enfiou o bilhete num envelope usado, escreveu apressado o nome dela e fechou.

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Senhores do conselho de sentença, podeis imaginar um homem, que acabou de matar
a mulher a quem amava ou amara, tão completamente destituído de reação humana
normal, tão diabolicamente pervertido, que escrevesse aquele bilhete suplicante quando
a sabia morta a suas mãos?
Isso era apenas um tom harmônico de retórica, mais um elemento humano que legal,
mas o registrou na memória como uma boa tirada decorativa. Seu álibi, pensou, se
completou. Mas a fase secundária do caso exigia novo esforço. A beleza dum caso estava
sempre na tessitura de pormenores diversos mas concordes, como se o mundo inteiro, de
todos os cantos e frinchas, proclamasse a inocência do réu. E, feliz de entrar em ação.
Senhor Hendrix, como bom advogado, esquecera a tal ponto a existência humana do
cliente, que assobiou alegre enquanto volvia e revolvia no espírito o problema psicológico
principal.
Defesa: Carmen Browne fora assassinada por um homem a quem se recusara a ceder,
talvez depois de provocar sua atenção. Também era possível que a morte resultara dum
desses acidentes passionais que o instinto sexual, desvairado, precipita. Era possível que
Brownie levasse uma existência dúplice e fora surpreendida nessa duplicidade pelo
assassino.
Logo senhor Hendrix, perspicaz, observador, verdadeiro conhecedor das mulheres,
suspeitaria da existência desse outro homem. E o acusado Hendrix devia também sentira
ciúme.
Provas disso: Sua conversa com Tom Healey, seu bilhete a Brownie, agora nas mãos
do encarregado do quadro de ligação.
E com a emoção dum jogador que acerta na terceira vez no número 7, se recordou
duma terceira testemunha, uma testemunha sensacional, lindamente, embora
involuntariamente preparada presse papel desde alguns dias: Peggy Moore.
Peggy dançava no clube El bravo como membro do grupo corista. Durante um ano
fora confidente de Brownie. Senhor Hendrix sorriu beatificamente ao recordar sua
conversação com Peggy, menos duma semana antes, e ao recordar também o caráter geral
da corista, feito de encomenda pro papel que lhe confiaria.
A jovem era uma irlandesa alta de cabelo escuro, olhos ligeiramente saltados e uma
expressão de vacuidade linfática mas não de todo desagradável. Era como Brownie
dissera muitas vezes, autêntica escrava do amor, criatura impulsiva e incapaz de pensar
ou falar sobre algo além das emoções despertadas no peito pelo amor ou pelo ciúme.
Alguns dias antes, senhor Hendrix escolhera essa jovem quase congenitamente idiota
como peão de abertura de seu plano de se livrar de Brownie. Confiara aos ouvidos de
Peggy, tão perfeitamente sintonizados com todas as histórias de aflição amorosa, a
suspeita de que Brownie ainda estava apaixonada por seu antecessor Eddie. Peggy
esbugalhara os olhos, a boca se abrira como pra expelir um anzol, e, ao mesmo tempo, a
dominara uma emoção dissimulada, se bem que transparente. Peggy, a vítima de tantas
perfídias, se convencera instantaneamente da culpa da amiga e logo desfiara uma série de
mentiras em defesa de Brownie, apresentando pormenores idiotas da dedicação dela ao
amante. Mas senhor Hendrix, empenhado em assentar algum absurdo alicerce pra sua
futura defecção, persistira. Sem outra razão além do prazer em desempenhar o papel de
impostor sempre que podia, se fingira desconsolado e dissera palavras de mágoa.
Então senhor Hendrix telefonou a Peggy e pediu ir se encontrar consigo no bar onde
estivera pouco antes. Falou em tom cauteloso, dando a entender que houvera uma rusga
de amantes, e fingindo precisar dela pra confirmar certas provas recém-descobertas da
infidelidade de Brownie. Como senhor Hendrix previra, Peggy, cheia da louvável
ambição de mentir descaradamente a favor de Brownie, veio a toda pressa. Foram os dois
ocupar uma mesa num canto. Peggy a fim de inventar álibi e explicação inocente a favor

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da amiga, no que, como todas as pessoas lacrimosamente aditas à paixão, possuía
extraordinária habilidade, e senhor Hendrix, a fim de a entretecer ardilosamente na teia
de sua defesa.
Mas antes conhecendo a sensibilidade da moça pra todos os assuntos concernentes ao
amor, senhor Hendrix tentou se embriagar. Devia se mostrar um amante atormentado pelo
ciúme, procurando afogar as mágoas no álcool, uma caracterização que aquela ingênua
praticante do amor recordaria vividamente no banco de testemunha. Três drinques foram
consumidos. Então, realmente estonteado por uma dose tão desacostumada, senhor
Hendrix começou o interrogatório. E apesar de ter a língua entorpecida e um toque de
genuína paralisia física, se manteve tão calmo e analítico como se estivesse num tribunal.
Não era homem capaz de trair um cliente por uma debilidade humana.
Ficou à mercê de Peggy. Precisava saber a verdade, pois só ela poderia dizer. Doutro
modo a preocupação e a incerteza acabariam o fazendo perder a razão. Sua banca de
advocacia já começava a sofrer. Perderia todo o dinheiro. Peggy, terna e compreensiva,
escutou com acenos de cabeça aquela saga de pena amorosa. Em resposta, assegurou que
era tolice ter ciúme de Eddie, pois ele não estava na cidade e estava noivo duma moça da
sociedade, em Neoporto. Senhor Hendrix suspirou admiravelmente ao ouvir essa
piramidal mentira e disse:
— Não se trata de Eddie. É algum outro. Sabes tão bem quanto eu, pois és a confidente
dela. Minha cara, não procures mentir. A peguei em flagrante falando ao telefone.
Desligou quando entrei. Estava marcando um encontro, e não era com Eddie.
Peggy empalideceu ao pensar naquele horrível contratempo, mas não perdeu a calma.
A culpa da amiga a assustava, mas percebia o esforço de senhor Hendrix prà desorientar.
Naturalmente era de Eddie que ele tinha ciúme. Peggy estava certa de que assim era.
Ouvindo a defesa um tanto histérica de Browne, suficiente pra inculpar a jovem duma
centena de infidelidades se isso o interessasse, senhor Hendrix compreendeu o que se
passava no espírito da companheira. Considerou um momento a idéia de envolver Eddie
White no caso. Já pensara nisso, o ex-amante de Brownie, um jovem reconhecidamente
exaltado e turbulento, dado a pugilatos noturnos em lugares públicos. Mas em segunda
vez senhor Hendrix rejeitou o plano. Eddie podia ter um álibi, e, por mais promissora que
fosse a hipótese de sua culpabilidade sob o ponto de vista psicológico, a prova física da
inocência de Eddie prejudicaria a causa do cliente de senhor Hendrix
Durante a hora seguinte senhor Hendrix continuou bebendo e a discutindo as suspeitas,
suplicando a Peggy ser bondosa e revelar o que sabia. Aludiu a presentes em troca desse
favor. Senhorita Moore, porém, apenas ampliou o campo de suas mentiras.
— Não viste Browne hoje? — Se interrompeu Peggy finalmente, sem fôlego.
Senhor Hendrix oscilou na cadeira e a fitou com os olhos turvos, alcoolizados.
— Não. Não tenho confiança suficiente em mim pra ir a ver. Sabe-deus o que faria
neste estado de espírito.
— Estás excitado sem motivo. — Disse Peggy, e se levantou. Tinha de ir a El bravo,
onde dançava durante a hora do jantar. Senhor Hendrix a acompanhou até a porta.
— Digas a Browne que estarei no clube hoje na noite. Darei a ela uma última
oportunidade de provar inocência.
— Darei o recado. — Disse Peggy, e suspirou.
Ficando só, senhor Hendrix voltou à cabine telefônica. Se sentou pesadamente e ligou
à casa de Brownie. Sua defesa estava pronta. Queria ouvir a notícia do encontro do
cadáver. Sentiu de novo o desagradável prurido na base da espinha enquanto esperava
que atendessem no edifício. Pensou se estaria muito embriagado. Estava embriagado, sem
dúvida, mas bastante senhor de si pra conhecer exatamente cada fase e pesar cada nuance.
No momento em que recebesse a notícia do crime, correria até lá, seria detido pela polícia,

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e, com o auxílio de seu estado de embriaguez, se mostraria acabrunhado de desgosto e
procederia de modo inteiramente irracional. Não faria alusão a seu álibi, não revelaria
detalhe de sua defesa até o inquérito judicial.
Finalmente o empregado do edifício atendeu. Senhor Hendrix perguntou sobre
senhorita Browne em voz pastosa. O homem disse que Brownie não estava. Ele desligou.
Se levantando e oscilando um instante, senhor Hendrix, inteiramente satisfeito com o
mundo, exceto aquele prurido intermitente, decidiu qual o melhor caminho a seguir. Iria
ao clube El bravo, pediria o jantar e esperaria até que fosse notada a ausência de Brownie
e se desse uma busca.
A orquestra do clube El bravo executava um número de dança. O salão estava
apinhado. Senhor Hendrix olhou, estonteado, os vultos que giravam. Escolheu uma mesa
muito a um lado, uma daquelas em que as executantes e seus amigos se reuniam durante
a noite. O ar abafado o fazia se sentir sonolento. Erguendo os olhos, viu se aproximar um
vulto familiar. Era Eddie, a que se comprazia em chamar o ignorante jogador de futebol.
Senhor Hendrix sorriu. Notou, com fadiga, que Eddie parecia um pouco embriagado.
O ex-herói esportivo universitário, um produto ainda rijo, crestado e musculoso da
educação superior, saudou senhor Hendrix calmamente. Se atirou a uma cadeira à mesa
do advogado e, circunvagando os olhos no cabaré, perguntou como iam as tricas. Senhor
Hendrix respondeu que iam muito bem.
Houve uma pausa, durante a qual a música encheu de sons excitantes e glamorosos o
café-concerto.
— Não sabia que gostavas tanto de cinema. — Disse Eddie a propósito de nada
Senhor Hendrix recuperou a lucidez como se tomando uma ducha fria e conseguiu
perguntar, com ar despreocupado:
— O que queres dizer com isso?
Seu companheiro observava a dança no centro do salão e piscava o olho aos números
mais saborosos. Senhor Hendrix o fitou em silêncio e tornou a sentir o prurido na espinha.
— Te vi entrar no Roxy hoje na tarde. — Continuou Eddie.
— Á! Sim. — Disse senhor Hendrix, e acrescentou, como se fazendo um laço: — A
que hora?
— A que hora? — Repetiu Eddie, fitando no advogado um olhar inexpressivo de atleta.
— Um pouco depois das 4h. Creio.
— Estás louco. Se pensas que me viste entrar no Roxy depois das 4h. — Disse senhor
Hendrix. — Saí mais cerca das 4:20h, depois de ver todo o programa.
— Não quero saber o que viste ou deixaste de ver. O que sei é que vi entrares cerca
das 4:15h. Diria dizer alô, mas depois pensei: Deixes o homem. Que tal achaste o filme?
Deve ser em teu gênero. Se trata dum desses grandes chicanistas.
No breve espaço durante o qual senhor Hendrix ficou em silêncio, o pensamento se
desenrolou rapidamente. Que Deus lhe valesse! Eddie era aquele tipo humano detestável
num julgamento, a testemunha casual que a acusação costumava apresentar, como quem
tira um coelho da cartola, pra confundir o culpado. Mesmo sem pensar sabia todo o
significado daquela testemunha. Se o réu fora visto entrando no cinema depois das 4h,
então entrara no cinema depois de cometido o crime. Mas esse era o aspecto menos
prejudicial do caso. O réu saíra do cinema às 4:20h, depois de mentir aos empregados
dizendo que passara uma 1,5h ali. Comprovada essa mentira, a acusação desarmaria peça
a peça o óbvio mecanismo do álibi. Não havia álibi. Não havia defesa. Ao contrário: A
simples determinação da hora por Eddie revelava que todos os atos subseqüentes de réu
eram os dum culpado. E senhor Hendrix se inclinou sobre a mesa e pôs a mão no braço
do atleta.
— Deve ter sido outra pessoa que viste. — Murmurou em tom persuasivo.

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— Olhes aqui! Não me contes história. — Disse Eddie. — Te vi olhar aos lados,
comprar a entrada e entrar.
Senhor Hendrix pestanejou ante aquela fraseologia comprometedora.
— Sei que eram cerca de 4:15h porque tinha um encontro diante do cinema —
prosseguiu Eddie. — E não fiques tão exaltado. Não era com Brownie.
O prurido na base da espinha de senhor Hendrix quase o levantou da cadeira.
— Isso é mentira. — Disse em voz pastosa.
— O quê? — Perguntou senhor White.
— Eu disse que estás mentindo. — Repetiu senhor Hendrix pausadamente. — Não me
viste.
— Á! Foi isso o que disseste? — Eddie inesperadamente se tornara feroz. — Olhes
aqui! Nunca me agradaste e eu não quero conversa cum cara que não me agrada. Fiques
sabendo.
Na segunda vez naquele dia senhor Hendrix se sentiu dominado por uma emoção sem
precedente. Fez um esforço pra reter as palavras que subitamente lhe acudiram à boca,
mas se ouviu as dizendo e pensou estonteadamente quem era o bêbado, o que escutava
ou o que dizia. Disse a Eddie que era um mentiroso, um idiota. Eddie se levantou.
Continuou a troca de palavra, e senhor Hendrix percebeu que estavam falando ao mesmo
tempo. Mas a música lhe embaralhava tudo nos ouvidos, e o clube El bravo balançava
diante dos olhos. Então notou, obscuramente, que a mão do enfurecido Eddie segurava a
gola e o levantava da cadeira. A orquestra estrondeava um final de jaz, e até então
ninguém parecia ter reparado na altercação que se verificava naquela mesa lateral.
Quando senhor Hendrix sentiu que o obrigavam a ficar em pé, sentiu de náusea e
impotência. Enfiou a mão no bolso do casaco.
— Estás me chamando de mentiroso? — Rosnou Eddie ao ouvido, e acrescentou uma
porção de epítetos injuriosos.
Durante um momento viu recuar um punho que não o atingiu. Tirara do bolso do
casaco uma pistola, cuja presença na sua mão ignorava assim como ignorara a do castiçal
de bronze. A pistola detonou e Eddie, com olhar subitamente lúcido de assombro, caiu
numa cadeira. Nesse instante a orquestra rematou com discordante clangor de trombeta.
Ninguém voltou a cabeça. Nenhum garção se aproximou correndo. Senhor Hendrix,
tremendo como se todos seus ossos se transformaram em castanhola, ficou olhando o
atleta encolhido na cadeira e viu a cabeça cair sobre a mesa. A boca estava aberta. Os
dedos, que pendiam quase ao chão, estavam rígidos.
A música recomeçou e senhor Hendrix volveu maquinalmente os olhos ao tablado.
Sobre si caíam jorros de luz azul e cor-de-rosa, e atrás da orquestra emergiu uma fila de
moças quase nuas. Pernas brancas se ergueram, sorrisos encheram o ar. A frente daquela
fila de corista, senhor Hendrix viu Brownie dançando.
Sentiu náusea. Fechou os olhos. Tornou a abrir com expressão de dor e aturdimento.
Não se tratava de alucinação. Era Brownie. O advogado viu tiras de tafetá adesivo que
se estendiam atrás da orelha e da cabeça da dançarina. Estava viva e restabelecida.
Senhor Hendrix sabia exatamente o que sucedera. Na última vez que telefonara ao
apartamento, o encarregado de ligação, não reconhecendo a voz alcoolizada, deixara de
prestar a informação que daria a senhor Hendrix, que Brownie estava viva, que chamara
um médico e que já saíra de casa.
E enquanto pensava nesse minúsculo detalhe, uma centena de outros acudiram à
mente. Recordou as acusações que fizera a Brownie, de ainda amar Eddie, sua declaração
a Peggy, uma semana antes e na tarde daquele dia, de que estava com muito ciúme pra
confiar em si, a agressão contra Brownie, a embriaguez subseqüente, as manobras idiotas
no cinema, como se vigiando Eddie, pois quê outra coisa significariam suas idas-e-vindas

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precipitadas? Tudo o que senhor Hendrix fizera desde as 4:02h daquela tarde indicava
apenas uma coisa: Que odiava Eddie, que quase matara a amante por ciúme de White,
que, ainda impelido por essa emoção, seguira Eddie e o assassinara a sangue frio.
Durante os breves momentos em olhou fixamente o atleta caído, senhor Hendrix sentiu
vontade de gritar, tão macabros lhe pareceram aqueles fatos, mas sua voz se esvaiu num
gemido. Que loucura fizera pra inocentar o cliente! Ainda tremendo, voltou à cadeira. A
brilhante inteligência forense, como uma espécie de nêmese condenara a si, não por
homicídio casual, como doutro modo seria o veredicto, mas por homicídio premeditado,
em primeiro grau. Não havia defesa possível. Só restava fugir como um quadrilheiro.
Olhou o relógio de pulso. Tinha 20min pra alcançar o trem das 10h a Chicago. De
Chicago iria a Nova Orleãs, e de lá ao México. Tinha a carteira cheia de dinheiro. A saída
lateral do clube El bravo estava ali a 3m. Mas tentando se levantar, cambaleou e caiu a
diante. Os dez ou doze drinques que tão astuciosamente ingerira, a fim de melhor
desempenhar o papel, colaboraram na horrível trama que tecera contra si. Estava muito
bêbado, muito estonteado, pra se levantar e se mover com rapidez.
Encontraram o pequeno advogado curvado na cadeira, fitando o atleta morto. Ainda
tinha a pistola na mão, murmurando desapaixonadamente:
— Culpado! Culpado! Culpado!

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Segundo declarou Edward J O’Brien, Susan Glaspell
assistiu uma vez um julgamento por homicídio e dessa
experiência tirou Um júri de suas iguais. Mas não é assim que
a autora conta a história. De acordo com Susan, começou a
escrever pro teatro quando seu primeiro marido organizou a
trupe dos Provincetown23 players (Atores de Provinciópolis).
Uma de suas primeiras produções foi uma peça num ato,
intitulada Bagatelas, inspirada numa notícia dum jornal de
Aioua, que se tornou uma peça famosa e ainda é
apresentada em pequenos teatros de todo o país. Depois,
como a estrutura do conto permitia certas expansões, Susan
tomou o material de Bagatelas e o refundiu em Um júri de suas
iguais.
Como a peça, o conto se tornou uma peça literária
famosa. Saiu à luz em primeira vez na revista Every week
(Toda semana), número de 5 de março de 1917. Foi depois
incluída por senhor O'Brien em sua coletânea Os melhores
contos de 1917. Desde então apareceu em diversas outras
antologias literárias.
Deixamos pro final a parte mais interessante desta história
editorial, uma importante revelação bibliográfica. Um júri de
suas iguais foi editado separadamente em forma de livro na
Inglaterra. Em 1927 o editor inglês Ernest Benn publicou o
volume Um júri de suas iguais, que constava unicamente do
conto, em sua série Livro amarelo. A edição se limitava a
apenas 250 exemplares, todos assinados pela autora. O
delgado e frágil folheto é uma genuína primeira-edição,
virtualmente desconhecida. Não sabemos quantos dos 250
exemplares originais se perderam ou foram destruídos, mas se
o leitor começar a procurar agora um exemplar da primeira
edição autografada, é provável que ainda a esteja
procurando em 1955. Essa moderna raridade tem lugar de
honra na coleção de livros de contos policiais do diretor de
Mistério magazine.
Um júri de suas iguais é uma história dum homicídio na
velha e solitária granja dos Wrights, uma história de
camponeses que procuram indício enquanto suas mulheres
examinam coisinhas insignificantes. É uma história de
bagatela. É uma história clássica duma mulher julgada por um
júri de suas iguais.

Um júri de suas iguais


Susan Glaspell

Q uando Marta Hale abriu a porta exterior e recebeu uma rajada de vento norte,
voltou correndo pra buscar sua grande manta de lã. Enquanto a enrolava na cabeça,
passou um olhar escandalizado na cozinha. Não era um motivo qualquer que a
obrigava a sair. Provavelmente era a coisa menos vulgar que já acontecera no município
de Dickson. Mas seu olhar observou que a cozinha não estava em condição de ser

23
Provinciópolis (Provincetown) é uma cidade da Nova Inglaterra, localizada na ponta extrema do cabo Bacalhau, no município de
Barnstable, Massachustes, Eua. Nota do digitalizador

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abandonada: O pão já pronto pra misturar, metade da farinha peneirada e metade a
peneirar.
Detestava deixar as coisas no meio mas estivera trabalhando naquilo quando o carro
vindo da cidade parou pra levar senhora Hale, e depois o xerife entrara correndo pra dizer
que sua mulher pedia a companhia de senhora Hale, acrescentando, cum sorriso largo,
que decerto ela estava com medo e queria ter outra mulher a seu lado. De maneira que
senhora Hale abandonara tudo como estava. Disse a voz impaciente do marido:
— Marta! Não deixes os outros esperando aqui fora no frio.
Ela tornou a abrir a porta exterior, e nessa vez se juntou ao grupo de três homens e
uma mulher que a esperava na grande caleche.24
Depois de agasalhar bem as pernas com o cobertor do carro, olhou novamente a mulher
que ia a seu lado no assento de trás. Conhecera senhora Peters no ano anterior, na feira
do condado, e o que mais recordava a seu respeito era que não parecia uma esposa de
xerife. Era pequena e delgada e não tinha voz forte. Senhora Gorman, que fora e esposa
do xerife antes de terminar a gestão de Gorman e ser empossado Peters, tinha uma voz
que dava a impressão de estar mantendo a lei com cada palavra. Mas se senhora Peters
não parecia uma esposa de xerife, Peters parecia talhado pro cargo. Era o tipo perfeito do
homem capaz de se fazer eleger xerife, maciço, voz potente, que se mostrava
particularmente cordial com os respeitadores da lei, como pra deixar bem claro que
conhecia a diferença entre os criminosos e os não criminosos. E então, como uma
punhalada, senhora Hale teve a idéia de que aquele homem tão cordial e prazenteiro com
todos eles se dirigia então à casa dos Wrights na qualidade de xerife.
— A campanha não é muito agradável nesta época do ano. — Arriscou finalmente
senhora Peters, como se sentisse que as duas também deviam estar conversando, tal qual
os homens.
Senhora Hale mal pôde terminar a resposta, pois o carro chegara ao alto duma colina
donde se via a casa dos Wright, o que lhe tirou a vontade de conversar. A construção
parecia muito solitária naquela fria manhã de março. Sempre fora uma granja de aspecto
solitário. Ficava no fundo duma baixada, e os choupos que a rodeavam também tinham
uma aparência de solidão. Os homens estavam olhando e comentando o que acontecera.
O promotor se inclinou a um lado da caleche e ficou olhando a casa enquanto se
aproximavam.
— Estimo que vieras comigo. — Disse senhora Peters nervosamente quando as duas
mulheres seguiriam os homens, que entraram na porta da cozinha.
Mesmo depois de ter o pé no degrau da porta e a mão no trinco, Marta Hale sentiu,
durante um momento, que não podia transpor aquele umbral. E lhe parecia não poder o
transpor, agora, pela simples razão de que nunca o transpusera antes. Mais duma vez
pensara: Eu devia ir ver Minnie Foster, pois ainda a chamava mentalmente de Minnie
Foster, embora ela fosse senhora Wright havia vinte anos. Mas sempre encontrava algo
pra fazer e esquecia Minnie. Agora pôde vir.
Os homens se aproximaram do fogão. As mulheres ficaram junto à porta, uma ao lado
da outra. Henderson, o jovem promotor, se virou a elas e disse:
— Vinde a perto do fogo, senhoras.
Senhora Peters deu um passo, e parou.
— Não sinto... frio.

24
Caleche é uma carruagem do século 18, inventada na França. É semelhante ao baruche mas em vez de duas tem quatro
rodas e dois assentos duplos frente-a-frente. O cocheiro conduz na parte da frente. É puxada por dois ou quatro cavalos. Era
tradicionalmente puxada por um par de cavalos de alta qualidade e servia sobretudo pra passeio de personalidade abastada durante o
verão. https://pt.wikipedia.org/wiki/Caleche Nota do digitalizador

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Os homens comentaram, durante um minuto, que o xerife tivera uma boa idéia ao
mandar o auxiliar naquela manhã acender o fogo. E depois o xerife Peters se afastou do
fogão, desabotoou o sobretudo, e apoiou as mãos na mesa da cozinha dum modo que
parecia marcar o início do trabalho oficial.
— Agora, senhor Hale, — disse numa espécie de voz semi-oficial — antes de
começarmos a examinar as coisas, contes a senhor Henderson exatamente o que viste
quando estiveste aqui ontem na manhã.
O promotor estava olhando a cozinha.
— A propósito: Não mexestes nalgo? — Se virou ao xerife. — Tudo está como
deixaste ontem?
Peters olhou do armário à pia e dela a uma pequena cadeira-de-balanço um pouco ao
lado da mesa da cozinha.
— Tudo está na mesma posição.
— Deviam ter deixado alguém aqui ontem. — Disse o promotor.
— Ora! Ontem! — Volveu o xerife, cum pequeno gesto que denotava ter sido ontem
um dia sobre o qual nem podia pensar. — Quando tive que mandar Franck buscar aquele
homem que ficou louco em Morris Cantar… Ontem eu estive com as mãos cheias. Sabia
que hoje estarias de volta de Omarra, Jorge, e como ontem estive examinando tudo
pessoalmente aqui...
— Senhor Hale, — disse o promotor como quem dá a entender que o que passou,
passou — contes exatamente o quê aconteceu quando vieste ontem na manhã.
Senhora Hale, ainda encostada à porta, sentiu aquele temor duma mãe cujo filho
recitará um trecho de poesia.
Levi muitas vezes divagava e misturava as coisas ao contar uma história. Ela fez votos
pra que contasse aquela de modo claro e direto, e não dissesse coisas desnecessárias que
só poderiam prejudicar a situação de Minnie. O marido não começou logo, e ela notou
que tinha uma expressão esquisita, como se o fato de estar naquela cozinha e ter de contar
o que vira ali na véspera quase desse náusea. Começou:
— Harry e eu íamos à cidade cum carregamento de batata.
Harry era o filho mais velho de senhora Hale. Não estava com eles agora pela simples
razão de que as batatas não chegaram à cidade no dia anterior e ele fora encarregado de
as levar nessa manhã, de modo que não estava em casa quando o xerife fora pedir a senhor
Hale os acompanhar à casa de Wright e contar sua história ao promotor lá, onde poderia
mostrar como fora tudo.
— Vínhamos nesta estrada. — Continuou Hale, apontando, cum movimento da mão,
a estrada que acabavam de percorrer — Quando chegamos à vista da casa eu disse a
Harry: Tentarei convencer John Wright a mandar instalar um telefone em casa,
pois se eu não encontrar alguém que peça outro telefone eles não mandarão
estender um fio a esta estrada, a não ser por um preço que não posso pagar. Já
falei com Wright sobre isso, mas se recusou, dizendo que de qualquer modo as
pessoas falavam demais e que só o que ele pedia era paz e sossego. Decerto
sabeis como falava pouco. Mas pensei que se fosse até a casa dele e falasse diante da
mulher, e dissesse que todas as mulheres gostavam dos telefones, e que num lugar tão
retirado como este havia de ser uma boa coisa... Bom… Eu disse a Harry que era isso o
que ia dizer, mas disse também que não me parecia que João se importasse muito com o
que a mulher quisesse ou não quisesse.
Pronto! Ali estava dizendo coisas que não precisava dizer. Senhora Hale procurou
atrair o olhar do marido, mas felizmente o promotor interrompeu:
— Deixemos isso prum pouco mais tarde, senhor Hale. Quero ouvir todas essas coisas,
mas agora estou ansioso pra saber exatamente o quê aconteceu quando entraste aqui.

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Quando recomeçou, foi com muita cautela e reflexão:
— Nada vi nem ouvi. Bati na porta. Continuou tudo em silêncio aqui dentro. Eu sabia
que eles estariam em pé. Eram mais de 8h. De modo que tornei a bater, mais forte, e me
pareceu que ouvira alguém dizer Entres. Não tinha certeza e não tenho. Mas abri a porta,
esta porta. — Indicou com a mão a porta junto à qual estavam as duas mulheres — E ali,
naquela cadeira-de-balanço. — E apontou aonde estava sentada senhora Wright.
Todos olharam a cadeira-de-balanço. Ao espírito de senhora Hale ocorreu a idéia de
que aquela cadeira nada tinha da Minnie de 20 anos atrás. Era dum vermelho encardido,
com travessas de madeira no encosto. Faltava a travessa do meio, e a cadeira estava
vergada dum lado.
— Como… como parecia estar ela? — Inquiriu o promotor.
— Bom… Ela me pareceu… esquisita — Disse senhor Hale.
— Esquisita? O quê queres dizer com isso?
Ao fazer a pergunta, tirou do bolso um caderno de nota e um lápis. Senhora Hale não
gostou de ver o lápis. Manteve os olhos fixos no marido, como pra o impedir de dizer
coisas desnecessárias que fossem registradas naquele caderno e causassem
aborrecimento.
Hale falou com cautela, como se o lápis também o afetara.
— Ela estava como se não soubesse o quê fazer. E com ar fatigado.
— Como pareceu acolher tua chegada?
— Ora! Acho que ela não fez caso. Não prestou muita atenção. Perguntei: Como
vais?, senhora Wright. Está frio. Não é? E ela disse: Á! Sim? E continuou fazendo
dobra no avental.
Fiquei admirado. Ela não me convidou a chegar a perto do fogão nem a me
sentar. Ficou ali como estava, sem me olhar. Eu disse: Quero falar com João. E
então riu. Acho que aquilo se pode chamar risada.
Pensei em Harry e na parelha de cavalo lá fora, no frio, e disse, um pouco
áspero: Posso falar com João? Disse Não cum ar distraído. — Não está em
casa?. Olhou a mim e disse: Sim. Está em casa. Perguntei, perdendo a
paciência: Então por que não posso falar consigo? Respondeu com a mesma
calma e distração: Porque está morto. E continuou fazendo dobra no avental.
Morto? Perguntei como quando não se compreendeu bem o que ouviu.
Inclinou a cabeça. Não estava agitada sempre se embalando.
— Mas onde está?
Apontou ao andar de cima, assim.
E Hale apontou o quarto do andar superior.
Me levantei com a idéia de subir até lá. Não sabia o quê fazer. Andei daqui
àli, e perguntei: — Mas de quê morreu?
— Uma corda no pescoço. — Sempre fazendo dobra no avental.
Hale parou de falar, e ficou olhando a cadeira-de-balanço, como se ainda visse a
mulher que estivera sentada ali na manhã anterior. Ninguém falou. Parecia que todos viam
a mulher que estivera sentada ali na véspera.
— Então o quê fizeste? — Perguntou o procurador, rompendo o silêncio.
— Saí e chamei Harry. Pensei que podia… precisar de ajuda. Fiz Harry entrar subimos.
A voz de Hale era quase um sussurro.
— Ali estava ele, estendido na…
— Acho melhor vermos isso lá em cima, onde nos mostrarás tudo como estava. —
Interrompeu o promotor. — Agora contes o resto da história.
— Minha primeira idéia foi tirar aquela corda. Dava uma impressão…
Parou, contraindo nervosamente o rosto.

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Mas Harry se aproximou dele e disse: Não. Está morto mesmo. É melhor
em nada mexer. Então descemos. Ela ainda estava sentada como antes.
Avisaste a alguém? Não. Disse ela, indiferente.
— Quem fez isso?, senhora Wright. perguntou Harry, num tom de homem
prático, e ela parou de dobrar o avental.
— Não sei.
— Não sabes? Não estavas dormindo na cama consigo?
— Sim. Mas estava no lado do canto.
— Alguém passou uma corda no pescoço dele e o estrangulou e não
acordaste?
— Não acordei.
Decerto fizemos uma cara de quem não compreendia bem como podia ter
acontecido isso, porque depois de 1 minuto ela acrescentou:
— Tenho sono pesado.
Harry perguntaria mais mas eu disse que afinal nada tínhamos com aquilo e
que seria melhor a deixar contar a história ao juiz de inquérito ou ao xerife. Então
Harry foi o mais depressa possível à estrada principal, à casa dos River, onde
há um telefone.
— E o quê fez quando soube que mandaras buscar o juiz de inquérito? — O promotor
agarrou o lápis, pronto pra escrever.
— Saiu da cadeira e veio a esta. — Apontou a uma pequena cadeira num canto — e
ficou sentada com as mãos cruzadas e os olhos baixos. Senti que devia dizer algo, e disse
que viera ver se João queria mandar instalar um telefone. Então ela começou a rir, depois
parou e me olhou, assustada.
Ao som do lápis que se movia, o homem que estava contando a história ergueu os
olhos.
— Não sei. Talvez assustada não seja bem a palavra. — Corrigiu com precipitação.
Não posso dizer com certeza. Pouco depois Harry voltou, e então chegou doutor Lloyd.
e o tu, senhor Peters, e assim acho que é só isso que eu sabia e tu não.
Disse as últimas palavras com alívio e deu alguns passos, como pra se distender. Todos
se moveram um pouco. O promotor foi à porta que abria à escada.
— Acho melhor irmos até lá em cima primeiro, e depois ao celeiro e tudo o mais.
Parou e passeou os olhos na cozinha.
— Tens certeza que nada havia de importante aqui? — Perguntou ao xerife. — Nada
que pudesse indicar um motivo?
O xerife também olhou em torno, como pra se convencer novamente.
— Nada além de coisas de cozinha. — Disse, rindo da insignificância das coisas de
cozinha.
O promotor estava olhando o guarda-louça, uma estrutura singular, deselegante,
metade armário e metade guarda-louça. A parte superior era embutida na parede e a parte
inferior era um guarda-louça comum de cozinha. Como se o aspecto estranho o atraísse,
o promotor subiu numa cadeira, abriu a parte superior e olhou a dentro. Depois dum
momento retirou a mão, suja dalgo pegajoso.
— Ora! Que lindo serviço! — Disse, com rancor.
As duas mulheres se aproximaram. Então senhora Peters falou.
— Ó! As conservas dela. — Disse, procurando simpatia e compreensão nos olhos de
senhora Hale. Se voltou novamente ao promotor e explicou: — Ela estava preocupada
com isso quando esfriou tanto na noite passada. Disse que o fogo se apagaria e os vidros
arrebentariam.
O marido de senhora Peters desatou a rir.

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— Essas mulheres são impagáveis! Presa por homicídio e se preocupando com os
doces!
O jovem procurador apertou os lábios.
— Acho que antes de terminarmos terá algo mais sério que fruta em conserva pra se
preocupar.
— Bem, bem… — Disse Levi, com indulgente superioridade — As mulheres estão
acostumadas a se preocupar com ninharia.
As duas mulheres se aproximaram mais uma da outra. Nenhuma falou. O promotor
pareceu recordar subitamente as boas maneiras e pensar no futuro.
— Mas — disse, com a galanteria dum jovem político — com todas suas
preocupações, o que faríamos sem as damas?
As mulheres não falaram, não se deixaram abrandar, O promotor foi à pia e começou
a lavar as mãos. Se virou pràs enxugar na toalha rotativa e a fez girar, procurando um
lugar mais limpo.
— Toalhas sujas! Não muito boa dona-de-casa, não acham, senhoras?
Bateu com o pé nalgumas panelas sujas embaixo da pia.
— Há muito trabalho a fazer numa granja. — Disse senhora Hale, empertigada.
— Certamente. Contudo… — E o promotor fez uma pequena reverência — Conheço
algumas granjas do condado que não têm toalhas assim.
Essas toalhas se sujam muito depressa. As mãos dos homens nem sempre estão tão
limpas como deviam estar.
— Á! Leal a teu sexo, ao que vejo. — Disse o promotor, rindo. Parou e lhe lançou um
olhar penetrante. — Mas tu e senhora Wright éreis vizinhas. Suponho que amigas
também.
Marta Hale sacudiu a cabeça.
— Não a vi nos últimos anos. Faz... mais dum ano que não venho a esta casa.
— E por quê? Não gostavas dela?
— Gostava bastante — respondeu senhora Hale com ardor. — Mas as mulheres de
granjeiros têm muito a fazer, senhora Henderson. Além disso… — E circunvagou o olhar
na cozinha.
— Além disso? — Repetiu o promotor, a encorajando.
— Nunca me pareceu um lugar muito alegre. — D mais a si que ao promotor.
— De fato. Não creio que alguém pudesse achar isto alegre. Eu diria que ela não tem
o instinto do lar.
— Seja como for. Não me consta que ele o tivesse, tampouco.
— Quer dizer que não se davam muito bem?
— Nada quero dizer. — Respondeu ela com decisão. E, voltando um pouco o rosto,
acrescentou: — Mas não creio que um lugar ficasse mais alegre com a presença de João
Wright.
— Eu gostaria de conversar contigo a respeito disso um pouco mais tarde, senhora
Hale. Agora estou ansioso pra estudar a situação lá em cima.
Foi à porta da escada, acompanhado pelos dois homens.
— Creio que tudo o que senhora Peters fizer está bem. Não é? — Perguntou o xerife.
— Ela ficou de levar roupas e algumas coisinhas. Saímos tão apressadamente ontem.
O promotor olhou as duas mulheres que deixariam a sós ali, entre as coisas da cozinha.
— Sim, senhora Peters. — Disse ele, pousando o olhar na outra mulher, na robusta
lavradora que estava ao lado da esposa do xerife. — Naturalmente, senhora Peters é uma
de nós — Continuou com o ar de quem confia uma responsabilidade. — E vejas se
encontras algo que possa nos seja útil, senhora Peters. Nunca se sabe. Bem poderíeis
encontrar indício que nos esclareça o motivo.

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Senhor Hale esfregou o rosto como um palhaço que se prepara pra dizer um gracejo:
— Mas as mulheres reconheceriam um indício?
E seguiu os outros dois à porta da escada.
As mulheres ficaram imóveis e em silêncio, ouvindo os passos, primeiro na escada,
depois no quarto do andar de cima.
Então, como se libertando dalgo estranho, senhora Hale começou a ordenar as panelas
que o pontapé desdenhoso do promotor desarrumou embaixo da pia.
— Eu teria raiva se os homens entrassem na minha cozinha e ficassem olhando e
criticando. — Disse, de mau-humor.
— Mas estão apenas cumprindo o dever. — Disse a esposa do xerife, em tom de tímida
aquiescência.
— Sim. Dever. — Senhora Hale respondeu com brusquidão — Mas acho que aquele
xerife substituto que veio fazer o fogo pode ter sido o culpado duma parte. — Deu um
puxão na toalha rotativa — Pena que não ter me lembrado antes! Parece injusto falar mal
dela por não ter deixado as coisas no trinque, quando foi obrigada a sair tão apressada.
Correu os olhos na cozinha. Realmente não estava no trinque. O olhar parou num balde
de açúcar numa das prateleiras inferiores, sem a tampa, e a seu lado um saco de papel
cheio até a metade.
Senhora Hale se aproximou.
— Ela poria isto. — Pensou, lentamente.
Pensou na farinha peneirada a meio, em sua casa. Fora interrompida, e deixara o
trabalho na metade. O quê interrompera Minnie? Por quê aquele trabalho fora deixado na
metade? Fez um movimento como pra o terminar. As coisas inacabadas sempre a
aborreciam. E então olhou a trás e viu que senhora Peters a observava. Ela não queria que
senhora Peters sentisse aquela impressão dum trabalho começado e depois, por algum
motivo, interrompido.
— É uma lástima que as conservas dela ficaram assim. — Disse, indo ao armário que
o promotor abrira, e subiu na cadeira, murmurando: — Estará tudo perdido?
Era um espetáculo lamentável. Enfim disse:
— Eis um que não se perdeu. — O levantou a contraluz. — É de cereja, também. —
Tornou a olhar. Sim. Parece que é o único.
Cum suspiro, desceu da cadeira, foi à pia e limpou o vidro.
— Ela ficará pesarosa, depois de todo o trabalho que teve na época do calor. Ainda me
lembro da tarde em que pus as cerejas na calda, no verão passado.
Pôs o vidro em cima da mesa e, com outro suspiro, foi à cadeira-de-balanço. Mas não
se sentou. Algo a impediu de se sentar naquela cadeira. Se endireitou, recuou, e, com o
rosto um pouco virado, ficou olhando a cadeira, vendo a mulher que estivera sentada ali
fazendo dobra no avental.
A voz fina da esposa do xerife a despertou:
— Tenho que ir buscar aquelas coisas na sala da frente.
Abriu a porta que levava à sala, deu um passo, e recuou. Perguntou, nervosa:
— Vens comigo?, senhora Hale. Podes me ajudar a encontrar as coisas.
Voltaram pouco depois. A frialdade daquele quarto fechado não convidava a
permanecer.
— Meu-deus! — disse senhora Peters, largando as coisas em cima da mesa e correndo
ao fogão.
Senhora Hale ficou examinando a roupa pedida pela mulher que estava presa na
cidade.
— Como Wright era sovina! — Exclamou, erguendo uma velha saia preta que
mostrava sinais de muitos consertos. — Acho que era por isso que ela não procurava

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muito as outras. Decerto sentia que não podia desempenhar sua parte. Além disso, não se
tem prazer nas coisas quando se sente malvestida. Costumava usar roupas bonitas e era
muito alegre quando era Minnie, uma das moças da cidade, e cantava no coro. Mas isso
foi há vinte anos.
Com cuidado em que havia algo de terno, dobrou as mesquinhas roupas e as empilhou
num canto da mesa. Ergueu os olhos senhora Peters, e na fisionomia da outra mulher
havia algo que a irritou. Pensou:
— Isso não a interessa.
Pouco lhe importa que Minnie tivesse vestidos bonitos quando era moça.
Tornou a olhar e não sentiu certeza. Na verdade nunca tivera certeza de algo com
relação a senhora Peters. A esposa do xerife tinha aqueles modos retraídos mas os olhos
pareciam capazes de penetrar fundo nas coisas.
— Era só isto que tinhas de levar? — Perguntou senhora Hale.
— Não. — Respondeu senhora Peters. — Disse que queria um avental. Engraçado
pedir uma coisa dessa. — Arriscou com seu jeito nervoso — Não deve haver muito com
que se sujar na cadeia. Decerto é só pra se sentir mais à vontade. Quem está acostumado
a usar avental… Disse que estavam na última gaveta deste armário. Sim. Eis. E também
o xalezinho que sempre ficava pendurado na porta da escada.
Pegou o pequeno xale cinzento pendurado atrás da porta que levava ao andar superior.
De repente senhora Hale avançou um passo à outra mulher.
— Senhora Peters!
— O que é?, senhora Hale.
— Achas que… que foi ela?
Uma expressão de susto fez desaparecer tudo o mais dos olhos de senhora Peters.
— Ó! Não sei. — Disse a esposa do xerife, numa voz que parecia se encolher, fugindo
do assunto.
— Pois bem. Acho que não. — Declarou senhora Hale, com firmeza. — Pedindo um
avental, e o xale. Preocupada com as conservas.
— Senhor Peters disse… — Ouviram passos no quarto de cima. Parou, ergueu os
olhos, depois continuou em voz mais baixa: — Senhor Peters disse que ela está em má
situação. Senhor Henderson é terrivelmente sarcástico no tribunal, e fará troça dela dizer
que não acordou.
Durante um momento senhora Hale não encontrou resposta. Depois resmungou:
— Acho que João Wright também não acordou quando lhe passaram aquela corda no
pescoço.
— Sim. Isso é estranho. — Sussurrou senhora Peters — Acham que foi uma maneira
muito esquisita de matar um homem.
— É justamente o que senhor Hale disse. — Volveu senhora Hale com voz
resolutamente natural. — Havia um revólver na casa. Disse que é isso o que não entendeu.
— Quando vínhamos, senhor Henderson disse que o que a acusação precisava era um
motivo pro crime. Algo que revele irritação ou ódio súbito.
— Não vejo sinal de irritação aqui. — Disse senhora Hale. — Não…
Parou. Era como se seu espírito tropeçasse nalgo. Seu olhar fora atraído por um pano
de prato no meio da mesa. Lentamente se aproximou da mesa. Metade do pano estava
limpa, a outra metade suja. Os olhos se voltaram devagar, quase a contragosto, ao saco
de papel cheio até a metade. Trabalho começado e não terminado.
Depois dum momento voltou aonde estava antes e disse, naquele tom de quem se
liberta:
— Como terão encontrado as coisas lá em cima? Espero que ela tenha arrumado um
pouco melhor o quarto. Sabes. — Senhora Hale parou, e o ressentimento cresceu —

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Parece uma vileza, a prender na cidade e vir fazer com que a sua própria casa se volte
contra ela!
— Mas, senhora Hale, — Disse a esposa do xerife — a lei é a lei.
— Acredito. — Senhora Hale respondeu laconicamente.
Se virou ao fogão, mexeu nele um minuto. Quando se reaprumou disse,
agressivamente:
— A lei é a lei. E um mau fogão é um mau fogão. O que achas ter de cozinhar nisto?
— e apontou com o atiçador ao revestimento rachado. Abriu a porta do forno e começou
a expressar sua opinião sobre ele mas se absorveu em suas reflexões, pensando o que
significaria ter de lidar com aquele fogão ano após ano. A idéia de Minnie tentando assar
pão naquele forno. E a idéia de que nunca viera ver Minnie.
Foi surpreendida pela voz de senhora Peters:
— A pessoa desanima, perde a coragem.
A esposa do xerife olhara do fogão o balde de água trazido de fora. As duas mulheres
ficaram ali em silêncio, ouvindo acima delas os passos dos homens que procuravam
provas contra a mulher que trabalhara naquela cozinha. A esposa do xerife tinha nos olhos
aquela expressão de quem vê no interior das coisas, de quem vê uma coisa através de
outra. Quando senhora Hale tornou a lhe falar, o fez com doçura.
— É melhor aliviar um pouco a roupa, senhora Peters. Assim não sentiremos a
diferença quando formos embora.
Senhora Peters foi pendurar o agasalho de pele que trazia. Um momento depois
exclamou:
— Ela estava fazendo um acolchoado de retalho! — E levantou um grande cesto de
costura cuma alta pilha de peça pra acolchoado.
Senhora Hale espalhou algumas em cima da mesa.
— É de tipo rústico. — Disse, reunindo várias peças. — Bonito. Não é?
Estavam tão absorvidas com o acolchoado que não ouviram os passos na escada.
Quando a porta se abriu, senhora Hale estava dizendo:
— Achas que ela o alinhavaria ou simplesmente amarraria?
O xerife ergueu as mãos ao alto.
— Quereis saber se ela alinhavaria ou simplesmente amarraria!
Riram das preocupações femininas, aqueceram as mãos ao fogão, e depois o promotor
disse, com vivacidade:
— Agora buscaremos no celeiro.
Quando a porta exterior se fechara atrás dos três homens, senhora Hale disse com
ressentimento:
— Não acho que haja algo de estranho em ocuparmos nosso tempo com coisinhas
enquanto eles reúnem as provas. Não vejo por que rir disso.
— Naturalmente, eles têm muitas coisas importantes pra pensar. — Justificou senhora
Peters.
Voltaram a examinar as peças do acolchoado. Senhora Hale olhava a costura delicada
e regular e pensava na mulher que fizera aquela costura, quando ouviu a esposa do xerife
dizer em tom estranho:
— Olhes esta.
Senhora Hale se voltou pra pegar a peça que a outra lhe estendia.
— A costura. — Disse senhora Peters, perturbada. — Todas as outras são tão bem-
feitas e parelhas, menos esta. Parece que ela não sabia o que estava fazendo!
Seus olhares se encontraram. Algo nasceu entre elas cum fulgor. Depois pareceram se
separar a custo. Durante um momento, senhora Hale ficou ali, com as mãos cruzadas
naquela costura tão diferente das outras. Depois levantou um nó e puxou os fios.

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— O quê estás fazendo?, senhora Hale. — Perguntou a esposa do xerife.
— Estou tirando um ou dois pontos que não estão muito bons. — Respondeu senhora
Hale, brandamente.
— Acho que não devíamos mexer nas coisas. — Disse senhora Peters, um pouco
indecisa.
— Só terminarei esta ponta. — Disse senhora Hale, ainda no mesmo tom brando e
natural.
Enfiou uma agulha e começou a substituir a costura má por outra melhor. Costurou em
silêncio algum tempo. Depois ouviu, naquela voz fina e tímida:
— Senhora Hale!
— O quê é?, senhora Peters.
— Por quê ela estava tão nervosa?
— Não sei. — Disse senhora Hale como quem afasta uma questão sem importância
com a qual não vale a pena perder tempo — Não sei se estava nervosa. Eu também às
vezes faço umas costuras esquisitas quando estou cansada.
Cortou um fio e olhou senhora Peters com o canto do olho. O rosto pequeno e magro
da esposa do xerife parecia ter se retesado. Seus olhos tinham aquela expressão de quem
está vendo o interior dalgo. Mas em seguida se mexeu e disse em tom de indecisão:
— Preciso embrulhar estas coisas. Eles podem terminar mais cedo que pensamos.
Onde encontrarei um pedaço de papel e cordão?
— Talvez naquele armário, sugeriu senhora Hale depois de olhar em redor de si.
Uma parte daquela costura irregular continuava intata. Vendo que senhora Peters
estava de costas, senhora Hale examinou o trabalho, o comparando à costura delicada e
cuidadosa das outras peças. A diferença era surpreendente. Aquilo lhe dava uma sensação
esquisita, como se a invadissem os pensamentos conturbados da mulher que talvez se
dedicara àquele trabalho pra tentar se acalmar.
A voz de senhora Peters a chamou à realidade.
— Há uma gaiola aqui. — Disse a esposa do xerife — Ela tinha algum pássaro?, senhor
Hale.
— Ora! Não sei.
Senhora Hale se voltou, pra olhar a gaiola que senhora Peters segurava. — Passei tanto
tempo sem vir. — Suspirou. — Um homem andou aqui no ano passado, vendendo canário
bem barato, mas não sei se ela comprou algum. Talvez. Cantava tão bem antigamente.
— Parece engraçado pensar que havia um pássaro aqui. — Senhora Peters tentou rir,
como se quisesse erguer uma barreira. — Mas teria um. Senão, pra que teria uma gaiola?
Eu só queria saber que fim levou o pássaro.
— Decerto o gato o pegou. — Sugeriu senhora Hale, recomeçando a costurar.
— Não. Não tinha gato. É dessas pessoas que têm horror a gato. Quando a levaram
ontem a nossa casa, meu gato entrou na sala e ela ficou muito agitada, pedindo que o
tirassem dali.
— Minha irmã Bessie era assim. — Disse senhora Hale, rindo.
A esposa do xerife não respondeu. O silêncio fez com que senhora Hale se voltasse.
Senhora Peters estava examinando a gaiola. Disse lentamente:
— Olhes esta porta. Está quebrada. Uma das charneiras foi arrancada.
Senhora Hale se aproximou.
— Parece que alguém andou lidando rudemente com ela.
Outra vez os olhares se encontraram. Sobressaltados, interrogativos, apreensivos.
Durante um momento nenhuma das duas falou ou se moveu. Depois, voltando o rosto,
senhora Hale disse bruscamente:
— Se encontrarão indício, tomara que o encontrem duma vez. Não gosto daqui.

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— Mas estimo muito que vieras comigo, senhora Hale. — Senhora Peters pôs a gaiola
em cima da mesa e se sentou. — Eu ficaria aborrecida aqui, sozinha.
— Sim. Não é? — Concordou senhora Hale, com certa naturalidade muito decidida na
voz. Apanhara o trabalho de costura, porém o deixou cair no regaço e murmurou em voz
diferente: — Mas digo o que eu desejaria, senhora Peters: Ter vindo a ver algumas vezes,
quando ela estava aqui. Desejaria ter vindo.
— Mas naturalmente estava mui ocupada, senhora Hale. A casa, os filhos.
— Eu podia ter vindo. — Retrucou senhora Hale, incisivamente. — Não vim porque
esta casa não era alegre. E é por isso mesmo que eu devia ter vindo. — E olhou em torno
de si — Nunca me agradei deste lugar. Talvez porque fica no fundo dum vale e não se vê
a estrada. Não sei por quê, mas sempre foi um lugar solitário. Desejaria ter vindo ver
Minnie de vez em quando. Compreendo agora.
Não expressou em palavras o que queria dizer.
— Não devias te autocensurar. — Aconselhou senhora Peters. — Não sei por só
percebemos o que se passa com os outros quando algo acontece.
— Não ter filhos dá menos trabalho. — Senhora Hale murmurou pensativamente,
depois duma pausa — Mas a casa fica muito silenciosa. E Wright o dia inteiro fora,
trabalhando. E mesmo quando estava em casa, não era companhia que servisse.
conheceste João Wright?, senhora Peters.
— Pessoalmente, não. O via na cidade. Dizem que era um bom homem.
— Sim. Bom. — Admitiu sombriamente a vizinha de João. — Não bebia, cumpria a
palavra tão bem quanto qualquer outro, creio, e pagava as dívidas. Mas era um homem
duro, senhora Peters. Passar todo o dia consigo… — Senhora Hale parou e estremeceu.
— Como um vento frio e úmido, que nos gela até a medula dos ossos.
O olhar pousou na gaiola em sua frente, em cima da mesa. E acrescentou, quase com
azedume:
— Não admira que ela quisesse ter um pássaro! — De repente se curvou e olhou
atentamente à gaiola. — O que achas que aconteceu com ele?
— Não sei. — Retorquiu senhora Peters — A não ser que adoecera e morrera.
Mas depois de dizer isso, ela estendeu a mão e moveu a porta quebrada. As duas
mulheres observaram a gaiola como se esta as fascinasse.
— A conhecias? — Perguntou senhora Hale, em tom mais suave.
— Não até que a levaram ontem. — Disse a esposa do xerife.
— Agora que penso nisto, ela era um pouco parecida cum passarinho. Muito bonita e
meiga mas tímida e assustadiça. Quanto… ela… mudou.
Isso a deixou pensativa muito tempo. Finalmente, come se lhe ocorresse uma idéia
feliz e ela ficasse aliviada por poder voltar às coisas cotidianas, exclamou:
— Escutes, senhora Peters, por que não levas também o acolchoado? Ela teria com
que se entreter.
— É uma excelente idéia, senhora Hale. — Concordou a esposa do xerife, como se
também ficasse satisfeita de voltar à atmosfera dos simples atos de bondade — Não pode
haver inconveniente nisso. Não é? E que levarei? Não sei se as peças estão todas aqui, e
o resto das coisas.
Se voltaram à cesta de costura.
— Aqui está um pouco de pano encarnado disse senhora Hale, tirando um rolo de
pano. Embaixo havia uma caixa. — Á! Decerto a tesoura dela está aqui, e as outras coisas.
— Levantou o objeto. — Que linda caixa! Garanto que tinha isto há muito tempo, desde
moça.
A segurou um momento na mão e depois, cum pequeno suspiro, abriu e
instantaneamente levou a mão ao nariz.

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— Ó!
Senhora Peters se aproximou e virou o rosto.
— Há algo enrolado neste pedaço de seda gaguejou senhora Hale.
Com mão pouco firme, levantou o pedaço de seda.
— Ó! Senhora Peters! É…
Senhora Peters se inclinou pra olhar. Sussurrou:
— É o passarinho.
— Mas senhora Peters! — Exclamou senhora Hale. — Olhes! O pescoço, olhes o
pescoço! Está todo virado ao outro lado!
A esposa do xerife se curvou mais.
— Alguém torceu o pescoço. — Disse, com voz grave e pausada.
Novamente os olhos das duas mulheres se encontraram — e nessa vez as duas trocaram
um olhar de compreensão, de horror crescente. Senhora Peters olhou o pássaro morto e a
porta da gaiola. Mais uma vez os olhares se cruzaram. Nesse momento se ouviu um ruído
na porta exterior.
Senhora Hale escondeu a caixa na cesta, sob as peças do acolchoado, e se atirou à
cadeira. Senhora Peters ficou de pé, encostada na mesa. O promotor e o xerife entraram.
O promotor disse como quem passa dos assuntos sérios aos gracejos amenos:
— Então, senhoras. Já decidistes se ela alinhavaria ou amarraria?
— Achamos que amarraria. — Disse a esposa do xerife, em voz perturbada.
O promotor estava muito preocupado pra notar a alteração da voz ao dizer as últimas
palavras. Disse, com tolerância:
— Isso é muito interessante, sem dúvida. — Deu com os olhos na gaiola. — O pássaro
fugiu?
— Cremos que o gato o pegou. — Disse senhora Hale, com voz singularmente calma.
Caminhava dum lado a outro, como pensando, e perguntou distraidamente:
— Há um gato aqui?
Senhora Hale relanceou os olhos à esposa do xerife.
— Agora não há. — Disse senhora Peters. —Os gatos são supersticiosos. Fogem da
casa.
O promotor não prestou atenção.
— Não há sinal de que alguém entrara. — Disse a Peters, no tom de quem continua
uma conversa interrompida. — A corda era deles. Agora subamos outra vez e façamos
um exame completo. Tem de ter sido uma pessoa que conhecia bem a…
A porta da escada se fechou atrás deles e suas vozes se perderam.
As duas mulheres ficaram imóveis, sem se olhar, mas como se estivessem espreitando
algo e recuando ao mesmo tempo. Quando falaram, foi como se tivessem medo do que
estavam dizendo mas não pudessem deixar de dizer. Disse senhora Hale, lentamente e em
voz baixa:
— Ela gostava do pássaro. O enterraria naquela linda caixa.
— Quando eu era menina — disse senhora Peters, a meia-voz — meu gatinho… um
menino pegou uma machadinha e diante de meus olhos, antes que eu pudesse chegar…
Cobriu o rosto um momento.
— Se não me segurassem eu seria capaz de… — Senhora Peters se interrompeu, olhou
a cima, onde se ouviam passos, e terminou em voz débil: — …de o machucar.
Ficaram imóveis e em silêncio.
— Não posso imaginar o que é nunca ter tido criança perto. — Começou senhora Hale,
como procurando o caminho em terreno desconhecido. Seus olhos percorreram
lentamente a cozinha, como se vissem o que aquela cozinha significara durante tantos

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anos. — Não, João não gostaria do pássaro. — Disse depois — um animalzinho que
cantava. Ela também costumava cantar antigamente. Ele destruiu também isso.
Sua voz ficara tensa. Senhora Peters se moveu, inquieta.
— Naturalmente, não sabemos quem matou o passarinho.
— Eu conhecia João Wright. — Respondeu senhora Hale.
— Foi horrível o que fizeram nesta casa aquela noite, senhora Hale. — Disse a esposa
do xerife. — Matar um homem enquanto dormia, passar em torno do pescoço dele uma
coisa pra o estrangular.
Senhora Hale estendeu a mão à gaiola.
— O pescoço dele. O estrangular.
— Não sabemos quem o matou. — Sussurrou senhora Peters desvairadamente. — Não
sabemos.
Senhora Hale não se movera.
— Se a passássemos anos e anos sem e depois ouvíssemos o canto dum pássaro, seria
horrível o silêncio quando o pássaro não cantasse mais.
Era como se no interior algo que não era ela falara. E encontrou em senhora Peters
algo que ela não conhecia como sendo parte de sua personalidade.
— Sei o que é o silêncio. — Disse senhora Peters numa voz estranha, monótona. —
Quando moramos numa quinta em Dacota, e meu primeiro filhinho morreu… com dois
anos de idade, e eu não tinha outro então.
Senhora Hale se mexeu na cadeira.
— Achas que ainda demorarão procurando indício?
— Sei o que é o silêncio. — Repetiu senhora Peters no mesmo tom. Depois também
recobrou o domínio de si. — A lei tem de punir o crime, senhora Hale. — Disse com sua
vozinha espremida.
— Eu desejaria que tivesses conhecido Minnie quando ela usava um vestido branco
com fitas azuis, e cantava no coro.
De repente senhora Hale não pôde suportar mais a recordação daquela moça, e a idéia
de que fora vizinha vinte anos e a deixara morrer por falta de vida.
— Eu queria ter vindo de vez em quando! Foi um crime! Foi um crime! Quem punirá
esse crime?
— Não devemos nos afligir tanto. — Disse senhora Peters, lançando um olhar
assustado em direção à escada.
— Eu devia saber que ela precisava de auxílio! Digo, é uma coisa esquisita, senhora
Peters. Vivemos tão perto, e vivemos tão longe umas das outras. Todas passamos as
mesmas coisas. Tudo são formas diferentes ela mesma coisa. Senão, por quê tu e eu
compreendemos? Por quê sabemos o que sabemos?
Passou a mão nos olhos. Então, vendo o pote de conserva em cima da mesa, estendeu
a mão e disse em voz abafada:
—Se eu fosse tu não diria a ela que as conservas se perderam! Digas que não. Diga
que está tudo bem. Todas as conservas. Tomes. Leves esta pra provar! Ela talvez nunca
fique sabendo que o resto se perdeu.
Senhora Peters estendeu a mão ao vidro de conserva como se tivesse prazer em poder
tocar algo familiar, em ter algo com que se ocupar, como se isso a impedisse de fazer
outra coisa. Se levantou, procurou ao redor de si algo com que embrulhar o vidro, pegou
uma saia da pilha de roupa que trouxera do quarto vizinho, e começou a enrolar
nervosamente em torno do vidro de conserva. Disse em voz aguda:
— Meu-deus! Foi bom que os homens não nos ouvissem! Ficarmos todas alvoroçadas
por causa de algo tão insignificante como um canário morto. — Continuou

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apressadamente: — Como se isso pudesse ter algo a ver com… com… Meu-deus! Como
não ririam!
Ouviram passos na escada.
— Talvez rissem, talvez não. — Murmurou senhora Hale.
— Não, Peters. — Disse o promotor, incisivamente — Tudo está bem claro, menos o
motivo. Mas sabes como são os júris quando se trata de mulher. Se houvesse algo
definido, algo pra mostrar, pra servir de base pra argumentação. Algo que se relacionasse
com essa maneira tão inepta de cometer o crime.
Senhora Hale volveu dissimuladamente os olhos a senhora Peters. A esposa do
promotor a olhava. Ambas desviaram vivamente os olhos. A porta exterior se abriu e
senhora Hale entrou. Disse ele:
— A parelha já está pronta. Bastante frio aí fora.
— Ficarei aqui sozinho durante algum tempo. — Anunciou repentinamente o
promotor. — Podes mandar Franck me buscar? — Perguntou ao xerife. — Quero
examinar tudo. Não me convenço que nada mais haja.
Mais uma vez, durante um instante, os olhos das duas mulheres se encontraram.
O se xerife aproximou da mesa.
— Não queria ver o que senhora Peters levará?
O promotor agarrou o avental e riu.
— Creio que não são coisas muito perigosas que as senhoras escolheram.
Senhora Hale estava com a mão no cesto de costura onde estava escondida a caixinha.
Sentiu que devia atirar a mão daquele cesto. Mas não podia. O promotor agarrou uma das
peças de acolchoado que ela empilhara em cima pra ocultar a caixa. Os olhos de senhora
Hale ardiam. Tinha a sensação de que se ele agarrasse o cesto ela lhe arrancaria das mãos.
Mas o promotor não pegou o cesto. Com outra risada, se afastou.
— Não. Senhora Peters não precisa de fiscalização. Pra falar verdade: A esposa dum
xerife está casada com a lei. Não costumas pensar assim?, senhora Peters.
Senhora Peters estava de pé ao lado da mesa. Senhora Hale lhe deitou um olhar. Mas
não pôde ver o rosto. Senhora Peters se virara ao outro lado. Quando falou, foi com voz
abafada.
— Assim, propriamente, não.
— Casada com a lei! — Disse Levi, rindo. Caminhou à porta que levava à sala da
frente, e disse ao promotor: — Quero venhas um minuto, Jorge. Devíamos dar uma olhada
naquelas janelas.
— Ó! As janelas? — Respondeu o promotor com desdém.
— Já sairemos, senhor Hale. — O xerife disse ao granjeiro.
Hale foi olhar os cavalos. O xerife seguiu o promotor ao quarto contíguo. Mais uma
vez, o último instante, as duas mulheres ficaram sós naquela cozinha.
Senhora Hale se ergueu cum salto, com as mãos entrecruzadas fortemente, e olhou a
outra mulher, de quem dependia tudo. A princípio não pôde ver os olhos, pois a esposa
do xerife não tornara a se virar depois da sugestão de estar casada com a lei. Mas agora
senhora Hale a fez se virar. Seu olhar a obrigou a isso. Lentamente, com relutância,
senhora Peters voltou a cabeça até que os olhos se encontraram com os da outra. Houve
um momento em que as duas se retiveram mutuamente num olhar firme, candente, e não
era possível fugir ou se esquivar.
Então os olhos de Marta indicaram o cesto onde estava escondida a coisa que tornaria
inevitável a condenação da outra mulher, aquela que não estava ali mas estivera com elas
durante toda aquela hora.
Durante um momento senhora Peters não se moveu. Depois tomou a decisão. Se
precipitou a diante, afastou as peças do acolchoado, pegou a caixa, tentou a esconder em

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003, julho 1949
sua bolsa. A caixa era grande demais. A abriu desesperadamente pra tirar o pássaro. Mas
então fraquejou, pois não podia tocar no pobre animal. Ficou ali imóvel, desarvorada.
Houve o som dum trinco que girava na porta interior. Senhora Hale lhe arrancou a
caixa das mãos e a enfiou no bolso de seu amplo casaco, no momento em que o xerife e
o promotor voltavam.
— Bem, Henry. — Disse jocosamente o promotor — Ao menos descobrimos que ela
não alinhavaria. E sim… Como é mesmo que dizeis?
Senhora Hale estava com a mão em cima do bolso de seu casaco.
— Dizemos… amarraria, senhor Henderson.

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Em quase todas os números de Mistério magazine nosso
diretor apresenta aos leitores a obra dalgum grande vulto
literário cujo nome não costuma ser associado às histórias
policiais. 0 convidado-de-honra deste mês é Marc Connelly,
o famoso autor da inesquecível peça Verdes pastagens, que
conquistou o prêmio Pulítzer.
0 conto de senhor Connelly é um dos mais estranhos. Com
estranhas personagens, dois anões, trata dum estranho
milagre fisiológico e revela um dos mais estranhos motivos que
já se conceberam prum homicídio.
Inquérito judicial conquistou o prêmio O Henry de conto
breve em 1930. Honra amplamente merecida.

Inquérito judicial
Marc Connelly

-C
omo te chamas?
— Franck Wineguard.
— Onde moras?
Rua 55 Oeste, 185.
— Profissão?
— Sou diretor de cena de Alô, América.
— Eras patrão de James Dawle?
— De certo modo, sim. Os dois trabalhávamos pra senhor Bender, o empresário, mas
o bastidor estava a meu cargo.
— Conhecias Theodore Robel?
— Sim, senhor.
— Também fazia parte de tua companhia?
— Não, senhor. O conheci quando começamos os ensaios. Isso foi há cerca de três
meses, em junho. Mandamos um aviso às agências pedindo anões, e ela e Jimmy se
apresentaram juntos, ao mesmo tempo que uma porção doutros. Robel era muito grande
pra nós. Não o revi até entrarmos a força no quarto de ambos, na terça-feira.
— Foste quem encontrou os cadáveres?
— Sim, senhor. Senhora Pike estava comigo.
— Encontraste os dois mortos?
— Sim, senhor.
— Por quê estavas na cidade Jérsia?
— Telefonei à casa de Jimmy na segunda-feira, na hora de subir o pano, quando notei
que não viera trabalhar. Senhora Pike disse que ambos saíram, então pedi a ela que
mandasse um dos dois telefonar a mim quando voltassem. Senhora Pike telefonou na
terça-feira e disse que tentara entrar no quarto mas que a porta estava aferrolhada. Disse
que todos os outros inquilinos saíram e que ela estava sozinha e com medo. Eu já
desconfiava que havia algo. Respondi que ela me esperasse, porque iria em seguida. Então
tomei o metropolitano e cheguei cerca de meio-dia. Subimos e arrombei a porta.
— Viste esta faca lá?
— Sim, senhor. Estava no chão, a uns 30cm de Jimmy.
— Disseste que desconfiavas que havia algo. O quê querias dizer com isso?
— Tinha a impressão que algo acontecera a Jimmy. Não uma coisa dessas,
naturalmente. Mas eu sabia que andava muito deprimido nos últimos tempos e que Robel
não contribuía pra o encorajar.

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— Quer dizer que tinham desavença?
— Não, senhor. É que os dois andavam abatidos. Robel estava assim havia muito
tempo. Era cunhado de Jimmy. Se casara com a irmã dele também anã, há cerca de cinco
anos, mas ela morreu cerca dum ano depois. Jimmy vivera com eles, e depois da morte
da irmã alugou com Robel um quarto na casa de senhor Pike.
— Como soubeste disso?
— Jimmy e eu nos dávamos muito bem. Era um bom rapaz, e parecia estar me
reconhecido por lhe ter dado o emprego. Precisávamos dum anão pruma cena oriental do
segundo ato, e as agências mandaram quinze. Senhor Gehring, o diretor, me disse que
escolhesse um porque ele estava muito ocupado. Então escolhi Jimmy, por ser o menor.
Quando nos familiarizamos um pouco, disse como estava satisfeito por eu dar o emprego.
Fazia quase um ano que não trabalhava. Não era pequeno o bastante pra ser anão de circo,
de modo que tinha de aceitar o que se oferecesse. De qualquer modo, ficamos amigos, e
costumava me falar sobre o cunhado e tudo o mais.
— Nunca deu a entender que houvesse animosidade entre si e o cunhado?
— Não, senhor. Não creio que tivera desinteligência com Robel. A falar verdade, pelo
que depreendi, Jimmy tinha muita atenção a ele, e certamente fazia o possível pra o
ajudar. Robel estava em situação muito pior que a de Jimmy. Fazia dois anos que Robel
não trabalhava, e a bem dizer era Jimmy que o sustentava. Ele me contou como Robel
ficara abatido quando teve o crescimento tardio.
— O quê?
— O crescimento tardio. Ouvi dizer que se verifica muitas vezes entre os anões, mas
foi Jimmy que me falou primeiro sobre isso. Em geral um anão conserva no resto da vida
a altura que alcançou com 14 ou 15 anos. Mas de vez em quando um recomeça a crescer
logo antes dos 30. Pode crescer uns 30cm ou até mais, num ou dois anos, e então pára
definitivamente. Mas é claro que depois disso já não parece muito anão.
Foi o que aconteceu a Robel, uns três anos atrás. Naturalmente, encontrou
dificuldade em conseguir trabalho. Foi um golpe terrível.
Pelo que me contava Jimmy e pelo que disse senhora Pike, suponho que vivia
falando sobre aquilo. Robel costumava vir duas vezes por semana a Nova Iorque
pra falar com seu agente mas nunca havia algo pra ele: Então voltava a cidade
Jérsia. A maior parte da semana vivia só, porque, depois que começamos a pôr
em cena o programa, Jimmy ficava em Nova Iorque cum primo, ou não sei quem,
que morava na cidade.
Ultimamente Robel deixou de vir a Nova Iorque. Mas todos os sábados na
noite Jimmy ia a cidade Jérsia e ficava com ele até a segunda-feira, procurando
o animar. Todos os domingos passeavam e iam ao cinema. Creio que Robel
notava mais a diferença de altura entre os dois quando caminhavam na rua. E
desconfio que é por isso que ambos estão mortos.
— O quê queres dizer?
— Como contei, Jimmy procurava consolar e animar Robel. Os dois viam que era
Jimmy que trabalhava pra se manterem, e que provavelmente havia de continuar a
trabalhar sempre que pudesse arranjar emprego, ao passo que Robel sempre seria grande
demais. Isso atormentava Robel.
E então, há três semanas, Jimmy pensou que estava perdido.
Eu estava parado na porta do fundo. Eram cerca de 7:30h quando vi Jimmy
se aproximar no corredor externo. Parecia desalentado, o que achei estranho,
porque sempre chegava brandindo a bengala com ar muito satisfeito.
Perguntei:
— Como estás te sentindo?, Jimmy.

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— Não me sinto muito bem, senhor Wineguard.
— O quê há?
Agora eu via que tinha mesmo acontecido algo consigo.
— Estou ficando assustado.
— Por quê?
— Estou começando a crescer outra vez.
Falava como quem dissesse que tinha alguma doença e morreria numa
semana. Parecia estar sentindo arrepio.
— Ora! Estás louco, Jimmy. Não estás crescendo.
— Estou. Já fiz 31 anos. É aquele crescimento tardio que meu cunhado tem.
Meu pai também teve, mas a gente dele era rica, de modo que isso não tinha
importância. Mas comigo é diferente. Preciso trabalhar.
Continuou a falar assim durante algum tempo. Procurei lhe tirar aquilo da
cabeça.
— Não te notei diferença. Que altura tinhas?
— 94cm.
— Venhas comigo ao depósito de acessório e te medirei.
— Não quero saber o quanto cresci.
E subiu ao camarim antes que eu pudesse discutir.
Passou o resto da semana em terrível abatimento. Quando apareceu, na outra
semana, estava quase branco.
Agarrei seu braço quando subia pra se caracterizar.
— Vamos. Deixes disso.
Pensei que tentaria escapar de mim. Mas não. Fez uma espécie de sorriso,
como se eu não compreendesse. Finalmente respondeu:
— Não adianta, senhor Wineguard.
— Estiveste com aquele teu cunhado?
Respondeu que sim.
— Pois bem. É por isso que estás assim. Ao que me contaste, fala tanto na
falta de sorte, que ficaste impressionado. Não vás o ver neste fim de semana.
Ficou ali parado um momento, sem dizer palavra. Depois disse:
— Não serviria. Vive sozinho lá e precisa de companhia. De qualquer forma,
parece que estou liquidado mesmo. Já cresci quase 5cm.
O olhei. Tinha um ar lamentável, mas afora isso eu não notava diferença.
— Te mediste?
— Não
— Então como sabes? Tuas roupa assentam bem, a não ser a calça, que, pra
falar verdade, parece um pouco mais comprida.
— É porque encompridei bastante meus suspensórios. Além disso, a calça
sempre me ficou um pouco grande.
— Verificaremos. Buscarei uma fita métrica. Assim teremos certeza.
Mas não quis. Decerto estava muito apavorado pra enfrentar a realidade.
Conseguiu me evitar toda aquela semana. Então, na noite de sábado
passado, quando saía do teatro, me encontrei consigo. Perguntei se se sentia
melhor.
— Estou me sentindo perfeitamente bem.
Na realidade, parecia morto de pavor.
Foi a última vez que o vi, até que fui a cidade Jérsia depois de senhora Pike
telefonar na terça-feira.

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— O guarda Gorlitz declarou que os cadáveres estavam em lados opostos do quarto
quando chegou. Estavam na mesma posição quando forçaste a porta?
— Sim, senhor.
— O médico-legista declarou que ambos morreram das feridas de faca, aparentemente
produzidas pela mesma arma. Achas que a faca tombou da mão de Dawle quando caiu?
— Sim, senhor.
— Sugeres que os dois homens foram levados ao desespero pelo temor de que Dawle
perdesse o emprego, e suicidaram?
— Não, senhor. Não é o que eu penso.
— Então o que queres dizer?
— Quando senhora Pike e eu entramos no quarto, e vi a faca, disse a senhora Pike que
era esquisito eles terem no quarto uma faca daquele tipo. Podes ver que é uma espécie de
cutelo. Então senhora Pike me disse que aquela faca desaparecera de sua cozinha algumas
semanas antes. Nunca pensou que um dos dois a tivesse tirado. Também me pareceu
esquisito que Robel ou Jimmy a furtasse. Então me pus a refletir no caso, e descobri o
que realmente aconteceu. Tens aí a pequena bengala quebrada que estava em cima da
cama?
— É esta?
— Sim, senhor. Pois bem. Nunca me convencera que Jimmy estivesse crescendo
realmente. De modo que quando senhora Pike me falou sobre o desaparecimento da faca,
comecei a conclusão. Calculo que, cerca de 5min antes que a faca entrasse em ação,
Jimmy deve a ter encontrado, provavelmente por acaso.
— Por quê?
— Robel ficara meio maluco, suponho. Roubara a faca e a escondia de Jimmy.
Quando Jimmy a descobriu, ficou pensando o que poderia ter feito Robel com ela.
Robel não quis dizer, e Jimmy descobriu por si. Ou então Robel confessou. De qualquer
forma, Jimmy olhou a bengala. Era a que sempre levava. E Jimmy viu que, quando não
estava olhando, Robel cortava pedacinhos da ponta da bengala!

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003, julho 1949
A verdadeira pedra de toque duma grande história é esta:
Quanto tempo permanece gravada em nossa memória?
Podemos esquecer os nomes das personagens da história,
onde a lemos, ou o título e o nome do autor. Tudo isso são
pormenores superficiais. Mas se anos e anos depois ainda
temos uma vívida recordação do primitivo impacto, se o
núcleo da história, o significado ou a sutil ressonância ainda
se conserva num escaninho de nosso espírito, a história possui
a qualidade da grandeza.
Galeria de delinqüente de MacKinlay Kantor, com toda
brevidade e simplicidade, é uma dessas histórias. Durante dez
anos o diretor desta revista conservou a recordação
imperecível do velho Winky Meyer e também esculpiu a última
crucifixão na areia úmida do arroio Raposa Vermelha. Não
cremos que o leitor a esqueça.

Galeria de delinqüente
MacKinlay Kantor

M ais uma vez Meyer crucificava Cristo. Assentara sua crucifixão na areia úmida
da margem do arroio Raposa Vermelha, a 50km de Chicago.
Se soubesse que aquela seria sua última obra de arte, a culminação patética
duma longa vida em que se misturavam inextricavelmente os sonhos, a escultura e o
uísque, não poderia pôr mais ternura e maestria na criação.
Meyer trabalhava bem, cum balde enferrujado e um saco de sal pra endurecer a
mistura, e pedaços de pau e escopros improvisados pra tirar angústia e beleza dum monte
de areia. Trabalhou do amanhecer às últimas horas da tarde.
Esculpia os querubins, figuras em tamanho natural, completas, com asas e êxtase,
quando o automóvel azul parou na beira da deserta estrada do areal, e os quatro homens
moços apearam com saco de golfe.
Talvez tivessem sangue nas mãos, porém Meyer não podia o ver. Viu apenas que os
homens tinham expressão dura e pareciam nervosos, que usavam camisa aberta, suéter e
calça de flanela como as usadas pelos jogadores de golfe do campo vizinho. Zuniram os
fechos metálicos dos luzentes sacos de couro e deles saíram feias pistolas de cano curto
e montes de dinheiro.
O dinheiro não interessava a Mayer. Continuou trabalhando, silencioso como uma
minhoca.
— Foi Borelli quem limpou aquele primeiro guichê. — Disse Augie Shertz.
— Eu, coisa nenhuma! — Borelli disse com voz lamuriosa. — Foi Pete.
Pete fez um sinal afirmativo.
— Está neste saco. Uns bons 20 pacotes.
Ergueram as pilhas de notas de banco: Algumas estavam reunidas em maços, outras
amarrotadas. Algumas eram de 20 dólares, outras de 100.
— É o cúmulo. — Rosnou Shertz a Borelli. — Com os diabos! Por que atiraste naquela
velha?
— Ela saiu correndo à porta.
— Nunca se arrisque a pegar cadeira elétrica se não for preciso. Algum dia ainda te
estreparás!
— Vamos! — Implorou Pete — A pena não é a mesma pra todos? Casey já liquidara
o caixa e aquele guarda do banco.

104
003, julho 1949
Sherz avaliava os despojos com seu olhar opaco e matreiro.
— Parece que tem uns 60 ou 70 pacotes. Mas não devíamos ter deixado a prata naquele
primeiro carro.
— A polícia se movimentará. — Borelli profetizou — E atrás de nós, também. Mesmo
tendo mudado três vezes de carro e posto roupa de golfe.
— Nos separaremos no campo de golfe. — Disse Shertz. — Cada um volta à cidade
separado. De quê estás te lamentando?, Borelli. Ninguém deixou cair o lenço da cara.
Usamos luva. Não tem onde nos pegarem.
Então Casey Wilchinski, de atalaia na entrada do velho areal, puxou a automática e
resmungou algo com o canto da boca. Os outros homens se viraram de revólver na mão
e viram Meyer. Viram também a crucifixão de da Vinci, modelada em tamanho natural
na areia batida de sol, com os querubins ainda inacabados que erguiam o rosto ao alto sob
o toque destro de ágeis dedos.
Os homens encostaram os canos de aço azul das pistolas na cabeça de Meyer.
— Ia ficar quietinho e depois nos entregar à polícia. Não é? Continuar cavando na
areia, pra depois nos denunciar.
— Pisaram em minha estátua!
— Despachai o homem, depois o atirai às moitas. — Sugeriu Casey.
Borelli disse:
— Calma! Temos que repartir o bolo. Levará tempo. Esperemos até irmos embora.
— Estudei em Roma, Paris, Milão. Em muitos lugares.
— Aé?! — Shertz deu um pontapé na perna da estátua deitada. A areia voou. — Quem
sabe se não estudaste também em Parque Ashbury,25 velho patife! Se não fosses idiota e
fizesses essa estátua de areia noutra parte, poderia viver mais.
Meyer explicou:
— A areia estava tão clara, tão brilhante, que resolvi fazer minha grande estátua da
crucifixão! Mas ninguém vem ver. Não me importo.
Seus ombros magros tremeram sob a camisa suja e esfarrapada.
— É um gira — disse Pete. — Olhem aquele letreiro que pregou ali: Neste casaco
ponhas uma moeda prum pobre artista. Mas não há alguém aqui pra pôr moeda no
casaco além de cobras e outros bichos.
Augie Shertz tornou a enfiar a pistola na cintura.
— Claro. É um maluco. Mesmo assim não poderá nos denunciar. Repartiremos o
dinheiro e depois.
Repartiram. Levou muito tempo mas eles vigiavam com atenção. Nenhum carro
deixou a sussurrante estrada principal, a 800m dali. Meyer, agachado em sua querida
areia, os observava e trabalhava. Tinha medo daqueles homens mas tinha ainda mais raiva
porque quebraram o pé de sua estátua e falaram sem respeito. Refez o pé da estátua e
modelou o coro de admiradores celestiais. Esperava que aqueles moços cruéis fossem
castigados por espezinhar a obra em que trabalhara com afã e que sabia ser bela.
Depois de contarem e dividirem o dinheiro (pois não confiavam uns nos outros pra
consentir em que um o levasse a Chicago), os quatro homens abandonaram o automóvel
roubado, atravessaram a pé as moitas e bosques solitários e se misturaram com os grupos
de esportistas que voltavam à cidade depois de passar uma tarde agradável no campo de
golfe de Raposa Vermelha.
Mataram Meyer antes de ir. O fizeram rapidamente, mas ele tivera tempo de completar
a tarefa.

25
Parque Ashbury (Asbury Park) é uma cidade localizada no estado ianque de Nova Jérsia, no condado de Monmouth. Nota do
digitalizador

105
003, julho 1949
Era cerca de 1h da madrugada quando três esquadrões de policiais se lançaram sobre
o festivo grupo reunido no restaurante Chez Vienna e prenderam Casey Wilchinski, Augie
Shertz e Pete Skolnit. Também prenderiam Nique Borelli, mas ele perdera a cabeça e
levara a mão à pistola quando alguém lhe pusera diante dos olhos um distintivo cintilante.
Borelli recebera três balas no corpo antes de cair ao chão.
Os sobreviventes uivaram e gaguejaram enquanto eram arrastados aos carros da
polícia. Gritavam:
— Nada fizemos. Nada tendes contra nós. Daqui a uma hora terão de nos soltar.
— Houve um assalto a um banco na avenida Miluauque ontem no meio-dia. — Disse
o grisalho sargento Kahn. — Três pessoas mortas.
Berraram no meio do som das sirenes:
— Não podeis nos acusar disso! Não arranjarão prova contra nós! Temos um álibi!
— Um velho vagabundo foi assassinado ontem na tarde. — Disse sargento Kahn. —
Alguns caminhantes o encontraram com a cabeça quebrada, perto do arroio Raposa
Vermelha, no campo. Era um pobre-diabo meio maluco. Se chamava Winky Meyer. E
embaixo da ponte, perto do lugar onde Meyer foi morto, encontraram tiras de papel das
usadas pra amarrar maço de nota no banco da avenida Miluauque.
O sargento continuou em voz calma:
— Ouvis isto!, patifes. Havia muitos anos que o velho Winky Meyer fazia crucifixão.
Esculpia muito bem, até os artistas diziam. E sempre fazia querubins, quatro querubins.
Nessa vez, quando os detetives viram os querubins, não pareciam anjos do céu. Eram
parecidos contigo, Augie e convosco, Augie e Pete, e com Borelli. Eram vossas caras que
o velho esculpira na areia antes de morrer.

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003, julho 1949
Retrato literário de Georges Simenon: Nascido em Liege,
Bélgica. Repórter da Gazette de Liège com 16 anos de
idade. Publicou sua primeira novela, Au pont des arches, com
17. Se casou com 20 e transferiu residência a Paris. Nos dez
anos seguintes, entre as idades de 20 e 30 anos, publicou
nada menos de 200 novelas populares, sob 16
pseudônimos! Imaginai: 20 novelas por ano durante uma
década inteira! E dizem que Edgar Wallace era prolífico!
Nenhum escritor inglês ou ianque, do passado ou do
presente, chega aos pés ele Georges Simenon quanto a
fecundidade! Na verdade, essas cinzentas obras não eram
novelas policiais. Seu primeiro livro no gênero foi publicado
depois da aprendizagem (a chamemos assim) de 20 novelas.
Mas tendo começado a invasão da costa da Criminolândia,
Georges Simenon começou a produzir novelas policiais sobre
inspetor Maigret à incrível proporção de 1 por mês! Não se
sabe o que fazia nas horas vagas. Embora alguns de seus
livros mostrem a inevitável chamuscadura da propulsão a jato,
o grosso de sua obra detetivesca publicada é da melhor
qualidade. É um mestre na fixação de estados de espírito,
como o seguinte episódio da carreira do detetive G-7 prova
claramente.

Morte na aldeia
Georges Simenon

N uma noite o telefone chamou cerca das 11h. Resolvemos tomar o trem que partia
uma hora depois. Eis o resumo dos fatos que levaram G-7 a tão repentina decisão:
Naquele dia, às 4h da tarde, os habitantes de Tracy, pequena aldeia litorânea
do Loira, viram o corpo duma moça na superfície da água, arrastado rio abaixo pela
corrente.
O pescaram numa barca. Embora não mostrasse sinais de vida, um trabalhador das
vinhas foi a Pouilly pra buscar um médico, que trabalhou duas horas tentando a reanimar
por meio da respiração artificial.
A moça não voltou à vida. Ninguém a conhecia. O prefeito estava ausente. A guarda
rural não estava na proximidade. Não havia polícia. O cabo de polícia de Pouilly percorria
a região mas não chegaria antes do dia seguinte.
O guarda-chave da ferrovia tinha um pequeno telheiro atrás de sua casa. Puseram o
cadáver ali. No anoitecer a multidão se dispersou.
Cerca de 10h da noite o guarda-chave saiu de casa pra dar sinal a um trem de carga.
Passando no telheiro onde deixaram o cadáver, ficou surpreendido ao notar que a porta,
que fechara, estava entreaberta.
Assustado, foi procurar o corpo da mulher. Se aproximaram cuma lanterna, espiaram
na abertura.
O cadáver desaparecera! Nada havia no telheiro!
Chegamos à localidade cerca de 6h da manhã. Da estação pudemos ver o telheiro e os
camponeses que se aglomeravam excitadamente ao redor.
A aldeia de Tracy fica na margem direita do Loira, num ponto em que o rio se alarga
e aparece semeado de grandes ilhas de areia. Diante da aldeia se vê o castelo de Sancerre.

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003, julho 1949
Mas é preciso fazer um grande rodeio pra chegar à ponte pênsil, de modo que Tracy fica
relativamente isolada.
Os homens que vimos ali eram quase todos trabalhadores das vinhas. Alguns, alertados
pelo guarda-chave, passaram a noite de atalaia na estrada, esperando a polícia.
A polícia de Pouilly chegara pouco antes de nós e ficou ocupada numa inquirição geral,
que dava resultado confuso.
Um fato era certo: Depois de duas horas de respiração artificial a moça não mostrara
sinal de vida. Então o médico assinara o atestado de óbito sem hesitar.
Mas um velho barqueiro perturbara o espírito de seus ouvintes relatando um curioso
acontecimento que presenciara muitos anos atrás: A filha dum barqueiro do rio caíra na
água durante a ausência do pai e só fora resgatada uma hora depois. Dóis médicos a deram
por morta. O pai voltara, se atirara ao corpo da menina e a submetera a movimentos
rítmicos durante dez horas a fio. Enfim a menina tornara à vida pouco a pouco.
Seria impossível descrever o efeito dessa narrativa. Subitamente os camponeses
começaram a tremer, e o guarda-chave afastou temerosamente os olhos do telheiro.
G-7 não vira motivo pra revelar sua posição oficial. Estávamos ali como simples
espectadores curiosos, pra ver e ouvir tudo. Embora fosse agosto e não chovera nas
últimas duas semanas, alguns presentes teimavam em procurar pegada na terra endurecida
da estrada.
O cabo de polícia não sabia o quê fazer. Continuava anotando tudo o que lhe quisessem
contar e enegrecera página após página de seu canhenho.
Cerca de 10h da manhã surgiu o primeiro incidente imprevisto. Um carro chegou de
Loges, outra aldeia muito parecida com Tracy, localizada 4km acima. Uma mulher
robusta desceu em grande aflição.
A mulher gritava. Chorava. Gemia. Um velho camponês a seguia em silêncio.
— Era minha filha. Não era?
Alguém começou a descrever a moça afogada e a roupa que usava. Os presentes
começaram a discutir. Não podiam chegar a acordo sobre a cor do cabelo da moça. Mas
não havia dúvida: A jovem afogada era Angélica Bourriau, cujos pais acabavam de chegar
de Loges.
O pai ficara tão acabrunhado pela descoberta que não podia dizer palavra. Olhava
estupidamente em torno de si. Mas a mãe falava por duas, com sua voz aguda e volúvel:
— Isso é coisa daquele Gastão, com a certeza.
Os outros começaram à escutar. Souberam que Angélica, que tinha 19 anos, se
apaixonara por um funcionário da coletoria de São-Satur, um rapaz sem vintém e que não
fizera o serviço militar.
Naturalmente os Bourriau se opunham ao casamento. Estavam de olho noutro
pretendente, um sólido camponês, trabalhador das vinhas de Pouilly.
O casamento se realizaria dois meses depois.
G-7 e eu fomos os primeiros a chegar a São-Satur, deixando a polícia, os pais e os
espectadores ainda agrupados em torno do telheiro vazio.
Eram 11h quando entramos à coletoria. O funcionário que nos atendeu no guichê era
o próprio Gastão Verdurier, pra darmos seu nome em extenso.
Era um jovem de 20 anos, alto, de olhos febris e lábios que tremiam mesmo à mínima
emoção.
— Faças o favor sair um momento.
— Mas. — e Verdurier apontou o relógio, mostrando que ainda faltava muito ao meio-
dia.
— Preferes conversar aqui? É sobre Angélica.
O jovem pegou apressadamente o chapéu e nos acompanhou à rua.

108
003, julho 1949
— Que horas eram quando a deixaste ontem na tarde?
— Mas… O quê queres dizer com isso? Não a vi.
— A amavas?
— Sim.
— E ela te amava?
— Sim.
— Não queria que ela pertencesse a outro. Não é?
— Não é verdade!
— O quê? O quê não é verdade?
— Não a matei!
— Mas sabias algo sobre isso?
— Não. Sim. Foi encontrada. Não foi?
— Sim. E nalguns minutos a polícia estará aqui.
— Quem és?
— Não importa. O quê sabes? Por que insististes que não a mataste, antes de eu dizer
pra quê vinhas?
— Porque eu sabia que Angélica nunca aceitaria aquele casamento. Sempre dizia a
mim que preferia morrer.
— E tu?
Atravessávamos a ponte pênsil. Ao longe se viam os telhados vermelhos de Tracy.
— Eu? Estava ficando louco.
— Trabalhaste ontem de tarde? Não tenhas o trabalho de mentir. Posso perguntar a teu
chefe.
— Não. Pedi licença pra sair.
— E viste Angélica.
— Sim. Perto de Loges saímos pra caminhar.
— Quando a deixaste estava viva?
— Sim!
— E não viste alguém escondido ali? Grosjean, por exemplo. É esse o nome do homem
com quem se casaria. Não é?
— Não o vi.
O rapaz ofegava de angústia, com o rosto banhado em suor e os lábios brancos.
— Iremos a ver?
— Sim.
— Ó! Iremos a…
Se conteve.
— Então? Não tens coragem de ir até o fim?
— Tenho! Eu… Mas deves compreender.
Subitamente prorrompeu em soluço.
G-7 deixou que chorasse. Nada mais lhe disse até chegarmos à casa do guarda-chave,
onde a multidão se apartou pra dar passagem a Gastão Verdurier.
O jovem escondeu o rosto nas mãos. Perguntou:
— Onde está ela?
Mas já a mãe da moça o apostrofava com veemência. A cena começava a se tornar
caótica, ao mesmo tempo grotesca e trágica.
O cabo de polícia interveio. Disse, agarrando o pulso do jovem:
— Responderá por isso em Pouilly!
Verdurier estava louco de dor. Creio que nunca vi um rosto humano tão atormentado.
Seus olhos procuraram os nossos, como se confiasse em nossa intervenção pra o libertar.

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— Não a matei! Juro! — Gritou, enquanto o empurravam a dentro dum carro, a fim de
o levar à cidade.
E quando o carro já estava a 100m de distância, ainda se podiam ouvir o soluço.
Tudo isso acontecera tão rapidamente e em atmosfera tão curiosa, que eu nem tentara
formar opinião sobre o caso.
Podiam ter mostrado a mim a moça ressuscitada e eu não me surpreenderia. Podiam
dizer que o noivo oficial a matara e eu nem franziria a testa.
Era um magnífico dia de sol. A casinha branca do guarda-chave cintilava.
O povo não se decidia a ir embora. A confusão dos pais, que não faziam idéia donde
estaria o cadáver da filha, tinha algo de intensamente dramático, apesar dos aspectos
burlescos da situação.
G-7 ainda não se apresentara oficialmente. Olhava em torno de si e escutava.
— Muito bem. — Disse repentinamente ao velho barqueiro que contara a história da
menina ressuscitada. — Estava em Saint-Satur ontem na noite?
— Sim. Moro lá.
— E não foste ao café?
— Entrei pra tomar um trago. Mas por quê queres saber?
— Contaste tua história lá?
— Qual história?
G-7 parecia ter ouvido o suficiente. Virou as costas com indiferença e sinalizou pra eu
o seguir.
— Não há pressa. Parte um trem a Pouilly às 2h. Enquanto isso almoçaremos na
estalagem e provaremos o vinho branco local.
— Mas…
— Mas o quê? — Perguntou, em tom muito natural, como se tivéssemos vindo apenas
pra respirar o ar do campo e conhecer os produtos locais.
Percebi, portanto, que ele acabava de encontrar a solução do caso.
Duas horas depois, estávamos sentados em frente a Gastão. O jovem, de cabeça caída
e olhar esquivo, se defendia obstinadamente contra as acusações do capitão de polícia.
Tinha lágrima nos olhos. O rosto estava pintalgado de pontos purpurinos. As unhas
estavam roídas até o vivo.
— Não fui eu! Não é verdade! — Soluçava, com misto de humildade e raiva. — Não
matei.
— Não. — A voz de G-7 estava calma — Nem te mataste.
Não pude compreender aquela frase. Mas Gastão Verdurier teve um sobressalto e
encarou fixamente o amigo, com uma cintilação de loucura nos olhos.
— Como… Como sabes?
Havia um sorriso amargo nos lábios de G-7, um sorriso terrivelmente humano.
— Não tive mais que olhar a ti pra compreender. Compreendi que no último momento
não terias coragem. O último beijo, o último abraço, a resolução de morrerem pra não
renunciarem um ao outro! Angélica se atirou ao rio. E então tu, caindo em ti
repentinamente, vendo o corpo descer levado pela correnteza, recuando e ficando ali
parado, imóvel, com medo glacial no coração.
— Te cales!
— Na noite, em Saint-Satur, entraste num café. Precisas beber algo pra te acalmar. Lá
está um homem contando uma história horrível. Em Tracy resgataram uma moça no rio.
A julgaram morta. Mas tem suas idéias. Presenciou antigamente um caso parecido.
Escutas. Tremes dos pés à cabeça. Talvez imaginas Angélica enterrada viva. Correste à
rua. Foste a Tracy. Roubaste o corpo e o levaste ao bosque. Tentaste a reanimar! Ao
menos é o que desejo crer. É melhor assim. Não é? Roubaste o corpo pra te reabilitar.

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Não foi? Não pode ter sido pra teres certeza que Angélica estava realmente morta, que
não voltaria e lançaria em teu rosto tua covardia?
O rapaz soltou um grito de horror.
— Mas Angélica estava bem morta. — Prosseguiu G-7 — Definitivamente morta.
Baixou a voz.
— Muito bem. Digas onde a deixaste.
Lá fora, cinco minutos depois, G-7 respirou fundo e suspirou.
— Não sei por quê, mas eu preferiria ter tido em mãos um bom crime.
Como eu, sem dúvida sentia opressão no peito ao ver dois policiais acompanhar ao
bosque o jovem apaixonado de 20 anos.

Oscar Kung Júnior entrou no quarto, matou doutor Kiroshibu com o revólver do pai, tirou da
urna os pacotes de entorpecente, pôs o cadáver em cima da cama, se meteu na cama embaixo
do cadáver e, quando nos retiramos, deixando o caminho desimpedido, escapuliu da cabine.
Mas por quê o jovem Oscar se meteu na cama embaixo do cadáver? Tendo matado o japonês e tirado
os pacotes de entorpecente, por quê não fez a coisa muito natural, que seria se retirar imediatamente? Pra
quê se meter no leito e esperar que o pai descobrisse o crime e chamasse os investigadores ao local? Pra
quê esse tremendo risco? O jovem Oscar podia escapar em seguida e voltar à cabine do pai. Depois Oscar,
com perfeita segurança pro filho, poderia dar o alarme.
Com esforços conjugados, Oscar e Oscar Júnior (e, sim, também o jovem James Yaffe!) se afastaram
do estreito caminho da credibilidade, simplesmente pra proporcionar a Paulo Dawn outro crime impossível.
Um defeito fundamental que, agora que foi apontado pelo diretor desta revista, James Yaffe nunca
incorrerá. Mas a verdade é que ficamos estimando mais ainda nosso menino-escritor por sua juvenil e
desculpável falibilidade. Isso mostra como é um escritor natural, humano. E constitui um excelente augúrio
pra seu futuro de autor de conto policial.

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003, julho 1949
Durante vários anos os próprios
editores de Ellery Queen
julgavam se tratar duma só
pessoa. O assunto se complicou
quando surgiu um novo autor,
Barnaby Roos, que começou a
escrever romances policiais
contra a técnica de Ellery Queen.
Os leitores esperavam,
ansiosamente, um e outro livro
dos contestantes. Oito romances
foram escritos nessa batalha. Resultado: Barnaby Roos era o próprio Ellery Queen: E
Ellery Queen, por sua vez, não era ele, era Frederic Dannay e Manfred B. Lee. Só
recentemente se divulgou a trama.
Ao escolherem o romance policial entre os demais
generos literários, Frederic Dannay e Manfred B.
Lee, ou seja Ellery Queen, sabiam que, ao contrário
do que ainda pensam alguns críticos menos
avisados, o género não é fácil. Grandes talentos, e
até gênios da literatura universal, o cultivaram. Mas
Ellery Queen escreveu, publicou e venceu.

O romance policial é uma invenção recente. Não tem


antecedente literário aquém do século 19. Édipo rei, de
Sófocles, escrito no ano -415, caberia perfeitamente dentro do
género se o leitor não conhecesse de antemão o enredo.26
Tanto melhor pro género se essa peça de Sófocles é uma das
mais importantes em toda a literatura mundial, a ponto de
influir, poderosamente, na nomenclatura e técnica da ciência
psicológica moderna.

Edgar Allan Poe, o gênio isolado da literatura ianque, foi quem


estabeleceu as bases definitivas do romance policial
quando, em 1841, escreveu Os Assassínios da rua
Morgue. Esse livro apresentou os seis elementos básicos
do género: 1 ● O crime aparentemente perfeito. 2 ● O
suspeito erroneamente indicado pelas provas
circunstanciais. 3 ● A ação desnorteada da polícia. 4 ● O
espírito ágil e a observação penetrante do detective, cujo
talento é anunciado por maneiras e hábitos excêntricos. 5
● O admirador pouco sagaz que conta a história. 6 ● O
axioma de que a prova superficialmente convincente é
sempre sem importância.

26
Há A história de Rampsinitos, um enredo dedetivesco no antigo Egito, relatado por Heródoto em História e incluída na coletânea
Mar de histórias (em 10 volumes). Nota do digitalizador

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Conan Doyle, a partir de 1887, aprofundou e
humanizou a tradição do gênero, enriqueceu o
esquema básico e introduziu outro elemento
importante na fórmula: A tecnologia. Foi seu
Sherlock Holmes quem popularizou os valores
mais abstratos da química, da física e,
principalmente, da psicologia objetiva. É curioso
observar que o romance policial é, na literatura, um
fenômeno quase inteiramente anglo-ianque. Afora
os franceses Gaboriau, Gaston Leroux e Maurice
Leblanc (o criador de Arsène Lupin) e o belga
Georges Simenon, são raríssimos os autores de
primeira categoria que não escrevem em inglês.

As duas principais linhas em que o


romance se desenvolveu também
provêm de Poe. Uma, a sensacional,
vai acumulando sensação sobre
sensação até o último capítulo tudo
explicar. Outra, a puramente
intelectual, apresenta quase toda a ação
ou primeiro capítulo e, nos demais,
mostra o detective seguindo pista sobre
pista até a lógica dedução final, A primeira linha é, dum mudo geral, característica dos
romances policiais ianques. A segunda, dos ingleses.

Provando a nobreza desse gênero de literatura, que inclui os


contos de mistério, temos grandes escritores que, entre uma
e outra obra-prima, se dedicaram ao conto detetivesco. É o
caso de Maupassant, Dickens, Chesterton e do próprio Poe.
Maupassant com O Horla, Chesterton criando padre
Brown, Dickens escrevendo O mistério de Edwin Drood,
livro incompleto, pois o autor de Grandes esperanças
morreu quando escrevia o último capítulo, de sorte que até
agora já apareceram cinco ou seis soluções ao mistério,
além de farta literatura sobre o assunto.

Mistério magazine, apresentando as histórias policiais e de


mistério que amanhã serão clássicas, espera encontrar, em
língua portuguesa, um número crescente de leitores e tem, desde
já, todos os elementos necessários pra manter esse interesse
despertado.

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