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Primeiro

Uma missão de extermínio

A porta da grande sala de conferências fechou-se às suas


costas e a mais sensacional espiã de todos os tempos olhou
a vasta mesa curva que havia ao fundo. Como sempre, os
sete homens que compunham o Conselho Diretivo de Ação
estavam de costas para a luz, de modo que seus rostos
mantinham-se na sombra. Precaução inútil, por dois
motivos: Primeiro: jamais deviam temer uma traição, nem
sequer a menor indiscrição por parte da agente convocada
à assembleia extraordinária. Segundo: esta agente via seus
rostos como se estivessem expostos à luz: sua vista era
demasiado boa.
Assim, sorrindo ante as precauções de que se rodeavam
aqueles sete, adiantou-se, até ficar defrontando a vasta
mesa curva.
— Boa-noite, senhores — saudou amavelmente.
O homem do centro respondeu por todos: — Boa-noite,
agente Baby. Como sempre, seja bem-vinda à nossa
Central. Esperamos que tenha feito boa viagem.
— Fiz. Muito obrigada.
— Excelente. Bem, como sabemos que os circunlóquios
são dispensáveis, em se tratando de sua pessoa,
passaremos diretamente ao assunto. Este Conselho se
reúne por instâncias de seu chefe direto, Mr. Cavanagh, o
qual afirmou que você faria objeções à missão de que
vamos tratar, se dela ele a incumbisse pessoalmente. Como
o assunto é de certa urgência, vamos poupar ao nosso
chefe do Grupo de Ação a tarda sempre fastidiosa de trazer-
nos recados seus e levar-lhe recados nossos. Assim sendo,
esta vez você receberá instruções e ordens diretamente
deste Conselho.
— É uma grande honra — sorriu Brigitte Montfort.
— Agente Baby, à sua frente, sobre a borda desta mesa,
está um envelope. Abra-o e veja o que contém.
Acendeu-se um pequeno refletor, cuja luz iluminou o
envelope. Ela o tomou, dele extraindo meia dúzia de fotos.
Em meio a um profundo silêncio, começou a passá-la
lentamente.
Em cada uma das seis havia três homens. E, embora
tivessem sido feitas à noite, com câmara especial para luz
negra e a uma boa distancia, a teleobjetiva funcionara às
maravilhas, conseguindo impressões de perfeita nitidez.
— Trabalho de um profissional da espionagem, claro —
murmurou Brigitte.
— Conhece algum dos três homens que aparecem nas
fotografias?
— Não.
— Tem certeza? Talvez não as tenha olhado com
suficiente atenção.
— Olhei-as. E minha vista é boa. Não conheço nenhum
dos três. Entretanto, para não lhes parecer presunçosa,
tornarei a examiná-las.
Olhou mais atentamente. Eram sempre os mesmos três
homens. E sempre reunidos em lugares discretos, na atitude
de quem conversa sabre assunto importante. Não menos
evidente era estarem receosos. Apareciam entre arbustos,
junto a um carro em zona escura de um parque, num cais
abarrotado de fardos... A única conclusão que ela pôde tirar
foi que o fotógrafo era um profissional. Um homem
profissional, sem nenhuma dúvida.
Dos três indivíduos, um chamava mais atenção: era alto,
largo de ombros, feições corretas, de indiscutível beleza
varonil. Os outros dois, mais baixos, morenos, de olhos
escuros, não pareciam ter nem a décima parte da
personalidade do primeiro.
— Não os conheço — repetiu.
— Bem, dos mais baixos, o que tem a testa mais estreita
é completamente desconhecido. Mas o outro, o do nariz
grande, está identificado em nossos arquivos como
Santiago Cazorla, de nacionalidade ignorada, mas de
atividades sobre as quais não resta nenhuma dúvida: é um
espião.
— Sabemos para quem trabalha o narigudo Santiago
Cazorla?
— Não. Há dois anos estivemos a ponto de caçá-lo, em
Miami, mas conseguiu escapar. Não mais tivemos notícias
dele, até que nos chegaram essas fotos. Entretanto, está
claro que não renunciou à espionagem. É uma lástima
ignorarmos para que país trabalha, mas temos esperança
de logo esclarecer este ponto.
— Devo investigar eu mesma?
— Sim.
— Insisto em que não quero parecer presunçosa, mas
pergunto se vale a pena me mobilizar para a obtenção de
resultado tão insignificante.
— Não é insignificante, agente Baby. Sabe quem é o
terceiro homem das fotos, o mais alto e de melhor
aparência?
— Eu já disse que não.
— É o nosso cônsul em Cayomar. O consulado está,
naturalmente, na capital dessa pequena nação amiga,
situada na América do Sul: Ciudad del Mar. Ele se chama
Edmond Wilshire e há cinco meses lá está, desde que
Robert A. Glendale, o cônsul anterior, aposentou-se. Wilshire
tem cerca de quarenta anos, está fazendo uma boa carreira
consular, fala o espanhol com absoluta perfeição, é homem
muito viajado e reúne todos os requisitos para conservar e
incrementar as boas relações existentes entre os Estados
Unidos e aquele país.
O presidente do Conselho deixou de falar e o silêncio
prolongou-se de maneira um tanto incômoda, até que
Brigitte perguntou: — E então?
— Estávamos esperando que você tirasse conclusões
baseadas em nossa explicação. Tirou-as?
— As evidentes, sim. Parece que nosso cônsul Edmond
Wilshire tem relações com dois homens, um dos quais
sabemos que é um espião inimigo dos Estados Unidos. Sem
dúvida, o outro sujeito, o da testa estreita, é também
espião.
Somando tudo isto, podemos começar a suspeitar que o
belo Edmond esteja traindo seu consulado e sua pátria.
— Suspeitar? Ora, vamos... Não acha que está sendo
demasiado benevolente?
— É possível. Mas há um bom sistema para conhecer a
verdade: fazê-lo vir a Washington. E que ele nos explique
suas reações com esses homens. Uma vez obtida tal
explicação, só nos restaria agir em consequência.
As cabeças daqueles homens se moveram, aproximando-
se umas de outras. Estavam trocando olhares. Por fim, todas
tomaram a virar-se para frente, defrontando a mais hábil
espiã internacional de todos os tempos.
— Bem. Parece que nosso Mr. Cavanagh tinha razão ao
prever a sua maneira de agir, agente Baby. Vou lhe dizer
como este Conselho vê a situação: evidentemente, Edmond
Wilshire é um traidor. Não sabemos o que esteja tramando
com Santiago Cazorla e o outro, mas, por pouco que se
pense, é fácil compreender que não será em benefício dos
Estados Unidos. Claro que o podemos fazer vir a Washington
e submetê-lo a um interrogatório, mas isso não convém de
modo algum.
— Por quê?
— Razões de ordem diplomática. Até o presente, nossas
relações com Cayomar têm sido muito boas e interessa-nos
que continuem assim, já que é um ponto-chave na América
do Sul. Se o retirarmos agora, é possível que isso suscite
comentamos e conjeturas mais ou menos acertadas. Ele
está lá faz pouco tempo. Que explicação daríamos para
retirá-lo, no pressuposto de que em Cayomar não se
inteirassem da verdade, ou de parte dela pelo menos? A
mera possibilidade de que se chegue a pensar que talvez
um cônsul americano se tenha vendido a espiões inimigos
nos prejudicaria diplomaticamente. Sabemos muito bem
que a China, a Inglaterra e a Rússia dispõem naquele país
de agentes que tirariam partido do assunto. Cayomar é
muito interessante e de maneira alguma podemos permitir-
nos perder o primeiro posto em sua amizade. Portanto, nada
de interrogar Edmond Wilshire. Claro que isso poderia ser
feito com o máximo de sigilo, mas você sabe melhor que
ninguém como um bom espião é capaz de descobrir
qualquer segredo.
— Sei; Mas não temos certeza de que Wilshire seja um
traidor; assim...
— Imagine que não o seja. Se o trouxermos a
Washington, cabe a possibilidade de que os agentes russos
aqui radicados cheguem a vislumbrar alguma coisa. Mas
levemos tudo ainda mais longe... Suponhamos que
consigamos o completo sigilo nas conversações e
interrogatórios. Mas, se suspeitamos de que o nosso cônsul
está cometendo traição, seria necessário adotar certas
medidas adequadas ao caso, não é verdade? E isso seria
impossível, dada a necessidade de absoluto segredo. Seja
como for que se encare a questão, não interessa dar o
menor passo capaz de orientar agentes inimigos no sentido
de uma traição de Edmond Wilshire. E muito menos
interessa que em Cayomar pudessem surgir suspeitas
quanto a semelhante coisa. Lá não gostariam de saber, ou
suspeitar apenas, que o cônsul americano é um traidor. Um
caso de tal natureza poria em sério perigo nossa amizade
com aquela nação. Compreende?
— Claro. Mas algo terá que ser feito, sem que os
cayomarenses venham a saber.
— Pelo contrário: queremos que eles saibam.
— Não compreendo... Que saibam o quê?
— O que acontecer.
— E que vai acontecer?
— Pensamos em algo que consolidaria a amizade entre
os Estados Unidos e Cayomar e que, ao mesmo tempo,
predisporia Cayomar contra a Inglaterra, a Rússia e a China.
Não teríamos que dar nenhuma explicação, nem fazer nada,
e ainda assim, obteríamos a simpatia de todos os
cayomarenses.
— Meus parabéns, senhores. Parece ser muito boa a
solução que encontraram. Qual é?
— Mmm... Digamos que Edmond Wilshire será...
eliminado por um agente inimigo dos Estados Unidos e de
Cayomar. Um louco, um fanático...
— E acontecerá isso?
— Sim.
— Como sabem que um agente inimigo fará semelhante
coisa?
— Bem, temos a mais absoluta certeza, pois confiamos
implicitamente nesse... “agente inimigo”.
— Já estava desconfiada... — murmurou Brigitte. — Os
senhores querem que eu vá a Cayomar e assassine Edmond
Wilshire, organizando as coisas de tal modo, que se possa
pensar ter sido obra de alguém inimigo dos Estados Unidos.
— Exato.
— E então ganhamos as simpatias de todos, mandamos
para lá outro cônsul e... não aconteceu nada. Nada que
pudesse pôr em perigo nossa estabilidade diplomática,
entende-se.
— Assim é. Podemos contar com você?
— Não sei.
— Não sabe? Ora, vamos... Conhecemos muito bem sua
ojeriza pelos traidores, Baby.
— Com efeito. Mas não me consta que Edmond Wilshire o
seja.
— Não lhe consta? Por Deus, que mais quer? Pensa acaso
que ele se fez fotografar com agentes inimigos para divertir-
se à nossa custa?
— Não é isso. Quem lhes forneceu estas fotos?
— Ignoramos. Chegaram à Central, eis tudo. Num
envelope enviado de Cayomar.
Brigitte olhou o presidente do Conselho muito atenta.
— Como? Não sabem quem obteve estas fotos e com
elas condenam Edmond Wilshire à morte?
— É evidente que, seja quem for que as tirou, Wilshire
não se ia prestar ao jogo de parecer traidor, pois o fato que
essas fotografias revelam é inegável: ele tem tratado com
agentes inimigos.
— É muito possível que ele possa proporcionar-nos outra
explicação, senhores.
— Acredita realmente no que está dizendo, Baby?
— Bom...
— Você se deixaria fotografar em situações tão
comprometedoras? Creio que não. Ouça, não nos interessa
o que Wilshire esteja tramando, não queremos saber nada...
A única coisa que nos interessa é evitar esse desprestígio
diplomático. Assim, vamos resolver o assunto: eliminaremos
o traidor e, ao mesmo tempo, obteremos as vantagens
disso. A conferência terminou.
Os sete homens levantaram-se, mais que por cortesia,
para indicar a Brigitte que podia retirar-se. A decisão estava
tomada. Já não eram necessárias mais palavras.
— Não aceitei ainda esta missão — disse ela, um tanto
secamente.
— Agente Baby, está claro que nós a conhecemos muito
bem, de modo que vamos evitar a todos nós a desagradável
situação de discutir com você. Para tal efeito, a questão lhe
será apresentada de outra maneira, claríssima, a nosso
entender: se não quer cumprir esta missão, enviaremos
outro agente. Fique bem entendido que em casos que se
revestem dessa delicadeza e habilidade, sempre preferimos
utilizar nosso melhor... elemento.
— Agora sou um elemento?
— Se amanhã às dez não tiver partido de avião para
Cayomar, entenderemos que renuncia à missão. Boa-noite.
Brigitte Montfort assentiu com a cabeça.
— Boa-noite, senhores.
E abandonou a grande sala.

— Como foi de reunião? — perguntou Cavanagh, sorrindo de


um modo estranho, olhar perscrutador.

Baby terminou de acender o cigarro, cruzou as


magníficas pernas e acomodou-se melhor na poltrona.
— Não houve discussão: foram corteses, mas muito
firmes.
— Compreendo. É um assunto feio, sem dúvida. Bem, já
tenho sua passagem e já foram expedidas as ordens para
que em Cayomar tenham sempre um helicóptero e três
lanchas à sua disposição. É um país composto de muitas
ilhas, de modo que, praticamente, não vai necessitar de
carro. Em principio, os Johnnies de lá ignoram sua presença
nas ilhas; portanto, dependerá de você que venham a saber
disso ou não. Naturalmente conhece a frequência adotada
para comunicações radiofônicas locais. A respeito de sua
bagagem, não creio que valha a pena regressar a Nova
Iorque para buscá-la: pode adquirir o que quiser em
Cayomar, claro que por conta da CIA. E como já tem aqui
sua célebre maleta, podemos considerar que não precisa de
mais nada. Gostará de Cayomar: é um país idílico, com
muitas praias, palmeiras, sol todo o ano. Ah: o cônsul
Edmond Wilshire oferecerá um garden party dentro de três
dias; quer dizer, no dia seguinte à sua chegada. Precisa de
dinheiro em espécie agora, ou de qualquer outra coisa, seja
o que for?
Brigitte, que a princípio tinha parecido assombradíssima,
pôs-se a rir.
— O senhor é fantástico, chefe! Ainda não disse que
aceito ir a Cayomar em tão desagradável missão.
— Entre as pessoas que a conhecem bem, querida, eu
ocupo um posto de destaque — sorriu Cavanagh. — Estou
certo de que não vai permitir a ida de um de nossos
exterminadores a Cayomar para resolver um assunto ao
qual você, talvez, possa dar um curso inesperado. Ou, pelo
menos, uma solução elegante. Que Wilshire morra ou não, é
o de menos, mas sei que você não deixará as coisas assim,
de modo que lhe digo apenas: boa viagem.
— Obrigada — sorriu Baby. — Espero que esse garden
party seja bastante divertido...

Ao natural, Edmond Wilshire era ainda muito mais agradável


que em fotografias. Elegante, sério, sóbrio, seus olhos
inteligentes moviam-se como num contínuo desejo de ver
tudo quanto ocorresse a seu redor. Impecável em seu traje
claro e sua alegre gravata, bem barbeado, os cabelos louros
bem penteados, não podia produzir melhor impressão. Sem
a menor dúvida, sua eficiência diplomática estava muito
bem respaldada por uma figura capaz de conquistar a
simpatia de quantos dele se aproximassem.

Tinha uma voz clara e bem timbrada. Ao sorrir, surgia em


seus olhos uma luz de autêntica alegria. De modo que,
quando terminou de ler a carta e sorriu para Brigitte, esta
achou-o definitivamente encantador.
— Vem muito bem recomendada, miss Montfort.
— Assim me garantiu meu chefe, Mr. Grogan. Ele dispõe
de excelentes relações em Washington.
— Sem dúvida. Naturalmente, depois de ler isto, declaro-
me à sua inteira disposição. Farei o que esteja a meu
alcance para facilitar-lhe a redação dessa série de artigos
sobre Cayomar.
— O senhor é muito amável.
— Nem tanto, A verdade é que há poucas coisas
realmente interessantes neste país.
— Creio que não compreendo...
— Quero dizer que é um país simpático, mas não sei até
que ponto possa interessar a nossos compatriotas saber
como se vive e se trabalha aqui. Receio que Cayomar seja...
insignificante — tornou a sorrir, encantadoramente. — Claro
está que não podemos dizer isso aos cayomarenses.
— Claro que não — riu Brigitte. — De qualquer modo,
meu objetivo não consiste tanto em informar os cidadãos
dos Estados Unidos sobre as particularidades deste país,
mas escrever uma série de reportagens que... convençam
os cayomarenses de que nos Estados Unidos sentimos
interesse por eles.
— Oh, compreendo... De certo modo, sua missão parece
mais diplomática que jornalística, não acha.?
— Espero que não me considere uma rival, senhor
cônsul.
— Pensarei a respeito — disse muito seriamente Edmond
Wilshire.
Súbito, os dois puseram-se a rir. Ele levantou-se e veio
colocar-se diante de Brigitte, contemplando-a com muita
atenção, mas sempre correto.
— Deve saber que é muito bonita... — murmurou. — Não
sei se minha esposa gostará de conhecê-la.
— Pode assegurar a Mrs. Wilshire que não sou
exatamente uma vamp.
— Suponho que não: isso já não se usa.
— De qualquer modo, não vejo a necessidade de
incomodar sua esposa com minha presença, senhor cônsul.
Está claro que não penso hospedar-me em sua residência
particular; nem sequer no consulado. Poderia indicar-me um
alojamento... tranquilo e alegre?
— Tranquilo e alegre?
— Uma casinha à beira-mar.
— Oh, sim... Não creio que haja dificuldade a esse
respeito. Sua bagagem está no aeroporto?
— Vim sem bagagem. Vez por outra, meu chefe mostra-
se generoso e paga-me um extra para gastos de vestuário.
Creio que deixarei uns quantos dólares pelas lojas de
Ciudad del Mar.
— Isso agradará muito aos cayomarenses. Tem ideia de
onde deve realizar essas compras?
— Nenhuma em absoluto.
— Eu a acompanharia com muito gosto, mas estou
ocupadíssimo hoje. Por outro lado, tenho a impressão de
que uma mulher seria melhor guia e conselheira em tais
assuntos... Fala o espanhol?
— Sim, sim, claro... Bom, quero dizer que espero não ter
problemas nesse sentido.
— Ótimo. De qualquer modo, porei à sua disposição uma
funcionária do consulado, para que a oriente através do
centro comercial da cidade. Pode ser esta tarde, às...
quatro, por exemplo?
— De acordo. E muito obrigada.
— Já almoçou, miss Montfort?
— Não.
— Pois está na hora — ele consultou o relógio, com certa
impaciência. — Muito apreciaria que aceitasse meu convite.
— Novamente obrigada, mas creio que será preferível
esperar um dia em que tenha menos trabalho...
— De maneira nenhuma. Asseguro-lhe...
— Senhor cônsul, há muitos modos de olhar o relógio e
eu interpretei bastante bem o seu. Estou convencida de que
hoje vai almoçar de pé, a toda a pressa, para voltar aqui
antes de decorridos quinze minutos. Estou certa?
— Bom, essa era minha intenção mas...
— Não quero causar mais incômodos que os
imprescindíveis. Procurarei um hotel, nele almoçarei,
descansarei da viagem... e estarei aqui as quatro para que a
sua funcionária me oriente em minhas compras. Também
gostaria de alugar um carro... É possível?
— Naturalmente. Bom... É muito compreensiva, miss
Montfort. É verdade que hoje e amanhã estarei muito
ocupado. Mas amanhã à tarde o trabalho entrará em seu
ritmo normal e poderei atendê-la devidamente. Antes lhe
disse que talvez minha esposa não gostasse de conhecer
uma jovem tão formosa, mas espero que tenha
compreendido tratar-se de uma brincadeira. Minha esposa
apreciará muitíssimo conhecê-la. Justamente amanhã ela
completa trinta e quatro anos e damos uma pequena festa...
Oh, por favor, não mencione à minha esposa sua idade: não
sei qual ela vai confessar.
— Serei um túmulo — riu Brigitte.
— Virá à nossa festa então? Cheguei a um acordo com o
cônsul anterior, Robert A. Glendale, e fiquei com sua vila.
Fica bem perto da praia, é grande, bonita... E os jardins são
formidáveis. Daí surgiu a ideia de oferecer aos nossos
amigos um garden party.
— Adoro as festas ao ar livre. E irei com prazer,
Mr.>Wilshire.
— Muito bem. Às oito. Ah, uma coisa: essa festa é...
informal, por dizê-lo assim. Não se trata de nenhuma
recepção oficial. Isso agrada muito à gente daqui... E estou
certo de que vai conhecer pessoas muito interessantes, que
muito lhe servirão para suas reportagens.
— Farei o possível para aproveitar ao máximo a
oportunidade.
— A respeito da casinha à beira-mar, é possível que esta
mesma tarde ou amanhã pela manhã eu tenha conseguido
uma que merecerá sua aprovação.
— Muitíssimo obrigada. E já não o incomodo mais... Até
esta tarde, senhor cônsul.
Dirigiu-se para a porta, que Edmond Wilshire se apressou
a abrir, sorrindo afavelmente.
— Somos poucos americanos aqui — murmurou — de
modo que não usamos muito protocolo, com o que o trato
amistoso se facilita. O “senhor cônsul” soa-me um pouco...
frio, por dizê-lo assim. E tenho um nome que não me parece
feio.
— Não é — tornou a sorrir Brigitte. — Até logo, Edmond.
Ia sair do bonito escritório mas, justamente neste
momento, apareceu no umbral um homem alto, de ombros
largos, robusto... Devia ter algo mais de quarenta anos, o
cabelo começava a encanecer em suas têmporas e seu
olhar lento, penetrante, era um tanto torvo. Apesar disso,
parecia tão agradável como Edmond Wilshire.
— Perdão — murmurou ele. — Não sabia...
— Não tem importância, Lamont. Iremos agora mesmo
almoçar e nos encerraremos aqui para concluir esse
assunto.
Mr. Lamont Doverman... — apresentou o cônsul. — Esta é
miss Montfort, Lamont. Brigitte Montfort.
— Muito prazer — disse Doverman, inclinando a cabeça
com um gesto elegante, mas seco.
— Muito prazer — ecoou Brigitte.
— Lamont é o vice-cônsul — sorriu Wilshire.
— Ignoro o que teria sido de mim sem sua ajuda, quando
cheguei. Na verdade, é ele quem ainda atende aos assuntos
mais importantes do consulado. Está aqui há mais de quinze
anos e conhece o país talvez melhor que os cayomarenses.
Robert A. Glendale, meu antecessor, tinha-o em muita
estima, o que compreendo perfeitamente. Não há o que ele
ignore a respeito de Cayomar...
— Exagero — resmungou Doverman.
— Ah, Lamont: miss Montfort é uma espécie de nossa
competidora.
— Competidora?
— É jornalista, do staff do Morning News de Nova Iorque.
Evidentemente, seu chefe conhece personagens
importantes em Washington, como você verá quando ler a
carta de apresentação que nos trouxe.
— Não me parece que uma jornalista seja uma
competidora.
— Talvez você mude de ideia dentro de uns quatro dias.
Ela tenciona escrever artigos que agradem aos
cayomarenses. Uma nova espécie de diplomacia. Depois lhe
contarei.
— Espero que não considere os cayomarenses como uns
pobres tolos; miss Montfort — disse Doverman.
— Por que haveria de fazê-lo? — assombrou-se Brigitte.
— Quero dizer que até para os elogios devemos ser
comedidos. Se passamos do limite, só conseguimos fazê-los
parecer... impertinências.
— Sei fazer meu trabalho de maneira que agrada a
todos, Mr. Doverman.
— Oxalá.
— Não seja tão casmurro, Lamont — murmurou Wilshire.
— Por falar em comedimento, eu acho que você se excede
em seu carinho para com os cayomarenses: De qualquer
modo, e isto é apenas uma sugestão, miss Montfort, é muito
possível que Lamont possa ajudá-la bastante em seu
trabalho. Não no aspecto literário, entenda-o, mas em
termos de assessoria. Se ele for repassando o que escrever,
asseguro-lhe que conseguirá lima série inigualável de
reportagens e a gente deste país saberá compreender que
quem as escreveu não o fez às tontas.
— Não gostaria de incomodar mister Doverman —
murmurou Brigitte.
— Para mim isso não será nenhum incômodo — replicou
o vice-cônsul.
— Bem... Vou pensar. De qualquer modo, estou grata aos
dois pela boa ideia. Até logo, Edmond. Adeus, senhor vice-
cônsul.
Ela afastou-se, seguida pelos olhares de ambos os
homens. Estes entraram no escritório e Lamont Doverman
acendeu um cigarro.
— A clássica mulherzinha ianque: formosa, limpa, bem
alimentada, inteligente e cheia de curiosidade. Vamos
almoçar?
— Está com muita pressa?
— Tenho um encontro com Silvana esta noite e já
cheguei duas vezes atrasado esta semana. Gostaria de
terminar o assunto que nos ocupa antes das oito.
— Eu também. E já que falamos da señorita Silvestre: já
lhe disse que está naturalmente convidada para amanhã?
— Claro.
— E...?
— Aceitou. Iremos ambos.
— Ótimo — Wilshire olhou fixamente para Doverman.
— Gosta dela de verdade, Lamont?
— De verdade.
— Bem. Creio que seu casamento com uma jovem do
país só concorrerá para aumentar as boas relações entre
Cayomar e os Estados Unidos... Já escolheu o padrinho?
— Ainda não pensei nisso.
— Não? De qualquer modo, ponha-me na lista... E vamos
almoçar. Às quatro miss Montfort voltará e gostaria de ter
pronto o assunto de...

Com efeito, às quatro horas rigorosamente em ponto


Brigitte Montfort apareceu no consulado. Às quatro e cinco,
Edmond Wilshire já lhe apresentara a jovem e simpática
funcionária Claire Ashenden, que ficou muito alegre quando
soube que aquela tarde, em vez de trabalhar, acompanharia
a belíssima visitante num giro pelas lojas de artigos
femininos.
Pouco depois das seis horas, para assombro de Claire,
miss Montfort tinha comprado absolutamente tudo quanto
necessitava e, com o carro alugado cheio de pacotes,
dirigiram-se para o hotel.
— Não compreendo... — comentou a ainda atônita
funcionária consular. — Eu preciso de toda uma tarde para
comprar sapatos e você, em duas horas, adquire um
enxoval completo! E tudo tão bonito... Seu bom gosto é
simplesmente notável, Brigitte!
— Onde deixo você — riu a espiã internacional. — No
consulado?
— Não, por Deus! Eu também tenho o direito de
descansar depois da maratona desta tarde... Quando contar
às minhas amigas, não me darão crédito. Um enxoval
completo em duas horas...!
— É o costume: viajo muito. Já não haverá ninguém no
consulado?
— Oh, sim... Mas poderão passar sem minha pessoa.
— Vantagens de não ser indispensável. Em
compensação, Mr. Wilshire ainda deve estar trabalhando.
— Creio que sim. E Mr. Doverman ainda tem muito
trabalho por uns dois dias.
— Trabalham à noite?
— Não... Bem, quase nunca.
— Até que horas?
— Até às oito, oito e meia... Mais ou menos.
— Mr. Wilshire é um cavalheiro muito amável.
— Oh, sim... Todos lhe queremos muito bem.
— Você parece hesitante...
— Não. Sim... Bem, são tolices. Rumores que correm pelo
consulado.
— Que espécie de rumores?
— Tolices, já disse... Na verdade, Mr. Doverman é sério
com todos, não só com Mr. Wilshire. Que tal se formos a um
cinema? Ou à Plaza del Sol tomar um aperitivo?
— Não, não. Estou cansadíssima. Irei ao meu hotel, porei
tudo o que comprei em ordem, tomarei um banho, jantarei
no terraço e espero dormir umas quatorze ou quinze horas
seguidas. Quer que a leve à sua casa?
— Não, prefiro ficar na Plaza del Sol. Costumo encontrar-
me lá todas as tardes com meus amigos.
— Eu a levarei então... se for me indicando o caminho.
Diga-me: acaso tem algo de especial a... seriedade de Mr.
Doverman?
— Não... à direita, agora. Isso... O que ocorre é que
parece lógico não poder ele sentir muita simpatia por Mr.
Wilshire.
— Por que motivo?
— Doverman está há muitos anos em Ciudad del Mar. Já
era vice-cônsul quando Mr. Glendale era o nosso cônsul. É
um homem muito inteligente e parece que esperava
substituir Mr. Glendale quando este se aposentou. Em vez
disso, chegou Edmond Wilshire, que praticamente trabalha
sob sua direção. Mas isso, claro, portas adentro.
Oficialmente, Wilshire é o cônsul e como tal foi aceito por
todos, é lógico.
— Compreendo — murmurou Brigitte. — Quinze anos
esperando uma promoção é muita coisa. Sobretudo quando,
depois de decorridos, chega um desconhecido e ocupa o
posto que desejávamos...
— À esquerda, agora...
— Sim... Os dois já discutiram alguma vez?
— Não, não. Na verdade, só acontece que todos achamos
Doverman cada vez de pior humor. Siga era frente... Já se vê
a praça. Não quer mesmo tomar nada?
Meus amigos são muito simpáticos...
— Acredito — sorriu Brigitte. — Mas estou realmente um
bocado cansada.
— Fica para outra vez. Saberá voltar ao hotel sozinha?
— Não se preocupe.
— Pare aí mesmo... Depois dê volta à praça e regresse
por onde viemos... Aqui está bem.
— Até amanhã, Claire. E muito obrigada.
— Não poderá dizer que precisa de mim toda a manhã
para fazer mais compras? — sorriu a jovem funcionária.
Riram as duas. Claire Ashenden saiu do carro e afastou-
se em direção a um bar com amplo terraço cheio de flores,
que resplandeciam sob o sol da tarde. Ao longe, como
dividido em seções pelas palmeiras, via-se o mar, de um
azul intenso, refulgente.
Percorrendo as formosas avenidas sem pressa alguma,
Brigitte regressou ao hotel onde se havia alojado
provisoriamente, o “Hotel de las Llamas”. Ajudada por dois
boys, subiu com os pacotes à sua suíte e, durante quinze
minutos, dedicou-se a desembrulhar as roupas que
comprara e a colocá-las no armário, prontas para serem
utilizadas a qualquer momento.
Arrumadas suas coisas, olhou o relógio de pulso, assentiu
com a cabeça e despiu-se. Escolheu então entre as roupas
que comprara as mais escuras, vestiu-as, olhou-se no
espelho e sorriu, divertida.
— Pareço um pouco espanholada — disse para a imagem
refletida no cristal. — E mais formosa que nunca.
Às sete e poucos minutos, a agente Baby estava em seu
carro, muito perto do consulado americano, seu magnífico
olhar azul fixo na saída.

Segundo

Certas versões sobre o aspecto da agente Baby

Saíram os dois juntos, conversando animadamente, por


volta das nove menos quinze. Do carro, o olhar de Baby
fixou-os enquanto se despediam e entravam cada um em
seu próprio carro, afastando-se depois em direções opostas.
Mas, como sua decisão já fora ‘tomada previamente, não
hesitou a respeito de qual devia seguir.
Partiu atrás do carro de Lamont Doverman, que rodava
apressado, impaciente, ultrapassando outros veículos a
bruscos golpes de volante. Deste modo, poucos minutos
depois, encontrou-se novamente na Plaza dei Sol, que
parecia ser o ponto de reunião dos elegantes da cidade.
Doverman deixou o carro diante do “Real Casino” e
entrou naquele elegantíssimo clube. Saiu um minuto apenas
mais tarde e Brigitte dispôs-se a segui-lo novamente... Mas
não. Ele sentou-se no terraço, a uma pequena mesa
colocada entre palmeiras-anãs, de frente para o mar. Um
garçom aproximou-se e, após fazer seu pedido, Doverman
acendeu um cigarro. Ela fez o mesmo, dentro de seu carro,
à espera.
Às nove e meia continuava esperando, sem impaciência.
Em compensação, Lamont Doverman tinha consultado
seu relógio cada minuto, embora sempre discretamente.
Possuía bons nervos, sem dúvida.
Por fim, levantou-se, fez ao garçom um sinal que Brigitte
interpretou como “ponha isto em minha conta” e dirigiu-se
para seu carro. Novamente em marcha pelas formosas
avenidas, seguido por Baby a distância conveniente...
Distância que, de qualquer modo, era pouco provável
pudesse enganar um bom espião profissional. Mas, ao que
parecia, Doverman não tinha qualidades para ser um bom
espião. Ou talvez se tivesse dado conta e desejava passar
por tolo...
Súbito, enfiaram pela Avenida de Las Costas. Doverman
parecia disposto a abandonar a cidade, rumo às praias do
norte. Percorreram uns seis quilômetros pela estrada. Pouco
depois ele detinha seu carro diante de uma bonita casinha
daquela zona residencial.
A casinha estava completamente às escuras mas
Doverman foi até a porta, bateu várias vezes e, finalmente,
a passos lentos, voltou ao carro. Esta vez, sim,
Baby hesitou. Não podia estar mais claro que, no “Real
Casino”, aquele homem estivera esperando alguém que não
se apresentara, obrigando-o por fim a ir procurar esse
alguém em sua casa... onde tampouco parecia estar.
Portanto, podia-se concluir que o encontro daquela noite
havia ficado sem efeito. De onde se depreendia que, muito
provavelmente, o vice-cônsul se dirigiria agora para seu
próprio domicílio.
Mas quem era a pessoa que ali residia e que fora
esperada em vão no elegante clube da Plaza del Sol?
Brigitte Montfort deixou Doverman partir, esperou dois
minutos e saiu do carro, levando sua maletinha vermelha
ornada de minúsculas flores azuis. Caminhou até a casinha,
ladeou-a pela passagem da esquerda, que a separava da
casa vizinha e passou à parte traseira. Havia lá um pequeno
jardim, deliciosamente intimo, acolhedor, com cadeiras de
vime, mesinha e um sofá-balanço muito romântico. Mas
nada romântica foi a atuação de Baby, que se limitou a abrir
a porta dos fundos com uma de suas gazuas. Entrou, tomou
a fechar, empunhou sua lanterna e acendeu-a.
A cozinha. Chegou à outra porta, apagou a lanterna e
aplicou o ouvido à madeira. Silêncio absoluto. Tampouco
pôde ver luz alguma quando entreabriu aquela porta.
Transpôs um curto corredor, chegando ao pequeno living.
Poucos segundos após ter iniciado uma sistemática
revista daquela casinha, chegou a uma conclusão que a
decepcionou consideravelmente: ali só vivia uma mulher...
Uma mulher que tinha bom gosto, à qual não faltava
dinheiro suficiente para viver bem e que, para esclarecer
definitivamente as coisas, tinha uma fotografia de Lamont
Doverman, emoldurada, sobre o toucador. A explicação era
simples e desalentadora do ponto de vista da espionagem.
Baby sentiu-se aborrecida consigo mesma pelo tempo
perdido ali e por ter deixado escapar Lamont Doverman,
que sem dúvida podia encontrar-se agora em lugares muito
mais interessantes.
Saiu da casa e regressou a seu carro. Ia mover a chave
para dar o contato, quando apareceu outro carro, que se
deteve exatamente onde antes se detivera o do vice-cônsul.
Dele saltou uma mulher de boa estatura, elegante, de
caminhar decidido e gracioso, muito feminino. Tinha longos
cabelos, que pareciam negros.
Por instinto, Baby encolheu-se no assento, ao ouvir o
motor de outro carro, que se aproximava do seu por trás em
direção à casinha. Devia ser de um dos vizinhos da noiva de
Doverman mas... O carro passou junto a ela, que pôde ver o
perfil do motorista, no qual se destacava um nariz grande e
curvo... Sua insuperável memória visual não teve a menor
dificuldade em identificar aquele homem: Santiago Cazorla,
o que aparecia nas fotos vistas na Central, dois dias antes.
No assento do outro lado distinguiu ainda outro homem.
Seria este o que também aparecia nas fotos com Cazorla
e Wilshire, o da testa estreita?
Quando o carro parou uns cem metros além da casa da
noiva de Doverman, já não teve a menor dúvida. Viu saltar
os dois homens, olhar para todos os lados e encaminhar-se
para a casa, lentamente, sempre olhando ao redor. E
embora ela estivesse a considerável distância da casa,
tomou a encolher-se no assento, vez por outra os espiando.
Viu-os chegar à casinha e bater na porta... Depois, quando
tornou a espiar, já não os viu.
Saiu do carro e novamente dirigiu-se, a toda a pressa,
para parte traseira da casa. Tornou a abrir a porta, entrou
na cozinha... e em seguida ouviu o gemido de dor. E uma
voz de homem confusa, em tom interrogativo. Por baixo da
porta da cozinha, via-se luz.
Empunhou a pistola, deixou a maletinha no chão, junto à
parede, e outra vez abriu a porta alguns milímetros. O living
estava iluminado e, pela fresta, pôde ver parte da cena:
umas mãos de homem, grandes, peludas, seguravam a
noiva de Doverman pelos cabelos, rudemente, mantendo-a
tombada no sofá. A voz chegou nitidamente a seus ouvidos.
— E quem mais? — perguntava. — Quem mais está nisto
com você?
— Ninguém... — gemeu a mulher. — Ninguém mais!
— Não seja estúpida: ninguém trabalha sozinho em uma
coisa destas. É melhor que responda: quem mais?
— Ninguém... mais ninguém...
Uma das mãos soltou os cabelos da mulher e caiu com
tremenda força sobre seu rosto. Ela tornou a gemer. A voz
de outro homem chegou aos ouvidos de Baby: — Deixe que
eu lhe mostre como se arranca um olho, Senén. Verá como
ela muda de atitude.
— Vamos deixar isso para o fim. Esperemos que ela seja
inteligente... Quem mais? — insistiu a primeira voz.
— Já lhes disse... mais ninguém...
A mão tomou a levantar-se e a cair, com mais força,
sobre o rosto da mulher, perto da boca. Um filete de sangue
escorreu pela comissura de seus lábios.
E Baby já não esperou mais.
Saiu da cozinha e apareceu no living, pistola na mão,
dominando ato contínuo toda a cena, controlando os dois
homens, um dos quais, o da testa estreita, encontrava-se
um pouco mais atrás, empunhando um revólver, o olhar
torvo fixo na noiva de Doverman.
— Senhores, tenham a bondade...
Não pôde terminar a frase. Os dois homens e a mulher
lançaram exclamações. O que estivera dando bofetadas
levou a mão direita à áxila esquerda, enquanto o outro, que
já tinha a arma na mão, virava-se para Brigitte, apontando-a
velozmente...
Plop.
Ao mesmo tempo em que soava o leve estalido da
pistolinha de Baby, o homem da testa estreita, lançando um
gemido rouco, saltava para trás, com uma pequena bala no
centro da testa. Tombou sobre uma poltrona, derrubou-a,
rolou duas vezes pelo chão e ficou imóvel. Exatamente
como o outro, cuja mão tinha ficado sob o paletó, como
paralisada.
— ... de não se mover — terminou Brigitte, sorrindo. —
Era o que queria pedir-lhes, mas seu companheiro foi
impaciente, Cazorla. Faça o favor de tirar a mão daí... Muito
obrigada.
Lentamente, Santiago Cazorla tinha retirado a mão de
sob o paletó, enquanto em seus olhos escuros aparecia uma
centelha de surpresa e alarme.
— Não me chamo Cazorla — murmurou.
— Oh, claro... Ouvi seu companheiro chamá-lo Senén.
Mas, Cazorla, mudar de nome é algo inerente a um espião.
Que diferença faz um ou outro? O que importa é o espião
em si. Não está de acordo?
— Quem é você?
— Mata-Hari... — sorriu ela. — Vire-se, por obséquio.
O narigudo virou-se, devagar, olhos brilhando com ódio
sinistro. Brigitte aproximou-se dele por trás, sem fazer o
menor ruído, até chegar a três passos de distância. Então
deixou ouvir seus saltos, mas ao mesmo tempo se inclinava,
de modo que, quando Cazorla se virou, veloz, lançando um
tremendo golpe, seu punho cortou inutilmente o ar,
enquanto, sorrindo ainda Baby golpeava-lhe o estômago
com a pistola.
Ele lançou um profundo gemido, empalideceu, caiu de
joelhos e um cintilante atemi de judô alcançou-o atrás da
orelha direita, batendo-o de bruços, fulminado. Então
Brigitte virou-se para a mulher, que deslizava
cautelosamente para a arma do morto...
Plop.
O revólver saltou quando a mão feminina já o tocava e
foi parar a um canto da sala. A mulher, com um sobressalto,
endireitou-se, virando-se para ela, que moveu a pistolinha.
— Não seja mal-agradecida — tornou a sorrir. — Segundo
todas as aparências, eu a estou ajudando, não?
— Quem é você? — perguntou a bela morena.
— Não faça perguntas tolas. Tome a sentar-se no sofá e
mantenha-se quieta até que eu diga.
A outra obedeceu e Brigitte, sem a perder de vista,
agachou-se junto a Cazorla, tirando-lhe a arma. Depois
tirou-lhe a carteira, na qual encontrou documentos com o
nome de Senén Braias, de nacionalidade cayomarense...
Dinheiro nacional, cigarros, chaves... O de sempre. O
outro não tinha nada diferente. Seu nome era Cirio Arroyos,
também de Cayomar... Só que, para os olhos treinados de
Baby, não custou nada averiguar que os documentos de
ambos eram falsos. Muito bem falsificados, contudo.
Finalmente, sentou-se na poltrona que tinha ficado de pé
e olhou a jovem morena.
— Minha pergunta não é tola — disse-lhe —, já que quem
tem a pistola na mão sou eu: quem é você?
— Meu nome é Silvana Silvestre.
— E por que não Greta Garbo? Não é isso o que
pergunto. E estou certa de que você me entende.
— Não muito... Sou Silvana Silvestre. Que mais posso
dizer?
Brigitte sorriu friamente. Seu olhar desviou-se para a
mesinha redonda. Viu a bolsa, apanhou-a com a mão
esquerda e, pondo-a no colo, abriu-a, começando a tirar
coisas. .. A primeira foi uma câmara fotográfica, muito
pequena, dotada de uma também pequena mas poderosa
teleobjetiva. Uma rápida olhadela foi-lhe suficiente para
verificar que a câmara estava equipada com o dispositivo
para luz ultravioleta. Sem o menor comentário, acabou de
esvaziar a bolsa sobre a mesinha. Encontrou um carnê e
olhou-o rapidamente: carteira de motorista com o nome de
Silvana Silvestre e sua fotografia. O resto não lhe pareceu
digno de atenção. Indicando a câmara, perguntou: — Foi
você quem enviou seis fotos à CIA?
Os lindos olhos castanhos de Silvana abriram-se numa
expressão de assombro e esperança.
— Você é da CIA? — perguntou.
— Sou.
A jovem suspirou profundamente.
— Sim, eu enviei as fotos — admitiu num sussurro.
— Por quê?
— Porque queria que Edmond Wilshire fosse retirado do
consulado americano em Cayomar.
— Por quê?
— Porque é um traidor.
— Pode provar isso?
— Provar? As fotografias...
— Quero algo mais convincente, Silvana.
— Mais convincente que essas fotografias? Sei
positivamente que estes homens não são agentes
americanos — indicou Braias e Arroyos. — Pode explicar de
outro modo os contatos de Wilshire com eles, se não é um
traidor?
— Para quem trabalham estes dois homens?
— Isso não sei.
— E você... para quem trabalha?
— Para minha pátria. Pertenço ao serviço secreto de
Cayomar.
Brigitte pestanejou lentamente. Silvana tinha a
impressão de que aqueles olhos azuis haviam-se
transformado em pedaços de gelo.
— Duvido — replicou secamente.
— Asseguro-lhe...
— Mentira. Se você pertence ao serviço secreto de
Cayomar, por que mandou aquelas fotos à CIA, em vez de
entregá-las a seus chefes?
— Se o tivesse feito, meus colegas teriam tomado
decisões demasiado drásticas, possivelmente.
— Por exemplo...?
— Por exemplo, teriam ocasionado uma queixa
diplomática, acusando Wilshire de traidor aos Estados
Unidos, já que estes dois homens — tomou a indicá-los —
não pertencem a CIA, nem a nenhum outro organismo
americano. Tampouco pertencem ao serviço secreto de
Cayomar, claro. Por conseguinte, Edmond Wilshire tem
relações com inimigos dos Estados Unidos e de Cayomar...
Compreenderá que, nestas condições, Cayomar não
toleraria sua presença no país: um homem que atraiçoa sua
pátria não pode ser admitido como cônsul em lugar
nenhum.
— Evidentemente. Se atraiçoa sua pátria, com menos
escrúpulos atraiçoaria Cayomar, não é assim?
— É.
— Tudo muito razoável até aqui. Mas pergunto-me o que
lhe poderia importar que Edmond Wilshire fosse expulso
deste país e que houvesse uma troca de notas diplomáticas
entre Ciudad del Mar e Washington... O pior que poderia ter
ocorrido, a meu ver, é que os Estados Unidos tivessem que
retirar seu consulado daqui. Não está de acordo?
— Estou. E isso precisamente é o que eu queria evitar:
não desejo que os Estados Unidos retirem seu consulado de
meu país.
— Por quê?
— Em primeiro lugar, porque sei muito bem que, em
todos os sentidos, convém-nos a amizade americana. E se
tivesse posto meus chefes ao corrente do que descobri
trabalhando em caráter particular, isso estaria terminado.
— Você é inteligente e sensata — murmurou Brigitte.
— Também eu considero conveniente que o assunto
careça por completo de publicidade. Se chegar a convencer-
me de que você é sincera, arranjaremos as coisas de modo
que tudo fique entre nós... e a CIA. Sua decisão de manter o
serviço secreto de Cayomar na ignorância é por mim
aprovada. Felicito-a, Silvana. Há algum outro motivo pelo
qual deseja a permanência do consulado americano em seu
país?
— Há.
— Qual é?
— Amo Lamont Doverman. Ele é...
— Sei quem é Mr. Doverman. Você receia que, se for
extinto o consulado americano, ele tenha de voltar aos
Estados Unidos.
— Ele o faria.
— Lamont Doverman não gosta de você?
— Gosta. Mas... antes de tudo ama sua pátria. Iria para
onde lhe pudesse ser útil.
— Isso me parece ótimo. Você o acompanharia?
— Claro. Mas nós dois amamos Cayomar... Por que
partirmos, se o podemos evitar?
— Bem. Diga-me uma coisa: você se aproximou de
Lamont Doverman exclusivamente por motivos pessoais?
Silvana Silvestre sorriu.
— Não... Como agente do serviço secreto, fui incumbida
de vigiar, por assim dizer, a linha de conduta interna do
consulado dos Estados Unidos. Edmond Wilshire, tal como
seu antecessor, Robert A. Glendale, eram casados. Assim
sendo, escolhi Lamont.
— Perfeito. Mas agora o ama sinceramente?
— Oh, sim. É um homem admirável.
— Em que sentido?
— Não me refiro a seu físico. Sei que tem um belo
aspecto, mas o que nele me atrai são suas qualidades
morais.
— Que qualidades?
— E nobre, leal, honrado, sensível, inteligente... Mais do
que todos pensam.
— Deve ser, pois quando partiu o cônsul anterior não o
escolheram para substitui-lo, mas enviaram outro.
Silvana empalideceu.
— Essa é uma das muitas injustiças que ele tem sofrido.
Há quinze anos está aqui e ninguém, absolutamente
ninguém nos Estados Unidos pode preencher melhor que
ele os requisitos necessários para o cargo de cônsul em
Cayomar. Glendale pensava assim e estava convencido de
que Lamont o sucederia. E até mesmo Wilshire admite que
seu trabalho seria pesadíssimo sem a colaboração de
Lamont. Ele é quem deveria ser cônsul agora.
— Não me parece muito... simpático.
— Ponha-se em seu lugar e responda sinceramente a si
mesma se passaria a vida sorrindo.
— Não... — admitiu Brigitte. — Possivelmente, haveria
algo de amargura em mim. Resumindo, Silvana, temos que,
segundo todas as aparências, Edmond Wilshire é um traidor.
Pelo que você e eu, apoiadas pela CIA, deveríamos retirá-lo
da direção do consulado. Correto?
— Correto. E, melhor, sem escândalo... Motivos de saúde,
talvez. Não sei. Vocês pensaram em algo que dê bons
resultados?
— Sem dúvida. Mas oponho-me por enquanto a pôr em
prática esse processo. Pergunto-me se, uma vez retirado
Wilshire de circulação, por um ou outro meio, Mr.
Doverman seria finalmente nomeado cônsul.
— Espero que esta vez lhe façam justiça — murmurou
Silvana.
— É possível. De qualquer modo, a traição de Wilshire,
resultando em seu afastamento, é muito... conveniente,
inclusive providencial para as aspirações de Doverman, não
lhe parece?
— Que está pensando? — exclamou a bonita
cayomarense. — Nem Lamont nem eu seríamos capazes de
urdir uma coisa assim...!
— De que está falando? — perguntou Brigitte, com a
maior inocência.
— Você parece querer insinuar que Lamont e eu
preparamos uma armadilha contra Wilshire, para que o
retirem de Cayomar e Lamont possa ser nomeado cônsul
afinal!
— Não disse nada disso. É você quem o diz, Silvana.
— Tudo mentira!
— Acalme-se. É só você quem está construindo e
destruindo hipóteses; eu, não. Diga-me: por que não
compareceu ao encontro marcado para esta noite com
Mr. Doverman no “Real Casino”, pelo que pude depreender? 
— Segui Edmond Wilshire.
— Ah... Também os estava esperando à saída do
consulado? Pois estivemos repartindo a vigilância de
ambos... — sorriu com expressão divertida. — Mr. Wilshire
fez alguma coisa interessante?
— Tornou a avistar-se com eles — indicou uma vez mais
os dois homens caídos por terra.
— Onde, desta vez? — Brigitte entrecerrou os olhos.
— Num posto de gasolina... Pareceu um encontro casual,
como pessoas que trocam comentários sobre seus
respectivos carros. Tenho mais Lotos na câmara. Esse —
indicou Cazorla, quer dizer, o que se fazia chamar Senén
Braias — entregou esta noite um envelope a Wilshire.
— Com dinheiro, talvez?
— Não sei... Mas não creio. O envelope era muito
pequeno.
Brigitte ficou pensativa uns segundos. Para ela, tudo
estava bem claro: Silvana vigiara uma vez mais Wilshire,
vira-o em contato com agentes que não eram americanos
nem cayomarenses... Os mesmos das ocasiões anteriores.
Tinham-lhe entregue um envelope, ela tirara
fotografias... e Senén e Cirio a viram; certamente sem
alarmar Wilshire, haviam-na seguido... E ela, Baby, chegara
muito a tempo para livrá-la de um sério apuro, da morte
talvez. Com toda a certeza, o cônsul nada sabia da
vigilância a que estava submetido por parte de Silvana...
Isso podia simplificar as coisas.
— Mr. Doverman sabe algo de tudo isso? — perguntou de
súbito.
— Não.
— Por que não lhe disse?
— Lamont é... muito correto. O branco é branco, o negro
é negro e não se discute mais.
— Compreendo. Mas nós, espiões, sabemos que às vezes
não é branco nem é negro, mas cinzento. Ou convém-nos
que seja assim. Entretanto, se você tivesse ido encontrar
Mr. Doverman, estaria mais protegida para uma situação tão
má como a em que se encontrava quando aqui cheguei.
— Não quero envolvê-lo nisto. Podemos fazer as coisas
entre a CIA e eu, com vantagem para todos.
— De qualquer modo, deveria estar armada, Silvana.
— Sempre uso uma pistola. Mas deixei-a no
carro. Quando cheguei em casa sem novidade, pensei...
— Quanto a isto não se deve pensar, mas ter uma arma.
Pode revelar aqui mesmo as fotos que bateu esta noite?
— Claro. Posso fazê-lo em poucos minutos.
— Vá revelá-las então. Espero-a aqui.
— Quer dizer que... confia em mim?
— Nunca confio em ninguém — sorriu Brigitte. — Mas sei
acompanhar o jogo de todo o mundo.
— Posso ter uma arma em casa, atacá-la à traição...
— Sim, pode.
Brigitte Montfort limitou-se a sorrir. Um sorriso que para
Silvana Silvestre foi revelador: sim, podia atacar à traição
aquela formosíssima jovem, mas... teria que arcar com as
consequências. E sentiu nitidamente que tais consequências
lhe seriam desfavoráveis.
Apanhou a câmera fotográfica e dirigiu-se para a porta
contígua. Abriu-a, depois virou-se lentamente.
— Como devo chamá-la? — perguntou.
— Baby.
Silvana pareceu ter ficado paralisada. Seu rosto perdeu
toda a cor, exceto no ponto onde havia sido golpeada, que
se destacou intensamente vermelho.
— A... agente... Baby?
— Claro.
— Por Deus...
— Ouviu falar de mim?
A bonita cayomarense arregalou os olhos. Súbito, deu
uma risada nervosa, exclamando: — Um pouco!
— Bem ou mal?
— De todas as maneiras! Mas a imaginava
diferente... Muito diferente!
— Sei de certas versões sobre meu aspecto físico —
sorriu Brigitte. — Há quem me suponha feia, bigoduda e
enorme, uma espécie de gigante... No entanto, não passo
de uma pobre garota.
Silvana tomou a rir.
— Revelarei essas fotos o mais depressa possível... Sabe
de uma coisa engraçada? Muitas vezes pensei em ir a
Langley, à Central da CIA, para pedir que me pusessem às
ordens de Baby, sem condições, sem salário, sem nada.
— E para quê?
— Para aprender tudo o que pudesse!
Brigitte acendeu um cigarro, sorrindo encantadoramente.
— Se tivermos que trabalhar juntas, Silvana, é possível
que você aprenda alguma coisa. Mas agradeço-lhe o
conceito em que me tem. Agora vá revelar essas fotos.
— Oh, imediatamente! Mas é verdade mesmo que você é
Baby?
Levantando-se, Brigitte se aproximou de Cazorla, dando-
lhe um leve pontapé nas costas. Como ele não reagiu,
passou o pé por sob seu peito, virando-o de barriga para
cima, como faziam os pistoleiros do velho Oeste.
— É verdade... — murmurou. — E com a ajuda deste
cavalheiro poderei demonstrá-lo em seguida. Você verá
como nos diz para quem trabalha e o que estão tramando.
Silvana contemplou um instante o desacordado sujeito,
depois engoliu em seco e entrou no pequeno
compartimento, fechando a porta atrás de si.
Brigitte dirigiu-se à cozinha, apanhou sua maleta
vermelha e voltou ao living.

Finalmente, Santiago Cazorla abriu os olhos. A luz fê-lo


pestanejar e tornar a fechá-los, permanecendo assim
durante quase um minuto, enquanto suas ideias iam-se
ordenando.
Quando tomou a abrir os olhos, foi apenas uma fresta,
para examinar sua situação. Realmente estava deitado, pois
lá em cima via o teto, paralelo a seu corpo. Movendo a
cabeça, viu pernas de mulher à sua direita. Duas pernas
sobrepostas, a de cima balançando graciosamente. Um
cheiro de fumo chegou a suas narinas. Ergueu mais o olhar
e viu toda aquela mulher de olhos azuis, que fumava
distraída, contemplando um quadro na parede à sua
esquerda. Tinha o cigarro numa das mãos. A outra
empunhava uma pistolinha, em descanso sobre seu regaço.
Fechou completamente os olhos e dedicou-se a pensar
rapidamente. Aquela mulher tinha que ser uma inimiga
temível, claro, uma veterana em questões de espionagem. E
devia estar esperando que ele despertasse para interrogá-
lo.
Possivelmente não se conformaria com negativas ou
evasivas. E já devia ter pensado em como “convencê-lo” a
responder com clareza suas perguntas.
Tornou a entreabrir os olhos. Lá estava ela, na mesma
posição, como mergulhada em profundos pensamentos. Não
olhava para ele. Agora contemplava o teto, como se lá
pudesse encontrar resposta às muitas perguntas que devia
estar fazendo a si mesma.
Tinha apenas que saltar sobre ela, de súbito. Respirou
fundo, preparando-se para o salto. E deu-o com tamanha
rapidez, que a mulher dos olhos azuis só teve tempo de
iniciar uma exclamação de espanto. Com a violência do
impacto, a poltrona virou para trás. Caíram juntos no chão e
a pistola deslizou para longe de ambos, enquanto se
empenhavam num desesperado corpo a corpo. Colocando
um pé sob o corpo daquele homem, Brigitte estirou a perna,
arremessando-o para trás.
Ele levantou-se rapidamente e viu que a mulher se
dirigia para onde havia caído sua pistola. Compreendeu que
nunca chegaria lá antes dela... Mas encontrava-se em frente
a porta e não hesitou: girando a maçaneta, abriu-a e saiu no
mesmo momento em que Silvana, sobressaltada, aparecia
no living e a dos olhos azuis já alcançava a pistola.
Cazorla correu como nunca o tinha feito na vida, em
direção ao carro que o trouxera e a seu companheiro. Já
tinha percorrido uns cinquenta metros, quando ouviu algo
estalar acima de sua cabeça, por três vezes. Virando-se, viu
aquela diabólica mulher, que corria para ele, empunhando a
pistola com que acabava de atirar. Viu-a deter-se, firmar os
pés no chão e estender o braço direito.. . Meteu-se
precipitadamente no carro e arrancou como um raio,
encolhido ao volante. A bala alcançou o vidro traseiro, que
se partiu, salpicando-o de minúsculos fragmentos.
Quando tornou a olhar pelo retrovisor, já mal pôde ver a
mulher. Agarrando-se firmemente ao volante, olhos
arregalados, ele lançava o carro a uma velocidade suicida.
Mas já nada tinha a temer.

Baby deteve Silvaria com um gesto quando esta, revólver


na mão, fazia-lhe sinais chamando-a para o carro
estacionado diante da casa. Depois chegou junto a ela,
perguntando: — Estão reveladas as fotos?

— Podemos perseguir esse homem com meu carro...!


— Não. Vamos entrar.
— Mas podíamos alcançá-lo... Conheço esta zona
como...!
— Não duvido, Silvana, mas agora prefiro ver essas fotos.
A cayomarense parecia perplexa.
— Não compreendo... Oh, compreendo sim! Você não é
Baby...
— Deixe de tolice.
— Baby não seria tão inábil! Você mentiu...!
Tentou atacar Brigitte mas essa, com gesto rápido,
arrebatou-lhe o revólver, que jogou para dentro do carro,
aplicando-lhe em seguida um golpe no ventre, que a deixou
sem fôlego.
— Não complique as coisas, querida. Vamos ver as fotos.
Entraram na casa e Brigitte indicou a porta do pequeno
cômodo.
— Traga-as aqui, por favor.
Silvana mostrou-se hesitante mas por fim entrou no
compartimento para onde levara a câmara fotográfica.
Quando saiu com as fotos, ainda úmidas, viu Baby,
inclinada sobre a mesinha, na qual estava aberta aquela
curiosa maleta vermelha. Junto a esta, um pequeno
aparelho com um vidro circular, deixando ver um ponteiro
que oscilava ligeiramente...
— Está voltando para Ciudad del Mar — disse Brigitte.
— Quem?
Com um olhar irônico, Baby tirou-lhe as fotos das mãos e
foi passando-as com cuidado, evitando que se colassem
uma às outras. Eram três. E, efetivamente, Edmond Wilshire
aparecia em todas, junto com Santiago Cazorla e o tal Cirio
Arroyos... Numa das fotos, Cazorla entregava ao cônsul um
envelope, com discrição. Em outra, Wilshire o estava
guardando num bolso interno. Na terceira, ele se afastava
dos dois homens, que o contemplavam com ar preocupado.
— Você é urna excelente fotógrafa, Silvana. Isso não se
pode negar. Veja os rostos destes dois... Que expressão lhe
parece que têm?
— Não sei... Parecem... inquietos. Irritados.
— Irritados. Exatamente. Precisamos definir bem suas
expressões, para que possamos chegar a teorias
satisfatórias. Se já tivessem visto você, a expressão de
ambos seria de alarma. Certo?
— Suponho que sim... Não sei.
— Primeiro, estavam irritados com Wilshire.
Dispuseram-se a partir... e então a viram, seguiram-na...
Enfim, já sabemos isso. Agora, a pergunta é esta: por
que estão irritados com Edmond Wilshire?
— Como posso saber? — resmungou Silvana.
— Observa o rosto de Wilshire na segunda foto... Como
definiria sua expressão?
— Não sei.
— Pois deveria dedicar uma temporada a esta classe de
estudos, querida. Eu definiria a expressão do cônsul como...
exigente. Sim: está exigindo-lhes alguma coisa.
— Dinheiro?
— Não, não... Não creio que seja isso. Mas, claro, o
envelope tampouco contém dinheiro. É pequeno, com
efeito... Lógico que pode conter um cheque.
— Que importa isso? — protestou a cayomarense. —
Temos provas suficientes para atuar como melhor convenha
contra Wilshire, não é assim? E ainda teríamos mais, se esse
homem não lhe tivesse escapado. Como o conseguiu?
Estava estendido no chão, você empunhava sua pistola... Eu
acho que falhas dessa espécie Baby jamais cometeria, pois
sua fama...
— Tranquilize-se. Em geral, boas ou más, as famas
costumam ser justificadas. Vamos buscar Santiago
Cazorla. Será interessante saber aonde foi.
— Interessante? Eu creio que será impossível...! Para
encontrá-lo seria preciso ter um radar que...
Calou-se bruscamente. Mordeu os lábios e olhou aquele
aparelho que emitia um quase inaudível bip-bip-bip,
enquanto o ponteiro se movia ligeiramente... Por fim, olhou
para Brigitte, que sorriu.
— Isto é... é um receptor de sinais...?
— Com efeito.
— Mas... Oh, sou tão estúpida! Você colocou um
transmissor nas roupas deste homem, enquanto estava sem
sentidos, depois simulou que se descuidava, deixou-o
escapar de propósito e... agora saberemos aonde vai, a
quem vai ver...
— Primeira lição — quase riu ‘Brigitte. — E, como vê,
totalmente grátis. Ora vamos, Silvana, este é um truque
muito velho.
— Sim, sim, claro...
— Em marcha. Iremos as duas no meu...
A campainha do telefone a fez virar a cabeça. Ficaram
olhando o aparelho, que tocava novamente.
— Deve ser Lamont — disse Silvana.
— Atenda. E pergunte onde está.
Silvana pestanejou, desconcertada. Atendeu.
— Alô.
— ...

— Oh, Lamont...
— ...

— Desculpe, mas não me foi possível ir a tempo e,


pensando que você já estaria à minha espera, vim para
casa... Onde está agora?
— ...

— Outra vez no “Real Casino”? Que...?


— ...

— Vai vir aqui? — Silvana olhou para Brigitte, que moveu


negativamente a cabeça. — Não, não... Eu irei agora para
lá. Sim, espere-me...
— ...

— Vinte minutos. O tempo justo, querido. Até já.


Desligou e ficou olhando para Brigitte, expectante. Esta
refletiu uns segundos, antes de Falar: — Será melhor que vá
ao seu encontro, Silvana. Eu posso cuidar sozinha de
Cazorla e, acima de tudo, interessa que Lamont Doverman
não tenha a menor ideia do que está acontecendo. Vá.
— Mas eu gostaria de acompanhá-la... Além disso, há
esse homem morto aqui e...
— Eu me ocuparei de tudo. Vá. Trarei o meu carro e
levarei o cadáver... — sorriu. — Como vê, não vou sozinha
em busca de Cazorla. E pode estar certa de que o
encontrarei.

Encontrou-o, realmente.

Estava em seu carro, estendido de lado no assento


dianteiro. A lua iluminava a metade esquerda de seu corpo
e refletia-se Trio sangue da tríplice ferida sobre o coração,
que já estava secando.
Tinha nos olhos arregalados uma expressão de espanto
já muitas vezes vista por ela: a clássica de quem é
assassinado por quem menos espera. Quer dizer, um amigo.
Um amigo que, após escutar as explicações de Santiago
Cazorla, tinha terminado por matá-lo com o claro propósito
de que ele não servisse mais adiante a outras pessoas como
guia involuntário até aquele que lhe dava ordens. Um
processo expedito e tão velho como o de colocar um
emissor de sinais na roupa ou pertences de uma pessoa
que, aparentemente, se deixava escapar para localizar
depois.
Ainda com a pistola na mão, Baby permaneceu uns
segundos pensativa junto ao carro. Depois voltou para o seu
pelo caminho inverso ao utilizado para lá chegar, isto é, por
entre os arbustos do Mirante Azul, que bordejavam as
aleias. Voltou com seu carro ao lugar onde estava o de
Cazorla, colocando-o ao lado. Tirou dele o cadáver de Cirio
Arroyos, que metera no porta-malas. Levou-o para o assento
traseiro do outro cano. Tirou de Cazorla o emissor de sinais
e, finalmente, voltou ao seu carro. Sentou-se ao volante,
guardou o emissor e o receptor de sinais e sacou o maço de
cigarros que camuflava o radinho de bolso, já regulado de
acordo com a onda sul-americana, Setor Peru-Equador-
Cayomar.
Apertou o botão de chamada e, poucos segundos depois
ouviu a voz de um homem.
— Baby falando. Preciso do helicóptero.
Um momento de silêncio.
— Era para você? — perguntou o homem. — É uma
honra, então... Estará pronto num minuto. Onde o
entregaremos?
— Não é para me ser entregue, mas para recolher dois
cadáveres que estão num carro, perto da balaustrada do
Mirante Azul. A placa do carro é CM-32608. Descubram a
quem pertence e amanhã, ao meio-dia, espero um informe
completo. Também quero que fotografem os dois homens
mortos e distribuam cópias entre nossos agentes e
colaboradores de absoluta confiança. Procurem Localizar
seu domicilio e, principalmente, vejam se podem saber com
que pessoas se relacionavam.
— Tudo isso para amanhã ao meio-dia?
— O mais tardar, às cinco horas, Johnny.
— Bem. Será feito o possível. Ouça, Baby: não
poderíamos vê-la?
— Para quê?
— Para nos extasiarmos com sua beleza.
— Tentarei proporcionar-lhes esse prazer — riu Brigitte.
— Mas não sei quando poderá ser. Adeus, Johnny.
— Adeus. Se precisar de nós...
— Eu sei. Obrigada por tudo.
Fechou o radinho, pôs novamente o carro em marcha e
afastou-se dali. As notícias que tinha não eram boas, já que
nada havia conseguido com seu truque.
Mas talvez Silvana Silvestre tivesse algo melhor...

— Não — negou Silvana. — Sinto muito. Não tenho


nenhuma outra pista, ‘~Baby”. A única eram esses dois
homens.

— Azar... Embora talvez consigamos alguma coisa. Você


os fotografou juntos com Wilshire, em várias ocasiões:
seguiu-os alguma vez para ver aonde se dirigiam, depois
dessas entrevistas. com o cônsul?
— Não, nunca. A verdade é que não sou uma espiã de
seu gabarito. Quero dizer que até agora só tenho feito
pequenos trabalhos, específicos para mulheres: contatos
galantes com homens, comparecimento a festas... Coisas
assim. Compreende?
— Compreendo.
— Suponho que lhe pareça um pouco tola e medrosa.
Brigitte olhou-a, assombrada.
— Por que motivo? Também eu comecei assim, Silvana.
Afinal de contas, a espionagem de ação não é bicho de
sete cabeças. Há quem a aprenda em poucos anos, como
há quem jamais a possa praticar. O sensato é aceitar
sempre suas. próprias limitações.
— Você é muito compreensiva. Sinto não poder ajudá-la
mais.
— Pode sim... Há algo evidente em tudo isto: Edmond
Wilshire ficou desligado. Agora, a pessoa que mandava
Cazorla e Arroyos entrevistá-lo terá que fazer alguma coisa,
começando por procurar um novo contato com Wilshire.
Que espécie de obrigações... digamos oficiais tem você
que cumprir amanhã para seus chefes?
— Nenhuma que não possa esquivar. Posso conseguir mil
motivos para não me apresentar ao serviço. Devo vigiar
Edmond Wilshire, como o fiz ultimamente por minha conta?
— Exato. Terão que lhe enviar outro contato, isso é
inevitável. E esta vez você se dedicará, antes de mais nada,
a localizar esse contato e segui-lo. Mas, Silvana, quero que
pense bem neste novo trabalho antes de aceitar.
— Por quê? Eu comecei isto por decisão própria, com a
esperança de encontrar algo que comprometesse Wilshire,
para que Lamont ocupasse seu posto... Sei que foi egoísmo
de minha parte, uma jogada talvez feia, mas...
— A única jogada feia em espionagem é a traição —
cortou Brigitte. — Enquanto não a cometer, não se acuse de
nada. De qualquer modo, reconsidere se me interessa ou
não prosseguir no assunto.
— Não compreendo sua insistência sobre este
ponto... Por que não haveria de prosseguir?
— A pessoa que eliminou Cazorla sabe que você está ao
corrente das atividades de Wilshire, de sua relação com
essa pessoa ou pessoas desconhecidas. Naturalmente farão
o possível por matá-la, Silvana.
A jovem empalideceu, como se tal possibilidade não lhe
tivesse ocorrido.
— Claro... — engoliu em seco. — Sabem que sei que
Wilshire é um traidor. Sim, vão querer matar-me.
— Sem a menor dúvida.
Brigitte olhou-a atentamente. Não a culpava em absoluto
por suas hesitações e temores. Há muitas espécie de
espiões e Silvana pertencia à dos chamados “passivos”.
Certamente, nunca precisara utilizar seu revólver...
— Eu me encarregarei de vigiar Wilshire —disse ela, de
súbito.
— De acordo. Tenho, como sempre, um rádio de bolso
sobressalente — tirou da maleta um bonito estojo de pó de
arroz, abriu-o pelo fundo e extraiu o pequeno rádio, que
estendeu à assombrada Silvana. — Está em sintonia com o
meu e os dos agentes da CIA. Para comunicar-se comigo,
tem apenas que apertar esse botão preto. Se quando tiver
alguma coisa a dizer-me, um homem responder-me, não
informe nada. Diga apenas que é comigo que quer
falar. Está claro?
— Está.
— Bem — Brigitte fechou a maletinha e levantou-se. —
Vou descansar. Quanto a você, será melhor que procure
outro domicílio, por enquanto. Pode conseguir isso?
— Posso.
— Outra coisa: se eu precisar comunicar-me com você,
ouvirá uns zumbidos no radinho.
Aperte então o botão branco e o canal se abrirá. Tome
cuidado.
Silvana assentiu com a cabeça e acompanhou Baby até a
poda. Lá, a espiã olhou-a, sorridente.
— Como decorreu o encontro com Lamont Doverman?
— Oh, normal... Apresentei-lhe desculpas, que aceitou.
— Que fizeram vocês?
— Tomamos um drinque no “Real Casino”, depois fomos
jantar. Era já bastante tarde para tudo e Lamont tem tanto
trabalho para terminar amanhã, que logo nos despedimos.
Menos mal que não veio aqui, como outras vezes, pois a
teria encontrado esperando-me.
Brigitte tomou a sorrir, ao mesmo tempo em que movia a
cabeça num gesto comiserativo. Como podia pensar aquela
jovem que ela não se esconderia ao ver surgir Doverman?
— Adeus, Silvana.

Terceiro

Rosas mortíferas

Bip-hip-bip-bip-bip-bip...
Brigitte virou-se de lado na cama e apanhou o radinho,
que tinha deixado sobre a mesa de cabeceira. Ao mesmo
tempo em que o abria, consultava seu relógio: cinco em
ponto da tarde.
— Baby, aqui é...
— Que há? — ouviu a voz de Silvana Silvestre. — Está me
chamando?
— Quem interfere? — soou novamente a voz de Johnny.
— Aqui é Silvana, Baby. Você... Brigitte fechou os olhos,
num gesto de resignação.
— Feche o rádio, Silvana — disse amavelmente. —
E nunca mais diga seu nome quando falar por um destes
aparelhinhos.
— É que eu estava chamando e...
— Chame dentro de dois minutos. Agora, feche o rádio.
Adiante, Johnny.
— Quem é essa? — perguntou o homem da Cia.
— Uma espiã.
— Há! há!... — riu Johnny. — Esta é muito boa! Não me
diga que é das nossas...
— Por sorte, não. Que conseguiu, Johnny?
— Nada. Sinto muito mas... nada. A menos que você
possa tirar partido de algo em que não vejo possibilidades.
— Vejamos esse informe.
— Okay. O carro de placa CM-32608 foi comprado de
segunda mão por Senén Brañas, há três meses, e não há
nenhum dado acerca de seu domicílio. Comprou, pagou à
vista e só. O antigo proprietário é um tal Dionisio Certales,
gordo e afável dono de um armazém de comestíveis, ao
qual as coisas vão tão bem que vendeu o carro velho e
comprou um de melhor marca, último modelo. Se o señor
Certales é espião, eu sou a Estrela Polar.
— Bem. E a respeito da localização do domicílio dos
mortos, por meio de suas fotografias?
— Por enquanto, nada. Sinto muito, repito. Quer que
vigiemos Certales?
— Não, por Deus — riu Brigitte. — Continuem na pista
dos defuntos. Mas não me chame, Johnny. Eu o chamarei
quando necessário.
— Okay. Mais alguma coisa?
— Não. Feche o rádio, pois essa moça tornará a chamar
dentro de segundos. Ah: que fizeram com os dois falecidos?
— Demos a ambos um túmulo bonito: o mar.
— Bonito realmente, Adeus, Johnny.
Fechou o rádio e, mal tivera tempo de acender um
cigarro, ouviu novamente o bip-bip-bip...
— Alô — respondeu, sorrindo.
— Baby, sou... sou eu.
— Ah. E... quem é você?
— Bem, sou a amiga que sabe... Oh, acho que eu deveria
arranjar um nome, não?
— Boa ideia. Que lhe parece “Gazela”?
— Oh, me parece um bom nome!
— Ótimo. Como vão as coisas por aí?
— Não aconteceu nada. Quero dizer, nosso... nosso
homem nem sequer saiu do con... do lugar que vigio. Ou
seja: ninguém pode ter estabelecido contato com ele.
— Claro. Salvo se o fizeram pelo telefone, pelo rádio, ou
que o novo contato seja alguém que pode entrar e sair sem
que isso chame a atenção.
— Oh!
— Você fotografou todos os visitantes de hoje?
— N-não...
Brigitte ergueu os olhos para o teto.
— Querida, francamente, tendo em conta sua boa
atuação para conseguir as fotos enviadas para onde sabe,
esperava mais eficiência de sua parte.
— Sinto muito. Posso começar agora a...
— Esqueça isso. Procure...
— Estão saindo! — exclamou Silvana.
— Quem?
— Os dois homens... Compreende?
— Compreendo. Acha que saem provisoriamente, ou que
abandonam o lugar?
— Bem... — houve uns segundos de silêncio. — Creio que
abandonam o lugar por hoje. Cada um vai para seu carro.
Devo seguir...?
— Não se incomode. Ele vai para casa, pois tem de estar
preparado para o garden party, que começará dentro de
três horas. Imagino que você tenha sido convidada.
— Fui, claro. Irei com La... com o meu, sim.
— Está bem. Chame-o pelo telefone dentro de uns
minutos e diga-lhe que passará para buscá-lo, a fim de que
não se dê conta de que você não está em sua casa. Nos
veremos na festa.
— De acordo, “Gazela” corta a comunicação.
— E Baby também — riu Brigitte. — Tornará a ouvir um
chamado agora mesmo, “Gazela”, mas não responda: não é
para você. Fechou o radinho e tomou a chamar.
— Quem é? — perguntou cautelosamente Johnny.
— Baby, não se assuste. Ouviu o nome da garota,
Johnny?
— Claro.
— Bem. Dei-lhe o nome de “Gazela” e parece que gostou
muito. Ela é uma Silvana Silvestre do serviço secreto
nacional, ao que parece. Ouviu mencioná-la antes?
— Oh, sim... Claro — riu Johnny. — De modo que era ela?
— Com efeito. Nenhuma dúvida quanto a isto?
— Nenhuma. Nós a conhecemos... Pode estar tranquila.
— Melhor. Mas tinha que me certificar. Adeus, Johnny.
Fechou o rádio, apagou o cigarro e foi ao banheiro. A
água fria era quase quente, devido ao intenso calor de
Cayomar. Escolheu depois um vestido adequado para a
festa, enquanto pensava em como tudo estava sendo fácil
naquela missão, já que pelo menos sabia quem era o
traidor.
A única coisa a fazer era vigiá-lo com astúcia e
habilidade.
E, possivelmente, ocorreriam coisas interessantes no
garden party.

— Miss Montfort! — exclamou Edmundo Wilshire,


estendendo-lhe ambas as mãos. — Que lhe aconteceu?
— Nada... — pestanejou ela, surpreendida. — Por quê?
— Ontem ficamos em que iria hoje ao consulado para
resolver o assunto da casinha à beira-mar, não?
— Ah... Bem, não quis incomodá-lo, Edmond. Entendo
que já terminaram o trabalho urgente e, assim, daqui por
diante me permitirei aparecer com mais frequência.
— Espero que o faça. Esta é minha esposa. Querida: miss
Montfort, de quem já lhe falei.
Rose Wilshire estendeu a mão a Brigitte, sorrindo
amavelmente. Era muito formosa e vestia-se com sóbria
elegância. Tinha olhos grandes, inteligentes.
— Seja bem-vinda a esta sua casa, miss Montfort.
— Muito obrigada, Mrs. Wilshire. Permite-me dizer-lhe
que seu esposo é encantador... e que a senhora ainda o é
mais?
— Permito — riu a consulesa. — É muito amável, miss
Montfort. E mais encantadora do que eu. Ficará muito
tempo entre nós?
— Não sei ainda. Ignoro que dificuldades vou encontrar
em meu trabalho.
— Estou há pouco tempo aqui mas, se puder servi-la em
algo, não hesite em procurar-me... Oh, mas está chegando
alguém que lhe poderá ser de inestimável ajuda. Suponho
que já conhece Lamont Doverman.
Brigitte virou-se para a esplanada, onde já estacionavam
numerosos carros, e viu Doverman, que se aproximava da
porta da casa, com Silvana pelo braço. Ambos saudaram os
anfitriões, depois o vice-cônsul apresentou Silvana.
— A señorita Silvestre, minha noiva. Miss Montfort, uma
jornalista de Nova Iorque, querida.
— Como está, señorita Silvestre? — sorriu Brigitte.
— Bem... Muito bem, obrigada.
— Parece-me que todos estamos otimamente — disse
Wilshire, em tom festivo. — E com tantas beldades, este
garden party vai ser um êxito completo. Lamont, por favor,
quer apresentar miss Montfort aos outros convidados,
enquanto Rose e eu atendemos aos que vão chegando?
— Está bem — murmurou Doverman; deu dois passos e
deteve-se diante de Mrs. Wilshire.
— Feliz aniversário, Rose.
— Oh! — exclamou ela. — Não me devia ter lembrado
isso, Lamont. É terrível ficar um ano mais velha!
Todos riram, exceto Doverman, que resmungou alguma
coisa e afastou-se, levando Silvana presa a um braço e
Brigitte ao outro. Quando, depois de cruzar o vestíbulo e o
amplo corredor, apareceram nos jardins de trás, causaram
absoluta sensação. Doverman era um homem atraente e
Silvana muito bonita, mas a presença da mulher mais bela
que já fora vista em Cayomar alvoroçou todos os presentes.
Num instante, viram-se rodeados de homens e mulheres,
especialmente homens, que pareciam formar urna nuvem
em torno da sorridente americana, a qual mostrava-se mais
do que nunca encantada com a vida. Foi apertando mãos,
distribuindo sorrisos... e não demonstrando surpresa em
nenhum momento. Nem sequer quando lhe apresentaram
um tal Igor Polinev, cônsul da Rússia em Ciudad dei Mar,
nem a Alejandro Vilches, secretário da embaixada
cubana... e que tinha de cubano o mesmo que podia ter ela:
o nome, se assim o desejasse. Ao olhar agudo da mais
sagaz espiã de todos os tempos, a nacionalidade de
Alejandro Vilches foi evidente desde o primeiro momento:
russo. Um russo que se fazia chamar Alejandro Vilches e
servia na embaixada cubana.
— O capitão Homero Martinez e sua noiva, señorita Gigi
Féval... Ela é também jornalista. Francesa.
— Enchantée.
— Os senhores Vallejo...
— Mutcho gusto.
— O senhor Sin Lai, cônsul da China.
Brigitte não se alterou ao ver o miúdo chinês diante dela,
sério, formal.
— Senhor Lai...
— O general Santacruz...
— É um prazer, general.
— Don Roberto Vernani, cônsul da Argentina...

— Não, obrigada — sorriu Brigitte. — Já dancei demais,


señor Gusmán. Talvez mais tarde.

Brigitte aproximou-se de Silvana, que esperava o


regresso de Doverman sentada num banco do jardim, perto
da branca piscina. No ar, o perfume das flores misturava-se
ao som da orquestra, que atacava unia dança típica
cayomarense. Era um ambiente encantado, sobre o qual a
lua ia-se levantando.
— Um lindo jardim — disse ela, sentando-se junto a
Silvana.
— Realmente.
— Uma festa muito agradável. E estranha.
— Estranha?
— Parece-me. Há representantes da China, da Rússia, da
Inglaterra, de Cuba... Uma mistura um tanto surpreendente.
Mas creio que faz parte da política pessoal de Edmond
Wilshire ter amigos em todo o mundo.
— Talvez ele ache que a amizade pessoal possa render
bons frutos oficiais.
— O que seria muito elogiável, não fosse ele um traidor.
— Talvez descubramos algo na festa.
— Duvido — murmurou Brigitte. — Nestas circunstâncias,
vai ser difícil. Qualquer um pode aproximar-se e conversar
com ele. De qualquer modo, espero que o vigie
atentamente. Nunca se sabe... Aí vem Lamont com o seu
drinque. Ah... Foi detido pelo señor Marlos, o cubano. Você
se surpreenderia que os dois homens que a quiseram matar
ontem fossem cubanos, Silvana?
— Não, claro... — Silvana olhou-a vivamente. — Que está
querendo dizer-me?
— Nada. Quando você tiver visto tantas coisas como eu,
também suspeitará de tudo e de todos. Agora reúna-se a
eles o señor Vilches, secretário de Julián Marlos... ou algo
assim.
— Algo assim?
— Vilches é russo, querida.
— Por Deus...
— Ora, vamos... Tem um aceitável aspecto cubano,
mas... De qualquer modo, não nos devemos ofuscar por
isso. Além do que, posso estar enganada... Aí vem o seu
querido Lamont.
Doverman chegou diante delas, entregou o drinque a
Silvana, depois olhou para Brigitte.
— Vou buscar-lhe um também, miss Montfort.
— Não, obrigada. Deixo-os para que desfrutem sozinhos
seu... afeto. Até logo.
Levantou-se e começou a afastar-se. Imediatamente se
deu conta da manobra: o embaixador cubano olhou-a, disse
rapidamente algo a Vilches e ambos se separaram, o último
vindo em sua direção.
— Diverte-se, miss Montfort? — perguntou muito
sorridente.
— Bastante. É um lugar agradabilíssimo.
— Com efeito... Aceita-me como par?
— Receio já ter dançado em excesso...
— Um par também serve para outras coisas — tomou a
sorrir o elegante Vilches. — Já conhece os jardins de
Wilshire?
— Não... Para falar a verdade, estava pensando em dar
um passeio por eles.
— Será para mim um prazer mostrá-los. Quais as suas
flores preferidas?
— As rosas vermelhas.
— Há uma variedade magnífica...
Ele emudeceu, com o olhar fixo num ponto algo distante.
Dissimuladamente, Brigitte olhou para lá. Se não estava
enganada, Vilches olhava para Gigi Féval, a jornalista
francesa, noiva do comandante Homero Martínez.
E olhava-a com certa perplexidade... Naquele momento,
Gigi olhou na direção deles e Vilches desviou rapidamente a
vista.
— Gostaria de vê-las — disse alegremente Brigitte. —
Muito gentil seu oferecimento, señor Vilches.
Os dois encaminharam-se para a alameda principal.
Súbito, o homem estacou. Sua expressão não podia ser
mais consternada.
— Não recordo os nomes dessas rosas...
— Isso não tem importância.
— De maneira nenhuma. Desculpe-me. Irei perguntá-lo a
Wilshire. Por favor continue caminhando. Não tardarei a
alcançá-la.
— Eu o espero aqui...
— Não, não. Se a virem desacompanhada, ficarei sem
par... — sorriu simpaticamente. — Peço-lhe que se esconda
no jardim. Um passeio a estas horas, num lugar como este,
predispõe ao romantismo... É romântica, miss Montfort?
— Muito. Creio que seguirei sua sugestão, escondendo-
me.
— Ótimo. Volto já.
Ele se afastou e Brigitte seguiu adiante, sozinha,
internando-se nas alamedas secundárias... mas só o justo
para que ninguém a pudesse ver do amplo terraço central.
Subitamente, escondeu-se atrás de um maciço de flores
e, voltando sobre seus passos, espiou para o terraço. Viu
Alejandro Vilches, que caminhava lentamente entre os
convidados, trocando frases com a maioria, sorridente...
Passou junto a Edmond Wilshire, que estava cercado por
um grupo, sem lhe dirigir a palavra. Prosseguiu até o outro
lado do jardim e lá se deteve acendendo um cigano,
enquanto olhava para todos os lados... Bruscamente, deu
dois passos rápidos para trás e desapareceu entre uns
arbustos.
Brigitte sorriu com ironia, endireitou-se e continuou a
adentrar-se nos jardins, em meio às sombras escassamente
dissipadas por algumas luzes de variado colorido. Esperaria
Alejandro Vilches por muito tempo?
Ele apareceu subitamente diante dela, sorrindo.
— Señor Vilches! — sobressaltou-se. — Assustou-me...
— Desculpe. É que não a encontrava...
— Não torne a fazer isso... — ela levou a mão ao peito. —
Podia ter me matado de susto!
— Jamais me perdoaria semelhante crime... Estamos
perto de suas rosas preferidas: vamos até lá?
— Sim, claro... Já sabe o nome?
Vilches colocou-se diante dela, olhando-a fixamente.
Seus olhos tinham-se tomado duros, frios, hostis.
— Sei... — sussurrou, erguendo as mãos. — “Morte aos
espiões”!
E suas mãos se fecharam com força em torno do pescoço
da agente Baby.

Mas foi Baby, não a doce e inofensiva miss Montfort, quem


replicou à ação de Vilches. Para assombro e desgraça deste,
sem dúvida. E o fez com uma simplicidade aterradora: sua
mão direita passou por cima da esquerda dele, agarrou-lhe
o polegar e puxou-o para fora. Soltando um grito, o coitado
não teve outro remédio que seguir aquela torção, para
evitar a fratura do dedo. E como ao mesmo tempo Brigitte
fez girar sua própria mão, ele deu uma volta no ar e caiu de
costas.

— É uma faceta do judô que alguns chamam “defesa


pessoal”, señor Vilches. Simples e prático, não está de
acordo?
Olhos arregalados, o homem quis levantar-se, mas Baby
passou para trás dele, cruzou as mãos diante de seu peito
quando ele chegava à posição sentada e bloqueou por
completo seus movimentos, apertando-lhe os rins com um
joelho. Vilches ainda tentou mover-se, mas então as mãos
femininas puxaram com força as lapelas de seu smoking,
que lhe rodearam o pescoço, sufocando-o.
— E isto, señor Vilches, é a quinta chave de
estrangulamento do judô. Veja que eficácia...
Apertou mais, de repente, e ele nem sequer gemeu.
Tinha perdido os sentidos.
Brigitte deixou-o cair novamente de costas e, colocando-
se a cavalo sobre seu ventre, tirou-lhe a carteira... Segundos
depois, sorria como zombando de si mesma. Que havia
esperado? Que Alejandro Vilches portasse documentos
russos? Claro, tudo parecia indicar que era cubano.
Mas , deixando de parte as suposições, de uma coisa
tinha certeza: ele estava relacionado com aquele assunto,
pois de outro modo não desejaria matá-la. E esta fora sua
intenção, sem dúvida. Por isso tinha fingido ir perguntar a
Wilshire o nome das rosas: para que todos soubessem que
ela percorria o jardim sozinha...
Bem. Vilches estava relacionado com o assunto... E quem
mais? O embaixador cubano Juliano Marlos? Por que não?
Afinal de contas, Vilches, que certamente era do MVD,
servia como secretário na embaixada cubana...
Russos e cubanos: bons amigos.
De tudo isso, outra conclusão que ainda lançava mais luz
sobre o caso: Alejandro Vilches, ou Julián Marlos, tinham
liquidado Santiago Cazorla, depois de ouvir o que este
pudera dizer naquele encontro precipitado no Mirante Azul.
De outro modo não se explicaria que Vilches tivesse
querido matá-la; Cazorla devia ter falado dela e, ao ver no
garden party uma jovem de cabelos negros e
extraordinários olhos azuis, que parecia muito amiga de
Silvana Silvestre, as conclusões a que teria chegado Vilches,
ou Marlos, ou ambos, não poderiam ser mais claras.
Portanto, tinham decidido eliminá-la, compreendendo
que era perigosa, como Cazorla lhes teria dito...
Mas por que tanta pressa? Por que a pressa de matá-la
ali mesmo, com tanta gente, com tanto risco?
Temiam que ela visse algo revelador? Que, vendo-o,
tirasse conclusões?
Endireitou-se, contraindo as sobrancelhas. Estavam
loucos? Iam decidir questões de espionagem, num garden-
party, com mulheres, música e convidados de várias
nacionalidades?
Súbito, decidiu-se. Regressou a toda a pressa, direta para
a esplanada onde estavam os carros, procurando não ser
vista. Entrou em seu carro, abriu a maletinha e tirou o rolo
de esparadrapo cor de carne, bem como o rádio, que
acionou.
— Alô — a voz de Johnny.
— Johnny, você tem que voar. Venha à villa de Wilshire e
recolha um homem que está no fundo do jardim, junto a um
maciço de rosas vermelhas.
— Puxa! Você tem cada trabalhinho para nós... Quem é o
morto, esta vez?
— Não está morto, apenas sem sentidos. Vou amarrá-lo e
amordaçá-lo com esparadrapo. Deixem o helicóptero o mais
perto possível, mas sem que o vejam da villa. Inclusive,
seria melhor que viessem com uma das lanchas. Entendido?
— Claro. Ouça: que faz você na villa de nosso cônsul?
— Divirto-me num delicioso garden-party. É só.
Fechou o rádio, guardou-o e saiu do carro, deslizando
silenciosamente para o lugar onde havia deixado Vilches. Já
estava bem perto quando, súbito, ajoelhou-se junto a um
enorme maciço de hortênsias, encolhendo-se. Quase
imediatamente, apareceu uma sombra clara, destacando-se
na azulada penumbra da noite. Passou rapidamente por
perto dela, que franziu a testa ao reconhecer Gigi Féval, a
noiva do comandante Homero Martínez... Ou seja, a mulher
para a qual Vilches havia olhado minutos antes, com certa
perplexidade.
Esperou que ela se afastasse e seguiu seu caminho para
os rosais vermelhos. Ajoelhou-se ao lado de Alejandro
Vilches, colocou-lhes as mãos nas costas e dispôs-se a atar-
lhe os pulsos com esparadrapo... Mas algo não lhe agradou
naquele corpo inerte: parecia um peso morto. Virou-o e
tomou uma de suas mãos. Nenhuma pulsação... Coisa muito
natural, pois que o haviam degolado de um só golpe.
O sangue ainda brotava, lentamente, do tremendo talho que
lhe cruzava a garganta.
Teria sido Gigi Féval... Ou não? Alguém mais estivera ali?
O certo era que Vilches já não precisava ser amarrado
nem amordaçado; portanto ela ergueu-se, esteve uns
segundos olhando-o, depois regressou ao centro do jardim,
onde os convidados continuavam divertindo-se
amavelmente. A festa estava em seu apogeu e todos
pareciam nadar num oceano de felicidade, quando ela
apareceu à luz das lanternas coloridas, do lado da
orquestra.
Misturou-se rapidamente com os convidados e, segundos
depois, detinha-se diante do bar.
— Um martini, por favor — pediu, sorrindo.
Recebeu o martini e voltou-se. Durante uns segundos,
esteve observando os convidados, detidamente. Todos
tinham expressões alegres, amistosas, inclusive o russo Igor
Polinev, que conversava com o chinês Sin Lai, num grupo do
qual participavam os cônsules da Argentina e do Brasil.
Um perfeito quadro de harmonia... enquanto a pouca
distância um homem tinha o pescoço quase decepado. Tudo
enganoso, tudo mentiras... Quantos dos ali reunidos
naquela amável festa estariam fazendo seu próprio jogo?
Localizou finalmente Gigi Féval, que conversava
animada, expressão um tanto tensa, com o comandante
Homero Martínez. E quase em seguida viu o embaixador
cubano, Julian Marlos, que os observava também com
expressão tensa.
Tomou a olhar Homero Martínez e Gigi Féval. O primeiro
estava assentindo com a cabeça e, súbito, afastando-se da
noiva, dirigiu-se como que a passeio para a piscina. Viu-o
desaparecer. Enquanto isso, Gigi Féval estava já
conversando com outros convidados, sorrindo alegremente.
Quando tomou a olhar para Julian Marlos, viu-o com os olhos
fixos no ponto onde havia desaparecido o comandante
Martínez.
— Divertindo-se?
Virou a cabeça e sorriu ao ver a sua frente Edmond
Wilshire, que a contemplava com amável atenção.
— Oh, sim... — sorriu. — É uma formosa festa, Edmond.
Imagino que costuma oferecê-las com frequência.
— Não tanto quanto gostaria. Em muitas ocasiões, uns
ou outros deixam de comparecer.
— Não gostam de reunir-se para conversar sobre coisas
indiferentes?
— Talvez seja isso. Entretanto, parece que reina a
harmonia, não é verdade?
— Uma grande harmonia — concordou Brigitte. — Sem
dúvida, tudo isto é iniciativa sua, Edmond. Quero dizer que
não obedece a nenhuma recomendação especial de
Washington.
— Com efeito. Politicamente, existem notáveis diferenças
entre alguns dos aqui reunidos, mas tenho a esperança de
que os contatos pessoais sirvam para aplainar muitas
dificuldades desta espécie. E creio que, conhecendo-se uma
pessoa, pode-se encontrar melhor justificativa para seus
atos. E daí à compreensão mútua, é um passo.
— Muito formosa essa sua teoria, Edmond, e, embora
não entenda grande coisa do assunto, creio que o situa
entre os nossos bons diplomatas. Talvez seu talento não
esteja sendo bem aproveitado neste pequeno país.
Edmond Wilshire olhou-a com mais atenção.
— Talvez... — murmurou. — Mas sou dos que pensam
que qualquer posto, por insignificante que seja, é bom para
servir à pátria.
— Disso não tenho a menor dúvida. Diga-me: como se
entendem pessoalmente você e o cônsul da Rússia?
— Pessoalmente? Bem. É um homem culto,
educado. Embora — acrescentou com um sorriso — todos os
representantes russos sejam de uma cordialidade
maravilhosa... Gostaria de dançar comigo? Sou seu anfitrião
e até agora tenho cometido a descortesia de não convidá-la.
— Está perdoado — riu Brigitte.
— Oh, excelente... Mas insisto. Para falar a verdade, não
é por cortesia que a convido, mas porque para mim será um
grande prazer.
Tirou-lhe suavemente de entre os dedos o cálice de
martini, depositou-o no bar e tomou-me o braço, levando-a
consigo. Tinham apenas começado a dançar no terraço
florido, quando ela viu Julián Marlos afastando-se para a
frondosidade dos jardins, lentamente, cabeça baixa... Ali
todo o mundo baixava a cabeça, mas era para poder olhar a
seu redor, sem que se notasse seu interesse.
De boa vontade, Baby teria deixado Edmond Wilshire
para seguir Marlos, mas o cônsul americano estava fazendo
simpáticos comentários sobre alguns convidados e
interromper a dança tão bruscamente lhe teria causado
surpresa. Por sorte, numa das voltas, ela viu Lamont
Doverman e Silvana Silvestre, que acabavam de aproximar-
se do buffet, onde se estavam servindo de alguma coisa.
Brigitte abriu muito os olhos, fixos nos de Silvana, e logo
desviou-os para o jardim, indicando a zona por onde havia
desaparecido o cubano Julián Marlos. Tomou a olhar para
Silvana, mas esta a contemplava com expressão perplexa.
Olhou outra vez para o jardim, numa clara indicação
visual para a “Gazela”, mas evidentemente esta não
entendia. Desalentada, Baby deixou de fazer-lhe sinais e
seu olhar procurou agora Gigi Féval. Encontrou-a junto ao
bonito repuxo existente no centro do terraço, rindo em
companhia de elegantes cavalheiros. Mais além, o chinês
Sin Lai olhava-a fixamente, mas sem nenhuma expressão no
rosto.
Que estava acontecendo ali, realmente? Todos pareciam
vigiar ou consultar uns aos outros. Gigi Féval e o
inescrutável Sin Lai teriam algo a ver com aquilo? Isso
implicaria em que a francesa estava trabalhando para o
serviço secreto chinês... E o mesmo quanto ao seu noivo, o
comandante Martinez. Por outro lado havia Julián Marlos e
Alejandro Vilches, cubanos ao menos nominalmente, que
talvez estivessem trabalhando como espiões para o serviço
secreto de Cuba e o MVD, respectivamente, apoiando-se um
a outro... Em cujo caso, o cônsul nisso Igor Polinev talvez
não estivesse alheio às atividades de Vilches em Cayomar...
Bárbaro!
E como se tudo isso ainda fosse pouco, tinha ela que se
cuidar, pois agora estava certa de que Julián Marlos e
Vilches se haviam posto de acordo para eliminá-la. Tendo
falhado Vilches, coisa que Marlos haveria compreendido de
imediato, talvez o próprio cônsul cubano se resolvesse a
atentar contra sua vida e a de Silvana também, claro.
Nesse caso tinha que ser Julián Marlos a pessoa que
estava em tratos com Edmond Wilshire para... Para quê?
— Parece que não está me ouvindo, Brigitte.
— Hã...? Oh, perdoe-me, Edmond. É verdade. A señorita
Silvestre fez-me um sinal que não consegui entender e
distraí-me... Que dizia você?
— Que suponho já ter a casa que lhe convém, a beira-
mar.
— Oh, que bom! Amanhã passarei pelo consulado para
que me dê mais detalhes. Lamento causar-lhe tantos
incômodos.
— Tolice — sorriu Wilshire. — Faço isso com prazer. Bem,
terminou a dança e achei-a maravilhosa, embora você
estivesse um pouco... distraída.
— Desculpe... Creio que irei perguntar à señorita
Silvestre se desejava dizer-me alguma coisa. Depois nos
veremos.
Separaram-se e Brigitte aproximou-se de Doverman e
Silvana, que tinham voltado a sentar-se junto ao repuxo.
Parecia que Doverman estava de mais bom humor, pois
olhou sorridente para ela.
— Incomodado os dois pombinhos?
— Claro que não — apressou-se a dizer o vice-cônsul.
— Obrigada — sentou-se no banco o olhou o ainda
sorridente Doverman. — Agora, sim. Tomaria o martini que
me ofereceu antes.
— Ah... Terei muito prazer em ir buscá-lo. Com licença...
Afastou-se em direção ao bar e Brigitte se virou para
Silvana.
— Não viu meus sinais? — perguntou-lhe.
— Vi, mas... não entendi...
— Pois foram bem claros, querida. Tenho que ir agora
mesmo para o outro lado da casa. Enquanto eu estiver
ausente, quero que não perca de vista Edmond Wilshire,
nem tampouco Gigi Féval e Sin Lai. Pode fazer isso?
— Tentarei... Aonde você vai?
— Dar um passeio. Até logo.
— Mas Lamont vai chegar com o martini...
— Tome-o você, “Gazela”, para ver se desperta.
Brigitte afastou-se rapidamente da perplexa
cayomarense, mas teve o passo cortado por um cavalheiro
impecável em seu smoking branco.
— Miss Montfort, suponho que já tenha descansado...
E me faltou com sua palavra.
Ela sorriu o melhor que pôde.
— Como, señor Gusmán?
— Ficamos em que me reservaria a primeira dança
depois de descansar, lembra-se?
— É verdade. Tem que me perdoar. E perdoe-me também
agora...
— Vai se retirar? — ele pareceu decepcionado.
— Por uns minutos. Preciso retocar minha
maquiagem. Tenha paciência, que prometo voltar bem
depressa... e mais bela que agora.
— Isso eu duvido — riu Gusmán. — Mas esperarei.
— Obrigada. Com licença...
Prosseguiu, deu volta à casa e apareceu na esplanada
onde estavam os carros, olhando para todos os lados, em
busca de Julián Marlos e Romero Martínez. Não se via
ninguém ali. Nem sequer os motoristas, que deviam estar
na parte da casa destinada ao serviço, em Companhia dos
criados da villa, talvez mesmo revezando-se com estes no
atendimento do garden-party.
Aborrecida por não ver Marlos nem Martínez, dirigiu-se
para seu carro. Entrou rapidamente, recorreu a maletinha e
utilizou uma delgada lima de unhas para separar a parte
inferior do bonito pote de cold-cream, que estava encaixada
por pressão. Dali sacou três ou quatro diminutos microfones
magnéticos, que deixou cuidadosamente a um lado.
Recolocou a base do pote, fechou a maleta e, após olhar
para todos os lados, saiu do carro.
O primeiro que localizou foi o da embaixada chinesa.
Naturalmente, as portas estavam abertas e a chave de
contato em seu lugar: ninguém ali roubaria um carro, ainda
mais com chapa diplomática.
E certamente não era isso o que pretendia Baby, que se
limitou a abrir a porta, meter o braço dentro do carro e fazer
aderir a um lado do teto um dos microfones.
Segundos depois, localizava o veículo militar destinado
ao comandante Homero Martínez, no qual fez a mesma
coisa. Finalmente, colocou o terceiro microfone no carro do
embaixador cubano. Ao sair deste, quase soltou um grito ao
ver surgir por entre os arbustos próximos a silhueta de um
homem.

Quarto

Que festinha!

Ocultou-se rapidamente do outro lado do carro, enquanto


sua mão direita deslizava até a coronha de madrepérola da
pistolinha, presa à coxa esquerda por tiras de esparadrapo
cor de carne. Não estava disposta a deixar-se surpreender.
Entretanto, segundos depois, teve uma surpresa.
Reconheceu no homem que chegava sigilosamente ao
carro Julián Marlos, o embaixador cubano. Agachou-se,
quando compreendeu que ele ia entrar no carro... Pensava
retirar-se de tão simpática festa?
Não.
Ouviu o ruído da porta ao ser ajustada e, soerguendo-se,
tornou a olhar, brevemente. Marlos estava agora na parte
traseira do carro e, justamente então, levantava o capô do
porta-malas. Deixou-o levantado e regressou aos arbustos.
E foi pouco depois que ela teve a surpresa, ao vê-lo
reaparecer, trazendo nos ombros o corpo de um homem.
Enquanto ele se aproximava, viu-lhe o rosto suarento, os
olhos inquietos, vigilantes...
O homem que Marlos transportava tinha o smoking e a
camisa levantados, amarrados acima da cabeça, de modo
que esta ficava como que dentro de um saco... E Baby
compreendeu em seguida: era o cadáver de Alejandro
Vilches e aquele improvisado saco servia para evitar que
seu sangue deixasse um rasto pelo jardim.
Atirou o cadáver dentro do porta-malas, fechou
velozmente este e tomou a olhar ao redor. Sacou um lenço
e passou-o pela testa brilhante de suor. Por fim, deixou a
chave no contato e afastou-se para o terraço, ainda
enxugando a testa.
Curioso embaixador, na verdade. Carecia da têmpera dos
espiões de. ação mas, compreendendo que ocorrera algo a
Vilches, tivera animo para ir buscá-lo e escondê-lo no porta-
malas, para depois levá-lo dali e evitar o menor incidente
pessoal ou diplomático que teria originado o encontro de
seu cadáver nos jardins dos Wilshire. Mas agora Julián
Marlos teria que fazer alguma coisa... E onde estava
Homero Martínez?
No terraço, novamente? Esta ideia não lhe agradou, pois
não lhe pareceu provável que ele se afastasse sub-
repticiamente do grupo de convidados só para dar um
passeio e depois retornar.
Olhou para a casa, cenho carregado... Aquela sim, era
uma boa ideia: Martínez podia ter aproveitado a festa para
lançar uma olhadela ao cofre do escritório de Edmond
Wilshire. Ou isso, ou... Martínez já não apareceria mais.
Neste caso, Julián Marlos não estaria alheio a este
desaparecimento.
E somando dois mais dois obteve quatro, como sempre.
Marlos, com não pequeno risco, havia ido buscar o
cadáver de Vilches para metê-lo no carro da embaixada
cubana.
Então, se Homero Martínez, que aparentemente era um
traidor, amigo de Gigi Féval, trabalhando ambos para o
chinês Sin Lai, tinha desaparecido... onde podia estar?
Foi ao carro de Sin Lai, tirou as chaves que estavam no
contato, abriu com a adequada o porta-malas e...
Dois e dois, quatro.
Lá dentro, retorcido, estava Homero Martínez,
comandante das Forças Armadas de Cayomar, e que, já não
havia dúvida, tinha estado trabalhando para os chineses em
companhia de Gigi Féval. Moveu-lhe a cabeça e viu na parte
posterior o tremendo golpe que a tinha aberto. E se acaso
quisesse saber com que o haviam liquidado de um golpe tão
brutal, viu junto a ele uma pedra redonda, das que
bordejavam os floridos arbustos, manchada de sangue.
Solução: Julián Marlos manda Vilches matar miss
Montfort mas, como miss Montfort aparece sã e salva, com
aspecto de inocência total, e Vilches não aparece, Marlos
compreende que algo lhe ocorreu. Mas não acredita que
tenha podido ser miss Montfort a causadora, portanto
suspeita de Homero Martinez. E, à primeira oportunidade,
procura-o, mata-o e mete-o no porta-malas do carro do
chinês Sin Lai, com o que fica demonstrado que Marlos
sabia que Martinez estava trabalhando para a espionagem
chinesa. Depois Marlos vai à procura de Vilches, encontra-o
e, sempre temendo qualquer contratempo diplomático de
importância se são encontrados os cadáveres, esconde-o
em seu próprio carro, para levá-lo no fim da festa. E,
evidentemente, tanto Sin Lai como Marlos não “saberiam
nada”, mais adiante, sobre estes acontecimentos.
Que ia acontecer agora? Sem dúvida, Sin Lai e Gigi Féval
compreenderiam que Marlos havia eliminado Martínez.
Enquanto isso, Julian Marlos também insistiria, com toda a
certeza, em eliminar Silvana Silvestre e miss Montfort.
— Santo Deus... — murmurou esta. — Que festinha!
Fechou o porta-malas, colocou novamente as chaves no
contato e dirigiu-se para a casa. Entrou, atravessou-a e
apareceu no terraço, sorrindo levemente, como a mais
ingênua e bonita das garotas.
— Ah, finalmente! — ouviu exclamar junto a ela, mal
dera dois passos. — E, na verdade, mais bela ainda com sua
maquilagem retocada!
— Señor Gusmán...
— Valeu a pena esperar. Dançamos?
— Com muito prazer.
Enquanto dançavam, procurou Silvana com o olhar. A
agente cayomarense dançava também, com Doverman.
Pareciam realmente muito apaixonados. Silvana olhou-a
e moveu a cabeça em sentido negativo, querendo dizer que
nada tinha visto que lhe parecesse digno de interesse.
Embora, na verdade, ela fosse uma dessas pessoas que
vão caçar elefantes e não veem nenhum... porque um
elefante lhes está tapando a vista, a um passo de distancia.
Quando cessou a música, Gusmán aplaudiu alegremente
e ficou olhando a belíssima jovem que tentava açambarcar,
para irritação de seus amigos.
— Que tal se formos ao buffet? — propôs ele.
— Boa ideia!
Naturalmente, Edmond Wilshire tivera o gesto
“capitalista” de incluir canapés de caviar e champanha no
cardápio frio do garden-party e Brigitte fez as honras a
ambas as coisas, sorrindo sempre, ouvindo amavelmente a
conversa de Gusmán, o qual finalmente lhe propôs algo que
a obrigou a prestar-lhe atenção.
— Desculpe... Como disse, señor Gusmán?
— Perguntei-lhe se quer casar comigo.
— Ora, vamos... — pôs-se a rir. — O senhor é
terrivelmente impetuoso!
— Claro... — sorriu ele. — Embora não o tivesse
descoberto até agora. Olhe um momento ao seu redor.
Brigitte olhou, sorridente... mas aproveitando tão
magnífica ocasião para vigiar “seus personagens”. Quer
dizer: Sin Lai, Gigi Féval e Julián Marlos. Nenhum dos três
parecia perceber a presença dos outros dois, mas as coisas
já estavam bem claras para a agente Baby... Olhou também
para Edmond Wilshire, que ria muito diplomaticamente a
uma comentário do cônsul brasileiro...
— Já olhei — disse.
— Não vê muitas jovens bonitas?
— Sim, naturalmente!
— Eu também as vejo. Até agora sempre considerei as
mulheres de meu país as mais belas do mundo.
— E...?
— Devemos admitir as realidades da vida, não acha? Eu
sou realista: por que me casar com uma delas, se posso ter
como esposa a que realmente é mais bela... embora
estrangeira?
— É muito gentil, señor Gusmán — tornou a rir Brigitte.
— Isso significa que aceita?
— Que aceito o quê?
— Casar comigo!
— Bom... Mas eu ainda não penso em casar, señor
Gusmán.
— Nem sequer comigo?
— Desculpe... Nem sequer com o senhor!
— Estranho — murmurou ele, sorridente.
— Estranho? Por quê?
— Porque me garantiram que gostava muito de mim.
— Como? Desculpe, mas não estou compreendendo...
Nunca o tinha visto na vida. Como poderia amá-lo? Suponho
— tornou a rir — que se trate de alguma brincadeira típica
do país...
— Não, não. E vou lhe propor uma aposta, miss Montfort:
aposto um beijo como me ama.
— É uma aposta original... e absurda! Mas aceito... Como
vai demonstrar que eu o amo?
— Muito simplesmente. Digamos que meu nome de
guerra seja Johnny. Mais champanhe?
Baby quase dera um salto e seus olhos fixaram o
simpático mas até então algo boboca e impertinente
Gusmán, que sorria, divertido.
— Sim... Mais champanhe, por favor.
Ele fez sinal ao garçom mais próximo e estendeu a
Brigitte a taça novamente cheia.
— Obrigada.
— E então? Ganhei a aposta?
— É possível... Sempre gostei muito dos homens
chamados Johnny. Mas você... não podia saber disso,
Gusmán.
— Oh, sim. Sabia com toda a certeza. Disseram-me: ela
estará no garden-party. E ela, simplesmente, só podia ser
você: a mais bonita mulher do mundo.
— Creio que não compreendo...
— Creio que sim. Oh, sinto muito que aqui não tenham o
costume de servir champanhe com uma cereja, Brigitte.
Asseguro-lhe que lamento ter sabido seu nome mas não
pude evitar. Farei o possível por esquecê-lo. Afinal de
contas, gosto mais do outro nome, do nosso... Continua sem
compreender?
Ainda assombrada, apesar de seu grande domínio sobre
si mesma, Brigitte ia responder, quando se deu conta de
que Silvana lhe estava fazendo sinais, com tanta insistência
que só por milagre estes não eram percebidos por todos.
Quando captou seu olhar, a jovem cayomarense dirigiu o
seu a um ponto. Olhou também para lá.
Tudo o que viu foi Gigi Féval, que se afastava para a
piscina.
Tomou a olhar para Silvana, que, por sua vez, com um
sorriso de desculpa, afastava-se de Lamont Doverman e
vinha a seu encontro. Para todos, aquele encontro no centro
do terraço onde se dançava não podia ser mais normal e
sem importância, mas...
— Que há? — perguntou rapidamente Brigitte.
— Não reparou? Wilshire e Julián Marlos estiveram a sós
um momento... Juraria que Wilshire entregou algo a Marlos,
que agora está se despedindo, enquanto Gigi também se
retira...
— O que Wilshire entregou a Marlos?
— Não sei... Mas era algo muito pequeno.
— Compreendo. Ouça bem isto, Silvana: vá dizer ao
señor Gusmán que se mantenha discretamente invisível,
mas sem perder Wilshire de vista: que Wilshire não o veja,
mas que ele não o perca de vista. Entendido?
— Sim. Mas não compreendo o que tem a ver o adiar
Gus...
— Faça o que lhe digo. E você, a partir de agora, limite-se
a vigiar Sin Lai.
Afastou-se rapidamente, virando a cabeça para olhar
Gusmán. Este olhou Silvana e novamente para Brigitte, que
acenou discretamente. Depois ela penetrou nos jardins,
para logo começar a correr, em silêncio, para a parte da
frente.
Quando chegou à esplanada, a muito pouca distância de
seu carro, Gigi Féval surgia vindo da piscina e
encaminhando-se tranquila para os carros.
Sempre sem ser vista, Brigitte deslizou para o seu,
meteu-se nele e agachou-se, diante do assento contíguo ao
do volante. Abriu sua maletinha, da qual tirou o receptor,
que montou com movimentos rápidos e hábeis, às cegas,
enquanto soerguia-se o justo para continuar vigiando Gigi.
Esta não entrou em seu carro, quer dizer, no veículo
militar em que tinha chegado com o comandante Martínez...
Não.
Entrou no da embaixada cubana, ocupando o assento
traseiro.
Que acontecia agora? Julián Marlos e Gigi Féval estavam
de combinação? Se assim era, por que Gigi matara Vilches e
Marlos dera cabo de Martínez? Estavam todos loucos?
Não.
Não estavam loucos.
E compreendeu quando, poucos segundos depois,
apareceu Julián Marlos, caminhando apressadamente para o
carro. Entrou nele e, em seguida, a voz de Gigi chegou ao
ouvido de Brigitte, captada pelo diminuto microfone
magnético aderido ao teto do cano: — Não se mova, Marlos.

Julián Marlos estremeceu, ao ouvir a voz à sua retaguarda.


Depois ficou imóvel, pálido, enquanto seus olhos dirigiam-se
ao espelho retrovisor, em busca da pessoa que o ameaçava
tão claramente.

— Que deseja? — pode articular. — Como se permitiu...?


— Nada de tolices. Você me conhece bem, Marlos.
— Sim... mademoiselle Féval, mas...
— Repito: nada de tolices — cortou secamente Gigi. —
Até agora fui Gigi Féval mas, justamente esta noite, o
homem que todos conheciam como Alejandro Vilches me
reconheceu... Vimo-nos várias vezes, nos escritórios do
MVD.
— Não compreendo...
— É simples: Alejandro Vilches chamava-se na realidade
Alexander Vishef e era agente do MVD. Foi colocado na
embaixada cubana em Cayomar sob sua proteção. Tanto
você como ele, na verdade, não são mais que espiões a
serviço da Rússia. Está claro?
— Asseguro-lhe que...
— Sei que essa é a verdade. Há também outra verdade:
faz algum tempo, abandonei a Rússia para servir à
espionagem chinesa, que me pagava muito mais.
Finalmente vim parar aqui, sob as ordens de Sin Lai, o qual
já tinha subordinado o comandante Martinez, com quem
simpatizei... E Sin Lai teve a ideia genial de utilizar-nos
como um par de namorados; assim, Homero não precisaria
ter nenhum contato com ele, já que eu servia de
intermediária entre ambos. Pois bem: esta noite Alexander
Vishef reconheceu-me como Olga Nadinov, traidora do MVD.
Por isso fui obrigada a matá-lo, aproveitando os bons
serviços dessa miss Montfort, que o deixou sem sentidos no
jardim.
— Pensei que tivesse sido Homero Martínez que matou
Vilches...
— Não. Fui eu. Quanto a Homero... onde está?
— No carro de Sin Lai — sorriu secamente Marlos. — Eu
também sei algumas coisas, Olga Nadinov.
— De acordo, ambos sabemos coisas. Mas sou eu quem
tem as vantagens agora, Marlos. Estive vigiando dois de
seus homens, que mantinham contato com Edmond
Wilshire, e daí, cheguei a uma conclusão. Ou. talvez sejam
duas... Uma delas é que você está traindo Cuba, a Rússia e
portanto o MVD, em benefício dos Estados Unidos. A outra
conclusão é que Edmond Wilshire está traindo os Estados
Unidos em benefício de Cuba ou da Rússia... Parece que
esta última conclusão é a certa. De acordo?
— Não sei do que está falando.
— Sabe. E vou lhe propor um trato... aceitável: dê-me o
microfilme que Wilshire acaba de lhe entregar. Em troca,
perdôo-lhe a vida e elimino Silvana Silvestre e essa miss
Montfort, que está ao corrente do assunto. De acordo?
— De qualquer modo, você ou eu teremos que eliminar
essas duas mulheres: sabem demasiado.
— Claro. Mas disso me ocuparei depois, quando a festa
terminar. Agora quero o microfilme.
— Não tenho microfilme nenhum.
— Marlos, não seja estúpido: eu o vi receber de Wilshire
uma pequena cápsula que nós, os espiões, conhecemos
bem. Todo esse assunto está preso com alfinetes,
encontramo-nos numa villa particular de um “amigo”
americano, numa festa, onde morreram dois homens... Não
o compliquemos mais: dê-me o microfilme.
— Podemos... fazer um trato melhor, Olga Nadinov.
— Que trato? Duvido, mas ouvirei.
— Saiamos agora daqui. Obterei uma cópia do microfilme
e a entregarei a você.
— Ficando com o original? — riu ironicamente Olga.
— Sim. Os dois podemos tirar partido dele.
— Não me parece razoável que um microfilme seja
vantajoso a dois serviços de espionagem.
— O conteúdo deste microfilme é... muito especial.
— Talvez. Que conteúdo é esse?
— Wilshire seguiu minhas instruções e agora tenho...
uma bomba contra os Estados Unidos. Vocês, digo a China,
também podem tirar partido dela.
— Diga-me exatamente o que contém esse microfilme.
— Bom... São microfotos de documentos firmados por
Wilshire, na sua qualidade de cônsul dos Estados Unidos em
Cayomar. Para qualquer representante diplomático que
possa dar uma olhadela nessas fotos, a coisa não poderá
suscitar dúvidas, já que, escritos de seu próprio punho,
Wilshire envia uns.... informes secretos a Washington.
Nesses informes, ele dá a entender que, de acordo com o
combinado, está conquistando a amizade e confiança de
Cayomar, com o objetivo de, no devido tempo, exercer o
controle do país quanto aos aspectos político, econômico e
militar na forma de bases. Também, com grande engenho,
zomba da credulidade dos cayomarenses, afirmando que
nenhum deles tem suficiente inteligência para governar o
país. Chama-os de “gente inferior” e reitera que poderá ser
feito o controle “amistoso” de Cayomar como um bom
princípio para a consecução, por parte dos Estados Unidos,
em duas décadas, do domínio total de outros pequenos
países sul e centro-americanos.
— Wilshire escreveu e firmou tudo isso em documentos
oficiais do consulado americano em Cayomar?
— Sem dúvida.
— Incrível!
— Asseguro-lhe que é verdade. Há algumas semanas
estou em tratos com ele. Encarreguei dois de meus homens
de sondá-lo, depois de propor-lhe o assunto. Finalmente, em
troca de um milhão e meio de dólares, aceitou. Ontem à
noite, meus homens entregaram-lhe um cheque com esse
valor contra um banco suíço. E, dentro do mesmo envelope,
os informes que eu havia escrito em colaboração com Alex
Vishef. Ele os transcreveu em papel oficial do consulado,
com sua própria letra, e assinou-os. Para todo o mundo,
quando mostrarmos o microfilme, este terá sido um
meritório trabalho de espionagem soviética, um de cujos
agentes conseguiu microfotografar a mala secreta entre o
cônsul americano em Cayomar e Washington. Poder-se-á
verificar a autenticidade das assinaturas, a letra de Edmond
Wilshire... Tudo. Ninguém terá a menor dúvida quando os
jornais de vários países publicarem essas microfotos em sua
primeira página.
— Compreendo. Se tal acontecer, os Estados Unidos
ficarão como um... odioso usurpador e explorador de povos
menos ricos. Seus projetos não poderão ser considerados
outra coisa que abomináveis, iníquos...
— E portanto nenhum país sul-americano quererá mais
nada com os Estados Unidos. Então será a hora em que
Cuba e a Rússia poderão demonstrar sua amizade para com
as nações sul-americanas.
— É uma jogada genial — sorriu Olga Nadinov. — Por
muito que os americanos esganicem proclamando a
verdade, ninguém lhes dará crédito.
— Com efeito. Jamais poderão tornar a pôr o pé na
América do Sul. Só a Rússia e Cuba poderão...
— E a China?
— Por que não? Você trabalha para a China... De acordo.
Posso dar-lhe uma cópia do microfilme e tanto melhor para
os chineses se souberem tornas-se amigos dos sul-
americanos, uma vez desalojados os ianques.
— Compreendo... Na verdade, a publicação desses
documentos microfotografados favorecerá muitos e
prejudicará unicamente os Estados Unidos.
— Assim é. Aceita?
— Bom... Há um detalhe que você não parece tomar em
conta, Marlos: se forem os russos ou os cubanos os que
descobrirem este falso porém demonstrável caso, os
mesmos é que ganharão as simpatias dos sul-americanos,
não?
— Suponho que sim.
— Entretanto, se o assunto for descoberto pelos
chineses, serão estes que ganharão tais simpatias.
Pergunto-me: por que compartilhar as simpatias da América
do Sul com vocês, se a China está pagando
esplendidamente meus: serviços?
— Mas podemos...
Plop... Plop... Plop...
Julián Marlos emitiu um gemido rouco, enquanto as três
balas, em empurrões sucessivos, lançavam-no
violentamente contra o volante. Após o último impacto,
ficou caído de lado no assento.
Olga Nadinov saiu do carro, abriu a porta dianteira direita
e revistou-o a toda a pressa, mas com tal eficiência que logo
encontrou a pequena cápsula de plástico que continha o
microfilme. Meteu-a no decote, junto com a pistola
silenciosa, e começou a puxar o embaixador cubano... que
pouco depois se reunia no porta-malas com Alexander
Vishef. Depois de colocar novamente as chaves na ignição
do carro, dirigiu-se sem hesitação para o do cônsul chinês,
entrou e retirou do decote a cápsula -de plástico. Inclinou-
se, com a evidente intenção de depositá-la num dos
cinzeiros...
À sua frente, pela outra porta, apontando-lhe firmemente
uma pistola, apareceu “aquela tal miss Montfort”, dizendo
amavelmente, em russo perfeito: — Eu me encarrego do
microfilme, Olga Nadinov.
Com a velocidade de um raio, passou pela mente desta
uma ideia que pareceu bastante acertada: tirar a toda a
pressa do decote a própria pistola e abater aquela formosa
jovem, que não sabia com quem estava brincando... Só que
não chegou a fazê-lo.
A pistolinha de Baby, ainda mais silenciosa, disparou
uma só vez. E Olga tombou de bruços no assento, com um
orifício no centro da testa.
— Inimiga de meu país e traidora do seu... Você teve o
merecido, Olga Nadinov — murmurou Brigitte, enquanto
apanhava no chão do carro a cápsula de plástico.
Seguindo o jogo que se estava fazendo naquele garden-
party, fez desaparecer o cadáver da russa. Onde? No porta-
malas do carro de Sin Lai, junto ao já frio comandante
Homem Martínez. Dois traidores unidos na morte. Como diz
o brocardo: Deus os criou e o diabo os juntou...
Uma vez mais, Brigitte sorriu ante a sentenciosa verdade
de certos ditos populares. Acaso não ocorrera o mesmo a
ela, juntando-se com Número Um?
Mas não era o momento de se entregar a recordações
nostálgicas. Deixou tudo em ordem por ali e regressou ao
terraço, onde se continuava dançando alegremente.

Mas voltou fazendo um rodeio pelos jardins, de modo que


apareceu por trás de Gusmán, o qual estava escondido
entre uns arbustos, olhando para a zona mais iluminada. Ele
sobressaltou-se, ao ouvir a voz suave à sua retaguarda: —
Johnny?

Virou-se rapidamente, levando a mão à axila esquerda.


Mas logo deteve o movimento, ao reconhecer quem o
chamava.
— Diabo... Você é uma gatinha, Baby!
— Antes, uma pantera — sorriu ela. — Como estão as
coisas por aqui?
— Hum... A señorita Silvestre me deu o recado e
dediquei-me a vigiar Wilshire, que parece estar procurando
alguém. Suponho que a mim. Mas como você disse que me
escondesse...
— Agradeço sua obediência. Mas talvez você tenha que
me explicar algumas coisas, Johnny. Por exemplo: como
soube que eu estaria nesta festa?
— Nossos companheiros me disseram, quando lhes
contei que viera a Ciudad del Mar para assistir ao garden
party de Wilshire.
— Acaso algum deles me conhecia antes?
— Não. Mas tivemos contato com outros companheiros
de países sul-americanos e todos coincidiam num ponto.
“Rapazes — diziam-nos — quando vocês encontrarem os
mais belos olhos azuis do mundo, estarão diante de nossa
querida Baby.” Ora, somando isso ao informe de que você
estaria na festa...
— Compreendo — sorriu Brigitte. — Você é muito gentil,
Johnny. — Vejamos: disse que Wilshire o estava procurando.
Como explica isso?
— É simples: foi ele quem me convidou para o garden
party.
— Wilshire o convidou?
— Exato.
— Mas... Sabe ele que você não se chama Gusmán e que
trabalha para a CIA?
— Claro. Vimo-nos em Washington há dois anos, quando
ele começava a destacar-se por lá e eu estive umas
semanas de férias. E aproximadamente há três meses,
tornou a ver-me em Punta Negra, a segunda Cidade de
Cayomar, na qual estou servindo.
— Continuo não entendendo... Por que ele o convidou
para a festa?
— Não tenho a menor ideia. Estive várias vezes a ponto
de perguntar-lhe, mas fingia não me ver e achei melhor
manter-me numa... discreta espera.
— Fez bem. É estranho tudo isto... Johnny, será você um
traidor?
— Como? — sobressaltou-se ele. — Claro que não! Ouça,
Baby, eu nunca...
— Está bem, está bem, acredito... Embora o mais lógico
seria que fosse um traidor, Johnny. De outro modo, por que
Wilshire o convidou para este party?
— Eu não a compreendo, Baby.
— Admito, pois também eu estou perplexa. Enquanto
procuro encontrar uma explicação lógica para tudo isto,
você vai fazer um trabalho delicado. Sabe que morreram
quatro pessoas... até agora, nesta festa tão simpática?
— Deus... Não, não sabia. Quem...?
— Julián Marlos, embaixador cubano, e seu secretário, ou
algo assim, chamado Alejandro Vilches, mas cujo nome
autêntico era Alexander Vishef, do MVD; ambos prestavam
serviços às espionagens russa e cubana. Também morreu o
comandante Homero Martínez, traidor de sua pátria, e
mademoiselle Gigi Féval, realmente chamada Olga Nadinov,
espiã do MVD, ao qual traiu para passar ao serviço secreto
chinês, sob as ordens de Sin Lai.
— Puxa vida! — exclamou Johnny-Gusmán. — Como
soube de tudo isso?
— Brincando — sorriu Baby. — Ouça: Marlos e Vilches
estão no carro da embaixada cubana, de modo que, quando
terminar a festa, o chofer, não os vendo, levará o carro
embora... com elos no porta-malas. Sin Lai também levará
em seu carro dois cadáveres: Olga e Homero. Pela conta em
que os têm, nem a embaixada, nem o consulado farão o
menor comentário a respeito, de modo que serão dadas
explicações falsas e ninguém saberá nunca o que ocorreu
neste garden-party. Muito bem: o desaparecimento do
comandante Martínez e sua noiva, mademoiselle Gigi Féval,
terá que ser explicado de algum modo ao público, portanto
você vai apanhar o carro dos dois e atirá-lo por alguma
ribanceira... Creio que existe uma bastante aceitável perto
daqui, na estrada... Não sei qual.
— Eu sei. Então, Sin Lai fará desaparecer os cadáveres
dos dois que trabalhavam para ele e nós justificaremos esse
desaparecimento atirando o carro de Martínez pela
ribanceira... Mais tarde ou mais cedo, será encontrado,
todos acreditarão num acidente e os cadáveres não serão
recuperados jamais, claro.
— Exatamente. Conhece o carro de Martínez?
— Saberei encontrá-lo.
— Ótimo. Ali: antes de atirá-lo pela ribanceira, remova o
microfone que coloquei no teto. É tudo, Johnny. Aja com
discrição, para que não o vejam partir nesse carro.
— Fique tranquila. Que faço depois?
— Volte para a festa.
— Bem... Mas já é tarde e talvez termine antes que eu
possa regressar.
— De qualquer modo, volte aqui. Até logo. Separaram-se
e, segundos depois, com toda a naturalidade, Brigitte
aparecia no terraço. Viu imediatamente Edmond Wilshire
aproximar-se, andando apressado. Pareceu-lhe que ele fazia
algum esforço para manter seu cordial sorriso.
— Miss Montfort, onde está o señor Gusmán?
— Ignoro, Edmond. E você não deveria chamar-me
Brigitte, simplesmente?
— Hã? Oh, sim... Mas não sabe mesmo onde está
Gusmán? Como o vi não faz muito em sua companhia — É
que estive uns minutos no toucador... Talvez ele se tenha
cansado de esperar-me. Talvez apareça novamente, se me
vir... E isso será mais. fácil no bar. Convida-me para uma
taça de champanha, Edmond?
— Peço-lhe que me desculpe, mas... tenho absoluta
necessidade de encontrar Gusmán. Pode perdoar-me,
Brigitte?
— Pensarei nisso... tomando champanha — riu Baby.
— Até já.
Dirigiu-se para o bar e pediu o champanha. Ao levar a
taça aos lábios, viu subitamente bem perto dela o cônsul
chinês, cuja expressão fisionômica não podia ser mais
inescrutável. Brigitte sorriu-lhe docemente e ele, muito
correto, inclinou a cabeça, sem que suas feições se
alterassem.
— Não é possível! — exclamou uma voz atrás dela. —
Não posso acreditar em minha boa sorte!
Pousou a taça e virou-se, ainda sorrindo. À sua frente,
com uma expressão incrédula, não isenta de humor, estava
o cônsul brasileiro.
— Dizia, senhor Silveira...?
— Mas está sozinha! Já não quer dançar ou...?
— Depende de quem me convide — riu ela.
— Que tal eu?
Assentindo com a cabeça, colocou-se entre os braços do
brasileiro, que começou a prometer-se todas as maravilhas
possíveis... até que, tão logo cessou a música, miss Montfort
levou a mão à testa, dizendo, em tom desolado: — Estou
com dor de cabeça... Desculpa-me um momento?
— Oh, claro. Se me permite conseguir-lhe uns
comprimidos...
— Tenho alguns, milagrosos, em minha bolsa. Volto já,
senhor Silveira...
Dirigiu-se para a casa, atravessou-a e, ao chegar ao
amplo vestíbulo, olhou para todos os lados. Ninguém.
Todos estavam na parte traseira do jardim, onde se
dançava.
Abriu uma das portas, lançou uma olhadela e tomou a
fechá-la. Não era ali. Mas encontrou o que buscava atrás da
segunda porta: o escritório de Wilshire. Entrou, foi
diretamente à mesa e sentou-se. Dali, aproveitando a vaga
claridade que entrava pela ampla janela, olhou a seu redor.
Em seguida dirigiu-se a um dos quadros, moveu-o e...
Não. Não estava lá. Nem atrás do segundo. Mas sim atrás
do terceiro.
— Muito bem, querida — murmurou. — Ao trabalho...
Aproximou a orelha à porta metálica e pôs-se a
manipular o disco da combinação. Direita, esquerda,
direita... Clic... Esquerda, esquerda direita... Não... Direita,
esquerda... Clic.. Tinha caído outro componente do fecho.
Ia ser menos difícil do que tinha pensado.
Quatro minutos mais tarde, abriu o cofre ‘ sua mão
encontrou papéis, que foi colocando sobre a mesa, e
cuidadosamente. Retirados todos os papéis, acendeu a
lâmpada e pôs-se a examiná-los a toda a pressa. Chegou ao
envelope fecha do, colocou-o de parte e prosseguiu. Por fim
compreendeu que nenhum daqueles papéis lhe interessava
e tornou a metê-los no cofre.
Olhou então o envelope. Nada escrito sobre ele. Virou-o
entre os dedos. Por fim, recorrendo à espátula que havia
sobre a mesa, abriu-o. Nem sequer surpreendeu-se ao ver,
em primeiro lugar, o cheque contra um banco suíço, no
valor de um milhão e quinhentos mil dólares, em no me de
Edmond Wilshire. A assinatura era ilegível. Pôs de lado o
cheque e concentrou-se nas folhas datilografadas, todas
com o sinete do consulado americano e a assinatura de
Wilshire.
Sim, uma vez divulgado aquilo, os cayomarenses só
poderiam sentir pelos Estados Unidos a maior indignação!
Como pudera Edmond Wilshire, aquele homem
encantador...?
Súbito, por cima do distante som da música, chegou a
seus ouvidos o movimento da maçaneta da porta. Apagou
velozmente a lâmpada e encolheu-se atrás da mesa...
enquanto a porta se abria.
Soaram passos apressados, que se detiveram diante da
mesa. Sobre esta, a lâmpada tomou a acender-se e, quase
simultaneamente, o telefone foi levantado do gancho...
Depois, silêncio absoluto.
Baby ergueu-se atrás da mesa, já com a pistola na mão,
firmemente apontada para o peito de Edmond Wilshire, que,
atônito, contemplava o cofre aberto. Mas seus olhos
desviaram-se imediatamente para ela e seu rosto perdeu a
cor.
— Brigitte... — murmurou. — Que significa isto?
Com a mão esquerda, que ainda segurava os papéis e o
cheque, ela indicou o telefone, que o cônsul americano
continuava empunhando.
— Faça a chamada, senhor cônsul... Não se importe
comigo.
— Sua atitude...
— É melhor que a sua. Para quem ia telefonar?
— Não é da sua conta. E quanto ao que fez em meu
escritório, asseguro-lhe que muito irá lamentar...
— Senhor cônsul, eu não preciso de mais nada para
matá-lo. Tenho o suficiente com isto e o microfilme que
entregou a Julián Marlos. Acha que pode dar-me alguma
explicação que justifique... o perdão de sua vida?
— Tem o microfilme?
— Tenho.
— Felicito-a — sorriu Wilshire, assombrando-a. — Espero
que lhe seja útil. Lamento que tenham descoberto a jogada,
mas pode dizer a Marlos e a quem o dirige de Cuba ou da
Rússia...
— Um momento. Acha que tenho alguma coisa a ver com
Marlos?
— Se está de posse do microfilme, é porque Marlos o
entregou a você depois de descobrir minha... brincadeira,
não é assim?
— O microfilme foi tirado de Marlos por uma espiã que
trabalha para o serviço secreto chinês. E eu o tirei dela.
— Não compreendo... — Wilshire pestanejou. —
Evidentemente, você conseguiu uma perfeita falsificação de
cartas e apresentou-se em meu consulado para... Não?
Brigitte deixou de mover negativamente a cabeça.
— As cartas eram autênticas, senhor cônsul.
— Não... não compreendo... Mas, então, para quem
trabalha você?
— Para a CIA.
— Para a...? — ele emitiu um forte suspiro de alívio, olhou
o telefone e recolocou-o no gancho. — Graças a Deus! Pode
me dizer onde Gusmán se meteu?
— Está ocupado.
— Ah... Bem, eu ia telefonar para seu domicílio em Punta
Negra para saber se tinha voltado para lá, ou que lhe
dessem o recado de que era urgente que se pusesse em
contato comigo. Convidei-o para a festa justamente com
este fim, mas não considerei oportuno aproximar-me dele e
dar-lhe explicações até que tudo estivesse bem definido...
— De que está falando, senhor cônsul?
— Estou falando de...
Interrompeu-se bruscamente e ambos olharam para a
porta, que tomava a abrir-se naquele momento.

Quinto

A declaração da independência

A luz central do escritório acendeu-se e Lamont


Doverman e Silvana Silvestre entraram, pestanejando, ao
ver Brigitte apontando sua pistola para Wilshire. Silvana
simplesmente inquietou-se, enquanto Doverman após um
instante de estupefação, dirigiu um olhar furioso à espiã
internacional.
— Que significa isto? — exclamou — deixe agora mesmo
essa...!
— Calma... — murmurou Silvana. — Calma, querido. Miss
Montfort está fazendo o que deve fazer.
— O que deve fazer? Acaso enlouqueceram as duas?
Passaram a noite se olhando, cochichando, fazendo coisas
esquisitas, aparecendo e desaparecendo... E foi você
mesma quem quis vir atrás de Edmond! Posso saber o que
significa tudo isto?
— Significa que Wilshire é um traidor, querido. Tem tratos
com espiões inimigos de Cayomar e dos Estados Unidos. Eu
o fotografei com dois deles, mandei as fotos à CIA e esta
enviou miss Montfort para encarregar-se do assunto.
— Você está louca! Edmond jamais...
— Edmond o fez — cortou Brigitte. — E se lhe interessa,
Lamont, saiba que ontem à noite dois homens, justamente
os que se tinham entrevistado com ele, foram atrás de
Silvana para matá-la, pois se deram conta de que ela os
fotografara.
Lamont Doverman empalideceu intensamente. Olhou
para Wilshire, feições alteradas.
— Edmond, se isso é verdade...!
— É, Lamont... de certo modo. Claro, eu não sabia nada
sobre sua noiva, nesse sentido. Você sabia?
— Eu? Positivamente não! E não estou entendendo
nada...!
— Sua noiva, Doverman — sorriu Brigitte —, pertence ao
serviço secreto de Cayomar.
Boquiaberto, mais pálido ainda, o vice-cônsul virou-se
para Silvana, que assentiu com a cabeça.
— É verdade, Lamont. Mas poderei lhe explicar isso
depois... se você quiser ouvir.
— Creio que a Doverman, no momento, convêm mais
ouvir as palavras de Wilshire — disse Brigitte. — Palavras
que se dispunha a pronunciar, quando vocês entraram.
— De fato — concordou o cônsul. — Agora poderei
esclarecer tudo. Afinal de contas, já consegui o que queria.
— Refere-se ao milhão e meio de dólares?
— Não, não — sorriu Wilshire. — Refiro-me ao fato de ter
descoberto quem são os personagens que estavam
dispostos a fazer uma jogada tão especial para desprestigiar
definitivamente os Estados Unidos na América do Sul. Eles
enviaram dois homens para sondar-me a respeito de minha
possível tendência a trair os Estados Unidos. A princípio,
estive a ponto de reagir com energia, mas deteve-me a
certeza de que, se não tivessem êxito comigo, procurariam
outro cônsul que concordasse com seus planos. Assim, optei
por ouvi-los, entrevistei-me com eles várias vezes...
Finalmente, chegamos a um acordo: por um milhão e meio
de dólares, eu faria qualquer coisa que me indicassem. Mas
até esse ponto ainda ignorava para quem ia trabalhar, pelo
que lhes perguntei. Os dois “amigos” me disseram que isso
não vinha ao caso, que devia limitar-me a aceitar ou recusar
o trabalho. Disse-lhes que o aceitava e ficava à espera de
suas instruções...
— Refere-se a estes papéis? — Brigitte mostrou-os.
— Sim. Foram-me entregues ontem à noite, numa bomba
de gasolina, junto com o cheque e a advertência de que, se
não cumprisse o trato, não viveria o suficiente para
desfrutar um único dólar do preço de minha traição. Disse-
lhes que cumpriria, mas desejava saber para quem estava
trabalhando e que já não queria mais tratos com eles, mas
com seu chefe. Irritaram-se muito, mas insisti: só lhes
entregaria os documentos oficiais, escritos de meu próprio
punho e assinados por mim, quer dizer, as microfotos deles,
quando conhecesse seu chefe... E acabei dizendo-lhes que
seu chefe estava convidado para a festa de hoje, que aqui
eu lhe entregaria o microfilme. Dito isto, tomei o envelope e
a microcâmara que haviam trazido e vim para casa.
— Por que esse interesse em conhecer o chefe daqueles
homens? — perguntou Brigitte.
— Porque queria saber que país estava tramando algo
contra os Estados Unidos e em que consistiam exatamente
esses planos. Tais planos eu os conheci esta noite, quando
aqui mesmo li as instruções que eu devia seguir, relatando
documentos oficiais de meu consulado. Só faltava saber
quem era o chefe deste assunto e, portanto, que país dirigia
a operação de desprestígio dos Estados Unidos na América
do Sul. Assim, convencido de que esse chefe viria ao garden
party, chamei Gusmán, tal como havia pensado. Tinha
conhecimento de que era da CIA, pois encontrei-o em...
— Já sei isso — cortou Brigitte. — Mas por que não
recorreu à CIA desde o primeiro momento?
— Porque se teriam dado conta, talvez. Pensei que esses
espiões deviam conhecer os da CIA que atuam em Ciudad
del Mar, por isso não recorri a eles. Preferi chamar Gusmán,
convidá-lo...
— Com que objetivo?
— Está bem claro, não? Estive esperando até que Julián
Marlos se aproximou de mim e perguntou-me se o
microfilme estava pronto... Finalmente, sabia quem estava
dirigindo a operação. Entreguei-lhe o microfilme e, em
seguida, pus-me a procurar Gusmán para dizer-lhe o que
Marlos tramava, a fim de que ele, com seus companheiros,
agisse em consequência...
— Mister Wilshire — deslizou friamente Brigitte —, está
tratando de fazer-nos crer que suportou toda esta tensão
sozinho caiu o exclusivo propósito de descobrir quem e o
que estavam tramando contra os Estados Unidos?
— Sim. Porque deste modo, não só poderíamos puni-los,
mas também, já de posse de seus planos, prevenir-nos
contra eles e inclusive denunciá-los, se tal nos conviesse.
— Não duvide de que isso será feito — afirmou Brigitte.
— Nem que as punições, sob o aspecto pessoal, já
tenham sido... repartidas. Pode estar certo de que não
surpreenderão os Estados Unidos com essa jogada.
— Graças a mim — sorriu Wilshire.
— Receio que esteja esquecendo alguma coisa, senhor
cônsul.
— Sim? O quê?
— Que tudo quanto disse a respeito de seu amor,
abnegação e fidelidade para com a pátria fica reduzido a
nada, se tivemos em conta que entregou o microfilme a
Julián Marlos. Tinha tanta certeza de que Gusmán poderia
recuperá-lo?
— Oh, isso não importava, realmente... — riu Wilshire.
— Eu até preferiria que esse microfilme tivesse chegado
às mãos dos russos e cubanos!
— Por Deus... — balbuciou Doverman. — Edmond, você
não sabe o que diz. Se esse microfilme chegasse a...
— Espere, Doverman — sorriu Brigitte. — Vamos ver,
Edmond: acerto se digo que o microfilme não continha
exatamente fotos de documentos escritos e assinados por
você?
— Nem sequer cheguei a escrever semelhantes
barbaridades em papel oficial do consulado, está claro! —
afirmou Wilshire.
— Então, que contém o microfilme que entregou a Julián
Marlos?
— Coisas minhas... — riu o cônsul. — Mas asseguro-lhe
que não contém nada do que ele esperava.
— Se isso é verdade, Edmond, não terei mais remédio
senão acreditar no que nos contou.
— Pois tem apenas que dar uma olhadela ao microfilme
para convencer-se.
Silvana avançou um passo.
— Para examinar um microfilme, é necessário possuir um
aparelho que...
— “Gazela” — sorriu Baby —, você conhece meu carro.
Vá até lá com Doverman e traga a maletinha vermelha que
está sobre o assento.
Silvana e Lamont foram em busca da maleta, enquanto
Brigitte olhava o sorridente Edmond Wilshire.
— Gostaria que tudo fosse verdade, Edmond — disse de
súbito.
— Em tal caso, você teria prestado um grande serviço à
pátria... e ganho um milhão e milhão de dólares.
— Oh, não penso ficar com o dinheiro.
— Não? Que vai fazer com ele?
— Dá-lo a Cayomar, para a construção de umas quantas
escolas e centros de saúde em povoações do interior. Com
um milhão e meio de dólares, poderão fazer muitas coisas,
não acha?
— Sem dúvida alguma — murmurou Brigitte. — Isso lhe
criará uma infinidade de simpatias...
— Você não me entende, Brigitte. O donativo será feito
em nome dos Estados Unidos.
— Então Cayomar terá motivos para considerar-nos seus
verdadeiros amigos... Mas por que não utilizar esse dinheiro
em seu prestigio pessoal neste país?
— Eu sou rico — sorriu Wilshire. — O que quero é que
Cayomar continue feliz e com poucos problemas. Por isso,
tendo em conta o serviço que prestei a meu país, espero
que Washington me transfira para um outro mais
importante. Creio que estou preparado para um posto mais
alto... e Lamont merece ocupar este consulado.
— Se você não mentiu, eu conseguirei ambas as coisas,
Edmond: Doverman será cônsul em Cayomar e você
receberá um cargo que, por enquanto, satisfará suas
ambições.
— Você pode conseguir isso?
— Assim — Brigitte estalou os dedos.
— Ótimo... Fumamos?
— Obrigado, Edmond. Mas fume você, se quer.
Ele acendeu um cigarro e estava tirando a primeira
baforada, quando Doverman e sua noiva voltaram ao
escritório. Silvana deixou a maletinha sobre a mesa.
— É esta?
— Sim, obrigada.
Abriu a maleta, tirou o pequeno binóculo de teatro e
destacou uma das lentes dianteiras. Depois sacou do decote
a diminuta cápsula de plástico, partiu-a entre os dedos e
retirou o microfilme, que enfiou com habilidade pela fenda
que surgira, ao destacar-se a lente. Depois orientou o
binóculo para a luz.
Ato continuo, um sorriso apareceu em seus lábios.
Baixou o binóculo e olhou para Wilshire, com expressão
divertidíssima.
— Fantástico! — disse. — Este microfilme vale muitos
milhões de dólares, Edmond!
— Posso vê-lo? — perguntou Doverman. — Quero saber...

— Eu também quero saber, Mr. Doverman — disse uma


voz na porta. — Tenham a bondade de afastar-se para
aquele lado... Antes, miss Montfort, deixe esse binóculo na
mesa.
— Espero que se dê conta do que está fazendo, Sin Lai —
sorriu Brigitte.
— Sem dúvida. É uma... grosseria, mas todos sabemos o
que está acontecendo aqui e quero o microfilme. Não creio
que, posteriormente, haja reclamações por parte de
nenhum consulado.
— Tem razão... — suspirou Baby. — Aconteça o que
acontecer, cada país resolverá discretamente o assunto. A
nenhum convém dar publicidade ao que ocorreu neste
garden party.
— Exatamente. Quanto à sua atuação, miss Montfort...
Bem, a princípio, deixou-me perplexo. Mas depois,
paulatinamente, foi surgindo a meus olhos sua verdadeira
identidade. Constatei que só poderia se tratar da famosa
agente Baby.
— Oh!
— Surpresa? — riu o chinês.
— Por completo, Sin Lai. Mas isto vai me prejudicar
enormemente, compreenda. Pensava deixá-lo partir, o que
agora se torna impossível. Terá que morrer também. A meus
inimigos não posso permitir que conheçam esse pequeno
segredo de miss Montfort.
— Compreendo. E para evitar que utilize contra mim
algum dos seus celebrados recursos, vou matá-la agora
mesmo. Afaste-se da mesa. Não repetirei esta ordem.
Brigitte apoiou as mãos na mesa, olhando anelante para
ele.
— Ouça, Sin Lai, podemos nos entender você e eu se...
— Afaste-se daí. Entre nós não haverá nenhum acordo.
— Como queira — suspirou ela.
Endireitou-se, pareceu que ia afastar-se da mesa... e,
bruscamente, concentrando toda a sua força no braço
direito, que ergueu com a velocidade de um raio,
arremessou a pesada espátula que tinha entre os dedos. Por
uma fração de segundo, houve um brilho no ar. Depois se
ouviu o surdo impacto da espátula contra o peito do chinês,
seu gemido abafado, seu estertor... e sua queda espetacular
no tapete.
Ante o olhar assombrado de todos, Brigitte Montfort
aproximou-se do cadáver e olhou-o, movendo
pesarosamente a cabeça.
— Um erro gravíssimo do senhor Sin Lai... — murmurou.
— Fazia muito melhor seu papel de cônsul, não é mesmo?
— Que... que fazemos com o cadáver? — tartamudeou
Silvana.
— Meu amigo Johnny, quer dizer, o señor Gusmán, se
encarregará dele quando voltar, metendo-o no carro do
consulado da China. E o chofer o levará, quando terminar a
festa, acreditando que seu patrão se retirou com alguns
amigos... Não acontecerá nada. Todo mundo ficará calado.
— Mas isto é terrível... — murmurou Doverman. —
Terrível! Um morto numa festa que...
— Cinco — corrigiu Baby.
— Que... quê?
— Cinco mortos, não um.
— Por Deus...!
— São coisas da espionagem, meu amigo. Não é
verdade, “Gazela”?
— Hã...? Oh, sim... São co-coisas da-da... espionagem...
— Que achou do microfilme, Brigitte? — perguntou
Wilshire.
Ela riu, aproximando-se do cônsul.
— Formidável... — afirmou. — Simplesmente formidável.
Lamont Doverman precipitou-se para o binóculo e,
imitando Brigitte, examinou o microfilme a contraluz.
Quando baixou o binóculo, estava estupefato. Baby teve
tempo de recolher suas coisas e guardar o microfilme antes
que ele conseguisse tartamudear.
— É... é a Declaração da... da Independência dos Estados
Unidos da América...
— Parece-me que não havia mal em divulgá-la — sorriu
Wilshire.
Baby sorriu docemente, enquanto se prendia ao braço
daquele especialíssimo cônsul.
— Voltemos ao terraço, meus amigos... Francamente,
nunca me diverti tanto numa festa como neste delicioso
garden party.

Epílogo

Por uma vez, egoísta!

No silêncio da grande sala iluminada por trás dos sete


homens, soou de súbito a voz do que presidia a assembleia:
— Ouvimos com atenção seu relatório gravado, agente
Baby, e desejamos manifestar nossa conformidade, ponto
por ponto, com a maneira pela qual agiu. Uma vez mais
demonstrou que seus processos sempre resultam, de um
modo ou de outro, vantajoso para a CIA e, por conseguinte,
para os Estados Unidos. Queira aceitar nossas felicitações.
— Obrigado. É-me concedido o que peço no final de meu
relatório?
— Naturalmente. Lamont Doverman será nomeado
cônsul-geral dos Estados Unidos em Cayomar, tão logo
encontremos um posto digno de Edmond Wilshire.
— Mais uma vez, obrigada. Pois que se cumpra o que
prometo a meus amigos. E a respeito de minhas férias... de
verdade?
— Também concedidas, claro — ouviu-se um murmúrio
de risos na assembleia da Central da CIA, em Washington.
— Se é que, realmente, é capaz de permanecer inativa,
agente Baby, coisa de que duvidamos. Podemos perguntar
onde pretende passar suas férias?
— Não.
— Ah... De acordo. Mas há algo que desejamos levar a
seu conhecimento: você foi proposta para fazer parte desta
assembleia, deste Conselho Diretivo de Ação e...
— Já disse em diversas ocasiões que não me interessa
esse posto.
— Mas é um pedido que lhe fazemos... Já que sempre
age como quer, participe ao menos deste Comando. Assim
nos sentiremos mais... conformes com tudo. Aceita?
— Vou pensar... — sorriu Brigitte. — Mais alguma coisa?
— Não... Quer dizer: aproveite bem suas férias.
— Obrigada.
Pouco depois, na sala de Cavanagh, este sorriu, ao
escutar as últimas palavras de sua espiã favorita.
— Não me surpreende nada que o tenha conseguido.
Para você não existem impossíveis. Tampouco eu posso
saber onde encontrá-la durante as férias?
— Tampouco. Não quero intrometidos no garden party
que pretendo me oferecer. E estou falando sério. Por uma
vez, serei egoísta.

A seguir: UM DADO PERDIDO

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