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UNIVERSIDADE FEDERAL DO RIO GRANDE DO SUL

INSTITUTO DE FILOSOFIA E CIÊNCIAS HUMANAS

DEPARTAMENTO DE HISTÓRIA

METODOLOGIAS DA PESQUISA HISTÓRICA – 2020/2

PROJETO DE PESQUISA:

CONTROLE DA LINGUAGEM, DISTOPIA E APAGAMENTO DA HISTÓRIA


As camadas narrativas em 1984, de George Orwell.

Rafael Chies Paschoali

Porto Alegre
2021
1. Apresentação do tema e do problema de pesquisa

É indiscutível a importância do “o quê” e do “como” nas nossas ações e realizações,


mas é o “porquê” o impulsionador principal desta pesquisa. A sentido do estudo da história –
como disciplina e como campo prático da experiência humana – e a sua relevância são
saberes essenciais para todo historiador e historiadora. Antes de qualquer conteúdo prático, os
profissionais da área devem ser capazes de esclarecer para, seja qual for o público, porque
estudar história é importante. Tendo consciência e alívio ao saber que não há somente uma
resposta para a indagação e, com a presente pesquisa, há a pretensão da trilhagem de um
caminho próprio – apoiado teórica e metodologicamente em saberes consolidados – na
direção de responder à pergunta: por que é importante estudar história?
Nas diversas possíveis ramificações a que a pergunta nos leva, em uma delas nos
encontramos com outra área do conhecimento, aparentemente oposta em um primeiro
momento, a literatura. Os romances literários não são obrigatoriamente baseados na
realidade, muito menos é imperioso uma pesquisa formal para escrevê-los. São, em sua
maioria, ficções.1
A forma científica de estudar e realizar história se opõe a esta relativa liberdade de
imaginação desfrutada pelos autores literários. Entretanto, isso não quer dizer que os
conhecimentos são incomunicáveis. Acredito que realizar um diálogo fundamentado entre as
duas áreas, utilizando o melhor dos dois mundos, é a chave para uma percepção histórica
mais humana e acessível. Para o historiador Nicolau Sevcenko (apud MARTINS. 2015, p.
3892), o historiador se ocupa da realidade enquanto o escritor é atraído pela possibilidade.
Realizar uma clara separação entre os dois ofícios é essencial para manter a sobriedade da
pesquisa.
Saber que escritos, sejam eles de qualquer natureza, são criações humanas e que, por
consequência, esta humanidade está inserida em uma manifestação da realidade única, nos
ajuda a situar a obra no seu devido período e lugar. Reconhecer ao outro e a si mesmo como
sujeito, submetidos aos respectivos espaço e tempo é exercício basilar não somente para
compreender história, mas para ser capaz de manifestar a subjetividade inerente do ser
humano. Assim, é nesta dança entre realidade e possibilidade que pretendo me inserir,
analisar como o estudo do que foi, em conjunto com a escrita do que poderia vir-a-ser, nos
ajuda a entender, criticar e modificar o que é.

1
Entre outros, o conceito de ficção e, mais especificamente, o de ficção distópica será trabalhado na parte cinco
do presente trabalho, intitulada Referenciais teóricos.

1
A realidade sobre a qual nos debruçamos está no recorte histórico das décadas de
1920 a 1940, no continente europeu, que tornou-se cenário da ascensão de governos sob o
comando de partidos políticos extremistas. Tais governos possuíam um rol de características
compartilhadas, e neste estudo damos enfoque às reflexões acerca da comunicação de massa
apoiados no conceito de Regimes Totalitários, a partir da filósofa contemporânea Hannah
Arendt, em Origens do Totalitarismo (1951). A possibilidade, por sua vez, é o mundo
distópico apresentado por Eric Arthur Blair na obra literária Mil novecentos e oitenta e quatro
(1984). O livro teve seu lançamento em 1949 e o autor, nascido em 1903 na Índia Britânica,
fazia uso de pseudônimo para assinar suas obras, tornando-se assim conhecido como George
Orwell. A conexão entre a realidade e a possibilidade se materializa – ou melhor, se
humaniza – na figura do próprio Orwell, que viveu e presenciou os ciclos de ascensão e
queda do nazismo alemão e do fascismo italiano, assim como a solidificação totalitária
soviética, e lutou na Guerra Civil Espanhola contra o regime de Franco no período 1936-9.
Para saciar a indagação inicial, acerca da importância do estudo da história, será feita
uma análise focada no método de comunicação aplicado pelo Partido – ente governamental
soberano no romance – que, através de uma narrativa específica, cercea os indivíduos de
incerteza e incoerência. Nesta ficção, o passado é tão mutável e impermanente quanto a
nossa noção de futuro, ou seja, não há história, tanto em sua forma científica, quanto em sua
manifestação enquanto experiência social e coletiva. Colocar em análise de comparação o
modo de governo do Partido com o mundo histórico do autor, que o levou a visualizar um
universo sem história, configura-se em um dos meios principais na imaginação de uma
resposta possível para a indagação inicial.2 Entender como a criação deste aparato
comunicativo opressor imaginado por Orwell se conecta à sua própria experiência de vida é
um dos objetivos da pesquisa.
Deste modo, levando em consideração as vivências do autor, inseridas em um espaço
e um tempo específicos, temos como pretensão entender como, no governo totalitário
presente no romance 1984, a comunicação em massa pode alterar o entendimento subjetivo
da realidade através da propagação de uma narrativa interna à obra ficcional: a novilíngua.3
Essa narrativa, ilustrada a partir do enredo orwelliano, tem por objetivo impedir a reflexão do

2
Os conceitos de comunicação – afunilando em uma comunicação em massa característica dos Regimes
Totalitários – e de narrativa, assim como eles conversam com o objeto de estudo, serão esmiuçados na parte
reservada aos Referenciais teóricos.
3
Vernáculo em processo de poda no universo de 1984, com intuitos de cercear os pensamentos dos sujeitos em
favor do Partido. Será mencionado, também, na seção dos Referenciais teóricos.

2
sujeito, servindo de elemento central à retroalimentação do aparato dominante do governo
totalitário.
A narrativa, aqui, será amplamente trabalhada como conceito baseado no trabalho do
filósofo Paul Ricoeur, em Tempo e Narrativa (1983-85), e aplicado em duas dimensões: a
primeira, dentro do próprio romance, visando observar as consequências da estrutura
narrativa integrada na comunicação difundida pelo Partido; e a segunda, tendo o próprio 1984
como objeto de análise, sendo ele uma narrativa criada em espaço e tempo específicos.
Assim, a partir da tese hermenêutica ricoeuriana, esse mundo da obra projetado
mimeticamente pelo romance distópico, com seus temas e conteúdos, será objeto de análise e
nos ajudará, ao fim, sobretudo, à compreensão da importância da história à sociedade.

2. Revisão bibliográfica pertinente e justificativa do tema de pesquisa

A fortuna crítica sobre 1984 é ampla. Escritores, teóricos e estudantes das mais
diversas áreas confeccionaram e confeccionam estudos sobre a obra. Ciências políticas e
sociais, letras, direito e história são algumas delas. Isto demonstra a amplitude da reflexão
possibilitada por Orwell ao criar o universo presente no livro. Sendo assim, variados ângulos
de análise – partidos de um ponto em comum mas com horizontes diferentes, ou com a
mesma linha de chegada, porém com iniciadores distintos – podem ser imaginados, sob o
prisma de diversos campos do conhecimento. Com isso, encontrar um ângulo original de
análise pode tornar-se algo difícil, porém longe de impossível. Saber da existência e apoiar-se
em artigos e teses abarcantes do tema é realizar um trabalho sóbrio e assentado
cientificamente, assim utilizando-os como alicerce de partida e amparo a meio caminho, para
situar os aspectos já trabalhados e destacar as particularidades inerentes à pesquisa.
Um exemplo de estudo histórico realizado acerca da obra é o Trabalho de Conclusão
de Curso de André Crespani, intitulada “A história impedida: A falsificação da fonte histórica
em "1984" de George Orwell.”. Na monografia de 2016, André traz à tona características
comuns dos regimes totalitários da primeira metade do século XX e do governo ficcional do
Partido na obra e expõe como métodos de controle da informação são usados para atordoar o
cidadão comum e impedir sua situação no tempo. A reescrita das fontes históricas, atrelada à
reestruturação linguística imposta pelo Partido e à constante vigilância dos indivíduos – que
altera percepções de memória e de passado – impede a própria história.
Em dissertação da área da Letras, de 2005, Evanir Pavloski traz à luz os conceitos de
utopia e distopia para demonstrar, através de análise do personagem principal de 1984, como

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a amarração da liberdade individual impede a idealização de modelos sociais. Objetiva
demonstrar “como os múltiplos mecanismos de controle se organizam com o intuito de
suprimir a autonomia física, psicológica e mental dos indivíduos.” (PAVLOSKI, 2005, p. iv).
Em linhas semelhantes, Douglas Eralldo escreve artigo que “tem por objetivo refletir sobre a
força inerte e a ‘incapacidade’ do revolucionar-se diante de regimes autoritários ou
totalitários.” (ERALLDO, 2017, p. 453).
Um conceito incontornável ao estudar historicamente 1984 é o de memória. Jacques
Le Goff a concebe como um instrumento e um objeto de poder, inserindo-a em uma luta pela
dominação da recordação e da tradição. (LE GOFF, 1990) Diversos trabalhos buscam
entender como a abstração que se torna científica através da disciplina histórica é alterada
neste universo ficcional. Em análise de termos, diferentes autoras e autores evidenciam a
violação (MORAES, 2019), o abuso indiscriminado (BRIZOTTO, 2017) e a manipulação
(SILVA, 2010. OLIVEIRA, 2014) da memória.
O retorno à razão de ser da pesquisa se faz necessário no “porquê” de estudar história.
Paradoxalmente, a obra escolhida para tal feito é uma escrita por um indivíduo que, inserido
no seu espaço e tempo, via de forma nublada o futuro das estruturas sociais presentes.
Através da possibilidade que a literatura traz, o mundo criado por Orwell é fundamentado no
esquecimento, na obliteração de registros físicos. Estes registros - ou fontes - são justamente
o material basilar de qualquer pesquisa histórica fundamentada e são essenciais para a
produção historiográfica. Neste sentido, analisaremos uma obra que parte da realidade, leva-a
ao extremo através da possibilidade e retorna a ela em forma de crítica e reflexão.
Esta possibilidade configura-se materialmente em forma de livro e ele, por sua vez, é
formado por uma narrativa. É nela, na narrativa, que está o ponto basilar de análise e de
originalidade da pesquisa. Para remendar a ruptura existente entre a experiência vivida e
compreensão narrativa, Paul Ricoeur, nos escritos Tempo e Narrativa, propõe uma teoria
cíclica sobre as etapas da produção e recepção de qualquer história contada e sobre como a
interpretação humana dela é imprescindível para a continuação do ciclo do entendimento do
passado enquanto narrativamente configurado. A lacuna percebida nos estudos citados, onde
há a pretensão de inserção e preenchimento, está na análise narrativa do e dentro do romance,
terreno onde acreditamos repousar um paralelo direto entre realidade e ficção que auxilia na
visualização das consequências da existência, e ausência, da disciplina histórica.
A fonte principal da pesquisa é o livro 1984, obra com ampla difusão e de relativo
fácil acesso. A relevância social do estudo está em apresentar uma razão para a disciplina
histórica em si, utilizando um caminho que trabalha diretamente com a imaginação do

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sujeito, realizando assim uma ligação emotiva e singular com o objeto de estudo –
paradoxalmente, este é o exercício subjetivo que o Partido procura impedir no mundo
ficcional. Em modos historiográficos, como já visto, o rigor metodológico da literatura é
distinto do da história assim como a linguagem aplicada em cada um. Com forte convicção de
que a interdisciplinaridade enriquece o olhar sobre o objeto de estudo, assim como contribui
para o desenvolvimento das áreas envolvidas, trabalhar com os pés sobre as fronteiras entre
história e literatura parece um ótimo método de observar com outras lentes os dois territórios.

3. Objetivos da pesquisa

3.1 Objetivo Geral

● Compreender como, na análise da comunicação de massa em um governo totalitário


imaginado, a consciência social pode ser impedida intencionalmente através de
métodos narrativos e interpretativos.

3.2 Objetivos Específicos

● Delimitar e diferenciar o alcance das fronteiras das áreas do conhecimento da história


e da literatura e, a partir disso, refletir sobre como uma obra de ficção ajuda a pensar e
modificar a realidade.
● Compreender sobre como a especificidade da vivência de George Orwell afeta o
modo como ele intervém no seu mundo.
● Evidenciar a importância da disciplina histórica a partir de um universo onde a
história em si é rompida.
● Analisar como o tempo vivido, quando transmutado em linguagem, afeta o registro
dele mesmo e a posterior interpretação do ocorrido.
● Pensar criticamente no conceito e na ação da comunicação de massa e de que forma
ela pode ser utilizada para interesses específicos.

4. Referencial teórico-metodológico

Neste projeto de pesquisa, em uma visão abrangente, pretendemos evidenciar a


importância da história. História como disciplina e como campo prático da vivência humana.

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Para alcançar este objetivo, lançamos mão do universo fictício e distópico narrado na obra
literária 1984, na qual o protagonista trabalha em uma instituição governamental responsável
por alterar dados e notícias constantemente, proporcionando ao indivíduo inserido nessa
sociedade uma impermanência histórica. Para realizar este feito, o Partido - unidade cujos
interesses estão por trás de toda a alteração de notícias/fontes/memórias – faz uso de
tecnologias que permitem uma comunicação total e abrangente. Tal comunicação é feita
através de uma linguagem específica, formulada em narrativa, de modo a impedir uma
interpretação não desejada pelo Partido. Em realidade, este processo impede que qualquer
leitura fora do padrão pré-definido seja feita, impossibilitando o entendimento subjetivo da
realidade social e política de todos.
Para situar o lugar de criação e o veio seguido pelo livro em si, um esclarecimento
sobre o conceito de distopia será feito. O romance trata-se de uma ficção, uma criação do
autor que não possui nenhuma amarra ou responsabilidade com a realidade. Isto não quer
dizer, porém, que ele não se baseie direta, indiretamente ou seja influenciado pelo tempo e
pelo lugar do autor – como visto, isso seria ignorar a subjetividade do indivíduo. Afunilando
para o conceito de ficção distópica, 1984 é um dos primeiros grandes do gênero, sendo
relevante fazer menção às obras de Aldous Huxley, Admirável Mundo Novo (1932), e de
Karin Boye, Kallocaína (1940). Em dissertação, Pavloski escreve sobre os tipos de produção
literária da utopia e da distopia:

“Nos dois tipos de produção ocorre a contraposição da realidade a alguma forma de


ideal social com o objetivo de promover, no mínimo, uma reflexão sobre os
elementos do universo experimental tidos como falhos. Tanto o idílio dos utopistas
quanto o pesadelo dos distopistas insere o leitor num contexto de reavaliação
conceitual ao colocá-lo diante de uma perspectiva radical e, em muitos casos,
maniqueísta dos caminhos seguidos pelas sociedades históricas.” (PAVLOSKI,
2005, p.43)

Com destaque ao objetivo de “promover, no mínimo, uma reflexão” que as obras


utópicas e distópicas possuem, adiantamos o paralelo feito entre a narrativa do e dentro do
romance. A narrativa do romance, na sua configuração em livro, possui intenções de fazer
refletir sobre elementos deficitários de governos reais – caso específico, os totalitários. Já a
narrativa dentro do romance, promovida pelo Partido, tem intenções claras de impedir tal
reflexão.
Para compreender a dimensão e o poder da função do protagonista, ao alterar datas e
fatos e também ao apagar completamente a existência de uma pessoa de todo registro
possível – ato chamado de vaporização no romance –, é necessário apreender que, ao fim

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desta cadeia de reescritas e apagamentos, está o consumidor final da informação: o indivíduo.
A notícia, em forma escrita ou em áudio, é passada aos cidadãos através de um aparato
sofisticado de comunicação.
Alguns teóricos consideram a comunicação como uma força equivalente aos três
poderes, até os superando por possuir capacidade de embrenhar-se na interação entre os
mesmos. Somado a isto, a interação entre o Legislativo, Executivo e Judiciário e a população
subjugada a eles – o público-alvo de todas as políticas por eles postas em prática – é
encabeçada pela informação divulgada pelo “quarto mosqueteiro”.

“Já se tornou lugar-comum dizer que a comunicação é o quarto poder. Esta


afirmação – parece-nos – só seria falsa não pelo fato de a comunicação não ser um
poder, mas pelo fato de que ela não seria o quarto, mas sim o primeiro e mais forte
dos poderes.” (GUARESCHI, 1991, p. 13)

Comunicação e poder estão intimamente relacionados. O leito conjugal que


compartilham está claramente apresentado em trabalhos de pesquisadores da área e também
no universo de 1984. O Partido, Socing, divide seu aparato burocrático em quatro
Ministérios: o Ministério da Riqueza, o da Paz, o do Amor e o da Verdade. É possível fazer
um paralelo frouxo entre eles e os quatro poderes – frouxo porque as funções dos Ministérios
não correspondem a dos poderes –, porém o Ministério da Verdade é diretamente comparável
à comunicação como quarto poder, sendo ele também responsável pela produção de todo, e
único, material cultural do país. Quando se lê o trecho “a única realidade passa a ser a
representação da realidade” (GUARESCHI, 1991, p. 14), é possível pensar que algo torna-se
real a partir do momento que é passado nos meios de comunicação existentes. Além disso,
quando existe um monopólio dos meios de comunicação por uma empresa ou instituição, o
efeito é ainda mais avassalador, por não haver qualquer linha de pensamento oposta.
Guareschi escreve que o caminho inverso, o do apagamento, também é possível:

“A conclusão a que chegamos é a de que uma coisa existe, ou deixa de existir à


medida em que é comunicada, veiculada. É por isso, consequentemente, que a
comunicação é duplamente poderosa: tanto porque pode criar realidades, como
porque pode deixar que existam pelo fato de serem silenciadas.” (GUARESCHI,
1991, p. 14)

Ao reconhecer o caráter de construtora da realidade que a comunicação possui, a


consciência de que quem detêm e controla esta ferramenta pode estar utilizando-a de acordo
com interesses próprios vem à tona. No entanto, esta conscientização pode ser muito
dificultada ou até impossibilitada, caso ela não seja desejada pelos detentores deste poder.

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A comunicação, empunhada como ferramenta a serviço de interesses pessoais ou de
grupos hegemônicos, tem a capacidade de definir o outro. A definição de grupos sociais – nos
quais este outro está inserido – como melhores ou piores, como confiáveis ou não confiáveis
tem das mais variadas consequências. Preconceito, segregação e a criação de um inimigo em
comum são utilizados na legitimação de invasões e retaliações a povos e grupos sociais. Os
meios de comunicação tornam-se espaço e o meio privilegiado onde as culturas são criadas,
exaltadas e tornadas aceitas. Ao mesmo tempo, pode fazer o caminho na contramão, ao
destruir, diminuir e criminalizar outras.
É com esta definição do conceito de comunicação, quase como uma instituição
comparável aos três poderes e ao mesmo tempo algo misterioso “no sentido de algo que se
constitui na própria essência da coisa, essa realidade última que é sempre invisível, intocável,
inefável” (GUARESCHI, 1991, p. 13), que pretendo analisar a sua aplicação e efeitos no
mundo de 1984, em uma sociedade de dominação na qual a hegemonia do Partido sobre a
comunicação define uma situação ou alternativa como a única válida possível.
Como comentado anteriormente, esta comunicação intencionada e soberana é
realizada através de uma linguagem específica, uma linguagem em construção. A novilíngua,
dito vernáculo que passa por presente transformação pelo Partido é mais uma garantia do
sucesso do controle social desejado, por podar palavras com potencial de criar pensamentos
de rebeldia em relação às normas e maneira de ser do Socing. A novilíngua é o conteúdo
prático inserido na estrutura, que por sua vez é o aparato comunicativo desenvolvido.
Hannah Arendt, em capítulo denominado Uma sociedade sem classes,4 discorre sobre
como a obliteração aparente das classes sociais nos Regimes Totalitários levaram ao
surgimento das massas. Massas como pessoas que, devido à sua grande quantidade numérica
não integram-se a nenhuma organização baseada no interesse comum. Isto, segundo ela,
permitiu métodos totalmente novos de propaganda política e comunicação de massa. Outro
fator trazido à tona, basilar para o objetivo dos governos totalitários, é a falta de continuidade
como um todo nesses regimes. A adaptabilidade dos líderes, junto com o estar em movimento
e volubilidade das massas é de essência para a instabilidade da memória pretendida e
realizada através dos aparatos de comunicação.
No presente projeto, além do fator da linguagem, a forma como a informação é
passada para o público também é importante para o ângulo de estudo almejado. Com isso,
façamos referência não só à forma concreta, técnica, da comunicação – teletelas (aparelhos

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Primeiro capítulo da parte III do livro, intitulada Totalitarismo.

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instalados no âmbito privado de cada pessoa, que grava e emite sons e imagens de forma
intermitente), banners, comícios – mas também à estrutura narrativa utilizada no discurso que
bombardeia constantemente os indivíduos. Assim, é observável a ligação direta entre o
conteúdo e a estrutura do discurso passado com a própria vivência dos indivíduos. Para poder
trabalhar de forma mais fundamentada a relação que a forma narrativa deste discurso tem
com a experiência do vivido – visando o horizonte primordial da importância da história em
uma sociedade –, nos apoiaremos no conceito de narrativa, com foco no Círculo
Hermenêutico, de Paul Ricoeur.
Para Ricoeur, a narrativa histórica e ficcional são coladas à experiência vivida. Ela
vem do e retorna para o vivido em um círculo, que permite a afetação e a interpretação dos
conteúdos narrados ao entrelaçarem-se com a percepção da realidade de cada indivíduo.
Esteja este indivíduo no campo vivido do que está sendo narrado, ou no outro vértice, o da
leitura e interpretação dessa narrativa. Sujeito e história têm um ponto de partida e de retorno
em comum, além do caminho trilhado em conjunto, configurado mútua e constantemente,
quando “[...] o tempo torna-se tempo humano a medida que é articulado de um modo
narrativo, e que a narrativa atinge seu pleno significado quando se torna uma condição da
existência temporal.” (RICOEUR, 1994, p. 85)
Após compreender de maneira inicial como a narrativa é vista por Ricoeur, é preciso
fazer uma ligação entre ela e o conhecimento histórico. Tal conhecimento, da forma que é
passada para as pessoas, possui um caráter intrinsecamente narrativo, “que oferece
inteligibilidade ao vivido ao articular tempo e ordem lógica.” (REIS, 2016, pp. 22-23). O
processo nada mais é do que uma ligação indireta entre a vivência e o reconhecimento dela,
através da contação de uma história em forma de narrativa. Em análise, Ricoeur, para fazer
esta ligação, lança mão de três etapas formadoras de um círculo:

“Para ele (Ricoeur), os três momentos do círculo hermenêutico fariam esta ligação
indireta entre vivência e reconhecimento: mímese 1 (M1), prefiguração do campo
prático; mímese 2 (M2), configuração textual deste campo; mimese 3 (M3),
refiguração pela recepção da obra. A mímese 2 é a própria composição poética, a
obra escrita do historiador, que é a operação de configuração de uma intriga.”
(REIS, 2016, p. 28)

Aqui, o círculo hermenêutico refere-se diretamente à materialização do ofício do


historiador, situação não presente no romance analisado. O caso de 1984 mostra, e aí vem o
modo como pretendemos aplicar o conceito de narrativa na obra, uma manipulação da
narrativa que impede – congela – o círculo na altura da M3, impossibilitando uma nova
configuração da obra pelo leitor. Relembrando o citado anteriormente acerca da

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comunicação, a possibilidade de criar uma realidade através da representação da mesma entra
na altura da M2, quando o discurso é adicionado à compreensão prática.
Antes de entrar nas características específicas que permitem o controle do círculo,
segundo Ricoeur, uma breve explanação de como relacionam-se as mímeses é necessária.

1. A mímese 1 (M1), como prefiguração do campo prático, é a ação. É o


ocorrido. Possui um quê, um por quê, um como, um quem... Ela propicia e
pede uma narração;
2. A mímese 2 (M2), como configuração textual deste campo prático, é a
narrativa que acrescenta o discurso à compreensão prática. Faz uma
configuração lógica do acontecido. Ela propicia e pede a interpretação do
leitor;
3. A mímese 3 (M3), como refiguração pela recepção da obra, é o sentido pleno
da narrativa através da interpretação subjetiva. A narrativa é restituída ao
tempo do agir e do sentir – antes, presente na M1 –, fechando e reiniciando o
círculo.

Como Reis exemplifica: “O indivíduo que sai (M3) da sessão de psicanálise (M2) não
é o mesmo que entrou (M1).” (REIS, 2016, p. 33). A partir de agora, o conceito de narrativa
de Ricoeur é mais transferível ainda para a situação da comunicação em 1984. Como ele
deixa claro, o círculo hermenêutico não é vicioso, por haver uma interpretação subjetiva e
original em M3, que por sua vez transforma-se em uma nova M1. Entretanto, o círculo é
passível de controle e congelamento, seja por uma manipulação ativa do autor em M2 ou por
um erro do receptor ao não aplicar expressão própria em M3. Nada impede que uma
apresentação absoluta da M2 propicie – e possibilite somente – uma imitação mecânica por
parte do receptor, que abre mão total – por não ter alternativa – da expressão própria da sua
subjetividade. E é justamente este o objetivo quando, no Ministério da Verdade, as notícias
são constantemente modificadas. Neste universo, o passado é tão instável e imprevisível
quanto o futuro, fazendo do presente uma eterna estagnação.
A segunda aplicação do conceito de narrativa está na expansão do escopo de análise.
Saindo de dentro do romance, de como ela se aplica na realidade dos personagens, iremos
para como o livro 1984 também se insere no Círculo Hermenêutico. O recorte temporal em
que Orwell se inseria – hoje sendo o recorte histórico analisado – é o das décadas de 1920 a
1940. O acontecido, o campo prático e a ação (M1), é a ascensão de governos totalitários no

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continente europeu, o que propiciou e pediu uma narrativa acerca dos mesmos. O modo de
configuração desta narrativa é o da ficção distópica (M2) que, como dito anteriormente,
propõe uma reflexão dos elementos do campo prático tidos como falhos. A mímese 3 ocorre
no momento em que a narrativa é posta em contato com o receptor, quando o livro é lido ou
escutado. A partir daí, a interpretação única do sujeito é possibilitada, modificando leitor e
obra, que por sua vez transforma-se em nova ação, retornando à primeira mímese.
A articulação entre os conceitos principais de comunicação e narrativa com a proposta
de pesquisa está na evidenciação das consequências de quando o sentido negativo da mímese
é trazido à tona: a repetição mecânica do vivido. A ausência da reflexão de si mesmo cria o
terreno perfeito para o controle dos indivíduos. A imitação – intencionada e pensada por
quem não sofre dela – impede a consciência de si mesmo e do sistema em que se está
inserido, tornando impossível qualquer mudança do status quo político: intenção máxima do
Partido. Através da comunicação em massa e de uma narrativa pré-moldada, o Socing alcança
com sucesso seu objetivo que é “só o poder pelo poder, poder puro”.

5. Cronograma de atividades

Atividade Agosto Setembro Outubro Novembro Dezembro

Leitura da bibliografia ● ●

Releitura da fonte ●

Escrita dos capítulos ● ●

Entrega e apresentação ●

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7. Referências bibliográficas

FONTE

ORWELL, George. 1984. São Paulo: Companhia das Letras, 2009.

BIBLIOGRAFIA CONSULTADA

ARENDT, Hannah. Origens do Totalitarismo. São Paulo: Companhia das Letras, 1989.

BRIZOTTO, Bruno. Controle do passado e manipulação memorial em 1984. Revista


Athena, v. 13, n. 2, 2017. Disponível em: https://periodicos.unemat.br/index.php/athena/
article/view/2893.

CRESPANI, André Luís Lucero. A história impedida: A falsificação da fonte histórica em


"1984" de George Orwell. 49 f. Trabalho de Conclusão de Curso, Universidade Federal do
Rio Grande do Sul, Porto Alegre, 2016.

GUARESCHI, Pedrinho A. A realidade da comunicação: Visão geral do fenômeno. In:


LAZZAROTTO, Gisley Romanzini et al. Comunicação e Controle Social. Petrópolis, Rio
de Janeiro: Editora Vozes Ltda., 1991, cap. 1, p. 13-22.

ERALLDO, Douglas. A impossibilidade do revolucionar-se: um olhar sobre os proletas


em 1984, de George Orwell. Mosaico, v. 16, n. 1, 2017. Disponível em:
http://www.olhodagua.ibilce.unesp.br/index.php/revistamosaico/article/view/433.

LE GOFF, Jacques. História e Memória. Campinas: Editora da Unicamp, 1990.

MARTINS, Giovana Maria Carvalho. O uso de literatura como fonte histórica e a relação
entre Literatura e História. Universidade Estadual de Londrina, 2015.

MORAES, Alexia de Oliveira. Direito à verdade e à memória em 1984 de George Orwell


e em Engenharia Reversa (Black Mirror): uma análise na perspectiva dos Direitos
Humanos, à luz do pensamento de Hannah Arendt. Monografia (graduação em Direito) –
Departamento de Direito, Centro de Ciências Sociais Aplicadas, Universidade Federal de
Sergipe, São Cristóvão, 2019. Disponível em: https://ri.ufs.br/handle/riufs/12637.

PAVLOSKI, Evanir. 1984. A distopia do indivíduo sob controle. Dissertação apresentada ao


Curso de Pós-Graduação em Letras do Setor de Ciências Humanas, Letras e Artes da
Universidade Federal do Paraná. Curitiba, 2005.

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OLIVEIRA, Terezinha de Assis. Linguagem e memória em Fahrenheit 451 e 1984. 87 f.
Dissertação (Mestrado em Estudos da Linguagem) - Universidade Federal de Goiás. Catalão,
2014. Disponível em: https://repositorio.bc.ufg.br/tede/handle/tede/7429.

REIS, José Carlos. Tempo, História e Compreensão Narrativa em Paul Ricoeur. Locus:
Revista de História, 12 (1), 2016. Disponível em: https://periodicos.ufjf.br/index.php/
locus/article/view/20634.

RICOEUR, Paul. Tempo e narrativa – Tomo I. Campinas, São Paulo: Papirus Editora,
1994.

SILVA, Matheus Cardoso da. O último homem da Europa: a luta pela memória no
universo não ficcional da obra de George Orwell, 1937-1949. Dissertação de Mestrado
apresentada na Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas da Universidade de São
Paulo - USP. São Paulo, 2010. Disponível em: https://www.teses.usp.br/teses/disponiveis
/8/8138/tde-26112010-125409/en.php.

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