Você está na página 1de 2

6.6.

3 Amor de Perdição
O livro Amor de perdição, de Camilo Castelo Branco é narrado por dois narradores, um em primeira pessoa e outro em terceira
pessoa. O narrador narra em primeira pessoa quando a voz autoral aparece discutindo acerca de alguns assuntos como o ato de
escrever, informando de onde tira suas histórias, quando quer discutir com o leitor sobre os assuntos que quer questionar ou
analisar. Às vezes, o narrador está em terceira pessoa, narra uma frase em primeira pessoa e retoma a terceira pessoa novamente.
O narrador de terceira pessoa aparece quando ele está contando a história do livro, os acontecimentos e os fatos. Também insere o
discurso direto com o diálogo das personagens e cartas de amor.
Além disso, o narrador insere, na introdução da narrativa, uma carta e afirma que se trata de um acontecimento que de
fato ocorreu com um parente. As datas com informações sobre nascimentos e falecimentos são usadas com a finalidade de dar ao
texto maior veracidade.
No capítulo dezenove, há um trecho que exemplifica a voz do narrador em primeira pessoa que trata do fazer literário da
seguinte maneira:
A verdade é que algumas vezes o escolho de um romance. Na vida real, recebemo-la como ela sai dos
encontrados casos, ou da lógica implacável das coisas; mas a novela, custa-nos a sofrer que o autor, se inventa,
não invente melhor; e se copia, não minta por amor da arte. Um romance que estriba na verdade o seu
merecimento é frio, é impertinente, é uma coisa que não sacode os nervos, nem tira a gente, sequer um
temporada, enquanto nos lembra, deste jogo de nora, cujos alcatruzes somos, uns a subir, outros a descer,
movidos pela manivela do egoísmo. A verdade! Se ela é feia, para que oferecê-la em painéis ao público?!
(BRANCO, 1995, p. 109).

Com a citação, fica claro que, na narrativa, o narrador escreve sobre a representação da sociedade portuguesa na literatura
e diz-nos que a obra representa o intimismo, a bondade ou a maldade do ser humano, visto que o narrador faz uma crítica explícita
aos comportamentos das personagens que vivem no século XIX. No trecho citado, podemos dizer que há uma mistura da voz
narrativa com a voz autoral, em que aparece o próprio Camilo Castelo Branco que tem voz no texto.
O narrador representa a sociedade que mimetiza as famílias rivais dos Albuquerque e Coutinhos.
Os Albuquerques são a família de Teresa, composta por ela, Tadeu e o primo Baltazar. A outra família é de Simão
Botelho, suas irmãs, D. Rita e Domingos.
A relação amorosa de Simão Botelho e Teresa é representada por duas personagens que vivem um amor impossível e que
morrem por causa da frustração de não terem conseguido vivê-lo. Simão é um rapaz adolescente, de dezessete anos, homem
bravo, que gostava de armas, de atirar, era do partido dos jacobinos. Desde os quinze anos, o rapaz já tinha o comportamento
agressivo, conforme o fragmento: “partiu muitas cabeças, e rematou o trágico espetáculo pela farsa de quebrar todos os cântaros”.
A personagem Simão é construída pelo narrador de terceira pessoa como personagem que passa por uma transformação
na narrativa. Seu caráter se ascende e ele passa a ter atitudes nobres, devido ao amor que sente por Teresa que consegue
transformá-lo num verdadeiro herói.
Porém, com a sua índole, o instinto de Simão floresce por qualquer motivo que o contraria, como no segundo capítulo:
Na véspera de sua ida para Coimbra, estava Simão Botelho despedindo-se da suspirosa menina, quando
subitamente ela foi arrancada da janela. O alucinado moço ouviu gemidos daquela voz que, um momento antes,
soluçava comovida por lágrimas de saudade. Ferveu-lhe o sangue na cabeça; contorceu-se no seu quarto contra as
grades inflexíveis da jaula. Teve tentações de matar, na impotência de socorrê-la. As restantes horas daquela
noite passou-as em raivas e projetos de vingança. Com o amanhecer esfriou-lhe o sangue, e renasceu a esperança
com os cálculos (BRANCO, 1995, p. 22).

No fragmento, o narrador conta como a personagem se sente como um ser que se irrita com o sofrimento que sua amada
sente. O amor era proibido por causa da inimizade entre as duas famílias, por isso nem Simão, nem Teresa tinha permissão para
namorar e se casar. O narrador também se adentra na alma de Simão e narra seus pensamentos: “Teve tentações de matar” e
“renasceu a esperança com os cálculos”. Sabemos que, nesse momento, se trata de um narrador onisciente que sabe o que as
personagens sentem. Em vários capítulos, o narrador representa o pensamento de Simão que é tomado de uma vontade enorme de
matar Baltazar, ele até imagina se encontrando com o inimigo e matando-o.
Ao representar a sociedade portuguesa o narrador critica a aristocracia através de Tadeu e Baltazar. Personagens que se
comportam de acordo com o modelo de família patriarcal, o casamento arranjado entre parentes para que os bens continuem entre
si. São personagens que mandam matar os inimigos com emboscadas e agem conforme seus interesses pessoais. Através do mito
do bom cavaleiro, o narrador cria um herói ao avesso, que é Simão. A sua representação se dá como alguém que é frágil diante do
sentimento amoroso e age como um crente na fé católica através das rezas que fazia aos santos, invocando a solução para o amor
impossível.
O narrador representa, no início da novela, a personagem Mariana como uma mulher forte, brava, determinada, mas que,
ao conhecer Simão, se torna tão emotiva e frágil quanta Teresa, que é a mulher representada como frágil que sente febre e
alucinações de dor de amor. Vejamos um fragmento que o narrador narra sobre Mariana apaixonada:
Deste este dia, um secreto júbilo endoidecera o coração de Mariana. Não inventemos maravilhas de abnegação.
Era de mulher o coração de Mariana. Amava como a fantasia se compraz de idear o amor duns anjos que batem
as asas de baile, e apenas quedam o tempo preciso para se fazerem ver e adorar um reflexo de poesia apaixonada.
Amava e tinha ciúmes de Teresa, não ciúmes que se refrigeram na expansão ou no despeito, mas infernos surdos,
que não rompiam em labareda aos lábios, porque os olhos se abriam prontos em lágrimas para apagá-la
(BRANCO, 1995, p. 107).
É nítido que o narrador nos conta de maneira exagerada sobre amor e o ciúme que Mariana sentia. Ele utiliza a linguagem
clara, simples do cotidiano e compara o ciúme com o inferno, próprio do sujeito que vivia numa época em que a fé católica era
disseminada e o inferno era temido e tido como o pior lugar que as almas poderiam ir. Assim, a mulher forte e racional que ele
narrou no capítulo quinze se torna fraca e submissa perante o sentimento amoroso. É um dos traços da prosa romântica, o exagero,
o pessimismo amoroso das personagens que se embebessem de amor e não conseguem raciocinar com clareza a respeito de mais
nada que não seja o amor, a paixão.
Ao representar Teresa e Simão, o narrador conta a história amorosa de ambos já refletindo em todo processo narrativo
sobre a impossibilidade de se concretizar essa relação proibida que é podada pelos pais das duas personagens. O narrador também
mostra o sentimentalismo e a submissão das personagens de Teresa e de Simão ao sentimento amoroso que se entregam à paixão
até a morte, criando um fim trágico de ambos que não é possível resolverem a questão amorosa em vida.
Tanto Simão quanto Teresa são representados como personagens que sentem desejo pela morte e inserem as cartas de
amor que representam o excesso de sentimentalismo, o exagero e o desejo de morte como solução do problema, como podemos
comprovar no capítulo sete:
A desgraça não abala a minha firmeza, nem deve intimidar os teus projetos. São alguns dias de tempestade, e
mais nada. Qualquer nova resolução que meu pai tome, dir-ta-ei logo, podendo, ou quando puder. A falta das
minhas notícias deve atribuí-la sempre ao impossível. Ama-me assim desgraçada, porque me aprece que os
desgraçados são os que mais precisam de amor e de conforto. Vou ver se posso esquecer-me, dormindo. Como
isto é triste, meu querido amigo!...Adeus.
(BRANCO, 1995, p. 51).

Sabemos que o narrador se mascara também através destas cartas para narrar o que as protagonistas sentem, porque as
cartas são confissões dos sentimentos dos amantes. E exemplifica o extremismo, a subjetividade amorosa, a personagem
dramática, que possui uma única razão de viver que é para amar.
O narrador também aproveita para criticar o Catolicismo através dos comportamentos das freiras e dos padres no
convento. Ele conta intrigas e rixas entre as freiras para representar o lugar como desprovido de bom comportamento para a
integridade das noviças e internas. É de maneira crítica que o narrador mostra as brigas e, logo depois, as celebrações religiosas
em que as freiras se comportam como santas na presença das superioras e a prática de atos considerados
ilícitos pela religião católica.
No capítulo dezenove, ao narrar o destino que a personagem Simão teve após matar Baltazar, o narrador nos diz:
Esperança para Simão Botelho, qual?
A Índia, a humilhação, a miséria, a indigência.
E os anelos daquela alma tinham mirado as ambições de um nome. Para a felicidade do amor envidava as forças
do talento; mas além do amor, estava a glória, o renome e a vã imortalidade, que só não é demência nas grandes
almas e nos gênios que se sentem previver nas gerações vindouras. Mas grinaldas de amor a escorrem sangue dos
espinhos, essas infiltram veneno corrosivo no pensamento, apagam no seio a faísca das nobres afoitezas apoucam
a ideia que abrangera mundos, e paralisam de moral espasmo os estos do coração. (BRANCO, 1995, p.
110).

O narrador, nos parágrafos citados, inicia indagando e respondendo a respeito do destino de Simão com certo tom crítico
para mostrar a punição que o réu recebeu. A seguir, ele culpa o amor por causar a desgraça na vida de Simão. E compara o amor
ao veneno que contamina toda a corrente sanguínea de forma rápida e mata a vítima após a picada dos animais venenosos. O
narrador diz que o amor leva os nobres e fortes à decadência, que eles se deixam conduzir pela emoção e sentimentalismo e não
dominam mais seus próprios desejos. Com isso, a razão humana não consegue atuar onde o sentimento amoroso domina.
Assim, concluímos que o narrador inverte certos valores morais e éticos ao por em evidência a rivalidade de duas
famílias. Tudo isso serve como pano de fundo para que ele mostre os comportamentos medíocres e instintivos que levam os
homens portugueses que são mimetizados através do processo narrativo. As personagens agiram com crueldade: Tadeu porque
mandou a filha para o convento porque não obedeceu à sua vontade. A outra: Domingos que negou ajudar financeiramente o filho
preso porque o filho desobedeceu à sua imposição e namorou a filha do inimigo.
O deboche da sociedade feito pelo narrador chega ao extremo quando a personagem Simão, que era filho de juiz, foi
sustentado na prisão por um assassino, João da Cruz, o pai de Mariana. Outro tema relevante é a morte que é narrada em Amor de
perdição através do gosto pelo dramático. Tal fato pode ser comprovado nas citações que se encontram no capítulo vinte:
Simão viu um rosto e uns braços suspensos das reixas de ferro; mas não era de Teresa aquele rosto: seria antes
um cadáver que subiu da claustra ao mirante, com os olhos da cara inçados ainda das herpes da sepultura. Simão
Botelho como um cadáver embalsamado, cujos olhos artificiais rebrilham cravados e imotos num ponto, lá tinha
os seus imersos na interior escuridade do miradouro. Nenhum sinal de vida. Acabou-se tudo!... - murmurou
Simão. - Eis me livre... para a morte... Senhor comandante – continuou ele energicamente - eu não me suicido.
Pode deixar-me (BRANCO, 1995, p. 115

No primeiro parágrafo citado, o narrador conta o que Simão viu; posteriormente, conta o que ele sentiu. Ele evidencia
certo gosto pelo mórbido, pelo sofrimento e excesso do fúnebre. Na segunda citação, ele representa Simão vivo, mas com traços
de morto, e descreve e compara a personagem com um cadáver, apesar de estar vivo. Na última citação, o narrador mostra o
último estado de dor amorosa que Simão se encontrava após receber a notícia da morte de Teresa. O suicídio é citado como
prática dos amantes mal sucedidos, no entanto o narrador constrói para Simão uma morte natural e constrói o suicídio para
Mariana. Todo este excesso de sentimentalismo e fugacidade é tido pelos teóricos de literatura como característica
ultrarromântica.

Você também pode gostar