Você está na página 1de 36

|Rita Mineiro

Amor de Perdição de Camilo de Castelo Branco

Entre 1851 e 1890, durante quase 40 anos, Camilo de Castelo Branco escreveu mais
de duzentas e sessenta obras, com a média superior a 6 por ano. Prolífico e fecundo, o
escritor deixa obras de referência na literatura lusitana.
Camilo Ferreira Botelho Castelo Branco não permitiu que a intensa produção
prejudicasse a beleza idiomática ou mesmo a dimensão do seu vernáculo, transformando-o
numa das maiores expressões artísticas e num mestre da língua portuguesa. De entre os
vários romances, deixou um legado enorme de textos inéditos, comédias, folhetins, poesias,
ensaios, prefácios, traduções e cartas.
A crítica tem apontado que, se, por um lado, Camilo nos enredos das suas novelas,
com as suas peripécias mais ou menos rocambolescas, está claramente numa filiação
romântica, por outro lado, nas explicações psicológicas, na maneira como analisa os
sentimentos e ações das personagens, pelas justificações e explicações dos acontecimentos,
pela crítica a determinado tipo de educação, não pode ser considerado simplesmente como
romântico.
Jacinto do Prado Coelho considera-o “ideologicamente flutuante, Camilo mantém-se
um narrador de histórias românticas ou romanescas com lances empolgantes e situações
humanas comoventes” e também diz que “O romantismo de Camilo é um romantismo em
boa parte dominado, contido, classicizado”, e que há ao “lado do seu alto idealismo
romântico a viril contenção da prosa, um bom senso ligado às tradições e a certos cânones
clássicos, um realismo sui generis, de vocação pessoal que parece na razão direta da
autenticidade do seu romantismo”.
Com o aparecimento do Realismo, Camilo, sentindo-se a perder terreno para esta
nova escola literária, envereda em duas novelas Eusébio Macário e A Brasileira de Prazins e
tenta ser mais realista.
No início da sua produção literária, Camilo adota os temas do amor contrariado
pelos “pais tiranos”, devido aos desníveis sociais; da mulher seduzida e abandonada pelo
protagonista, que é um alto espírito, mas corrompido pela sociedade; do enjeitado ou da
enjeitada; das catástrofes causadas pelo amor: assassínios, suicídios, tuberculização,
enlouquecimento, consagração forçada ou voluntária do herói ou heroína à vida sacerdotal
ou conventual.
Após a publicação de Anátema (1851), Camilo Castelo Branco passa a cultivar com
frequência o romance ou a série de novelas de cariz melodramático, com ação intrincada,
truculenta, arrastando-se através de várias gerações graças a uma cadeia imensa de crimes
passionais e vinganças, por vezes, com um vago fundo histórico.
Podemos concluir que os temas camilianos recorrentes são: a bastardia, a
orfandade, os direitos do coração por oposição às convenções sociais, as relações familiares,
o sentido metafísico de cariz cristão e o anticlericalismo.

Amor de Perdição

Amor de Perdição é o título de uma novela de Camilo Castelo Branco, escrita em


1862. É o mais famoso romance do autor, um dos expoentes do Romantismo em Portugal. A
redação desta obra foi inspirada nas suas desventuras – sempre envolvido em casos
amorosos complicados – e na peça Romeu e Julieta, de Shakespeare. Com a publicação da
obra em 1862, Castelo Branco alcança grande popularidade.

2
|Rita Mineiro

Simão Botelho e Teresa de Albuquerque pertencem a famílias distintas, que se


odeiam. Moradores de casas vizinhas, em Viseu, acabam por se apaixonar e manter um
namoro silencioso através das janelas próximas. Ambas as famílias, desconfiadas, fazem de
tudo para combater a união amorosa. Tadeu de Albuquerque (o pai de Teresa), após
recorrentes tentativas de casar sua filha com um primo (Baltasar), acaba por interná-la num
convento. Após luta travada com os criados do primo de Teresa, Simão Botelho permanece
na casa de um ferreiro devedor de favores ao seu pai. A filha do ferreiro, Mariana, acaba
também por se apaixonar por Simão, constituindo um triângulo amoroso. Teresa e Simão
mantêm contacto por cartas. Este, numa tentativa de resgatar Teresa do convento, acaba
por balear Baltasar e é condenado à forca. Mais tarde, as influências de seu pai, antigo
corregedor, irão mudar a pena para dez anos de degredo na Índia. Ao embarcar, vê Teresa,
que morre de desgosto. Nove dias depois, doente, Simão acaba por morrer também, e no
momento em que vão lançar o corpo ao mar, Mariana, filha do ferreiro, atira-se do navio e
morre abraçada ao corpo de Simão.
O narrador apresenta-se em terceira pessoa, identificando-se apenas no final do
livro como filho de Manuel Botelho, irmão de Simão, no entanto, inclui alguns aspetos
biográficos.
Amor de Perdição faz parte da chamada segunda fase do romantismo, em que o amor
pode levar até as últimas consequências (como a própria morte).

Novela passional

A novela passional é uma história breve e tensa do conflito entre o sentimento


individual – sobretudo o amor, elevado quase às alturas de uma religião – e os obstáculos
que a sociedade lhe impõe, ou entre as forças contrárias que partilham a alma humana e a
levam tanto aos cimos dolorosos do martírio como aos negros abismos do crime e da
expiação. Com efeito, é uma narrativa em que o rápido acontecer empolga ao mesmo tempo
o narrador, o leitor e as personagens, arrastadas às situações extremas onde as grandes
opções se levantam, uma busca do absoluto, que a maior parte das vezes se resolve na
morte.

Os mártires do amor

“A fórmula “mártires do amor” tem, nesta novela passional de Camilo Castelo


Branco, um alcance mais do que metafórico. Trata-se, no fundo, de promover o amor à
categoria do sagrado, do incomensurável com a razão e com as normas mais correntes.
O desenvolvimento do enredo através dos «elos de uma cadeia fatal» segue um trilho
profetizado por presságios terríficos e confirmado por coincidências estranhas, não raro
coloridas de sobrenaturalidade; à consumação do «sacrifício» assiste a própria natureza
emocionada; dir-se-ia que cada amante não passa de mera causa ocasional da tragédia.
O sofrimento, o remorso, a expiação cruciante do pecado de fruir na Terra a glória
de um amor ultraterreno é que desgasta as almas eleitas – e não o pacato cumprimento das
normas do Decálogo ou do código civil. Camilo põe sob os nossos olhos a máscara dolorosa
e precocemente envelhecida de um ser jovem que o incêndio do amor consumiu. A salvação
está em chorar e padecer; há, sim, uma esfera de eternidade, mas nela projeta-se, não o
heroísmo das opções responsáveis, mas sim uma fatal bem – aventurança do sofrimento.

3
|Rita Mineiro

In: SARAIVA, António José e LOPES, Óscar, História da Literatura Portuguesa, 6ª edição, pp. 824-825
(adaptado).

A heroína camiliana

Em novelas ou romances sobre o amor contrariado, o autor explora a situação


paradigmática definível como a “oposição paterna à realização amorosa – resistência
(paixão) e morte da protagonista” e, partindo daí, constrói o drama existencial das
personagens femininas.
Percebendo, quase a nível instintivo, a oposição paterna como sinal dum jugo que
ultrapassa o simples âmbito familiar, a protagonista da novela passional camiliana escolhe
linha de conduta em função da qual, coerente consigo mesma mas incapaz de derrubar ou
anular as forças que a cerceiam, vai até às últimas consequências. Chega à catástrofe,
representada a nível da história pela morte real, simbólica (loucura e/ou entrada num
convento) ou ainda por ambas.
Diante da heroína camiliana apresentam-se dois cenários de honra que se opõem e
um deles deve ser escolhido pela heroína. Por um lado, temos a “honra social”, ou seja, ela
tem de cumprir um dever imposto pela sociedade, dever que assumiria sentido e
pertinência só dentro da estrutura social: esta obrigação moral sintetiza-se na obediência
total à obediência paterna. Por outro lado, surgido o vínculo amoroso, a heroína, consciente
do significado do compromisso amoroso, ela vai optar por um princípio contrário à sua
educação burguesa. Opta, então, pela fidelidade ao amor, que suplanta e substitui a
fidelidade aos interesses familiares e sociais, mas não sem que haja o início da “morte lenta”
da personagem.
As heroínas camilianas criam para si mesmas um código de honra de todo
incompatível, pelo facto de viverem numa sociedade que os interesses da família se
sobrepõem aos do amor. Na contradição entre honra pessoal e honra social (familiar),
debatem-se as protagonistas do conflito amoroso em Camilo. A mulher é a maior força que
se levanta contra um estado de coisas.
O pai tirano, figura por excelência da sociedade repressiva, muitas vezes não chega
a adquirir complexidade de personagem. A extensa galeria de amores impossíveis na ficção
camiliana significa a impossibilidade de exercício de qualquer forma de liberdade, a integral
opressão do ser, a fatalidade, da subordinação aos princípios repressivos de que decorre o
inteiro aniquilamento da pessoa.
Tanto Simão como Teresa experimentam o mesmo drama, mas em tons diversos. O
alimento do amor de Teresa não é a presença nem a convivência de Simão: o seu amor
nutrir-se-á do próprio estado amoroso, da escolha, da busca.
Maria Lúcia Lepecki, Colóquio Letras, nº 30 (adaptado)

As três fases de Simão

Podemos encontrar três fases distintas em Simão Botelho: a primeira, de oposição


entre o indivíduo e a sociedade (é o período da rebeldia, da negação revolucionária,
extremista); a segunda, de conversão à ordem instituída, logo de reconciliação (é a fase da
esperança, postos olhos na realização virtuosa do amor); a terceira, novamente de oposição
radical entre o indivíduo e a sociedade; agora, porém, Simão, portador na alma dum
imperativo (a dignidade sem a qual nem o amor é possível), sabe-se tratado com injustiça

4
|Rita Mineiro

revoltante. Simão sabe que é ele, transformado pelo amor, que representa a Ordem
verdadeira, no respeito por si próprio, pelos direitos do coração, pela justa relação afetiva
entre pai e filho, enquanto os pais tiranos, os fidalgos dum errado pundonor, os ódios
inveterados entre famílias, a falsa justiça, a sociedade que admite tudo isto, representam a
autêntica desordem.
Jacinto do Prado Coelho, Introdução do Estudo da Novela Camiliana (adaptado).

Amor de Perdição: breve análise introdutória

O autor mostra-se, desde início, minuciosamente informado não só das


circunstâncias em que decorreu a vida das duas últimas gerações anteriores à sua, mas
também de dados genealógicos e biográficos mais antigos (“Folheando os livros de antigos
assentamentos no cartório das cadeias da Relação do Porto, li, no das entradas dos presos
desde 1803 a 185, o seguinte…”). No entanto, é evidente que, para estimar o valor literário
desta obra, pouco importa que se confirmassem ou não as aparências de verdade, até
porque a verdade histórica não deve impedir a verdade literária (lembremo-nos das
palavras de Almeida Garrett, na “Memória ao Conservatório Real”).
Com efeito, Camilo demonstra uma enorme preocupação em conferir alguma
verosimilhança às histórias que conta e parece ser o caso de Simão Botelho: a prisão, a
condenação ao degredo com dezoito anos eram, sem dúvida, factos dolorosos, mas o
novelista lê: degredado aos dezoito anos… juventude e degredo, juventude e sofrimento,
juventude e crime… Porque se sofre nessa idade feliz? Para Camilo a resposta é só uma –
amor e a história surge: “Amou, perdeu-se, morreu amando…”.
Na realidade, a ação de Amor de Perdição é simples, sóbria e una. Assim, temos o
amor de dois jovens (tal como Romeu e Julieta), Simão Botelho e Teresa de Albuquerque,
contrariado pelas respetivas famílias, que se odeiam, que leva Teresa ao convento e Simão
à cadeia e consequente degredo na Índia. A ação decorre na província portuguesa, fechada
nos seus preconceitos, nas suas intrigas locais, pequeno mundo de relações estreitas, onde
a tradição familiar e a reputação pessoal contam mais, ou seja, é o espaço que a esta história
mais convém.
Desta feita, a novela decorre entre algumas casas de família, dois conventos, duas
cadeias e termina no mar, num navio de degredados – espaços fechados, reduzidos e que,
progressivamente, se vão estreitando em torno das personagens, à medida que a tragédia
avança.
Com efeito, as casas de família oprimem ou repelem, não confortam nem amparam,
como seria de esperar. Teresa sente-se aliviada ao estar enclausurada num convento, ao
invés de estar presa na casa da sua família. No entanto, temos uma descrição dos conventos
assente na corrupção e na hipocrisia, com exceção ao convento de Monchique, no Porto,
onde Teresa morre, que é suficientemente austero e piedoso. Em relação às prisões, estas
surgem caracterizadas por oposição aos conventos, pois parecem lugares desertos, onde
Simão está solitário e toda a ajuda vem do exterior, a prisão nada lhe dá; preso, Simão não
fala com nenhum prisioneiro, nem com o carcereiro. Num caso, como no outro, o modo como
os protagonistas reagem ao espaço que os condiciona e ao castigo que ele lhes impõe
permite-nos reconhecer, enfim, sob a aparente simplicidade das personagens, a sua real
complexidade.
Tendo em conta este carácter complexo e o facto de viverem regidos unicamente
pelo amor e não pela razão, resta a Simão e Teresa a morte, pois esta é a única forma de

5
|Rita Mineiro

preservar a integridade do eu, libertando-se do jugo do mundo que em vão lutou para
aniquilar os amantes. Esta solução torna-se o grande absoluto que Simão persegue, a estrela
fatal que o guia e que vai derramar sobre todos os que o seguem a sua luz sinistra.
Concluindo, Amor de Perdição é sobretudo a história de um jovem que se perdeu na
busca de um absoluto que a vida não dá. Crime e loucura, pundonor exaltado que é ainda
preconceito de casta, luta pelo amor, tudo isto foi o motivo da ação desta novela, que chora
a perda da juventude perdida em nome do sentimento.

Estrutura e organização da novela

Amor de Perdição é uma verdadeira intriga, dado que a ação se inicia e segue em
gradação crescente, sem pausas, nem desvios, atinge o seu clímax e obriga ao desenlace.
Na introdução, o narrador resumiu lapidarmente a intriga principal desta forma:
“amou, perdeu-se e morreu amando”, assim, cada oração aponta para os momentos
essenciais da história. Então, podemos estruturar a obra e provar a sua linearidade, com
base nestas palavras e verificarmos que não temos analepses, nem pausas significativas,
com exceção no capítulo VII, em que o narrador se demora na análise da vida corrupta do
convento de Viseu.

(Imagem in: GUERRA, João e VIEIRA, José, Aula Viva, Português A 11º Ano, Porto Editora)

I. Ação

6
|Rita Mineiro

Amor de Perdição é constituído por uma intriga principal – amor de Simão e Teresa
– e uma intriga secundária – a história de Manuel Botelho, seu irmão.
A intriga principal está organizada de forma linear, dado que a ação se inicia e segue
em gradação crescente, sem pausas nem desvios, atinge o ponto máximo e obriga à rutura
ou ao desenlace.
Na intriga, encontramos elementos dramáticos importantes para o desenrolar da
ação, como o ódio (“O magistrado e sua família eram odiosos ao pai de Teresa, por motivos
de litígio, em que Domingos Botelho lhes deu sentença contra.”, capítulo II); o fatalismo
(“Não sei o que me adivinha o coração a respeito de vossa senhoria. Alguma desgraça está
para lhe acontecer…”, capítulo V); e, por fim, a morte (“Baltasar Coutinho lançou-se de
ímpeto a Simão. (…) Baltasar tinha o alto do crânio aberto por uma bala que lhe entrara na
fronte.”, capítulo X).
De facto, muitas outras citações existem, mas estas são suficientes para evidenciar a
presença destas três forças dominantes. No entanto, sabendo que o drama não pressupõe a
presença de entidades superiores e que a tragédia implica essa mesma presença,
constatamos que o clima trágico paira ao longo da intriga principal. Se o ódio e o amor
nascem nos corações, o fatalismo está associado ao Destino. Desta forma, o fatalismo
comandou a intriga: tal como o Destino uniu Simão e Teresa e os aproximou, assim os
separará e destruirá.
Em relação à intriga secundária, constituída pelos amores de Manuel Botelho, irmão
de Simão, e a açoriana, esta surge encaixada na intriga principal, com o intuito de contrastar
com a personagem principal, realçando Simão não só pelas atitudes que toma, mas também
pela coragem demonstrada perante as adversidades. Efetivamente, Manuel Botelho fica
marcado pela sua constante cobardia e fuga às responsabilidades.

II. Personagens

Simão Botelho

No início da novela, Simão é um jovem de quinze anos, rebelde, com um


temperamento incontrolável e cruel. Na verdade, inicialmente, ele tinha um génio
sanguinário, mas era corajoso e belo, como a mãe. No fundo, era um perturbador e um
agitador da ordem pública e uma fonte interminável de desgostos para os seus pais.
Quando se apaixona por Teresa, muda de atitude, pois o amor transforma-o. Assim,
Simão demonstra ter um carácter virtuoso e nutrir um sentimento puro e verdadeiro pela
donzela. De facto, ele torna-se honesto, estudioso, responsável, porque quer ter
rendimentos para poder viver com a sua amada.
No entanto, a sua índole rebelde e vingativa nunca se perdeu e culmina com a morte
de Baltasar, porém Simão mantém a honra e não foge, nem aceita um tratamento especial
por ser filho de um juiz. Apesar de a família o tentar ajudar, nunca muda a sua condição de
culpado, nem recorre da sentença da forca, mostrando a sua obstinação e firmeza.
Por todas estas características, Simão Botelho é o típico herói romântico, que vai ter
como antítese o seu pai, Domingos Botelho, Baltasar Albuquerque e Tadeu de Albuquerque.

Teresa de Albuquerque

7
|Rita Mineiro

Teresa tem quinze anos, é uma rica herdeira, bonita, bem-nascida e excecional no
amor. Quando se apaixona por Simão, um amor proibido, vai lutar contra tudo e todos pelo
seu amor. Assim, aparentemente frágil, demonstra ter uma personalidade forte, um carácter
resoluto e firme, pois atua de forma inflexível perante as ameaças sucessivas do seu pai, um
homem cruel e tirano.
Apesar de nunca estar com Simão, se não por breves instantes, devido à condição de
subserviência da mulher na época, Teresa mostra a mesma obstinação que Simão,
preferindo perder a vida, ou o martírio da clausura conventual, a casar à força com o homem
que o seu pai escolheu.
Teresa, no meio de tanto sofrimento, ainda tem alguma esperança na felicidade,
porque vê o amor como a única razão de viver, por isso acredita no amor para além da
morte. A donzela é vítima da tirania paterna, mas luta pelo seu amor, indiferente à sociedade
da altura.
No fundo, ela age guiada pelo profundo amor que sente pelo amado, tornando-se a
típica heroína romântica.

Mariana

Mariana é a terceira peça do triângulo amoroso, embora o seu amor por Simão não
seja correspondido. A jovem do povo tem vinte e quatro anos, é inculta e bela, mais bonita
que Teresa, acabando por recusar vários pretendentes, alguns endinheirados, o que mostra
a força do seu amor por Simão e o seu desprendimento dos bens materiais.
Ela já conhecia Simão, antes de ele ir para sua casa, e já o admirava por ser o salvador
do seu pai, João da Cruz, e por ser um homem corajoso e bravo. Mariana faz de sua
enfermeira, tratando-o com muito carinho, pois é dotada de grande sensibilidade e intuição,
prevendo até o futuro.
Em relação a Teresa, admira-a e ajuda o par amoroso, servindo de intermediária
entre ela e Simão, trazendo as cartas através das quais eles se correspondem. Ainda
comparando com Teresa, a jovem tem uma relação de amor verdadeiro com o pai, ficando
louca ao saber do seu assassinato.
Quando Simão vai para a cadeia, acompanha-o e faz-lhe companhia, apesar de ter
consciência de que ele não a ama, mas o seu coração tem razões que a razão não
compreende. O seu último gesto – o suicídio – mostra bem a força do seu amor.
Finalizando, também Mariana não se importa com as regras da sociedade, sendo
assim a encarnação da mulher-anjo romântica.

João da Cruz

O pai de Mariana é a personagem mais autêntica e real da obra. Ele é um homem do


povo, ferrador de profissão; é uma personagem complexa, misto de bondade, gratidão,
coragem, violência e crueldade. De salientar, a sua linguagem profundamente castiça e
popular.

Domingos Botelho e Tadeu de Albuquerque

Domingos de Botelho, juiz de fora, é ridicularizado desde as primeiras páginas,


tendo o narrador o cuidado de o contrastar com o seu filho Simão.

8
|Rita Mineiro

Tadeu de Albuquerque é o paradigma do pai tirano, déspota; é fidalgo, mas, ao longo


da novela, vai-se desfigurando, até cair na caricatura, servindo para o narrador criticar os
falsos valores da aristocracia.
Na verdade, estes atuam como oponentes do amor de Simão e Teresa, por via de um
profundo ódio que sentem um pelo outro, por motivos de justiça (o pai de Simão presidiu a
um caso legal que o pai de Teresa perdeu). Radicais nos seus comportamentos, eles
preferem ver o sofrimento dos seus filhos a abrir mão dos seus princípios e das suas
convicções. Desta forma, representam o conservadorismo, o egoísmo, a crueldade, o apego
à honra e a hipocrisia social.

Baltasar

O primo de Teresa é o anti-herói romântico por excelência. Baltasar não tem


carácter, nem qualidades positivas, servindo para contrastar com Simão. Tendo tentado
matá-lo de emboscada, teve o fim que merecia.
Baltasar torna-se cúmplice do tio para destruir o par amoroso, revelando uma
personalidade dissimulada, hipócrita, perversa, arrogante, o que desperta o asco em Teresa,
que recusa casar com ele, preferindo a morte ou o convento.
Assim, ele é um fidalgo prepotente e traiçoeiro, representando o vilão e o rival de
Simão na novela.
D. Rita Preciosa

A mãe de Simão era bela e inteligente, mas dotada de um comportamento de quem


sempre viveu na corte, daí que seja uma figura ambígua, ora ajuda Simão, ora atua contra
ele.

Manuel Botelho

O irmão mais velho de Simão representa a mediocridade e uma certa marginalidade,


visto que é um cobarde, mentiroso e se torna um desertor. Assim, surge na obra apenas para
contrapor a sua personalidade à do seu irmão.

III. Espaço

O espaço físico sofre uma redução à medida que a intriga se vai desenvolvendo:

Simão Teresa
Viseu (casa dos pais) Viseu (casa dos pais)

quarto de João Convento de


da Cruz Viseu
cela da Convento de
prisão Monchique

beliche cela

9
|Rita Mineiro

Como se observa, enquanto o espaço se fecha, aumentam a distância entre as


personagens e a sua incomunicabilidade, o que faz do próprio espaço um elemento
intensificador da tragédia (confrontar com Frei Luís de Sousa).

Espaço social

a) Nobreza decadente: a mentalidade dos pais de Simão e Teresa, a sua atuação, o seu
vestuário, tudo aponta para a decadência e a ruína. Além disso, a rivalidade entre as duas
famílias é verdadeiramente mesquinha De facto, o narrador terá tido como objetivo
denunciar os preconceitos sociais de certas camadas da população.
b) Arbitrariedade da justiça: vê-se claramente a intenção de denunciar a parcialidade dos
julgamentos, de acordo com a classe social dos acusados e os pedidos de pessoas influentes.

c) Arbitrariedade do exército: neste aspeto, também são denunciadas irregularidades.


Assim, Domingos Botelho interfere junto de um Corregedor para que se obtenha o perdão
para o seu filho Manuel, que era desertor.

d) Vícios do clero: o narrador reservou um capítulo (VII) para criticar os vícios de um


convento: o de Viseu. Hipocrisia, intrigas entre freiras, preocupações materiais,
sensualidade são os principais defeitos apontados. Esta posição é compreensível, tendo em
conta que realça o contraste entre a inocência e a dignidade de Teresa e o mundo corrupto
do convento; no entanto, o narrador louva a bondade das freiras de Monchique.

Espaço psicológico

As personagens da novela são caracterizadas, geralmente, de forma indireta, através


das suas atitudes e dos diálogos que mantêm entre si. Por vezes, a própria personagem faz
a sua autocaracterização, em momentos de introspeção (cartas de Simão e Teresa, os sonhos
de Mariana).

IV. Tempo

A novela estende-se ao longo de sete anos (1801-1807), como se comprova ao longo


da leitura da mesma, portanto, no início do século XIX. A ação desenvolve-se de forma linear
e cronológica, privilegiando a narração ao invés da descrição.
O tempo psicológico é largamente explorado pelo narrador, ao dar-nos a conhecer a
angústia e sofrimento das personagens, que eles sentem prolongar-se de forma infinita,
vendo como único fim possível a morte.

V. Narrador

O narrador é omnisciente e heterodiegético, ao longo da maioria da ação, porém, na


Introdução, no capítulo XIII e na Conclusão, constatamos que este se confunde com o autor,
já que, como afirma no prefácio, está a contar a história da sua família (Manuel Botelho é
seu pai, Rita é sua tia); aliás, na Introdução, utiliza a primeira pessoa verbal.
Como narrador, conta a história apaixonadamente, comove-se com as atitudes das
personagens, elogia-as, comenta e apela ao narratário várias vezes. Tendo optado pelo

10
|Rita Mineiro

processo de caracterização indireta, conjuga de forma coerente a visão interna e a visão


externa, aumentando o realismo da narrativa.

VI. Prosa poética – as cartas.

Tendo em conta o seu progressivo afastamento, Simão e Teresa comunicam por


carta. As cartas entre ambos não são regulares, têm extensões diferentes e o seu discurso
não utiliza sempre o mesmo tom. Assim, as cartas têm como funções:
- servir de elo de ligação entre eles;
- informar o destinatário sobre os acontecimentos;
- comunicar as decisões tomadas;
- persuadir o destinatário a adotar determinadas atitudes;
- autojustificar os atos do destinatário;
- exprimir sentimentos.

Ao afirmarmos que as cartas são exemplos de prosa poética, salientamos o seu


lirismo profundo, de forma a acentuar os sentimentos (positivos ou negativos) do
remetente, bem como reforçar o sentimento puro e forte que une Simão e Teresa.

11
|Rita Mineiro

12
|Rita Mineiro

13
|Rita Mineiro

14
|Rita Mineiro

15
|Rita Mineiro

Sistematização

Sugestão biográfica
Narrador Simão
Identificação com o autor tio
- rebeldia juvenil: várias relações amorosas; - rebeldia juvenil: relações familiares
temperamento inconstante; conflituosas; temperamento violento;
- a paixão por Ana Plácido: a calma; - a paixão por Teresa: a calma;
- prisão na Cadeia da Relação resultante da - prisão na Cadeia da Relação resultante do
paixão; assassínio (por paixão);
- clausura de Ana Plácido na prisão. - clausura de Teresa num convento

16
|Rita Mineiro

A construção do herói romântico


- destaque na luta pela liberdade do ser “Amou, perdeu-se, morreu amando” é a
humano: ideais liberais assumidos expressão que traduz o perfil e a evolução de
publicamente; Simão, enquanto herói romântico:
- comportamentos de rebeldia na busca desses - a força física e moral;
ideais; - a impulsividade, a solidão e a rebeldia, face à
- busca do absoluto no âmbito amoroso; sociedade;
- defesa incondicional da honra; - os instintos violentos;
- força anímica na superação de barreiras e - a vivência de um amor transfigurador, que
interdições (revolta contra o poder patriarcal; redime os erros;
eliminação do rival); - o domínio dos sentimentos sobre a razão;
- egocentrismo: o seu idealismo condu-lo ao -o idealismo amoroso e a firmeza e dignidade
isolamento, à ação individual; face à ameaça da forca e do degredo;
- recusa das soluções apresentadas pela - a ideia da morte inseparável da ideia de amor
sociedade por significarem a assunção da e encarada como salvação e transcendência;
derrota (automarginalização); - a força do destino que o persegue.
- destruição física e moral que conduz à
destruição de outros: Teresa e Mariana.

Narrador
domínio completo dos acontecimentos; conhecimento total
Focalização omnisciente
das personagens, dos seus pensamentos, sonhos e emoções.
diálogo com o narratário (aproximação do objeto narrador,
Focalização interna
efeito de verosimilhança).
Narrador autodiegético transição entre o passado remoto, o passado próximo e o
(Introdução e Conclusão) presente do sujeito de enunciação; efeito de verosimilhança;
Narrador heterodiegético intervém na narrativa com um discurso paralelo (narrador
(capítulos I a XX) subjetivo), ao mesmo tempo que conta a história de seu tio.

Amor de Perdição como crónica de mudança social


- província: espaço rural atrasado, no qual persistem os
A nobreza de sangue e a alteração valores tradicionais; decadência da nobreza provinciana
simbólica da aristocracia (Lisboa vs. comparada com a plebe lisboeta;
Província) - Lisboa: a capital moderna, marcada pelas hierarquias
sociais e a vida na corte.
- patriarcalismo português: autoritarismo e intransigência
guiados por um código honra vão e obsessivo (clausura de
A instituição familiar: a sociedade
muitas jovens em conventos);
burguesa oitocentista
- sociedade regida por códigos fúteis;
- os conflitos entre famílias.
- clausura de jovens para retificação de comportamentos;
- crítica à devassidão presente nesses espaços pelo
Os conventos (o clero) comportamento da classe clerical contrário aos seus votos
e à missão destas instituições (intrigas, vida mundana,…);
- influência negativa nas jovens enclausuradas.
- aplicação da justiça condicionada pela influência dos mais
A incipiência do estado de direito
poderosos;

17
|Rita Mineiro

- apresentação da visão do povo: atuação distinta da justiça


perante as classes sociais.
- a influência dos ideais da Revolução Francesa (1789):
A Europa em mudança liberdade, igualdade e fraternidade – prenúncio de
mudança.

Oponentes
- Domingos Botelho;
Amor de Simão e - Tadeu Albuquerque;
Relações entre
Teresa - Baltasar Coutinho.
personagens
Adjuvantes
- João da Cruz;
- Mariana.

O amor-paixão
Simão AMA Teresa - Simão ama Teresa, perde-se por amor
(assassínio, prisão, degredo) e morre a amar
AMA Mariana Teresa;
- Teresa ama Simão, perde-se por amor (clausura
no convento) e morre por amor;
- Mariana ama Simão, perde-se por amor
(abdicação da família e da felicidade) e mata-se
por amor a Simão.

Os Maias de Eça de Queirós

Realismo, Naturalismo, Impressionismo e Parnasianismo

Os Maias, escrito por Eça de Queirós, é um romance do século XIX que retrata a
história trágica de uma família portuguesa. Tendo em conta o contexto literário,
encontramos várias correntes nesta obra, como o Realismo, o Naturalismo, o Parnasianismo
e o Impressionismo.
Desta forma, a “Questão Coimbrã” (1865) preparou o terreno para o aparecimento
do Realismo, pois agitou as classes cultas e políticas. Com efeito, agora em Lisboa, as
“Conferências do Casino” (1871) inauguraram esta escola literária e as bases desta nova
forma de escrever.
De facto, o Realismo é uma nova expressão da arte. O Romantismo foi a apoteose
do sentimento e a expressão do individual; o Realismo, por sua vez, é a análise tendo em
vista a verdade absoluta, a representação objetiva da realidade e a expressão da
impessoalidade. Para conseguir isto, este deve banir o excesso de sentimentalismo, a
retórica oca e superficial, bem como deve ir buscar inspiração às correntes filosóficas para
exprimir a real problemática do Homem da sua época.
Efetivamente, esta escola literária critica o que considera estar errado na sociedade:
o ócio da alta burguesia, a depravação do clero, a ignorância da classe política, a educação
retrógrada da juventude, os maus costumes, a imoralidade, o adultério feminino, os vícios,
entre outros.

18
|Rita Mineiro

Associado a esta esta, surge o Naturalismo, que adota o método científico. Com
efeito, este é uma tentativa de aplicar à literatura as descobertas e os métodos da ciência do
século XIX. Assim, para os escritores naturalistas, o Homem é um animal cujo destino é
determinado pela hereditariedade, pelo efeito do seu meio ambiente e pelas pressões do
momento, como a educação, por exemplo. Esta conceção, terrivelmente deprimente, rouba-
lhe toda a livre vontade, toda a responsabilidade dos seus atos, pois são apenas o resultado
inescapável de força e das condições físicas que estão totalmente para além do seu controlo.
Sendo assim, os romances de índole naturalista estão construídos para provar
determinadas teses, sobretudo o determinismo, que julgavam dirigir todos os
comportamentos humanos.
Como a obra literária deve ser o reflexo da realidade, os realistas conseguem
descrever e narrar os acontecimentos com naturalidade. De facto, estes são mestres no
desenho e no colorido e cuidam muito o aspeto formal da escrita, aproximando-se do
Parnasianismo. Esta escola literária surgiu devido à saturação das carpiduras românticas,
ou seja, é uma reação antirromântica. O Parnasianismo defende a ideia da Arte pela Arte, o
mais importante é a forma, em detrimento do conteúdo.
Por fim, nesta época, podemos falar do Impressionismo, que constitui uma fuga ao
sentimento de decadência, aliando-se, portanto, ao decadentismo e ao simbolismo. Como
características, apontamos as construções impessoais, a qualidade do objeto (cor)
sobrepõe-se ao objeto, a mistura de perceções diferentes, daí que encontremos como figuras
de estilo mais recorrentes do Impressionismo sejam a hipálage e a sinestesia.
Concluindo, o século XIX foi bastante profícuo no que a escolas literárias diz respeito
e tal facto comprava-se pelo hibridismo presente em Os Maias.

Resumo da obra

A ação de "Os Maias" passa-se em Lisboa, na segunda metade do séc. XIX, e conta-
nos a história de três gerações da família Maia. Esta inicia-se no Outono de 1875, altura em
que Afonso da Maia, nobre e rico proprietário, se instala no Ramalhete.
O seu único filho – Pedro da Maia – de carácter fraco, resultante de uma educação
extremamente religiosa e protecionista, à portuguesa, casara-se, contra a vontade do pai,
com a filha de um antigo negreiro, Maria Monforte, de quem tem dois filhos – um menino e
uma menina. Mas a esposa, após conhecer Tancredo, um príncipe italiano que Pedro
alvejara acidentalmente enquanto caçava, acabaria por o abandonar para fugir com o
Napolitano, levando consigo a filha, de quem nunca mais se soube o paradeiro. O filho –
Carlos da Maia – viria a ser entregue aos cuidados do avô, após o suicídio de Pedro da Maia,
devido ao desgosto da fuga da mulher que tanto amava.
Carlos passa a infância com o avô, recebendo uma educação rígida, principalmente
direcionada à educação e só depois à religião. Forma-se depois, em Medicina, em Coimbra.
Carlos regressa a Lisboa, ao Ramalhete, após a formatura, onde se vai rodear de alguns
amigos, como o João da Ega, Alencar, Dâmaso Salcede, Euzebiozinho, o maestro Cruges,
entre outros.
Seguindo os hábitos dos que o rodeavam, Carlos envolve-se com a Condessa de
Gouvarinho, que depois irá abandonar. Um dia, fica deslumbrado ao conhecer Maria
Eduarda, que julgava ser mulher do brasileiro Castro Gomes. Carlos segue-a algum tempo
sem êxito, mas acaba por conseguir uma aproximação quando é chamado por ela para
visitar, como médico, a sua governanta que adoecera. Começam então os seus encontros

19
|Rita Mineiro

com Maria Eduarda, visto que Castro Gomes estava ausente. Carlos chega mesmo a comprar
uma casa onde instala a amante. Castro Gomes descobre o sucedido e procura Carlos,
dizendo que Maria Eduarda não era sua mulher, mas sim sua amante e que, portanto, podia
ficar com ela.
Entretanto, chega de Paris um emigrante, que diz ter conhecido a mãe de Maria
Eduarda e que a procura para lhe entregar um cofre desta que, segundo ela lhe dissera,
continha documentos que identificariam e garantiriam para a filha uma boa herança. Essa
mulher era Maria Monforte – a mãe de Maria Eduarda era, portanto, também a mãe de
Carlos. Os amantes eram irmãos. Contudo, Carlos não aceita este facto e mantém
abertamente, a relação incestuosa com a irmã, sem que esta saiba que são irmãos. Afonso
da Maia, o velho avô, ao descobrir que Carlos, mesmo sabendo que Maria Eduarda é sua
irmã, continua com a relação, morre de desgosto.
Ao tomar conhecimento, Maria Eduarda, agora rica, parte para o estrangeiro; Carlos,
para se distrair, vai correr o mundo. O romance termina com o regresso de Carlos a Lisboa,
passados 10 anos, e o seu reencontro com Portugal e com Ega, que lhe diz: - "Falhámos a
vida, menino!".

20
|Rita Mineiro

I. Ação
Os Maias são constituídos por uma ação principal (amores incestuosos de Carlos
Eduardo e Maria Eduarda) e uma ação secundária (o casamento fracassado de Pedro da
Maia e Maria Monforte). A ação secundária é precedida por uma extensa analepse que nos
narra a vida de Afonso da Maia e a educação de Pedro da Maia.
Alternada com a intriga principal, numa narrativa de alternância, temos a crónica de
costumes, com o objetivo de representar os vícios e os costumes da sociedade lisboeta dos
finais do século XIX.

II. Personagens

a) Personagens principais

1. Carlos da Maia
Toda a ação gira em torno de Carlos: a sua educação, os estudos em Coimbra, a vida
social em Lisboa, a sua vida amorosa e, finalmente, o seu regresso a Lisboa, para
simbolicamente desvendar ideologias.
É descrito como um belo jovem da Renascença (beleza que o aproxima de sua mãe,
apesar de possuir os olhos negros e líquidos dos Maias). Após acabar o curso, faz uma longa
viagem pela Europa e, quando regressa a Lisboa, tem grandes projetos para o futuro
(laboratório, revista médica, consultório, …). Com efeito, Carlos é um diletante, quer a nível
profissional, quer a nível amoroso, pois a sua dispersão leva-o a uma ausência de realização
pessoal.
A sua verdadeira paixão será Maria Eduarda, comparando-a a uma deusa; por ela,
dispõe-se a renunciar a preconceitos e a colocar o amor em primeiro plano. Porém, ao saber

21
|Rita Mineiro

da verdadeira identidade de Maria Eduarda, consumará o incesto involuntário, que levará á


morte de Afonso da Maia, por não ser capaz de resistir à atração que sente por ela. Carlos
acaba por assumir que falou na vida. De facto, a ociosidade crónica dos portugueses acaba
por o contagiar.
Na sua personalidade, destacam-se as seguintes características: cosmopolitismo,
sensualidade, luxo, diletantismo e dandismo.
Educado de uma forma esmerada, fracassou. Porquê? Não foi por causa da educação,
mas apesar da sua educação que falhou. Carlos da Maia fracassou, não só devido ao meio
onde se instalou – uma sociedade parasita, ociosa, fútil -, mas também devido a alguns
aspetos hereditários: a fraqueza e a cobardia de seu pai e o egoísmo, a futilidade e o espírito
boémio da sua mãe.

2. Maria Eduarda
Maria Eduarda aparece em Lisboa com o mesmo impacto que sua mãe, Maria
Monforte (“passo soberano de deusa”). Ignorando a sua verdadeira identidade, Maria
Eduarda entra na sociedade lisboeta pela mão de Castro Gomes, com quem partilhava a vida,
há três anos. Mais tarde, dizendo-se viúva de Mac Green, sabia apenas que a sua mãe
abandonara Lisboa, levando-a consigo para Viena.
À sua perfeição física alia-se a faceta moral e social que deslumbraram Carlos: a sua
dignidade, santidade e o seu equilíbrio, juntos com a sua forte consciência moral e social,
transformando-a numa mulher perfeita.
Irá sentir por Carlos uma paixão avassaladora e fatal (para Afonso), que é a
consumação da desgraça dita por Vilaça, quando Afonso decide ir novamente habitar o
Ramalhete.
Podemos afirmar que Maria Eduarda é vítima do meio pernicioso onde passa a
infância, a adolescência e a juventude.

3. Afonso da Maia
É filho de Caetano da Maia, defendeu, na juventude, valores opostos aos de seu pai.
Casa com Maria Eduarda Runa e, durante as lutas liberais, vê a sua casa invadida pelos
seguidores de D. Miguel. Decide, então, partir para Inglaterra, onde reinicia a sua vida com
a mulher e o filho.
Após o suicídio do filho, passou a viver para o neto e passa os seus dias em conversas
com amigos, lendo e emitindo juízos sobre a necessidade de renovação do País; gasta
fortunas em caridade e enternece-se com crianças. Morre de uma apoplexia ao ter
conhecimento dos amores incestuosos de seus netos Carlos e Maria Eduarda.
Afonso da Maia é apresentado como um símbolo do velho Portugal que contrasta
com o novo – o da Regeneração – cheio de defeitos. Afonso é o representante dos valores
morais, o pilar do passado glorioso.

4. João da Ega
Ega era o melhor amigo de Carlos; conheceram-se em Coimbra, enquanto Carlos era
estudante de Medicina e Ega, de Direito. Era conhecido como “o maior ateu, o maior
demagogo, que jamais aparecera nas sociedades humanas”.
Ega é partidário do Naturalismo e opõe-se, como é óbvio, ao poeta ultrarromântico
Tomás de Alencar. É irreverente, revolucionário, provocador e satânico, todavia é, também,
romântico; assim é uma personagem contraditória: por um lado, romântico e sentimental;

22
|Rita Mineiro

por outro, progressista e crítico sarcástico de Portugal. Tal como Carlos, é um diletante,
concebe grandes projetos literários que nunca chega a realizar.
Nos últimos capítulos, Ega ocupa um papel de grande relevo no desenrolar da
intriga: é a ele que Guimarães entrega o cofre com os dados biográficos e as provas da
identidade de Maria Eduarda; é ele que fala com Vilaça e, depois com Carlos, quem conta a
novidade a Afonso da Maia, por fim, é Ega que acompanha Maria Eduarda na viagem de
comboio que a levará para sempre de Portugal.
Todos os críticos afirmam que Ega é o alter-ego de Eça de Queirós, devido às
parecenças físicas (magreza extrema) e opiniões expressas por esta personagem.

5. Pedro da Maia
Pedro da Maia era filho de Afonso e de Maria Eduarda Runa. “Ficara pequenino e
nervoso (…); face oval de um trigueiro cálido, dois olhos maravilhosos e irresistíveis, …,
faziam-no assemelhar a um belo árabe”. No fundo, é o prolongamento físico e
temperamental da mãe, pois não revela ter a solidez de carácter de Afonso da Maia. “Era em
tudo um fraco”.
Pedro da Maia apaixona-se pela mulher fatal, Maria Monforte, o que o levará ao
suicídio, após a fuga desta com Tancredo. Assim, ele é vítima do meio social lisboeta, de uma
educação retrógrada, logo, falha no casamento e falha como homem, cometendo suicídio.

6. Maria Monforte
É conhecida, em Lisboa, pela alcunha pejorativa de “negreira”, alcunha associada a
seu pai, que tinha sido comandante de um navio de transporte de escravos.
Vista por Pedro da Maia “como alguma coisa de imortal e superior à Terra”, Maria
Monforte deslumbra Pedro com a sua beleza. É, portanto, uma mulher sensual, vítima da
literatura romântica (os nomes dos dois filhos surgem ligados a personagens de livros);
gosta do luxo (gosto que Carlos herdará) e de ser adorada por todos (Alencar afirmava ter
uma paixão platónica por ela).
Casada com Pedro da Maia, foge com o napolitano Tancredo e leva consigo a filha,
abandonando o marido e o filho. Num duelo, Tancredo morre e começa a viver uma vida
dissoluta e boémia (casas de jogos, vários amantes, …); morre na miséria, mas, antes,
entrega a Guimarães um cofre que prova a verdadeira identidade de Maria Eduarda.

b) Personagens-tipo

As personagens da crónica de costumes são, de um modo geral, personagens planas,


personagens-tipo, que representam grupos, classes sociais ou mentalidades,
movimentando-se em determinados ambientes.

- Eusebiozinho representa a educação retrógrada portuguesa;


- Alencar, o poeta representa o Ultrarromantismo;
- Conde de Gouvarinho, ministro e par do Reino, representa o poder político incompetente
e sem memória;
- Sousa Neto, deputado, representa a administração pública;
- Palma “Cavalão”, diretor do jornal A Corneta do Diabo, e Neves, diretor do jornal A Tarde,
representam o jornalismo corrupto;

23
|Rita Mineiro

- Dâmaso Salcede, “chique a valer”, é o representante do novo-riquismo e a súmula dos


vícios de Lisboa da segunda metade do século XIX (Burguesia);
- Steinbroken, ministro da Finlândia (“c’ est grave”), representa a diplomacia inútil;
- Cohen, o banqueiro, representa as altas finanças e a despreocupação que têm com os
dinheiros públicos;
- Craft representa a formação e a educação britânicas.

III. Espaço

a) Espaço físico
O espaço físico exterior acompanha o percurso da personagem central e é motivo
para a representação de atributos inerentes ao espaço social. Os espaços interiores estão de
acordo com a escola realista/naturalista: interação entre o homem e o ambiente que o
rodeia.

b) Espaço social
Os Maias é um romance no qual o espaço tem um papel fundamental, especialmente
o espaço social, visto que nele desfila uma galeria imensa de figuras que caracterizam a
sociedade lisboeta: as classes dirigentes, a alta aristocracia e a burguesia. Sendo assim,
cumpre um papel eminentemente crítico.
c) Espaço psicológico
Constituído pelas zonas da consciência da personagem, manifesta-se em momentos
de maior densidade dramática. É sobretudo Carlos que desvenda os meandros da sua
consciência, ocupando Ega lugar de relevo.
A presença do espaço psicológico implica, como é óbvio, a presença da subjetividade
e a perda da omnisciência do narrador, o que coloca em causa a escola literária do
naturalismo.

IV. Tempo

a) Tempo da história e tempo do discurso


Por tempo da história, entendemos aquele que se desdobra em dias, meses e anos
vividos pelas personagens e no qual encontramos acontecimentos cronológicos do pais; por
tempo do discurso, entenda-se aquele que se deteta no próprio texto, organizado pelo
narrador.
Assim, convém notar que, na primeira parte da obra, se verifica uma drástica
compressão do tempo da história. Com efeito, o período de 1820 a 1875 aparece reduzido,
através do resumo. Porém, por vezes, o narrador utiliza a elipse (avanço no tempo) e
notamos a precipitação dos acontecimentos.

b) Tempo psicológico
É o tempo que a personagem assume interiormente; é o tempo filtrado pelas suas
vivências subjetivas (“(…) É curioso! Só vivi dois anos nesta casa, e é nela que me parece
estar metida a minha vida inteira.”).

24
|Rita Mineiro

V. Narrador

O Narrador d’ Os Maias é heterodiegético (não participante) e adota,


maioritariamente, a focalização omnisciente, ou seja, sabe e controla todos os
acontecimentos relativos às personagens. Tendo um total conhecimento da diegese, o
narrador caracteriza exaustivamente as personagens e os espaços, manipula o tempo,
segundo as suas intenções.
Porém, pode abdicar da sua omnisciência e contar a história de acordo com a sua
capacidade de conhecimento de uma ou mais personagens: é a focalização interna (a
informação é condicionada pela subjetividade e limitação de acontecimentos).
Mas, o narrador pode ainda optar pela focalização externa (fornecer apenas dados
exteriores, percecionados só pelo olhar). Esta focalização é muito pouco usada por Eça de
Queirós neste romance.
O narrador utiliza o ponto de vista omnisciente sobretudo para o passado da
história, época anterior a 1875; esta opção condiciona o discurso e serve os cânones da
estética naturalista, vinculando as personagens de Pedro da Maia e de Eusebiozinho à
dependência de determinados fatores.
No entanto, a propósito da educação de Carlos, o narrador utiliza a visão de Vilaça,
com a intenção de desligar a personagem central da dependência rigorosa da ideologia
naturalista.

Educação de Carlos da Maia


Dois tipos de educação
À “inglesa” de Carlos À “portuguesa” de Eusebiozinho
- contacto com a Natureza (água fria); - permanência em casa;
- exercício físico (ginástica, ar livre); - contacto com velhos livros;
- aprendizagem de línguas vivas - aprendizagem de línguas mortas (o
(inglês); Latim);
- rigor, método e ordem; - superproteção;
- valorização da criatividade e juízo - valorização da memorização;
crítico;
Na Quinta de - submissão da vontade ao dever: - suborno da vontade pela chantagem;
Santa Olávia - símbolo: trapézio. - símbolo: a Cartilha.
alma sã em corpo são alma doente em corpo doente
↓ ↓
equilíbrio clássico Sentimentalismo romântico
Quem contesta: Quem aprova:
- Vilaça; - Vilaça;
- Padre Custódio; - Padre Custódio;
- gente da casa; - gente da casa;
- gente de Resende; - gente de Resende;
Quem aprova: Quem contesta:
- Afonso; - Afonso;
- narrador (discurso valorativo). - narrador (discurso valorativo).

25
|Rita Mineiro

Crónica de Costumes

Ao longo d’ Os Maias, é de realçar alguns episódios, onde a criação de ambientes


específicos revela a preocupação do autor no sentido de evidenciar algumas das
características do povo português. Esses episódios constituem a crónica de costumes.

O jantar no Hotel Central

Neste Jantar, Ega pretende homenagear Cohen, o marido de Raquel, senhora por
quem estava apaixonado e com a qual mantinha uma relação adúltera. É neste momento
que Carlos entra no meio social lisboeta adotando, contudo, uma atitude distante, que
manterá até ao final da obra. O que interessa salientar é a emissão de juízos realizada pelas
personagens e que nos permite compreender o panorama cultural da Lisboa da época
(finais do século XIX). Destacam-se os seguintes assuntos:
- literatura: Alencar defende o Ultrarromantismo; Ega defende o Realismo e o Naturalismo.
Este, contudo, defende em exagero a inclusão da ciência na Literatura.
- política: Ega critica a decadência do país e afirma desejar a bancarrota e a invasão
espanhola.

A corrida de cavalos

Um dos episódios preferidos do próprio autor, este quadro é uma crítica à tendência
dos portugueses para imitar aquilo que se fazia nos países estrangeiros e que se considerava
como sinal de progresso, quando, afinal, muitas vezes, não nos identificávamos com as
ideias ou medidas que importávamos. Assim, o ambiente devia ser requintado, mas que
também deveria apresentar a ligeireza desportiva para que remete o acontecimento, torna-
se o espelho da falta de gosto e de educação dos participantes. São de destacar os seguintes
aspetos como alvo da crítica queirosiana:
- a falta de coerência entre o traje e a ocasião, o que fazia com que alguns cavalheiros se
sentissem “embaraçados e quase arrependidos do seu chique” e com que as senhoras se
apresentassem com “vestidos sérios de missa”.
- a sensaboria, motivada pelo facto de as pessoas não revelarem qualquer interesse pelo
evento.
- a desordem, causada pelo jóquei que montava o cavalo “Júpiter” e que insultava Mendonça,
o juiz das corridas, pois considerava ter perdido injustamente. Tomava-se partido, havia
insultos, até que Vargas resolveu, “com um encontrão para os lados”, desafiar o jóquei – foi,
então, que se ouviu uma série de expressões como “Morra” e “Ordem”, se viram “chapéus
pelo ar”, se ouviram “baques surdos de murros”.

O jantar na casa dos Gouvarinho

Este espaço social é criado através da emissão de juízos por parte dos presentes. As
falas das personagens permitem concluir o atraso intelectual do país e dos valores sociais
degradados que o definem. São aí abordados os seguintes temas:

26
|Rita Mineiro

- a educação das mulheres: salienta-se o facto de ser conveniente que “uma senhora deve
ser prendada”, ainda que as suas capacidades não devam permitir que ela saiba discutir,
com i, homem, assuntos de carácter intelectual. O próprio Ega, provocador, defende que “a
mulher só devia ter duas prendas: cozinhar bem e amar bem”.
- a falta de cultura dos indivíduos detentores de cargos que os inserem na esfera social do
poder - Sousa Neto.
- o deslumbramento pelo estrangeiro: Sousa Neto manifesta a sua curiosidade em relação
aos países estrangeiros, demonstrando a obsessão pelos países estrangeiros.

Episódios nos jornais A Corneta do Diabo e A Tarde

Critica-se, nestes episódios, a decadência do jornalismo português, pois os


jornalistas deixam-se corromper, motivados por interesses económicos (Palma Cavalão, da
Corneta do Diabo) ou evidenciam uma parcialidade comprometedora, por motivos políticos
(Neves, diretor do jornal A Tarde).
- A Corneta do Diabo: Carlos vai com Ega a este jornal, para saber quem mandou publicar
uma carta caluniosa sobre a vida pessoal de Carlos e, a troco de 100 mil réis, lhes entrega o
original e lhes revela que foi Dâmaso Salcede o autor.
- A Tarde: Neves, o diretor do jornal, aceita publicar a carta em que Dâmaso Salcede se
confessava embriagado ao escrever a carta insultuosa sobre Carlos da Maia. Inicialmente,
Neves não queria publicar a carta, pois pensava que era a carta era de um seu amigo político.

Sarau do Teatro da Trindade

Evidencia-se, neste episódio, o gosto convencional e fossilizado dos portugueses,


dominados por valores caducos, enraizados num sentimentalismo educacional e social
ultrapassados. É de enfatizar a total ausência do espírito crítico e analítico da alta burguesia
e da aristocracia nacionais e a sua falta de cultura.
- Rufino, o orador “sublime”, a sua retórica vazia e impregnada de artificialismos barrocos e
ultrarromânticos traduz a sensibilidade literária da época.
- Cruges, que tocou Beethoven, representa aqueles (poucos) que, em Portugal, se
distinguiam pelo verdadeiro amor à arte que, tocando a Sonata Patética, surgiu como alvo
de troça, pois todos diziam que se chamava Sonata Pateta. Este tornou-se o “fiasco” da noite.
- Alencar declamou “A Democracia”, depois de “um maganão gordo” lamentar “que nós,
Portugueses” não aproveitávamos as “heranças dos avós”, revelando um patriotismo
eloquente. O poeta aliava a poesia à política, numa encenação exuberante, que traduzia a
sua emoção.

27
|Rita Mineiro

28
|Rita Mineiro

29
|Rita Mineiro

Os Maias – Sistematização
Simbolismos

O Ramalhete

Não é difícil lermos o percurso da família Maia estampado nas alterações por que
passou o Ramalhete.
Desde o início, desabitado, quando Afonso vive no retiro campestre de Santa Olávia,
o Ramalhete não tem vida; em seguida, habitado, preparado para receber Carlos, torna-se
símbolo da esperança e da vida: a estátua e a cascata transformam-se. É como que um
renascimento; finalmente, a tragédia bate-se sobre a família e eis a cascata chorando,
esfiando as últimas gotas de água, a estátua coberta de ferrugem. Tudo aponta para um
carácter funéreo, uma espécie de cemitério areado e limpo, tendo como guardas o cipreste
e o cedro – árvores que, pela sua longevidade, significam a vida e a morte – foram
testemunhas de várias gerações de Maias que se foram.
Os móveis do escritório de Afonso estão cobertos de panos brancos que são
comparados a mortalhas com que se envolvem os cadáveres. A morte instala-se
definitivamente nesta família. Todo o recheio do mobiliário do Ramalhete, degredado e
disposto numa anormal confusão, todos os aposentos, melancólicos e frios, tudo deixa
transparecer a realidade da destruição e da morte.

As cores

Um conjunto considerável de cores povoa Os Maias, cumprindo, quer os postulados


do impressionismo (escola literária que reage ao realismo, interessando-se não pelo objeto
em sim, mas pelo efeito que ele causa), quer os do simbolismo.
Comecemos pela cor vermelha. Esta cor tem um carácter duplo: ora feminina e
noturna, ora masculina e divina. Maria Monforte e Maria Eduarda são portadoras de um
vermelho feminino, fogo que desencadeia a libido, despertam a sensualidade à sua volta.
Por outro lado, espalham a morte, pois a paixão que provocam é excessiva e destruidora:
provoca o suicídio de Pedro da Maia, a morte de Afonso e o desejo de morte em Carlos.
O vermelho da casa de Ega – a Vila Balzac – é tão intenso que indica a dimensão
puramente libidinosa, carnal e efémera dos encontros de amor com Raquel Cohen.
O tom amarelo e dourado está também omnipresente. O amarelo indica o carácter
ardente da paixão; é uma cor dupla: luz do ouro – de essência divina – e luz da terra – Verão
e Outono. No primeiro caso, é anunciadora da velhice, do Outono, da proximidade da morte,
morte claramente prefigurada na cor negra, símbolo de uma paixão possessiva e
destruidora.
Maria Monforte e Maria Eduarda, mãe e filha, conjugam estas três cores: cabelos de
ouro, olhos pretos e leque negro pintado de flores vermelhas, sombrinha escarlate; elas são
a vida e a morte, o divino e o humano, a aparência e a realidade, a força que se torna
fraqueza.

Toca

Toca é o nome dado à habitação de certos animais, o que, desde logo, parece
simbolizar o carácter animalesco deste relacionamento amoroso. Carlos introduz a chave

30
|Rita Mineiro

no portão da Toca com todo o prazer, o que sugere não só o símbolo do poder, mas também
o do prazer das relações incestuosas; da segunda vez que se alude à chave, os dois
experimentam-na. É evidente que a chave se torna símbolo da mútua entrega e aceitação.
Os aposentos de Maria simbolizam o carácter trágico da sua relação, a profanação
das leis humanas e cristãs, a sensualidade pagã e excessiva. Os guerreiros simbolizam a
heroicidade, os evangelistas, a religião e os troféus agrícolas, o trabalho: qualidades que
terão existido um dia nesta família e agora estão completamente postas de parte. Os dois
faunos simbolizam os dois amantes numa atitude hedonista e desprezadora de tudo e de
todos. O ídolo japonês remete para a sensualidade exótica, heterodoxa, bestial desta relação
incestuosa.

Cofre de Guimarães

O cofre que Guimarães entrega a Ega é o objeto que representa todo o percurso de
Maria Eduarda e funciona como a caixa de Pandora, pois encerra revelações terríveis.
Podemos, ainda, associar a este objeto lavrado e fechado a ideia de túmulo, logo prenúncio
de morte, num primeiro momento, morte de Afonso e, numa análise mais global, o fim da
família Maia.

Intriga principal versus intriga secundária

Intriga secundária

Pedro da Maia é a cópia da mãe: melancólico, abúlico e fraco (“Era em tudo um


fraco.”). A educação que recebeu – educação à portuguesa – agrava os fatores
psicossomáticos: imposição de uma devoção religiosa essencialmente punitiva, baseada na
Cartilha; aprendizagem do latim como prática pedagógica fossilizada; fuga ao contacto
direto com a Natureza e com o mundo prático da vida. O adulto Pedro da Maia ficará para
sempre um ser débil e incapaz de resistir a pressões vindas do exterior.
Quando aparece em Lisboa a deslumbrante Maria Monforte, esta exacerba o seu
excessivo sentimentalismo e atrai-o como um íman. O casamento faz-se contra a vontade do
pai. Quando a mulher foge com o napolitano Tancredo, Pedro da Maia, tão levianamente
como se casara, acaba com a sua vida. O destino desta personagem foi, pois, totalmente
condicionado pelos fatores naturalistas: hereditariedade, meio e educação.

Intriga principal

Em relação à intriga secundária, há alguns aspetos novos. Em primeiro lugar, Carlos


teve uma educação à inglesa: privilégio do contacto com a Natureza, exercício físico
intensivo, aprendizagem de línguas vivas, desprezo pelos valores negativos da Cartilha e
por um conhecimento meramente teórico. A saúde de Carlos é excelente, a inteligência foi
desenvolvida – tira o curso de Medicina com elevada classificação. A educação de Maria
Eduarda foi completamente diferente. Desta forma, a paixão de Carlos pela irmã não foi
condicionada pela educação, embora se deva lembrar que a educação de Carlos também
levanta algumas questões.
Também não foi pela hereditariedade nem pelo meio, como veremos. A sua ligação
amorosa foi comandada à distância por uma entidade que se chama Destino, entidade que

31
|Rita Mineiro

se insinua desde o início do romance e abre o jogo quando Guimarães, tio de Dâmaso, vem
a Lisboa e entrega o cofre a Ega.
De facto, existem indícios claros ao longo da obra da presença subtil desta entidade
transcendente a Carlos e a Maria Eduarda que os une e que os há de destruir. Assim, é neste
aspeto que a intriga escapa aos cânones da estética naturalista que submetia todos os
processos a um feroz racionalismo. O Destino compraz-se, assiste, atento e ciumento, à
felicidade do par amoroso e, quando nada o fazia prever, aparece abertamente com o seu
mensageiro – Guimarães.
Desta forma, a intriga principal tem uma estrutura trágica, assemelhando-se a uma
tragédia clássica. Assim, é fácil identificar os três momentos essenciais de uma tragédia: a
peripécia (alteração súbita dos acontecimentos), a anagnórise (reconhecimento) e a
catástrofe – desenlace trágico.
A peripécia verificou-se com as revelações casuais de Guimarães a Ega sobre a
verdadeira identidade de Maria Eduarda; o reconhecimento, que muda a relação de Carlos
e Maria Eduarda para o incesto, que provoca a catástrofe, consumada pela morte de Afonso
e a separação definitiva dos dois amantes.
Concluindo, a intriga principal é de índole trágica, apresentando alguns elementos
que fogem ao naturalismo. O factor meio não funciona como condicionante, pois os
protagonistas foram criados em meios totalmente diferentes; o factor educação também
não pesa, visto que ambos tiveram educações díspares; por último, a hereditariedade
também não pode ser tida em conta, dado que eles descobriram que eram irmãos quando a
intriga caminhava já para o seu fim.

32
|Rita Mineiro

Os Maias - Recapitulação

Contextualização Histórico-literária

- Regeneração: estabilização do regime liberal graças a uma revolta militar chefiada pelo
marechal Saldanha a 28 de abril de 1851;
- Geração de 70: objetivos – a regeneração do país (valorização do progresso da sociedade
e da cultura); as Conferências do Casino – movimento de ideias que preconizava o
historicismo; o realismo em Arte como expressão de um novo ideal de vida, a crença no
progresso das sociedades, conseguido através das ciências positivas;
- Realismo: perspetiva filosófica e artística que privilegia o “real”, o existente, o mundo
objetivo; marcado pelo gosto da verdade, procurando transmitir todo o real, na sua
diversidade e na variedade dos seus aspetos;
- Naturalismo: Realismo mais “científico”, profundamente influenciado pelas ciências
experimentais e pela filosofia positivista de Taine: o homem é determinado pela sua raça
(fisiologia, hereditariedade), pelo seu meio (época, meio social e os seus costumes e
códigos) e pelo seu momento histórico.

Visão global da obra e estruturação

Título: Os Maias – a narrativa assenta na história da família Maia, que representa


simbolicamente a história do século XIX português; a família é constituída por Afonso da
Maia, cuja juventude decorreu durante as lutas liberais dos anos 20 e 30, Pedro da Maia,
representante do período do Romantismo (anos 40 a 50), e, por último, Carlos da Maia, que
se situa no período da Regeneração, ou melhor, o neto de Afonso simboliza a geração
resultante deste período histórico português.

33
|Rita Mineiro

Subtítulo: Episódios da Vida Romântica: o subtítulo constitui uma crítica ao Romantismo e à


sociedade burguesa portuguesa do século XIX, visto que, na ótica dos realistas, estes eram a
causa do atraso e da falta de progresso do país; por este motivo, ao longo da obra, vamos
encontrar alguns episódios que servem para criticar a elite portuguesa, intitulados Crónica
de Costumes.
- Hotel Central: neste episódio, discute-se a literatura (Realismo vs. Romantismo e a
crítica literária), a situação financeira de Portugal e a mentalidade retrógrada da burguesia
portuguesa;
- Corridas de Cavalos: decorrem no Hipódromo de Belém e servem para condenar a
imitação servil do estrangeiro e a mentalidade provinciana portuguesa;
- Jantar dos Gouvarinho: neste evento social, discute-se a instrução e o ensino,
principalmente a conceção da educação da mulher; critica-se a mediocridade dos mais altos
funcionários do estado;
- Jornais A Corneta do Diabo e A Tarde: neste episódio, condena-se a parcialidade do
jornalismo da época, assente em clientelismo partidário e subornos, na vingança e
dependência políticas;
- Sarau do Teatro da Trindade: neste episódio, censura-se a superficialidade das
conversas, a falta de cultura, a ausência do espírito de crítica da elite cultural portuguesa,
bem como o seu sentimentalismo e gosto convencional, ambos ultrapassados, e a ovação da
oratória oca e sem originalidade;
- Passeio por Lisboa: neste regresso de Carlos, critica-se a degradação e estagnação
do país.

Ação principal: amor de Carlos e Maria Eduarda e a crónica de costumes;


Ação secundária: amor de Pedro da Maia e de Maria Monforte.

Espaços e seu valor simbólico e emotivo

Ao longo de Os Maias, existe uma pluralidade de espaços que contém uma


determinada simbologia ou contribuem para o desenrolar dos acontecimentos narrativos:
- Santa Olávia: local de refúgio em momentos difíceis; nesta quinta, decorre a
infância de Carlos e simboliza a vida e a regeneração, associadas à natureza;
- Coimbra: local de juventude e da vida boémia de Carlos; Coimbra representa a
formação académica, pessoal e a amizade;
- Sintra: espaço de passeio dos lisboetas, dos encontros sociais e amorosos; este local
é símbolo do paraíso romântico;
- Lisboa: local de convívio social, onde decorre a maior parte da ação; representa a
centralidade da nação portuguesa;
- Ramalhete: residência familiar em Lisboa; ao longo do tempo representa o Portugal
velho (antes de 1875), as expetativas, os projetos e os sucessos (1875-1877) e, por fim, a
catástrofe e a decadência da família (1887); o jardim, a estátua e a cascata acompanham
simbolicamente o percurso da família Maia;
- Consultório: representa os projetos de Carlos e o seu entusiasmo passageiro, que
terminam em falhanço profissional; o consultório é símbolo do diletantismo de Carlos e da
sua geração;

34
|Rita Mineiro

- Toca: local onde ocorre o incesto (transgressão dos valores morais e familiares); a
decoração representa a sensualidade e o carácter animalesco da relação de Carlos e Maria
Eduarda;
- estrangeiro: a referência a espaços fora de Portugal funciona como uma fuga em
momentos difíceis e foi residência dos Maias em vários períodos conturbados; os países
estrangeiros, especialmente a Inglaterra, são vistos como modelos a seguir pelos
portugueses, pois são símbolo de cultura e requinte.

Representação do sentimento e da paixão

Pedro da Maia Carlos da Maia João da Ega


atração irresistível por uma mulher bela e sedutora
Maria Monforte Maria Eduarda Raquel Cohen
Relação supostamente
Namoro e casamento Relação adúltera
adúltera
Traição e fuga de Maria Traição do destino Descoberta da relação
Monforte (parentesco: irmãos) pelo marido
Reconciliação dos Cohen;
Separação; ida para o
Suicídio de Pedro revolta e posterior
estrangeiro
aceitação
Características trágicas dos protagonistas

- Carlos da Maia, Maria Eduarda e Afonso da Maia são personagens que pertencem a uma
elite, dotados de qualidades superiores;
- tema clássico: incesto;
- presença de indícios;
- presença dos principais elementos da tragédia clássica: hybris (desafio), agon (conflito),
peripeteia (peripécia), ananké (destino), pathos (sofrimento), clímax, anagnorisis
(reconhecimento) e katastrofé (catástrofe).

Descrição do real e o papel das sensações

A presença das sensações contribui para autenticidade da ficção queirosiana, visto


que confere naturalidade aos diálogos e à descrição dos espaços urbanos (interiores e
exteriores), através das sensações visuais, auditivas, olfativas, gustativas e tácteis. Com esta
utilização, o autor atribui dinamismo descritivo e vivacidade à narrativa, bem como cria
uma descrição mais sugestiva do real e uma recriação de espaços, de personagens e de
ambientes. Assim, ele transporta o leitor para a história e expande a perceção da criação
literária.

Linguagem

- recursos estilísticos: personificação (“aquele fim de tarde um tom mais pensativo e triste”),
comparação (“o cipreste e o cedro envelheciam juntos, como dois amigos num ermo”),
ironia (“os dois amigos beberam o champanhe que Jacob arranjara ao Ega, para Ega se
regalar com a Raquel”), metáfora (“Ela seria a perfeita cura, o asilo seguro.”), sinestesia
(“larga friagem do ar”), o uso expressivo do advérbio (“passos lentos pisavam surdamente
o tapete”) e do adjetivo (“luxo estridente e sensual”);

35
|Rita Mineiro

- reprodução do discurso no discurso: citações de autores, discurso indireto livre (“Ega não
se admirava. Só ali no Ramalhete ele vivera realmente daquilo que dá sabor e relevo à vida
- a paixão.”).

Bibliografia utilizada:

COELHO, Jacinto do Prado (direção), Dicionário de Literatura, Livraria Figueirinhas


GUERRA, João e VIEIRA, João, Aula Viva, Português A, 11º Ano e 12º Ano, Porto Editora
MAGALHÃES, Olga e DINE, Madalena, Preparar o Exame Nacional 2018 – Português, Raiz Editora
PEREIRA, José Carlos Seabra, História Crítica da Literatura Portuguesa – Do fim de século ao
Modernismo, Vol. VII, Editorial Verbo
REIS, Carlos e PIRES, Maria da Natividade, História Crítica da Literatura Portuguesa – O Romantismo,
Vol. V, Editorial Verbo
SARAIVA, António José e LOPES, Óscar, História da Literatura Portuguesa, Porto Editora

36

Você também pode gostar