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A escolha de Sabrina

Vicky Fênix
Copyright © 2021 por Vicky Fênix
@vickyfenix_livros
@vickyFenixLivros

Capa: J. R. Knaut
Revisão: Tatiana Luque
@tatyluselvi

Todos os direitos reservados. É proibida a


reprodução de parte ou totalidade da obra sem
a autorização prévia de Vicky Fênix.
“Sim, o dinheiro nos faz falta
para fazermos nossos sonhos decolarem...
Então:
Aproveitemos o soprar do vento...
e vamos para onde ele nos levar...”

Vicky Fênix
Índice
Índice
Prólogo
Capítulo 1
Capítulo 2
Capítulo 3
Capítulo 4
Capítulo 5
Capítulo 6
Capítulo 7
Capítulo 8
Capítulo 9
Capítulo 10
Capítulo 11
Capítulo 12
Capítulo 13
Capítulo 14
Capítulo 15
Capítulo 16
Capítulo 17
Capítulo 18
Capítulo 19
Capítulo 20
Capítulo 21
Capítulo 22
Capítulo 23
Capítulo 24
Capítulo 25
Capítulo 26
Capítulo 27
Capítulo 28
Capítulo 29
Capítulo 30
Capítulo 31
Capítulo 32
Capítulo 33
Capítulo 34
Capítulo 35
Capítulo 36
Capítulo 37
Capítulo 38
Capítulo 39
Capítulo 40
Capítulo 41
Capítulo 42
Capítulo 43
Capítulo 44
Capítulo 45
Capítulo 46
Capítulo 47
Capítulo 48
Capítulo 49
Capítulo 50
Capítulo 51
Capítulo 52
Capítulo 53
Capítulo 54
Capítulo 55
Capítulo 56
Capítulo 57
Capítulo 58
Capítulo 59
Capítulo 60
Capítulo 61
Capítulo 62
Capítulo 63
Capítulo 64
Capítulo 65
Epílogo
Agradecimentos
Prólogo
Triiiiim
!
Olhei pro lado e não acreditei.
— Cinco horas?! Mas já? Acabei de deitar... vamos, “senhorita
Andrade”, o dia te espera.
E assim fiz. Levantei, executei os meus exercícios matinais,
tomei um copo de água com limão e um banho rápido. Não comi
nada. Estou me adaptando à nova onda do jejum intermitente e pelo
menos em dois dias da semana façoum intervalo de 16 horas entre
a última refeiçãodo dia anterior e a primeira do dia seguinte. Fiz as
contas:
— Hummm... comi ontem às oito horas, mais dezesseis...
meio-dia!!! Afff... força e foco!!
Enquanto pensava na grande quantidade de coisas que tinha
para fazer hoje, coloquei uma saia lápis preta que emoldura o meu
quadril de uma forma que me faz sentir sedutora, uma regata cereja
de cetim, que contrasta com a minha pele morena, e um sapato
preto com salto KittenHeel que ganhara. Ele me deixa elegante e
ao mesmo tempo confortáv el. Fui me maquiar no banheiro. Não
exagerava muito, mas não conseguia sair de casa sem passar pelo
menos uma base, um lápis, rímel e um batom de cor forte,
geralmente combinando com a cor da blusa. Virei minha franja para
o lado, prendi os cabelos longos em um coque, olhei no espelho e
disse:
— Bom dia, senhorita Andrade! Vai arrasar! — falei, olhando
para o espelho antes de sair do banheiro.
Peguei um blazer preto com mangas três-quartos e o vesti.
Olhei no espelho mais uma vez, mandei um beijo para mim mesma
e, quando ia sair, antes de pegar as chaves do carro, olhei para as
minhas unhas:
— Ahhhhh! — notei que uma das minhas unhas pintadas de
vermelho estava descascando. Repeti o meu mantra internamente.
— Impecável! Preciso estar impecável! — agora que eu aprendi a
me vestir como o meu chefe gosta, não quero me incomodar mais
com isso.
Voltei e retoquei o esmalte da unha, finalizando com um spray
secante, peguei a mochila que estava ao lado da minha bolsa e saí.
Geralmente eu e minha tia íamos juntas, mas hoje ela tinha
compromissos em uma cidade vizinha, por isso eu estava indo ao
trabalho sozinha.
Enquanto me aproximava do destino, olhando para o imenso
arranha-céu que surgia ao longe, formado por cubos espelhados,
lembrava de que fora construído em praticamenteum ano e que ali,
dentro daquela caixa espelhada, toda a minha vida mudara.
Recordo da minha adolescência e da meta de vida que traçara:
casar com um homem rico, poderoso e gostoso, tipo os CEOs dos
livros que eu lia. Como morava na parte rural próxima à cidade de
Gravataí, integranteda Região Metropolitanade Porto Alegre, tinha
que dar um jeito de sair dali, senão aquele objetivo nunca seria
alcançado. Cada vez as coisas ficavam mais difíceis: estudar,
trabalhar, viver. Com certeza, aquele lugar era muito pequeno para
mim. A cidade até que não era longe, mas não tínhamos transporte
público. Com o surgimento do Complexo Industrial Automotivode
Gravataí, os trabalhadores eram transportados pela própria empresa
e quem não se sujeitasse a trabalhar na equipe de montagem,
ficava ali, como eu: ilhada.
Os executivos vinham de outros países, ou outras partes do
Brasil, geralmente casados ou acompanhados de suas famílias. Já
eu, como minha avó recomendava, não queria trabalhar ali. Eu
queria mais...
Quando completei 15 anos, tive uma ideia:
— Vó, sabe a tia Nice?
— Sei, a minha filha. Ainda me lembro disso. Qual é o seu
plano agora, Sabrina?
— Enn... tãoo... — gaguejei — e se eu morasse com ela? Lá
eu poderia continuar os meus estudos, trabalhar, mandar um
dinheirinho para ajudar a senhora... a senhora já está na idade de
sossegar. Não precisa mais ficar vendendo bordados. Lembra
daquela ideia de ser voluntária na igreja?
Pisquei o olho e levei aquela buzinada. Distraí-me com as
lembranças e nem vi que, ao entrar na rotatóriapara o shopping,
tranquei um Civic preto que vinha logo atrás de mim. Olhei pelo
retrovisor, dei uma risada amarela, desculpando-me, e segui para o
estacionamento.Eu estava sob pressão... tinha acabado de tirar a
carteira de motoristae recusado um carro vermelho lindo que o meu
chefe sem noção tinha me dado. Definitivamente eu estava
extremamente irritada nessa semana.
Segui em direção ao prédio imponente, não apenas por fora,
mas também por dentro. Tinha uma ligação direta com o shopping,
que ficava ao seu lado, após a grade de vidro, que separava o seu
estacionamentoe a lateral do prédio. A entrada de granito bruto,
desenhado em mosaicos abstratos, e na parede acima da porta
automática, as iniciais SSB seguidas das palavras em inglês:
Corporationand Business. No chão havia um capacho vermelho do
tamanho da porta. Em cada uma das duas laterais da entrada, um
segurança. Mais à frentehavia uma catraca que permitia apenas a
entrada de pessoas cadastradas e identificadaspela digital. Aos
visitantes,era entregue um cartão de acesso, que era recolhido na
saída. O piso era de porcelanato branco, branquíssimo. Muitas
vezes parei para pensar em como era mantido daquele jeito, já que
a quantidade de pessoas que circulava pelos quarenta e dois
andares do prédio era grande. Quarenta, corrigi-me em
pensamento, sabendo que os dois últimos eram privados.
Nas paredes, obras de arte abstratas, pintadas de preto e
branco. Em poucas partes, o branco e o preto se encontravam e
surgiam tonalidades sutis de cinza, que só eram percebidas por
quem se dedicasse a olhá-las atentamente.Em cantos simétricos,
vasos pretos com desenhos de gravatás vermelhos, repletos de
flores brancas da espécie Apiácea, que pareciam pequenos
pinheiros com neve em seus galhos. Lembrei que em uma aula de
biologia um professor mostrara fotos das duas plantas, fazendo
menção a alguma relação com o nome da cidade. Havia também
espelhos, muitos espelhos estrategicamenteespalhados, dando a
impressão de que sempre tinha alguém olhando para quem
passava, refletindo muito bem a excentricidade do seu proprietário.
Entrei no elevador, apertei o botão do quadragésimo andar,
onde eu trabalhava como assistenteexecutiva do CEO Victor Hugo
Scheffer, o dono do prédio e articulador de negócios imobiliários em
nível local e global. Minha função era de atuar diretamente com a
rotina do senhor Scheffer: preparar a sua agenda, organizar e
direcionar contatose reuniões, gerenciar a comunicação interna e
externa, receber correspondências, fornecer suporte administrativo
aos gerentes e as suas equipes e filtrar tudo que pudesse
incomodá-lo, tendo que deduzir, inclusive, o que poderia ser um
incômodo para ele. Eu sou a "personal organizer" dos negócios
dele. O senhor Scheffer me moldou para pensar como ele, agir
como ele, e isso contribuiu muito para a minha formaçãoprofissional
e pessoal. Nunca me chamou pelo nome. Para ele, sou a senhorita
Andrade. Não sei o motivo de não gostar de nomes, mas também
nunca perguntei.
Executei por um tempo também algumas atividades extras que
não estavam em um contratooficial de trabalho, mas sim em um
tipo “diferente”de contrato que o Leo, um grande e atrapalhado
amigo meu, nos fez assinar, e durante um mês eu e o meu “chefe”
nos conhecemos melhor e eu aprendi muito com ele em todos os
aspectos da minha vida.
Capítulo 1
Sabrina há sete anos...

Quando cheguei da escola sacudindo a poeira levantada pela


partida do ônibus escolar rural, cumprimentei a minha avó com um
beijo e ela disse, meio contrariada:
— A Nice vai vir aqui depois do feriado, parece que vai ter uma
folga.
— Sério? — respondi sem saber exatamentese aquela era
apenas mais uma visita corriqueira que a minha tia fazia
mensalmente, ou se tinha a ver com a minha vontade de morar com
ela na cidade.
Por um momento senti um frio na barriga. Tudo que eu sempre
quis: sair dali, poderia estar muito próximo de acontecer, mas teria
que deixar a minha avó. Eu a considerava como a minha mãe, já
que a minha mãe mesmo morrera. Foi meio que simbiótico, eu
precisava de uma mãe e ela perdera a filha, uma compensação
necessária a nós duas.
Guilhermina, conhecida como dona Guida, era uma senhora
franzina e forteao mesmo tempo, nunca deixou me faltarnada,
apesar da simplicidade da casa em que morávamos, mas o
necessário nós tínhamos. Nossa renda vinha da aposentadoria da
minha avó, conquistada após muito esforço da tia Nice. Ela
conseguiu provar que dona Guida trabalhou muito tempo na
agricultura, ficando com sequelas na sua coluna vertebral,
impedindo-a de continuar o trabalho em casas de família, a sua
última atividade antes de se aposentar. Agora vovó faziaos serviços
seguindo um ritmo próprio, que parecia sintonizar com o local em
que morávamos. Ela completava a renda fazendo bordados que a
tia Nice levava para vender em uma loja de enxoval do centro de
Gravataí.
Escutei o barulho do carro da tia Nice chegando. Finalmente
saberia o motivo da sua visita. Como sempre, abraçou e beijou
vovó, fez o mesmo comigo, e pediu ajuda para descarregar as
compras e sacolas que habitualmentetrazia. Ela era o nosso elo
com o desenvolvimento. Tudo de diferenteque conhecia era por
intermédio dela.
Onde morávamos tinha um armazém que vendia desde
medicamentos, sementes, até o rolo de macarrão, coisas essenciais
para quem morava ali. Sem opção de marca, cor ou sabor. Teve
uma vez que o dono do armazém aproveitou uma promoção de
suco de abacaxi e ficaríamos, se dependesse dele, quase um ano
tomando suco apenas desse sabor, porque ele não compraria outro
sabor enquanto o estoque não acabasse. Nessas horas era a tia
Nice quem nos salvava.
Ela era quieta, mais ouvia do que falava, mas era obrigada a
sanar as minhas curiosidades sobre tudo. Quando ela chegava, eu
já me posicionava estrategicamente ao seu lado e começava o
interrogatório:
— Está lendo algum livro novo? Que filme está passando no
cinema? E aquela moça da revista, já teve o bebê? Trouxe alguma
novidade pra mim?
Sim. Ela sempre trazia. Qualquer coisa era novidade para
quem morava no campo, cercada de animais, mosquitos, plantas,
hortas e poeira, muita poeira. Bem, às vezes chovia e no lugar da
poeira tinha lama, muita lama.
Tia Nice trabalhava em um salão de beleza num shopping de
Gravataí. Uma vez no mês eles trocavam as revistas e ela trazia
para mim. Algumas clientes, amigas de tia Nice, sabiam da minha
existência e, mesmo sem me conhecer, mandavam livros,
maquiagens, tecidos, roupas usadas, sapatos, esmaltes e tudo mais
que pudesse interessar a uma mocinha de 15 anos. Eu me divertia e
sonhava, tendo contato com essas coisas que descortinavam os
meus olhos sobre um mundo muito distante do que eu vivia.
O dia passou muito rápido, como sempre acontecia com a
presença da tia Nice ali. Cozinhamos, comemos, caminhamos,
demos risadas, ajudamos a vovó debulhar feijão, e lá por umas
quatro horas escutei o meu nome, uns suspiros, cochichos e então
ouvi me chamarem:
— Sabrina! Venha aqui um pouquinho!
Sentadas ao redor da mesa da cozinha elas me olhavam
sérias. Engoli em seco, suspirei e me sentei:
— O quê, vó?
— Eu e a sua tia estávamos conversando sobre você — falou
ela rapidamente, como se quisesse acabar rápido com aquela
conversa.
— E...?
Foi tia Nice que continuou:
— Querida, você é uma linda moça. Este ano termina o Ensino
Fundamental. É esperta, inteligente, estudiosa, aprende com
facilidade, é obediente e muito prestativapara a mamãe — Tia Nice
fez uma pausa, tomou um gole da água que estava na sua frentee
prosseguiu. — Mamãe me contou que você quer morar comigo.
Penso que é uma responsabilidade muito grande assumir uma coisa
dessas, ainda mais com os horários do meu trabalho. Você teria que
ficar muito tempo sozinha. — Ela mostrava um constrangimento
enquanto falava. — Estou amadurecendo a ideia. Em dezembro,
quando você estiver de férias, posso levá-la para ficar uns dias
comigo e vamos vendo. Desculpe, Sabrina! Não quero poupá-la de
usufruir das mesmas oportunidades que tive, mas morar numa
cidade maior, mesmo que seja a pequena Gravataí, é bem diferente
do que morar aqui. Tenho receio de assumir uma responsabilidade
acima da minha disponibilidade e colocar tudo a perder...
— Eu entendo! — respondi rispidamente, pedi licença e saí.

Essa conversa ressoava todos os dias em minha mente.


Minha esperança de sair dali estava escapando de mim. Procurava
ficar ocupada para me distrair. Como sempre, ajudava vovó,
estudava, embelezava as unhas dela e das suas amigas, usando os
materiais de segunda mão que tia Nice me dava, faziaos exercícios
que encontrava nas revistas, e passava coisas no cabelo e na pele.
Como muitas roupas que eu ganhava das amigas da tia Nice
estavam apertadas demais, largas demais, curtas demais ou longas
demais, aprendi a costurar vendo vovó fazer algumas reformas e me
aventurava a fazer pequenos consertos também.
Teve uma tarde que eu estava tão entediada, que comecei a
pintar a unha das galinhas. Pensei: "Se eu conseguirpintara unha
dessa galinha,com certeza poderei ajudar a tia Nice no salão!!!".
Depois caí na risada. Fui para o meu pequeno quarto, olhei para a
cama de solteiro, vislumbrei o guarda-roupa antigo que tinha uma
porta pendurada e fixei o olhar na escrivaninha. Nela tinha uma
sacola de papelão que tia Nice trouxe na sua última visita. Eu nem
tinha olhado, como se estivesse manifestando a frustração que
sentia devido à nossa conversa. Resolvi abri-la: revistas, jornais,
folders de turismo e um livro. Por algum motivo, minha tia sempre
olhava tudo que me trazia e eu sabia disso porque percebi, várias
vezes, que algumas páginas das revistas eram arrancadas.
Imaginava que o conteúdo por algum motivo interessaria a ela ou
estava sendo escondido de mim.
Peguei o livro. Sua capa era simples, mas chamativa. O fundo
era em um tom de cinza claro misturado com bege e tinha dois
sapatos de salto alto dourados. Contava a história de uma moça que
queria conquistar um emprego e tinha sofrido uma desilusão
amorosa. Ela reencontrava o rapaz que a desiludiu e... –"Afff..."–
eles transavam, transavam muito. Com certeza esse livro passou
despercebido pela minha fiscal.
Eu não vivera nada parecido! Tinha quinze anos, estava quase
fazendo dezesseis, sabia que aconteciam coisas entre homens e
mulheres, só que nunca imaginei que uma relação pudesse ser
assim tão intensa. Olhava para os casais que conhecia e não
conseguia relacionar o que li com o que eles demonstravam. Teve
um dia que fui de bicicleta na casa de dona Josefa levar uma dúzia
de ovos. Olhei para ela: baixinha, magra, porém meio barrigudinha.
Então olhei para o seu Plínio: alto e magro. Comecei a dar risada
imaginando os dois fazendo aquelas coisas que li no livro e tive a
impressão de que alguma coisa não se encaixava ali. Deviam ser
coisas que só aconteciam nos romances mesmo.
Apesar de observar os poucos casais que conhecia e ter
chegado à conclusão de que, na realidade, os relacionamentos
eram bem diferentes,não pude evitar e comecei a fantasiar:eu,
linda, bem vestida e com um bom emprego, namorando um homem
escultural, apaixonado por mim, fazendo loucuras comigo, muito
bem sucedido, que me pede em casamento e "somos felizes para
sempre".

Na próxima vez que a minha tia veio, perguntou sobre o livro.


Ela explicou que uma amiga lhe emprestara, colocou na sacola para
levar para casa, esqueceu de tirar e me entregou por engano.
Devolvi, toda sem jeito:
— É bom! — resmunguei. — Você vai gostar!
— Sabrina! Você leu?! Esse livro é...
— Não se preocupe, tia, não tem nada demais — acho que
fiquei vermelha nessa hora. — Lá na escola já me explicaram tudo
isso e sei que esses romances nada têm da vida real. Além do mais,
tenho consciência de como preciso me comportar.
Nos dias que se passaram, continuei fazendo as mesmas
coisas, mas percebi que a minha avó estava diferente.Quando eu
perguntava se tinha alguma coisa errada, ela afirmava:
— Tudo bem, filha, tudo bem... — dizia com o olhar perdido,
parecendo saber de algo que eu não sabia.
Capítulo 2
O ano letivo acabou. Tivemos uma formaturacom baile e tudo.
E quando o final de semana acabasse, cada um seguiria o seu
rumo. Alguns mudariam de cidade para estudar, outros continuariam
ali, do mesmo jeito que os seus pais, e outros, como eu, não
sabiam, não tinham a menor ideia do que aconteceria.
Eu tinha algumas amizades superficiais, não queria muitos
vínculos ali. Já bastava a perda da minha mãe e o fatode um dia ter
que deixar a minha avó, não queria que mais nada me prendesse a
este lugar, mas sempre tinha um porém... um garoto, quero dizer,
um rapaz, que estudava na mesma sala que eu há uns dois anos.
Ele era muito estudioso e tinha que conviver com o apelido de CDF,
pois só pensava em estudar. Seu nome era Mateus. Ele era alto,
com ombros largos, moreno e com o cabelo liso. Vivia passando a
mão nos cabelos e jogando-os para o lado. Nós trocamos alguns
olhares, nada mais do que isso. Só que no baile, para a minha
surpresa, ele me tirou para dançar.
Eu sabia que estava bonita no vestido vermelho de cetim com
alças que a tia Nice comprou para mim em um bazar. Terminava na
altura dos joelhos e me deixava "bonitae decente", como me disse
vovó antes de eu sair de casa. Ela fez alguns ajustes e o vestido
ficou perfeito.Para completar o visual, sandálias prateadas com um
pequeno salto. Fui com os cabelos compridos soltos e uma discreta
maquiagem que a minha colega Rebeca fezquando veio me buscar
em casa com a sua mãe. A música que estava tocando era do Ed
Sheeran e fazia parte da trilha sonora de um filme famoso que
estava passando no cinema. Mateus estendeu a mão para mim e eu
a segurei em resposta.
Tive a impressão que a sua mão tremia, assim como a minha.
Não tinha muito jeito com danças, exceto daquelas músicas que
tocavam nas quermesses que ia com a vovó. Ficamos ali circulando
no mesmo lugar, meu coração acelerado e a respiração ofegante.
Coloquei os braços ao redor do seu pescoço, e com isso fiquei um
pouco mais perto dele e senti o cheiro suave de um perfume
masculino que eu não sabia o nome.
— Cheiro bom! — falei depois de uma respiração mais
profunda.
— Obrigado! — Ele respondeu — Vo...c...cê está muito bonita!
— Ele exclamou quase gaguejando.
Agradeci com um sorriso tímido.
— Nossa! A gente nunca conversou.
— É! Que coisa... e agora que estamos formados, quais são
os seus planos, Sabrina? Vai continuar estudando? Parece que
você gosta de estudar. — Numa nítida necessidade de continuar a
conversa.
— Não sei. Sabe... é meio complicado... — declarei reticente.
— E você? Quais são os planos?
— Vou me mudar. A empresa que o meu pai trabalha
inaugurou uma nova fábrica em Joinville e mudaremos para lá. Já
estou matriculado em um cursinho. Pretendo fazer o vestibular
.
— Que bom! — concordei engolindo em seco e tentando
disfarçar o meu desapontamento.
Por outro lado não pude deixar de imaginar como seria bom
conhecer muitos lugares diferentes... contive os pensamentos e
fiquei curiosa em saber o que ele achava disso.
— Acho que é bom, ou melhor, o que você acha?
A música acabou e continuamos dançando, sem prestar
atenção no que acontecia ao redor .
— Já me acostumei. Minha família muda de cidade com muita
frequência — explicou Mateus, sem expressão. — Afinal, não tenho
escolha, preciso ir aonde meus pais vão. Geralmente não faço
muitas amizades, assim sofromenos quando mudamos, e posso me
dedicar aos estudos. Quero ser médico e preciso estar preparado
para quando for para a faculdade.
— Posso fazer uma pergunta?
— Já fez — evidenciou dando risada.
— Duas, então — justifiqueirindo também. Reparei que ele
fazia um sinal afirmativo com a cabeça. — Você não precisava
estudar nessa escola, aqui é tudo tão simples, poucos recursos,
poucas atividades extracurriculares. Imagino que poderia estudar
em qualquer escola particular da redondeza.
— Bem... você está errada e certa ao mesmo tempo. Fique
sabendo que já estudei em escolas muito piores. E sim, eu poderia
estar em uma escola particular, porém a minha mãe acredita que a
maior parte do aprendizado vem da própria pessoa e sua dedicação,
independente da escola que estudar ou dos professores que tiver.
Outro motivo é o envolvimento social, entrar em contato com
pessoas que vivem de forma diferenteda gente, respeitar a todos
independente da sua classe social, e principalmente valorizar o que
temos.
Quando me dei conta, não estávamos mais dançando.
Ficamos parados ao redor da pista, que na verdade era a quadra
poliesportiva da escola. Escutei ao longe alguém me chamar e virei.
— Sabrina! Minha mãe já chegou. Vamos? — olho para trás e
vejo que Rebeca está me chamando.
— Minha carona... tenho que ir. Tchau, então! — lamentei,
olhando para ele, e me virei para ir com a colega que me deixaria
em casa.
— Espera! — chamou-me segurando o meu braço e me
puxando para mais perto, aproximou-se do meu rosto e me deu um
beijo. Um beijo no rosto, mas foitão intenso, com tantapressão, que
parecia ter tirado um pedaço de mim.
— Vai amanhã?
— O quê? — questionei meio tontae admirada em como um
beijo no rosto poderia ter mexido tanto comigo. — Ahhh! Sim, o
piquenique. Nos encontramos lá?
— Claro! Até amanhã.

Quando a mãe da minha amiga estacionou o carro em frente


ao portão, agradeci, despedi-me e caminhei em direção à varanda
da nossa pequena casa de madeira. A noite estava linda. O céu
parecia estar estrelado de uma forma especial. Chegando perto da
varanda, percebi vovó sentada sozinha no escuro, contemplando o
céu iluminado, como eu fizera ainda há pouco.
Cumprimentei-a com um beijo no rosto, sentei ao seu lado e
ficamos ali caladas por alguns minutos.
— Como foi o baile, querida? — perguntou a minha avó
quebrando o silêncio.
— Foi lindo, vovó! Nem parecia a cancha da escola... fizeram
uma decoração com tecidos, balões prateados, flores... nunca vi
uma festa tão linda!!! Eu... dancei com um rapaz! — comentei,
entusiasmada.
— Nossa, filha, quantas emoções em apenas uma noite! Mais
alguma coisa que queira me contar?
— Ele me beijou — declarei meio tímida. — No rosto! —
completei.
Minha avó deu um sorriso saudoso e colocou a mão quente
sobre a minha, suspirou e refletiu:
— O amor... só o amor faz a gente dar tantaimportância para
um beijo no rosto!
Sem saber como continuar aquela conversa, resolvi mudar de
assunto.
— A senhora viu como os beijinhos estão atraindo borboletas?
Hoje de tarde tinham várias borboletas pretas com detalhes em
amarelo sobrevoando-as. Fazia tempo que eu não via tantas
assim...
— Sim, nosso jardim está especialmente florido esse ano. —
Ela bocejou. — Vamos dormir? Amanhã com certeza o dia
preparará mais emoções para esse coraçãozinho.
Quase nem dormi naquela noite, estava tão ansiosa para o
piquenique da nossa turma e encontrar com o meu mais "novo"
amigo novamente. Meu sono foi meio agitado, acordei e dormi
várias vezes, mas, mesmo assim, sonhei. Foi um sonho estranho,
carregado de sentimentos que não consegui decifrar quando
acordei: Eu estava sentada sozinha na varanda da nossa casa. Não
consegui entender se estava de noite ou se o sonho era em preto e
branco. Avistei um pote de vidro tampado no centro do gramado,
dentro dele havia várias borboletas de diversos tamanhos. Elas
eram brancas e resplandecentes, como vaga-lumes. Aos poucos a
tampa do pote foi sumindo e como uma mágica as borboletas
voaram e iluminaram o céu.
O ônibus escolar rural chegou pela última vez para me buscar
em casa. Dessa vez o destino seria outro: o Parque Getúlio Vargas,
em Canoas. Além do piquenique com o pessoal da escola, teriam
também algumas brincadeiras e um amigo secreto, tudo para fechar
o ano com chave de ouro e encerrar esta etapa das nossas vidas.
Como sempre, vovó me acompanhou até a porta do ônibus, deu um
abraço, e falou algumas recomendações ao pé do ouvido, que me
fizeramrir e ficarcorada. Subi as escadas e procurei instintivamente
por Mateus, mesmo sabendo que não estaria ali, pois os seus pais
sempre o levavam para a escola de carro e naquele dia não seria
diferente.
Sentei num banco no fundo da condução, acenei para vovó e
soletrei para ela:
— E U T E A M O! — disse e assoprei um beijo.
Vovó fezo mesmo e o ônibus partiu rumo ao parque, já que eu
fuia última pessoa a ser buscada pelo transporteescolar. Apesar de
o parque ficar a uns quarenta minutos de onde morávamos, tive a
impressão de que a viagem durou o dia todo. Tentei me distrair
conversando com alguns colegas, mas preferi aproveitar a
oportunidade e observar o trajeto. Era tudo diferente do que eu
estava acostumada a ver. Passamos inclusive na frente do
shopping, onde a tia Nice trabalha. Já tinha ido ali com ela, só que
fazia bastante tempo.
O ônibus parou em um sinaleiro e, enquanto o tempo passava
de forma decrescente, olhei para um jardim cheio de beijinhos e isso
me fez lembrar da noite anterior, da conversa que tive com vovó e
do meu sonho. Sempre achei as borboletas livres. Elas escolhem
onde vão e só vão onde é belo, colorido. Pensei que uma daquelas
borboletas presas e sem cor, do meu sonho, poderia ser eu.

Chegamos ao local combinado. O dia estava quente e


ensolarado, ideal para ser usufruído em um parque com os amigos.
Olhando ao redor reconheci algumas pessoas que já estavam ali.
Não vi Mateus. Os professores estavam organizando a
churrasqueira e as comidas que foram trazidas, o cardápio era
simples. Para comer: pão, linguiça e salada. Para beber:
refrigerante. Sobremesa: melancia. Os estudantes foram se
separando naturalmente,alguns dançavam, outros jogavam vôlei ou
futebol, e outros estavam sentados na grama, curtindo o sol e
conversando. Eu estava nesse grupo, exceto pela conversa, pois
olhava para os lados no ritmo de um ventilador para ver se mais
alguém estava chegando.
Senti uma mão no meu ombro:
— Oi! — escutei próximo da minha orelha esquerda. — Faz
tempo que chegou?
— Meia hora mais ou menos — informeijá sabendo quem era.
— Você demorou...
— Desculpe, fui comprar um presente com a minha mãe.
Como era para uma pessoa especial, demoramos para escolher o
que dar.
— Ahhhh... — balbuciei sem entender o que aquilo significava.
O professor Paulo chamou a nossa atenção e de todos que
estavam ali.
— Pessoal, um minutinho, venham até aqui! — todos foram se
aproximando, ainda conversando, rindo e brincando.
— Pronto... algumas orientações para aproveitarmos melhor o
nosso passeio. Bom dia! Agora que estão todos aqui! O dia é de
vocês. O ônibus levará vocês para casa às dezesseis horas, então
temos até umas quinze e trinta com atividades livres, depois disso,
precisaremos nos reunir aqui novamente e organizaremos tudo. Eu,
como na vinda, acompanharei quem veio com o transporteescolar.
A professora Daniele ficará aqui aguardando os pais dos demais.
Sugiro que a gente façaa revelação do amigo secreto agora, coma
e que o tempo restantevocês explorem o local como quiserem... o
que acham?
Um murmurinho pôde ser ouvido e sem nenhuma objeção foio
que fizemos. Para não perdermos tempo, o professor Paulo sugeriu
que começássemos pelo último nome da lista de chamada.
Justificourindo que "os últimos naquele dia seriam os primeiros!" .
Acompanhei o coro de risadas e estremeci ao me dar conta de que
era eu. A última da chamada era eu. Procurei dentro da mochila o
presente, que a tia Nice comprou no shopping, para entregar à
minha amiga. Era um romance que foi adaptado para o cinema.
Como eu gostava de ler, imaginei que a minha amiga gostaria do
presente. Dei um passo à frente e comecei:
— A pessoa que peguei é alta! — escutei alguns palpites e
continuei, porque não queria ficar muito tempo ali no centro das
atenções. — Ela é do sexo... feminino! É loira e seu nome começa
com a letra C. Quanta criatividade a minha!
Escutei um gritinho:
— Eu! Sou eu! — Caroline me abraçou, abriu o presente e me
abraçou novamente. Tiraram uma foto nossa e ela prosseguiu com a
sua revelação.
Como uma dança combinada, os mesmos passos se
sucederam, até que Pedro disse que ele tinha tirado o Mateus. Este
foi ao centro, olhou para todos e fixou o seu olhar em mim. A ideia
de que ele pudesse ter me sorteado passou pela minha mente, mas
até aquele momento isso era apenas uma possibilidade. Só me dei
conta quando comecei a encaixar as peças do quebra-cabeça que
ali se apresentava. Alguns colegas aflitosjá começaram a falar o
meu nome e o professor Paulo teve que intervir:
— Calma, galera! Já está quase acabando, vamos respeitar a
vez do Mateus e da pessoa que ele sorteou.
Lentamente... a minha percepção era de que ele estava
fazendo tudo em câmera lenta. Dirigiu-se ao centro e começou:
— Eu sei que já tem como adivinhar quem sorteei, mas quero
falar mesmo assim — fez uma pausa, ouvindo alguns protestos,e
prosseguiu. — A pessoa que eu tirei é linda! — teve que parar
novamente, rindo de alguns assobios. — Ela é muito especial,
estudiosa, inteligente e gostei muito de conversar com ela ontem —
fez mais uns segundinhos de silêncio e revelou. — Sabrina, é você!
O mundo parou, ou melhor, o meu coração parou. Tive que
tossir para ele voltar a bater. Devo ter ficado de todas as cores do
arco-íris, senti uma mão me empurrar ao centro para encontrar o
"meu amigo" e segui. Nesse trajetode cinco passos, lembrei que a
sequência do processo era um abraço. Tive vontade de sair
correndo, mas já senti Mateus pertinho, aquele perfumede novo... e
fui, abracei-o, imitando o seu gesto, encaixando-me em seu abraço.
Senti o seu calor, o seu cheiro inebriante e aos poucos encarei o
seu olhar. Dei um sorriso sem jeito. Abri o presente de forma
mecânica, dei outro abraço, e senti que ele deslizou os dedos pelo
meu braço e ficou segurando a minha mão.

Durante o almoço ficamos próximos um do outro. Ele foi gentil


comigo, trazendo-me refrigerante, levando o meu prato e copo
descartável para jogar no lixo. Imagino que se alguém nos
observasse, diria que éramos um casal de namorados muito
apaixonados. Satisfeitos,após o nosso almoço, fomos caminhar.
Depois andamos uns metros, sentamos em um banco de madeira e
permanecemos ali por um tempo. Lembrei do livro da tia Nice que
eu li, aquelas coisas que o casal apaixonado fazia pareciam
tentadorastendo um rapaz gentil, bonito e cheiroso ao meu lado.
Tirando-me dos meus devaneios, Mateus pegou novamente na
minha mão e sussurrou:
— E a sua família? Tem algum irmão mais velho do tipo
protetor? — perguntou rindo.
— Não, sem irmãos. Eu moro com a minha avó — expliquei
sem esconder a tristeza em minha voz.
— E o que houve... com os seus pais?
— Mamãe morreu em um acidente e meu pai sumiu. Tenho
uma tia que mora em Gravataí e trabalha no shopping. Seus
horários são difíceis e acabei ficando com a vovó. Gosto de morar
com ela, é muito carinhosa, não me faltanada, só que é tudo muito
parado para o meu gosto.
— E você se lembra deles? — perguntou, curioso.
— Muito pouco. No começo eu perguntava para a vovó, ela
me respondia apenas o necessário. Depois ela só me falava assim:
"Ferida que se cutuca muito, não sara!", e aos poucos parei de
perguntar...
— Sinto muito por tudo isso. Uma pena que nós nos
aproximamos apenas agora. Poderíamos ter vivido uma história
juntos.
— Nossa, do jeito que você fala parece que o mundo irá
acabar amanhã... — falei tentandoparecer otimista,mas lembrando
que isso também passou pela minha cabeça. — Somos jovens,
temos tudo pela frente!
— Digo isso porque já estou com a mudança preparada para ir
para Joinville... — afirmou, desanimado, mas num instantedepois,
ficouanimado novamente, começou a olhar ao redor, observando as
pessoas que estavam no nosso campo de visão. Sabíamos que
estávamos sendo observados pelos colegas e pelos professores
também. Olhando para o relógio, declarou: — Duas horas. Tive uma
ideia! Venha!
Puxou-me pelo braço, ansioso, e começamos a caminhar
novamente. No centro do parque tinha um lago e ao redor uma pista
de caminhada. De um lado da pista existia um bosque e do outro
uma parte mais estruturada, com parquinho, churrasqueira e
quadras poliesportivas. Na frentedo bosque pude observar uma
espécie de monumento vermelho, com colunas altas e arcos que
ligavam uma coluna à outra. Estávamos caminhando nessa direção.
Esse era o local menos movimentado do parque. Quando passamos
ao lado do estranho monumento, ele me conduziu para forada pista
de caminhada. Encostou-me em uma daquelas colunas em direção
oposta a pista e informou:
— Queria fazer isso desde ontem, mas você fez que nem a
Cinderela e foi embora antes do baile terminar...
Já imaginava exatamenteao que ele se referia e eu também
queria muito: o meu primeiro beijo. Antecipei as sensações só de
olhar em seus olhos. Não conseguia responder nada, apenas sentia.
O seu cheiro, um cheiro muito bom, parecia que me enfeitiçava.
Meu coração batia, descompassado. Sentia um frio na barriga, na
verdade, parecia que eu tinha infinitasborboletas na barriga. Tinha a
impressão de que, em algum momento, elas voariam e me levariam
junto.
Ele se aproximou devagar, colocou os braços na minha
cintura, curvou um pouco o seu corpo, evidenciando a sua altura
maior do que a minha, e encostou os lábios macios e quentes nos
meus. Não sabia o que tinha que fazer, segui os meus instintose
beijei-o moderadamente. Novamente fuiinvadida pela sensação que
o mundo parou enquanto nos beijávamos. Na minha mente comecei
a escutar a música romântica do Ed Sheeran que dançamos no
baile da noite anterior. Músculos que eu nem sabia que faziamparte
do meu corpo se manifestarame um prazer doloroso se contorceu
em meu ventre. Senti-o afastaros lábios e se aproximar novamente,
mas com um selinho apenas. As minhas pernas ficaram diferentes,
se eu precisasse delas naquele momento, com certeza não me
obedeceriam. Olhou-me nos olhos e pude ver que a dor de nos
separarmos era recíproca. Por que, justoagora, eleteriaque mudar
para outra cidade?
— Gostou do presente que eu te dei? — perguntou.
— Sim. Desculpe. Nem agradeci, fiquei tão surpresa e
envergonhada, que... — desisti de explicar ainda influenciada pelas
sensações desencadeadas por aquele beijo. — Adoro aquele
perfume.Tinha visto uma propaganda dele em uma revista, em uma
parte do anúncio dava para erguer um adesivo, passar o pulso e
sentir o cheiro. Agora é só abrir o frasco e passar, bem menos
trabalhoso... — expliquei, rindo — obrigada!
— Eu comprei mais uma coisa para você — informou tirando
do bolso da calça uma caixinha.
Ele a abriu e tirou uma correntinha prateada que tinha um
pingente pendurado, fezum sinal, pedindo para me virar, afastouos
meus cabelos e prendeu suavemente ao redor do meu pescoço.
Voltei novamente a olhá-lo e ele explicou:
— É um coração partido. Fiquei com a outra metade. Toda vez
que você quiser se lembrar de mim, olhe para ele. Um pedaço de
mim que vou deixar com você!
— Que fofo! — respondi.
Dessa vez a iniciativa foi minha. Cheguei mais perto dele,
passei os braços ao redor da sua cintura, deitei no seu peito e pude
ouvir o bater do seu coração. Ergui a cabeça. Fitei-o por um
instante,coloquei os braços ao redor do seu pescoço, ergui os pés,
do mesmo jeito que as crianças se esticam para pegar biscoito no
armário, e o beijei.
Uma mistura de paixão e saudade extravasou do meu corpo
na forma de uma lágrima. Ele a secou, pegou a caixinha, colocou na
minha mão e informou:
— Aqui dentro tem algumas informações se quiser me
encontrar...
Compartilhamos mais um abraço, entrelaçamos os dedos e
caminhamos até o local combinado para a partida do ônibus. As
coisas já estavam organizadas e as pessoas se despedindo. Mateus
me abraçou novamente e tascou-me um selinho, apertando os meus
lábios fechados. Eu entrei na minha carruagem, prestes a virar
abóbora, e voltei para casa sem trocar uma única palavra com
alguém.
Capítulo 3
Depois que o ônibus partiu, olhei intrigada para o carro da tia
Nice, que estava estacionado na frentede casa. Não era dia de ela
estar ali. Notei uma movimentação anormal de pessoas entrando e
saindo da nossa casa. Tia Nice veio ao meu encontro, abraçou-me
fungando e disparou:
— Sabrina! A mamãe! Ela... — fez uma pausa, tentou se
recompor e prosseguiu: — morreu. Mamãe morreu!
Um breu totalcobriu os meus olhos. Tive a impressão de que
quem tinha morrido era eu. Fotos sequenciais começaram a
preencher a minha mente: uma casa de alvenaria com cerca branca
na cidade. Uma rosa cor-de-rosa solitária no canto de um muro.
Uma mulher fazendo tranças em mim enquanto cantava uma
música sertaneja. Eu, menina, sentada em um salão de baile, vendo
um casal dançar e sorrir para mim. Estilhaços de vidro de carro
voando e um barulho seco. O mesmo rapaz do baile me abraça com
fisionomia triste,pega uma mala e some. Eu viajando com a vovó,
descendo em uma estrada empoeirada. Nós duas conversando na
varanda na noite do baile. O olhar triste de Mateus na nossa
despedida...
Aos poucos fui voltando. As pessoas me olhavam e paravam
de falar. Estava dentro de casa agora. Olhei no meio da sala e vi o
caixão da minha avó. Cheguei mais perto e a vi ali, deitada, imóvel.
Uma serenidade em seu semblante emoldurado por flores brancas.
Com certeza a sua missão estava cumprida.
Foi muito difícil de aceitar. Sentia uma dor que não conseguia
explicar. Um misto de vazio, tristeza,desconfortoe culpa. Sim, eu
sentia muita culpa.
Tia Nice ficou comigo em casa por alguns dias e aproveitei
para especular:
— Quando eu saí de casa ela estava bem. Não entendo o que
aconteceu...
— Foi um AVC, querida. Mamãe sempre teve uns problemas
de saúde, sabíamos que, mesmo fazendo tratamento,um dia isso
iria acontecer. Logo depois que você foi para o parque, a dona
Josefa veio aqui falar com ela — fez uma pausa e prosseguiu. —
Quando chegou, mamãe estava sentada na varanda ainda quente,
mas sem vida. Ligou para mim. Vim o mais rápido que pude
trazendo o Doutor João. Não tinha nada que pudesse ser feito,além
de preparar o velório...
— Eu não devia ter deixado ela sozinha! — disse, pesarosa.
— Eu sonhava em ir morar na cidade com você, mas não queria que
nada acontecesse com a vovó...
— Isso não tem nada a ver com você, Sabrina. Eu creio que
nenhuma folha cai sem a permissão divina. Mamãe foi mais uma
folha que foi chamada porque terminou a sua estada conosco.
Agora seremos nós duas!
Tia Nice me abraçou e aproveitei o momento para revelar:
— Eu lembrei!
— Do quê?
— De tudo — vi as imagens na minha mente novamente. —
Nós morávamos na cidade. Papai e mamãe dançavam, pareciam
que gostavam um do outro. O acidente de carro... eu estava lá.
Mamãe bateu a cabeça forte no vidro do carro. Meu pai me
abandonou. Vovó e eu viemos morar aqui. Vocês me colocaram em
um casulo, né? Por quê?
— Nossa! Porque você não me contou antes... quando foi? —
questionou, cautelosa.
— Com a morte da vovó. Ela era tão fantásticaque até isso
fez por mim antes de partir
...
Olhei para minha tia esperando uma resposta que eu não
sabia se estava preparada para ouvir.
— Sei que o que vou pedir é difícil, mas não nos julgue.
Estávamos dilaceradas, todos sofriam... você ali, pequena, tão
ingênua e frágil, não se lembrava de nada. Nadinha. Os médicos
suspeitaram de amnésia, mas acabaram concluindo que era
estresse pós-traumático. Tínhamos muito medo do dia em que você
se lembrasse de tudo, com tantas emoções envolvidas... muitas
perdas... nós amamos muito você... queríamos evitar que sofresse
ainda mais. Fizemos isso por amor!
Não sabia o que pensar. Ainda estava abalada com todas as
informações que brotaram em minha mente e todos os
acontecimentosda última semana, mas não queria mais mentiras,
aquilo tinha que acabar ali.
— Tia, obrigada por tudo, por tudo mesmo que você e vovó
fizeram e fazem por mim... — lágrimas brotaram em meus olhos e
chorei copiosamente, abraçada à minha tia. Era como se tudo que
estava guardado, ou melhor, escondido dentro de mim aflorasse.
Não tinha mais espaço. Eu precisava descarregar. Fiz uma pausa,
suspirei, na tentativade controlar a minha respiração, organizar os
meus pensamentos e continuei: — Por favor, tia, chega de mentiras!
O que mais eu preciso saber?
Ela encarou os meus olhos, respirou profundamente,fixou o
seu olhar na parede e começou:
— Nós trabalhávamos na indústria: eu, sua mãe e seu pai. A
mamãe nunca foi trabalhadora rural, ela trabalhava em casas de
família, e depois do seu nascimento cuidava de você a maior parte
do tempo, fazia bordados e pequenos reparos com costuras
também. Você estava no carro no dia do acidente. Seus pais
estavam te levando para ficar com a mamãe, onde me pegariam e
iríamos juntos ao trabalho, como fazíamos diariamente. Seu pai
estava dirigindo e sua mãe sentada no banco do passageiro. Um
animal cruzou a pista e foi necessário uma freada brusca, e como a
pista estava molhada, o carro deslizou batendo em um poste. Sua
mãe bateu com a cabeça na janela do seu lado... foi fatal.
Enquanto falava, ela sondava a minha expressão, como se
quisesse saber se daria conta daquilo tudo.
— Eu nunca mais quis trabalhar na fábrica. — continuou. —
Seu pai também não, para ele foi insuportável, e acabou sumindo no
mundo. Nunca mais tivemos notícias dele. Mamãe e eu achamos
melhor tirar você dessas lembranças tristese ela se mudou com
você para o sítio. A casa onde moro hoje era a que eu morava com
ela. Compramos a casa do sítio com a indenização recebida pelo
acidente...
Minha tia parou de falar. Até então as suas palavras pareciam
uma metralhadora, deixando-me descompensada, e todas as
informações se encaixavam com as lembranças que retornaram.
Achava que tudo já estava esclarecido, quando a minha tia
continuou:
— Nós conhecemos o seu pai em um CTG da cidade. Quem
namorou primeiro com ele fui eu... nós brigávamos muito, eu não
concordava com algumas atitudesdele e terminamos. Meses depois
fiquei sabendo que estava namorando a sua mãe. Ela engravidou,
foram morar juntos, e o restanteda história você já sabe... — evitou
me encarar e prosseguiu. — Já estava tudo certo para você ir
comigo para a cidade. Mamãe queria ficaraqui. Independentemente
do que aconteceu, já estava certo que você moraria comigo em
janeiro.
Aos poucos fui envolvida por um cansaço, como se todas as
minhas energias tivessem sido sugadas. Não queria mais falar e
nem ouvir. Despedi-me e fui dormir.
Capítulo 4
Passamos as festas de final de ano no sítio, se é que
podemos chamar o que tivemos de festa.Ficamos lá para a tia Nice
resolver as coisas: vender os poucos animais que tínhamos, separar
os pertences da vovó para doar ou vender, e organizar a minha
mudança para Gravataí.
Minha tia estava de férias. Ela fez isso pensando na minha
adaptação, e também para eu não ficar muito tempo sozinha
enquanto as aulas não começavam. Nossa casa era de alvenaria
simples e pequena: dois quartos, um banheiro, uma sala e uma
cozinha interligadas. O telhado da casa tinha o formatode duas
águas, como todas as casas do conjunto popular onde morávamos,
só que foi feitauma reforma para estender o telhado até o muro e
formar uma pequena garagem para o carro de tia Nice. Na parte de
trás tinha um pequeno pátio, onde tia Nice pendurava as roupas, e
eu imaginei que seria um bom espaço para me exercitar. Eu fiquei
com o antigo quarto da vovó. Nele havia uma cama e um guarda-
roupa, que pareciam ser do mesmo conjunto. Trouxemos do sítio a
minha escrivaninha e no quarto tinha também uma prateleira
pendurada na parede, que me fez imaginar muitos livros ali.

Antes das aulas começarem, tia Nice me levava junto para o


seu trabalho. Lá tinha uma pequena cozinha, onde as funcionárias
podiam comer. Enquanto ela trabalhava, eu ficava lendo, ou então
circulava pelo shopping, e quando o movimento do salão estava
grande, eu atendia ao telefone. O dia passava muito rápido.
Era um domingo, véspera das aulas começarem, e tia Nice me
chamou antes de ir trabalhar:
— Sabrina, pode vir aqui um pouquinho?
— Sim — fui, curiosa.
— Você fez aniversário e com todos os acontecimentos.... —
falou, hesitante, e sacudiu a cabeça, parecendo querer espalhar
pensamentos indesejados — esqueci que tinha comprado um
presente para você...— Ela me entregou uma caixa.
— Obrigada! — respondi, esticando o braço para pegar a
caixa. — Uau! Um celular! Sempre quis ter um celular! —
comemorei sem acreditar no que estava acontecendo.
Titia me ajudou com as configurações iniciais do celular.
Fizemos alguns testese ela informouquanto de crédito eu teria para
usar mensalmente. Também deu algumas dicas de como agir com
responsabilidade e segurança, informando-me a importância de
estar sempre com ele, já que estaríamos a maior parte do dia
afastadas.Deu uma ênfase explicando que dentro da sala de aula
era um objeto “proibido”e que esperava não termos problemas com
isso. Depois de todas essas informações, suspeitei que aquele
presente fosse para ela ficar mais segura e poder controlar a minha
vida de longe, mas eu pagaria esse preço para ser uma “moça
conectada”. Sorri maliciosamente.

Fui dormir tarde. Fiquei encantada com as informações que


tinha através do celular. Quando o relógio despertou às seis horas,
levei um susto. Nem a mochila eu arrumara. Como a minha mochila
do ano passado estava boa ainda, falei para a titia que usaria a
mesma. Sacudi, em cima da cama, as coisas que tinham dentro
dela, coloquei o estojo, que estava pronto desde o dia que
compramos os materiais escolares, e um caderno universitário.
Comi uma fruta,penteei os cabelos, passei um brilho labial e fiquei
na frente de casa esperando a minha mais nova amiga.
Minha tia, mais insegura do que eu, combinou com a filha da
vizinha para eu ir com ela. Caminharíamos juntas por cinco quadras
que nos levariam até o nosso destino.
Foi bom, pois eu já ia fazendo amizade antes de chegar à
escola. Por coincidência, Regiane, a filha da vizinha, estava na
mesma turma que a minha. Mais um motivo para nos tornarmos
amigas.
A manhã passou sem nenhuma novidade. Quando saímos do
portão da escola, escutamos uma voz que nos fez olhar para trás:
— Sem desviar o caminho, hein, Regi! — alertou um rapaz
com um ou dois anos a mais do que nós, que estava encostado no
muro com um dos pés apoiado.
— Babaca! — respondeu a minha amiga, mostrando-lhe o
dedo do meio.
— Quem era? — quis saber.
— Meu irmão! Ele é tão galinha que pensa que todos são
iguais a ele e transforma a minha vida num inferno às vezes.
— Nossa! Ele não vem e volta com você? — Olhei para trás e
dei uma última analisada nele.
— Não, está sempre atrasado. Já repetiu um ano e tenho a
impressão que não se importaria se repetisse de novo. Ele aproveita
o final da aula para tirar uma casquinha das meninas que o
idolatram...
Cheguei em casa, esquentei e comi o restantedo almoço de
domingo. Pensei que seria bom compensar o sono da noite anterior
com uma soneca, então fui até o meu quarto e tirei as coisas que
joguei na cama logo cedo: papéis de presente, uma caixa com um
perfume dentro, e uma pequena caixinha de joias.
Instintivamente,segurei o pingente com a metade do coração
de Mateus que estava em meu pescoço desde o dia que me dera.
Um arrepio me invadiu e não pude deixar de suspirar, lembrando-me
daquele dia, do nosso beijo e de tudo mais que aconteceu depois.
Queria tantome esquecer de tudo que deixei de lado, até do que foi
bom. Sentei na cama e lembrei de suas palavras: “Aqui dentro tem
algumas informações,se quiser me encontrar...”. Abri a caixinha.
Tinha um papel cor-de-rosa pequeno e dobrado. Após abri-lo, vi que
tinha uma mensagem:

“Oi, linda!
Adoreite conhecer... me procura nas redes sociais.Meu nome
completo é Mateus Guimarães.
(51) 90000-0000
Um beijo,
Mateus”

— Ai, meu Deus! Isso estava aqui todo esse tempo!?


Estava em êxtase, queria muito encontrá-lo. Fiquei tão
nervosa, que não conseguia raciocinar. Foi então que tive uma ideia:
Regi. Corri até a sua casa e pedi que viesse aqui para me ajudar.
Ela veio. Ensinou-me a baixar os aplicativos e a criar as contas.
Agora era só buscar.
— Vai, digita! — incentivou-me tão entusiasmada quanto eu.
Foi o que eu fiz. Após inserir o nome Mateus Guimarães e
apertar o “enter”, fiquei com um nó na garganta. Eu o encontrei, mas
ele não estava sozinho. Em uma fotoele estava numa praia com
uma moça bonita. Ele só de sunga e ela de biquíni. Os dois
encontravam-se abraçados e ao lado do seu nome estava escrito
assim: “Camila Santos está com Mateus Guimarães em Balneário
Camboriú”.
— Que merrrrrda, Sabrina! — lamentou Regi, mas não mais
do que eu.
Ela ficou o resto da tarde comigo, era ótima em disfarçar e
mudar de assunto. Até que nos divertimos, demos algumas risadas,
mas aquela história ainda não tinha terminado para mim. Depois
que ela foi embora, arranquei aquela corrente idiota do pescoço,
peguei um caderno, liguei o rádio na música mais triste que
encontrei e comecei escrever...

O amor pode ser cruel

Quem é você que se acha assim, tão soberano?


Amor, você só me trouxe dor!
A partir de agora, em minha vida
Eu escolho não amar!
Meu destino daqui para frente, só eu vou traçar
E junto com o meu coração, uma pedra de gelo vai morar!
Capítulo 5
Os anos do ensino médio transcorriam sem muitas mudanças.
A única mudança que eu percebi era em Frederico, o vizinho e
irmão da minha amiga, Regiane. Juntamentecom aquela pose sexy,
que ele tentavafazer no muro da escola, alternavam-se as garotas
que ficavam ali com ele: uma semana era uma loira, na outra era
uma mulata, e daí uma morena. Ele repetia sempre a mesma frase:
— Sem desviar o caminho, hein, Regi e amiga da Regi? —
aquilo era uma piada, só que eu não conseguia rir. Fazia-me
lembrar o Mateus que um dia eu conheci, e por algum motivo
imaginei que ele devia ter um comportamentoparecido. Isso fazia
eu odiar Frederico secretamente e muito provavelmente qualquer
outro rapaz que tentasse se aproximar de mim também.

Encontrei outros livros eróticos de tia Nice e lia


descaradamente. Um dia ela estava de folga e eu resolvi especular:
— Tia Nice, você é virgem?
— O quê?! — perguntou, tossindo, para ter certeza de que era
aquilo que eu perguntara mesmo. — Ai, Sabrina, isso é tão
embaraçoso...
— Embaraçoso? Porque embaraçoso? — pensei um pouco e
depois respondi: — Eca! Você perdeu a virgindade com meu pai!
— Nããããããão! — negou ela, quase gritando — Foi por isso
que terminamos. Eu queria me entregar por amor e não amava ele o
suficiente.
— E daí? Você amou alguém... o suficiente?
— Senhor... Sabrina, você... amei — afirmoua tia Nice quando
percebeu que não me despistaria.
— E o que houve? Por que você não casou, teve filho, essas
coisas do tipo?
— São as escolhas que fazemos, Sabrina! Eu sempre quis ter
a minha independência financeira, pagar as minhas contas com
segurança, ser um amparo para a mamãe e você. O relacionamento
que tive foi muito bom. O sexo era gostoso — deu uma risada de
cumplicidade para a sobrinha —, mas foi só isso. Ele era um
boêmio, gastava tudo em baile, bebida. Definitivamenteeu escolhi
não sustentar homem nenhum.
— Eu quero ser que nem você. Agir racionalmente e não
depender de homem... sabe esses livros que a gente lê? Eu serei
uma sedutora poderosa. Farei de tudo para chegar lá sem me
envolver...
— Boa sorte! Mas saiba que isso não é simples, o coração da
gente cai em cada armadilha... — alertou a minha tia. — Por acaso,
essa conversa toda... você está apaixonada? Interessada em algum
rapaz? Pelo amor de Deus! Tenha cuidado...
— Sim... quero dizer, não. Eu sei que temos que tomar muitos
cuidados.
— Você confia em mim para me manter informada? Quando
você quiser se entregar? — na mesma hora que falouessa frase,tia
Nice deu risada. — Se sente mais segura se fora uma médica, para
conversar?
— Sim, você me leva?

Conforme o prometido, tia Nice me levou a uma médica. Era


isso mesmo que eu queria. Fazer tudo certinho, só que do meu jeito.
Como eu tinha algumas espinhas, a menstruação era meio
desregulada, reclamei até a médica me receitar um
anticoncepcional. Afinal, eu ia fazer dezoito anos e queria me dar
um presente, mas não queria que ele chorasse nove meses depois.
Eu era bonita. Achava-me bonita também, só que eu não
ajudava. Escondia-me atrás de roupas largas e não alimentava
muito a vaidade em mim. Comecei a observar as minhas colegas de
escola e passei a me arrumar de forma parecida. No terceiro dia que
fiz isso, aconteceu uma coisa que fez eu e a Regi nos olharmos
curiosas:
— Ei? Meninas? Esperem, posso ir com vocês? — era a voz
de Frederico um pouco atrás de nós.
— Nossa! Está acabando o mundo, Sabrina! — brincou Regi
olhando divertida para mim.
— É que eu tenho um trabalho para fazer... preciso ir mais
cedo hoje — explicou Frederico.
— Para, Fred! Vamos juntos, mas fique com a sua boca
fechada! Daqui a pouco começam a cair uns canivetes do céu...
Eu não sabia o que aquele comportamento anormal do
Frederico significava. Achei que era uma ótima oportunidade de
executar o meu plano:
— Regi, o que você vai fazer hoje de tarde?
— Vou sair com a minha mãe. Por quê?
— Está um sol tão lindo! Vou me bronzear nos fundos de
casa...
— Que pena! — respondeu ela —, hoje não dá.

Lá pelas dezesseis horas comecei a pôr o meu plano em ação.


Estiquei uma toalha no chão, coloquei um biquíni, peguei uma
garrafa d’água, um livro e fui me esticar no sol. Curiosamente, bem
naquela hora, Frederico resolveu cortar os galhos do abacateiro.
Pendurou-se no muro e disse:
— Oi, vizinha! Estou só podando o abacateiro. Finja que eu
não estou aqui.
— Impossível, Frederico. Você tem tanta prática para fazer
isso, como uma vaca tem em botar ovos... dá uma olhada na
quantidade de folhas que você está derrubando aqui — respondi,
indignada.
— Pode deixar que eu junto. Posso pular aí? — fez uma pausa
e completou: — Para limpar...
Nunca imaginei que seria tão fácil seduzir esse bocó. Fiquei
um pouco relutante, mas cheguei à conclusão de que nenhuma
oportunidade podia ser perdida:
— Venha! Só que seja rápido. Vai que a sua mãe e irmã
chegam e pegam você pulando o muro, vai ser bem difícil de
explicar!
— Não, elas chegam de noite hoje. A consulta da
dermatologista da Regi é só às dezenove horas — explicou
Frederico nos mínimos detalhes.
Era tudo que eu precisava saber.
Entrei em casa, vesti um roupão, coloquei em uma seleção de
músicas da Lady Gaga, que estava em alta, fiz um suco e ofereci
um copo para ele. Ele aceitou e quando fui entregá-lo encostei
premeditadamente em sua mão. E joguei a isca:
— Quer dizer que o senhor Frederico é pegador?
— Quem? Eu? — rebateu a pergunta meio incrédulo.
— Sim, é a sua fama! — fui me aproximando como uma onça
prestes a dar o bote.
Ele largou o copo na soleira da janela e voltou a catar as
folhas do chão. Continuei com o meu plano:
— Me mostre! Sempre tive curiosidade de ficar com um
garanhão assim como você! — falei me aproximando dele — Ou
será que eu não faço o seu tipo?
— Meu tipo! Qualquer uma faz o meu tipo! Quer dizer... —
ficou muito desconcertado quando se deu conta do que tinha
acabado de falar — Sim, você é meu tipo!
— Quem bom! — respondi. — Me mostra, garanhão, como é...
— Que pena! Terminei aqui, preciso ir para casa... —
respondeu esbaforido começando a subir no muro de volta.
— Tem certeza que você gosta de menina, Frederico? Estou
aqui me oferecendo para você e está fugindo como se eu fosse o
próprio demônio?
Ele desceu do muro. Parou na minha frente.Imaginei que ele
fosse me agarrar e acabar com a minha virgindade em um segundo
quando declarou:
— Sou virgem! — virou-se rapidamente e subiu no muro como
um gato fugindo de cachorro.
Naquele dia, mais nenhum galho foi cortado.
Entrei em casa, tomei um banho e enquanto me secava fiteia
minha imagem no espelho e gargalhei. Belo garanhão que eu
escolhi para tirar a minha virgindade, mas eu me sentia vitoriosa.
Uma sensação de poder, de predadora. Eu descobri naquele dia
como eu gostava de seduzir.
E se meus planos dessem certo, Frederico seria a minha
primeira vítima.
Capítulo 6
Naquela segunda-feira eu não via a hora de sair da escola e
ver a cara do Frederico. Quem seria a sua acompanhante da vez?
Ou qual desculpa esfarrapada usaria para voltar para casa com a
gente? Só que me surpreendi, pois nada disso aconteceu... Pensei
em fazer um interrogatóriopara a Regi, mas ia dar muito na cara e
eu não queria testemunhas.
Já era sexta-feirae o rapaz tinha tomado um chá de sumiço. A
Regi tinha me contado que sairia com sua mãe de tarde. Eu as
esperei saírem. Tomei um banho, coloquei um vestidinho curto,
prendi os cabelos em um rabo de cavalo alto e ironicamente passei
o perfume que tinha ganhado de Mateus. Fiz-me de esquecida e fui
a casa dela tirar uma dúvida da lição de matemática.Foi Frederico
quem atendeu:
— Oi. A Regiane não está! — respondeu ele o mais longe que
conseguiu ficar de mim, quase fechando a porta na minha cara.
— Fred! Posso te chamar de Fred, né? Me Deixa entrar? Eu
só queria dar uma olhadinha no caderno da Regi, para ver se eu
copiei a lição certa... Eu sei que poderia esperar ela chegar... mas é
que amanhã eu vou pro shopping com a tia Nice e pode ser que não
dê tempo de eu fazer ... me quebra essa... Fred... vai?
A expressão dele parecia irredutível, pensou um pouco e falou:
— Está bem, mas seja rápida! E não falapara ela que eu mexi
nas suas coisas!
— Sim, claro! Pode deixar que eu guardarei mais esse
segredo para você! Falando em segredos... — fiz uma pausa até
conseguir a completa atenção dele. Ele me olhou assustado e eu
expliquei:
— Eu estou com o mesmo problema que você Fred... — fiz
uma pausa olhando em seus olhos e revelei — Também sou virgem!
Penso que a gente poderia resolver isso, ao mesmo tempo, o que
acha? Aí sim você poderia fazer jus à sua fama...
— Você só pode estar louca! Todas as meninas se guardam e
esperam o cara ideal, o momento ideal... e você vem aqui me
oferecer a sua virgindade na bandeja? Qual é a pegadinha? Já sei:
você não é mais virgem e quer me enganar?
— Sim, donzela! Eu quero a sua virgindade! — respondi
ironicamente irritada — Fred, essa é a única explicação que vou lhe
dar: Não existe o cara ideal. O momento ideal é a gente que faz. E
eu não estou oferecendo a minha virgindade a você. Será uma
troca, a minha pela sua. Já que nós dois não temos experiência
nesse assunto, aprenderemos juntos. O que acha? É pegar ou
largar...

E ele pegou. Como pegou... Deu um pulo em cima de mim.


Beijou-me com uma fúria que eu nunca imaginei que ele tivesse.
Parecia que tinha umas oito mãos, pois eu o sentia em vários
lugares ao mesmo tempo. Por um momento cheguei a lamentar ter
ido com aquele vestido, o acesso ao meu corpo era muito fácil com
ele. Um tanto ofegante, consegui me desvencilhar dele e informei:
— Calma, Fred! Não precisa ser hoje! Muito menos agora! —
respirei fundo, arrumei o meu cabelo, desamarrotei o meu vestido e
expliquei. — Será lá em casa. Você pula o muro. Daí ninguém vê a
gente em situação suspeita — tive que me controlar para não dar
gargalhadas relembrando do episódio das folhas de abacateiro —,
ou você quer que eu lembre pro resto da vida que perdi a minha
virgindade na sala da sua casa e você nem banho tinha tomado
antes?
Frederico caiu em si e concordou com a cabeça. Mais algumas
coisas:
— A camisinha é sua responsabilidade. Dá um jeito de me
avisar o dia que ficará sozinho e olha lá, hein? Segredo! Nosso
segredo! Não se preocupe: a gente não está namorando... e nem eu
quero isso! O que vamos fazer é só a resolução conjunta de um
problema em comum, certo?
Estiquei a mão para ele como se faz após fechar um negócio
importante.Ele pegou na minha, me puxou para perto do seu corpo,
beijando-me novamente só que dessa vez menos afoito e explicou:
— Só para selar o nosso acordo!

Fui para casa com o meu caderno nos braços. Sentei no sofá
e refiz as minhas falas para ver se era isso mesmo que eu havia
feito: negociado a minha virgindade com o Fred... sim, era
exatamenteisso mesmo que eu tinha feito.E pior, eu não estava
arrependida, estava ansiosa. Se a nossa primeira vez fosse igual
aquele beijo alucinado que ele me deu... prometia! Não pude deixar
de lembrar das emoções que senti com o primeiro beijo que dei na
vida: no Mateus. Era bem diferente,agora era sem surpresa, tudo
programado.
— Putz! — resmunguei ao me lembrar que eu não programara
o beijo que o Fred me dera e que em nenhum momento eu tinha
percebido que ele tinha braços de polvo. Confortei-meafirmando:—
Tá, exceto por isso eu estou no controle.
Nos dois dias que seguiram fui trabalhar com a minha tia no
shopping. Como o final de ano estava chegando, o movimento
estava bem agitado. No domingo, todas as manicures estavam
atendendo quando chegou uma senhorinha aflitaquerendo fazer as
unhas:
— Nice, preciso fazer as minhas unhas, rápido! Meu filho virá
logo me buscar e não posso deixá-lo esperando!
— Desculpe dona Judite! Hoje foi só com horário agendado! —
explicou tia Nice.
— E a mocinha ali? — perguntou dona Judite apontando para
mim.
— Ela não é manicure, é a minha sobrinha... — Tia Nice
pensou um pouco e perguntou: — Ela pode ir adiantando... daí
quando alguém terminar finaliza para a senhora. Pode ser?
— Você pode fazer isso, Sabrina? — olhou quase implorando
para mim.
— Sim! — respondi já colocando um avental que estava
pendurado.
Dona Judite era uma senhorinha muito simpática. A conversa
com ela fluía. Estava toda animada porque o seu filho ia morar na
cidade. Fazia tempo que não o via e queria estar impecável. Fiz as
suas unhas do início ao fim. Eu estava acostumada a fazer as unhas
de vovó e suas amigas, todas castigadas de lidar na terra e com os
animais. Não tinha nem como comparar com as unhas de dona
Judite, que eram fáceis de fazer. Lembrei da vovó e uma saudade
apertou o meu coração. Como ela fazia faltaem minha vida. Eu
tinha a impressão que essa ferida nunca mais cicatrizaria.
Quando terminei as unhas de dona Judite ela falou:
— Que mãos de fada, menina? Muito obrigada! Quantos anos
você tem?
— Estou fazendo dezoito hoje — respondi
— Parabéns! — falou sorrindo para mim, e desafiou a tia Nice
— Nice, agora a dona do salão, vai ter que contratar mais uma
manicure. Quero ser cliente VIPdessa mocinha aqui.
No final do dia, ganhei um percentual das unhas que fize uma
gorjeta bem gorda da dona Judite. Como era o meu aniversário, eu
e tia Nice fomosa uma pizzaria descontrair um pouco. Depois deste
dia, sempre que eu podia, ia fazer um biquinho no salão. A tia Nice
não deixava me faltarnada, mas conquistar o próprio dinheiro tinha
um sabor especial.
Quando chegamos em casa tinha uma garoa fina. Tia Nice foi
ao quintal armar a sombrinha e me chamou:
— Sabrina, venha ver que estranho...
No canto direito do muro, local do episódio das folhas do
abacateiro, tinha um urso de pelúcia cuidadosamente colocado
embaixo de uma sombrinha cor-de-rosa. Nas mãos do urso tinha
uma faixa escrita: “Feliz aniversário!”
— Você sabe o que quer dizer isso, Sabrina?
— Significaque este abacateiro está derrubando ursos porque
sabia que era meu aniversário — respondi meio aflita, não
escondendo a minha perplexidade.
— Nossa! Essa é a primeira vez que isso acontece! Não vejo a
hora de o meu aniversário chegar... será que vai ter um urso
protegido da chuva para mim também? — perguntou a tia Nice rindo
e já tendo um bom palpite da procedência daquele urso...
Capítulo 7
A atitude de Fred foi fofa,confesso, mas me deixou furiosa.
Muito atrevimentoele pular o nosso muro para me deixar aquele
presente. Agora minha tia poderá desconfiar de alguma coisa.
Precisava acabar com aquilo o quanto antes... ainda mais agora que
eu estava trabalhando no salão, então tínhamos menos tempo.
Comecei a semana, como sempre. Eu queria encontrar o Fred
e fuzilá-lo,mas ocorreu da mesma formaque a semana anterior: ele
sumiu. Na quarta-feiraera a folga da minha tia e ela me disse que
teríamos visita. Eu não dei muita importância, já estava acostumada
que às vezes as amigas dela viessem em casa para conversar,
assistir a um filme ou coisas do tipo. Lá pelas dezessete horas, a
campainha tocou e minha tia foi atender. Para minha surpresa a
“visita” era ele: Frederico. Parecia que acabara de sair do banho. Os
cabelos castanhos arrumados para o lado em um topete. e Vstia uma
calça jeans e uma camisa social azul-marinho de mangas curtas.
Estava bonito. Trazia em suas mãos um arranjo de rosas vermelhas.
Eu fiquei olhando-o por alguns instantese não pude acreditar no
que via. Perguntei, sem nenhuma expressão, quase rosnando:
— O que você faz aqui?
— Eu vim... é, aqui — pigarreou. — Sabrina... —continuou
olhando para a minha tia — tia Nice, eu posso namorar com a
Sabrina?
Minha tia não ficou surpresa. Tenho a impressão de que ela
até já sabia. Olhou para mim e respondeu:
— Frederico, a Sabrina é bem grandinha! Essa decisão terá
que ser dela. Eu tenho que comprar algumas coisas no mercado e
vou deixar vocês conversarem um pouco.
Com uma cara de paisagem, a minha tia pegou a carteira e
avisou:
— Está um dia tão bonito! Irei andando, qualquer coisa peço
para eles entregarem... —e um tanto sarcástica, ela piscou para
Fred— boa sorte!
Ele precisava mesmo. As coisas estavam bem complicadas
para o lado dele. Tudo que eu queria era uma transa, uma única
transa. Depois disso, cada um seguiria o seu caminho. Era difícil de
entender isso? O meu pensamento estava tão acelerado que nem
dei importância ao fatode estarmos ali parados na frente um do
outro. Inspirei profundamente, olhei para ele e solicitei:
— Você pode me explicar o que está fazendo aqui, Frederico?
— São para você! — explicou estendendo o buquê em minha
direção.
Segurei as flores sem muita expressão, mas agradeci.
Enquanto dissipava a minha raiva: abri a embalagem; peguei um
vaso estreitoe alto que tinha ali na sala; coloquei um pouco de água
e arrumei as flores nele calmamente. Afinal, elas não tinham culpa
de estar envolvidas no meio daquela conversa. Olhei para ele e
perguntei novamente:
— Então... Frederico?
Ele se sentou no sofá,enquanto eu me sentei em uma cadeira
que coloquei estrategicamente à sua frente, e revelou:
— Sabrina... gostei de você desde a primeira vez que te vi. Fiz
de tudo para provocar ciúmes... mas pelo jeito foi em vão. Depois
que você saiu naquele dia lá de casa eu cheguei à conclusão que se
eu fizer o que você quer, do jeito que você quer... acabou para mim.
Eu quero uma chance — fez uma pausa e olhou profundamenteem
meus olhos — um mês. Nós namoramos por um mês e se você não
se apaixonar por mim... —não pude deixar de perceber uma dor em
suas palavras — eu dou o que você quer e cada um segue o seu
rumo. É pegar ou largar...
Malditotraidor!Manipulador!Não foiissoque combinamos! Fiz
uma lista mental para analisar as minhas opções e eu não tinha
muitas. Seria só um pequeno atraso em meus planos. Um mês
passaria rápido e então eu seria MULHER, terminaria com o Fred e
minha vida seguiria... sem ele. Respondi a ele, muito resistente:
— Eu... — pigarreei — pensei... — tossi. Palavra difícil de ser
pronunciada essa...— Aceito!
Como da última vez em que conversamos, ele se aproximou
de mim, fez um sinal para eu ficar de pé, cruzou os dedos das suas
mãos nas minhas, mantendo-as juntas ao lado do nosso corpo e me
beijou calmamente no início, e apaixonadamente depois. Fiquei
meio zonza, envolvida por ele, por aquele beijo.
Até que ele soltou as nossas mãos, parou de me beijar, e
falou:
— Para selar o nosso acordo, Sabrina! Minha namorada!

Não era difícil ser namorada do Fred. Ele era agradável,


brincalhão e faziade tudo para me agradar. Tivemos que lidar juntos
com os ciúmes da Regi, que confessou estar se sentindo deixada
para escanteio. Passamos a incluí-la em alguns de nossos
programas e domamos a fera. Por várias vezes, tivemos que nos
controlar para não ultrapassarmos os limites após alguns beijos
mais acalorados, mas Fred estava irredutível a esta condição. Se
dependesse de mim não precisávamos esperar tanto.
No dia exato em que fizemos um mês de namoro, eu estava
calculando as palavras para exigir dele o que combinamos. Tia Nice
pediu que eu fossea uma loja de cosméticos para comprar algumas
coisas que estavam faltando. .. e geralmente, quando eu faziaisso ia
direto para o salão, mas ela me informou que eu poderia ir para
casa, pois ela levaria os produtos de carro no dia seguinte. Estava
um calor infernal!
Cheguei em casa toda suada e resolvi tomar um banho.
Quando saí do banheiro, cocei os olhos para ver se eu estava certa
do que estava vendo: os móveis da sala tinham sido afastados;no
lugar da mesa de centro tinha um colchão de casal, com um lençol
de cetim vermelho; algumas pétalas de rosas brancas em contraste;
algumas velas aromáticas acesas e uma penumbra, que entendi ser
a lâmpada que estava coberta com um papel celofane vermelho.
Havia uma música de fundo do duo AnaVitória que eu amava: “Cor
de Marte”.
Estava ali tentando entender o significado de tudo aquilo,
quando senti uma mão no meu ombro e uma voz falar no meu
ouvido:
— Dança comigo, Sabrina?
Senti um cheiro familiar: Fred. Começamos a dançar, nos
beijamos. Senti arrepios quando me abraçou pela cintura, foi
beijando o meu pescoço e atrás das minhas orelhas. Fiquei de
frentepara ele. Tirei a sua camiseta branca, que parecia rosa por
causa da lâmpada. Ele tirou a minha regata e quase morri de
vergonha, porque estava sem o sutiã. Fiquei lisonjeada ao observar
os seus olhos famintosem meus seios pequenos e empinados. Ele
beijou um de cada vez. Senti que estava excitada. Na verdade
aquelemês tinhasidoloongo...Um desejo doído me invadiu. Abri a
sua calça jeans e retirei-a, deixando-o apenas de cueca boxer
branca. Não teve como não observar o volume ereto que fazia o
tecido da cueca esticar.
Começamos a nos beijar novamente e nos deitamos no
colchão que só agora percebi que era inflável. Fred foi me beijando
carinhosamente: no pescoço, no busto, em cada um dos seios
novamente e no umbigo. Enquanto me distraía com a sua boca na
minha barriga, foicuidadosamente retirando a minha bermuda jeans
e ficamos mais íntimos do que já tínhamos ficado até aquele
momento. Duas peças de roupa nos separavam da consumação. E
consequentementedo final do nosso “acordo”. Fred parou o beijo
que compartilhávamos, olhou fixamente em meus olhos e
perguntou:
— É isso mesmo que você quer? Essas lembranças serão
suficientes para a sua, quer dizer
, a nossa primeira vez?
Senti um nó na garganta. Eu fui tão egoísta, não queria mais
sofrer, me desiludir, mas o que eu estava fazendocom Fred também
não era legal.
— Sim, namorado! Isso é muito mais do que imaginei, muito
mais do que mereço.
Recomeçamos o beijo de onde paramos, nossas roupas
íntimas foram tiradas, Fred colocou o preservativo e nos
encaixamos. Senti uma pressão ardida em minha abertura. Nunca
imaginei que fossedoer tanto. Ele foicarinhoso, cuidadoso e gozou!
Mesmo eu não tendo explodidode prazer, gostei. Ficamos deitados
contemplando o teto. Quando ele me perguntou:
— E então? Você vai me deixar? Já conseguiu o que queria...
—Não sei... — respondi fazendo cara de sedutora — estava
aqui pensando em me aproveitar mais um tempinho de você. Acho
que tem umas coisinhas que eu gostaria de repetir... se você
também quiser, é claro...
Como em toda a nossa negociação, selamos novamente
nossas bocas com um beijo. Então me lembrei:
— Como você entrou aqui?
— Tia Nice me emprestou a chave. Disse para ela que eu
queria fazer uma surpresa para você... consegui?
— Sim! — respondi e não podendo deixar de achar graça com
o pensamento que me ocorreu: "eu queria perder a virgindade com
um garanhão e acabei ganhando de brinde o romântico.”
Capítulo 8
As aulas daquele ano terminaram. Comecei a trabalhar todos
os dias no salão. O Fred sempre vinha aqui em casa pela manhã e
ficava comigo até a hora que eu ia trabalhar, às quatorze horas. Tia
Nice geralmente ia mais cedo. A dona do salão estava querendo se
aposentar e aos poucos estava delegando maiores
responsabilidades para ela. Quando eu e o Fred começamos a
namorar, tia Nice teve uma conversa bem clara conosco, deixando-
nos livres para a nossa intimidade, porém não pôde deixar de exigir
que “fôssemos responsáveis quanto ao uso de pílulas
anticoncepcionais e preservativos”.Outra coisa que ela não abriria
mão, por enquanto, era dele não dormir em nossa casa. Eu até
achava isso bom, porque assim eu teria alguns momentos de
privacidade e sem a presença dele.
Continuávamos nos conhecendo. Em todos os sentidos e
principalmente sexualmente. Eu inventei uma brincadeira e ele
topou. Ele topava tudo. Eu colocava um áudio book de um livro hot
para ouvirmos, íamos fazendotudo que os personagens faziam...no
começo, depois nos empolgávamos e continuávamos por conta
própria. Era divertido. Teve um dia que estávamos lá brincando e o
narrador começou a contar:

“Ele a virou de costas para si, colocou-a com as mãos


espalmadas em um sofá. Sua boceta mostrou-se facilmente,
expondo igualmenteo seu ânus, apertado e cativante.Oferecendo-
lhe um convite perverso de luxuria...”.

No mesmo instante Fred arregalou os olhos curiosos para


mim. A princípio não entendi. Quando processei o que significava
aquele olhar, respondi:
— Negativo! Sodomia comigo não! Além do mais, já está na
hora de eu me arrumar para o trabalho — esbaforida, pensei que a
única coisa que eu queria era tê-lo bem longe de mim. — Tchau!,
querido! Amanhã a gente se vê!
Fred ficou meio confuso, sem ter a menor ideia do que se
passava em minha mente. Catou as suas peças de roupa, vestiu-as,
despediu-se e foi embora. Eu, por outro lado, assegurei-me de que
as portas estavam trancadas, fechei as cortinas e tranquei-me no
meu quarto. A cena descrita no livro não saía da minha mente.
Estava muito excitada. Curiosamente nós já tínhamos transado
algumas vezes, mas eu não atingi o clímax em nenhuma delas.
Voltei o áudio, comecei a escutá-lo novamente e me masturbei. Eu
estava com muito desejo. O sentimentoera muito contraditório...por
que eu não queria o Fred ali comigo? Aproveitando aquele momento
de privacidade, eu parei de pensar. Toquei-me. Senti-me. E deixei
extravasar a erupção que há muito tempo estava guardada dentro
de mim e gozei intensamente!

Depois daquele dia eu comecei a despistá-lo. Disse que a tia


Nice estava precisando mais de mim no salão, o que não era uma
mentira. Começamos a nos ver menos... bem menos.
A dona Judite era minha cliente fiel. Estava toda empolgada
com a vinda do seu filho de São Paulo para morar em Gravataí. Ele
estava envolvido de alguma forma com o prédio suntuoso que está
sendo construído atrás do shopping onde trabalhamos. A história da
construção desse prédio estava repleta de escândalos, incluindo
desvio de dinheiro, falências e pessoas inocentes ficando sem
moradia. O dinheiro da incorporadora foi bloqueado. Os direitos do
edifício, juntamente com o seu projeto e terreno, foram leiloados.
Uma empresa bilionária adquiriu esses direitos e estava finalmente
construindo o tal prédio. Na cidade não se falava em outra coisa: o
prédio, que será o mais alto do Rio Grande do Sul, terá uma vista
panorâmica e possuirá um heliponto. A promessa do término da
construção era para o final do ano. Estava sendo usada uma
tecnologia chinesa, de construção em blocos, que faria com que o
prazo fosse cumprido.
A dona Judite estava tão animada com tudo aquilo.
Eu comecei a ficar curiosa a respeito do seu filho: Qual a sua
idade? Era casado? Que tipo de trabalho exercia na construção do
prédio? Qual seria o seu nome? Ela só o chamava de filho. Apesar
de todas essas perguntas me corroerem, eu sabia muito bem onde
era o meu lugar e só saberia o que ela me contasse, sem
especulações.

Naquela manhã acordei com Fred me olhando. Minha tia


novamente abriu a porta para ele antes de sair . Ele me saudou:
— Bom dia, Bela Adormecida!
O meu relacionamento com o Fred era tão perfeitinho,tão
meloso que eu não aguentava mais. Dei uma risada amarela para
ele. Levantei, lavei o rosto, escovei os dentes e fui para cozinha
pegar um café. Ele me seguiu. Ofereci para ele, que fez sinal
negativo com a cabeça. Tentei de algum jeito organizar as palavras
em minha mente. Fazer aquilo o mais rápido possível e poupar nós
dois de sofrimentos futuros. Comecei:
— Fred... não dá mais. Eu sou muito grata por tudo que
vivemos juntos até aqui, mas a sua única preocupação é me fazer
feliz, me agradar — encarei-o para analisar se eu estava pegando
pesado demais. — Eu quero um homem do meu lado, Fred, que
tenha responsabilidades, preocupe-se com a sua formação...,com o
nosso futuro...quantas vezes você já repetiu de ano mesmo? —
aproveitei a oportunidade e prossegui: — Eu estudo, trabalho.
Quando me formar, quero continuar estudando e buscando sempre
mais... definitivamente, a nossa história termina aqui. Agora!
— Sabrina! — falou o meu nome quase suplicando. — Me dê
mais uma chance!
— Sem chances. Confesso que foi muito bom... enquanto
durou. E é por isso que temos que parar por aqui, para termos
apenas lembranças boas...
Ele viu que eu estava irredutível. Tentou me roubar um último
beijo, mas virei o rosto, se eu não fosse firme com ele e comigo,
quanto tempo ainda duraria aquilo?
Ele foi embora.
Eu precisava de um banho. Tirei toda a roupa e fui para
debaixo do chuveiro. Queria lavar a minha alma. Ficar com o Fred
estava cada dia mais difícil..., mas o que eu estava sentindo doía
bastante...
Saí do chuveiro, me sequei, e pensei que uma música poderia
ajudar. Liguei o rádio e, para a minha infelicidade, estava tocando
“Era uma vez”, da Kell Smith. Instintivamenteeu fiquei em posição
fetalno tapeteda sala. Chorei copiosamente. Minha alma precisava
ser lavada de dentro para fora e aquela música era o bálsamo que
eu estava precisando.
Fiz uma reflexãodas experiências amorosas que vivera até ali:
um primeiro amor, que pelo jeito só foi sentido por mim; uma
conquista que virou namoro, muito racional e premeditado de minha
parte; eu recebi uma dedicação exclusiva, que me sufocou, porém
um segundo depois do Fred sair por aquela porta, eu já sofria.
Sentia a sua falta. Eu estava acostumada com a sua presença
quase que imposta. E agora eu teria que me acostumar a viver sem
ela.
Capítulo 9
Aquele ano voou. Eu já estava fazendoo último ano do Ensino
Médio. Encontrava o Frederico e a Regi na ida para escola. No
começo, ele vinha com aquele olhar de cachorro caído da mudança
para mim e eu fingia que não entendia nada. Não queria mais
envolvimentos. Até que ele começou a namorar uma garota morena,
de cabelos curtos, um pouco mais baixa do que eu. Confesso que a
primeira vez que eu vi os dois juntos tinha uma tripa dentro de mim
que se contorcia..., mas aos poucos essa sensação passou. Admito
que não queria ser amiga de Fred. Era muito estranho ver uma
pessoa que era totalmentededicada a mim transferira atençãopara
outra pessoa, porém eu estava decidida a seguir em frente. E
sozinha!
Eu saía da escola e ia direto para o shopping. Almoçava com a
tia Nice e trabalhava até o salão fechar. No começo fiz isso para
fugir do Fred, só que acabei me acostumando e isso passou a fazer
parte da minha rotina. Enquanto eu e Fred namorávamos a Regi foi
se afastandoda gente e agora que não estávamos mais juntos nem
a amizade dela eu tinha
Abriu uma academia de musculação no shopping. Como eu
tinha bastantetempo livre, enquanto não atendia clientes no salão,
fiz um acordo com a tia Nice: eu poderia me exercitar nos momentos
ociosos que eu tinha, já que o horário da academia era livre.
Eu tinha a impressão de que eu possuía uma energia que
precisava ser liberada e a academia seria uma boa saída.
Geralmente eu fazia aula das duas às quatro horas. Era um horário
bem vazio. Eu treinava praticamente sozinha ou com no máximo
duas pessoas.
Naquela tarde eu estava meio desanimada. Fui para a
academia parecendo um zumbi. Trouxera a primeira roupa que
apareceu na minha frente:uma legging e camiseta pretas e o tênis
mais confortável e velho que encontrei. Comecei a fazer o
aquecimento na bicicleta ergométrica, olhei ao redor e quase tive
que secar a baba que estava prestes a escorrer pela minha boca.
Avistei um rapaz castanho claro, alto, os olhos esverdeados, e
com os músculos trabalhados, quer dizer, esculpidos . Dava a
impressão de que a única coisa que faziana vida era cuidar daquele
corpo. Parecia que ele não tinha o menor receio de expô-lo, levando
em consideração a roupa que estava: um calção justo, mas não
colado, que dava uma margem à imaginação do que poderia ter sob
ele; uma regata cavada que deixava à mostra os bíceps e tríceps, e
fazia com que eu fantasias se a respeito de como seria aquele
abdômen...
Estava ali usando a minha criatividade para preencher as
lacunas do corpo do rapaz quando o professor me chamou já
explicando:
— Sabrina, esse aqui é o Leonardo.
— Por favor, podem me chamar de Leo.
— Então,o Leo vai treinar no mesmo horário que geralmente
você treina, e alguns dos aparelhos que usarão serão os mesmos —
fiquei tentando entender aonde toda aquela conversa chegaria e
continuei observando-o. — Queria saber se você se incomoda de
fazer revezamento com ele, assim fica melhor até para eu orientar
vocês dois... o que acha?
O que eu achava? Ficar olhando o “Leo” treinar enquanto eu
descansava? Era isso mesmo que eu tinha entendido? Eu achava
que aquilo era uma torturadescabida. Uma totalfaltade noção do
meu professor. Olhei para o lado e vi a minha imagem refletidano
espelho que cobria a parede inteira. O que eu acho?
Acho que deveriam proibir as pessoas de entrar na academia
vestidas do jeito que eu estava... onde fica o buraco para enfiarmos
a cabeça aqui?
— Sim, Felipe! Por mim tudo bem — daí fui tentarfazer um
charme e só me compliquei quando continuei. — Só espero que o
garotão aí, quer dizer, o Leo não se incomode, pois ainda sou nível
iniciante, posso acabar atrasando o meu parceiro, quer dizer, amigo
de treino... digo... não... o Leo.
— Pode ficar tranquila com isso... — acalmou-me o rapaz —
eu façohipertrofia,então o tempo do intervalo que façoé maior... a
gente vai ajustando a parceria.
No dia seguinte, sem pretensão nenhuma eu fui no horário de
sempre para a academia. Coloquei a roupa que separei no dia
anterior – umaleggingazul, com uma faixarosa em cada lateral, um
top rosa, combinando com a cor do detalhe da calça embaixo de
uma camiseta folgada azul-marinho, que tinha as costas cortadas
em linhas horizontais, dando um ar sensual sem ser vulgar, e um
tênis azul-marinho com detalhes em rosa, que harmonizava
perfeitamentecom o restante do visual. Quis me fuzilar por isso,
mas não pude evitar colocar uma calcinha fio dental para ficar sem
marcas na calça legging . Era uma calcinha branca que eu comprara
para usar em minha primeira vez com Fred. Como foi ele quem
planejou tudo, tinha até me esquecido dela. Eu sabia que ia me
odiar por isso, pois achava muito incômoda aquela sensação, mas
era por uma boa causa...
Quando cheguei à academia toda “produzida” para malhar, o
Leo já estava lá. Cumprimentei-o e o professor. Eles se olharam e
tive a impressão de que eu consegui o que eu queria: atenção. Foi
Leo quem elogiou:
— Nossa, gata, que diferença!!! — afirmou, incrédulo, muito
provavelmente comparando o meu vestuário com o do dia anterior .
— É que ontem tive um dia ruim, saí de casa com pressa e
esqueci a roupa em casa, minha tia pegou aquela para mim... —
achei que se continuasse com aquilo poderia me complicar, mas,
mesmo assim, prossegui: — o professor sabe que sempre venho
arrumadinha... não é isso mesmo, professor?— fitei-ocom um olhar
suplicante.
— Sim! Claro! Sou prova viva disso! — falou meio divertido,
segurando o riso e dando uma piscada para mim.
— Calma, só fiz um elogio — Leo respondeu, educado —,
você não me deve explicação nenhuma...
Dei um risinho sem graça de quem concordava e fui para a
esteira fazer o aquecimento. Tentava não olhar para a direção onde
Leo estava, mas ele não ajudava muito. Estava aquecendo na
esteira ao meu lado e ficava fazendo perguntinhas do tipo: “Faz
tempo que você treina? Seu trabalho é aqui por perto? Você mora
com a sua tia então?” Eu ia fazendo que sim com a cabeça. Não
queria parecer mal educada, mas ficava incomodada de correr na
esteira e ficar falando. Era muita informação para uma estreante
como eu... às vezes eu sentia até uma dor do lado do abdômen,
mas ele que me aguardasse, o meu interrogatório logo começaria.
Capítulo 10
Estava em um quarto de motel. Era espaçoso. A cama
também era grande. Três paredes estavam pintadas em um tom
lilás.
A parede atrás da cama possuía um tom maisescuro, parecia
bordô. O teto era branco e ostentava um lustre composto por três
lâmpadasamareladasque representavam o miolode flore s de vidro.
O ambiente tinha um ar aconchegante e sensual.Em cada um dos
lados da cama pendia uma florsolitária iguala do lustre. Sentium
cheiro de capim-limão no ambiente, ou coisa do tipo. Tinha uma
música do Rapha Mello e Charlles . tocando
Jr ao fundo
Olheipara frente e avisteium corpo masculinode costas para
mim. Vestia apenas uma cueca vermelha. Não pude conter o
impulsode tocá-lo. Abracei-o pela cintura. Inspirei um odor, que
misturava testosterona com um perfume amadeirado, e beijei
delicadamenteas suas costas. Num impulsorepentinoeleme virou
e nós caímosem cimada cama. Colocoucada uma das pernas ao
ladodo meu corpo, prendendo-me pelabarriga.Olheipara os lados
e percebi a presença de espelhos. Observei a minha imagem
refletidadeitada naquela cama: cabelos castanhos soltos e
bagunçados, a pele morena corada e suada, o corpo curvilíneo
esticado,apenas de calcinhae sutiã,e presa deliciosamente por um
homem apetitoso que ia me arrebatar em poucos segundos.
Volteia minha atenção para ele. O abdômen todo trabalhado
em gominhos que eu fotografavamilimetricamente. Afastou o bojo
do sutiã e mordeu suavemente um mamilo.Fez o mesmo com o
outro. Revezava a tortura, sendo que um seio estava sempre
carente. Eu sentiao seu membro ereto pressionara minhabarriga.
Levantou um pouco o seu quadril,deslizouuma das mãos pelomeu
ventre, que ansiava em ser preenchido, invadiua minha calcinha
com o seu dedo indicadore encontrou o meu clitóris. Tocava-me
ritmadamente nesses pontos e o meu corpo todo respondia.
Como uma feraprestes a dar o bote, foideslizandoem direção
à minhaintimidade, insinuandoque envolveriaa sua línguanaquela
brincadeira.Minha expectativa me torturava, eu mal conseguia
renovar o ar, este quase me faltava. Ouvi:
— Sabrina... — quase que um sussurro — Sabrina...

Olhei ao redor e as coisas estavam diferentes...um branco


gélido preencheu tudo, exceto a cama que agora tinha lençol florido.
O meu nome ainda sendo solicitado:
— Sabrina! — Um grito seco. — Corre, menina, estamos
atrasadas...

Acordei em um sobressalto com o grito da tia Nice. Tive a


impressão de que o corpo acordou, mas a alma ainda estava
perdida no meio daquele sonho tentador. Arrumei-me o mais rápido
que pude e aproveitei a carona da tia Nice, que me deixou na escola
antes de ir trabalhar.
Durante as aulas, eu tive flashes daquele sonho. Meu Deus!
Que homem! Seu corpo me lembrava o Leo, mas não tinha certeza,
o meu amante dedicado não tinha uma face definida para mim. Eu
estava precisando dar… ou acabaria ficando louca. Quanta
safadeza da minha parte. Ainda mais fazendo revezamento de
aparelhos com o Leo na academia. Era interessanteque além da
musculação, eu estava até aprendendo a meditar, tinha até um
mantra que eu repetia constantemente:“Não olha! Não olha! Não
olha!Tá, olherapidinho...”. Era mais forte do que eu. Ele era muito
bonito, seu corpo me atraía muito.
Cheguei ao salão e a dona Judite já estava à minha espera.
Achei estranho, pois ela sempre marcava horário no final da tarde.
Fiz como sempre: guardei a minha mochila na cozinha, lavei as
mãos, coloquei o jaleco, cumprimentei-a com um beijinho e comecei
o meu trabalho dando atenção aos seus pés primeiro.
Sem eu perguntar nada, ela começou a contar que hoje
dependia que o seu filho fosse lhe buscar, por isso decidiu vir mais
cedo, que ela caiu, machucou um pouco a perna e não estava
dirigindo. Ele passaria ali para buscá-la. Perguntou se eu poderia
acompanhá-la até a entrada do shopping, onde ficaria mais fácil
dele passar para pegá-la. Respondi que sim, quase batendo
palminhas, pois seria uma chance de ver o tal filho de perto.
Assim fizemos. Fui dando apoio para ela, que foi caminhando
lentamente,até que chegamos ao local combinado. Não esperamos
nem um minuto e uma linda caminhonete bordô com os vidros
escuros parou bem na nossa frente.Fiz menção de abrir a porta do
passageiro ao lado do motorista e ela me brecou:
— Aqui atrás, filha! — fiquei tocada em como ela era
carinhosa. Continuou: — Assim eu posso ficar com a perna
esticada.
Abri a porta para ela, que entrou sozinha na caminhonete.
Acenou com a mão para mim e o carro saiu. A única coisa que pude
ver do filho dela foi a sua caminhonete bem diferente dos
automóveis que eu estava acostumada a ver .
Como atendi a dona Judite antes, acabei indo mais tarde para
a academia. Quando cheguei, o Leo já havia ido embora. Senti um
alívio, pois era muito constrangedor observá-lo tão de perto. Ainda
mais depois daquele sonho maluco que tive. Ah! Aquele sonho!
Diferenteda forma “matadora” que agi com Fred, parecia que
o jeito mais “homão” do Leo me impedisse de lançar alguma indireta
ou coisa parecida. Alguma coisa nele me freava. Não sabia o que
era, mas eu com certeza iria descobrir.
No dia seguinte estávamos na academia no mesmo horário.
Eu e Leo. Ele todo falante, como sempre:
— Senti sua falta ontem, Sabrina… por que não veio?
— Eu vim mais tarde! — respondi, ofegante,acelerando o
passo na esteira.
— Você não é muito de conversar, né? — insistiu meu
“parceiro de treino”.
— É que não tenho muita segurança nos exercícios ainda —
expliquei com a respiração mais acelerada do que antes. — Não me
leve a mal, Leo, preciso estar concentrada no que estou fazendo…
e o meu fôlego não ajuda!
— Que tal um suco detox depois do treino? — convidou ele
meio reticente.
— Se for rápido, pode ser, tenho cliente às 16h30.
Ele fez que sim com a cabeça. O nosso treino estava focado
nos braços, mais especificamentenos bíceps. Compartilhei, sem
querer, em voz alta o meu pensamento:
— O que vocês têm que nós não temos?
— Como assim? — perguntou Leo sem saber do que eu
falava.
— Estamos fazendo um treino parecido. Tudo bem que você
ergue mais peso do que eu, mas não é justo… — lamentei fazendo
biquinho — seu braço infla só de chegar perto dos halteres…
— Quer pegar, bebê? Pode pegar — provocou-me oferecendo
o seu braço contraído. — Só tome cuidado para não se apaixonar…
— disse num tom um tantosarcástico — porque eu gosto da mesma
coisa que você… — completou quase que em um sussurro.
Considerei aquela conversa encerrada. Para quem não
gostava de conversar enquanto treinava, aquilo já era papo
demais… porém fiquei com uma pulga atrás da orelha. “Gosto da
mesma coisa que você…”. Que coisa seria essa? Sorte que já
tínhamos um suco programado para depois do treino.
Quando chegamos à lanchonete, já estávamos sem as roupas
de academia. Os dois praticamente mudos. Foi Leo quem quebrou o
silêncio:
— Você gosta de suco detox mesmo… senão pode pedir outro
— um tom de voz tão sério, nunca tinha o visto assim.
— Pode ser, Leo. Acompanho você — a curiosidade remoendo
dentro de mim. Arrisquei. — Aquilo que você falou… sobre.... —
tinha impressão de que as palavras não sairiam da minha boca.
Foi ele quem prosseguiu:
— Não sei se você compreendeu… vou te explicar com todas
as letras... — a impressão que tive foide ouvir a palavra soletrada e
maiúscula — Sou... H O M O S S E X U A L!
— Você só pode estar brincando... — argumentei meio
incrédula — você não tem jeito de... é tão masculino... –Eu não
acredito que isso está acontecendo.
Ele ficou me olhando, sério, o que fez com que eu parasse de
falar. Leo pigarreou e me explicou:
— Sou homem. Minha identidade de gênero é essa, mas não
sinto a menor atraçãopor mulheres. Reconheço uma mulher bonita,
assim como você é... mas não é uma mulher que desperta o meu
tesão, se é que você me entende... — falou dando uma piscada
maliciosa para mim.
— Ah! Isso! Normal! Obrigada por avisar! — não sabia
exatamentecomo reagir diante daquela revelação, tenteiparecer o
mais natural possível, o que estava sendo muito difícil para mim.
Lembrei-me do meu sonho e risquei mentalmente as palavras:
barriga de tanquinho da lista imaginária que às vezes fazia.
— Isso é meio difícil de entender — confessei com a
expressão incrédula. — Desculpe, Leo, se você me permite opinar...
que desperdício!!! — suspirei.
— Obrigada pela parte que me toca, Sabrina! Essas palavras
vindas de você me deixam muito lisonjeado.
Continuamos a nossa conversa com banalidades. Ele me
contou que trabalha em uma imobiliária que será transferidapara o
prédio ao lado, explicou que já está frequentandoa academia para
ficar mais fácil quando isso ocorrer, mora sozinho, e fez faculdade
de Contabilidade. Eu contei alguns fatosisolados da minha vida
também.
Terminamos o suco, despedimo-nos e antes de sair na direção
oposta ele me chamou cauteloso. Olhei e parei esperando que
chegasse até mais perto.
— Sabrina, por favor, não mude o seu comportamentocomigo
após a conversa que tivemos... — suplicou olhando nos meus olhos
— pode não parecer, mas é bem difícil aceitarem pessoas assim
como eu. Podemos ser amigos ainda?
Como resposta eu lhe dei um abraço apertado. Não era bem
esse tipo de abraço que eu imaginava dar nele. Parece que o meu
sexto sentido já me alertava disso. Apesar do pouco tempo que nos
conhecíamos, eu sentia um carinho especial por ele. E agora mais
ainda. Com certeza seríamos bons amigos.
Capítulo 11
Finalmente o edifício Scheffer’s Silver Business estava pronto.
Ele se destacava no meio da cidade. Era imenso! Quarenta e dois
andares organizados arquitetonicamente no formato de cubos
empilhados e espelhados. Pessoas fizeram apostas tentando lucrar
com o seu palpite do sucesso, ou fracasso, de execução da obra,
levando em consideração que a construção fora retomada e
abandonada algumas vezes.
A rotina no shopping foi diretamenteinfluenciada pelo término
do prédio, que em pouco tempo já estava recebendo diversos
escritórios, corretoras, construtoras, ou seja, diversas empresas
envolvidas com o setor imobiliário. A estrutura do shopping aos
poucos foise ampliando, para atender a todas aquelas pessoas que
necessitam se alimentar, se cuidar, comprar coisas, entre outras.
A corretora em que Leo trabalha agora estava ali agora. Isso
fez com que ficássemos mais próximos, nos víamos no horário do
almoço, no treino e às vezes no final do expediente também. Várias
vezes lamentei secretamentea respeito de sua sexualidade. Ele era
tão legal, nós nos dávamos tão bem... achava tristedemais para ser
verdade. Adquirimos uma intimidade que nos permitia falar sobre
qualquer assunto, sem abalarmos a nossa amizade. Uma tarde,
após o treino convidei-o:
— Leo, hoje o suco é por minha conta, beleza?
— Como quiser, bebê — respondeu ele, chamando-me
carinhosamente. Quem nos observasse diria que éramos o casal
perfeito.
Na lanchonete, perguntei curiosa sobre o prédio, as
instalações da corretora de imóveis onde ele trabalhava, as
pessoas... tudo. Tudo que ele pudesse me responder sobre aquele
edifíciotão imponente que eu vi surgir rapidamente diante dos meus
olhos.
— Normal, Sabrina. Trouxemos alguns dos móveis antigos da
corretora, fizemosoutros sob medida... trabalho no quarto andar. As
pessoas são assim, como eu e você: comem, dormem, fazem
sexo... — olhou para mim com uma cara de safado e riu.
— Fale por você! — respondi sem pensar muito no que eu
estava falando. — Eu acho que nem sei mais o que é isso... —
gargalhei sendo acompanhada por ele.
Neste momento, uma curiosidade me invadiu:
— Leo, você tem namorado? — só foi eu escutar a palavra
namorado sair da minha boca e já estava arrependida, mas era
tarde demais.
— Não — respondeu seco. — Você é uma das poucas
pessoas com quem convivo que sabe dessa minha preferência ...
— Como lhe disse aquele dia: “Você engana bem...” — desejei
uma fita larga para colocar nessa minha boca grande.
— Vivemos em um mundo de muito preconceito. Se eu contar
abertamentepara todos, muitos evitarão contatocomigo ou ficarão
inseguros na minha presença. Prefiro que isso não interfira na
minha carreira. Já cheguei à conclusão de que eu sou um grill sem
tampa — sorriu com o canto da boca e o olhar fixo na parede,
fazendo com que eu lembrasse da expressão: “Toda panela tem a
sua tampa!”.
— Mas ainda pouco você falou em “sexo”... Você faz...? —
perguntei querendo me enfiar debaixo da mesa. — Desculpa! Não
precisa responder...
— Tudo bem! — respondeu ele já começando a explicar. —
Quando estou muito fissurado, pago para profissionais.Senão vou a
boates, danceterias e como deve ser pra você, às vezes rola, às
vezes não. Nenhum namoro deu certo para mim, nem
relacionamento sério. Tem caras normais que se passam por
homossexuais só para se dar bem. Comigo não. E você? Tem
namorado?
— Tive há uns oito meses mais ou menos. Durou uns dois
meses... não deu certo. Eu não gostava dele.
Ele contraiu os lábios e ergueu a sobrancelha para mim. Como
se fossesolidário comigo e se consolasse ao mesmo tempo. Paguei
os sucos e fomos trabalhar. Ele fez questão de me acompanhar até
a frente do salão. Despedi-me dele com um beijo rápido no rosto e
entrei. Fiquei vermelha com tantosolhares sobre mim após a saída
de Leo. Fiz um pensamento positivo desejando que todas as
suposições daquelas fuxiqueiras sobre eu e ele fossem verdade.

Passou um tempo e logo dona Judite chegou. Ela ainda


mancava. Estava meio quieta, bem diferentedo seu jeito habitual.
Sempre recebi orientações de minha tia sobre não importunar as
clientes. Porém naquele dia não pude evitar:
— O que houve dona Judite? Está tão quietinha... — perguntei
baixinho tentandodespistar a minha tia. Esforço em vão. Ela olhou
imediatamente para mim e movimentou a cabeça em negação.
Quase implorei com o olhar.
— Meu filho... veio trabalhar no prédio aqui do lado... achei
que fôssemos nos entender melhor... estava enganada —
respondeu-me ela parecendo carregar o mundo nas costas.
Olhei novamente para a minha tia, que me encarava séria.
Encarei-a de volta esperando permissão. Ela assentiu com a cabeça
e eu confortei-a:
— Sinto muito, dona Judite. É tão ruim criarmos expectativas
que não se concretizam. O tempo é sábio... na hora certa vocês vão
se entender — ironicamente aquelas palavras se ajustavam
perfeitamenteao que eu precisava ouvir também. — O seu filhovirá
buscar a senhora novamente? — questionei tentando distraí-la.
— Não, hoje irei de táxi — respondeu, pesarosa.
— Não se preocupe, acompanharei a senhora do mesmo jeito.
Ela sacudiu a cabeça positivamente.

Já em casa, tia Nice veio especular, divertida:


— Quem é o rapaz que te levou até o salão hoje, Sabrina?
Bonito ele, né?
— Eu já falei dele para você tia Nice. É o Leo, quer dizer,
Leonardo — respondi envergonhada de demonstrar tantaintimidade
ao chamá-lo.
— Hummmm! Ahhhh! Mas ele nunca tinha te trazido... o que
mudou? — perguntou tia Nice com um ar de detetive.
— Ele está trabalhando no prédio chique agora... — respondi
sem muito interesse.
— E vocês? Estão namorando? — apostou minha tia. —
Formam um lindo casal...
— Não! Ele já tem namorada! — disse enfaticamentepara
acabar de vez com aquela conversa. Eu não gostava de mentir para
ela, mas eu não poderia falar da intimidade de Leo para ela. No
fundo, no fundo, como eu queria que essa mentira fosse verdade, só
assim eu teria uma chance com ele.

Naquela segunda-feira,Leo chegou todo animado para treinar.


Quer dizer, mais animado que nos outros dias. Estava correndo na
esteira quando começou a falar , eufórico:
— Olá, gata! O que você acha de ir trabalhar no prédio
vizinho?
— Olá, gato! O que você acha de não beber antes de vir
treinar? — ironizei.
— É sério... são vagas de estágio... muitas oportunidades
surgem com vagas de estágio, Sabrina... — incentivou-me ele ainda
eufórico.
— Preciso falar com a minha tia antes. Assumi compromissos
com ela. — avisei analisando as possibilidades que eu tinha.
— Faz assim... depois do treino você vai até lá comigo. Pega
todas as informações. Vai visitar o meu escritório e conversa com
ela depois... — sugeriu-me resoluto.
Parecia que um sonho estava prestes a se tornar realidade. Eu
sempre quis conhecer o tal prédio por dentro, imagine só trabalhar
lá, mesmo que fosse fazendo um estágio. Agora uma coisa estava
me deixando encucada: esse comportamentodo Leo. Primeiro me
levar até o salão. Depois querer que eu conheça o seu escritório.
Estava achando isso muito estranho... algumas vezes o peguei me
olhando meio distante,como se... sei lá... lamentasse algo. Eu tinha
pouca experiência com homens, não tinha a menor ideia de como
agiam os homossexuais, mas o primeiro palpite que me vinha era de
que ele estava me paquerando, ou querendo passar a impressão
para os outros de que me paquerava. Que loucura!
— Ei... Sabrina! — chamou-me do meu delírio.
— Obrigada pela dica, Leo! Eu vou lá sim, só que mais tarde.
Vou pedir para a tia Nice ir comigo. Assim eu não preciso explicar
tudo novamente para ela... — faleialiviada com essa inspiração que
tive.
— Vocês passam lá pra me ver?
Senhor... o que eu vou fazer com a tia Nice lá?
— Puxa vida... hoje estamos com a agenda cheia. Vamos
rapidinho somente pegar as informaçõesquando der uma brecha...
— respondi afoita querendo que essa conversa acabasse logo.
— Beleza... fica me devendo uma visita! — alertou,
determinado.
Contei a novidade para a tia Nice e ela me incentivou muito.
Providenciou toda a documentação indicada no site e fomos no dia
seguinte pessoalmente finalizar o processo de seleção. Quase tive
que fechar a minha boca com os dedos de tão deslumbrada que
fiquei ao entrar naquele saguão. As coisas eram muito brancas e
brilhavam de tão limpas. Assim como do lado de fora, dentro havia
muitos espelhos também. A decoração era composta por vasos e
arranjos. Tudo era alto e espaçoso. Sentia um frio na barriga só de
imaginar que poderia vir todos os dias naquele lugar. Quando
terminamos a minha inscrição, minha tia sarcástica perguntou:
— Você quer conhecer o elevador ou as escadas enquanto
visita o escritório do seu amigo?
Olhei para ela, divertida, porém bufandopor dentro e respondi:
— Não, querida titia! Muito obrigada! Hoje não!
Capítulo 12
O resultado para vaga de estágio sairia na segunda-feira e
ainda era sexta. A semana se arrastava na mesma velocidade de
uma lesma na areia. Estava com muitas clientes para atender e a
dona Judite tinha adiantado o seu horário. Provavelmente não
treinaria hoje. Que pena!, lamentei lembrando o quanto o Leo
alegrava o meu dia com o seu entusiasmo.
Quando a dona Judite chegou, percebi que estava mais
animada. Não perguntei nada, pois quando ela estava assim
acabava contando tudo mesmo... higienizei os seus pés e na hora
da esmaltação, perguntei:
— O mesmo de sempre? — Ela sempre pintava as unhas de
vermelho, independente do que acontecesse... de onde fosse... era
praticamente uma marca registrada da dona Judite.
— Sim, minha filha! — Ela sempre tinha esse jeito carinhoso
de falarcom as pessoas. Essa palavra “filha”era valiosa para mim...
não me lembro de ter sido chamada assim por minha mãe. Ouvia-a
de minha avó algumas vezes e agora dona Judite criara esse hábito.
Tia Nice me chamava pelo nome ou por “querida”, que era uma
forma comum de tratamento para ela.
Para minha surpresa ela estava bem introvertida hoje. Sem
muitas conversas e histórias... estava curiosíssima de perguntar
sobre o prédio... ou melhor, o filho do prédio... mas a tia Nice ficava
me cuidando com o rabo do olho. Quando eu estava quase
terminando, um rapaz entrou no salão. Bonito, ou melhor, bonitinho.
Tinha aproximadamente uns 26 anos. Vestido com terno e gravata
azul marinho. Básico, porém alinhado. Era castanho claro, os
cabelos curtos na parte de baixo e um pouco mais compridos
arrumados em um topete lateral. Os olhos castanhos escuros.
Aparentava ser mais alto do que eu e era magro.
Veio em nossa direção. Sem entender, olhei para ele como
quem diz “O que quer?”, e ele, como se me respondesse, colocou a
mão no ombro de dona Judite. Deu um beijo em seu rosto e
perguntou:
— Quase pronta?
— Oi, filho! Você? — falou surpresa. — Já estamos quase
terminando aqui, né, Sabrina? Ah! Essa é a Sabrina, Rodrigo.
— Sabrina... — Ele repetiu meu nome como se as palavras
brincassem na sua boca — o João Victor estava ocupado e pediu
para eu pegar a senhora. Posso esperar aqui? — perguntou se
sentando na cadeira ao meu lado antes mesmo que eu ameaçasse
uma resposta.
— Você é tão atencioso, querido! Poderia ter me esperado lá
fora, como o João faz... — justificou ela com a impressão que
estava incomodando.
— Sem problemas. Assim estico as minhas pernas um pouco
— alegou ele olhando as mensagens no celular.
Quando eles saíram, percebi o quanto era atencioso com a
mãe. Diferentedo outro filho“João Victor”, que nem desceu do carro
para ajudá-la a entrar. Não pude deixar de questionar internamente:
Qual dos dois trabalha no SSB (Scheffer ’s SilverBusiness)? –as
pessoas começaram a chamar o edifício assim, pois o nome era
muito complicado – Com o que ele trabalha? Será que o Leo o
conhecia? Tem namorada? Não estava usando aliança pelo
menos... será que é hetero? Nunca tinha me preocupado com isso,
mas depois de conhecer o Leo, essa era uma questão importante.
Será que o outro irmão é mais bonito? Por que eu estou com todas
essas questões? Esse Rodrigo, quer dizer, cara não faz o meu
tipo... bem, nada que uns treinos semanais para preencher algumas
carninhas...
Sabrina, você não presta!, repreendi-me mentalmente.

Chegamos em casa super cansadas no sábado à noite. O


movimento do salão aumentou consideravelmente depois da
inauguração do SSB. Peguei o meu celular para olhar as
mensagens do dia. Teve um número que me chamou mais atenção.
Era de um número desconhecido. Ampliei a foto para ver se
conhecia a pessoa. Era uma fotode paisagem tirada de uma janela.
Não me ajudou. Entrei na mensagem:

Número desconhecido: Olá, gata! T udo bem?


Número desconhecido: O professor Tiago passou o seu número
depois de eu insistir a aula toda.
Número desconhecido: Não briga com ele, tá?
Número desconhecido: Faltou de novo, hein?
Número desconhecido: O que você acha de nós mudarmos o
estímulodo nosso treino e irmos correr no parque domingo de
manhã?
Número desconhecido: Dorme com os anjinhos!
Número desconhecido: Leo

Li aquelas mensagens umas cinco vezes. Esse rapaz era uma


incógnita para mim. Estava tentada a mostrar as mensagens para a
tia Nice. Ela iria dizer que ele estava me paquerando, mas tinha
uma parte da história que ela não sabia... será que posso contar
esse segredo do Leo para ela? Fui tomar um banho para ver se eu
tinha alguma ideia a respeito do que fazer. Resolvi falar com a tia
Nice. Ela falouo que eu imaginei que falaria:que estava interessado
em mim. Contei-lhe a respeito da sexualidade dele. Ela listou,
pensativa:
— Pode ser que não esteja certo e talvez esteja querendo
“arriscar com você”! Talvez ele seja muito sozinho e realmente
queira uma amiga. E por último, mas não menos importante, ele
pode ser um maníaco sexual, que se passa por gay, para atrair as
suas presas... — olhou séria para mim e caiu na gargalhada logo
em seguida. — Por que você não pergunta para ele? Amanhã é
uma boa oportunidade para vocês conversarem...
Fiquei meio assustada com essa última opção, mas acho que
esse não era o perfil dele. Adicionei o contato, respondi a sua
mensagem dizendo que podia ser e perguntei onde nos
encontraríamos. Um segundo depois veio a resposta:

Leo: Ficofelizque tenha aceitado.Eu posso pegar você em casa,


se não se incomodar...
Mostrei a mensagem para a tia Nice. Ela disse que um
maníaco não viria em casa buscar a vítima, que era melhor assim,
uma opção a menos na nossa lista. Enviei para ele uma mãozinha
com sinal de positivo, o nosso endereço e o horário. Também
informeique ficariaem frentede casa esperando. Desejei boa noite,
comi alguma coisa e fui me deitar
.

Quando abri os olhos naquele domingo senti um


arrependimento tão grande: “Somente o Leo para me fazeracordar
antes das nove horas em um domingo!”.Comi umas duas bananas
amassadas com aveia e canela. Troquei de roupa. Fiz a minha
higiene. Dei um tchauzinho para tia Nice e fui para a calçada
esperar por ele. Para a minha surpresa, uma pick-up passou
lentamentena minha frentee parou, pensei que poderia ser o Leo,
então me abaixei para ver o condutor. Era Fred. Meio boçal, ele me
perguntou:
— Quer carona, Sabrina?
— Você não sabe para onde vou... como me oferece carona?
— respondi sem pensar muito.
— Ah, Sabrina! Com você eu vou para qualquer lugar — disse
ele um tantoalterado, parecia alcoolizado ou coisa do tipo. — Vai
me dizer que não tem saudade das nossas “brincadeiras”—
lembrou ele lambendo os lábios, fazendo com que eu sentisse nojo
e medo ao mesmo tempo.
Esse não era o Fred que eu conheci. As roupas, o cuidado
com o corpo, a barba por fazer, cabelos mais compridos, olheiras...
imaginei que passou a noite fora e agora estava chegando. E aquele
carro? De onde surgiu? Ele nunca trabalhou, sua famílianão tinha a
menor condição de comprar uma pick-updaquela toda rebaixada e
dar de presente para ele. Achei mais seguro entrar e esperar o Leo
chegar dentro de casa. Expliquei:
— Tchau, Fred! Vou entrar... esqueci uma coisa...
Nesse instanteo Leo estacionou o carro atrás dele. Não tive
tempo de dar um passo e ele já estava do meu lado. Colocou o
braço ao redor do meu ombro e questionou:
— Algum problema, gata?
Fiz que não com a cabeça. Já estava andando e puxando o
Leo comigo quando ouvi:
— Era desse upgrade que você estava falando quando
terminou comigo? — guinchou olhando pelo retrovisor do carro
vendo o carro do Leo, que parecia ter saído da concessionária
naquele momento.
Ter encontrado o Fred antes de sair de casa quase acabou
com o meu dia. Fiquei sem palavras diante daquela acusação. Que
tipo de garota o Leo vai pensar que eu sou?
Enquanto caminhávamos em silêncio, a minha mente estava a
mil. Comecei a questionar se Fred estaria esse farrapo humano
caso ainda estivéssemos juntos. Fiquei com pena do Leo,
definitivamenteeu não estava sendo uma boa companhia. De onde
Fred arrumou aquela pick-up? Será que estava fazendo alguma
coisa ilegal? E o Leo? De onde surgiu esse carrão? Será que pegou
emprestado de alguém? Será que o Leo ficou com ciúmes? O jeito
dele me pareceu tão possessivo...
A minha mente estava muito acelerada. Lembrei que no dia
seguinte sairia o resultado para o estágio. Será que eu conseguiria?
O que será que vai mudar na minha vida depois disso?
— Chega? Ou mais uma volta? — perguntou Leo,
interrompendo os meus pensamentos.
— Acho que chega. Não estou acostumada a correr... —
apego-me à primeira desculpa para ir para casa.
— Desencana, Sabrina! Você vai deixar aquele trouxa estragar
o seu dia? Ele foiseu namorado? — arriscou, curioso. — Sorte dele
que estava dentro do carro senão ele iria ver... — sussurrou,
raivoso.
— Nossa, porque tanta raiva? Você nem conhece ele! —
comentei querendo entender o que ele quis dizer. — É, foi... a
história não é tão simples assim... mas ele era bem diferenteno
começo do ano... — um nó estava fechando a minha garganta.
— Consegue deixar isso de lado agora? Ou quer conversar?
— ofereceu num tom duvidoso, demonstrando querer encerrar a
conversa. — Está um dia tão lindo! Vamos almoçar por aqui? Tem
um restaurantedo outro lado do lago — propôs ele tentandome
animar.
— Acho que hoje não serei uma boa companhia... —
confessei.
— Então eu terei que falar por nós dois... — respondeu ele,
mostrando-se irredutível ao seu próprio convite.

Estava cedo para o almoço, Leo colocou um carpete na grama


para ficarmos esticados sob o sol. Fiquei deitada aproveitando o
momento, enquanto ele ficou sentado com os braços apoiados nas
pernas acompanhando a circulação das pessoas.
Leo lembrou que o resultado do estágio sairia no dia seguinte.
Fiquei com a impressão de que estava tão ansioso quanto eu. Seria
uma grande mudança em minha vida se desse certo. Os
questionamentos que eu tinha sobre o seu comportamento
afloraram. Aproveitei a oportunidade:
— Leo? — levantei e fiquei sentada ao seu lado.
— Sim? — respondeu monossílabo, percebendo que vinha
bomba.
— Você é gay — afirmei.
— Sim.
— Sabe? Não me leve a mal... mas eu estou ficando muito
confusa com essa história... — olhei para ele e os seus olhos
estavam esperando se encontrar com os meus. As palavras fugiram
da minha boca, minha mão estava fria e eu quase gaguejava —
vo...cê é gay, não é? — lá vou eu falar isso de novo.
— Sim, sou gay, Sabrina! Apesar disso, eu gosto muito de
estar com você. Apesar disso, sinto a sua falta. Apesar disso,
gostaria que as pessoas pensassem que somos namorados. Apesar
disso, eu tenho ciúmes de você e gostaria muito de te manter bem e
protegida. Quero que você tenha um futurode sucesso. Sei que isso
é loucura, nunca me aconteceu antes... — ele pigarreou —
Desculpe estar deixando você confusa. Pode ser muito egoísmo
meu. Isso nunca daria certo. Nosso relacionamento seria
incompleto, para mim e para você. Eu lamento todos os dias por ser
assim... seria mais fácil ser “normal”... mas eu não consigo...
— Nossa! — se eu já estava sem palavras antes, imagina
agora. — Obrigada, Leo. Desculpe ter que fazer você me explicar
tudo isso. Para mim é muito difíciltambém, eu só tive um namorado,
sou muito inexperiente ainda, é muito fácil me deixar levar por
você... você é cativante, sabia? — encerrando aquela conversa,
convidei: — De repente fiquei com fome, vamos almoçar?

Quando cheguei em casa, contei tudo para tia Nice. Ela


escutou pacientemente e ponderou:
— Lamentável o que pode estar acontecendo com o Fred, se é
que está acontecendo alguma coisa com ele, mas a sua fase com
ele já passou. Ele deve ter sido tão ofensivo com você, porque
provavelmente achou que o Leo fosse o seu namorado — fez uma
pausa e prosseguiu, mudando o assunto: — Você já se colocou no
lugar deste Leonardo?
— Como assim? — respondi.
— Ele é bonito, vive sendo assediado pelas mulheres e pelos
homens também. Não quer assumir publicamente a sua “condição”,
o que é um direito dele. Conhece você, linda, apresentável, e é uma
pessoa com quem ele pode contar e confiar. É muito conveniente
para ele andar com você e garantir que diminuam os assédios e as
desconfianças sobre ele. Até você foi beneficiada quando o Fred
pensou que estavam juntos. Foi um balde de água fria nele.
Tia Nice falava pouco, mas quando falava... ela ainda não
tinha acabado:
— Mas e você? Está apaixonada por ele? Atraída? Vai
conseguir manter essa amizade assim do jeito que está? Ou vai
querer “consertá-lo”? Se for isso, querida, caia fora, isso faz parte da
essência dele, não vai conseguir mudar, talvez inibir por um tempo,
mas sei lá, esse caminho é tortuoso demais para arriscar —
continuou me dando outra opção —, mas se você gosta da amizade
que tem, não se incomoda de ser interpretadacomo a namorada
dele, não está paquerando alguém no momento, não se preocupa
que achem que você tem namorado, então qual é o problema? Seu
coração decide. Ele parece ser um cara legal. Mesmo não sendo
“namorados”, poderão aproveitar muito juntos.
Eu não sabia se eu ria ou chorava. Minha tia proferiu um
verdadeiro discurso. Poderia ter sido uma excelente advogada.
Seus argumentos tão elaborados e em tão pouco tempo. E agora,
Sabrina? Aguenta o tranco? Racional, lembra? Sem amor... essa
era uma ótima oportunidade de treinar esse coraçãozinho.
Capítulo 13
Acordei muito cedo. Fiquei na cama pensando nos últimos
acontecimentos. Hoje ficaria sabendo a respeito do estágio.
Provavelmente teria que me encontrar com o Leo e encará-lo depois
da conversa que tivemos. Acho que não seria adequado definirmos
os termos da nossa amizade, pois ambos estávamos confusos...sei
lá, vou deixar acontecer...

Estava na escola e senti o meu celular vibrar. Era uma


mensagem dele:

Leo: Parabéns!!!
Leo: Bem-vinda ao SSB.
Leo: Espero que este seja o começo de uma grande carreira.
Leo: Saiba que sempre poderá contar comigo!!
Leo: Abraço

Fiquei parada olhando aquelas mensagens sem saber se


comemorava, agradecia ou lamentava. Eu estava preparada para as
mudanças? Em que setor seria? Eu teria condições de assumir esta
responsabilidade? Uma onda de pessimismo e dúvida me invadiu...
sacudi a cabeça, mandando esses pensamentos embora, e tentei
prestar atenção no restante da aula.
Quando cheguei ao salão, tia Nice já sabia da novidade
também. Inclusive ela tinha mais informações: eu iria trabalhar no
setor de Apoio Gráfico e começaria no dia seguinte. Meu salário era
um pouco maior do que eu ganhava no salão. O período era de
quatro horas, das 13h30 às 17h30. Fiquei muito insegura:
— Tia, preciso te ajudar aqui no salão... — comecei a
argumentar para continuar na minha zona de conforto.
— Sabrina, foi para isso que você queria sair do sítio? Para
trabalhar comigo no salão? — a advogada estava se manifestando
em minha tia novamente. — E aquela história de mulher bem
sucedida... você acha que é fácil? Isso é só o começo. Você ainda
vai ter que passar por muita coisa. Abrir mão de coisas que gosta,
fazer coisas que não gosta. Desistir até é uma opção, mas só
depois de você ter tentado,experimentado, conhecido. Eu sei que o
desconhecido pode nos bloquear e impedir de agir..., mas, por favor,
querida, tente!Se você se sente mais segura, pode fazeruns extras
no salão quando puder..., mas coloque na sua cabecinha que a
partir de amanhã as suas tardes serão destinadas ao SSB, 1º andar.
Fui para a academia naquela tarde como se estivesse indo
para um enterro. Aquela seria a minha última tarde de treino, pois
agora o horário coincidia com o meu horário de trabalho. Fiquei mais
desanimada ainda quando percebi que Leo não estava lá... então fui
para a esteira, como de costume, e comecei o aquecimento.
— Olá, estagiária! — a voz de Leo me cumprimenta.
— Oi! — respondi sem nenhum entusiasmo.
— Nossa, achei que ia te encontrar aqui reluzente...
— Percebi que não estava preparada para mudanças... —
estava me sentindo uma criança mimada quando contrariada.
Continuei o aquecimento. Fizemos o nosso treino rotineiro e
Leo me convidou para uma salada de frutas.Eu sabia que aquilo
era sinal de que ele estava querendo conversar.
Acomodamo-nos ao redor da mesa da lanchonete. A
garçonetetrouxe o nosso pedido e Leo puxou novamente o assunto:
— Já sabe em que setor?
— No Apoio Gráfico.
— Sério!? — perguntou ele todo entusiasmado. Tive a
impressão de que estava supervalorizando a minha função.— É um
dos melhores setores para se começar. O edifício tem um sistema
integrado de informações o ISSBI (Instituto Scheffer’s Silver
Business de Informática) e todos que necessitam de impressão,
fotocópias,material de divulgação... mandam para esse setor por
meio desse sistema. Os funcionários de lá preparam o material e
entregam no setor solicitante. Você teve sorte, vai conhecer o prédio
todo, todos os setores e pessoas que trabalham nele.
Achei interessanteessa antecipação do departamentoque o
Leo fez para mim. Circular pelo prédio todo realmente era um
argumento animador.
— Só não sei se funciona exatamenteassim — explicou-me.
— Os departamentospossuem autonomia para organizar e definir
funções. Algumas vezes o funcionário do setor executa o projeto
desde o recebimento, até a entrega. Outras vezes cada um faz uma
parte do processo — fez uma pausa e continuou: — Não quero que
você crie expectativas erradas, só quis te dar exemplos. Fique
calma...
E ele me tranquilizou. Como ele tinha o poder de me deixar
segura, otimista? Terminamos de comer as nossas frutas e
começamos a caminhar lentamente em direção ao salão. Foi
quando constatei:
— Nosso último treino hoje!
— Como assim, gata? Uma coisa não tem nada a ver com a
outra — garantiu-me, indignado. — Seu pacote não é de horário
livre também? Então, podemos vir de noite. Após o expediente.
— Eu vou continuar fazendo uns bicos no salão — contei.
— Porquê? Seu salário do salão era maior? — questionou Leo
com curiosidade.
— Não, vou ganhar um pouco mais agora, mas um
complemento sempre ajuda. Estou querendo fazer a minha
habilitação, depois comprar um carrinho... dinheiro nunca é demais,
Leo.
— Mas se cuidar também é legal. O que acha de três vezes na
semana e uma corrida no domingo? — sugeriu, entusiasmado.
— Você irá treinar todos os dias de tarde?
Chegamos à frente do salão. Leo continuou explicando:
— Sim. Para mim de tarde é melhor, mas se eu souber que
você vai no final do dia, nesse dia tentome organizar para ir com
você — justificou.
— Gosto de treinar com você, mas não quero que mude a sua
rotina por mim. Deixa eu começar, me ambientar, ver como será, daí
conversamos novamente. E o seu patrão? Vai deixar você ficar
nesse troca-trocade horários? O expediente de vocês termina mais
tarde, né? — lembrei-o.
— Sim, no final da tarde muitas vezes saímos para mostrar as
residências aos clientes — confirmou. — Não se preocupe com o
meu patrão... ele é muito gente boa.
Já estávamos parados ali conversando por um tempo.
— Preciso entrar — informei para ele apesar da minha
vontade de continuar ali conversando.
Ele veio em minha direção para se despedir. Num impulso eu
colei os braços ao redor de sua cintura, deitei a cabeça no seu peito
e fiquei ali curtindo aquela sensação de que nada de mal poderia
me acontecer. Resmunguei:
— Obrigada! Você me faz tão bem...
— Você também me faz bem, gata! — disse ele enquanto
colocava as mãos nos meus dois braços, afastando-meum pouco.
Olhou nos meus olhos e me deu um beijo na testa. — Te vejo
amanhã. Boa sorte! — fui acompanhando o seu corpo se afastarde
mim. Tinha a impressão de que a sua alma sempre estaria comigo.
Essa era a primeira vez que entraria no Scheffer ’s Silver
Business:Corporation and Business como funcionária, ou melhor,
estagiária. Ao olhar para aquele ambiente predominantemente
branco e espelhado, senti um arrepio percorrer a minha espinha.
Poderia ser coisa da minha mente, mas eu tinha a impressão de que
tudo ali possuía uma intenção. Um significado. Como eu trabalharia
no primeiro andar, optei pelas escadas. Novamente a mesma
sensação ao perceber que na união de um andar com outro,
enquanto o corpo virava e ia para o outro lance, um retângulo de
espelho adornava a parede de um canto ao outro. “Quem em sã
consciênciafariaisso em um prédio de 42 andares?”, pensei e
imaginei a fortuna que tinha sido gasta ali.
Assim que abri a porta protetora de incêndio, deparei-me com
um corredor comprido. A placa informava: APOIO GRÁFICO,
destacando-se, e eu já sabia aonde deveria ir.
Chegando lá, Juliana, a gerente deste departamento, já me
esperava. Ela foi muito atenciosa, acolhedora e elucidativa.
Explicou-me as coisas de forma muito parecida com a que o Leo
fez. Tive a impressão de que ele falara com ela antes de falar
comigo. Ela me apresentou a opção de executar o projeto do início
ao fim, ou trabalhar com as etapas. Após expor as alternativas,
olhou para mim aguardando uma resposta:
— Sei que para quem está começando, o mais sensato é
aprender por partes... porém, gostei mais da ideia de trabalhar em
um único projeto de cada vez. Ver o meu trabalho acontecer
efetivamente...sem alienação, tendo o conhecimento do todo. O
que você me sugere, Juliana?
— Não sei, sabe? Mas desde que entrou neste prédio pela
primeira vez, já estava em processo de avaliação. O senhor
Scheffer leva muito a sério o processo de aquisição de novos
funcionários. Muitos de nós começamos como estagiários e hoje
atuamos como chefe de departamento,gerente ou coisas do tipo.
Essas duas perguntas simples que eu fiz também fazem parte de
um teste.As pessoas ambiciosas querem fazer coisas ambiciosas.
Como você o fez. Chegar aqui e falar que prefere dominar o
processo todo no primeiro dia é ousado, mas concordo com você.
Esta é a melhor opção e será isso que fará com o devido
treinamento, é claro.
— E se eu tivesse escolhido a outra opção? — perguntei
querendo conhecer onde estava pisando.
— Com certeza você também faria o que escolheu, mas aqui
no SSB não seria nada diferente de uma estagiária. Outra coisa!—
interrompeu a frase parecendo organizar mentalmente o que iria
dizer. — Você já sabe qual faculdade irá cursar?
— Faculdade? — isso não tinha passado pela minha mente
ainda. Eu gostava de estudar, mas acreditava não estar preparada
para tentar um vestibular ainda. — Não sei... — respondi,
envergonhada.
— Conforme lhe falei, não queremos perder o nosso tempo e
nem desperdiçar o de vocês. Se não tem interesse em se
aperfeiçoar, sua estadia por aqui será curta. Como se forma no
Ensino Médio este ano, ano que vem precisará obrigatoriamente
estar cursando a faculdade. Inclusive temos ótimos programas de
bolsa com parceiros que também acreditam em melhorar o mundo e
as pessoas por meio da educação.
Fiquei zonza. Eram muitas informações e solicitações para
uma primeira conversa. Eu sabia que do jeito que a minha gerente
expusera as coisas, eu teria que correr atrás do prejuízo se queria
ter algum futuro naquele lugar
.
— Pode deixar que eu vou me informar a respeito — garanti.
— Tenho a impressão de que você entendeu a nossa
conversa. Boa menina!
Saímos da sala de Juliana, que ficava logo na entrada. O
restante do espaço estava dividido em bancadas que haviam
computadores e impressoras de diferentes tamanhos. Tinham
algumas pessoas trabalhando. Ela me apresentou a todos eles.
Sentamos em um daqueles computadores, fuiinformadade senhas,
de como acessar a rede e de como saber em quais projetos
trabalharia. Chamou-me a atenção que ao lado do meu nome
estava escrito: Corretora de Imóveis e
Vlazquez.
— Veja só, Sabrina! Você já tem um projeto para trabalhar! —
disse ela querendo parecer surpresa, mas eu tinha certeza de que
ela que destinara aquele projeto para mim.
Esse projeto era simples. Teria que ser entregue até sexta-
feira. Ela designou uma moça chamada Tatiana para me treinar.
Naquela semana nós trabalharíamos juntas. Ela era bem bacana e
prestativa. Explicava de um jeito que deixava as coisas fáceis.
Estava trabalhando ali desde o início do ano. Ia prestar vestibular
para Administração de Empresas.
Capítulo 14
Na quinta-feira estávamos com o projeto pronto. Eram uns
folders de propaganda do lançamento de um condomínio. Tati
sugeriu que eu fosseentregar o projeto sozinha. Quando observei o
andar que deveria ir percebi que era o mesmo onde o Leo
trabalhava. Utilizei o elevador, levando em consideração que estava
com uma caixa pesadinha. Não fiquei surpresa ao verificar,
novamente, a presença de espelhos. Quando desci no quarto andar,
observei nas portas que todas as salas eram corretoras de imóveis.
Seria difícil localizar em qual corretora o Leo trabalhava, pois eu
desconhecia o nome.
Na terceira eu li: Corretora de Imóveis Velazquez. Entrei. Em
um balcão mais alto fuiatendida por uma senhora –que parecia ser
a secretária –, ela me recebeu:
— O que precisa, mocinha?
— Sabrina — corrigi. — Sou do Apoio Gráfico. Terminamos os
folders solicitados. Aqui estão — empurrei a caixa na direção dela.
— A senhora pode assinar o recebimento aqui?
— Que bom! O senhor Velazquez vai gostar de saber disso.
Pena que está em atividade externa agora — olhou para mim como
que se desculpando e revelou. — Sinto muito, mas terei que
conferir...
— Tudo bem, eu aguardo. — falei sem muita expressão.
Enquanto ela conferia o material, eu aproveitei para dar uma
observada no local. Dava a impressão de que a sala estava
repartida, mas sem estar dividida por paredes. Na parte da frente,
onde estávamos, era uma recepção. Logo após o balcão tinha uma
mesa, que não podia ser vista do local em que eu estava, acredito
que era onde ficava a secretária. Nas paredes, imagens ampliadas
de condomínios de luxo, lugares que me faziam duvidar
pertencerem a Gravataí. Um pouco mais atrás, duas mesas de
madeira maciça clássicas com computadores e papéis. No fundo, do
lado direito, uma porta com as inscrições: “Sr. Velazquez”, que
julguei se tratar da sala do dono, gerente ou coisa parecida. No
canto esquerdo, um corredor muito parecido com o que tínhamos no
Apoio Gráfico, provavelmente era uma copa e o sanitário. Eu ainda
estava escaneando a sala quando ela chamou a minha atenção:
— Foi você quem fez?
— Mais ou menos. Estou em treinamento. Uma colega me
ajudou — expliquei meio sem jeito.
— Ótimo trabalho, men..., quer dizer, Sabrina — elogiou-me.
Apesar de não ter feitotodo o projeto sozinha, fiqueilisonjeada
com o elogio, voltei para o Apoio Gráficoe estendi o elogio à Tatiana
que tinha me dado dicas muito úteis.
No final da tarde, ignorei a possibilidade de ir para o treino e
fui direto para o salão.

Estava gostando do trabalho no Apoio Gráfico. Como


tínhamos entregado o projeto da corretora no dia anterior, eu estava
com a tarde praticamente ociosa. Minha gerente orientou que eu
desse uma olhada nas faculdades, em cursos do meu interesse e
que aproveitasse esses momentos para estudar. Foi o que fiz. Não
tinha a menor ideia de que curso fazer. Comecei a minha pesquisa
pelo curso que minha colega Tatiana escolhera: Administração.
Constatei que várias universidades tinham esse curso e que
possuíam convênio com a empresa em que trabalhávamos.
Continuei a pesquisa: Marketing, Direito, Ciências Contábeis,
Gestão Financeira, Gestão de Recursos Humanos, Processos
Gerenciais e Negócios Imobiliários.
Um curso mais diferentedo que o outro. Eu segui uma lógica:
já que era para permanecer ali no SSB, que era todo voltado para
os negócios imobiliários, eu teria uma chance maior se me
concentrasse nessa área. Fiquei em dúvida nos dois últimos cursos
da minha lista: Negócios Imobiliários e Processos Gerenciais.
Comecei a ler o resumo do curso Processos Gerenciais:
“Ao concluiro curso, o egresso está habilitadopara atuar
como executivonas empresas, realizandoplanejamentoestratégico,
controlando as finanças, analisando demonstrativos contábeis,
avaliando a manutenção de estoques e acompanhando o
faturamento de um negócio.Devidoa sua formação generalista,o
profissionaldeste ramo atua em todos os setores administrativos.
Sua formação lhe permite, ainda, trabalhar como empreendedor,
abrir e dirigir o próprio negócio”
.
Concluí que era um curso bem completo e eu não estaria
restrita a uma área apenas, então decidi: Processos Gerenciais.
Estava disposta a arriscar tudo, o nada eu já tinha.

Como fiz todos os dias em que trabalhei no SSB esta semana,


saí do estágio e fuipara o salão. Cheguei bem na hora de atender a
dona Judite, que estava me aguardando. Ela puxou conversa
comigo:
— Sua tia me contou as novidades, Sabrina! — disse
animada. — Você está certa. Tem que arriscar, sempre terá a
segurança aqui com a sua tia, um porto seguro que sempre poderá
voltar...
— Tem razão! — senti-me desconfortávelem falar coisas da
minha vida com ela.
Quando terminei o serviço, ela pagou e foi embora
caminhando sozinha. Pelo visto hoje não teria nenhum filho vindo
buscá-la.
Olhei no celular e havia duas ligações não atendidas do Leo.
Fui para as mensagens e tinha algumas mensagens dele também.

Leo: Oi, gata! T


udo bem?
Leo: Tomou chá de sumiço?
Leo: Não acredito que você não treinou nenhuma vez essa
semana...
Leo: O que acha de sairmos para dançar um pouco? Leo:
Comemorar esta fase nova que está passando?
Leo: Abraço apertado
Fui conversar com a minha tia e verificar se tínhamos muitas
clientes ainda. Ela perguntou o motivo e eu respondi. Ela me
incentivou:
— Independente de quantas pessoas temos para atender,
querida, não importa. Você não deve fazer como eu fiz — ficou
parada um pouco, parecia que estava fazendo um balanço da
própria vida. — Vá se divertir... a semana foi puxada. Em todos os
sentidos.
— Eu queria que você fosse com a gente — pedi.
— Desta vez não, mas tenho certeza de que não faltarão
oportunidades. Que horas vocês vão?
— Não sei. Ainda não pedi maiores informações ao Leo... —
expliquei.
— Veja então.
Mandei uma mensagem para ele: “Oi! Desculpe!Só viagora.
Gostei da ideia. Que horas sairemos? Em que lugar vamos? Bj”

Minha tia disse que tinha uma brecha e achava interessante


que eu fizesse as unhas, lavasse e escovasse os meus cabelos.
Primeiro a Pâmela lavou os meus cabelos, enquanto a Giovana ia
tirando o esmalte, retirando as cutículas...
Percebi que o celular vibrou em meu bolso. Pedi licença para
ler a mensagem:

Leo: Blza. Fechou, então. Abre às 11h. É uma danceteriaem frente


ao Parcão, não fica muito longe daqui...
Você: 11h? (Emoji carinha de sono).
Você: Ok.
Você: Preciso passar em casa para me trocar... acho que vou
embora com a tia Nice, lá pelas 9h.
Você: Termino de me arrumar, pego um motorista por aplicativo e
nos encontramos lá, pode ser?
Leo: Te pego.

As palavras “Te pego” forado contextochegaram a me dar um


arrepio. Ah, Leo, como eu queria que você me pegasse. Pâmela
olhou-me pelo espelho e fez uma cara de braba como quem diz:
“Fique quieta!”
— Estou terminando — respondi sem jeito.
E mandei mais umas mensagens para o Leo:

Você: Se não for incomodar


...
Leo: 11h está bom?
Você: Sim, tem ideia de quanto gastaremos?
Você: Preciso saber quanto tenho que levar
...
Leo: Tenho muitos amigos trabalhando lá, entrada na faixa.O que
consumirmos é por minha conta...

Bufei.Ele era irritantecom essa história de dinheiro. Enrolava-


me sempre para pagar tudo sozinho. Não éramos namorados, ele
não tinha a menor obrigação de pagar as minhas contas. Eu sentia
que estava me aproveitando dele. Antes que Pâmela arrancasse
todos os meus cabelos e Giovana pintasse até os meus braços.
Respondi:

“Tudo bem (Emoji de carinha piscando).”

Chegamos em casa às nove e meia. Era tempo suficientepara


comer algo e terminar de me arrumar. Tia Nice me ajudou com a
escolha da roupa. Eu reformei um vestido que ganhei e nunca usei.
Era preto, bem largo, o decote em V, brincando nos ombros e dando
um quê sensual.Tia Nice saiu do quarto e quando voltou trouxe um
cinto dourado que combinava com os detalhes das minhas unhas. O
cinto fez com que o vestido ficasse bem mais curto do que era.
Olhei para tia Nice querendo confirmar se era aquilo mesmo:
— Sabrina, você vai a uma casa noturna e não uma
quermesse da igreja! — esse tempo que eu estava morando com a
tia Nice, estava fazendo com que a conhecesse melhor. Era muito
grata pela pessoa que ela era e pela pessoa que ela estava
ajudando a me tornar. Eu escutava as minhas amigas sempre
reclamando, que não podiam fazer isso ou faziam aquilo
escondido... será que se ela fosse minha mãe, me trataria da
mesma forma ou seria careta?
Ela trouxe também uma bota preta e alta de cano curto. Olhei
para o número e era um maior do que o meu. O salto era meio alto,
teria que me acostumar com ele, pois quando me observei no
espelho, não acreditei: estava irreconhecível e de uma forma bem
positiva.
Umas 22h50 a tia Nice estava lendo deitada em sua cama.
Chamou-me ao seu quarto:
— Ótima noite para vocês! Aproveite muito a sua primeira
balada, com muita... muita responsabilidade...
— Tia... estou saindo com um gay — respondi dando risada
pensando que o único perigo que poderia correr seria ele me
agarrar.
— Para o seu conhecimento, ele tem tudo, tudinho, que
qualquer outro homem também tem. Você está linda e irão para um
lugar que vai ter muita gente assediando... não se deslumbre com
isso. Existem outros perigos como drogas, excesso de bebidas...
nunca descuide do seu copo, podem colocar alguma coisa nele sem
você ver... juízo mocinha! — Ela me olhava com carinho.
Cheguei à conclusão de que a tia Nice não era careta, porém
essa advogada argumentativa,que volta e meia se manifestava, era
o melhor jeito de dizer que me amava.
Capítulo 15
PontualmenteLeo me mandou uma mensagem dizendo que
estacionara na frentede casa. Dei tchau para tia Nice e saí de casa.
Entrei no carro do Leo, que era o mesmo do outro dia.
Ele começou com cobranças, dizendo que eu estava sumida,
que não deveria deixar a academia desse jeito... e blá blá blá... eu
não tinha convivido com meu pai, mas ao escutar o sermão que
meu amigo me dava imaginei que era como pai que ele agia.
Enquanto escutava a sua voz, sem me dar conta do que
falava, percebi que o Leo era a única figura masculina que eu tinha
como referência.
— Você está escutando o que eu estou dizendo mocinha? —
Leo perguntou me puxando para a realidade.
— Sim e não! — olhei para ele dando uma risada. — Seja
mais calminho comigo — falei fazendo biquinho.
Estávamos parados em um sinaleiro e ele passou os olhos por
mim, depois confessou:
— Arrasou, gata! Vai me dar trabalho essa noite!
— Jura?! — entendi que aquela frase tinha muitas
interpretações.Resolvi ficar com aquela em que eu estava muito
gostosa e faria sucesso naquela boate, quem sabe até fazer meu
amigome olhar com outros olhos. Afinal,para sonhar não precisava
pagar.
Encarei-o. Estava com uma camisa de manga curta aberta
verde-musgo escuro por fora e o mesmo tipo de verde, porém um
tom mais claro, por dentro. Combinava perfeitamentecom a cor que
eu lembrava serem os seus olhos. Por baixo tinha uma camiseta
branca básica, usava calça jeans justa e os cabelos ajeitados para
trás por algum tipo de pomada. Revelei:
— Você também não está ruim! — engoli uma risada. —
Imagino que vai fazer muita gente passar vontade... — olhei séria
para ele, um ponto de interrogação no olhar.
— Como foi essa semana? Gostou do teu trabalho? —
perguntou-me mudando nitidamente de assunto, ignorando
completamente o que eu falei.
— Fui bem... acho! Trabalhei em um projeto de uma corretora
que fica no teu andar... — olhei para ele, que olhou novamente
enquanto esperava o sinaleiro abrir.
— Sério? Qual?
— Corretora de Imóveis Velazquez — respondi.
Ele estendeu a mão para mim e se apresentou:
— Prazer, Leonardo Velazquez! — disse rindo.
— Não acredito! Você é o do... do... dono? — gaguejei.
— Sim. Desde que o meu pai se aposentou! Digamos que ele
me entregou uma semente e eu a fiz germinar ... o que achou?
— Do quê? — questionei, pensativa.
— Do escritório? A arte do folder... de tudo... — uma
ansiedade em sua voz demonstrava que ele queria mesmo saber e
precisava muito de aprovação.
— Bem legal, Leo! O espaço é pequeno, você... vocês... —
não sabia como me expressar — conseguiram dar personalidade ao
local. Em um prédio que o branco predomina — continuei —, o
folder ficou bom. Não entendo muito dessas coisas... mas... — Eu
tinha uma sugestão.Será que era adequado falar?
— Pode falar... — ordenou ele, impaciente.
— Acredito que se a imagem do empreendimento estivesse na
capa, ficaria melhor! A pessoa abrirá para ver outras coisas... a isca
estará mais acessível, sem que a pessoa tenha que fazer nada —
fiquei vermelha. Eu senti o meu rosto quente.
— Gata, você tem toda razão. Não tinha pensado por esse
ângulo — colocou a mão no queixo e continuou. — Falando nisso,
mandou bem! Fazia tempo que não voltava um projeto... o pessoal
fez muita coisa errada esse ano. Que bom que está lá...
— Não fiz sozinha! Estou em treinamento... — respondi
desapontada por ter que dividir os louros.
— Chegamos — disse ele enquanto entrava no pátio ao lado
para estacionar o carro.
Quando chegamos à frenteda danceteria, observei o tamanho
da fila e concentrei-me em meus pés que pareciam estar
equilibrados em palitos de dentes, as botas da tia Nice apesar de
serem um número maior do que o meu não eram nada confortáveis.
Leo foi me conduzindo pela lateral, retirou a carteira do bolso e
apresentou ao porteiro, cumprimentando-o com intimidade. Fizemos
o nosso cadastro e entramos rapidamente.
O ambiente interno era maravilhoso. As paredes muito
escuras, algumas partes com madeiras vermelhas, outras com
pedras claras. Lustres de cristal pendiam do teto e espalhavam
reflexos coloridos por todos os lados. Estava tocando música
eletrônica. Havia muitos canhões de luz que giravam em torno do
seu eixo de forma aleatória, deixando o ambiente e as pessoas
coloridas.
Ele não estava brincando quando disse que conhecia pessoas
naquele lugar. Cumprimentava a todos com um aperto de mãos e
um meio abraço. Pelo que entendi, Leo tinha um camarote
reservado. Quase me ajoelhei agradecendo por ter um lugar para
me sentar.
Sentando-se ao meu lado, ele chegou bem próximo do meu
ouvido e perguntou:
— O que você vai beber? — quase teve que gritar, pois o
barulho estava muito alto.
— Pode ser uma água — quase que soletrei.
— Estamos comemorando... você não vai beber nada? —
insistiu ele.
Eu não faziaa menor ideia do que pedir. Não tinha o hábito de
beber. Estava escutando aquelas palavras da tia Nice fazendo
cócegas em meus ouvidos.
— Acompanho você! — respondi meio sem jeito.
— Certo! Você se incomoda se uns amigos curtirem aqui com
a gente? — perguntou antes de sair.
Fiz que não com a cabeça. Ele disse que já voltava e quando
voltou, estava com um balde de gelo repleto de bebidas: latas de
energéticos, uma garrafa de vodca, algumas águas e sucos.
Logo em seguida chegaram os amigos. Eram duas moças e
três rapazes. Não consegui entender se tinha algum casal entre
eles. Leo nos apresentou rapidamente. Começaram a beber e a
dançar no camarote mesmo, que dava de frentepara a pista de
dança. Conseguíamos nos divertir sem ter que disputar um espaço
para dançar. Uma garçonete chegou com um drink, Leo aproximou-
se mais uma vez do meu ouvido e explicou:
— Esse é para você! Pode beber, é fraquinho. Qualquer coisa
coloque mais umas pedrinhas de gelo — fez um olhar de súplica.
Aproveitou e beijou a minha bochecha enquanto se afastava.
Eu sabia que a ocasião exigia proximidade, mas confesso que
cada vez que escutava a voz do meu amigo ao pé da minha orelha
não podia deixar de imaginar se a gente tentasse ir além disso.
Olhei para o copo e era simplesmente lindo, convidativo.
Estava preenchido por um líquido azul-céu que completava os
espaços entre os cilindros opacos. Tinha o canudo em forma de
guarda-chuva e um arranjo feitocom a casca de um limão preso
com uma cereja vermelha. Dei um golinho. Era saboroso. Leo me
observava de longe, fiz um sinal para ele chegar mais perto. Gritei
no seu ouvido:
— Obrigada! Muito bom! Você tinha razão... — agradeci — eu
não sei como me portar... devo oferecer a bebida para as pessoas?
Quer dizer, seus amigos?
— Não se preocupe com isso... ou quer dividir para beber
pouco? — arriscou dando risada.
Sacudi a cabeça negativamente, rindo igualmente. Coloquei o
copo na mesa e perguntei-lhe onde ficava o toalete e ele me
explicou, então eu fui. Estava angustiada, antes do drink tinha
tomado uma garrafainteira de água. No banheiro havia alguns sofás
e puffs. Imaginei que era para as pessoas descansarem, levando
em consideração que ficariam em pé a noite toda, exceto quem
estava no camarote.
Suspirei aliviada após ter esvaziado a minha bexiga. Dei uma
retocada no batom nude que eu usava e limpei um pouco o suor e o
rímel borrado embaixo dos meus olhos. Voltei lentamente para o
camarote, aproveitando para curtir o lugar por outro ângulo. Era
muito difícil dançar na pista mesmo. Fui surpreendida por uma mão
pegando em meu cabelo. Olhei em sua direção e vi que era um
rapaz tentando flertarcomigo... respondi que estava acompanhada
e voltei para o camarote, rindo do beicinho que o rapaz me fez.
Quando cheguei, Leo estava conversando, ou melhor,
gesticulando com os amigos. Bebiam, riam e dançavam no lugar. E
eu estava meio deslocada... bebericava a amostra do paraíso que
tinha em mãos, que pelo jeito duraria a noite toda, pois
discretamente eu ia colocando gelo e sentia que o sabor ia
suavizando, assim como a cor, e ficando cada vez menos alcoólico.
Estava cansando daquilo. Parecia um ritual: sentar um pouco,
levantar um pouco, dançar, um gole na bebida, escutar a conversa,
um risinho de vez em quando, erguer a sobrancelha, mais um
golinho, sentar e recomeçar tudo novamente. Estava me
questionando se seria muito indelicado ir embora sozinha chamando
um aplicativo. Foi quando Leo se aproximou de mim e informou:
— A pista está mais vazia agora — indicou a pista de dança
com a cabeça. — Quer dançar lá um pouquinho?
— Podemos ir — respondi sendo puxada imediatamentepela
mão.
O DJ tocava uma música que eu não conhecia, mas possuía
um ritmo bom de mexer o corpo. O aparelho que manejava fez um
ruído seco, após uma pausa começou a tocar Titanium,do David
Guetta, e o Leo aproveitou para fazer uma piada:
— Sabrina! Nossa música! — disse rindo levando em
consideração que esta música tocava com uma frequência
exagerada na academia.
Opinião dele. Eu até gostava dela.
Ri também. Comecei a observá-lo. Leo agora estava só com a
camiseta branca. Um brilho especial destacava-a, contrastandocom
a luz negra que acendia e apagava sequencialmente. Seus dentes,
igualmente iluminados, fizeramcom que eu olhasse mais para a sua
boca. Aquela música conhecida tocando... o drinkque eu tomei...
A cantora começou aquela parte mais lentinha:
“(...) I'm bulletproof, nothing to lose
Fire away , fire away
Ricochet, you take your aim
Fire away, fire away (...)”

Obedeci e atirei... quer dizer, me atirei...no seu pescoço. Olhei


diretamenteem seus olhos. Ele estava estático.Deslizei as mãos
lentamentepelo seu peito. Ainda dançando... fui descendo e senti
as suas costelas, os gominhos. Estava literalmenteabusando dele
em público, quando senti uma pegada forte nas costas, que
aproximou os nossos corpos. Sentir o calor do corpo do Leo tão
pertinho foi indescritível ainda mais quando ele abaixou um pouco,
segurou o meu queixo e me beijou.
Não acreditei que aquilo estava acontecendo... quantas vezes
sonhei com aquele abdômen, com esse homem praticamente
perfeito me tomando em seus braços como fazia agora? E de
repente eu estava ali, sendo beijada por ele e colocando as mãos
em seu corpo firme e definido.
Afastamo-nos ao mesmo tempo. Parecíamos sincronizados.
Ele limpou em minha boca um borradinho de batom. Dançamos
mais um pouco até que pedi para me sentar, pois os meus pés
estavam muito doloridos. Avisei que iria ao toalete e depois o
encontraria no camarote.

Quando olhei a minha imagem refletidano espelho, queria me


fuzilar, me bater... por ter forçado aquela situação, mas, no fundo,
bem no fundo, achei bom.
O beijo do Leo não foi ruim, mas também não foi bom. Era
como se eu tivesse beijado uma marionete. Apesar de tudo foi um
alívio para mim. Agora definitivamentesabia que ele não era o meu
número, mas foi aí que a pessoa que me encarava diretamentenos
olhos questionou: E se eletivessegostado? Senhor, onde eu havia
me metido?
Retornei para o camarote e percebi que os amigos dele
estavam se despedindo. Esperava que isso fosse motivo suficiente
para irmos embora também... e foi. Que alívio!
Quando chegamos à minha casa, queria descer o quanto
antes, mas senti que precisava me desculpar:
— Leo, a noite foi maravilhosa! Muito boa mesmo! — já ia
começar a enrolação, quando disparei lembrando da música: —
Desculpa! Estou muito envergonhada!
— Não esquenta, Sabrina! Eu ia fazer isso de qualquer forma.
Eu também precisava tirar essa dúvida, você só facilitoua minha
vida! — Ele revelou um pouco retraído.
Meus pensamentos começaram a divagar...
Como assim?Que cara confiado!Será que sou tão previsível
assim?
— Considerando tudo que aconteceu essa noite... — olhou
para mim sério demais para o meu gosto — eu gostaria de te pedir...
Caraca! Agora fodeu!Comecei a prever o que ele diria e o que
eu ia responder para ele... depois de alisá-lo todo no meio de uma
pista de dança: “Olha eu não gostei do seu beijo...vamos deixar
para outra oportunidade?”
— Mas antes eu queria dizer... — Leo estava procurando
palavras. Será que essa conversa não podia esperar? — que foi
bom ter ficado com você! Quer dizer, ter te beijado. Eu tinha muitas
dúvidas... agora não tenho mais... — decidido perguntou: — o que
acha de ser a minha irmã mais nova?
Gargalhei, aliviada, e ele me acompanhou. Por fim respondi:
— Você me pregou uma peça... também adorei ficarcom você
e perceber que temos um grande futuro como irmãos.
Dei um abraço fraternalnele e entrei em casa segura de que
aquela página estava definitivamente virada.
Capítulo 16
Na manhã do dia seguinte, enquanto tomávamos café, contei
todas as novidades para a tia Nice, minha advogada e confidente.
Ela me garantiu que seria melhor assim. Agora o Leo deixaria de ser
uma distraçãopara mim e que eu poderia focara minha atençãoem
outras coisas. Isso fez com que eu me lembrasse da conversa com
Juliana sobre a Universidade. Minha tia disse que essa era uma
decisão importante. Questionei-a sobre os valores e ela me
tranquilizou lembrando que eu ganharia uma bolsa e o restante
veríamos depois. Sobre o curso que escolhi, minha tia alertou:
— Processos Gerenciais... que curso é esse, Sabrina? Nunca
ouvi falar... você tem certeza de que é um curso válido?
— Sim. Pelo menos estava na página da Universidade
juntamente com os outros cursos. Pelo que pesquisei, tem umas
cinco Universidades que oferecem... — respondi defendendo a
minha escolha.
— Você que sabe, mas procure se informar no SSB para ver
se é um curso válido para a disputa de bolsas...
— Tudo bem — concordei. — Vamos passear no parque hoje
de tarde?
— Ué! E o Leo? — perguntou tia Nice.
— Ele gosta de ir ao parque cedo. Hoje eu não estava
disposta pra isso e queria sair com você. Tia, para você é só do
trabalho para casa. Podíamos fazer outras coisas juntas...
— Estou bem assim... mas tudo bem. Vamos então, se isso
fará com que você fique mais contente. E o Leo? Será que as coisas
irão mudar entre vocês agora que se beijaram?
— Espero que não. Apesar de todas as nossas, quer dizer,
minhas trapalhadas, nada abalou a nossa amizade. Espero que
desta vez também seja assim.
Mais uma semana iniciou e agora eu segui com a nova rotina
estabelecida. Já pegara o jeito no trabalho. Trabalhei em projetos de
diferentes andares: apostilas do curso de Gestão Ambiental;
digitalização dos processos de desapropriação de algumas
propriedades; impressão de plantas de novos condomínios, entre
outros. Era impossível não passar o olho por aqueles documentos
todos sem ler. Era fantástico como eu estava aprendendo ali.
Chegou a época de ingresso na Universidade. Eu poderia
prestar o vestibular ou tentar entrar por meio da minha nota no
ENEM. Tentei a segunda opção. Conversei com Juliana, a gerente
do Apoio Gráfico, para verificar a validade da minha escolha antes.
Ela elogiou a minha opção e afirmou que cada vez mais identificava
uma ambição em meu perfil e considerava aquilo positivo.
Leo acabou me convencendo a treinar com ele, no final do
expediente, três vezes por semana. Em alguns domingos íamos ao
parque. Algumas vezes tia Nice nos acompanhava. Aquela história
de irmã mais nova era sério mesmo. Eu realmente tinha a sensação
de que era irmã dele. Nesse dia, estávamos olhando o movimento
sentados na grama do parque, como sempre fazíamos após a nossa
corrida. A tia Nice estava indisposta e ficou em casa.
— E aí, irmãzinha? Você tem algum compromisso para a sexta
que vem? — Leo perguntou.
— Num sei, preciso olhar na minha agenda — respondi
fazendo graça.
— Quer ver como a sua memória logo volta...? — desafiou ele
vindo em minha direção para fazer cócegas.
— Lembrei! Lembrei... — disse querendo frear o seu
movimento — tenho que terminar de assistir os três últimos
episódios de uma série que estou seguindo...
—Ahhh... maninha! O que acha de me acompanhar em um
evento? — convidou meu irmão de coração.
— Mais detalhes, por favor! — especulei.
— Lembra do empreendimento do folderque você trabalhou?
Então, agora é o lançamento oficial. É um evento grande com
muitas pessoas importantes!— Ele começou a bater nos dedos e a
dizer quem encontraríamos: — Investidores,
especuladores,curiosos. Todo tipo de gente. Ficaria muito feliz se
você estivesse lá comigo.
— Mas eu não saberei o que fazer... o que falar... como me
vestir... — comecei a lamúria querendo fugir do convite.
— Sabrina! Pare de arranjar desculpas... você vai conhecer
muitas pessoas do SSB. Isso não te motiva? Contatossempre são
bem-vindos... não são?
— Está bem... — respondi percebendo que não conseguiria
despistá-lo — você me ajuda a escolher a roupa? Pode ir lá em
casa numa noite para ver as opções que tenho.
— Não me leve a mal, Sabrina! Gostaria de escolher um
vestido longo com você em uma loja... é o mínimo que posso fazer
por você me acompanhar. Será um jantar de gala e você será a
mulher mais linda do evento — explicou-me com toda a paciência.
— Tudo bem. Vestido de gala com certeza é uma coisa que
não iríamos encontrar lá em casa — comentei rindo. — Quando
poderemos ir?
— Amanhã, depois da academia. Se não encontrarmos no
shopping, tentaremos em outras lojas... — informou-me.

Eu estava linda! Angelicalmente linda! O vestido que


escolhemos era bem clássico. A parte de cima era feitacom uma
renda azul-esverdeada. Na parte da frente havia um forro rosa-claro.
As mangas e as costas não possuíam forro, deixando a pele
parcialmente a mostra embaixo da renda. A saia era extremamente
rodada e comprida. Tinha um forro rosa da mesma tonalidade da
parte da frente.O detalhe que mais gostei foi o das costas: na
metade de cima a pele ficava à mostra e a parte de baixo era presa
com uma fita cor-de-rosa clara que modelava o corpo num
movimento de zigue-zague. As sandálias rosa-chá ficavam
escondidas embaixo da saia, só tinha a oportunidade de mostrá-las
quando sentava e cruzava as pernas, encontrando-as no meio da
armação do vestido.
Tia Nice cuidou da maquiagem e cabelo. Ela arrumou os meus
longos cabelos castanhos em um coque solto, com a franja
ligeiramente jogada para a direita sem estar muito marcada. A
maquiagem era suave, acompanhando a delicadeza de toda a
composição que usava. Giovana cuidou das minhas unhas. Elas
foram pintadas num esmalte nude e no dedo anelar uma joia de
unha que combinava com o azul-esverdeado do vestido.
Quando Leo chegou em casa para me buscar, tive que sacudi-
lo para voltar a respirar... ele adorava fazeruma cena, mas eu sabia
que estava linda. No caminho ele me encheu de informações:
— Mana, você sabe que eu sou o anfitrião,né? — sua voz
parecia nervosa.
— Sei, Leo, novidades, por favor... — respondi sem paciência.
— Você vai ficar sem a minha presença a maior parte do
tempo, mas não estará sozinha na mesa. As duas corretoras que
trabalham comigo estarão lá... se isso te deixa mais tranquila —
explicou tentando se acalmar.
— Leo, estou de boa. Não se preocupe! Vai dar tudo certo! —
tentei tranquilizá-lo.
— Só mais uma coisinha... — ficou meio reticente — os
homens... os homens poderão abordar você. Diga que está comigo,
que é minha irmã e ficará tudo bem, certo?
— Nossa... você não está exagerando? — questionei rindo.
— Pode confiar em mim. Eu não estou exagerando... —
assegurou-me ele — o mundo dos negócios possui um lado obscuro
que só quem está dentro conhece...
— E por que você me trouxe então? — perguntei pensativa.
— Mais cedo ou mais tarde você vai precisar tomar ciência
disso... prefiro que seja comigo por perto — ponderou sério.
Chegamos ao evento. Era um sobrado com linhas retas, que
lembrava um imóvel daqueles filmes de faroestecom uma porta
bipartida ao meio, uma janela de cada lado e várias janelas maiores
no andar de cima. Como Leo era o promotor do evento, fomos os
primeiros a chegar. Ele me acomodou em uma mesa e foi cuidar dos
últimos detalhes. Olhei ao redor e vi como o espaço era amplo. Em
um canto tinha sido montado um palco com uma tela de
apresentações. Ao redor de todo o salão estavam distribuídas
mesas redondas com oito lugares cada uma. O centro estava vazio,
dava indícios de que provavelmente teriam algumas danças. Nas
duas extremidades do salão havia escadas que levavam a um
mezanino. Lá também tinham mesas, só que retangulares. Como
estava sozinha, resolvi conhecer o ambiente. Subi por uma das
escadas.
Lá de cima a vista era fant ástica. Minha intenção era olhar
rapidinho e descer pela outra escada, porém, no meio do caminho,
um corredor escuro com o final iluminado chamou a minha atenção.
Olhei para os lados e percebi que estava sozinha... então não
custava dar uma olhadinha. Era um deck que permitia observar os
carros no estacionamento.Dava para ver o quintal do vizinho de
trás, que possuía uma pequena mansão, uma piscina e um jardim
florido completamente iluminado. Especialmente lindo!
Voltei para a mesa, porque, pelo movimento de carros, logo o
salão ficaria cheio e Leo provavelmente sentiria a minha falta.
De fato,ele já estava me procurando. Apresentou-me para
pessoas que possuíam em sua maioria mais de cinquenta anos.
Fiquei com um sorriso engessado no rosto tentandoser simpática
com todos.
Estava sentada na mesa quando um casal em especial
chamou a minha atenção. Os dois eram muito bonitos. Ele era alto,
encorpado, de cabelos negros, olhos escuros, a pele muito clara,
que contrastava com uma barba rala muito bem desenhada. Ele fez
com que eu pensasse que eu estava vendo a versão masculina da
branca de neve. Vestia um terno azul-marinho de risca de giz, com
camisa azul-clara e uma gravata e lenços vermelhos. A moça era
loira, com um bronzeado natural. Seus cabelos estavam em um
penteado moicano. Usava um vestido vermelho e fatal,de cetim,
com uma fenda que quase encontrava o seu quadril, dando um
toque muito sensual ao seu andar. Os lábios estavam destacados
por um batom vermelho, que contrastava com os olhos pretos
esfumados. Que casal...
Comemorei quando se sentaram em uma mesa longe da
nossa. Era impossível que eu não ficasse olhando para eles se
estivessem muito perto. Fui ao banheiro. Quando voltei, o “Branco
de Neve” estava no palco contando um pouco da história do
empreendimento, de algumas dificuldades para a consolidação e de
como agora este sonho se tornou realidade. Eu não conseguia
encaixar essa história... o evento não era do Leo? Foi quando ele
pediu palmas para o Leo e o chamou ao palco.
Os dois se cumprimentaram e o meu amigo prosseguiu com a
apresentaçãomostrando como ficouo condomínio, as vantagens da
localização, a infraestrutura,e outros detalhes. Agradeceu e foi
aplaudido novamente. Ele informou que o jantar seria servido em
seguida e desejou que todos aproveitassem bem a festa.Enquanto
retornava à mesa foi cumprimentado por pessoas em seu caminho.
Felicito-o também:
— Parabéns! Foi uma excelente apresentação! — dei-lhe um
beijo no rosto.
— Obrigada! Sou muito grato por você estar aqui comigo —
falou desviando o olhar, sendo parabenizado por mais algumas
pessoas.
Eu estava entediada. As corretoras que Leo disse que me
fariam companhia não paravam na mesa. Lembrei do deck e
imaginei que seria muito refrescante tomar um ar lá fora, olhando
para aquele jardim mais iluminado agora pela noite que já estava
plena. Apoiei os cotovelos no guarda-corpo e comecei a olhar para
os carros no estacionamento.Estava contabilizando as marcas mais
frequentes:Mercedes, Audi, BMW, Land Rover, Volvo... até que de
repente uns gemidinhos interromperam o meu levantamento.
A curiosidade foi tão grande que resolvi verificar. Andei em
direção ao barulho silenciosamente. Só então percebi que o deck
tinha um formatode “L”. Ficava difícil de perceber pela presença de
bambus que tampavam o canto de onde vinha alguma coisa que me
chamava a atenção...
Abri espaço entre as folhas e fiteia cena mais erótica que
tinha visto em toda a minha vida. Um homem segurava as mãos de
uma mulher sobre a sua cabeça, usando a sua mão direita como
algema para prendê-la na parede. Ela estava de costas para ele.
Rendida. De pernas abertas e o bumbum arrebitado. Com a mão
esquerda ele segurava o seu vestido e direcionava o seu membro
por baixo dele. Impressionada com o que via pensei que não
deveria permanecer ali. Estava quase de saída quando ouvi:
— Toma, sua vadia. Isso é só uma degustação...— a voz dele
estava ofegante de tanta luxúria. — O prato principal vem depois...
Saí dali o mais rápido que pude. Excitada. Não pude deixar de
questionar: “quem era aquele casal fogoso?”. Voltei para o salão e
as danças já começaram. Ao descer da escada um garçom me
ofereceu uma taça de espumante. Peguei uma e tomei como se
fosse água, e antes que o garçom saísse peguei mais uma. Escutei
uma voz no meu ouvido:
— Se continuar bebendo desse jeito... — cochichou Leo no
meu ouvido — quando o senhor Ramirez vier te tirar para dançar,
irmãzinha, vai apalpar todas as pelancas dele no meio do salão...
Olhei para o senhor Ramirez sentado na nossa mesa, um
senhorzinho simpático de uns setentaanos acompanhado por uma
moça de uns vinte. Como isso era possível? Pisquei os olhos e
percebi que os homens aparentavam mais idade, porém, as suas
acompanhantes eram moças como eu...
Pisquei os olhos e falei em direção ao Leo:
— Tem razão! Eu mereço isso... — falei, envergonhada,
lembrando a nossa última balada. — Podemos sentar? — continuei.
— Estou brincando, Sabrina! — respondeu Leonardo rindo. —
Sei que o seu Ramirez não é tão sexy quanto eu... — surgiu um
sorrisinho no canto da sua boca.
Olhei para ele com o olhar cortante.Aquilo era tudo, menos
engraçado para mim. Percebi que o senhor Ramirez se aproximava
para me tirar para dançar, conforme Leo antecipara. De vovozinho
não tinha nada. Sua mãozinha trêmula escorregava facilmentepara
o meu quadril, que por sorte estava protegido pela ampla armação
do vestido. Leo gentilmente se aproximou de nós e solicitou protetor:
— Minha vez agora, seu Ramirez.
O vovô resmungou um pouco, deu um beijo babado em minha
mão e foi em direção à mesa. Agora dançaria com a sua
acompanhante, o que eu achava bem justo.
Dançamos uma música e voltamos aos nossos lugares. O
casal bonito do início da festapassou pela nossa mesa. O homem
se abaixou e falou alguma coisa no ouvido do Leo. Os dois deram
uma gargalhada e a moça olhou para mim com um olhar de
cumplicidade e um meio sorriso forçado. Eram eles... o casal que
estava transando dodeck...
Caraca, que vergonha de ter presenciado isso.
Enquanto se afastavam, perguntei no ouvido do Leo:
— Quem são? — uma ingenuidade em minha voz tentou
disfarçar o sangue que fervilhava dentro de mim.
— Ele é o seu chefe, o senhor Scheffer — informou-me sem
expressão.
Capítulo 17
Senhor, Maria, José... meu patrão. O dono do prédio?! Aff... é
muita informação para mim. Aproveitei o retorno para casa para
especular mais...
— Nossa, Leo! Estava tudo tão lindo! Parabéns! Espero de
coração que as vendas sejam como este evento: um sucesso —
exclamei com sinceridade.
— Obrigada! Tudo indica que serão mesmo... — respondeu
em acordo.
— Eu reparei uma coisa... — Eu e as minhas observações.
— Sim — deu uma olhadinha para mim.
— Como todos esses homens de negócios possuem
namoradas ou esposas tão novinhas? Pelo que percebi, poucos
casais possuíam a mesma idade... vi umas três mulheres só com
rapazes mais novos, mas os homens em sua maior parte estavam
com mulheres que poderiam ser suas filhas ou netas... — estava
muito intrigada com essa constatação.
Estávamos passando em frente a um posto de gasolina. Nele
tinha uma loja de conveniência e Leo me informouque precisava de
um café. Entramos vestidos de gala. Ele pediu dois cafés e uma
porção de pão de queijo. Sentamos em uma pequena mesinha
isolada e ele me respondeu:
— Você já ouviu falar de acompanhante executiva? —
pigarreou.
— Sim. Lá no salão vão algumas... só que nunca me dei ao
trabalho de saber exatamente o que fazem... — respondi me
sentindo uma ignorante.
— Elas são moças, geralmente novas, que são pagas para
acompanhar homens em eventos, jantares ou coquetéis de trabalho.
— É isso? Simples assim? — concluí.
— Não é nada simples, Sabrina. Tudo depende do que é
acordado. Muitas delas fazem outros serviços após o término do
evento.
—Outros serviços? — pensei um pouco tentandoadivinhar do
que se tratava.— Tipo, levam o cara para casa? — estava ficando
aflita com aquela enrolação.
— Não! — Ele quase gritou. — Elas fazem favores sexuais,
Sabrina! Se submetem para ganhar dinheiro, enquanto as esposas
estão em casa dormindo. Os homens pagam para se aproveitar de
corpinhos fresquinhos, assim como o seu...
Fiquei calada um tempo refletindosobre o que ele me dissera.
Uma dúvida, quer dizer “a dúvida” me surgiu. O meu chefe... não era
tão velho como a maioria dos homens do evento, devia ter uma
idade próxima a do Leo, por volta dos vinte e seis anos talvez.
Respirei fundo e tentei formular a pergunta da melhor maneira
possível:
— O meu pa...trão, quer dizer, o senhor Sss...che...ffer. —
senti uma dificuldade de me referir a ele. — Aquela moça... ela era
namorada dele?
— De jeito nenhum. Ele é muito exigente com as suas
“acompanhantes”. Nunca repetiu a mesma moça. Já recusou várias
na hora que chegaram, e se precisar ele manda trazer mulheres de
outras cidades — deu uma tossidinha e confidenciou:— Chamamos
ele secretamente defeitor .
Agora eu entendia aquela frase dele: “Toma, sua vadia.Issoé
só uma degustação... o prato principal vem depois...”.Além de foder
com ela durante a festa,teria o depois... será que aquilo era ruim?
Um homem daqueles que parecia ter saído de um conto de fadasde
tão lindo...
— Você não vai dizer nada, Sabrina? — Leo me perguntou
indignado.
— Sei lá... estava pensando... esse feitoraté que não é de se
jogar fora... — disse, divertida.
— Você está louca, Sabrina?! Isso não é brincadeira! — Ele
estava muito furioso. — E se após o evento houver uma festinha
coletiva, com o feitor
, o seu Ramirez, o senhor Martinez e mais uma
meia dúzia de senhores que não se incomodam em compartilhar as
suas acompanhantes? Ainda acha que seria divertido?
— Desculpe! Estava apenas brincando! — menti sobre ter
pensado em “acompanhar” o “feitor”.Eu fiquei curiosa em como
seria provar a degustaçãoe o prato principal. — E você já contratou
alguma acompanhante? Participou alguma vez dessas festinhas?
— Sim, já contratei, mas apenas para o evento principal.
Existe até um valor diferenciado para isso, sabia? — explicou-me
mais calmo agora. — Não, nunca participei dessas festinhas.Como
eu sei? Você quer saber como eu sei? Os “senhores” comentam.
Gostam de se vangloriar e comparar os seus desempenhos... e... —
seu olhar ficou nublado, seu rosto fechou em uma expressão de dor
e mágoa — minha irmã foi acompanhante... Ela me contou essas
coisas... — a dor em sua voz era palpável.
— Ainda bem que foi , né? Isso quer dizer que não é mais,
certo? — falei a primeira coisa que veio à minha mente.
— É, Sabrina, a não ser que no céu ou no inferno também
tenha o trabalho de acompanhantes...
— Ela morreu... — afirmei— sinto muito! Muito mesmo! Nunca
iria imaginar uma coisa dessas. Quantos anos ela tinha?
— 25.
— Quer falar sobre isso? — questionei me dando conta de que
nunca tínhamos conversado nada além da sua sexualidade. Eu não
sabia muita coisa a seu respeito.
— Ela era muito parecida com você — Leo começou a contar.
— Conheceu um homem que não se envolvia emocionalmente. Ele
ofereceu dinheiro para ela e ela estava apaixonada e tinha a
esperança de que ele sentisse o mesmo. Um tempo depois ele não
quis mais. Ela ficou sem o cara e sem o dinheiro, mas continuou
fazendo eventos. Dizia que era pelo dinheiro. Eu acho que foi uma
tentativadesesperada de se encontrar com ele novamente. — Ele
parou, deu um suspiro, passou as mãos nos cabelos, e continuou:
— Até que um dia ela estava com um desses que gostavam de
compartilhar a companhia. Não sei exatamente o que aconteceu,
porque depois desse dia nunca mais falei com ela. Ela entrou viva
naquele quarto de motel e saiu com o sêmen de oito homens dentro
dela, duas costelas quebradas e uma pancada na cabeça, que foi
fatal.
Eu não tinha o que falar. Queria muito saber o motivo de ele
me contar aquilo ali naquela noite.
— Muito triste! Leo... eu só quero entender... por que você
escolheu justamente hoje para me contar isso?
— Desde a primeira vez que eu te vi senti uma vontade
imensa de te proteger. Só agora me dei conta que deve ser por
causa da Brenda. Você está trabalhando no SSB e eu tenho certeza
que você conseguirá prosperar lá. Infelizmente,mais cedo ou mais
tarde, você passará por algumas situaçõesparecidas com estas que
eu mencionei. Preciso que você esteja preparada, Sabrina. Que
saiba aonde podem chegar as consequências das suas escolhas.
Um rosto bonito não quer dizer nada. Dinheiro não vale nada.
O que é fácil no início pode ser um fardo depois. É como se você
fosse atravessar um rio com um fardo de algodão: no início é leve,
podemos carregar cantando, mas no fim não sabemos se
conseguiremos tirá-lo à margem — quando achei que tinha
terminado ele completou: — Ainda mais você que... — Ele olhou
para mim e ficou parado pensando se concluía a frase ou não —
está com os hormônios à flor da pele.
Balancei a cabeça de forma afirmativa, demonstrando que
concordava com ele. Não, eu não ia discutirsobre os meus
hormônios com ele... bem no fundo eu achava que o Leo estava
exagerando, que a história com a irmã o deixara muito abalado, e
que ele indiretamente estava transferindoessas preocupações para
mim. Eu já estava trabalhando no SSB há um mês e sempre fui
tratada de forma respeitosa. Ficaria atenta, mas não deixaria de
perder oportunidades por conta dessa conversa.
Capítulo 18
— Tia Nice, sabe aquela moça, a Jessica, que é cliente do
salão? — resolvi especular com a minha tia.
— Sim, querida! O que é que tem ela? — respondeu-me
curiosa.
— O que ela faz mesmo? A sua profissão?
Tia Nice olhou fixamente para a parede da cozinha, onde
estávamos tomando café da manhã naquele domingo. Parecia que
estava procurando alguma coisa em uma dimensão diferenteda
nossa...
— Ela... Ela... — estava difícil de sair essa explicação —
Jessica é uma garota de programa de luxo, Sabrina. Elas gostam de
ser chamadas de acompanhantes executivas.
— E qual é a diferença? — questionei, interessada.
— A diferença é que as acompanhantes ganham mais, pode
escolher se faráou não o programa conformeo cliente que a solicita
e tem um pouco mais de autonomia para decidir sobre os limites
que deseja ou não ultrapassar. Já as garotas de programa, muitas
vezes cedem muito mais e ganham muito menos... só que essa
diferença é muito sutil, levando em consideração que ambas serão
pagas para transar com um desconhecido — falou a minha tia bem
elucidativa. — Posso saber o motivo desse interesse? — devolveu a
pergunta para mim.
— Sabe o evento que o Leo me levou? A maior parte dos
homens estavam com acompanhantes. Elas eram lindas. Depois,
em uma conversa, o Leo me falou que a irmã dele era uma
acompanhante e que foi assassinada brutalmente após uma
festinha compartilhada entre executivos... — tomei um ar e
prossegui: — aí, tia, ele veio com uma história de me proteger, de
que não queria que eu passasse por nenhuma situação
constrangedora no trabalho e que se preocupava por causa dos
“meus hormônios estarem à flor da pele!” — bufei. — Pode isso?
Minha tia deu uma risada exagerada e comentou:
— Esse Leo incorporou o papel de irmão mais velho mesmo,
né? Mas, querida, preocupação e cuidado nunca são demais...
ainda mais ele que circula nesses espaços quase hegemonicamente
masculinos. Não custa você dar crédito a ele, não é verdade? Tenho
certeza de que o que ele fala é para o seu bem... ainda mais tendo
perdido uma irmã de forma tão violenta. Quantos anos ela tinha?
— Vinte e cinco — respondi. — Ele disse que ela era muito
parecida comigo...

A semana começou agitada. Tinha muitas avaliações e


trabalhos para entregar na escola. Com a chegada do final de ano e
as férias escolares, o estágio seria suspenso. O apoio gráfico
continuaria trabalhando, só que com menos funcionários. Muitos
escritórios estavam mandando os trabalhos com bastante
antecedência para não se complicarem com o prazo estendido
depois... estava tudo uma correria. Nesse corre-corre Juliana me
chamou para conversar:
— Sabrina, você chegou a ver se foi aprovada na faculdade
pelo ENEM? Fiquei sabendo que o resultado saiu ontem...
— Ontem?! — perguntei, assustada. — Não. Estou com tantas
coisas na cabeça que nem verifiquei... — uma vergonha saiu em
minha voz. Não queria que ela achasse que eu não estava
interessada...
— Vamos ver agora! Preciso passar o nome dos aprovados
para concorrer à bolsa. A parceria precisa ser confirmada esse ano
e você será redirecionada para um setor em que aproveite melhor o
potencial do seu curso — enquanto falava comigo ela ia mexendo
no computador. — Aqui. Não acredito, Sabrina! Por uma vaga.
Faltou uma vaga para você entrar!
— Nossa! Essa foi na trave... — sussurrei, desanimada — e
agora, o que eu faço?
— Você só tentou em uma Universidade? — questionou
Juliana, incrédula.
— Sim — afirmei, derrotada, sabendo que nem tinha passado
pela minha cabeça tentar em outros lugares. Lembro que pensei
que seria tudo ou nada. Infelizmente teria que ficar com a segunda
opção.
Juliana, percebendo o meu desconforto, consolou-me:
— Não fique assim... vai que abre uma vaga? Alguém pode
desistir... você pode procurar alguma Universidade que ainda não
tenha feito seleção. Se eu souber de algo te aviso...
Agradeci e fui terminar uma digitalização que estava fazendo.
Naquela noite perdi o sono. Rezei. Chorei. Estava tão
frustrada. Agora que eu conhecia um mundo cheio de
oportunidades, voltaria com o rabinho entre as pernas e trabalharia
no salão novamente. Não que isso fosse ruim. Eu gostava de
trabalhar lá também. Eu poderia esperar mais um ano e recomeçar
de onde parei... mas eu estava gostando muito de conhecer coisas
novas, pessoas novas e ter oportunidade de ascensão profissional.
Não queria esperar. Comecei a rezar novamente. Pedi a Deus, na
Sua infinita bondade, que intercedesse por mim. Eu não gostava
muito de pedir, mas eu já tinha perdido tantacoisa em minha vida
que me achava no direito de suplicar, pelo menos uma vez, pela
intervenção divina. Adormeci rezando.

Estava um trapo humano. Além de todas as demandas que


tinha que cumprir, ainda carregava as consequências de uma noite
mal dormida. Escutei o telefone tocar e fui chamada. Minha colega
tapou a parte de baixo do aparelho e anunciou: “Leonardo”. Fiquei
curiosa em saber por que o Leo me ligava no fixo e não no celular
como sempre fazia. Atendi:
— Alô!
— Boa tarde! Falo com Sabrina? — perguntou a voz do outro
lado da linha.
— Ela mesma. Em que posso ajudar?
— Meu nome é Leonardo. Falo em nome da ULBRA. Você
está concorrendo vaga para um de nossos cursos... confere? —
explicou o rapaz muito educado. Eu não estava entendendo nada.
Será que ele não sabia que a seleção já tinha terminado para mim
este ano?
— Confere, Leonardo. O que precisa? — perguntei. O que
você quer comigo? Quer me torturarainda mais... acho que esse
negócio de ir direito ao ponto não combina com esse nome...
— A senhorita tirou a mesma nota que o último classificado.
Em todos os quesitos de desempate continuaram com a mesma
pontuação. Após uma segunda análise, verificamos o histórico
escolar de vocês dois. O seu demonstra um maior
comprometimentocom os estudos através de suas notas sempre
altas — o rapaz fez uma pausa, suspirou e prosseguiu: — Como
não poderemos retirar a vaga dele, coube-nos abrir mais uma vaga
e aceitá-la em nosso programa... valorizando o mérito conquistado.
Eu escutava a voz dentro do telefone,porém não compreendi
mais o que estava sendo falado. Era aquilo mesmo que eu estava
escutando? Eu consegui uma vaga? Ou melhor, conseguiram uma
vaga para mim?
Um ruído me chamou novamente para a realidade:
— Senhorita?! Senhorita?! Sabrina! — Ele insistia.
— Sim. Desculpe! O telefon e ficou mudo por um instante...
pode repetir?
Ele me informou sobre os passos que eu teria que tomar, os
prazos para entrega de documentos, e todas as coisas burocráticas
que teriam que ser resolvidas até eu finalmente ser uma
universitária. Agradeci a ele pela notícia. Fui ao banheiro, olhei no
pequeno espelho que tinha em cima da pia, lavei o rosto, coloquei
um pouco de água na boca e fiz um bochecho, dei um sorriso para
mim mesma e olhei em direção ao teto:
— Valeu! Sabia que Você não iria me abandonar! Fico Te
devendo essa! — essa era a minha melhor maneira de agradecer.
Nunca fui religiosa, apesar de ter acompanhado vovó em infinitas
missas, novenas e procissões.
Sentei-me em cima da tampa do vaso, mandei a mesma
mensagem para o Leo e para a tia Nice:
“Oie! Consegui uma vaga extra! Agora ninguém me segura!”,
acompanhada de um emoji de carinha piscando e mostrando a
língua.
Saí do banheiro e fuidireto para a sala de Juliana. Contei para
ela o que houve e ela me disse que cuidaria agora mesmo de toda a
papelada, pois não queria que eu perdesse os prazos. Perguntei,
curiosa:
— Você sabe para que setor eu vou? Gosto tantode trabalhar
aqui...
— Não sou eu quem resolve isso — respondeu Juliana.— Eu
apenas façoum relatório sobre o seu desempenho aqui neste setor,
junto com todos os seus documentos, e encaminho-os para o RH.
Como envolve conquista de bolsa/desconto em sua mensalidade,
muitas vezes a decisão é tomada pelo próprio senhor Scheffer.
Conforme lhe falei, ele leva muito a sério a contrataçãode novos
funcionários, ainda mais aqueles que já entram com a necessidade
de investimento prévio, como será o seu caso.
— Certo! Obrigada, Juliana! — disse, envergonhada. Ela fez
parecer que eu seria um peso para a empresa... pelo menos foi
essa a impressão que eu tive. Que mulher mais maluca!
Primeiro faza maior pressão para eu fazervestibular e passar.
Depois que consigo, vem com essa história: “Você é uma
funcionáriaque entrou na empresa com a necessidade de
investimento prévio”.Eu sei disso, não precisa jogar na minha cara!
Estava tão fula da vida que prometi a mim mesma: “Pode
deixar, Juliana,senhor Scheffer , ou seja, lá quem for... vou valer
cada únicocentavo pago por mimcomo ‘investimentoprévio’.Custe
o que custar!”
Capítulo 19
O ano estava quase acabando. As aulas terminaram. Não quis
participar dos eventos finais, como a formatura,por exemplo. Eu
não guardava boas lembranças da última formaturaque tive e não
queria ter a mínima chance de encontrar Frederico no baile, apesar
de sermos vizinhos e isso ocorrer de vez em quando.
O SSB promovia um evento de final de ano. Todos, sem
exceção, eram convidados. Eu tinha dois convites: um pelo Apoio
Gráfico e um do Leo. Desconversei várias vezes e recusei os dois.
Eu já acompanhara o Leo em outros eventos e não achava
que aquilo era divertido. Eram todos muito polidos, foraaqueles que
transam no deck – pensei dando uma risada maliciosa –, uma
música sem graça, a comida cheia de frescura. Aqueles casais
forjados, de homens maduros e ninfetasque serviam de adorno
para os seus egos. Eu definitivamentenão queria passar por isso
neste final de ano. Estava muito cansada. Após justificar pela
décima vez para a tia Nice os meus motivos de não ir ao baile de
formatura,nem ao evento de encerramento do trabalho, ela afirmou:
— Não quero desculpas, Sabrina! Ao evento do final de ano do
salão você vai... — falou minha tia decidida.
— E desde quando, tia, que o salão faz um evento de
encerramento? — questionei, divertida.
— Este será o primeiro de muitos! — garantiu. — E não
aceitarei um não como resposta.

Nas férias eu estava trabalhando no salão novamente.


Treinava no período da tarde com o Leo, como nos velhos tempos.
Era como se eu estivesse voltando ao passado. Gostava disso.
Quando dona Judite chegou apoiada pelo seu filho, as
meninas estavam todas animadas com o tal evento de
encerramento que a minha tia inventou. Era risada pra cá,
promessas pra lá e uma tirando sarro da outra, como se fossem sair
pela primeira vez na vida.
Dona Judite se sentou na minha frente e me cumprimentou:
— Oi, minha filha! Quanto tempo que eu não te via... como
estão as coisas no novo emprego? — perguntou ela.
— Posso me sentar aqui? — indagou o seu filho logo em
seguida.
— Claro! — respondi para ele e continuei conversando com
ela: — Então, dona Judite — dei uma olhada séria para o
intrometido —, a senhora estava vindo mais cedo... nos
desencontramos... estava tudo bem, agora estou de férias e
recomeço no ano que vem junto com a faculdade... a senhora
acredita? — dei outra olhada para o rapaz que parou de encarar o
celular e se voltou para nós quando eu falei a palavra: faculdade.
Continuei atendendo a dona Judite, com o seu filho ao nosso
lado. Rodrigo. Lembrei-me do seu nome. Ele estava muito
interessado na nossa conversa. Tinha a impressão de que a
qualquer momento ele começaria a dar pitaco no meu serviço, na
minha vida e eu estava ficando incomodada com isso.
Foi um alívio quando terminei e os dois saíram pela porta. Não
sei por que, mas a presença do filho dela estava me deixando
angustiada. Ele não podia ficar passeando pelo shopping? Ou
esperá-la no carro? As únicas coisas que ele fazia eram escutar a
nossa conversa e nos olhar quando falávamos algumas palavras-
chaves, que por algum motivo lhe chamavam a atenção. Respirei
fundo agradecendo que este não era mais o meu emprego e que
provavelmente ano que vem eu não estaria mais aqui.
A tão esperada festade encerramento do salão chegou. Minha
tia deixou tudo por conta da Mercedes, uma mulher de 45 anos que
dava aulas de dança em um CTG. Resumindo: o encerramento era
um baile tradicionalmente gaúcho. Eu que já tinha fugido de um
baile de formatura,uma festade gala, agora encerraria o meu ano
vendo os outros dançarem músicas gaúchas...
Quando cheguei lá, gostei do que vi. A maioria das pessoas
estavam pilchadas , ou seja, usando roupas tradicionais gaúchas. As
mulheres usavam longos vestidos rodados e enfeitados.Os homens
usavam camisa, um tipo de calça larga, chamada bombacha, e um
lenço no pescoço. Olhei para o salão e percebi como era lindo o
jeito que dançavam. As mulheres faziam a saia dos seus vestidos
rodarem.
Teve um momento que o baile parou e um grupo que estava
tocando anunciou que seria apresentado um bugiu. Uma fila de
dançarinos foi organizada e eles entraram no salão de baile com
passos ritmados. Quando todos entraram, começaram a dançar
livremente pelo salão. Mercedes, a amiga da minha tia, estava lá
faceira dançando com o seu par. Dançavam tão bem que eu tive a
impressão que flutuavam...
A apresentaçãoterminou e todos puderam dançar novamente.
Estávamos sentadas ao redor de uma mesa, conversando e
rindo, quando um rapaz esticou a mão para a tia Nice. Ela segurou a
sua mão, virou para mim, deu uma piscadinha, e eles foram dançar.
Ela dançava muito bem. Lembrei-me de quando me disse que ela e
minha mãe conheceram o meu pai em um CTG. Por que elaparara
de dançar? Fiquei olhando, admirada, como ela flutuavacom o seu
par.
Senti como se eu voltasse ao passado. Fechei os meus olhos
e me senti em casa. Parecia que eu podia ver o meu pai e a minha
mãe dançando em um lugar parecido com aquele. Eles olhavam
para mim rindo e eu sorria novamente. Observei as mesas ao redor
e não percebi a presença de crianças. Concluí que eu
provavelmente me lembrava de um momento da aula de dança. Por
um segundo, uma lágrima escorreu pelo meu rosto e tive
consciência de que aquele momento era o mais próximo que eu
teria dos meus pais. Ou seja, das lembranças que tive da minha
infância. Pisquei os olhos e fiteia pista de dança novamente. Não
dancei naquela noite, mas foi muito divertido ver alguns casais
dançarem e outros casais tentando dançar .
As festas de final de ano chegaram. Convidamos o Leo para
ficar conosco. Como trabalharíamos até o final da tarde, ele ficou
responsável pelos preparativos. Ficamos com receio, mas ele disse
que sabia cozinhar muito bem. Veríamos!
Quando chegamos em casa, sentimos um cheiro muito bom
no ar. Arrumamo-nos, jantamos normalmente sem esperar pelo
horário da Ceia. Ficamos conversando sobre como a Tia Nice é uma
boa dançarina e inclusive levantamos a hipótese de fazermos aula
de dança em um futurobreve. Revelamos o amigo secreto, que de
secreto não tinha muita coisa, levando em consideração que as
possibilidades eram bem finitas. Eu peguei a tia Nice, que pegou o
Leo, que me pegou.
Ele me entregou um envelope. Abri ansiosa para ver o que
era. Era um contratocom uma autoescola. Ele estava me dando um
curso para aprender a dirigir. A tia Nice também veio com
novidades:
— Querida! Quando os seus pais se envolveram naquele
acidente, você teve direito a uma pensão. Como nunca usamos para
as despesas com você, que sempre foram pequenas, eu depositei
em uma poupança esse valor. Você tem uma poupança bem
gordinha... poderá usar o dinheiro com as despesas iniciais da
faculdade,mas acho que sobra uma boa parte para, se você quiser,
é claro, comprar um carro para você!
Estava emocionada. A vida tinha me tirado tantascoisas, mas
colocara outras igualmente preciosas em seu lugar. Coloquei um
dos braços no pescoço da tia Nice e o outro no pescoço do Leo,
puxei-os para perto de mim e agradeci:
— Obrigada! — dei um beijo estalado em minha tia. —
Obrigada! — dei outro beijo estalado agora em Leo. — Vocês são
dois anjos na minha vida!
Capítulo 20
Após passar as minhas férias dormindo até mais tarde,
ajudando no salão, fazendo passeios curtos com a tia Nice e Leo
nos finais de semana, eu estava pronta e ansiosa para o ano
começar de verdade.
O protocolo preconizava que eu só poderia começar o estágio
após uma semana de aulas na Universidade. O curso que estava
fazendoera semipresencial. Significavaque eu seria autônoma para
organizar o meu tempo e teria que conseguir cumprir os prazos e
compromissos que estavam destinados a mim enquanto estudante.
Eu tinha acesso à plataformavirtual do curso que ficava à minha
disposição, onde eu assistiria às aulas gravadas quantas vezes
quisesse, teria acesso também ao calendário de provas, materiais
pedagógicos e recursos que poderiam ser utilizados por mim
enquanto estivesse matriculada. Aproveitei e pedi ajuda ao Leo para
usar parte do dinheiro da poupança para comprar um notebook. Ele
seria fundamental para que eu conseguisse realizar um curso
universitário nesta modalidade.
Minha intenção era estudar em casa pela manhã. Almoçar e ir
para o SSB. Após o término do expediente pretendia ajudar a tia
Nice como fazia antigamente.Estava ansiosa, pois hoje eu ficaria
sabendo para que setor eu seria enviada e se a programação que
fiz daria certo. Novamente eu estava entrando naquele prédio
majestoso. Eu não cansava de observar o seu piso branquíssimo,
os espelhos limpos e brilhantes, os vasos escuros com flores
vermelhas e brancas...
Quando entrei no elevador, a ascensorista me perguntou:
— Em qual andar você vai?
— Não sei, desculpe! Esqueci de perguntar na recepção...
preciso ir ao RH... — respondi envergonhada com a minha faltade
atenção.
— Não tem problema! — falou a moça tentandome confortar
pelo meu descuido. — Quinto andar. O RH fica no quinto — um
tempo se passou, até que paramos: — Chegamos... boa sorte!
Parei em frentea uma mesa onde havia uma placa com a
palavra: "INFORMAÇÕES". Aguardei a minha vez de ser atendida.
Tinha uma fila com três pessoas na minha frente.Uma a uma as
pessoas foram sendo encaminhadas para guichês. Quando chegou
a minha vez, a moça sentada atrás da mesa perguntou:
— Nome completo, por favor?
— Boa tarde! Sabrina Souza de Andrade — disse.
Ela procurou alguma coisa no computador. Olhou novamente
para mim, perguntou novamente o meu nome, escreveu-o em um
pedaço de papel. Levantou-se e caminhou em direção às outras
duas moças. Ambas olharam para o papel e para a minha direção.
Estava ficando constrangida... até que a primeira moça voltou e
respondeu:
— Quadragésimo andar. Procure pela senhora Macedo.
Entrei novamente no elevador, parecia que estava indo para o
céu de tão demorada que estava sendo aquela subida. Tinha uma
sensação de frio na barriga, uma mistura de ansiedade com dúvida,
insegurança e aflição. Por que será que aquelas moças do RH
estavam tão receosas em me indicar o local?
Cheguei. Quadragésimo andar. O elevador estava posicionado
no início de um grande corredor, muito parecido com os outros
andares que eu já conhecia, porém tinha uma diferença... ele tinha
apenas duas portas. Uma estava fechada e a outra estava aberta
com uma placa sobressalente indicando o nome SSB: Corporation &
Business. Só podia ser ali. Aproveitei que estava sozinha e comecei
a refletirolhando para aquela placa. Repeti o nome mentalmente
algumas vezes... eu já tinha lido isso em algum lugar...
Claro! Esse era o nome do edifício!
Um gelo percorreu a minha espinha, então ouvi uma voz que
vinha de dentro da porta e dizia:
— Pode entrar!
Entrei com uma interrogação em meu rosto: Como ela sabia
que eu estava ali?
— Câmeras, querida! Tudo que se faz aqui é registrado por
câmeras! Eu sou a senhora Macedo — apresentou-se com simpatia.
— Você é a senhorita Andrade, né?
— Não, Sabrina! Será que estou no lugar errado?
— Seu sobrenome, Sabrina, não é Andrade? É assim que será
chamada aqui... o senhor Scheffer prefere dessa forma.
— Senhor quem? Que setor é esse? — perguntei um tanto
incrédula. Não fazia o menor sentido eu estar ali: no escritório dele.
Agora eu entendi o motivo da moça do RH ter quase surtado.
— Senhor Scheffer! Nosso chefe imediato. Aqui é a
presidência...
Como é que eu vim parar aqui?! O “branco de neve”, meu
patrão!!! Será que isso vai funcionar?Olha o jeito que estou vestida!
Aff... estava acostumada com o apoio gráfico, sem frescura. Sem
essa história de senhora, senhorita. De repente me lembrei dele e
da sua acompanhante no evento do Leo...
Como que você olha para o seu patrão tendo a imagem mental
dele transando em um deck?

A senhora Macedo era um amor. Aos poucos ela foi me


mostrando de que forma eu poderia ajudá-la. Sim, a minha função
ali era ajudá-la. Acho que estava pegando o jeito do trabalho, não
era difícil e muitas coisas eu estava vendo na faculdade podia usar
ali, o que me ajudava muito.
Eu já trabalhava ali há um tempo e eu ainda não tinha me
encontrado com o senhor Scheffer. A senhora Macedo me informou
que ele possuía um elevador privativo que dava direito na sala dele.
A semana tinha sido puxada. Eu fiquei trabalhando depois do
horário uns três dias naquela semana. Mesmo a senhora Macedo
tendo me mandado embora diversas vezes. Lembrei da fala da
Juliana e de quanto a empresa estava investindo em mim...
Era uma sexta-feira, já passava das 18 horas, uma moça
muito bonita entrou e falou com a senhora Macedo:
— Sou a Úrsula, da agência.
— Boa noite, Úrsula! Vou avisar a sua chegada! — senhora
Macedo informou enquanto telefonavapara o senhor Scheffer. —
Pode se sentar ali enquanto aguarda. Aceita alguma coisa?
— Água, por favor! — pediu a moça educadamente.
— Senhorita Andrade, por gentileza?!
Fui até a copa e servi a água para a moça. Fiz questão de
levar em uma bandeja, assim eu teria mais tempo para analisá-la.
Ela era realmente muito bonita. Seus olhos eram azuis, tinha
cabelos castanhos escuros, que estavam presos em uma trança,
vestia uma regata de cetim azul-royal e uma saia justíssima, que
terminava um pouco acima dos joelhos. Usava um sapato meia-pata
do mesmo tom que a blusa. Ela terminou de tomar a água,
agradeceu enquanto colocava o copo na bandeja e eu fui para a
copa divagando em meus pensamentos: Quem será? Outra
acompanhante? Será que tem algumevento hoje?Será que eu teria
alguma chance com ele?
Escutei o meu nome e fui ver o que a senhora Macedo queria:
— Senhorita Andrade, vamos? Senhor Scheffer disse que
assume daqui, querida! Na semana que vem continuamos, ok?

No sábado à noite o Leo foicomer uma pizza conosco. Estava


afoito para saber das novidades:
— Sério? Você está trabalhando para o feitor?— perguntou
um tanto incrédulo.
— Sim, mas você não precisa se preocupar... — acalmei-o —
ele é muito reservado e aparece muito pouco. Você acredita que ele
tem um elevador privativo? Que volta e meia aparecem umas moças
lá do nada e o expediente acaba? — comecei a ficar empolgada
com as minhas descobertas.
— Calma, mocinha! — Leo me repreendeu. — Aprenda a ser
discreta com as coisas que vê, não saia por aí contando isso para
qualquer um...
— Você não é qualquer um! — exclamei enquanto sujava o
seu nariz com a nata que estávamos comendo com morangos.
— E a faculdade? Está gostando? — perguntou, querendo
nitidamentemudar de assunto. Era evidente que ele não gostava do
Scheffer e ironicamente eu fui parar direto na sala dele.
— Sim. É bem diferentedo que eu imaginava... uma interação
mínima entre os estudantes...estou até incentivando a tia Nice a
voltar a estudar também...
— Eu já tenho muita sarna pra me coçar, Sabrina! —
respondeu a minha tia retirando as louças da mesa e indo até a
cozinha para lavá-las.

Mais uma semana se inicia. Hoje fui até a Universidade para


tirar umas dúvidas na disciplina “Finanças e Gestão de Recursos”,
depois fui treinar e almoçar no shopping, mesmo assim cheguei um
pouco mais cedo no trabalho. Aproveitei e passei no Apoio Gráfico
para pegar umas impressões que solicitei. Estava organizando
alguns documentos quando escutei o telefonetocar e a senhora
Macedo responder:
— Sim, senhor, ela já irá. Senhorita Andrade! — Ela me
chamou. — O Senhor Scheffer solicita a sua presença na sua sala
agora! Ele pediu os relatórios dos últimos empreendimentos.
Levantei-me, aturdida, da minha mesa, peguei os tais
relatórios que pedi para imprimir e caminhei em direção à porta da
sua sala, que estava sempre fechada. Essa era a primeira vez que
ele me dirigiria diretamente a palavra, pois eu sempre prestava
contas para a senhora Macedo. Bati e não obtive resposta. Bati um
pouquinho mais forte. Nada. Segurei o trinco, abri apenas uma
fresta e escutei:
— Entre, senhorita Andrade — sua voz falando o meu nome,
quer dizer, meu sobrenome, fazia-me sentir outra pessoa.
— Estão aqui — falei rápido e estiquei o maço de folhas em
sua direção.
Eu fiquei com o braço esticado enquanto ele me analisava de
cima a baixo. Escutei-o balbuciar:
— Muita cor! — pegou os documentos e perguntou: — Esse é
o primeiro relatório que faz?
— Desse tipo sim — lembrei-me dos relatórios que tinha feito
na escola, mas acho que esses não contavam.
— Excelente trabalho! As tabelas foram bem elucidativas,
pouparam-me tempo.
— Obrigada! — ousei agradecer.
Ele voltou os seus olhos para o computador, pegou o telefone,
apertou os números e eu entendi que a minha presença não era
mais necessária. Pedi licença, o que não fez a menor diferença, e
saí. Fiquei intrigada com a frase: “Muita cor!”. O que significava
isso? Era para mim? Observei-me em um dos muitos espelhos que
tinha ali e cheguei a conclusão que sim, poderia ser que eu
estivesse com muita cor mesmo. Usava uma blusa de flores
estampadas, com predominância de rosa e verde, minha calça era
marrom, de uma tonalidade que também tinha na minha blusa, e
usava uma sapatilha dourada, que eu tinha a impressão de que
combinava com tudo.
Observei a senhora Macedo, uma mulher de uns 50 anos que
estava um pouco acima de seu peso, porém sempre elegante. Ela
usava uma camisa branca de um tecido parcialmente transparente,
saia preta e sapato de salto médio preto. Olhei ao redor: muito
branco, preto, um pouco de vermelho, espelhos e vidros. Isso
refletiano prédio todo. No prédio dele. Era como se me sentisse
invadida por ele em qualquer lugar daquele prédio. Percebi que se
quisesse continuar trabalhando ali, eu precisava me incluir, fazer
parte, pertencer ao mundo dele.
Capítulo 21
A minha nova rotina tinha se estabelecido: estudava pela
manhã, passava na academia, almoçava no salão, ou no shopping,
ia trabalhar, três vezes na semana eu ia à autoescola e as noites
que sobravam eu ajudava no salão. Já estava habituada com as
minhas responsabilidades no trabalho. Pelo que eu entendia, estava
ganhando a confiança do senhor Scheffer, que estava entregando
documentos mais complexos para eu fazer , analisar e organizar.
Estava ainda tentandoagradá-lo no quesito roupa. Na dúvida,
hoje vim completamentevestida de preto. Preto é básico. Não tem
como errar.
— Senhorita Andrade, o senhor Scheffer lhe espera — era a
voz da senhora Macedo.
— Estou indo, obrigada! — respondi pensando que seria mais
fácil se ele ligasse direto para mim. Cheguei a suspirar com essa
possibilidade.
Já sabia que não adiantava bater, bastava abrir a porta e
escutar: “Pode entrar, senhorita Andrade!”
— Em que posso ajudá-lo? — Senhor, você não imaginade
quantas formas diferenteseu gostaria de ajudá-lo . Acho que fiquei
corada após este pensamento.
— Venha aqui! — Ele me chamou para mais perto. — Olhe
essa planilha.
Tive que dar a volta em sua mesa e ficar curvada atrás dele
para poder olhar o que me mostrava. Inspirei e senti o seu cheiro,
pude ver a cor negra dos seus cabelos bem de perto, os furinhos
feitos pela barba que estava querendo nascer ...
— Por que esses valores aqui não batem com a planilha
anterior? — o senhor Scheffer me perguntou, chamando-me para a
realidade.
— Eu negociei os materiais e tivemos um desconto. O valor foi
de 5% a menos no valor total da compra — respondi receosa se o
que fiz estava correto ou não.
— Entendo. Agora entendo — meu chefe falou reticente.—
Foi uma decisão arriscada, porém acertada, senhorita Andrade.
Já estava me retirando da sua sala, pois sabia que as nossas
conversas eram curtas e objetivas, quando a sua voz chamou a
minha atenção novamente:
— Devo cumprimentá-la por algum luto?
— Como?! Hãã... — dei-me conta que estava se divertindo
novamente com a escolha da roupa que eu fizera.Muito atrevimento
de sua parte. — Sim! Minha avó faleceu — falei fazendo uma cara
triste. Queria desconsertá-lo também.
Ele fechou o rosto, fez menção que iria me cumprimentar,
mas,para a minha surpresa, disse:
— Senhorita Andrade, isso já faz mais de um ano...
— Sim! — levei um susto, mas queria me manter firme até o
fim. — Tem dias que isso ainda me afeta!
— Estimo que supere isso! — sua voz era confusa.
— Obrigada! Posso ajudá-lo em mais alguma coisa? — senti
um duplo sentido em minha voz.
— Não! Por hoje foi o suficiente. Obrigada!
Saí daquela sala confusa. Uma vontade imensa de gargalhar,
mas não podia fazê-lo por conta das câmeras, então eu gargalhava
por dentro. Como ele sabia que fazia mais de um ano que a minha
avó faleceu? Não consegui perder a piada interna que fazia por
conta da minha roupa preta. Isso fez com que revelasse que em
algum momento tinha pesquisado sobre a minha vida. Imagino que
um homem poderoso como ele precisa saber quem o cercava, mas
essa informaçãofez com que algumas borboletas em minha barriga
fossem bater as asas um pouquinho mais para baixo.

Naquela noite, o meu banho foi especial. Enquanto recordava


o cheiro do seu colarinho, lembrava de cada um dos furinhosde sua
barba mal feita. Imaginava o que aquele terno preto muito bem
alinhado escondia. Deixei a água escorrer e imaginava que eram as
suas mãos. Fiquei extremamente excitada e me masturbei numa
tentativade extravasar a tensão que sentia. Ele era um homem
intenso, seguro e estava descobrindo nele um senso de humor sutil,
que me encantava cada dia mais. Principalmente porque eu era o
motivo da piada. De alguma forma ele prestava atenção em mim.

Aos poucos fui entendendo como a relação dele com o Leo


funcionava: o senhor Scheffer comprava o terreno, sua equipe
pensava e elaborava o projeto e as corretoras, inclusive a do Leo,
vendiam o empreendimento. As tarefaseram muito bem definidas.
Os dois estavam trabalhando agora no lançamento de um
condomínio de luxo. Pelo que eu estava entendo do que o Leo
contava e do que via no escritório, este era dotado de um novo
conceito. Era acompanhado de uma infraestruturacompleta, que
permitia, se o morador assim desejasse, usufruirdo conforto de uma
cidade toda sem sair dos arredores de sua casa.
O Leo estava empolgadíssimo. Eu já esperava que poderia
surgir um convite:
— Sabrina, venha comigo ao lançamento? — convidou em
uma voz pidona.
— Leo, você sabe que não curto muito esses eventos —
respondi fazendo um charminho, mas sabendo exatamente o que eu
queria e sabendo que o senhor Scheffer estaria lá. — Eu escolho o
vestido sozinha desta vez! — negociei fazendo uma expressão de
xeque-mate.
O Leo sempre me ajudava com a escolha dos vestidos. Eles
eram lindos, porém angelicais e que serviriam para um baile de
formatura, para uma debutante... só que eu queria, pelo menos
desta vez, ir de mulher. Uma mulher fatal. Ele olhou para mim,
pensou e respondeu, relutante:
— A Nice te ajuda então, pode ser?
— Certo! — estiquei a mão para ele consentindo. — E... eu
pago — encerrei a conversa irredutível, mesmo sabendo que seria
difícil de isso acontecer
.

Notei que a senhora Macedo negociava ao telefone:


— Sim, a Monique. Peça para que se dirija ao salão Tonniton,
lá encontrará uma pessoa que estará com o vestido e cuidará dos
outros detalhes também. Ela precisa estar lá às 15h, caso seja
preciso algum ajuste. O senhor Scheffer passará lá às 19h para
buscá-la. Isso, a cor de sempre.
O salão Tonniton, pelo que eu sabia, prestava o serviço
completo. Possuía trajes para todas as modalidades de eventos, um
salão de beleza em anexo, sem contar o SPA que oferecia. Fiquei
com ciúmes de ouvir aquela conversa. Eu sabia qual era a cor de
sempre: vermelho. Fiquei tentada a fazer um telefonema.Só um. O
jantar seria no dia seguinte e como trabalharei de tarde, já tive que
começar a minha produção hoje. Saí do trabalho e fui para o salão
fazer as unhas, lavar e escovar os cabelos. Deixei o penteado e a
maquiagem para fazer um pouco antes do evento.
Enquanto esperava a Pâmela terminar um corte, olhei para o
celular e aquela tentação me provocou novamente. Pesquisei:
“salão Tonniton”, um número saltou aos meus olhos. Apertei em
ligar. Uma moça atendeu. Eu me identifiqueicomo Monique, disse
que queria confirmar o horário e que gostaria de mudar a cor do
vestido para azul. Pedi também para providenciar uma gravata da
mesma cor para o meu acompanhante, depois agradeci e desliguei.
Sabia que aquilo era errado, mas eu estava decidida a usar todas as
armas que eu tinha para conquistar aquele feitor .
Estava muito ansiosa naquele dia, afinal de contas, esta noite
teríamos um jantar de gala. Eu não consegui almoçar devido a
correria com os ajustes do vestido. Estava sentada na frentedo
computador, devorando uma caixa de chocolates, enquanto digitava
um contrato.Senti aquela sensação de estar sendo observada. Ergo
os olhos e percebo o senhor Scheffer parado na frenteda minha
mesa, bem na hora que eu dou uma mordida em mais um
chocolate. Olho para ele, estarrecida e ofereço:
— Aceita? — estico a caixa de chocolates.
— Não, obrigado! Isso está riscado da minha lista nutricional e
poderia ser riscado da sua também — respondeu-me um tanto
intrometido. — A propósito: você pode usar a copa para se
alimentar, não precisa se envenenar enquanto trabalha —
respondeu antipático. Ele devia odiar chocolate mesmo.
— Sim, eu sei... — consenti — desculpe, isso não irá
acontecer novamente — disse guardando a caixa de bombons em
minha gaveta e só agora me dando conta do quanto eu comi.
Ele já estava saindo. Eu ia começar a respirar novamente,
quando ele falou:
— Perfeitas!— olhei para ele sem entender e ele continuou:
— Suas unhas estão perfeitas...
Olhei para as minhas unhas vermelhas. Dei uma risadinha e
agradeci, mas ele já estava muito longe para ouvir.
Capítulo 22
Às 18h30, Leo passou no salão para me buscar. Por sorte o
senhor Scheffer nos liberou um pouco mais cedo hoje, caso
contrário não daria tempo de me arrumar em casa. Dei um jeito de
treinar um pouco e tomei banho na academia. Coloquei o meu
vestido novo. Tia Nice arrumou o meu cabelo em uma trança fofa
que ia aos poucos ficando bagunçada, apesar de estar bem presa.
Fez a maquiagem caprichando em um batom vermelho muito bem
desenhado em meus lábios. Eu estava nervosa à espera de Leo.
Queria ver a cara dele quando visse o vestido que eu escolhi, com
totalaprovação da tia Nice, é claro, que admitiu que eu ficaria muito
bem de vermelho.
De vez em quando eu sentia um remorso ao me lembrar que a
Monique, que eu nem conhecia, talvez tivesse que enfrentarum
senhor Scheffer bem raivoso, porque a sua acompanhante não
estava vestida a contentopara ele. Será que ele iria rejeitá-la? Iria
fazercom que trocasse de roupa em cima da hora? Brigaria com ela
ou com a senhora Macedo? Implorava em meu íntimo para que
nenhuma das duas fosse prejudicada pela minha pequena
interferência.
O local escolhido era fantástico.Colunas iluminadas com luzes
azuis adornavam a entrada. Tinha um pé direito bem alto. Algumas
faixas de tecido branco cortavam o tetoe caíam nas laterais como
se fossem cortinas medievais igualmente iluminadas. As mesas
eram redondas com toalhas floridas em um tom de ouro
envelhecido. Ao centro, arranjos de flores amarelas bem pequenas
e fartas.
O protocolo era muito parecido nesses eventos: o senhor
Scheffer fala do histórico, dificuldades e conquistas com o novo
empreendimento; o senhor Velazquez apresenta o condomínio e a
sua infraestrutura; começa o jantar, um pouco de dança, sorrisos
engessados para todos os cantos e fim. Só que neste evento em
específico aconteceram algumas coisas peculiares.
A primeira coisa foi a reação do Leo quando me viu. Ele não
brigou comigo, muito menos com a tia Nice. Chegou ao salão com
uma expressão de tábua, mal cumprimentou as pessoas. Eu sabia
que estava linda! Só que de uma forma diferentedaquela que ele
costumava me ver, que na verdade ele queria que eu transmitisse
aos outros. Eu parecia mais mulher do que menina.
O vestido que escolhemos era de cetim vermelho, a saia
rodada com algumas pregas era bem comportada. Na parte de cima
o busto era bem marcado, as mangas caíam ligeiramente para os
braços e acentuava o meio dos meus seios. Na parte das costas
havia um decote que ia até o centro. Ambos os lados estavam
presos por pequenos botões esféricos encapados com o mesmo
tecido do restantedo vestido. O que exigia um pouco de paciência
para quem quer que fossetirá-lo. Leo me olhou com uma expressão
que não me enganava. Era como se ele dissesse: “Mana, você me
enganou direitinho!”.As únicas palavras que saíram da sua boca
foram:
— Ficou bem em você! — disse muito contrariado ao olhar
para o meu batom igualmente vermelho.
A outra coisa que gostaria de destacar foi a chegada do meu
chefe. Quando chegou, eu estava na mesa conversando com uma
advogada que era conhecida do Leo, e que estava interessada em
uma unidade do condomínio. Ele estava acompanhado de quem eu
imaginava ser Monique, pois estava de vestido azul-marinho. Seu
terno era grafitede três peças. A camisa era cinza-clara, quase
podia ser confundida com branco, a gravata azul que eu
encomendara para ele e um lenço vermelho na lapela. Ao passar
por nossa mesa, parou, olhou nos meus olhos, depois olhou para os
meus lábios e fez um gesto como se me cumprimentasse com a
cabeça, em seguida foi para o seu lugar. Respondi da mesma
forma. Monique era uma moça muito bonita. Ruiva de olhos verdes,
com o corpo bem torneado e valorizado por aquele vestido azul.
Não que eu queira justificara minha atitude, mas ela ficou bem
melhor de azul do que ficaria de vermelho.
Geralmente esses jantares são chatos, mas nesse aconteceu
uma coisa no mínimo interessante: o DJ ousou colocando uma
música do Wesley Safadão, chamadaCamarote. Para a surpresa de
todos, o salão encheu e vários casais começaram a dançar
animados. Eu estava praticamente sozinha na mesa. Sacudia o
corpo animada no embalo da música. Leo apareceu e me tirou para
dançar. Fiquei meio relutante, mas ele garantiu que era só eu o
acompanhar. Tive a impressão de que o seu único objetivo era não
me deixar sozinha na mesa. Ali eu seria alvo fácil dos homens
devoradores de mulheres inocentescomo eu. Com o salão cheio, as
músicas animadas continuaram. Leo não me largou nem por um
único minuto. Estava estranhando muito aquela reação dele.
Enquanto circulávamos pelo salão, eu aproveitava para observar o
que Scheffer e Monique faziam. Ele estava em uma roda de
conversa com alguns investidores que o Leo já tinha me
apresentado. Ela estava sentada entediada na mesa brincando com
o guardanapo de tecido. Será que ele a estava punindo pela troca
de vestido? Ou ele realmente precisava tratarde negócios? Ao olhar
para a cara dela, eu me sentia culpada pelo que fizera. Isso nunca
mais poderia se repetir.

Na segunda-feira estava receosa de ir trabalhar. Ficava


imaginando qual seria a reação do meu chefe em relação ao jantar
de sexta-feira. Para a minha surpresa ele fingiu que nada
aconteceu. Não fez nenhuma menção a termos nos encontrado,
apesar de nós termos nos cumprimentado, mesmo que
discretamente.Tentei pegar alguma coisa no ar sobre a troca da cor
do vestido com a senhora Macedo, mas também não consegui
descobrir nada. Melhor assim, tudo parecia estar normal.

Leonardo Velazquez

Mais ou menos às cinco e meia da manhã de segunda-feira


senti o meu celular vibrar. Olhei no visor: Feitor. “Que diabos esse
merda quer de mim uma hora dessas?”. Visualizei a mensagem:
Feitor: Venha antes. Passe aqui.

Não respondi. Eu nunca respondia, mas sempre acabava


fazendo o que o cara me pedia.
Cheguei ao escritório dele às 7h. Eu imaginava que Scheffer
queria conversar comigo sobre o evento de sexta-feira.A meu ver, o
lançamentotinha sido um sucesso e eu precisava guardar o contato
daquele DJ, nunca imaginei que pessoas podre de ricaspoderiam
gostar tanto de músicapopular. Estava muito cedo, sua secretária
ainda não chegara. Entrei direto, o caminho da sua sala já era uma
rotina para mim. Apesar de fazermos negócios juntos há muito
tempo, não éramos amigos. Todas as nossas conversas tinham um
cunho exclusivamente profissional. A porta estava aberta. Ele já
estava pilhado, com um monte de papéis espalhados em sua mesa,
dando a impressão de que dormira muito pouco naquela noite. Ele
fez um sinal com a cabeça indicando a cadeira à minha frente.
Sentei e aguardei qual seria a boa daquele dia. Sem ao menos me
cumprimentar ele disparou:
— Que diabos você fazia com a minha estagiária naquele
lançamento? — Ele estava quase bufando na minha frente.
— Minha irmã. Ela já tinha me acompanhado outras vezes...
— respondi um tanto bobo com o comentário.
— Sem essa, Velazquez! Nós dois sabemos direitinho onde
está a sua irmã — retrucou, irônico.
— Sabrina é uma amiga muito próxima. Realmente a
considero como uma irmã — expliquei mesmo sem precisar.
— Eu quero que ela me acompanhe em um jantar —
confessou. — Ela trabalha para alguma agência?
— Você trabalha com ela, Scheffer. Faça o convite! —
incentivei. — Não, sem agências. Nem todas as mulheres bonitas
trabalham para agências... — respondi meio seco, com vontade de
dar um murro na cara daquele sacana.
— Você sabe que eu não funciono assim... para mim tudo não
passa de negócios, inclusive encontros, se é que você me entende
— Scheffer respondeu envaidecido com um sorriso cínico nos
lábios,como se aquilo fossealguma vantagem. — Ainda se ressente
comigo pelo que houve? Cara, você sabe... eu não tive nada a ver
com aquilo... nem estava lá...
Scheffer se referia ao assassinato da Brenda, minha irmã
legítima. Realmente ele não estava lá, mas foi por ele que ela se
apaixonou. Ele mostrou para ela o quanto o dinheiro poderia trazer
felicidade. Em minha opinião ele foi seu algoz sim. Ela estava cega.
Apaixonada por ele e por todo o confortoque estava acostumada a
desfrutar. Ele não estava lá, mas foi o ponto de partida., trilhou o
caminho dela na hora que contratou o seu primeiro programa.
Agora a história parecia se repetir. Maldito vestido vermelho.
Que tara é essa por vermelho que este doente tinha? Vou enrolá-lo
com a história de convidar Sabrina, assim eu ganho tempo até
pensar em uma saída que deixem a todos satisfeitos e vivos.
Saí do seu escritório do jeito que entrei, sem a menor cortesia
do anfitrião.Ele ficou muito puto, mas expliquei que não podia fazer
nada, que pensaria em uma solução e qualquer coisa avisava. Isso
deixou-o um pouco mais calmo, porém eu sentia calafrios só de
pensar na reação de Sabrina se soubesse da nossa conversa. Eu
sabia que ele tinha um poder de hipnotizar as mulheres. Seria ela
mais uma a se encantar com ele e se sujeitar a tal proposta? E
depois? Conseguiria conviver com ele diariamente sabendo que a
sua única noite já tinha passado? Ela teria estruturapara lidar com
isso?
Eu não queria ser pessimista, mas o conhecia e sabia que era
um homem de uma noite só, então não queria ver a minha amiga
sendo usada e jogada fora por ele.
Outra coisa que sabia sobre ele é que não desistia e sempre
conseguia o que queria, não importando o preço que isso custasse
ou o tempo que levasse.
Capítulo 23
Já tinha se passado um mês desde a minha conversa com
Scheffer sobre o “encontro” com Sabrina. Cada vez que
conversávamos, ele tocava no assunto. Essas conversas estavam
atrapalhando a nossa parceria profissional, a única coisa que
funcionava entre nós. O filho da puta queria que eu fosse o cafetão
da minha própria irmã. Sim, irmã. Eu sentia cada dia mais que ela
era a minha irmã. Bem no fundo, eu sentia que isso tudo não tinha
nada a ver com a Sabrina, mas sim comigo e Brenda. Scheffer
queria me provar alguma coisa, me desafiar... e eu precisava ser
mais esperto do que ele. E a Sabrina precisava ser mais racional e
sensata do que a Brenda foi.
Quando nos encontrávamos nos finaisde semana, ela contava
trivialidades sobre o trabalho, a faculdade e Scheffer. Eu percebia
que ele estava sempre presente em seus relatos. Pelo que falava,
ele estava insaciável. Quase que diariamente circulavam pelo seu
escritório ruivas, morenas, loiras e mulatas. Esse cara só podia ter
algum problema... fazia isso e o que ele queria estava ali, na frente
dele, a sua inteira disposição para o meu desespero.
Eu sentia que Sabrina já estava apaixonada. Era só ele falar
uma palavra e ela estaria em seu colo, mas ele não falava. Ou
melhor, ele falava comigo. Infernizava-me, torturava-me. Queria o
meu consentimento para foder a Sabrina. Se alguma coisa saísse
errado eu seria igualmente responsável.

Naquela manhã de quinta-feiraeu estava conversando com


Haroldo, meu advogado. Quando ele falou a palavra contrato, uma
ideia brilhou em minha mente:
— Haroldo?! Você já fezalgum tipo de contrato...contrato...—
como eu iria explicar aquilo para ele? — contrato para dama de
companhia? — tentei suavizar a situação.
— Que está havendo, Velazquez?! — questionou. — Você
precisa confiar em mim para eu saber exatamentedo que você está
falando.
Abri o jogo. Não era segredo para ninguém naquele prédio que
Scheffer só comia mulher paga. Pedi para Haroldo incluir no
contratoalgumas restrições e um tempo, pois assim Sabrina não
seria descartada de primeira e teria tempo de perceber o quão cruel
ele poderia ser... se é que ela já não sabia. Solicitei também a
menção a uma multa bem generosa se acaso ele descumprisse os
termos do contrato.
Por via das dúvidas, queria conversar com ela, sabia que
aceitaria sair com ele, mas não da forma que estava acontecendo,
ela nem imaginava o que estava por vir e seria justamente eu que
teria que contar isso para ela. Mandei mensagem em seu celular:

Você: Precisofalarcom você e Nice. Posso comer uma pizzacom


vocês após o expediente?
Mana: Bom dia, Leo! T
udo bem com você?
Mana: Eu estou bem, obrigada!
Mana: Preciso ver com titia, mas acho que não tem problema.
Você: Emojis de carinha de vergonha; carinha rindo e suando;
piscadinha e piscadinha com beijo.

O dia estava se arrastando. Meu coração palpitava só de


pensar na conversa que teríamos. Repassei inúmeras vezes a
minha fala enquanto esperava as duas voltarem do trabalho em
frente a sua casa.
Assim que entrei na garagem, cumprimentei-as. Escolhemos
as pizzas e sugeri que tomassem um banho enquanto eu fazia o
pedido e arrumava a mesa. Eu fazia as coisas de forma mecânica,
ia ensaiando mentalmentecomo começaria aquela conversa. Não
queria que Sabrina ficasse feliz com o convite e um segundo depois
desmoronasse de tristeza por ser rejeitada no dia seguinte.
Comemos e limpamos a bagunça. Percebi que elas se olhavam e
olhavam para mim com pontos de interrogação nos olhos. Eu
sempre oferecia comida a elas quando queria conversar. Pedi que
se sentassem. Acharam melhor que a “conversa” fosse na sala.
Comecei:
— Sabrina. Nice... — olhei para cada uma no instanteem que
falei o nome — a Sabrina recebeu um convite.
As duas se olharam e sorriram, como se eu fossefalarde uma
grande oportunidade.
— Sabe esses eventos que às vezes você vai comigo,
Sabrina? — fui entregando o jogo aos poucos. — Então, o Scheffer
quer que você o acompanhe um dia desses. Talvez amanhã...
— Sério?! — Ela respondeu, curiosa. — E por que ele mesmo
não me convidou?
— Imagino que você saiba o porquê. Ele só sai com mulheres
pagas... — respondi lamentando.
Foi a vez de Nice falar:
— Peraí! Ele vai pagar para Sabrina acompanhá-lo?
— É isso ou nada. Ele não faz de outro jeito... — informei
— Mas e depois? A Sabrina vai ter que transar com ele?
Leonardo, ele quer um programa com a minha sobrinha?! É isso que
está sendo discutido aqui?! — questionou Nice, angustiada,
aumentando a voz a cada palavra que pronunciava.
Olhei para Sabrina, que estava pensativa. Ela prestava
atençãoem minha conversa com Nice e ainda não falaranada... até
que declarou:
— Desculpe, tia... sinto muito, Leo...mas eu vou — falou
decidida. — Eu preciso ir. Preciso me libertar da imagem dele que
construí. Preciso provar e ser abandonada para saber o que aquelas
inúmeras moças passam diariamente nas mãos dele, e me libertar
do ideal que criei para conhecê-lo de verdade.
— Sabrina! Você vai sofrer... — era Nice tentandoproteger a
sobrinha.
— Sofrerei de qualquer jeito, pode ter certeza, tia — olhou
para Nice e continuou: — Uma vez você me disse que precisamos
provar algumas coisas para deixá-las irem.
Olhei com cara de assustado para as duas sem saber do que
se tratava. Sabrina prosseguiu:
— Os dois me alertaram que talvez eu recebesse propostas —
olhou para mim — e que talvez eu tivesse que fazer coisas que não
concordasse e coisas que não gostasse — agora ela olhou para a
tia. — Eu preciso fazer isso. Preciso ver até onde consigo ir, até
onde eu quero ir. Sei que não estou sozinha. Vocês dois cuidam
muito bem de mim. Isso me traz uma sensação de segurança —
parou um pouco de falar, pigarreou e prosseguiu: — Agora eu
preciso da confiança de vocês em mim e que acreditem que eu
posso fazer isso.
Eu não gostava do Scheffer. Melhor, eu odiavao Scheffer. Eu
amava Sabrina desde a primeira vez em que conversamos e ela
ficou sem jeito de observar o meu copo sob uma regata branca.
Levei um tempo para demonstrá-la o tipo de amor que eu estava
falando.Amor de amigo, amor de irmão. Sei que posso confiarnela,
mas não posso confiar em seus hormônios. Tenho náuseas só de
imaginar quando os seus hormônios se encontrarem com os do
Scheffer.
Não falei para elas do contrato. Soltei as informações aos
poucos... tudo que estou fazendo para protegê-la.
Quando cheguei ao escritório no dia seguinte, Haroldo já me
esperava com o contrato feito.Li e cheguei à conclusão de que
estava perfeito. Orientei que procurasse Scheffer às 16h. Eu sabia
que ele tinha uma reunião por esse horário. Provavelmente,
ansioso, assinaria sem ver. Receberia uma cópia e quando lesse já
era tarde: Haroldo já teria registrado em cartório. Orientei-o inclusive
nas palavras que iria dizer: “Scheffer, seu negociador do caralho...
conseguiu arrebatar mais uma joia no leilão...”. Disse-lhe que
explicasse do que se tratava. Meu objetivo era inflar o ego dele até
que assinasse e depois ele estaria na palma de nossas mãos.
Não deu tempo nem de Haroldo voltar e eu já recebi um
telefonema de Schef fer:
— Amanhã — respondeu, aflito.— Quero-a amanhã. Diga a
ela que se arrume no Tonniton e eu a pegarei lá às 18h.
— Sinto muito, Scheffer — informei, indiferente.— Sabrina
não é qualquer uma. Não se arruma em qualquer lugar.
Providenciaremos que esteja pronta às 18h no saguão do shopping.
Será mais fácil até para pegá-la, inclusive.
— O que é isso, Velazquez? Ficou doido? Que história é essa
de mudar as minhas regras? —Ele estava extremamente
descontrolado.
— No momento em que quis me envolver e envolver a minha
família em sua sujeira — fiz uma pausa e olhei no celular uma
mensagem de Haroldo informando que o contratoestava registrado
— você me autorizou a dar alguns pitacos em suas negociações.
— Vá se ferrar, Velazquez... — bufou do outro lado — quero
ela vestida de vermelho!
— Sinto muito, Scheffer!Sabrina usou vermelho em seu último
evento... — Eu provoquei ainda mais — não costuma repetir a cor
do vestido. Ela usará verde-esmeralda desta vez. Não se preocupe
que lhe enviaremos um relatório com as despesas...
Ele desligou o telefonena minha cara. Isso não me espantava,
o cara é um bronco mesmo. Em seguida, mandei uma mensagem
para Sabrina:

Você: Boa tarde!


Você: Amanhã à noite você tem um compromisso às 18h. Vestirá
verde-esmeralda. Hoje no finalda tarde iremos comprar o que
precisa.
Você: Emoji de carinha piscando mandando beijo.
Mana: muitos emojis:pânico, susto, desespero, sem palavras,
suando frio
Mana: Beleza, obrigada por informar
.
Mana: Até depois. Emoji de carinha piscando e mandando beijo.
Capítulo 24
Sabrina Souza de Andrade
Olhei para a mensagem de Leo e não podia acreditar que isso
estava realmente acontecendo. O senhor Scheffer não era normal.
Achei muito dissimulado da parte dele negociar uma noite comigo
com o Leo e em nenhum momento me dirigir a palavra a respeito.
Era como se tivesse duas personalidades. Tudo aqui acontecia
como sempre aconteceu: quando precisava falar comigo, pedia a
senhora Macedo que me chamasse. Parecia que sempre precisava
de alguém intermediando, mas ele conseguia ligar para a senhora
Macedo... não tinha ninguém que ligasse para ela...
Chega! Essa história ainda vai acabar me deixando maluca.
Olhei para o escritório. Fiz uma imagem panorâmica em minha
mente. E se essa fosse a última vez que eu estivesse vendo-o? E se
na segunda-feira o Leo recebesse uma ligação do senhor Scheffer
dizendo que não precisaria mais dos meus serviços? De nenhum
dos meus serviços? Tive vontade de voltar atrás e desistir... deixar
tudo como está... mas será que o senhor Schef fer permitiria isso?
Parei de divagar quando uma mulata muito bonita chegou na
recepção e foi atendida, como de costume, pela senhora Macedo:
— Senhorita Bianca, o senhor Scheffer está em uma reunião.
Não se preocupe, a senhorita não será prejudicada por isso. Deseja
alguma coisa? — ofereceu, educada.
— Não obrigada!
Fiquei atônitaao observar o que estava acontecendo: o cara
tinha acabado de me contratarpara sair com ele no dia seguinte, e
daqui a pouco iria transar aquela mulata linda. Tive que me segurar
para não ir lá conversar com ela e pedir umas dicas de como as
coisas funcionam "nessa profissão". Fiquei encarando-a de onde eu
estava e ela não tinha uma cara de sofrida,ou coisa do tipo. Se eu a
encontrasse na rua poderia confundi-la com uma executiva, uma
advogada ou simplesmente uma mãe que está indo buscar o filho
na escola. Apesar de eu saber o que ela faria ali, isso não estava
escrito em sua testa.
De repente comecei a pensar na parte operacional da coisa.
Eu já entrara na sala dele inúmeras vezes. O que tinha lá? Uma
mesa cheia de coisas, duas poltronas e uma mesa de centro, um
tapetee um banheiro, que eu não sabia se tinha chuveiro, porque lá
eu nunca tinha entrado. Onde ele... ele... consumava tudo? Os
encontros, pelo que eu sabia, ocorriam ali. Fui invadida por uma
calma, seguida de uma aflição,ao pensar que talvez no sábado eu
saberia exatamentecomo e onde as coisas aconteciam...

Nesta sexta-feiranão treinamos. Leo ficou com medo que não


desse tempo de comprarmos tudo que precisávamos. Começamos
com o vestido. Ele sempre foi muito generoso com os vestidos que
me dava, mas dessa vez parecia que estava em seu dia de
desapego. Eu não fazia a menor ideia porque ele fazia isso para eu
acompanhar outro homem, era meio estranho.
Quando entramos na terceira loja de vestidos, ele falou:
— Precisamos de um vestido verde-esmeralda longo, muito
bem delineado no corpo da nossa Sabrina aqui — olhou para mim
dando um sorriso. — E com o colo à mostra, de preferência um
tomara que caia.
Olhei assustada para ele. Definitivamente ele estava
preparando um banquete para o Scheffer? Ele sempre foi tão
protetor... resistiu tanto para que eu aceitasse esse “encontro” e
agora estava indo contra tudo que eu tinha entendido que gostava
em se tratando de escolher vestidos para mim.
A moça veio com uma única peça. Parecia que ele já estivera
ali encomendando previamente... o vestido era muito mais bonito do
que eu imaginara. Era tudo aquilo que o Leo faloue mais um pouco.
Era feitode renda rebordada. Os bordados eram mais fartos até um
pouco abaixo da linha do quadril, e a partir daí ficavam mais
espalhados, até que chegassem à barra que tinha uma discreta
abertura vertical e mostrava um pouco das minhas pernas enquanto
andava. Provei-o e ele se ajustou como uma luva em meu corpo.
Fomos atrás de uma sandália também. Eu queria usar uma
prateada que tinha em casa, mas Leo foi irredutível. Para a nossa
sorte encontramos uma sandália alta com uma única tira horizontal
que dava uma estabilidade segurando todos os dedos. Possuía uma
tira no calcanhar com adornos e pedras discretas, que pendiam
sobre o peito do pé fazendo-me sentir esbanjando sensualidade.
Compramos também uma bolsa, que combinava com a sandália. Eu
já estava muito cansada. Olhei para o Leo e falei:
— Pronto! Agora podemos ir? Estou morrendo de fome... —
implorei.
— Só faltauma coisa. Quer parar e fazer um lanche antes de
terminarmos? — ofereceu-me.
— Seria ótimo! — respondi, agarrando-me a esta
possibilidade, pois não sabia quanto tempo aquilo ainda duraria.
Enquanto lanchávamos aproveitei para investigar:
— Leo, por que verde? A cor preferidado senhor Scheffer não
é vermelha?
— Curioso isso, né, Sabrina! Acho que alguma coisa está
fazendo Scheffer mudar as suas preferências... — respondeu-me
um tanto irônico.
Após terminarmos o nosso lanche, fomos para o nosso último
item da lista. Leo não quis me contar o que era. Paramos em frente
a uma joalheria. Ele olhou a vitrine, segurou em minha mão e me
puxou para dentro. Novamente senti aqueles olhares: “Que casal
bonito!” e tive a impressão de que ele adorava aquela brincadeira
tanto quanto eu. A moça da joalheria perguntou:
— Procuram algo específico? — Ela perguntou ora olhando
para mim, ora olhando para Leo.
— Esmeraldas! — declarou ele deixando a moça boquiaberta.
— Você enlouqueceu?! — questionei-o.
— Não se preocupe, Sabrina, estamos dentro do orçamento.
Para Scheffer o que estamos gastando hoje não equivale a uma
única gotinha de água no oceano. Você vai ver como ele pode ser
muito generoso. — Ele explicou em meu ouvido.
Escolhemos um colar de ouro branco. Tinha um pingente de
esmeralda em forma de gota. O contorno do colar era de pequenos
diamantes. Para combinar, pegamos brincos que completavam o
conjunto. Saí de perto quando o Leo pagou as joias à vista. Acho
que nem se eu juntasse tudo o que eu tinha conseguiria comprar
peças como estas. Após o pagamento, ele pegou a sacola, deu um
beijo na minha testa, entregando-me tudo, e falou:
— Obrigada, querida! Cinco meses de namoro só se faz uma
vez na vida e você fez valer cada segundo!
Foi inevitável gargalhar olhando para a expressão das
vendedoras nos observando como se fôssemos um casal
apaixonado.

Eu estava com muitas coisas da faculdade para fazer. O


tempo que tinha destinando pela manhã para estudar não estava
sendo o suficiente,precisando estudar algumas noites também. Na
semana passada, tive menos tempo. Na quinta-feirapassada o Leo
veio me contar “a novidade”, e ontem fomos às compras. Preciso
adiantar alguma coisa, pois não sei que horas estarei em casa, ou
quando estarei em casa novamente. Lembrei de todos aqueles
romances hot que eu lia e não lembrava de nenhuma situação
parecida com essa que eu estava passando.
Mil e uma coisas passavam pela minha mente. O que esse
homem pretendia fazer comigo? Como irei encará-lo na segunda-
feira? Será que eu vou encará-lona segunda-feira?Confesso que
sempre me senti atraída por ele, mas as condições que me foram
apresentadas tiraram um pouco do encanto.
Ele me queria como uma puta. Uma puta de luxo, conforme
dizia tia Nice. E eu prontamenteaceitei me vender para ele por um
preço que nem sei quanto era. Senti-me completamentedescartável
e agora já era tarde para dar razão às preocupações de Leo e tia
Nice. Não, eu iria até o fim. Estava pagando para ver. A imagem
dele com a acompanhante no deck veio à minha mente... e fiquei
excitada. Era isso que eu queria: “A degustação e o prato principal”.

Quando parei em frentea um espelho de corpo inteiro que


tinha no salão, não podia imaginar como poderia estar tão linda. Era
perfeito. Milimetricamente perfeito. Cada detalhe do meu traje
parecia ter sido feito exclusivamente para mim.
Leo fez questão de me levar até o senhor Scheffer. Eu não
sabia o que pensar de Leo. Seria um cupido ou um cafetão?Estaria
ele ganhando algum benefício sobre mim? Qual era o seu real
interesse nisso? Meus pensamentos simplesmente congelaram
quando o observei me aguardando dentro de uma BMW preta
reluzente. Era o carro mais lindo que eu já tinha visto em toda a
minha vida. Foi bom que Leo estivesse ali comigo, precisei de apoio
e não era só apoio moral. A calma de Leo era inversamente
proporcional à minha. Ele abriu a porta do carro e, como uma águia
que empurra o filhotepara fora do ninho, ele me impulsionou para
dentro e fechou a porta. Curvou-se na janela aberta e dirigiu-se ao
senhor Scheffer:
— Aqui está ela. Conforme combinamos.
Logo após virou-se para mim, pegou a minha mão direita, deu
um beijo doce e me falou enquanto encarava Schef fer:
— Nunca esqueça, Sabrina, você é muito mais preciosa do
que uma joia e sempre farei de tudo para te proteger ...
Ele deu duas batidas na porta do carro, como quem avisa
“pode ir” e o senhor Scheffer acelerou...
Agora seria apenas eu e ele.
Meu coração acelerou junto com o motor daquele carro. Eu
segurava a bolsa em minhas mãos como se minha vida dependesse
dela. Estava muito desconfortávelnaquela situação. Não sabia para
onde olhar, de que jeito deixava o corpo acomodado no banco, se
puxava algum assunto do trabalho. Não!, assunto do trabalho agora
não. Sentia-me tão frágil, indefesa, vulnerável... vulnerável. A
palavra era essa: vulnerável
. Queria incorporar aquela adolescente
ousada que seduziu o Frederico, ou a mulher tarada que apalpou
Leo no meio da boate, mas não, eu não conseguia ser nada disso
ao lado dele. Ao lado do senhor Scheffer eu estava me sentindo
uma menina disposta a aceitar e fazer de tudo para satisfazê-lo.
Capítulo 25
Para a minha sorte estava tocando uma sequência de músicas
do Pearl Jam, fazendo com que o silêncio daquele carro não
gritasse tanto.Eu me acomodei no banco mais à direita, olhando os
pingos de chuva que pareciam melancólicos ao som daquela
melodia.
Quando chegamos à frentedo restaurante,antes de entregar
o carro ao manobrista, ele abriu a porta para mim, ofereceu-me a
mão e me convidou:
— Senhorita Andrade — fez um gesto para que eu segurasse
em seu braço.
Assim o fiz. Fui conduzida até a porta. Enquanto uma pessoa
na entrada conferia a lista de convidados, ele gentilmente me
posicionou à sua frentee colocou uma das mãos em minha cintura.
Fiquei desconcertada em como um único toque poderia fazer as
minhas pernas tremerem daquele jeito.
O “encontro” era um jantar de negócios, poucos homens
estavam reunidos para o evento e a maior parte estava
desacompanhado. Cheguei à conclusão de que a minha presença
ali era totalmente desnecessária, porém, o senhor Scheffer,
contrariando a minha impressão, não me deixou sozinha na mesa
em nenhum momento. Chamava-me para a conversa, pedia a
minha opinião, escutava atentamentenas poucas vezes que eu
falava.Era como se aquele jantar fizesseparte do meu estágio e eu
percebia a sutileza de seus argumentos quando convencia donos de
grandes empreiteiras a fazer exatamenteo que ele planejava. Eu
estava entre a cruz e a espada. Ficava cada vez mais convencida
de que ele era o melhor no que fazia, e que ele, pelo menos até
agora, se comportava como um perfeito cavalheiro.
Estávamos conversando em pé com alguns parceiros
comerciais, até que o seu celular tocou. Ele atendeu, pediu licença e
ficou um pouco mais atrás, mas, apesar disso, eu conseguia ouvir o
que falava:
— Sim, assinei. Não, nada ainda. Por quê? — Ele respondeu à
pessoa do outro lado da linha. — Ele fez o quê?! — sua voz
começou a se exaltar. — Não tem como reverter isso? Quanto
tempo? Qual o valor disso? O quê?!
Ele desligou um telefonemae fez outro. Começou a conversa
falando entre dentes:
— Cara, que porra é essa que você fez comigo? — falou
olhando para o lado. — Não li, confiei em você... — Ele parecia
perplexo, nunca o tinha visto assim — o que você está me dizendo?
Virgem? — Ele aumentou a voz, chamando atenção ao redor para
sua conversa, e depois riu. — Quase virgem? — Ele abaixou o tom
de voz. — Isso está definido no contratotambém? O que sobrou
para mim agora, Velazquez?
Quando percebi que ele estava falando com o Leo, lembrei da
última mensagem que ele me mandou antes de chegar ao salão:
“Maninha, independente do que acontecer esta noite, confieem
mim.”Seguidade um emojide coração. O senhor Scheffer escutou
a resposta de Leo e encerrou a conversa:
— Pegue você a primeira “quase virgem” que encontrar na
frente e leve ela para tomar um sorvete, imbecil.
Estremeci. O Leo aprontou alguma e o senhor Scheffer não
tinha gostado nem um pouco. Percebi-o voltar para a conversa
secando o suor da testa. Ele mirou os olhos em mim. Senti que
eram duas navalhas me cortando em todas as direções. Sustenteio
meu olhar nos seus até que não me fitasse mais. Quando ele
desviou os olhos, eu queria morrer. Toda aquela raiva era muito
maior do que eu poderia suportar. Pedi licença e fui ao toalete.
Fiquei lá dentro esperando me recompor. Quando saí senti uma
mão forte em meu braço e uma voz familiar ao meu ouvido:
— Senti sua falta, menina! — uma ironia naquela voz. —
Pagarei um mês pela sua companhia, quero aproveitar cada
segundo valioso!
— Como assim? — perguntei, perplexa. — Do que você está
falando?
— Bem-vinda ao time, senhorita Andrade! Aquele filhoda puta
do seu irmão postiço conseguiu ferrar com nós dois.
Depois daquela descarga de raiva que ele teve na porta do
banheiro, o senhor Scheffer se recompôs e terminou a reunião que
conduzia. Ele não encostou em um fio de cabelo meu, no sentido
erótico. Às vezes eu flagrava ele me olhando com uma expressão
perdida, de quem teve seu brinquedo preferidoquebrado. Não sabia
o que aquilo significava. Fui deixada na frentede casa um pouco
antes da meia-noite. Olhei para o relógio do carro e tentei
descontrair um pouco o final daquela noite tão estranha:
— Que sorte! Cheguei em casa a tempo... — olhei para o
senhor Scheffer, que me fitava curioso.
— Do que está falando? — Ele quis saber .
— Cheguei em casa antes de virar uma gata borralheira e o
seu carro virar uma abóbora — fiz uma menção de sorrir, mas
esperei a sua resposta.
Ele fez um movimento na minha direção de que ia ajeitar uma
mecha do meu cabelo, pensou um pouco e recuou.
— Você fez uma releitura fantásticadessa história, senhorita
Andrade — concluiu me advertindo. — Saia logo desse carro antes
que eu vire um rato e você conheça quem eu sou de verdade.
Maldita hora em que resolvi descontrair. Justamentequando
as coisas acalmaram, eu perdi a melhor oportunidade da noite de
ficar quieta.

Após ter tirado a minha roupa e limpado a maquiagem, deitei


em minha cama. Eu não conseguia dormir. Que diabos o Leo tinha
feito para deixar o senhor Schef
fer tão zangado daquele jeito?
Ao avaliar o que aconteceu nesta noite, eu cheguei a algumas
conclusões: A primeira é de que o senhor Scheffer está onde está
porque merece. Adorei a oportunidade que me deu de aprender in
locoo jeito que usa para conduzir seus negócios. A segunda é que
não devo ser o tipo de mulher que o atrai, se é que me considera
uma mulher, lembrando que algumas vezes me chamou de menina.
Lamentei intimamenteo fatode não ter ido de vermelho. Será que
isso poderia ter mudado o desfecho da nossa noite? E a terceira é
que o Leo amanhã com certeza terá que tomar café da manhã aqui
em casa. Nós tínhamos muita coisa para conversar...
Peguei o celular e escrevi para ele, furiosa:

Você: Preciso de algumas explicações.


Você: Venha cedo tomar café da manhã. Passe na panificadora
e
traga muitos carboidratos... estou precisando.

Um segundo depois ele respondeu:

Leo: Ok. Imagemde um rapaz com a mão erguida e um emojide


carinha com o olhar suplicante.

Ele também não dormia. Em um momento de compaixão


cheguei a tentarcompreendê-lo, mas não, ele não tinha direito de
interferirna minha vida daquela forma.O que seria pior: Ser “usada”
por uma noite? Ou ser alugada por um “mês”? Que tipo de
promoção era essa que o senhor Velazquez fizera comigo? Com
certeza ele não sairá daqui de casa amanhã antes de me contar
tudinho...

Quando o Leo chegou já fazia um tempo que eu estava


acordada. Comecei a arrumar a mesa, passar o café... acabei
acordando a tia Nice com o barulho. Ela veio meio receosa me
perguntar como foi a noite:
— Não sei, tia! Não tenho a menor ideia... — abracei-a e
comecei a chorar.
— Ele te machucou? — perguntou ela com voz protetora.
Quando eu ia responder, Leo apareceu na porta da cozinha,
que estava aberta. Soltei-me dos braços da minha tia e fui para o
banheiro. Eu queria esmurrar o Leo, ele não tinha esse direito. Lavei
o rosto, acalmei-me e voltei para lá. Sentei-me e, como se estivesse
sozinha na cozinha, comecei a tomar o meu café. Os dois me
olharam por um tempo e começaram a fazer o mesmo.
Após tomarmos café em um silêncio absurdamente anormal,
Leo colocou as duas mãos na mesa e perguntou:
— E aí, mana... — sua voz saiu meio falhada — o que houve?
Tive uma vontade imensa de gritar com ele, pegar tudo que
estava ao meu alcance e atirar em sua cara, mas dei três respiradas
profundas e devolvi:
— Me fala você o que houve, Leonardo! — minha voz
aumentou a cada palavra que eu falava.
Ele abriu a boca fazendo menção de dizer alguma coisa, mas
eu interrompi:
— Vou te contar o que houve! — comecei a falar de forma
irônica. — Eu estava tendo uma noite perfeita.O senhor Scheffer
fez eu me sentir fundamental em um jantar em que a minha
presença era visivelmente desnecessária. Ele foi muito gentil e
cordial. Em nenhum momento me tratoucom vulgaridade... até que
ele recebeu um telefonema.Ligou para você, Leo, e se transformou
em uma pessoa que eu, em três meses que trabalho com ele, não
conhecia. — Eu estava sem ar. Vomitei aquelas palavras para ele e
solicitei: — Agora me diz você... o que houve, Leo?
Ele estava perplexo com as minhas revelações. Levantou da
cadeira e começou a andar de um lado para outro querendo
entender alguma coisa que não fazia sentido. Sentou-se novamente,
colocou as mãos cruzadas na mesa e começou:
— Você disse que o conhece por quanto tempo...? Três
meses? — começou a sua defesa.— Eu o conheço por dez anos —
fez uma pausa. — Nesses dez anos o vi fazendo coisas que eu não
faria nem se a minha vida dependesse disso...
Eu e a tia Nice olhávamos quase sem piscar para ele e
aguardávamos para ver aonde aquilo chegaria.
— Aquilo nunca me afetou,até que, de uma hora para outra,
Brenda começou a ser comportar de forma estranha e me informou
da sua opção de se agenciar para encontros pagos — uma derrota
apareceu em seu olhar. — Por mais que tenha tentado, não
consegui fazê-lamudar de ideia. Seu primeiro cliente, a causa de ter
seguido nessa direção foi ele: Schef fer.
Eu olhava para ele e não conseguia encaixar a minha história
naquela que ele contava.
— Ele ficou com ela por uma noite. Antes disso ela já era
apaixonada por ele. Ele foi irredutível, nunca mais solicitou os seus
serviços e ela pirou... indo até as últimas consequências, como
vocês já sabem — pigarreou e admitiu. — Sei que não posso culpá-
lo, mas também não consigo isentá-lo, porra! Que bosta de homem
esse que quer pagar por tudo? Inclusive sexo! E não repete as
mulheres, como se fossem vestidos?
Olhei para ele, que estava fora de si, e questionei:
— E eu? Onde entro nesta história?
— Depois do evento que você estava de vestido vermelho. —
Ele estava começando a se acalmar. — Ele sempre está com
acompanhantes de vermelho, uma tara, sei lá. Ele começou a me
infernizar que queria sair com você. Eu escapava sempre dizendo
que ele a convidasse. Coisa que ele não faz. Ele, quer dizer, a
senhora Macedo, sempre contrata mulheres para ele.
Puxei na memória as diversas moças que passaram em seu
escritório nos últimos dias. Leo prosseguiu:
— No que dependesse de mim, Sabrina, eu nunca iria deixar
você se agenciar... é um caminho sem volta. Foi aí que tive uma
ideia: fazer um contrato. Um contrato elaborado pelo meu advogado,
que Scheffer assinou de última hora e sem ler. O Haroldo, meu
advogado, registrou esse contratoem cartório e estava feito.Eu tive
a sensação de que estava protegendo você das garras do Scheffer
por um tempo. Nem que fosse para ter certeza do que você queria
realmente.
Após essa explicação, eu tive a sensação de que realmente
isso tinha sido a melhor saída, até que pedi mais detalhes:
— E na prática, Leo, como esse contrato funciona?
Ele estava bastanteresistente. Tinha a impressão de que eu
não gostaria do que ele ia me dizer. Tia Nice incentivou:
— Fale, Leo! Você disse que já está feito, não está?
Desembucha!!
— Esse contratoterá validade de um mês. Durante esse mês,
a única mulher “contratada ou acompanhante” que ele poderá
chegar perto será a Sabrina. — Ele deu umas tossidas, esboçou
uma risada e deu a cartada final. — Scheffer não poderá encostar a
mão em você, sexualmente falando. Se ele não cumprir isso terá
que entregar praticamentemetade da sua fortuna,e se tudo ocorrer
conformeesperado, ele terá a sua noite com você... daqui a 29 dias.
— Você ouviu o que você acabou de me falar, Leo? — fiquei
estarrecida. Como o Leo conseguiu pensar em tudo isso? Agora eu
entendi o desespero do senhor Scheffer ontem. E eu? Em nenhum
momento Leo pensou na minha vontade?
— Belo plano de vingança, Leonardo — falei aplaudindo
sarcasticamente.— Você colocou Scheffer onde queria, em suas
mãos — lágrimas começaram a percorrer pelos meus olhos. — E
eu? Eu não posso escolher se eu quero participar disso ou não? E
por acaso você é Médico? Vidente? Psiquiatra? Querendo curar os
traumas do senhor Scheffer com todas essas restrições? — sequei
algumas lágrimas e funguei um pouco. — Não pensou, senhor
Velazquez, em como será para mim lidar com um maníaco sexual
em crise de abstinência? E o melhor... por um mês? E depois de 29
dias você vai me trancar em uma jaula com o leão famintoe engolir
a chave? É isso?! Esse foio seu plano para me proteger? Obrigada!
Muito Obrigada!! — Bati palmas lentamente enquanto o encarava.
Leo estava com uma cara de pânico, assim como a Tia Nice.
Eu também estava em pânico. Pela feição de Leo, ele não tinha
pensado nessas coisas. Estava tão cego pela vontade de vingar a
irmã e tão desesperado em me proteger, que só pensou em
neutralizar o senhor Scheffer e se esqueceu de quais seriam as
consequências disso em minha vida.
— Tem mais uma coisa… — Leo queria informar. Senhor, mais
uma coisa ainda! — Tem uma cláusula sobre o contato físico —
senti que ele engoliu em seco. — Se ele pedir e você estiver de
acordo... se você estiver de acordo... poderão transar.
— Você não entendeu ainda? Você não o odeia! Você o ama,
sabia?! — comecei a chorar copiosamente enquanto corria para o
meu quarto. — Mais um trauma dele que você está tentando curar .
Capítulo 26
O finalde semana foium desastre. Eu esperava que esta nova
semana corresse de uma forma mais tranquila. Cheguei para
trabalhar às 13h como sempre. Nem sentei e a senhora Macedo já
informou:
— Boa tarde! O senhor Scheffer lhe aguarda, senhorita
Andrade.
Pendurei a minha bolsa no encosto da cadeira e fui para a sala
dele. Já entrei anunciando a minha presença:
— Boa tarde, senhor Scheffer! Em que eu posso ajudá-lo? —
aquela frase que sempre fora uma piada interna para mim, agora
me dava pânico. Eu teria que reformulá-la.
— Gostaria de informá-la de algumas mudanças para esse
mês — disse resoluto e sem ao menos me cumprimentar. — Preciso
dos seus serviços o dia todo. A partir de amanhã seu expediente
será das 8h às 17h, com uma hora de almoço.
— Desculpe, senhor Scheffer, mas e o meu convênio? A
faculdade? Terei que trancá-la para conseguir cumprir esse
horário... isso fazcom que o meu contratose encerre com a SSB. É
isso que quer?
— De forma alguma, senhorita Andrade. O que eu quero é
justamente o contrário: você bem comprometida com a SSB —
respondeu-me com um olhar malicioso. Já me informei sobre isso.
— Seu tempo de atividades “extras” será de 28 dias e tem o direito
de trancar o seu curso por 30 dias. Isso significaque ainda tem uma
margem de dois dias, se isso a deixa mais tranquila.
— Obrigada! Em que posso ajudá-lo? Quer dizer... o que
precisa de mim? — comecei a ficar desconcertada... a cada nova
frase que eu pensava, um duplo sentido me surgia. — Por onde
começo? — balancei a cabeça de forma negativa compreendendo
que estava muito difícil escolher uma opção.
— Bem, senhorita Andrade... — Ele estava com o olhar
provocante e imagino que tenha percebido o quanto eu estava
desconcertada — você pode começar me ajudando a descarregar
alguns arquivos. Sinto que o meu CPU está muito cheio... — falou-
me isso olhando de forma penetrante.
Estava vendo tudo. Aqueles 28 dias renderiam muito. Imitando
o seu olhar, respondi pacientemente, aceitando o desafio:
— Claro, só preciso que me oriente exatamenteo que precisa
descarregar. Não gostaria de decepcioná-lo em uma coisa tão
simples como essa.
Ele me explicou. Descreveu exatamenteo que eu precisava
fazer. Disse para que eu trabalhasse em sua sala, pois estaria a
tarde toda fora. Fiquei tentada a abrir gavetas, especular um
pouco... quando me lembrei: câmeras. Tudo aqui é repleto de
malditas câmeras e ele deve estar se divertindo me vendo trabalhar
em sua mesa. Tive vontade de fazer poses sensuais, ou alguma
coisa do tipo, mas desisti da ideia, pois olhei para o relógio e percebi
que ainda tinha muito trabalho a fazer.

Fiz um calendário com uma contagem regressiva para marcar


o tempo do contrato. Risquei, aliviada, o número 28. Eu queria que o
tempo passasse rápido para me livrar daquele acordo, mas,
sobretudo, para voltar às atividades da faculdade. Esse era um
castigo que me atormentava agora e com certeza não estava
previsto nos planos do Leo.
Eu não conhecia o Haroldo, mas estava, a cada dia que
passava, menos propensa a gostar dele. O contratoque fez deixou
muitas brechas e tenho a impressão de que o senhor Schefferusará
a seu favor cada uma delas. Ele é um excelente negociador e não
espera as oportunidades para dar o bote, ele fazas oportunidades.
Esse negócio de horário, por exemplo, não estava especificado.
Agora estou fadada a abandonar a faculdade por um tempo não
planejado, para ser faxineira virtual dele. Bem, isso até que foi fácil.
Fiquei impressionada com a sua organização. Cada um dos
seus projetos agrupados em pastas separadas e os arquivos
denominados juntamente com a data. Coube a mim apenas
transferi-las para um HD externo e liberar o espaço desejado.

Dia 25 do nosso acordo. Eu tenho trabalhado muito e a


senhora Macedo também. A cada nova tarefaque o senhor Scheffer
tem para mim, ele pede por intermédio dela, ou seja, o telefonedela
toca o dia todo. Ela é muito paciente, não questiona nada, e mesmo
percebendo que tem algo diferente,nunca fez menção de tentar
descobrir o que estava acontecendo. Tenho acompanhado o senhor
Scheffer nas reuniões, montado apresentações, feito coisas que
jamais imaginei que fosse um dia me pedir. Coisas que exigem
muita responsabilidade.
Acabei de chegar e fui orientada pela senhora Macedo a me
dirigir à sala dele, como todos os dias têm acontecido. Ele solicitou
que organizasse a sala de reuniões e que já ficasse por lá, pois eu
participaria da reunião. Informou-me também que eu levasse o
notebook, pois faria uma ata de tudo que seria tratado.Assim eu fiz
e estou aqui aguardando o início com tudo pronto do jeito que ele
solicitou. Escutei a porta abrir e quando olho para trás não acredito
no que vejo: o senhor Scheffer entrando na sala acompanhado por
Leo, ou melhor, senhor Velazquez. Outra doideira do meu patrão:
aqui todos são tratadosapenas pelo sobrenome. Os nomes para ele
não têm a menor importância, exceto pelas acompanhantes, que
eram chamadas por nomes que provavelmente nem lhes pertencia.
Desde aquele domingo eu não conversei com o Leo. O que ele
fez foi muito sério e queria dar um gelo nele para que refletisse.
Quando olho para os dois, não sei como reagir. Na dúvida,
cumprimentei-o:
— Bom dia, senhor Velazquez! — não falonada para o senhor
Scheffer porque não faz nem cinco minutos que falei com ele.
— Sabrina! O que faz aqui nesse horário? E as atividades da
faculdade? — um desconforto enorme apareceu em suas
constatações.
— Velazquez, Senhorita Andrade — o senhor Scheffer
chamou a nossa atenção.— Por favor, não estamos aqui para tratar
de assuntos domésticos. Isso vocês podem resolver depois. Como
já dizia o ditado: “Tempo é dinheiro!” e é justamentedo meu dinheiro
que estamos falando aqui — interveio ele.
O senhor Scheffer estava com um olhar gélido. Percebi,
novamente, que eu não passava de uma diversão.
Por outro lado, apesar de eu estar trabalhando bastante,
estava aprendendo bastante também. Duvido que em um ano a
faculdade me ensinaria o que eu aprenderia naquele mês, mas com
o Leo era diferente.Parecia que tinha algo mal resolvido ali. Tinha a
impressão de que meu patrão faria com que ele se arrependesse
até o último segundo do que fizera. E o meu sofrimentoseria a sua
vingança.
A reunião começou:
— Levando em consideração alguns acontecimentosda última
semana, Velazquez, a partir de agora nossas reuniões serão
registradas em ata, que será impressa e assinada por todos os
presentes — o senhor Schef fer revelou. — Alguma objeção?
Leo sacudiu a cabeça negativamente. Um silêncio se fez.
Ninguém tinha o que falar. O Leo cutucou a onça com uma vara
curta demais. Pela sua expressão, eu percebo que agora se deu
conta do quão perigoso e arriscado foi o que fez. Se um letreiro
brilhasse em sua testa indicando os seus pensamentos, ele
mostraria uma única palavra: FODEU!
De todas as reuniões que participei essa foi a mais difícil. O
senhor Scheffer foi irredutível em muitos pontos e o Leo teve que
ceder, senão perderia a representação dos imóveis tratados.Ele foi
rigoroso comigo também, muito mais do que já estava sendo. Além
de fazer a ata, eu tinha que anotar tarefasem um bloquinho que ele
me trouxera e surgiam do nada infinitos afazeres que seriam
listados. Olhava para o Leo e sentia um ar de arrependimento e
desolação. Ele não tinha noção do que eu estava passando e o
senhor Scheffer fez questão de colocá-lo a par da realidade.
No final do dia, antes de sair, a senhora Macedo informou que
o senhor Scheffer me chamava. Fui até a sua sala conforme
orientado. Na frenteda sua mesa havia uma cadeira e ele fez um
sinal com a cabeça indicando para que eu me sentasse. E começou:
— Senhorita Andrade, amanhã teremos um jantar beneficente
em São Paulo. Sairemos daqui às 15h. Avise aos seus familiares
que virá trabalhar amanhã pela manhã e voltará apenas no
domingo.
Eu olhava para aquele homem na minha frente e não
conseguia acreditar no que estava dizendo... de onde surgiu esse
jantar? São Paulo? Bem, no meu íntimo eu queria que ele cedesse,
que ele pedisse para transar comigo. Eu aceitaria e ficaria tudo
resolvido, eu acho. Seria muito difícil domar os meus hormônios,
como dizia o Leo, por um final de semana inteiro com ele.
— Você está me ouvindo, senhorita Andrade? — o senhor
Scheffer me chamou novamente para a realidade.
— Sim — falei descaradamente ignorando parte do que ele
dissera.
— Tem mais uma coisa — falou ele se levantando da cadeira.
— Pode me acompanhar?
Eu nunca tinha reparado que ao lado de uma estanteem “L”
havia uma porta. Ele a abriu e saímos em um pequeno hall. Ali tinha
um elevador e mais três portas, duas em uma parede e uma na
outra. Ele caminhou até a última porta e girou a maçaneta. Quando
entrei, não conseguia entender o que via.
Era um closet gigantesco com roupas e acessórios femininos.
Num canto distante pude observar um banheiro. Eu não tinha a
menor ideia de como aquilo foi parar ali. Estava tentandoentender
quando ele me disse:
— Tem uma mala naquele canto. Pegue o que você acha que
irá usar neste final de semana. Se quiser levar algumas de suas
próprias roupas, fique à vontade também.
— Fica difícil saber o que escolher... — Eu percorri com os
olhos aquela imensa quantidade de roupas de todos os tipos e cores
— se eu não sei aonde irá me levar...
— Será uma viagem de negócios, senhorita Andrade — o
senhor Scheffer me explicou. — Teremos duas reuniões
importantes,o jantar beneficente no sábado à noite e no domingo
pela manhã já estará na hora de voltarmos.
Assenti com a cabeça e comecei a fazer mentalmentea lista
de coisas que teria que levar. Pensava no que eu tinha em casa,
não queria ter que usar aquelas roupas que eu não sabia nem de
quem era, ou de onde tinham vindo.
— Me tire uma curiosidade, senhorita Andrade — o senhor
Scheffer chamou a minha atenção. — Tem algum lugar que você
gostaria de conhecer em São Paulo?
— Tem, tem sim, e um dia ainda vou conhecer! — falei e
comecei a viajar mentalmente, um sorriso bobo se formando em
meus lábios.
— Qual?
— O Museu da Língua Portuguesa. Agora ele está sendo
recuperado após o incêndio, mas eu acredito que logo será
reinaugurado — disse esperançosa. — Me permite uma curiosidade
também, senhor Schef fer?
— Sii...m — respondeu ele meio reticente.
— De quem são todas essas coisas?
Ele parecia não acreditar naquela pergunta. Deu-me a
impressão de que eu perguntava alguma coisa óbvia, mas, mesmo
assim, explicou:
— Conheço várias donas de boutiques. Elas sempre estão
dispostas a ajudar quando preciso. — Ele falava com certa
resistência. — Refleti a respeito da quantidade de eventos que
teremos este mês... e são suas. Pode pegar o que quiser. Ficará
mais fácil assim.
— Isso é... estranho! — balbuciei alto. — Ainda fico meio
insegura... quanto ao que escolher... tem alguma sugestão para o
meu traje de amanhã à noite?
Ele passou a mão por alguns vestidos e parou em um azul-
celeste, que tinha rendas na parte de cima. A saia curta era de tule
com pequenas lantejoulas bordadas espaçadas. Esticou o braço e
me ofereceu:
— Pode ser este.
— Nada de longos desta vez... e nada de vermelho… — Eu
estava um tanto absorta em meus pensamentos, que acabei
falando-os alto.
— Sim, vestido curto. Você pode pintar as unhas de vermelho,
se preferir... — diferentedo que sempre fazia, abriu uma brecha em
sua armadura e começou a me explicar — fiquei com fama de
querer sempre acompanhantes de vermelho, mas isso é um mito. O
que importa para mim... é um detalhe... um mísero detalhe em
vermelho. Tenho algumas superstições... e essa é uma delas — por
mais surpreendente que pareça, essa era a coisa mais íntima que
ele mesmo me falava.
Achava que sabia algumas coisas sobre ele, mas tinham sido
ditas por outras pessoas — acredito que traz sorte e tira o mau
olhado... — sua voz ficou meio tristee o olhar perdido — nem sei
por que estou te dizendo isso agora — sacudiu a cabeça e
convidou: — Alguma dúvida? Vamos então?
Ele tirou duas chaves do bolso e entregou-as para mim. Neste
instanteum brilho vermelho me chamou atenção em seus punhos:
abotoaduras vermelhas. Uma chave era do closet e a outra era de
uma porta que saía no corredor principal.
— Assim você não precisa passar pelo meu escritório para vir
até aqui — explicou. — Pode vir quantas vezes você precisar.

Saí do serviço meio atordoada. Tinha recebido muitas


informações naquela tarde. Fui para o salão pintar as unhas de
vermelho. Giovana estava começando a pintá-las quando dona
Judite chegou acompanhada. Olhei para ela com um sorriso no
rosto.
— Já estou terminando aqui, dona Judite. — Giovana informou
à senhora que se sentou ao meu lado.
— Está certo, querida — respondeu calmamente. — Olá, filha,
tudo bem? Aceitou a minha sugestão? — dona Judite falou se
dirigindo a mim.
Quando fui olhar para o seu acompanhante, imaginando ser o
Rodrigo, quase desabei: Scheffer. O senhor Scheffer estava com
ela. Ele estava casualmente vestido, o cabelo estava um pouco
diferente...e me lembrei da nossa conversa há pouco. Vermelho.
Esquadrinhei-o de cima a baixo buscando um objeto vermelho.
Nada.. Ela não fazia ideia de como eu estava. Ainda mais agora
com a presença dele ali com ela.
— Bem — respondi secamente a sua pergunta — Como?! —
sobre o que mesmo ela estava falando?
— As unhas vermelhas... — explicou-me.
— Sim... desculpe, sim! Estou precisando aumentar a minha
sorte! — dei uma risada para ela e encarei o homem ao seu lado,
que não esboçou a menor ideia de me conhecer. Ou que tivesse
falado sobre sorte comigo naquele fim de tarde.
— Sabrina, este é João Victor. Meu filho, Sabrina cuidou das
minhas unhas magnificamente bem por um bom tempo, João...
Trocamos um olhar de cumprimento seguido de um balanço
com a cabeça. Aquele homem ali não estava nem um pouco
interessado em unhas, pois ela mal virou na direção dele e pude
ouvi-lo se queixar:
— Mamãe, perdemos a casa do Alphaville. Você tem ideia do
que isso significa?
— Significa que teremos que morar em outro lugar, João —
respondeu ela, tranquila. — Fico feliz que o imóvel ainda esteja na
família...
— Ele não podia, mãe. Pagou um valor bem acima do
mercado naquele leilão. Isso foi só para nos atingir...para me
atingir...
— João, esqueça isso! — dona Judite tentava acalmá-lo.
— Por que você sempre o protege? Aquela casa era para ser
minha— o filho da dona Judite insistia.
— Seu irmão sabe o que faz... — dona Judite começou a
explicar os acontecimentos ao filho.
— Pronto! — Giovana informou,tirando-me a atençãodaquela
conversa interessante.

Os novos fatosme deixaram confusa. Aquele homem parecia


Scheffer apenas na aparência, pois o seu comportamentomimado
não tinha nada parecido com o homem que eu estava conhecendo
no trabalho.
Voltei para o escritório. Por mais incrível que pareça eu não
sabia o nome do senhor Scheffer. Procurei em minha mesa algum
contratoque pudesse olhar e conferir, até que achei um contratode
compra e venda:
“Aos vinte e cinco dias do mês de abril, ictor
V Hugo Scheffer
...”
Coloquei o contrato na mesa, pensativa. Victor Hugo. Seu
nome é Victor Hugo. O outro é João Victor. Gêmeos? Os dois são
gêmeos! E ainda tem o outro, o Rodrigo. Quando eu fui me virar
para ir embora, impressionada com a revelação que acabara de ter,
levei um susto! Esbarrei no peito do senhor Scheffer, que pareceu
ser uma muralha na minha frente. Senti um turbilhão de sensações
circularem pelo meu corpo.
— Veio fazeras suas malas, senhorita Andrade? — perguntou
ele a centímetros de mim.
— Ah... annn... — dei uma limpada em minha garganta — não!
Meu celular — passei a mão na minha mesa sem me virar e mostrei
para ele o celular em minha mão.
Ele fitou as minhas unhas vermelhas e deu um sorriso
enigmático.
— Para me dar sorte! — respondi justificandoa cor delas. Dei
um passo para o lado, tentando me afastardele e da influência de
seu corpo tão próximo ao meu.
Afastei-me mais um pouco e disse:
— Até amanhã! — saí da sala sem escutar nenhuma palavra
de volta.
Capítulo 27
Eu não tinha a menor ideia do que esperar daquele final de
semana. Arrumei a mala com as minhas próprias coisas mesmo. A
única coisa que peguei daquele closet foi o vestido azul que o
senhor Scheffer me indicara. Às 15h em ponto a senhora Macedo
me informou que ele me aguardava em sua sala. Quando estava
indo ver o que queria, ela me orientou:
— Leve seus pertences, querida. Vocês estão de partida.
Voltei, peguei a minha mala e bolsa, e fui para a sala dele. Ele
deu uma olhada para a minha mala, que não era a que tinha no
closet, e não pude captar se aprovou ou não a minha decisão. Ele
pegou a sua mala também e me guiou em direção à porta, que
levava ao corredor do closet. Desta vez pegamos o elevador. Ele
era o único do prédio que possuía os andares 41º, 42º e H. Ele
apertou H. Era o andar do heliponto . Não pude conter a minha
admiração quando chegamos.
— Esse heliponto existe mesmo? Imaginei que fosse mais
uma lenda urbana que pairava sobre a história deste prédio...
— Digamos que ele existe para pouquíssimas pessoas,
senhorita Andrade — falou,orgulhoso. — Devia se sentir lisonjeada.
Você é uma delas! — tive a impressão de que quando disse isso
deu uma piscada para mim, mas não tinha certeza, seria muito
atípico da parte dele esse comportamento.
Eu não me sentia lisonjeada por aquilo. Só estava ali por
causa daquele maldito contrato e estava me sentindo como uma
marionete, que antes foi movimentada pelo Leo e que agora seguia
os cordéis que estavam na mão de Schef fer.
Quando o elevador abriu, o piloto já nos aguardava com o
helicóptero ligado. Agradeci por estar de calça jeans contrariando o
impulso que tive de vestir uma saia rodada. Fomos acomodados e
nossas bagagens devidamente guardadas. Sentada ali, olhando
para aquela janela, comecei a sentir um frio percorrer o meu corpo.
Fiquei imóvel e desesperada, pois estava esperando que iríamos de
avião, como reles mortais e já estava achando aquilo assustador!
Imagine agora o quão assustada eu estava. Voar pela primeira vez e
de helicóptero? Isso estava sendo demais para o meu autocontrole
emocional. O senhor Scheffer percebeu que eu estava diferentee
me perguntou:
— Senhoria Andrade, está bem?
Fiz que sim com a cabeça e quase desmaiei. Ele se soltou do
cinto de segurança, segurou as minhas mãos, ofereceu-me um
pouco de água e eu aceitei. Ele pegou um copo d’água, abriu-o e
entregou para mim. Tomei tudo de uma vez só. Aquela sensação de
água gelada fez com que eu renovasse as minhas forças:
— Estou melhor — respondi.
— Tem certeza?
— Sim.
— Já viajou de helicóptero alguma vez?
Balancei a cabeça negativamente.
— E de avião? — insistiu ele.
— Também não!
— Você vai ver... no começo é assustador, mas depois
acostuma e você vai acabar gostando.
Ele fezuma manobra em seu banco, para tirar algo do bolso, e
entregou para o piloto.
— Benetti, coloque para nós, por favor. — Ele orientou o
homem de uns 50 anos, que pilotava a aeronave como se estivesse
jogando vídeo game, entregou um fone para mim e pegou outro
para ele. — Isso sempre me ajuda!
Uma música conhecida começou a tocar, eu só não me
lembrava de quem era, mas era realmente reconfortante.Comecei a
apreciar a viagem, olhei pela pequena janela e vi que estávamos
passando por uma parte que dava para ver o litoral. Era lindo!
Divinamente lindo! Não pude evitar, olhei para ele e sorri:
— Obrigada! — falei fazendo movimentos exagerados com a
boca, sabendo que ele não me ouviria devido ao zumbido irritante
que ainda estava presente. Nossos olhos se encararam por um
tempo maior do que eu estava acostumada. Fiquei sem jeito, virei o
rosto em direção à janela novamente e comecei a mirar a paisagem
como fazia antes.
Lembrei! A música que estava tocando era With Or Without
You, do U2. Eu nunca mais escutaria aquela música da mesma
forma depois deste dia.
Que bela ironiado destino, pensei. Quando quis perder a
virgindade com o Fred fui obrigada a namorá-lo por um mês. Agora
estou aqui de novo, mais um mês. Não sei o nome que se dá para
isso que estou vivendo com ele: contrato pré-coito? Contrato de
cura de desvios sexuais? Ou seria contrato de familiarização de
quase virgem com maníaco sexual?
Comecei a rir. Esse Leo era desastrosamenteprotetor. Seria
melhor reagir com humor do que ficar com raiva dele. Até aqui não
foitão difícil. Com certeza eu tiraria de letra isso... não é?
O helicóptero pousou diretamente no hotel que ficaríamos.
Não precisamos fazer o check-ine fomos direto para o quarto. O
senhor Scheffer retirou um cartão da carteira e abriu a porta. Fiquei
parada no corredor observando-o e me perguntando se ficaríamos
no mesmo local. Como eu não tinha pensado nisso antes? Ele fez
um sinal para que eu entrasse no quarto. Minha cabeça estava a mil
enquanto eu olhava para aquela enorme cama de casal. Escutei um
barulho e quando me virei para ele percebi que era uma porta sendo
aberta. Para minha sorte era um quarto conjugado. Ele me chamou:
— Senhorita Andrade, por aqui.
Eu passei por aquela abertura e pude perceber um quarto
exatamente igual ao que estávamos, só que com as coisas
invertidas. O hóspede de cada quarto poderia fechar a porta por
dentro e evitar o contato com o quarto vizinho. Respirei aliviada,
mas devo confessar que intimamente senti um pequeno
desapontamento.
No quarto que eu estava agora tinha um cartão igual ao dele.
Eu poderia entrar ou sair sem ter que passar pelo quarto dele. A
primeira coisa que me ocorreu foi fechar a comunicação com o
quarto em que o senhor Scheffer estava. Nesse momento, dei de
cara com ele parado em frenteà passagem como se fosse uma
estátua me olhando.
— Licença, senhor Scheffer, posso fechar? — falei tirando-o
do seu transe.
— Sim, quer dizer... espere! — Ele estava meio confuso. —
Como faremos?
— Do que está falando, senhor Schef fer?
— Se eu... quando eu... posso?... Você me permite?... — Ele
estava visivelmente abalado. Será que ele... iria me pedir? Pedir
para transar com ele?
Estava nítido que eu precisava ir atrás de um Rivotril antes
que o homem entrasse em pânico na minha frente
— Diga, senhor Scheffer, qual é o problema? Está precisando
de alguma coisa? — falei tentando ajudar. Não conseguia
compreender por que estava tão abalado. Ele tinha sido tão
prestativo comigo no helicóptero e agora estava ali, paralisado.
Como que por um clique, veio na minha mente o que o afligia.
Fui até a minha bolsa, peguei um pedaço de papel e escrevi o
meu número de telefone.Imaginei que ele não tivesse, pois sempre
ligava para a senhora Macedo quando precisava falarcomigo, então
entreguei para ele e falei:
— Senhor, Scheffer, se precisar de qualquer coisa, em
qualquer horário, nessa nossa viagem, pode me ligar que estarei
pronta para atendê-lo — disse com uma voz confianteentregando o
papel para ele. — Se o senhor se sentir melhor, poderá bater na
porta, que em seguida estarei pronta para lhe atender
, ok?
Ele sacudiu a cabeça positivamente.Fechou a sua porta e me
deixou olhando para ela fechada. Não conseguia acreditar que um
homem poderoso como ele poderia ter uma fragilidade como essa.
O que será que fez com que ele ficasse assim tão vulnerável frente
ao relacionamento com as mulheres? Será que eu estava certa
quando tenteiacalmá-lo entregando o meu telefone?Ou ele teria se
retirado apenas para me tranquilizar?
Escutei uma batidinha de leve na porta que unia os quartos.
Abri.
— Oi! Tudo bem?
— Senhorita Andrade! — pelo jeito de falar percebi o que
senhor Scheffer que eu conhecia voltara. — Quer sair?
Eu comecei a confabulartentandodescobrir exatamenteo que
aquilo queria dizer. Ele continuou:
— Quer sair para jantar? Ou prefere jantar aqui no hotel?
— Pode ser aqui mesmo — respondi. — E se o senhor não
precisar mais dos meus serviços hoje, gostaria de me acomodar
cedo. Amanhã o nosso dia será cheio.

Jantamos no hotel. Os pratos eram servidos à lacarte e eram


muito bem elaborados, dignos de qualquer restauranterenomado.
Pedimos a mesma coisa: uma salada com um medalhão de filé
mignon. Conversamos pouco durante o jantar, percebi que ele
estava um tantoconstrangido e imaginei que fossepelo que ocorreu
há uns minutos. Quando terminamos a nossa refeiçãoe fomos para
o quarto, ele passou na recepção e disse que precisaríamos de uma
maquiadora e cabeleireira em meu quarto às 17h do dia seguinte.
Eu já tinha me acostumado com a ideia de ter que me arrumar
sozinha, mas ele tinha resolvido isso para mim.
Estávamos parados na porta do elevador, esperando que
chegasse. Ele olhou para mim e se justificou:
— Esqueci de resolver uma coisa. Pode subir, que logo vou.
Não se preocupe, nos veremos amanhã.
Isso era uma ótima formade ser despachada. Será que ele iria
explorar a noite paulistana e não queria alguém empatando a sua
vida? Ou iria atrás de uma acompanhante? Isso seria a quebra do
nosso contrato!Além de rica, eu estaria livre para ter a minha vida
de volta. Porém não teria a minha noite com ele. Confesso que as
circunstâncias não eram as ideais, mas eram as únicas que eu tinha
e não estava disposta a abrir mão delas. Encontrei um menu de
filmes na TV a cabo e comecei a fazer uma maratona que há um
tempo eu queria começar. De repente o telefone do quarto toca:
— Senhorita Andrade? — um homem na linha perguntou.
— Sim, é ela — respondi.
— Aqui é o Hilário, do bar do hotel. A senhora é a
acompanhante do senhor Schef fer?
Aquela frase soou tão mal para mim. Eu sabia que estava ali
para acompanhá-lo, mas tive a impressão de que isso já ocorrera
outras vezes com outras mulheres e me senti diminuída por isso.
— Isso — respondi em seco, afinal era a mais pura verdade.
— Ele solicita a sua presença aqui. — Eu não estava
acreditando nisso. Olhei no relógio. Duas horas da madrugada!
Tudo bem que eu dissera que poderia me chamar em qualquer
horário, mas era para ele ligar... para ele enfrentaros seus traumas,
agora Hilário esperava ali do outro lado da linha fazendo uma ponte
entre nós, como a senhora Macedo sempre fazia. A história se
repetia independente do lugar em que estivéssemos...
— Diga a ele que já estou indo, Hilário. Em que andar fica o
bar? — perguntei querendo adiantar a minha chegada.
Coloquei a primeira roupa que encontrei. Segui as orientações
que o barman me deu e cheguei lá uns dez minutos depois que
desliguei o telefone. A cena que vi foi deprimente. O senhor Scheffer
estava completamente bêbado, estirado sobre a mesa e quase
caindo da cadeira. Aproximei-me devagar enquanto planejava o que
faria numa circunstância como aquela. Fiz um barulho com a
garganta tentando chamar a sua atenção. Como não deu certo,
falei:
— Senhor Scheffer, estou aqui.
— Ollá… ssenhoriita Andraade! — respondeu com a língua
enrolada.
— O que precisa? — insisti desesperada para sair daquela
situação.
— Me leve... me leve para o quarto! — falou abaixando a
cabeça na mesa logo em seguida.
O que mais eu poderia fazer? Contei com a ajuda de Hilário,
que veio nos ajudar, muito solidário. Ele colocou o senhor Scheffer
apoiado em meus ombros e nos acompanhou até o elevador. Usei a
minha chave para abrir a porta e rezei para que a porta conjugada
do seu quarto estivesse aberta.
Estava.
Praticamentearrastando-o, coloquei-o na beirada da cama e
ele desabou ficando com metade do corpo para fora da cama e a
outra metade do corpo para cima. Cabia a mim agora algumas
decisões a serem tomadas: Tiro as suas roupas? Deixo-o do jeito
que está? Tento empurrar o seu corpo todo para a cama?
Fiquei na sua frente, olhando para aquele corpo inerte e
entregue à embriaguez, e percebi a oportunidade que se
apresentara para mim... poder olhar para ele sem filtros,sem os
olhares impositivos que sempre me dava, deixando-me confusa e
sem jeito. Resolvi tirar os sapatos, as meias e o terno. Foi muito
difícilfazerisso com o seu corpo pesado. Depois tenteipuxá-lo mais
para o centro da cama, usando todas as forças que me restaram. Eu
me posicionei atrás dele, envolvi sua cintura com os meus braços e
puxei. Cedeu um pouco e caiu com a cabeça praticamenteem meu
colo. Eu olhei para aquele homem tão imponente ali entregue,
mesmo que pelo efeitodo álcool, em meu colo. Ele começou a se
mexer e eu percebi que iria acordar.
Fui saindo aos poucos e ele começou a resmungar:
— Isso é culpa dela... — esboçou uma cara de choro — por
que você não me escolheu? Eu fiquei tão sozinho... — as lágrimas
começaram a escorrer em seu rosto — você sabe que eu te amo,
né? — Eu estava ali, inerte. Não entendia nada do que ele dizia,
mas uma declaração como essa não seria ruim... e ele continuou: —
Te amo, mãe!
Continuei imóvel até ter certeza de que ele adormeceu. Não
queria encará-lo de forma alguma após esse pequeno momento de
intimidade forçada. Quando estava certa de que ele dormia,
escorreguei, com uma lesma, até me desvencilhar do seu corpo. Já
em liberdade, olhei-o mais um pouco enquanto dormia e não resisti
encostando levemente os meus lábios nos seus:
— Boa noite, senhor Schef fer, durma bem!
Capítulo 28
Comecei a perceber o sol entrando pelas frestasda cortina.
Estava amanhecendo e eu ainda não dormira. Como dormiria com
tudo que aconteceu? Estava muito claro para mim que o senhor
Scheffer sofria. Sofria muito. E esse sofrimentorefletiaem toda a
sua conduta emocional, profissional e principalmente sexual. Sabia
que ele era filho de dona Judite. Isso me deixava mais confusa
ainda. Como aquela senhora super gentil, que chamava a todos
carinhosamente de filho, abandonara o próprio a esmo daquele
jeito? O que teria acontecido de tão grave?
Lembrei-me do outro irmão: João Victor. Ele era dengoso,
manhoso e inseguro. Por outro lado, o senhor Scheffer era
imponente, decidido e muito autoconfiante.A única coisa que lhe
faltavaera a criação de um vínculo afetivocom as mulheres. Ele
resolvia isso pagando por inúmeras acompanhantes que eram
fadadas a apenas uma noite de atuação.
Era por isso que eu estava ali. Também teria a minha única
oportunidade com ele. E aguardaria pacientementeos meus 22 dias
restantes.
E se fosse para eu escolher? Quem seria? João Victor? Victor
Hugo? Resgatei em minha memória flashes de momentos em que
eu os vira: o primeiro indo buscar dona Judite e a acompanhando no
salão. O segundo com todo o seu controle, arrogância, organização,
destreza para os negócios, estrategistanato e cruel, muito cruel,
quando contrariado. Não pude deixar de me lembrar da sua
fragilidade naquela madrugada. O toque dos meus dedos em seu
corpo, seu calor, mesmo que para ajeitá-lo na cama. O seu cheiro,
mesmo que disfarçadopelo cheiro do álcool. O beijo que quase lhe
dei... mesmo sendo roubado. Eu não tinha dúvidas. O segundo,
mesmo que fosse por uma única noite, seria a minha opção. Eu
aguardaria ansiosamente a chegada do nosso encontro e o fim do
nosso contrato.
Sabia que isso me fariasofrer. Pensei mais um pouco e pensei
no terceiro filho: Rodrigo. Ele era afetuosoe muito carinhoso com a
mãe. Tinha alguma coisa nele que não se encaixava naquela
família. Quando pensava nele, alguma coisa fervilhava dentro de
mim e não era no bom sentido. Na verdade, eu o achava um
tremendo intrometidoe com certeza passava longe da minha lista
de possibilidades.
Não tinha mais o que ficar fazendo na cama. Se o sono não
viera até agora, deixaria de insistir. Lembrei que tinha visto uma
placa que indicava academiano andar acima do nosso. Achei bem
oportuno me exercitar um pouco e extravasar parte da tensão que
se impunha em minha vida nos últimos dias.
Arrumei-me, peguei um isotônico que tinha no frigobar e fui.
Fiquei tentadaa espiar como estava o meu vizinho de quarto, mas
tive um pouco de juízo e parti, resignada, rumo à academia.
Era uma academia bem completa. Pude localizar praticamente
todos os aparelhos que tinha na que eu treinava. As esteiras
ficavam ao fundo. Pelo barulho, alguém acordara antes que eu e
estava correndo em uma velocidade alta, usava um calção largo
preto, tênis e meias igualmente pretas. A regata, que estava
molhada de suor, era cinza-escuro. O barulho daquela esteira
funcionando naquela velocidade parecia me hipnotizar... fui sendo
atraída para o fundo da academia sorrateiramente.
Percebi que o corredor tinha os músculos definidos, porém,
sem exagero. Sua cabeça estava baixa e eu não conseguia ver o
seu rosto, pois a franja do seu cabelo estava caída. Dou mais um
passo e de repente, não estou mais sozinha. Olhos negros me
encaravam e sinto um aperto em meu ventre ao vê-lo ali na minha
frente todo suado e com as bochechas rosadas em sua pele
extremamente clara, demonstrando o intenso esforço que estava
fazendo. Não pude deixar de imaginá-lo daquele jeito só que em
cima de mim... dentro de mim...
Acho que fiquei vermelha também.
Voltei a minha atenção para a música de Allen Wish Feat e Not
Profane, chamadaI Don't W anna Lose You, que estava tocando. Ela
tocava muito na academia que eu treinava com o Leo e isso me fez
lembrar dele, pois era a sua música preferida desses dois DJs.
Posicionei-me na esteira ao seu lado e cumprimentei com ironia:
— Bom dia, senhor Scheffer! Dormiu bem?
Como de costume, ele não respondeu. Percebi uma pequena
curva em seus lábios fazendo o esboço de um sorriso. Essa reação
dele fez com que eu entendesse que estava tudo na sua mais
perfeita normalidade. Como uma boba inspirei aliviada.

O que eu estava fazendo ali? Minha vontade era de voltar para


o quarto, sumir, sair de perto dele, principalmente quando estava
com tão pouca roupa como ele estava neste momento. Pensei em
tocar no ocorrido de ontem à noite, mas achei que não seria
adequado da minha parte. Resolvi que ficaria na esteira por meia
hora e depois desceria para não dar muito na cara que eu estava
fugindo dele. Quando a minha esteira sinalizou que o tempo havia
terminado ele começou a reduzir o passo também. Tomei um gole
grande da garrafa de isotônico e ele fez o mesmo. Só então percebi
que tinha pegado uma garrafa igual à minha. Era impressão minha
ou ele estava brincando comigo?
— Já vou... — senti-me como se estivesse dando satisfações
para um estranho ou uma parede.
— Eu também — respondeu de volta para minha surpresa.
Fiquei sem jeito naquele elevador todo espelhado. Eu não
tinha para onde olhar. Decidi que o chão seria uma boa opção. Foi,
mas por pouco tempo.
— Senhorita Andrade, já tomou café? — senhor Scheffer
perguntou quebrando o nosso silêncio.
— Não.
— Aguardo-a pronta em uma hora. Esse tempo será
suficiente? — ofereceu-me parecendo diferente.
— Sim. Acredito que sim — respondi para fugir dos
monossílabos.
Coloquei um vestido tubinho azul marinho, com um sapato de
salto médio azul com um detalhe em branco e vermelho. Olhei para
o espelho e sorri para a combinação perfeitaque fizera. Quando saí
do quarto ele me esperava no corredor. Tomamos café.Voltamos ao
quarto novamente antes de nos dirigirmos para as duas reuniões,
que para minha surpresa, seriam na sala de reunião do hotel em
que estávamos hospedados. Pela manhã o senhor Scheffer
conduziu a negociação. Ele apresentou o modelo de um condomínio
que tinha sido implantado em Gravataí e ele estava vendendo o
projeto para uma construtorade São Paulo. De tarde foi o oposto,
uma construtora estava oferecendo os serviços para a SSB e meu
chefe ficou de analisar as possibilidades e retornar
.
Gostei do meu desempenho ao longo do dia, estava sempre
um passo à frentedo que ia acontecer. Tinha a mão documentos,
planilhas e contratos. Isso fez com que as duas reuniões
terminassem antes do esperado. Quando estava organizando a sala
de reunião e recolhendo os materiais que havia levado, imaginei que
o senhor Scheffer deixaria eu fazer isso sozinha, como sempre
ocorria na SSB. Só que desta vez ele ficou me ajudando até eu
pegar a última caneta. Organizei tudo na maleta que havia sido
trazida para essa finalidade e ele levou-a até o quarto.
No caminho me perguntou:
— Que fazer um lanche antes de se arrumar?
Lembrei que tinha visto umas maçãs no quarto. E informei:
— Estou bem assim. Obrigada! — esse homem era
completamentediferenteà tarde, com certeza seu melhor horário
não era pela manhã.
Quando chegamos à porta dos quartos, fizmenção de pegar a
pasta.
— Pode deixar comigo — respondeu com gentileza. —
Preocupe-se com as outras coisas agora e esteja pronta às 18h30.

Aproveitei que estava cedo e mandei uma mensagem para


minha tia dizendo que estava tudo bem e que tranquilizasse o Leo
também, eu sabia que ele devia estar preocupado, e se controlando
para não me ligar, mas não ia dar o braço a torcer ainda.
Quando Malu, a cabeleireira, chegou eu estava de banho
tomado, tinha comido maçãs, escovado os dentes e retocado as
unhas vermelhas pintadas exclusivamente para a ocasião desta
noite. Fui com os cabelos soltos levemente ondulados nas pontas e
escolhi uma maquiagem discreta. Olhei para o relógio, já estava na
hora marcada pelo senhor Scheffer e eu não estava pronta. Uma
aflição começou a tomar conta de mim. Às 18h35 o meu celular
tocou:
— Ficarei esperando muito tempo, senhorita Andrade? — era
a voz dele. Parecia bravo.
— Malu está terminando. Daqui a 10 minutos estarei pronta.
Prometo — falei fazendo um sinal para a moça que me maquiava e
não entendia nada.
— Ele ligou! Ele ligou! — segurei o celular nas mãos e o beijei.
Só faltava dar pulos de felicidade.
Malu muito discreta deu uma risadinha, mas não comentou
nada sobre o fatode eu ter beijado o celular por causa de uma
ligação. Só avisou que eu já estava pronta.
Sem ao menos olhar-me no espelho perguntei:
— Como ficao seu pagamento? — faleina tentativade distraí-
la. Lembrando que eu tinha pouco tempo já fui trocando de roupa
também.
— Fica na conta do quarto — Malu me respondeu um tanto
confusa enquanto toquei-a do quarto.

No segundo horário combinado eu estava pronta. Ele me


aguardava no corredor conforme o combinado.
— Desculpe... — falei com voz de arrependimento, mas
sorrindo por dentro por ele ter me ligado.
O senhor Scheffer não respondeu nada. Apenas sacudiu a
cabeça negativamente.Eu entendi que queria dizer que não tinha
problema. Do elevador fomos direto para a garagem do hotel. Lá
tinha um Audi vermelho em uma versão compacta que atendeu com
um bip e uma piscada de luzes após um botão ser apertado no
controle que estava com o meu chefe.
Assim que entramos no carro ele pegou o celular e por
bluetooth enviou uma música que imediatamente começou a
envolver o ambiente. Era uma música calma, cantada por uma voz
rouca masculina que fazia lembrar uma música country. Após a
primeira música terminar veio outra num ritmo parecido, mas com
mixagens, percebi que não era o mesmo cantor da primeira e resolvi
especular:
— Que interessante essa seleção musical. Quem está
cantando?
— São cantores e DJs que trabalham com um tipo de música
chamada de Deep House. Gosto de escutar isso enquanto estou
dirigindo, principalmente aqui em São Paulo que as distâncias são
alongadas pelos engarrafamentos — respondeu-me, animado,
porém olhando para fora medindo a fila quilométrica de luzes
vermelhas à nossa frente.
— Você se localiza bem aqui? — aproveitei já que estava mais
aberto à conversa do que das outras vezes.
— Sim. Eu morava aqui antes. Fugi daqui por causa dos
congestionamentos, que já estão atingindo até quem está de
helicóptero — respondeu dando uma risada.
O silêncio entre nós se fez novamente. Por sorte aquela
música agradável preenchia os vazios daquele carro. Eu que
sempre fui curiosa, que coloquei o Leo em situações
constrangedoras diversas vezes. Agora calara. Estava calada diante
daquele homem que poderia e deveria ser o alvo de minhas mais
esdrúxulas questões. O que estávamos vivendo era um jogo. Porém
eu não me sentia uma competidora à altura. Eu apenas imitava ou
reagia às suas jogadas. Que poder tinha ele para me intimidar desta
forma? Do que eu tinha medo se tinha certeza que o que me restava
era uma noite apenas? E porque ele estava se sujeitando a isso? O
que fazia com que não tentasse virar esse jogo, como tão
brilhantemente fazia sempre? Curiosamente ele me conduzia e tinha
certeza de que ele sabia que meus passos dependiam dos seus.
— Você está bem, senhorita Andrade? — perguntou ele,
parecendo ouvir as questões que fervilhavam em minha mente.
— SIM! — respondi alto demais, irritada com essa história de
não poder ser chamada pelo próprio nome. — Desculpe, sim —
olhei para ele séria e completei com ironia: — Eu não podia estar
melhor, senhor Scheffer.

O local do evento era um Buffet , estávamos hospedados na


Avenida Paulista e apesar de um pouco de trânsitoque pegamos no
caminho, era próximo ao local. O Buffet de luxo era muito
sofisticado, e eu não conseguia estabelecer paralelos com os
espaços de eventos que eu conheci na cidade de Gravataí, apesar
de ter gostado muito de todos eles. Fui avisada que a noite seria
dividida em dois momentos: o jantar que aconteceria antes, no
primeiro piso e um leilão que ocorreria no segundo.
O senhor Scheffer me convidou para que fossemos ao
segundo piso para olhar os objetos que seriam leiloados. Tudo seria
revertido para a revitalização dos prédios de três instituiçõesque
cuidavam de crianças em situaçãode risco. Além da participaçãono
jantar, do leilão, ainda poderiam ser feitas doações em espécie.
Eu olhava para aqueles objetos expostos e não podia acreditar
como poderiam ser tão caros, levando em consideração que o valor
exposto era apenas o lance inicial. Acompanhei o ritmo do senhor
Scheffer enquanto caminhava e avaliava cada peça. Quadros,
estátuas,roupas usadas por famosos,vasos, pratos, jogos de jantar
entre tantascoisas que poderiam ser vendidas por aquela causa.
Foi quando passamos por uma penteadeira antiga de madeira
maciça. Sobre ela havia alguns objetos como pentes que pareciam
ser de ouro, broches, caixinhas de música e um pequeno porta joias
de porcelana que me chamou a atenção.
Era uma peça clássica, para não dizer antiga. Ele não tinha
mais do que 10 centímetros de diâmetro. A parte de baixo era
trabalhada com linhas diagonais que eram destacadas por um tom
de verde claro, que parecia ter sido apenas pincelado para lhe dar
um toque de cor. A sua tampa era de um verde mais escuro que
representava as folhas de algumas flores espalhadas. Ao centro
tinha uma borboleta branca com as bordas destacadas em marrom.
Não sei por que, mas aquele artefatome deu uma sensação que
misturava saudade e felicidade.
No mesmo instantea imagem da vovó invadiu a minha mente
e senti como se ela própria estivesse ali. Olhei na etiqueta que
apresentava as especificações daquele objeto que me parecia tão
familiar e não pude deixar que um suspiro saísse de minha boca ao
perceber que seu valor era muito maior do que eu poderia pagar.
Dei uma apressada em meu passo para continuar a acompanhar o
senhor Scheffer que já estava a muitos metros à minha frente.
— Algum interesse em especial, senhorita Andrade? — quis
saber o meu chefe curioso.
— Não — falei decidida a não ficar mais constrangida do que
já estava com o valor do objeto.
O jantar ocorreu normalmente. Quem estava ali era o homem
em pessoa física: Victor Hugo, apesar de não poder chamá-lo
assim. Ele não estava representando a empresa ou coisa parecida.
Isso me intrigou. Eu imaginei que só o acompanharia em eventos de
negócio. E agora estávamos ali em um compromisso pessoal.
Reparei que todas as vezes que o garçom lhe oferecia bebidas ele
trocava seu copo de uísque intocado por outro e de vez em quando
bebericava uns goles de água. Lembrando da noite anterior, isso me
pareceu um tanto estranho. Fui flagrada ao vê-lo em mais uma
manobra dessas:
— Nosso segredo — falou enquanto erguia o copo e fingia
tomar mais um gole.
Dei uma risada contida e imaginei quantos segredos de
diferentes tipos esse homem enigmático escondia.

O leilão começou. Confesso que achei aquilo cansativo. O


senhor Scheffer brincava às vezes, pelo menos eu tinha a
impressão que estava brincando, oferecendo lances só para
impulsionar lances maiores. Quando chegou a vez do porta-joias, eu
estava muito atentapara ver quem o arremataria. O senhor Scheffer
virou-se para mim e solicitou:
— Senhorita Andrade vá até o balcão da entrada e confira se a
doação que fiz foi registrada. — Eu abri a boca para perguntar se
isso poderia esperar, mas recebi de volta um olhar tão impositivo
que nem me atrevi. — Procure pela doação de Victor Hugo Scheffer
— declarou quando eu estava saindo. Esta era a primeira vez que
falava o seu nome completo na minha frente.
Quando retornei já estavam leiloando outro objeto. Olhei em
vão ao redor, na tentativade descobrir quem havia adquirido o bem,
mas a única coisa que pude ver era a imagem da caixinha de jóias e
o número ao lado que identificava quem a arrematara no leilão.

Estávamos voltando para o hotel. O senhor Scheffercolocou a


mesma seleção musical que continuou tocando de onde parou.
Aproveitei para especular, já que ele havia me dado uma brecha:
— Quer dizer que o senhor não bebe?
— Dificilmente.Eu sou um homem de negócios, preciso estar
sóbrio para tomar as melhores decisões. — Ele olhava para frente,
mas tinha certeza de que estava vendo muito além da rua que se
apresentava para nós. — Porém esse mundo dos negócios impõe
uma pressão social para que se beba. Então eu finjo — deu uma
risada descontraída. — Imagino que eu não seja o único.
Acompanhei a sua risada. Um súbito desespero invadiu a
minha mente. Gelei, comecei a suar, não conseguia sequer olhar na
sua direção. Mas eu tinha que fazer aquela pergunta:
— Na sexta-feira à noite... — dei inúmeras tossidas para
ajudar as palavras saírem — você estava fingindo também?
Ele diminuiu a velocidade com que dirigia o carro. Ficou quieto
por alguns segundos que representaram horas para mim. Eu não
me atrevia a olhar para ele.
— Foi um momento de fraqueza — revelou. — Eu não estava
em um momento de negócios. Estava sendo alguém que eu não
gosto de ser — deu alguns suspiros e continuou: — Eu bebi para
me encorajar e passei da medida.
Respirei aliviada por mim. Pelo menos o que eu tinha feitonão
seria descoberto. Lembrei com carinho do beijo que havia roubado.
Suspirei e senti piedade por ele. Ele tinha a perfeitanoção de que
eram dois, que agia como se tivesse duas personalidades e eu
ficaria mais ansiosa agora: Qual delas eu teria que agradar? Ou
melhor, qual delas eu queria agradar?
Capítulo 29
Eu adorava me arrumar para as festas.Hoje eu me senti muito
linda com o vestido azul e curto que o senhor Scheffer tinha
escolhido para mim. Fiquei muito bonita nele. Porém o tule da saia
me cutucou a noite toda, as sandálias prateadas que coloquei para
compor o visual eram altíssimas e os meus pés imploravam por
descanso.
Assim que passei o cartão na porta e entrei no quarto
arranquei tudo e fui logo tomar um banho. Eu precisava de uma
roupa confortá vel e havia trazido uma. Era um pijama curtinho de
cetim que eu tinha ganhado da tia Nice, ele era muito aconchegante
e divertido por ter uma imagem do Garfield na frente.
Quando estiquei as pernas na cama o meu celular tocou:
— Alô! Com quem você gostaria de falar?— perguntei por não
ter conhecido o número.
— Sou eu, senhorita Andrade! Scheffer — respondeu ele do
outro lado da linha.
— Desculpe senhor Scheffer, não reconheci o número... —
falei, sentando na beirada da cama.
— Atrapalho? — questionou com a voz um tanto ansiosa.
— De forma alguma... — Eu estava aqui sentada só
esperando o senhor ligar mesmo, pensei dando uma risada — pode
falar... — incentivei para que ele terminasse aquela ligação logo.
Apesar de ficar bem comovida de receber duas ligações suas no
mesmo dia.
— Está vestida? — perguntou sem o menor pudor .
Olhei para o meu pijama e respondi:
— Eu já estava quase indo dormir...
— Abra a porta, por favor! Será rápido!
Lamentei por não ter um robe ou coisa do tipo, estava indo em
direção à minha mala procurar alguma coisa para me cobrir quando
o escutei batendo na porta.
Olhei novamente para minha mala e mais uma batida, desta
vez mais forte.
Abri.
Ele parou na minha frente.Estava com as mãos para trás do
corpo, vestia apenas uma calça de algodão bem soltinha e que dava
a impressão de ser bem confortáveltambém. Dei um passo para
trás e ele aproveitou para me olhar de cima a baixo.
A sensação que tive é que eu estava pelada. Ele deu um
passo à frente . E eu dei um passo para trás. Fomos fazendo isso
até que o espaço atrás de mim acabou e fiquei pressionada entre a
parede e o seu corpo.
Encarei-o indagando com o olhar o que significava aquilo. Ele
curvou o rosto indo na direção do meu, fazendo um movimento
como quem iria me beijar. Quando estava quase encostando falou:
— O contrato. Esse maldito contrato — afastou-sede mim
deixando um espaço para que eu pudesse respirar, coisa que eu
não estava fazendo. Disparou: — Desculpe-me por ontem. Foi o
meu primeiro porre, como lhe disse perdi o controle da situação. —
Ele tinha uma expressão de realmente estar envergonhado. —
Parabéns pelo seu desempenho nas reuniões que tivemos hoje, se
continuar neste ritmo irá progredir rapidamente...
Fiquei lisonjeada, eu já sabia que tinha mandado bem, porém,
o reconhecimento de meu chefe era o meu melhor combustível.
— Mais uma coisinha... — disse olhando para o Garfield na
parte de cima do meu pijama e dando uma risadinha — você estava
linda esta noite... e continua linda agora... — não conseguiu conter o
riso — estou gostando muito de tê-la nesses dias como minha
acompanhante...
Virou-se, saiu do quarto e fechou a porta.
A impressão que eu tive é que um furacão havia passado por
ali e eu me sentia como se fosse o que havia sobrado. Como ele
fazia isso tudo comigo, falava essas coisas todas e simplesmente
virava-se, fechava a porta e ia embora?
Fiquei ali parada pensando em inúmeras formas de reagir e
muitas coisas para falar para ele. Queria aproveitar que estava de
bom humor, mas não tive coragem.
Foi quando eu olhei em direção à porta e vi que no balcão que
ficavaao seu lado havia uma pequena caixa. Peguei o objeto, sentei
na beirada da cama e abri cuidadosamente para ver do que se
tratava.
Não pude acreditar quando constateique era ele: o porta-joias
que tinha visto no leilão. O senhor Scheffer tinha comprado ele para
mim. Essa encenação toda pelo jeito foi a maneira que encontrou
para me entregar.
Admirei mais uma vez o pequeno tesouro que tinha nas mãos,
que agora era meu e agradeci intimamenteo que o senhor Scheffer
havia feito,mesmo sem saber, pois esse objeto fazia com que eu
sentisse a vovó mais perto de mim.
Não tive coragem de bater à sua porta. Fui silenciosamente
até a minha que ele havia fechadoe tranquei. Porém, eu não estava
satisfeitacom o desfecho daquela história. Peguei o telefone e
retornei para o número do qual havia me ligado:
— Boa noite, senhorita Andrade! — falou após chamar pela
segunda vez. Definitivamente esse homem ainda estava sob o efeito
do álcool ou coisa parecida. Ele não era assim...
— Obrigada! — agradeci, emocionada. — Foi muito especial
para mim. — Ele fez um silêncio constrangedor do outro lado da
linha. Comecei a questionar se deveria ter mesmo ligado... —
Desculpe incomodar. — Eu ia desligar.
— Foi um agradecimento por ter cuidado de mim com tanta
discrição ontem à noite. — Ele se justificou.
— Imagina! Sou paga para isso. Boa noite! — Por que eu
liguei mesmo? Comecei a me questionar, ficava muito constrangida
em conversar com ele por muito tempo.
— Espera! Você está com a mesma roupa? — perguntou,
interessado.
— Sim. Eu vou dormir... — respondi sem entender aonde
queria chegar.
— Vamos brincar um pouco? — convidou-me, animado.
— Como? — Eu não fazia a menor ideia do que ele estava
falando.
— Senhorita Andrade, eu nunca fizisso. Sempre fuicom muita
sede ao pote, mas esse contrato que nos envolve tem feito eu
imaginar coisas que nunca tinham passado pela minha cabeça.
Gostaria de tentar uma brincadeirinha erótica com você... —
explicou-me ele como quem fala de uma receita de bolo.
— Entendo... — falei para ganhar tempo — e como funciona
essa brincadeira? Tem certeza de que não fere os termos do
contrato?— tentei fazê-lo voltar para nossa realidade.
— Não. Não fere. Prometo. Não encostarei um dedo sequer na
senhorita — uma tristeza me invadiu. Eu queria que encostasse
muito mais do que um dedo em mim. Pensei em perguntar por que
não me pedia e acabava com aquela tortura mútua.
Não.
Eu ainda não faria isso.
— Funciona assim... — meu chefe começou a explicar: —
vamos dizendo um ao outro o que supostamente faríamos se
estivéssemos um em frente ao outro e...
Senti o meu celular tremer uma última vez e escutei a ligação
terminar pela falta de bateria. Não acreditava no que estava
acontecendo. Saí desesperada pelo quarto na busca do meu
carregador quando o telefone do quarto tocou:
— Isso quer dizer que não quer brincar então?
— Desculpe, fiquei sem bateria. Pode repetir , senhor Scheffer?
— era eu entrando na brincadeira. — Como a ideia foi sua, pode
começar.... — desafiei, apesar do meu nervosismo.
— Senhorita Andrade sabia que tem lábios lindos? Eu neste
exato momento quero dar beijos delicados ao redor deles,
preparando-os para uma mordida suave no lábio de cima e outra
mordida na parte debaixo. — Ele fez uma pausa como se estivesse
me mordendo mesmo. E continuou: — Nessa hora sei que não
resistirá e abrirá a sua boca carnuda para mim, eu aproveitarei para
inserir a minha língua nela e lhe darei o beijo mais arrebatador que
alguém já lhe deu um dia.
Ele aguardou um pouco e como se desse um chute na bola,
passando a para mim, revelou que era a minha vez. Eu estava
completamente envolvida por aquelas palavras, porém
extremamente constrangida: Senhor, que tipo de brincadeira era
essa?
Na verdade, eu estava desesperada, não tinha a menor noção
do que dizer. Não queria estragar a “brincadeira”, mas ele era o meu
chefe,poxa! Aquilo estava totalmenteforade contexto.E se ele não
gostasse? Ele poderia me achar vulgar... Estava ali lutando com os
meus valores e desejos quando ouvi uma tossidinha, mostrando-me
que eu não estava sozinha...
— Senhor Scheffer... — é sério isso? Eu vou brincar
eroticamentecom ele, chamando-o assim? Formulei a frase menos
comprometedora que imaginei e prossegui — aproveitando que está
sentado, vou inalar o seu cheiro maravilhoso, beijar atrás de suas
orelhas e percorrer com a minha língua a distância entre ambas...
— Vou puxá-la para frentedo meu corpo, e retirar a parte de
cima do seu pijama “animado”, deixando os seus seios à mostra,
pois percebi que está sem sutiã — falou sem demonstrar nenhum
pudor por ter me observado com tanta sagacidade.
Quando eu ia continuar, achando que era a minha vez, ele
prosseguiu. — Vou aproveitar que seus seios estão tão próximos
aos meus lábios e vou beijá-los, chupá-los e mordê-los até que um
sussurro saia de sua boca.
— Ahhh, senhor Scheffer, com certeza eu vou sussurrar! —
faleiem voz alta o meu pensamento. Eu estava tão envolvida com o
que ele me sugeria que não conseguia fazer a minha própria
descrição. Fiquei muda esperando que ele aceitasse o que eu disse
como a minha parte na brincadeira.
— Está bem... senhorita... vou deixar passar desta vez... —
falou-me como se fosse um professor muito dedicado — acho que
está vestida demais... vamos tirar esse shorts curtinho? Se
descrever como é a calcinha que está usando fica liberada da
próxima fala... — sugeriu, notando o meu constrangimento.
Eu levantei meu corpo, ainda prendendo o telefoneao meu
ouvido. Tirei o shortinho que estava usando e olhei para o espelho
que estava na minha frente.Estava usando uma calcinha super
confortávelde malha rosa com estampa de ovelhinhas. Imagino que
ele preferia uma coisa bem mais estimulante...
— Minha calcinha é branca — lembrei do único fio dental que
eu tinha. — Na frente ela tem rendas e atrás envolve minhas
nádegas em um fio dental — parei a descrição achando que isso já
era suficiente.
— Que delícia, senhorita! — sussurrou no telefoneao meu
ouvido me deixando ainda mais excitada. — Não vejo a hora de
passar as minhas mãos nas suas nádegas e arrancar essa calcinha
com os dentes.
Eu estava gostando da brincadeira. Mas não me sentia à
vontade de participar dela. Adorava ouvir a voz do senhor Scheffer
ao meu ouvido falando aquelas safadezas, porém, a timidez que
sentia era muito grande para continuar com aquilo.
— Senhor Scheffer, sinto muito! Não consigo continuar...
— Que pena, senhorita! — Ele lamentava o meu
constrangimento. — Me permite continuar brincando sozinho?
Desde que a senhorita continue aí ouvindo?
— Pode ser — afirmei timidamente.
— Se toque, senhorita. Seu corpo é muito bonito. Massageie
os seus seios. Aperte firmementeum de cada vez. Feche os olhos e
imagine que sou eu aí em suas mãos. Minhas mãos percorrem o
seu quadril, brincam com as suas nádegas e arrancam a sua
calcinha — ouço um suspiro como se estivesse se masturbando
enquanto me incentivava a fazer o mesmo. — Veja, senhorita, está
toda molhadinha . Meus dedos escorregam por sua intimidade e aos
poucos vou conhecendo cada parte dela. Encontro sua abertura e
um dedo atrevido entra nela, enquanto o outro dedo passeia pelo
lado de fora.
Mais um sussurro, só que agora ele é meu. Apesar da
vergonha eu me entrego ao prazer que ele está me proporcionando
mesmo que a distância. Não sei se era essa a sua intenção, mas
vou fazendo cada movimento falado por ele. Sinto que não vai
demorar muito para o meu êxtase chegar. Ele continua:
— Senhorita, está gostando? — faço que sim com a cabeça,
como se ele pudesse me ver. — Onde estávamos!? Ah... sim... eu
estava estimulando a sua intimidade, lembra? Ela está aberta e toda
molhadinha para mim. Eu agora estou colocando dois dedos na sua
abertura, ainda consigo estimular o seu botãozinho com o indicador.
Vou beijar seus lábios, enquanto façomovimentos ritmados de entra
e sai — parece que consigo escutar sua língua lambendo os lábios.
— Eu pego o dedo indicador e pressiono como um anzol por trás do
seu clitóris. Massageio a pele estriada que encontro ali. Um dedo
por dentro e outro por fora. Acelero os movimentos e...
Gozo. Tento controlar os gemidos, que são o testemunhodo
meu prazer, mas não consigo. Entrego-me àquele prazer como se
ele não estivesse ali, ou melhor, como se estivesse realmente ali me
proporcionando tudo aquilo. Escuto sua voz novamente ao telefone:
— Senhorita! Durma bem! — parece que consigo ver o sorriso
em seus lábios. — Agora é a minha vez.
Ele desliga o telefone.Eu continuo ouvindo o barulho ritmado
da ligação encerrada em meus ouvidos. Estou exausta e com a
sensação de que acabei de acordar de um sonho. Apago a luz e
adormeço, quem sabe eu continue sonhando.
Capítulo 30
Acordei cedo, olhei no relógio e não eram 6 horas ainda. Por
um instante pensei em ir para a academia, mas mudei de ideia
quando pensei que ele poderia estar lá... Como eu encararia o
senhor Scheffer depois da brincadeira que fizemos? Será que eu
teria condições de agir naturalmente? Preferi arrumar as minhas
coisas e aguardar no quarto, adiando o nosso encontro o maior
tempo possível.
Oito horas em ponto o telefone toca:
— Bom dia, senhorita Andrade, dormiu bem? — o senhor
Scheffer falava com a maior naturalidade, como se ignorasse
completamente o que tinha acontecido.
— Bom dia, senhor Scheffer! — respondi sem dar muita
conversa.
— Vamos tomar café? Achei que encontraria com a senhorita
na academia...
— Prefiro não tomar café... para não enjoar durante o voo. —
Eu estava me sentindo muito constrangida, se pudesse voltar para
casa andando eu voltaria. — Achei melhor deixar as minhas coisas
arrumadas...
— Fique tranquila, senhorita Andrade! Voaremos na parte da
tarde, teremos mais um compromisso agora pela manhã. É bom que
suas malas estejam prontas, pois sairemos do hotel após o nosso
café da manhã... estarei aguardando em frente à sua porta.
Não consegui escapar e ainda ganhei um tempo extra com a
sua companhia.
Quando sai do quarto lá estava ele, lindo cabelos arrumados
para o lado e para trás, porém sem topete.Um terno cinza claro, a
camisa cinza escura e com gravata listrada em cinza e vermelho, as
listras na diagonal. Sua pele clara ficava quase transparente em
contrasteao cinza de sua camisa. Ele me olhou de cima a baixo.
Novamente tive a sensação de que estava nua, apesar de estar de
calça social cinza e uma regata de cetim branca. Vestia também um
casaquinho de mangas 3/4 e scarpin, ambos na cor preta.
Não fizemos a menor menção ao que ocorreu. Fiquei mais
tranquila com isso, pois seria muito constrangedor falar sobre tudo
aquilo olhando para os seus olhos. Pegamos as malas e nos
dirigimos para a recepção do hotel. Ele orientou que as contas
fossemresolvidas com a senhora Macedo. Um carregador pegou as
nossas malas e levou-as para o Audi vermelho que usamos na noite
anterior. Entramos no carro e o senhor Scheffer não se preocupou
com a música, deixando em uma rádio que transmitia notícias
locais. Eu aproveitei enquanto nos deslocávamos para enviar uma
mensagem para a tia Nice avisando do atraso em nosso retorno.
Para minha surpresa estacionamos o carro na rua e ele me
conduziu a um prédio antigo que estava em obras. Mal pude
acreditar quando entendi do que se tratava: o Museu da Língua
Portuguesa. Entramos por uma porta lateral e um homem muito
simpático veio nos encontrar:
— Scheffer! Quanto tempo... como está?
— Como vai, Garcia? Obrigado por me atender hoje. Quis
aproveitar e resolver tudo na mesma viagem... — explicou o meu
chefe. — Está é a senhorita Andrade, minha secretária.
— Venha, vamos ao meu escritório... isso aqui ainda está uma
bagunça — disse o homem meio sem graça.
— Senhorita Andrade, a conversa que terei com Garcia é
particular, aguarde aqui fora, por favor — informou o meu chefe.
— Se não se incomodar com a movimentação dos homens
trabalhando senhorita, fique à vontade para olhar por aí. Não tenha
pressa, faz tantotempo que não consigo trazer Scheffer aqui que
pretendo aproveitar cada segundo.
Ganhei um capacete de segurança e comecei a circular
livremente pelo local. Eu olhava admirada o que tinha sobrado do
Museu e o que já tinha sido recuperado. Podia perceber que além
da reconstrução ainda tinha a parte do restauro, operários
habilidosos lixavam e pintavam cada pequeno detalhe fazendo
aquele lugar, pelo qual eu tinha tantoapreço, renascer literalmente
das cinzas.
Algumas alas estavam isoladas, mas podiam ser visitadas
normalmente. Aproveitei a oportunidade e explorei cada espaço que
consegui. Perdi a noção do tempo imaginando aquilo tudo em seu
devido lugar, com a iluminação e sonoplastia tão peculiares àquele
local. Já estava satisfeitacom o que tinha visto, e considerava que a
visita que me foi concedida estava muito acima de minhas
expectativaspara esse momento. Retornei para a sala onde o meu
chefee o seu Garcia estavam. A porta estava fechada,porém como
se pudessem perceber a minha chegada saíram demonstrando que
a conversa tinha sido encerrada. Achei esse compromisso do
senhor Scheffer uma feliz coincidência. Se é que existia
coincidência alguma ali.

O senhor Scheffer me informou que o aeroporto estava a uns


doze quilômetros de onde estávamos. Levamos meia hora para
chegar devido ao trânsito, mesmo no domingo. O carro que
estávamos era alugado e o senhor Scheffer fez os trâmites para
devolvê-lo quando chegamos ao aeroporto. Gentilmenteperguntou-
me:
— Está com fome, senhorita Andrade?
— Não.
— Tomarei um café, me acompanha?
— Sim.
Depois de estarmos acomodados na mesa de um café muito
aconchegante, ele solicitou para a garçonete dois cafés expressos,
pães de queijo e uma água mineral. Saboreei o meu café aos
poucos enquanto ele fazia o mesmo.
— Senhorita Andrade, os pães de queijo... — senti um tom
impositivo em sua voz. Não tive como evitar e comi os pães de
queijo que por sinal estavam deliciosos.
— E você? Não vai comer? — rebati a sua ordem deixando
alguns para ele.
— Isso não faz parte da minha dieta, senhorita Andrade —
disse olhando sério em meus olhos —, mas muito obrigado por
oferecer.
Foi mais tranquilo viajar de avião, mesmo sendo fretado.Uma
experiência diferentedaquela que tive de estar em um helicóptero.
Fiquei impressionada com o que o dinheiro do meu chefe era capaz
de fazer: alugar um avião apenas para nós dois.
Sentada de frente para ele vendo-o ler o contrato da
construtorafiz um compilado de nossa viagem e de todas as coisas
que ele fez e ao mesmo tempo não fez para me agradar. A forma
com que cuidou de mim na viagem de vinda... Será que ele não quis
se incomodar comigo na viagem de volta, por isso fretouesse voo?
O fato de ter me observado enquanto eu admirava o porta-joias, a
forma com que me retirou do leilão enquanto comprava-o para mim.
A manobra que fez para deixá-lo no meu quarto, sendo que seria
tão fácil me entregar, sem aquele teatrotodo. A nossa "brincadeira"
por telefone... olho para ele e tenho a impressão de que quem
brincava comigo era outro, de forma nenhuma era o homem sentado
à minha frente.A "reunião" com o senhor Garcia, justamente no
lugar que eu mais gostaria de conhecer, tudo bem, que o local
estava descaracterizado, mas reconheço que fiquei muito
emocionada em estar no Museu da Língua Portuguesa, saber que
está sendo reerguido e que grande parte da história de nossa língua
é preservada dentro daquelas paredes. Mais uma vez ele saiu de
cena. Não se comprometeu com o que fazia. Era como se quisesse
me agradar e não pudesse, ou sentisse vergonha de ser bom e
gentil.

O carro do senhor Scheffer estava no estacionamento do


aeroporto de Porto Alegre. Eu achava incrível como os meios de
transportesimplesmente brotavam onde ele precisava. Imagino que
tinha pessoas que trabalhavam para ele que se preocupavam
apenas com isso... Quando chegamos à minha casa percebi a
presença do carro do Leo estacionado na frente.Desci rapidamente
carregando sozinha as minhas malas evitando uma situação
constrangedora entre os dois.
— Obrigada, senhor Scheffer. Até amanhã — despedi-me o
mais rápido que pude.
Ele fez menção de dizer alguma coisa. Abriu os lábios e os
fechou novamente. Fez um sinal afirmativocom a cabeça e partiu.
Fazendo o meu coração chorar à medida que ouvia o barulho do
carro se afastando.

Entrei em casa e vi a tia Nice e Leo assistindo um filme


engraçado que fazia os dois chorarem de tantorir. Demoraram um
tempo para perceber a minha chegada. Minha tia se aproximou e
me abraçou saudosa. Leo permaneceu sentado no sofá e eu falei:
— Oi, Leo! — Eu ainda não sentia vontade de abraçá-lo.
Contei para os dois como foi a viagem, os detalhes do hotel,
dos locais em que fomos, do leilão, a roupa que usei e coisas que
não comprometiam nem a mim, muito menos o meu companheiro
de viagem. Sentia um sentimentode piedade e cuidado tão grande
por ele após o que passamos nessa viagem que não aguentaria
sequer um comentário de crítica ou reprovação.
Eu estava conhecendo-o aos poucos. Cheguei à conclusão de
que não existiam apenas dois Schefferse sim muitos: o adolescente
fogoso que aproveitava uma ligação na madrugada para "brincar"; o
homem romântico que compra presentes caríssimos para me
agradar; o menino que em algum momento da vida perdeu a mãe,
mesmo ela estando viva; o CEO poderoso que manda e desmanda;
o mentiroso que finge beber e o fraco que bebe para ser forte.
Quantas coisas eu queria perguntar para ele. Que dieta é essa
que faz? O que houve entre ele e sua mãe? Por que essa
superstição com coisas vermelhas? Essa eu acho que sabia: dona
Judite. Ela já tinha falado disso para mim, ela usava esmalte
vermelho "Para atraira sorte e espantar o olhogordo..." Mas se era
isso... Ele gostava dela... Se seguia até os seus conselhos com
tantaveemência... Por que não mantinham contato?Por que aquela
crise após beber no hotel? As acompanhantes, por que só mulheres
pagas? Qual a dificuldade que tinha em me ligar? Bem, acho que
depois da última ligação que me fez isso estaria resolvido, será?
Poderia ficar a noite toda listando quantos mistérios
precisavam ser desvendados, e quantos Scheffers eu estava
conhecendo... Adormeci avaliando qual deles eu gostava mais...
Capítulo 31
Aqui estou eu, subindo pelo elevador da SSB mais uma vez.
Tive a impressão de que esse final de semana durou mais do que
um mês. Mas não. Em minha contagem regressiva ainda restam 21
dias. Eu nem preciso olhar para o calendário, é como se cada um
desses 30 dias estivesse tatuadoem mim. A ansiedade de saber
como as coisas seriam agora me deixa muito aflita. Chego,
cumprimento a senhora Macedo, que responde com gentileza, como
sempre. Antes de largar a minha bolsa no encosto da cadeira
escuto:
— Senhorita Andrade, o senhor Scheffer lhe aguarda — alojo
a minha bolsa na cadeira, passo as mãos nervosamente ajeitando o
vestido rodado preto que estou usando, ele é justo no busto e em
evasê até a altura do joelho, estou com uma sandália de salto médio
dourada. E vou em direção à sua sala. Pelo jeito nada mudou.
— Bom dia, senhorita Andrade! — cumprimenta o meu chefe
me fazendo perceber a primeira mudança: agora ele cumprimenta, e
cumprimenta primeiro, isso foi uma surpresa.
— Senhor Scheffer — digo com um aceno de cabeça. — O
que posso fazer pelo senhor? — no exato instanteque falo essa
frase olho para ele e fico vermelha quando penso nas inúmeras
coisas que ela pode representar...
— Pode começar sentando-se, senhorita! — falou com um
olhar malicioso. Após um piscar de olhos o CEO assume e começa
a me passar orientações. — Preciso que organize os materiais das
reuniões de São Paulo em suas respectivas pastas, acrescente os
documentos adicionais que foram gerados e verifique se a proposta
da ConstrutoraDias é consistentepara ser utilizada em Gravataí...
— tive a impressão que tinha finalizado, estava me levantando
quando ele completou — aqui estão os papéis — estica-os para
mim.
Em resposta ao seu movimento, fui com as mãos para frente
para pegar os papéis, ele não os solta. Levanta e ficamos os dois
segurando as folhas juntos como num cabo de guerra. Ele desce o
olhar para minhas mãos que estão segurando os papéis e fixa o
olhar nos meus polegares pintados de vermelho na semana anterior.
Fico meio confusacom a sua atitude,mas entendo o recado quando
vejo que o esmalte já está descascando e percebo o quanto isso lhe
incomoda.
— Tenho horário marcado hoje à noite — minto um pouco
encabulada. Ele solta os papéis e eu vou cuidar das tarefas do dia.

No final da tarde fui para o salão. Geralmente os salões estão


fechados na segunda, mas no salão em que tia Nice trabalhava as
folgaseram feitascom escala e ele não fechavanem aos domingos.
Fiquei desanimada ao perceber que estava cheio e que todas
as manicures estavam ocupadas. Teria que fazer a minha unha
sozinha. Agrupei todo o material que precisaria, olhei para todas as
opções de esmalte que eu tinha ali no salão e escolhi um esmalte
vermelho. Eu tinha uma necessidade de agradá-lo e isso não me
incomodava, era como se fosse natural para mim. Estava em um
canto envolta em meus pensamentos, já ia começar a lixar as unhas
quando senti a presença de uma pessoa aproximar-se de onde eu
estava. Percebi que era um homem pelas calças de terno azul-
marinho. Fui subindo o olhar enquanto ouvi uma voz conhecida falar
comigo:
— Oi. Faz um bom tempo que não te vejo... —Eu encarei o
dono daquela voz avaliando o que sentia.
— Pois é... Rodrigo, né? — olhei ao redor para ver se avistava
a dona Judite.
— Estou sozinho — respondeu percebendo o que eu fazia. —
Esquecemos uma sacola na semana passada e eu passei para
pegá-la.
— Hummm... — demonstrei que entendia. Só não entendia o
que ele fazia ali perto de mim — só um minuto — falei me
levantando e indo buscar a tal sacola.
— Não precisa. — Ele me conteve encostando a mão
levemente em meu ombro. — Sua tia já foi pegar .
Eu olhava para ele com um ponto de interrogação em cada
olho. Percebi que ele notou a minha dúvida. Ficou um pouco sem
jeito e estava virando para encontrar com a minha tia que já vinha
em sua direção.
— Senti sua falta! — revelou com sinceridade. — O tempo
passa mais rápido quando você está aqui. — Ele ficou um tanto
corado e corrigiu a frase: — Você tem muita agilidade para fazer as
unhas...
— Ahh! Obrigada! — falei pensando no que aquela frase
realmente significava. — Agora preciso ser ágil só que no
escritório... — dei uma risada tímida ao lembrar que eu trabalhava
para o seu irmão. Será que ele sabia disso? Por um momento fiquei
tentadaa fazer umas perguntas sobre o seu contextofamiliar... não,
eu não tinha esse direito.
Minha tia aproximou-se dele, entregou a sacola, pediu licença
e se afastou para passar o cartão de uma cliente.
— Tchau, então... — era como se tivesse algo que lhe
prendesse ali.
— Tchau! — respondi sem entender e ansiando ficar sozinha
para fazer a minha unha sossegada.
Ele se virou e foi em direção à saída eu fiquei olhando-o se
afastar tentando entender o que tinha sido aquilo... Será que o
senhor Scheffer havia pedido para ele conferirse eu realmente fazia
as unhas? Não. Acho que ninguém perderia seu tempo com isso.
Muito menos ele.

Quinta-feira. Faltam 18 dias... Cheguei à minha mesa e


constatei admirada que a senhora Macedo não me transmitiu
nenhum recado. Sentei, liguei o computador e notei a presença de
um objeto estranho em minha mesa: um aparelho telefônicosem fio.
Fiquei olhando para aquele objeto mensurando o que aquilo
significavano contextoem que vivíamos e me senti como se tivesse
sido promovida. Levei um susto quando escutei o aparelho tocar.
Fiquei na dúvida se deveria atender ou não. Formulei mentalmente
a frase que falaria enquanto interagia com a pessoa do outro lado
da linha:
— SSB Corporation & Business em que posso ajudar? — foi o
melhor que consegui na pressão em que estava.
— Bom dia, senhorita Andrade! — escutei a voz do senhor
Scheffer um tanto divertida, imagino que pelo fato de estar me
observando pelas câmeras presentes em minha sala. — Gostei da
frase que falou ao atender ao telefone.Se me permite, indicarei à
senhora Macedo que a use, porém, não se preocupe com isso. A
senhorita apenas atenderá aos meus chamados. Ligações externas
ficarão a cargo de senhora Macedo, como sempre foi — fez uma
pausa e deu uma pigarreada. — Senhorita Andrade, estou tão
acostumado com a sua presença em minha sala que não abrirei
mão disso. Pode vir aqui um pouco?
Ele estava especialmente animado essa manhã. Isso me
assustava um pouco. Eu estava tão acostumada com seu jeito
bronco e mal educado de ser que não sabia lidar com seu senso de
humor leve e descontraído. Parti em direção à sua sala um tanto
apreensiva. Ele indicou com uma das mãos que me sentasse. Só
que dessa vez a cadeira estava ao seu lado. Olhei para aquela
cadeira um tantoresistente.Observei que ele viu a minha expressão
e disse:
— Sente-se, por favor, preciso que veja alguns contratosaqui
na tela.
E assim fiz. Apesar de eu ficar muito constrangida com a sua
presença tão próxima, ele fez exatamenteo que me disse, mostrou
alguns contratosque precisavam ser ajustados no mesmo termo.
Uma lei municipal havia sido revogada e os textosnecessitavam ser
atualizados o quanto antes. Sugeri que passasse os contratospara
um pen drive para que eu trabalhasse em minha mesa. Ele disse
que não precisava, que estaria o restantedo dia fora e eu poderia
trabalhar ali mesmo. Eu não ficava muito à vontade trabalhando em
sua sala, em sua mesa, mas não poderia simplesmente salvar os
arquivos sem ter autorização. E foi assim que fiquei o dia todo
trabalhando naquela sala, sentindo a presença dele, mesmo não
estando ali.

Sábado à noite. Ainda são 9 horas e eu já estou com sono.


Vou para o quarto e pego o livro que estou lendo. Conta a história
de uma moça que para fechar um contratose submete a 90 dias de
favores sexuais a um grande empresário. Estou ansiosa para saber
o desfecho da história. Vejo uma luz no meu celular acender,
indicando que recebi uma mensagem:

Número desconhecido:“Boa noite, senhorita”

Não cadastrei esse número ainda, mas sei muito bem de


quem é a mensagem.

Você: “Boa noite, senhor Scheffer!”


Número desconhecido:“Atrapalho alguma coisa?”
Você: “Não, estou lendo um pouco antes de dormir.”
Número desconhecido:“E a história é boa?”
Você: “Muito... estou no finalzinho... muitas emoções... Kkkkkk”
Número desconhecido:“Não quero lhe importunar por muito
tempo... só vou lhepassar algumasinstruçõespara os próximos15
dias.”

Gelei. Fervi. Quase tive um ataque quando me dei conta que


ele também contava quantos dias faltavam.Sorte que estávamos
conversando por mensagens, assim eu conseguiria disfarçaro meu
desespero. Escrevi e apaguei diversas vezes, até que resolvi:

Você: “Aguardando as informações”

Desta vez a resposta foi um áudio:


“Preste bem atenção, senhorita! Poderá escutar esse áudio
uma única vez... espero que eu consiga ser bem claro... vou lhe
mandar uma música.Você deverá colocá-lano despertador do seu
celular
. Toda vez que ouvi-la, saberá que o dia de eu foder a
senhorita está se aproximando...”

Número desconhecido:“Compreendeu?”

Eu fiquei curiosa em saber de que música se tratavae estava


percebendo que novamente estávamos jogando. Era o Scheffer
adolescente que estava comigo agora. Ia clicar na mensagem para
ouvi-la novamente e me deparei com o aviso: “Essa mensagem foi
apagada”. Logo em seguida chegou outro áudio e um vídeo da
Madona, chamada “Erótica”. O áudio era da mesma música, pronto
para ser instalado em meu celular.

Número desconhecido: “Sugiro que olhe a tradução da letra


também...”
Número desconhecido:“Estamos conversados? ...”

Resolvi assistir ao vídeo antes de responder. A batida de uma


bateria se sobressaía aos outros instrumentos.Tive a impressão de
que Madonna não cantava, ela suspirava... Gemia... As cenas
mostravam pessoas em situações sensuais, seminuas, sem pudor,
sem preocupação com gênero, alguns eram dominadores e outros
estavam sendo dominados em flashes de sadomasoquismo. Ao
terminar de assistir fui em busca da letra da música:

“Erótica, romance (repete)


Meu nome é Dita
Serei sua amante esta noite
Quero te pôr em um transe
(...)”

Não consegui continuar lendo aquela letra. Senti um nó na


garganta. Ele não estava brincando como eu imaginava. Estava me
colocando em meu devido lugar.
Número desconhecido:???
Você: Emoji de mãozinha com positivo.

Desliguei o celular. Não pude deixar de abraçar o travesseiro e


chorar um pouco. Quase todos os livros que eu lia tinham finais
felizes. Era um sofrimentosó, uma série de mal entendidos e no
final ficava tudo bem. Isso estava me fazendo chegar a duas
conclusões sobre o que eu estava vivendo com o senhor Scheffer:a
nossa história não tinha acabado. Lágrimas brotaram do meu rosto
quando eu lembrei que faltavamexatamente15 dias para acabar,
como ele havia me lembrado há pouco... A segunda conclusão que
consegui listar foi mais devastadora, o que estávamos vivendo não
era um romance erótico: era vida real.

Domingo. Faltam 15 dias para o término do contrato.Lembrei


de nossa conversa da noite anterior e do quanto ele tinha sido claro
em relação ao que estava acontecendo entre nós. “Boa noite, meu
nome é Sabrina e serei sua amante...”. Por outro lado, eu ficarei
muito feliz por ter a minha vida de volta: a faculdade, a auto-escola,
a academia e o... Leo. Resolvi que só vou retomar a minha amizade
com ele quando tudo isso acabar. Sei que é uma vingança tola, mas
preferi compartilhar a minha sentença com ele para que da próxima
vez pense antes de agir, principalmente quando a vida de outra
pessoa estiver envolvida. Essa minha decisão não faz muita
diferença, pois apesar de eu não agir normalmente com ele, está
sempre aqui em casa, combina tudo com a tia Nice e surge. Hoje,
por exemplo, faremos biscoitos de gengibre.
Peguei o meu celular desligado e fui para o banheiro. Como
hoje não trabalho, não precisei dele para despertar. Encostei-me à
pia. Ensaiei apertar o botão de ligar. Olhei para o vaso sanitário.
Lembrei do dia em que ganhei aquele celular da tia Nice, a
preocupação dela comigo, o início das aulas... Tão distantee ao
mesmo tempo tão próximo. Lembrei da cara safada do senhor
Scheffer, a musiquinha sedutora da Madonna, a mensagem explicita
que tinha nela... Acreditei na possibilidade de terem mais
mensagens dele ali... Eu queria olhar? Um dia eu teria que olhar...
Não.
Agora não mais...
Joguei-o sem hesitar dentro da privada. Ficar sem celular por
uns dias seria estratégico para minha sobrevivência...
Depois do almoço o Leo chegou com o rabinho entre as
pernas como sempre. Apesar de não nos falarmosmuito estávamos
todos envolvidos naquela empreitada de fazerbiscoitos. Quem tinha
inventado isso? A tia Nice contou para ele o meu desastre no
banheiro que havia feitoeu ficar sem o meu celular. Ele olhou para
mim como se fosse oferecer algo... Eu percebi e me adiantei à sua
fala:
— Não se preocupe, tia, na semana que vem eu recebo e
resolvo isso. Vai ser bom ficar uns dias de férias da tecnologia e
seus inconvenientes — olhei séria para o Leo como se lhe
transmitisse uma mensagem. Ele devia saber que eu escondia
coisas... Pela amostrinha que o meu chefe lhe deu naquela manhã
ele sabia. Mas o que ele esperava? Que ele ia me colocar naquela
enrascada e eu ainda ia ficarme lamuriando no seu ombro, como se
fosse o meu melhor amigo? Tá, ele era o meu melhor amigo, mas
não naquele momento...
Escutamos uma buzina de moto no portão. Como eu estava
com as mãos mais limpas fui ver do que se tratava. Era um
entregador. No domingo? Era um pacote pesado endereçado a mim.
Sem remetente. Assinei o recibo. Entrei em casa. Olhares curiosos
voltaram-se para a entrega em minhas mãos. Percebi tateando a
embalagem que só poderiam ser livros... Tia Nice questionou:
— O que era querida?
— Livros — respondi sem muitos detalhes tentando escapar .
— Que livros? — Ela não desistiria. Olhei para o Leo e ele
percebeu o meu embaraço.
— Nice, assim está bom? — Ele tinha esticado a massa de
forma exagerada. Até ela explicar, eu ganharia um tempo...
— Esses livros, tia — mostrei para ela, aliviada, uma coleção
que eu estava pesquisando fazia muito tempo. Não tinha comprado
ainda por achar que estava cara. — Peguei uma super promoção
relâmpago, até a entrega era relâmpago viu?
Eu estava me sentindo muito mal. Estar escondendo tudo isso
dela... Depois que aquele contratofoi assinado eu entrei em meu
casulo e me fechei completamenteàs ajudas externas, acho que é
por isso que esse fardoestava tão pesado para mim... Será que era
realmente necessário que eu sofra sozinha? Em uma de nossas
conversas falamos de verdade e de mentira, não tínhamos faladode
omissão...
Tá, omissão era que nem mentir...
— Não fujam... mas eu esqueci o açúcar de confeiteiroe vou
no mercado comprar... — falou minha tia já saindo com a bolsa.
Eu sabia, ela tinha feitode propósito. Ela queria que eu e o
Leo fizéssemos as pazes... Assim ele largaria um pouco do pé
dela... Sorri. Continuei olhando para o forno enquanto esperava sair
mais uma fornada.Estava sentada em uma cadeira da cozinha e ele
estava de pé. Ele veio em minha direção, se abaixou como se faz
com uma criança e perguntou:
— O que está havendo?
Como uma simples pergunta desarma a gente... Passei os
braços ao redor do seu pescoço e senti um confortoque há muito
tempo não sentia. Chorei. Chorei e escutei atenciosamenteo que
me dizia:
— Sabrina, você não percebe o quão estranha esta história
está ficando? Celulares precisam desaparecer afogados... livros
desconhecidos surgem em um domingo... — fezuma pausa parecia
estar lembrando-se de outras situações para me listar — esse
canalha, está te machucando, chantageando ou coisa do tipo?
Eu permanecia muda, não queria falar, não podia falar... Não
para ele. Não podia admitir para o Leo que eu amava o senhor
Scheffer e toda a sua loucura e que eu sofria por causa do prazo
que estava terminando... E principalmente, pela minha única noite
como sua amante. Como a Madonna cantava em meus ouvidos
ainda.
— Está certo, Sabrina, eu mereço. Mereço a culpa por ter
derrubado cada uma dessas suas lágrimas. — Ele pegou em
minhas mãos, olhou nos meus olhos e sugeriu. — Pelo menos
converse com a Nice, ela é muito reservada, está respeitando a sua
posição... mas está preocupada. Ela te ama, sempre te apoiou e
não merece estar alienada com esta história... Você não precisa
estar sozinha mana... — Ele se deu conta da intimidade que estava
usando e corrigiu: — Sabrina.

A tia Nice já estava deitada lendo, pelo jeito esse era um vício
passado de tia para sobrinha. Sentei-me na sua cama com a trilogia
“Peça-me o que quiser”, da Megan Maxwell e comecei a explicar
tudo de trás para frente.
— Desculpe, tia Nice! Eu tenho escondido umas coisas de
você, não sei se é por vergonha, insegurança ou sei lá o quê... —
puxei o ar e continuei: — esses livros eu ganhei dele, do senhor
Scheffer, não consigo chamá-lo de outro jeito — rimos. — Ele é um
tantobipolar, tri, quadri... sabe-se lá quantos polares existem por
aí... eu gosto muito dele. Em nenhum momento ele me tratoumal,
tocou em mim ou faltou com o respeito — minha tia escutava
atentamente.— Ele faz muitas coisas para me agradar... — contei-
lhe sobre o museu, o porta-joias, o voo fretadoe continuei: — mas,
por outro lado, ele é distante, ele se esconde, age na surdina, como
fez hoje com os livros. Ele não se compromete com nada de bom
que faz para mim...
Peguei um copo de água que estava no criado mudo de minha
tia e tomei todo o seu conteúdo.
— Na nossa segunda noite no hotel, ele me propôs uma
brincadeira erótica, tia, foi maravilhoso — suspirei, apaixonada. —
Só que no dia seguinte, e em todos os dias seguintes ele agiu, e eu
também, como se nada tivesse acontecido. E agora, ontem, ele me
enviou uma música da Madonna para eu colocar no despertador do
celular e lembrar “que o dia que ele ia me foder estava se
aproximando...”— revirei os olhos.
— Até aí tudo bem — continuei. Eu estava gostando da
“brincadeira”, até que ele disse para ver a tradução da música... ela
era uma garota de programa sadomasoquista... o restante da letra
eu nem quis ver. Ele ficajogando esse contratona minha cara... fica
brincando com os meus sentimentos e com a minha sanidade
mental... — pressionei as mãos no rosto e concluí. — Acho que é
isso, tia.
— Se eu entendi certo, o celular não caiu na privada, então?
— disse minha tia descontraída.
Fiz que sim, envergonhada.
— Querida, isso que me contou dava para escrever um livro...
não sei o que te dizer... se o que o Leo nos disse sobre ele é
verdadeiro, ele nunca deve ter namorado ou coisa do tipo. Tudo o
que faz é de cunho profissional e muito dentro da formalidade. É
uma pena que você tenha se apaixonado por ele. Ele não deve ter a
menor ideia do que seja isso. Por outro lado, ele presta a atenção
em você e é muito assertivo nos presentes que te dá, mas pelo jeito
isso não está sendo suficiente, né?
— Ai, tia, eu queria o “felizespara sempre”, mas tenho certeza
de que o fim será bem antes do “felizes” e quem dirá “do para
sempre...”
— Que escolha você tem, querida? — Ela perguntou e ficou
me encarando esperando uma resposta. — Pode desistir? Não.
Pode cancelar? Não. Se pudesse fazeralgumas dessas duas coisas
faria? Não. — Ela ia respondendo suas próprias perguntas e eu
sabia que estava certa. — Voltaria atrás para nunca ter vivido isso?
Não. Se pudesse viver isso pelo resto de sua vida, viveria? — Ela
não respondeu. E isso foi uma flechada em meu peito. — Eu sei a
sua resposta, meu amor, mas infelizmenteesse contrato é entre
duas partes. Ambas devem estar em acordo para isso continuar, e
como você sabe, desde o primeiro dia ele sempre foimuito claro em
sua posição.
Ela segurou as minhas mãos e concluiu:
— E você aceitou.
As lágrimas rolavam em meu rosto antecipando a perda que
eu teria e não queria aceitar. Como sonhar com aquilo, viver aquilo e
no dia seguinte fingir que nada daquilo existiu?
— Não alimente ilusões — por que eu não converseicom ela
antes de acreditarque poderiaser possível?— E decida, senhorita
Andrade... — Ela me encarou seriamente — você vai querer
armazenar mais algumas boas lembranças... e presentes... porque
são a única coisa que irá lhe oferecer... ou vai chegar lá como uma
boa PUTA, abrir as pernas e fazer o serviço pelo qual foi
contratada?
— Tia?! — olhei assustada para ela. Ela estava me mostrando
que ele tinha ao menos um pouco de respeito por mim, preocupava-
se comigo e que de alguma forma tentava amenizar o meu
sofrimento. Ou talvez... onosso sofrimento.
Capítulo 32
Pensei muito sobre a minha conversa com a tia Nice. Ela tinha
razão, como sempre. Tentaria levar esses 14 dias com uma leveza
maior. Já que o sofrimentoseria inevitável. Senti a necessidade de
apresentar uma postura mais ativa. Eu entraria nesse jogo como
uma jogadora à altura do meu adversário.
Acordei mais cedo, meditei um pouco, corri por alguns
quarteirões, tomei uma ducha, comi uma omelete e fui procurar a
roupa que usaria. Escolhi uma saia justa com uma camisa
estampada e um pouco transparente.Achei que era transparente
demais e coloquei uma regata justinha que ainda permitia o visual
sexy que eu procurava. Coloquei saltos um pouco mais altos dos
que usava geralmente. Retoquei as minhas unhas e aproveitei a
carona da tia Nice até o shopping.
Ao entrar por aquele escritório eu estava me sentindo mais
empoderada. Praticamentepeguei o telefoneantes que ele tocasse.
Deixei-o em cima da mesa e fui até a sala dele.
— Bom dia, senhor Scheffer, quais são as tarefas de hoje?
— Bom dia, senhorita Andrade. — Ele estava boquiaberto.
Não estava acostumado a me ver com aquele comportamento.
Olhou-me de cima a baixo e por incrível que pareça eu estava
vestida, e era assim que me sentia. — Nada em especial, senhorita.
Aproveite o dia para terminar com alguma pendência.
Pedi licença e saí da sua sala. Aquilo era a glória. Eu tinha
muitas pendências. Dia após dia ele ia me enchendo de tarefase as
coisas iam ficando acumuladas. Agora eu teria a oportunidade de
terminar com isso.
Estava em horário de almoço. Eu tinha comprado uma salada
para comer na copa. O restantedo tempo eu sempre aproveitava
para ler. Estava ali envolvida com a história que lia e não tinha
concluído no final de semana, quando ele chegou.
— Posso saber por que não atende ao telefone?— Eu sabia
do que ele estava falando... fiz-me de desentendida e fui até a
minha mesa verificar o “telefone”.
— Desculpe, senhor Scheffer... não tocou — respondi com
ironia.
— Estou falando do seu celular...
— Ahhh... tive um infeliz acidente e ele não está mais entre
nós — tenteiagir com naturalidade. — Caiu na privada — confessei.
Voltei a minha atençãopara o livro. Afinalde contas era o meu
horário de almoço, mas achei que ainda poderia me divertir um
pouco mais:
— Precisa de alguma coisa? Se por acaso precisar falar
comigo, pode ligar para o telefone da minha mesa. Em horário
comercial eu sempre atendo — estava me sentindo poderosa. —
Não pretendo comprar outro celular por enquanto... — informei-o.
Eu nunca tinha visto aquele homem sem palavras. Ele saiu da
copa absorto em seus pensamentos. Toda a intimidade que
acontecia entre nós e não era mencionada em nenhum momento,
se dava por meio do celular, ele definitivamenteera um elo
importante entre nós. Pensei que deveria ter agradecido pelos livros,
só poderiam ser dele. Mas preferi agir da mesma forma que ele. Já
que a entrega era anônima, o recebimento também seria.
No meio da tarde, ele retornou cheio de sacolas. Estava tão
envolvida com as “pendências” que não tinha percebido que havia
saído. Minutos depois o telefonetocou e fui solicitada em sua sala.
Ele entregou para mim um aparelho celular novinho em folha. Olhei
para ele sem entender e ele explicou:
— Estar sempre em comunicação com a senhorita é
fundamental.— Ele me olhava com intensidade. — Comprei um
modelo parecido com o seu, só que mais atualizado, espero que
goste. O número permanece o mesmo e quando digitar o seu e-mail
e senha os contatos anteriores serão resgatados.
— Senhor Scheffer... eu não queria... o senhor não devia... —
como falarpara ele que eu não queria estar em contatocom ele fora
dali? Desisti de tentar explicar. — Obrigada pela gentileza. Não
precisava. Pode descontar do meu pagamento no final do mês...
— Não tem de quê, senhorita. Não se preocupe, é um
presente.
Saí da sala dele com o celular em minhas mãos. Sentei em
minha mesa e fiquei olhando para ele e para tudo o que
representava naquele momento.
A tela acendeu e eu ouvi a música do U2 que escutamos no
helicóptero. Olhei para a tela ciente que ele me observava pela
câmera. E lá estava escrito: SCHEFF em letras maiúsculas. Aquilo
era o cúmulo da possessividade. Ele me dava um telefone,escolhia
uma música para eu identificarque é ele quem está ligando e ainda
se dá um apelido carinhoso, que eu não tenho a menor noção se
conseguirei usá-lo... o U2 ainda tocava. Deslizei o dedo em aceitar.
— Pode falar, senhor Scheffer — respondi com a naturalidade
de sempre.
— Era só um teste, senhorita Andrade. Estava testando se
tudo tinha voltado ao normal.
— Está tudo normal. Está tudo tão normal, senhor Scheffer,
que tive a impressão de que este é o meu celular antigo que foi
resgatado daquela privada.
Sem responder nada ele desligou.
Ànoite aproveitei olhar melhor para o meu celular novo, queria
mexer em algumas configurações, ajustar o despertador, e outras
coisas que sempre são feitasquando estamos com um celular novo.
Não pude evitar de lembrar do motivo pelo qual eu havia jogado o
meu celular antigo na privada e fiqueitentadaa verificarse ele havia
acrescentado aquela música da Madonna que tinha me enviado.
Não. Não tinha. Mas tinha outra música ali. E estava selecionada
para quando o despertador tocasse. Digitei seu nome no buscador:
“Just for my Love”, também era da Madonna.
Tive a impressão que apesar de ser sensual também, essa
música era mais leve que a outra. Consultando a tradução da letra
percebi um apelo à entrega independente de qualquer outra coisa,
como se o prazer estivesse acima de tudo. Optei por aceitar a
brincadeira. Deixei a música. Afinal de contas, que mal haveria
naquilo?
Confesso, acordar às 6h da manhã com a Madonna gemendo
no meu quarto foiuma situaçãoinusitada. Desliguei o despertador e
fiquei olhando em direção ao tetotentandome lembrar da frase que
me dissera: “Que o dia que ele ia me foder estava se
aproximando...”. Senti um arrepio percorrer o meu corpo em cada
uma das vezes que aquela cena se repetiu nesta semana. E tinha
certeza de que se repetiria até o último dia.
A semana estava passando normalmente. Estávamos
preparando contratos para um lançamento. O senhor Scheffer
queria que estivesse tudo pronto para quinta-feira,um dia antes do
evento. Eu não tinha sido avisada, nem comunicada, e muito menos
convidada para acompanhá-lo. No final da tarde, de quinta-feira,
quando fui avisar-lhe que os contratosestavam todos prontos e ele
anunciou:
— Já escolheu o vestido que vai usar?
— Como? — Eu senti um misto de friona barriga com soco no
estômago.
— Amanhã... temos um compromisso. — Ele avisou na maior
naturalidade.
— Claro — desconversei. — Estava tão envolvida com os
contratos que acabei esquecendo... quando sair daqui vou ao
shopping e vejo alguma coisa...
— Como assim? E o seu closet? — Ele olhava de uma forma
inconformada para mim.
— Desculpe, senhor Scheffer, não me sinto à vontade com
isso... — Eu estava tentando entender exatamente o que me
incomodava.
Ele levantou-se em um impulso, segurou a minha mão e me
puxou em direção à porta. Retirou um molho de chaves do bolso,
abriu a porta e me conduziu para dentro. Sentou-se em uma cadeira
que eu não reparei estar lá da última vez em que eu estive ali.
— Escolha! — Ele falouindicando a variedade de vestidos que
se encontravam ali.
Eu não sabia o que fazer. Sabia que precisava escolher um
vestido. Tinha a impressão de que se não o fizesse ficaríamos no
closet por um tempo maior do que eu queria ficar ali. Avistei um
vestido amarelo. Ele era simples, de alças. Tirei-o do armário para
observar com mais atenção. Estiquei o braço e ouvi sua voz
urgente:
— Prove-o.
Fui em direção à porta que eu sabia que era um banheiro com
o vestido. Provei e olhei para o espelho de corpo inteiro que tinha
atrás da porta. Cheguei à conclusão que ficou maravilhoso em mim.
Sua saia tinha um corte irregular com pontas e na sua frentetinha
um tecido transpassado com um detalhe bordado com lantejoulas
também amarelas que permitiam um brilho discreto conformeeu me
movimentava. Fiquei receosa se deveria mostrar para meu chefe
como o vestido tinha ficado. Levando em consideração que foi ele
quem pediu para eu provar, que seria ele a pagar pelo vestido, achei
justo pedir a sua opinião.
— Gostou? — perguntei ao sair do banheiro.
Eu estava andando na ponta dos pés, como se estivesse de
salto. Ele fez um sinal para que eu me aproximasse, indicou a
cadeira para que me sentasse e saiu em busca de alguma coisa.
Voltou com uma sandália branca altíssima. Agachou-se na minha
frente.Tomou um de meus pés com delicadeza e colocou a sandália
cuidadosamente em mim. Agiu da mesma forma com o outro pé.
Aquilo me deixou completamente desarmada, hipnotizada, nem
preciso dizer apaixonada, porque isso eu já estava. Ajudou-me a
levantar e me conduziu até onde estava outro espelho. Parou atrás
de mim, passou as pontas dos dedos em meus braços e sussurrou:
— Ficou linda, senhorita Andrade! — parecia que eu
conseguia sentir o desejo em sua voz. — Espero que não considere
a minha pequena ajuda como uma quebra em nosso contrato...
— Desta vez passa... — respondi dando-lhe um sorriso.
— Não leve nada para casa. Quero que se arrume aqui.
Sairemos juntos... daqui — não foi uma sugestão, ele estava no
controle e não havia o que contestar.
Fiz como sempre fazia quando tínhamos algum evento. Já fiz
as unhas, lavei e escovei os cabelos na véspera. Como o meu
vestido era claro achei que ficaria legal um contrastecom a pele
bronzeada, para isso passei um autobronzeador.
Trabalhei o dia todo. Quando o expediente terminou, mesmo
contrariada, fui até o closet para tomar um banho. Coloquei uma
bermuda e uma camisa de mangas curtas e me dirigi até o salão
para que tia Nice finalizasse o meu penteado e fizesse a
maquiagem. Escolhi os cabelos bem lisos escovados para trás com
a franja no estilo moicano. Como estava de amarelo preferi um olhar
mais marcante com tons de dourado. Voltei ao “meu closet” para
terminar a produção e para minha surpresa encontro o senhor
Scheffer parado na porta me esperando com o celular na mão,
olhando-me indignado.
— O que houve? — questiono.
— O que houve digo eu... — Ele estava ligeiramente alterado.
— Eu disse que era para você se arrumar aqui... chego aqui e cadê
você? Sabia que estamos atrasados?
— Sinto muito, senhor Scheffer, fui ao salão. Preciso apenas
colocar o vestido e a sandália... — pelo jeito hoje eu não teria ajuda
para isso — e o senhor? Está pronto? — questionei percebendo que
ele estava com o mesmo terno que trabalhou o dia todo.
— Apronte-se... — disse ele dirigindo-se ao elevador — volto
logo.

Escutei uma batidinha de leve na porta, o que me fez lembrar


do quarto conjugado que ficamos em São Paulo. Abri a porta e
fiquei surpresa em como ele conseguia ficar pronto em tão pouco
tempo. Eu poderia dizer lindo, mas ele já estava lindo antes... Vestia
um terno completamentepreto, com uma camisa igualmente preta e
uma gravata amarela, com tonalidade muito parecida com a do
vestido que eu estava usando.
Eu não sabia exatamenteo que eu tinha feitoque deixou ele
tão na defensiva como estava. Estávamos dentro daquele carro sem
música alguma. O mau humor dele era tão grande que se eu
esticasse a mão em sua direção tinha a impressão que poderia
pegá-lo. Resolvi quebrar o gelo:
— Tomei a liberdade de pegar esses brincos emprestados —
coloquei a mão nos brincos dourados pendurados em minhas
orelhas e olhei para ele. — Na segunda-feira, devolvo.
— Já te disse que tudo que está lá é seu... — Ele fechou a
cara como se sentisse algum tipo de dor — por que tantaresistência
em usar?
— Eu acredito que o que é meu, eu comprei ou ganhei.
— Bem isso. Tudo que tem lá eu te dei — rebateu
rapidamente.
— Senhor Scheffer, o senhor me disse que eu poderia usar.
Isso é diferente — não sei por que estávamos tendo aquela
conversa... eu não sabia se deveria continuar com aquilo.
— As roupas não lhe agradam? — Ele insistia naquele
assunto.
— Senhor Scheffer, estamos indo para um evento importante e
ainda temos que ajustar algumas falas... vamos aproveitar esse
tempo para isso? — tentei desviar a sua atenção.
— Certo. Depois resolveremos sobre as roupas...

Foi um evento maravilhoso. Era o lançamento de um


condomínio chamado de Vale dos Girassóis, não podíamos estar
vestidos de forma melhor. Desta vez escolhemos o formato de
coquetel, com mesas de frutas,de doces finos, de frios, sem falar
das bebidas, cujo destaque era o champanhe. Desta vez o senhor
Scheffer optou por um vídeo que explorava todos os aspectos do
empreendimento. Sem falar da magnífica maquete que permitia
observar cada detalhe em miniatura. Localizei algumas falhas
cometidas pela empresa que prestou serviço ao evento. Com jogo
de cintura, consegui ajustar a maior parte das coisas antes que os
convidados chegassem. Em nenhum momento importunei o senhor
Scheffer, tinha conhecimento de como estava irritado antes de
sairmos do SSB e não queria que os inconvenientes estragassem
ainda mais a sua noite. No final deu tudo certo.
Estávamos em seu carro. Sentia que a sua irritação havia se
dissipado e estava mais agradável estar na sua presença. O senhor
Scheffer escolheu uma música em seu celular e enviou por
Bluetooth.Começou a tocar uma música totalmentedesconhecida
para mim. Estávamos parados em um sinaleiro. Ele pegou o celular
novamente, olhou para mim e perguntou:
— Alguma preferência? Que música quer ouvir?
— Pode ser “Nando Reis” — respondi não querendo me
comprometer muito com o que tocaria.
Em instantes começou a tocar “Por onde andei” e eu
compreendi que aquela música dizia muito mais sobre nós dois do
que talvez estivéssemos preparados para ouvir.
— Você prefere que eu entregue as roupas em sua casa? —
perguntou o meu chefe com um tom informal.
— Como? — Eu estava procurando entender o que estava
dizendo.
— As suas roupas. Do closet. Quer que eu as leve para a sua
casa? — Ele insistia naquele assunto.
— Não. Pra falar a verdade nem caberiam em minha casa e...
— aquela era uma constataçãodolorosa — logo o nosso contrato
acaba e não precisarei mais delas — falei prestando atenção nas
palavras de Nando Reis que agora cantava Relicário : “Eu estava em
paz quando você chegou...”. Eu poderia ter escolhido um cantor
menos assertivo ao que estava ocorrendo comido naquele
momento.
Ele não rebateu a minha resposta. Não questionou. Nem
concordou. Simplesmente se calou. Aquela era uma verdade, uma
condição que vivíamos em comum e por mais que doesse dizer
aquilo de forma tão seca e direta, eu precisava. Não poderia me
enganar e fingir que éramos um casal normal, com um
relacionamento normal e que tudo ocorreria normalmente. Não era
assim. E não era assim que era para ser. Só era. Do jeito que
estava sendo...
Capítulo 33
Sábado. Contando com hoje faltamnove dias para o término
do contrato. Acordei mais tarde, pois o peso da semana corrida
estava cobrando o seu preço. Quando levantei e encontrei a tia Nice
no banheiro ela me deu um sorrisinho que não consegui decifrar o
que significava. Ao chegar à cozinha entendi: tinha uma ikebanade
girassóis em cima da mesa.
Para minha surpresa tinha um cartão: “Você trouxe luzpara o
evento! Scheff” . É claro que fiqueifeliz.Com certeza eu tinha amado
o presente. Mas a impessoalidade daquele cartão me deixou no
mínimo intrigada. Quem eu era para ele? Senhorita Andrade?
Sabrina? Ou apenas senhorita, como ele me chamava nos
momentos de intimidade... Se é que eu poderia considerar o que
nós tivemos até agora como momentos de intimidade...
Eu considerava aquilo como um jogo. Ele queria me manter
envolvida até a jogada finalque encerraria com tudo isso. Eu repetia
diariamente a expressão: “Apenas uma noite!” Eu precisava me
convencer disso até segunda-feira. E aceitar isso pelo resto da
vida...
Comecei a me questionar se deveria ou não agradecer a
gentileza do meu chefe... Eu não sabia até que ponto queria
incentivar aquele tipo de coisa... Ficava muito constrangida com os
presentes que me dava. Não queria de forma alguma passar por
interesseira... Sinto o telefone vibrar em meu bolso.
Olho o visor. Mensagem de SCHEFF. Por que diabos quer ser
chamado de SCHEFF? Dei risada ao perceber que para ser
CHEFE, faltavaapenas uma letra. Fui aos contatose alterei: Chefe.
Exatamente isso que ele era para mim. Fui à mensagem:

Chefe:Bom dia!

Senti que ele estava querendo sondar o ambiente e respondi:

Você: “Bom dia!”


Tirei o celular do vibrador, deixei no silencioso, pensei em
desligar, mas não fiz.Eu não queria incentivar conversinhas, pois eu
já sabia onde aquilo ia dar... Achei melhor colocar um ponto final
naquela conversa. Mas antes fui falar com a minha tia.
— Tia, vamos para o sítio? Depois que a vovó morreu, não
voltamos lá... — essa foi a minha tentativa de fugir
.
— Por que isso agora, Sabrina? — pensei secretamente:
porque lá o celular não pega , mas não foi isso que eu disse.
— Tenho saudades, às vezes... — e não era mentira.
— Você tem ideia da poeira que vai estar lá? O dia que
quisermos ir vamos ter que pedir para alguém limpar antes... —
disse minha tia já espirrando só de pensar na poeira — no final de
semana que vem, talvez...
Minha tia parou por um instante, olhou para mim e percebeu
que na semana que vem era o último dia de nosso contrato.Como
por um passe de mágica ela leu meus pensamentos e falou:
— Traga o seu celular aqui, Sabrina.
Eu entreguei o celular para ela. Pelo seu olhar pude perceber
que ela desvendara o mistério:
— Você pode até sair daqui. Pode até ficarsem olhar o celular,
mas as mensagens vão continuar existindo... e você vai ter que dar
conta delas. Não vai me dizer que vai jogar o celular na privada de
novo? — perguntou ela rindo carinhosamente. — Uma semana,
meu amor... está terminando. Aproveite cada segundo que tiver com
ele por essa semana. Você o ama, não é? Vai ser difícil... depois eu
te ajudo a juntar os cacos... mas agora aproveite. Vá para o quarto e
lhe diga que sua flor preferida são os girassóis e brinque com ele
também...
Segui o conselho da minha tia. Fui para o quarto. Mas não tive
a menor vontade de olhar para aquele celular. Ela veio e entregou o
aparelho em minhas mãos... A curiosidade tomou conta dos meus
pensamentos...

Chefe:Recebeu as flores, senhorita?


Chefe:???
Chefe:Estava linda ontem!
Chefe:?????
Chefe:Não quer conversar?????
Você: Sim, são lindas!
Você: Obrigada!
Você: Desculpe, mas aqui em casa sábado é dia de faxina...
Chefe:Emoji de carinha pensando
Você: Agora preciso ir...
Chefe:Tudo bem... podemos conversar à noite?
Você: Emoji de carinha pensando

Queria inventar um compromisso qualquer para fugir de


conversar com ele num sábado à noite, mas não consegui:

Você: Emoji de mão com positivo

O dia passou rapidamente. Além da faxina, a tia Nice resolveu


plantar algumas flores. Passamos a tarde revirando a terra e
enchendo vasos. No domingo seria o dia do plantio. Muito bom, pois
dessa forma teria ocupação para o final de semana todo.

Já estava acomodada em meu quarto quando recebi a


primeira mensagem:

Chefe:Boa noite, senhorita!


Você: Boa noite, senhor Scheffer!
Chefe:Teve um dia produtivo?
Você: Sim.Além da casa limpa,deixamoso quintalpreparado para
receber flores amanhã.
Chefe:Nossa! Então o serviço ainda não terminou...
Você: Não. Emoji de carinha com olhos revirados.
Chefe:Nunca fiz isso.
Você: Faxina?
Chefe:Não, jardinagem...

Pensei em convidá-lo. Seria muito atrevimento de minha


parte? Lembrei: é um jogo. Joguei.

Você: Estamos contratando e não exigimos experiência...


Chefe:Não, obrigada pela oportunidade ;-)
Você: Uma pena..., o Leo, quer dizer, o senhor Velazquez nos
ajudará nesta empreitada.

Começo a escutar a música do U2 tocar em meu celular.


Atendo ao telefone.
— Que história é essa que você tem com o Velazquez? — sua
voz era irritada.
— Como assim? Somos amigos... — respondi gostando do
barraco que eu estava prestes a conseguir.
— Ele vive enfurnado na sua casa... vocês têm alguma coisa?
— Sim... — fizum suspense e concluí: — uma ótima amizade.
Eu, ele e a minha tia somos muito amigos. Saímos juntos, vamos ao
parque, ao supermercado, essas coisas que as pessoas que se
gostam e se respeitam fazem...
O telefo ne ficou mudo. Tive a impressão de que ele não tinha
a menor ideia do que eu estava dizendo. Seus contatoseram todos
impessoais. Para diminuir a distância que tinha acabado de criar.
Conclui a conversa;
— Boa noite, senhor Scheffer. Eu preciso descansar. Amanhã
terei um dia cheio.
— Sim, tem razão, senhorita Andrade!
No fundo, bem no fundo eu esperava que ele aparecesse ali.
Só que isso não aconteceu, mas foi divertido trabalhar com o Leo e
a tia Nice.
No final da tarde teve até banho de mangueira. Eu estava
menos arredia com o Leo. Eu sabia que aos poucos a gente ia se
entender. Comemos a lasanha que sobrou do almoço com uma
salada. E fomosassistir a um filmepara encerrar o domingo. Senti o
celular vibrar e já sabia o que esperar:
Chefe:Boa noite, senhorita!
Chefe:Está sozinha?

Pedi licença, me despedi do Leo, indicando que não retornaria


e fui para o meu quarto.

Você: Boa noite, senhor Scheffer! Agora estou...


Chefe:Posso saber o que fazia antes?
Você: Está querendo me ligar novamente?

Quis pontuar que ele não gostaria da resposta.

Chefe:Pode dizer , pura curiosidade apenas...


Você: Estávamos na sala assistindo a um filme...
Chefe:Estávamos? Velazquez está aí?
Você: Emoji de mãozinha com positivo
Chefe:Que filme?
Você: “Verdade ou desafio?”
Chefe:Estava gostando? Podemos falar outra hora...
Você: Não. Não curto terror... obrigada por me dar uma desculpa
para sair de lá...
Chefe:Quer brincar de “verdade ou desafio” comigo, senhorita?
Você: Não teve infância, senhor Scheffer?

No instanteem que enviei aquela frase me arrependi. Tentei


apagar, mas ele já tinha visto...

Chefe: Brincar faz parte da vida, senhorita. Se estiver disposta,


brincaremos muito esta semana...
Você: Posso saber o tipo de brincadeira antes de aceitar?
Chefe: “Verdade ou desafio”...duas perguntas por noite, o que
acha? Nenhum desafio deverá ser maior do que um dia.
Você: Emoji de carinha pensando
Chefe:Posso começar?
Você: Pode.
Chefe:Verdade ou desafio?
Capítulo 34
Pensei que a minha vida era um livro aberto. E que desta
forma eu não teria nada a esconder
... Então respondi:

Você: “Verdade”
Chefe:Você e o Velazquez já se beijaram?

Fiquei indignada com a minha inocência... Claro que ele ia


explorar isso... Por mais que o nosso beijo tenha sido tão inocente
do jeito que foi... Do segredo do Leo que eu em hipótese nenhuma
contaria... Fiquei aliviada de o jogo envolver apenas perguntas
referentesa mim. Foram as três letras mais difíceis de digitar da
minha vida...

Você: Sim... minha vez. erdade


V ou desafio?
Chefe:Verdade.

Não quis dar muito tempo para ele pensar a respeito da minha
resposta. E agora? Ele está me dando a oportunidade de
perguntar!!! Uau!!! O que eu pergunto para ele? Eu tinha tantas
coisas para perguntar, mas o nervosismo de ser pega de surpresa
me deixou sem ideias... já sei...

Você: Como está vestido agora?


Chefe: Eu não estou vestindo nada. Quer que eu descreva mais
alguma coisa ou já está satisfeita com a resposta?

É cada ideia de jerico que tenho... Quando que eu ia imaginar


que ele estivesse pelado? Que sem graça. Tem gente que não sabe
brincar... Fiquei completamentesem graça, mas é vida que segue,
preciso ficar mais atenta...

Você: Ok.
Chefe:Segunda rodada. Verdade ou desafio?
Pensei em desafio.Mas sabe-se lá o que ele iria me desafiar...
Por outro lado, se ele explorasse as minhas verdades, eu poderia
ter mais chances de explorar as suas...

Você: Verdade
Chefe:Você e o Velazquez já transaram?

Tive vontade de mandar carinhas gargalhando para ele. Essa


foi fácil. É impressão minha ou ele tem ciúmes do Leo?

Você: Não. Verdade ou desafio?


Chefe:Verdade

E agora? O que eu pergunto? Pensa... Pensa... Será?

Você: Qual é o seu maior medo?

A resposta não veio imediatamente.Eu via a informação de


“digitando...”, mas a resposta não vinha. Não pude deixar de
imaginá-lo escrevendo e apagando inúmeras vezes a resposta. Será
que eu tinha pegado pesado?

Chefe:De nunca conseguir superar os meus fantasmas...


Chefe:Boa noite, senhorita! Foi uma excelente partida!
Você: Boa Noite!

Segunda-feira. Faltam 7 dias. Como sempre, nenhum


comentário sobre as conversas do final de semana. Atendi a sua
ligação matinal que me chamava em sua sala. Fui. Sentei-me à
cadeira à sua frente. Era tudo muito previsível, rotineiro e ritmado.
Recebi muitos elogios pelo meu trabalho antes e durante o
evento de sexta-feira.Apesar de eu não o ter informado, o senhor
Scheffer estava atento ao que ocorria e assistiu de camarote eu
resolver cada um dos problemas que surgiram. Ele informou que
para o próximo evento eu deverei estar mais próxima da empresa
organizadora para que eu possa desfrutar do evento com mais
tranquilidade e evitar imprevistos de última hora. Não aconteceu
nada de diferente, nem um olhar, uma piada, uma segunda
intenção, ou seja, nada. Era muito estranho tudo isso. Eu não
compreendia. Era como se realmente fosse outra pessoa que
“brincava” à noite comigo.

No horário que geralmente entrava em contato lá estava a


primeira mensagem:

Chefe:Boa noite, senhorita! Quer começar?


Você: Boa noite, chefe! Pode ser
...

Testei aquela palavra e ele não se opôs...

Você: Verdade ou desafio?


Chefe:Verdade
Você: Por que durante o diase comporta com discriçãoem relação
a mim e à noite me convida para esses “joguinhos”?
Chefe: Prefiroter as coisas em seus devidos lugares. A SSB é o
nosso local de trabalho. Não podemos deixar que nossas
“brincadeiras”adentrem esse espaço, porque quando tudo isso
acabar quero continuar desfrutando do seu profissiona lismopor
muito tempo.

Xeque. Foi assim que me senti: encurralada. Ele havia traçado


uma estratégia.Desta forma continuaremos trabalhando juntos sem
envolvermos distrações... Como se o que está acontecendo entre
nós nunca tivesse existido... Para minha infelicidadeisso faziamuito
sentido.
Chefe:Verdade ou desafio?
Você: Verdade
Chefe:Com quantos homens já teve intimidade?
Você: Que tipo de intimidade?
Chefe:Tudo bem, vou reformular
...
Chefe:Com quantos homens já transou?

Senti-me humilhada com aquela pergunta. Tive vontade de


perguntar para ele se perguntava isso para todas as
acompanhantes com quem saía. Afinal, que importância teria isso?
Sentiria-se incomodado com a minha inexperiência?
Pensei em fazer uma brincadeira e perguntar se as mulheres
não contavam... Mas, pra variar eu que ia me complicar, como
sempre. Será que adolescente valia? Homem mesmo... Nenhum...
Engoli em seco e respondi escrevendo o número por extenso para
ver se parecia maior...

Você: UM
Você: Verdade ou desafio?
Chefe:Verdade

Procurei mudar completamente o rumo da conversa,


perguntando para ele uma coisa que sempre me deixou intrigada:

Você: Que dieta é essa que faz? o


Vcê come tão pouco...
Chefe:Dieta paleo alternada com jejum intermitente...
Você: Interessante...
Chefe:Verdade ou desafio, senhorita?

Pensei em testara sua estratégiae ver que tipo de desafio me


apresentaria.

Você: Desafio.
Chefe:Amanhã fique o dia todo sem calcinha.
Você: Mas...
Chefe:Sem “mas”..., senhorita. Boa noite!
“Senhor, aonde eu fuiamarrar o meu burro...” Ele só podia
estar brincando, mas não estava.

Terça-feira.Faltam 6 dias. Tudo está ocorrendo como sempre,


fora o fatode eu estar sem calcinha e ele saber disso. Como um
perfeito ator, não esboça nenhuma expressão que não seja
esperada em um ambiente profissional. Para ajudar ele pediu que
eu fosse até a corretora do Leo buscar alguns documentos. Na hora
eu sinto um bloqueio, pois eu estou de saia e sem calcinha... E vou
ficar desfilando por aí, já que o andar do Leo é na parte mais baixa
do edifício. Foi estranho, ninguém sabia, mas eu sim...

Eu já estava quase indo dormir e ele ainda não tinha entrado


em contato.Cheguei a pensar que esta noite não teria brincadeira.
O U2 chamou minha atenção. Era ele. Por ligação? Isso seria
embaraçoso...
— Boa noite, senhor Schef fer.
— Boa noite, senhorita! Pelo que me lembro, hoje é a minha
vez de começar... — informou, ansioso — Verdade ou desafio?
E agora? Verdade, ele saberia pelo tom da minha voz o meu
possível embaraço. E desafio... Sabe-se lá o que poderia sair
daquela mente tão criativa...
— Estou esperando, senhorita...
— V-verda-dade — respondi com insegurança.
— Vamos lá, então... — parecia que tinha pensado naquilo o
dia todo — como foi a experiência de desfilar o dia todo sem
calcinha?
— Foi... foi... — foi uma experiência maravilhosa e a partir de
hoje eu não comprarei mais calcinhas... que babaca, ele tinha tudo
isso planejado — foi estranho.
— Só isso? Estranho? — meu chefe não estava satisfeito.
— É, foi estranho e ao mesmo tempo excitante...digamos que
lembrei da minha “intimidade” muito mais do que queria em meu
ambiente de trabalho.
— Só no seu ambiente de trabalho? — Ele se referia à minha
ida à corretora do Leo.
— Desculpe, chefe, mas isso seria outra verdade e agora é a
minha vez. Verdade ou desafio?
— Vejo que está se aperfeiçoandomuito neste jogo, senhorita.
Verdade.
— Como se sentiu ao saber que eu estava sem calcinha?
— Fiquei muito excitado. Imaginei a cada cruzada de pernas
sua, como deveria ser delicioso tirar aquela saia e poder brincar
com a sua intimidade desnuda. Fui tentado várias vezes a jogar tudo
pro alto e dar um fim a esse contrato.Confesso que esse foi um
desafio para mim também...
Estava sem fôlego com a resposta dele. Ele conseguiu
respostas em meu corpo também.
— Senhorita?! Está me ouvindo? — senti um sarcasmo em
sua voz. — Verdade ou desafio?
— Desafio — essa história de ter que ficar falando com ele
estava muito constrangedora. Era melhor encarar o desafio de uma
vez.
— Desculpe, senhorita, tomei a liberdade de colocar um objeto
em sua bolsa — agora entendi porque pediu para que eu fosse à
corretora do Leo. Ele não dava ponto sem nó mesmo... — pode
pegar, por favor?
Não foi difícil encontrar o intruso em minha bolsa. Era uma
caixinha retangular. Quando abri, observei um objeto que parecia
ser um batom. Porém ao analisá-lo melhor percebi que vibrava. Era
um vibrador.
— Isso mesmo, senhorita. É um vibrador clitoriano — disse-me
escutando o aparelho vibrar. — Seu desafio é explorar o seu corpo
com ele. Comece pelos lábios, depois vá a cada um dos seus
mamilos... aumente a intensidade e passe nas suas coxas. Aumente
a intensidade e passe nesses lábios vaginais que ficaram tão
desprotegidos hoje... aumente a intensidade e... use a sua
criatividade — podia perceber pela sua voz que estava se
deleitando com o meu desespero. Quando eu ia desligar, escutei a
sua última recomendação. — Não desligue. Preciso ter certeza de
que está realmente sendo uma senhorita honesta.
Foi uma experiência muito excitante, mas constrangedora.
Contive-me para não gozar enquanto ele ouvia. Depois eu poderia
fazer isso, estando sozinha. Já chegava aquela outra vez que eu
não havia me controlado e me deliciado com suas palavras em
meus ouvidos. Respirei fundo. Refiz-me e reivindiquei a minha
jogada.
— Pronto! Verdade ou desafio?
— Nossa, que destemida! Desafio.
Era a minha deixa. Eu havia planejado muito aquilo. Era a hora
de me vingar dele.
— Senhor Scheffer, a partir da data de hoje, incluindo a
mesma, às 22h seu despertador deverá tocar e vai ter que assistir
ao vídeo que lhe enviarei em seguida. Sei que não precisará
traduzir, porque fala inglês fluentemente...— Eu sabia que ele
estava escutando, apesar do silêncio do outro lado da linha — só
mais uma coisinha... cada vez que isso acontecer, quero que lembre
que existem 10 passos para chegar ao “to number one” comigo. Boa
noite, chefe. Durma bem.
Quando faltava m alguns segundos para o horário combinado,
cliquei em enviar e encaminhei o vídeo para ele. Se tratavade uma
contagem regressiva erótica de Touch & Go, chamada Straight To
Number One. Depois que ele selecionou a segunda música da
Madonna para tocar em meu despertador, eu comecei a procurar
uma que pudesse em algum momento utilizar com ele. Agora eu tive
essa oportunidade e estava reluzente.
Capítulo 35
Quarta-feira.Faltam 5 dias. Eu olhava para a cara do meu
chefe enquanto ele me passava as orientações do dia e eu ficava
pensando em como ele poderia ser tão disciplinado. Fui pesquisar
essa tal dieta paleo que ele faz e fiquei impressionada em como é
restritiva.O jejum intermitent
e, então, nem se fala...Mas o que mais
me impressionava era o fato dele conseguir separar a vida
profissional da vida pessoal – na verdade sexual para ser mais
exata -, porque vida emocional com certeza ele não tinha...

Quarta-feira,geralmente era um dia mais tranquilo para minha


tia no salão. Geralmente nós saíamos do serviço e fazíamos
compras ou íamos à feirade orgânicos para reabastecer a geladeira
e aproveitávamos para fazer um lanche.
Neste dia a feirinhafoia nossa opção. Foi tão bom andar ao ar
livre, ver gente, comer gordices, e para nossa sorte pudemos
assistir a uma apresentação de artistas de rua, estavam todos
vestidos de palhaço e encenavam situações engraçadas que
poderiam acontecer com qualquer pessoa...
Levando em consideração a nossa rotina habitual, estávamos
chegando em casa bem tarde. Ajudei tia Nice com as compras,
tomei um banho e fui dar uma olhada em meu celular. Fiquei
assustada com o que vi: 30 mensagens e 10 ligações do senhor
Scheffer. Esqueci completamentedo nosso jogo. E agora? Ligo ou
respondo por mensagem? Olhei o teor das mensagens dele, ele
perguntava o que estava acontecendo, se estava tudo bem, se eu
poderia ligar... Coisas do tipo. Cheguei à conclusão de que por
mensagem seria melhor.

Você: Boa noite, senhor Scheffer! Pode falar agora?


Chefe:O que houve? Está tudo bem?
Você: Estava fazendo compras com a minha tia... fizemosum
lanchee assistimosa uma apresentação na feira...saindo da rotina
um pouco.
Chefe:Que bom que se divertiu... muito cansada para jogar?
Você: Trato é trato.
Chefe:Ele estava lá?

Pensei em fazer um charme e perguntar quem era “ele”. É


claro que eu sabia: Leo. Eu estava ganhando algum tempo em
nossa brincadeira com essa obsessão que o senhor Schefferestava
demonstrando por ele. Será que era ciúmes? Ou era pura disputa
por território? Eu não ia facilitar as coisas para ele, dando respostas
de forma gratuita.Ele queria jogar, não queria? Então, que aprenda
a seguir as regras.

Você: Já estamos brincando? Que eu me lembre, quem começa


sou eu...
Você: Verdade ou desafio?
Chefe:Desafio
Você: Amanhã está proibido de me ligar ou de me mandar
mensagens...
Chefe:Ciente. Verdade ou desafio?
Você: Verdade.
Chefe: Se tivesse oportunidade, transaria comigo independente
deste contrato, senhorita?

De onde esse cara tira essas perguntas? Isso está sendo


injusto...

Você: Emoji de mãozinha com positivo.erdade


V ou desafio?
Chefe:Verdade.
Você: O que faz em seus momentos de lazer?
Chefe:Eu não tenho momentos de lazer.
Você: E agora?
Ele me enviou uma fotodo seu notebook ligado em seu colo.
Na tela tinha uma planilha de materiais de construção. Ainda estava
vestido com a calça do terno.

Chefe:Preciso terminar isso aqui.


Você: Não deveria misturar trabalho e diversão... nos falamos
amanhã?
Chefe:Negativo,senhorita,não abrireimão da minhavez... verdade
ou desafio?
Você: Desafio
Chefe:Quero que amanhã vá para o trabalho usando uma camisa
transparente sem esconder o sutiãcomo fezesses dias...boa noite,
senhorita, até amanhã! Durma com os anjinhos...
Você: Boa noite, chefe! Até amanhã, durma bem...

Quinta-feira.Faltam 4 dias. Pode parecer bobagem, mas estou


super animada com o dia de hoje. Quero só ver como vai ser sem
ele poder me ligar ou mandar mensagens... Depois que ele
começou a me ligar após a viagem que fizemos, achei que ele ficou
dependente de me ligar e ou me mandar mensagens, vi o quanto
ficou aflito ontem quando não conseguiu falar comigo, por isso
sugeri esse desafio.
Fiquei um pouco frustradapelo fatode perder a chance de
fazerduas perguntas... Ou dois desafios...Ou um de cada... Do jeito
que ele é esse jogo veio a calhar, só assim para eu descobrir coisas
pessoais sobre ele. Por outro lado, eu estou livre de responder
qualquer pergunta ou de ganhar mais algum de seus desafios...
Quanta criatividade esse homem tem, hein?
A única coisa constrangedora é essa história da blusa
transparente.Mas como hoje está meio frioeu vou com um terninho
marrom que eu tenho. A blusa ficará embaixo do casaco e o
“conteúdo” à mostra será mínimo. Logo que chego já recebo a
informação da senhora Macedo de que ele me aguarda. Como eu
não imaginei... Ele vai usar os métodos antigos. Vou para sua sala e
ele solicita que eu feche a porta.
— Bom dia, senhorita Andrade! Hoje trabalharemos juntos em
minha sala. Tive uma pequena distração ontem à noite e preciso
conferir novamente essa lista de 35 páginas de materiais de
construção a serem licitados. — Informou-me na maior cara dura.
Eu tinha quase certeza que estava inventando aquilo. Fiquei
curiosa para ver onde essa história iria dar.
— Sente-se aqui no computador, por favor, que eu vou ditando
e a senhorita faz as alterações se necessário.
Começamos aquela empreitada que pelo jeito levaria o dia
todo. Ele tirou o paletó e perguntou se eu não gostaria de tirar o
casaco. Menti dizendo que estava bem, apesar do calor infernalque
sentia em sua sala completamente fechada. Fizemos uma pausa
para o almoço e ele não parou. Continuou trabalhando na tal lista e
agora eu já estava acreditando que aquilo era realmente um
trabalho necessário e urgente. Fiquei sensibilizada em deixá-lo
sozinho naquela empreitada, pois em dois o trabalho acabava
rendendo mais... Reduzi o meu horário de almoço e fui ajudá-lo. Ele
não teceu qualquer comentário a respeito. Apenas olhou para o
relógio e continuou de onde havia parado. Não consegui ficar o dia
inteiro de casaco como havia imaginado. Tirei-o e fiqueime sentindo
completamente exposta com aquela blusa sentada ao lado dele,
porém ele foimuito discreto e por nenhuma vez peguei-o espiando o
meu decote.
Terminamos a tal conferência. Ele olhou para o relógio e falou:
— Quatro e meia da tarde, senhorita Andrade, seu expediente
acabou de terminar, pois trabalhou em seu horário de almoço.
— Isso não é necessário... — tentei argumentar .
— É sim. Verdade ou desafio? — Ele me encarou, malicioso.
— Levando em consideração que eu não poderei te ligar...
Era muito difícil disputar alguma coisa com ele. Às vezes eu
me questionava se eu era ingênua demais ou se era ele que era
muito esperto. Meu chefe se sentou na cadeira em que estava
minutos atrás, fezum gesto indicando que eu me sentasse também,
mas antes virou-a de frentepara a sua. Ou seja, nossa conversa
seria praticamente olho no olho.
— Verdade — respondi, receosa, tentandodesviar os olhos
dos dele.
— Qual é o seu maior sonho? — meu chefeperguntou sem dó
nem piedade.
— Isso é muito íntimo... — tentei desconversar.
— A noite é uma criança... — Ele cantarolou fazendo pressão.
— Esse é um sonho antigo... não tenho certeza se ainda é um
sonho... — busquei nas minhas memórias aquele sonho ridículo de
adolescente e recitei-o como se fosse um poema: — casar com um
homem rico, poderoso e gostoso, tipo os CEOs dos livros que eu lia.
Fiquei constrangida ao falar isso para ele. Aquele homem na
minha frente era possuidor de todas aquelas características. Só
tinha uma coisa que estava fora de contexto naquela frase, a
palavra: casar.
Meu chefe deu uma tossidinha, levantou, encheu um copo
com água, sentou-se novamente e disse:
— Pode continuar, senhorita.
— Verdade ou desafio? — questionei-o mantendo o protocolo
da brincadeira.
— Verdade.
— Já teve algum relacionamento amoroso mais sério?
— Senhorita, minha vida gira em torno dos negócios.
Dificilmenteas palavras relacionamento, amoroso e sério sairão de
uma frase formulada por mim.
Ele respondeu a essa pergunta com uma serenidade que mal
consegui processar a informação. Definitivamentea palavra casar
não está em questão mesmo.
— Verdade ou desafio? — prosseguiu.
— Verdade.
— Qual foi a coisa mais ousada que já fez?
— Eu... — lembrei da vez em que tinha alisado o corpo do Leo
no meio de uma pista de dança, aquilo tinha sido ousado... mas
preferi não envolver o Leo nesta resposta — eu seduzi um vizinho
para que ele tirasse a minha virgindade — falei o mais rápido que
pude.
— Sim, isso foi bem ousado... e deu certo?
— Uma verdade de cada vez, senhor Scheffer... verdade ou
desafio?
— Verdade. — Ele respondeu sem hesitar.
— Por que me propôs aquela brincadeira no hotel e este jogo
nessa semana levando em consideração que não tem momentos de
lazer e não pode perder tempo com distrações?
— Escolha uma verdade apenas: brincadeira no hotel ou jogo
desta semana?
— Jogo desta semana — respondi, contrariada.
— Sabe, senhorita, essa é uma das poucas respostas que não
tenho na ponta da língua... — Ele ficoupensativo, como se quisesse
elaborar uma resposta convincente — A senhorita acredita que os
nossos valores podem mudar de uma hora para outra?
— Desculpe, senhor Scheffer,responder a sua verdade me
fazendo uma pergunta não é permitido...
— É justo. Parece que estou sentindo faltade momentos de
lazer e tenho me dado ao luxo de algumas distrações... senhorita.
— Foi uma boa partida, senhor Schef fer... até amanhã!
Levantei, arrumei a cadeira encaixada sob a mesa e já fuime
retirando. Eu queria o quanto antes sair da presença dele e usufruir
da minha liberdade noturna, já que não nos falaríamos.
— Só um pouco, senhorita. — Ele me olhou de cima a baixo.
— Desafio cumprido com louvor, senhorita...
— Obrigada — respondi me sentindo completamentenua sob
os olhos dele.
Foi estranho não receber nenhuma mensagem ou ligação
dele. Posso dizer que este foi um desafio para mim também. Eu já
tinha me acostumado à sua presença em minhas noites, mas essa
rotina estava com os dias contados e garanti a mim mesma que foi
melhor assim.

Sexta-feira. Faltam 3 dias. Passei o dia sem nenhuma


novidade. No finalda tarde fuiaté o salão fazeras minhas unhas de
vermelho como habitualmente. Fiquei tentada em conversar com
Jessica, a acompanhante executiva que tia Nice havia me falado,
ela estava fazendo as unhas ao mesmo tempo do que eu. Mas isso
seria completamenteantiético,pois eu usaria uma informação que
não havia sido me dita pessoalmente. Ainda mais se tratando de um
assunto tão delicado quanto a sua profissão, pelo menos para mim.
Eu tinha muitas dúvidas de como agir, o que seria adequado fazer
ou não fazer... Em relação ao nosso “encontro” que estava cada vez
mais próximo.
Meu celular vibrou. Eu já sabia quem era.

Chefe:Senhorita?
Você: Boa noite, senhor Scheffer
.
Chefe:Boa noite, senhorita.
Você: Verdade ou desafio?
Chefe:Verdade.
Você: Por que está levando esse contrato adiante, sendo que
apenas uma simples frase sua já resolveria isso tudo?
Chefe: Eu adoro desafiose não tenho a menor tendência de
quebrar contratos. Vou lhe presentear com um plus:Imaginoque
esta espera dará um sabor especial a esta conquista.

Ele falou “conquista”? Desde quando sou uma conquista? Fui


praticamentecomprada. Apesar de não concordar com o que disse,
preferi ficar quieta, estava contendo a minha indignação quando ele
prosseguiu:

Chefe:Verdade ou desafio?
Você: Verdade.
Chefe: Ontem a senhorita me contou uma coisa ousada que fez.
Gostaria de saber se conseguiu seduzir o seu vizinhoe perder a
virgindade com ele...

Eu já estava imaginando que ele faria essa pergunta. Bem,


vamos lá...

Você: Sim, mas...


Chefe:Mas...???
Você: Sim, perdemos a virgindadejuntos, mas ele me obrigou a
namorar com ele durante um mês antes de consumarmos o “ato”
propriamente dito.
Chefe:Nossa, que curioso isso... ele era virgem também?!
Você: Sim. Verdade ou desafio?
Chefe:Desafio.

Eu sabia que o desafio que iria propor era ousado, porém era
um jogo e eu estava disposta a jogar com todas as minhas cartas...
levando em consideração que o meu adversário não tinha piedade
de mim... então porque eu teria compaixão dele?

Você: Desafio-tea ir a um localde minha escolhaamanhã, comer


hambúrguer com batata frita. Eu pago.
Chefe:Emoji de carinha pensando. Emoji de carinha de susto. Ok.

Eu queria saber o que lhe incomodaria mais: ter que comer


alguma coisa tão diferentedo que está acostumado? O fato de sair
informalmentecomigo? Ou se seria a minha exigência de pagar a
conta? Estava curiosa para ver isso funcionando.

Chefe: Dois dias de lixoem uma única semana, senhorita? Isso


merece umas palmadas...
Você: Emoji de carinha de vergonha, emoji de carinha de susto.

Fiquei vermelha e curiosa pensando naquelas palmadas.


Quando li a respeito das dietas, vi que tinha um dia chamado o “dia
do lixo”, um dia da semana em que estava liberado comer de tudo...
Desde que a dieta tenha sido respeitada nos outros dias. Ele se
referia ao fatode eu ter ido à feira na quarta... Só que para mim
todos os dias eram dias de lixo... Senti-me um tantoenvergonhada
pela ausência de alimentação saudável em minha vida...

Chefe:Verdade ou desafio.
Você: Desafio.
Chefe: Desafio-tea conhecer a NutricionistaNúbia. Fazer uma
consulta com ela e repensar essa sua rebeldia alimentar
...
Você: É só me passar o contato...
Chefe:Sua consulta está agendada para segunda-feira às 15h.

Não pude deixar de abrir a boca e soltar um gemidinho. Que


tipo de homem ele era? Ou melhor, quem ele achava que era?
Marcou uma consulta para mim sem ao menos saber se eu indicaria
que queria um desafio... Aquilo era bruxaria com certeza.

Chefe:Que horas eu te pego amanhã?


Você: Sua vida é mais atarefada que a minha... que horas me
pega?
Chefe:19h. Pode ser? Brincaremos lá?
Você: Sim.Para mim está bom. Lá a gente vê... Emojide carinha
com olhosrevirados.Emojide carinhapiscandoo olhoe mandando
um beijinho...

Droga! O último emoji mandei por engano... Achei melhor nem


tentar consertar ...
Ele e essa mania de querer brincar pessoalmente... Eu queria
pelo menos um momento sem regras, espontâneo, queria conhecê-
lo sem perguntas prontas... Ahhhh.... Scheff... Você já virou a minha
cabeça de pernas pro ar... O que mais vai fazer com a minha vida?
Dei um suspiro quando percebi do que o chamei: aquele apelido
ridículo que ele mesmo se dera...
Capítulo 36
Sábado. Faltam 2 dias.Nem preciso dizer que hoje eu poderia
limpar o bairro todo e o tempo não passaria... paramos um pouco
para almoçar e minha tia perguntou:
— Você falou sério quando disse que queria ir ao sítio?
Podemos ir amanhã...
— Na verdade, tia, foi uma ideia que tive na semana passada,
mas... — Eu comecei a pensar na possibilidade de irmos mesmo —
nunca mais voltei lá... pode ser, tia.
— Sabrina, a semana toda eu pensei na possibilidade de
vendermos o sítio... — Ela olhou para mim esperando resposta — o
acha?
— E se nós quisermos ir morar lá quando nos aposentarmos...
— dei uma gargalhada.
— Se nos aposentarmos... — agora foi a vez de ela rir —
compramos outro.
— É sério, Sabrina, fiquei sabendo que o senhor Geraldo está
comprando terras de novo, seria nossa chance de vender para ele...
— Ela fez uma pausa enquanto dava uma garfada em um pedaço
de carne — nesse tempo todo não aparecemos mais lá, fica sem
sentido mantermos um local que raramente visitamos...
Eu pensei um pouco, revisitei cada uma das lembranças que
tinha de lá e da vovó. Aquele lugar não fazia sentido sem ela. Eu
teria que guardar cada momento em minha memória e a presença
física do sítio deixaria de existir... Eu sabia que o seu Geraldo
acabaria com tudo. Era isso que vinha fazendo a cada nova
propriedade que adquiria.
— Ligue para ele, tia — disse, tentandoconter uma lágrima
intrometida.— Tem toda razão, não há mais o porquê adiar a venda
daquele lugar.
No final da tarde tia Nice disse que já estava tudo acertado,
pegaríamos algumas coisas na casa e passaríamos o resto do dia
na fazenda do seu Geraldo acertando os últimos detalhes. Ela me
avisou que o Leo iria junto, seria bom ter uma figuramasculina tanto
para passar no sítio conosco, bem como para negociar com aquele
fazendeiro astuto.
Lá pelas 17h comecei a me arrumar. Como a gente ia a uma
hamburgueria, preferiuma calça jeans, uma regata de malha preta e
uma jaqueta. Para completar o visual calcei um par de sandálias
altas que eu sabia que fariam a diferença em meu visual.
Pontualmenteàs 19h o carro do senhor Schefferparava em frenteà
nossa casa. Toda animada, dei um tchau para minha tia e saímos.
Eu sei que aquele era um “encontro” forjado... Mas o que entre nós
não estava sendo forjado? Passei para ele o endereço, que
demonstrou saber onde era. Pegamos uma mesa para dois em um
canto mais reservado. Ele perguntou se faríamos o pedido já ou se
eu queria esperar um pouco. Levando em consideração que eu não
tinha comido nada a tarde toda resolvi que poderíamos comer .
Ele pediu uma água de coco natural e um sanduíche completo
com tudo que tinha direito, bacon, ovos e dupla carne. Eu pedi uma
versão Júnior do sanduíche dele, com uma carne apenas, para
tomar um chá mate com limão e pedi uma batatafritagrande para
dividirmos, pelo menos esta era a minha intenção.
Eu estava tão afobada que não percebi como ele estava
diferente. Usava calça Jeans, uma camisa preta com pequenas
bolinhas vermelhas espaçadas, quase imperceptíveis, Seus cabelos
estavam sem pomada, a franja caia sobre seu rosto
insistentemente,fazendo com que ele passasse a mão ajeitando os
cabelos muitas e repetidas vezes. Tive a impressão de que o seu ar
estava mais jovial. Nosso pedido chegou e eu fiquei extremamente
arrependida do desafio que lhe propus ao ver o tamanho do
sanduíche e a sujeira que provavelmente eu faria ao comê-lo.
Devagar e sempre. Foi o que fiz. Achei que a resistência dele fosse
maior a sair de sua incrível dieta, quando ele me confessou:
— Já vim algumas vezes aqui... — encarou-me esperando a
minha reação — por sorte você escolheu o meu “lixo” favorito — deu
uma risadinha de moleque maroto.
— E o que eu poderia ter sugerido, então? — perguntei e
acompanhei sua risada.
— Não falonem sob tortura.Isso poderá ser usado contra mim
ainda...
Estávamos conversando banalidades e comendo a batatafrita.
Senti meu celular vibrar. Achei que seria indelicado mexer no
aparelho naquele momento, mas eu estava curiosa para saber se
era a tia Nice com alguma novidade. Pedi licença e dei uma olhada
no visor. Era ela:

Tia Nice: Tudo certo para amanhã. O Leo irá com a gente. Sairemos
cedo... Bj.
Tia Nice: aproveite bem a noite. Emoji de carinha piscando.

Guardei o celular novamente. Pedi desculpas e tenteivoltar


para a conversa. Não consegui. Senti um aperto no peito e uma
vontade de chorar, sabendo que a venda do sítio era inevitável, mais
cedo ou mais tarde. Só que era justamenteno dia seguinte que eu
teria que enfrentaro lugar onde as melhores e as piores lembranças
de minha vida estavam. O senhor Scheffer percebeu que alguma
coisa havia mudado:
— Tudo bem, senhorita?
— Tudo — respondi em seco, controlando-me para não chorar.
— Foi alguma coisa que eu disse? — Ele insistia mesmo eu
dizendo que estava bem.
Não sabia até que ponto eu poderia importuná-lo com
problemas infantis. Estávamos ali em uma das poucas horas de
lazer que ele tinha e eu não queria atrapalhar isso. Por outro lado,
ele poderia ficar fantasiandosobre o que havia feitoou falado para
que eu ficasse daquele jeito. Optei por uma resposta mais ampla:
— Sabe como é... são os problemas domésticos... — falei
fazendo menção à frase que ele disse quando estávamos em
reunião com o Leo.
— O Velazquez está lhe causando algum problema? — Ele ia
insistir usando todas as possibilidades até que eu lhe falasse.
— Nããããããooo! — Que implicância era aquela com o Leo?
Contei para ele ligeiramente o resumo de toda a história. Do
fatode eu saber que o melhor a ser feitoé vender o sítio. Mas de ter
consciência que amanhã seria um dia de sofrimentoe saudade e de
que eu ainda não estava preparada para isso. Ele pareceu ficar
muito desconcertado. Apesar de ter escutado tudo pacientemente
foi muito econômico ao que tinha que me dizer:
— Sinto muito. Pelo que entendi já está tudo resolvido, não é?
— Ele realmente não sabia o que falar. — Espero... espero... que
não sofra tanto assim.
Não sofra. Eu já estava sofrendo... e muito. Dei-lhe um sorriso
amarelo. Mostrando-lhe como estava grata pela frase de incentivo
que ele havia me dado. Perguntei se ele estava satisfeitoou se
queria mais alguma coisa. Ele disse que estava ótimo e poderíamos
ir. Meu chefe mais do que depressa chamou o garçom e já ia
pagando a conta. Peguei a comanda de sua mão e disse:
— Vai deixar um desafio sem cumprir? — direcionei a ele o
meu olhar mais desafiador.
Revirando os olhos ele me entregou a comanda e sacudiu as
mãos fazendo um sinal para o garçom de que não poderia fazer
nada. Saímos dali e ele me convidou para uma caminhada até uma
praça que havia ali perto. Apertei os pés em minhas sandálias e
acompanhei-o sem dizer nada. Chegando lá nos alojamos em um
banco que estava bem iluminado. A noite estava agradável e
movimentada. Crianças brincavam alegremente em um parquinho
de areia. Sem mais nem menos ele me indagou:
— Verdade ou desafio, senhorita! — Ele não desistia disso
mesmo.
— Verdade.
— Como é a sua rotina?
— Esclareça melhor, senhor Scheffer, pois sabe exatamenteo
que faço todos os dias...
— Sim, é claro. Como era a sua rotina antes do nosso
“contrato”?
— Pela manhã eu ficava em casa e fazia os trabalhos e
compromissos da faculdade.Em casa mesmo... uma ou duas vezes
na semana eu ia até lá para tirar dúvidas e fazer avaliações — não
pude deixar de dar um sorrisinho bobo, lembrando da saudade que
eu sentia disso. — No período da tarde eu trabalho na SSB até às
17h. Saio de lá e faço, quer dizer fazia , auto-escola — tive a
intenção de deixar bem registrado isso para ele perceber o quanto
uma decisão sua alterou tudo que eu planejara. — Em algumas
noites eu e o Leo... — olhei para ele tentando ver alguma
expressão, mas não consegui captar nenhuma — vamos à
academia. Já teve vezes de eu sair da SSB e ajudar a minha tia no
salão... — vi pela sua feição que ele estava tentando entender
aquilo... — lá o expediente vai até às 21h, assim garanto um plus
para comprar um carro...
Tive a impressão de que ele ficoupensativo, com uma cara de
“Uau!”, mas não teceu nenhum comentário. Aproveitei o embalo e
perguntei:
— Verdade ou desafio?
— Verdade — meu chefe respondeu.
Eu pensei em questionar sobre a sua família, dona Judite, o
irmão gêmeo, Rodrigo... Lembrei da choradeira depois do porre no
hotel em São Paulo. Só que eu fiquei extremamenteconstrangida
em perguntar-lhe sobre essas coisas... Imagino que esses são os
seus fantasmas.Não. Definitivamenteeu não perguntaria nada tão
pessoal.
— Como foi a sua “primeira” vez? — já que ele explorou o meu
defloramento, eu também exploraria o seu.
— Fui levado a um bordel quando tinha 14 anos. Escolheram a
melhor “garota” para eu me divertir e eu tive que me virar como
pude.
— Uau!
Foi a única coisa que consegui responder, achei que esse tipo
de coisa não existisse e sabia que não era adequado continuar com
esse assunto, levando em consideração que estávamos no meio do
jogo. Então prossegui antes mesmo que ele perguntasse:
— Verdade.
— Se dinheiro não fosse o problema... o que compraria?
— Nossa... — isso nunca tinha passado pela minha cabeça.
Após pensar um pouco respondi: — Um carro vermelho.
— Um carro vermelho? — meu chefe estava perplexo, mas foi
a única coisa que me ocorreu. — De que marca?
— Não sei... a única coisa que sei é que quero que seja
pequeno... o carro do Leo é legal, vai ser ótimo para viajar amanhã,
por exemplo, mas eu e a tia Nice viajamos tão pouco que não vale a
pena ter um carro grande... — Eu e essa minha boca grande. Fiquei
tão animada com a história do carro que nem percebi que entreguei
que o Leo viajaria conosco... mas que o Leo está em todas as
nossas atividades isso não era nenhuma novidade. Ele escutou o
que eu disse e não esboçou nenhum sentimento.
— Senhor Scheffer, verdade ou desafio?
— Verdade, senhorita...
— O que fez e não deveria ter feito? — perguntei encarando-o.
Tive a impressão de que um filme passava em sua mente. Ele
passou a mão nos cabelos novamente e respondeu:
— Comer aquela porção de batatafritacom você... essa será
a maior causa do meu arrependimento por um bom tempo... — Ele
falou dando risada e depois me fitoucom seriedade — geralmente
não me arrependo do que faço, senhorita. Todas as minhas
escolhas são muito bem planejadas...
Eu também pensei que era assim comigo, até conhecer o Fred
e ele me manipular do jeito que fez. Agora nós dois éramos provas
vivas de que nem tudo poderia ser tão planejado assim, mas
novamente me calei.
— E por hoje chega... — falei dando uma espreguiçada —
senhor Scheffer. Desafio cumprido com louvor. Seria muito
indelicado de minha parte pedir para que me leve para casa?
Amanhã sairemos cedo de casa...
Caminhamos em direção ao lugar onde o carro dele estava
estacionado. Ele me deixou em frente ao portão de casa,
despedimo-nos sem nenhum contatofísico e novamente observei
aquele carro lindo se afastar
... Eu não tinha a menor ideia do que se
passava dentro de mim e muito menos dentro dele. Meu chefe fazia
questão de proteger-se com uma armadura, por mais que estivesse
me permitindo conhecê-lo um pouco através dessa brincadeira, eu
tinha dúvidas se as suas verdades eram mesmo verdadeiras... Eu
não tinha como comprovar. Então acreditava e tinha a falsa
impressão de que o conhecia.
Capítulo 37
Domingo. Falta 1 dia. Quando o carro do Leo parou em frente
àquele portão conhecido senti um frio percorrer por toda minha
espinha. Automaticamente vieram as lembranças de quando eu
chegava da escola de ônibus rural e na maior parte delas vovó me
esperava na varanda tomando chimarrão com alguma vizinha.
Após a tia Nice tirar o cadeado do portão, uma tristezame
invadiu por constatarque o abandono do lugar lhe dava um ar mais
melancólico que por si só já carregava. Realmente não havia razão
de manter essa propriedade conosco e não ter o menor respeito por
ela, deixando-a abandonada.
Quando entramos em casa, tudo parecia menor.
Exageradamente menor. A sala em que a vovó foi velada era tão
pequena que até o ar faltavaali. Lágrimas começaram a percorrer
minha face e eu fui buscar um pouco de privacidade em meu antigo
quarto. Com certeza eu não era mais a adolescente que vivera ali.
Olhei para as poucas coisas que ainda restavam e tinha cada vez
mais a impressão de que haviam diminuído de tamanho.
Definitivamente eu não queria mais nada dali.
Minha tia preocupou-se com as outras coisas... Fotos,
documentos, uma ou outra “antiguidade” como ela gostava de
chamar e a máquina de costura de vovó. Ela seria transformadaem
um aparador, já que nenhuma de nós duas conseguíamos “pilotar”
mais aquele modelo de pedal.

A fazenda do seu Geraldo era fabulosa. Ele já tinha agregado


outras pequenas propriedades e pelos nossos cálculos faltava
apenas a nossa. O Leo aproveitou-se deste fato e foi muito
perspicaz na negociação, não é à toa que trabalha com isso. Ele
alegou um valor sentimental e conseguiu um valor maior do que
esperávamos.
Seu Geraldo já tinha nos convidado para passarmos o dia na
fazenda. Após a finalização da venda, almoçamos e deixamos o
período da tarde para conhecermos melhor o lugar. Um homem
chamado Onofre ficou responsável por nos acompanhar. Fizemos o
percurso até o rancho de bicicleta, depois andamos um pouco a
cavalo, conhecemos a horta orgânica, o galinheiro e o último local
visitado foi o curral.
Notei em uma baia um pouco maior que tinha um boi sozinho.
Ele parecia estar assustado com o movimento e ficava andando de
um lado para o outro como se tivesse alguma coisa errada com ele.
Perguntei ao seu Onofre o que estava acontecendo e ele falou:
— Ele está confinado para limpeza, mocinha. No final de
semana que vem teremos festae ele é o “churrasco” da vez — deu
uma risada meio diabólica. — Aí ele fica por 24 horas aqui para que
o seu aparelho digestivo fique limpo antes do abate...
Eu sabia que os animais morriam para comermos... já tinha
visto vovó matar galinhas, e lembro que ela fazia uma coisa
parecida com elas também. Mas aquilo estava me parecendo tão
cruel... era como se o olhar daquele boi para mim revelasse que ele
sabia tudo o que iria acontecer. Que era o seu fim.
— Vamos, gente? — convidou Leo. — Ainda temos uma
viagem pela frente...

Cheguei em casa super cansada, tomei banho e fiz um copo


de leite com cereal. Meu celular começou a tocar “With Or Without
You” do U2. Era ele. Atendi à chamada e fui para o meu quarto.
— Boa noite, senhorita! Como foi o seu dia?
— Boa noite, chefe. Digamos que hoje foi um dia de pontos
finais... — respondi sem detalhar muito o que tinha acontecido. Ele
respeitou a minha posição e não fez mais nenhuma pergunta.
— É, os pontos finais são sempre bons... — Ele disse
reticente.
Concordei com a cabeça, mas sabia o tamanho do sofrimento
que eles poderiam trazer. Será que ele estava se referindo ao que
aconteceria amanhã também? Um pouco sem jeito perguntei:
— Sei que talvez não seja a hora agora, mas como será
amanhã? Eu tenho que resolver algumas pendências e quero me
planejar... precisamos ir ao cartório assinar a papelada... — fiquei
esperando uma resposta, mas ele não dizia nada. — Vai ser rápido.
O Leo vai preparar o contratode compra e venda e iremos com ele
e o seu Geraldo ao cartório do prédio mesmo... — fiz uma pausa
antes de fazer a pergunta que eu estava ensaiando a semana
toda... — só preciso saber se vai querer que eu trabalhe na parte da
manhã ou na parte da tarde. A-ma-nhã tudo volta ao “normal”, não
é? — meu Deus eu tinha medo da resposta dele.
— Pode sair desde que isso não atrapalhe a sua consulta.
Está lembrada? Deve-me um desafio ainda... — ainda faltavaele
responder sobre a volta ao normal.
— Sim, onde fica? — disse para evitar o silêncio.
— Perto da sua casa...
— Considere cumprido — falei, orgulhosa.
— Sítio vendido, então?!
— Sim.
— O senhor Velazquez intermediou a venda?
— Sim, fez isso muito bem por sinal. Receberemos um valor
acima do esperado...
— Sei. Não posso negar, ele é muito bom no que faz. — Ele
comentou, “desarmado”. — É por isso que não abri mão dos seus
serviços depois que me traiu... que nos traiu... — com certeza ele
falava do nosso contrato que o Leo o fez assinar sem ler.
— Penso que hoje é o meu dia de começar — chamei-o para a
nossa última noite de jogo. — Verdade ou desafio?
— Verdade — meu chefe respondeu sem hesitar .
— Em muitos momentos da nossa “brincadeira” o senhor
demonstrou ter curiosidades sobre o Leo, quer dizer, “senhor
Velazquez” e a minha família. A presença dele em minha vida lhe
incomoda de alguma forma?
— Absolutamente.Eu somente gostaria de entender como um
homem de negócios e solteiro como ele conduz a sua vida de forma
tão diferenteda minha. — Eu não esperava essa resposta. No final
das contas, tudo girava ao redor do seu próprio umbigo. — Verdade
ou desafio, senhoria?
— Verdade.
— Qual foi a coisa mais engraçada que já fez?
Eu estava com essa lembrança fresca em minha memória. Ao
caminhar na parte de trás da casa da vovó hoje pela manhã eu
encontrei um vidro de esmalte no cantinho da área... Respondi
saudosa e emocionada ao mesmo tempo:
— Eu... eu pintava... — dei uma tossinha tentando despistar as
lágrimas que insistiam em visitar meus olhos nas últimas horas —
eu pintava a unha das galinhas de vovó... — consegui permitir uma
risada no final.
— Inusitado, senhorita!
— Vai lá... a última, chefe... verdade ou desafio?
— A última das minhas verdades, então... — sua voz parecia
séria.
— Qual o problema com os nomes? Por que todos ao seu
redor, em todos os momentos, só são chamados pelo sobrenome?
— Não gosto do meu nome, senhorita!
— E todos ao seu redor precisam não gostar do próprio nome
também? — Eu fiquei muito irritada com essa história do nome, por
isso deixei essa para o final.
— Isso é uma verdade ou um interrogatório, senhorita?
— Desculpe, pode concluir — fiz uma promessa para mim
mesma que manteria a boca fechada.
— A última vez que alguém me chamou pelo nome com
intimidade já tem uns 25 anos. Com o passar dos anos e a minha
experiência com prostitutase acompanhantes, cheguei à conclusão
de que nomes podem ser forjados, trocados, inventados... o que nos
sobra, então? O que realmente somos... nosso nome de família. O
sobrenome. Tenho a impressão de que se chamo uma pessoa pelo
nome dela, é como se eu não a estivesse respeitando ou não
pudesse confiar nela...
Que viagem essa resposta... eu não concordava nem um
pouco com isso. Que ele tinha traumas e “fantasmas”eu sabia...
mas isso? Isso era... no mínimo, esquisito. Pelo menos para mim.
— E então, senhorita, o que teremos? Uma última verdade ou
um desafio?
— Verdade.
— Eu lhe fiz um convite por intermédio do Velazquez. O seu
“amigo” fezum contratoe nos armou uma arapuca. O que sentiu em
relação a tudo isso?
Afff... como eu responderia a essa verdade sem me
comprometer tanto?Digo para ele que o que eu mais queria era lhe
dar? Da raiva que senti pelo Leo e do tempo de incubação em que
estava a nossa amizade? Eu não esperava uma pergunta dessa...
Não num dia como hoje.
— Vamos ver... — Eu estava organizando o meu pensamento
— no início eu achei muito estranho o seu convite. Por outro lado
fiquei lisonjeada, levando em consideração as moças lindas com
quem sai... — respirei profundamente e agradeci por estarmos por
telefone — eu fiquei com muita raiva do Leo.
— Ficou? No passado mesmo?
— Sim, fiquei. No começo eu o ignorei. Ele respeitou a minha
posição. Aos poucos ele foi se integrando novamente em nossas
vidas por intermédio da minha tia. E novamente ele estava sempre
lá... agora está praticamente como no início...
— Mesmo com raiva, você o perdoa?
Eu sabia que o seu interrogatório estava além de uma
pergunta, mas, por algum motivo, eu queria responder. Era como se
eu quisesse mostrar para ele que podemos passar por cima de tudo
e seguir em frente.
— Sim. O Leo é uma excelente pessoa. Eu o poupei de todos
os detalhes da minha vida durante todo esse mês. Não fizemos
nada somente nós dois, como costumávamos fazer com
frequência... imagino que isso deve ter sido uma boa punição para
ele — pensei em uma formaimpactantede terminar aquela frase.—
Amigos, quer dizer, melhores amigos, são difíceis de encontrar.
Estamos sujeitos a nos decepcionar com qualquer pessoa que
vivemos. As coisas volta e meia precisam ser ajustadas e as faíscas
são naturais... fazem parte da vida...
— E quando a senhorita tiver um namorado... e ele uma
namorada... como fica? — pela sua voz ele estava realmente
curioso.
— Fica do mesmo jeito... temos um “amor” de irmãos!
Ninguém mata o irmão ou irmã porque está em um
relacionamento... — Ele ficou mudo. Pelo jeito a conversa iria
acabar aqui. — Foi uma excelente rodada, senhor Scheffer... — Eu
ainda precisava de uma resposta dele... não podia desligar.
— Concordo, senhorita! Amanhã terá a sua vida de volta... —
graças a Deus eu teria a resposta que esperava. — Retome as
atividades da faculdade que já estarão destrancadas pela manhã.
Resolva os compromissos que terá no cartório. Vá à consulta
médica às 15h e esteja no escritório às 17h para encerrarmos o
contrato.Tenha uma excelente noite! — disse tudo isso e desligou
sem esperar uma resposta minha.
Fiquei olhando para aquele celular e pensei em como estava
sendo tudo isso. A fúria que ele tinha no começo. A necessidade de
descontar a sua raiva em mim. As atitudes de gentileza. As
“brincadeiras”. O “jogo que terminara agora”. Suas curiosidades
sobre a minha vida sexual e amorosa, os desafios calientes e aos
poucos as perguntas banais. Senti um frio na barriga, e tive a
sensação de que em algum momento de tudo isso ele perdera o
interesse em mim. Eu esperava mais do que uma noite, apesar de
saber que não era isso que aconteceria. Só que de repente um
pensamento tomou conta de mim... E se... E se ele não quisesse
nem uma noite? Abrindo mão da nossa única vez?

Segunda-feira. É hoje. Como uma boa funcionária, tenteifazer


tudo conforme ele orientou. Exceto pela parte da manhã que foi
dedicada à depilação, esfoliação, hidratação dos cabelos, uma
caprichada nas unhas e essas coisas que as noivas fazem antes de
suas núpcias... Eu sei, não sou noiva, mas era como eu me sentia.
Escolhi para o nosso encontro um vestido vermelho curto e
rodado, com a frente transpassada. Meus seios ficaram bem
acomodados e dispensei o uso do sutiã. Saltos altos em um sapato
preto envernizado. Cabelos presos em um rabo de cavalo alto e
uma maquiagem suave. Queria dar-lhe uma impressão angelical
quando me encarasse e pecaminosa quando explorasse meu corpo.
Tia Nice, muito querida, me presenteou com uma calcinha fio dental
vermelha, que eu fiquei corada só de imaginar como ficaria. Ela
levou todo o meu aparato para o salão, pois eu sairia da consulta e
iria para lá me arrumar.

A nutricionista Núbia era um amor. Fora o fatode parecer


trabalhar para NASA, pois ela além de me medir milimetricamente,
apertar pregas e dobras com uma pinça esquisita, coletou amostras
de cabelo, unha, saliva e solicitou que uma enfermeira tirasse
algumas amostras do meu sangue... Quando terminou a consulta
afirmou:
— Não se preocupe, Sabrina, nossa clínica realizará todos os
exames, e quando eu estiver com os resultados em mãos
marcaremos um retorno.
— Se possível, era melhor que fosse no período da manhã,
pois eu trabalho de tarde — solicitei preocupada em ficar faltando
demais.
— Não se preocupe. O senhor Scheffer já nos orientou em
como deveremos proceder no seu caso...
Como?! E eu não sabia disso? As pessoas perderam o direito
de mandar nas suas próprias vidas? De marcar as suas próprias
consultas?
O compromisso no cartório foi rápido. Era uma assinatura e a
autenticação dela. Tia Nice estava comigo. Voltamos ao salão.
Tomei um banho, passei um hidratante cheiroso, coloquei aquela
calcinha no mínimo indecente que eu havia ganhado... Vesti-me,
arrumei os cabelos, tia Nice deu alguns retoques na minha
maquiagem e subi por aquele elevador tão familiar e ao mesmo
tempo assustador. Ele me conduzia a um destino que levou um mês
para ser percorrido. Levei um susto quando me dei conta que em
tese aquele era o meu primeiro programa e eu não tinha a menor
noção do que deveria fazer com aquele homem experiente...
Entrei no escritório e avistei a senhora Macedo em sua mesa.
— Boa tarde, Sabrina! O senhor Scheffer solicitou que a
senhorita aguarde aqui para o evento — Evento? É esse o nome
que dão agora? — Gostaria de alguma coisa? Água... café?
Senti um arrepio quando ouvi o meu “nome” sair da boca da
senhora Macedo, ela nunca me chamava dessa forma.Eu estava ali
interpretando uma personagem e ela me chamara atenção para
isso, como se quisesse me dizer alguma coisa através de um código
que eu não conseguia entender. Achava aterrorizantee engraçado
ao mesmo tempo. Com certeza a senhora Macedo sabia o que eu
faria ali. Eu ficava impressionada em como ela conseguia ser tão
discreta e impessoal.
Fiquei ali esperando o meu chefe chamar. Ele fazia isso com
todas as acompanhantes que chegavam ali. Eu tinha esperança de
que comigo poderia ser um pouco diferente.Mas não, eu estava ali
passando exatamenteo que outras tantastambém passaram. De
repente veio à minha mente o olhar daquele boi no sítio do senhor
Geraldo. Ele sabia que ia ser abatido. A única coisa que lhe restava
era esperar. E era exatamente isso que ocorria comigo agora: Eu
estava esperando ser abatida.
— Sabrina?! — a senhora Macedo me tirava do meu devaneio.
— O senhor Scheffer disse que pode entrar ...
Capítulo 38
Victor Hugo Scheffer

Eu fingi naturalidade quando a vi entrar na minha sala. Já


estava observando-a pelas câmeras e sabia que ela estava linda. O
seu desconforto era evidente. Céus o que eu estava fazendo com
essa menina? Sim, menina. Eu tinha completado 27 anos e ela 18,
sem falar na minha experiência de vida que era infinitamentemaior
que a dela.
— Boa tarde! Antes de irmos, prefiro que a gente combine os
termos, pode ser? — meio confusa ela consentiu com a cabeça. —
Sente-se, então, por favor — falei indicando a cadeira à minha
frente — Já fez isso alguma vez? — como estou sendo canalha!
— É claro que não! — Ela sacudiu a cabeça negativamente.
— Uma hora?
— Tudo bem. — podia ver em seus olhos o quanto estava
desconfortável.
— Você faz, oral, anal, sadomas... — Ela interrompeu a minha
lista.
— Senhor Scheffer, pode ser... o básico? — Ela solicitou
encabulada.
— Certo. Um mês sem sexo e me contentareicom uma hora
de básico. Alguma recomendação ou solicitação de sua parte?
— Preservativo — essa menina era um anjo mesmo.
— Por quê? Você não usa contraceptivo? — Eu não quis
perder a deixa.
— O uso de preservativos é por outros motivos — meu anjinho
esperto, mas não deu a resposta que eu queria... afinal, por que eu
queria saber se ela usa anticoncepcional se eu teria apenas uma
trepada com ela?
— Entendo. Mais alguma coisa?
— Eu aguardo o senhor tomar um banho... — nossa! Quase
uma profissional.
— Feito. Podemos ir? — Ela consentiu com a cabeça.
Ela já conhecia o corredor pelo qual a conduziria. Nele tinha o
elevador que levava até a cobertura em que eu morava e o
heliponto. A minha vontade era levá-la para o meu quarto, mostrar-
lhe como é a minha vida, mas eu não posso. Viver sem
envolvimentos foi uma opção e o que tivemos já foi longe demais.
Hoje será o nosso game over não posso mais adiar isso.
Mais ao fundo está o closet que montei exclusivamente para
ela. E ela nem deu muita importância... Meu pai tinha toda razão:
“Quem entende as mulheres?!” A porta que entraremos agora é o
meu “matadouro”, me sinto um bosta quando digo isso... Mas que
nome se dá a um quarto em que se traz “acompanhantes de luxo”
para foder? Não tem outro termo... Eu gosto de manter esse quarto
porque é prático, higiênico, perto do trabalho e de casa. E não
preciso dividir a intimidade do local onde moro com nenhuma
interesseira. Só não sei se o que estou fazendo hoje está certo...
Trazer ela aqui é como pegar rosas brancas e jogá-las na lama... O
que será que sobra depois?
Abri a porta e esperei a sua reação ao ver a reprodução de um
quarto de motel ali na nossa frente,tão próximo ao local em que
trabalhamos. Ela passava os olhos por todos os cantos e não
esboçava contentamentoou reprovação. Informei-lhe que iria tomar
banho. Disse-lhe que poderia se servir de alguma bebida, ler ou
assistir...
É claro que eu já tinha tomado banho. Esse era o meu terceiro
banho de hoje. Eu tinha a impressão que nenhum banho seria
suficiente para me preparar para ela. Sentia-me sujo por toda
putaria que já tinha feito,por tantasmulheres que em minha cama já
haviam passado. Era como se eu fosse indigno para estar com ela.
Esse banho serviria para eu esfriara cabeça. Essa era a coisa
mais difícil que eu faria em toda a minha vida. Deixando a água
escorrer pela minha cabeça eu comecei a pensar...
Lembrei da primeira vez que a vi. Ela acompanhava o
Velazquez em um lançamento. Parecia uma debutante,esbanjava
uma beleza inocente. Eu tinha transado com a minha acompanhante
no deck e sugeri que ele fizesse o mesmo com o pequeno bibelô
que o acompanhava, um pequeno teste para ver o nível de
intimidade que ele tinha com ela. Pelo que entendi ele não
aproveitou a minha deixa. O máximo que fez foi salvá-la de dançar
com velhos babões.
Por uma feliz coincidência o seu pedido de bolsa veio parar
em minha mesa. A garota era no mínimo pretensiosa, queria cursar
“Processos Gerenciais”, nunca tinha ouvido falardesse curso. Achei
inclusive que era uma fraude, e quando fui pesquisar: BINGO! Era
tudo que eu precisava em uma assessora. Era esse o meu interesse
nela e eu tentava me convencer disso todos os dias.
Até o dia em que a vi naquele vestido vermelho. Senti como se
ela tivesse deflorado, pelo menos aos meus olhos, virou mulher e
era isso que eu precisava para tê-la.
Chamei o Velazquez já que era sempre ele que estava com
ela e para minha surpresa ele veio com essa história de irmã. Eu já
tinha me envolvido com a irmã legítima dele, Brenda. Só de escutar
esse nome eu me arrepio.
O Velazquez também a levou em um evento. Trocamos alguns
olhares, conversamos e ela insinuou que queria algo a mais comigo.
Eu informei a ela que por motivos pessoais só saía com mulheres
agenciadas. A louca foiem uma agência, e para minha surpresa, ela
entrou em contatodizendo que agora estava tudo certo. Não posso
negar, ela era atraentee achei que seria divertido sair com ela. O
problema é que ela queria mais e eu não. É justamentepor esse
motivo que eu pago para transar: eu não quero me envolver. Não
tenho a menor intenção de compromisso, cobranças, ciúmes, essas
coisinhas de casal. Depois que eu passo o cartão, eu não preciso
me incomodar com mais nada.
Um dia a Brenda foi ao antigo escritório em que eu trabalhava
e quis montar um escândalo. Eu falei para ela que um dos meus
princípios era nunca ter duas vezes a mesma mulher... Disse que
era uma praga de família e que se fizesse aquilo eu poderia ficar
brocha e que não correria esse risco.
Ela acreditou e ainda fezo favorde espalhar a história por aí...
Ofereci a ela uma pequena fortuna para se afastar . Brenda
esqueceu rapidamente de mim enquanto torrava o dinheiro que eu
lhe dera. Quando o dinheiro acabou, ela voltou a trabalhar na
agência, até que um dia saiu com homens ousados demais e teve a
sua vida abreviada. Velazquez ficou com raiva de mim, mesmo sem
saber a minha parte da história. Fiquei sem jeito de falar que a irmã
dele era uma louca varrida e que ainda tinha me difamado por aí...
Eu não falaria nada. O cara tinha acabado de perder a irmã... Ele
que ficasse com uma boa impressão dela pelo menos...
Após aquele evento em que curiosamente a minha
acompanhante vestia azul, quebrando uma tradição que eu
mantinha há anos. Fiquei surpreso ao ver a acompanhante do
Velazquez de vermelho, eu nunca tinha olhado com interesse sexual
para ela, mas, neste dia, alguma coisa fervilhou dentro de mim e eu
não tive mais sossego. Não conseguia dormir, comia menos do que
o de costume e perdi completamente a concentração nas coisas que
eu estava fazendo. Era ela, só ela em meu pensamento.
Desliguei o chuveiro e voltei a atenção à dama de vermelho
que me aguardava no quarto ao lado. Coloquei uma roupa à altura,
um terno completo azul marinho, que eu já tinha deixado no
banheiro, optei por uma camisa azul clara e uma gravata vermelha.
Assim que voltei para o quarto apertei o botão do play do
home theater e começou a tocar uma música clichê do filme “50
tons de cinza” que eu já tinha escolhido estrategicamentecom
antecedência. Já havia repassado as cenas que se seguiriam
milhares de vezes em minha mente e agora era a hora da noite da
estreia. Ela estava olhando pela janela. Cheguei atrás dela sem
encostar em um único fio de cabelo e falei:
— Também gosto desta vista e à noite é mais bonita ainda —
o céu estava com aquele tom avermelhado que anuncia que a noite
está chegando.
Ela virou-se para mim como quem diz: E agora?
Sem nenhuma carícia fui até o zíper do seu vestido e abri.
Puxei cada uma das alças para o lado e em um segundo ela estava
praticamentedespida para mim. Estava tudo ocorrendo conforme o
planejado, até que avistei a minúscula calcinha que ela usava.
Vermelha.
Eu não esperava por isso. Como fingir indiferença dessa
forma? Por um momento titubeeie dei pequenos beijos em seus
ombros, suas costas, quando eu ia me ajoelhar para beijar suas
nádegas olhei o seu reflexo no espelho. Lembrei dos seus sonhos,
das nossas conversas nos últimos dias e da sua “quase virgindade”
como o Velazquez me alertara. Eu precisava acabar com aquilo.
Segurei-a pelos dois braços e segui caminhando em sua frente
empurrando-a em direção à cama. Fui para cima dela como um
troglodita,beijei seus seios me concentrando ao máximo para não
me inebriar em seu corpo, que estava especialmente macio e
cheiroso, e perder o foco do que havia planejado fazer.
Percorri com os dedos a sua intimidade e explorei cada
cantinho como uma vez falei para ela que faria. Para minha
surpresa já estava deliciosamente lubrificada. Com certeza eu não
queria machucá-la, conferir sua lubrificação foi fundamental.
Coloquei um preservativo e penetrei-a ansiosamente. Eu mantinha
os olhos fechados para não olhar para ela. Apenas um olhar dela
faria eu colocar tudo a perder. Depois de algumas estocadas eu
senti que ia gozar. Estava há tantotempo na “seca” que apenas um
olhar dela mais ousado já poderia fazer com que eu extravasasse,
mas eu ainda precisava dar o meu último golpe sem misericórdia:
— Porra, Sabrina, como você é gostosa — aproveitei mais um
mito que tinha sido criado em relação ao meu comportamento:o de
eu não chamar as pessoas pelo nome. Fiz isso para mostrar para
ela que não significava nada para mim. Quem eu estava querendo
enganar mesmo?
Joguei o meu corpo sobre o dela. Insinuando que tinha
acabado e que não teria nada para ela. Eu estava completamente
vestido, apenas com a braguilha aberta. Levantei, tirei a camisinha,
fui até o banheiro e tomei mais um banho. Coloquei a roupa
novamente. Quando cheguei ao quarto ela já estava vestida
também. Pediu para usar o banheiro e quando saiu perguntou se
faríamos mais alguma coisa. Ela era realmente incrível, ou estava
incorporando muito bem o papel que lhe fora imposto, esteve à
minha total disposição, não teve prazer nenhum e agora ainda me
oferecia “mais alguma coisa”. Eu olhei em seus olhos e afirmei:
— Não, Sabrina, acabamos por aqui — essa foi uma frase
difícil de pronunciar. — Agora estamos livres e nossas vidas
poderão seguir o rumo que quiserem.
Indiquei a ela que pegasse o elevador privativo e fosse até o
estacionamentodo prédio. Lá teria um carro esperando-a com um
motoristaque a levaria onde quisesse. Na verdade era Xavier o meu
segurança. Ela saiu por aquela porta e levou o meu coração junto...
Capítulo 39
Eu estava sufocando,o que tinha acabado de fazerestava me
causando um sofrimentomaior do que eu imaginava. Esperei um
tempo para não a encontrar no estacionamentoe fuipara lá pegar o
meu carro. Entrei nele e o rádio ligou automaticamenteem uma
emissora local que eu não tinha sintonizado. Como Xavier às vezes
usava o meu carro, não achei estranho. Comecei a ouvir uma
música antiga do Frejat, chamada“Amor para recomeçar”:

“Eu desejo que você ganhe dinheiro


Pois é preciso viver também
E que você diga a ele
Pelo menos uma vez
Quem é mesmo o dono de quem

Desejo que você tenha a quem amar


E quando estiver bem cansado
Ainda, exista amor prá recomeçar

(...)”

Era uma música muito profunda. A pior música para eu ouvir


naquela situação. Fui com o dedo no volante, num impulso de trocá-
la, quando um carro entrou na garagem chamando a minha atenção.
Fiquei ali curtindo o que parecia ser a minha primeira fossa, aos 27
anos. Quando o Frejat terminou de transmitiro recado, sim aquilo só
poderia ser o recado de alguém para mim, mas infelizmenteeu não
poderia fazer mais nada a respeito. O que tinha que fazer estava
feito.
Segui sem rumo, parei em um parque. Quando estacionei
escutei o meu telefone tocar:
— Fala, Xavier — cumprimentei vendo o seu nome
aparecendo no visor. — Tudo certo, deixou-a em casa?
— Sim, segui as orientações que o senhor me deu.
— Como ela estava? — Eu queria saber o tamanho do estrago
que fizera.
— Bem, exceto pelo fatode ela começar a chorar depois de
ouvir uma música que tocou no rádio.
— Como assim, que música? O que ela disse mesmo? —
coloquei no viva-voz.
— Do Frejat, na rádio que eu escuto. Disse que tinha gente
que precisava escutar essa música.
— Está dispensado. — encerrei a conversa.
Sai do carro acreditando que o que houve foi uma mera
coincidência. Eu e Sabrina escutamos a mesma música. Ela
desejava que alguém a ouvisse e eu escutava-a tendo a impressão
de que era a mensagem que alguém me mandava... Com certeza
eu devia ter comido muito carboidrato no final de semana, pois
cheguei a pensar que isso poderia ser um “sinal”
.
Olhei ao redor explorando o local, em um canto adolescentes
ouviam música alta, mais à frente crianças brincavam em um
parquinho. Eu não queria estar sozinho, porém não tinha com quem
conversar... Eu só precisava um pouco mais de silêncio do que tinha
ali. Fui caminhando em uma trilha mesmo de terno e sapato social,
encontrei um banco em um lugar mais afastado,porém iluminado
ainda.
Acomodado naquele banco deixei os meus pensamentos
divagarem. Quando olhei para o lado um cachorro cinza com pelo
arrepiado se sentou ao meu lado e ficou me olhando. Eu tinha a
nítida impressão de que ele entendia o que eu pensava...
— Você tem nome, amigão? — perguntei para ele me achando
ensandecido. — Posso te chamar assim... amigão? — curiosamente
o cachorro me respondeu com dois latidos e eu entendi que sim. —
Você sabia que tem um filme infantilque eu assistia quando era
pequeno chamado de “A dama e o vagabundo”? Você é muito
parecido com o vagabundo — Ele me olhava e parecia que
esperava alguma coisa. — Então, amigão, eu hoje fiz uma coisa...
com uma garota... eu não queria ter feito... mas agora eu já fiz...
Eu olhei para o cachorro e ele me encarava, prestando
atenção.
— Ela trabalha comigo sabe. No início achei divertido brincar
com as roupas que ela usava... tinha dias que vinha que nem um
arco-íris, no outro vinha toda de preto. Ela não tinha a menor noção
de onde estava, com quem trabalhava, como deveria se portar e
vestir. Isso foi mais uma coisa que me encantou: sua simplicidade.
Um dia ela veio trabalhar vestida de preto e questionei se estava de
luto, sabia que ela estava arriscando... tentandome agradar, já que
eu tinha insinuado que não gostei de uma roupa colorida que usava,
não estava tão ruim, mas muito informal para um escritório, sabe?
Olhei novamente para o cachorro que não me encarava mais,
mas sem dar importância para este fato continuei contando.
— Daí ela me faloudo falecimentode sua avó, a danada ainda
tem senso de humor... eu não poderia deixar passar e mostrei a ela
que eu sabia que isso faziatempo, que não poderia ser enganado e
ela tirou de letra. A cada dia eu ia descobrindo seus novos
encantos... é, amigão, eu nunca fiz questão de ter amigos. Fui
criado pelo meu pai, que sempre manteve uma postura muito firme
em relação a qualquer envolvimento que não fosse profissional. Ele
sempre me dava o exemplo do que minha mãe fez com ele. Ela
largou o meu pai, levou o meu irmão gêmeo com ela, deixou-me
com o meu pai e foi viver a sua vida com outro homem. A partir daí,
meu pai criou uma fortalezaao nosso redor e quando cresci fui
sistematicamentesendo afastadodas mulheres reais e fui sendo
apresentado às acompanhantes, o que é realmente mais prático
levando em consideração o estilo de vida que tenho.
Curiosamente o cachorro se levantou e seguiu caminhando
em direção ao que parecia se tratarde uma barraca de cachorro-
quente. Ele parou no meio do caminho e ficou olhando para mim,
como se me convidasse. Eu só poderia estar louco. Quis fazer um
teste e segui o cachorro para ver o que aconteceria. No exato
momento em que cheguei ao seu lado ele começou a caminhar e
me guiou até a barraca. O rapaz entregou uma salsicha na boca e
ele esperou pacientemente sentado nas patas traseiras.
— Vai um completo, meu jovem? — era o vendedor de
cachorros-quentes querendo que eu quebrasse a minha dieta na
segunda-feira.
— Vai... — Eu já estava com fome mesmo.
Peguei o meu cachorro-quente e voltei para o mesmo banco
em que eu estava. O cachorro me acompanhou. Chegando lá ele
deitou com a salsicha entre as patas dianteiras e ficou lambendo
como se ela fosse um sorvete.
— Você é um cachorro adulto? — Eu realmente estava
perguntando isso para ele? — Bem, se não for, tampe os ouvidos!
— dei uma risada. — Eu fiquei com vontade de acasalar com ela,
sabe? Só que eu sou meio complicado, prefiro manter as coisas no
nível dos negócios... para isso, eu pedi ajuda para um conhecido
que temos em comum, o Velazquez. Só que ele estava meio bravo
comigo por um lance que aconteceu no passado e me enganou
fazendoassinar um documento, que impunha certas condições para
o nosso encontro. Nós ficamos presos por um mês e isso foi tempo,
mais do que suficientepara eu conhecê-la... ela é inteligente,astuta,
ousada e decidida. Sem falar que ela é linda e cativante.
O cachorro começou a comer a salsicha que já estava
completamente sem cor.
— Então, amigão... eu fiquei com muita raiva e queria fazê-la
sofrer. Ela seria responsável por pagar pelo que o inconsequente do
Velazquez fez. Com quem ele achava que estava brincando? —
suspirei com arrependimento ao me lembrar das coisas que fiz para
ela. — Comecei tirando dela a autonomia da sua rotina. Dobrei a
sua carga de trabalho e não ouvi nenhuma reclamação, ela
prontamente se adaptava e dava um jeito de fazer acontecer.
Inventei tarefasesdrúxulas que ela cumpriu com maestria. Pedi para
uma amiga montar-lhe um closet capaz de virar a cabeça de
qualquer mulher e ela continuou usando suas próprias roupas. Não
contente com tudo isso, resolvi inventar uma viagem para São
Paulo, eram duas reuniões que aconteceriam aqui e eu indiquei que
poderia me deslocar para lá. Tirei-a do meio familiar por um final de
semana e ela, sem reclamar, me acompanhou. Eu queria encontrar
um ponto fraco nessa menina. Eu só percebi uma coisa que a
deixava abalada: eu. Uma coisa que fazia com que ficasse confusa:
a minha presença. Ela sentia a mesma instabilidade que eu, porém,
não sabia se controlar...
O cachorro se levantou e ficou olhando para o meu cachorro-
quente que eu dera apenas uma mordida. Como eu ia comer se eu
não parava de falar? Estendi a mão e entreguei para ele, que se
sentou no mesmo lugar e começou o mesmo processo de
“lambeção” na salsicha, deixando o pão de lado.
— Nessa viagem que fizemos à São Paulo, nós fomos de
Helicóptero — como um verdadeiro Forest Gump, continuei a minha
narração: — Ela não se sentiu bem. Neste momento eu conheci um
sentimentoque ninguém tinha despertado em mim: o cuidado. Eu
queria cuidar dela de uma forma tão intensa que aquilo me
desestabilizou
De forma quase automáticaminha mente lembrou-se de um
dos conselhos do meu pai. Repeti a mensagem ao meu mais novo
amigo.
— Meu pai dizia que as mulheres pagas eram melhores,
“porque nunca te dariam um fora”, e lá vinha ele de novo me
contando o que minha mãe havia feito.Por isso eu tinha receio de
ligar para alguma mulher, convidar alguma mulher para sair e, sei lá,
ela me rejeitar. Naquela noite no hotel, eu ia beber só um pouco
para ter coragem e convidá-la para acabarmos com o contrato,mas
tive muito receio da rejeição e bebi demais... — lembrei que mesmo
embriagado senti o toque leve dos seus lábios quentes, ela me
tratoucom tantocarinho, independente do estado lastimável que eu
estava.
Olhei para o cachorro que agora repetia o passo de comer a
salsicha esbranquiçada.
— Bem, amigão, no dia seguinte ela foi espetacular me
assessorando nas reuniões e à noite vejo ela se encantar com um
porta-joias, que não resisto em comprar para ela... eu só não
consegui entregar a ela, não queria que se iludisse e imaginasse
que algo a mais entre nós poderia acontecer. Fui até o seu quarto e
ela está linda em um pijama do Garfield . Que inveja eu tive daquele
Garfield... senti uma vontade louca de beijá-la, mas tinha esse
maldito contrato entre a gente... foiaí que tive a ideia de brincarmos
por telefone... eu sei, sou meio pervertido,não é? Mas ela aceitou...
é claro — suspiro só de lembrar o quanto eu desejei quebrar a
parede que estava entre a gente naquela noite.
Desisto de olhar para o cachorro, ele não está mais atentoa
mim, mas ignoro essa constatação e aproveito para refletir e
organizar os meus pensamentos...
— Sabe, amigão... — parece que é mais fácil refletirquando
se fala com alguém — ela tem desejos simples, pelo menos para
mim, e eu gostaria de realizar todos eles. Para ter certeza das
minhas hipóteses esta semana lhe propus uma brincadeira “verdade
ou desafio”. Eu queria conhecê-la mais um pouco, ver do que ela é
capaz... eu tinha uma desconfiança,de que ela e o Velazquez eram
amantes e que ele estava brincando comigo, mas não, acho que ela
não mentiu sobre isso. Senão ela nem citaria o Velazquez em seus
comentários, que ocorriam de forma muito inocente e natural.
Eu passei a mão entre os cabelos e olhei no relógio. Estava
tarde.
— Sabe de uma coisa? Essas perguntas sobre o Velazquez
me fizeram ficarcom ciúmes. Admito. Ele era um cara sozinho como
eu, que usufruía da companhia de duas moças e com elas
constituíralaços não sexuais, como isso era possível? Ele estava
sempre com ela e só tinha rolado um beijo, eu faria tantascoisas
para lhe dar um único beijo...
Eu levantei, andei de um lado para outro, o meu psicólogo me
olhava pacientemente. Sentei novamente.
— Você sabe que não acabou, não é? —
Eu estou chegando à conclusão que preciso de um psicólogo
de verdade. Continuei:
— No começo explorei a sexualidade dela, para entender o
que ela já tinha feito,pois não queria assustá-la com as minhas
perversões. E eu tinha muitas perversões que incluíam ela. Propus-
lhe desafiossensuais e brincadeiras eróticas... teve um dia que pedi
que ela escutasse uma música da Madonna
Olhei para o Amigão e expliquei quem era Madonna, depois
continuei.
— A letra falava de uma prostitutaque apresentava todos os
prazeres do sadomasoquismo. Eu tive a impressão de que ela não
gostou daquilo. Fiquei quase louco quando não consegui entrar em
contato,pois aconteceu alguma coisa entre o celular dela e uma
privada, me tirando a possibilidade de falarcom ela forado trabalho.
Eu fiquei desesperado e fui correndo comprar um celular para ela.
Eu não sabia exatamente o que a havia incomodado... teria que
mudar a minha abordagem... eu passei a esperar ansiosamente o
horário do nosso jogo, era um pretextodiário que eu tinha para falar
com ela. Isso estava sendo muito contraditóriopara mim, eu estava
deixando me envolver e estava gostando disso, por outro lado, eu
não tenho o menor interesse em me envolver e queria que as coisas
ficassem do jeito que estavam.
O cachorro pulou em cima do banco e ajeitou a cabeça em
meu colo. Ergui os braços sem saber o que fazer e instintivamente
coloquei a mão em sua cabeça. Ele cheirava nitidamentea cachorro
molhado.
— Está cansado, companheiro? — Eu também estava, mas
precisava terminar.
— Aí ela fez a pergunta fatal: “Você já teve algum
relacionamento sério e duradouro?”, e eu rebati: “Qual é o seu maior
sonho?”. Ela respondeu: “Casar com um homem rico, poderoso e
gostoso, tipo os CEOs dos livros que eu lia”. Não estou querendo
me gabar, Amigão, mas ela estava nitidamente falando de mim.
NÃO!Isso não é para mim, eu não quero isso. Aí eu tive a ideia. Ela
me mandou uma música também. Era uma contagem regressiva de
preliminares. Sei que ela estava no jogo, essa música indicava
coisas que queria que eu fizesse com ela. Foi então que decidi... eu
queria beijá-la, acariciá-la, explorar todo o seu corpo, sentir o seu
cheiro em cada milímetro de sua pele, queria penetrá-la com
suavidade e lhe dar o maior prazer que já sentiu em toda a sua vida.
E eu saberia que esse seria o meu prazer também, eu estava tão
extasiado com essa coisa da espera, das brincadeiras, eu me sentia
um completo adolescente, mas não poderia fazer isso... nós dois
sofreríamos muito... ter uma noite de amor maravilhosa e cada um
segue o seu rumo? Isso não fazia sentido para mim.
Continuei afagando o meu amigo malcheiroso...
— Aquilo tinha que acabar, para mim e para ela,mas como
fazer isso sem causar tantosdanos? Pensei em simplesmente dizer
que o contrato tinha acabado e que ela estava “livre”. Só que isso eu
não consegui. Pensei em como ela se sentiria rejeitada e eu queria
pelo menos um pouco de intimidade com ela, para ver se o turbilhão
que tinha dentro de mim se acalmava...
O cachorro ergueu a cabeça como se me perguntasse:
“Acalmou?”.
— Não. Não acalmou! — disse suspirando. — Está pior.
Depois de tê-la tratado como uma prostituta,sem ter o menor
respeito pelos seus sentimentos e pelo seu corpo. Eu me sinto muito
pior. Eu não queria que ela me amasse ou esperasse um futuro
comigo, mas o que eu fiz... como irei encará-la amanhã? Sabe,
amigão... meu pai me fez prometer que nunca me envolveria com
uma mulher, que eu seria fortee nunca seria abandonado como ele
foi, que eu nunca me casaria. Ele dizia que eu era fortee que tinha
orgulho de mim. Vou confessar. Em todos esses anos isso nunca
tinha sido um problema. Até o dia em que o Leo — percebi que o
chamei pelo nome — passou em minha frentecom a doce Sabrina.
Sabe por que não chamo as pessoas pelo nome, Amigão? Porque
nunca tive intimidade suficiente com alguém para chamá-lo de tal
forma.
Levantei-me do banco e fui em direção ao dono da
barraquinha, que já estava fechando.
— Esse cachorro é seu? — perguntei para ele com interesse.
— Não. Apareceu aqui há um ano mais ou menos... ele é
muito bom em vender cachorros-quentes. Sempre lhe dou boas
comissões... — rimos juntos.
— E nesse tempo todo, ninguém quis levá-lo para casa? —
olhei para o cachorro enquanto perguntava.
— Até tentaram... ele parece dócil, mas quando tentam colocá-
lo no carro ele vira uma fera.
— Uma pena... — lamentei — aparenta ser um bom cachorro.
Boa noite! — despedi-me indo em direção ao meu carro.
O cachorro me acompanhou e se sentou atrás do automóvel,
próximo ao meio fio. Fui até ele, afaguei-lhe a cabeça e agradeci a
boa conversa.
— Se cuida, Amigão. Obrigado pela conversa — falei me
dirigindo a ele, que respondeu com uma latida.
Entrei no carro e ao me afastarolhei pelo retrovisor o meu
novo fiel amigo ir ficando para trás.
Capítulo 40
Sabrina Souza de Andrade
Quando abri os olhos pela manhã nem acreditei que tudo
aquilo tinha acabado. Estava ansiosa para ter a minha vida de volta
e agora que a tinha estava me sentindo estranha. Só de pensar em
encontrá-lo novamente me bate uma ansiedade.
O que posso dizer do nosso “encontro”? Ele foi impessoal,
como eu imagino que deva ser com qualquer acompanhante que se
preste a este serviço. Eu estava meio sem saber o que fazer
principalmente, depois que ele negociou comigo todos aqueles
combinados... Ali eu tive certeza de que nada seria “normal” entre
nós e agradeci que teríamos apenas um encontro e aquilo tudo teria
fim. Eu tive a impressão de que mais um Scheffer se apresentara
naquela noite para mim. Mais um entre tantos que eu estava
conhecendo. Este era distante, sem brilho, parecia um boneco,
fazendo tudo conforme um roteiro planejado.
Eu fantasieitantoesta nossa “primeira vez”... Depois daquelas
brincadeiras... Jogos... Insinuações... Eu imaginei que ele me levaria
à beira da loucura e do êxtase... E ele foi... Rápido. Bem rápido.
Além do mais teve uma coisa que me deixou ainda mais
incomodada com tudo isso. Um pequeno detalhe que fez toda
diferença:ele me chamou de Sabrina. Eu queria tantoisso, mas não
depois do que ele havia me falado: “Tenho a impressão de que se
chamo uma pessoa pelo nome dela é como se eu não a estivesse
respeitando..."Será que agora ele perderia o respeito por mim?

Fico emocionada de entrar na sala virtual da Faculdade


novamente. Retomo de onde parei. Mas faço o exercício de voltar
algumas aulas e dar uma revisada. Quando chego ao trabalho a
senhora Macedo me recebe como sempre. Fico envergonhada de
encará-la sabendo o que aconteceu a última vez que estive ali. Ela
me chama:
— Senhorita Andrade... — pode parecer estranho, mas sinto
um alívio ao ouvi-la me chamando assim — o senhor Scheffer
estará em atividades externas... e deixou uma lista de tarefasem
sua mesa.
Será que ele também tem receio de me encarar?
— Obrigada, senhora Macedo — respondi me dirigindo à
minha própria mesa.

Era uma lista pequena. Apenas quatro itens:

1 — Revisare encaminharos contratos do Valedos Girassóispara


o senhor Velazquez;
2 — Agendar um espaço para o próximo evento (120 pessoas);
3 — Preparar a apresentação para o Grupo Mirage;
4 — Voltar para a academia.

Esse cara é muito atrevido... ele só poderia estar brincando...


ele estava me chamando de gorda por tabela? Bufei... não foi o
suficiente... bufei novamente! Senhor, que cretino! Dei uma
martelada com o punho cerrado contra a mesa. Gelei ao ver que
estava sendo filmada e em câmera lenta mostrei o dedo do meio
para ela. Pronto. Agora estou pronta para começar uma tarde de
trabalho.
Lá pelas quatro e meia estava tudo terminado, menos a parte
da academia. Até tive vontade de sair antes e dizer que eu estava
indo malhar... Isso não estava na minha lista de tarefa s mesmo?
Mas não, eu não conseguia ser assim. Recebi uma mensagem do
RH informando que os contracheques já estavam disponíveis. Não
tinha esse costume, mas tive a curiosidade de ver como tinha ficado
meu contracheque agora. Fiquei paralisada tentando entender de
onde surgiu tantodinheiro. Fui conferindo os nomes que estavam
discriminando aqueles valores:

● Salário;
● Horas extras;
● Atividades externas;
● Atividades extras;
● Ressarcimento.

Pensei em tudo que fizemos neste último mês. Realmente


pude relacionar algumas das atividades que “executei” com o que
estava ali descrito. Mas acredito que aquilo estava extremamente
supervalorizado. Com certeza na primeira oportunidade que eu
tivesse falariacom o senhor Scheffersobre isso. O último valor foio
que me deixou mais intrigada. Ressarcimento 89,45 reais. Esse
valor não me era estranho...
Claro! Era o valor que gastamos na hamburgueria. Ele estava
me devolvendo, isso significava que eu teria direito a mais um
desafio... Será que era isso que ele queria? Que eu lhe cobrasse
mais um desafio?Esse pensamento passou pela minha mente, mas
foi descartado imediatamente, pois eu tinha certeza de que não
queria nenhum envolvimento com ele que não fosse profissional.
Meu Deus!!! Tudo o que tivemos foiprofissional.Ele pagou por cada
centavo deste meu último mês. Mas não, chega de brincadeiras e
desafios com meu chefe.
No dia seguinte a mesma coisa. Ele estava ausente e em
minha mesa tinha uma nova lista. Fora os compromissos de
trabalho que eu já desconfiava que estariam lá, sempre tinha um
plusno último item:

5 — Já retomou as aulas da autoescola?

Após ler isso olhei para a câmera e abri as duas mãos como
quem diz: Não estou entendendo nada.
Hoje é quinta-f eira, estou ansiosa de chegar ao escritório e ver
o que terá escrito no bilhete. Ou melhor, no último item do bilhete.
Eu fico tão impressionada como o meu chefe mesmo estando
ausente consegue me envolver tanto?A anotação de hoje é uma
pergunta: “Hoje é dia de fazer as unhas?” Eu encolho os dedos e
olho as minhas unhas, começando a dar sinais de que precisam de
cuidados. Sim, hoje é um bom dia para fazeras unhas. Olho para os
outros itens da lista e começo a me distrair com os afazeres que me
foram destinados. A tarde passa e eu vou ao salão conforme meu
chefe lembrava no bilhete.
Enquanto minhas unhas estão sendo embelezadas, eu reflito
sobre as tarefasque ele deliberadamente listou em cada um dos
meus dias da semana. Meu chefe estava sugerindo que eu voltasse
à minha rotina. Ele havia mencionado que teríamos nossas vidas de
volta e agora claramente ele fazia a indicação a isso. Como se eu
precisasse de alguma permissão ou incentivo para retomar a minha
rotina.
Pior que eu devo confessar... Eu já tinha me desacostumado a
ser eu e seguir os meus próprios planos. Ainda olhava para o celular
aguardando uma mensagem ou ligação de meu chefe traçando
rumos e metas para o meu dia. E esperava avidamente as suas
ligações noturnas. Antes de sair dei uma espiada em sua agenda,
que é compartilhada comigo em meu e-mail. Realmente estavam
agendadas reuniões externas para os três dias que esteve fora.
Para amanhã não tem nada agendado. Será que ele vai aparecer?

Não sei o porquê, mas acordei com um surto de rebeldia.


Coloquei uma blusa preta de gola alta, justinha e de mangas curtas.
Uma saia preta que emoldurava o meu corpo. E os sapatos pretos
que usei na noite do nosso encontro. Era como se eu quisesse
afrontá-loe ao mesmo tempo lembrá-lo de que seu tempo comigo
havia acabado. Não pude deixar de passar em um armazém no
caminho e comprar uma barra de chocolate para comer durante o
trabalho, bem longe da copa.
Enquanto estava ligando o computador. O telefonede minha
mesa tocou. Atendi dando prosseguimento ao ritual do início da
tarde. Ele me solicitava em sua sala. Fechei os olhos e suspirei
algumas vezes tentandome acalmar. Definitivamenteeu não estava
preparada para esse encontro ainda. Mas quando estaria? Era
melhor que fosse logo para que desta forma me libertasse dessa
angústia o quanto antes... Senti-me agradecida pelo fatode nunca
termos nos tratado com intimidade no trabalho.
Entrei em sua sala. Sentei-me na mesma cadeira em que
negociamos os “termos” de nossa transa. Nossa... Isso tudo me
deixou enjoada. Olho em direção à porta que me levou àquele
quarto, estrategicamenteconstruído para aliviar a tensão sexual do
meu chefe,muito próximo do seu local de trabalho... Ainda vem com
a historinhade que não quer misturar as coisas... Freio os meus
pensamentos e encaro o homem à minha frente.Ele está lindo em
um terno cinza escuro. Não parece nem um pouco com o
negociante sexual que falou comigo no início da semana. Ele
começa:
— Boa tarde, senhorita Andrade. Como tem passado? — senti
um alívio ao ouvi-lo me chamar dessa forma.
— Boa tarde, senhor Schef fer. Bem, e o senhor?
— Bem também, fora o fato de estar bem ocupado com
atividades externas... — era impressão minha ou ele estava dando
espaço para puxar assunto? Não. Isso não é bom.
— Como o tempo é menor agora, penso que temos que
começar logo — disse, impedindo que continuássemos com aquela
conversa furada.
— Como sabe teremos um evento no final do mês. Peço que
cuide pessoalmente dos detalhes para que tudo ocorra sem
imprevistos de última hora. Terá carta branca. A cada dia confio
mais em seu trabalho — falou fixando o olhar em minhas unhas
pintadas de preto fosco.
— Obrigada pela confiança. Vou fazer o melhor com o tempo
que tenho.
— Está achando pouco tempo?
— Senhor Scheffer, trabalho só no período da tarde agora...
— Não tenho objeção nenhuma para que trabalhe o dia todo.
— Ele falou como se fosse fácil resolver isso.
— Mas eu tenho. Enquanto não terminar a faculdade, isso
será um problema para mim — respondi defendendo as escolhas
que já tinha feito...
— Posso conseguir alguém para ajudá-la... o que acha?
— Uma estagiária para a estagiária? É isso? — destaquei com
bom humor.
— Apesar do pouco tempo que trabalha aqui, não considero a
senhorita uma estagiária. — Ele passou a mão no queixo, pensativo.
— A senhorita é a minha assistente.Vou inclusive oficializar isso no
RH e aproveito para solicitar uma auxiliar... façamos uma
experiência.
— Senhor Scheffer, ainda não sou formada... acho difícil que
aceitem isso.
— Veremos... — respondeu ele determinado.
Já que estávamos falando dessas coisas, queria aproveitar
para falar sobre o meu contracheque, achei que era uma
oportunidade interessante.
— Senhor Scheffer, penso que tem algo de errado com o meu
contracheque... os valores indicados pelos serviços que prestei
estão altos demais...
Ele abriu o sistema, e pelo que entendi olhava para o meu
contracheque na tela do computador .
— Está tudo certo, senhorita... achei justo pagá-la pela
dedicação exclusiva que tive durante todo esse mês... — para
completar a sua análise ele ainda fazia umas contas no celular .
— Não me sinto bem com isso. Estava apenas fazendo o que
foi combinado.
— Sim, e eu valorizei o que fez. Mais alguma queixa?
Ele estava irredutível, como sempre. Não adiantava eu ficar
discutindo com ele. Não chegaríamos a lugar nenhum. Lembrei do
ressarcimento do valor do nosso lanche, mas isso eu não
questionaria de forma nenhuma. Queria deixar aquele encontro no
lugar dele: no passado, sem a menor chance de voltarmos a ele.
— Não. Tudo certo, senhor Schef fer. Obrigada!
Saí da sala dele e meia hora depois eu já tinha uma moça
trabalhando comigo. Seu nome era Camila. Tinha os cabelos
castanhos mais curtos que a altura dos ombros. Era um pouco mais
baixa do que eu e isso fazia com que parecesse um pouco mais
cheinha comparando comigo.
Ela era bonita.
Cheguei a pensar se eu ficaria com ciúmes dela, ou pior, se
ela seria a próxima a receber uma “proposta sexual”, já que
tínhamos praticamente a mesma idade, mas espantei esses
pensamentos, pois eu não precisava me preocupar com isso, na
verdade eu não deveria me preocupar com mais nada a respeito
desse assunto.
Camila era uma moça prestativa e discreta, tinha um
comportamento contido como o da senhora Macedo. Seguindo o
exemplo do meu chefe eu lhe fazia listas com pequenas tarefasque
iam sendo cumpridas uma a uma. A partir disso eu conseguia
adiantar e otimizar o tempo com o que eu precisava fazer
.
Como eu estava envolvida nessa grande tarefa,as visitas à
sala do meu chefeforammenos frequentes.O que me deixava mais
tranquila sem ter que conversar com ele de frentea frente.Eu fazia
isso apenas quando estava com alguma dúvida ou precisava de sua
opinião com muita urgência. Ele sempre deixava para que eu
decidisse. Eu encarava isso como um voto de confiança,apesar de
perceber que agindo assim ele também ajudava no nosso
distanciamento.Porém, tinha muito receio... E se ele não gostasse
do resultado final?
Capítulo 41
Sexta-feira.Dia do evento. Com ajuda de Camila estava tudo
pronto. O rapaz que cuidava do transporte dos materiais estava
carregando o furgão e estávamos separando o que ele levaria
primeiro. Uma moça muito bonita entra no escritório.
Eu imaginei que ela era a acompanhante do meu chefe,
apesar de ser sua assistente pessoal, fiquei feliz que ele tenha
mantido essa tarefaaos cuidados da senhora Macedo, que estava
cuidando mais da parte da administração do prédio.
Fui para o banheiro, lavei o rosto, respirei fundo algumas
vezes e rezei para não ser verdade, mas a verdade era que assim
como eu seguira em frente,um mês após o término do contratoele
fazia o mesmo, só que do jeito“Scheff”de ser, é claro.
Apesar de ele ter insistido eu não quis mais entrar naquele
closetescolher roupa nenhuma. Perguntei se ele ficariaincomodado
se eu fosse de calça, levando em consideração que estaria
trabalhando e teria uma mobilidade maior. Ele disse que não tinha
objeção a isso, mas lamentava o fatode eu não querer participar da
festa.Afirmeipara ele que nos bastidores seria mais divertido. Eu ri,
ele não.
Samantha era a acompanhante dele e contrariando o padrão
vestia azul-piscina. Eu fiz um esforço mental para lembrar se esse
era um dos vestidos do closet, mas a minha memória visual não
estava tão boa assim. Tive que me apoiar na parede no momento
em que os dois chegaram, nós dois nunca tivemos nada, nada além
de brincadeiras e uma convivência forçada por um mês que
demorou mais do que um ano para passar..., mas vê-lo
acompanhado por outra, mesmo sabendo que era uma moça “paga”
para isso e que seria por uma noite apenas me deixava enciumada
do mesmo jeito.
A nossa “noite de amor” não tinha sido lá aquelas coisas, mas
isso era o que menos me importava. O que eu sentia por ele ia além
de sentimentos e atitudes que eu pudesse explicar .
O fato de eu não estar de saia não me tornou menos
interessante.Recebi muitos elogios mesmo estando de calça social
preta em um tecido com elastano, a camisa que usava era de cetim
prateado, calcei uma sandália preta de salto altíssima. Para
completar o visual, a maquiagem de tia Nice com preto e prata
esfumaçados e os cabelos presos em um rabo de cavalo alto me
deixaram muito atraente modéstia à parte.
Tudo ocorreu da melhor forma possível, o fato de termos
trabalhado por um mês neste projeto feztoda a diferençae eu podia
ver, mesmo de longe, que o meu chefe estava bem. Sua
acompanhante o aguardava na mesa, cheguei a presenciar por
algumas vezes que ele ia lá e conversava com ela. Porém deixando-
a a maior parte do tempo sozinha.
Quando tudo terminou meu chefe aproximou-se de mim e
perguntou:
— Senhorita Andrade, como irá embora?
— Não se preocupe, senhor Scheffer. Irei embora do mesmo
jeito que eu vim — tentei tranquilizá-lo sem dar-lhe muitos detalhes.
— E posso saber como a senhorita veio?
— Com o Carlos da transportadora.Sairemos daqui e iremos
ao estacionamento da SSB para deixar algumas coisas no depósito
e depois ele me deixará em casa.
— Como assim, com o Carlos da transportadora?
Nesse momento o Carlos “da transportadora” chega e me
pergunta se a caixa em suas mãos iria. Meu chefe faz um raio-x
dele com os olhos.
Eu fiz o mesmo. Carlos era um rapaz alto, loiro e muito bem
apessoado. Vestia calça social e camisa igualmente pretas. As
mangas estavam arregaçadas mostrando a sua pele bronzeada,
seus músculos eram evidentes, pois as mangas da camisa estavam
esticadas. Tive que parar de fazer a minha análise, pois a caixa na
mão de Carlos parecia pesada.
— Sim, Carlos, essa é a última, eu acho... — falei dando uma
risadinha para ele, que já carregava pela quinta vez a última caixa.
— Isso não é prudente, senhorita — o senhor Scheffer me
chamava a atenção.
— Carlos, há quanto tempo trabalha para a SSB? — pergunto
para o rapaz, que já está voltando.
— Três anos mais ou menos. — Ele responde.
— Viu?! Ele que terá que tomar cuidado comigo... não tenho
nem um ano de empresa — falei bem próximo ao ouvido do meu
chefe de maneira que só ele ouvisse. — Não se preocupe, chefe...
— gelei ao falar espontaneamenteesta palavra, que só usava em
nossas conversas ao telefon e — não se preocupe, senhor Scheffer
— corrigi rapidamente —, estarei em boas mãos.
Peguei um último arranjo no balcão e segui Carlos em direção
ao carro que nos aguardava. Só para esclarecer o Carlos é casado,
mas certas pessoas não precisavam saber disso.
Capítulo 42
O tempo passou...

— Sabrina Souza de Andrade! — era o reitor da universidade


me chamando para pegar o diploma simbólico que me entregaria.
Seguindo em direção àquele palco improvisado escuto o
gritinho da minha tia e a bomba de papéis picados que o Leo havia
trazido para comemorar. Eu estava feliz. Agora oficialmenteeu teria
uma faculdade. Eu estava triste.Agora teoricamenteeu não tinha
mais o meu emprego, pois a parceria com a SSB acabaria
juntamentecom a faculdade. Deixei essas preocupações para outra
hora.
Na verdade estávamos em uma cerimônia de colação de grau
onde o ponto alto era o juramento. Sem baile, nem festa,não quis
comemorar, desde a minha última formaturano colegial e todos os
fatosque se sucederam após ela, inclusive a morte da vovó, eu
passei a evitar esse tipo de evento.
Só não pude deixar de participar da festade encerramento do
salão, desculpa que a tia Nice arrumou para comemorar minha
formatura.A organização ficou por conta de Mercedes novamente.
Elas conseguiram para mim um vestido de prenda maravilhoso. Na
verdade todos estávamos pilchados, esse era o jeito que todos
chamavam as roupas tradicionais usadas nos bailes gauchescos.
Ver o Leo de bota e bombacha não teve preço... O rapaz das
danceterias, quem diria Hein? Fizemos algumas aulas de dança
para que aproveitássemos melhor o baile que sabíamos,
aconteceria em breve.

Eu estava radiante. Sentia-me uma princesa com o vestido


que estava. Ele era preto e branco, todo bordado. A parte branca
era bordada com algumas flores pretas, no meio e à frente,já a
parte preta, era bordada com flores e ramos brancos, as mangas
tinham um estilo medieval e ostentavambabados sobrepostos. O
busto ficava todo coberto e a gola ia até o pescoço. Prendi os
cabelos em um coque clássico, a tia Nice fez uma maquiagem sutil
e eu me sentia linda, uma verdadeira prenda. Linda e realizada.
Estava sentada na mesa conversando com o Leo, após termos
dançado uma vanera quando senti alguém tocar no meu ombro.
Virei para trás e escutei uma voz familiar:
— Boa noite, Sabrina. Boa noite... — Ele falou dirigindo-se ao
Leo. — Podemos dançar essa música?
— Boa noite, Rodrigo... — Eu não fazia ideia do que ele fazia
ali — desculpe, estou acompanhada... — respondi querendo refutar
aquele convite.
— Tudo bem, Sabrina! Uma dança não vai tirar nenhum
pedaço, eu espero... — respondeu Leo bem humorado e estragando
o meu plano.
— Está bem. Uma dança então — falei olhando para o Leo,
fuzilando-o com o olhar.
— Divirta-se, maninha... — Ele retribuiu o meu olhar com um
sorrisinho falso.
Não consigo explicar o motivo, mas a presença de Rodrigo
nunca era confortávelpara mim. Seria pelo fatodele ser o irmão do
senhor Scheffer? Ou por ele ser meio intrometido?Não sei... Só sei
que eu esperava que aquela música acabasse o quanto antes.
Enquanto dançávamos ele começou a puxar conversa:
— O rapaz na sua mesa... é o seu irmão? — Eu não falei? Lá
vinha o “mete o dedo” em tudo!
— Sim... quer dizer, não... mais ou menos... — Eu não sabia e
não queria ter que explicar nada para ele — é uma longa história... e
meio complicada... não gostaria de falar sobre isso agora.
— Ah.... tá... — Ele respondeu meio desconcertado.
Parecia que eu tinha criado um abismo entre nós. Eu estava
achando que era melhor assim... Quando a música acabou, ele
agradeceu a dança e conforme combinado me levou em direção à
mesa em que estávamos. No caminho encontramos tia Nice:
— Rodrigo! Você veio! — tia Nice exclamou para ele,
entusiasmada.
— É... um amigo faz parte deste CTG e me convidou...
coincidência encontrar vocês aqui... — concluí que definitivamente
ele não sabia mentir.
E a minha tia? Apunhalando-me pelas costas!
Chegamos à mesa, ele todo educado agradeceu novamente a
dança. Pediu licença e saiu desconcertado, após ver a minha cara
amarrada. O Leo ficoudando risadinhas e teve a petulância de dizer
que formávamos um belo casal. Eu queria matar ele. Peguei uma
garrafa de água e fui em direção à porta, queria ficar sozinha no
pátio, tomar um ar e quem sabe esfriar a cabeça. Não consegui.
Não deu dois minutos e minha tia estava atrás de mim.
— Aproveitando o baile? — Ela perguntou, cautelosa.
— Um pouco... — falei olhando para ela tentando parecer
brava, mas já dando risada.
— Querida, você não percebeu? Esse rapaz gosta
verdadeiramente de você... — minha tia revelou com calma — todas
as vezes que ele vai ao salão acompanhando a dona Judite, ele
pergunta por você. Quando estava no final da tarde, ele ficava
olhando para a porta como se estivesse esperando você entrar... ele
só é tímido...
— Tímido? Ele não tem nada de tímido! — bufei— Mas isso é
suficiente para você convidá-lo para o meu “baile de formatura”.
— Eu achei que você não queria um “baile” de formatura,e
que estávamos fazendo o encerramento do salão. — advertiu-me
divertida. — Não convidei ele querida... ele escutou a nossa
conversa. Você sabe como as meninas ficamanimadas quando tem
baile... — Ela me explicava pacientemente — ele ouviu a nossa
conversa e disse que frequentava outro CTG, mas o baile é público.
Entra quem paga o ingresso. Por isso ele está aqui.
— Esse é um dos motivos de eu não gostar dele. Ele se mete
demais onde não é chamado — minha voz estava ficando exaltada
e minha tia fez um sinal para eu diminuir o tom.
— Será que é só isso? Ou alguém que eu conheço ainda tem
esperança de ter um relacionamento amoroso com o homem
complicado com quem trabalha? — Ela ergueu o meu rosto, que
estava cabisbaixo. — Você merece uma nova oportunidade. Aquele
rapaz lá dentro, ou qualquer outro, merecem uma oportunidade...
até quando você vai ficar se guardando? Independentemente do
que você sinta pelo Scheffer, você não poderá esperá-lo pelo resto
da sua vida. Se permita conhecer as pessoas... eu não estou te
dizendo para casar com o Rodrigo. Só o conheça e depois você vê
o que faz...
Eu senti vergonha de estar me comportando daquela forma...
Em que momento da minha vida eu vireiuma garota mimada?
Novamente a minha tia tinha razão. Eu só não tinha certeza se iria
conseguir fingir que nada tinha acontecido com o senhor Scheffer e
deixar outra pessoa ocupar um espaço que para mim ainda estava
preenchido.
Entramos novamente no salão. Eu senti que um peso enorme
havia sido arrancado de minhas costas. Sentei em uma das
cadeiras vagas da mesa que Mercedes havia reservado. Comecei a
observar o que se passava. Na mesa em que Rodrigo e seus
amigos estavam, tinha muita animação, eram todos jovens e
usavam roupas parecidas, como se fossem uniformes tanto nos
homens como nas mulheres.
Na nossa mesa o Leo era o bendito frutoe estava fazendo
revezamento dançando com as meninas do salão. Nas outras
mesas havia famílias, casais, grupinhos de homens e grupinhos de
mulheres.
Como da outra vez que estivemos ali, a música parou e um
homem que parecia ser o presidente do CTG informou que outro
grupo convidado iria apresentar uma rancheira. A música começou
e os dançarinos começaram dançando em duas filas paralelas com
homens de um lado e mulheres do outro. Aos poucos os pares
foram se formando e continuavam a dança que lembrava uma
quadrilha. Fiquei surpresa ao ver Rodrigo apresentando-se com
uma moça. O que significava que ele estaria ali independente da
minha presença, já que era o CTG dele que se apresentava.
Neste momento percebi como eu estava sendo egocêntrica e
egoísta. A apresentação terminou e eu fiquei tentada a observar
qual seria o comportamentode Rodrigo com seu par. Ele agradeceu
a dança como tinha feitocomigo, conversou mais um pouco com ela
e olhou diretamentepara onde eu estava. Pegou-me encarando-o e
toda sem jeito eu lhe dei uma risada envergonhada.
Após um tempo fui até a lanchonete do local bem na hora que
Rodrigo estava na fila.
— Parabéns pela apresentação! — elogiei-o com o intuitode
que ele virasse para trás.
— Obrigado! — Ele respondeu com surpresa ao ver que era
eu quem estava atrás dele.
— Treinamos às terças e quintas... será muito bem-vinda ao
nosso grupo.
— Quem? Eu? — fiqueitoda encabulada. — Por enquanto vou
de básico... e as meninas do salão treinam aqui... eu seria meio
que... traidora... — disse fazendo uma careta.
— Foi sério aquilo que você disse?
— Aquilo o quê?
— De dançar apenas uma música comigo...? — Ele explicou
meio reticente.
— Eu tinha chupado limão aquela hora... — respondi dando
uma risada sem graça.
— Se a sua namorada não se incomodar... você sabe onde
fica a mesa que estarei.
— Ela não liga — respondeu ele, virando-se para fazer o
pedido.
E eu quase fiquei comovida com aquela historinha de que ele
gostava de mim que a tia Nice havia me contado. Aguardei
pacientementeenquanto pedia coisas para todos que estavam com
ele na mesa. Quando a pessoa é muito boazinha os outros se
aproveitam, concluí novamente irritada.
Ele terminou os pedidos e ficou ao meu lado esperando-me
comprar algumas balas. Quando terminei virei para ele e continuei a
conversa de onde havíamos parado:
— Casal moderno.
— Como?
— Você e sua namorada... — não tenho a menor ideia porque
eu estava fazendo aquilo. Quem era a intrometida agora?
— Estava brincando... somos apenas amigos e parceiros de
dança.
— Ufa! Não queria arranjar problema com a namorada de
ninguém... — respondi querendo despistar o interesse que sem
querer eu demonstrara.
— Vamos? — Ele respondeu.
— Aonde? — questionei, intrigada.
— Vou acompanhá-la até a mesa.
— Tem certeza? Lá tem um grupo de mulheres
desacompanhadas que estão esperando qualquer rapaz
desacompanhado aparecer para dançar com elas... — adverti com
bom humor.
— É só eu dizer a elas que estou acompanhado. — Ele
segurou a minha mão. — Posso dizer a elas que estou com você,
Sabrina?
— Rodrigo... — soltei a minha mão da dele — é que... é meio
complicado...
— Nossa! Quantas vezes você vai me dizer a palavra
complicadohoje? Eu só quero que a partir de agora... neste baile
dance comigo... apenas comigo. Isso é muito complicado para
você?
— É... acho que isso eu posso fazer — concordei com o único
sorriso amarelo que consegui fazer.

Foi uma noite agradável. Dançamos, conversamos e demos


risada. O cantor anunciou que o baile estava acabando e tocou a
última música. Era uma música triste dos Campeiros, chamada
“Sentimentos”, que falava de uma desilusão amorosa, do benefício
do tempo para curar um coração partido e da necessidade de um
recomeço.
Dancei aquela música segurando as lágrimas... acho que ele
percebeu o meu desconforto . As pessoas pararam de dançar e se
viraram em direção ao palco pedindo Bis. Quando começou a
verdadeira saideira, Rodrigo segurou a minha mão e me puxou para
fora do salão. Fomos um pouco mais ao lado do local onde eu e a
tia Nice conversamos. Pelo que percebi era um local onde casais
apaixonados ficavam para ter um pouco de privacidade. O que eu
estava fazendo alicom o Rodrigo? Ele parou na minha frenteme
pressionando contra a parede. Olhou nos meus olhos e perguntou
se eu queria conversar:
— Não, Rodrigo. Obrigada! — Eu estava constrangida com a
situação em que nos encontrávamos. — É meio complica...
— Já sei... você já me disse: complicado... — Ele se
aproximou mais ainda de mim e eu agradeci mentalmente que
tínhamos muitas saias e tules entre nós — o que você acha... — Ele
chegou bem perto do meu rosto e deu um beijo muito próximo dos
meus lábios — se eu... — mais um beijo só que do outro lado —
beijasse você e deixasse as coisas um pouquinho mais
complicadas?
Dizendo isso ele me beijou com calma e eu correspondi. Eu
sentia falta de um toque masculino. Céus fazia tempo que eu
ansiava em ser beijada. O senhor Scheffer não me beijou... E como
eu queria isso.
Agora eu estava ali beijando o Rodrigo, mas implorando para
que na hora que eu abrisse os olhos fosse outra pessoa. Fui
desviando o rosto aos poucos e não tive coragem de encará-lo.
— Vamos... — indiquei a porta do salão — minha tia deve
estar me procurando.
— Espera! — Ele solicitou puxando a manga do meu vestido.
— Se precisar conversar, passear, dançar, beijar... — Ele fez uma
carinha sapeca — me liga — entregou-me um papel que só depois
eu fui ver que era um guardanapo com o seu número de telefone.
Retribui com um sorrisinho. Sorri mais ainda quando vi que na
nossa frentea tia Nice e o Leo estavam me procurando para irmos
embora. Despedi-me dele com um beijo no rosto e fui embora sem
dar importância às brincadeiras e piadinhas que o Leo e minha tia
fizeram sobre eu e Rodrigo dentro do carro.
Capítulo 43
Hoje era para ser um dia normal de trabalho, mas tudo
dependeria de como ficaria a minha situação com o término da
faculdade. Assim que cheguei solicitei ao meu chefe um horário
para que pudéssemos conversar. Fui chamada em sua sala no meio
da tarde.
— Boa tarde, senhor Scheffer! — cumprimentei-o meio
receosa.
— Boa tarde, senhorita Andrade! — cumprimentou-me com
elegância. — O que temos para hoje?
— Estou formada.
— Parabéns! Duvido que no seu caso isso faça alguma
diferença...— falou enquanto observava alguma coisa atentamente
na tela do seu computador.
— Desculpe, senhor Scheffer, mas não entendi...
— Já era uma excelente profissional antes mesmo de estar
formada.
— Obrigada — respondi percebendo que estava vermelha. —
Mas... e agora? Como ficamos?Quer dizer... como ficao meu cargo
na empresa?
— Você já está registrada como assistente.Agora poderemos
acrescentar a palavra executiva ao lado do seu cargo e o seu salário
dobra. O que acha?
— Não era disso que eu estava falando — respondi,
contrariada.
— E do que exatamenteestava falando, senhorita Andrade?
— Ele perguntou com interesse.
— Eu achei que com o término da parceria eu perderia o meu
emprego...
— Isso realmente acontece com algumas pessoas, mas não
acontecerá com a senhorita — explicou me tranquilizando.
— Obrigada! — respirei, aliviada.
— Agora pode trabalhar o dia todo? — Ele dirigiu um olhar
desafiador para mim, pude perceber um sorrisinho se formando em
seu rosto enquanto erguia as sobrancelhas.
— Sim. Acredito que sim. Preciso apenas de mais alguns dias
e então poderei começar.
— Certo. Uma semana será suficiente?
— Claro. Obrigada.
— Disponha, senhorita.

Dois anos. Eu já trabalho aqui há dois anos e ainda me sinto


intimidada e atraída por esse homem como na primeira vez em que
conversei com ele. Às vezes eu penso que não é muito sadio para
minha sanidade mental continuar trabalhando aqui. Mas o meu
salário é generosamente alto. E agora dobrou. Tenho a impressão
de que ele faz isso para me prender aqui. Por outro lado, eu me
sentiria uma traidora, tendo ficado todo esse tempo trabalhando
aqui, aprendendo tudo o que sei com ele, desfrutandode uma bolsa
de estudos e do nada sair... Mas com certeza, não é só o salário
que me prende aqui... Fui me aproximando de minha mesa e
percebi um grande buquê de rosas vermelhas alojado
cuidadosamente em um vaso. Procurei o cartão:

“Sabrina,
Parabéns pela formatura! Adorei tê-la como companhia no
baile...
Ps.: Fiquei aguardando a sua ligação (99999-9999)
Rodrigo”

Quando estava guardando o cartão novamente percebi o meu


chefe entrando na sala e fechando uma porta de correr que eu não
havia notado em todo esse tempo.
— Lindas flores, senhorita Andrade! Alguma ocasião em
especial além da formatura?
— Também gostei — disse enquanto encaixava uma rosa na
mão e cheirava. — Não. São pela formatura mesmo.
— O Velazquez perdeu o seu endereço?
— Como? — Eu não entendi que tipo de insinuação era
aquela.
— Ele poderia ter mandado entregar em sua casa, não?
— Não são do Leo. As floresque ganhei dele foramentregues
pessoalmente e já enfeitam a mesinha na sala.
— Se me permite uma pergunta: de quem são? — Eu percebia
a sua voz ligeiramente alterada.
— De um amigo.
— Amigo? Só amigo? Da faculdade?
— Senhor Scheffer, não podemos receber flores no local de
trabalho?
— Não é isso... — Ele estava visivelmente desconcertado.
— Acredito que o fatode saber a identidade do homem no
cartão não terá a menor relevância para o desempenho da minha
função.
— Por que não devolve? Como fez com o meu presente? —
definitivamente ele estava transtornado.
— Que presente? Ah...
Lembrei do episódio do carro. Quando conquistei a minha
carteira de motorista fiquei radiante. Meu chefe percebeu e
perguntou o que tinha ocorrido. E eu na maior ingenuidade lhe
contei.
No dia seguinte eu chego em casa e me deparo com um Audi
vermelho estacionado em frenteà nossa casa com um enorme laço
vermelho em cima. Não entendi nada, até que chego ao trabalho e
me deparo com as chaves e o documento em meu nome em cima
de minha mesa. Fui direto à sua sala e devolvi. Ele ficou irredutível e
dizia que era um presente. O carro ficou estacionado no mesmo
lugar por umas duas semanas. Até que um dia chegamos em casa e
ele havia sumido.
— Senhor Scheffer, veja a diferença...um carro é um carro. —
Eu não queria começar com aquela discussão novamente.
— Você trabalha aqui há um bom tempo... desempenha um
excelente trabalho... não tem nada de errado eu lhe presentear às
vezes... e esse cara? Faz quanto tempo que você o conhece?
Eu pensei na possibilidade de não responder. Mas isso não
encerraria essa cena que ele estava criando. Ao longo desses dois
anos tivemos algumas cenas como essa. Eu cheguei a pensar que
era ciúme... Só que ficava apenas nisso e parava. Se fosse algo
mais forte,com certeza ele tentariaoutra coisa além de barracos
sem fundamento. Ele não tinha nenhum direito sobre mim... O
problema é que eu gostava. De uma forma louca eu acreditava que
esse era o jeito dele demonstrar que me amava. Notei que aos
poucos as acompanhantes foram aparecendo de forma mais
escassa e de repente sumiram. Ele passou a ir sozinho aos eventos
e eu geralmente estava lá, sutilmenteele guardava um lugar para
mim na mesa, tinha dúvidas no meio de conversas e me solicitava, e
no final sempre dava um jeito de me deixar em casa. Nós tínhamos
um contatovelado, sutil, mas isso até então me parecia suficiente.
Voltando a pergunta dele:
— Um ano e meio mais ou menos...
Sem responder nada ele se virou, abriu a porta e foi para sua
sala.

Saí do prédio segurando o buquê. Tive vontade de ir direto


para casa, sabia que se eu fosse ao salão de minha tia teria que
aguentar o murmurinho e falatóriodas meninas... Resolvi encarar...
Caminhando com passos firmes passei sem olhar para os lados e
fui direto para a cozinha. Quando saí curiosamente ninguém falou
nada. Cumprimentei-as como de costume e sentei no meu canto
preferido para folhear uma revista.
Olho para a porta e vejo Rodrigo entrando por ela... Ele estava
sozinho. Agradeci imensamente por ele não ter me procurado no
escritório. Penso que se fizesse isso eu estaria muito complicada.
Ele veio caminhando em minha direção.
— Oi, Sabrina! Tudo bem? Recebeu as flores? — tive a nítida
impressão de que ele me mandou as flores para que eu ligasse
agradecendo...
— Sim, Rodrigo. Lindas... — falei sem muito entusiasmo —
obrigada,mas, por favor, não faça mais isso...
— Isso o quê? Te mandar flores?
— Não. Quer dizer, sim. Principalmente em meu local de
trabalho. Não gosto de misturar as coisas...
— Que coisas? — estava vendo que aquela conversa ia
render.
— Você me acompanha em um suco? — já fui me levantando
e perguntando para minha tia: — Tia, quanto tempo tenho? — dei
uma piscada para ela, que entendeu o meu recado.
— Uma hora até a próxima cliente.
— Ok, tia. Vamos à lanchonete — saí do salão com ele me
acompanhando e fazendo perguntas ao meu lado.
— Que coisas você não gosta de misturar, Sabrina?
— As coisas pessoais das coisas profissionais...
— Me dá uma chance...
— Chance do quê?
— Da gente...
— Rodrigo, mete isso na sua cabeça. Não tem “a gente”. Meu
coração não está disponível... não é justo eu me envolver com você
dessa forma...
Chegamos à lanchonete e fizemos os pedidos. Eu pedi uma
água de coco. Rodrigo um copo de açaí com banana.
— Você vai treinar daqui a pouco? — depois que eu conheci a
nutricionista Núbia, por conta daquele desafio, estava cuidando
muito mais da minha alimentação e das escolhas que fazia.
— Se você quiser... — olhou-me com uma expressão
maliciosa.
— Sério. Estou falando sério... isso é muito calórico e
estimulantepara se comer à noite... — Ele não deu importância à
minha explicação.
— Fico feliz que você esteja sendo sincera. Eu também serei
sincero. Prefiro tentar mesmo assim... eu corro esse risco.
— Mas eu não. Tem muita coisa envolvida. Além do mais, sua
mãe é uma cliente antiga do salão... se não der certo... — nesse
momento eu pensava em todos os argumentos possíveis para
convencê-lo a desistir de ficarmos juntos. Quando eu ia falar, ele me
interrompeu.
— Minha mãe? O que minha mãe tem a ver com isso? — Ele
estava impressionado.
— Dona Judite — respondi.
— Dona Judite não é a minha mãe...
— Como assim... ela te chama de filho... você está sempre
com ela...
— Ah... isso? — Ele deu uma risada. — Ela chama todo
mundo de filho — recordei que algumas vezes fui chamada de filha
por ela também. — Ela é a mãe do João Victor e eu trabalho para
ele como motorista e o que mais ele precisar.
— Nossa, que confusão eu fiz... — falei dando um sorriso.
E agora isso mudava alguma coisa?
Nossos pedidos chegaram. Aproveitei a movimentação da
garçonete para organizar os meus pensamentos... Ele não é irmão
do senhor Scheffer. Eu não sabia se isso era ou não um
impedimento antes porque meu chefe não mantém relações com a
sua família. Isso não muda o fatode eu amá-lo e estar disposta a
esperar mais um pouco... Mas eu poderia tentarcom o Rodrigo e
me libertar das algemas que eu mesma me prendi...
— Sabrina — Rodrigo chamou a minha atenção. — Então
você achava que dona Judite era a minha mãe?
— Sim — respondi, envergonhada.
— Ela é uma pessoa muito querida para mim. Minha mãe
verdadeira — deu uma risadinha — trabalhou anos para ela. Eu e o
João Victor fomos criados muito próximos depois que... — Ele me
olhou ressabiado.
— Depois que...? — solicitei que continuasse.
— Depois que o louco do marido dela saiu de casa e levou o
irmão gêmeo do João Victor com ele — achei essa história
interessante. Sabia exatamente onde estava o outro irmão. Senti-me
tentadaa continuar saindo um pouco mais com o Rodrigo apenas
para saber mais detalhes desta história. — Ela se apegou a mim
como se eu fosse o filho que faltava.Eu não tive problemas em dar
atenção para ela levando em conta que é um ser humano
formidável.
Eu precisava refrescar minhas ideias. Olhei as horas no celular
e informei que a minha cliente estava para chegar. Ele queria uma
resposta minha. Não conseguia entender o que esperava de mim
após algumas danças em um baile e único beijo quase que roubado.
— Rodrigo, o que espera de mim? — queria saber o que ele
tinha em mente para depois encerrar essa conversa.
— Que saia mais algumas vezes comigo, que permita que eu
te conheça e queira me conhecer,que sejamos amigos, se não der
certo o “algo mais”... o que acha? Estou pedindo demais?
— Serei bem sincera com você. Se envolver comigo não vai
ser fácil. Eu quero que você entenda que o meu coração não está
disponível como já lhe falei. Eu tive coisas que aconteceram na
minha história que fizeram eu ter repulsa em ficar presa a uma
pessoa. Não adianta me perguntar... eu não vou te contar. Eu não
quero te contar. Não faço a menor questão de exibir o título de
“namorada”.
Eu sei que eu estava exagerando um pouco, mas a minha
intenção era de que ele fugisse e perdesse completamente o
interesse em mim.
— Eu não quero ficar recebendo ligações e mensagens
durante o dia, ou à noite...
— Mas, Sabrina, a gente se beijou naquele dia. Foi tão bom e
eu achei que...
Meu Deus, Rodrigo...eu pensava em outra pessoa! Dirigi para
ele um olhar cortantee cínico, queria que captasse por aquele olhar
que não era ele quem eu beijava.
— E sem presentes, flores, qualquer coisinha, principalmente
em meu ambiente de trabalho. Ciúmes? Cobranças? De nenhuma
das partes...
Quando eu falei isso eu percebi o que eu estava fazendo com
ele: um contrato. Eu estava negociando a nossa relação. Eu me
tornara uma bruxa, fria e calculista. Eu não estava satisfeitacom
isso. Analisei tudo o que havia pontuado até agora e percebi que só
restava para ele transar comigo. E o pior, nem isso eu queria.
— Podemos fazer assim... encontramo-nos no sábado de
tarde e conversamos mais um pouco...estou confusa, Rodrigo. Se
eu continuar com isso, podemos nos magoar. A gente não precisa
disso.
— Certo. — Ele aceitou, resignado. Onde eu te pego?
— Não se preocupe, que eu encontro você — combinei com
ele em uma sorveteria conhecida da cidade, quanto mais
movimentado o lugar melhor.
Ele pagou a conta e eu voltei para o salão recusando que
voltasse comigo até o local.
Capítulo 44
Victor Hugo Scheffer

Estou com uma dor de cabeça insistenteque me acompanha


desde a manhã. Agora pouco a Sabrina chegou e solicitou um
horário para falar comigo. O que será que ela quer? Resolvi tomar
um analgésico e quando essa dor de cabeça passar verei o que ela
quer.
Passei o dia como o cachorro que corre atrás do rabo, apesar
de ter adiado a conversa não consegui pensar em outra coisa até
agora. Já são 15 horas. O sino que latejava em meu cérebro pelo
menos diminuiu o volume. Aproveito a brecha e peço que minha
assistentevenha falar comigo. Enquanto falo com ela ao telefone,
observo-a pela câmera que mandei posicionar estrategicamenteem
frentea sua mesa, não deixando nenhum movimento seu me passar
despercebido enquanto ela trabalha.
A mulher que entra em minha sala, demonstra ser forte e
determinada, muito diferente da moça de roupas coloridas que
conheci no passado. Seu vestido preto básico me encanta e não
posso deixar de reparar nas sandálias com finastiras transpassadas
que usa, isso quase me faz esquecer de onde estamos e das
escolhas que fiz no passado.
Indico-lhe como sempre a cadeira à minha frente. Sabrina
senta e me cumprimenta:
— Boa tarde, senhor Scheffer!
— Boa tarde, senhorita Andrade! — cumprimento-a tentando
disfarçar o meu desconforto. — O que temos para hoje?
— Estou formada.
— Parabéns! Duvido que no seu caso isso faça alguma
diferença... — falo enquanto observo, através das câmeras, a
senhora Macedo colocar um buquê de rosas vermelhas na mesa de
Sabrina .
— Desculpe, senhor Scheffer, mas não entendi...
— Já era uma excelente profissional antes mesmo de estar
formada — digo querendo encurtar essa conversa e curioso para
saber a origem da minha desgraça em forma de buquê.
— Obrigada. — Ela responde ficando corada. — Mas... e
agora? Como ficamos? Quer dizer... como fica o meu cargo na
empresa?
— Você já está registrada como assistente.Agora poderemos
acrescentar a palavra executiva ao lado do seu cargo e o seu salário
dobra. O que acha? — uso a minha generosidade para disfarçar que
estou ficando sem paciência, afinal, aonde ela quer chegar?
— Não era disso que eu estava falando.
— E do que exatamenteestá falando, senhorita Andrade? —
pergunto tentando demonstrar interesse.
— Eu achei que com o término da parceria, eu perderia o meu
emprego...
— Isso realmente acontece com algumas pessoas, mas não
acontecerá com a senhorita — digo sabendo que isso está muito
longe de acontecer.
— Obrigada! —Ela responde. Acho que consegui convencê-la.
— Agora pode trabalhar o dia todo? — aproveito a
oportunidade para fazero que combinados no passado. Eu não vejo
a hora de tê-la o dia todo perto de mim.
— Sim. Acredito que sim. Preciso apenas de mais alguns dias
e então poderei começar.
— Certo. Uma semana será suficiente? — arrisco.
— Claro. Obrigada.
— Disponha, senhorita.
Ela sai de minha sala e fico observando a câmera de sua
mesa. Ela procura o cartão e lê. Droga. Quem é o filho da puta
ousado que resolveu cativá-la agora? Não aguento. Quase corro em
sua direção, fecho a porta de correr para que não sejamos ouvidos
e elogio:
— Lindas flores, senhorita Andrade! Alguma ocasião em
especial além da formatura?
— Também gostei. — Ela responde com o olhar perdido
enquanto encaixa uma rosa na mão e cheira. — Não, são pela
formatura mesmo.
— O Velazquez perdeu o seu endereço? — começo a tentar
adivinhar o que me parece óbvio.
— Como? — Ela não compreende a minha insinuação. Nesse
momento eu já rezava para que as flores fossem mesmo do
Velazquez. Com ele eu já estava acostumado.
— Ele poderia ter mandado entregar em sua casa, não? —
tento ser mais específico.
— Não são do Leo. As floresque ganhei dele foramentregues
pessoalmente e já enfeitama mesinha na sala. — Eu sabia que o
Velazquez não deixaria passar em branco um evento como esse.
— Se me permite uma pergunta... de quem são? — Eu estava
desesperado. Uma sensação de perda me invadiu, senti-me
inexplicavelmente ameaçado.
— De um amigo.
Amigo? Desde quando Sabrina tem outro amigo além do
“Leo”?
— Amigo? Só amigo? Da faculdade? — uma insegurança
tomou conta de mim. A dor de cabeça estava voltando.
— Senhor Scheffer, não podemos receber flores no local de
trabalho? — Ela me perguntou, indignada.
Não, Sabrina querida. Desde que seja de mim, poderá receber
todas as flores do mundo.
— Não é isso... — respondi tentandodisfarçaro que sentia e
resgatando a minha postura de chefe.
— Acredito que o fatode saber a identidade do homem no
cartão não terá a menor relevância para o desempenho da minha
função — fico admirado ao ver como ela consegue escorregar das
minhas perguntas.
— Por que não devolve? Como fez com o meu presente? —
perguntei a ela com mágoa, perdendo completamentea noção do
ridículo.
— Que presente? Ah... — pelo jeito ela lembrava. — Senhor
Scheffer, veja a diferença...um carro é um carro. — Ela tentava me
explicar o seu ponto de vista novamente, depois de ter pensado um
pouco.
Não para mim, querida. Com certeza um carro é um presente.
— Você trabalha aqui há um bom tempo... desempenha a sua
funçãocom maestria... não tem nada de errado eu lhe presentear às
vezes... e esse cara? Faz quanto tempo que você o conhece? —
precisava justificar os meus argumentos... mas a ideia de que
alguém estava tentando conquistá-la não saía da minha cabeça.
— Um ano e meio mais ou menos... — Ela desistiu de discutir
comigo e deu a informação que eu precisava.
Um ano e meio? Como eu deixei isso passar despercebido?
Sem responder nada voltei para a minha sala. Tomei mais um
comprimido e comecei a refletirsobre o nosso passado. No dia que
tive a ideia de dar um carro para ela eu tinha chegado ao escritório
após uma reunião. Estava observando-a trabalhar como sempre
fazia e percebi que ao olhar uma coisa no computador comemorou.
Eu fiquei me roendo por dentro. Precisava saber o que era. Estava
quase chegando à conclusão de que mais uma câmera deveria ser
instalada atrás de sua mesa, com acesso à sua tela. Policiei os
meus pensamentos em como isso poderia ser tão doentio e insano.
Fui em direção à copa, passei por sua mesa cumprimentando-a,
tomei um gole d’água e perguntei:
— Parece diferente hoje, senhorita Andrade... — arrisquei.
— Estou feliz! — Ela respondeu, encabulada.
— Poderia compartilhar o motivo comigo? — falei me sentido o
maior intrometido do mundo.
— Agora eu sou uma motorista habilitada. — Ela revelou
estufando o peito.
— Isso é bom... muito bom... parabéns!
Fui para minha sala, liguei para um conhecido que trabalhava
na concessionária e encomendei o carro vermelho pequeno que ela
sempre sonhou. Sabrina me revelou isso naquela brincadeira de
verdades que havíamos feito. Escolhi um Audi vermelho muito
parecido com o que usamos na nossa primeira viagem a São Paulo.
Fiquei orgulhoso de poder realizar esse desejo dela com tanta
facilidade. Pedi, inclusive, que um laço vermelho gigante fosse
colocado em seu capô, para dar um toque especial ao presente.
No dia seguinte, mal podia esperar para que ela chegasse e
visse em sua mesa a chave e o documento do carro, já devidamente
registrado em seu nome. Para minha surpresa, a reação dela foi
outra. Só faltoume bater dizendo que eu não tinha a menor noção
das coisas. Que eu me mantivesse no meu lugar de chefe e
deixasse as coisas correrem com naturalidade, sem intromissões
por causa do meu dinheiro.
Fiquei assustado com essa reação, nunca em minha vida
esperei isso dela, mas o que mais eu poderia fazer? Deixei a poeira
baixar e solicitei que recolhessem o carro que ainda está guardado
na garagem do prédio, com o laço dentro do porta-malas, é claro.
Durante todo esse tempo eu me conformei em olhá-la de
longe, estava acostumado com a sua presença mesmo que distante.
Eu não sabia o motivo, mas ela não apresentava nenhum sinal de
que namorava ou saía com alguém. E eu me sentia aliviado com
isso.
Quantas vezes um motorista,cliente ou parceiro de negócios
foram transformadosem ameaça por mim... Só de pensar que ela
poderia se aproximar de outro homem fazia,ou melhor, fazcom que
eu perca completamenteo controle. O ciúme me invade. Porém, no
mesmo instanteeu admito para mim mesmo que não temos nada
um com o outro e que isso foiuma opção minha. Eu resolvi que não
quero me envolver. Depois que tivemos a “nossa noite”, da qual eu
me envergonho ainda, tenteivoltar a minha vida normal. Um mês
depois eu contratei uma moça para me acompanhar a um evento.
A Sabrina brilhou naquela noite mesmo estando nos
bastidores, homens conhecidos e desconhecidos vieram sem o
menor pudor elogiá-la. Eu estava uma pilha de nervos. Até que me
dei conta de que ela não tinha como voltar para casa. Quando eu a
questiono, recebo como resposta que iria do mesmo jeito que veio:
“Com o Carlos da transportadora...”. Tive vontade de matar esse
Carlos, e ela também, é claro, mas ela deu um jeito rápido de
saírem da minha frente.Fiquei ali parado vendo-os se afastarcom a
nítida certeza de que ela me provocava.
Quando entrei no carro olhei para o lado e vi aquela moça
linda que me acompanhava, percebi que eu não tinha o menor
interesse por ela. Perguntei se ela ficaria incomodada se eu
chamasse alguém para levá-la para casa. Ela disse que não. Em
alguns minutos Xavier estava fazendoo trabalho que eu geralmente
fazia quando saía com alguém.
Eu estava usando um carro alugado. O meu estava passando
por um procedimento de hidratação do couro, que levaria alguns
dias. Aproveitei a deixa e esperei pacientemente na esquina da casa
de Sabrina, para me certifi car que o “Carlos da transportadora”
realmente a levaria em segurança para casa. Uns vinte minutos
depois ele para o furgão, ela desce e realmente está segura onde
mora. Fui embora mais tranquilo.
Aos poucos parei de contratar acompanhantes. Não fazia o
menor sentido, pois quem eu queria, quem eu desejava estava
sempre comigo, mesmo sem mantermos nada mais íntimo. Eu
tenho a impressão de que ela sente o mesmo por mim, ou sentia,
até agora, sei lá... Meu maior pesadelo está desfilando em minha
frente:alguém está tentandoconquistá-la. Eu sei que é ingenuidade
e egoísmo meu achar que ela iria ficar sozinha eternamente,mas
confesso que foi muito cômodo para mim.
Eu estive várias vezes no cemitério, e sentado em frenteà
lápide do meu pai eu rezei, implorei e supliquei diversas vezes, que
ele me mandasse um sinal, falasse comigo por sonho ou qualquer
coisa parecida... Que ele me liberasse das coisas que eu havia
prometido a ele. Que não tinha nenhum problema eu me envolver
com a Sabrina e se fosse o caso casar com ela... Pode parecer
ridículo um homem como eu estar travado dessa forma... Por todos
esses anos... Mas eu prometi, PORRA! E agora não consigo me
libertar disso. É como se a voz de meu pai sussurrasse dia e noite
no meu ouvido, dizendo que eu era autosuficiente e não precisa de
mulher nenhuma em minha vida.
Analisei todas as possibilidades que eu tinha e decidi que eu
só tinha uma coisa a fazer: descobrir quem era esse cara. Liguei
para o Xavier e disse que escolhesse um detetivede sua equipe
para seguir Sabrina. Qualquer companhia masculina que estivesse
com ela deveria ser imediatamentecomunicada a mim. As notícias
foram rápidas. Bastou terminar o expediente e Sabrina dirigir-se ao
salão de sua tia, instantesdepois recebi uma ligação de Barreto, o
profissional designado para o caso:
— Boa noite, senhor Scheffer. O casal está na minha frente—
casal? Quem falou que se trata de um casal?
— De onde está consegue fotografá-los?— a necessidade de
ver essa cena era tão grande quanto o meu desconforto.
— Já enviei as fotos— Barreto avisou no mesmo instanteem
que ouço o sinal de mensagem.
— Obrigado! Continue a postos até segunda ordem.
Abro a fotoe vejo dois jovens um de frentepara o outro. Cada
um em seu lado da mesa e nenhuma intimidade aparente. Em outra
fotoo rapaz aparece de frente.Posso ver bem o seu rosto: Rodrigo.
Conheço-o, é o capacho preferido do meu irmão gêmeo. Apesar de
não manter contatocom minha mãe achei melhor ter um segurança
infiltradona casa deles. É através dele que fico sabendo as poucas
coisas que sei sobre minha mãe e tiro as minhas curiosidades sobre
meu irmão. Esse Rodrigo parece ser uma boa pessoa, pelo que me
contam ele assiste melhor a minha mãe do que o próprio João
Victor.
Mas como é que ele foiconhecer a Sabrina? E de onde surgiu
essa amizade agora?
Espero que seja só amizade mesmo.
Liguei novamente para o Barreto, ele me informou que ao
saírem da lanchonete cada um seguiu para um lado após
despedirem-se com um beijo no rosto. Foi então que eu o orientei:
— Mantenha vigia até o domingo, Barreto. Qualquer atitude
suspeita, por favor, me comunique.
Eu estava me sentindo ridículo. Quem era eu para invadir a
privacidade dela desse jeito? Eu sabia. Eu era simplesmente um
cara apaixonado, que não podia se declarar porque tinha feito
promessas tolas a seu pai e estava ficando desesperado com a
possibilidade de perdê-la.
Capítulo 45
Sabrina Souza de Andrade

Eu queria sinceramente que o Rodrigo tivesse aparecido no


salão em algum dia dessa semana e cancelado o nosso passeio,
mas ele não fez isso. Sim,eu tinhamarcado de saircom ele.Ele foi
pessoalmente ao salão para que eu lhe agradecesse as flores, já
que eu não tinha ligado, tomamos um suco no shopping e
combinamos um sorvete. Que mal teria em tomar um sorvete com
um amigo tão gentil que havia me mandado flores?
Peguei o celular incontáveis vezes para mandar –lhe uma
mensagem e dizer que eu não iria. Novamente a minha tia conversa
comigo e tentacolocar algum “juízo” na minha cabeça dizendo que
não poderei esperar pelo senhor Scheffer a vida inteira. Eu
entendia. Mas precisa sair agora e justamentecom Rodrigo? Eu já
sabia que ele não era irmão do senhor Scheffer e estava parecendo
um pouco mais fácil eu me relacionar com ele depois disso, só que
eu sabia que o problema não era bem esse.
Como uma sobrinha resignada, coloco um vestidinho florido,
uma sapatilha e um sorriso no rosto. Olho no espelho e vejo uma
imagem muito diferenteda senhorita Andrade. Essa que vejo me
lembra a Sabrina que morava no sítio e veio para Gravataí em
busca de chances de uma vida diferentena cidade. O que será que
aindatinha sobrado dela?Se eu tivesse alguma coisa para oferecer
ao Rodrigo, seria através dela, essa era a única forma dele ter uma
chance comigo.
Tia Nice me emprestou o carro. Após o evento do “Audi
vermelho” que o senhor Scheffer me deu e eu não aceitei. Perdi a
vontade de ter um carro próprio. Na verdade, tia Nice conversou
comigo dizendo que usava tão pouco o carro nos finais de semana,
que poderia me emprestar o dela quando eu precisasse, sem falar
que geralmente quando eu saía o Leo vinha me buscar e trazia-me
novamente para casa. Por outro lado, durante a semana nosso
itinerário era o mesmo e não havia a necessidade de duplicarmos as
despesas. Como uma forma de treino das minhas habilidades ao
volante, nós duas revezávamos quem dirigia durante a semana.
Quando cheguei à sorveteria Rodrigo já estava lá. O lugar
estava bem movimentado. Ele me olhou de cima a baixo e disse que
eu estava bonita, mas diferente. Eu dei uma risadinha e perguntei se
poderia sentar-me com ele.
— Olha, moça, eu estava guardando este lugar para uma
garota complicada... — Ele deu uma piscada para mim — mas
enquanto ela não chega pode ser.
Conversamos de forma descontraída. Fomos até o Buffet
encher nossas taçascom variados sabores de sorvete e guloseimas
de todo tipo. Eu já estava calculando o quanto eu teria que correr
para queimar todas aquelas calorias... Comíamos o sorvete em
silêncio, a impressão que dava é que tinha acabado o assunto, eu
tinha imposto tantasrestrições para ele, com aquela história de que
era tudo “complicado”e eu não quero “me envolver”, que imagino o
receio dele abrir a boca e me deixar chateada. Por que ele fazisso?
Ele não tem a menor necessidade de estar aqui...
— Como foi a sua semana? — Eu questiono quebrando o
silêncio.
— Foi uma longa semana... — Ele respondeu, reflexivo —
contei cada mísero minuto para chegar até este momento...
— Exagerado... — respondi sem graça — e com o que ocupou
o seu tempo, então? — Eu queria ter uma ideia de como era a sua
vida... Eu não estava saindo com ele, afinal?
— O trabalho que faço para o João Victor ocupa todo o meu
tempo. Eu façopara ele tudo o que ele deve fazere não faz:serviço
de banco, pagamentos, compras, entregas, revisão nos automóveis,
levar a dona Judite no médico, fazer exames, no salão... — Ele
olhou para mim e deu um sorriso muito simpático. — Isso você já
sabe, não é? São tantas coisas...
— E você gosta disso? Quer dizer, deste trabalho?
— Quando eu era mais novo gostava mais... mas ainda não
consegui me libertar — Ele fez uma expressão séria. — Não posso
ser babá do João pelo o resto da vida...
— É... — fiquei sem palavras.
Não sei porquê essa conversa me fez lembrar o Frederico,
quando eu terminei com ele não me dei conta, mas era a faltade
propósitos que me incomodava nele, eu queria alçar voos altos seja
lá quem estivesse comigo precisava saber voar.
— E o que mais você faz fora o trabalho de babá e das aulas
de dança nas terças e quintas?
— Nossa... isso é um interrogatório, senhorita?
Como um gatilho, a palavra “senhorita” trouxe para a minha
consciência a certeza de que eu não queria estar ali. Meu
desconforto ficou evidente.
— Algum problema? Você está bem? — Rodrigo perguntou
preocupado.
— Um pequeno desconforto... já passou... — Eu falei curvando
a cabeça e passando a mão nas têmporas.
— Futebol. — Ele falou, imagino que para me distrair. — Nas
quartas eu jogo futebol. E você, qual é a sua rotina?
Meu Deus, tudo que esse rapaz falava fazia eu me lembrar do
meu chefe... eu teria que me acostumar com isso.
— Vejamos... vou falar como ficou agora que a faculdade
terminou. — Eu parei um pouco para selecionar o que ia falar e
organizar o meu pensamento. — Vou trabalhar o dia todo no
escritório e três vezes na semana treino na academia do shopping.
Poupei-o dos detalhes, omiti as idas diárias ao salão –que na
verdade ele já sabia - e os passeios com o Leo, não queria ter que
explicar novamente o espaço enorme que meu amigo ocupava em
minha vida.
Terminamos os nossos sorvetes, ele pagou a conta e
liberamos a mesa, saindo da sorveteria que estava lotada. Fomos
caminhando em direção oposta de onde estava o carro da tia Nice.
Ele parou ao lado da mesma caminhonete, ou uma muito parecida,
com a que eu vi o João Victor buscar a dona Judite uma vez.
— Podemos conversar dentro do carro?
A princípio não vi problema nenhum. Balancei a cabeça de
forma afirmativa e entramos.
— Esse carro é seu? — questionei meio ressabiada.
— Não, do João Victor. Eu fico com o carro para caso ocorra
alguma emergência... ele não se incomoda que eu use.
— E já teve? — Ele olhou para mim mostrando que não tinha
compreendido. — Uma emergência?
— Sim, quando a dona Judite caiu...
Eu não sabia que tipo de contratode trabalho eles tinham...
mas tinham muitas coisinhas ... que eu não gostaria neste trabalho
se fosse realmente namorada dele.
— Você não irá mais trabalhar no salão? — Ele perguntou
dando continuidade à conversa que estávamos tendo.
— Na verdade, nesses últimos tempos eu só dou uma mão
quando o movimento está apurado. Eu fico esperando a tia Nice
para irmos para casa juntas... poderia fazer diferente,só que por
enquanto está bem assim... — Eu lembrei de uma coisa e achei que
era a hora de perguntar: — Como você soube onde entregar as
flores? — Eu tinha um pouco de receio dessa resposta.
— Sua tia. Eu liguei para ela pedindo o endereço e expliquei
do que se tratava. Ela disse que daria as informações apenas para o
entregador. Eu fiquei chateado com tanta desconfiança.
— Por que você não mandou entregar no salão? — agora eu
entendia porque as meninas do salão não tiraram sarro de mim
quando cheguei com as flores: elas já sabiam delas antes que eu, e
muito provavelmente minha tia deveria ter dado algumas
recomendações a elas...
— Eu estava tão eufórico... queria que você recebesse as
flores logo... eu achei que me ligaria agradecendo... queria que
todos vissem que tem alguém que está interessado em você... você
teve algum problema por causa do buquê?
— Tecnicamente não — lembrei da cena que o senhor
Scheffer fez. — Mas sabe, Rodrigo, meu chefe tem princípios muito
conservadores. E um deles é não misturar o lado pessoal com o
profissional — continuei analisando o que ele havia falado e
continuei a minha explicação. — Não se preocupe com que todos
vejam que tem alguém interessado em mim, pois trabalhamos
apenas em mulheres, o único homem é o senh.... é o meu chefe —
achei melhor deixar a identidade dele desconhecida ainda. — Você
queria que eu tivesse ligado para você? Entenda... não quis ser mal
educada... mas não quero namoricosagora. Não estou pronta. Eu
que não consigo entender por que você está insistindo nisso... e não
fique chateado com a minha tia. Ela fez o que fez por me conhecer e
saber das restrições do meu ambiente de trabalho...
— Desculpe, Sabrina, se fui inconveniente ou precipitado.
Sério que só tem o seu chefe de homem no seu departamento? Eu
preciso me preocupar com ele?
— Não, de forma alguma. Ele goza de uma saúde de ferro e
você já tem muita gente para tomar conta — falei dando risada e
desviando a atenção dele da própria pergunta: — E então, por que
não desiste de mim?
— Não sei. Algo me diz que seremos importantesum para o
outro. Não consigo te explicar...
— Uau! Você é um médium ou coisa do tipo? — falei
segurando uma risada. Vai que era mesmo...
— Não. Apenas uma intuição... me dá uma chance...
Estávamos ali dentro de uma caminhonete totalmenteescura,
protegidos pelo insulfilm. Começava a anoitecer. Após ele falaressa
frase foi se aproximando de mim, passou a mão direita pela lateral
da minha cabeça, deslizando os dedos vagarosamente pelos meus
cabelos. A mão esquerda ele colocou nas minhas costas, puxando
meu corpo para o seu abraço, enquanto faziaisso não desviava seu
olhar do meu. Como em câmera lenta foime dando pequenos beijos
nos lábios. Meus lábios começaram a formigar e não estavam mais
se contentando com pequenos beijos. Nesse momento eu já tinha
decidido que ia me entregar àquele beijo e que poderia tentar... Me
sentir desejada era tão bom... Um barulho insistentenos interrompe.
Era o celular do Rodrigo:
— Alô! Diga, Galvão. O que tem de tão importantepara me
dizer? — Ele olhou para mim sem jeito e arrumava a sua posição no
banco do carro. Fiz o mesmo. — Sério? Mas o que eu posso fazer
aí? — sua expressão era meio descontente. — Está certo, eu vou —
resolveu, contrariado.
— Desculpe, Sabrina. O Galvão é o Chefe da Segurança da
casa do João Victor. Ele me ligou dizendo que parece que tinha
alguém tentandoarrombar uma cerca, não entendi direito. Como o
João não está na cidade, eu vou ter que ir lá resolver isso.
— Claro, sem problemas! Eu vou então — disse isso abrindo a
porta do carro.
Ele desceu junto comigo e me acompanhou até onde o pálio
branco da tia Nice estava. Abriu a porta para eu entrar, fechou após
eu ter entrado. Abaixei o vidro, ele se curvou e me deu um beijo
rápido nos lábios. Disse que precisava ir e pediu desculpas
novamente.
Fechei o vidro novamente e observei-o se afastarde onde eu
estava. Não pude deixar de pensar em como ele era um rapaz
teimoso e insistente. Ele estava fazendo como a água que não
desiste de lapidar a rocha, que neste caso era eu. Liguei o rádio e
achei graça da música da Marília Mendonça que tocava “Todo
Mundo Vai Sofrer”:

“(...)
Quem eu quero, não me quer
Quem me quer, não vou querer
Ninguém vai sofrer sozinho
Todo mundo vai sofrer
(...)”

Esse refrão ilustrava brilhantemente o desencontro amoroso


em que vivíamos. Eu não queria que Rodrigo tivesse se interessado
por mim. Muito menos planejei amar alguém que não está aberto ao
amor. Aconteceu de eu gostar do senhor Scheffer do mesmo jeito
que parece que o Rodrigo agora gosta de mim. Não tenho a menor
ideia de como resolveremos isso e se resolveremos isso.
A companhia de Rodrigo não é ruim. Acho que vou dar-lhe a
oportunidade da tentativa,vai que numa dessas eu consiga gostar
dele e tiramos uma pessoa desse triângulo?
Capítulo 46
Senti-me aliviada ao sair do meu trabalho e me dirigir ao salão
da tia Nice no final da tarde. Meu chefe estava com um mau humor
daqueles. Por diversas vezes me chamou em sua sala para
explicar-lhe o óbvio. Parecia que eu tinha feitoalgo e que ele não
tinha gostado.Mas o que?
Minhas tarefas estavam em dia. As pastas do computador
estavam em ordem. Estava com as unhas vermelhas que ele tanto
gosta. Após o retorno da consulta com a nutricionista Núbia eu havia
me convencido que precisava melhorar a minha alimentaçãoe além
de fazer uma dieta low carb passei a fazer jejum intermitenteduas
vezes na semana. Meu chefe sabia disso e volta e meia ele me
elogiava, o que me incentivava a persistir. Eu estava disposta a
fazer o que ele queria ou gostava sem pedir nada, simplesmente
nada em troca. Mas hoje, ele estava especialmente mal-humorado e
eu não faço ideia do motivo.
Ao chegar ao salão o clima era outro. As meninas estavam
super agitadas. Mercedes, a amiga da tia Nice havia se engraçado
por um homem do CTG que se apresentou no último baile com o
grupo do Rodrigo. Elas estavam criticando a amiga que queria fazer
uma aula de dança com o grupo dele. Nesse momento eu me dei
conta de que eu e o Rodrigo não deixamos nada marcado. E ele
não tinha o meu telefone,desta forma, se eu não o procurasse
ficaria muito difícil de nos vermos. Em um momento de ousadia falei:
— Deixa elas tirarem sarro de você, Mercedes — dei uma
risada entrando na brincadeira. — Eu posso muito bem te
acompanhar...
— Eu também... — respondeu minha tia que já sabia que eu
também tinha segundas intenções nesta visita — é muito bom que
vocês não queiram ir, meninas... precisamos de pessoas que fiquem
aqui no salão trabalhando — alertou minha tia às suas amigas que
só ficavam contrariando a Mercedes.
Combinamos de ir na quinta-feira. Curiosamente eu estava
ansiosa para saber qual seria a reação do Rodrigo quando me visse
em seu CTG sem termos combinado. Às vezes eu achava que
estava sendo intrometida.Em outras eu me valia da desculpa que
no dia do baile ele tinha me convidado para ir lá.
Saímos um pouco mais cedo do salão e fomos direto.
Chegando lá pagamos a aula avulsa. A Mercedes toda integrada
encontrou o seu paquera e nos explicou como funcionava: alunos
organizados em uma fila de um lado do salão; alunas organizadas
em uma fila do outro lado do salão. Cada instrutor ou instrutora pega
o aluno (a) que está na vez, dançam por uma música e na próxima
música os pares são trocados, num sistema de rodízio. O único
momento que se pode escolher o par são os bailinhos que ocorrem
no final.
Colocamos o crachá que nos identificava como alunas e fomos
para a fila esperar a aula começar. Fiz uma varredura pelo local
procurando por Rodrigo e não tinha o encontrado ainda. Só o que
me falt ava... Justo hoje que tomei coragem de vir aqui ele não
vem...
A aula começa e quando chega a minha vez um senhor de uns
sessenta anos começa a dançar comigo. Ele demonstra saber muito
bem o que está ensinando. Nesta noite a aula será de Chamamé,
este estilo começa com passos bem demarcados e depois se
seguem uma sequência de floreios, que são voltas e rodopios
realizados durante a dança. Como eu estava com muita dificuldade
em pegar o passo inicial, o senhor me leva para uma parte
reservada do salão onde se ensinam os passos básicos sem
atrapalhar os outros casais que estão no salão. Fiquei o restanteda
música treinando o mesmo passo e isso era meio cansativo.
Quando a música acabou, voltei para aquela grande fila e
dessa vez não danço, pois a quantidade de alunas era bem maior
que a de instrutores. Fico sentada, observando os casais dançando
e percebo que Rodrigo está ali pacientementedançando com uma
senhora e a leva para o mesmo lugar em que eu estava há pouco
tempo. O mesmo cuidado que ele demonstra ter com dona Judite
ele destina a essa outra senhora. Ele inclusive segura-a na cintura e
embala-a ao ritmo da música, com uma dedicação que me deixou
admirada.
Tenho certeza de que ele não me viu ainda. O instrutorque
está com a tia Nice leva-a para o mesmo lugar reservado, Rodrigo a
cumprimenta e no mesmo instantecomeça a me procurar. Eu finjo
distração e olho para o outro lado, não queria ser flagrada outra vez
espiando-o.
Novamente a música acaba e assim o mesmo ciclo ocorre
sucessivamente. Rodrigo me cumprimenta com um sorriso lindo,
que eu chego a olhar para trás para ter certeza de que é para mim
mesmo. Um homem pega o microfone e anuncia que faremos um
pequeno intervalo. Rodrigo vem em minha direção e me abraça
apertado, ele fica com os braços na minha cintura e confessa:
— Que saudades eu estava de você! Eu estava desesperado
para falarcontigo... — Ele beija o meu rosto de formacasta e eu me
mexo para ganhar um pouco mais de distância — fiquei sem
nenhuma alternativa...
— Você podia ir ao salão, não podia? — respondi querendo
demonstrar que ele estava exagerando.
— Não é a mesma coisa, Sabrina. Lá é o ambiente de trabalho
da sua tia. Quando estou perto de você eu gostaria de ter ao menos
um pouco de intimidade.
— Intimidade? — Ele tinha mesmo me falado aquilo?
— Sim, intimidade. — Ele me puxa para mais perto e beija os
meus lábios de forma contida, porém intensa. — Podemos fazer
isso lá no salão?
— Não, Rodrigo. Acredito que não temos liberdade de fazer
isso nem aqui... — Eu estava ficando furiosa com ele, que estava
sendo tão impulsivo e fazendo com que eu me sentisse como uma
boneca em suas mãos.
— Desculpe, Sabrina. Empolguei-me. Eu tenho sentido tantoa
sua falta que quando vi que você estava aqui tive dificuldadeem me
controlar... — falou pegando a minha mão e beijando-a com
delicadeza. — Quer ir lá fora um pouco?
— Acho melhor que a gente fique aqui mesmo — resolvi após
pensar que lá fora poderia ter um cantinho escuro onde tivéssemos
privacidade. Era tentador, mas eu queria que, se as coisas fossem
para algum lugar com ele, que fossem devagar.
— Está certo — falou meio desapontado. — Que bom que
resolveram aparecer por aqui.
— A Mercedes está de namorico com o tal do Bigode, acho
que é isso... viemos fazer companhia para ela que não queria vir
sozinha... — expliquei da forma mais sucinta que pude.
— Nossa, e eu aqui inocentementeachando que você tinha
vindo me ver — falou Rodrigo fazendo um beicinho.
— Digamos que tivemos uma dupla motivação, mas não posso
negar que ela teve a ideia primeiro — dei uma risada de menina
sapeca. — Eu só aproveitei o embalo...
— Vou valorizar a metade do copo cheio então... — disse ele
fazendo referência à metáforado copo, que pode estar meio cheio
ou meio vazio, dependendo do ponto de vista — levando em
consideração que saí correndo aquele dia sem combinarmos nada,
fico feliz em tê-la aqui hoje.
— Que bom que estou me relacionando com um homem
otimista — falei, ressaltando o seu comentário.
— Sério que você falou isso: relacionando? — Ele estava
entusiasmado demais para o meu gosto.
— Sim, falei isso ,mas contenha o seu otimismo agora,
estabelecemos relações com o verdureiro, açougueiro e com a
garçonete em uma lanchonete. Não coloque palavras em minha
boca, Rodrigo, por favor — descobri como teria que medir muito
bem as minhas palavras com ele. — E afinal, o que aconteceu de
tão urgente naquele dia?
— Um galho. — Ele faloudecepcionado, não sei se com o que
eu tinha acabado de falar ou se com o ocorrido daquele dia. — Um
galho seco encostou no fio da cerca elétrica. Ficava disparando e
eles não tiveram a genial ideia de acompanhar toda a extensão para
ver o que era.
— Afff... ainda bem que eles têm você para pensar por eles
nessas horas, não é? — olhamo-nos e juntos demos risada.
A aula recomeçou e eu agora estava dançando com o
Rodrigo, ele havia feitouma pequena artimanha de chegar à fila
justamentequando era a minha vez. Estávamos no cantinho dos
iniciantes. Ele estava posicionado atrás de mim com as mãos na
minha cintura, como fez com a senhora, realmente ficava mais fácil
de aprender aquele passo com essa ajudinha dele. De repente, as
luzes dão uma piscada e apagam completamente.A música cessa.
E sinto mãos protetoras ao redor da minha cintura. Ficamos ali
parados por alguns instantes.
As luzes de emergência acenderam, mas eram úteis apenas
para que encontrássemos a porta. Definitivamentea aula daquela
noite havia acabado. Fomos até onde tia Nice estava e ela me
convidou para irmos embora. Aceitei sem alternativas me
despedindo de Rodrigo rapidamente com um beijo no rosto e a
promessa que eu ligaria para ele no dia seguinte.
Eu estava começando a achar que o destino não estava
aprovando os meus encontros com o Rodrigo. Sempre tinha alguma
coisa inesperada que fazia com que nos despedíssemos de forma
breve e rápida. Dava a impressão de que os nossos encontros
ficavam sempre sem um final. Tomei a decisão de que amanhã
ligaria para ele. Assim ele ficaria com o meu número e então
poderíamos combinar mais alguma coisa se quiséssemos. Eu não ia
desistir com tantafacilidade agora que resolvi dar uma chance para
ele... Senti uma sensação de desafio e isso estava me fazendo ir
além...

Quando o celular despertou pela manhã foi a lembrança das


mãos firmes de Rodrigo que me motivaram a sair da cama. Não
posso dizer que eu estou apaixonada por ele, mas estou
entusiasmada com essa novidade em minha vida. Coloquei um
terninho azul-escuro com mangas ¾, uma camisa vermelha sem
mangas, com gola em forma de babado. Escolhi um sapato de salto
médio azul-marinho com um detalhe em vermelho e branco que
gostava muito. Fiz uma escova rápida nos cabelos que decidi que
ficariam soltos.
Chego ao escritório, sento em minha mesa e ligo o
computador. Tenho certeza de que o meu chefe não me chamará
pela manhã, ele tem algumas visitas externas agendadas e já me
passou a lista de e-mails que eu preciso enviar e responder. Tenho a
impressão de que essa tarefaocupará boa parte do meu dia. Estou
com a música dos Serranos, “A primeiravez” da aula de dança de
ontem que insiste em cantar na minha mente. Cantarolo-a:

“ (...)
A primeira vez que eu vi você
Senti no teu olhar a luz do entardecer
,
Aprendi sonhar antes de adormecer
E a vida foi chegando de uma vez
E o amor se fez
Quem me dera ter você mais uma vez
E o amor se fez
Essas coisas só acontecem uma vez
(...)”

Me abaixo para juntar a caneta que sem querer deixei cair no


chão, quando me ergo levo um susto ao ver meu chefe com o
semblante de poucos amigos parado à minha frente.
— Quanta felicidade,senhorita Andrade! — tenho a impressão
de que ele quer me fuzilar. Meu Deus, o que eu fiz?— Parece até
que viu o passarinho verde. Ou será que não foi um passarinho que
viu?
— Bom dia, senhor Scheffer. Eu estou bem obrigada! —
respondi, embaraçada, não fazendo a menor ideia do que estava
em sua mente.
— Pode vir aqui um minuto? — disse isso e já foi andando em
direção à sua sala.
Capítulo 47
Victor Hugo Scheffer

Estava em casa conferindo os detalhes de um novo contrato


de São Paulo quando o meu telefone toca e inconscientemente
amaldiçoo aquele que me liga, não pelo emissor, mas sim pelo teor
da mensagem. Com certeza a notícia que receberei neste sábado
às 17 horas não me fará dar pulos de alegria.
— Diga, Barreto, alguma novidade?
— Eles estão em uma sorveteria... cada um chegou com seu
carro. Quando ela chegou, ele já estava aguardando em uma mesa
— é claro que ele já estava.
— Você está onde agora?
— Estou em pé aguardando uma mesa. O local está lotado.
— Continue aí... qualquer alteração, me avise. Eu não quero
esse cara tocando nela, entendeu? Use a criatividade para mantê-
los afastados...
Após uns trinta minutos, recebi outra ligação do Barreto:
— Senhor Scheffer estão indo para o carro... — respirei
aliviado que aquele encontro infantil estava terminando.
— Eles já se despediram? — Eu não via a hora dela estar bem
longe dali.
— Eles foram para a caminhonete do rapaz. Estão trancados
lá e com os vidros fechados... — esse imbecil está definitivamente
testando a minha paciência...
— Já te ligo — falei apressadamente para colocar o plano B
em prática.
Liguei para o segurança que mantenho na casa de meu irmão
e mandei que ele disparasse o alarme e ligasse para o Rodrigo,
solicitando a sua presença na casa imediatamente.Os minutos que
se seguiram pareciam eternos. Até que Barreto liga novamente:
— Senhor Scheffer, a moça já está no carro em que veio. O
rapaz deu um beijo e foi embora.
— Seja mais específico: como foi esse beijo?
— Foi um beijo rápido, senhor.
— Onde exatamente?
— Nos lábios.
Desliguei o telefone inconformado. Eu não esperava isso.
Perdi. Nesse momento me dei conta que Rodrigo já tinha muito mais
do que eu havia tido com ela. Nem um beijo trocamos naquela noite
que eu desperdicei.

Passei o pior final de semana de que tenho lembrança. Não


consegui pregar o olho. Quando fui trabalhar na segunda-feira eu
estava com raiva dela. Eu sei que ela não tem culpa nenhuma por
isso. Contrariando toda a lógica dos apaixonados eu estava com o
mau humor à flor da pele. Chamei-a várias vezes na minha sala, eu
tinha vontade de esganar aquele pescocinho lindo e bater a minha
cabeça na parede a cada cinco minutos. Quando ela foi embora ao
final do expediente, um sentimentode arrependimento me invadiu.
Com certeza com o comportamento que eu estava tendo eu só
conseguiria afastá-la mais de mim.
Eu tinha uma falsa confiança de que tudo que ela fizesse
estava sendo monitorado pelo Barreto, mas isso estava se
transformando em uma verdadeira tortura para mim. Por quanto
tempo eu aguentaria os relatórios minuciosos do detetiveem tempo
real?
Meu ânimo foimelhorando. Já era quinta-feirae nem sinal dos
dois pombinhos se encontrarem, eu já estava a ponto de comemorar
até que às 19 horas Barreto entra em contato:
— Boa noite, senhor Scheffer, a mocinha está acompanhada
por duas mulheres em uma aula de dança gaúcha — era só o que
me faltava.
— O rapaz está aí? — a minha preocupação era que essa
história começasse a fluir novamente.
— Até o momento, não — Barreto me tranquilizou.
— Ok. Fique atento. Não hesite em me ligar
.
— Ele está aqui, senhor Scheffer — o detetiveme avisa após
10 minutos. Pelo jeito ele é instrutor
, está ensinando uma senhora.
— E a Sabrina, o que está fazendo? — questionei, aflito.
— Ela está sentada esperando a próxima música.
— Barreto, é o seguinte, eu não quero esses dois juntos. Olhe
ao redor e pense o que pode fazer para separá-los. Mantendo a
segurança de todos, é claro. Eu vou desligar agora. E quando esse
rapaz pensar que vai colocar as mãos nela, ela já deverá estar bem
longe, certo? Certo, Barreto?
— Certo, senhor!

Trinta minutos depois o Barreto me liga e informa que a aula


de dança chegou ao fim devido a uma queda de energia. Que a
Sabrina e as outras duas moças estavam indo embora. O rapaz
ficou ajudando a organizar o salão no escuro. Eu não perguntei se
ele tinha alguma coisa a ver com isso. Preferi achar que alguma
providência divina estava me ajudando.
Senti que estava perdendo o controle da situação. Eu também
estava perdendo a sanidade mental. Se as coisas continuassem
assim eu com certeza iria perdê-la. Recebo uma mensagem em
meu e-mail.
Abro.
Era um evento de marketing imobiliário que eu já tinha
decidido não participar este ano. Quando eu cuidava da sede de
São Paulo nós sempre participávamos, agora que eu morava em
Gravataí ficava mais difícil. Eu não poderia me ausentar por 15
dias...
Quinze dias!
Aquilo pareceu uma benção em meus ouvidos. Liguei para
meu tio, que assumiu a sede de São Paulo como meu gerente
executivo:
— Benedito Schef fer, como vai?
— Sobrinho! O que eu fiz de errado agora?
— Nada, tio. Estou comunicando que vamos participar do
evento de marketing. Vou enviar a minha assistentepessoal para
cuidar dos detalhes — pensei um pouco para ver se diria aquilo a
ele mesmo. — Precisamos de três pessoas, de preferência moças,
para cuidarem do stand, não será necessária a menor experiência
para essa função, e espero que esteja à disposição da senhorita
Andrade para tudo que precisar.
Eu estava ansioso para falar com Sabrina e lhe dar a notícia.
Adio as atividades que faria pela manhã para o período da tarde.
Não tive paciência de ligar para ela. Contrariando o que eu tenho
feito praticamente todos os dias, fui até a sua mesa e me
surpreendo ao ouvi-la cantando uma música tradicional, que
provavelmente tenha escutado ontem, na maldita aula de dança
gaúcha. Tenho a convicção de que talvez já seja tarde para mim
mesmo. Deixo-me envolver por um impulso de raiva e afirmo
ironicamente:
— Quanta felicidade, senhorita Andrade. Parece até que viu o
passarinho verde. Ou será que não foi um passarinho que viu?
— Bom dia, senhor Scheffer. Eu estou bem, obrigada! — Ela
responde educadamente sem aderir às minhas provocações.
— Pode vir aqui um minuto? — convido-a já andando em
direção à minha sala.
Capítulo 48
Sabrina Souza de Andrade

Não sei como será isso... Estou nervosa. Sei que não deveria
estar assim, que eu e o Rodrigo não temos nada oficializado.
Ficamos juntos em um baile. Tivemos um encontro interrompido e
uma aula de dança que terminou antes da hora. Eu prometi para ele
que ia ligar, mas agora vou ligar para dar uma notícia dessas? Será
que eu ligo mesmo ou deixo as coisas como estão?
Liguei:
— Alô? Quem fala? — era Rodrigo do outro lado da linha ao
atender o meu número desconhecido.
— Oi... sou eu... Sabrina — estou meio sem jeito já pensando
na notícia que terei que dar para ele.
— Sabrina! Céus, quanto tempo eu sonho em receber essa
ligação. — Ele está tão entusiasmado, que chego a pensar que está
fingindo.
— Desejo realizado! Aqui estou! — disse, divertida. — Ficou
sabendo o que houve ontem?
— Alguém desligou a chave de energia. Até que isso fosse
descoberto já eram mais de 10 horas. Como pode? Nossos
encontros sempre têm alguma surpresa...
— É — falei dando risada junto com ele.
— Falando nisso... quando nos encontraremos de novo? Já
estou com saudades. Amanhã não terei nenhum compromisso.
Deixe-me ver... domingo também não. — Ele explicou divertido
como sempre.
— Então..., eu vou precisar me ausentar por uns dias... — Ele
ficou mudo — a trabalho, Rodrigo?! Alô?!
— Oi. — Ele respondeu. — Quanto tempo?
— Quinze dias, eu acho.
— E qual é o destino?
— São Paulo.
— Vai sozinha?
— Sim. Parece que lá eu terei algumas pessoas para me
assessorarem... — Eu fiquei impressionada com isso, mas dessa
vez meu chefe me deixaria viajar sozinha.
— E quando vai?
— Amanhã às sete horas da manhã — escutei-o praguejando
do outro lado da linha.
— Vamos nos ver agora?
Eu olhei no relógio: vinte e uma horas. Observei a minha mala
em cima da cama: vazia. E respondi:
— Não tem como. Eu ainda tenho muitas coisas para fazer
hoje. Quando eu voltar, a gente se vê...
— Mas afinal, o que fará lá? — Rodrigo pergunta meio
desconfiado.
— É um evento de imóveis. A empresa em que trabalho terá
um stand lá. Eu vou acompanhar de perto o andamento das coisas.
Também participarei de Workshops, oficinas e outros tipos de
formações oferecidas durante o evento. Estou animada de poder
voltar a estudar...
— Legal — com certeza ele não estava nem um pouco
entusiasmado e não fez o menor esforço de esconder isso. — Essas
viagens ocorrem com frequência?
— Umas duas ou três vezes no ano, mais ou menos.
— Agora vejo que não sou só eu a ser escravizado pelo chefe.
— Não vejo dessa forma, Rodrigo. Eu cresço como
profissional nessas viagens. Aprendo muito.
— Eu só não entendo como alguém que trabalha no apoio
gráfico precise crescer profissionalmente...
Meu sangue ferveu.
É claro que ele não sabia que eu era assistenteexecutiva da
presidência. Eu nunca fiz questão que ele soubesse disso. Estava
literalmenteem uma encruzilhada e eu teria que resolver se deixava
ele atualizado com meu cargo ou não.
— Digamos que faz algum tempo que não trabalho mais no
apoio gráfico, Rodrigo... — contei uma meia verdade — agora eu
preciso desligar. A gente se fala, não é?
— Se você tiver tempo para mim durante esse evento e as
formações na “terra da garoa”, me liga. Estarei aqui tirando galhos
de cercas, levando a minha mãe postiça aos seus compromissos e
aguardando ansiosamente um contato seu.
— Certo — falei rindo. — Um beijo.
— Outros, Sabrina, muitos outros...
Eu não sei o porquê dessa viagem surgir nesse exato
momento. O senhor Scheffer estava refutandoesse convite já tinha
um bom tempo. E de repente, simplesmente surge com essa
novidade, mas eu estava gostando. Ficar duas semanas em São
Paulo, e sozinha!
Seria a glória para mim.
Meu chefe andava com o humor muito alterado nos últimos
dias... Eu esperava que estivesse muito mais calmo quando eu
voltasse. Fiquei meio chateada com o comentário do Rodrigo, sobre
quem trabalha no apoio gráfico não precisar de formação... Que
ignorância dele: “Todos precisam de formação... Inclusive ele, se
quiser se livrar das garras do João Victor...”

Fui levada até o aeroporto por um motorista, que usava o carro


do senhor Scheffer. Eu viajaria em um voo fretado.Era estranha a
sensação de voar em uma aeronave pequena, porém parecia
gigante por eu estar sozinha. Em São Paulo outro motorista me
aguardava. Paramos em frente ao mesmo hotel que fiquei sempre
que estive em São Paulo com o senhor Scheffer. Curiosamente
ocupamos sempre o mesmo quarto conjugado. O motoristaque se
chamava Francisco entregou para mim um cartão com o seu
telefone e revelou:
— Tenho ordens expressas do senhor Scheffer para não
deixá-la sozinha. É para o seu próprio bem — imaginei que para o
dele também. — Em qualquer hora do dia, independente do dia da
semana, por favor, me comunique que a levarei onde quiser... certo?
— Ele fez um semblante de pai dando bronca no filho. Parecia que
estava querendo me intimidar.
— Dito dessa forma tão, tão... gentil, é claro que está tudo
certo, Francisco — respondi com ironia olhando novamente seu
nome no cartão.
— Desculpe, senhorita, é que o senhor Scheffer comeria o
meu rim se alguma coisa lhe acontecesse... — por um momento me
lembrei de como ele tem estado instável nos últimos dias.
— Eu entendo perfeitamente,Francisco — tentoconter uma
risada.
Lá estava eu... no mesmo quarto. Mas dessa vez não
escutaria batidinhas na porta, para me perguntar se a gravata
estava torta,ou para pedir ajuda com o controle remoto da televisão
do hotel... Ou qualquer outra desculpa esfarrapada que ele
inventava para a porta entre nós ser aberta e ficarmos, pelo menos
um pouco, no que seria o mesmo quarto. Ahhhh... Scheff... Por que
você dificulta tanto as coisas para nós?
Não entendi por que eu estava ali em um sábado pela manhã
se o evento começaria apenas na segunda-feira. A única informação
que o meu chefe me passara foi o horário do voo e o nome do
motorista que estaria me esperando no aeroporto.
Após eu ter arrumado minhas coisas no quarto que seria a
minha casa pelos próximos quinze dias, pego meu celular que ainda
estava em modo avião e altero a configuraçãopara normal. Não me
assusto ao verificar que o senhor Scheffer já tinha me ligado cinco
vezes, minha tia duas e o Leo uma. Todos também tinham me
mandado mensagens. Para facilitarminha vida façouma mensagem
padrão e respondo igualmente a todos:

“Bom dia! Estava me acomodando no quarto. Fizuma ótima


viagem. Beijos.”

É claro que tirei a parte dos “beijos”da mensagem do meu


chefe. Um segundo depois o meu telefone toca:
— Alô — respondo já sabendo quem era. Não sei por que
ainda mantenho o toque do U2 que ele programou para indicar que
a ligação era dele.
— Senhorita Andrade, tudo bem? — meu chefe demonstrava
estar mais calmo do que a última vez que falei com ele.
— Sim, senhor Scheffer. Quais são as orientações? — já fui
logo perguntando para não estender muito a conversa com ele.
— Enviei-lhe um email com o passo a passo do que deverá
fazer a partir de agora. A feira começa na segunda, mas o stand
será montado no finalde semana. Já temos pessoas trabalhando lá.
Você sabe como gosto das coisas... por isso lhe enviei para que
esteja atenta aos detalhes... — Ele estava extremamente focado
naquilo que dizia.
— Certo, senhor Scheffer, pode deixar comigo — tentei
transmitirpara ele a mesma confiançaque me passara. — Prometo
que não lhe incomodarei.
— Senhorita! — senti um frio na espinha por me chamar
assim. — Eu gostaria que entrasse em contato comigo todos os
dias... quero estar a par de tudo que acontecerá aí. Cada mísero
detalhe — meu chefe fez uma pausa antes de continuar. — Mais
uma coisinha... você está a trabalho, não se esqueça disso. Isso
significa que é de minha total responsabilidade. Então, por favor,
não saia sozinha e sempre use os serviços do Francisco. Ele é um
velho conhecido e tenho total confiança nele. Entendeu?
— Sim. Entendi perfeitamente. — Eu era uma refém.
— Tenha um bom dia e no final da tarde aguardo notícias
suas...
Eu tive vontade de gritar de raiva. Como esse cretino me
manda para outra cidade, me confia uma missão desse tamanho,
em que o nome da empresa está em jogo? Quer que eu fique
mantendo-o a par de todas as informações, não me deixando ir a
nenhum lugar que não seja do seu conhecimento e ainda me deseja
um bom dia? Afff... Contei até 10 para ver se me acalmava. Não foi
suficiente. Achei melhor olhar o e-mail e arregaçar as mangas.
O e-mail estava bem organizado. Tinha uma tabela com cada
dia que eu passaria ali e o que precisava ser feito.Tinha também
um folderdo evento. Um comprovante de pagamento com QR Code
que eu imaginei ser o meu ingresso. Mandei uma mensagem para o
Francisco comunicando-lhe que sairia às 13h. Quando ele chegou
fomos direto ao pavilhão em que seria o evento. Levamos quase
uma hora para chegar devido ao trânsito.Disse para Francisco que
quando precisasse dele o chamaria novamente.
Lá dentro pude constatar as coisas acontecendo. Homens
carregavam coisas de um lado para outro me fazendo lembrar o
trabalho de um grupo de formigas. Olhei ao redor e o cenário que vi
era bem diferente do que eu imaginei. Pensei em espaços
minúsculos um ao lado do outro, onde cada empresa venderia seus
produtos, no nosso caso: imóveis e serviços de construção. Mas
não, tinha um amplo palco ricamente iluminado com milhares de
cadeiras na sua frente. Em cantos isolados estrategicamente
estavam alguns espaços cercados, mais como decoração do que
qualquer outra coisa.
Fui percorrendo cada um destes espaços para verificar se eu
conseguia identificarqual era o da SSB. Missão difícil essa. Pela
lógica, aqueles que já estavam identificados não eram o nosso,
então eu começaria perguntando àqueles sem logomarca, qual a
empresa que representavam. Logo na primeira tentativaeu acertei.
A localização era boa, quase todas as pessoas teriam que passar
por ali para se acomodarem em frenteao palco. Agora era só ver o
que tinham em mente e colocar em prática.
— Boa tarde! Quem está responsável pela montagem? —
perguntei às três pessoas que estavam dentro do espaço.
— Que montagem? — perguntou a moça que havia me dito
que esse era o espaço da SSB.
— Esse espaço vai ficar assim? — olhei ao redor.
Notei a presença de duas cadeiras, uma mesa de escritório
simples, alguns folders de unidades e uma palmeira que estava
mais pra lá do que pra cá...
Aquilo só podia ser alguma pegadinha. Um evento máster
daquele e os três patetasapresentavam aquilo? Sábia a frase que
afirma: “O olho do dono engorda o gado!” Enquanto o senhor
Scheffer fica tendo chiliques sem motivo aparente em Gravataí, a
unidade de São Paulo pede socorro pelo jeito...
— Deixe eu me apresentar: sou a senhorita Andrade.
Assistente executiva do senhor Scheffer, estou responsável em
verificare acompanhar como vão as coisas durante o evento, ok? —
fiquei receosa em ser arrogante demais, mas precisava colocar
ordem na casa, meu emprego dependia disso. E a empresa do
senhor Scheffer também. — Como vocês se chamam?
— Henrique — falou o rapaz mais alto.
— Beatriz — respondeu uma moça loira de olhos castanhos.
— Tiago às suas ordens — disse o último com simpatia, ele
aparentava ser o mais velho dos três.
— Vocês trabalham para a SSB? — comecei a investigar.
— Não — responderam os três em uníssono
— Mas o que fazem aqui então?
— Fomos contratados para dar uma mão nesses dias de
feira... — explicou Tiago.
— Quem contratou vocês?
— Um tal Benedito... — esclareceu Beatriz.
— Tudo bem. Até que horas podem ficar?
— Eu fico o tempo que for preciso — informou Tiago, que
parecia estar mais disposto a ajudar do que os outros.
— Certo. Preciso fazer uma ligação e já falo com vocês
novamente.
Procurei um canto reservado e ligo para meu chefe,agora que
o meu susto estava passando preciso avisar ele da situação em que
me encontro. Ele atende no segundo toque:
— Senhorita Andrade, como está? — pelo tom da sua voz
parecia estar se divertindo.
— Eu estou bem, senhor Scheffer... — pensei um pouco antes
de expor a situação para ele — estou aqui no pavilhão e o espaço
da empresa é ótimo, bem localizado, mas... está horrível... não nos
representa nem um pouco. Quer dizer, não representa a SSB. Estou
preocupada.
— Eu não. Foi justamentepor isso que eu mandei você aí.
Confio na sua criatividade. — Ele tentoume passar um pouco de
confiança.
— É, pode ser que eu consiga fazer algo... — uma ideia tinha
acabado de surgir — mas preciso ir até a empresa daqui com
alguém que tenha acesso a todos os espaços...
— Sei... vou ver o que consigo e te aviso na segunda-feira.
— Nâããããão! — gritei, desesperada. — Tem que ser hoje, o
mais tardar amanhã...
— Certo, vou ver e já te aviso.
Alguns minutos depois o telefonetoca e ele me informa que o
Benedito estará me esperando na frente do prédio. Achei muito
estranho ele chamar o homem pelo nome, essa foi a primeira vez
que ouço algo parecido da parte dele.
Eu precisava me dirigir para frente do pavilhão que o
Francisco já viria me buscar. Meia hora depois já estou conversando
com o tal Benedito. Ele é um senhor alto com a barriga meio
saliente. Aparenta ter uns sessenta anos. Os poucos cabelos que
lhe restam sugerem que eram castanhos, como a cor dos seus
olhos. Apresentamo-nos rapidamente, ele aperta alguns botões
liberando a abertura de uma porta lateral e pergunta o que eu
preciso fazer ali:
— Fiquei responsável em organizar o stand do evento.
— Mas eu mandei três pessoas para isso... — falou ele me
interrompendo.
— Sim, estive com eles. Fizeram o melhor com o que tinham...
— Eu estava angustiada, tinha impressão de que engolia as
palavras — mas precisamos valorizar mais o espaço que
representará a nossa empresa. Por acaso, vocês têm uma maquete
que possamos transportar para lá? — lembrei que nós tínhamos
todas as maquetes dos eventos guardadas...
— Temos uma. No hallde entrada, mas ela é gigante... de
quanto espaço estamos falando?
— Acho que 3X3 — fiz as contas mentalmente.
— A do hallnão tem como, mas, senhorita Andrade, o que o
Scheffer vai achar de tudo isso? — atentouo senhor Benedito para
a minha ideia maluca.
— Só um minuto... ligarei para ele — digo começando a achar
que estou realmente exagerando.
Afasto-meum pouco do senhor Benedito e sento em um sofá
que fica encostado em um canto da sala. Ligo para o meu chefe e
escuto a gravação indicando que a minha mensagem iria para a
caixa postal. Tento novamente e a mesma coisa acontece. Eu teria
que tomar aquela decisão sozinha. Decidida, retorno para falar com
o senhor Benedito:
— E então, lembrou de alguma maquete de tamanho mediano
que possamos usar? — estava arriscando tudo com aquele pedido.
— Você é uma mocinha persistente,hein? — provocou-me em
um tom paternal.
— Como eu fui com a sua cara, vou fazer uma coisa que
talvez custe o meu emprego... — Ele falou hesitando — venha
comigo.
Ele me conduziu a uma sala que mais parecia um ateliê, com
tintas,papéis, miniaturas e coisas do tipo. Em um canto havia um
grande objeto coberto por um pano. Quando ele o puxou, admirei a
maquete mais linda que já tinha visto até agora. Era de um prédio
residencial extremamenteluxuoso, com piscina, playgrounde tudo o
mais que os moradores terão direito quando o empreendimento ficar
pronto. Meus olhos já estavam brilhando, quando de repente o
senhor aperta um botão e tudo dentro do cubo de acrílico fica
iluminado, inclusive dentro de alguns apartamentos.Eu me viro para
ele esperançosa. Ele com um olhar contrariado afirma:
— Cuide dela como se cuida da própria vida. O lançamento
será no final do mês...
— Obrigada! Obrigada! Obrigada! — Eu tinha vontade de pular
no pescoço dele de tão alegre que eu estava. — Mas... como a
levaremos para lá?
— Deixe que disso eu cuido.
— Senhor Benedito, preciso de mais umas coisinhas... —
suspirei profundamente rezando para que ele não estivesse me
achando muito aproveitadora.
Ele me olhava sério e esperava pacientemente pelos meus
pedidos...
Capítulo 49
O senhor Benedito foi um anjo comigo. Ele conseguiu
simplesmente tudo o que eu precisei. Quando o stand ficou pronto
eu não acreditava que nós tínhamos feitotudo aquilo. Passamos a
tarde do domingo treinando os três funcionários contratados por
Benedito. Eu não sei por que ele escolheu exatamenteaqueles três,
completamente inexperientes, mas nada que algumas boas
instruções não dessem um jeito.
Fiz uma escala de trabalho para que sempre tivessem duas
pessoas no stand, em alguns momentos eu e o senhor Benedito
também trabalharíamos, para completar os horários que faltavam.

Cheguei ao hotel, tomei um banho relaxante e já ia colocar


uma roupa para ir jantar. Faria a ligação que o meu chefe pedira
atualizando-o dos últimos acontecimentosquando voltasse. Estava
cansada. Queria o quanto antes descansar porque o dia seguinte
seria cheio. O meu telefone toca:
— Boa noite, senhor Schef fer, tudo bem?
— Tudo, senhorita... e com você? — perguntou ele, mais
amistoso do que estou acostumada.
— Bem. Cansada, mas bem — na verdade eu estava ótima.
Nosso trabalho no pavilhão tinha ficado maravilhoso. Só que por
algum motivo eu não queria dividir isso com ele ainda. — Tem uma
coisa... — comuniquei meio reticente.
— Uma coisa?
— Sim. Eu peguei umas coisinhas suas emprestadas... no seu
escritório... — talvez eu tenha ido longe demais.
— Fico com receio de saber o que são essas “coisinhas”que
diz…, o Benedito está a par?
— Sim, fizemos uma boa dupla — respondi carinhosamente.
— Desde que você as devolva e as deixe exatamenteonde
estavam... — respondeu meu chefe com uma confiançaque eu não
esperava, ele não fez a menor menção para saber o que era.
— Prometo — respondi, aliviada.
Pelo jeito nossa conversa havia acabado. Ficamos em silêncio
contemplando as nossas respirações. Eu passaria a noite daquele
jeito, mas seria um esforço em vão. Eu me contentariaem ouvir a
sua voz em ligações noturnas e rápidas pelos próximos dias que se
seguiriam.
— Senhor Scheffer? Mais algum detalhe que precise saber?
— questionei para que acabássemos logo com isso.
— Senhorita... está bem mesmo? — Ele insistia em voltar ao
início da conversa.
— Sim, qual é o problema?
— Desculpe! Quando a enviei, agi por impulso. Não lhe dei
opção nenhuma... informaçãonenhuma... achei que poderia estar aí
contrariada.
Meu chefe estava tendo uma crise de consciência, isso era
novidade. Geralmente ele nunca me dava opções e isso nunca tinha
sido um problema para ele.
— Absolutamente, senhor Scheffer. Estou bem. A nossa
equipe de trabalho está super entrosada. Estou tendo oportunidades
de crescer de forma pessoal e profissional. Só tenho que lhe
agradecer — respondo contendo o impulso de dizer que o único
problema era a falta que eu sentia dele. — Obrigada pela
oportunidade, chefe — falei para provocar .
— Tenha uma boa noite, senhorita!
Após o jantar eu voltei para o quarto com o intuitode organizar
as coisas para o dia seguinte e descansar. Olhei para a porta
conjugada no meio do quarto e não contive a vontade de abri-la.
Deparando-me com a porta do quarto que geralmente meu chefe
ficava. Encosto na maçaneta e... Ao fazer uma pressão ela abre. A
emoção de saber que a qualquer momento ele poderia estar ali, tão
perto encheu o meu peito de felicidade.
Como uma gatinha sapeca me deito em sua cama e aproveito
a paz que sinto neste pequeno momento de ousadia. É inútil ficar
ali. O cheiro que eu mais gosto neste mundo não está naqueles
lençóis. Volto ao meu quarto, após deixar as coisas exatamente
como estavam. Rodo duas vezes a chave na fechadurae vou deitar.
Tiro uns minutinhos para fazer uma pequena faxina no meu
celular. Preciso liberar mais memória. Tenho a intenção de tirar
muitas fotosneste evento, sei que se não fizer isso o Leo e a tia
Nice não irão me perdoar. Excluo algumas mensagens, elimino
algumas imagens e chego às ligações. Vou marcando em sequência
os nomes que aparecem e levo um susto com o nome: Rodrigo.
Meu Deus!
Nessa correria toda eu havia me esquecido dele. Foram tantos
problemas... Tantas lembranças... Minha cabeça me dizia que eu
precisava ligar para ele. Mas meu coração não queria que eu
ligasse...
Levantei. Fui até o banheiro lavar o meu rosto, tomei um gole
de água e fiquei duelando comigo mesma. Que mal uma ligação
poderia fazer? Estava disposta a tentar, não estava? Amanhã eu
ligo então, resolvi, escuto um barulho de mensagem:

Tia Nice: Olá querida, como vão as coisas?


Você: Tudo ótimo, tia! Estou mandando e desmandando aqui,
acredita?
Tia Nice: Só tome cuidado para não se lambuzar muito...
Você: (Emojide carinha com olhos revirados) Eu sei... Conheço
muito bem os meus limites... Acho... Hhahhahahahahahah
Tia Nice: Sabrina...
Tia Nice: Falou com o Rodrigo?
Você: (Emojide carinhade susto) Agora que pareique me lembrei
dele... Acho que ligo amanhã...
Tia Nice: O que te custa mandar uma mensagem e dizerque está
tudo bem?
Tia Nice: Falou com o Leo?
Você: Sei... vou mandar...
Você: Sim, ontem já...
Tia Nice: Está vendo poderiater mandando uma mensagem para o
Rodrigo também... Como amigo.
Você: Tá.
Tia Nice: Vou deixar você descansar. E mandar mensagens para
rapazes aflitos... (Emoji de carinha com coração nos olhos)
Você: Certo, então.(Emoji de carinha com coração nos olhos)

Imagino que o Rodrigo já tenha ido ao salão atrás de notícias


minhas. E se for isso ele realmente está cumprindo com a parte que
eu disse que não queria mensagens ou ligações dele. Não sei o
porquê, mas isso me deixa comovida. Acomodo-me
confortavelmente na cama. E busco o nome de Rodrigo no
aplicativo de mensagens.

Você: Boa noite, tudo bem com você?

Instantes depois já recebo a sua resposta:

Rodrigo: Boa noite!


Rodrigo: Estou bem e você? Estou com saudades!

Recebo a solicitação dele para uma chamada de vídeo.


Recuso.

Você: Desculpe. Não estou vestidade forma apropriada. Já estou


praticamente indo dormir...
Rodrigo: Nossa! E vai perder de aproveitar a noite paulistana?
Você: Cansada! E o meu contrato de trabalho me impõe muitas
restrições... (Emoji de carinha dando risada)
Rodrigo: (Emoji de várias carinhas dando risada)

Ele levou o que eu disse na brincadeira, mas eu sabia que era


verdade.

Você: Só queria dar um oi mesmo... Amanhã a correria continua...


Rodrigo: Certo. Obrigado.
Você: Pelo quê?
Rodrigo: Por ter lembrado de mim.
Você: (Emoji de carinha ruborizada)
Você: Durma bem, até...
Rodrigo: Durma bem... Até amanhã?
Você: Não vou te prometer nada. Correria total aqui, insano...
Rodrigo: Entendo...

Achei melhor não deixar nada acertado com ele. Eu sabia


como estava cheia de dúvidas. E realmente estava corrido, pelo
menos isso não era exagero de minha parte.
Capítulo 50
O evento era simplesmente maravilhoso. Como imaginei, os
stands eram meramente decorativos, mas recebiam muitas visitas.
Vinham pessoas de todo tipo pedir informações,sobre o edifício da
maquete, dos empreendimentos dos folders que deixamos
organizados em uma pequena estante.E, principalmente, sobre a
empresa. Nos dois primeiros dias, eu contrariei parcialmente o
cronograma de meu chefe para ficar com os funcionários
contratados. Aos poucos íamos ajustando a fala. Eu tinha certeza de
que logo eu estaria liberada desta função.
Com o pouco tempo que me sobrava eu assistia uma ou outra
palestra que se encaixa no horário que tinha. Eu fiquei
impressionada ao ouvir esses homens e mulheres de negócios e
compreendia agora, que eles não vendiam imóveis como eu
imaginava, eles vendiam ideias.
Na quarta-feirafeira as coisas já estavam mais calmas e eu
pude começar a aproveitar o evento com mais tranquilidade. Na
ligação noturna que recebi do meu chefe informei-lhe que estava
tudo sob controle, que o evento estava muito bom e se quisesse
poderia deixar de fazer as ligações. Ele disse que isso estava fora
de questão e que continuaria mantendo o “protocolo” até o último
dia de viagem. “Protocolo”ele disse realmente isso?
Aproveito e ligo para o Rodrigo também:
— Boa noite, Rodrigo, tudo bem?
— Oi, linda! Tudo e você? — Eu o achei animado demais para
o meu gosto.
— Bem... está animado? — perguntei com receio.
— Pedi folgapara o João Victor no finalde semana — revelou
ele.
— Que bom, Rodrigo, você merece mesmo descansar... pelo
que você me conta... — estava torcendo para aquilo não ser uma
preocupação para mim.
— Vou viajar! Para São Paulo! Poderemos nos encontrar... não
será ótimo? — esse moço era realmente um sem noção.
— Rodrigo, estou trabalhando. Não entende? Eu saio às 7
horas do hotel e só volto às 20 horas, podre de cansada... —
constateique estava faltandouma tia Nice na vida dele, para dar
uns conselhos e limites de vez em quando.
— Se estou certo, temos das 20 horas às 7 horas para gente,
não é? — Ele disse gargalhando. Eu não sabia se ria ou chorava
com esse comentário. — Estou brincando — Ele me tranquilizou. —
Tem umas pessoas que eu conheço em São Paulo, aproveitarei
para visitá-las. Daí podemos nos encontrar uma noite. Pode ser? —
levando em consideração o quadro que ele tinha pintado antes, uma
noite até que era bem razoável, suspirei aliviada.
— Claro! Adoraria a sua companhia em uma noite paulistana!
— tentei frisar bastante“uma
o noite”.
Despedimo-nos e quando ele ia desligar perguntou em qual
hotel eu estava hospedada. Quando respondi ele afirmou:
— Uau! Não posso ficar nesse hotel, não gosto muito da sua
localização... — disse dando risada. — Prefiro um mais afastadoda
Paulista... — completou. Encerramos a ligação dando risada.
Eu sabia que era pelo valor que ele não ficaria no mesmo hotel
que eu, mas eu fiquei aliviada em saber que ele não estaria tão
perto. Uma dúvida surgiu em minha mente: E o senhor Scheffer?
Será que não iria dar o dom da graça de aparecer por aqui?
Eu já tinha reparado que a cadeira ao lado da que havia
comprado para mim no evento estava sempre vazia. Eu sentava na
primeira fileira, na primeira cadeira, estava sempre sozinha,
praticamenteisolada. Imagino que a cadeira vazia seja a dele, e que
a qualquer momento poderá aparecer... Só espero que não seja
justamente no final de semana em que Rodrigo estiver por aqui.

Na noite seguinte falei com meu chefe à noite como de


costume. Conversamos um pouco sobre as palestras do dia. As
coisas no stand da empresa não podiam estar melhores. Foi quando
perguntei:
— Senhor Scheffer? Virá para São Paulo antes do término do
evento? — estava muito sem jeito de perguntar aquilo, mas eu
precisava saber...
— Pretendo ir no final de semana, mas ainda dependo de
algumas adversidades que eu preciso resolver... — respondeu
incerto. — Algum motivo especial para que eu deva estar aí?
— Curiosidade apenas. Seria uma pena que perdesse um
evento tão extraordinário como esse —por um momento me esqueci
do Rodrigo e incentivei a sua vinda. Definitivamenteeu estava com
saudades dele.
— Quando eu souber, te aviso. Certo? — Ele respondeu
calmamente.
— Sim — agradeço.
Desejei que fosse antes do final do evento, pois queria que
visse o espaço da SSB pessoalmente. E torci que fosse no último
final de semana, porque eu não queria que tivéssemos problemas
com a presença de Rodrigo aqui.
Rodrigo tinha me avisado que chegaria na sexta-feiraà noite.
Eu estava começando a ficar nervosa, pois ainda não tinha
nenhuma resposta do senhor Scheffer. Apesar de estar
acompanhando mais as palestras e formações agora, eu sempre
passava no espaço da empresa para ver como as coisas estavam.
Tiago me comunicou que um dos organizadores do evento
precisava falar comigo.
Fui procurá-lo e quase caí de costas. Ele solicitava o tema que
abordaremos na plenária final. Como assim? Falar para 6000
pessoas? Isso estava completamente fora de questão... Solicitei
alguns minutos e liguei para o meu chefe. Expliquei a questão e ele
decidiu que viria na última semana então, mas advertiu que as
noites da próxima última semana seriam destinadas a isso, e que a
minha ajuda era fundamenta l e que faríamos isso por Skype. Com
isso acabei resolvendo dois problemas: a apresentação da plenária
e um final de semana com Rodrigo sem o senhor Schefferpor perto.
O Rodrigo mandou mensagem dizendo que havia chegado. Eu
teria atividades até às 20 horas. Combinamos de nos encontrarmos
em uma panquecaria. Desta forma o Francisco me deixou no hotel.
Tomei um banho e coloquei uma roupa mais à vontade. Liguei para
um motorista de aplicativo e solicitei que me encontrasse no
estacionamentodo hotel, desta forma saí sem ser vista. Eu estava
me sentindo muito mal em fazer isso, pelo menos desta forma. O
senhor Scheffer tinha moldado tanto o meu comportamentodentro
dos seus “limites” que mesmo quando eu fazia uma coisa pessoal,
que não tinha nada a ver com ele, eu ficava incomodada.
Quando cheguei ao local, o Rodrigo já estava me esperando.
Cumprimentei-o como se fazcom um amigo. Não posso afirmarque
eu estava com saudades dele, mas foi bom após uma semana
encontrar um rosto conhecido. Eu tinha a impressão de que cada
vez que eu o encontrava era nosso primeiro encontro,
começávamos da estaca zero. Era como se eu não me permitisse
envolver com ele. Conforme a gente ia conversando eu ia me
soltando, apesar de a princípio eu sempre ter a impressão de que
ele era um estranho.
A conversa estava boa, ele me contava das enrascadas que o
João Victor acabava fazendo com que ele entrasse. Como no dia
em que pegou a escada gigantesca de uma vizinha idosa
emprestada para trocar a lâmpada em um poste. No dia em que foi
devolver, Rodrigo carregou a escada com muito sofrimento até a
casa da mulher. Esta por sua vez disse que não era sua. Ele voltou
com a escada para casa e colocou-a na garagem para ver com o
João o que fariam com ela. Para surpresa de todos, uma semana
depois a polícia vai até a casa com a senhora que alegava que a
escada tinha sido roubada, e até que conseguissem explicar que
focinho de porco não era tomada deu muito trabalho.
Eu estava gostando de rir das meninices dele, parecia que
tinha uma vida tão simples e descomplicada.
A comida estava boa, tomamos um vinho encorpado. Eu não
entendia muito de vinho, só sei que ele agradava o meu paladar.
Percebi que ia ficandocada vez mais relaxada e que tudo ia ficando
mais engraçado.
Pagamos a conta. Dessa vez eu fizquestão de dividir. Não era
justo que ele viesse de tão longe para nos encontrarmos e arcasse
com todas as despesas. Rodrigo resistiu um pouco no começo, mas
depois aceitou numa boa. Começamos a caminhar de mãos dadas,
eu estava gostando de sentir o contato de sua mão na minha.
Após andarmos uns 10 minutos, paramos em frentea um hotel
e Rodrigo mostrando a garrafa de vinho pela metade me convidou
para terminarmos de tomá-lo dentro do hotel. Um turbilhão de
pensamentos invadiu a minha mente. Concluí que se entrasse eu
estaria dando-lhe carta branca. Era isso que eu queria? Por outro
lado, eu já estava há quase dois anos sem nenhum contatomais
íntimo com alguém... Seria essa a oportunidade de... Fiquei
vermelha só de pensar.
Entrei.
Para minha surpresa não fomos para o quarto dele. Ficamos
conversando em uma sala de estar coletiva que naquele instante
estava vazia. Rodrigo foi até o restaurante e pediu duas taças.
Colocou um pouco de vinho em cada uma delas que ficaram em
cima de uma mesinha de centro. Continuávamos conversando
trivialidades quando ele perguntou cauteloso:
— Posso ir amanhã te encontrar no evento? Aproveito para
ver como ficou ostand que te deu tanto trabalho...
— Rodrigo... eu já te falei... — como eu iria explicar isso para
ele? — Meu chefe não gosta que os funcionários misturem as
coisas pessoais com as profissionais...pensando bem, eu não devia
nem estar aqui agora... — falei isso já levantando e pegando a
minha bolsa.
— Espera. — Ele suplicou segurando em meu braço. — Senta
aí. Eu só quero te fazer mais uma pergunta. Conforme o que você
me responder, eu deixo você ir e não te procuro nunca mais...
Eu olhei para ele com incredulidade, que pergunta tão
poderosa seria essa? Sentei novamente e fiquei olhando para ele
com curiosidade.
— Você e seu chefe têm um caso? — Ele questionou sem
rodeios.
— Não — respondi rapidamente desviando o olhar. Apoiei os
cotovelos em cima das coxas e sustenteia cabeça. — Ele não tem
um caso comigo. Embora eu não consiga me livrar do que sinto por
ele. Ele sempre foi muito sincero ao afirmar que nunca se envolverá
com ninguém, muito menos se casará, mas eu não consigo me
libertar... — confesso, muito provavelmente incentivada pelo vinho,
olho para ele e continuo. — Por outro lado ele é extremamente
ciumento e super protetor . E isso acaba me deixando mais confusa.
Lembrei de que já passava das 10 horas e eu ainda não tinha
falado com ele. Peguei o celular dentro da bolsa, olhei para ele: 5
ligações e 4 mensagens. Com certeza ele já teria ligado para o
quarto do hotel também.
— Está vendo!? — mostrei o celular para ele. — Não é de ficar
maluca?
— Isso é muita pressão mesmo... quer que eu te acompanhe
até o hotel?
Senti um aperto no peito. O Rodrigo nitidamenteestava me
dispensando também. Agora eu ficaria sem ninguém de novo. Eu
não sei qual era a intenção dele em fazer aquilo, mas seja lá o que
fosse me deixou extremamente balançada.
— Desculpe... não queria que fosse assim. — Eu estava
arrasada. — Obrigada pela noite. Pode deixar que eu me viro.
— Quer subir? — Ele falou baixinho. — Nossa noite não
precisa terminar assim... — Ele não tinha muita certeza do que
falava. — Eu posso te ajudar a esquecer ele, o que acha? —
Rodrigo se levantou, colocou as mãos na cintura e prosseguiu: —
Esquece. Que belo canalha estou sendo, espero que não pense que
quero me aproveitar de você...
— Não esquenta... eu preciso ir mesmo... já está tarde e ainda
terei que dar algumas explicações... — respondi prevendo o que
aconteceria quando eu chegasse ao hotel.
Chamei o carro pelo aplicativo no celular. A mensagem avisou
que em cinco minutos o motorista estaria ali. Rodrigo me
acompanhou até o local indicado, quando chegamos abracei o meu
corpo para ver se eu me esquentava um pouco. O ar estava meio
gelado e tinha um ventinho. Gentilmente,ele pediu permissão para
me abraçar. Permiti. Ele me abraçou por trás e foi bom sentir o seu
calor e o seu cheiro bem de perto.
Olhei no celular, mais uma mensagem do aplicativo:

“Seu motorista está chegando daqui a dois minutos.”


Rodrigo virou o meu corpo. Estávamos frentea frenteagora.
Ele olhou nos meus olhos e foi se aproximando... Quando me dei
conta já estava sendo beijada e estava gostando muito daquela
sensação. Por um momento cheguei a lamentar o fatode não ter
subido para o quarto com ele. Mas não tinha problema, com certeza
teríamos outras oportunidades e eu queria estar mais sóbria do que
eu estava hoje.
Quando estava entrando no carro me lembrei do que ele havia
dito.
— A resposta que lhe dei... — perguntei para ele enquanto me
apoiava na porta — você ainda vai me procurar?
— Isso é uma resposta que só você poderá nos dar... — Ele
piscou para mim e seguiu caminhando em direção à porta do hotel.
Capítulo 51
Já estou acomodada no hotel e escuto mais uma vez o
telefone do quarto tocar
. Atendo:
— Alô!
— Onde estava? Você quer me deixar louco? — o senhor
Scheffer estava furioso.
— Estava tomando banho... — tento desconversar .
— Desde as 20 horas? E o celular? Por que não atendeu a
DROGA desse celular!?
— Fiquei sem bateria e o carregador ficou no stand —
continuo inventando desculpas.
— Senhorita, responda-me. — Ele estava quase gritando. — O
que estava fazendoque não pôde atender ao telefone?O Francisco
me garantiu que deixou você no hotel.
Por um instante tive pena do pobre Francisco.
— Senhor Scheffer, desculpe se te preocupei, não foi a minha
intenção. Agora eu preciso dormir. As atividades do final de semana
serão mais intensas. Quero estar bem descansada para aproveitar
ao máximo.
— Você saiu? Estava acompanhada? Por que não usou os
serviços do Francisco conforme lhe orientei? — Ele insistia
desesperadamente.
— Sim, saí. E não é da sua conta se eu estava acompanhada,
porque eu não estava em horário de trabalho — tomei um pouco de
coragem e resolvi continuar: — Escute aqui, chefinho, sei que me
paga um bom salário e que estou aqui a trabalho, mas eu tenho
horário de expediente, sabia? Existe uma palavra chamada
PRIV ACIDADE , sugiro que procure o significado no dicionário.
Tenha uma ótima noite de sono — suspirei trocando o ar
profundamente.— Eu vou desligar essa ligação e tirarei o telefone
do gancho. Ficou com alguma dúvida? Tem alguma coisa do evento
que queira me perguntar? Ligue amanhã até as 18 horas, por favor .
Coloquei o telefone no gancho e percebi que eu estava
tremendo. Eu nunca tinha o afrontadodesta forma antes, - aquele
vinho devia ser muito bom mesmo. De longe era bem mais fácil.
Como eu estava pensando em namorar - meu Deus eu pensei na
palavranamorar - com o Rodrigo se o meu chefe controla a minha
vida desse jeito? Esse não era um comportamentonormal. O que
ele fazia juntava no mesmo homem a proteção de um pai, um avô,
um irmão, um marido e um doido varrido todos em um só. Eu
precisava impor limites àquilo.

Na manhã seguinte eu tinha a impressão de que a palestra


não estava boa. Meus pensamentos pulavam ora para a conversa
que eu tive com o Rodrigo, ora para a discussão que eu tive com o
senhor Scheffer. Estava extremamente arrependida de não ter
subido para o quarto com o Rodrigo e possibilitar que nos
conhecêssemos ainda mais... Sentia-me muitíssimo culpada de ter
envolvido o motorista Francisco nessa imensa confusão, eu não
queria que o senhor Scheffer brigasse com ele, mas também não
queria ter o meu paradeiro descoberto.
Poderia ficarali amanhã toda, jogando ping-pong com a minha
mente. Pensei também na resposta que o Rodrigo me dera: Isso é
uma resposta que só você poderá nos dar... É claro que ele não me
procuraria. Ele estava respeitando e muito as condições que eu lhe
tinha imposto. De repente senti vontade de falar com ele. Passei
pelo espaço da empresa, verifiquei que estava tudo em ordem e fui
para fora do pavilhão de exposições para ligar-lhe.
— Oi, tudo bem? — cumprimentei-o sem jeito.
— Tudo — Rodrigo respondeu sem me dar muita conversa.
— Então... — comecei a analisar as palavras que iria dizer.
— Pode falar agora? Ou não quer conversar? — perguntei já
pensando em desligar.
— Não é isso.
— O que é então? Foi um erro eu ter vindo, não foi?
— Não. Fiquei feliz que tenha vindo.
— Estou causando problemas para você... não quero nem
imaginar o que deve ter ouvido ontem.
— Não se preocupe com isso. Está tudo certo. O que acha de
uma pizza esta noite? — arrisquei um convite.
— Mas... — Ele estava relutante.
— Chega de “mas”... eu tenho direito de ter uma vida além do
meu trabalho. Ele vai ter que entender isso.
— Tem uma pizzaria boa perto do meu hotel...
— Certo. Encontramo-nos lá às 21 horas? É só me... — Ele
me interrompe.
— Pode ser. Tem certeza de que não terá problemas?
— Tenho. Não se preocupe mais com isso. Me mande o
endereço, por favor — respondi com segurança esperando que isso
fosse verdade. — Até depois...
— Beijos, Sabrina. Mil beijos — senti um frio na barriga só de
lembrar do nosso beijo de ontem.
Como de costume, eu passo no espaço da empresa antes de
voltar ao meu lugar na palestra. Tiago e Henrique não estão
sozinhos. Tem um homem alto, com os ombros largos e cabelos
negros que está conversando com eles. Seu terno é
minuciosamente alinhado e quando um dos rapazes me olha ele vira
para trás.
— Senhor Scheffer? — pergunto com incredulidade.
— Surpresa, senhorita Andrade? — um esboço de sorriso em
seus lábios.
— Esses são Tiago e Henrique. Estão nos ajudando nessas
duas semanas — senti um frio na espinha em não saber o
sobrenome dos meninos... isso não tinha nem passado pela minha
cabeça. — Tem também a Beatriz, mas agora está na hora do
almoço.
— Tiago. Henrique. — Ele acenou com a cabeça para cada
um deles enquanto repetia os nomes contrariado.
Os dois fizeram o mesmo em resposta.
— Vejo que tivemos um excelente trabalho por aqui, senhorita
Andrade.
Ele olhou ao redor. Começou pela maquete do Edifício
Bougainville , que estava estrategicamenteposicionada no canto do
espaço, em uma mesa que permitia que todos os seus detalhes
fossem vistos, devido à sua altura adequada. Ao seu lado, uma
pequena estante com foldersdos empreendimentos da SSB. O
stand possuía duas entradas. Uma delas fechamos com duas
poltronas giratórias e uma mesa de centro, dando um ar de local de
negócios. Para terminar encomendamos um letreiro iluminado com
a logomarca da empresa, que foi precisamente posicionado
embaixo da mesa da maquete. Meu chefe fez uma varredura no
local e comentou:
— Quando pediu umas coisas emprestadas, senhorita
Andrade, não imaginei que se referisse ao meu escritório todo e um
projeto milionário que ainda está em andamento... — Ele falou de
forma leve, parecia que pisava em ovos comigo. Com certeza a sua
presença ali era reflexode nossa conversa na noite anterior. — Mas
vou confiar em sua palavra. Prometeu que devolveria tudo, não foi?
Não vai deixar a privacidade do meu escritório exposta aqui para
sempre, não é?
Ele nitidamente me provocava. Eu não ia ceder a isso, não
agora e muito menos ali na frente dos dois rapazes. Expliquei para o
meu chefe como a escala estava organizada. Beatriz chegou e não
pôde deixar de babar enquanto olhava para o nosso chefe. Aquilo
me deixou um tanto incomodada. Ele cumprimentou-a como fez com
os outros dois. Um deles foi para o almoço e eu estava disposta a
fazer o mesmo.
— Senhor Scheffer, vou almoçar. Vai precisar do Francisco? —
perguntei imaginando que o motorista que nos levaria seria o
mesmo.
— Vou. Quero que ele me leve ao hotel — explicou-me.
— Certo. Pode deixar que eu darei um jeito então. Àtarde nos
vemos? — Eu já estava me retirando.
— Espere. — Ele veio caminhando em minha direção. Senti
que minhas pernas estavam tremendo. — Posso perguntá-la aonde
vai?
— Pretendo almoçar no Mercado Municipal. Seria um imenso
desperdício vir a São Paulo e não conhecê-lo, não acha? —
indaguei-o indiferente.
— Eu morei aqui e não conheço... — disse com um olhar
perdido de quem descobre uma grande verdade. — Alguma objeção
se eu for junto? Poderemos tirar a tarde de folga, o que acha?
Eu achava a ideia de tirar uma tarde de folga maravilhosa. Só
não queria ter a companhia forçada do meu chefe para o almoço. Eu
não fazia ideia de onde ele queria chegar com isso.
— Pode ser... — respondi sem ter certeza do que dizia.
Passamos antes no hotel, colocamos roupas mais confort áveis
e fomos ao Mercado Municipal. Eu olhava para aquele lugar e não
conseguia encaixar o senhor Scheffer ali. Era tudo muito popular,
barulhento, movimentado, bem diferentedas coisas que ele estava
acostumado a fazer. Optamos por provar o tradicional sanduíche de
mortadela, que era gigante por sinal, e tomar um chopp. Com
certeza isso era muito atípico em se tratandode Scheffer. Ele não
teceu nenhum comentário sobre dieta ou coisas do tipo. E para
minha surpresa ele estava à vontade, descontraído e nem parecia o
chefe tão instável das últimas semanas.
Nossa tarde foi agradável, andamos por todos aqueles
corredores e comemos fruta s exóticas. Ele se interessou nas lojas
que vendiam sementes, castanhas e temperos de todos os tipos.
Saiu dali repleto de sacolas, quem o visse de longe imaginaria que
se tratava de um verdadeirochef.
O senhor Benedito ficou responsável de "fechar" o espaço na
feira. Desta forma, pudemos voltar para o hotel, conforme o
combinado. Como sempre, cada um dirigiu-se para o seu quarto.
Despedi-me dele agradecendo o passeio. Fiz questão de
acrescentar um: "Até amanhã!" para ele perceber que nossos
momentos de hoje já haviam terminado.
Às 20 horas eu já estava praticamente pronta e prestes a
chamar o carro pelo aplicativo e mandar o localizador para o
Rodrigo, por segurança. Quando escuto uma batida peculiar em
"nossa" porta compartilhada. Um conflitointerno se manifestaem
mim: O que eu façoagora? Sabia que não era hora de confrontá-lo.
Mas eu também não poderia ignorar o seu chamado e sair sem mais
nem menos como uma louca. Ou poderia?
Não. Isso estava fora de questão.
Abro a porta e o vejo "pronto" para jantar. De calça jeans e
camiseta, os cabelos molhados arrumados apenas com os dedos.
Lindo! Simplesmente lindo!
— Boa noite, senhor Scheffer. Está precisando de alguma
coisa?
— Sim, senhorita. Companhia para jantar... — Ele respondeu
me encarando.
— Sinto muito. Eu já tenho um compromisso — falei com dor
no coração. — Estou praticamentede saída — disse passando as
mãos nas pernas com ansiedade.
— Está muito bem assim — meu chefeelogiou a roupa que eu
estava: uma calça jeans customizada, uma blusa com decote canoa
e manga morcego rosa choque e uma sandália tipo melissinha
transparentecom salto alto. — Sinto não ter chegado antes. Divirta-
se.
— Obrigada — não consegui dizer nada além disso.
— Não sairei do hotel. Pode usar os serviços do Francisco se
quiser — tinha dúvidas se ele queria ser gentil ou saber o meu
paradeiro.
— Obrigada, mas não vou precisar... já estão me esperando —
menti.
Eu queria chorar. Com certeza o pouco que tínhamos ou
tivemos estava menor agora. Eu queria comemorar. Estava
enfrentando meu chefe e mostrando a ele que o mundo não
circulava ao seu redor, que eu poderia ter uma vida além dele. No
fim das contas não fiz nem uma coisa nem outra. Peguei uma
jaqueta branca que havia deixado sobre a cama e a minha bolsa.
Sem pensar em nada, sem me permitir pensar em nada, saí do
quarto. Enquanto eu me certificode que a porta está fechada o
senhor Scheffer sai no corredor. Imagino que estar indo jantar ou
coisa parecida e fico pensando no constrangimento que seria
dividirmos o mesmo elevador.
— Senhorita Andrade. — Ele fala atrás de mim.
— Senhor Scheffer — respondi virando-me na sua direção.
— Seria muito atrevimentomeu... se eu lhe pedisse para ficar
comigo? — pude perceber a súplica em seu olhar.
— Senhor Scheffer... — Eu queria ficar. Eu queria muito ficar,
mas não sem ao menos uma certeza, que aplacasse todas as
dúvidas que eu tinha sobre ele. — Tem algum motivo que justifique
que eu fique aqui e não vá me arrepender depois?
Fiquei olhando seriamente para ele esperando a sua resposta.
E ela não veio. Encaramo-nos por algum tempo e era como se
nossas almas discutissem por nós. Sustenteio olhar o quanto eu
pude. Despedi-me dele calmamente e segui em direção ao elevador.
Eu não tinha forças nem para chorar, estava exaurida. Apenas uma
certeza eu tinha agora: o senhor Scheffer em minha vida era uma
página virada.

Quando cheguei ao encontro de Rodrigo ele estava na fila da


pizzaria esperando por uma mesa. Literalmenteele teria nessa noite
o que tinha sobrado de mim. E eu sabia que não era muita coisa.
Após a conversa no corredor eu queria entrar no quarto e me enfiar
embaixo do travesseiro até o dia seguinte. Mas não. Eu não daria o
braço a torcer. Eu sairia nem que fossepara comer um espetinho na
esquina.
Apesar do pouco tempo que nos conhecíamos, Rodrigo
percebeu que tinha alguma coisa errada comigo.
— Boa noite, linda! Seria muito redundante dizer que está
linda? — Ele estava tentando me descontrair .
— Boa noite, lindo! Muito repetitivode minha parte dizer que
está lindo? — respondi entrando no clima dele. Acabamos rindo. —
Faz tempo que está aqui?
— Não muito. Dia cheio? — Ele devia estar se referindo à
minha fisionomia cansada.
— Até que não. Tive a tarde de folga — respondi
envergonhada.
— Por favor, se amanhã formos nos ver... trabalhe o dia todo,
está bem? — dei um tapinha no braço dele e ri da piada.
— Seu bobo!
O clima estava mais leve. Conseguimos uma mesa e o pedido
estava sendo servido. Rodrigo sugeriu que tomássemos vinho
novamente, mas eu recusei. Mesmo sabendo a quantidade de
frutoseque tinha nele, optei por um suco de laranjas. Ele pediu o
mesmo.
Contrariando toda a lógica do dia, e o fato de eu ter comido um
sanduíche de mortadela de quase um quilo no almoço, eu percebi
que estava com fome. Saboreei cada um dos três pedaços de pizza
que coloquei em meu prato. Estavam deliciosos. Enquanto
comíamos não conversamos muito. Rodrigo percebeu que eu
estava introspectiva e respeitou o meu momento, até agora:
— Quer dizer que teve a tarde de folga? — imagino que ele
estivesse se perguntando por que eu não tinha o procurado.
— Sim, meu chefe resolveu aparecer — respondi. Não queria
omitir isso dele.
— Entendo...
— Entende o quê?
— Porque não me procurou... porque estava tão mal-
humorada quando chegou aqui... só não entendo uma coisa... — Ele
fez uma pausa, dava a impressão que não tinha certeza se
continuaria falando. — O que você está fazendo aqui?
Contei para ele a conversa que tive com o senhor Scheffer na
noite anterior pelo telefone,a chegada dele hoje pela manhã sem
avisar e o seu pedido antes de eu sair do hotel. A única coisa que
Rodrigo disse a respeito foi:
— Das duas uma, Sabrina: ou esse cara é casado ou é gay...
não tem explicação!
— Eu sei — fiquei pensando no que ele havia dito, tinha a
certeza de que ele estava errado em suas duas alternativas.
— Fico feliz que você tenha defendido a sua privacidade e o
seu direito de ter a própria vida. Nenhum cara só porque é rico deve
subjugar os outros.
— É... — apesar de não fazermuito sentido, eu não conseguia
tirar do meu pensamento as palavras: gay e casado. Já não bastava
a experiência que eu tive com o Leo?
Saímos da pizzaria, andamos um pouco e logo estávamos em
frente ao hotel em que Rodrigo estava hospedado novamente.
Entramos naturalmente, como se isso já estivesse previamente
combinado. Sentamo-nos na mesma sala do dia anterior. Só que
desta vez não estávamos sozinhos, um grupo de crianças assistiam
ao Harry Potter na televisão que hoje estava ligada.
Não fazia muito sentido ficarmos ali. Nós tínhamos duas
alternativas:ou eu ia embora, o que eu não queria por estar muito
cedo; ou nós subíamos para o quarto do Rodrigo e daí eu não me
responsabilizaria por nada que pudesse acontecer lá. Rodrigo me
olhou sem jeito. Eu sabia o que iria perguntar. Peguei em uma de
suas mãos e convidei:
— Vamos.
Quando chegamos ao quarto em que ele estava hospedado
pude constatarque era bem mais simples do que o quarto em que
eu estava. Apesar disso, tinha tudo o que era necessário para dar
confortoa alguém que ficaria alguns dias longe de casa. Além da
cama de casal, tinha também uma mesa com duas cadeiras. Foi ali
que nos sentamos para continuar conversando. Eu fiquei
impressionada com o fatode Rodrigo, apesar de se mostrar muito
interessado em mim, era muito paciente e respeitador. Em como ele
conseguia ser meu amigo e até me dar conselhos sobre aquele que
teoricamente era o seu rival.
Como quem não quer nada, ele posicionou a sua cadeira ao
lado da minha. Pegou a minha mão e deu um beijo carinhoso. Eu
sabia onde aquilo iria parar... Ou melhor, eu sabia o que estávamos
começando. Ele largou a minha mão por um instantee selecionou
uma playlistem seu celular.
— Rodrigo. Eu só quero deixar uma coisa bem nítida entre nós
— comecei o meu discurso.
— Diga. — Ele falou enquanto beijava novamente a minha
mão só que de uma forma mais demorada.
— Independente do que aconteça aqui hoje. Não somos
namorados. Eu não quero...
— Shhhhhhh.... —Ele sussurrou colocando o dedo indicador
na minha boca — Eu sei... você também sabe... nós sabemos... um
dia de cada vez, Sabrina — foi aí que ele me beijou e eu deixei que
tudo acontecesse.
Capítulo 52
Como uma adolescente que está chegando em casa tarde
demais eu tirei as sandálias antes de entrar no quarto. Acendi
apenas a luz do banheiro e evitei fazer barulhos altos que
entregassem que eu já estava ali. Fiz a minha higiene, tirei a
maquiagem, coloquei a primeira camiseta larga que encontrei. Olhei
no relógio do celular 3 horas. Logo eu teria que estar em pé
novamente. Mandei uma mensagem para Rodrigo avisando que eu
já estava na cama e recebi como resposta:

"Eu seique não há garantianenhuma de sua parte. Que você


não quer um relacionamentosério ou coisas do tipo, mas eu te
prometo que a partir de agora tudo que eu puder fazer para te
conquistar todos os dias com certeza eu farei. Durma bem."

Não preciso nem dizer que eu me derreti feito manteiga no pão


quente.
Não tinha como conseguir dormir depois de ter tido a melhor
transa da minha vida. Eu já tinha transado antes, com o Frederico e
com o senhor Scheffer. Posso dizer que tinha sido bom, mas eu
nunca tinha alcançado o êxtase com nenhum deles. Mas hoje... Foi
muito especial. Ele foi carinhoso, cuidadoso, habilidoso e não
desistiu enquanto eu não estivesse satisfeita.Em suas mãos eu me
senti como se eu fosse um santuário e ele fosse a própria
oferenda... Senhor que oferenda.
Como em um filme, exatamentena hora em que deitou o meu
corpo na cama começou a tocar AllOf Me, do John Legend. Eu
sempre achei essa música muito especial e agora ela faz parte da
minha história. A partir daí ele me ofertou seus lábios que
exploraram cada mísera parte do meu corpo. Ofereceu-me as suas
mãos, que ao serem passadas com paixão pelas minhas partes
mais íntimas fizeram eu me sentir viva e desejada. Ele consagrou a
mim também a sua intimidade, enquanto explorava cada cantinho
da minha. A impressão que eu tinha é que a vida dele dependia
disso, ele usava todas as armas que tinha e deu muito certo. Ele
tinha pensado em tudo. Inclusive em manter-nos protegidos dos
"perigos do sexo", porque se dependesse de mim teríamos que sair
para comprar preservativos.
Não pude deixar de pensar racionalmente e admiti que antes
que eu me entregasse ao Rodrigo na noite passada, eu estava
carente em todos os sentidos. Fazia tanto tempo que eu não
transava que já era praticamente uma virgem novamente. A
ausência de palavras na boca de Scheffer fez com que eu me
sentisse completamentesozinha. Por outro lado, quando precisei do
Rodrigo ele estava lá. Por mais que a gente não continue e que não
tenhamos mais uma noite íntima como essa, já valeu. Terei esses
momentos guardados para sempre em minha memória.

Acordei às 6 horas com o despertador tocando


insistentemente.Não sei por quanto tempo eu tinha dormido e isso
não importava agora, eu teria que levantar. Como era domingo o
evento seria apenas pela manhã. Não fazia ideia se o meu chefe
daria o ar da graça lá. Mas para garantir mandei uma mensagem
para Francisco dizendo que às 8 horas estaria pronta. E estava.
Nem um sinal do senhor Scheffer no restaurante,no quarto ou no
carro que nos levaria. Fui independentementedele. Cheguei mais
cedo do que o de costume, imagino pelo fatode o trânsitoser mais
tranquilo no domingo.
O stand ainda estava vazio. Aproveitei para colocar algumas
anotações em ordem e mandar uma mensagem para Rodrigo, já
que eu tinha furtado o direito da iniciativa dele.

Você: Bom dia! Dormiu bem?

Quando a resposta dele chegou a palestra já estava pela


metade, quase no intervalo.
Rodrigo: Bom dia! Como uma criança.
Rodrigo: Só que tinha um probleminha na minha cama...
Você: Sério? O quê?
Rodrigo: Você foiembora, mas o seu cheiro ficoue isso foiuma
deliciosa tortura para mim...
Você: (Emoji de carinha ruborizada)
Rodrigo: Fora isso... (Emoji de carinha com coração nos olhos)
Rodrigo: Você tem atividades o dia todo hoje?
Você: Até o meio-dia. Por quê?
Rodrigo: Almoçareina casa de um amigo. Posso dizer a ele que
tenho uma companhia?

Pensei. Pensei... Que diferençateria eu ir à casa de um amigo


dele aqui em São Paulo? Na semana que vem eu irei embora e tudo
voltará ao normal... Nossa noite tinha sido maravilhosa, porém eu
não queria atropelar as coisas. Antes de responder preferi me
assegurar e informar ao mesmo tempo...

Você: Somos amigos, lembra?


Rodrigo: Sim.
Rodrigo: Amigos também almoçam, sabia?
Você: Rsssss. Certo. Onde fica?
Rodrigo: Tem como você dispensar o motorista? Eu passo aí e te
pego...
Você: Pode ser. Às 12 horas e 15 minutos.
Você: Por favor
, não entre! Desculpe...
Rodrigo: Sem problemas... Até.
Você: Até.

Senti um aperto no peito por agir assim, mas foi tantotempo


sendo coagida que agora sair do padrão me parece desconcertante.
Ele com certeza não merecia isso. Fui até o espaço da empresa e
encontrei com o senhor Benedito que estava se assegurando da
mesma coisa que eu: estava tudo em ordem. Não sei se fiz bem,
mas avisei-o que o senhor Scheffer estava na cidade, pelo menos
ontem estava.
— Ele me avisou, Sabrina — respondeu o senhor Benedito
com educação.
— Já estou indo. Terei visitas para o almoço... — ele deu um
passo em falsoe olhou para mim. — Gostaria de almoçar em minha
casa? Geralmente os almoços lá são bem animados... —
completou.
— Agradeço o convite, senhor Benedito. Mas um amigo me
convidou para o almoço... — falei um tanto envergonhada.
— Melhor assim, só queria garantir que não ficassesozinha —
eu imagino muito bem quem queria ter aquela garantia também.
Contrariando o que aconteceu nos outros dias, a palestra
terminou mais cedo hoje. Fui até o espaço da SSB e liberei a Beatriz
e o Henrique que trabalhavam esta manhã. Apaguei as luzes da
maquete e do letreiro, guardei uns papéis que estavam na mesinha
e fui esperar o Rodrigo lá fora. Como ele ainda não tinha chegado,
esperei por ele sentada em um banco de madeira que tinha na
frente do pavilhão.
Aproveitei esse momento para colocar os pensamentos em
ordem... e agora? Qual será o meu comportamentocom o Rodrigo?
Chego e beijo a sua boca como se fossemos namorados? Ou dou-
lhe um beijo no rosto e ignoro a noite que tivemos? Eu tinha receio
de dar alguma esperança para ele e depois não querer mais...
Apesar da noite maravilhosa que passamos juntos eu ainda não me
sinto pronta para assumir, seja lá o que for com ele na frentedos
outros. Quando o carro parou e eu vi que era ele no banco de trás,
incorporei a discípula de Scheffer e fingi descaradamente que nada
entre nós tinha acontecido.
— Olá, tudo bem com você? — cumprimentei-o dando um
rápido beijo no rosto. — Tudo bem? — falei em direção ao
motorista, que respondeu com educação.
— Tudo, e com você? — Ele respondeu um tanto
desconcertado.
— Tudo, também. Aonde vamos? — eu queria conversar para
não termos que lidar com o desconforto que o silêncio trazia.
— Vamos almoçar na casa do tio do João Victor. Conheço-o
há anos e toda vez que venho para cá damos um jeito de nos
encontrar. Ele e a sua esposa são muito acolhedores. Você vai
gostar deles.
— Fica muito longe daqui? — eu continuava com o plano de
mantermo-nos conversando...
— Ele mora na Vila Mariana. Uma hora mais ou menos...
algum problema? — fez a pergunta olhando em minha direção.
— Tudo certo — devolvo o olhar com um sorriso sem graça. O
único problema será arranjar conversa para todo esse trajeto.
Eu estava enganada. A viagem passou rápido. Conforme os
lugares que íamos passando ele ia me contando histórias.
Geralmente o João Victor estava envolvido também...
— Você já morou aqui? — questionei abismada com a
quantidade de histórias.
— Não, nós vínhamos nas férias. Pintávamos e bordávamos e
depois íamos embora. Quando a gente voltava de novo, no ano
seguinte ninguém lembrava do que a gente tinha aprontado... — deu
uma risada saudosa.
Capítulo 53
O carro parou em frentea uma casa térrea, que ocupava toda
a frente do terreno, a única passagem era a entrada da garagem
que tinha uma grade que abria verticalmente. Rodrigo tocou o
interfone e conversou com uma voz identificando-se e o grande
portão foi aberto. Ele entrou na casa sem a menor cerimônia.
Cumprimentava com intimidade quem ia encontrando e me
apresentava como “Sabrina”. Uma ou outra vez eu ouvi as palavras
“minha amiga”, que indicava que ele tinha entendido o meu recado.
Quando chegamos à cozinha uma senhora muito acolhedora
veio nos receber:
— Dona Tereza, essa aqui é a Sabrina — Rodrigo falou, dando
um beijo estalado na bochecha da mulher.
— Sabrina, essa aqui é a dona Tereza. É ela quem manda
aqui.
— Não acredito que você já chegou fazendointriga Rodrigo —
uma voz de homem foi ouvida vinda de uma janela aberta.
— Vamos lá fora — Rodrigo convidou. — Você vai adorar
conhecer o tio Bene.
Saímos da cozinha e fomos em direção a um quintal com uma
churrasqueira. Quatro crianças brincavam de pega-pega. Rodrigo foi
se aproximando e continuava o processo de cumprimentar e me
apresentar. Quando chegamos bem próximo à churrasqueira ele
chamou atenção de um homem que estava de costas:
— Tio Bene, olha quem eu trouxe para você conhecer... — o
homem se vira e eu quase tenho um troço.
— Senhorita Andrade, mudou de ideia? — o senhor Benedito
me questiona animado.
— Mundo pequeno — foi a única coisa que eu consegui
responder.
— Vocês se conhecem? — Rodrigo fez uma cara de espanto.
Não consegui decifrar pela sua fisionomia, se estava
realmente espantado ou se sabia exatamente o que estava
acontecendo.
— Trabalhamos para a mesma empresa — informeiem estado
de choque, observando quem se aproximava.
— O João está aqui? — Rodrigo questionou parecendo uma
barata tonta.
— Não, Rodrigo. Esse é o senhor Scheffer. O meu patrão —
respondi parecendo estar anestesiada.
O senhor Scheffer se aproximou de onde estávamos, olhou
para mim e me cumprimentou como de costume: “Senhorita
Andrade”, fazendo um movimento com a cabeça. Chegou perto de
Rodrigo e falou:
— Senhor... — ele fez um movimento com os olhos como se
tentasselembrar o seu sobrenome, com uma expressão de derrota
continuou. — Rodrigo, não é? — disse segurando firmementea sua
mão.
A troca de olhares que se deu, me fez lembrar aqueles filmes
antigos em que os homens apertam as mãos, contam cinco passos
na direção oposta e depois atiram. Foi Rodrigo que quebrou o gelo.
— Cara, vocês são muito parecidos mesmo... — não pude
deixar de perceber o constrangimento do meu chefe.
— É o que dizem — respondeu o senhor Scheffer dando
aquele assunto por encerrado.
— Escute aqui mocinha... — o senhor Benedito chamou a
minha atenção. — As mulheres estão lá dentro de casa. Essa casa
tem muitas regras: os homens cuidam da carne, as mulheres do
acompanhamento e quem perder no Poker lava a louça, está certo?
— Certo, quem sou eu para questionar as regras da casa!? —
disse rindo e me dirigindo à cozinha.
Pedi licença e entrei em casa novamente. Dona Tereza era
uma querida. Fiquei sabendo que ela e o seu “Bene” tinham um
casal de filhos, ambos casados e com um casal de filhos cada. Ali
conosco estavam Úrsula sua nora e Valeriana sua filha. Ofereci
ajuda e consegui umas batatas para descascar. Enquanto eu
trabalhava escutava a conversa delas...
— Mamãe, eu não entendo o que ele faz aqui... nunca veio —
Valeriana interrogava a mãe.
— O Valentin me disse que deve ser coisa do trabalho deles...
— arriscou Úrsula.
— Meninas, ele é nosso sobrinho. Tem todo o direito de estar
aqui — pontuou dona Tereza. — Eu sei que é estranho ele aparecer
assim de repente, mas nossa famíliadeve o emprego do Bene a ele
e o mínimo que devemos fazer é recebê-lo bem.
Por algum motivo elas pararam com aquela conversa,
trocaram alguns olhares e lembraram que eu estava ali.
— Sabrina, é esse o seu nome, não é? — dona Tereza
puxando conversa. — Onde conheceu o Rodrigo?
— Somos da mesma cidade. Ele acompanhava a dona Judite
no salão em que eu era manicure e...
— Vocês começaram a namorar? — continuou ela me
interrompendo.
— Não — não pude deixar de dar risada. — E... um dia nos
encontramos em um baile, daí...
— Começaram a namorar? — dona Tereza insistia.
— Credo mãe, deixa a moça falar... — advertiu Valeriana.
— Desculpe, querida.
— Não tem problema. Mas vou adiantar essa parte para a
senhora, não somos namorados. Somos apenas amigos.
— Que tipo de amizade é essa que fazo rapaz atravessar três
estados para passar um final de semana? — dona Tereza parecia
inconformada.
— Não sei. Eu vim a São Paulo a trabalho... — fiqueisem jeito
com o questionamentodela. Tive receio de tentarexplicar muito e
acabar me complicando. Afinal, ele resolveu sozinho a sua vinda, eu
não tive participação nisso.
— Mamãe — a filha dela intervinha novamente. — Não ligue,
Sabrina, a mamãe é assim mesmo: intrometida.
— Credo, Val, só estou conversando com a menina... já chega
o outro que chegou aqui ontem à noite chorando... — revela dona
Tereza sem querer.
— O que houve, mãe? — agora Valeriana parece estar
interessada.
— Nada sua intrometida— dona Tereza responde do mesmo
jeito para filha.
— Tal mãe, tal filha mesmo... — provoca Úrsula com uma
risada maldosa.
— Sério, mãe, agora desembucha.
— Não fale para o teu pai que te contei... — dona Tereza
pede. — Vocês sabem que aquele louco do meu cunhado encheu a
cabeça do Victor Hugo com um monte de besteira, não é? Agora ele
se apaixonou e não consegue se libertar de tudo que prometeu para
o pai. — Ela suspirou pesarosa. — O Bene disse que é de cortar o
coração.
Eu estava parecendo uma porta ali. Elas literalmente
esqueceram a minha presença novamente e ficaram discutindo a
vida amorosa do tal Victor Hugo. Foi quando eu me dei conta do
nome do meu chefe: Victor Hugo Scheffer. Era dele que elas
estavam falando.

O almoço estava uma delícia. Eles conversavam, riam,


contavam histórias e era nítido que tinham duas pessoas sobrando
ali: eu e Scheffer. Não pertencíamos àquele lugar. Não tínhamos
compartilhado com eles nenhuma daquelas histórias. Volta e meia
eu lembrava a conversa das mulheres na cozinha. O que será que
ele tinha prometido?
Assim que o almoço terminou, a mesa foidesocupada e o jogo
de Poker começou. Pelo que percebi era um ritual simbólico. A
norma da casa indicava que todos tinham que participar. Cada um
pagava dois reais. Os dois que saíssem primeiro lavavam a louça.
Os outros que iam saindo ajeitavam o que mais precisasse.
Teoricamente quando o jogo terminasse tudo estaria limpo e
organizado. O primeiro e o segundo lugar dividiam o pote numa
proporção de 70/30 e não precisavam contribuir com a arrumação.
Estávamos na terceira rodada, quando oFlopfoiaberto eu tive
a impressão de que estava em uma cartomante:Rei de paus, Dama
de espada e Rei de espada. Qualquer semelhança com a minha
vida e a presença desses dois cavalheiros seria mera coincidência.
Eu tinha um Ás de paus, para dar uma limpada na mesa aumentei a
aposta. Um a um os oponentes foram saindo, até que chegou a vez
do Rodrigo que pagou, o tio Bene fugiu e o senhor Scheffer
aumentou. Paguei a aposta e o Rodrigo também. Agora o jogo era
entre nós três, mais uma carta é colocada na mesa: As de espada.
Eu estava com dois pares altos, sem titubearaumentei a aposta.
Rodrigo pagou e Scheffer também. Eu tinha impressão de que eles
não tinham carta nenhuma, só estavam me acompanhando. A carta
Riverfoi colocada na mesa e para minha alegria mais um As, isso
significava que eu tinha feito um FullHouse, ou seja, a quarta
melhor mão do jogo. Aumentei a aposta colocando quase todas as
minhas fichas, minha intenção era intimidá-los para que fugissem.
Rodrigo me surpreendeu:
—All-in, comigo é tudo ou nada. — Eu tinha a impressão de
que ele não estava apenas falando do jogo.
—All-in, eu pago para ver — o senhor Scheffer acompanha a
aposta.
—All-in — digo empurrando as fichas que sobraram para o
centro da mesa.
—Show down senhores — ordenou o Dealer, indicando que
mostrássemos as cartas.
Neste jogo vence quem consegue juntamentecom as cartas
da mesa ficar com as cinco maiores cartas. O Rodrigo tinha um Rei
de ouro, o senhor Scheffer um Rei de copa e eu venci com o meu
Ás de paus. Tirei literalmenteos dois da mesa empatados. Tio Bene
falou achando graça:
— Parabéns meninos, foi uma excelente jogada... mas sugiro
que agora continuem se divertindo lá na cozinha. Como é mesmo
aquele ditado? — ele colocou a mão na cabeça indicando que
estava pensando. — “Sorte no jogo, azar no amor...” Então
aproveitem.
Eu queria ser uma mosca para estar lá na cozinha vendo
aqueles dois lavando e secando a louça. Confesso que o jogo
perdeu a graça. Mas como uma pessoa que não é nem um pouco
competitivaeu lutei até o fim e com afinco. Dividi o pote com o tio
Bene.
Um pouco antes de terminarmos, os dois lavadores de louça
voltaram com cara de poucos amigos. Rodrigo como sempre curioso
me perguntou:
— Pode contar Sabrina, onde aprendeu a jogar desse jeito?
— No celular. Eu treino em um aplicativo — a risada foi geral.
— Tere... — seu Benedito chama a esposa.
— Lembra daquela moça que lhe falei... que faz as coisas
acontecerem, que bota ordem na casa... que está trabalhando
conosco esta semana? — eu olhei encabulada para dona Tereza. —
Aqui está ela: Sabrina Andrade.
Achei estranho escutar o meu nome completo tendo o senhor
Scheffer por perto. Por que será que o tio Bene fez isso?
Olhei para a matriarca daquela família querendo me enfiar
debaixo da mesa, ela olhou para mim com cumplicidade, como se
lembrasse de tudo sobre o Schef fer que havia falado perto de mim.
— Querida... — tive a impressão de que escolhia as palavras
— veja só como esse mundo é pequeno. Sempre que estiver em
São Paulo venha nos visitar... — ela oscilava o olhar entre Scheffer
e Rodrigo como se estivesse fazendo uma escolha. Ou quisesse
mencionar algo sobre eles. Depois olha para mim e me abraça,
parece que assim como eu, ela estava vendo o quanto é difícil
escolher.
Rodrigo se aproxima de mim e diz que precisa ir embora. Seu
voo sairá amanhã cedo e ele quer se organizar. Informo que irei com
ele. O senhor Scheffer anuncia que também irá embora e me
oferece um lugar em seu carro, alegando que iremos para o mesmo
lugar. O senhor Benedito percebe o meu impasse e avisa que levará
nós três embora. Nos despedimos das pessoas e caminhamos em
direção ao portão. Dona Tereza caminha devagar segurando em
meu braço, fazendocom que ficássemosatrás dos outros e começa
a me dizer:
— Desculpe os modos desta velha intrometida. — ela deu uma
risada, parou no meio do caminho e segurou as minhas mãos. — Eu
tive maior convivência com o Rodrigo, mas saiba que eu amo
igualmente os dois. Independentemente de quem você escolha, com
certeza você será feliz. São meninos maravilhosos, acho que você
sabe melhor do que eu... — deu uma risada como se a sua opinião
fosse dispensável, porém continuou. — Com ambos terá rosas e
espinhos. A vida é assim, não podemos ter tudo o que queremos, as
escolhas são necessárias. Segue o teu coração querida, nestas
horas a razão só atrapalha. — abraçou-me com carinho e assim que
me largou fui em direção ao carro do tio Bene.
Capítulo 54
Estava sentada na frentedo carro, ao lado do tio Bene. Achei
muito desconcertante ficar com um atrás enquanto o outro estava na
frente. Nenhum dos dois fez objeção em relação a isso. Refleti
sobre como esse dia tinha sido maluco. E da incrível coincidência de
estarmos os três lá. O Rodrigo que não era da família todo cheio de
intimidade e o senhor Scheffer que era do mesmo sangue que o
deles, comportava-se como um estranho no ninho.
Escutei um sinal sonoro vindo da minha bolsa. Eu já sabia o
que era: hora de tomar anticoncepcional, eu faziaisso devido a uma
fase de irregularidade hormonal que eu tive. Tinha ficado com o
rosto cheio de espinhas e essa foi a alternativamais fácil. Desde
então todos os dias no mesmo horário o meu celular me lembrava
que eu deveria tomar a pílula. Porém quando eu esquecia algum
comprimido eu não dava muita importância, afinal a minha
preocupação era apenas estética. Registrei mentalmente que
quando chegasse ao hotel teria que tomar o comprimido e continuei
deixando os pensamentos divagarem...
Lembrei agradecida como o Rodrigo entendeu a situação em
que eu me encontrava e não tentounenhuma intimidade comigo. O
senhor Scheffer me dirigiu a palavra poucas vezes, acredito que
estava respeitando a minha privacidade, conforme eu havia pedido.
Chegamos à frentedo hotel em que Rodrigo estava. Este saiu
do carro após apertar a mão de Scheffere tio Bene. Abriu a porta do
lado em que eu estava e falou:
— Você pode sair do carro para nos despedirmos, Sabrina? —
eu não acreditei que ele estava fazendo aquilo. Saí do carro
contrariada, torcendo para que aquilo terminasse logo.
— Você poderia entrar... Para repetirmos o que fizemos
ontem... — sugeriu baixinho no meu ouvido.
— Não posso. Já está tarde... Por favor, entenda! — supliquei
para ele, que me abraçou e me deu um beijo estalado no rosto.
Ele fechou a porta assim que eu já estava sentada no banco
do carro novamente, olhou para dentro encarando o senhor Scheffer
e sorrindo para o tio Bene, este virou a chave na ignição e
prosseguiu dizendo um tanto constrangido:
— Espirituoso esse Rodrigo, muito espirituoso... — nós dois
não nos atrevemos a responder.
Chegamos ao nosso hotel. Tratei de me despedir do tio Bene
com um beijo e um abraço e saí do carro rapidamente. Fiquei em
um impasse: sair correndo para o quarto ou esperar o senhor
Scheffer e subirmos juntos. Com certeza a minha vontade era a de
fazer a primeira opção, mas por um momento lembrei que sou
adulta e que deveria encarar as coisas de frente.Ele não demorou
muito. Caminhamos lado a lado até o elevador, que por sorte já
tinha chegado. Subimos em silêncio até o andar do nosso quarto.
Eu não entendia o motivo do nosso aparente desconforto,as
coisas tinham ficado nítidas, ele não podia dar o que eu queria. Eu
estava tentandoseguir em frentee conhecendo o Rodrigo... Não
está tudo certo desse jeito?Não. Não estava.O ar denso que tinha
naquele elevador era garantia disso. Chegamos à porta dos nossos
quartos.
— Você tem uma ótima família. — afirmei enquanto abria a
porta do quarto com o cartão.
— Também achei. — Ele confessou com um sorriso tímido.
Retribui o seu sorriso e já estava entrando no meu quarto
quando ouvi:
— Você pode vir aqui para nos despedirmos? — sua voz saiu
um tanto abafada. Eu não estava acreditando no que ouvia. Ele
estava me disputando com o Rodrigo veladamente. Que tipo de
coisa isso significava?
Fiquei parada em sua frente.Fiz um movimento para dar-lhe
um beijo no rosto e para minha surpresa, ele me abraçou. Ficamos
parados ali daquele jeito não sei por quanto tempo, trocando o calor
dos nossos corpos, nossas inseguranças e incertezas. Pude de
olhos fechados inalar o seu cheiro, que era bom mesmo após um
dia cheio. Comecei a ficar um pouco incomodada, a química entre
nós era evidente e eu não sabia se queria continuar com o que quer
que fosse que estivesse acontecendo ali. Mexi-me um pouco. Ele
me soltou e com um beijo em minha testa disse:
— Boa noite, senhorita! — ai meu Deus!!! Os jogos iam
começar de novo?
— Boa noite, chefe. — falei com um olhar sensual.
Como que uma pessoa consegue dormir depois de um dia
como esse? A adrenalina corria pelo meu corpo como se estivesse
em uma maratona. Não pude deixar de ligar para minha tia e contar
os últimos acontecimentos. Ao contrário da dona Tereza ela me
aconselhava em usar a razão.
Eu me sentia naqueles desenhos animados que tem o bem de
um lado e o mal do outro. Após o fimdaquele contratoentre mim e o
senhor Scheffer, minha tia nutre por ele certa antipatia. Tenho a
impressão de que a imagem que ela faz dele nunca o colocará ao
meu lado. Pensei em contar as novidades que ouvi sobre as coisas
que o pai lhe disse e as promessas feitas, informações, que
confesso eram bem vagas, mas eram o início da esperança que eu
tinha de entender esse homem. Com a maior certeza do mundo
minha tia me diria que o amor faza gente ver só o que a gente quer.
O problema é que eu estava tentadaa seguir o que o meu coração
dizia.
Nós ainda estávamos conversando quando ouço a batidinha
na porta. Atendo, porém, sem abrir muito a porta, pois estou com a
mesma camiseta confortávelque dormi no dia anterior. Peço licença
ao meu vizinho e me despeço de minha tia:
— Agora eu preciso desligar. Pode deixar. — respondi a ela
que sugeriu que eu me cuidasse. — Faça uma ótima viagem
amanhã. — desejei à tia Nice que irá até Porto Alegre comprar
produtos novos para o salão. — À noite a gente se fala e daí você
me conta as novidades, certo? — Beijo. Você também.
Voltei a minha atenção à porta que estava semi-aberta.
Chamei a atenção do meu chefe:
— Senhor Scheffer, desculpe fazê-lo esperar. — fiquei um
tanto desconcertada com isso.
— Eu entendo. Deve ser muito frustranteficar longe do
namorado tanto tempo... — ele afirmoumagoado olhando no relógio
ainda em seu pulso. — Uma hora.
— Namorado? Eu não tenho namorado? — dei uma risada e
entendi o que dizia. O Rodrigo também viajaria amanhã, ele deduziu
que eu estava falando com ele.
Eu não precisava fazer isso. Mas achei melhor fazer. Peguei o
meu celular e mostrei para ele a ligação recém encerrada com
minha tia. Ele ergueu a sobrancelha e concluiu:
— Nossa! Entendi tudo errado, não é?
— É o que parece. — respondi pensativa. Eu queria falar
alguma coisa que permitisse que conversássemos mais um pouco.
— E se o Rodrigo fosse o meu namorado? Isso seria um
problema? — arrisquei.
— Pode ser que sim. Pode ser que não. Você que decide
isso... — Ele respondeu vagamente.
— Percebo que o senhor fica diferentequando ele está por
perto. Não gosta dele?
— Digamos que nós dois queremos algo que só um poderá
ter... — respondeu me encarando.
Eu estava numa posição muito desajeitada em relação à porta,
com a cabeça para fora e corpo para dentro, mas eu não iria perder
a oportunidade.
— Posso saber o motivo da disputa? — questionei atrevida já
sabendo a resposta, mas eu precisava ouvir isso.
— Você. — ele respondeu sem titubear. — Está sem roupa?
— ele perguntou ao ver o meu desconfortoenquanto me escondia
atrás da porta.
Pedi licença e disse que já voltava. A desculpa foi colocar
outra roupa, só que na verdade eu queria um tempo para pensar na
resposta dele. Coloquei uma bermuda jeans, fiz um nó na lateral da
camiseta, respirei profundamente algumas vezes e abri a porta que
nos separava. Ele continuava lá, em pé, no mesmo lugar. Com o
intuitode manter distância fiquei dentro do meu quarto sentada, ao
pé da cama. O meu chefe dá um passo à frentee se apóia no
caixilho da porta em minha direção.
— Não entendo. — respondo retomando a conversa. — Em
nenhum momento achei que isso fosse uma disputa... — blefei. —
Ontem, quando pediu que eu ficasse... — olhei para ele com
tristeza. — Não deu nenhum motivo para me fazer ficar .
Ele fez uma massagem com as mãos na direção das
têmporas. Suspirou algumas vezes e deu um murro na parede que
encontrou à sua frente.
— Eu não posso... Não entende? Eu não posso... — estava
visivelmente abalado.
— Talvez se você me explicar eu entenda... — provoquei. —
Quer conversar outra hora? — sugeri vendo o desespero dele.
— Me promete uma coisa? — ele veio em minha direção e
ficou de joelhos. — Que você vai se afastar do Rodrigo...
— Você está sendo muito egoísta. — eu queria provocá-lo. —
A minha opinião não importa? Fique sabendo que eu gosto de sair
com o Rodrigo, ele tem sido um bom amigo...
— Gosta? — ele ficou perplexo e reagiu como se eu dissesse
que a gente iria se casar... Tinha ignorado completamentea palavra
“amigo”.
— Senhor Scheffer, que fundamentotem eu me afastardo
Rodrigo se o senhor não quer nada comigo? Nem pelo nome
podemos nos chamar? Isso é muito estranho, impessoal... Depois
tem tudo o que houve...
— Eu sei. Tenho pouco a te oferecer , não é?
Calei. Ele tinha tudo. Tudo o que eu queria e precisava. Mas
por algum motivo ele me omitia informações. Novamente as
palavras do Rodrigo: “casado e gay” vieram a minha mente, não
hesitei:
— O senhor é casado? Tem outra pessoa?
— Não.
— É g-gay? — eu não acreditava que eu estava perguntando
isso para ele.
— É isso que você está pensando de mim? — em seu rosto
uma mistura de incredulidade e diversão.
— Só sai com mulheres pagas, não repete acompanhantes,
nada de compromissos... — senti que se insistisse nisso talvez ele
me contasse alguma coisa. — Muito provável que queria vender
uma imagem... Nossa!!! Como não havia pensado nisso antes... —
eu falava mais para mim do que para ele. Lembrei que o Leo me
contou que já fez coisas desse tipo também. — E teve também... —
engoli em seco. — Aquela vez... A nossa vez. Frio. Indiferente.
Rápido... Você faz tudo isso para esconder sua... — não consegui
terminar a frase.
— É o que parece. — respondeu exatamentecomo eu havia
feito no início de nossa conversa.
— Desembucha. Se eu terei que virar uma freira. Não é justo
que eu saiba pelo menos o motivo?
Capítulo 55
Ele entra no meu quarto e deita-se na cama com uma
naturalidade que me dá medo. Eu não tinha a menor ideia do que
faríamos agora ou o que ele me falaria. As duas opções me
deixavam aflita. E ele começou:
— Meus pais se separaram. Pelo que meu pai me contou,
minha mãe traiu ele. Ela escolheu o meu irmão e nos abandonou.
Ela nunca quis saber de mim. — eu escutava com atenção essa
história, e sabia que a dona Judite não tinha o menor perfil para ter
feito isso. — Fui criado como homenzinho desde cedo. Nunca
tivemos convívio familiar, amigos ou coisas do tipo. Pelo que vejo
agora, meu pai fez uma bolha para nós dois. Quando fiquei
adolescente ele me levava aos bordéis e essa foi a forma que ele
me disse ser a correta de conviver com as mulheres: pagando. —
ele olhou nos meus olhos, eu estava sentada no mesmo lugar na
outra extremidade da cama encarando-o. — Confesso que isso foi
muito conveniente até eu conhecer você.
Ele fez uma pausa, foi até o frigobar e pegou uma garrafa de
água. Tomou alguns goles. Sentou-se novamente no mesmo lugar.
— Foi aí que as coisas complicaram para mim... Durante todos
os anos em que vivemos juntos, meu pai me fez prometer várias
coisas: que eu nunca me apaixonaria, que não me envolveria
seriamente com nenhuma mulher, que nunca me casaria e que eu
não deixaria que nenhuma mulher me rejeitasse. Ou seja, eu viveria
a vida que ele viveu. Foi um plano perfeitoaté que eu te vi, linda,
naquele vestido vermelho.
Como já tinha acontecido outras vezes eu mostrei um
desconforto mudando a minha posição.
— Imaginei que fosse só uma transa e estaria tudo resolvido.
Foi então que o Velazquez veio com aquele contratoe fomos aos
poucos aproximando-nos... Conhecendo-nos. Você foi a mulher que
eu mais tive contatoem toda a minha vida. Isso deveria ter sido a
minha libertação, mas foi a minha prisão. Toda vez que olho para
você me lembro de cada uma das promessas que fiz a meu pai e
me martirizo por não poder quebrá-las...
Ele olha para mim como se estivesse pensando ou esperando
uma resposta, como não falo nada, ele continua com a sua história.
— A cada dia eu estava me envolvendo mais com você... Foi
aí que eu comecei a propor que “brincássemos”, eu estava me
divertindo muito e percebi que mesmo tímida você gostava também.
Até que eu notei que você parecia estar se apaixonando por mim.
Isso eu não podia permitir. Eu poderia abafar o que eu sentia. Mas
eu não suportaria te fazer sofrer. Comecei a me afastaraos poucos,
pois eu nunca poderei corresponder às suas expectativas.
Agora quem levantou para beber alguma coisa fui eu.
— Naquela noite que tivemos... Você sabe... Eu fingi. — uma
dor em sua expressão. — Se eu agisse da forma que eu queria,
com o desejo que eu tinha, com certeza eu quebraria as promessas
e seria o fimpara mim. Eu nunca iria me perdoar. Meu pai nunca iria
me perdoar. Fiz aquilo também para que você me odiasse e visse o
canalha filha da puta que eu era. — com uma expressão de derrota
ele se levantou e caminhou em direção à porta. — Agora você já
sabe a maior parte da história...
Saiu do meu quarto, fechou as duas portas e me deixou ali
sozinha com todas aquelas informações borbulhando na mente.
Rolei de um lado para o outro na cama buscando pelo sono, que
não veio.
Sentei e encostada à cabeceira da cama, no escuro mesmo,
comecei a refletir. Constateicomo essa história era bizarra: Que tipo
de pai fariaisso com um filho? Pensei na imagem do tio Bene, irmão
do pai do Scheffer, um senhor amoroso, divertido e educado,
imagino que ele não seria capaz de pedir uma coisa dessas para a
Valentina ou para o Valentin. Eu compreendo que ele estava com o
ego ferido, tinha sido traído, mas um filho... Os pais têm que
protegê-lo... Talvez em sua mente insana essa era uma forma de
proteção... Compadeci-me do sofrimentodesse homem, que de tão
amargurado privou os filhos um da convivência com outro, abriu
mão de um filho e também ceifou Scheffer e a mãe de uma relação
sadia. Eu sabia perfeitamenteo tamanho do sofrimento que ele
sentia em relação a isso e sua dor era inimaginável.
Eu fui privada de conviver com meus pais, não tive maiores
problemas em relação a isso, pois vovó, tia Nice e mais tarde o Leo
preencheram muito bem essa função. Sei que meu pai está vivo.
Nunca tive vontade de procurá-lo. Se não fosse esse momento de
reflexão agora acho que nem me lembraria dele, mas o Schef fer não
precisava ter passado por isso. A briga era entre os pais dele...
Ahhh... Senhor Scheffer, Scheffer, Scheff, Victor Hugo, o que
eu faço em relação a você agora? A única coisa que ele pediu foi
para eu me afastarde Rodrigo. Mas e depois? O que faremos se
meu chefe não tem como se livrar dessa promessa? Amaremo-nos
à distância mesmo estando tão próximos? Que tipo de piada é essa
que a vida está nos contando?
Lembrei que em algumas ocasiões eu e a tia Nice fomosa um
centro espírita com uma das meninas do salão. Alguns médiuns
faziampsicografiasde entes falecidos,mas eu tinha totaldescrença
nisso. Ri pensando que poderia ser uma solução interessante,mas
não, de maneira nenhuma eu usaria desse recurso para resolver
esse problema. Vai que o homem ao invés de liberá-lo da promessa
ainda acrescenta mais algumas exigências?
Por algum motivo me senti mais calma. Tive vontade de fazer
uma oração por todas as pessoas envolvidas nessa história:

“Que Deus em sua imensa sabedoria, dê discernimentoa


todos nós, vivos e mortos. Que tenhamos consciênciade nossa
missão neste mundo. Senhor que minha mãe esteja em paz,
juntamente com minha querida avó. Que o pai do senhor Scheffer
seja tocado onde estiver e se arrependa de tudo que fez. Eu me
compadeço dele e ofereço-lheo meu perdão. Querido Deus, cuida
do meu amor, amenizaa sua dor e me ajude a suportar a minha.
Dê-nos discernimentoe a sua benção. Eu confioem vós e em suas
mãos eu entrego a minha vida. Que assim seja!”

Bem mais tranquila eu adormeci.


Como tinha feitona semana anterior eu me arrumava, tomava
café, voltava ao quarto para fazer a higiene e ia com o Francisco
para o evento. Essa semana não seria diferente, não estava
disposta a treinar. Parecia que tinha perdido o embalo, estava muito
cansada física e emocionalmente, acredito pelo grande tempo que
perdemos dentro do carro com deslocamentos, agora eu entendi
quando o senhor Scheffer me contou que esse foi um dos motivos
de ter mudado daqui; Além do mais, as revelações que Scheffer me
fez até o momento não me davam um minuto de sossego.

Estava tudo em ordem no stand, as visitas diminuíram


consideravelmente, pois agora não somos mais novidade, levando
em consideração que as pessoas que circulam são sempre as
mesmas.
O nível das palestras continua muito bom. A cada palestrante
que falaeu ficocom aquela sensação: “Como foique eu não pensei
nisso antes...” Não posso deixar de pensar nas revelações que o
senhor Scheffer fez ontem à noite. Minha cabeça chega até a doer
tentandoencontrar uma saída para esse impasse. Outra coisa que
não me deixa em paz são as atitudesdele em relação a mim. Em
nenhum momento me deu autonomia para fazer minhas próprias
escolhas e não percebeu que independente do que ele fez, das
suas intenções, eu sofri, e sofro muito também.
— Com licença, moça tem alguém sentado aqui? — Eu ergo o
meu olhar apenas para confirmar do que se tratava.
— Claro, senhor Scheffer. Deve ter gasto uma fortunapor este
lugar, pode sentar-se. — eu estava um tantosem paciência para
gracinhas.
— Estive pensando... Como gostaria de me chamar? — ele
cochicha em meu ouvido. Sério que ele ia querer falar sobre isso
agora? Justamente quando o Brian Requarth iria falardo seu projeto
com um portal on-line de compra e vendas de imóveis, que eu
estava bem curiosa em ouvir.
— Senhor Scheffer está excelente. — respondi brevemente. —
Mas se mesmo assim quiser conversar sobre isso... Pode ser
depois? — olhei para trás me desculpando com uma mulher que
estava incomodada com nossa conversa.
Ele disse que sim com a cabeça e começou a prestar atenção
na palestra também. Eu senti que ele estava diferente,mais leve e
descontraído. Era como se ele estivesse mais tranquilo pelo fatode
ter me contado parte da história. Eu tinha até medo do que mais
estaria por vir.
Almoçamos no pavilhão. Tinham vários containers
transformadosem fast-foods , por sorte tinha um que servia saladas
com carne grelhada, que foi a nossa opção. Não conversamos
sobre nada íntimo como eu imaginei que iria acontecer. Estamos
concentrando nossa atenção na apresentação do final de semana.
Esboçamos algumas ideias que colocaremos no computador à
noite.

Às 19h30 e estamos indo em direção ao hotel. Continuamos


conversando sobre os detalhes da apresentação e sobre algumas
coisas da empresa que surgiram de última hora para resolver.
Estou exausta e resolvo jantar antes do banho. Meu chefe faz
o mesmo e me acompanha ao restaurante.Agora estou em meu
quarto terminando o banho, colocarei uma roupa confortávele vou
conferir alguns e-mails que tem que ser encaminhados hoje. O
senhor Scheffer ficou de esboçar o que conversamos, para que nos
dias seguintes eu possa montar a apresentação.
Coloco um vestido soltinho florido, muito similar a uma
camisola. Seleciono em meu celular uma playlistaleatória com
músicas sertanejas e sento-me à mesa que tem no canto do quarto.
Começa a tocar “Lance Individual” do Jorge e Mateus: "Eu entro no
seu quarto, mas não entro na sua vida!"Observo a porta do quarto
conjugado que nos separa e concluo que não existe música mais
adequada para o que está acontecendo conosco.
Concentrada em meu trabalho, não faço ideia de quanto
tempo eu estou ali. Escuto o meu celular indicando uma mensagem,
verifico o que é e a música é interrompida.
Chefe: Boa noite senhorita, já terminou?
Você: Ainda não. Quase...
Chefe: Posso tirar uma dúvida?
Você: Se for rápido... Meu chefe solicitou
que eu resolvesseessas
pendências o quanto antes...
Chefe: Que chefe exigente você tem... Estou indo aí... Abra a porta.

Ao final da mensagem a playlist continua a tocar. Enquanto


caminho até a porta refletindo.Já estava demorando. Ele tinha esse
costume de me perguntar coisas óbvias... Imagino que para nos
aproximarmos... Dei um suspiro e lamentei em voz alta:“Para quê?”
Abri a porta e ele já estava lá, com seu notebook embaixo do
braço. Ele foi em direção à mesa em que eu estava trabalhando.
Abriu-o e ficou esperando por mim. Eu olhava incrédula o que ele
estava fazendo. Em que momento a intimidade entre nós evoluiu
desta forma? Ontem ele deitou na minha cama, hoje entra de “mala
e cuia” e se aloja em minha mesa de trabalho. Imaginei que seria
uma pergunta na porta como sempre. Aproveito que estou mais
longe e observo como está vestido: uma camiseta básica, uma
bermuda de academia e um chinelo. Não parecia ter treinado, pois
exalava um cheirinho de banho tomado. Fui até onde estava e fiquei
em pé ao seu lado.
— Qual é a sua dúvida? — perguntei com impaciência.
— Não estou conseguindo alterar o tamanho dessas imagens
para ajustar o texto.— respondeu ele como se disso dependesse a
salvação do planeta.
Ouço o alarme de meu celular tocar, indicando o horário de
tomar minha pílula. Peço licença, vou até o banheiro, engulo o
medicamento e volto avisando:
— Senhor Scheffer, pode deixar, quando acabar eu façoisso...
Como sempre fazemos. — Essa parte da formatação e layout
sempre era eu que cuidava.
— Eu queria adiantar para você Sabrina... Senão poderá faltar
tempo. — ele justificou-secom a maior naturalidade. Senti um soco
no estômago no exato momento em que ele falou meu nome. Eu só
tinha ouvido ele me chamar assim naquela noite, uma noite que eu
queria que nunca tivesse existido.
— Por que isso agora? — questionei irritada.
— Isso o quê? Não facilitapara você se eu adiantar as coisas?
— Como eu te chamo. Como você me chama. Como nos
chamamos é o menor dos problemas que temos... E além do mais,
você me disse que chamar uma pessoa pelo nome era sinal que...
— Eu menti. — falou ele me interrompendo. — A verdade é
que eu não tenho contatocom muitas pessoas íntimas para chamá-
las pelo nome. Essa é mais uma das heranças que meu pai deixou.
Nem com o tio Bene tínhamos contato.
— Você conseguiu fazer com que eu odiasse o meu próprio
nome. Eu achei que você não me respeitaria por ter me chamado
assim... — a vontade de chorar que eu sentia estava ficando
incontrolável... Mas eu fui forte e continuei com a minha
constatação.— Eu ficoimpressionada em saber que na verdade, eu
não sei nada sobre você. — Acho que teremos que fazer um novo
jogo: Verdade ou Mentira. Não me surpreenderia se você usasse
apenas uma palavra dessas. — uma sensação de tristeza me
invade. — O pior não foi você mentir... Foi eu acreditar...
— Desculpe! — Ele levantou-se mantendo distância. — Eu
falei que não queria fazer você sofrer
...
— Senhor Scheffer, posso lhe dizer que o resultado foi
diferentedo que esperava... Fazer-me sofrer foi a única coisa que
conseguiu. E agora, quando eu estava seguindo em frente,quando
eu estava disposta a virar essa página... O senhor vem e desenterra
isso tudo de novo? — eu estava a ponto de explodir e chorar na
frente dele.
— Se não for pedir demais, eu gostaria de descansar agora,
pode ser? — falei indo em direção à porta e indicando que saísse.
Ele pegou o seu notebook, veio até à porta e me informou:
— Ontem, quando eu bati na porta eu queria te perguntar: Nós
vamos ao jantar por adesão que o evento está organizando? — meu
chefe indagou sem ter a menor noção de como mensurar as coisas.
Isso indicava que ele não fazia ideia de como eu estava me
sentindo.
— Se isso não me fizer sofrer, poderemos ir senhor Scheffer.
— respondi com ironia.
Eu coloquei uma das roupas esportivas que eu tinha trazido,
peguei uma garrafa de água e fui correr na academia. A impressão
que eu tinha é que eu poderia correr a noite inteira e aquela
sensação incômoda não diminuiria. Eu estava totalment e frustrada
por amar um homem mentiroso, complicado, complexado e sem a
menor noção das coisas. Eu entendia perfeitamenteque parte de
tudo isso não dependia dele, mas era o pacote completo. Fora isso
ainda tinha o restante da história, que ele afirmou que não tinha
acabado de me contar e as promessas, que não iriam ser
descumpridas.
Infelizmente, eu estava começando a concluir que o mais
sensato a fazer era me afastar. Pedir demissão começou a ser uma
ideia fixa em meus pensamentos. Não tem como ignorar tudo isso
com ele sempre por perto. Após uma hora de esteira eu continuava
com a mesma sensação de raiva e impotência. Só que uma coisa
tinha mudado. Eu estava cansada em todos os sentidos. Após uma
ducha rápida eu deitei e adormeci até o dia seguinte.
Capítulo 56
A rotina desta semana estava definida: passo nostand, assisto
uma palestra, almoço, mais uma olhadinha no espaço da SSB, outra
palestra, fecho o espaço e volto ao hotel. Vez ou outra meu chefe
aparecia e me acompanhava em uma ou outra atividade. Com a
presença dele aqui o senhor Benedito, ou seja o tio Bene, quase
não vinha mais.
Nossas noites estavam destinadas a trabalhar até umas 22
horas pelo menos. Precisávamos fazer isso para dar conta de tudo,
principalmente porque sexta-feiraera o jantar por adesão e sábado
seria a mesa redonda da qual o senhor Scheffer participaria. Um ou
outro assunto acabava surgindo em nossas conversas. Eu tinha a
impressão de que o senhor Scheffer aproveitava esses pequenos
momentos para que as “verdades” fossem ditas. Após o jantar, eu
só tinha tempo de tomar um banho, colocar uma roupa mais
confortável e ele vinha com seu notebook embaixo do braço.
Geralmente nossas tarefaseram distintas,mas, mesmo assim, ele
insistia em estar ali.
Confesso que eu gostava de tê-lo por perto, apesar de ser
estranho ficar com borboletas voando em minha barriga por tanto
tempo. Eu amo tanto esse homem, que parece que independente do
que ele faça, aos poucos a raiva e o ressentimento se dissipam.
No mesmo horário de sempre, o alarme do meu celular
dispara e eu faço como todos os dias e vou tomar a pílula no
banheiro. Meu chefe não deixa essa atitude passar despercebida:
— O que você faz todos os dias nesse horário?
— Eu tomo um remédio. — respondo sem graça, lembrando
da pergunta que ele tinha me feitona noite em que encerramos o
nosso contrato, se eu usava anticoncepcionais.
— Está doente? — ele insiste.
— Não.
— Para o que é então? — questiona meu chefe persistente.
— É um anticoncepcional. — revelo vencida.
— Tem tantomedo de engravidar assim? Que precisa colocar
um alerta no celular?
— Não. Na verdade eu uso para acne, essa é uma das
melhores formas de resolver isso, segundo a médica. — explico.
— Mas... Se você... Você sabe... — ele estava um tanto
embaraçado em sua pergunta. — Estaria protegida?
— Se evita gravidez também? — organizei a pergunta para
ele. — Sim. Evita. Segundo a médica, 99% de eficácia se eu não me
esquecer de tomar nenhuma.
— Hummmm... — ele respondeu pensativo.
— E você? Com essa história toda do seu pai... Já pensou em
ter filhos?
— Não penso muito nisso. Não vejo necessidade de me
preocupar com meus bens e o que será feitodeles depois que eu
morrer. Até passou pela minha cabeça uma vez contratar uma
barriga de aluguel ou adotar uma criança, mas como eu criaria um
filho sozinho? Com certeza isso está completamente fora de
questão.
Fico olhando para a tela do computador e pensando em como
deve ser vazia a vida dele. Além de sozinho agora, teria a solidão
como companheira pro resto de sua vida. Ele abraçou as condições
impostas por seu pai e em nenhum momento, pelo jeito, pôde ou
pensou em traçar as próprias metas, principalmente em se tratando
de sua vida particular e íntima.

No dia seguinte, eu comuniquei ao meu chefe que me


ausentaria do evento na parte da tarde. Eu queria sair para comprar
uma roupa para o jantar e optei por fazer as compras em um
shopping, desta formaeu já almoçaria lá também. Marquei o horário
com o Francisco e quando entro no carro me surpreendo ao ver que
ele já estava ocupado.
— Olá, senhorita, se importa se eu acompanhá-la? — ouço a
pergunta do meu chefe sem acreditar no que eu via.
— Por mim tudo bem... Só espero que tenha paciência, pois
eu nem sempre encontro o que quero rapidamente — já fui
avisando.
Almoçamos e começamos a nossa tarde de compras. Ele me
informou que também queria uma gravata. Mas fez questão que
primeiro comprássemos a minha roupa. O jantar pelo que tinha
entendido era bem informal, então não precisava ser uma roupa
glamourosa.
Todos os palestrantesestariam lá, eu estava empolgada em
encontrar pessoalmente as pessoas que davam voz às citaçõesdos
meus trabalhos de faculdade. Ele também estaria lá, meu chefe, eu
queria me sentir confiante o bastante para acompanhá-lo à altura.
Após entrarmos em umas cinco lojas e eu provar pelo menos
uns seis vestidos em cada uma delas eu gostei de um vestido. Ele
era bordô em um corte reto, bem acinturado e emoldurava o meu
corpo. Ele possuía um cinto na mesma cor com uma fivela dourada.
Precisei da ajuda da vendedora para fechar o zíper para mim, de um
jeito malicioso ela falou:
— Esse vestido só tem um probleminha querida... — disse
com um sorrisinho no canto dos seus lábios. — Você precisará de
uma ajudinha. Tanto para abrir, como para fechar... Mas creio que
isso não seja problema para você, não é? — Ela indicou com a
cabeça o local em que Scheffer estava sentado.
Eu já tinha gostado do vestido. Ele tinha caído muito bem em
mim. Achei que uma vingança a todas as vezes que tive que
arrumar a sua gravata até que cairia bem.
— Vou levar. — falei com a maior certeza que já tive na vida.
Quando saí do provador com o vestido nas mãos o senhor
Scheffer fez uma expressão de protestoe erguendo as mãos no ar,
como quem dissesse: “Por que não me mostrou como ficou?”Não.
Definitivamenteele só veria aquele vestido em meu corpo na hora
de fechar o zíper.
As lojas do shopping em que estávamos eram diferentesdas
de Gravataí. Aqui você poderia comprar tudo que precisasse em
uma única loja. Foi então que ele olhou para a vendedora e falou:
— Precisamos de acessórios, sapatos, um blazer, bolsa... O
que mais você tem? — neste momento ele e a vendedora fizeram
uma parceria perfeita.Um querendo comprar e o outro querendo
vender.
— Scheffer — pronunciei sob protesto.— Não precisa, eu só
vou comprar o vestido.
— De formaalguma, vai a um evento pelo trabalho, nada mais
justo que seu chefe arque com as despesas. — respondeu
determinado.
E assim ele fez,comprou tudo mais o que a vendedora trouxe.
“Esse blazer se esfriar... Esse lenço se tiver quente...” Ela foi
argumentando e empurrando produtos para ele. A única coisa que
protestei foi em relação à bolsa que estava grande demais.
— Não gostei dessa bolsa. Ela é muito grande. — Emiti minha
opinião negativa para desgosto da vendedora.
— Mas você precisa de uma bolsa. — meu chefe garantiu.
— Por que uma bolsa é tão importante assim? — indaguei
curiosa.
— Você precisa levar o celular... E... — ele fez uma pausa
antes de concluir. — Tem que cuidar da sua pele, lembra? — se as
circunstâncias fossem outras eu arriscaria dizer que ele estava
cheio de segundas e até terceirasintenções em sua fala.
— Então teremos que procurar uma menor. Em outra loja.
Certo? — olhei para a vendedora e garanti. — Por hoje é só
Amanda.
Não fiz a menor questão de olhar para a pequena fortunaque
ele havia gastado comigo. Algumas lojas mais e encontramos uma
bolsa menor e a gravata, que ele fez questão que fosse da
tonalidade do meu vestido. Eu tive a sensação de estarmos
revivendo os “velhos tempos” antes de consumarmos o nosso
contrato.A única diferençaera que antes eu escolhia as coisas em
um closetexclusivo e agora eu tinha o shopping todo se quisesse.
Meus sentimentosem relação a isso são tão contraditórios. Se
não tivéssemos entre nós os impedimentos das promessas feitasao
pai dele eu poderia estar pulando de felicidade e admitindo que
agora tudo daria certo. Mas ao relembrar do closet, lembro das
acompanhantes, recordo que ele falou que eu estava indo a um
evento a trabalho. Será que ele vai novamente “contratar”os meus
serviços e agir da forma fria com que me tratou antes?
Capítulo 57
Estamos no quarto do hotel cumprindo nosso ritual noturno. A
apresentação está praticamente pronta. Faltam apenas alguns
ajustes que rapidamente eu farei. E então, fim. Acabarão os serões
em meu quarto. Como eu sentirei faltadisso... Quebrando o silêncio,
meu chefe fala:
— Eu quero te contar o restante...— ele me olha por cima das
telas dos aparelhos que estão entre nós na mesa.
Eu concordo assentido com a cabeça.
— Depois que nós... aquela noite. — ele mostrou um
desconforto.— Eu tentei seguir em frentee esperava que você
fizesseo mesmo. Mas eu não consegui. Mesmo eu tendo estragado
a nossa noite, as lembranças que eu tinha do toque em sua pele, do
seu cheiro, do seu calor não deixavam com que eu saísse com outra
e me sentisse satisfeito.— ele fitavaos meus olhos, parecia que
queria ler os meus pensamentos. — Eu tive ciúmes de cada homem
que se aproximou de você e queria fazer qualquer coisa para afastá-
los. Por um bom tempo isso foifácil,porque eu tinha a impressão de
que você fazia o mesmo. Mas então... — pude sentir uma
insegurança em seu olhar. — Você recebeu aquele buquê de flores
e eu me senti completamente ameaçado. Após dois anos de
segurança eu estava te perdendo.
Pedi licença e fui até o banheiro. Eu precisava organizar a
minha mente. Eu estava preparada para o que ele iria me contar?
Será que por causa desse meu lance com o Rodrigo ele tinha
desistido? Voltei e sentei na cama olhando para ele um pouco mais
de longe. E ele recomeçou:
— Eu coloquei um segurança atrás de você...
— Você o quê?
— Na verdade um detetive.Eu precisava saber quem era o
cara que estava querendo te conquistar... — achei que isso só
mostrava o quanto ele era insano, porém não interrompi deixei que
terminasse sem julgamentos, para ver até onde iria essa história.
— Depois que eu soube que era o Rodrigo, isso não foi o
suficiente,eu precisava afastarvocês dois. O galho na cerca, a luz
apagada na aula de dança, essa viagem... Foram coisas que eu fiz
para atingir meus objetivos. Só que eu nunca imaginaria que ele
viria atrás de você. Que encontraria vocês dois na casa do tio
Bene... E que eu me sentiria tão mal a ponto de não saber o que
fazer.
— Eu estou sendo seguida aqui em São Paulo também? —
não pude deixar de conter a curiosidade.
— Não. Isso acabou — garantiu-me.
Eu olhava para ele e não conseguia acreditar. Como uma
pessoa pode fazer tudo isso em vão? Definitivamenteele era a
pessoa mais egoísta e egocêntrica que eu conhecia. É claro que eu
me sentia lisonjeada em ter um homem tão apaixonado por mim a
ponto de querer mudar o rumo das coisas. Ele brincava de ser Deus
só que diferente do todo poderoso tinham coisas que ele não
conseguiria prever ou evitar.
Scheffer me encarava seriamente e esperava uma reação a
tudo aquilo que tinha me contado. Eu não tinha a menor ideia do
que dizer a ele, dentro de mim, a única sensação que eu tinha era
de vazio. Um vazio tão grande que ocupava todo o espaço do
quarto, era como se eu não visse, não ouvisse e não sentisse nada.
Sem olhar na direção em que ele estava repeti a pergunta que
minha mente ditou:
— Por que você está me contando isso agora?
— Porque eu precisava te contar isso. E principalmente,
porque você precisava saber. Eu te fizum pedido, lembra? — Ele se
referia ao fatode eu me afastar do Rodrigo. — Quero que saiba,
antes de decidir, quem eu sou e o que fui capaz de fazer
.
— Tem mais alguma coisa? Que eu não saiba... Ou que eu
deva saber? — questionei ainda sem expressão.
— Eu te amo! O maior amor que eu já senti em minha vida.
Tudo o que fiz foi por desespero, por medo de te perder ou de
afastarvocê de mim. — Ele veio até onde eu estava e segurou as
minhas mãos. — Por você eu faço tudo, qualquer coisa...
— Até quebrar as promessas que fez? — indaguei notando
seu semblante mudar e uma lágrima escorrer pelo seu rosto.
— Ainda não. — afirma passando a mão em seu rosto e
levantando-se da cama. — Me dê mais um tempo, eu vou superar
isso.
— Senhor Scheffer, está tarde. Amanhã teremos um dia cheio.
Acho que agora devemos descansar. — ele caminhou em direção à
porta e antes que ele saísse chamei-o de volta. — Também preciso
de um tempo, para ver se eu me acostumo com tudo isso também...
— ele concordou com a cabeça e saiu.

Passamos o dia sem nos encontrar. Flashes de nossa


conversa surgiam e sumiam. Agora estava tudo perfeitamente
explicado: porquê os meus encontros com Rodrigo sempre
falhavam, eu cheguei a achar graça e confesso que até que gostei,
porque sempre que eu saía com ele era para tentaresquecer o meu
chefe e ele estava ali literalmente presente.
Não quero nem imaginar que tipo de “prova” esse detetive
utilizou e sinto um aperto no peito de imaginar o senhor Scheffer
observando uma fotoou um vídeo entre nós dois nos beijando, por
exemplo. Isso era mais uma prova de que além de louco meu chefe
era masoquista também.
Quando terminaram as atividades do dia fui para o hotel, já
deixando combinado com o Francisco o horário do seu retorno. Eu
estava pronta, só faltavaum detalhe: fechar a droga do vestido que
realmente exigia a presença de outra pessoa. Eu olhava para a
porta e encarava o relógio, dali a alguns minutos seria o horário
combinado com o Francisco. Eu repetia para mim mesma: “É só
bater na porta, ele te ajuda...”, mas eu não fazia ideia se ele estava
no quarto. A ousadia que senti quando a vendedora incentivou-me
desapareceu feito água no ralo. Comecei os questionamentos
novamente: Será que ele ainda vai a este jantar? O que mudou
entre a gente depois de ontem?
Foi então que tive a ideia de ligar para a recepção e pedir a
ajuda de uma camareira, que prontamente veio e me ajudou.
Quando nós duas saímos do quarto eu tenho a impressão de que os
meus pés saem do chão. Despeço-me da moça e agradeço,
olhando para o senhor Schefferparado à minha frentecom um terno
preto, uma camisa da mesma cor da gravata, só que mais clara.
Seus cabelos estavam minuciosamente ajeitados, a barba feitae
seus olhos penetrantespercorriam o meu corpo de uma forma tão
intensa que eu passei as mãos no vestido para conferir se eu não
estava pelada.
— Algum problema com seu quarto? — ele pergunta com
curiosidade.
— Não. Precisei de uma ajudinha com o zíper do vestido. —
respondi dando-lhe um sorriso inocente, mas lembrando que o meu
plano inicial era completamente diferente.

Quando chegamos ao restaurante, antes de entrarmos, eu


achei melhor explicar:
— Senhor Scheffer, não me leve a mal, todos os palestrantes
estarão aqui. Tem autores que eu admiro desde a época da
faculdade...Ficaria incomodado se eu fosse“tietar”alguns deles? —
Fiquei um tanto constrangida em ter que pedir isso a ele, mas esse
homem já tinha feitotantaloucura que eu não queria saber do que
mais era capaz.
— Absolutamentesenhorita, é uma moça descompromissada
que tem todo o direito de “babar” em cima das maiores autoridades
intelectuais em nossa área de trabalho. — eu não tinha entendido se
ele estava me dando carta branca ou se ele estava sendo irônico.
Com a dúvida pairando na minha cabeça entramos. Como o
senhor Scheffer participaria da mesa redonda no dia seguinte, tinha
direito a um lugar no espaço reservado para palestrantes. Para
minha surpresa ele já havia reivindicado um local para mim ao seu
lado. Na nossa frente havia um casal que trabalhava para uma
grande empreiteira nacional, na minha esquerda tinha um bonitão
que era CEO de uma construtora aqui de São Paulo, e por aí ia... O
presidente de uma incorporadora de uma rede de hotéis em cidades
turísticas, um professor de universidade na disciplina de
planejamento estratégico,entre outros. Eu dava pulinhos de alegria
internamentepor estar ali. O ambiente estava muito agradável, nós
jantávamos tranquilamente e conversávamos com as pessoas que
estavam ao redor.
Após o jantar as pessoas começaram a circular e conversar
em pé umas com as outras. Eu pedi licença ao senhor Scheffere fui
em direção à Giovanna Calisto, uma professora que ministrou uma
disciplina para o meu curso. Eu não a conhecia pessoalmente,
apenas pelos vídeos e troca de e-mails. Ela foi muito atenciosa,
afirmouque se lembrava do meu nome, elogiou o meu desempenho
no curso, mas não tirou o olho do meu chefe, que estava
conversando com outro palestrante. De repente ela me perguntou:
— Aquele homem que estava sentado ao seu lado... Você o
conhece?
— O senhor Scheffer? — confirmei um tanto incrédula.
— Sim, Scheffer, esse é o nome dele. — ela respondeu um
tantoansiosa. — Esse homem já fez tantascoisas... Você já viu o
espetáculo que está o stand da empresa dele... — ela continuava
falando e eu não prestava atenção em mais nada, só via três
garotas animadas conversando com ele, eu estava tão incomodada
com os ciúmes dele, que esqueci que teria que lidar com o meu...
— Licença. — eu falei para ela enquanto me dirigia ao
banheiro.
— Espera. Você o conhece?
— Não muito. — dei um sorriso tortocom a certeza de que
realmente não estava mentindo.
Conversei com mais alguns palestrantes. Procurei uma
posição em que eu não visse o que meu chefe estava fazendo ou
com quem estava falando.Um tempo depois senti sua mão em meu
ombro e um sussurro em meu ouvido:
— Já “tietou”o suficiente?Preciso informarpara o Francisco o
horário do nosso retorno.
— Sim, se quiser podemos ir — respondi aliviada.
Quando chegamos ao hotel cada um foi para a porta do seu
quarto. Fizemos um esboço de trocar um beijo no rosto, mas meio
sem jeito nós dois recuamos ao mesmo tempo.
— Boa noite, senhorita. — Schef
fer se despede.
— Boa noite chefe. — digo em resposta.
Capítulo 58
Victor Hugo Scheffer

Quando me deparei com o stand da empresa eu fiquei


orgulhoso e ao mesmo tempo impressionado. Eu tinha dito ao tio
Benedito que fosse solícito com ela, mas aquilo ali tinha passado
um pouco da medida. Independente disso, estava ótimo, não
poderia ter ficado melhor. Fico surpreso ao me deparar com dois
rapazes cuidando do espaço, sendo que eu tinha pedido ao meu tio
três mulheres e parecia que ele tinha arrumado três marmanjos.
Pelas perguntas que fiz a eles pareciam estar bem treinados, essa
danada sabia mesmo o que veio fazer aqui em São Paulo. Escuto
uma voz doce vinda atrás de mim:
— Senhor Scheffer? — Sabrina parecia não acreditar.
— Surpresa, senhorita Andrade? — não posso evitar um
sorriso em meus lábios. A saudade que eu sentia dela parece que
se multiplica agora.
— Esses são Tiago e Henrique. Estão nos ajudando nessas
duas semanas. — percebi o seu desconfortoao me apresentar os
dois. — Tem também a Beatriz, mas agora está na hora do almoço.
— uma moça, espero que seja um problema a menos.
— Tiago. Henrique. — aceno com a cabeça para eles
enquanto repito os seus nomes. — Vejo que tivemos um excelente
trabalho por aqui, senhorita Andrade. — Afirmo enquanto façouma
varredura no local.
— Quando pediu umas coisas emprestadas senhorita, não
imaginei que se referisse ao meu escritório todo e um projeto
milionário que ainda está em andamento... — afirmei cauteloso
ainda me lembrando de sua insatisfaçãoem nossa última conversa.
— Mas vou confiar na palavra. Prometeu que devolveria tudo não
foi? Não vai deixar a privacidade do meu escritório exposta aqui
para sempre, não é? — eu queria com esse comentário pontuar a
ela que tinha pensado a respeito do que havíamos conversado.
A terceira integrante da equipe chega, ela me olha com
admiração, porém para mim isso é indiferente. Minha única
preocupação é Sabrina, que neste momento demonstra estar um
pouco aflita.
— Senhor Scheffer, vou almoçar. Vai precisar do Francisco? —
Ela pergunta visivelmente querendo sair da minha presença.
— Vou. Quero que ele me leve ao hotel — respondo.
— Certo. Pode deixar que eu darei um jeito então. Àtarde nos
vemos?
— Espere — respondo caminhando em sua direção.
— Posso perguntá-la aonde vai? — questiono com receio.
— Pretendo almoçar no Mercado Municipal. Seria um imenso
desperdício vir a São Paulo e não conhecê-lo, não acha?
— Eu morei aqui. E não o conheço... — reflitome dando conta
de como estou desperdiçando a minha vida. — Alguma objeção se
eu for junto? Poderemos tirar a tarde de folga. O que acha? —
Arrisco impor-lhe a minha presença. Precisava mostrar a ela que eu
poderia ser uma boa companhia.
— Pode ser... — ela responde contrariada, acredito que cedeu
só porque estamos em horário de trabalho.
Apesar de bem popular, o local era interessante, segui a
sugestão dela e provamos um sanduíche de mortadela, que
comprovou ser mesmo delicioso. O local tinha tantoscorredores e
becos que a gente poderia se perder. Eu estava encantado com a
quantidade de grãos e temperos diferentesque tinha ali. Pode não
parecer, mas eu gosto de fazer alguns pratos elaborados. Nem que
seja para comer sozinho.
Eu estava feliz, apesar de olhar para ela e vê-la apreensiva em
alguns momentos. Para mim a tarde tinha sido perfeita,eu queria
fechar a noite com chave de ouro. Mas fui surpreendido com um:
"Até amanhã!" Tomei um banho, coloquei uma roupa informal,me fiz
de desentendido e bati na nossa porta compartilhada. Fui recebido
por uma Sabrina toda arrumada: usava uma calça jeans descolada,
uma blusa decotada rosa choque e uma sandália transparentede
salto alto. Nem preciso dizer que estava linda!
— Boa noite, senhor Scheffer. Está precisando de alguma
coisa? — ela indaga abrindo a porta.
— Sim, senhorita. Companhia para jantar... — arrisco.
— Sinto muito. Eu já tenho um compromisso. Estou
praticamente de saída. — pude perceber que estava sem jeito.
— Está muito bem assim. — elogiei a roupa que estava
vestindo. — Sinto não ter chegado antes. Divirta-se. — desejei me
sentindo arrasado.
— Obrigada — ela agradece.
— Não sairei do hotel. Pode usar os serviços do Francisco se
quiser. — ofereci tentando saber aonde ela iria.
— Obrigada. Mas não vou precisar... Já estão me esperando.
— diz isso e a porta entre nós se fecha.
Eu fiquei sem chão. Não esperava que ela tivesse outro
compromisso hoje. Eu queria acreditar que ontem ela não tinha
atendido ao meu telefonem a por birra ou alguma coisa do tipo.
Fiquei intrigado, como ela tinha conseguido uma companhia tão
rápido? Poderia ser um dos rapazes do stand, ou quem sabe a
moça... Após uma ligação eu já sabia quem era: Rodrigo. Tinha
confirmado com o segurança infiltradona casa do meu irmão que
ele tinha viajado. Ele estava em São Paulo e pelo jeito sua
determinação em conquistá-la era maior do que eu previa.
Em um súbito momento de desespero eu saio no corredor e
fico atrás dela. Meio sem jeito eu suplico a ela que fique. Vejo uma
dúvida em seu olhar, parece que avalia o que eu lhe pedi e me
pergunta: “Tem algum motivoque justifique que eu fiqueaquie não
vá me arrepender depois?”
Eu tinha. Claro que eu tinha. Fique porque eu te amo, porque
eu não posso viver sem você... Eu desejo você mais que tudo nesse
mundo... O problema estava na garantia. Eu não podia dar a
garantia que ela precisava. A armadilha que o meu pai me armara
me deixou de braços atados. As palavras simplesmente não saíram
e eu a vi partir sem falar um único som.
Eu estava desolado e sozinho, se eu estivesse em casa o
Amigão ouviria pelo menos as minhas lamúrias, desci para o bar do
hotel e comecei a beber. Após um tempo o meu telefonetoca e não
ficosurpreso ao ouvir a voz do meu tio. Ele percebeu a condição em
que eu me encontrava e veio me buscar. Conversamos muito, ele
me deu conselhos, mas nada que me liberte deste peso que
carrego.
No dia seguinte, quando acordo, não estou no hotel. Meu tio
havia me levado para sua casa. Ele me convida para passar o dia
com sua família. Eu aceito o convite, mas exijo que ele vá até o
evento e dê um jeito de convidar a Sabrina. Quando ele volta, conta-
me, para minha infelicidade, que ela já tem compromisso. Foi
inocência minha acreditar que o cara tinha vindo até aqui para ficar
sozinho.
Estou deitado na cama em que dormi. Fiquei meio
constrangido em ficarencarando uma famíliaque mal conheço, eles
não me tratammal, mas tenho a nítida impressão que me olham
como se eu fosse um extraterrestre.
Minha cabeça dói e eu imagino que as doses de whiskyque
bebi ultrapassaram o limite que meu corpo aguentava. Tenho a
impressão de ouvir vozes diferentes.Uma curiosidade súbita me
invade e eu vou conferir. Encaro Sabrina que me olha como se eu
fosse um fantasma. Definitivamente minha presença não tem
agradado a ninguém nas últimas horas.
O Rapaz “simpático” que está com ela, se faz de bobo e fingi
me confundir com meu irmão. Não dou muita trela para ele.
Cumprimento os dois sem muita empolgação, mas façoquestão de
segurar firme a mão de Rodrigo, encaro-o e mentalmente afirmo que
ele está muito enganado se pensa que venceu.
Rodrigo é realmente uma pessoa desagradável, vem de novo
com aquela história de que eu e o João somos parecidos eu
desconverso. Percebo que o tio Bene cria uma estratégiapara tirar
a Sabrina desta saia justa, ele gentilmentea manda para cozinha e
nós ficamos ali calados, no maior clima, vendo meu tio assar a
carne.
Chegou a hora do almoço e eu parecia um estranho no ninho.
Fiquei surpreso ao ver que Sabrina estrategicamentesentou entre
duas crianças mantendo uma distância tanto de mim como de
Rodrigo. Às vezes eu olho para ela e percebo também certo
desconforto.O tio Bene tinha avisado que após o almoço teríamos
um jogo de Poker, eu não sou muito fã de jogatinas, mas tive que
aprender para me manter sociável no mundo dos negócios.
Desde o início do jogo eu e o Rodrigo nos encaramos, eu
estava com uma mão relativamente boa. Queria tirar esse babaca
da mesa custe o que custasse. Para minha surpresa Sabrina foi
acompanhando nossas jogadas, se ela não tinha cartas estava nos
pregando um belo blefe.
Na decisão final ela foisoberana. Retirou nós dois da mesa de
uma só vez. Perder não era o problema, a questão era a “regra da
casa”: os dois que saíssem antes do Poker, lavariam a louça.
Desse modo eu e o Rodrigo fomos parar na cozinha. A pilha
de louça era generosa. Comecei a agrupar as louças por tipo, mais
na tentativade organizar meu pensamento do que qualquer outra
coisa.
— O que você prefere: lavar ou secar? Como você é a visita
eu deixo você escolher. — nessa afirmaçãodo Rodrigo estava nítida
a intenção que ele tinha de marcar o território.Apesar de Rodrigo
não ser da família, ele vem aqui muito mais do que eu.
— Pode deixar que eu lavo. — respondi assumindo uma
posição de comando. — Está em São Paulo a negócios? —
aproveito a oportunidade para investigar .
— Não. Nem só de pão vive o homem, não concorda?
Minha resposta é um sorriso sem graça.
— Então você é o “chefe”? — percebo um ar de deboche em
sua pergunta.
— Exato. E você é... — deixo propositalmente uma lacuna
para ele completar.
— Eu sou o amigo, o confidentee depois de ontem, estou
sendo promovido para a categoria de pretendente. — após ouvir
essas palavras a minha vontade é de bater com a panela que eu
estou nas mãos em sua cabeça.
— Nossa você não acha que isso é muito esforço para
conquistar uma garota? — provoco dando corda para ele se
enforcar... — Ter que ficar esperando ser promovido? — eu
completei com sarcasmo.
— Sabe como é Scheffer... Cada um tem seu estilo... Eu
prefiro agir a esperar... — filho da puta, o pior é que ele estava certo.
Mas essa ação não dependia apenas de mim. Eu precisava de
algum jeito me libertar do meu pai e suas exigências descabidas...
Preferi me calar. Essa disputa velada que tínhamos não estava
em pé de igualdade. Ele estava livre para conquistá-la, a minha
única alternativaera torcer para que ela não quisesse. Porém agora
eu sabia como jogava o meu adversário, a Sabrina para ele era uma
conquista e isso me deixou muito mais preocupado.

Pelo jeito a Sabrina conquistou também o coração do tio Bene,


este fez a ela vários elogios para a tia Tereza, esta demonstra que
também ficou afeiçoada, percebo que elas ficam conversando
sozinhas antes de irmos embora. Como em um cabo de guerra, eu e
o Rodrigo disputamos com quem ela vai embora, a garota é salva
pelo tio Bene que resolve tudo levando todos nós aos seus
respectivos hotéis.
Estamos eu e o Rodrigo sentados atrás, ela e o tio Bene na
frente.Escuto um sinal sonoro vindo da frente,mas nenhum dos
dois esboça movimento. Para variar lá vem o Rodrigo com suas
gracinhas e deixa todos nós sem jeito, na hora de se despedir dela
ele faz com que ela saia do carro, conversam alguma coisa que eu
não escuto. Posso perceber pelo corpo dela que está tensa... Não
percebo nenhuma atitude de intimidade entre eles, apenas o
conquistador que lhe estala um beijo e eu rezo para que seja no
rosto.
Quando chegamos ao hotel eu me despeço o mais rápido
possível do tio Bene, estava com a impressão de que ela fugiria se
eu não me apressasse. O clima dentro do elevador estava estranho.
A minha vontade era de beijá-la ali mesmo, tive que fazer um
esforço gigantesco para ficar em meu canto.
Na hora de nossa despedida eu apelei e lhe dei um abraço, o
contatodo seu corpo com o meu me deixou um tantoatordoado eu
tive que me controlar para não ultrapassar todos os limites ali
naquele lugar. Enquanto rolava na cama eu decidi que pela Sabrina
eu iria lutar. Tinha certeza de que de alguma forma uma solução eu
encontraria.
Bato em sua porta para convidá-la para o jantar do evento. Ela
abre uma frestae percebo que está concluindo uma conversa no
telefone que tudo indica ser com o Rodrigo. Eu fico indignado,
ficaram a tarde inteira em banho-maria e agora ficam com essa
melação no telefone?
Quando ela retorna eu estou com raiva. Ela se desculpa pela
demora e eu largo uma grosseria:
— Eu entendo. Deve ser muito frustranteficar longe do
namorado tanto tempo... — verifico no relógio. — Uma hora.
— Namorado? Eu não tenho namorado. — Ela afirma e
comprova me mostrando em seu celular uma ligação de sua tia.
Eu fiquei impressionado com a necessidade que ela teve de
me contar a verdade, continuamos a nossa conversa. Eu queria
garantir a ela que respeitaria a sua “privacidade”, mas que eu
também gostava dela. Ela começa a fazer perguntas e eu me sinto
pressionado, respondo para ela:
— Eu não posso... Não entende? Eu não posso...
— Talvez se você me explicar eu entenda... Quer conversar
outra hora? — ela indaga respeitando o meu tempo.
— Me promete uma coisa? — me ajoelho em seus pés. —
Que você vai se afastardo Rodrigo... — eu precisava afastaressa
ameaça, sem ele por perto as coisas seriam mais fáceis.
Ela me chama de egoísta e diz que gosta da amizade do
Rodrigo, mas eu preferiaque ela não sentisse nada por ele. Sabrina
questiona o modo como nos chamamos, sempre mantivemos o
tratamento formal. Relembra a frieza da nossa primeira vez.
Questiona se eu sou casado ou comprometido. Com todas as
questões que ela levanta eu percebo o quanto eu a deixo confusa e
perturbada. Mas para finalizarvem a pergunta que nunca imaginaria
ouvir da boca dela:
— É g-gay? — Ela indaga já tirando conclusões erradas.
Eu reflitopor um momento e decido que não tem como querer
a fidelidade dela, o seu amor se tudo o que ela sabe sobre mim são
mentiras descabidas. Neste exato instante eu decido e começo a lhe
contar a verdade.
Capítulo 59
Sabrina Souza de Andrade

Nós tínhamos acabado de nos despedir em frenteàs portas de


nossos quartos. Mal deu tempo de eu acender a luz e fechara porta
eu escuto-o batendo na outra porta.
— Oi. — cumprimento abrindo a porta que une os dois
quartos.
— Deduzo que você precisará de ajuda com o vestido... —
falou me encarando.
— Sim, tinha esquecido. Você pode? — pergunto já virando de
costas na direção dele e puxando os cabelos para frente.
— Claro. — Ele responde chegando mais perto.
Nesse momento sinto beijos em minha nuca, ele começa a
passar os dedos suavemente pelos meus braços, sem ação eu sinto
a eletricidade percorrer o meu corpo de cima a baixo. O que ele
estava fazendo era para mim uma doce tortura.Mas não adiantava
insistir naquilo. Não ia dar em nada.
— Já abriu? — indaguei angustiada.
— Só um pouco... Parece que está preso... — Ele
desconversou. Colocando agora as mãos no zíper. — Pronto. — Ele
deslizou o cursor lentamente até chegar ao final da minha lombar .
Senti a diferença da temperaturana minha pele desnuda, ele
colocou a mão na base da minha coluna e foi subindo aos poucos,
posicionou uma mão em cada um dos meus ombros e começou a
massagear.
— Está tensa, senhorita... Precisa relaxar... — essas palavras
eram um apelo em meus ouvidos.
— Obrigada. Agora já posso... quer dizer, já pode ir... — disse-
lhe, percebendo que estávamos em meu quarto.
— Será que eu sou digno de ganhar um beijo de boa noite? —
arriscou ele.
Virei ficando na sua frente. Eu não precisava fazer muito
esforço para dar-lhe um beijo no rosto, pois ainda estava de salto.
Movimentei a cabeça em direção à sua bochecha e fuisurpreendida
com a sua boca na metade do caminho. Foi inevitável, nossos lábios
apenas encostados inicialmente. Um segundo depois nossas
línguas já se entrelaçavam. Nossos braços faziam com que a gente
se aproximasse cada vez mais. Mãos curiosas exploravam o corpo
um do outro. Estávamos ao mesmo tempo achados e perdidos. Em
um pequeno instante de sanidade eu interrompo:
— Não devemos... — Ele continua me beijando — As
promessas... Depois você irá se arrepender... — ele se afastae me
encara.
— Nós precisamos saber... — afirma, começando a tirar a
roupa. — Vai que a gente não gosta de transar um com o outro.
Faremos uma vez e pronto: isso tudo acaba. — eu que ainda sentia
a energia daquele beijo se manifestandoem minhas pernas sabia
que ele estava errado.
— Você tem preservativo? — comecei a racionalizar o
momento. — Porque eu não tenho.
Scheffer que estava apenas de calça parou e olhou para mim
com incredulidade.
— Não tenho. Faz muito tempo que eu não... uso... olha se for
por causa de saúde... eu estou limpo, fiz todos os exames, e antes
eu sempre usava preservativo. Você usa pílulas... Por mim tudo
bem...
Uma palavra minha decidiria o que faríamos agora. Eu
imaginei que a conversa sobre o preservativo fosse broxante, mas
não foi. Eu ainda desejava esse homem e pelo volume que eu
percebi dentro de sua calça ele estava pronto pro que der e vier.
Ponderei o que ele falou. Eu não precisava de muito para me
convencer que eu queria aquilo mais do que a minha própria vida.
— Veja bem... — comecei a argumentar de novo. — Eu não
quero nenhum defunto puxando pelo meu pé de noite... — sabia que
aquilo era macabro e até mesmo cruel, mas não custava tentar ...
Quando eu percebi já estava novamente em seus braços,
nossas bocas juntas com uma intimidade tão grande que parecia
que nasceram para se beijar. Nossas roupas foram tiradas
apressadamente. O calor do seu corpo junto ao meu era muito
aconchegante. Ele foi carinhoso, apaixonado e intenso. Todo o meu
corpo respondia ao seu toque. Quando nossas partes mais íntimas
se tocaram, o prazer que senti foi tão grande que parecia que eu
não iria aguentar. Eu o amava. E cada mísera célula do meu corpo o
amava também.
O amor que fizemos foi além dos nossos corpos, ele atingiu
nossas almas. Saciados ficamos abraçados em silêncio.
Definitivamentenão éramos duas metades, éramos uma parte só. A
sensação que eu tinha é que eu havia voltado para casa, após um
longo tempo longe. Em seus braços eu estava protegida e
amparada. Absolutamenteeste é exatamenteo lugar que eu queria
ficar.
Eu estava com receio de abrir os olhos ou me mexer e acabar
com o encanto do que tínhamos acabado de compartilhar. Por tudo
o que a gente já tinha passado, das experiências que tive com ele, o
passo seguinte era fingirque nada tinha acontecido e tudo isso teria
um fim no exato momento em que eu me levantasse da cama.
Movimentei-me aos poucos e enrolada no lençol fuipara o banheiro.
Quando voltei, ele não estava mais ali, já tinha ido para o seu
quarto. Com um nó na garganta eu fui fechar a porta que ainda
estava aberta.
— Ei... Espera... — ouço a sua voz se aproximando. — Dorme
comigo? A sua cama está toda desarrumada. — Eu estava dividida
e não tinha a menor ideia do que responder, se eu soubesse pelo
menos o que ele tinha em mente...
— Tem certeza? Se for pela cama eu não vejo problema
nenhum em arrumá-la... — disse enquanto tentavaencontrar outra
desculpa mais convincente.
— Tenho. Pelo contrário, estou querendo ajuda para
desarrumar essa daqui também... — com certeza ele argumentava
bem melhor do que eu.

Fizemos amor mais uma vez e novamente foimágico. A transa


que tive com Rodrigo tinha sido a melhor da minha vida, mas com o
Scheffer eu descobri como se faz amor e isso foi infinitamentemais
gostoso. Não foi necessário nenhum esforço, planejamento,
musiquinha programada como o Rodrigo tinha feito. As coisas
simplesmente aconteceram independente do que existia ao nosso
redor. Tomamos banho juntos, dormimos abraçados e o despertador
nos acordou desse sonho e nos impôs a realidade.
Foi estranho vê-lo saindo do meu quarto para ir se arrumar, o
vazio que ficoufoiimenso e um desespero passou a tomar conta de
mim. Não. Eu não tinha mais condições de ficar longe dele. Após
estarmos prontos fomos tomar café. Eu estava ressabiada e não
tinha iniciativa nenhuma, apenas esperava para ver o que ele fariae
como me trataria.Para minha surpresa andamos de mãos dadas,
ele agia com muita gentileza e esse comportamentocontinuou ao
longo do dia. Achei que ele aumentaria a distância entre nós no
evento, o que não aconteceu.
Na hora de se apresentar na mesa redonda, pude ver que
Scheffer colocou o meu nome juntamentecom o seu na autoria do
trabalho, e isso me deixou emocionada. Eu olhava para ele com
coraçõezinhos nos olhos enquanto ele iniciava sua fala.
Cumprimentou as pessoas, apresentou-se e começou a sua fala:

“Para nós da SSB a tecnologia é muito importante, estamos


trabalhandoem um novo projetoque aliaa realidadevirtualà venda
de imóveis. Com ela nós podemos oferecer produtos que estão a
milhares de quilômetros de distância...”

Ele tinha facilidade para relatar os feitos da empresa,


compartilhar as novidades e as dificuldades também. Com certeza
de todas as pessoas daquela platéia eu era a sua maior fã. Por meio
de um sinal que combinamos aviso que o seu tempo está acabando.
E ele conclui a sua fala dizendo:

“É por isso que trabalhamos diariamente.E é assim que


faremos um mundo melhor . Obrigado!”

Não preciso dizer que foi aplaudido de pé. Ele senta-se


novamente na mesa e aguarda com educação os outros dois
especialistas falarem. Vez ou outra eu pego-o me encarando com
ternura. Eu tenho medo. Eu tenho muito mais medo agora. Tenho
certeza que esquecer a noite que tivemos não será tarefafácil para
nenhum de nós. Ao final das falas, um mediador conduz a
discussão, já que muitas perspectivas eram diferentese cabia a
cada integrante defender o seu ponto de vista. Meu chefe
argumentou e defendeu muito bem cada uma das questões que
foram destinadas a ele. Ele cumprimentou os seus debatedores,
desceu do palco e veio ao meu encontro.
— Parabéns! Foi uma ótima participação — elogiei com
timidez.
— Parabéns e obrigada! — ele falou antes de me beijar. —
Somos mesmo uma dupla imbatível...
Não preciso nem dizer que eu fiquei sem jeito. Não esperava
essa atitude dele ali.
— O que acha de voltarmos para casa? — Scheffer pergunta
entusiasmado.
— Você quer ir para o hotel?
— Não. Casa mesmo. Vamos voltar hoje mesmo para
Gravataí?
— Mas... E o stand? E o final do evento? — questiono
preocupada.
— Tio Benedito cuidará disso.
Fomos ao espaço da empresa e o tio Bene realmente já
estava lá. Pelo seu olhar, pude ver que ele notou que nós dois
estávamos mais próximos, não conseguiu disfarçar um sorriso de
satisfação.Ficou tudo acertado, para eu e Scheffer aquela viagem
acabaria ali.
— Temos apenas um problema. — ele declarou preocupado.
— Qual? — questionei.
— Sem voos fretados para esse final de semana. Mas o
helicóptero estará disponível em meia hora. Eu sei que você não
gosta muito de helicópteros...
— Não tem problema. Estou com muitas saudades de casa...
Se esse é o preço para voltar... Eu pago.
Arrumamos os nossos pertences, que foram levados para a
aeronave. Com uma ligação o check out estava feitoe voltamos
para casa ouvindo Jason Mrazno fonede ouvido. Ao som de “Luck”
eu vislumbrava o oceano enquanto ele acariciava a minha perna
com o dedo indicador que escapava de sua mão em cima da minha.
Capítulo 60
Chegamos ao heliponto do prédio da SSB. Um frio na barriga
passou a me acompanhar. E agora? Como ficaremosa partirdaqui?
Na dúvida preferi colocar a minha armadura. Assim que o piloto
descarregou as bagagens peguei a bolsa, a minha mala e comecei
a procurar o aplicativo em meu celular. Quando Schefferpercebeu o
que eu pretendia perguntou:
— O que está fazendo?
— Vou pedir um carro. — respondi.
— Ainda não. Qualquer coisa eu te levo... Antes quero lhe
mostrar uma coisa. — ele estava meio receoso.
— Se forrápido... — eu queria demonstrar uma pressa que na
verdade eu não tinha.
— Certo. Vamos. — Ele disse, pegando a minha mala e
segurando a minha mão.
— Mas e a sua mala? — questionei intrigada.
— Benetti cuidará disso.
Pegamos o elevador e paramos no 41º andar. Eu sempre tive
curiosidade de saber o que tinha nele. O corredor era diferentedos
outros andares, muito mais luxuoso e sofisticado.Com o toque de
sua digital em um sensor a porta se abre e estamos em uma grande
sala. É tudo grande e de muito bom gosto, porém acho o local frio e
impessoal. Ele segue me mostrando o restanteda cobertura e em
todas as peças eu tenho a mesma sensação de solidão. Estava
muito animado, parecia uma criança que recebia um amiguinho em
casa pela primeira vez. Seu quarto é espantosamenteenorme. Ele
confessa que modificou o projeto original do prédio agregando os
outros quartos a essa peça do apartamento, pois sabia que
dificilmente receberia visitas.
Quando pensei que tinha acabado. Ele me mostra uma escada
no canto da sala. Sobe na frentee pede para que eu aguarde um
pouco.
— Pode vir. — avisa instantes depois.
Eu subo as escadas e quando me deparo com a cena eu não
acredito no que eu vejo.
— Você tem um cachorro? — constato admirada.
— Ele não é um cachorro apenas. É meu amigo, confidente,
psicólogo e eu tenho a impressão de que também é um espião ou
um terrorista. — Ele passa a mão na cabeça do cachorro e mostra a
bagunça que ele tinha feito.
Eu nunca imaginei que Scheffer poderia ter um cachorro e
pelo jeito eles se davam bem. Estamos em uma área ampla, com
churrasqueira, mesas, mesas de jogos e até mesmo uma piscina.
Em um canto mais afastadotem o que parece ser um depósito com
uma porta de correr que apresenta uma bagunça ao redor, com
coisas espalhadas muito provavelmente pelo cão.
— Amigão essa aqui é... — Ele definitivamentenão sabia
como me apresentar — uma pessoa que quero que conheça. Por
favor, não vai avançar nela... — suplicou ao animal.
Os dois aproximam-se de mim, o cachorro está preso em sua
coleira. Eu oferecia minha mão para que ele cheirasse. Além de me
cheirar, lambeu-me e em instantes já estava pulando em minhas
pernas como se fossemos velhos amigos.
— Não entendo! O Amigão é arredio, para a senhora
Gertrudes conseguir vir até aqui dar comida para ele levou uns seis
meses e agora ele se oferece desse jeito para você? — disse
Scheffer amargurado, eu não sei se ele estava com ciúmes do
cachorro ou de mim.
— Ele é um bom cachorro. Não é Amigão? — falei fazendo
cafuné em sua cabeça. — Fiquei curiosa... Como foi que essa
amizade começou?
Scheffer me contou que no dia em que transamos pela
primeira vez foi em um parque espairecer a cabeça e o cachorro foi
um bom ouvinte às suas lamentações.Que na hora de ir embora até
cogitou a possibilidade de trazê-lo com ele, mas o dono de uma
barraquinha de cachorro-quente disse-lhe que era um cachorro
arisco. Quando partiu com o carro, o cachorro ficou olhando-o se
afastarsentado próximo ao meio fio. De repente o cachorro partiu
em disparada atrás do carro e ele trouxe o animal para morar com
ele. A adaptação foi perfeita,fora o fatode o cachorro sempre dar
um jeito de abrir a porta onde guarda objetos do seu passado com o
pai e fazer a maior bagunça pelo local.
— Quem cuidou dele enquanto estávamos viajando? — Eu
queria confirmar o nome da mulher que ele tinha falado ainda
pouco.
— Tem uma senhora que me ajuda com as coisas aqui de
casa. A senhora Gertrudes cuida do Amigão toda vez que eu viajo.
Quando eu não consigo levá-lo para passear no parque é o Xavier
quem o leva. — eu olhei para aquele cachorro sortudo, admirada,
dois funcionários à sua disposição.
Tirei o celular do bolso e olhei as horas.
— Sua casa... Quer dizer, apartamentoé lindo. Seu cachorro é
muito simpático. — disse enquanto afagava o animal mais um
pouco. — Mas já está na hora de eu ir embora.
— Você avisou a sua tia que voltaríamos hoje? — Scheffer me
perguntou.
A dúvida paira em minha mente. Eu não tinha falado com a
minha tia, portanto eu não havia avisado que estaria em casa hoje.
Pensei no que implicaria se respondesse que sim: eu iria embora.
Se dissesse que não: eu não faria ideia do que poderia acontecer,
eu tinha um palpite, mas eu resolvi confirmar antes de responder
.
— Por que quer saber? — quis sondar antes de dar alguma
resposta.
— Poderia passar a noite aqui comigo. Amanhã eu te levo. —
disse-me com a voz trêmula.
— Não acho que seja uma boa ideia. Já estamos misturando
as coisas demais, você não acha?
— Façamos então a nossa despedida. Não vejo problema algum
passarmos juntos mais uma noite.

Fiquei e foi maravilhoso. Tomamos um longo banho na


hidromassagem, trocamos carícias e carinhos com uma carência
amargurada de quem realmente está se despedindo. Quando fomos
para o quarto a chama de nosso fogo se acendeu e fizemos amor
apaixonadamente. A necessidade de que um tinha do outro era
alucinante. Eu não consegui compreender como em tão pouco
tempo estávamos tão envolvidos, bem, pelo menos eu estava.
Decididamente eu não conseguiria me despedir com a facilidade
que eu imaginava antes. Comecei a lamentar a necessidade que eu
teria de me afastar dele. O único jeito era pedir a minha demissão.
Nosso domingo foi impecável, tomamos café da manhã na
cama, levamos o Amigão para passear no parque, cozinhamos
juntos e no final da tarde antes dele me levar para casa, mais uma
sessão de safadezas com a desculpa da despedida. Quando desci
daquele carro e olhei para a casa em que eu morava tive a
impressão de que tinha ficado fora muito mais tempo do que quinze
dias.
Contei à minha tia as novidades do evento. Até tentei,mas
não pude evitar, contei tudo o que tinha acontecido entre o Rodrigo
e eu e depois entre o Scheffer e eu. Enquanto eu contava as coisas
para ela, eu julgava as minhas próprias atitudes, eu estava me
sentindo vulgar demais e isso estava me deixando amargurada.
— Ei, Sabrina! — minha tia ergue o meu rosto. — Que viagem
incrível você teve... — eu sabia que a intenção dela era me animar,
mas o que eu sentia não era tão fácil de resolver assim.
— Tia, eu transei com os dois... Eu nunca deveria ter feito isso.
— Sabrina, pare de ter pena de si mesma. Você não mentiu
para nenhum deles. A única pessoa que você enganou foi a si
mesma.
— Como assim? — eu olho para ela com curiosidade.
— Desculpe querida, eu achei que você deveria dar uma
chance para o Rodrigo e acabei forçando a barra algumas vezes.
Quando na verdade você sempre soube quem você queria.
— Mas o que adianta agora? Ele deixou bem claro que não
quebrará as promessas... Estou pensando seriamente em me
afastar de vez. Eu não conseguirei viver desse jeito.
— Dê tempo ao tempo minha filha, tem coisas que só o sábio
tempo consegue resolver...
Os dias transcorreram como antes no trabalho. Na primeira
semana conseguimos manter uma convivência sensata, sem
nenhum deslize de nossa parte. Na sexta-feira,quase no final do
expediente, o senhor Schefferme chama em sua sala e informaque
preciso dar uma olhada no Amigão, ele acha que o animal está com
algum problema.
— Senhor Scheffer, eu não tenho cachorro, não façoa menor
ideia do que ele possa ter. Sugiro que chame um veterinário... — eu
já estava imaginando qual era o plano dele. A razão me sugeria: vá
embora. O meu corpo, meu coração e minha alma imploravam: vai
com ele agora.
Saímos de sua sala em direção à cobertura. A porta
estrategicamentecolocada em seu escritório facilitavamuito isso.
Quando olhei para o lado em que o closet e o “quarto de motel”
ficavam,tive a curiosidade de saber se ainda permaneciam como da
última vez em que eu tinha estado lá. Ele percebeu o meu olhar e
passou pelo elevador indo em direção às portas. Abriu primeiro a do
closet, ele estava praticamente vazio. Noto em cima de uma cadeira
o vestido azul celeste que eu havia usado no leilão. Ele sai e vai em
direção à outra porta: o quarto estava completamente vazio e
pintado de branco do piso ao teto.Gostei do que eu vi, pois eu sabia
o que aquele quarto indicava, mas isso não nos dava nenhuma
garantia de futuro.
Quando chegamos à cobertura o Amigão nos foi indiferente.
Permaneceu deitado em frentea tal porta que estava trancada. Eu
pedi licença para o Scheffer e abri a porta. O cachorro entrou por ela
e cheirou tudo o que podia. Pegou um bichinho de pelúcia todo
roído e saiu faceiro.
— Pronto. Seu problema está resolvido. — constatei.
— Aí é que você se engana... Tenho mais outro probleminha
para você resolver. — disse isso se aproximando de mim e me
apoiando em uma mesa de sinuca.
Seus beijos foram certeiros, ele sabia exatamente onde me
estimular. De repente ele saiu, deixando-me ali parada e sem fôlego.
Chamou o Amigão para a área externa e apertou um botão
fechando os brises. Voltando para onde eu estava.
— Penso que a nossa despedida ainda não foi o suficiente.—
Ele me informou ofegante.
— Se nós continuarmos desse jeito nunca vai ser... — porque
sempre eu que tinha que trazer a sanidade para os nossos
encontros?
E nos despedimos mais uma vez.

No dia seguinte, fui eu quem veio de mala e cuia para sua


casa, ficamosjuntos até a hora de irmos trabalhar na segunda-feira.
Foi estranho chegar ao escritório usando a sala dele com entrada.
Até tenteisair pelo corredor e entrar pela outra porta, mas ele não
permitiu. Fiquei muito envergonhada ao cumprimentar a senhora
Macedo, que agiu com a naturalidade e discrição de sempre. Fora
os passeios no parque com o Amigão, nós não tínhamos aparições
públicas, que passaram a ocorrer. Ninguém pronunciou a palavra
namorando, mas essa era a palavra mais aproximada para eu
descrever o que percebia estar ocorrendo entre nós. Saíamos umas
duas noites durante a semana e nos finais de semana eu
geralmente dormia na casa dele. Já tinha se passado um mês
desde a nossa segunda primeira vez no hotel. As coisas estavam
indo muito bem, obrigada. Mas, sempre tem um, mas, não é? Nesse
finalde semana as coisas teriam que ser um pouquinho diferentes...
Capítulo 61
No final da manhã fui à sala do meu chefe, tinha algumas
coisas que eu precisava informar:
— Scheffer, esse final de semana não poderei ficar em sua
casa. — afirmei pesarosa, sabendo a falta que isso me faria.
— Como assim? O que houve? — Ele questiona intrigado.
— Estamos com um vazamento lá em casa, precisaremos
mexer nas calçadas, floreiras, vai ser uma “quebração” total.
Teremos que mover as plantas... Muito trabalho. A tia Nice acabou
de me ligar dizendo que conseguiu um pedreiro e um encanador
que irão trabalhar no final de semana, então não podemos perder a
oportunidade.
— Por que você não falou comigo? Poderíamos ter resolvido
isso antes... — Scheffer acrescenta indignado.
— Desculpe, mas você não tem nada a ver com isso... Nós
que devemos resolver... — eu e essa mania de jogar a verdade na
cara dele.
— Claro que eu tenho a ver com isso... Ficarei sozinho no
final de semana... Isso não é justo. — disse relutante como um
garoto mimado, abraçando-me por trás e dando um beijo em minha
cabeça.
Solicitei a ele que me dispensasse na parte da tarde.
Almoçamos juntos, fui comprar os materiais e passei no banco
resolver algumas pendências... Apesar dos protestosde minha tia,
eu estava disposta a ajudar com o meu trabalho e o meu dinheiro.
Tínhamos combinado que o material de construção eu que pagaria.
Ao imprimir o extrato fiquei admirada ao observar uma pequena
fortuna em minha conta. alor
V muito superior do que eu esperava ter
recebido. Eu sabia que Scheffer pagaria um valor maior pelo meu
trabalho na viagem, mas o valor em meu extrato extrapolava de
longe o que eu havia calculado. Saquei o dinheiro necessário para
pagar a loja de materiais de construção,mais tarde eu veria em meu
contracheque o que estava acontecendo.
No sábado bem cedo o pedreiro e seu ajudante já estavam lá
quebrando a calçada. Como a tia Nice tinha que ir para o salão eu
teria que ficar em casa. O Leo achou que não era bom eu ficar
sozinha em casa com dois desconhecidos e então veio ficar comigo
enquanto os homens trabalhavam.
No início, ele me ajudou com a retirada das plantas, depois ele
tentouacompanhar os homens no processo de quebrar as calçadas,
mas dez minutos depois já tinha desistido. Eu me ocupava com o
almoço e ele veio conversar comigo:
— Quer dizer que vocês se entenderam então?
— Mais ou menos... — respondi pensativa. — Quando ficamos
juntos, é maravilhoso. Só que eu tenho a impressão de que ainda
tem alguma coisa mal explicada. Ele não iria desistir das promessas
que tinha feito ao pai da noite para o dia.
— Que loucura essa história toda, não é?
— Eu que o diga... Anos perdidos por conta disso.
— Eu nunca imaginei que iria ver o Schefferpasseando com o
cachorro de um lado e você do outro... Ele mudou muito Sabrina.
Não é mais o Scheffer que eu conheci.
— Sim, também percebo que ele mudou... — nesse instante
eu me lembro do dinheiro em minha conta, pego o celular e vou
olhar o meu contracheque.
Quando volto percebo que o Leo me observa assustado. Eu
estou com o coração batendo em minha garganta, solto um palavrão
em sinal de protesto:
— Filho da puta! Leo aquele babaca está pagando para mim
novamente como se eu fosse uma prostituta.— concluo isso ao
olhar para a tela do celular e me deparar com valores enormes em
minha folha de pagamento ao lado das palavras atividades extras.
— Sabrina, calma! Eu nem sei o que eu vou te dizer... Ele...
Ele... Devia estar desesperado... — Leo tentavame acalmar e eu
nunca imaginei que o veria tentando “defender” o meu chefe. —
Sem saber o que fazer, feza única coisa que lhe pareceu resolver o
problema no momento...
— Eu entendo perfeitamenteessa parte Leo. O problema é
que ele não me consulta, não conversa comigo e aqui estou eu de
novo no meio dele, do seu pai e dessas malditas promessas... —
justifiqueifuriosa. — Até quando eu terei que passar por PUTA para
ficar com o cara que eu amo?
Eu sabia que o Leo me entendia. De uma forma diferenteele
também estava fadado à solidão amorosa. O destino havia nos
pregado uma peça: eu gostava de um homem que não podia me
amar, não do jeito que eu esperava. E ele não se dava ao direito de
encontrar um homem que pudesse amá-lo, porque a sociedade o
condenava também. Éramos irmãos perfeitos para compartilhar
nossas angústias e incertezas.

No sábado à tarde o serviço estava praticamente pronto.


Destinamos o domingo para limpar o local e colocar as coisas no
lugar, inclusive as plantas. Leo nos ajudava nesta tarefa,quando
vejo Scheffer parado em frente ao portão de minha casa.
— Precisam de ajuda? — ele pergunta em seu tom habitual.
— Desculpe, mas não estamos contratando...— eu respondi
de forma ríspida contendo a raiva que eu estava sentindo.
— Entre... — Leo disse me interrompendo. E olha para mim
com um olhar de reprovação. — Se puder pode colocar terra aqui
neste espaço.
Com a desculpa de ir tomar água eu entrei em casa. Avisei à
minha tia que estava na cozinha a presença do visitante.Sentei na
garagem e fiquei observando os dois trabalharem enquanto eu
tomava o meu copo d’água.
A cena que eu via seria perfeita se não fosse o
comportamentode ele pagar pela minha presença em sua vida. Eu
não poderia ser tratadadaquele jeito, não por ele. Definitivamente
eu estava decidida a colocar um fim nessa história. Sentada ali eu
arquitetei o meu plano eu pagaria para ele literalmente com a
mesma moeda.
No final do dia, Scheffer me convidou para dormir com ele,
como eu já havia imaginado. Tomei um banho, coloquei o conjunto
de lingerie mais sexy que eu tinha e fomos para sua casa. Quando
chegamos sugeri que ele tomasse um banho enquanto eu brincava
com o Amigão. Depois disso fomos para o seu quarto, ele já veio
com suas mãos apressadas para cima de mim.
— Calma, garotão! Hoje a nossa brincadeira será diferente.—
com um único dedo fui empurrando-o na direção da cama. Quando
chegamos bem perto dela eu usei as duas mãos para fazê-lo deitar.
Usei o bluetooth para mandar uma música para o home
theater, em instantes pude ouvir Crazy In Love da Beyoncé, que
propositadamente era do mesmo filme que a música que ele
escolheu para tocar na nossa primeira vez há mais de dois anos.
Após um striptease, eu estava apenas com minhas roupas íntimas e
um sapato de salto bem alto.
Deixei-o deitado na cama e me retirei do quarto ouvindo de
longe os seus protestos.Fui até a sala e peguei uma cadeira, que
para minha infelicidade era mais pesada do que eu imaginava,
carreguei-a até a porta e após entrar no quarto fui arrastando-a
tentandomanter uma postura sensual. Outra música se inicia e eu
lhe dou uma sessão de chair dance, imitando os passos de um
vídeo que eu havia assistido uma vez.
Justamentena hora em que estou sacudindo o meu traseiro
sensualmente com as mãos na cadeira ele se levanta, me encoxa e
começa a dançar comigo. Esse pequeno ato fora da minha
programação me abala e para manter o foco eu novamente me
retiro deixando-o extremamente excitado sentado na cadeira.
Vou até a sala, pego algumas almofadas e jogo em frenteà
cadeira em que meu alvo está sentado. Começo a beijá-lo com
volúpia. Ele tenta tirar a roupa, mas eu não deixo. Minhas mãos
agora descem em direção à sua braguilha, sento nas almofadas,tiro
o seu membro ereto para fora e “brinco” com ele usando a minha
língua. A cada lambida que eu lhe dou o meu olhar de safada
procura o seu. Sinto que está enlouquecido. Para finalizar, sento
encaixada à sua frente e cavalgo nele até que atingimos o êxtase.
— Nossa você me surpreendeu hoje... — Scheffer fala
enquanto tomamos banho e ele dá um beijo em minhas costas.
— Você não viu nada querido, não se preocupe que em
minhas mãos você sempre se surpreenderá. — virei para ele com
um olhar de sapeca, pisquei e imaginei o restante do meu plano.
Não demorou muito para ele adormecer. Imagino que nunca
tinha pegado no pesado, como tinha feito em nossa casa hoje.
Cuidadosamente peguei as minhas coisas, dei um adeus para o
Amigão e olhei com tristezapara aquele lugar que nos últimos dias
tinha presenciado a nossa felicidade que embora passageira, foi
muito intensa. Escrevi um bilhete inventando uma desculpa qualquer
e fui embora.

No dia seguinte eu sabia que chegaria atrasada, mandei-lhe


uma mensagem informando que depois eu lhe explicaria o motivo.
Esperei até que o banco abrisse e pedi ao caixa um valor em
dinheiro, de preferência em notas bem baixas. Eu estava receosa de
sair andando por aí com aquele dinheiro todo, mas me senti aliviada
de saber que seriam apenas alguns andares.
Quando cheguei ao escritório a senhora Macedo informou que
o meu chefe me esperava. Como fazia todos os dias caminhei em
direção à sua sala, porém desta vez eu levei a minha bolsa comigo.
Ele me olhou assustado e perguntou:
— O que houve? Eu fiquei preocupado... Você poderia ter me
acordado que eu te levaria em casa... — podia ver que a sua
preocupação era sincera.
— Eu tinha umas coisas para resolver. — expliquei dando
prosseguimento ao plano. — Desculpe o atraso, pode descontar do
meu salário.
— Imagina, eu só quero ter a certeza de que está tudo bem...
— Está. Claro que está. Neste último mês eu fiz um grande
negócio. Fui a PUTA favorita de um cara bem rico. Desculpe a
demora, mas aqui está o seu troco. — Depois que eu disse isso
peguei todo o dinheiro que estava em minha bolsa e joguei na cara
dele, com uma fúria que até então eu não conhecia.
Meu chefe ficou me olhando admirado. Não disse uma única
palavra. Não esboçou reação. A vontade que eu tinha era de sair
correndo, sumir da frentedele. Mas não, eu trabalharia ali por mais
um tempo ainda. Queria que cada vez que olhasse para mim
lembrasse a bela bosta que ele havia feito conosco.
— Não se preocupe... — completei. — Não me deve nada por
ontem. Considere que foi uma cortesia. — disse com ironia. —
Escute aqui senhor Scheffer, a partir de agora, é o meu chefe,
apenas isso. Por isso nunca mais encoste essas suas mãos em
mim. As minhas atividades como acompanhante se encerram neste
exato momento, entendeu? — Eu estava magoada com ele, não vou
mentir que tinha uma vontade imensa de chorar, mas a raiva e o
desejo de me vingar eram infinitamente maiores.
Saí de sua sala satisfeita,por ora eu me sentia vingada. Com
uma frieza que me desconcertava, sentei em minha mesa e fui
revisar alguns contratos que estavam me esperando.
Capítulo 62
Não foi fácil. É claro que não foi fácil. Eu o amava. O fatode
trabalharmos juntos diariamente estava ficando insuportável.
Imagino que para ele não estava sendo diferente.Simplesmente
paramos de conversar. Quando ele precisava de alguma coisa me
mandava um e-maile eu passei a fazer o mesmo. Eu achava que o
que estávamos vivendo era a pior faseda minha vida. Isso é porque
eu não sabia o que ainda estava por vir.
O Rodrigo começou a aparecer aos poucos. No início estava
acompanhando dona Judite, só que de repente ele passou a vir
sozinho. Nós conversávamos como amigos ele me dava algumas
indiretas e outras bem diretas, mas eu sempre me fazia de
desentendida. Já tinha problemas o suficientepara me incomodar,
se é que eu poderia chamar isso de problema...
A decisão já estava tomada. Apesar da relutância de minha tia
e da insegurança do Leo eu havia decidido e estava certa de que
não voltaria atrás.
Após 20 dias sem encará-lo pessoalmente eu cheguei ao
escritório e fui em direção à sua sala. Meu coração bateu em
descompasso ao vê-lo mais magro, com a barba para fazer e sem o
peculiar brilho em seu olhar. Eu também estava diferente.Muito
diferente por sinal. Mas eu preferi manter a minha aparência
impecável como sempre fazia. Essa era a minha máscara e eu não
abriria mão dela por nada.
— Bom dia, senhor Scheffer... — senti um nó na garganta ao
saber que essa era provavelmente a última vez que eu falariaessas
palavras.
— Bom dia! — Ele manteve a conversa comigo na
impessoalidade.
— Eu vim... — relutei um momento antes de terminar a frase.
— Eu vim me demitir.
Ele dirigiu a mim um olhar perdido de quem entendia o que eu
falava, mas não acreditava. Nem eu acreditava naquilo que eu
estava fazendo. Mas eu precisava me afastarou o que viveríamos
ficaria mais intolerável ainda.
— Gostaria de informá-lotambém, que eu não cumprirei aviso,
e peço desculpas por isso. — Eu completei nervosa.
— Tem outra pessoa nisso? — foi a única coisa que ele me
perguntou.
— Tem — foi apenas o que eu consegui responder.
Olhei para ele me despedindo. Era um tipo de despedida bem
diferentedo que estávamos acostumados a dar. As lágrimas que
pude ver em seus olhos eram as mesmas que marejavam os meus.
Estava tudo acabado.
Fim.
The end.
E definitivamen te esse não era o desfecho que eu esperava e
muito menos planejei.

Já faz uma semana que saí de sua sala pela última vez. As
coisas aqui em casa estão uma loucura, são caixas e sacolas para
todo lado. Volta e meia pego a tia Nice chorando nos cantos, ela não
se conforma que eu passe essa nova fase sozinha, mas com o
Rodrigo me cercando por todos os lados eu preferi me afastar.
O Leo não está diferente,mas ele prefere mostrar os seus
sentimentosatravés de atitudes.Praticamentepassou a semana me
ajudando com a parte burocrática, compras e tudo mais que eu
precisarei nesta nova vida. Por enquanto eu não me preocupo com
dinheiro, meu patrão sempre dava um jeito de pagar para mim
vários bônus, que eu fui acumulando e investindo e, embora eu não
tenha concordado na época, agora serão muito úteis.
Só faltauma coisa a fazer: abastecer o meu carro. Sim, agora
eu tenho um carro. Ele é bem diferente do carro que eu tinha
ganhado dele, mas eu gostei muito. Optei por um modelo mais
popular: um corsa e é claro que tinha que ser vermelho. Para variar
o Leo está indo no posto de gasolina comigo.
Victor Hugo Scheffer

Eu sabia que estava errado, eu sabia que ela não iria gostar
quando soubesse, mas o que a gente estava vivendo era tão bom,
tão mágico que eu acreditei que minha atitudede pagar pela sua
companhia não nos levaria às últimas consequências. Mas levou. E
a cada cédula daquela que eu juntei era como se uma parte de mim
estivesse morrendo. Foi ali juntando aquelas notas que eu percebi
que a gente nunca se entenderia. Por mais que conversássemos e
nos entendêssemos, isso não duraria para sempre e com certeza
chegaria a hora que ela precisaria de mais e eu não poderia dar
nada além do que eu tinha dado para ela.
Chego em casa e constatopela enésima vez que o Amigão
deu um jeito de abrir a porta do quartinho e esparramar todas
aquelas coisas por toda a sala de jogos.
Eu desconto toda a minha raiva ali, chuto aqueles papéis e
caixas para dentro do depósito de novo, grito com fúriae o cachorro
se afasta.Eu olho com ira para ele e decido: vou jogar tudo isso
fora. Chega de passado. Chega de lembranças, mas, derrotado, não
consigo fazer isso agora.
Eu não estava mais conseguindo lidar com ela pessoalmente.
Era muito difícil encará-la, lembrar dos nossos momentos e saber
que estava tudo acabado. Quando ela pediu a demissão, confesso,
eu senti alívio. Eu nunca teria coragem de dispensá-la, porém eu
não achava justo que ela tirasse suas próprias conclusões sem ouvir
ao menos uma palavra minha.
Foi aí que uma noite, depois que ela saiu do escritório, eu me
enchi de coragem e fui ao salão de sua tia. Eu queria pedir perdão,
contar a minha versão da história, tentarjunto com ela encontrar o
meio termo, mas ele estava lá. Tive que ver aquela cena novamente
só que agora com meus próprios olhos: Rodrigo e Sabrina
conversavam em um canto. Isso foi o suficiente para me fazer
recuar. Não era justo eu atrapalhar tudo de novo, ela tinha o direito
de seguir sem mim e pelo jeito ela tinha feito a escolha dela.
No dia em que pediu demissão, quando perguntei a ela:
— Tem outra pessoa nisso?
— Tem. — Ela respondeu de uma forma curta e grossa, essa
resposta era a confirmação que eu precisava e a partir dali as
nossas vidas mudariam para sempre.
Ela fez a sua escolha. Com certeza ela ficaria com o Rodrigo.
Ele poderia oferecer a ela uma vida “normal” bem diferentedo que
eu tenho oferecido.

Hoje faz uma semana que ela saiu da minha vida e eu não
estou com a menor vontade de ir trabalhar. Subo na cobertura para
dar a ração do Amigão. Ele anda meio ressabiado comigo, depois
que descontei a minha raiva perto dele. Porém, isso não o impede
de ter esparramado todas aquelas coisas de volta.
Vencido, chego perto da porta, me sento no chão e começo
explorar aqueles flashesdo meu passado.
O cachorro parece satisfeito e senta-se ao meu lado.
Pego um álbum com fotos antigas: papai, mamãe e duas
crianças uma a cópia da outra, sorriem e posam para a foto.Em
outra foto as duas crianças brincam em um parque, tem um
cachorro correndo atrás delas. Muitas memórias que eu não tinha,
fico ali observando aquele pequeno tesouro do meu passado,
inevitável não sentir as lágrimas caindo. Agora olho para algo mais
recente: um livro. Este estava com papai no hospital, pego-o nas
mãos e folheio, para minha surpresa encontro no meio uma folhade
papel. Abro e começo a leitura, sem acreditar no teor da mensagem
escrita com uma caligrafia tremida. Quando termino de ler eu choro
imensamente emocionado. Afagoa cabeça do cachorro e agradeço:
— Obrigado! Você salvou a minha vida Amigão! — este
imediatamente salta em meu colo e comemora comigo como se
tivesse terminado de cumprir um dever.
Quando chego à frenteda casa de Sabrina acho estranho ver
o carro do Leo ali. O carro da tia dela também está guardado na
garagem. O que todos estavam fazendo em casa em um dia de
trabalho? Estaciono do outro lado da rua e toco a campainha. É a tia
dela que vem me receber.
— Bom dia! Eu preciso falar com a Sabrina. — informo a Nice.
— Bom dia! Ela não está... Foi com o Leo abastecer o carro.
— Se ela não quiser falar comigo pode dizer... — eu olho para
o carro do Leo parado atrás de mim e ela percebe que estou
confuso.
— Eles foram abastecer o carro da Sabrina. — Ela me
justifica.
— Mas ela não tem carro... — afirmo lembrando que o carro
que dei para ela está abandonado no estacionamento do prédio.
— Agora ela tem. Vai precisar de um em Porto Alegre. — a tia
dela me revela apreensiva.
— Como assim Porto Alegre? — questiono incrédulo.
— Ela está de mudança para lá. Foi obrigada, agora que
está... — eu tinha a impressão de que ela iria me falaralguma coisa,
mas interrompeu a frase quando a Sabrina e o Leo Chegaram.
— Oi! — cumprimentei-os.

Sabrina Souza de Andrade

Apesar da decisão tomada estava muito difícil acreditar que


amanhã estaria sozinha. Viver em outra cidade sem minha tia e o
Leo me dando apoio era inimaginável. Eu sei que Porto Alegre fica
perto, mas seria um jeito bem diferentede viver do que eu estava
acostumada, cercada de atenção e mimos.
Quando chegamos em casa após abastecer o carro, sinto um
frio na barriga ao ver o carro do Scheffer estacionado. Eu imaginei
que seria o motoristavindo trazer algum documento para eu assinar
ou coisa parecida. Respirei fundo e desci do carro. O Leo percebeu
a minha insegurança e me amparou colocando os braços ao redor
do meu ombro.
Era ele. Scheffer estava ali em casa.
O que será que ele queria aqui? Será que tinha ficado
sabendo da minha viagem e queria se “despedir”? Por um momento
esse pensamento me deu um frio na barriga.
Quando chegamos perto dele ele se vira e fala: “Oi!” Duas
letras, duas míseras letras que tiram toda a minha estabilidade. Eu
estava sendo forte até agora. Perto dele era muito mais difícil
manter a decisão que eu havia tomado.
— Leo venha ver uma coisa aqui comigo... — minha tia arruma
um jeito de nos deixar sozinhos.
— Então... Quer dizer que está de mudança... — parecia que
ele queria me avaliar.
— Isso.
— Eu não quero atrapalhar os seus planos... Mas eu preciso
que você venha comigo em um lugar... Vai ser rápido.
Eu olhei para dentro de casa e não vi ninguém. Tive a
impressão de que se eu visse a tia Nice ou o Leo seria mais fácil
dizer não para ele. Com um pouco de relutância entrei em seu carro.
Ele dirigiu em silêncio por uns 20 minutos. Eu não tinha a menor
ideia de onde estava me levando. Foi quando ele parou o carro em
frenteao cemitério. Abriu a porta para mim, segurou em minha mão
e eu me deixei conduzir. Estávamos em frentea uma lápide de
granito, muito bem ornamentada. Em uma placa de bronze estava
escrito: “Heitor Scheffer, pai amoroso”, com o registro da data de
nascimento e morte. Olho para a fotodo homem ali enterrado, muito
parecido com o tio Bene só que um pouco mais velho.
— Eu sei que parece estranho eu te trazer aqui... É que eu vim
aqui tantas vezes em busca de uma saída que achei que esse era o
melhor lugar para terminar. Acredito também que essa é a melhor
forma de conhecê-lo. — eu percebi um receio em seu olhar.
Eu tinha a impressão de que ele estava apostando todas as
suas fichas como fizemos no Poker, só não se deu conta de que
agora eu não estava mais na jogada .
— Desculpe! Eu não quero ser indelicada, mas... eu preciso
viajar ainda hoje... Então... — eu não queria apressá-lo, parecia que
era importanteo que viemos fazer ali, só que estava muito difícil
sustentar a postura forte que eu vinha mantendo.
— Eu vou te mostrar uma coisa. Esse foi o último presente que
o meu pai me deu. Espero que ele resolva tudo. Espero que você
me compreenda. Eu só queria dizer aqui, em frenteao túmulo de
meu pai que eu não tenho raiva dele, que os seus motivos não me
pareceram óbvios, mas que eu o perdoo... — dizendo isso ele
pegou um papel dobrado e me entregou.
Capítulo 63
Sem entender o que estava acontecendo desdobrei a folha e
comecei a ler o que parecia ser uma carta:

“Scheffer
, meu filho,

Eu seique quando encontrar essa carta, muitoprovavelmente


já estarei morto. Espero que não tenha passado muito tempo.
Passeihoras escolhendoquaisseriamas palavrasque usariapara
ter essa conversa com você. Fizisso inúmeras vezes, fi lho, porém
não tivecoragem de fazê-lapessoalmente.Devidoa vergonha que
sentia.
Eu erreifilho.
Erreimuito.Fuiegoísta e injustoprincipalmente
com você.
Quando você e seu irmão estavam com três anos, sua mãe
conversou comigo e revelou que queria acabar com o nosso
casamento. Eu não compreendi porque ela estava insatisfeita. Ela
tinha tudo: empregadas, uma casa ótima, regalias,mimos, dois
filhosmaravilhosos…Um esposo que a amava e que trabalhavadia
e noite para manter o patrimônio que possuíamos…
Depois dessa, vieramoutras conversas e o pouco tempo que
eu passava em casa era repleto de brigas e discussões.
Quando você e seu irmão fizeramquatro anos, ela me disse
que estava conhecendo outra pessoa, que não queriame traire que
se continuássemos vivendo desse jeito isso seria inevitável.
Eu não quis facilitar as coisas para ela. Criei bastante
resistênciapara dar-lheo divórcioe fizuma pressão enorme no que
diziarespeitoà divisãode bens e à guarda dos filhos.
Foientão que
comuniqueia ela que me mudaria para São Paulo,mesmo ainda
tendo negóciosem Gravataí. Issodificultaria e muito as visitase o
convívioentre você e seu irmão,e você com elatambém. Então eu
tiveuma ideia,talveza piorideiaque játivena vida:cada um criaria
um filho. No começo ela foimuito resistente, aí eu lhe disse que
entraria na justiça,alegariaadultérioe ela ficariasozinha e sem
dinheiro.
Depois de muita chantagem ela cedeu e disse que eu
escolhesse, pois ela não tinha coragem de escolher entre vocês.
Assimfiz.Em uma noitefuiaté o quarto onde vocês dormiam.
Pegueivocê, nos mudamos e ficamosalguns anos sem aparecer
em Gravataí.Eu escolhivocê porque era curioso,mas também era
mais tranquilo.Seu irmão era manhoso, passava a maior parte do
tempo chorando e eu não tinha a menor paciênciacom isso.
Quando voltamos eu tinhacontado tantos absurdos para você sobre
sua mãe, seu irmão e padrasto que mesmo que ela tentasse, você
não iria querer vê-la.
Outra coisa que fizfoideturpar a imagem das mulheres para
você. Eviteia maior parte do tempo a presença delas em nossas
vidas.Ao perceber que você estava se tornando um rapazinholevei-
o àquele bordel, o mesmo que eu frequentava. Assim eu teria a
certeza de que estando saciado não teria motivos para ficar
paquerando por aí…
Por mais loucoque tudo isso possa parecer você sempre foi
um ótimo filhoe nunca questionouas minhasinsanidades…Eu não
façoideiadas consequênciasdas minhasatitudesem sua vida.Mas
consigo vê-las claramente na minha.
Frequenteiaquele bordel durante anos, acreditavater amigos
ali…Mas ninguém veio me visitarou deu um telefonemasequer
quando fiquei doente. Pelocontrário,alémde você, sua mãe e seu
irmão, foram os únicos que também me visitavam.
Filhoconsidere-se livrede tudo o que eu fizvocê me prometer.
Eu quisprotegê-lodo meu sofrimentoe não percebiaque o que eu
te pedia era no mínimo desumano. Espero que as consequências de
minhasatitudesem sua vidanão sejamdefinitivas. Faço votos que
se apaixonee sejacorrespondido.Que consigaformar uma família
lindacomo a que nós tínhamos e eu não soube cultiv ar…Não é
tarde para que você se aproxime de sua mãe e seu irmão… Os
momentos que perderam jamaisvoltaram, mas tenho certeza de
que muitas alegrias ainda estão por. vir
Desculpe, filho
! Perdoe o seu velho e tolo pai. Que precisou
perder a vidaque tinhapara reconhecer o que era maisprecioso:a
família!

Te amo muito.
Espero que um dia consiga me perdoar
.
De seu pai: Heitor”

Eu não consegui encará-lo. As lágrimas escorriam como se


fossem uma cachoeira em minha face que eu mal podia enxergar.
Respirar em meio aos soluços também estava difícil. Olhei para a
fotodo homem que tantonos fez sofrer e agora nos libertava. Eu
tinha vergonha de tudo o que eu tinha feito. As coisas não
precisavam ter sido do jeito que foram, eu não tinha o direito de
aumentar o sofrimento dele.
— Desculpe! — foi a única coisa que eu consegui dizer.
— Não... Não precisamos disso... Não tivemos culpa. Esta
história está literalmentemorta e enterrada aqui. É justamentepor
isso que eu te trouxe neste lugar. Só espero que não seja tarde
demais para mudar as decisões que já tomou. — Ele veio em minha
direção, pegou a carta, guardou-a em seu bolso e gentilmente
entrelaçou as nossas mãos.
Apesar de eu saber que minha mágoa com ele não tinha nada
a ver com as promessas que havia feitoao pai, mas sim devido ao
jeito que me tratava,das atitudesque tomava sem me consultar. De
suas ações desesperadas que me faziam sentir tão vulnerável. Eu
cedi. Me entreguei ao seu abraço e ao beijo apaixonado que me deu
a seguir. Fomos caminhando devagar até o carro. Quando entramos
ele repetiu o pedido que havia me feito em São Paulo:
— Fica comigo.
— Você tem algum motivo que faça eu ficar sem me
arrepender? — repeti igualmente a mesma pergunta que havia lhe
feito.
— Eu te amo. Quero você na minha vida e quero estar
presente na sua. Se você deixar eu vou tentar recuperar cada
segundo que a gente perdeu. Farei de tudo para que sejamos cada
vez mais felizesjuntos. E eu prometo: a partir de hoje sempre vou te
consultar antes de tomar minhas decisões. Isso é um bom motivo
para você? — Ele falou tudo o que eu esperava e me surpreendeu
ainda mais quando confessou. — Mas saiba que eu vou precisar da
sua ajuda sou um louco sem noção que muitas vezes age por
impulso... — dizendo isso encostou a sua cabeça na minha com a
conivência de quem acaba de revelar um segredo.
— Tem mais uma coisa que você vai ter que considerar... —
falei me afastando para encarar seus olhos, eu não poderia
esconder-lhe a última novidade. — Eu sei que você não queria... É
que... — eu estava muito insegura em contar isso para ele. Na
conversa que tivemos ele pareceu tão indiferente...— Como eu lhe
falei aquele dia. Tem outra pessoa.
— Eu sei que você e o Rodrigo voltaram, mas eu achei que
isso era antes... — ele tinha uma desilusão em seu olhar.
— Às vezes entendemos o que a gente quer entender, não é?
— respondi a ele me lembrando de quantas palavras mal
interpretadas já tivemos.
Peguei a sua mão e coloquei em meu ventre.
— Aqui. Essa pessoinha ainda está aqui.
— Mas como? Você sempre foi tão cuidadosa? — ele parecia
confuso.
— No dia que voltamos da casa do tio Bene eu esqueci. Só fui
perceber quando a cartela acabou e o dia não bateu, mas aí... Eu
não tinha mais nada a fazer .
— Você estava fugindo?
— Talvez. Só não queria te forçar a fazer nada que não
pudesse me dar ou não quisesse me dar. Eu não podia continuar
aqui, porque uma gravidez definitivamente não seria fácil de
esconder por muito tempo. Sem falar que a nossa situação estava
insustentável para mim.
— Um filho. Eu vou ter um filho... — ele ajeitou-se no banco o
melhor que pôde, me deu um beijo casto e beijou também a minha
barriga. — Obrigado! Hoje eu tive de volta tudo o que me tiraram:
uma família.
Trocamos um olhar de cumplicidade e agora eu sentia que
estava tudo certo. Voltamos para casa de tia Nice que nos esperava
ansiosa, acompanhada pelo Leo. Eles não nos perguntaram nada,
apenas nos observaram. Despediram-se com o pretexto de que
estavam indo trabalhar.
Estávamos sentados no sofá da sala como um casal de
adolescentes quando Schef fer me provoca:
— Nós já estamos namorando há ... — ele olhou no relógio
para conferir. — Uma hora e você ainda não me apresentou o seu
quarto querida.
— Sério? Eu não me lembro de ter sido pedida em namoro...
— retruquei dando risada.
Ele fez um movimento indicando que iria se levantar.
Acompanhando o seu movimento, retirei minhas pernas que
estavam sem seu colo e sentei no sofá com elas voltadas para
frente. Ajoelhou-se na direção em que eu estava e perguntou:
— Sabrina você quer namorar comigo? — eu senti um arrepio
ao escutar seus lábios pronunciarem o meu nome, porém agora isso
soava diferente.
— Posso saber como se chama o homem que me fazessa tão
tentadorapergunta? — Ele mostrou um desconforto,pois contava
com uma resposta que lhe parecia certa e não com outra pergunta.
— Sabrina eu, Victor Hugo estou te pedindo em namoro. Só
que, por favor... — eu percebi que lutava em assumir seu próprio
nome como se isso lhe mudasse a identidade. — Acho que eu me
acostumarei mais fácil se me chamar apenas de Hugo.
— Sim Hugo, eu aceito ser sua namorada. — curvando-me em
sua direção e lhe beijando os lábios.
Pode parecer bobagem, mas essa atitude de nos
apresentarmos novamente para mim tinha um significado muito
importante.Era como se a gente nascesse naquele momento e tudo
que tínhamos passado ficasse para trás. Eu não poderia ser a
namorada do senhor Scheffer e também não queria que meu
namorado me chamasse de senhorita.
É claro que o início do nosso namoro merecia uma
comemoração. Segurando a sua mão eu conduzi meu namorado até
o meu quarto.
Começamos com um beijo calmo que foi se prolongando. Aos
poucos um desespero tomou conta de nós, nossas roupas foram
deixadas de lado e nossos corpos se completavam perfeitamente.A
saudade que eu sentia dele parecia igual à que ele sentia. Enquanto
estávamos ali naquela maior prova de intimidade, sinto-o explorar
meu corpo com suaves beijos e mordiscadas. De repente ele para e
afaga a minha barriga carinhosamente. Fico emocionada ao saber
que aceitou bem aquela criança que agora nos uniria ainda mais.
Após essa breve pausa retoma de onde parou, seguimos com as
carícias e investidas em um ritmo frenético até que ficamos em
completo deleite.
Abraçados em minha pequena cama, parecia que o mundo
tinha parado. Neste momento não contenho um impulso e
interrompo o nosso silêncio:
— Qual o problema com Victor Hugo?
— Além do ventre materno, nossos pais quiseram que
compartilhássemos também o nome. Eu sou Victor Hugo e meu
irmão chama-se João Victor. Pode parecer bobeira de minha parte,
mas eu ainda não estou pronto para dividir com ele o meu nome...
— Nossa... Eu não sabia que era assim tão possessivo... —
disse me posicionando em cima do seu corpo.
— Você não viu nada minha querida... Venha aqui que eu vou
lhe mostrar... — e começamos com a nossa luxúria novamente.
Tomamos um banho juntos e começamos a nos vestir.
Scheffer, que agora é Hugo, não posso deixar de esboçar um
sorriso de contentamentoao lembrar disso, olha ao redor e ao
observar o meu quarto praticamente vazio convida:
— Por que você não aproveita que sua mudança está pronta e
não vai lá para casa?
Eu sabia que isso seria inevitável, que eu com certeza faria
isso um dia. Mas nós tínhamos vivido tantascoisas neste dia que eu
não queria resolver mais nada... Eu queria que ele avaliasse com
calma como o fimdas promessas interfeririaem nossas vidas. Tinha
também a gravidez. Eu não queria que ela o obrigasse a ficar
comigo ou antecipasse as coisas. Eu estava disposta a mudar de
casa, mas isso era se eu estivesse sozinha. Fui com ele para casa
dele, mas as minhas coisas ficaram na casa de minha tia.
Capítulo 64
Retomamos nossas vidas de onde elas pararam, no escritório,
na verdade, um pouco antes de eu ter jogado aquelas cédulas em
sua cara. Como ele costuma dizer, a nossa parceria era completa. O
expediente tinha acabado, nós estávamos em sua casa e eu achei
que lhe devia mais uma explicação:
— Hugo eu conheço a sua mãe.
Já fazia uma semana que ele tinha encontrado a carta do pai,
mas ainda não havia procurado-a. Eu sei que ele precisava de um
tempo para digerir a história, criar coragem e procurar por ela. Só
que ele não esboçava nenhum interesse em fazer isso.
— Você a conhece? Como ela é?
— Ela é a pessoa mais gentil que eu conheço, atenciosa,
carinhosa e muito compreensiva. Quando você veio morar em
Gravataí ela contava com sua aproximação... Eu pude ver a tristeza
em seus olhos quando isso não aconteceu. — expliquei lembrando
como essa fase foi difícil para ela.
— Você a conheceu por intermédio do Rodrigo?
— Não, o Rodrigo que me conheceu por intermédio dela. Ele
sempre a levava para fazer as unhas no salão. Quando eu
trabalhava apenas lá ela era a minha cliente VIP. — Por duas vezes
eu vi o seu irmão também...
— Como ele é? — ele perguntou curioso.
— Parecido com você, mas com certeza eu não os
confundiria. Como seu pai escreveu na carta ele aparenta ser mais
inseguro e demonstra ser manhoso ainda. — Ele escutou as
informaçõesque eu lhe dei e ficou pensativo. — Se você quiser eu
sei como encontrá-la... Talvez um encontro por acaso seja mais
fácil, mas já te aviso que um encontro assim com ela também
significa que vamos encontrar com o Rodrigo.
Expliquei para ele a rotina de dona Judite. E disse-lhe que
dessa forma ele teria uma chance por semana de encontrá-la.
Acredito que desse jeito seja mais fácil para ele se aproximar dela.
Algumas semanas se passaram e eu achava que esse
assunto estava esquecido. Era uma quinta-feira e Hugo me
convidou para irmos ao shopping. Chegamos ao salão de tia Nice
como costumávamos fazer. Eu sentia pelo suor frio em suas mãos,
que Hugo estava tenso. Conforme o esperado Dona Judite e
Rodrigo estavam lá. Com um aperto na mão dele, que segurava a
minha, indiquei a direção em que seguiria. Ele caminhou ao meu
lado. Cumprimentei o Rodrigo de longe, cheguei perto da dona
Judite, abaixei-me e dei-lhe um beijo no rosto como sempre fazia.
— Olá dona Judite, quanto tempo?! — falei emocionada. —
Hoje eu trouxe o meu namorado para a senhora conhecer. — Ela
ergue os olhos e entende na hora o que está acontecendo. Percebo
também certo desconfortoem Rodrigo — Dona Judite, esse é o
Hugo.
Ela olha para ele que já está em prantos. Eles se abraçam e
todos que estão no salão ficam emocionados com a cena.
— Filho... Filho... Quanto tempo... Eu sabia que um dia você
voltaria. — Hugo estava meio sem jeito, ele parecia fazer um
esforço enorme para conter o que estava sentido.
Naquele dia dona Judite não fez mais as unhas. Gentilmente
informamos a Rodrigo que a levaríamos para casa. Fomos a um
restauranteintimistaque conhecíamos perto dali. Sugeri a Hugo que
eu poderia deixar que eles conversassem sozinhos, mas ele fez
questão que eu estivesse junto. A aproximação dos dois se deu de
formalenta, eu sabia que ele precisaria de um tempo para ficarmais
à vontade perto dela.
Hoje é domingo e vamos almoçar na casa de dona Judite.
Hugo conhecerá seu irmão João Victor pessoalmente, além das
fotosque seu detetive mandava. Também contaremos a ela que
será avó. A cada dia que passa nossas vidas vão sendo ajustadas
agora em um novo curso. Quando chegamos fomos muito bem
recebidos. A casa que dona Judite divide com João é ampla,
organizada, porém simples. Creio que o Hugo foi o filho que mais
prosperou financeiramente.Frente a frenteos irmãos se encaram,
se cumprimentam, mas ainda ficam sem jeito. Em alguns
momentos, percebo que se aproximam, trocam algumas palavras e
se afastamnovamente. Como tia Nice diz: “Tem coisas que só o
sábio tempo consegue resolver ...”
Para nossa surpresa Rodrigo também participou do encontro.
Estava acompanhado da mesma moça que se apresentou com ele
no baile. Pelos indícios que dão também são namorados. Mesmo
assim, em alguns momentos percebo ele me encarando. A casa de
dona Judite tem um grande quintal, estou sentada em um banco de
madeira conversando com ela e observamos Hugo e João se
conhecendo em um canto. Rodrigo e a namorada se aproximam e
dona Judite convida-a para arrumarem a sobremesa, deixando de
propósito eu e o Rodrigo sozinhos.
— Está feliz? — Ele me pergunta, sentando ao meu lado
enquanto encara Hugo que percebe que estamos isolados.
— Muito. E você?
— Parece estranho, mas eu tenho a impressão de que a
minha função na sua vida foi aproximar vocês... Era como se eu
estivesse enfeitiçado.Respiro aliviado sabendo que isso deu certo.
Dessa forma a sua felicidade é também a minha.
— Sinto muito, mas desde o início eu sabia que nós dois
nunca daríamos certo... Eu não devia... — Ele me interrompe.
— Passado, tudo ficou no passado.
— Vejo que agora são parceiros em mais coisas... — aponto
para a moça que está ajudando dona Judite com a organização da
mesa.
— Então... Estava na minha cara, eu nem precisava procurar,
mas eu precisei passar pelo que passei com você para só assim
reconhecer.
— É, às vezes não entendemos como caminhos tortosdarão
no mesmo lugar... — falo isso encarando o meu amado que
caminha em nossa direção.
— Vamos? Hora da sobremesa... — Ele dá um sorriso
tranquilo para o Rodrigo e me puxa pela mão.
Estamos todos ao redor da mesa. Dona Judite fez questão de
ficar com um filho em cada lado. Ela faz um pequeno discurso
dizendo que agradece a Deus que as coisas tenham se ajustado.
Que ela sabe que no início será mais difícil, porém tem certeza que
a parte mais sofridajá passou. Antes de começarmos a comer Hugo
me puxa para seus braços ele pede licença a todos:
— Hoje é um dia feliz.Durante todos esses anos eu imaginava
em segredo como era estar em família.O orgulho e a amargura que
eu sentia me impediram de me aproximar, mas isso acabou. — Ele
estava visivelmente emocionado. — Quando o papai morreu eu me
senti completamente sozinho, na verdade eu já estava meio
acostumado, pois cada um cuidava de seus negócios isoladamente.
Eu precisei conhecer a Sabrina. Adotar um cachorro. Ela precisou
ser paquerada pelo Rodrigo. Para que eu olhasse ao redor e visse
coisas que até então eu não via. Eu tenho a mais pura certeza que
meu pai deu um jeito de meter o dedo em tudo isso, consertando
tudo e hoje estamos aqui. Todos juntos.
Olhei ao redor e pude perceber que a dona Judite chorava.
— M...m...mãe. — a palavra saiu de sua boca com um pouco
de dificuldade. — A minha vinda e a de Sabrina aqui hoje tem mais
motivo. Nós queremos dividir com vocês a notícia de que já somos
uma família completa: aqui tem um pai, uma mãe, um filho ou uma
filha. — dizendo isso ele coloca gentilmente as mãos em minha
barriga me abraçando pelas costas.
Fomos abraçados e felicitadospor todos. Dona Judite apenas
chora. Posicionamos cada um ao seu lado e a abraçamos. João
Victor que ainda não tinha me dirigido uma única palavra brinca:
— Desse jeito vocês acabam com a minha vida. Agora mamãe
vai me cobrar muito mais do que uma nora... — e a gargalhada é
geral.
Capítulo 65
Eu já estava no quarto mês de gestação, tudo caminhava na
maior normalidade. Pelo menos era o que eu achava. Eu ficava
mais na casa de Hugo do que na casa de tia Nice, mas mesmo
assim eu não tinha cedido aos inúmeros convites que recebia para
morar definitivamentecom ele. Pelo menos uma vez na semana nos
encontrávamos com a dona Judite, o João nem sempre participava.
Só que agora ele tinha criado coragem e apresentou a namorada
para a mãe.
Sentada em minha mesa no escritório, organizando alguns
pedidos de material recebi seu telefonema:
— Senhorita pode vir aqui um pouquinho? — vou toda
animada porque ele acabava de dizer a nossa “senha”, quando
queria brincar no meio do expediente era assim que meu
“namochefe” me chamava.
Fui prontamenteà sua sala e ele estava muito sério. Ele pediu
que eu sentasse à sua frente e começou a falar:
— Eu sei que eu havia te prometido que nunca mais iria
decidir alguma coisa sem te consultar. — Ele me olhava com receio.
— Quero que saiba que antes de eu executar isso eu falei com o
Leo e a Nice.
Era como se ele quisesse justificarque se algo desse errado a
culpa não era só dele. Observava confusa aquele homem à minha
frente,comecei imaginar o que ele poderia me dizer e um pânico
crescente começou a tomar conta de mim.
Hugo estava sendo um excelente parceiro e pai,
acompanhava-me nas consultas e exames, tinha concordado
comigo que iríamos devagar com o enxoval do bebê e que
começaríamos a fazer isso após sabermos o seu sexo, fatoque
provavelmente aconteceria na semana que vem.
— Eu não estou satisfeitocom o rumo que as coisas estão
levando. — Ele continuou. — Quando conversamos há uns meses
eu imaginei que o nosso destino seria diferente.— percebia que seu
olhar me sondava. — Conversei com o Velazquez e expus para ele
o meu descontentamentoe ele se ofereceu para me ajudar como
fez na primeira vez que eu solicitei.
Eu comecei a buscar em minha mente quando tinha sido que o
Leo havia o auxiliado. Lembrei do primeiro contratoque tínhamos
feitoe das consequências desastrosas que isso tinha acarretado em
nossas vidas.
— Sabrina eu exijo que a gente assine outro contrato.— Ele
afirmou resoluto.
Senti um gelo percorrer a minha espinha, quando eu achei que
tudo estava resolvido ele me aparecia com essa agora. Será que
tinha se arrependido? A aflição que eu sentia tinha se alojado na
minha garganta e eu não conseguia dizer nada.
— Só que antes precisamos ir a um evento hoje. — Ele
desembestou a falar uma série de informações. — No closet tem
alguns vestidos à sua escolha e acessórios que precisará para se
arrumar. Tomei a liberdade de contratarpessoas que cuidarão de
seu cabelo, unhas e maquiagem, quando precisar delas solicite a
senhora Macedo. Aguardo você daqui a três horas. Pronta. No
corredor.
Ele me acompanhou até a porta do quarto. Despediu-se de
mim com um beijo em minha testa.Eu estava transtornada.Para
mim já estava tudo resolvido, não haveria mais surpresas. E de
repente toda essa enxurrada de informações.
Dentro do closet, que até dias atrás estava vazio, olho para os
inúmeros vestidos que fazem com que eu me lembre dos eventos
que fomos juntos no passado. Em alguns cabides lingeries e em
uma gaveta diversos acessórios, incluindo colares, brincos e anéis.
Disponho de muitas cores e possibilidades à minha frente.Em um
canto mais isolado noto em destaque dois vestidos muito parecidos.
A principal diferença entre eles é a cor: um é vermelho e outro é
branco. Eles são tão lindos que neste instante todos os outros
desaparecem. Indícios do que está por vir me invadem e contenho o
impulso que tive de ligar para Hugo, recordo-me que estou sem
celular, mas verifico que em uma mesa tem um telefone sem fio.
Ele pensou em tudo. Vou até cada um daqueles manequins e
retiro os dois vestidos. Provo primeiro o vermelho e me olho no
espelho. Foi um vestido vermelho que fez com que ele se
interessasse por mim. Ergo os pés simulando que estou de saltos e
vejo como esse tecido rendado e com elastano ajusta-se
perfeitamenteem meu corpo, que começa a dar sinais de que eu
estou gestante. Visto em seguida o vestido branco, seu caimento é
igualmente perfeito.
Tomo um banho e comunico a senhora Macedo que eu já
estou pronta. Duas moças entram no closet e começam a me
arrumar. Enquanto uma faz as minhas unhas, a outra escova os
meus cabelos. Os dois vestidos estão em cabides pendurados na
minha frente. Eu olho para eles como se fossem um enigma que eu
precisasse desvendar.
— São lindos! — elogia a cabeleireira, que se chamava Bety.
— Já se decidiu? — questiona a manicure.
— Decisão difícil... Quando não se sabe para onde vai... —
respondi pensativa.
— Você não sabe aonde vai? — indagou Bety enquanto
esticava mais uma mexa.
— Não... — respondi sorrindo. — Apenas desconfio.
— E essa sua desconfiança, pede um vestido vermelho ou
branco? — pergunta Cida enquanto massageia os meus dedos com
suas mãos gordas e macias.
— Por incrível que pareça os dois cairiam bem.
— E o esmalte? Que cor vai passar?
— Vermelho. — respondi sem titubear.

Eu estava praticamente pronta. As duas trabalhavam bem


juntas. Escolhi o vestido e pedi para que me ajudassem. Fiz com
que elas jurassem que não contariam a minha escolha a ninguém.
Exatamenteno horário combinado eu estava pronta. Eu sabia que o
meu chefe não gostava nem um pouco de atrasos.
Saí em direção ao corredor e ele estava lá me esperando.
Confesso que minhas pernas que já tremiam um pouco quase não
me obedeceram ao ver que Hugo também estava com um terno
todo branco. O único detalhe de outra cor era um cravo vermelho na
lapela.
Ele caminha ao meu encontro, oferece-me o braço, que
seguro recebendo o apoio de que precisava, sinto um beijo
carinhoso em minha testa e ouço sua voz um pouco trêmula:
— Fica muito bem de branco senhorita! — seu olhar sedutor
faz minha parte íntima se manifestar
.
Agradeço com um sorriso e ele me conduz curiosamente para
a sala ao lado. Hugo coloca a mão no trinco e me encara. Ele
suspira apreensivo e abre a porta. A cena que eu vejo parece de
cinema. No centro do quarto bem iluminado e decorado tem um altar
montado na frente de um juiz. Se dermos um passo à frente
seguiremos em direção a ele por um tapetevermelho. Sentadas em
cadeiras opulentas nas laterais do tapete,as pessoas que nos são
queridas, cada uma tem em sua mão uma rosa vermelha.
Uma música instrumental começa a tocar, Victor Hugo
Schefferme conduz para o centro do tapetee seguimos juntos até o
altar. Vamos caminhando como que em uma marcha nupcial e a
cada pessoa que passamos uma rosa me é entregue. Estão ali o tio
Bene e a dona Tereza, o Rodrigo e a Milena, o João Victor e a
namorada e o Leo. Na última posição da fila estão a tia Nice e a
dona Judite. Tia Nice me entrega três rosas, eu entendo que uma é
sua, uma de mamãe e outra de vovó. Dona Judite me entrega a sua
rosa e a do pai de Hugo.
Eu olho emocionada todas aquelas rosas vermelhas tão lindas
em minhas mãos. A música que estava tocando cessa e outra
começa. Hugo vira para a porta e eu acompanho o seu movimento.
Ela se abre e um homem entra, percebo que em suas mãos tem
uma fita vermelha com um grande laço. Ele caminha em nossa
direção. Olho para ele e entendo na hora o que está acontecendo.
Identificoo seu rosto apesar de estar mais velho. A lembrança que
eu tenho é de um sorriso em sua face e agora o que eu vejo é pura
apreensão. Uma mistura de sentimentos me envolve, não
conseguiria expressá-los por meio de palavras, mas as lágrimas que
escorrem em minha face fazem isso por mim.
Meu pai se aproxima de onde estamos, pede licença meio sem
jeito e com a ajuda de Hugo amarra as rosas que estavam soltas em
meus braços, e eu ganho um buquê repleto de significado.
Ele e tia Nice trocam um olhar de cumplicidade, ele caminha e
se posiciona ao lado dela. Ela gentilmenteretira o buquê de meus
braços e a atenção de todos se volta para mim e meu “namochefe”,
que pulando o títulode “noivo” já será promovido instantaneamente
à categoria de esposo.
— Sabrina o único contrato que quero te oferecer neste
momento é o de nosso casamento. — Ele segura as minhas duas
mãos, dá um beijo em cada uma delas e faz o pedido. — Você
aceita ser a minha esposa para o resto de nossas vidas?
Eu sabia que intimamenteesse pedido era a última coisa que
faltavapara completar a nossa felicidade e transmitira segurança
que eu precisava para juntar definitivamente minha vida junto a dele.
— Sim. Eu aceito. — respondi emocionada.
O juiz realizou a cerimônia civil. Trocamos os nossos votos
que saíram improvisados. O nosso amor é tão grande que não foi
difícil expor os sentimentose proferir juras de amor. Na hora das
alianças, mais uma surpresa. O Amigão entra em cena com elas
amarradas em seu pescoço. Esse animal foi tão importante em
nossa história que não poderia ficar de fora nessa hora.

Quando chegamos ao apartamento,a dona Gertrudes já tinha


organizado um jantar para recepcionar a todos. Eu encaro a mesa
lindamente arrumada, a senhora responsável por aquela façanha
está parada olhando para mim. Eu tinha sido traída por todos eles,
só que dessa vez compreendia que tinha sido por um bom motivo.
Agradeço-lhe com um sorriso.
Após o jantar desfrutamosde um momento mais descontraído
na cobertura. As pessoas se espalham e eu vou até a sacada
observar o céu que estava especialmente lindo. Sinto a chegada de
uma pessoa, já me preparo para receber o abraço por trás do meu
lindo esposo, mas esse contato não acontece. Viro o meu corpo e
verifico que meu acompanhante é outro.
— Você se tornou uma bela mulher! — meu pai elogia
enquanto se ajeita ao meu lado. — Sua tia e sua avó fizeram um
excelente trabalho.
— Obrigada! — respondi insegura, eu sabia que o momento
não era propício a cobranças, mas eu não sentia se estava pronta
para aceitar essa aproximação depois de tantotempo. — Trabalho
que você abriu mão com facilidade.
— Você tem todo direito de me odiar, mas deveria me
agradecer... Confiar a sua criação às duas foi a melhor escolha que
eu fiz. — explicou com amargura no olhar.
— Fique tranquilo. Sua presença não fez a menor faltaem
minha vida. — decidi suavizar a sua culpa. — Eu não me lembrava
de nada do nosso passado até a morte da vovó, que ocorreu
quando eu fiz dezesseis anos, é difícil sentir faltade alguém que
não se lembra.
— Não foi fácil para nenhum de nós naquela época. Eu e a
Nice terminamos um relacionamento conturbado. Eu e a sua mãe
nos aproximamos. Levei um susto com a gravidez imatura, não foi
isso que planejei. Quando achei que as coisas tinham se ajeitado...
Bati aquele carro e abreviei a vida de sua mãe. Eu não tive estrutura
para lidar com isso, saí daqui sem rumo e levei muito tempo para
restabelecer a minha vida. — Ele me encara, suspira e continua. —
Eu voltei e tentei retomar o meu relacionamento com a Nice, mas
ela não me aceitou. Eu estava destruído. E ainda teríamos que lidar
com o remorso que tínhamos um do outro, a culpa e as mágoas
foram maiores do que a vontade de fazer o relacionamento dar
certo.
Eu olhava para o rosto daquele homem amargurado e não
conseguia sentir raiva. Pelo jeito todos esses anos não tinham
aplacado o seu sofrimento.
— Eu pensava em você. Mas o que eu poderia te oferecer?
Vivia em sarjetas, na vida noturna e tentavacurar minhas mágoas
na bebedeira. Eu não tinha a menor condição de te criar. — viro-me
para trás e percebo a tia Nice se aproximando da gente. — Serei
eternamente grato à sua avó e sua tia, que mesmo sofrendo
conseguiram cuidar tão bem de você.
Ele chega perto de mim e me surpreende com um abraço e
um beijo. Que eu recebo sem jeito e sem a menor noção de como
me comportar... Ele se afasta e minha tia fala comigo agora:
— Tudo bem querida?
—Sim — respondi pensativa. —Tia aquele homem que você
me falou... O boêmio... Era ele? — questionei lembrando da história
que tinha me contado.
— Sim. — Ela não consegue esconder o seu remorso.
— Mas você disse que não era...
— Você tinha acabado de saber tantascoisas... Eu imaginei
que saber que encontrei com ele depois do que houve não seria
bom. — tia Nice segura as minhas mãos como se pedisse piedade.
— Lembra quando você me falava que o Scheffer tinha inúmeras
personalidades? Então, o homem que me procurou não era seu pai.
Trazê-lo para nossas vidas do jeito que estava não iria acrescentar
em nada. Muito pelo contrário, nos traria mais problemas.
— Mas agora vocês podem retomar, não é? — fiz essa
pergunta com uma sensação estranha. Tinha conhecimento do
quanto ela gostava dele. Do quanto ela merecia ser feliz. Porém
imaginá-los juntos como um casal me dava uma sensação de
estranhamento.
— Não sei. Faz pelo menos uns quinze anos que não nos
encontramos. Muitas coisas podem ter acontecido na vida dele, mas
eu fico feliz que Hugo conseguiu fazê-lo se reaproximar de você...

Após a cerimônia meu esposo estava meio distantede mim.


Fora os votos que trocamos durante o ritual e o fatode sentarmos
lado a lado na hora do jantar. Percebi que ele estava me evitando.
As pessoas foram embora e nós ficamos a sós. Ele juntava
pacientemente algumas taças que estavam espalhadas.ou V em sua
direção e abraço-o por trás.
— Você foi muito ousado hoje. Sabe que isso não ficará sem
punição — digo com um sorriso diabólico nos lábios. — Poderia ter
me pedido em casamento de forma particular sem envolver a todos
como fez. Até o meu pai... — me posiciono em sua frente.— Você
sabe o que isso significou para mim? Você me prometeu que não
tomaria decisões sem me consultar.
— Sabrina eu sei, mas, eu achei que... — eu podia ver em seu
olhar que estava desesperado.
— Eu participei de tudo isso, só que agora... — fiquei
encarando-o com seriedade. — Eu quero te agradecer. Foi perfeito!
Mágico! Nunca imaginei que poderia ter tantas manifestaçõesde
amor em um só dia...
— Se você quiser, a gente faz outra festa... Maior... Você
merece. — Ele ainda tentava me convencer.
— Hugo. Não ouviu? Foi perfeito.Eu te amo. E amo tudo o
que você representa em minha vida.
— Tem mais uma coisa... — Ele falou me erguendo em seus
braços.
Fui carregada até o quarto que até então era só dele. Quando
entramos eu fiquei impressionada. O quarto estava menor e
circundado por espelhos. Espelhos. Espelhos e mais espelhos.
Podia nos ver em diversos ângulos. Havia pétalas de rosas
vermelhas salpicadas pelo chão e ao redor de todo o quarto, o
rodapé era emoldurado por rosas. As roupas de cama eram
imaculadamente brancas, feitasde cetim. Ao fundo pude perceber
que tocava a música de Jason Mraz, chamada “Won’t Give Up”.
— Me deve uma dança. Esposa. — Ele faloucom intensidade.
— Claro. Esposo. — retribui encarando-o com paixão.
Dançamos como se nossos pés não encostassem no chão.
Tudo era tão intenso. O cheiro que o seu corpo exalava. Seu calor, a
energia que com certeza circulava entre nós. Aos poucos fomos
despindo-nos. Nossa entrega foi total.Fizemos amor de uma forma
calma e tranquila, com a confiança que teríamos muito tempo para
nos entregarmos. Quando deitamos na cama, nossos corpos
continuavam dançando. Nossa dança era uma promessa. Com
certeza essa promessa nenhum de nós dois pretendia quebrar.
Epílogo
A gravidez passou muito rápido. Hugo esteve muito presente
em cada momento. Participou das consultas, exames e sofreu junto
comigo nas horas que levaram o parto. Juntos nos emocionamos
em cada descoberta: o sexo do bebê, o escolha de seu nome e o
momento do seu nascimento. Como meu marido sempre afirmava
que nossa parceria era perfeita. Escolhemos para nosso filho o
nome Benjamin, que significa “filhoda felicidade” , esse nome
transmite exatamente o que ele significa para nós.

Quarenta dias. Foi o tempo que o médico orientou que


esperássemos após o nascimento de Benjamin de parto normal
para retomarmos as nossas “brincadeiras”. Fora as dores do parto,
que de normal acredito que seja só o nome, eu não tive nenhuma
intercorrência em minha gravidez. Estou ansiosa e aflita.Por mais
que eu tenha me cuidado, o meu corpo não é mais o mesmo de
antes. Fiquei com algumas estrias, sinto o meu corpo flácido em
algumas partes. A minha barriga está mais sobressalente que antes,
sem contar os meus seios que quase estão explodindo de tantoleite
que eu tenho.
Durante esses quarenta dias ainda não troquei a roupa perto
do Hugo. Sempre justificoque não quero provocá-lo, que dessa
forma será mais fácil o resguardo, mas com certeza não é só isso.
Estou insegura. Meu marido desde sempre me impôs o seu estilo de
vida, sua dieta e desde que conheci a nutricionistaNúbia eu estava
conseguindo acompanhar o ritmo dele. Até que eu engravidei e tudo
mudou. Para mim está sendo uma torturater que esperar por quatro
meses para voltar a fazer os exercícios que eu estava tão
acostumada.
Estou aqui tentandoinventar uma desculpa para fugir do meu
marido, apesar de estar morrendo de saudades do seu corpo. Tia
Nice ofereceu-se para ficar com Ben. Ele é um bebê adorável, se
depender dele não acorda nem para mamar. Desde o primeiro dia
está mamando no seio e para deixá-lo com a tia Nice terei que fazer
um estoque de leite. Ela queria que eu o levasse à sua casa, mas
não me senti segura em ficar tão longe dele. Ela ficará com ele no
andar de baixo, no quarto que tem ao lado do escritório.
Esse quarto já foi tantascoisas... Quarto de motel, cartório e
agora será o segundo quarto do Ben, ele ficarálá mais perto de mim
quando eu voltar a trabalhar.
Escolhi uma camisola preta com comprimento até os pés para
disfarçar qualquer modificação que a gestação possa ter deixado.
Ela é muito sensual, tem uma abertura frontalque expõe a perna
direita e um decote atrás bem profundotodo contornado por rendas.
Preferi um bojo nos seios, que por enquanto estão mais volumosos
do que eram antes.
Nossa casa agora tem mais quartos. O quarto que Hugo usava
antes foi divido em três. Um para nós, outro para Benjamin e o
terceiro foitransformadoem quarto de hóspedes. O Hugo já chegou
e pedi que ele esperasse lá, até segunda ordem. Estou organizando
uma surpresa para ele. Quero que a nossa noite seja mais do que
especial. Pedi para a dona Gertrudes me ajudar com uma mesa de
frios e champanhe sem álcool para mim, é claro. Colocamos uma
mesa redonda com dois lugares dentro do quarto especialmente
para essa ocasião.
Se eu falarque passei pelo menos trintadias planejando o que
faria hoje, não é exagero. Pois minhas surpresas sempre estiveram
relacionadas com o meu corpo, striptease, danças sensuais e o fato
que mais me apavora: meu marido só gosta de fazer amor com a luz
acesa. Até que um dia eu cheguei a uma solução. Eu espero que
saia tudo conforme o planejado e acabar com essa angústia que
está me consumindo.
— Ele mama agora só às onze horas, tia. Daí você troca a
fralda e se tiver sorte ele dormirá até às seis horas do dia seguinte.
Às vezes dá uma coliquinha, ele chora um pouco, eu faço uma
massagem na barriga e logo passa. Eu o deixo de barriga para
cima, o médico falou que é mais seguro. — eu passava as
orientações para minha tia ansiosa.
Além de ficarlonge do Ben eu estaria com Hugo mais perto do
que eu estava acostumada ultimamente.
— Fica tranquila minha filha. Eu estou aqui embaixo. Pode ter
certeza que qualquer coisa eu não hesitarei em lhe chamar. — tia
Nice me acalmava percebendo o meu desespero. — Escuta, essa
aflição toda é só por causa do Benjamin?
— Claro, eu nunca fiquei tantotempo longe dele. — eu podia
mentir para todo mundo, menos para ela. — Estou nervosa. Essa é
a primeira vez que ele me verá nua depois do parto... Meu corpo
mudou muito tia... T enho medo que...
— Pare de bobeira Sabrina, o Hugo te ama. — Ela
interrompeu me chamando a atenção. — Que tipo de amor você
acha que ele tem por você que não prevê as modificaçõescausadas
por uma gestação? É impossível que o seu corpo esteja igual... —
Ela olha para o bebê em seu colo e conclui. — Gerar uma vida é um
milagre, é natural que o corpo feminino se adapte antes, durante e
depois. Você já está praticamentecomo antes de engravidar e com
o retorno das atividades físicas, logo, logo as coisas voltam pro seu
devido lugar...
— Sei... logo logo eu estarei lá em cima na cama deitada com
ele e definitivamente nem eu, nem meu corpo estamos preparados
para isso... — ironizei.
— Vamos, sobe que ele virá aqui dar boa noite pro Benjamin...
Você quer que ele te encontre aflita desse jeito?
Subi e dei prosseguimento ao plano. Tomei um banho, passei
o hidratante que ele gosta, fiz uma maquiagem leve, deixei os
cabelos soltos e coloquei a camisola. Optei por ficar descalça.
Verifiquei se tudo o que eu precisava estava lá. Mandei-lhe uma
mensagem dizendo que eu estava pronta. Inspirei algumas vezes e
esperei-o chegar. Para melhorar coloquei uma música ambiente.
Deixei a luz praticamente na penumbra.
Minha felicidade ficou completa quando percebi que ele veio
apenas com a calça do pijama. Eu esperava-o sentada à mesa. Ele
nos serviu a bebida gelada e brindamos. Após alguns goles ele me
tomou pelas mãos, deu beijos delicados em meus dedos e tomou os
meus lábios. Ele fez com que eu desse uma volta no meu próprio
corpo, como a me admirar. Esticou o braço indo em direção do
interruptor e eu o brequei:
— Não querido, hoje quero manter o mistério. — falei
sensualmente tentando lhe enganar. — Tem uma série de
brincadeiras que eu quero fazer com você.
Ele fez uma tentativade reclamação, porém consentiu. Eu
coloco-o deitado na cama com as costas apoiadas em travesseiros.
Para dar continuidade em meu plano eu pego uma venda de cetim e
cubro os seus olhos.
— Assim já é demais, querida, eu estou me sentindo um
verdadeiro morcego. — Ele reclamou sem ser ouvido.
— Shhhhhh... Pare de reclamar. — foi a única coisa que eu
disse em minha defesa.
Coloquei uma música mais caliente, da Rihanna chamada
Love On The Brain. E comecei explorar o corpo do meu homem de
diversas maneiras. Ora a minha boca estava gelada, em alguns
momentos eu a aquecia com um chá cítrico, por vezes estava doce
e mentolada com balas em lâminas de menta. A expectativa era
tantodele quanto minha, ao ver a sua deliciosa reação eu estava
me sentindo uma diaba da forma com que eu estava o torturando.
— Meu amor, isso é realmente necessário. Sei que
preliminares são importantes, mas eu estou tão carente de você...
— Ele tirou a venda e deitou-se em cima de mim. — Tenho certeza
de que definitivamenteo que precisamos está aqui. Os nossos
corpos juntos. Nus.
Eu entrei em pânico, mesmo na penumbra eu não estava nem
um pouco disposta em tirar aquela camisola. Ele fez menção em
passar a mão em meu corpo. Eu entrelaço nossos dedos e ofereço-
lhe meus lábios, ele aceita e por um instante eu me esqueço de toda
a incerteza que eu carregava. Ele afastaa minha saia e posiciona a
fenda na direção de minha abertura. Desloca a calcinha para o lado
e posso sentir os nossos sexos se tocarem. Sinto o calor do seu
membro e um ardor logo em seguida. Imagino que seja dos pontos
que tive que levar.
— Você parece virgem para mim Sabrina. — ele sussurra em
meu ouvido. — Que delícia minha princesa. — Depois que ele
descobriu que esse era o significado do meu nome, muitas vezes
me chamava assim.
O desconfortorepentino passou e eu já sentia prazer como
antes. Ele puxou a minha camisola para cima e eu não pude
esconder o meu constrangimento.
— Linda! Você está linda! Nosso filho deu a você as perfeitas
curvas de uma mulher madura.
Ele explorou os meus seios com delicadeza e desceu em
direção ao meu ventre que eu tentava esconder. Contornou as
minhas estrias como se fosseum mapa a ser percorrido. Olhou com
admiração para a minha flácida barriga e pousou sua cabeça nela
como fazia quando Ben ainda estava ali.
— Aqui está o baú que guardou o nosso bem mais precioso.
Sou eternamente grato pelo tesouro que nos deu. — Ele diz isso
demonstrando estar sinceramente emocionado.
Nesse momento todas as minhas dúvidas e incertezas se
desfizeram. Eu estava certa de que nosso amor era muito maior do
que qualquer outra coisa. E eu pude me entregar a ele novamente
sem pensar em nada.

Dona Judite se mostrou uma pessoa muito religiosa e nos


cobrava alguns compromissos perante Deus. Benjamin já estava
com três meses e ainda não tinha sido batizado. Além disso, ela
insistia que precisávamos sacramentar o nosso casamento.
Escolhemos uma capela simples e afastada que tinha em uma
fazenda perto da casa em que morei com a vovó. O fazendeiro
gentilmentenos alugou o espaço que foi ornamentado com flores e
tendas em uma linda manhã de primavera.
Com um fundo musical de Kenny G, chamado “The moment”,
caminhamos pelo tapete lado a lado, com Benjamin no colo de
Hugo. Estávamos os três inteiros de branco. Quando chegamos ao
pé do altar a criança foi entregue aos padrinhos. E renovamos os
nossos votos. A escolha do versículo por parte do padre foi
belíssima (Rute — 1:16-17) e refletia exatamente como estava
sendo a nossa vida:

“Deus mudou o teu caminho até juntares com o meu e


guardou a tua vida separando-a para mim. Para onde fores, irei;
onde tu repousares, repousarei. Teu Deus será o meu Deus. Teu
caminho o meu será.”

Após a homilia estávamos muito emocionados. Ficamos de


mãos dadas até o fim do ritual. Quando foi a vez de tia Nice e Leo
batizarem o nosso pequeno tesouro, que dormia enquanto o padre
lhe consagrava. A festaconjunta prosseguiu no mesmo local. Todas
as pessoas que mais amamos e convivemos estavam ali. Giovana,
uma das manicures do salão, chamou-me em um canto e entregou
o seu presente acompanhado de um cartão. Conversamos um
pouco e pedi licença para atender o Ben que estava chorando.
Enquanto amamentava o meu pequeno em um canto pude
observar a festa acontecer e ver que as pessoas estavam se
divertindo. Fixo a minha atenção em um casal em especial: tia Nice
e meu pai que após tantosanos haviam se entendido. No começo
foiestranho, porém agora eu já tinha me acostumado. Independente
do passado eles tinham o direito de conquistar a felicidade assim
como eu e o Hugo havíamos encontrado.
Quando chegamos em casa Xavier ajudou-nos com os
presentes. Lembrei do cartão de minha amiga e sentei na cama
para ler:

“Palavras

Uma vez que elas são ditas não voltam jamais


É melhor guardá-las se ditas em constrangimento
As minhas palavras na vida dos outros podem ser fatais
Em minha vida podem ser bênçãos ou maldições
Quando saem sem ser calculadas cortam mais do que um
punhal
Palavras emolduradas em promessas amargam a vida igual a
um fel
Que possamos apenas proferir palavras de amor
E que dessa forma nossa vida siga sem nenhum rancor
...
De um espírito amigo.”

Quando terminei de ler notei que Hugo lia comigo, o


significado dessa mensagem, que provavelmente veio do centro
espírita que Giovana frequentava, era muito valiosa e teria que ser
lembrado diariamente em nosso casamento. Fomos vítimas das
palavras do pai dele, que pelo jeito agora se regenerava –não pude
deixar de pensar que essa mensagem poderia ser dele. Fomos
feridos por palavras não ditas ou ditas sem a compreensão de
outrem. Diríamos infinitas palavras um ao outro e a Benjamin.
Após um abraço apertado e um beijo apaixonado, conectamos
nossos olhos e proferimos juntos:“Que assim seja!”
Fim
Agradecimentos
Queridas amigas, amigos, leitoras, leitores e familiares
(sobretudo o Má e o Ber).
Espero que tenham gostado da história e principalmente do
seu final. Estou extremamentehonrada de tê-los em cada momento
comigo, me ajudando com palpites, sugestões, corrigindo erros e
ajustando esse livro para hoje ele ser o que é: um sonho realizado.
Sonho esse que foi sonhado em conjunto. O que me faz ser
eternamente grata a vocês, que suportaram a minha ausência
mesmo estando presente. E, aguentaram, pacientemente,enquanto
eu não conseguia falar em outro assunto. Despeço-me destes
personagens com a sensação de dever cumprido, porém com um
inegável aperto em meu peito.
Sou muito grata a Deus por ter me dado tamanha inspiração e
felicidade ao concluir cada um desses praticamente66 capítulos. E
ter colocado em minha vida pessoas tão especiais como vocês.
Não posso deixar de agradecer pessoas especiais que me
ajudaram desde o início deste percurso: Poli, Cláudia, Bruna,
Dayse, Thays e tod@s os participantes do projeto Sakura, pois
faltariamlinhas aqui para citar todos os nomes. Já na fase final,
contei com a Illyana Himurawakai, IG @illyana_Himurawakai, que
revisou e me ajudou com o resumo e com a Tatiana Luque, IG
@tatyluselvi que me auxiliou de forma tão atenciosa e carinhosa
com as últimas revisões.
Um agradecimento especial ao meu esposo e filho, que foram
ouvintes pacientes, atentos e ativos em cada parte da história,
contribuindo com suas opiniões e sendo muito, muito
compreensivos comigo.

Com Gratidão,
Vicky Fênix
@vickyfenix_livros
@vickyFenixLivros

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