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Amor de Perdição

Camilo Castelo Branco

1. Pequena biografia

Filho ilegítimo de Joaquim Botelho e Jacinta Maria, Camilo Castelo


Branco nasceu em Lisboa, no dia 16 de março de 1825. Sua vida é feita
de acontecimentos trágicos: com um ano e meio de idade perde a mãe
e, aos dez, o pai. A partir daí,vive em casa de parentes, na província:
em Vila-Real, com uma tia, após o que vai para Vilarinho da Samardã,
com a irmã mais velha e , mais tarde, com aparentados residentes em
Friúme (também conhecido como Ribeira de Pena).

Graças a dois padres de vilarejos é que começa a receber, já na


adolescência, instrução formal: aprende francês e lê os clássicos gregos
e latinos, os portugueses, além de muita literatura católica, de base
teológica. Além disso, é grande observador da vida e dos hábitos do
povo das serras, das gentes simples de Trás-os-Montes , o que pode-se
observar nos seus romances e novelas.

Casa-se aos 16 anos com Joaquina Pereira de quem tem uma filha que
morrerá aos 5 anos. Esquece-se do casamento logo depois de realizado,
abandonando-as para ir ao Porto, depois a Coimbra, onde ingressa no
Curso de Medicina, abandonado posteriormente.

Joaquina Maria vai deixá-lo viúvo, mas antes que ela morra, foge de
Vila-Real para o Porto com uma outra jovem (Patrícia Emília, órfã);
nasce desse convívio uma outra filha, mas Camilo vai abandoná-las em
breve. Por esse rapto, passa algum tempo na cadeia.

A partir de 1848 fixa residência no Porto e passa a fazer parte das rodas
literárias dos cafés daquela cidade; pouco antes, aparecera como autor
de peças teatrais em Vila-Real , levando ao palco o drama Agostinho
de Ceuta. Surgem aí suas primeiras novelas, sob a forma de folhetins,
nos jornais O Nacional e O Eco Popular. Nessa ocasião, envolve-se com
uma freira; pouco depois, passa a viver com uma humilde costureira e,
por fim, apaixona-se perdidamente por Ana Plácido. Ela se casa com um
brasileiro, o que origina, em Camilo, uma profunda depressão. Tal crise
desencadeia nele, da mesma forma que o faria no coração de seus
heróis, uma "vocação" religiosa. Passará os dois próximos anos (50-52)
num seminário do Porto, pretendendo ser padre. Nesse tempo, escreve
artigos para jornais absolutistas e clericais. Seis anos depois, já é
novelista reconhecido pelos críticos.
Ana Plácido deixa o marido e vai viver com o escritor em Lisboa, o que
se configura como um escândalo exemplar para a época. Acabam presos
, acusados de adultério, ambos, e são remetidos para a Cadeia de
Relação do Porto. Ficam presos 348 dias, e são absolvidos do processo
que sofrem porque o marido de Ana Plácido morre e, portanto, termina
o crime de adultério.

Começa uma nova fase para o escritor. Passam a morar em São Miguel
de Seide, numa casa herdada pelo filho do primeiro casamento de Ana.
Atingem o casal as dificuldades financeiras demasiadas: em 1983, por
exemplo, tem que vender sua biblioteca — 5.000 volumes
minuciosamente escolhidos e colecionados por ele - para pagar dívidas,
a cegueira , que já dava prenúncios desde há tempos, acaba por se
agravar. O filho mais velho do escritor e de Ana Plácido enlouquece, o
mais novo é um medíocre que , para sobreviver, casa-se por interesse,
num golpe, dizem, armado pelo próprio pai.

Camilo inicia, então, por viver seu inferno: morre o amigo Vieira de
Castro, que se suicida após matar a mulher; morre seu filho mais velho
com Ana Plácido; morrem nora e neto. Depois de uma briga, expulsa o
filho mais novo, Bruno, de casa.E Camilo estava praticamente cego, mas
o escritor nutria esperanças, ainda, de voltar a ver.

Depois de ser consultado, em casa, por um médico que lhe anuncia que
está cego para sempre, e enquanto Ana Plácido acompanha o doutor até
a porta, Camilo suicida-se com um tiro na cabeça: eram 15h15 do dia
1o. de junho de 1890. Acabava , assim, o mais importante escritor do
ultra-romantismo em Portugal.

Escreveu todos os gêneros literários: a poesia, o conto, o romance e a


novela; além do que escreveu também obras teatrais e fez crítica
literária.

2. Escola literária, estilo de época

Camilo Castelo Branco pertence ao ultra-Romantismo em Portugal,


desenvolvido entre 1838 e 1860: "... livres para gozar o prazer da
aventura no mundo da imaginação e da anarquia, acabam
tomando atitudes extremas e transformando-se em românticos
descabelados. Com isso, praticam o ideal romântico na parte da
sensibilidade e da liberdade moral: e, sendo cem por cento
românticos, ultrapassam os limites da estética e tornam-se os
chamados "ultra-românticos". (...) Embora o ultra-Romantismo
se coadune essencialmente com a poesia, muito dos seus
ingredientes também são expressos em prosa. Muda, porém, o
local onde se passam os acontecimentos: a poesia localiza-se
predominantemente em Coimbra, a prosa se deriva do ambiente
hipersensível do Porto nos anos seguintes a 1850. Representa-a
sobretudo Camilo Castelo Branco, em cujas novelas se
condensam não poucas matrizes ultra-românticas, resultantes
de sua aventuresca existência de donjuan e do clima literário e
social respirados nas andanças portuenses."

A vida trágica, as aventuras pessoais marcam profundamente a obra


que o escritor produz e "... Cedendo aos padrões impostos pelo
gosto burguês, Camilo cometeu, toda a sorte de delizes próprios
da vertente folhetinesca: inverossimilhança, pobreza psicológica
em favor da riqueza anedótica, facilidade na sugestão de
atmosferas de terror e mistério a ponto de cair no convencional,
literatura de entretenimento, etc.

Todavia, o eixo ao redor do qual gira toda a importância de


Camilo é constituído pela novela passional. Embora não a tivesse
introduzido em Portugal (o papel cabe a D. João de Azevedo, o
autor d' O Cético e O Misantropo , e a Antônio Pedro Lopes de
Mendonça, autor de Cenas da Vida Contemporânea e Memórias
de um Doido), definiu-a no gosto do público e nos ingredientes
fundamentais, monopolizou-a totalmente depois de certa altura
e tornou-se-lhe o mais alto representante. Para alcançá-lo,
Camilo contava com determinados favores, dentre os quais
predominavam os lances de aventura galante com que pontilhou
sua existência e um especial talento e sensibilidade para tratar
dos problemas do coração.

A novela camiliana muda apenas e sempre no tocante ao enredo,


embaralhado e variado até onde permitia a imaginação do
ficcionista: altera-se constantemente a disposição dos
ingredientes, a tessitura episódica, o ponto de vista em que se
coloca o novelista, mas o módulo central permanece
invariavelmente o mesmo. Na verdade, parte sempre duma
situação única para estabelecer em cada narrativa uma das
inúmeras variações que lhe estão implícitas: sempre o amor
impossível e superior, ou marginal aos preconceitos sociais, que
brota do mais fundo da carne e da alma, levando ao desvario os
apaixonados com as promessas duma bem-aventurança via de
regra malograda.

Sentimento incendiário, vulcânico, impetuoso e alucinante,


realiza-se livremente à margem da revelia do casamento, mas
em nítido litígio contra restos inconscientes do moralismo
burguês, visíveis na perturbação operada no nível dos impulsos,
refletindo dores de consciência provocados pela coerção social.
Estas, em vez de amortecer, estimulam ainda mais o processo
amoroso, transformando-o numa violenta e invencível paixão
que conduz as personagens a comportar-se com furor quase
primitivo, instintivo, pré-lógico. Exaltadas ao limite da anestesia
moral, as personagens ganham força e justificativa para
enfrentar as injunções do meio e da consciência, e dar livre
expansão ao impulso dos sentidos e dos sentimentos. (...)

Tanto é assim que Camilo oscila entre os extremos, ora fazendo


as personagens lograrem ser desvairado intento, mas
submetendo-as às sanções sociais, como a ida para o convento,
o suicídio e a loucura (Carlota Ângela, 1858; Estrelas Funestas,
1862; Amor de Perdição, 1862; A Doida do Candal, 1867), ou
revelando-as destituídas de suportes morais ou espirituais
capazes de assisti-las no vácuo que se forma ao fim de toda
paixão, por mais ardente que seja (Onde está a felicidade?,
1856; Um homem de brios, 1856; memórias de Guilherme
Amaral, 1865). (...)

Outro dom superior de Camilo que cumpre lembrar: o de ser um


contador nato de histórias, dono de um estilo todo seu, e que fez
escola, de quem conhece os segredos da Língua, tanto a erudita,
como a popular ou regional. Muito do mérito e do fascínio
camiliano, - fascínio persistente ainda hoje, como atesta o
grande número de estudiosos e admiradores de sua obra, - vem
daí. Diga-se de passagem, Camilo compreendeu lucidamente a
importância do apuro da linguagem como condição de
sobrevivência de suas novelas. No prefácio à segunda edição do
Amor de Perdição, datado de 1865, confessa: "Estou quase
convencido de que o romance, tendendo a apelar da iníqua
sentença que o condena a fulgir e apagar-se, tem de firmar sua
duração em alguma espécie de utilidade, tal como o estudo da
alma, ou a pureza do dizer. E dou mais pelo segundo
merecimento; que a alma está sobejamente estudada e
desvelada nas literaturas antigas, em nome e por amor das quais
muita gente abomina o romance moderno, e jura morrer sem ter
lido o melhor do mais apregoado autor."

É com justiça considerado mestre e clássico do Idioma."


(Massaud Moisés, A Literatura Portuguesa, Cultrix, 1988, p. 144)

3. Obras do autor
Camilo Castelo Branco é um dos mais fecundos escritores de Língua
Portuguesa. Sua obra é extensa e variada, compreendida entre
romances, novelas, contos, teatro, poemas, crítica, tradução, ensaios e
obra polêmica. Obrigado a escrever para sobreviver, Camilo deixou uma
obra vasta , mas de boa qualidade literária. Eis as mais importantes:

1.Romances, novelas:

Anátema, 1851
Mistérios de Lisboa, 1854
O Livro Negro do Padre Dinis, 1855
A Filha do Arcediago, 55-56
Onde está a felicidade?, 1856
Um homem de brios, 1856
Vingança, 1858
Carlota Ângela, 1858
A Benefic6encia, 1859
A Morta, 1860
Doze Casamentos Felizes, 1861
Coração, Cabeça, estômago, 1861
O Romance dum homem rico, 1861
Amor de Perdição, 1862
Estrelas Funestas, 1862
Estrelas Propícias, 1863
Memórias de Guilherme Amaral, 1863
O Bem e o Mal, 1863
Aventuras de Basílio Fernandes Enxertado, 1863
Amor de Salvação, 1864
Luta de Gigantes, 1865
A filha do doutor negro, 1864
O Judeu, 1866
A Queda de um Anjo, 1866
A Doida do Candal, 1867
O senhor do Paço de Ninães, 1868
O retrato de Ricardina, 1868
O Sangue, 1868
Os Brilhantes do Brasileiro, 1869
A mulher fatal, 1870
O Demônio de Ouro, 73-74
O Regicida, 1874
Novelas do Minho, 75-77
A Caveira do Mártir, 1878
Eusébio Macário, 1879
A Corja, 1881
A Brasileira de Prazins, 1882
Vulcões de Lama, 1886

2.Poesia
Os Pundonores Desagravados, 1845
O Juízo Final e o Sonho do Inferno, 1845
A Murraça, 1848
Inspirações, 1851
Duas Épocas da Vida, 1854
Folhas Caídas, Apanhadas na Lama, 1854
Um Livro, 1854
Ao Anoitecer da Vida, 1874
Nostalgias, 1888
Nas Trevas, 1890

3.Teatro
Agostinho de Ceuta, 1847
O Marquês das Torres-Novas, 1849
Espinhos e Flores, 1857
Poesia ou Dinheiro? , 1862
O Morgado de Fafe, 1863
Amoroso, 1865
Morgadinha de Val d'Amores, 1871
Entre a Flauta e a Viola, 1871

4.Esparsos
Noites de Lamego, 1863
Memórias do Cárcere, 1864
Vaidades Irritadas e Irritantes, 1866
Mosaico e Silva, 1868
Noites de Insônia, 1874
Esboços e Apreciações Literárias, 1885
Maria da Fonte, 1885
Serões de São Miguel de Seide, 1885
Boêmia do espírito, 1886
Cancioneiro Alegre de Poetas portugueses e Brasileiros, 87-88

5. O Romance

1.Divisão:
Estruturalmente, o romance está dividido em 20 capítulos, uma
introdução, à guisa de explicação do porquê do romance e uma
conclusão.

2.O tempo, o espaço:

O tempo do romance é cronológico, linearmente distribuído; logo


de início tende ao vertiginoso , abrange algumas décadas situando
a origem de Simão, mas logo em seguida atém-se ao presente,
dia a dia se constrói, então, a narrativa até o fim.

O espaço divide-se entre Viseu, Vila Real, Lisboa, Cascais, Lamego


e Coimbra.

3.O foco narrativo:

A narrativa é realizada em terceira pessoa, por um narrador


observador que, às vezes, torna-se onisciente a ponto de entrar
na intimidade das personagens e trazê-las vivas e intensas para o
leitor.

É interessante observar que o narrador vale-se das cartas


trocadas entre as personagens Simão e Teresa para devastar-lhes
o universo interior, revelando-lhes os sentimentos mais intensos e
profundos. Trazendo-as para a narrativa, traz junto a alma de
cada um, seus sonhos, inquietações, tristezas e saudades.
Observe:

"É necessário arrancar-te daí — dizia a carta de Simão. —


Esse convento há de ter uma evasiva. Procura-a, e dize-me
a noite e a hora em que devo esperar-te. Se não puderes
fugir, essas portas hão de abrir-se diante da minha cólera.
Se daí te mandarem para outro convento mais longe, avisa-
me, que eu irei, sozinho ou acompanhado, roubar-te ao
caminho. É indispensável que te refaças de ânimo para te
não assustarem os arrojos da minha paixão. És minha! Não
sei de que me serve a vida, se a não sacrificar a salvar-te.
Creio em ti, Teresa, creio. Ser-me-ás fiel na vida e na
morte. Não sofras com paciência; luta com heroísmo. A
submissão é uma ignomínia quando o poder paternal é uma
afronta. Escreve-me a toda hora que possas. Eu estou
quase bom. Dize-me uma palavra, chama-me, e eu sentirei
que a perda do sangue não diminui as forças do coração."

Verifique que os ímpetos da paixão aí estão demonstrados, a


inquietação e a desesperança. As cartas são, de certa forma, uma
estratégia usada pelo narrador para fazer notar, ao leitor, o
sofrimento e a dor que moram na alma de ambos:

"Não vão estas palavras acrescentar a tua pena. Deus me


livre de ajuntar um remorso injusto à tua saudade.

Se eu pudesse ainda ver-te feliz neste mundo; se Deus me


permitisse à minha alma esta visão!... Feliz, tu, meu pobre
condenado!... Sem o querer, o meu amor agora te fazia
injúria, julgando-te capaz de felicidade! Tumorrerás de
saudade, se o clima do desterro te não matar ainda antes
de sucumbires à dor do espírito.

A vida era bela, era, Simão, se a tivéssemos como tu ma


pintavas nas tuas cartas, que li há pouco! Estou vendo a
casinha que descrevias defronte de Coimbra, cercada de
árvores, flores e aves. A tua imaginação passeava comigo
às margens do Mondego, à hora pensativa do escurecer.
Estrelava-se o céu, e a Lua abrilhantava a água. Eu
respondia com a mudez do coração ao teu silêncio e,
animada por teu sorriso, inclinava a face ao teu seio, como
se fosse ao de minha mãe. Tudo isto li nas tuas cartas; e
parece que cessa o despedaçar da agonia enquanto a alma
se está recordando."

É através delas, as cartas, como se vê que esse narrador,


desvenda com maestria o mundo íntimo de suas personagens
protagonistas que se estabelecem sob o signo shakespeariano de
Romeu e Julieta, arquétipo maior do impedimento amoroso.

4.As personagens:

São protagonistas do romance em questão as personagens


Simão Botelho, 17 anos, filho do corregedor do Viseu; Teresa
Albuquerque, 15 anos, filha de Tadeu Albuquerque, inimigo do
pai de Simão; e Mariana da Cruz , filha de João da Cruz, humilde
ferreiro.

São personagens secundárias: João da Cruz, que é absolvido de


um homicídio praticado pelo corregedor Domingos Botelho, pai de
Simão; D. Rita Preciosa, mãe do herói, uma mulher da Corte,
refinada, que humilha o marido.

São personagens antagonistas, nome dado aos antigos vilões


das histórias, as seguintes personagens: Domingos Botelho, pai de
Simão, e o pai de Teresa, Tadeu Albuquerque, que se opõem à
aproximação ou ao casamento dos dois enamorados. O narrador
ressalta-lhes o caráter rancoroso, inflexível e tirano e, ainda, os
ridiculariza posto que signifiquem toda a hiprocisia possível, que
ostentam em nome "da honra", da palavra, do que representam
socialmente. Em nome dos brasões de família, que o narrador
ironiza acintosamente, seus egoísmos mesquinhos transcendem
ao desejo de felicidade dos filhos, do futuro que os abrigue da
melhor maneira possível.

Antagonista também é Baltazar Coutinho, que é primo de Teresa e


a quem Simão assassina por ciúmes. Baltazar é um dissimulado,
uma espécie de cúmplice do tio no afastamento do casal de
enamorados. Mesquinho, ambicioso, vil e hipócrita, ele é um
caráter repugnamente uma vez que encomenda a morte de Simão
a pessoas que influencia.

5.A linguagem camiliana:

Camilo é considerado um purista da língua.

Sua linguagem, no entanto, nada tem que espetacular ou


pomposa. Antes, é de simplicidade deslumbrante, aguda nos
detalhes que articula e ressalta, minuciosa ao descrever os
sentimentos mais escondidos, perfeita e equilibrada.

Mas, é preciso salientar, nem sempre sua linguagem falará de


amor. Ele escreveu também as chamadas novelas satíricas onde a
língua e a linguagem ocupam-se sobretudo de satirizar
violentamente certos comportamentos humanos.

6. Um pouco da história de Amor de Perdição:

O romance, ou novela, como querem alguns, é o mais conhecido de toda


a obra de Camilo Castelo Branco. Foi escrito em apenas quinze dias, na
Cadeia de Relação do Porto, quando o autor tinha 36 anos e vivia um
dos problemas, entre os muitos, mais graves de sua vida: estava preso
junto com Ana Plácido. Ela havia abandonado o marido para viver com
Camilo e ambos foram condenados pelo crime de adultério.

"E ninguém duvidava que o amor de Camilo por Ana Augusta era
realmente "um amor de perdição", se não será mais verdadeiro
fazer a mesma afirmação, mas ao contrário: o amor de Ana por
Camilo é que foi um autêntico "amor de perdição".

O romance trata de fato de amores contrariados e infelizes, logo


com envolvências com o caso Ana/Camilo: a entrada em
convento, a hipótese de degredo (risco que Camilo também
correu), as atitudes cominatórias de Simão contra o abusivo
poder paterno e a sociedade.

No final, há uma nítida transferência de Camilo para Simão, ou


vice-versa, quando este escreve para Teresa:

"Salva-te, se podes, Teresa. Renuncia ao prestígio dum grande


desgraçado."

" Noutra carta, me falavas em triunfos e glórias e imortalidade


do teu nome."

Estas expressões não se adaptam ao caráter e àquilo que


conhecemos de Simão. O escritor, com toda a evidência, está a
falar de si próprio, como tantas vezes aconteceu.

Todavia, no fundamental, Amor de Perdição é a crônica


romanceada de um membro da família de Camilo: de seu tio,
Simão Antônio Botelho, irmão de seu pai, Manuel Botelho, que
era o primogênito, e de Rita, que o recolhera como órfão em Vila
Real. Simão foi de fato degredado para a Índia, lá chegou —
sabe-se — e lá terá perecido — o que se ignora. No romance,
porém, o protagonista morrerá no mar, já longe do convento
onde Teresa definhava.

(...)

A primeira edição do Amor de Perdição (cronologicamente o seu


15o. romance) apareceu em 1862, encaminhava-se Camilo para
os 37 anos. O romance assinala uma nova fase da evolução de
Camilo como romancista -—a fase da plena maturidade artística.

É o livro mais traduzido do escritor, até nos tempos modernos.


Foi por diversas vezes adaptado ao teatro e a cinema, como o
leitor decerto não ignora."
(Subsídios para uma interpretação da Novelística camiliana, Alexandre Cabral,
Livros Horizonte, 1985, Lisboa)

7. Os capítulos, um a um:

Como já dissemos anteriormente, esta novela camiliana é composta de


uma introdução, uma conclusão e 20 capítulos. A Introdução, que
transcrevemos integralmente logo abaixo, é escrita em primeira pessoa
pelo narrador que nos conta como supostamente descobriu a história
que começará .

Preste atenção a isso: todo o romance é narrado em 3a. pessoa, como


você já sabe, mas a Introdução nos é apresentada em 1a. pessoa, um
breve relato através do qual o narrador quer nos tocar, chamar a
atenção para um fato ligado à sua "família", mesmo porque, mais tarde,
no fim do livro, "descobriremos" que Simão é tio do narrador.

Ao ler a Introdução, procure comparar o narrador ultra-romântico com o


narrador realista. Aqui, ele opina, tenta seduzir através da emoção; um
escritor realista não delegaria esta tarefa ao seu narrador. Deixaria que
leitor, por si só, pudesse chegar à conclusão, ao julgamento. Tome
como exemplo comparativo O Crime do padre Amaro ou O primo
Basílio, ambos de Eça de Queiroz. Neles, o narrador apenas conta o
fato e não julga, deixa isso para que o leitor o faça.

Introdução
Folheando os livros de antigos assentamentos no cartório das cadeias da
Relação do Porto, li, no das entradas dos presos desde 1803 a 1805, a fl. 232,
o seguinte:

Simão António Botelho, que assim disse chamar-se, ser solteiro e estudante na
Universidade de Coimbra, natural da cidade de Lisboa, e assistente na ocasião
de sua prisão na cidade de Viseu, idade de dezoito anos, filho de Domingos
José Correia Botelho e de D. Rita Preciosa Caldeirão Castelo Branco; estatura
ordinária, cara redonda, olhos castanhos, cabelo e barba preta, vestido com
jaqueta de baetão azul, colete de fustão pintado e calça de pano pedrês. E fiz
este assento, que assinei — Filipe Moreira Dias.

À margem esquerda deste assento está escrito:

Foi para a Índia em 17 de Março de 1807.

Não seria fiar demasiadamente na sensibilidade do leitor se cuido que o


degredo de um moço de dezoito anos lhe há-de fazer dó.

Dezoito anos! O arrebol dourado e escarlate da manhã da vida! As louçanias do


coração que ainda não sonha em frutos e todo se embalsama no perfume das
flores!

Dezoito anos! O amor daquela idade! A passagem do seio da família, dos


braços da mãe, dos beijos das irmãs, para as carícias mais doces da virgem,
que se lhe abre ao lado como flor da mesma sazão e dos mesmos aromas, e à
mesma hora da vida! Dezoito anos !... E degredado da pátria, do amor e da
família! Nunca mais o céu de Portugal, nem mãe, nem reabilitação, nem
dignidade, nem um amigo!... É triste!

O leitor decerto se compungia; e a leitora, se lhe dissessem em menos de uma


linha a história daqueles dezoito anos, choraria!

Amou, perdeu-se e morreu amando.


É a história. E história assim poderá ouvi-la a olhos enxutos a mulher, a
criatura mais bem formada das branduras da piedade, a que por vezes traz
consigo do Céu um reflexo da divina misericórdia?! Essa, a minha leitora, a
carinhosa amiga de todos os infelizes, não choraria se lhe dissessem que o
pobre moço perdera a honra, reabilitação, pátria, liberdade, irmãs, mãe, vida,
tudo, por amor da primeira mulher que o despertou do seu dormir de
inocentes desejos?!
Chorava, chorava! Assim eu lhe soubesse dizer o doloroso sobressalto que me causaram
aquelas linhas, de propósito procuradas, e lidas com amargura e respeito e, ao mesmo
tempo, ódio. Ódio, sim... A tempo verão se é perdoável o ódio, ou se antes me não fora
melhor abrir mão desde já de uma história que me pode acarear enojos dos frios julgadores
do coração e das sentenças que eu aqui lavrar contra a falsa virtude de homens, feitos
bárbaros, em nome da sua honra.

Primeiro capítulo:

O primeiro capítulo da narrativa tem como objetivo contar a história


pessoal dos pais de Simão:

"Domingos José Correia Botelho de Mesquita e Meneses, fidalgo


da linhagem e um dos mais antigos solarengos de Vila Real de
Trás-os-Montes, era em 1779, juiz de fora de Cascais, e nesse
mesmo ano casara com uma dama do paço, D. Rita Teresa
Margarida Preciosa da Veiga Caldeirão Castelo Branco, filha de
um capitão de cavalos, neta de outro, Antônio de Azevedo
Castelo Branco Pereira da Silva, bem notável por sua jerarquia,
como por um, naquele tempo, precioso livro acerca da Arte da
Guerra.

Dez anos enamorado, mal sucedido, consumira em Lisboa o


bacharel provinciano. Para fazer-se amar da formosa dama D.
Maria I minguavam-lhe dotes físicos: Domingos Botelho era
extremamente feio. Para se inculcar como partido conveniente a
uma filha segunda, faltavam-lhe bens de fortuna: os haveres
dele não excediam a trinta mil cruzados em propriedades Douro.
Os dotes do espírito não o recomendavam também: era
avançadíssimo de inteligência (...)

Domingos Botelho devia ter uma vocação qualquer, e tinha: era


excelente flautista; foi a primeira flauta de seu tempo; e a tocar
flauta se sustentou dois anos em Coimbra, durante os quais seu
pai lhe suspendeu as mesadas(...)" p. 19

Além de apresentar os pais de Simão, o narrador informa-nos que


Domingos Botelho tinha ido para o Viseu como juiz e porque sempre
tivera sonhos de fidalguia, mandou esculpir um brasão de sua família,
mas não colocou nele as armas da família da mulher, D. Rita Teresa. A
esposa indispôs-se contra o marido, razão pela qual o brasão não era
ostentado pelo casal. A família era assim constituída:

"Domingos Botelho casou com D. Rita Preciosa. Rita era uma


formosura, que ainda aos cinqüenta anos se podia prezar de o
ser. E não tinha outro doto, se não é dote uma série de
avoengos, uns bispos, outros generais, e entre estes o que
morrera frígido em caldeirão de não sei que terra mourisca,
glória, na verdade, um pouco ardente, mas de tal monta que os
descendentes do general frito se assinaram Caldeirões.

Mas não eram felizes:

A dama do paço não foi ditosa com o marido. Molestavam-na


saudades da corte, das pompas das câmaras reais, e dos amores
de sua feição e molde, que imolou ao capricho da rainha. Este
desgostoso viver, porém, não empeceu que se reproduzissem em
dois filhos e três meninas. O mais velho era Manuel, o segundo
Simão; das meninas uma era Maria, a segunda Ana e a última
tinha o nome da mãe, e alguns traços de beleza dela." (p. 21)

"Domingos Botelho desconfiava da eficácia dos merecimentos


próprios para cabalmente encher o coração de sua mulher.
Inquietava-o o ciúme; mas sufocava os suspiros, receando que
Rita se desse por injuriada da suspeita. E razão era que se
ofendesse. A neta do general frigido no caldeirão sarraceno ria
dos primos, que, por amor dela, eriçavam, empoavam as
cabeleiras com desgracioso esmero, e cavaleavam
estrepitosamente na calçada os seus ginetes (...)

Simão e Manuel estudavam em Coimbra; Simão era um arruaceiro,


brigão e de mau comportamento, o que obriga Manuel a deixar a cidade,
preocupado e envergonhado, queixando-se insistentemente ao pai para
"que lhe dê outro destino". O pai, no entanto, aprecia o comportamento
do filho desordeiro:

"O corregedor admira a bravura de seu filho Simão, e diz à


consternada mãe que o rapaz é a figura e o gênio de seu bisavô
Paulo Botelho Correia, o mais valente fidalgo que dera Trás-os-
Montes."(p. 24)

Simão também vem, nas férias, a Viseu , e mais: com seus exames
feitos e aprovados:
"O pai maravilhava-se do talento do filho, e desculpa-o da
extravagância por amor do talento. Pede-lhe explicações do seu
mau viver com Manuel, e ele responde que seu irmão o quer
forçar a viver monasticamente." (p.25)

Observe como o narrador descreve Simão Botelho:

"Os quinze anos de Simão têm aparências de vinte. É forte de


compleição; belo homem com as feições de sua mãe, e a
corpulência dela; mas de todo avesso de gênio. Na plebe de
Viseu é que ele escolhe amigos e companheiros. Se D. Rita lhe
censura a indigna eleição que faz, Simão zomba das genealogias,
e mormente o general Caldeirão que morreu frito. Isto bastou
para ele granjear a malquerença de sua mãe. O corregedor via as
coisas pelos olhos de sua mulher, e tomou parte no desgosto
dela e na aversão ao filho. As irmãs temiam-no, tirante Rita, a
mais nova, com quem ele brincava puerilmente, e a quem
obedecia, se ela lhe pedia, com meiguices de criança, que não
andasse com pessoas mecânicas." (p. 25)

Já no final das férias, Simão se envolve numa briga para defender um


de seus criados de sua casa que fora dar água aos machos (animais) no
chafariz e lá quebrou, sem querer, vasilhas que estavam no parapeito
da fonte. Os donos das vasilhas espancaram o criado e Simão quebrou-
lhes todas elas no parapeito.

Foram queixar-se ao pai e Simão foge para Coimbra com o dinheiro


obtido junto à mãe, uma vez que o pai, enfurecido, mandou o meirinho
prendê-lo de qualquer maneira. Lá, Simão aguardaria o perdão do pai.

Quando soube que D. Maria dera apoio ao filho, o juiz fingiu enfurecer-
se e , depois, confessou que era "brutal e estúpido juiz."

Segundo capítulo:

O narrador nos conta que "Simão Botelho levou de Viseu para


Coimbra arrogantes convicções de sua valentia." E um dia, em
meio a um discurso inflamado na Praça de Sansão, foi preso. Saiu de lá
seis meses depois:

"Perdido o ano letivo, foi para o Viseu Simão. O corregedor


repeliu-o da sua presença com ameaças de o expulsar de casa. A
mãe, mais levada do dever que do coração, intercedeu pelo filho
e conseguiu sentá-lo à mesa comum." (p. 28)

No Viseu, operam-se maravilhas nos costumes de Simão:


"As companhias da ralé desprezou-as. Saía de casa raras vezes,
ou só, ou com a irmã mais nova, sua predileta. O campo, as
árvores e os sítios mais sombrios e ermos eram o seu recreio.
(...)

D. Rita pasmava da transfiguração, e o marido, bem convencido


dela, ao fim de cinco meses, consentiu que seu filho lhe dirigisse
a palavra."

Havia, no entanto, uma razão para isso: Simão apaixonara-se por


Teresa:

"Simão Botelho amava. Aí está uma palavra única, explicando o


que parecia absurda reforma aos dezessete anos.

Amava Simão uma sua vizinha, menina de quinze anos, rica


herdeira, regularmente bonita e bem-nascida. Da janela do seu
quarto é que ele a vira pela primeira vez, para amá-la sempre.
Não ficara ela incólume da ferida que fizera no coração do
vizinho; amou-o também, e com mais seriedade que a usual nos
seus anos."(p.29)

Você deve observar no trecho abaixo uma característica típica do


escritor: a intrusão do narrador, em primeira pessoa, a fim de comentar
um fato, dar definições sobre sentimentos. Embora esta característica
também apareça no Realismo machadiano, por exemplo, existe uma
distância grande entre ambos. Machado jamais "julga"ou avalia os
assuntos, enquanto Camilo o faz, dá opiniões, posiciona-se, o que seria
imperdoável para um realista:

"Os poetas cansam-nos a paciência a falarem do amor da mulher


aos quinze anos, como paixão perigosa, única e inflexível. Alguns
prosadores de romances dizem o mesmo. Enganam-se ambos.

O amor dos quinze anos é uma brincadeira; é a última


manifestação do amor às bonecas; é a tentativa da avezinha que
ensaia o vôo fora do ninho, sempre com os olhos fitos na ave-
mãe, que a está da fronde próxima chamando: tanto sabe a
primeira o que é amar muito, como a segunda o que é voar para
longe.

Teresa Albuquerque devia ser, porventura, uma exceção no seu


amor." (p.29)

Os pais de Teresa e Simão eram inimigos "por motivos de litígios, em


que Domingos Botelho lhe deu sentenças contra. Afora isso,
ainda no ano anterior dois criados de Tadeu de Albuquerque
tinham sido feridos na celebrada pancadaria da fonte. É , pois,
evidente que o amor de Teresa, declinando de si o dever de
obtemperar e sacrificar-se ao justo azedume de seu pai, era
verdadeiro e forte. " (p.29)

O tema do impedimento amoroso é vasto em literatura, como


recorrência; Camilo usa aqui o arquétipo conhecido e usado, inclusive,
por Shakespeare em Romeu e Julieta: o amor impossível, pais
inimigos que não aceitam o amor entre os filhos.

Simão e Teresa viam-se discretamente, sem que a família ou vizinhos


pudessem suspeitar deles. Prometiam-se um futuro:

"O destino que ambos se prometiam era o mais honesto: ele ia


formar-se para poder sustentá-la, se não tivessem outros
recursos; ela esperava que seu velho pai falecesse para, senhora
sua, lhe dar, com o coração, o seu grande patrimônio."

Chega o tempo de voltar novamente à Coimbra. Na véspera de ir


embora, quando ambos se despediam de longe, através de olhares, a
suspirosa menina foi arrancada da janela. Ficou alucinado, ouvindo os
gemidos dela, ferveu-lhe o sangue diante da impotência de socorrê-la.

Parte no outro dia, e, na hora da partida, recebe de uma mendiga, que


lhe pede esmolas, uma carta escrita por Teresa. Esta será a primeira
entre muitas outras que o livro traz. O tom é lamentoso e triste:

"Meu pai diz que vai me encerrar num convento por tua causa.

Sofrerei tudo por amor de ti. Não me esqueças tu, e achar-me-ás


no convento, ou no céu, sempre tua de coração, e sempre leal.

Parte para Coimbra. Lá irão dar as minhas cartas; e na primeira


te direi em que nome hás de responder à tua pobre Teresa."

Na academia, em Coimbra, a mudança de Simão causou espanto:


"Estudava com fervor, como quem dali formava bases do futuro
renome e da posição por ele merecida, bastante a sustentar
dignamente a esposa. A ninguém confiava seu segredo senão às
cartas que enviava a Teresa, longas cartas em que folgava o
espírito da tarefa da ciência."

Manuel, cadete em Bragança, volta a Coimbra e vai morar de novo com


o irmão. Mas foge com uma açoreana casada com um acadêmico.
Fogem para Lisboa.

O capítulo termina quando "No mês de fevereiro de 1803 recebeu


Simão Botelho uma carta de Teresa. No seguinte capítulo se diz
minuciosamente a peripécia que forçara a filha de Tadeu
Albuquerque a escrever aquela carta de pungentíssima surpresa
para o acadêmico, convertido aos deveres, à honra, à soiedade e
a Deus, pelo amor."(p. 31)

Capítulo 3

O pai de Teresa jamais consentiria num casamento entre os dois e,


pobre dos dois amantes, "O magistrado mofava do rancor do seu
vizinho, e o vizinho malsinava de venalidade a reputação do
magistrado."

Teresa, da janela, aproxima-se de Rita, irmã mais amada de Simão. Um


dia, ambas são surpreendidas numa conversa . Tadeu Albuquerque
acredita na filha, adverte-a suavemente.

Mas havia um motivo maior para essa suavidade inusitada: o pai


pretendia casá-la com um primo, Baltazar Coutinho, também fidalgo.

"Cuidava o velho, presunçoso conhecedor do coração das


mulheres, que a brandura seria o mais seguro expediente para
levar a filha ao esquecimento daquele pueril amor a Simão."

O pai de Teresa jamais proferira palavra sobre o que sabia haver entre
os dois jovens, mas, em segredo, chamara à sua casa do primo Baltazar
e com ele tratara um casamento sem que consultasse a filha.

Baltazar encantou-se com a idéia e nele inflamou uma paixão; instigado


pelo tio, o rapaz aproximou-se um dia da melancólica menina:

"- É tempo de lhe abrir o meu coração, prima. Está bem disposta
a ouvir-me?

- Eu estou sempre bem disposta a ouvi-lo, primo Baltazar."

E o fidalgo, diante da frieza da resposta, completou:

"- Os nossos corações penso eu que estão unidos; agora é


preciso que nossas casas se unam. "

Teresa empalideceu, baixou os olhos, o que fez Baltazar perguntar-lhe


se lhe dissera alguma coisa desagradável. E Teresa responde,
firmemente convicta de seu amor por Simão:

"- Disse-me o que é impossível fazer-se — respondeu ela sem


turvação. — O primo engana-se: os nossos corações não estão
unidos. Sou muito sua amiga, mas nunca pensei em ser sua
esposa, nem me lembrou que o primo pensasse em tal."
O rapaz fica aborrecido e insiste em saber quem disputa com ele o
coração da prima. Claro que já tinha sido devidamente informado pelo
pai dela e, tomado de um rancor grande contra o amado de Teresa
revela que conhece Simão da Academia em Coimbra e que , como
amigo, deve advertir a prima sobre o caráter do rapaz.

Mais, ainda:

"- Não se zangue, prima. Vou-lhe dizer as minhas últimas


palavras: eu hei de, enquanto viver, trabalhar para salvá-la das
garras de Simão Botelho. Se seu pai faltar, fico eu. Se a leis a
não defenderem dos ataques do seu demônio, eu farei ver ao
valentão que a vitória sobre aguadeiros não o poupa ao desgosto
de ser levado a pontapés para fora da casa de meu tio Tadeu de
Albuquerque."

A moça é tomada de um ataque de raiva e pergunta ao primo se quer


governar-lhe. O primo sai dali e procura o tio, contando-lhe o essencial
do diálogo entre ambos. O pai promete espancá-la, mas refreia a sua ira
e, depois de algumas horas, comunica à filha que, caso resolvesse dar-
se ao filho do maior inimigo, ele já a considerava morta.

Teresa responde que prefere, então, ir para um convento.

Capítulo 4

"O coração de Teresa estava mentindo! Vão lá pedir sinceridade


ao coração!

Para finos entendedores, o diálogo do anterior capítulo definiu a


filha de Tadeu Albuquerque. É mulher varonil, tem força de
caráter, orgulho fortalecido pelo amor, desapego das vulgares
apreensões, se são apreensões a renúncia que uma filha fez do
seu alvedrio às imprevidentes e caprichosas vontades de seu
pai." (p.38)

O conteúdo da carta de Teresa a Simão era esse, mas ela omitira alguns
detalhes como, por exemplo, as ameaças de Baltazar.

Tudo parecia certo e melhor: o primo voltara ao solar de Castro-Daire, o


pai não falara mais nada a ela sobre convento ou casamento.

Mas, num domingo de junho de 1803, Teresa foi chamada pelo pai para
assistir à primeira missa:

"- Vais hoje dar a mão de esposa a teu primo Baltazar, minha
filha. É preciso que te deixes cegamente levar pela mão de teu
pai. Logo que deres este passo difícil, conhecerás que a tua
felicidade é daquelas que precisam ser impostas pela violência.
Mas repara, minha querida filha, que a violência dum pai é
sempre amor."(p. 39)

Teresa chora desesperada e pede que o pai a mate, mas não a obrigue a
casar-se por violência. Mas o pai está impassível: "- Hás de casar! —
Quero que cases! Quero... Quando não, serás amaldiçoada para
sempre, Teresa! Morrerás num convento! Esta casa irá para teu
primo! Nenhum infame há de vir aqui pôr um pé nas alcatifas de
meus avós. Se és uma alma vil, não me pertences, não és minha
filha, não podes herdar os apelidos honrosos , que foram pela
primeira vez insultados pelo pai desse miserável que tu amaas!
Malditas sejas! Entra nesse quarto, e espera que daí te
arranquem para outro, onde não verás um raio de sol!"(p. 40)

Irado, ao encontrar Baltazar, o pai anuncia que não pode dar-lhe a filha
em casamento "porque já não tenho filha." Baltazar vai para Castro-
Daire, mas aconselha o velho tio a não mandá-la para o convento,
muitas bocas falariam, para que?

Teresa ficara feliz com a repentina quietude do pai, mas desconfiava que
algo não estava bem. Escreve a Simão, desta vez narrando tudo: o
recente episódio, os ódios do primo, as ameaças e o medo de violência.

Simão, ao tomar conhecimento da notícia, quase enlouqueceu. A


primeira coisa que pensou , tomado pela fúria, foi ir a Castro-Daire e
apunhalar furiosamente o primo de sua amada. Mas enquanto esperava
pelo cavalo, " seu bom anjo, neste espaço, vestido com as galas
com que ele vestia na imaginação Teresa, deu-lhe rebates de
saudade daqueles tempos e ainda das horas daquele mesmo dia
em que cismava na felicidade que o amor lhe prometia, se ele a
procurasse no caminho do trabalho e da honra. Contemplou os
seus livros com tanto afeto, como se em cada um estivesse uma
página da história do seu coração. Nenhuma daquelas páginas
tinha ele lido, sem que a imagem de Teresa lhe aparecesse a
fortalecê-lo para vender os tédios da continuada aplicação, e os
ímpetos dum natural inquieto e ansioso de emoções desusadas."
(41-42)

Simão parte para o Viseu e hospeda-se em casa de um ferreiro, nas


proximidades da cidade, a fim de que ninguém ali soubesse dele. E
manda, através da mendiga, uma carta a Teresa. A resposta é melhor
do que esperava: ela o verá às 11 em ponto, vai abrir a portão para ele.

Na fantasia do rapaz, haveria de beijá-la, abraçá-la, tocar-lhe o rosto...

Capítulo 5
Enquanto Simão esperava, de ouvido colado ao portão que Teresa
abriria, a festa do aniversário da menina acontecia lá dentro. Baltazar
Coutinho simulava indiferença pela prima.

Todos aconselhavam a aniversariante a reconciliar-se com Baltazar, e


também aconselhavam a Tadeu Albuquerque a realizar aquelas reuniões
sociais mais a miúdo, a fim de contentar o coração da filha que, dessa
forma, poderia dispersar os pensamentos, encantar-se com outras
coisas.

"Mas, de agitada que estava, teresa não compartia do gozo dos


seus hóspedes. Desde que soaram dez horas daquela noite, a
rainha da festa parecia tão alienada das finezas com que as
senhoras e homens à competência a lisonjeavam, que Baltazar
Coutinho deu tento do desassossego de sua prima, e teve a
modéstia de imaginar que ela se ofendera da indiferença dele.
" (p.45)

Pediu-lhe desculpas; Teresa chamou para junto de si uma menina, a fim


de evitar uma aproximação mais frontal do primo e pouco depois saiu da
sala.

Baltazar seguiu-a, a menina tornou à sala , mas saiu de lá outra vez,


envolvida em um xale escuro. Ouviu um tropel de cavalos e, assustada,
retrocedeu à sala. O pai, vendo-a tão aflita perguntou-lhe o que estava
acontecendo. Mas ela, vendo que Baltazar ali não estava, disse ao pai
que ia procurar pelo primo.

Mas desceu ao jardim, abriu o portão e com a voz entrecortada pela


ansiedade disse a Simão que voltasse no dia seguinte às mesmas horas.

Baltazar e Simão se vêem no escuro, ameaçam-se, mas o enamorado


Botelho prefere retornar à casa do ferrador. Teresa, que passa a noite
acordada, escreve-lhe uma carta contando os fatos e não desmarca o
encontro que ambos tinham acertado.

O ferrador tinha uma filha de 24 anos, Mariana. Simão percebe que ela
o observa de modo melancólico e Mariana revela a ele que algo triste
está para acontecer a Baltazar, que sabia parcialmente de sua história.

João da Cruz, o ferreiro, conta ao rapaz que deve muito a Domingos


Botelho, que o havia livrado da prisão. Revela mais: fora criado na casa
dos Castro-Daire e que, há bem pouco tempo Baltazar o chamara a fim
de oferecer-lhe um "serviço": tirar a vida de um homem e que esse
homem era Simão.
Conta também, que ao tomar ciência disso procurou o corregedor, pai
de Simão, e que aquele, ao tomar conhecimento dos motivos, disse que
jamais consentiria num casamento entre ambos.

João da Cruz oferece-se para raptar Teresa, mas o rapaz quer apenas
sua ajuda para vê-la no fim da noite.

Mariana, ao saber que ele teima em ir ver Teresa, apesar dos perigos,
chora.

Capítulo 6

Baltazar contrata dois homens para matar Simão, caso ele venha à casa
do tio. E recomenda a um deles:

"Não convém que estejas perto desta porta. Se o homem


aparecesse aqui morto, as suspeitas caíam logo sobre mim ou
meu tio."(p.51)

Escondem-se à distância, e vêem quando João da Cruz se aproxima,


logo aparecem o arrieiro e Simão. João avisa ao rapaz que dois homens
estão perto da igreja e que neles reconheceu os criados de Baltazar.
Houve um tumulto, Simão entrou na porta do quintal, apertou
convulsamente a mão de Teresa e foram embora, receosos de que os
criados pudessem estar esperando na saída da cidade. Foi o que
aconteceu e, no encontro, um criado de Baltazar caiu morto. João da
Cruz pede que o rapaz vá na frente; volta e mata o outro criado que
havia quebrado a perna e que, há poucos instantes implorava, de
joelhos, pela vida.

Ao saber disso, Simão ficou horrorizado:

"- Você é cruel, senhor João — disse o acadêmico.

- Não sou cruel — disse o ferrador — o fidalgo está enganado


comigo; é que, diz lá o ditado, morrer por morrer, morra meu
pai, que é mais velho. Tanto faz matar um como dois. (...)

Simão teve um instante de horror do homicida, e de


arrependimento de se ter ligado a tal homem."(p.61)

Simão ficou ferido durante a luta empreendida.

Capítulo 7

O ferimento de Simão fora mais sério do que se julgava a princípio: "A


bala passara-lhe de revés a porção muscular do braço esquerdo;
mas algum vaso importante rompera, que não bastavam
compressas a vedar-lhe o sangue. Horas depois de ferido o
acadêmico sentiu-se febril, deixando-se medicar pelo ferrador. O
arrieiro partiu para Coimbra, encarregado de espalhar a notícia
de ter ficado no Porto Simão Botelho."(p. 62)

As pessoas do Viseu comentavam que dois homens tinham aparecido


mortos, dois criados deo fidalgo de Castro —Daire. Teresa arranja um
jeito de escrever a Simão, outra vez pela mendiga:

"Deus permita que tenhas chegado sem perigo a casa dessa boa
gente. Eu não sei o que se passa, mas há coisa misteriosa que eu
não posso adivinhar. Meu pai tem estado toda a manhã fechado
com o primo, e a mim não me deixa sair do quarto. Mandou-me
tirar o tinteiro; mas eu felizmente estava prevenida com outro.
Nossa Senhora quis que a pobre viesse pedir esmolas debaixo da
janela do meu quarto; senão eu nem tinha modo de lhe dar sinal
para ela esperar esta carta. Não sei o que ela me disse. Falou-me
em criados mortos, mas eu não pude entender... Tua mana Rita
está me acenando por trás dos vidros do teu quarto...

Disse-me agora tua mana que os moços de meu primo tinham


aparecido mortos perto da estrada. Agora já sei de tudo. Estive
para lhe dizer que tu aí estás; mas não me deram tempo. Meu pai
de hora a hora dá passeios no corredor, e solta uns ais muito
altos.

Ó meu querido Simão, que será feito de ti?... Estás ferido? Serei
eu a causa da tua morte?

Dize-me o que souberes. Eu já não peço a Deus senão pela tua


vida. Foge desses sítios; vai para Coimbra, e espere que o tempo
melhore a nossa situação. Tem confiança nesta desgraçada, que
é digna da tua dedicação... Chega a pobre: não quero demorá-la
mais... Perguntei-lhe se se dizia de ti alguma coisa, e ela
respondeu que não. Deus o queira."(p. 62-63)

Baltazar foi chamado pela polícia, respondeu que os criados eram seus
sim, mas que não sabia por que estavam mortos, nem quem os matara,
posto que não tivessem inimigos no Viseu.

Tadeu Albuquerque toma uma decisão extrema: vai internar a filha num
convento. Escolhera Monchique, onde a prioresa era uma parenta dos
Albuquerque, e, ao enviar os papéis para que ela os receba, determina
que a filha fique de passagem num convento no Viseu.

No momento em que a mendiga traz a resposta do amado, que Teresa


esconde no seio, o pai entra em seus aposentos e pede que ela se vista.
O diálogo é ríspido:

" - Se a sua idéia é obrigar-me a casar com meu primo...

- E daí?

- De certo não caso; morro, e morro contente, mas não caso.

- Nem ele a quer. A senhora é indigna de Baltazar Coutinho. Um


homem do meu sangue não aceita para esposa uma mulher que
fala de noite aos amantes nos quintais. Vista-se depressa, que
vai para um convento.

- Prontamente, meu pai. Esse destino lho pedi eu muitas vezes.

- Não quero reflexões. Daqui a pouco apareça-me vestida. Suas


primas esperam-na para a acompanharem."(64)

Aconselhada pelas primas, Teresa não volta atrás a despeito dos apelos
delas. E entra para o convento sem uma lágrima.

Ao fechar-se a porta, para grande espanto das monjas, exclamou:

"- Estou mais livre que nunca. A liberdade do coração é


tudo."(p.65)

As monjas se irritam com isso e a menina explica que vem ali para
sentir-se bem. Mas a prioresa responde-lhe:

"- Quem para aqui vem, menina, há de mortificar o espírito, e


deixar lá fora as paixões mundanas." (p.66)

Mas que tipos de monjas ali estavam: falavam mal umas das outras,
bebiam vinho até ficarem bêbadas. Depois que a sua acompanhante
dormiu, Teresa levantou-se e escreveu a Simão:

"Não receies nada por mim, Simão. Todos esses trabalhos me


parecem leves, se os comparo aos que tem padecido por amor de
mim. (...) Ama-me assim desgraçada, pois me parece que os
desgraçados são os que mais precisam de amor e de
conforto."(p.72)

Capítulo 8

Quando vê o pai fazendo curativos no braço de Simào, Mariana desmaia.


O ferreiro recomenda que ela o alimente e cuide das feridas dele.

João e o acadêmico conversam sobre Mariana e o pai lhe conta que não
falta a ela pretendentes.
Mariana cuida de Simão com desvelo , seguindo a recomendação do pai
que, encarecidamente, antes de sair, pediu que ela o tratasse como se a
um irmào ou marido.

O ferreiro volta mais tarde e traz a carta de Teresa. Lá, a moça revelara
que o pai a entregara na noite anterior ao cuidado das monjas. Simão
escreve uma carta desesperada à amada:

"É necessário arrancar-te daí — dizia a carta de Simão. — Esse


convento há de ter uma evasiva. Procura-a, e dize-me a noite e a
hora em que devo esperar-te. Se nào puderes fugir, essas portas
hão de abrir-se diante da minha cólera. Se daí te mandarem para
outro convento mais longe, avisa-me, que eu irei, sozinho ou
acompanhado, roubar-te ao caminho. É indispensável que te
refaças o ânimo para te não assustarem os arrojos da minha
paixão. És minha! Não sei de que me serve a vida, se a não
sacrificar a salvar-te. Creio em ti, Teresa, creio. Ser-me-ás fiel na
vida e na morte. Não sofras com paciência; luta com
heroísmo."(p. 77)

Encarrega o ferreiro de entregar a carta à mendiga e lhe dá a


incumbência de entregar à pedinte uma moeda pequena, em prata,
como recompensa. João da Cruz desconfia que o fidalgo está sem
dinheiro e recomenda à filha que lhe entregue umas poucas economias
que ambos guardavam.

Mariana anuncia que a mãe de Simão sabe dele escondido na casa do


ferreiro, pois havia mandado chamar lá o pai. Mas era mentira, apenas
um modo para dizer ao rapaz que a mãe mandava-lhe dinheiro... o
dinheiro deles mesmos, que Simào recebia certo de que era originário
de sua casa.

Capítulo 9

Como se o pai demorasse a chegar, Mariana preocupa-se, julgando-o


preso no Viseu. João da Cruz chega e traz o dinheiro, que entrega ao
rapaz como se viesse da mãe. Simão quer pagar-lhe a hospedagem, o
ferreiro não aceita.

Cinco dias decorreram. As cartas entre Simão e Teresa eram trocadas;


algumas cheias de saudades, outras de esperança. A última desespera
Simão:

"Não me desampares, Simão; não vás para Coimbra. Eu receio


que meu pai me queira mudar deste convento para outro mais
rigoroso. Uma freira me disse que eu não ficava aqui; outra
positivamente me afirmou que o pai diligencia a minha ida para
um mosteiro do Porto. Sobretudo, o que me aterra, mas nào me
dobra, é saber eu que o intento do meu pai é fazer-me professar.
Por mais que imagine violências e tiranias, nenhuma vejo capaz
de me arrancar os votos. Eu não posso professar sem ser noviça
por um ano, e ir a perguntas três vezes, hei de responder sempre
que não. Se eu pudesse fugir daqui!!!... "(p. 85)

Com a aceitação da prioresa de Monchique, totalmente desconhecida de


Teresa, o pai manda avisar à filha, de repente, que partirá com ela de
madrugada. Não há como avisar Simão. Teresa finge-se doente.

Quando a mendiga recebe o bilhete de Teresa e parte para entregá-lo a


Simão, o hortelão do convento a prende, espanca e entrega a
mensagem ao pai de Teresa.

Mas a mendiga vai a Simão e conta tudo. Ele quase enlouquece, mas
Mariana diz conhecer uma moça que trabalha lá dentro do convento, e
que vai entregar a correspondência a ela, que fique sossegado.

Na carta, o rapaz pedia à amada que fugisse, que ele a esperaria, que
marcasse horas para isso ser. Mariana sai para entregar a carta e
esperar pela resposta.

Capítulo 10

Mariana chega ao convento e procura por Joaquina, a amiga. Vê de


longe Teresa Albuquerque e pergunta à amiga se pode falar com ela.
Fica sabendo que trazem a moça debaixo dos olhos, sempre, e que ela
partirá no dia seguinte.

Insiste e consegue ver Mariana, entregando-lhe a carta:

"- Eu não posso escrever-lhe, que me roubaram meu tinteiro, e


ninguém me empresta um. Diga-lhe que vou de madrugada para
o convento de Monchique, do Porto. Que não se aflija, porque eu
sou sempre a mesma. Que não venha cá, porque isso seria inútil,
e muito perigoso. Que vá ver-me ao Porto, que hei de arranjar
um modo de lhe falar. Diga-lhe isto, sim?

- Sim, minha senhora.

- Não se esqueça, nào? Vir cá, de modo nenhum. É impossível


fugir, e vou muito acompanhada. Vai o primo Baltazar e minhas
primas, e meu pai, e não sei quantos criados de bagagem e das
liteiras. Tirar-me no caminho é uma loucura com resultados
funestos. Diga-lhe tudo, sim?" (p. 91)

Simão decide ver a amada partir e é desaconselhado pelo ferreiro:


"Paixões... que as leve o diabo, e mais quem com elas engorda.
Por causa de uma mulher, ainda que ela seja filha do rei, não se
há de um homem botar a perder. Mulheres há tantas como a
praga, e são como as rãs do charco, que mergulha uma e
aparecem quatro à tona da água. Um homem rico e fidalgo como
vossa senhoria, onde quer que topa uma com um palmo de cara
como se quer e um dote de encher o olho. Deixai-a ir com Deus
ou com a breca, que ela, se tiver que ser sua, à mão lhe há de vir
dar, tanto faz andar para trás como para diante: é ditado dos
antigos."(p. 93)

Mas Simão, amargurado, escreveu-lhe uma longa carta:

"Considero-te perdida, Teresa. O sol de amanhã pode ser que eu


o não veja. Tudo, em volta de mim, tem uma cor de morte.
Parece que o frio de minha sepultura me está passando o sangue
e os ossos.

Não posso ser o que tu querias que eu fosse. A minha paixão não
se conforma com a desgraça. Eras a minha vida: tinha a certeza
de que as contrariedades me não privavam de ti. Só o receio de
perder-te me mata. O que me resta do passado é a coragem de ir
buscar uma morte digna de mim e de ti. Se tens força para uma
agonia lenta, eu não posso com ela.

Poderia viver com a paixão infeliz; mas este rancor sem vingança
é um inferno. Não hei de dar barata a vida, não. Ficarás sem
mim, Teresa; mas não haverá aí um infame que te persiga depois
da minha morte. Tenho ciúmes de todas as tuas horas. Hás de
pensar com muitas saudades no teu esposo do céu, e nunca
tirarás de mim os olhos da tua alma para veres ao pé de ti o
miserável que nos matou a realidade de tantas esperanças
formosas.

Tu verás esta carta quando eu estiver num outro mundo,


esperando orações de tuas lágrimas (...)

lembra-te de mim. Vive, para explicares ao mundo, com a tua


lealdade a uma sombra, a razão por que me atraíste a um
abismo. Escutarás com a glória a voz do mundo, dizendo que
eras digna de mim.

À hora em que leres esta carta..."(p. 94)

Mariana, ao ver o amigo desolado, chora e diz que é a última vez que
porá a mesa para ele. pede a Simão que nào saia aquela noite, nem no
dia seguinte e fica sabendo que ele deseja ver Teresa partir. Conta ao
pai, que decide acompanhá-lo.

Mas Simão, em meio à noite, levanta-se a parte só. Mariana estava


velando e despede-se do rapaz. Simão chega ao convento à uma da
manhã e espera até às quatro, quando, então, ouve o barulho das
liteiras.

Vê Baltazar e o velho pai, que parece alquebrado.

Ao aparecer Teresa, o pai pergunta se ela quer voltar para casa,


esquecer Simão:

"- Não, meu pai. O meu destino é o convento. Esquecê-lo nem


por morte. Serei filha desobediente, mas mentirosa é que
nunca."(p. 98)

As religiosas saem do convento e encontram Simão encostado à parede.


Teresa também o vê. Há discussão entre ele e Baltazar, e Simào o mata
com um tiro na cabeça.

Apesar de João da Cruz, recém-chegado, o instar para fugir, Simão


entrega-se. Teresa vai com os criados para o Porto.

Capítulo 11

A família de Simào foi acordada e avisada da tragédia. O corregedor


acordara ao som do rebuliço e do choro das irmãs. Domingos Botelho
perguntou à D. Rita o que estava havendo:

"- Pois sim, direi: Simão matou um homem.

- Em Coimbra? ... E fazem tanta bulha por isso!

- Não foi em Coimbra, foi em Viseu — tornou D. Rita.

- A senhora manga comigo?! Pois o rapaz está em Coimbra, e


mata em Viseu! Aí está um caso para que as Ordenações do
Reino não providenciaram.

- Parece que brinca, Meneses! Seu filho matou na madrugada de


hoje Baltazar Coutinho, sobrinho de Tadeu de Albuquerque."
(p.101)

O pai nega-se a ir à casa do juiz, onde se encontra Simão e pede para


que chamem o meirinho, a fim de saber o que se passou: "Eu nào sou
pai; sou corregedor. Não me incumbe a mim interrogá-lo.
Senhora D. Rita, eu não quero ouvir choradeiras; diga às
meninas que se calem, ou que vão chorar no quintal."(p. 101)
O meirinho relata a Domingos Botelho o que se passou e aponta a filha
de Tadeu Albuquerque como a culpada pelo desatino do rapaz. Ouvida a
história, o pai conclui:

"- O juiz de fora que cumpra as leis; se ele não for rigoroso, eu o
obrigarei a sê-lo."(p.102)

Irritado, quando sai o meirinho, diz à mulher que preferia ver o filho
morto que ligado àquela família. O juiz vem à casa do corregedor e diz
que a situação de Simão é péssima.

"- Confessa tudo. Diz que matou o algoz da mulher que ele
amava..."

Domingos Botelho está irado. O juiz tenta dizer ao pai que ajude o filho,
mas Domingos Botelho , mesmo diante da afirmação do juiz de que está
sendo severo demais com o filho, manda aplicar-lhe o rigor das leis e
acrescenta que Simão já não tem no Viseu nenhum parente que o
defenda..

A mãe manda-lhe o almoço e, pela teor da carta que acompanhava a


refeição fica sabendo que o dinheiro que recebera era de João da Cruz.
A filha do ferreiro, mais tarde, vem vê-lo.

Simão pede que lhe compre tinteiro e escrivaninha para a cela. Dela,
fica sabendo que Teresa foi para o Porto.

Capítulo 12

O corregedor e a família partem do Viseu para Vila Real. Ritinha ainda


tenta ver o irmão, mas o pai a repreende asperamente. É através dos
apontamentos dela que podemos tomar ciência dos fatos. O narrador
nos apresenta como que uma narrativa cuja autora é Ritinha:

"Logo que chegamos a Vila Real, eram tão freqüentes as


desordens em casa, à conta do Simão, que meu pai abandonou a
família, e foi sozinho para Montezelos. A mãe quis também
abandonar-nos e ir para os primos de Lisboa, a fim de solicitar
livramento do mano. Mas meu pai, que fizera uma espantosa
mudança de gênio, quando tal soube, ameaçou minha mãe de a
abrigar judicialmente a não sair da casa de seu marido e filhas.

Escrevia minha mãe a Simão, e não recebia resposta. Pensava


ela que o filho não respondia: anos depois, vimos entre os papéis
de meu pai todas as cartas que ela escrevera. Já se vê que o pai
as fazia tirar do correio."
Ritinha anota também que uma mulher do Viseu escrevera à mãe para
louvar a afeiçào com que ela tratava o filho preso e dá contas que uma
moça, Mariana, cuidava dele com desvelo, comentando-se que com o
dinheiro que a mãe mandava.

"Passados sete meses, soubemos que Simão tinha sido


condenado à forca(...) minha mãe caiu doente."(p. 109)

Parentes intervêm e Domingos Botelho cede, indo a Lisboa, para onde o


rapaz, posteriormente, foi levado. Intercedeu pelo filho a contragosto.

O julgamento de Simão confirmou a notícia: seria enforcado. Mariana,


que estava assistindo ao julgamento, grita desesperada depois da
sentença. Simão fala:

"- Ides ter um belo espetáculo, senhores! A forca é a única festa


do povo! levai daí essa pobre mulher que chora; essa é a criatura
única para quem o meu suplício não será um passatempo."(p.
111)

Mariana foi encontrada à saída do tribunal, pelo pai, ferida e demente.


Levou-a amarrada para casa, mas deixou a cargo de outra pessoa as
refeições do condenado.

Em casa, Mariana sentava-se à banca e escrevia o nome de Simào


centenas de vezes, enquanto chorava, enquanto imaginava que seu
sofrimento era igual ao de Teresa.

Capítulo 13

Teresa fora acompanhada ao Porto por uma criada do pai; esta agora,
diante do sofrimento da moça, apiedara-se dela. Pela criada, fica
sabendo que o primo morrera e que Simão fora preso. Pensou em fugir,
tentar ajudá-lo, mas foi convencida por Constança de que tal feito só
agravaria a situação do moço.

Teresa foi recebida com carinho e brandura em Monchique, apesar das


recomendações do pai para que a tia abadessa lhe privasse de todas as
regalias e que a impedisse de escrever a quem quer que fosse.

A abadessa dissuadiu-a de escrever ao rapaz, mas recebia as cartas do


primo Tadeu Albuquerque, cartas iradas que não mostrava à moça por
piedade. Nelas, Tadeu afiançava que Simão iria à forca. Nada falava a
Teresa, mas a esta via quando a prima chorava.

"A débil compleição de Teresa deperecia aceleradamente. A


ciência condenou-a à morte em breve. Disto foi informado Tadeu
Albuquerque, e respondeu: "Que a não desejava morta; mas se
Deus a levasse, morreria mais tranqüilo, e com sua honra sem
mancha." (p. 117)

Uma freira segreda a Teresa que uma freira do convento dos Remédios
de Lamego lhe segredara que Simào fora condenado à morte. Teresa
pede a ela que leve ao amado uma carta; a religiosa aceita a
incumbência. Eis a carta:

"Simão, meu esposo. Sei tudo... Está conosco a morte. Olha que
te escrevo sem lágrimas. A minha agonia começou há sete
meses. Deus é bom, que me poupou ao crime. Ouvi a notícia da
tua próxima morte, e então compreendi por que estou morrendo
hora a hora. Aqui está o nosso fim, Simão!... Olha as nossas
esperanças! Quando tu me dizias os teus sonhos de felicidade, e
eu te dizia os meus!... Que mal fariam a Deus os nossos
inocentes desejos?!... Por que nào merecemos nós o que tanta
gente tem? ... Assim acabaria tudo, Simão? Não posso crê-lo!
"(p.118)

Quinze dias depois, Simão recebe a carta e a responde:

"Não me fujas ainda, Teresa. Já não vejo a forca, nem a morte.


Meu pai protege-me, e a salvação é possível. Prende ao coração
os últimos fios da tua vida. prolonga a tua agonia, enquanto eu
te disser que espero. Amanhã vou para as cadeias do Porto, e hei
de ali esperar a absolvição ou comutação da sentença. A vida é
tudo. Posso amar-te no degredo. em toda parte há céu, flores e
Deus. Se viveres, um dia serás livre; a pedra do sepulcro é que
nunca se levanta. Vive, Teresa, vive! Há dias, lembrava-me que
as tuas lágrimas lavariam da minha face as nódoas do sangue do
enforcado. Esse pesadelo atroz passou. (...) Volvi à vida , e tenho
o coração cheio de esperanças.

Não morras, filha da minha alma!"(p. 120)

Leu a carta para a criada Constança e prometeu a ela que se um dia


estivesse com Simão, a levaria junto e a faria feliz.

Teresa está sem forças, o médico sequer receita mais remédios para
ela.

Capítulo 14

Tadeu Albuquerque vai a Monchique e fica sabendo que a filha está


melhor, como se num milagre.
Sofrendo, o velho pai anuncia que gostaria de levá-la de volta a Viseu,
mas a prima o desaconselha. Ao ver a filha naquele estado, o pai é
tomado de tristeza. E a menina anuncia que não tornará ao Viseu, que
ali, em Monchique, pretende viver ou morrer.

"- Se eu entender que estes ares são nocivos à tua saúde, hás de
ir, porque é obrigação minha conduzir e corrigir a tua má sina.

- Está corrigida, meu pai. A morte emenda todos os erros da


vida.

- Bem sei; mas quero-te viva, e, portanto, recobra forças para o


caminho. Logo que tiveres meio dia de jornada, verás como a
saúde volta por milagre.

- Não vou, meu pai.

- Não vais?! — exclamou , irritado, o velho, lançando grades as


mãos trementes de ira.

- Separam-nos esses ferros a que meu pai se encosta, e para


sempre nos separam." (p. 123)

O pai agrava mais a discussão ao citar que Simào está no Porto, que ela
deve ter vergonha de si mesma. Teresa pede licença para ir à cela, que
passa mal; e as irmãs a amparam. A abadessa discute com Tadeu
porque este quer levar a filha à força. Enfurecido diante da negativa da
prima, vai à polícia solicitar que lhe entreguem a filha e tentar impedir
que Simão possa escrever a quem quer que seja. Um dos
desembargadores, amigo de infância da mãe de Simào, diz-lhe que
reconsidere a sua fúria, que vê em Tadeu um quase homicida, que ele
sossegue. Clama o desembargador para que a fúria dele cesse, que já
fez sofrer a muita gente.

E revela que Simão não vai mais à forca.

O velho retruca:"Veremos..."

Capítulo 15

Estamos em março de 1805.

Simão relê as cartas da amada. O ferreiro João da Cruz o visita e diz


que Mariana está curada, que vem visitá-lo em breve. Simão pede que
não deixe a filha em Lisboa, ao que o ferreiro retruca e informa ao
amigo que ele tem em Viseu uma cunhada velha que dele cuida.
O homem vai entregar uma carta do fidalgo a Teresa e fala com ela,
oferece-lhe a vida de companhia. E relata, na volta, a Simão, o que
falou com Teresa, que lhe pareceu forte.

Capítulo 16

Manuel, irmão de Simão, volta a Portugal e vai visitar o irmão, ocasião


em que conhece Mariana. O corregedor fica enfurecido quando descobre
que o filho está no Porto com a concubina.

Enfurecido, faz mais: dá um jeito para que a mulher de Simão torne de


volta à sua terra, o que é feito.

" Partiu para Lisboa a açoriana, e dali para a abrigo de sua mãe,
que a julgava morta, e lhe deu anos de vida, se não ditosa,
sossegada e desiludida de quimeras.

Manuel Botelho, obtido o perdão pela preponderância do


corregedor do crime, mudou de regimento para Lisboa, e aí
permaneceu até que, falecido seu pai, pediu baixa e voltou à
província."(p. 140)

Capítulo 17

João da Cruz é morto pelo filho do homem que assasinara, que vai
procurá-lo em casa e se vinga da morte antiga.

Cabe a Simão dar a notícia a Mariana , que quase enlouquece outra vez.
Mas o rapaz a adverte que precisa dela para continuar vivendo:

"Mariana exclamou:

- Deixa-me chorar, por caridade!... Ai!, meu Deus, se eu não


torno a endoidecer!

- Que seria de mim! — atalhou Simão. — A quem deixaria Mariana


o seu nobre coração para me suavizar este martírio? Quem me
levaria ao desterro uma palavra amiga que me animasse a crer
em Deus? Nào há de enlouquecer, Mariana, porque eu sei que me
estima, que me ama, e que afrontará com coragem a maior
desgraça que ainda pode sugerir-me o inferno!mChore, minha
irmã, chore; mas veja-me através de suas lágrimas! "(p. 144)

Capítulo 18

Depois de alguns dias da morte do pai, Mariana voltou ao Viseu e


vendeu as terras que o pai lhe deixara, deixando a casa para a tia velha.
O pai havia deixado uma pequena fortuna para ela,
Volta ao Porto e deixa tudo nas mãos de Simão, dizendo temer ser
roubada na pequena casinha onde agora morava.

Simão diz que irá para o degredo e escuta da devotada Mariana o que já
esperava:

"- Vou para o degredo, se vossa senhoria me quiser na sua


companhia.

Fingindo-se surpreendido, Simão seria ridículo aos seus próprios


olhos.

- Esperava essa resposta, Mariana, e sabia que nào me dava


outra. Mas sabe o que é o degredo, minha amiga?

- Tenho ouvido dizer muitas vezes o que é, senhor Simào... É


uma terra mais quente que a nossa; mas também há lá pão, e
vive-se...

- E morre-se abrasado pelo sol doentio daquele céu, morre-se de


saudade da pátria, morre-se muitas vezes dos maus-tratos dos
governadores das galés, que têm um condenado na conta de
fera.

- Não há de ser tanto assim. Eu tenho perguntado muito por isso


à mulher dum preso, que cumpriu dez anos de sentença na Índia,
e viveu muito bem em uma terra chamada Solor, onde teve uma
tenda; e se não fossem as saudades, diz ela que não vinha,
porque lhe corria melhor por lá a vida que por cá."(p. 146)

Simão pergunta-lhe o que esperava dele e revela a Mariana que jamais


poderá fazê-la sua esposa, insistindo para que ela, já aos 26 anos, cuide
de sua vida.

Mariana diz que prefere morrer a ficar sem ele.

Ao cabo de seis meses, o Tribunal deu a sentença: dez anos na Índia.

Domingos Botelho intercedeu pelo filho, Simào poderia apelar da


decisão, mas não quis. Poderia, em vez de ir para a Índia, passar dez
anos na prisão.

E seu nome foi inscrito na lista dos degredados.

Capítulo 19

Simào se desvencilhara da forca, restava-lhe agora a humilhação , a


miséria e a indigência no seu degredo para a Ïndia. Ele, ali na prisão ,
esperando o momento de partir; Teresa, no convento, sem seu consolo
ou cuidados. Mas Teresa pede a Simào que aceite os dez anos:

"Dez anos! dizia-lhe a enclausurada de Monchique. — Em dez


anos terá morrido meu pai e eu serei tua esposa, e irei pedir ao
rei que te perdoe, se nào tiveres cumprido a sentença. Se vais ao
degredo, para sempre te perdi, Simão, porque morrerás, ou não
acharás memória de mim, quando voltares." (p. 153)

Mas Simão escreveu:

"Não esperes nada, mártir — escrevia-lhe ele. — A luta com a


desgraça é inútil, e eu já não posso mais lutar. Foi um atroz
engano o nosso encontro. Não temos nada neste mundo.
Caminhemos ao encontro da morte... Há um degredo que só no
sepulcro se sabe. Ver-nos-emos? (...)

Salva-te ,se podes, Teresa. Renuncia ao prestígio dum grande


desgraçado. Se teu pai te chama, vai. Se tem de renascer para ti
uma aurora de paz, vive para a felicidade desse dia. "(p. 154)

Muitas cartas se seguiram a estas e no dia 10 de março de 1807, o


condenado recebeu intimação para sair na primeira embarcação. Nada
impedia que Mariana fosse junto. As malas foram feitas, Simão
desesperava-se, arrancava os cabelos, lastimava-se:

"E Teresa! — bradava ele, surgindo subitamente do seu espasmo.


— E aquela infeliz menina que eu matei! Não hei de vê-la nunca
mais, nunca mais! Ninguém me levará ao degredo a notícia de
sua morte! E, quando eu a chamar para que me veja morrer
digno dela, quem te dirá que eu morri também, ó mártir?!"(p.
155)

Capítulo 20

"A 17 de março de 1807, saiu dos cárceres da Relação Simão


Antônio Botelho, e embarcou no cais da Ribeira, com setenta e
cinco companheiros. O filho do ex-corregedor de Viseu, a pedido
do do desembargador Mourão Mosqueira, e por ordem do
regedor das justiças, não ia amarrado com cordas ao braço de
algum companheiro. Desceu da cadeia ao embarque, ao lado de
um meirinho, e seguido de Mariana, que vigiava os caixões da
bagagem. O magistrado, fiel amigo de D. Rita Preciosa, foi a
bordo da nau, e recomendou ao comandante que distinguisse o
condenado Simão, consentindo-o na tolda e sentando-o à sua
mesa. (...)"
Entregou a Simào o dinheiro que a mãe mandara-lhe, mas Simào pede
ao comandante que o distribua entre os degredados.

O navio parte e Mariana indica o convento onde estava Teresa. Então,


pôde ver sua amada que lhe enviara na véspera uma trança de cabelos.

Teresa também o vê, sente-se mal e é amparada pelas freiras

"Emaçou depois as cartas, e cintou-as com fitas de seda


desenlaçadas de raminhos de flores murchas, que Simão, dois
anos antes, lhe atirara da sua janela ao quarto dela.

As pétalas das flores soltas quase todas se desfizeram e Teresa,


contemplando-as, disse: "Como a minha vida..."- e chorou,
beijando os cálices desfolhados das primeiras que recebera.

Deu as cartas a Constança e encarregou-a de uma ordem, a


respeito delas, que logo veremos cumprida.

Depois foi orar, e esteve ajoelhada meia hora, com meio corpo
reclinado sobre uma cadeira. Erguendo-se, quase tirada pela
violência, aceitou uma xícara de caldo, e murmurou com um
sorriso: "Para a viagem..."

Um pouco mais tarde, pede a Constança que a leve ao mirante e ficou


ali, a mirar a nau que levaria os degredados para a Índia.

Quando Simão saiu, a claridade de seus olhos apagou-se; Simào a viu


nesse instante.

E nesse instante uma mendiga entregava a ele o pacote de cartas tão


bem arranjado...

Ainda pôde abanar para ele um lenço branco, em despedida.

Simão pressentiu que Teresa morrera e, recolhido ao beliche, começa


por ter febres que vão , aos poucos, consumi-lo.

Recomenda Mariana ao capitão do navio,fazendo-o prometer que, em


caso de sua morte, traria Mariana de volta a Portugal. O capitão
promete.

Conclusão

"Às onze horas da noite, o comandante recolhera-se num beliche


de passageiro, e Mariana, sentada no pavimento, com o rosto
sobre os joelhos, parecia sucumbir ao quebranto das trabalhosas
e aflitivas horas daquele dia.
Simão Botelho velava prostrado no camarote com os braços
cruzados sobre o peito, e os olhos fitos na luz que balançava,
pendente de um arame. O ouvido tê-lo-ia, talvez, atento a um
assobio da ventania: devia de soar-lhe como a um ai plangente
aquele silvo agudo, voz única no sil6encio da terra e
céu."(p.163)

Pôs- se a ler a carta de Teresa, a última entre todas:

"É já o meu espírito que te fala, Simão. A tua amiga morreu. A


tua pobre Teresa, à hora em que leres esta carta, se Deus não
me engana, está em descanso.

Eu devia poupar-te a esta última tortura; não devia escrever-te;


mas perdoa à tua esposa do céu a culpa, pela consolação que
sinto em conversar contigo a esta hora, hora final da noite da
minha vida.

Quem te diria que eu morri, se não fosse eu mesma, Simão?

Daqui a pouco, perderás de vista este mosteiro; correrás


milhares de léguas, e não acharás, em parte alguma do mundo, e
pede ao Senhor que te resgate.

Se te pudesses iludir, meu amigo, quererias antes pensar que eu


ficava com vida e com esperança de ver-te de volta do degredo?
Assim pode ser, mas, ainda agora, neste solene momento, não
podia viver. Parece que a mesma infelicidade tem às vezes
vaidade de mostrar que o é, até não podê-lo ser mais! Quero que
digas: - Está morta, e morreu quando eu lhe tirei a última
esperança. (...)

Rompe a manhã. Vou ver a minha última aurora... a última dos


meus dezoito anos!

Abençoado sejas, Simão! Deus te proteja, e te livre de uma


agonia longa. Todas as minhas angústias Lhe ofereço em
desconto das tuas culpas. Se algumas impaciências a justiça
divina me condena, oferece tu a Deus, meu amigo, os teus
padecimentos, para que eu seja perdoada.

Adeus! À luz da eternidade parece-me que já te vejo, Simão!"

Após ler a carta, Simão ergueu-se. Mariana e o comandante o


acompanham ao convés, para onde ele leva o maço de cartas. O capitão
teme que ele cometa suicídio, o que Simão nega.

Vieram as febres, um médico o examina e diz que está condenado.


Era 27 de março, o nono dia da doença de Simão. Mariana parecia ter
envelhecido, Simão delirava, repetindo trechos das cartas de Teresa.

Simão morre, em meio a convulsões e o capitão joga-lhe o corpo ao


mar. Mariana também se atira ao mar, morrendo abraçada ao cadáver
do fidalgo.
FICHA

Estilo: pertence à época romântica


Gênero: novela passional
Foco Narrativo: Embora na "Introdução" narrador e autor se confundam,
os fatos são narrados em 3ª pessoa.
Tempo e Espaço: Portugal (Viseu, Coimbra e Porto), século 19.
Personagens: Simão Botelho, Teresa Albuquerque, Mariana, Baltasar,
Domingos Botelho, Tadeu Albuquerque, João da Cruz, D. Rita Castelo Branco

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