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A PERSPECTIVA ROMÂNTICA DE AMOR DE PERDIÇÃO

Camilo Castelo Branco, lisboeta, nascido na Rua da Rosa a dezesseis de março


de 1825, põe fim a sua conturbada existência com uma bala na cabeça, no primeiro dia
de junho de 1890, em São Miguel de Seide.
A vida deste notável ultrarromântico começa sob signo fatídico, aos dez anos de
vida quando se vê órfão de ambos os pais e compelido a morar inicialmente com uma
tia e depois com a irmã, em Vilarinho da Samardã, localidade de Trás-os-Montes. Após
os mínimos estudos feitos com o padre Antônio Azevedo, irmão de seu cunhado, casa-
se aos dezesseis anos com Joaquina Pereira de França, pobre camponesa que não
completara ainda as quinze primaveras, indo morar na casa do sogro, em Friume.
Camilo não tarda a abandonar sua primeira esposa, deixando-lhe uma filha fruto
desse precoce matrimônio. Alargados os seus estudos regulares, logo ingressa no
segundo ano da Escola Medico-Cirúrgica do Porto na tentativa de fazer-se médico, mas
perde o direito a matrícula ao ser reprovado por faltas.
Em 1848, aos vinte e um anos, fixa domicílio definitivo no Porto, após breve
permanência em Vila Real, na região de Trás-os-Montes, cenário do caso amoroso
mantido com Patrícia Emília, por ele raptada da família e com quem teve uma filha,
Bernardina Amélia. Acusados do furto de 20.000 cruzados, ambos são presos na Cadeia
da Relação do Porto, face à intervenção de João Pinto da Cunha, marido de sua tia Rita
Emília, que o havia recebido na falta dos pais.
No pleno vigor dos anos, entrega-se à produção literária e intensifica suas
aventuras amorosas, entre as quais o relacionamento com Isabel Cândida Mourão, freira
do Convento da Ave-Maria, motivo de enorme escândalo na sociedade de então. Os
amores de Camilo não pararam por aí; sua fama de D. Juan cresceu tanto ao ponto de
ser cognominado “o terror das virgens”.
Os amores ilícitos do escritor levaram-no aos braços e ao leito de Ana Augusta
Plácido, mulher de Manuel Pinheiro Alves. Esta, que ficou conhecida como a mulher
fatal da vida de Camilo, abandona o marido, português que fizera fortuna no Brasil, e
foge com o romancista para Lisboa. Condenada por adultério, Ana Plácido cumpre pena
na Cadeia da Relação do Porto e Camilo, após perambular pelo Minho e Trás-os
Montes, apresenta-se às autoridades. Absolvido, o casal vive algum tempo na capital
portuguesa, até que Manuel Pinheiro Alves falece. Cabendo de herança a casa que
Pinheiro Alves habitara em Seide, a Manuel Plácido, filho suposto de Ana com o
marido que a voz geral sabia ser de Camilo, passa a família a nela residir.
A sorte dos filhos do casal não foi a melhor: Manuel, após fracassar em negócios
na então colônia de Angola, deu-se à bebida e à boemia, falecendo precocemente; Nuno,
seguiu o exemplo do pai numa vida aventurosa e infeliz; Jorge, desde cedo afetado das
faculdades mentais, entrou num processo de demência acentuado e irrecuperável.
Camilo terminou seus dias acometido de doenças graves como a gota, a sífilis e
a cegueira total. Com tão pesado fardo, o único lenitivo a lhe restar foram os cuidados
advindos de Ana Plácido, o carinho que esta lhe dispensava mesmo em meio a “horas
infernais”, testemunho deixado, em carta, sobre os últimos anos partilhados com
Camilo.
Estas notas biográficas mínimas são indispensáveis ao conhecimento do grande
público, de modo a entender-se a razão de, muitas vezes, os estudiosos da obra de
Camilo afirmarem que: sua vida foi romanesca, tanto quanto as tramas novelescas de
sua autoria; o material lido em seus romances, contos e novelas, até certo ponto,
aproveita a própria experiência do autor; o trágico, o riso, a transgressão, o desafio, a
ironia, o sarcasmo, presentes em sua obra , são os mesmos encontráveis na tumultuada
vida que levou.
Mas os dados biográficos também ajudam o leitor a compreender por que
Camilo é o nome mais importante do segundo momento do Romantismo português.
Ora, um homem de conduta e temperamento tão exacerbados, com talento literário a lhe
fluir durante o auge do Romantismo lusitano, não poderia deixar de ser um
ultrarromântico.
Sabe-se que o Ultrarromantismo é a denominação dada ao período intermediário
do Romantismo, em Portugal, com balizas históricas entre 1838 e 1860; o primeiro
momento, correspondente à fase de introdução da estética romântica em solo português,
dá-se de 1825 a mais ou menos 1838; o terceiro, convencionou-se que vai de 1860 até
ao surgimento da geração realista ocorrido na cidade de Coimbra, em torno da figura
carismática de Antero de Quental, e arregimentada na Sociedade do Raio, no grupo do
Cenáculo, na Questão Coimbrã ou do Bom-Senso e Bom Gosto e nas Conferências do
Cassino Lisbonense. É certo que a Sociedade do Raio já se iniciara em 1861, mas os
limites temporais exatos na literatura e na cultura, em geral, não são rígidos.
É, portanto, a essa altura, conveniente ressaltar que Camilo inicia sua obra em
1851, quando lança Anátema, e a fecha em 1886 com a edição de Vulcões de Lama.
Fica claro, portanto, que o escritor realiza seu trajeto literário na segunda metade do
século XIX, em meio ao clímax do Romantismo, da transição desta estética para o
Realismo e da luta deste contra o Romantismo com a conseqüente afirmação da nova
escola que preconizava o método experimental-científico aplicado à literatura.
Entende-se, assim, porque Camilo se opôs aos realistas, tomando partido
contrário, com eles polemizando ao ponto de no “Prefácio à Quinta Edição” a Amor de
Perdição alfinetar os intelectuais realistas: “Pois que estou a dobrar o cabo tormentório
da morte, já não verei onde vai desaguar este enxurro, que rola no bojo da Idéia
Novíssima. Como a honestidade é a alma da vida civil, e o decoro é o nó dos liames que
atam a sociedade, lembra-me se vergonha e sociedade ruirão ao mesmo tempo por
defeito de uma grande evolução-rigolboche. A lógica diz isto; mas a Providência, que
usa mais da metafísica que da lógica, provavelmente fará outra coisa.”
As simples alusões à “Idéia Nova”, sinônimo de Realismo, mas com qualidade
de “enxurro” (que tanto pode significar rio impetuoso quanto escória), e à teoria da
evolução considerada “rigolboche” (cujo sentido preciso é libertina, devassa), nos
passam a virulência camiliana administrada num “Prefácio” em que o autor procura
chamar a atenção do leitor para a esperança de que seu livro, Amor de Perdição,
ultrapassaria, incólume, as novas posições literárias e até dois séculos adiante, sem
perder seu encanto. Escreve justamente nesse sentido, continuando o trecho antes
citado: “Se, por virtude da metempsicose, eu reaparecer na sociedade do século XXI,
talvez me regozije de ver outra vez as lágrimas em moda nos braços da retórica”. Pois
não há dúvida ser esta uma profissão de fé ultrarromântica, irônica, e também uma
aposta no escuro no sucesso e na permanência de seu Amor de Perdição. De qualquer
forma, chegamos ao século por ele vislumbrado, lendo-o com o mesmo encanto que nos
causam as páginas de Eça de Queirós e Antero de Quental, por exemplo.
Mas, que segredo sedutor há nos capítulos de Amor de Perdição? Indagamos,
apenas para permitir o desenvolvimento de uma tese. Se bem observarmos, este livro de
Camilo se insere no centro de uma realidade histórica bem conhecida do escritor, qual
seja a consolidação e o desfazimento progressivo do mundo romântico. Seu romance dá
conta de um universo muito específico, o complexo ambiente resultante das lutas
liberais e da organização burguesa firmada aos poucos em território português sob o
influxo do período napoleônico. Desse modo, as teses românticas adotadas em Amor de
Perdição refletem o ideal de mundo liberal-romântico-burguês, permitindo-nos extrair
da leitura feita alguns corolários ideológicos retidos pelo texto literário.
Não é difícil perceber, pois, que no romance em análise o autor está convicto de
que: o sentimento individual, em vez da Razão, é o determinante das ações; o amor a
tudo preside, tudo pode, tudo vence; o individualismo exacerbado, a vontade mesma
como centro motor do mundo com apoio num querer inquebrantável, é o sustentáculo
do ser humano; o caráter nobre do homem mormente com relação ao orgulho, à paixão,
à virilidade, quando atingido, sempre faculta e admite uma ação violenta e até anti-
social; os valores morais têm mais peso e importância do que os da tradição familiar ou
de sangue e, sendo assim, a nobreza de caráter não é privilégio da aristocracia, mas de
qualquer ser humano, independente da posição social ocupada.
Que fique claro também seguir Amor de Perdição o modelo de romance
romântico surgido em fins do século XVIII e aperfeiçoado no século XIX, em que os
personagens protagonistas são quase sempre adolescentes; o enredo, via de regra,
decorre entre protagonistas jovens empeçados por antagonismos familiares ou de outra
ordem; o meio social é o da classe média burguesa, abastada; o desenlace se dá com
uma solução trágica para o ágon amoroso e passagem pelas soluções clássicas do
convento, da loucura e da morte, ideais no drama passional (é bom não olvidar que
outras obras românticas têm por desenlace o “happy end”).
Não cabe aqui fazer um resumo de Amor de Perdição. Tal procedimento
equivale a matar ab initio o prazer da leitura; além disso, é desaconselhável sob todos os
aspectos, pois não se deve fazer resumo de textos literários, inclusive, para evitar a
preguiça mental tão em voga nos dias correntes. Entretanto, uma síntese chega a ser
desejada e bem-vinda neste Prefácio, podendo ser a seguinte: Em Amor de Perdição
temos o trágico e fatal amor de Simão e Teresa, nascido num primeiro olhar, combatido
por obstáculos familiares e só aniquilado pela morte.
Importa mesmo é examinar certos aspectos estruturais do romance, verificando
como o sentimento se sobrepõe no conjunto das ações urdidas pelo escritor. No caso, a
conduta das personagens é determinada pelo impulso passional, isto é, dá-se motivada
pela emoção incontida. Isso pode ser notado em relação ao casamento dos pais de
Simão, na intriga existente entre as famílias de Simão e Teresa; na gratidão desmedida
de João da Cruz pela interferência de Domingos Botelho em seu favor; na incontinência
arrogante e soberba de D. Rita Preciosa; na resoluta atitude desobediente de Teresa ao
querer paterno.
Do mesmo modo, é preciso frisar a maneira como o romancista propõe que o
amor governa tudo, força sem a qual o indivíduo se estiola. A preponderância romântica
emprestada ao amor fica evidente quando, no início da narrativa, Simão se regenera por
amor a Teresa, mudando radicalmente seu modo intempestivo de ser; o mesmo
predomínio do amor acontece na paixão que une Simão a Teresa, correspondência
mútua a impor-se de forma absoluta, como “um fogo que arde sem se ver” do verso
camoniano. O amor dos dois protagonistas pode ser chamado de fatal e equivale ao de
uma terceira personagem, Mariana, também movida pela cegueira amorosa com que
segue Simão até ao fim.
Romântico ao extremo é o individualismo exacerbado evidente em todas as
personagens. As ações por elas praticadas em Amor de Perdição mantêm-se sob o
prisma único do indivíduo, isso excluindo qualquer outra motivação. Eis por que
Teresa, mesmo submissa aos ditames de seu pai, Tadeu de Albuquerque, ao fim e ao
cabo sempre faz predominar sua vontade. O individualismo romântico torna-se,
destarte, patente na vontade de poder e no poder da vontade.
Falamos, linhas acima, da concepção romântica segundo a qual o orgulho, a
paixão e a virilidade, quando maculados, justificam certos atos antissociais. E não
seriam, no romance ora prefaciado, João da Cruz, Simão, e o filho-vingador de Bento
Machado (recoveiro abatido pelo ferrador), exemplos de criminosos que o autor
absolve, induzindo o leitor a também fazê-lo, porque o crime, nessa perspectiva tem
justificativa moral com base apenas na verdade interna daquele que o comete? Outra
vez é notória a predominância do individual sobre o social na perspectiva romântica de
Camilo Castelo Branco, pois dois dos autores de delitos capitais figuram nas páginas do
romance a salvo da longa manus do Estado. Este é o caso de João da Cruz, que só sente
o peso da justiça através da mão vingativa. Este episódio, é bom sublinhar, põe a
vendeta em lugar proeminente na escala de valores pela qual opta o autor. O anônimo
filho do recoveiro executa João da Cruz e desaparece incólume, dele não se falando
mais até à última linha lida. Já Simão, o terceiro homicida, vê-se alcançado, julgado,
condenado, mas o favorecimento individual obtido por capricho de seu pai (modalidade
de passionalismo), lhe atenua a pena. A ação de Domingos Botelho ao interferir no
destino final de seu filho homicida subverte a ordem das coisas e faz a vontade
individual prevalecer contra o ordenamento coletivo, como bem requer a lógica
romântica individualista de Camilo.
Há que considerar ainda a forma pela qual os valores tradicionais se ofuscam
ante os valores morais. Basta atentar na falta de linhagem fidalga das personagens mais
destacadas. Além disso, é importante notar o tratamento irônico dispensado por Camilo
aos ancestrais fidalgos de Simão, entre os quais está o “general que morrera frigido em
caldeirão de não sei que terra da mourisma”. De notar também é o flagrante contraste
estabelecido entre a conduta inflexível, excessivamente tacanha, daqueles que deveriam
ter os vernizes da fidalguia, qualidade mais à mostra no caráter fiel dos mais simples do
povo, como João da Cruz e sua filha Mariana.
As personagens de Amor de Perdição são fidalgos jovens, sobranceiros, dotados
de caráter nobre, ao lado de fidalgos adultos, arrogantes, presunçosos e de plebeus com
caráter forte, em alguns casos dispostos ao crime, mas sempre bafejados pela bondade, a
magnanimidade e o reconhecimento.
O espaço romanesco deste clássico português não é o natural. Aliás, não há
abundantes descrições dos espaços físicos onde transcorrem as ações deste romance. O
espaço eleito por Camilo neste Amor de Perdição é o ambiente social modelado pelos
homens em convívio inexorável. O espaço social escraviza as personagens e as leva ao
trágico fim que não serve a ninguém.
Esta categoria essencial à narrativa não pode ser assuntada sem que tratemos da
outra, o tempo. Este é recortado pelo autor com distanciamento, embora ainda pouco,
pois o fato-fulcro narrado, por sinal verídico, passou-se em 1801, enquanto que o
escritor elaborou sua obra-prima em 1861. O romance, portanto, narra um fato ocorrido
no início do século XIX, momento em que começa a consolidar-se a estrutura social
romântico-liberal. Assumindo a posição do narrador tradicional, Camilo distancia-se
dos fatos narrados em pelo menos sessenta anos, ao mesmo tempo em que flagra um
mundo em transição na Europa e, por extensão, em Portugal.
Muito se poderia ainda dizer acerca de Amor de Perdição, por exemplo, no que
respeita aos recursos técnico-expressivos (narrador tradicional de cunho épico, narrador
empenhado, narrador ausente, ou as posições do narrador ante o fato narrado), ao gênero
literário (romance passional, novela-folhetim), ao foco narrativo (ponto de vista do
narrador), à linguagem narrativa (descrição, diálogo, comentários), à estrutura narrativa
(introdução, desenvolvimento, conclusão, costura narrativa possibilitada pela
correspondência), apenas alguns aspectos de relevância que não cabem nas dimensões
de um Prefácio.
Concluindo, é indispensável proclamar a importância de Amor de Perdição e da
Literatura Portuguesa para compreensão da nossa própria, e da dos demais povos
utentes do idioma que nos é comum em Portugal, aqui, na África, na Ásia, ou onde quer
que sejam estudadas a poesia e a narrativa que criamos nesta “Língua minha dulcíssima
e canora/ Em que mel com aroma se mistura”, e cujas virtudes foram tão
expressivamente celebradas nesses versos da “Ode à Língua Portuguesa” do nosso poeta
maior, José Albano.

Roberto Pontes

Doutor em Letras pela PUC-Rio. Professor Associado IV do


Departamento de Literatura e do Programa de Pós-Graduação em
Letras da Universidade Federal do Ceará – UFC.
QUESTIONÁRIO

1. A narrativa que Amor de Perdição encerra aproveita um fato real, ou o que se


lê em suas páginas é apenas fruto da imaginação?
R. Esta obra começa com uma “Introdução” na qual o autor-narrador informa a quem o
lê, que sua narrativa se baseia em fato real. Refere-se ele aos livros de assentamentos
das entradas nas cadeias da Relação do Porto, de 1803 a 1805, onde esteve a cumprir
pena seu tio-avô, protagonista primeiro da história. O fato principal vai enriquecido, é
claro, pela arte literária, ou seja, pela capacidade imaginativa de Camilo somada à sua
excepcional técnica de narrar.
2. Qual a síntese que se pode fazer deste romance de Camilo Castelo Branco?
R. No “Prefácio” a esta edição tem-se a resposta ao que se pergunta. Ali lê-se: “Em
Amor de Perdição temos a trágica e fatal paixão de Simão por Teresa, nascida num
primeiro olhar, combatida por obstáculos familiares e só aniquilada pela morte.”
3. Por que o resumo do romance não é aconselhável numa obra didática?
R. Ora, resumir é recontar de modo sucinto a história, e quase nunca tal expediente traz
vantagens a quem lê uma obra: primeiro porque o autor sempre conta com mais
competência do que aquele que resume; segundo porque o resumo empobrece a ficção e
dilui a técnica de narrar original; terceiro porque se o resumo fosse válido, o autor podia
muito bem contentar-se com ele e não chegar a engendrar a forma longa de narrar da
novela ou do romance, contentando-se com o conto ou o nefando minimalismo que
infelicita a literatura atual; quarto porque o leitor de resumos é quase sempre guiado
pela lei do menor esforço mental típica dos preguiçosos.
4. Pode estabelecer-se alguma relação entre a vida de Camilo e a conduta de
alguma personagem deste seu romance?
R. Com certeza. Camilo figura entre aqueles autores a serem lidos melhormente se
conhecermos algo de suas vidas, pois seus personagens muito têm de seu temperamento
intempestivo, de seu caráter transgressor, de sua conduta irreverente. Camilo afrontou a
sociedade, como se pode ler na síntese biográfica do “Prefácio” a esta edição, do mesmo
modo que Simão o fez nas páginas do registro de sua desdita.
5. Qual a sequência mínima dos fatos narrados para uma memorização
proveitosa do que se leu?
R. a) O casamento de Domingos Botelho com D. Rita Preciosa e a caracterização do
temperamento de cada um; b) O conhecimento e a paixão entre Simão e Teresa; c) O
prometimento da mão de Teresa a Baltasar, seu primo, por gosto e desígnio de Tadeu de
Albuquerque; d) O firme propósito de Teresa de desposar Simão, a insistência de
Baltasar em convencer sua prima a querê-lo e a decisão de Tadeu de Albuquerque de
enclausurar a filha num convento; e) A interceptação do grupo que conduz Teresa ao
convento, posta em prática por Simão, a culminar com a agressão de Baltasar ao
protagonista e o revide deste que o alveja e mata; f) os dramas seqüentes ao crime: de
Simão na cadeia a sofrer, inclusive, com a indiferença de seu pai; de Teresa a definhar
na vida conventual; de Mariana ao ter o pai assassinado por vingança e ao mortificar-se
porque Simão só tinha olhos para Teresa; g) as mortes: de Teresa por definhamento; de
Simão por febre maligna em meio a terríveis delírios; de Mariana pela via do suicídio
jogando-se ao mar para findar-se agarrada ao corpo de Simão, única razão de viver que
concebia.
6. Comente acerca da conduta de Domingos Botelho e seu relacionamento com o
filho Simão.
R. Domingos Botelho representa o ser humano medíocre, interesseiro, mesquinho.
Basta, para construir mentalmente o tipo que encarna, rememorar os antecedentes de seu
casamento, sua avareza com os presentes que lhe enviavam os beneficiados em
sentenças favoráveis no desempenho de sua função de juiz de fora de Cascais. O
tratamento que dispensou ao indigitado filho Simão nada teve de paternal; e ele só
interferiu em favor do condenado após ferido nos brios de seu prestígio.
7. Trace o perfil de D. Rita Preciosa, mãe de Simão.
R. D. Rita Preciosa era arrogante, soberba, sarcástica e tudo fazia para ressaltar aos
outros seu prestígio junto à corte de D. Maria I, de quem foi dama até casar-se com
Domingos Botelho. Não foi feliz com o marido e sempre sentiu saudades da vida do
paço.
8. Como se comportava Simão antes de conhecer Teresa de Albuquerque e que
lhe aconteceu após apaixonar-se por ela?
R. Antes de conhecer Teresa, Simão não tinha responsabilidade e nem se aplicava nos
estudos acadêmicos. Ao conhecê-la e ao apaixonar-se, na perspectiva de obrigar-se a
manter sua futura mulher, muda completamente. Entretanto, essa metamorfose não
remove seu caráter impulsivo, rebelde, apaixonado, orgulhoso e mesmo insolente.
9. Como se explica a conduta de Teresa em relação a Tadeu de Albuquerque que
quis impor-lhe o casamento com Baltasar, primo que ela antipatizava?
R. Esta personagem se mostra altiva, corajosa, apaixonada e obediente, a seu modo.
Resiste à decisão paterna de casá-la com Baltasar. Impõe-se a este com galhardia e
repele as investidas do primo duramente. O amor a Simão explica a conduta de Teresa,
que o chamava em cartas e bilhetes de “meu esposo”, numa atitude platônica bem ao
gosto romântico. Sua resistência na dor e no isolamento é a da típica heroína romântica
que tudo enfrenta por seu amor.
10. Como se justifica, do ponto de vista romântico, o homicídio de Baltasar
cometido por Simão?
R. O predomínio da vontade individual sobre a Razão é uma das premissas teóricas do
Romantismo. Essa preponderância deriva da tese romântica da exacerbação do eu.
Assim, quando a impulsividade substitui a Razão, estamos diante do estado natural e
espontâneo do indivíduo. A reação impensada de Simão, que tira a vida de seu desafeto,
se compreende dentro dessa lógica romântica.
11. Aponte algumas características do romance romântico encontráveis nas
páginas de Amor de Perdição.
R. No “Prefácio” que traz esta edição, as características pedidas estão dadas: “os
personagens protagonistas são quase sempre adolescentes; o enredo, via de regra,
decorre entre protagonistas jovens empeçados por antagonismos familiares ou de outra
ordem; o meio social é o da classe média burguesa, abastada; o desenlace se dá com
uma solução trágica para o ágon amoroso e passagem pelas soluções clássicas do
convento, da loucura e da morte, ideais no drama passional (é bom não olvidar que
outras obras românticas têm por desenlace o “happy end”).”
12. Que importância tem João da Cruz no enredo de Amor de Perdição?
R. O ferrador é a mais importante figura do grupo de plebeus inserido na narrativa.
Além de apoio indispensável às ações de Simão, revela compreensão, lealdade, coragem
e abnegação, virtudes inexistentes no grupo de fidalgos e religiosos posto em desfile por
Camilo. João da Cruz e as demais pessoas do povo que contracenam com Simão e
Teresa são personagens emblemáticas e representam os ideais de “Igualdade, Liberdade
e Fraternidade” adotados pelo Liberalismo. Sendo o Romantismo um desdobramento do
Liberalismo filosófico, João da Cruz simboliza o despontar do povo na estrutura social
em transformação desde a Revolução Francesa.
13. Que papel desempenhou Mariana no drama humano de Simão?
R. Mariana desempenhou função similar à de seu pai, junto a Simão, apoiando-o no
transe doloroso por que passou. Sua dedicação não esperou jamais recompensa. Nobre,
devotada, desprendida, terna, magnânima, ajudou-o material e afetivamente até onde
pôde. Seguiu-o com destino ao degredo, mas preferiu morrer a seu lado, em pleno
oceano. Amava-o, mas tinha plena certeza de não ser correspondida.
14. Que espécie de sentimento pode dizer-se nutria Simão por Mariana?
R. Simão não amava Mariana, mas aceitava-lhe os desvelos e a dedicação. Considerava-
a uma irmã e conservou um sentimento fraternal pela pobre rústica até o trágico
desenlace de ambos.
15. Qual a melhor classificação para Amor de Perdição? Romance passional ou
novela folhetinesca?
R. No “Prefácio” à quinta edição deste seu livro, Camilo escreveu o seguinte: “visto à
luz elétrica do criticismo moderno, é um romance romântico, declamatório, com
bastante aleijões líricos, e umas idéias celeradas que chegam a tocar no desaforo do
sentimentalismo. Eu não cessarei de dizer mal desta novela, que tem a boçal inocência
de não devassar alcovas, a fim de que as senhoras a possam ler nas salas, em presença
de suas filhas ou de suas mães, e não precisem de esconder-se com o livro no seu quarto
de banho.” Estas palavras auto irônicas de Camilo fazem-nos crer que ele não distinguia
entre os gêneros romance e novela. Sabemos haver a distinção técnica correspondente a
essas duas espécies narrativas, no Brasil, que não cabe explicar nestas poucas linhas.
Respondendo especificamente: Amor de Perdição é um romance passional cujo tema e
centro é a paixão, e pende para a novela-folhetinesca, aquela narrativa rápida de
intrigas, sempre de natureza amorosa, cheia de peripécias e de muita ação.
16. Qual dos dois espaços, natural ou social, tem mais importância neste livro de
Camilo Castelo Branco?
R. O espaço social, naturalmente, tem mais relevância na narrativa. A querela se arma
porque uma família, a dos Albuquerques julga a dos Botelhos indigna de consórcio
através do matrimônio de uma filha da primeira com um filho da segunda. O espaço
natural é mínimo. Pouco se sabe de montes, rios, jardins etc, onde as ações ocorrem.
Mesmo as habitações, as cidades, os meios de transporte, os dados referenciais da
cultura, são parcamente descritos.
17. Como se situa a produção literária do autor no Romantismo português?
R. O Romantismo português teve três momentos. O primeiro, de introdução das idéias
românticas em Portugal, vai de 1825 a 1838, sendo nesse período que consolidam suas
obras Alexandre Herculano, Almeida Garrett e Feliciano Castilho. O segundo, no qual a
estética romântica se firma, e é levada ao máximo exagero, vai de 1838 a 1860; nele se
destacam alguns poetas como João de Lemos, Soares de Passos e Luís Augusto
Palmeirim, mas o escritor exponencial desse momento é Camilo Castelo Branco, muito
à vontade com a estética transgressora de então. O terceiro, de transição para o
Realismo, vai de 1860 a 1870, é dominado pelas figuras do grande poeta João de Deus e
do excelente romancista Júlio Dinis. A produção literária de Camilo acompanha, pois, o
ponto culminante de Romantismo em Portugal, do mesmo modo que a luta geracional
dos românticos contra os realistas da Escola de Coimbra, entre estes, Antero de Quental,
Teófilo Braga e Eça de Queirós. Entende-se, desse modo, por que Camilo atacou a
“Idéia Nova” e os seus adeptos, apesar de haver muito de Realismo em seus livros.
18. De que modo podemos enquadrar no tempo e no momento social europeu e
português a obra ora lida?
R. Nascendo e escrevendo na segunda metade do século XIX, Camilo assistiu à
consolidação e, concomitantemente, à diluição progressiva do mundo romântico
europeu e português. Portugal estava vivendo as marchas e contramarchas das
revoluções liberais contra o já enfraquecido poder monárquico. Um fato importante
desse período foi a expansão dos noticiosos jornalísticos dando espaço aos chamados
folhetins, muito importantes na ampliação dos leitores de literatura e na
profissionalização dos escritores. Camilo foi um daqueles que viveram, em parte, com o
produto do que escreveu para os jornais.
19. Após a leitura de Amor de Perdição, comente algo sobre os sentimentos do
amor, do ódio, da ambição e do orgulho. Serão estes os mais salutares atributos
da vida humana?
R. O amor é o mais importante sentimento inato ao homem; tanto é isso verdade, que é
capaz de verdadeiros milagres e transformações. Vejamos o acontecido a Simão antes e
depois de conhecer Teresa. Mas o correspondente negativo do amor é o ódio;
sentimento também inato ao homem, porém altamente nocivo aos indivíduos e à
sociedade. Por isso, a educação procura desenvolver o primeiro e inibir e controlar o
segundo na psique humana. A ambição desmedida e irrefreada, do mesmo modo que o
orgulho da soberba, foram e continuarão a ser responsáveis por muita infelicidade e
tragédias tanto individuais quanto coletivas. Estes dois sentimentos reprováveis atuaram
decisivamente na desgraça de Simão, Teresa e Mariana, e ainda na das famílias destes e
na da própria comunidade que assistiu ao drama, pois a vontade romântica incontida, ou
seja, a exacerbação do individualismo, não destrói apenas os indivíduos que agem e
sofrem a ação sem freios, mas atinge igualmente quem nada tem a ver com a prática
passional, que lança seus fragmentos longe, como se fosse uma granada perdida
detonada no meio de uma multidão.
20. Você concorda com o ponto de vista de boa parte da crítica que considera Amor
de Perdição a obra-prima de Camilo Castelo Branco?
R. Sim. Amor de Perdição é a obra-prima de Camilo, que tem outro livro tão sedutor
quanto este, A Queda de um Anjo, também inesquecível. É interessante ler Coração,
Cabeça e Estômago, título estranho para três novelas camilianas as quais devem ser
lidas sequenciada e conjuntamente, e Doze Casamentos Felizes, coletânea de contos que
mostra o reverso do drama camiliano. Desse modo, pode o leitor ter uma visão da arte
de Camilo como romancista, novelista e contista.
21. Por que Amor de Perdição deve ser lido pelos utentes da Língua Portugesa?
R. Não me restringiria a este livro de Camilo. De modo geral, só podemos compreender
quem somos se conhecermos nossas raízes. Se em boa parte somos descendentes dos
indígenas autóctones e dos negros africanos, também o somos dos portugueses, povo
ibérico que nos legou o patrimônio sagrado dessa formosa Língua Portuguesa, com a
qual falamos, escrevemos e criamos. Ora, se considerarmos derivar nossa poesia
diretamente da dos trovadores e a nossa arte de narrar dos antigos romances de
cavalaria, cujas raízes estão no século XI, só pessoas desinformadas culturalmente
podem argumentar que não se deve ler nem estudar a literatura portuguesa. Herculano,
Garrett e Camilo, por exemplo, são os fundadores do romance em Língua Portuguesa.
Hoje, lê-se com enorme prazer Machado de Assis, Graciliano Ramos, Manuel Bandeira,
Carlos Drummond, Cecília Meireles. Com o mesmo encanto são lidos Fernando Pessoa
e José Saramago, Adélia Prado e Rubem Fonseca. Por quê? Muito simples. Porque os
trovadores e escritores que antecederam os nomes citados, foram por estes assimilados
no que tinham de melhor de “engenho e arte”, isto é, em capacidade inventiva e
construtiva. Talvez esteja respondida esta última questão, não é?

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