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Helena Carvalhão Buescu

Revolução e família: amor de perdição

Duas citações, mais do que epígrafes:

Déclaration des Droits de l’Homme et du Citoyen1


Art. 1er. Les hommes naissent et demeurent libres et égaux en droits. Les distinc-
tions sociales ne peuvent être fondées que sur l’utilité commune.
Art. 2. Le but de toute association politique est la conservation des droits na-
turels et imprescriptibles de l’Homme. Ces droits sont la liberté, la propriété, la
sûreté, et la résistance à l’oppression.
Art. 3. Le principe de la Souveraineté réside essentiellement dans la Nation.
Nul corps, nul individu ne peut exercer d’autorité qui n’en émane expressément.

Não sofras com paciência; luta com heroísmo. A submissão é uma ignomínia,
quando o poder paternal é uma afronta.
­— Camilo Castelo Branco, Amor de perdição2 (1862)

A
m or de perdi ção (AP ) ( com o Viagen s na m in h a
terra, de Almeida Garrett) é um romance – embora ambos o se-
jam por razões diferentes. Interessando aqui AP, a tese (comum)
de que seria uma novela só faria (pouco) sentido se o leitor se
concentrasse apenas na intriga a que convencionalmente AP é reduzido: uma
história que se esgota no seu teor e crescendo melodramático, e num concei-
to também ele redutor (se nos lembrarmos das discussões sobre o conceito
filosófico de paixão, que recrudescem nos séculos XVII e XVIII e levam por
exemplo Descartes, o homem da razão, a escrever também um Traité des pas-

Helena Carvalhão Buescu é professora catedrática do Centro de Estudos comparatistas da Fa-


culdade de Letras da Universidade de Lisboa, Portugal.
1 Disponível em <www.legifrance.gouv.fr>. Acesso em 13 ago. 2015.
2 Camilo Castelo Branco, Amor de perdição, edição genética e crítica de Ivo Castro, Lisboa:
INCM, 2007, carta de Simão a Teresa, cap. VIII, p. 275.

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sions) de paixão como paixão amorosa. É certo que há paixões amorosas, e este
romance também delas trata. O problema é que elas não são as únicas, longe
disso.3 Muitos críticos vêm hoje insistindo neste alargamento hermenêutico
do romance: Abel Barros Baptista na “revisão” que propõe de AP, mas também
Paulo Motta Oliveira ou Flávia Corradin –4 como veremos seguindo pistas
que Cleonice Berardinelli deixou em alguns dos seus textos críticos.
A questão é tão simplesmente esta: AP, contendo embora uma pequena (se
bem que intensa) história de uma paixão amorosa, não se resume a ela. É a
quantidade de fios narrativos incongruentes e por vezes contraditórios (e ain-
da mais intensas histórias de paixões de poder, ódio, vingança, misantropia e
opressão) que Camilo sabiamente faz convergir para o triângulo Simão-Tere-
sa-Mariana que me leva a considerar que ler esta obra de acordo com o géne-
ro romanesco lhe faz mais justiça, pela riqueza, pelas contradições (às vezes
irresolúveis), pela sobreposição de planos de entre os quais se destaca aquilo
a que podemos chamar, de acordo com as duas citações com que comecei, a
Revolução. Existe algo de mais passional do que a paixão revolucionária?
A Revolução Francesa teve início em 1789 (e do mesmo ano é a sua Décla-
ration, que acima citei). A primeira edição de AP é de 1862. Mas a história que
o romance narra é a história da transição do Antigo para o Novo Regime, tal
como vista a partir de uma pequena perspectiva de uma família portugue-
sa – na verdade, três famílias portuguesas de província, tradicionais, que se
vêem confrontadas com poderosos ventos de mudança. Na verdade, a história
familiar nela nuclearmente contada (embora haja remissões para factos ante-
riores, todos eles significativos) começa em 1779, dez anos antes da Revolução
Francesa, ano em que casam os pais de Simão, Domingos Botelho e D. Rita
Preciosa. E cinco anos antes da Revolução, em 1784, nasce Simão, o segundo
filho do casal e protagonista do romance. A história vem pois das raízes do

3 Cf. Helena Buescu, “O trágico mas o cómico: o exemplo de Le Bourgeois - Gentilhomme”,


Revista da Faculdade de Letras, n. 9, 5ª série, 1988, p. 29-32.
4 Cf. as lúcidas observações de Flávia Corradin em “Camilo Castelo Branco revisitado pela
moderna dramaturgia portuguesa”, in Paulo Motta Oliveira (org.), Figurações dos oitocentos,
São Paulo: Ateliê Editorial, 2008, p. 71-93: “A obra camiliana está marcada, muito mais do que
pela historinha, às vezes melodramática que as enreda, pelo menos se pensarmos nas novelas
passionais ou nos (melo)dramas burgueses, por uma visão do mundo a revelar o Oitocentos
português.” (p. 91)

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Antigo Regime, antedatando 1789. Mas todo o resto vem depois: em 1801, Do-
mingos Botelho é corregedor em Viseu, e começa a paixão de ódio e vingança,
insuperável; o seu primeiro filho, Manuel, tem 22 anos (as datas nunca são cer-
tas em Camilo, mas isso que importa?), enquanto Simão tem quinze, e estuda
humanidades em Coimbra. Eis como o irmão o descreve:

O filho mais velho escreveu a seu pai queixando-se de não poder viver com seu
irmão, temeroso do génio sanguinário dele. Conta que a cada passo se vê ameaçado
na vida, porque Simão emprega em pistolas o dinheiro dos livros, convive com os
mais famosos perturbadores da academia, e corre de noite as ruas insultando os
habitantes e provocando-os à luta com assuadas. (...) Os quinze anos de Simão têm
aparências de vinte. É forte de compleição; belo homem com as feições de sua mãe, e
a corpulência dela; mas de todo avesso em génio. Na plebe de Viseu é que ele escolhe
amigos e companheiros. Se D. Rita lhe censura a indigna eleição que faz, Simão
zomba das genealogias, e mormente do general Caldeirão que morreu frito. Isto bas-
tou para granjear a malquerença de sua mãe. O corregedor via as coisas pelos olhos
de sua mulher, e tomou parte no desgosto dela, e na aversão ao filho.5

Resumindo: a Revolução chegou bem cedo a Portugal, e em 1801 já ela se


fazia pressentir em Coimbra e Viseu, pela mão de Simão (e outros como ele).
“Zombar das genealogias” é compreender que houve um mundo que acabou
em 1789. Visto desta perspectiva, AP é um romance (não uma novela) sobre o
modo como a Revolução Francesa se introduz em Portugal e inevitavelmente
o altera, através do núcleo político que a família é e daquilo que desde logo
toma a forma de uma guerra civil (que virá efectivamente a acontecer de forma
alargada, duas décadas mais tarde, mas tem as suas raízes no período em que
esta história se desenrola, como veremos).
Como atrás referi, Cleonice Berardinelli6 interrogou-se, a propósito de ou-
tro romance de Camilo, sobre a validade da afirmação de que este autor teria
escrito apenas novelas, para dela se distanciar a propósito de Anátema. Pode-

5 Camilo Castelo Branco, op. cit., p. 161.


6 Cleonice Berardinelli, “Anátema: um romance onde se ‘prova que o autor não tem jeito para
escrever romances’”, in Camilo Castelo Branco. International Colloquium, Santa Barbara: Univer-
sity of California Press, [1991] 1995, p. 232-240.

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mos dizer o mesmo de AP? Talvez sim e talvez não (como gostaria de respon-
der o próprio Camilo). Como vimos, talvez sim se considerarmos o estrito
plano que nos é apresentado à boca-de-cena – a história amorosa passional,
restrita, de desenlace único e melodramático (a morte em espectáculo) para
todas as personagens principais. Parece ainda ser uma novela porque o único
tempo que nos é aparentemente contado é o que rapidamente turbilha até ao
desenlace; e ainda porque, embora o espaço mude (Lamego, Viseu, Coimbra,
Porto, Lisboa, casas, conventos e prisões, para mencionar apenas alguns desses
lugares), nenhum parece ter suficiente solidez per se.
E no entanto.
No entanto, se lermos AP a partir de um ângulo mais alargado, que não
prescinda da intriga de paixão amorosa mas a ela não se restrinja, como faz
Cleonice Berardinelli para Anátema, é defensável dizer que AP é também um
romance. Trata-se de uma intriga de família, sabendo-se que esta é uma das
mais condensadas células sociais, simbólicas e, sempre, políticas: um micro-
cosmos em que todo o mundo surge reflectido. Desenrola-se num espaço com
pontos apenas designados, um espaço em que é a própria abstracção alegóri-
ca que de alguma forma nos permite nele ler uma sinédoque (e alegoria) do
Estado-Nação chamado Portugal, na transição para as convulsões da contem-
poraneidade. Põe em acção um tempo sacudido e cavalgante que deixa ver, da
perspectiva mais lata, não apenas o que aconteceu, no início do século XIX,
ao tio de Camilo, envolvido numa teia de amores, desamores e vinganças; mas
também (e sobretudo) o que está efectivamente a acontecer em Portugal, no
período cheio de turbulências sociais que é aquele em que a intriga tem lu-
gar. A AP se poderia aplicar a irónica auto-designação que Camilo aplica a
Anátema, recordada por Cleonice Berardinelli.7 Trata-se, diz Camilo, de “uma
espécie de caranguejo literário” que, para contar o presente, vai também ele às
arrecuas até meados do século anterior, momento em que verdadeiramente
“arranca” o presente da história (e passado de Camilo, não esqueçamos, por
que é isso também que está em jogo).
Não só AP é um romance, pois. Mas, como veremos, ele pertence já a um
género sedimentado por alturas de 1862, quando é escrito, o romance histórico.
Não à maneira tradicional do grande Herculano e todos os que se lhe seguiram

7 Ibid., p. 234.

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(mesmo Garrett, embora com diversões). Mas um romance histórico que se
propõe já como uma “revisão” e transformação daquilo que esse género oito-
centista modelar tinha sido.
Começo por isso por esta última designação: um romance histórico encas-
toa uma intriga pessoal no seio de uma acção historicamente reconhecível.
Aparentemente, nada disto acontece em AP. Nenhuma das personagens tem
algum tipo de papel directo e protagonista nas lutas e turbulências históricas
do seu tempo – e vale lembrar que elas foram muitas. No entanto, e como
vimos, o romance começa (se tivermos em conta a data do casamento dos
pais de Simão, mas há datas anteriores), em 1779. Já apontámos a razão por
que isto é significativo: trata-se de assinalar que na verdade o romance co-
meça ANTES da grande comoção ocidental que foi a Revolução Francesa e a
consequente queda do Antigo Regime. Não são apenas duas gerações que se
afrontam, em duas famílias. Mas duas gerações que, em duas famílias, as do
Botelho e as do Albuquerque, representam dois tempos historicamente opos-
tos e incompatíveis. Mas também duas gerações que, no caso da família popu-
lar, João da Cruz e Mariana, encontram o único lugar possível de compatibi-
lidade. Se há paixão amorosa não contaminada pelo poder e pela política, é a
de Mariana. Nos casos de Simão e Teresa, a paixão pode ser, como é, amorosa,
mas é também uma paixão política e de autoridade e opressão, no sentido
estrito e lato da palavra. O tempo histórico de Simão, Teresa e Mariana é já o
período pós-revolucionário, em que tudo muda, e em que sobretudo mudam
as relações de poder que governam todas as relações sociais, bem como todas
as relações interpessoais. Apenas em João da Cruz e Mariana encontramos, em
lugar da opressão, a solidariedade e a compreensão que permitem uma solidez
familiar que em mais lado nenhum encontramos no romance.
O que vem depois do Antigo Regime? É este o cerne histórico de AP. Ora, a
consciência do que “vem depois” é, como lembrou várias vezes Manuel Gus-
mão, uma das formas mais densas do devir histórico. A revolução política não
é apenas um dado exterior à acção: esta não poderia ter acontecido, como vi-
mos, sem aquela. A ida da fidalga, aia do paço, para Viseu é um vislumbre
do que se passava em Portugal antes da Revolução Francesa: uma sociedade
oligárquica e de poder absoluto, em que a aristocracia (ou os que assim se
queriam afirmar, como no caso) se comportavam com arrogância de classe,
manifestando o seu poder de forma aberta, ostensiva e impune.

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Se nos ficarmos por Portugal (mas nunca é possível), o que acontece pois
durante o período em que decorre a intriga passional entre Simão, Teresa e
Mariana, ou seja, entre 1801 (Simão em Coimbra e seu posterior “amansamen-
to” de regresso a casa), 1804 (Simão é preso aos dezoito anos na Relação do Por-
to) e 1807 (parte para o degredo a Índia, aonde evidentemente nunca chega)?
Várias coisas, e cada uma delas coincide, singularmente, com cada uma das
datas referidas: em 1801 têm início, através da chamada Guerra das Laranjas, as
Guerras Peninsulares, em que a França tenta, através de Espanha, efectivamen-
te bloquear os portos portugueses aos britânicos; em 1804 Napoleão torna-se
imperador (embora no ano seguinte perca a importante batalha de Trafalgar);
e em 1807 dá-se a primeira invasão francesa a Portugal, que determina, nesse
mesmo ano, a fuga do rei Dom João VI, a sua família e a sua corte para o Brasil.
1807 representa assim o fim de uma história, o fim de duas histórias: a do Por-
tugal anterior à Revolução e a Napoleão; e a que entrelaçou, por um breve pe-
ríodo (mas todas as revoluções são breves) as vidas de Simão, Teresa e Mariana.
O que se passa a seguir definirá a primeira metade do século XIX português
como um enorme período de guerra civil. Mas essa guerra civil histórica é por
assim dizer contada, de forma simbólica, por tudo quanto acontece em AP, até
pelas datas que para seu início e fim foram escolhidas.
Aparentemente, nada disto surge explícito no drama passional a que assis-
timos. A minha tese é que tudo isto é glosado e até mesmo alegorizado na tra-
ma romanesca, que contém os germes das terríveis consequências que vêm de
França; da manifestação de um vazio de poder que atinge não apenas o centro
político do país, mas todas as células sociais que compõem a coisa pública; e
das raízes de uma verdadeira guerra civil que, alguns anos mais tarde, atirará
com violência portugueses contra portugueses, famílias contra famílias, gera-
ções contra gerações.
O que quer dizer a simples, tão simples frase com que Teresa responde ao
pai, quando ele lhe anuncia que aquele será o dia do seu casamento? Que que-
rem dizer “É escusada a violência, porque eu não caso!...”,8 ou “Decerto não
caso; morro, e morro contente, mas não caso”,9 quando com tanta simplici-
dade responde ao pai com uma vontade férrea, sinal de que, para utilizar os

8 Camilo Castelo Branco, op. cit., p. 195.


9 Ibid., p. 249.

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termos do art. 2 da Déclaration, sabe que lhe é legítimo “resistir à opressão”?
Nenhum argumento é tentado, porque não é já questão argumentável. Tor-
nou-se “apenas” legítima.
Embora adquira neste romance proporções de grande alcance, tal não é
novidade na obra de Camilo. Grandes leitores da sua obra, como Cleonice
Berardinelli, referiram já o modo como o alargamento do espaço em ro-
mances como Anátema “passa (...) do físico ao social”.10 A obra romanesca,
novelística e contista de Camilo Castelo Branco é, na verdade, um grande
fresco social do Portugal que entra, cheio de paradoxos e contradições, na
época contemporânea, assistindo ainda ao desaparecimento, transformação
ou mesmo paródia de alguns dos procedimentos e características definidores
do Antigo Regime. As diversas formas de violência, vingança, abuso de po-
der, humilhação, insulto social e pessoal de que a obra camiliana se faz eco
representam, assim, tantos outros modos de compor o fresco político-social
que só faz sentido porque é nele que as pessoas figuradas se movem, vivem,
lutam, amam e morrem.
Por outro lado, as constantes e explícitas intervenções do autor-Camilo
em AP, desde o subtítulo (“Memórias duma família” – com certeza a dele,
Camilo), os prefácios (das segunda e quinta edições) e a introdução da primei-
ra edição até à efabulação propriamente dita, mais não fazem do que repetir
aquilo que muitos leitores camilianos, de Jacinto do Prado Coelho a Maria
de Lourdes Ferraz ou Abel Barros Baptista, de Cleonice Berardinelli a Sérgio
Nazar ou Paulo Motta Oliveira, têm detectado como decisivo na produção ca-
miliana. Do ponto de vista que aqui me interessa, isto pode ser descrito da
seguinte forma: a existência de um autor “intrometido”, que constantemente
edita, ironiza, comenta a intriga e o que nela se passa, constrói dentro do texto
uma posição de leitura que, pelo seu afastamento temporal, marca a distância
histórica entre quem conta e aquilo que é contado. Ora, tal posição é essencial
para o romance histórico: trata-se não apenas de contar uma história, mas de
a contar a partir de um preciso ponto histórico, textualmente marcado pela
presença de um autor que a si mesmo se inclui dentro do contado (eu, Camilo,
prisioneiro e fatal sobrinho de Simão...). Esta imersão do sujeito de observação
é, sabemo-lo, tipicamente moderna: já não existe o “ponto de vista de Deus”,

10 Cleonice Berardinelli, op. cit., p. 235.

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exterior ao mundo. Pelo contrário, a ironia romântica, tão bem desenvolvida
por Ferraz,11 marca dentro do texto as cesuras e continuidades do processo
histórico, através das costuras abertas explicitadas pela existência de um autor
que, longe de se esconder, se mostra. O que temos, a este respeito, em AP? Te-
mos que não se trata apenas de uma história sobre a passagem turbulenta do
final do século XVIII para o século XIX. Porque se trata também do sentido
que esta passagem faz, da forma como é vista, no momento (1861, quando é
escrito na Cadeia da Relação do Porto, 1862, quando é publicado) em que o
romance é autorado por alguém que a si mesmo se inscreve com o nome de
Camilo Castelo Branco.
Ora, o sentido social que essa narrativa faz é também este: Domingos Bo-
telho é, para todos os efeitos, um fidalgo de linhagem, proprietário de um dos
mais antigos solares de Vila Real de Trás-os-Montes. O seu casamento com
d. Rita Preciosa, em 1779, filha de um capitão de cavalos e neta de outro, social-
mente alçada (assim o acha ela) por ser aia do paço, pode considerar-se como
parodicamente típico das alianças de interesses que o século XVIII vê multipli-
car-se entre o que se convencionou chamar “noblesse de robe” e “noblesse de
sang”. Curiosamente, esta última, embora seja a mais antiga, é já em AP pejora-
tivamente designada como “brocas”, uma alcunha pouco dignificante. E aque-
la é, também já de forma paradoxal, a que sustenta a arrogância dos novos
senhores da ascensão social – veja-se a chegada de d. Rita Preciosa a Vila Real
e as arrogantes críticas que faz ao histórico solar do marido. No entanto, nada
disto perdurará, diz Camilo. Quer os que estavam em decadência quer os que
se julgavam em ascendência serão dentro em pouco varridos da cena social
(onde, na óptica de Garrett, que sobre tudo isto segura e profundamente pen-
sou, em breve restariam dois grandes grupos, os barões e os deputados, ou seja,
os administrativos da “democracia”). Outros tempos, outros senhores.
Na verdade, a “heterodoxia” que Cleonice Berardinelli12 reconhece em
Camilo e Garrett provém do facto de que eles não podem ser lidos fora do
grande cenário social que agitou o país na primeira metade social do sé-

11 Maria de Lourdes A. Ferraz, A ironia romântica. Estudo de um processo comunicativo, Lisboa:


INCM, 1987.
12 Cleonice Berardinelli, “Garrett e Camilo. Românticos heterodoxos?”, Convergência, n. 1, 1976,
p. 63-78.

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culo XIX. É essa a razão do distanciamento entre sujeito e enunciação que
Berardinelli apontava como o grande factor da heterodoxia garrettiana e
camiliana;13 especificamente sobre Camilo e AP, fala a mesma ensaísta da
ruptura romanesca que, entre outras, caracteriza esta obra camiliana:14 a
“perfeita adesão do narrador ao narrado [é], na novela de Camilo (...), por
vezes rompida”.15 E acrescenta estas luminosas palavras, que me abriram,
entre outras, as portas que aqui pretendi explorar: “o desvio do código ro-
mântico em Camilo é quase sempre justificado pelo respeito à verdade, que
o autor diz cultivar como uma religião: entre o que o leitor espera e o que
o mundo transmite (...) abre-se uma brecha onde se instaura o questiona-
mento do instituído”.16 É em nome dessa verdade pessoal, passional, política
e social17 que ambos os autores criam as suas obras primas, entre as quais
Viagens na minha terra e Amor de perdição.
Tal acontece aliás não apenas a eles – e é essa uma das razões pelas quais o
Romantismo português tem sido tão mal lido: dever-se-ia sublinhar o caso
particularíssimo de Júlio Dinis, cuja vulgata hermenêutica o condenou a ser
a versão “amável” da passionalidade camiliana, em que poucos se apercebem
da densa (e violenta) crónica social em que as suas favoráveis histórias amoro-
sas se movem, como num palco, numa totalmente diferente tradição literária,
a anglo-saxónica, que a predominância da tradição romanesca francesa, em
Portugal, impediu que fosse reconhecida e lida. É claro que temos Carlos e
Joaninha; é claro que temos Simão, Teresa e Mariana. Mas nem o romance de
Garrett seria possível sem o exílio, as lutas entre liberais e absolutistas, a guerra
civil, tão longa, e a brutal ascensão administrativa da burguesia ao baronato
e ao poder social; nem o de Camilo seria possível sem que a grande ruptura
da Revolução Francesa, das invasões francesas e das mudanças estruturais do
novo regime (que se prolonga no nosso, aliás) tivesse ocorrido. Nunca antes
nenhuma menina de quinze anos diria ou poderia dizer ao pai, com toda a
simplicidade: “Não caso”.

13 Ibid., p. 66-67.
14 Ibid., p. 72.
15 Ibid., p. 75.
16 Idem.
17 Cf. Helena Buescu, “O cívico, o romântico e o afectivo”, in Grande angular. Comparatismo e
práticas de comparação, Lisboa: Fundação Calouste Gulbenkian, 2001, p. 105-130.

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Também, acrescente-se, nenhuma jovem como Mariana poderia assumir a
posição de dona do seu próprio destino, amoroso, pessoal e social. Uma jovem
que não “devia” ter quaisquer pensamentos de amor acima da sua classe, e no
entanto tem. Mas que não se limita a isso. Ao assumi-los, até perante o próprio
pai, João da Cruz, este uma das personagens mais densas de todo o romance,
Mariana anuncia um novo momento histórico, em que o cruzamento entre as
classes sociais de alguma forma faz pressentir procedimentos democráticos,
com todas as suas consequências, por vezes contraditórias. Tortuosas, talvez
mesmo. Mas não foi Tocqueville quem pristinamente viu que a “democracia
na América”, ao implicar a rasura das tradicionais divisões de classe, faria er-
guer dois outros pilares de igualdade e desigualdade social, chamados compe-
titividade e dinheiro? Mariana é a amante impossível de 1804. Mas muitas ou-
tras Marianas reivindicarão, no futuro (literário e social), o inalienável direito
à expressão daquilo que forem. Até, por exemplo, em Portugal, virem a tomar
o nome das “três Marias”.

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