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UNIVERSIDADE FEDERAL DO RIO GRANDE – FURG

INSTITUTO DE LETRAS E ARTES – ILA


LITERATURA DO RIO GRANDE DO SUL I
PROF. DR. MAURO NICOLA PÓVOAS

Descrição e análise de Antônio Chimango, de Amaro Juvenal (Ramiro Barcelos)

Nota sobre a escolha de “Amaro Juvenal”: o pseudônimo traz embutido o amargo da crítica
(Amaro) e o riso ácido da sátira, no momento em que o nome Juvenal faz alusão ao satírico
romano Decimus Iunis Iuuenalis – mais conhecido como Juvenal –, que viveu do fim do século I
ao início do século II d.C. Nos dezesseis textos satíricos de sua autoria que chegaram até nós,
Juvenal apontou, com realismo e violência, vícios e questões de moral da sua época 1.

O poema: estrutura e chaves de leitura


A estrutura do Antônio Chimango é dual: nas palavras de Augusto Meyer (2002, p.
196), “deu-nos Ramiro Barcelos dois poemas num só poema”. Cada ronda divide-se em duas
instâncias, diferenciadas tanto pela temática quanto pela presença, ou não, de itálicos. Nas
duas instâncias, contrapõem-se o gaúcho (o mulato Tio Lautério) e o antigaúcho (o Antônio
Chimango). Na primeira instância, há um narrador “de fora”, em 3ª pessoa, que introduz as
ações, e que embora não pertença ao mundo dos tropeiros, também usa de uma linguagem
não-culta; na segunda, esse narrador dá a voz ao Tio Lautério, que narra as desventuras do
Chimango. A visão que perpassa todo o poema é, assim, saudosista e nostálgica de um mundo
em que os homens (os gaúchos, em especial) tinham atributos que o diferenciavam, entre os
quais a honra e a valentia, e que está deixando de existir, sendo substituído por um mundo
novo, em que a velhacaria, a desfaçatez e a falta de palavra ganham força. A par desse certo
conservadorismo, o texto possui qualidade estética e graça, sobrevivendo aos anos e à questão
política que subjaz à sua leitura. Donaldo Schüler aponta: “Em Antônio Chimango, a crítica e o
saudosismo se mesclam. Mas o engrandecimento dos tempos de antanho não obstrui a
atenção ao homem e os seus conflitos, a sua grandeza e a sua miséria” (1987, p. 117).
A política fornece uma chave que permite ler a obra com maior clareza. Ramiro
Barcelos, usando de pseudônimo, ataca, ferozmente, na verdade, a Antônio Augusto Borges de
Medeiros, que foi o “presidente” (como era chamado o governador à época) do Rio Grande do

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Ramiro, antes do Chimango, teve larga atuação na imprensa, primeiro no jornal liberal e federalista A
Reforma, depois no A Federação, órgão republicano fundado em 1884, e no Correio do Povo. Nestes dois
últimos, assinará, com o pseudônimo que o viria a consagrar no âmbito literário, vários artigos de cunho
polêmico e/ou satírico.

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Sul durante cinco mandatos: 1898-1902 (neste primeiro período, sucedendo ao seu mestre
político, Júlio de Castilhos); 1903-1907; 1913-1917; 1918-1922; e 1923-1928. Entre 1908 e
1912, foi presidente um sucessor por ele indicado, Carlos Barbosa Gonçalves. Se o Chimango é
baseado em figura real, a personagem que conduz o poema, Tio Lautério, também o é, já que
se trata de corruptela de Eleutério (1851-1942), ex-escravo que trabalhava em propriedade de
Antão de Faria, amigo de Ramiro Barcelos. Consta que Ramiro gostava de conversar com o
peão, quando visitava a fazenda.
Ramiro Fortes de Barcelos (Cachoeira do Sul, 8 maio 1852; Porto Alegre, 29 jan. 1916 –
morre, portanto, poucos meses depois do lançamento da primeira edição, clandestina, de sua
obra, em 1915), médico e jornalista, foi um dos fundadores do Partido Republicano Rio-
Grandense (PRR), defensor da República e antimonarquista. Devido a seu temperamento forte,
aos poucos começou a discordar da ortodoxia das ideias positivistas de Júlio de Castilhos e
seus seguidores. A ruptura definitiva deu-se quando Borges de Medeiros não o apoiou em sua
candidatura ao Senado Federal, em 1915. Borges deu apoio a Hermes da Fonseca, ex-
presidente da República entre 1910 e 1914. Com o apoio borgista, Hermes veio a ganhar a
eleição, que foi, como todas na época, colocada sob suspeita de fraude. O desabafo com
tantos desmandos foi a escrita da sátira política, no calor da hora, no verso dos papéis de
procuração eleitoral.
Explicam-se, assim, o “Antônio” (primeiro nome de Borges de Medeiros), e o
“Chimango” (apelido que faz alusão à menor ave de rapina do Estado, o ximango). Não é à toa
que “chimango” (a grafia permanece com “ch” por tradição) torna-se a maneira como os
antagonistas passam a chamar, pejorativamente, os borgistas e os partidários do PRR.
Todavia, Schüler alerta que a obra sobrevive para além das questões comezinhas do
mundo político da época: “Antônio Chimango é sátira política, contudo mostra-se mais do que
isto. O significado da sátira se consome no momento histórico que a provocou. Antônio
Chimango guarda, contudo, o poder de provocação também fora do tempo e do espaço em
que surgiu” (1987, p. 109).

A descrição do poema
O poema é constituído de cinco rondas (ou cantos, ou partes), com 213 sextilhas
(estrofes com seis versos cada), num total de 1.278 versos. Consta ainda uma sextilha inicial
extra, que compõe a “Oferta”.

Oferta: 1 sextilha
1ª ronda: 32 sextilhas

2
2ª ronda: 32 sextilhas
3ª ronda: 32 sextilhas
4ª ronda: 50 sextilhas
5ª ronda: 67 sextilhas
Total nas rondas: 213 sextilhas

A “Oferta”

Ao Rio Grande
Oferta

Velho gaúcho – Insaciável


De fazer aos mandões guerra,
Nestas páginas encerra
Por um pendor invencível –
Seu amor – Incorrigível
Às tradições desta terra.

A curiosidade desta “Oferta” é que as palavras acima grafadas em itálico foram


extraídas por Ramiro Barcelos de um telegrama que Borges de Medeiros mandou a Pinheiro
Machado, articulando a candidatura de Hermes da Fonseca:
“Senador Pinheiro Machado, Rio. Forçado absoluto repouso em consequência moléstia
que ainda me retém ao leito, não expedi decreto marcando dia eleição senatorial, nem pela
mesma razão vos comuniquei logo a propaganda improvisada por alguns díscolos e
pretensiosos, tendo à frente Ramiro Barcelos, sempre insaciável e incorrigível. Confiante
exemplaríssima, íntegra moral cívica nosso Partido, não receio defecções, nem tibieza, na
sustentação da candidatura Hermes. Entretanto, é de bom aviso apressar eleição e lançar
desde já oficialmente referida candidatura. Desejo nesse sentido telegrama vosso a mim,
fundamentando sumariamente escolha candidato. Publicado com minha expressa
solidariedade, na própria proclamação oficial, A Federação encetará defesa diária candidato.
Aguardo vossa resposta. Abraços”.

As rondas
São cinco rondas, equivalentes a cinco dias:

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Primeira ronda
(1-9) Um menino desafia o Tio Lautério ao canto (É importante notar que, no começo de cada
ronda, sempre há situações de tensão, provocada seja pelas brigas e discussões entre a
peonada, seja pela força da natureza).
(10-32) Nascimento do Chimango; previsão do futuro pela cigana.

Segunda ronda
(33-43) O guri e Lautério batem boca.
(44-64) Infância do Chimango; ida à escola.

Terceira ronda
(65-77) Arma-se um temporal; baile.
(78-96) Juventude do Chimango; apadrinhamento do Chimango pelo Coronel Prates.

Quarta ronda
(97-109) Travessia do rio Camaquã, cheio devido às chuvas.
(110-146) Cel. Prates aposenta-se, apontando o Chimango para substituí-lo, sob a tutela de
Aureliano.

Quinta ronda
(147-168) O estouro da boiada.
(169-213) Morte do Cel. Prates; consolidação do poder do Chimango, com a conivência de José
Turuna; lamento com o destino da outrora pujante Estância de São Pedro.

Estrutura
Formalmente, o poema é composto por estrofes de seis versos heptassílabos com
rimas que se delimitam a partir do seguinte esquema: ABBCCB. É bom lembrar que a
redondilha maior é o verso popular por excelência da língua portuguesa, facilitando a
memorização, o que explica, em parte, o sucesso do poema junto ao público. Na sequência,
para exemplificar, faz-se a escansão da primeira e da última sextilhas:

1
An / tes / da en / tra / da / do / sol A
Es / ta / va a / tro / pa en / ce / rra / da,B
A / por/ tei / ra / bem / a / ta / da B

4
Com / cui / da / do e / se / gu / ran / ça; C
Não / vi / nha / lá / mui / to / man / sa C
E e / ra / re / cém- / a / par / ta / da. B

213
E a / qui / le / po / nho o a / rre / ma / te A
Na / pre / si / lha / des / ta his / tó / ria.B
Que um / ou / tro / te / nha a / vi / tó / ria B
De / can / tar / nal / gum / fan / dan / go C
O / mais / que / fez / o / Chi / man / go C
Pra / le / var / S. / Pe / dro à / Gló / ria. B

A linguagem das sextilhas é vazada em tom popular e regionalista, com um cunho


gauchesco. Note-se também a grafia, que aparece marcada na norma não-culta, tanto pelo
narrador da primeira instância como no da segunda (o Tio Lautério). Por exemplo: “ansim” ou
“instormento”.
Quanto ao gênero, Antônio Chimango é um poema narrativo, embora não chegue a se
concretizar como um poema épico, ou epopeia, pois não atende a uma série de fatores do
texto epopeico, como a presença do nacionalismo, do heroico, do maravilhoso, entre outros
aspectos. O “poemeto campestre” seria, na verdade, um poema joco-sério, ou herói-cômico,
que é exatamente uma composição em estilo solene e heroico que encerra um assunto banal e
ridículo.

O gaúcho e o antigaúcho
1ª instância (em itálico) (o gaúcho):
1ª ronda: 9 sextilhas = 1ª à 9ª
2ª ronda: 11 sextilhas = 33ª à 43ª
3ª ronda: 13 sextilhas = 65ª à 77ª
4ª ronda: 13 sextilhas = 97ª à 109ª
5ª ronda: 22 sextilhas = 147ª à 168ª

Sempre em itálico, descreve cenas gaúchas, tendo como espaço a campanha: a lida, a
condução dos animais, as atividades dos tropeiros. Ao final de cada cansativo dia, há sempre
um serão em que o Tio Lautério canta as aventuras do Chimango. É um mundo que, embora
glorioso, mostra-se irrecuperável, já que a economia do Estado sulino já apontava uma

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urbanização e uma industrialização não compatíveis com a descrição encetada nessa primeira
parte do texto de Amaro Juvenal. É o ocaso melancólico de uma época; talvez Antônio
Chimango, junto com os Contos gauchescos (a dupla Tio Lautério/Blau, aliás, pode ser vista
como a representante de um tipo de personagem que posteriormente entrará em
decadência), seja um dos últimos exemplos de uma gauchesca que, a partir da década de
1930, já começa a sentir os efeitos dos novos tempos, sendo a Trilogia do Gaúcho a Pé, de
Cyro Martins, a prova mais cabal disso.

O gaúcho Lautério (os números a seguir indicam a sextilha):


Hábitos alimentares (carne, chimarrão) – 5 e 36-37. A cachaça aparece na 6ª e na 166ª
sextilhas; também na 166ª aparece o fumo.
As habilidades, o fazer, a lida – 34 e 106 (excelente condutor e manejador do gado).
Relação com o cavalo – 156.
Constituição moral positiva (insubmissão, franqueza, hospitalidade, valentia, seriedade) – 73 e
155.
Vestuário (chapéu com barbicacho, poncho): 8 e 149. Aparecem ainda apetrechos como o
relho, como nas sextilhas 41 e 161.

2ª instância (sem itálico) (o antigaúcho):


1ª ronda: 23 sextilhas = 10ª à 32ª
2ª ronda: 21 sextilhas = 44ª à 64ª
3ª ronda: 19 sextilhas = 78ª à 96ª
4ª ronda: 37 sextilhas = 110ª à 146ª
5ª ronda: 45 sextilhas = 169ª à 213ª

Sem o itálico, essa instância mostra um mundo novo, em que não há espaço para a
compreensão heroico-gauchesca da existência; o local da ação, nesta parte, é na Estância de
São Pedro – metonimicamente, o Estado do Rio Grande do Sul. O poder é disputado por meio
de intrigas, sendo alcançado não pelos mais competentes, mas pelos mais bajuladores. O
desenho físico e moral do personagem central dessa instância também é desolador, conforme
se verá abaixo.

O antigaúcho Chimango (os números a seguir indicam a sextilha):


Hábitos alimentares (feijão, milho, mel) – 47.
As habilidades, o fazer, a lida – 89 e 90 (atividades típicas ou das mulheres ou dos subalternos).

6
Relação com o cavalo – 45.
Constituição moral negativa (submissão, covardia, subserviência, falsidade, dissimulação) – 44,
92, 182.
Vestuário (camisola e tamanquinhas – aqui, também a presença da feminização): 44 e 95.
Má constituição física, doenças – 46.
O fato de ser um “pau-mandado” nas mãos dos mais poderosos – 122-123 e 144.
A maneira como ficou a Estância de S. Pedro sob o comando do Chimango – 195-213, com
destaque para 198-199 e 206-207.

Outras personagens e sua relação com figuras reais


Se de um lado temos o herói (Tio Lautério, o “gaúcho”), e de outro o anti-herói
(Chimango, o “antigaúcho”), é interessante notar que o Cel. Prates (na verdade, Júlio de
Castilhos) é desenhado como um “gaúcho de verdade”, por conservar os atributos próprios do
herói, por seus hábitos e habilidades, por sua fortaleza moral (81-82). Já José Turuna (Pinheiro
Machado) situa-se numa posição intermediária, pois se destaca pela dissimulação e pela
astúcia, mas é valente e se identifica com o cavalo. Aureliano, por sua vez, emula Aurélio
Veríssimo de Bittencourt, secretário, por vários anos, do presidente do Estado sulino, num
primeiro momento de Júlio de Castilhos, num segundo de Borges de Medeiros.

Referências bibliográficas
BAUMGARTEN, Carlos Alexandre. Ficção e história em Antônio Chimango. In: BAUMGARTEN,
Carlos Alexandre; MOREIRA, Maria Eunice. Literatura sul-rio-grandense: ensaios. Rio
Grande: Ed. da FURG, 2000. p. 125-143. (Este texto também aparece na revista Letras
de Hoje, Porto Alegre, v. 27, n. 1, p. 63-77, mar. 1992.)
CARDOSO, Zelia de Almeida. A literatura latina. São Paulo: Martins Fontes, 2011.
FAORO, Raymundo. Antônio Chimango, algo de Blau Nunes. In: TARGA, Luiz Roberto Pecoits
(Org.). Breve itinerário de temas do Sul. Porto Alegre: Ed. da UFRGS; FEE; Lajeado: Ed.
da UNIVATES, 1998. p. 39-46. (Este texto foi originalmente publicado na revista
Quixote, n. 5, ago. 1952.)
FISCHER, Luís Augusto (Ed.). Antônio Chimango: poemeto campestre de Amaro Juvenal. Caxias
do Sul: Modelo de Nuvem, 2016.
______. Antônio Chimango: poemas, crônicas, discursos e polêmicas de Ramiro Barcelos.
Caxias do Sul: Modelo de Nuvem, 2016.
FRANCO, Sérgio da Costa Franco. Dicionário político do Rio Grande do Sul: 1821-1937. Porto
Alegre: Suliani Letra & Vida, 2010.

7
JUVENAL, Amaro (pseud. de Ramiro Barcelos). Antônio Chimango: poemeto campestre. Org.
de Luís Augusto Fischer. Porto Alegre: Artes e Ofícios, 2000.
MARTINS, Maria Helena. Agonia do heroísmo: contexto e trajetória de Antônio Chimango.
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SCHÜLER, Donaldo. A poesia no Rio Grande do Sul. Porto Alegre: Mercado Aberto; IEL, 1987.

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