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Nota sobre a escolha de “Amaro Juvenal”: o pseudônimo traz embutido o amargo da crítica
(Amaro) e o riso ácido da sátira, no momento em que o nome Juvenal faz alusão ao satírico
romano Decimus Iunis Iuuenalis – mais conhecido como Juvenal –, que viveu do fim do século I
ao início do século II d.C. Nos dezesseis textos satíricos de sua autoria que chegaram até nós,
Juvenal apontou, com realismo e violência, vícios e questões de moral da sua época 1.
1
Ramiro, antes do Chimango, teve larga atuação na imprensa, primeiro no jornal liberal e federalista A
Reforma, depois no A Federação, órgão republicano fundado em 1884, e no Correio do Povo. Nestes dois
últimos, assinará, com o pseudônimo que o viria a consagrar no âmbito literário, vários artigos de cunho
polêmico e/ou satírico.
1
Sul durante cinco mandatos: 1898-1902 (neste primeiro período, sucedendo ao seu mestre
político, Júlio de Castilhos); 1903-1907; 1913-1917; 1918-1922; e 1923-1928. Entre 1908 e
1912, foi presidente um sucessor por ele indicado, Carlos Barbosa Gonçalves. Se o Chimango é
baseado em figura real, a personagem que conduz o poema, Tio Lautério, também o é, já que
se trata de corruptela de Eleutério (1851-1942), ex-escravo que trabalhava em propriedade de
Antão de Faria, amigo de Ramiro Barcelos. Consta que Ramiro gostava de conversar com o
peão, quando visitava a fazenda.
Ramiro Fortes de Barcelos (Cachoeira do Sul, 8 maio 1852; Porto Alegre, 29 jan. 1916 –
morre, portanto, poucos meses depois do lançamento da primeira edição, clandestina, de sua
obra, em 1915), médico e jornalista, foi um dos fundadores do Partido Republicano Rio-
Grandense (PRR), defensor da República e antimonarquista. Devido a seu temperamento forte,
aos poucos começou a discordar da ortodoxia das ideias positivistas de Júlio de Castilhos e
seus seguidores. A ruptura definitiva deu-se quando Borges de Medeiros não o apoiou em sua
candidatura ao Senado Federal, em 1915. Borges deu apoio a Hermes da Fonseca, ex-
presidente da República entre 1910 e 1914. Com o apoio borgista, Hermes veio a ganhar a
eleição, que foi, como todas na época, colocada sob suspeita de fraude. O desabafo com
tantos desmandos foi a escrita da sátira política, no calor da hora, no verso dos papéis de
procuração eleitoral.
Explicam-se, assim, o “Antônio” (primeiro nome de Borges de Medeiros), e o
“Chimango” (apelido que faz alusão à menor ave de rapina do Estado, o ximango). Não é à toa
que “chimango” (a grafia permanece com “ch” por tradição) torna-se a maneira como os
antagonistas passam a chamar, pejorativamente, os borgistas e os partidários do PRR.
Todavia, Schüler alerta que a obra sobrevive para além das questões comezinhas do
mundo político da época: “Antônio Chimango é sátira política, contudo mostra-se mais do que
isto. O significado da sátira se consome no momento histórico que a provocou. Antônio
Chimango guarda, contudo, o poder de provocação também fora do tempo e do espaço em
que surgiu” (1987, p. 109).
A descrição do poema
O poema é constituído de cinco rondas (ou cantos, ou partes), com 213 sextilhas
(estrofes com seis versos cada), num total de 1.278 versos. Consta ainda uma sextilha inicial
extra, que compõe a “Oferta”.
Oferta: 1 sextilha
1ª ronda: 32 sextilhas
2
2ª ronda: 32 sextilhas
3ª ronda: 32 sextilhas
4ª ronda: 50 sextilhas
5ª ronda: 67 sextilhas
Total nas rondas: 213 sextilhas
A “Oferta”
Ao Rio Grande
Oferta
As rondas
São cinco rondas, equivalentes a cinco dias:
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Primeira ronda
(1-9) Um menino desafia o Tio Lautério ao canto (É importante notar que, no começo de cada
ronda, sempre há situações de tensão, provocada seja pelas brigas e discussões entre a
peonada, seja pela força da natureza).
(10-32) Nascimento do Chimango; previsão do futuro pela cigana.
Segunda ronda
(33-43) O guri e Lautério batem boca.
(44-64) Infância do Chimango; ida à escola.
Terceira ronda
(65-77) Arma-se um temporal; baile.
(78-96) Juventude do Chimango; apadrinhamento do Chimango pelo Coronel Prates.
Quarta ronda
(97-109) Travessia do rio Camaquã, cheio devido às chuvas.
(110-146) Cel. Prates aposenta-se, apontando o Chimango para substituí-lo, sob a tutela de
Aureliano.
Quinta ronda
(147-168) O estouro da boiada.
(169-213) Morte do Cel. Prates; consolidação do poder do Chimango, com a conivência de José
Turuna; lamento com o destino da outrora pujante Estância de São Pedro.
Estrutura
Formalmente, o poema é composto por estrofes de seis versos heptassílabos com
rimas que se delimitam a partir do seguinte esquema: ABBCCB. É bom lembrar que a
redondilha maior é o verso popular por excelência da língua portuguesa, facilitando a
memorização, o que explica, em parte, o sucesso do poema junto ao público. Na sequência,
para exemplificar, faz-se a escansão da primeira e da última sextilhas:
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An / tes / da en / tra / da / do / sol A
Es / ta / va a / tro / pa en / ce / rra / da,B
A / por/ tei / ra / bem / a / ta / da B
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Com / cui / da / do e / se / gu / ran / ça; C
Não / vi / nha / lá / mui / to / man / sa C
E e / ra / re / cém- / a / par / ta / da. B
213
E a / qui / le / po / nho o a / rre / ma / te A
Na / pre / si / lha / des / ta his / tó / ria.B
Que um / ou / tro / te / nha a / vi / tó / ria B
De / can / tar / nal / gum / fan / dan / go C
O / mais / que / fez / o / Chi / man / go C
Pra / le / var / S. / Pe / dro à / Gló / ria. B
O gaúcho e o antigaúcho
1ª instância (em itálico) (o gaúcho):
1ª ronda: 9 sextilhas = 1ª à 9ª
2ª ronda: 11 sextilhas = 33ª à 43ª
3ª ronda: 13 sextilhas = 65ª à 77ª
4ª ronda: 13 sextilhas = 97ª à 109ª
5ª ronda: 22 sextilhas = 147ª à 168ª
Sempre em itálico, descreve cenas gaúchas, tendo como espaço a campanha: a lida, a
condução dos animais, as atividades dos tropeiros. Ao final de cada cansativo dia, há sempre
um serão em que o Tio Lautério canta as aventuras do Chimango. É um mundo que, embora
glorioso, mostra-se irrecuperável, já que a economia do Estado sulino já apontava uma
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urbanização e uma industrialização não compatíveis com a descrição encetada nessa primeira
parte do texto de Amaro Juvenal. É o ocaso melancólico de uma época; talvez Antônio
Chimango, junto com os Contos gauchescos (a dupla Tio Lautério/Blau, aliás, pode ser vista
como a representante de um tipo de personagem que posteriormente entrará em
decadência), seja um dos últimos exemplos de uma gauchesca que, a partir da década de
1930, já começa a sentir os efeitos dos novos tempos, sendo a Trilogia do Gaúcho a Pé, de
Cyro Martins, a prova mais cabal disso.
Sem o itálico, essa instância mostra um mundo novo, em que não há espaço para a
compreensão heroico-gauchesca da existência; o local da ação, nesta parte, é na Estância de
São Pedro – metonimicamente, o Estado do Rio Grande do Sul. O poder é disputado por meio
de intrigas, sendo alcançado não pelos mais competentes, mas pelos mais bajuladores. O
desenho físico e moral do personagem central dessa instância também é desolador, conforme
se verá abaixo.
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Relação com o cavalo – 45.
Constituição moral negativa (submissão, covardia, subserviência, falsidade, dissimulação) – 44,
92, 182.
Vestuário (camisola e tamanquinhas – aqui, também a presença da feminização): 44 e 95.
Má constituição física, doenças – 46.
O fato de ser um “pau-mandado” nas mãos dos mais poderosos – 122-123 e 144.
A maneira como ficou a Estância de S. Pedro sob o comando do Chimango – 195-213, com
destaque para 198-199 e 206-207.
Referências bibliográficas
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Carlos Alexandre; MOREIRA, Maria Eunice. Literatura sul-rio-grandense: ensaios. Rio
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Caxias do Sul: Modelo de Nuvem, 2016.
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SCHÜLER, Donaldo. A poesia no Rio Grande do Sul. Porto Alegre: Mercado Aberto; IEL, 1987.