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AQUISICAO POR IPRA ADQUIRIDO DE _CaenEciou 01 mar, 2010 909.7 Dios dts io err oy EDITORA ROCCO LTDA. ta Rete So 20011-040 - Rio de Janeiro, RJ Tel: 2507-2000 - Fax: 2507-2244 e-mail: rocco@rocco.com.br vrww.roeco.com.br Printed in Brazil / Impresso no Brasil CIP-Brasil. Catalogacio-na-fonte. al dos Editores de Livros, RJ Nas mathas da letra: ensaios / Silviano Santiago. ~ Rio de Janeiro: Rocco, 2002 Inclui bibliografia ISBN 85-325-1404-9 1. Ensaio brasileiro. 2. Literatura brasileira ~ Hist CDD-869.94 02-0493, CDU-869.0(81)-4 $C001171373 SHCOy> a ¢ critica, I. Titulo. QI Sumirio Nota 4 primeira edigio ... Nota 4 segunda edicio ... Poder ¢ alegria Prosa literdria atual no Brasil © narrador pés-modemo . Singular ¢ anénimo © Evangelho segundo Joio Il © dentro do dentro do dentro Fechado para balanco ... ‘A permanéncia do discurso da tradi¢io no modernismo .. Historia de um livro .. A estrutura musical no romance .. Questio de perspectiva... O intelectual modernista revisitado Amizade e vida profissional.... 13 28 44 61 72 81 85 108 145 164 187 193 eet IE Por qne © para que viaja o europeu?.. Onde a propaganda ¢ onde a arte... at IV Para além da histéria social . . 251 Bibliografia . . 273 Nota final ........ 275 Nota 4 primeira edigao Estes ensaios dramatizam quatro preocupagées da minha inquietagio ctitica, inaugurando novas perspectivas de com- preensio do fenémeno literdrio no contexto cultural brasileiro Uma primeira preocupacia é com as cantemporaneas, isto é aqgueles autores de obras com quem convive a minha propria escrita ficcional ¢ poética. E a maneira como, analisando ¢ ava- liando a producéo literéria pés-64, mapeio escritas, tracos te- miticos e problemas para melhor me situar. Uma segunda preocupagio € com os modernistas. Algumas sugestdes de leitura ¢ algnmas conclusées (ainda que precdrias) podem parecer cruéis a uma sensibilidade ainda afinada com o ideirio de 22. Nao tenho interesse em pedis-lhe desculpas. Asinalo a ténica e a consciéncia que tenho da minha tomada de posigio. O resto & matéria para discussio académica. Em seguida prolongo duas linhas que s¢ enconttam desde Uma Hiteratura nos trdpicas. Retomo a questio das relagdes entre a Europa ¢ as Améri- cas, agora pelo viés de um ensaio de Umberto Eco e pela cri tice de uma inesperada forma de censura artistica em pais tio democratizado quanto a Alemanha pés-hitleriana. Retomo, depois, certa preocupagio teénica que sé encontra disseminada aqui ¢ ali nos meus textos criticos que tangenciam a literatura comparada. Agora o intuito é 0 de questionar 2 metodologia de leitura que se encontra na minha produgao mais recente, © rabicha desta ¢ de outras contradigées, nio é dificil encontré-lo na minha formagio intelectual. Quem ago Nota a primeira edigio se lembra que André Gide disse que era um homem em didlo- go, que tudo nele combatia e se contradizia. Um duplo agradecimento final: ao Instituto de Estudos Avangados (USP), por um incentivo que acabou durando ape- nas dois meses, e ao CNPq, por uma recente e intermitente bolsa de pesquisa. Maio de 1988 8 NAS MALHAS DA LETRA Nota 4 segunda edicgio A Editora Rocco tem pouco a pouco republicado os meus livros esgotados. Na categoria ensaio sobre literatura e cultura brasileiras, saiu recentemente Uma literatura nos trépicos. Agora langa a segunda edigio de Nas malhas da letra, Proximamente, estara reimprimindo Vale quanto pesa. Nas malhas da letra retine os ensaios que escrevi nos anos que sio conhecidos como os do proceso politico de abertura. O livro mantém relago estreita com os dois livros de ensaios que o antecedem. Uma literatura nos trépicos viveu de certa euforia narcisista, decorrente da teoria da dependéncia econémica aplicada ao conhecimento e desenvolvimento das artes e das culturas na- cionais do Terceiro Mundo. A euforia que sustenta os ensaios mais densos do livro, em particular “O entre-lugar do discurso latino-americano” e “Ea, autor de Madame Bovary”, foi per- dendo o vigor nas duas dltimas décadas e praticamente se apa~ gou com o século. Hoje pareceria um livro datado, se 0 novo milénio nio nos tivesse trazido questdes que ali foram expostas € discutidas. No seu estertor, os novos tempos se alimentam de idéias que foram por ele corroidas. Vale quanto pesa tentou conviver criticamente nao s6 com 0s descalabros ¢ impasses criados pela repressio e a censura as artes, decorrente do regime implantado pela ditadura militar, como também com a emergéncia brutal dos problemas por que passou o artista no momento em que a economia brasilei- Ta tornava-se por op¢io dos dirigentes do pais uma economia Nota a segunda edigio 9 de mercado. O nome do sabonete da minha infincia servia de metafora para que se perguntasse qual era © peso ¢ o valor da arte no miomento em que a critica perdia sentido e o consu- midor se algava 4 condigio de arbitro todo-poderoso. Recen- temente a Academia Brasileira de Letras foi convidada a se envolver na questéo. Nas mathas da letra traz ensaios que tentam dramatizar os percalcos da nova literatura brasileira. Ao mesmo tempo em que quer privar-se das fortes amarras que mantém com 0 Mo- dernismo, opta por enfrentar frente a frente a questio da tra- digo nacional. © livro passa a encarar a produgio modemista pelo viés da pés-moderidade ¢ a tradigio pelo viés do que foi recalcado pelo Modernismo — o pré-modemismo por exem- plo. Autores como Euclides da Cunha, Lima Barreto e Joio do Rio estdo ai e nio nos deixam mentir, O ensaio intitulado “O narrador pés-moderno” talvez seja a melhor chave para a sua (re)leitura. Nao é sem modéstia que afirmo que esses trés livros de ensaios, precedidos pelo Carlos Drummond de Andrade, que pu- bliquei em 1976, acabam sendo de maneira sutil — e talvez por isso mesmo envergonhada — comentirios aos livros de criagdo (prosa e poesia) que fui escrevendo no decorrer das dé- cadas finais do século. Criagio ¢ critica se langam na minha obra com 0 mesmo impeto e coragem. Criagio e critica so intercambiaveis, A leitura do outro, como esta claro nos roman- ces Em liberdade © Viagem ao México, além de ser uma forma de enclausuramento do escritor na tradicio literéria nacional ¢ cosmopolita de que extrai sentido, € também o modo mais vi- vaz que encontra para escapar das armadilhas do sujeito singular € imperioso, mera panqueca pos-moderna, que tem servido de engodo a paladares aflitivos ¢ irresponsiveis. O autor Abril de 2002 10 NAS MALHAS DA LETRA Poder e alegria A LITERATURA BRASILEIRA POS-64 — REFLEXOES A Celso Cunha Nbs temos que dar ao Brasil o que cle nao tem e que por isso até ‘agora no viveu, nés temos que dar uma alma ao Brasil ¢ para isso todo sacrificio € grandioso, & sublime. E nos dé felicidade. [...] Toda 4 minha obra é transitéria ¢ caduca, eu sci. E eu quero que seja transitoria, [...] Mas que importa a etemidade entre os homens da Terra ¢ a celebridade? Mando-as 4 merda. Eu nado amo o Brasil espiritualmente mais do que a Franga ou a Cochinchina, Mas é no Brasil que me acontece viver e agora 36 no Brasil eu penso ¢ por ele tudo sacrifiquei Mario de Andrade (1924) Tentemos, primeiro, uma distingao bisica que servira para caracterizar tematicamente a literatura brasileira pés-64. Deixa esta de apresentar como tema principal e dominante a explo- ragio do homem pelo homem. Esse tema foi em geral drama- tizado pelo processo de conscientizagio politico-partidaria de personagens pertencentes 20 campesinato € ao operariado, acompanhado de critica velada (simpitica) ou aberta (radical) 4 oligarquia rural ¢ a0 empresariado urbano. O jogo entre as duas forcas sociais opostas escamoteava por vezes as camadas médias e urbanas da sociedade e era composto de forma a an- tecipar dramaticamente uma evolugio otimista ¢ sem tropecos do capitalismo para 0 comunismo no Brasil. Otimismo e utopia se aliavam para mostrar a vit6ria definitiva das forcas de esquerda. E pelo abandono gradativo desse tema (e seus subtemas) que a literatura pés-64 se diferencia da literatura engajada que Poder ¢ alegria 13 ee lhe foi anterior e encontra a sua originalidade temitica. Esse abandono nio significa que a igualdade econémica e social tenha sido atingida nesta parte do mundo, que a utopia tenha virado realidade cotidiana entre nés. Pelo contririo. Nos anos 60, através de expedientes de incalculada violéncia, a desigual- dade foi acentuada de tal modo pela América Latina que seria ingénuo acreditar que 0 modelo ficcional proposto pelos mo- dernistas para a superacio politica da exploracio do homem pelo homem ainda fosse valido depois de 64. De maneira timida ¢ depois obsessiva, a literatura brasileira, a partir da queda do regime Goulart e do golpe militar de 64, passou a refletir sobre 0 modo como funciona o poder em pai- ses cujos governantes optam pelo capitalismo selvagem como norma para o progresso da nagio e o bem-estar dos cidadaos. Refletindo sobre a maneira como funciona ¢ atua o poder, a literatura brasileira pés-64 abriu campo para uma critica ra- dical ¢ falminante de toda e qualquer forma de autoritarismo, principalmente aquela que, na América Latina, tem sido pre- gada pelas forgas militares quando ocupam o poder, em teses que se camuflam pelas leis de seguranca nacional. De maneira paralela ao deslize tematico mencionado, opera- se uma guinada importante no processo evolutivo linear do modernismo, concretizado por um gesto de ruptura que, por sua vez, determina o aparecimento de um novo periodo da nossa histéria literéria, chamado de pés-modernista, passivel de ser estudado dentro do ideario mais amplo do que se con- vencionou chamar de pés-moderno. Estilisticamente, a literatura brasileira pés-64 pdde, por um lado, retomar uma ligio do pasado, ajustando-se — apos a obra genial de Guimaries Rosa ¢ 0 esforco universalista dos varios concretismos — a principios estéticos fundamentados pelo realismo dos anos 30. Péde também, por outro lado, apro- ximar-se da literatura hispano-americana que lhe € contem- porinea, abrindo mio do naturalismo na representagio, em virtude de problemas graves de censura artistica. Neste segun- do caso, adentra-se 0 texto literério por uma escrita metafori- ca ou fantistica, até entio praticamente inédita entre nds. Va~ 4 NAS MALHAS DA LETRA lendo-se, pois, de uma escrita realista ainda comprometida com os anos 30 ou de uma outra comum aos latino-americanos, a li- teratura pés-64 guarda sempre a obsessio temitica a que nos referimos. Na critica ao autoritarismo e ao poder militar, a literatura brasileira pés-64 também se distancia ideologicamente dos anos 30: 0s escritores das mais diversas posturas politicas se irmana- vam entio, contraditoriamente, numa op¢io radical pela de- moligo do liberalismo classico, rechagando a escolha de go- vernantes através do sufragio universal e defendendo a tomada de poder por um lider carismitico a que se entregaria o caminho do pais. O projeto totalitério de Getilio Vargas foi um entre varios, ¢ se foi ele 0 vencedor foi porque soube congregar de forma habilidosa as diversas forcas conservadoras em jogo no Brasil e no estrangeiro, A partir de 64, gradativamente, as di- versas facgdes esquerdistas foram se aglutinando para formar uma frente ampla que acabou por rejeitar qualquer forma de ditadura, até mesmo a do proletariado, ficando no palco do autoritarismo apenas os velhos compagnons de route que se re~ cusaram a pensar o proprio passado tenentista, como € 0 caso de Luis Carlos Prestes. ‘A autocritica no plano ideolégico efetuada apés 64 por si s6 comenta a mudanga temitica significativa a que estamos nos referindo no plano artistico. Ambas sio formas de uma mudanga geral que vai afetar 0 todo das forcas que compéem © cenirio politico do pais, deixando primeiro que o desejo de democracia explodisse para que em seguida 0 conceito pecasse —e ainda peque — pela sua imprecisio semintica. O concei- to de democracia freqiienta hoje discursos que vio da direita ofendida por uma manifestacio de povo na rua a esquerda que volta a tomar assento no Parlamento nacional. Essa indis- criminago, essa imprecisio politica do conceito é grave, mas simboliza uma vez mais a inércia da historia social brasileira, ou seja, simboliza as ambigitidades, covardias, estratégias reto- ricas, espertezas etc., de periodos que se convencionou chamar de transig3o e que fundamentalmente acabam por nio o ser. © surgimento do Partido dos Trabalhadores na década de Poder ¢ alegria 15 70, sua alianca com os movimentos sociais das minorias e sua possivel absorcio de facgdes que defendem a ecologia, nio é apenas signo de mais uma dissidéncia interna no chamado Par- tidio, como tantas outras no passado. E antes a necessidade de um novo programa de participagio politica para o campesina- to € os trabalhadores urbanos, afinado com 0s novos tempos negros dos desmandos do poder por estas terras. Nao se trata de lutar apenas contra o poder burgués sob a sua forma de centralizagio burocritica, legislativa e juridica; a luta é e deve ser mais ampla, pois o poder toma as mais inusitadas formas no cotidiano do cidadio, sub-repticiamente gerando — a partir da negagio da diferenca — forcas repressoras que visam a uni. formidade (racial, sexual, comportamental, intelectual etc.). O deslize das questées dos e sobre os oprimidos para o questionamento amplo do opressor (do lugar de onde ele fala, da ordens e dita leis; do modo como, mesmo revolucionario, pode ser conservador etc.) nio é uma simples reviravolta re- torica a gosto de politicos com rango titico militar. O deslize esta no centro das rebelides de jovens que se multiplicaram nas décadas de 60 e 70 e nas suas explosées libertérias, inspi- radas como sabemos no Free speech movement, inicialmente lo- calizado na Universidade de Berkeley, e nos acontecimentos de maio de 68 em Paris. Os jovens do Primeiro Mundo, irma- nados por uma educa¢io universitéria que conseguira despres- tigiar a alta burguesia como tinica merecedora de escolaridade completa, quiseram impor ao todo da sociedade os seus valores auténticos como justos e pregaram uma compreensao ética (e nio pragmitica, como é de praxe nos partidos politicos tradi- cionais) das relagées humanas na ordem sécio-econémica e politica do capitalismo. Para tal, elegetam como inimigo fun- damental as varias forgas repressoras que mantém o status quo, em nivel tanto macro como microestrutural. Como conseqiiéncia, gerou-se uma surpreendente revira~ volta na politica estudantil latino-americana: passa para fundo de cena a atitude tipica dos{@H@3/50)/RaWniaol Brasileira) de Estudantes, expressa peloijlogan “Yankee, go home”, @ ficam no proscénio os jovens libertirios americanos e europeus, a se 6 NAS MALHAS DA LETRA exprimirem pela voz de Joan Baez ou Bob Dylan, de Jim Morrison ou Jimi Hendrix, de John Lennon ou Mick Jagger. De Chico Buarque ou Caetano Veloso. No Ambito dos paises do Primeiro Mundo, a preocupacio maior dos estudantes era com as microestruturas de repressio do poder (dai o surgimento nos anos 70 de um neo-individua~ lismo liberado que explodiu, primeiro, em anarquia e, depois, em narcisismo alimentando a sociedade de consumo). Mas, ao repensarem a atua¢io dos paises lideres ocidentais no plano mundial, esses mesmos estudantes descobriram tanto os perigos da corrida armamentista, responsavel por um préximo apoca- lipse nuclear como no filme Zabriskie Point, quanto as grandes vitimas da historia atual, os paises do Terceiro Mundo. A re- belido estudantil alicerga a busca do “novo homem”, nio nos partidos politicos de esquerda inspirados pela Revolugio Rus- sa, mas em Che Guevara e Cuba. Ao mesmo tempo atua de maneira radical contra as intervengdes militares feitas pelas grandes poténcias a favor do colonialismo europeu (nos paises africanos) ou do colonialismo americano (nos paises asiticos). Atua ainda contra as intervencdes econémicas feitas pelas mul- tinacionais a favor do neocolonialismo americano (nos paises da América Latina). Os movimentos contra a guerra do Vietni, dos sit in nas reitorias ou nas vias piblicas 4 queima de cartées de reservistas nos campi, resumem tudo. A guerrilha rural do Terceiro Mundo passa 2 modelo para a guerrilha urbana do Primeiro, e poucos meses depois a diferen- ca desaparece, pois o importante passa a ser a teoria dos focos, os 1001 Vietnas de que fala Guevara. Eis 0 traco de unido que irmanava a liberagio do povo vietnamita aos black panthers americanos, que justificava 0 expansionismo de Cuba pela Amé- tica Latina e a luta armada contra a ditadura militar no Brasil, que ligava 0 jovem soixante-huitard de Paris aos estudantes me- xicanos que tomavam de assalto Tlatelolco. A revolta era oci- dental, Ficou por vir o pior da histéria. A reorganizagio da direita pelos paises do Terceiro Mundo, impondo aqui ¢ ali regimes opressores e totalitarios de ambito nacional (embora articulados Poder ¢ alegria 7 pelo governo americano), de uma violéncia organizaia ¢buro- cratizada inédita desde os movimentos de independéacis tente ao colonialismo europeu no século XVIII, mas que puidmente relembrava 0 exterminio dos indios e as torturas da escxidao, Uma errata vai sendo pouco a pouco apensa » ho da década de 60 pelos acontecimentos vitoriosos na déala de 70: onde estava movimento libertirio, dever-se-ia er *gime repressor; onde estava imaginagio no poder, deve-seia ler censura policial; onde estava liberagio do homem, ieve-se-ia ler tortura militar; e assim por diante. Como a errata sta mpru- dente ¢ desanimadora para os meios de comunicagic de massa, impunha-se escondé-la atris de uma fachada. A fachida ¢ nos- sa conhecida, e a propria atualidade dos anos 80 excar¢gou- se de desmistifica-la: tratava-se de enquadrar a ecooma dos diversos paises da América Latina aos padrées do apislismo tecnolégico, através do dominio autoritério de uma ecrocracia burocratizada. Esta seria responsavel, na sua raciondizaio do progresso e pela competéncia indiscutivel dos técticos pela modernizacio das diferentes nagdes do hemisfério sl, optan- do-se para isso por uma entrada maciga do capital strageiro. Por detrs da fachada milagrosa, além do autoritarsm e da tepressio, vé-se hoje a realidade do endividamento exteno ti pico do capitalismo selvagem dominante nos nosscs pises. Nesse contexto mais amplo é que se pode entenéer melhor a reacio revolucionaria da inteligéncia brasileira ao gdpe militar de 64 © ao seu recrudescimento a partir de 68. As “mios dadas” de que nos falou Carlos Drummond de Andrade na década de 30 ficaram soltas no ar. O ompnhei- rismo revolucionario e esperancoso de que todos ms dlaram utépica e chaplinescamente nas décadas de 30 e 4) perdeu a sua tazio de ser como luta primeira, em virtude de uma dsagre- gacdo das forgas de esquerda operada por uma violéacia insus- peitada. A violéncia pdde ser visivel nas ruas, coma militari- zacdo progressiva do Estado, com o grupo dirigente cutegando a si o direito de reprimir 0 cidadio em nome da seguranga na- cional; péde ser visivel de forma quase invisivel na careira de identidade e nos crachas que se requisitavam parz se entrar 7 NAS MALHAS DA LETRA num edificio pablico ou num escritério; ¢ pode ser visivel de forma invisivel na ficha a ser preenchida pelos moradores de um edificio para, caso necessario, posterior controle policial. A violéncia péde passar praticamente invisivel como um todo se se atenta para os meios de comunicago de massa, em especial a televisio, direcionados pelo Estado para o controle subliminar da sociedade. Tanto a violéncia visivel quanto a invisivel res- tringiram a0 minimo o universo de pensamento e 0 campo de agio dos cidadios inconformados (e, entre estes, o do artista). Retomemos. A descoberta assustada ¢ indignada da violén- cia do poder é a principal caracteristica temitica da literatura brasileira pos-64. Sio tematizadas as varias origens do poder, na sociedade ocidental e na época colonial brasileira, no tenentismo de 30 e no Estado Novo, também nos nossos dias com o aparato policial convenientemente resguardado da im- prensa pela censura; reflete-se sobre suas formas globais e centralizadas, como também sobre seus esfarelamentos em infinitas particulas moleculares pelo cotidiano. A abrangéncia do poder repressor e vingativo pode ser total ou localizada, conseguindo eficazmente neutralizar os assaltos que lhe sio feitos pela razio critica e pelas grandes questdes do século. Dessa forma, 0 escritor brasileiro pés-64 coloca em segundo plano nos seus textos a dramatizagio dos grandes temas uni- versais e utdpicos da modernidade, da mesma forma como guarda distancia dos temas nacionais clissicos, ¢ ainda discute sem piedade os temas oriundos de 22 que falavam da indis- pensivel modernizagio industrial do pais. A opgio dramitica é, de maneira geral, pelos temas que, no particular e no cotidiano, na cor da pele, no corpo e na sua sexualidade, representariam uma alavanca que pudesse balan- Gat a s6lida ¢ indestrutivel planificagio do Estado militarizado € 0 aprisionamento de uma populacio pelas fronteiras “natu- ais” do pais. Esbogado 0 quadro, deve-se acreditar que haja atraso na proposta da nova literatura com relagio, por exemplo, a pro- posta dos anos 30? Pode-se dizer que a proposta da literatura brasileira pos-64 seja alienada ou alienante? Poder ¢ alegria 19 a a Nio houve “atraso” artistico nem aliena¢do politica no melhor da producio literiria pés-64; houve, sim, a compreensio profunda de que a tio reclamada modernizagio e industriali- zacio do Brasil (que, teoricamente, nio tenhamos medo em dizer, era 0 cerne do projeto modernista e estava nos progra~ mas politicos tanto da direita quanto da esquerda nos anos 30) estava sendo feita, mas 4 custa de tiros de metralhadora e gol- pes de cassetete, espancamentos ¢ mortes, numa escalada de violéncia militar e policial sem precedentes na historia deste pais, j4 fora dos padrdes universais de justi¢a por efeito de uma colonizagio européia que se valeu de meios de transfor- ma¢io hoje reconhecidamente discutiveis. Colocar corretamente a questio do poder (¢ isso foi o que o melhor da producio literaria fez) j4 € investir contra os muros que se ergueram impedindo que 0 cidadio raciocinasse € atuasse, constituisse 0 seu espaco de agdo ¢ levantasse a sua voz de afirmagées. E orientar, pois, o pais para uma necessaria democratizagio, ainda que esta tenha chegado s6 sob forma institucional. E também investir contra 0 siléncio a que 0 j4 oprimido economicamente ficou reduzido, perdendo os direitos trabalhistas e de reivindicacio de classe. E dar voz, portanto, a todos € a qualquer para que possam manifestar desejo e vonta- de politicos no plano nacional, comunitirio e profissional, para que mais tarde possam ser constituidos governos e organizagdes sindicais dignos do nome. Pode-se dizer que houve atraso na problematiza¢o das ques- tes modernas € universais, mas nio se pode dizer que houve atraso nas questées que a literatura colocou. Para ficar no fun- damental: houve, sim, atraso na propria histéria social do pais, nas tentativas que houve no passado por tornar a sociedade mais justa ¢ igualitiria. Uma coisa ficou patente: nos vinte anos que seguem a 64 os donos do poder resolveram pér as mangas de fora de vez, assumindo como resto algo — 0 poder conserva- dor — que sempre foi dado como transparente pelos trdpicos Sabia-se que o poder existia 14 fora, mas como falar dele aqui dentro se dele se participava sem participar, se dele no se tinham © rosto e as maos? 20 NAS MALHAS DA LETRA A partir de 64, a literatura mostrou que os donos do poder no Brasil tém olhos e ouvidos reais, boca ¢ nariz como qual- quer um, mios injustas ¢, sobretudo, inteligéncia para se man- ter indefinidamente assentados na dire¢io do pais. Agora, ou do poder conservador nio se participa ou inocente nio se é. Acabam de vez as infindiveis imagens pias dos péncios pilatos nacionais, fossem eles senhores de engenho, cafeicultores ou capities de indGstria. Acabam pouco a pouco, num processo altamente positivo de rarefagio, as caricaturas grotescas, faceis e animalescas, dos donos do poder reacionirio (e, portanto, como caricaturas que eram, escamoteavam o conhecimento). Refiro-me as famosas caricaturas de macacos ou outros qua- dripedes abundantes em periodos populistas. Para descrever 0 poder reaciondrio como algo de concreto, dotado de corpo e também de espirito, teve o artista brasileiro (c © intelectual contestador de maneira geral) de se distanciar dele. Por isso, a postura politica na literatura pés-64 ¢ a do total descompromisso para com todo e qualquer esforgo de- senvolvimentista para o pais, para com todo programa de in- tegracio ou de planificagio de ordem nacional. E certamente por essa raza tura pos-64 no carrega mais 0 tura politica que Ihe é anterior. Por essa razdo também é que © texto literdrio deixa de se expressar pelos tons grandilogiientes € pelos exercicios de alta retérica. prefere se insinuar como , com Voz a a ser a eee . a © que antes era o grande segredo do bruxo Machado de Assis: num pais de tra- digdo bacharelesca jesuitica, sabe-se finalmente 0 que otimis- mo e retérica recobrem. Ja se sabe qual a retdrica do otimismo € qual é 0 otimismo da retorica. Antes tarde do que nunca. Perdendo o otimismo social edificante ¢ construtivo, a li- teratura pés-64 nio pode também ser aproximada, por movi- mentos de semelhanga, da sua precedente imediata — a produ- ¢20 dos chamados anos democriticos, que vio de 1945 a 1964. Seja na constragio de Brasilia a partir do nada, sonho de todo Poder ¢ alegria 2 arquiteto ¢ metifora ideal para o artista de vanguarda, seja no transplante macigo de uma indistria automobilistica estrangeira para o pafs, seja nas palavras de um tedrico da poesia concreta que pedia aos pares para construirem “poemas 3 altura dos objetos racionalmente planejados e produzidos” — em tudo isso perpassava um otimismo construtor de tipo internacionalista que dizia que o bem € o bom estavam na capitalizasiio. Na ca- pitalizag3o das forcas humanas e na capitalizacio dos recursos econémicos estrangeiros e nacionais, ai também estava a “‘capi- talizagio” de um saber brasileiro que trabalharia em favor de um Estado nacional forte e pujante, atrevido e esperangoso, que se langaria a uma inédita explosio internacional. O velho Brasil estava entio sendo rejuvenescido pelo sora da industrializagio ¢ do capital estrangeiro. A descoberta do subdesenvolvimento pela geracio de 30, que retirou o pais do paraiso ufanista, era a garantia histérica para uma politica de pais~em-desenvolvimento a partir dos anos 50. O alicercamento de um pensamento de esquerda nos anos 30 foi a garantia para a criag3o do ISEB (Instituto Superior de Estudos Brasileiros). A Sudene foi 0 romance do Nordeste no plano das realizagdes admissiveis pela oligarquia rural progressista. E assim por diante. Nos dezenove anos que precedem 64 a ética politica bras leira foi a do fazer, mas a do fazer cegamente, j4 que os ided- logos nacionais do nacional acreditavam que principios éticos advindos da reflexio sobre © agir s6 poderiam vir depois do jé- feito. Apenas dois exemplos meio soltos para aclarar a ética do construtivismo otimista brasileiro que estamos tentando apreen- der. E sintomitica a auséncia da figura do operdrio nos textos da época — vocé s6 poderi filar dele depois de ele existir, ora ele ainda nio existe por aqui e por isso que ele “inexiste” no nosso universo de discussio. Talvez seja essa a razio pela qual poucas conquistas fez o sindicalismo durante aqueles dezenove anos, e tenha ele conhecido em contrapartida — grande vita~ lidade a partir de meados da década de 70. E ainda sintomitica a auséncia de qualquer reflexio sobre 0 piiblico nos textos so- bre a literatura escritos na época, Os produtores e tedricos da literatura s6 deverio se preocupar com o pitblico depois que o NAS MALHAS DA LETRA pais se alfabetizar integralmente; até Ji, faga-se a nossa litera tura no vacuo do mercado cultural. Assim como nio se discu- te 0 objeto de uma revolugio social, assim também nio se dis- cute a eficacia do texto artistico. Ou, quando se a discute nos anos que precedem imediatamente 64 —, & para considerar 0 piblico como uma massa amorfa, passivel de ficil manipu- lagdo Em ambos 0s casos citados como exemplo, elide-se a ques- tio da dominagao, do poder no plano interno, agigantando-se cm contrapartida uma ideologia que, para esconder a prépria cegueira, beira a xenofobia e se expressa — como vimos — pelo “Yankee, go home”. As lutas contra o imperialismo ame- ricano, ainda que justas, camuflavam as insondaveis questées sociais internas ¢, conseqiientemente, nio deixavam que se vis- se a problemitica do poder nacional. Pairava este como aura — dourada mas transparente a circundar as poucas cabegas pri- vilegiadas, dando origem a rodizios previsiveis na chefia dos interesses (econdmicos, politicos, sociais, artisticos etc.) na- cionais. Apesar de os anos que precedem 64 se proporem como democriticos, é preciso caracteriza-los melhor, talvez e simples- mente como menos centralizadores. O carisma do chefe foi a forma como os meios de comunicagio de massa transmitiam e impunham a voz e a imagem do mestre supremo e dos mestres estaduais e municipais, sem que se tocasse na aura deles, pois das verbas deles se alimentavam. Era com o carisma que pro- gramavam a curiosidade ptiblica e 0 jogo eleitoreiro nos varios espacos do poder. Eis ai os indicios que permitem compreen- der © surgimento de uma tevé nos moldes realizados por Assis Chateaubriand, uma rede ao mesmo tempo descentralizada ¢ todo-poderosa. (A Rede Globo inverte astuciosamente 0 pro- grama de Chateaubriand adaptando-se a 64: para suplantar 0 império da rival se centraliza desativando as varias estacdes com sede nas capitais dos estados; em outras palavras, passa a “comprar tempo” das estagdes regionais, impedindo 0 trabalho de produgio que antes ali existia.) Eis ai um possivel retrato da enorme importincia de revistas de ampla circulacio nacional Poder e alegria 2B cuja base ¢ fundamento era a fotografia (do homem e dos seus feitos), como O Cruzeiro e Manchete. © carisma é, pois, a for- ma pela qual o politico (e mesmo o artista enquanto intelectual) falava e continuava a falar como “consciéncia nacional”, sem que na sua voz transparecesse 0 mandonismo centralizador ou a ansia secreta de poder. O mandonismo nio era falado is cla ras porque os chefes o contrabalancavam com a atitude des- centralizadora, que se exprimia em Ultima instincia por uma retérica otimista no melhor estilo populista. A transferéncia definitiva da capital da Repdblica para Brasilia ¢ a inflexibili- dade dos programas de integra¢io nacional propostos pelo golpe de 64 dio um fim trigico a esse benéfico esfarelamento politico-ideolégico do nacional. O fazer de Juscelino é substi- tuido pelo fazer de Andreazza. ‘A geracio que dominou os anos que precederam 64 foi a dos administradores do lugar politico possivel em favor do nome préprio. © nome proprio no lugar apropriado. A perda do lugar na administragio das coisas piblicas e nacionais nio foi certamente tio desastrosa quanto se pensa e teoriza, quanto nos querem fazer crer 0s ex-isebianos. Pelo contrério: a perda do lugar apropriado proporcionou que todos, pela primeira vez ¢ indiscriminadamente, enxergassem a aura que cercava ¢ cerca © poder. Puderam enxergar a cara da aura. A cara do ca~ risma, A cara da retérica populista. O espelho nio-narcisista nio sendo o forte dos intelectuais brasileiros (que me perdoe Mario de Andrade), a aura do poder reacionirio sé chegou a ser vislumbrada quando foi adornar a cabega do outro, ou seja, do usurpador. E muitos dos antigos, j4 fora do poder, conti- nuam procurando cegamente o lugar apropriado perdido, o nome préprio perdido, como se lugar ¢ nome pudessem ser os mesmos nos anos 80. Restou-lhes o cultivo em estufa do nome proprio em lugar inapropriado Se falta 4 literatura pés-64, como dissemos acima, 0 otimis- mo social que edifica, nio se pense que o melhor da produgio literaria dos tltimos anos tenha caido, rastejado, vivido e se alimentado de sombrio pessimismo, interiorizando uma pura negatividade diante dos desmandos politicos da ditadura. Assim 24 NAS MALHAS DA LETRA como a questio do poder deslocou o tema da exploragio (sem abandoné-lo, é evidente, como horizonte) para a reflexdo sobre guem € © que esté por detras dela, impossibilitando ow dificul- tando a almejada igualdade social, assim também se retirou da cena a oposicio maniqueista entre otimismo ¢ pessimismo, tio do nosso agrado e do agrado da nossa imprensa desde a publi- cagio do Retrato do Brasil por Paulo Prado, em 1927. Abando- na-se a oposicio maniqueista, nio para que se diga que somos todos otimistas & pessimistas, dependendo da ocasiio — caso em que nio haveria deslocamento semintico, apenas o surgi- mento de certa tolerdncia ciimplice do agrado dos oportunistas de primeira e ultima horas. Catando palavras no cotidiano (ou: catando feijéo, como diria Joio Cabral de Melo Neto), digamos que na cena pés-64 nem o sorriso nem a fossa, nem o sambinha bossa-nova nem o samba-cangio de Dolores Duran. Na cena, a boca de Caetano Veloso, na Tropicdlia: Alegria! Alegria! A sensibilidade para 0 que existe de impreciso nas oposigdes maniqueistas j4 esta em Mario de Andrade desde a década de 20 e ficou em siléncio até os anos 60. Enquanto instrumental descritivo para se chegar ao saber, as oposigdes maniqueistas tém de ser trabalhadas por um exercicio na linguagem que o proprio Mario chama de “desassociagao de palavras”. Aconse- Iha ele, por exemplo, a desassociagio da palavra felicidade da sua correspondente prazer, abrindo a brecha para que se des- construa o sentido classico do conceito e se chegue a uma as- sociagio mais exata para explicar 0 que na realidade experimen- tava. Acabou por escrever em prosa e verso e intimeras vezes, como a atestar a sua legitimidade e perenidade: “A propria dor € uma felicidade.” A felicidade, tal como articulada por Mario em associagio a inesperada dor, parece-me préxima da ligdo dionisiaca e nietzschiana do que se deve entender pelo grito de alegria na cultura brasileira pés-64, grito dado no mo- Mento mesmo em que o corpo do artista era dilacerado pela Tepressio e a censura. No caso de Mario de Andrade, a desconstrugio do con- ceito clissico de felicidade tinha, pelo menos, fangio dupla Primeiro: distanciar a sua atuagio intelectual do bom-mocismo Poder ¢ alegria 25 de Graga Aranha, que ptega‘a uma alegria superficial, prenain— cio do otimismo-vencedor tio ao gosto dos futuros fascismos. Segundo: precaver os joven’ companheiros contra os estragos que 0 anatolismo havia feito com os mogos brasileiros no ini- cio do século, Ao jovem Cafos Drummond, vitima provinciana de mestre Anatole France, iconselha Mario: Anatole “escan- galhou os pobres mogos fazendo deles uns gastos, uns frouxos, sem atitudes, sem coragem. duvidando se vale a pena qual- quer coisa, duvidando da felicidade, duvidando do amor [...}. Isso é que esse filho-di-pua fez”. No caso de 64, a desconstrucio do conceito de alegria vi- sou, como vimos, a retirar 1 produgio artistica da pura nega~ tividade, como ainda a liberi-la do espirito de ressentimento. A resposta mais evidene di esquerda tradicional ao autorita~ rismo repressor ¢ 4 perda do Iugar na administracio publica teria sido o ressentimento. Este teria conduzido o intelectual a se afirmar de novo por um no sistematico, contraditoriamente. A alegria foi o que pemnitiu que se alicergasse a possibilidade de o artista afirmar — sempre em oposigao is forgas do terror, do dilaceramento e da dor — pelo sim, ainda que, para isso, precisasse chegar ao “déréglement de tous les sens”, ou abrir “as portas da percepgio”. Alijado do poder, 0 artista compreen- dia o papel corruptor de um mando privado de reflexio ética. Condenado 4 inexisténcia politica, o artista nio perdia a bossa € a raca. Destituido de um lugar na administrac3o publica, o intelectual constituia um lugar envolvente de onde podia de- molir, sem comprometet-se, 2 construgio precaria (dada como invencivel) do golpe de 64. A alegria desabrochou tanto no deboche quanto na garga- Ihada, tanto na parédia e no circo quanto no corpo humano que buscava a plenitude de prazer e gozo na prépria dor. A alegre afirmacio do individuo numa sociedade, no entan- to, autoritéria ¢ repressora talvez tenha sido a idéia principal na boa literatura pés-64. Aliada 4 anilise ¢ 3 critica radical do poder, essa idéia solidificou a necessidade de uma sociedade democritica na América Latina e 0 descompromisso para com as forcas militares no exercicio do governo; retirou ainda o % NAS MALHAS DA LETRA pensamento © a agio de oposicio dos meandros tortuosos seja Go ressentimento, seja do totalitarismo Otimistas ¢ tristes ficaram as figuras do poder, contradito- riamente. Sacrificados e alegres ficaram os opositores do regi- me, afirmativamente, A ditadura militar foi-se esfarclando nese jogo de forcas, a0 mesmo tempo que a sociedade brasileira se preparava como nunca para aceitar um governo legitimamen- te democritico. Que nio seja decepcionada! [1988] Poder © alegria Prosa literaria atual no Brasil © que eu peso & critica vem a ser — intengio benévola, mas expresso franca e justa. Aplausos, quando os nao fundamenta 0 mérito, afagam certamente 0 espirito, ¢ dao algum verniz de celebridade; mas quem tem vontade de aprender e quer fazer alguma cousa, prefere a licao que melhora ao ruido que lisonjeia. [...] A ertica decidird se a obra conesponde ao intuito, ¢ sobretudo se 0 operirio tem jeito para ela Machado de Assis, “Adverténcia da primeira edigio”, Ressureigao (1872) Tudo indica que, no estagio atual do tardio processo de modernizagio por que passa a sociedade brasileira, © romancista jovem poderé abdicar do trabalho literario como bico, passatem- po noturno ou atividade de fins de semana, para se consagrar 4 sua profissio em regime de full time, como um bom escritor europe, americano ou, mais recentemente, hispano-america~ no. A editora, por sua vez, assume a forma de empresa capita lista, pois j& diz abertamente que visa ao lucro como qualquer outra inddstria do pais; e mais: jd reconhece que ndo apenas os operarios do parque grifico ou os funciondrios burocriticos so protegidos pelas leis trabalhistas, mas também aqueles a quem © editor chamava carinhosamente de autores “da casa”. A mo- dernizacio, no nosso campo, esti fazendo com que o editor perca a fala ¢ a mascara do mecenas no escritério da sua empre- sa, € © autor, a aura de diletante que flutuava sobre a sua cabega. © contrato de edi¢ao (condigées, exigéncias, direitos etc.) substitui a conversa a0 pé do ouvido regada a cafezinho, orde- nando as relages entre as duas partes dentro dos principios juridicos em vigor no pais, (ERaRSfORNAdS [eal eRCadona enero. da sociedade de consumo, o livro passa a ter um temivel (porque 28 NAS MALHAS DA LETRA a empresa, atesta andnima, economi- cr sortaanent sobre 0 GIIERRTOBAD i mead Como em qualquer teste Ibope ou indice de vendage' ‘Como as relagoes entre editor ¢ autor j4 nao podem ser tao amigiveis como antigamente, visto que um dos elementos deixou de fazer concessdes e agora luta por equilibrio contra |, impde-se a presenca de Le rceiro incomum para aliviar ve i UMMM NG go da sions c Le orocern ele leiloa 2 futura mercadoria, entregando-a a quem der mais, e retira da relagio editor/autor a magica dos encantamentos ¢ seducdes pessoais. Este terceiro elemento sera tanto mais con- vincente no seu papel quanto mais abrir as portas da industria e do mercado estrangeiro ao livro nosso. E pelo alargamento do mercado interno e externo que, economicamente (ponto pa- cifico), © escritor brasileiro poderé chegar ao regime de tempo vendem aqui e Nao hé divida de que a substituigao do editor paternalista, ipo tapinha nas costas € periddicos e insuficientes vales no cai xa, pela relago contratual entre as partes envolvidas na fabrica~ ¢40 ¢ comercializagao do livro é um paso substantivo no pro- cesso de dar responsabilidade econdmica, social e politica a esse ser penumbroso que atende pelo nome de romancista brasi leiro. Passo que também ser4 decisivo na configuragao artistica do produto que ele passara a fabricar, o romance. Se 0 romancis~ ta brasileiro nao pode escapar dessa emergente realidade econd- mica e das ingeréncias da indéstria editorial ¢ interferéncias do mercado sobre a sua atividade profissional, isso nao significa que deve pactuar com elas ou abaixar a cabeca como um servo, passando a ser mero figurante passivo em toda a comédia dos variados enganos ¢ desenganos do Brasil moderno. Retomemos a mesma histéria, abandonando agora 0 ponto de vista merca- dolégico que a informava e acatando a perspectiva critica. © romancista brasileiro de hoje precisa profissionalizar-se antes de se tornar um profissional das letras. O paradoxo dessa Prosa literdria atual no Brasil 29 formula é apenas aparente, como vamos tentar provar, pois traduz na sua esséncia as ambigiiidades numa fase da nossa vida econdmica (literétia, no sentido estreito); nesta, a tentagio da economia de mercado € mais forte do que o santo produtor de literatura. Que o romancista se precavenha com lucidez, antes que seja tarde demais. Trés problemas surgem quando ele quer’ profissionalizar-~ seysemysersprofissionaly Ha o perigo de of romancista perder a suia identidade € papel social transmitidos pela tradigio ociden- tal, recebendo como mascara modernizante uma contrafagio caricatural dos frenéticos produtores ag \MasMediagghs a ameaca de que a mercadoria que 0 romancista produz, no guardando mais o perfeccionismo e a gratuidade comercial da produgio diletante ¢ artesanal, @@jalapresata € descosida, insossa, aten- dendo que esta exclusivamente @sileisidelmercadominsaciavel; ha, enfim, a possibilidade de o candidato habilitar-se & carteira profissional de escritor sem conhecer 0 oficio, virando, para usar uma velha expressio de André Gide, lim “moedeiro filso”) Antes mesmo de a critica especializada entrar em campo para arbitrar o jogo da literatura, cabe ao proprio romancista fazer silenciosamente a sua auto-anilise ¢ a anilise da sua obra. © acesso a carreira de escritor ndo requer vestibular, curso uni- versitario ou julgamento de professor e, por isso mesmo, exi~ ge um diuturno exercicio de autocritica que visa a impedir 0 romancista de ser 0 falso ou passar 0 falso como verdadeiro. A critica — quando nio é feita com a pena da inveja, 0 acido da vinganga pessoal ou a maledicéncia jornalistica —, a critica apenas diz 0 que 0 criador ja pressente, Iticido e atento. A critica a critica, tio em moda nos anos 80 na boca de al~ guns cantores de misica popular, e esparramada injustamente para o campo das artes, € 0 sinal preciso da crise cultural por que atravessa 0 pais. Ao rechagar como iniitil e intrometida a reflexdo séria sobre a obra, a avaliagio repousa ou no autori~ tarismo autopromocional do artista ou no sucesso de piblico. A critica 4 critica s6 é justa quando esta deixa de ter — como nos prevenia Machado de Assis ha mais de cem anos — uma “intengio benévola”; a critica 4 critica sé é justa quando esta 30 NAS MALHAS DA LETRA é escrita, como adiantamos acima, pela inveja, vinganga ou maledicéncia. E por esses caminhos tortuosos (embora com- preensiveis) da perversidade humana que a critica erra, mesmo quando em mios competentes, e contra isso que 0 artista de- ve lutar, € nio contra a critica em si. Com aquele aparente paradoxo inicial estamos querendo dizer: antes que o romancista, por ingenuidade ou intemperanga ética, seja submergido pela légica das leis do mercado, ou seja enfeiticado pela luz dos refletores que o distingue no palco ar- tistico do Brasil de hoje, que tente andar a-cavaleiro da situa- gio, transformando-se no mais fino e exigente critico da atual sociedade de consumo. Nesse instante, em lugar de 0 roman- cista imitar os idolos pop internacionais ou as vedetes nacionais da Vénus Platinada, em lugar de macaquear sera 0 descaroga- dor que, pela probidade ética e profissional (e para isso nio é necessirio vestibular ou escolaridade), fara — pela eficdcia contra-ideolégica da sua prosa dramitica — a constante triagem de valores no interior da sociedade que esti se convencionando chamar de pés-moderna. Existem equivocos — e sio muitos — dentro da justa eu- foria que toma conta dos produtores de literatura nos dltimos anos, Deixemos de lado os excessos laudatérios da imprensa ow as pichagdes de muro que cercam a publicidade (a palavra j4 se impde, até mesmo quando consideramos certas matérias “eriticas” de Veja ¢ IstoE) de nomes e obras. Se os primeiros ofendem o bom senso dos leitores, espantados com as meias- verdades propagadas pelo jornal, j4 as segundas atestam em favor do vandalismo publico inerente 4 maioria dos métodos publicitérios. Mas bom senso e mau gosto sio perdodveis em momentos de euforia juvenil dentro de um quadro social catas~ tr6fico, como é © Brasil de hoje. Concentremo-nos em outro Ponto, mais delicado, porque atinge de perto nio sé a comer- cializagio do livro como ainda a avaliagio estética que dele deve ser feita. Refiro-me ao slogan pregado por um emergente escritor dos anos 70, cujo produto inclusive nao precisava se valer do slogan: livro é mercadoria como qualquer outra, se vende como Prosa literdria atual no Brasil 31 sabonete. O equivoco reside no fato de que a formula prega a inexisténcia de diferencas qualitativas entre produtos diferentes a serem consumidos e, mais grave ainda, anula também o es- forgo em distinguir a qualidade entre produtos aparentemente idénticos na vitrina da livraria, Onde fica 0 discernimento do consumidor/leitor em tudo isso? No vale-tudo mercadolégico a formula visa a dar enorme peso i auséncia de julgamento por parte de quem compra. Compra porque foi anunciado, e se foi anunciado & porque € bom. Isso nio é verdade, e, se 0 for, estamos perdidos. Lembro-me de um velho filme de Frank Tashlin em que uma velhinha diante da televisio ia consumin- do, indiscriminadamente, os produtos anunciados. Equivoco maior ainda esté por detris do slogan acima men- cionado. E 0 que acontece com todo e qualquer elemento ori- ginal (produto, tema, idéia etc.) quando come¢a a ser movi- mentado e direcionado unicamente pelas leis do mercado: 0 da banalizacio. Nesse sentido, a banalizagio do objeto livro, que se esconde por detris da visio mercadol6gica radical, pouco se diferencia de fendmeno semelhante como 0 da banalizagio do corpo encontrada nas pornochanchadas. Como tema instigante dos ailtimos anos, 0 corpo é 0 lugar da descoberta do ser, re- tomada da forga dionisiaca em oposi¢io 4 forca apolinea, ¢ 0 erotismo € a energia que impele 0 corpo a um comportamento nio-racional ¢ nio-reprimido; 0 corpo é o lugar da liberdade de onde sai 0 grito do individuo contra as sociedades repressi vas. Banalizado 0 corpo nas pornochanchadas, é ele apenas 0 lugar da confluéncia carnal, deslocando até mesmo a diversi- dade da experiéncia sexual ao tnico dispositive fisico do gozo. Essa rotina da confluéncia carnal nada tem a ver com a paixio encontrada no potencial (instigante de prazer e conhecimen- to) da_“forca humana”, para_usar_a_expressio de Rubem Fon- seca, (hte alrotina massacrante dal musedilaga6l(halterofilismo ou academia de gindsticaJ@WOCOMPONINe do cnouleygueldans GARASIAAASYEM| HEN Na loja de discos, cntze-umaseno_ outro ha a diferenca entre © sabonete anunciado pels televisio) eo livro comprado com gosto e discernimento, a diferenga entre a banalizacio do corpo e 0 erotismo como forca de saber. En- 32 NAS MALHAS DA LETRA 973 602 ¥4 tre uma ¢ 0 Outro, Es "aE Nao estamos querendo com essas reflexdes substituir o direcionamento da literatura a ser dado pelo romancista, como conseqiiéncia da crenga indiscriminada nos valores mercado- légicos do livro. Nao me passa pela cabega ser arauto ou pro- feta e menos ainda messias. Todas essas reflexdes visam a dar de volta ao escritor a indispensdvel auto-avalia¢3o constante do seu trabalho, sem os dengues da euforia e do orgulho ad- vindos das benesses da moderniza¢4o; visam a entregar-lhe de volta a responsabilidade cultural, ética e politica na dramatizagio dos destinos da sociedade. Aclaro definitivamente: romance nao é 0 que a reflexic critica (esta, por exemplo) sobre 0 romance diz; romance é que o romancista faz. ‘Agora, convenhamos, uma safra literéria pode ser melhor ou pior; ¢ tudo faz crer que, banalizado 0 romance como sa bonete numa sociedade de consumo periférica, contrafeito o romancista a vestir a roupagem de idolo pop, perdido o oficio de compor por preguica e carreirismo, tudo faz crer que a safra nao sera das melhores. Mas a safra atual é boa, nao tenhamos davidas. Levantar equivocos ¢ jogi-los na arena da discussio pode ainda ser um bom meio de buscar “a ligio que melhora a0 ruido que lisonjeia”, como nos lembra Machado, precaven- do-se 0 romancista contra 0 passageiro “verniz da celebridade”. Torna-se dificil classificar 0 que seja ou nao romance hoje. Ha uma explosio das regras tradicionais do género, caracteristica alias dos momentos de transigio literiria, quando os padres comuns que determinam a estética do género em determinado Periodo histérico passam a ser insuficientes (ou repressivos € até mesmo inconseqiientes), nio possibilitando a expressio de Novos anseios e de situagdes dramiticas originais. Parece que © romance sé pode chegar a uma nova maestria quando perde Prosa literdria atwal no Brasil es ~ Biblioteca Universitaria YEFSC passageiramente o leme e o rigor. Quem é que ousaria chamar de romance, no final da década de 20, a Memérias sentimentais de Jodo Miramar © a Macunaima? Sem eles, teria sido possivel o Grande sertao: veredas? James Joyce teve a sorte de encontrar, como resenhador do seu romance, T. S. Eliot, mas uma ro- mancista do nivel de Virginia Woolf torcia o nariz diante do desconcertante Ulisses. Se hoje ainda ha alguma voz discor- dante quanto 3 inclusio desses livros no género romance, ela vem de meio intelectual altamente conservador. E 0 conserva- dorismo é isto: (@BEgo|inseHsato |a0s | Walores|dolpassadoyuma Sociedadelem transformagio — caso nio fosse isso nao seria conservadorismo e mereceria 0 aprego de todos. Realmente, do ponto de vista do género, nio hi muito em comum entre a prosa de Sempreviva, de Anténio Callado, e a de Zero, de Ignacio de Loyola Brandio; entre Os sinos de ago- nia, de Autran Dourado, e Ordem do dia, de Marcio Souza; en- tre Tebas do meu corajéo, de Nélida Pifion, e Com licenca, eu vou a luta, de Eliane Maciel; entre A festa, de Ivan Angelo, e Mai- 1a, de Darcy Ribeiro; entre Essa terra, de Anténio Torres, e As parceiras, de Lya Luft; entre Liicio Flavio, 0 passageiro da agonia, de José Louzeiro, e Confissdes de Ralfo, de Sérgio Sant’Anna; e assim infinitamente. E se a essa enumeragio (necessariamente incompleta) acrescentassemos os variados titulos da prosa com nitida configuragio autobiogrifica, de Fernando Gabeira a Mar- celo Paiva, chegariamos 4 conclusio de que a anarguia formal dado importante no mapeamento da questio. Na década de 30, apenas para estabelecer 0 contraste, a situagdo era diferente; havia mais consenso entre os prosadores sobre quais deviam ser as regras de composi¢io do romance. A anarquia formal nio deve ser tomada, a prior, como um dado negativo na avaliagio da literatura em prosa de agora. Pe- lo contririo. Demonstra a vivacidade do género, capaz de renas- cer das préprias cinzas; fala da maleabilidade da forma, pronta para se moldar idealmente a situagdes dramiticas novas e dis- pares; e exprime a criatividade do romancista, que busca sem- pre a dicgio e o caminho pessoais. Isso porque o romance — ao contrario dos outros géneros maiores — nasce no momento 34 NAS MALHAS DA LETRA em que se comeca a duvidar do critério de imitayao como mo- tor para o novo. De todos os géneros, 0 romance, como dizem os anglo-saxdes, € o lawless por exceléncia, Género bandido, moderno porque liberto das prescrigdes das artes poéticas clis- sicas, 0 romance surge como conseqiiéncia de uma busca de autoconhecimento da subjetividade racional. Ian Watt, no seu magnifico The Rise of the Novel, estuda as relagdes estreitas entre 9 romance inglés (novel) do século XVII e o pensamento carte- siano (“Penso, logo existo”) ’ Se a anarquia formal parece dominar 0 cenfrio da prosa no Brasil dos anos 70 e 80, tudo indica no entanto que os nossos romancistas, levados por um desejo de reencontrar as raizes do género para readapti-lo 4 atualidade brasileira, guardam em comum a preocupagio com o autoconhecimento revelado pela experiéncia da escrita romanesca. Se existe um ponto de acor- do entre a maioria dos nossos prosadores de hoje, este é a ten- déncia a0 memorialismo (histéria de um cla) ou a autobiogra~ fia, tendo ambos como fim a conscientizagio politica do leitor. E claro que essa tendéncia nao é nova dentro das letras brasi- leiras. Queremos dizer € que ela nunca foi tio explicita na dicgio da prosa, deixando ainda mais abaladas as fronteiras estabele- cidas pela critica tradicional entre meméria afetiva ¢ fingimento, entre as rubricas memérias € romance. Sabemos, por exemplo, que a preocupagio memorialistica € um componente forte definitive dentro de nossa melhor prosa modernista. Mas os modos como aquela preocupagio emergia na ficcio eram me- nos abertos do que os modos como afloram em Rachel Jar- dim, Paulo Francis ou Eliane Maciel, para citar apenas uns pou- cos. Se Lins do Rego niio tivesse escrito no final da vida Meus verdes anos, nio teriamos certeza de que a “ficcio” de Menino de engenho era tio autobiografica. O mesmo para Oswald de Andrade com o tardio Sob as ordens de mamae, subseqiiente a0 Joéo Miramar. Essa explicitagio do comportamento memorialista ou auto- biogrifico na prosa nio s6 coloca em xeque 0 critério tradicional da definigio de romance como fingimento como ainda apre- senta um problema grave para 0 critico ou estudioso que se Prosa literéria atual no Brasil o quer informado pelas novas tendéncias da reflexio teérica sobre literatura, tendéncias todas que insistem na observancia apenas do texto no processo da anilise literaria. Deslocada a espinha dorsal da prosa (de fico, ou talvez nao) do fingimento para a memiéria afetiva do escritor, ou até mesmo para a experiéncia pessoal, caimos numa espécie de neo-romantismo que é a té- nica da época. Pode-se pensar hoje, e com justa razio, que 0 critico falseia a intengao da obra a ser analisada se nao levar em conta também o seu carater de depoimento, se nao observar a garantia da experiéncia do corpo-vivo que esté por detrés da escrita, Nao nos cabe resolver esse impasse metodolégico e critico aqui; tentamo-lo em outro lugar, abandonando 0 rigor da cri- tica e do género romance e exorbitando o poder da imaginacio ficcional, numa tentativa de aclimatar 0 exercicio do fingimen- to 4 experiéncia pessoal.* Cabe, porém, insistir na apresentagio dos problemas, abri-los para outros e mais competentes estudio sos, para que nio se caia em definigdes apressadas e exchudentes do que seja “romance” hoje, ou que se incorra em equivocos criticos, que serao certamente prejudiciais para o melhor conhe- cimento futuro da época. Um contemporaneo deve trabalhar com categorias abrangentes € generosas. O tempo e€ 0s criticos posteriores terao a perspectiva e a disposicio para aperfei¢od- las e afiné-las sem 0 perigo de incorrerem em exclusdes incons- cientes, transmitidas por uma tradicdo repressiva. ‘Ao contrario de Christopher Lasch, que, ao analisar a déca~ da de 70 nos Estados Unidos, insistia no aspecto narcisista da produgio cultural de hoje (vide The Culture of Narcisism), nao acreditamos que a questio seja tio trangiiila entre nds. A ex- periéncia pessoal do escritor, relatada ou dramatizada, traz como pano de fundo para a leitura e discussio do livro proble- mas de ordem filos6fica, social e politica. Nao ha davida de que, no palco da vida ou da folha de papel, 0 corpo do autor continua e esté exposto narcisisticamente, mas as questdes que levanta nio se esgotam na mera autocontemplagio do umbigo, * V. 0 romance Em liberdade 36 NAS MALHAS DA LETRA como quer uma critica neoconservadora da produgao cultural no Brasil. Sobretudo nos melhores casos, A narrativa autobio- grifica é o elemento que catalisa uma série de questdes tedricas gerais que so podem ser colocadas corretamente por intermé- dio dela. A peca de teatro nao foi um meio eficaz que Sartre encontrou para explicar pontos te6ricos da sua filosofia? Quais seriam aquelas questdes? De inicio, certa desconfianga da compreensio da histéria pela globalizagio ¢ pela indiferen- ciagio, pelo recalque do individuo no tecido social ¢ politico, como se lé em Hegel ¢ nos grandes filésofos revolucionarios que se alimentam do seu pensamento. Em seguida, 0 descrédito por que passa 0 governo totalitério ¢ ditatorial, preferindo o intelectual de hoje apegar-se a uma solugio que busque inspi- rago nos processos revolucionarios de expressio democritica, sem no entanto reaproximar-se do liberalismo econémico clissi- co. Ainda, uma forca de vida que se apresenta pela afirmacio do desejo, pela liberdade e pelo prazer, desprezando o ser hu- mano o gosto pelo martirio e pela dor no processo da civiliza- do. Enfim, e menos apressadamente, a questio nacional. A questio nacional @ marcada pelos tempos bicudos por que passamos. Historié-la aqui seria longo, mas cabe assinalar quais foram as formas que revestiram a prosa de ficgio durante © periodo, para se chegar finalmente a questio tal como ela se apresenta neste inicio de década. Houve uma primeira e camuflada resposta da literatura as imposigdes de censura € repressio feitas pelo regime militar: a prosa de intriga fantistica e estilo onitico em que 0 intrincado Jogo de metéforas e simbolos transmitia uma critica radical das estruturas de poder no Brasil, tanto a estrutura ditatorial centrada em Brasilia como as microestruturas que reproduziam no cotidiano 0 autoritarismo do modelo central. Houve ainda © romance-reportagem (com nitida influéncia da faction de Truman Capote ¢ outros, mistura de fact e fiction), em que se denunciavam os arbitrios da violéncia militar e policial nos anos duros do AI-5, arbitrios estes que tinham sido escondidos da popula¢do em virtude da censura imposta as redacdes de Jornal e aos estiidios de televisio. Prosa literdria atual no Brasil ] Essas duas linhas foram as dominantes nos primeiros anos da chamada “abertura”. E, no entanto, com o retorno dos exilados politicos que se impde a narrativa de tipo autobiogré fico. Te¢amos algumas consideragdes histéricas para evitar equi- vocos na anilise e na apreciagio do novo material. A narrati- va de tipo autobiogrifico ja estava sendo, a partir da década de 60, a principal heranca que os velhos modemistas legavam as geracdes mais novas, e isso de Carlos Drummond de Andrade a Murilo Mendes, de Maria Helena Cardoso a Pedro Nava. Por outro lado, se a forma autobiogrifica ganha forca ¢ toma pé com o retorno dos exilados, logo porém extrapola os limites da simples experiéncia guerrilheira, como veremos. Percebem-se, no entanto, algumas diferengas basicas entre 08 textos tardios dos modernistas e os dos ex-exilados, No ca- so dos modernistas, a ambigio era a de recapturar uma expe- rigncia nfo s6 pessoal como também do cli senhorial em que se inseria 0 individuo; nos jovens politicos, o relato descuida- se das relagdes familiares do narrador/personagem, centrando todo o interesse no envolvimento politico do pequeno grupo marginal. Devido a essa diferenca de perspectiva, percebe-se © exagerado interesse pelos anos infantis por parte dos moder- nistas € 0 pouco caso com que tratam esse periodo da vida os ex-exilados. Caso haja interesse em classificar, pode-se dizer que 0 texto modernista € memorialista (apreensio do cla, da familia), enquanto 0 dos jovens politicos € legitimamente mais autobiogrifico (centrado no individuo) Essa primeira diferenca marca também uma outra de cardter politico-social: 0 texto dos modernistas, enveredando por uma linha que podemos qualificar de “proustiana”, tende a apre- sentar uma visio conservadora da sociedade patriarcal brasi- leira, relatada através da inércia do principal protagonista (cujo prot6tipo € 0 fanciondrio pitblico); j4 0 texto dos ex-exilados, admitindo como quase inexistente a decalagem entre 0 fato vivido ontem e a sua narragio hoje, conta experiéncias proximas © sofridas, em que esteve em jogo a liberagio do Brasil pela 38 NAS MALHAS DA LETRA juta armada, Mas, se o personagem principal adquire tons de heroismo no momento em que vive a a¢io (pasado), ja nio se pode dizer 0 mesmo dele enquanto narrador (presente), porque aqui deve explicar e justificar 0 fracasso da empresa e as insuficiéncias da ado, 0 arrebatamento juvenil ¢ idealista do projeto politico guerrilheiro. Acrescente-se que 0 fracasso do her6i politico no presente da narragio nao se recobre com as (esperadas) tintas sombrias e tristes do desastre. Pelo con- tririo. Prega ele o hedonismo, procurando extrair da dor do pasado uma ligo de futuro onde nio se perde a alegria das grandes investidas. Acredita agora que a revolucio, se ela vier, tera antes de passar pela libertacio sensual do proprio indivi- duo. Em contrapartida, o narrador modernista, entrado na velhice, pactua mais e mais com os antepassados patriarcais com a atitude estdica daqueles que, tendo jé uma experiéncia longa de vida, se resguardam das intempéries existenciais. Outro interesse que os relatos autobiogrificos escritos pe- los jovens politicos apresentam @ a sua possivel contribuicao para o melhor conhecimento da nossa histéria no perfodo reco- berto pelos Atos Institucionais. De modo geral, o historiador futuro teria como subsidio apenas a versio militar dos aconte- cimentos (fornecida pelos vrios IPMs e demais documentos dos servigos de informagio); aqueles relatos autobiograficos devem servir de ponto de referéncia para interpretagdes que apresentario menor conivéncia com a situagio repressiva. Ja os relatos memorialistas escritos pelos modemistas apresentam. maior interesse para a historia literdria e menor para o historia~ dor, visto que neles se dramatiza quase que exclusivamente a experiéncia no interior das grandes familias na Republica Velha. Para uma visio menos comprometida, na Reptiblica Ve- Iha, com os valores sécio-econémicos da oligarquia rural, faz~ Se necessaria a leitura das entrevistas com operdrios que Ecléa Bosi transformou em narrativas pessoais no seu livro Lembrangas de velhos (nartativas que nao estio isentas de interesse “literdrio” Para todos os que admitem que, em certos periodos, quando Prosa literdria atual no Brasil se veta o fingimento ficcional, ha um processo de dessacrali- zacio da figura e dos processos do “escritor”, caindo a responsa~ bilidade sobre a figura do “‘narrador”, que é aquele que sabe © que por isso tem o dom de narrar), Tanto nos relatos me- morialistas quanto nos dos ex-exilados, como também nos re- latos operarios, 0 veio autobiogrifico é explicitado na superfi- cie dos textos. Guardada a dbvia impropriedade da comparacio, pode-se mesmo argumentar que os textos dos ex-exilados e as lembrangas dos velhos operirios devem ser lidos pela mesma clave que nos di Ecléa: “A veracidade do narrador nio nos preocupou: com certeza seus erros ¢ lapsos sio menos graves em suas conseqiiéncias que as omissdes da histéria oficial. Nosso interesse est no que foi lembrado [grifo da autora], no que foi escolhido para perpetuar-se na histéria da sua vida.” Essa despreocupa¢io com a “veracidade” do relato, perdoa- da até mesmo pelo historiador interessado por uma histéria “dos vencidos”, 0 sera muito mais pelo critico literario, e é pela estreita viela do desprezo a veracidade que se comunicam a ficgio ¢ a autobiografia, o fingimento ¢ 0 relato pessoal, a estoria ea historia. Unindo os relatos dos ex-exilados ¢ as lembrangas dos ve- Ihos operdrios existe a mesma preocupacio pelos grupos que sfio marginalizados pela histéria oficial. Se nio me engano, é pela via da marginalizagio que se propaga ¢ frutifica a formu- la do relato autobiogrifico, ou memorialista (numa visio nao- conservadora), nos anos subseqiientes a0 retorno dos exilados. S6 que o fendmeno da marginalizacio é compreendido como uma espécie de exilio interno: trata-se de determinados grupos sociais que eram e so desprovidos de voz dentro da sociedade brasileira, cuja voz era e abafada. Nio é facil explicar como aflora a questio das minorias sociais no Brasil, mas sem diivida ela brota por um movimento anti-hegeliano de inflagio do ego. Pode-se comegar o raciocinio assinalando duas atitudes. A primeira € a descrenga nos pro- cessos revolucionarios em que 0 intelectual é 0 nico idealizador € porta-vor das aspirages populares (em lugar de deixar falar, possibilitar a fala do Outro; o intelectual, tio autoritério quanto 40 NAS MALHAS DA LETRA o poder central, fala em lugar de, de acordo com os seus pré- ios valores). A segunda € a descoberta de que 0 tecido social é feito de diferengas apaixonadas e que a negacio das diferen- cas (com vistas a um projeto nico para todos) é também o massacre da liberdade individual, o recalque das possibilidades mais auténticas do ser humano. Fiquemos por enquanto por aqui, esperando ter passado os dados indispensiveis para a mar- cha do raciocinio. A questo das minorias apresenta dupla configuragio: tem vigéncia na historia (do Ocidente e, em particular, do Brasil) ¢ é atual (reivindicagio de direitos e de liberdade por parte de grupos sociais, autenticados pelas reflexdes modernas no campo das ciéncias humanas). Ela é histérica no momento em que se ativam as forgas neutralizadoras ou recalcadas pela sociedade branca e patriarcal brasileira; ¢ atual, quando deixa vir 4 tona 05 temas ligados is microestruturas de repressio moderna, Em suma, a questo das minorias é 0 reverso da medalha do auto- ritarismo, De um lado, basicamente, a questio do indio e do escravo negro na civiliza¢io ocidental, bem como a da mulher na sociedade machista; do outro, a questio dos homossexuais, dos loucos e dos ecdlogos, e de todo e qualquer outro grupo que se sinta agredido ou reprimido nas suas aspiragdes de justiga econdmica, social ou politica. Tematizada ¢ dramatizada pela prosa (de ficgdo, ou talvez nio) brasileira atual, a questio das minorias aproveitou o canal convenientemente aberto pela prosa modernista ¢ a dos ex- exilados, ¢ se deixou irrigar pelas aguas revoltas da subjetivi- dade. Ela ainda apresenta uma diferenga formal e tematica que se deixa recobrir pela diferenca acima apresentada na sua dupla configuracio. A prosa que envolve a questio das minorias com vigéncia histérica se apresenta sob a forma de texto memorialista, aparen- tando-se portanto ao texto modernist, mas dele guardando distancia, pois a perspectiva histérica € outra. Como exemplo, Penso em Maira, de Darcy Ribeiro, que se abre inclusive pelo Prosa literdria atual no Brasil ul mapa genealogico do indio, ou ainda em As parceiras, de Lya Luft, onde confessa a narradora/personagem: “E isso que co- nhego da histéria das minhas raizes. Uma familia de mulhe- res.” Penso também nos romances de Nélida Pifion e de Lygia Fagundes Telles. Lamento apenas que nao haja exemplo con- vincente de romance negro no presente momento. A prosa que envolve a questio das minorias com vigéncia atual se apresenta sob a forma aparentada 4 das autobiografias €, portanto, é mais préxima dos relatos dos ex-exilados. Como exemplo, penso em Sempreviva, de Anténio Callado, prosa onde se combinam de mancira harmoniosa a preocupagio guerrilhei- ra com a luta pela preserva¢io do meio ambiente, penso no ro- mance de Joao Silvério Trevisan, Em nome do desejo, ou ainda nos relatos de Maura Lopes Cangado. No primeiro caso, trata-se de reescrever o passado da nacio sob outro farol, iluminando a penumbra das situagdes indivi- duais, ou histérico-sociais, que eram relegadas a segundo plano por um processo civilizatério excludente; no segundo caso, trata-se de dar voz a uma subjetividade ameagada pelas diversas formas do autoritarismo castrador. Deixando de ser a origem presungosa de todos os discursos do saber, o intelectual € a figura mais questionada pela prosa dos tiltimos anos. A questio das minorias passa tanto por uma necessaria descentralizagio do poder quanto por uma contun- dente descentralizago da fala do saber. O intelectual, tal qual se encontra nos melhores romances e memérias recentes, é aquele que, depois de saber o que sabe, deve saber o que o seu saber recalca. A escrita é muitas vezes a ocasifo para se articular uma lacuna no saber com o proprio saber, é a atengio dada 4 palavra do Outro. Diz Paulo Francis, lembrando-se certamente dos antigos anos “festivos”: “A cabeca se libertou das simplificagées ¢ paliativos. Examina e se auto-examina constantemente. E meu infemo e delicia, minha tnica justifi- cativa plausivel de alegar que evolui dos macacos. Aceito os tiscos e incertezas dessa liberdade, essencialmente modesta, pois me acho disposto a aprender do que ou de quem me persuadir” [grifos do autor] 42 NAS MALHAS DA LETRA

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