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O rimance A engenhosa tragédia de Dulcineia


e Trancoso entrega O que podemos chamar
de uma novela de cavalaria para tempos
pós-modernos (dentro da lógica nordesti-
na). W.J. SOLHA se abastece de aspectos
regionalistas, sob a figura fulcral de Ariano
Suassuna, e da ambivalência humorística
de Miguel de Cervantes para tecer uma
rede de transcriação de mitos- o poeta
como profeta-e retrabalho de gêneros dis-
cursivos medievais, com forte emulação aos
princípios humanistas, filosofantes, ao tro-
vadorismo e às narrativas orais.
O grande circo místico de SOLHA ex-
pande as relações entre literatura e jorna-
lismo, tascando elementos da contempora-
neidade (periódicos, relação com a notícia
em tempos de liquidificadoras digitais, sen-
sacionalismo, reportagem) com a atmos-
fera onírica de um Suassuna de A Pedra
do Reino, espécie de oráculo da obra de
SOLHA. Há, aqui, portanto, uma inteli-
gência narrativa em progressão, poesia que
se derrama na sonoridade, na beleza dos
gestos abruptos, um certo pacto de sonho
em prol da potência máxima da poesia:
Não acha ser mister da mulher o de estar
permanentemente formosa:
seria propaganda enganosa.
Sabe que,
quando quer,
salve-se quem puder!: tem poder- ...
abaixo e acima do abdómen - sobre
qualquer homem.

. A Engenhosa... se vale do encadeamento


Impressionante da musicalidade dos cordéis

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A ENGENHOSA TRAGÉDIA DE

• $

1 1
Romance popular, em verso, que se cantava ao som da
viola, ainda frequente no Brasil; pequeno canto épico.
W. J. SOLHA

A ENGENHOSA TRAGÉDIA DE

EDITORA PENALUX

Guaratinguetá, 2018
y
edito;~ ~~na lux

Rua Marechal Floriano, 39 -- Centro


Guaratinguetá, SP [ CEP: 12500-260

penalux@editorapenalux.com.br
www.editorapenalux.com.br

EDIÇÃO: França & Gorj


CAPA E EDITORAÇÃO ELETRÓNICA: Karina Tenório

REVISÃO: Daniel Zanella

Dados Internacionais de Catalogação na Publicação (CIP)

S685e SOLHA, Waldemar José. 1941 -


A engenhosa tragédia de Dulcineia e Trancoso/ W.J. Solha.
Guaratinguetá, SP: Penalux, 2018.
98 p.: 21 cm.

ISBN: 978-85-5833-369-5

1. Ficção 2. Narrativa em versos 3. Romance experimental I. Título.


CDD.: B869.8

Índice sistemático:
1. Literatura Brasileira

Todos os direitos reservados.


A reprodução de qualquer parte desta obra só é permitida
mediante autorização expressa do autor e da Editora Penalux.
Ao Ivo Barroso, Joedson Adriano e Expedito Ferraz Jr.
Porque me levaram a trabalhar mais um ano e meio
neste livro, além do que eu julgava necessário.
Apresentação
NARRATIVA FICCIONAL EM TRÊS DIMENSÕES

Após uma rápida leitura, a ideia que se tem do poema A Enge-


nhosa Tragédia de Dulcineia e Trancoso talvez não correspon-
da a uma realidade aparente, nem histórica nem ficcional. Wal-
demar José Solha desconstrói o corpo estrutural da narrativa
poética, às vezes subtraindo-lhe ritmo e sonoridade, como se
almejasse torná-la atrativa apenas para si e, mais precisamente,
para a percepção de um pequeno grupo de exegetas e iniciados.
Mas não é o que ocorre.
A leitura desses versos nos leva à compreensão imediata dos
significados do texto, tão logo aceitamos sua condição de bipo-
laridade extrema, que é a de revolver o passado distante, a partir
do Dom Quixote de Miguel de Cervantes, e o passado mais
próximo de A Pedra do Reino de Ariano Suassuna, trilhando
naturalmente as considerações contidas no surreal desapareci-
mento (e esperado retorno) de Dom Sebastião, rei de Portugal.
A história aqui não cabe mais em si mesma. E o poeta a reinven-
ta sob a ótica do feminino e das histórias de Trancoso.
W. J. Solha, expert observador do mundo e do quintal de
sua casa, seja por intermédio das múltiplas atuações artísticas
que incorpora, seja por meio das lentes inquisitivas do que ad-
voga, é um homem capaz de ver, sentir e, metonimicamente,
revelar, com perfeição de detalhes, os percalços da trajetória
humana, sempre com o peito aberto na camisa, ao sabor do
vento, na sua exaustiva reinvenção de um tempo que permite
mesclar presente e futuro com o passado redivivo e recorrente.
Eis o mistério da arte.
Por outro lado, a viagem empreendida aqui pelo autor de
Trigal com Corvos, Marco do Mundo e Esse é o Homem faz
seu percurso também no espaço físico da cultura ocidental,
com citações claras de trechos dos textos latinos e ibéricos re-
ferenciados e reverenciados.
A Engenhosa Tragédia de Dulcineia e Trancoso é mais que
uma metáfora a serviço de temas os mais variados. Trata-se
também de um poema de caráter pluridimensional, artistica-
mente construído sobre os pilares da experiência e da maturi-
dade. E digo mais: este novo livro, certamente, há de se incor-
porar com natural desenvoltura à vasta bibliografia de W. J.
Solha, hoje beirando duas dezenas de títulos, como um manual
de genuína inventividade da condição humana. Lavs Deo!

JOÃO CARLOS TAVEIRA


Brasília, novembro de 2017

8 A engenhosa tragédia de Dulcineia e Trancoso


,,
AI,
do alto da Pedra,
o susto de arribaçãs,
e,
de quebra,
os helicópteros Sabre,
da FAB,
que irrompem com seus soldados,
muitos do lado de fora,
armados,
e assustam a multidão,
que lembra,
pela extensão,
o êxodo bíblico
e o cíclico,
tantas vezes fotografado
por Sebastião Salgado.

Alta
e ancestral no meio do plaino,
a Pedra do Reino,
rocha dupla na vertical, no sertão pernambucano,
insufla no povo (mesmo quando se camufla em profano)
a estupenda lenda de que tem,
dentro, no centro, a catedral
na qual,
el-rey D. Sebastião, de Portugal, o Afoito,
sumido (ou abduzido) na batalha de Alcácer Quibir,
de 1578,

A engenhosa tragédia de Dulcineia e Trancoso 9


está por vir,
messiânico,
pra levar a fundo a retirada dos males do mundo,
cada vez mais
satânico.

E eis que lá está o autor da Compadecida


e do Romance dA Pedra do Reino
a cavalo,
a Globo a entrevistá-lo no seu céu,
que é o Circo de Sô Leo,
entre mágicos, palhaços, malabaristas e acrobatas;
saltimbancos e trapezistas - que idolatra!

Ao fundo,
um grupo de camponeses - que passa
com suas reses - confunde-se,
dócil,
com as figuras de barro do mestre Vitalino
e as de Manuel Eudócio.

A BandNews dá ao Brasil,
em panorâmica (que deixa de lado os
helicópteros - agora meras libélulas e coleópteros)
a leva - romântica - de romeiros,
que lembra a de cangaceiros.

A BBC mostra o que mais se vê:


flagelados em paus-de-arara lotados,
que cruzam a paisagem,
em fim de viagem.

1) A engenhosa tragédia de Dulcinea e Trancoso


A NBC faz, sobre a água, um "Abecê" da escassez
- em hotéis, motéis, bares - restaurantes cada
vez mais abundantes, centenas de lupanares.

Filma - com tudo que o assunto comporte - as


romarias que vêm até ali, sem transporte,
além de brigas, intrigas,
vários assaltos com morte.

Entre os peregrinos a pé,


aqui e ali um pangaré.

Flagra-se a magra artesã, cadeirante marcante


que,
moldando (e fumando o quinto cigarro),
miniaturiza,
no barro,
com esperta destreza,
a Pedra - aberta - com o que nela antevê de riqueza.

Filma-se o pé-de-pau cheio gente


(principalmente crianças),
que vê a humanidade que chega - toda ansiedade,
esperanças!

ANHK,
nesse momento,
mostra as louras - do Paraná - tão musculosas
quanto as motos (poderosas) em
que chegam a um bar, reduto de jornalistas - onde,
a que mais aparece em TV e revistas
dispara o insulto maluco
- Eunuco!,

A engenhosa tragédia de Dulcineia e Trancoso 11


e haja fotos, matérias, pilhérias,
dando conta de que Giuliano,
O Italiano do Corriere dello Sport,

transara mal,
num resort,
e escrevera (sobre ela e as outras) - numa espécie
de rebate - que não passavam de castrati!!!

ACBS,
doutro lado,
faz um travelling na caatinga,
até o nonsense circense
de um gargalhante Coringa.

E a Bloomberg, com verve,


segue a fumaça que passa no campo, com desenvoltura,
ganhando
altura.

Aí um helicóptero baixa, brincando, infernizando


Birko - o domador do Circo- e o caixa,
turbinas estabanando a fera e a grana da
bilheteria - que se libera - e há histeria, caos.
- Foi maus! - diz o piloto, escapulindo,
- Wow! - diz um turista,
rindo,
flagrando,
numa série de cliques - sensacional,
a linha interrompida, ascensional, das cédulas em espiral.

Câmeras e celulares registram tudo,


aos milhares,
inclusive a família, de Brasília, que empurra na ladeira o

12 A engenhosa tragédia de Dulcineia e Trancoso


carrinho de macaxeira,
até a Kombi, de um orfanato,
que exibe,
na prateleira,
peças de artesanato,
que vão da ampulheta - Tempo é dinheiro -
que empilha moedas (e é um mealheiro),
à sequência,
sem dó,
da Involução,
em que a moça desfila, com emoção,
de - mãe, - avó, - bisavó,
tudo de argila.
Nas prateleiras
da cristaleira,
centenas de padres cíceros,
centenas de freis damiões,
ibiapinas e donizettis,
lotes de freis galvões.

O Sebo,
de João Pessoa,
põe banca - vasta e boa - das obras de mais tutano
do Ariano,
do Auto da Compadecida e Farsa da Boa
Preguiça ao Torturas de um Coração;
passando pelO Santo e a Porca, Uma Mulher
Vestida de Sol, Cantam as Harpas de
Sião,
e nem se precisa de muito treino pra ver
que A Pedra do Reino é o que ele mais traz
pra vender.

A engenhosa tragédia de Dulcineia e Trancoso 13


Pra completar - ou complementar - eis a
chegada de muita panela, gamela,
consórcio de cores e odores do restaurante Mangai,
que va1
do baião-de-dois ao sarapatel,
do mungunzá e arroz de leite à carne de sol no pastel.

No telão que ali se instala, o São Francisco


- que a hidrelétrica encurrala - tem,
suspenso,
o tenso impulso,
até que,
a custo,
vai para o vão,
onde,
então,
desfalece,
branco de susto.

Corte pro mergulhão-do-pescoço-vermelho,


que,
dentre os de que no céu há um povoo,
para no voo,
em grande altitude,
flecha pro açude,
e ele - de dentro do espelho - flecha pra cima,
um entra noutro, no estrago do
lago - e é fantástica, a rima.

O Ariano,
que a cavalo é um ás,
salta pra porta
dum school bus,

14 A engenhosa tragédia de Dulcineia e Trancoso


e,
cumpliciado,
aguarda,
de braços cruzados,
a primeira questão dos folgados.
E lá vem,
como um trem:
- Por que o título tinhoso de Engenhosa ...
Tragédia... de Dulcineia e Trancoso?
Ele,
de imediato,
ajunta:
- Por coisas como essa sua pergunta.

E,
ante o riso,
o improviso:
- Esta história,
que aqui se deslancha,
é homenagem,
quase que... vassalagem...
ao...
tinhoso e
ingenioso
... Quixote,
lá de La Mancha,
criação de Cervantes,
gênio, sim, sem rival (que ninguém leve a mal),
nem adispois,
nem antes.

Pausa
por justa causa.

A engenhosa tragédia de Dulcineia e Trancoso 15


Essa menina - manhosa - assunta
e pergunta:
- E o que... é engenhosa?

Ele hesita um pouco, olha pro teto,


e,
rindo,
discreto,
feliz,
diz,
como é de seu jeito:
rouco:
- Seu pai a vê com luvas de box... e ao irmão... de
sapatilhas. E, neste tom: - Que bom! Eis que, de
repente, eu tenho dois filhos, ou duas filhas!. ..

Aí,
revolta:
fala-se alto,
em volta.

Um guia,
de típica mistura de ciência com pinga,
diz
com orgulho guerreiro,
que a savana estépica tem biorna exclusivo,
sem igual no estrangeiro:
o da caatinga.

Ariano,
V1vaz,
salta do amarelo school bus:

16 A engenhosa tragédia de Dulcineia e Trancoso


- A caatinga tá cheia
de xique-xique e preá;
de coroa-de-frade,
jurema,
de macambira e quipá.

Tem tejuaçu, marmeleiro,


camaleão, juazeiro,
arara azul,
caroá.

Tem miroró, umburuçu;


mandacaru, faveleira;
tem asa branca e carqueja,
tem tabu-peba, ingazeira.
Tem aroeira, algaroba,
tem cobra, tem maniçoba,
cutia e...
quixabeira.

Mas,
neste mundo,
que adoro,
nesta hora de glória,
eu anuncio a chegada
do grande herói desta estória!:
o valeroso Trancoso,
que entra,
com muito gozo,
na vossa vasta
memória!

A engenhosa tragédia de Dulcineia e Trancoso 17


MAS EIS QUE SURGE SÔ LEO,
DONO DO CIRCO.

Estala o chicote e tira


de Suassuna - que não se chateia - a plateia,
ou seu maior lote.

Faz,
dali,
a tribuna:

- Rrrrespeitável público, quase que bíblico!


Tenho o orgulho de apresentar.... Bozo
Bozoca Nariz de Pipoca,
o graaande palhaço,
carioca,
que para aqui se desloca,
pra interpretar - todo emboança - o Sããão Chupança,
que aí vem,
sacudido no trote,
no chouto do seu jerico,
de que ouvem, já - vale a olhadela! - os sacolejas da sela,
o conhecido fuxico!

A multidão bate palmas,


o Canal Plus nos censura (não faz disso um mistério).
Critica nossa postura
E diz
- Pobres almas!:
O povo daqui não é sério,
nem mesmo na desventura!
Sem o menor critério!

18 A engenhosa tragédia de Dulcineia e Trancoso


- E aí vem, também, o graaande Trancoso,
o Bom Pixote garboso,
cantando, dançando seu xote!
Não lembra, não, Robocop?
Mas vejam só que coxotes: frouxos!
Precisa levar uns acochos!
E,
em vez do chapéu de couro,
o elmo - reparem que é o verdadeiro:
bacia, sim, de barbeiro,
que brilha como se fosse
de ouro!

- E olha a trilha sonora, que está merecendo


confete: "Quixote chupando chiclete!"
É dOs Mutantes: endoidariam Cervantes!

- Todo mundo - deste horizonte -


verá Dulcineia & Trancoso,
o espetáculo - estrondoso! - de São José de Belmonte!

- A Dulcineia, quem é? - grita alguém, na plateia.

- Mas atenção,
multidão!
Além de contorcionistas,
de clowns e equilibristas,
além de frevistas, sambistas, de bandas de choro
e
repentistas,
teremos graaandes poetas... que são,
também,
graaandes profetas!

A engenhosa tragédia de Dulcineia e Trancoso 19


Eis,
neste raio de data que é o dezoito de maio, véspera
- entre hostes católicas - de Pentecostes,
falando de morte,
enigma,
sorte
e de disparate,
um vate,
O paradigma;
o velho ... magro ... , que ora consagro
e cuja presença nos afortuna:
Ariaaaano Villaaaar Suassuuuna!

O escritor é aplaudido
com alarido, alegria,
pois tudo que diz é engraçado
e de nordestina ousadia.

Até um bobo o conhece: de palco, de aulas, da Globo:


faz parte do dia a dia,
e dele ninguém se esquece.

- E vejam só o portento que eu trouxe pro grande evento!


Se el-rey verão amanhã - hoje terão, por que não?:
ao lado de Suassuna, seu precursor tão
amado, presença demais oportuna!

Sô Leo estala o chicote:

- El criador extraordinário do muito


hiláááário ... Quixote!

2) A engenhosa tragédia de Dulcineia e Trancoso


Ariano vê,
tenso,
el hombre de castaito y plata,
puno y la gola rendados,
bordados,
o braço esquerdo na capa:
sem o aplauso... intenso.

Emoldure-o:
empunadura de la espada: dorada ai mercúrio.

O paraibano diz,
com fair-play,
mas nada, nada feliz:
- Os que não acreditam na vinda,
amanhã,
del-rey,
não acreditarão também, é claro (não me causa espanto),
que este,
que aqui está
é o célebre, garanto, Manco de Lepanto,
sepultado - eu vi! - na cripta de las Trinitarias,
Madrid!

- Então, - diz, lá atrás, o Astier Basílio,


do Correio da Paraíba,
mordaz:
- ... se ele é, mesmo, aquele de quem se fala,
tão longe de seu domicílio,
que tire a mão mutilada - auxilie-o! - do manto de gala!

Ariano,
senhor do mistério de quem tem o respeito sem falar sério,

A engenhosa tragédia de Dulcineia e Trancoso 21


curva-se ante Cervantes,
que avança, em passo de dança,
livra o braço da capa,
a mão sinistra lhe escapa,
e ele diz,
sem ardis:
- Isto perpetra um sinal.... del milagro de la Pedra!

Astier,
voltando-se a Didier:
- Você ouviu? Portunhol!
Pelo jeito, o idioma não foi,
como ele,
conservado em formo!!

Cervantes,
enrolando a mão,
como antes:

- Bueno, mi espaiol también... manca,


porque me enamoré de una dama portuguesa,
dona Ana Franca.

- Oxente! Então é como o Bozo,


que esteve dois dias no Rio e hoje fala goxtoso.

- ~Hombre:
tuvimos una hija,
Isabel,
a quien le di mi nombre!.

E,
de supetão,

22 A engenhosa tragédia de Dulcineia e Trancoso


Cervantes e Ariano - em dueto desadorado,
em martelo... agalopado,
considerando o debate... passado,
proclamam pra multidão:

- Paralelo ai don de la poesia,


- O do vate é o de ver como é o futuro,

- como quien puede ver en cuarto oscuro,


- E é então que - terrível - se anuncia:
- diez dragones, que vienem, con magía,
- destruir os rochedos gigantescos,
- y traerán los infernos muy dantescos,
- pondo o povo num gran banho de sangue,
- que hará, con las Piedras, como um mangue
- entre crímenes, monstruos, muy grotescos!

Bozo,
falando baixo,
rindo,
pra Trancoso:

- O fogo desse tipo de dragão a gente apaga,


pois nem se trata de dragão, sequer de draga,
mas besteiras:
retroescavadeiras!
- Mas tem, também, enorme tropa...
-Ô, aí, sim:
o desmantelo se horoscopa!

Lourona,
a Sonia Carona,
de El País,
interpela Cervantes.

A engenhosa tragédia de Dulcineia e Trancoso 23


Diz:
- ~Confirma que El Rey Don Sebastián
regresa ai mundo... para ser coronado?
- 1Sí!
- ~[Aqui?! ~; Cuatrocientos treinta y cinco
anos después de desaparecer en la Batalla
de Alcazarquivir?!
- 1Si!
- ~Por qué?

Ariano,
com el hermano:

- Em Alcácer-Quibir deu-se o encanto,


- en pelea famosa con los moras,
- em que África fica com os louros,
- Portugal con dolor y desencanto.
- De repente, no entanto, há um espanto,
- pués tuviemos visión bastante clara
- de que por bruxarias muito raras,
- sobre todas las leyes y las regras,
O rei santo está preso aqui nas Pedras,

tanto quanto
- su templo de Carrara.

A IMPREVISTA ENTREVISTA

- Cervantes! - começa Basílio, ironia e brilho


cortantes - Que personagem, o seu:
Quixote!
Que tal encontrá-lo Pixote, de um circo
lírico, ... num sertão onírico,
depois de vê-lo em Defoe, Fielding, Sterne,
Walter Scott?

24 A engenhosa tragédia de Dulcineia e Trancoso


Nenhuma ironia, também, esconde
o expert Joubert,
do Le Monde:
- Ah, influenciou Dickens, Flaubert, - olha pra
Sonia, melíflua voz - ... e o Benito Pérez
Galdós!
- ... E Melville - acrescenta Sheridan Smith, do The
New York Post, vendo em Cervantes a palavra - ghost.
-... Dostoiévski! - aparteia com detestável
testosterona o Ilia Apresyan, também da
terra de Alexandre Névski.
-... Claro - reage o Astier, sentindo-
se inflado feito o balão Montgolfier.
E não abranda:
- Ô, ele faz a cabeça de Joyce, na Irlanda,
e- na Paraíba de que muito me gabo - a
do Ariano, nela pondo Quaderna;
na do Zé Lins, Papa Rabo!

- O, sí- Cervantes aceita, tranquilo - todos


como las pirámides americanas delante de
las dei Nilo.

O Astier bestunta:
- Minha mente, então, me pergunta, como
lhe compete: como é que sabe de tudo,
se é do século XVII?

Miguel de Cervantes o encara,


o Astier sente... emoção rara,
no que ele,
con gran luz,
diz, de Juan
de la Cruz:

A engenhosa tragédia de Dulcineia e Trancoso 25


- Yono supe dónde entraba,
pero, cuando allí me vi,
sin saber dónde me estaba,
grandes cosas entendí;
no diré lo que sentí,
que me quedé no sabiendo,
toda ... sciencia... trascendiendo.

Sonia se arrepia.
O grupo se sente -- em parte - demente,
em parte de mente ... vazia.
E Ariano vê aquele de quem é discípulo,
tentar,
pela epístola do apóstolo - cheio de
escrúpulo - ser... explícito:

- De esta verdad aparentemente clara,


solo vemos ahora un reflejo:
por espejo,
mas entonces... cara a cara.

Trancoso,
extremoso,
espera.
Quando o momento a si mesmo supera,
levanta a questão ... capciosa,
ante a plateia já mais ...
respeitosa:
- É certo que o senhor... e Shakespeare, como
tanto já se arguiu, morreram no mesmo
ano, ... , em 23 de abril?
- Sí.
Yno.

26 A engenhosa tragédia de Dulcineia e Trancoso


Castilla vivía,
ya,
en el Calendario Gregoriano;
Inglaterra,
en el Juliano.
Por lo tanto,
los funerales dei Bardo serán... sin fanfarria,
después de mi décimo día.

Astier, já saindo,
vê Ariano,
que lhe pisca um olho,
rindo.
Mas,
embora tocado,
não se dá por achado:
- Isso é o senhor - célebre dramaturgo-
com seu ator à beira do... expurgo!

BOZO MEDITA,
MINIMAMENTE MÍMICO,
POSE de RODIN,
ENTRE UM CAMINHÃO E UMA VAN,
NO SANITÁRIO QUÍMICO:

- Por que "A Engenhosa Tragédia de Dulcineia


e Trancoso" e não "de Trancoso e Bozo",
se o gancho,
antigo, moderno - e eterno,
é Sancho?

IMPREVISTA ENTREVISTA li:


DO TORTUOSO TRANCOSO

A engenhosa tragédia de Dulcineia e Trancoso 27


PRO DOSSIÊ DO ASTIER,
LOGO DEPOIS:

- Ridículo, meu Bom Pixote!: pedi seu currículo


a Sô Leo e o velhote me disse que, bem,
não tem.
- Privacidade.
- Claro, meu caro, claro.
- Necessidade.
- É, e isso, hoje, é raro. Está morto o assunto.
Mas... pergunto: Posso repassar, ao
azar, as fases comuns na vida de todo mundo,
pra você tirar, enxertar o que quiser. ..
sem hesitar um segundo?
- OK. Ou: não sei.
- Quer que eu fale de rosas-dos-ventos e
flores-de-lis, como sua mãe quis?
- Andou conversando com Bozo.
- Sou... teimoso. Seu pai... era mestre em
haicai e andarilho. Exibia-se com tiros na
maçã sobre a cabeça do filho, e... todo dia ...
via estraçalharem-se os miolos - com
precisão absoluta - da fruta.
- Prossiga: o que quer que eu diga?
Astier começa,
com prazer:
- Foi de tudo e até espermatozoide.
Embrião. Depois feto. E um bebê.
É um eu, que outros chamam de você.
Foi garoto,
- ... muito fraco, um debiloide!
- Foi aluno. É um bom filho. Um antropoide.
É um irmão. É um primo.

28 A engenhosa tragédia de Dulcineia e Trancoso


- ... Sou safado!
- É um vizinho. Coleguinha. E afilhado.
É um terráqueo. Ser humano.
- ... Insuportável!
- É um cliente. Um paciente.
- ... Abominável!
- Ele é órfão. Solitário.
- ... Vivo irado!

Um camelo passa, borocoxô,


usando um chapéu... de "camelô".

- Namorado, empregado, adolescente,


- ... Sou o amante, perseguido, sou cretino;
assassino, fugitivo, sem destino;
um faz-tudo, muito estudo,
- é diferente,
- Viciado, vivo em porre,
- é elegante,
- ... Sou migrante,
- vagamundo,
- ... E intrigante,
-é casado,
- ... Separado,
- Bom Pixote, deprimido, estudioso,
- Sou escroque,
- é distante, calmo e tenso.
- Um farsante.

- Ah, meu caro Astier: não passo - sem


comoção, como vê (nem euforia) - de um inseto
analfabeto nas entrelinhas estreitinhas
da Poesia.

A engenhosa tragédia de Dulcineia e Trancoso 29


ENTOPEM-SE LAPTOPS DE FOTOS

A negra enxágua a anágua e- depois que


a gira- espessa d água - acima
da cabeça,
pra batê-la no lajeiro junto ao rio,
o clique a flagra, ligeiro - e o gesto (em
curva e sem desvio) - brilha inteiro,
em torno da mais bela das crioulas,
aureolada de lantejoulas.

A terra - em idílio - dá cria: vários caminhões de milho


por dia.

Ariano,
comprido,
estira-se,
desinibido,
entre os romeiros radiantes,
pra sair na foto com Cervantes!

SONIA VÊ, DE REPENTE, NO ASTIER,


ANSIEDAD POR LA SUSPENCIÓN
DE INCREDULIDAD.

- O Surf- ele diz, sem autoestima - era a única rima


(no meu caso, pelo menos a curto prazo) pra Lei
de Murphy.

Ele se centra em Cervantes.


Sente-se como nunca,
antes.

3) A engenhosa tragédia de Dulcineia e Trancoso


- Qué pasa?
- Algo... nos ... ameaça.

Ela se abraça.

O Astier a encara
e há,
entre os dois (dando-se os nomes aos
bois), uma dessas coisas incríveis:
o ronronar das antenas invisíveis,
the sound
de que fala
Pound.

DULCINEIA

Ao começar a chover,
após a estreia moderna,
cheia de danças,
dAs Conchambranças de Quaderna,
Ariano,
seguindo o Plano,
vê,
de cima do terraço do Centro Cultural de Garanhuns,
alguns,
depois um mundo de guarda-chuvas de luto - como
num reduto de viúvas - abrir-se de quatro em quatro,
ao sair do teatro,
quando... uma determinada sombrinha .
iluminada por dentro (coisa banal, mas pra
ele... um sinal),
floresce.
E ele...

A engenhosa tragédia de Dulcineia e Trancoso 31


desce,
manda-lhe cores
em flores
e esta turminha - esquisitinha - de palavras:
"Trancoso - o meu Quaderna - em breve
(uma de minhas lavras) será seu esposo.
Ariano,
ditoso."

Dulcineia não é linda,


ainda.
Não acha ser o principal mister da mulher
o de estar permanentemente formosa:
seria propaganda enganosa.
Sabe que,
quando quer,
salve-se quem puder!:
tem poder - ... abaixo e acima do
abdômen - sobre qualquer homem.

Já vira,
no palco,
o raivoso Bozo - a cara branca de talco - dizer
que "elas",... insatisfeitas-porque-imperfeitas,
iludem os pobres romeus
com seios e a esbelta cintura, cheiros e a bela estatura,
que não são seus.
Ao que Ariano,
sorrindo,
lembrou-se,
até que se divertindo,
de que já vira Trancoso - delícia pura!
- cantarolando, bem langoroso,

32 A engenhosa tragédia de Dulcineia e Trancoso


o samba-canção Escultura.
- É um Pigmalião,
disse o Astier,
quase que só por dizer.

A MOÇA ESCOLHIDA,
(a da sombrinha florida),
consente nesse lance, contente,
e Só Leo,
que a considera (coisa de idoso) "um pitéu!",
dá-lhe todo um banho de loja,
a que ela - surpreendentemente - se arroja.
Aceita as tais lingeries e outros ardis,
que incluem cabelos e
cílios postiços,
a pele com novos viços,
tinta, maquiagem, cinta, rinsagem,
mais manicure, saltos altos, a pedicure,
tudo que a torna... letal,
fatal,
graças ao sonho de que se sente vassala,
com filhos,
conta no banco,
marido,
tudo sensato na sala.

Diz-lhe o Ariano,
decano:
Tome o tento que puder com Bozo,
que não gosta de mulher.

Ela - afiança o nosso bom São


Chupança - atrai o basbaque,

A engenhosa tragédia de Dulcineia e Trancoso 33


é invadida,
engravida ...
e... aí faz o saque.

- Daí - diz Dulcineia - que já posso ter a


ideia de quanto será goshtoso tomar
Trancoso do Bozo.

De repente,
o susto,
e a que custo:
rompe-se o colar de pérolas,
que,
numa chuva de esférulas,
se espalha no piso,
em metralha,
e ela diz:
- É aviso!
Vai-se do vestido - no espelho - o vermelho.

E vêm nuvens,
a ribombar beethovens.

MANDREIKE SUSSURRA:
- Hurra!
e empurra as contas,
que saem,
tontas,
rumo a Trancoso,
que sente,
nervoso,
a pulsação na aorta.
Abre... a porta ... e vê,

34 A engenhosa tragédia de Dulcineia e 'Trancoso


no mundo parelho,
situações... complexas...
como - em Paris, Texas - numa mulher de vermelho.

Uma luz - lapada por lapada - desce uma escada


e cada vez mais se obumbra,
na tumba.

REAL Y REAL é a séria matéria em que o Basílio diz,


no Correio da Paraíba,
não estar entendendo - da forte experiência
que está vivendo - "neca de pitibiriba!":

Pura loucura,
a da multidão que se crê na iminência de ver -
na vigésima primeira centúria - a Pedra
do Reino se abrir,
mediante sacrifícios humanos (lendas de lusitanos),
e,
de dentro dela,
o Sumido,
o Desejado, o Encoberto,
o Adormecido
sa1r,
no sebastianismo que,
aqu1,
já deu tanta vida ceifada
por absolutamente nada.
Maior,
ainda,
é a insânia,
extemporânea,
dessa paixão histérica,

A engenhosa tragédia de Dulcineia e Trancoso 35


de Suassuna,
nada oportuna,
inda que linda,
pela cultura ibérica,
de modo que não se acanha e nos traz
(não sei por qual artimanha)
um refinado europeu,
que torna todo mundo plebeu:
é um... caballero,
todo elegância e esmero,
cheio de fintas - diga-se de passagem-... brilhantes,
Cervantes em carne e osso,
claro que causando
alvoroço.

- Yo entiendo por qué no me acepta- disse-me


esse senhor, de forma clara e direta. -
Fue terrible aceptar Galileo.
- ~Por la caridad! -- Sonia Corona, de El País,
reagiu, espantada com a comparação,
aparentemente - incluiu - disparatada.
- ;Pero es la verdad! -- ele insistiu. - Porque o
que se vê é la salida dei sol ... do nascente,
pasando por encima de nosotros ai
mediodía, hasta se poner,
ai atardecer ...
en Occidente
e não podia ser diferente.
~Como desatar tais nós,
como o de que giramos em torno do
sol, e não... ele em torno de nós?

36 A engenhosa tragédia de Dulcineia e Trancoso


- Você não crê no que vê - disse-me o paraibano
Ariano - mas crê que constelações que
não vê
(Nossa Senhora!), estão aí nesse céu ... agora!
Ah, sim:
agora ... é nunc, em latim!
Não lhe dão agonia as estrelas, e no fato
de que só na treva é que se pode
vê-las?!

- Ah, o Cruzeiro do Sul! - diz o Joubert do Le Monde


(dentes de pitbull, que jamais esconde). - É a cruz que
no céu reluz, toda de diamantes. Deveria luzir - em
glória - entre os seios de minhas amantes. Pena que seja
ilusória, pois se tem, no alto, a Rubídea - a 88 anos-
luz da Terra (se a memória não erra, e a mídia); tem
a Magalhães, embaixo, mas em distância que não se
inventa: a 350; enquanto a separação pra Mimosa, a que
brilha à esquerda, a um atro 424, ainda mais espantosa.

- Memoria. Y espera - diz a baixo-astral do El País. - Son..


materias de que somos hechos: etéreas. Y esto... me
desespera, exaspera. La Vida es realmente Sueio -
trágico, risueno - en la ridícula película que rodea
a la Tierra, que nos da a luz y en sí misma,
entierra.

Ariano,
que,
mais do que antes,
via em Sonia a única a crer na
presença... real... de Cervantes,
ru

A engenhosa tragédia de Dulcineia e Trancoso 37


e sua verve fluiu:
- Tudo é como num filme! - disse. -
Leia-se Berkeley, Hume!
A terra parece real,
e o céu ... parece que
não:
ficção;
O dia parece real,
e a noite,
não:
ficção;
A velha janela é real,
e a cortina,
não:
ficção;
O chão,
parece real,
o tapete,
não:
ficção;
O passo,
parece real,
a dança,
não:
ficção;
A minha fala, real,
o canto,
não:
ficção;
mas tenho,
apesar de tudo que minha mente me
mente e depois me desmente,
de estar - permanentemente- em ação!
Como num filme. Como nos diria ... Hume.

38 A engenhosa tragédia de Dulcineia e Trancoso


- Claro - disse Trancoso, amargo... e esperançoso -
ou Cartier-Bresson não teria feito
fotos
e a Harley-Davidson,
motos.
A noite passada, que não mais existe, Sonia, foi ruim,
mas ainda mais triste seria se eu - agora
- não me lembrasse dela: teria
insônia.
Veja o afã com que o dia de hoje - com
todos esses soldados - gera o amanhã,
como o Miguelângelo gerou ... Rodin,
no mesmo nível de irrealidade de um
shakespeariano Romeu,
que, na verdade não nasceu, nem morreu.

Mas acredite:
a Keynes, Ricardo, Marx, Adam Smith
se deve a expansão - de grande ou menor extensão -
do nosso
limite.

NÃO,
A HUMANIDADE É o CÂNCER DO
PLANETA TERRA - diz o Bozo,
furioso:
- concordo com o cara da ficção Matrix.
Há fome e guerra,
sempre,
e doentias ... psiques.
O horror!,
diz Kurtz, no Coração das Trevas,
O horror!,

A engenhosa tragédia de Dulcineia e Trancoso 39


diz Kurtz,
de novo,
no Apocalypse Now,
nós todos cada dia mais próximos
de um Juízo
Final.
Rangem-se dentes por toda parte,
gemidos,
gritos no mundo em chamas,
o enfarte.
Basta! - eu peço - Rest in Peace!,
Réquiem!,
Consummatum est!
e que o que reste, empeste!

GRAÇAS AO ARIANO E CERVANTES,


TANQUES, por si sós aterrorizantes, passam
- em todos os pesadelos - a vir em cortejos
(como esquecê-los?) de cancros e
caranguejos.
E vêm - derradeiras - alas de escavadeiras,
com rastros de ossos,
caveiras,
rugindo feito leões
- de olhos acesos;
dragas enormes, dragões,
sobre indefesos.

E é um general: Albuquerque Urquiza,


que frisa,
com muito prazer,
pro Astier:
- Sintoma do poder de Roma foram, também,
as máquinas pesadas pra construir estradas,

4) A engenhosa tragédia de Dulcineia e Trancoso


dando mobilidade à tropa - dentro e fora da
Europa - contramobilidade pro inimigo,
livrando-se de seu perigo:
É do que fala Isaías,
nas profecias,
sobre aplainar horizontes,
exaltando-se vales,
humilhando-se montes.

Pausa.
Causa:

o Astier,
a rebater:
- Mas Nel mezzo del cammin... há uma Pedra.
-Sim,
mas tenho pra mim... que Suassuna e Saavedra,
que, aparentemente, só cuidam do estético - sabem
que vem aí um especialista em demolições,
um técnico,
pra implosão dela - e é pena, porque
bela - com máquinas tirânicas,
titânicas,
prontas pra lhe recolher os pedaços
e abrir de vez os espaços.
Os helicópteros, todos já viram.
Talvez,
no entanto,
prefiram...
caças a jato,
que vêm pra dar uns rasantes... no Ariano e Cervantes,
se vão às vias de fato.

A engenhosa tragédia de Dulcineia e Trancoso 41


Basílio complica:
- Pode acabar em Guernica.
- Sem o Picasso?! Duvido! Este país é um fracasso,
o que explica a espera ... irreal... de uma
salvação nacional, vinda de um... rei... de
Portugal!
Caramba,
isso talvez explique porque - bocado a
bocado - mais e mais me enfado...
com samba!

- O GENERAL, VILÃO DA EPOPEIA?!


- diz o Ariano a Sô Leo. -
Sou escritor veterano!
Mesmo com tanques, "dragões",
faltam-lhe
colhões,
e é claro,
tutano!
Ele é só verborreia!
Quero um... Hitler, Nero, um Macbeth,
alguém - sa cumé - digno do conflito,
não um milico... erudito!
Vamos, Cervantes, comigo, pensar num grande inimigo!
Você é,
n1sso,
um perito!

-No,
el peor villano dEspana - Don Juan Tenório,
El Burlador de Sevilla - es de Tirso de
Molina y de José Zorrilla.

42 A engenhosa tragédia de Dulcineia e Trancoso


- Eu me refiro aos moinhos! Nada de vilões mesquinhos!
Quero um Sauron, Polifemo, alguém como Ferrabrás!
Quero um Tubarão, Moby Dick, um Drácula ou Satanás!
Meu auto mais famoso seria insosso feito um quiabo,
se eu não tivesse a Compadecida co Diabo!

Cervantes,
de repente lívido,
diz ao Ariano que
se ele se volta agora,
ávido ou não,
conhecerá o vilão.

Ah,
o caos
em altíssimos graus
no que todos - naquele lugar - se põem a gritar:

um homem está em pleno mar, em Boa Viagem,


quando a cauda de um tubarão vem
na sua direção, na visagem.

Outro
vê a bala
que lhe destroça a cabeça,
na sala,

o Breno tem queimação de veneno,

Arnold se arrebenta na curva,

Malu vê o fim n água turva,


o Zé tem no fogo a agonia,

A engenhosa tragédia de Dulcineia e Trancoso 43


o Ezequiel,
na pneumonia.

Cesário morre em trombose,

Marcelo morre
em cirrose,

Maria é fulminada: embolia.

Bozo se vê fuzilado,
Trancoso ao lado.

O Gomes morre no abismo;

o Salvador, enforcado.

Botelho, em Pamplona, por um touro é empalado.

É sob a chuva de pedras que o Di Stéfano morre.

A Lúcia morre engasgada, porque


ninguém a socorre.

No aeroporto de Orly é que dá um berro o Davi,


sob uma barra de ferro.

A bela Sonia Corona - nada moça - se vê


sozinha e chorona... lá em Saragoça.

Já o Astier,
aos noventa,
ri do vigor que ostenta,

44 A engenhosa tragédia de Dulcineia e Trancoso


estupendo,
morrendo... numa mulher de quarenta.

Mortes nas intempéries,


crimes de minisséries,
a punhalada reluz,
há execuções,
o pus,
há lutas, cortes sangrentos, eletrocussões,
torturas,
tiros de obus,
há impactos, cortes, fraturas,
cruz!
Há dores... terríveis
e lentas,
há as explosões violentas,
desatendimento no SUS.

Aí o que se vê é um clarão,
apagão.
A luz do dia retorna,
transtorna,
causando cegueira,
até que - da romeira ao monge, lá longe
- o susto do mundo vai fundo:
um tronco - que irrompe do subsolo num
solo, bronco, de tuba - sobe - em trombos
e clarinadas - pra fantástica juba,
em que a Morte,
embuçada,
surge - forte - na trovoada,
de alfanje que a tudo abrange,

A engenhosa tragédia de Dulcineia e Trancoso 45


e há um som - contínuo - de rodas, e
outro, igual - picotado por podas,
de patas,
no que um coche (agoureiro, sem o cocheiro), chega,
dele apeiam... baratas... e a Morte,
horrível,
terrível,
tão seca
que,
quando se encurva e agoura,
a pele - nas omoplatas (como que de sucatas)
- estoura, e as vértebras, ouriçadas,
saltam - numa fila de lâminas -
afiadas.

- Morte - diz Ariano - é o nosso Norte.


Qualquer que seja a nossa direção
e sorte.

BOZO,
NERVOSO:
- Não vos ocupeis com o dia de amanhã,
disse Jesus.
-...Mas - diz o Trancoso, odioso - não se
zangue se à véspera da cruz lhe falte o elã
e ele sue sangue.
- Claro,
como qualquer filho de Deus.
Como qualquer de todos esses bilhões de eus.
Mas... você não crê no Cervantes... mais do que
antes. Nem na vinda de el-rey, Dom Sebastião,
apesar da visão. Não acredita... em nada!
-- A "senhora" está enganada:

46 A engenhosa tragédia de Dulcineia e Trancoso


creio... no ilusionista Mandreike
e que...- de aluguel pro Sô Leo - é a causa desse escarcéu.

MOVEM-SE OS TANQUES,
CRUSTÁCEOS,
E O ASTIER - EM SONHO - vê os vários cetáceos,
ou zepelins,
com feixes de peixes - aeronaves
menores - nos seus arredores.
Vê,
pelas frestas,
serestas,
e,
no relento,
fogos-fátuos, centelhas acesas, vermelhas,
ao vento.

ARIANO DELIRA,
DIZ "BOM",
NO SERVIÇO DE SOM,
SUSPIRA,
E,
COMO SE NUMA PEÇA,
COMEÇA:
- Senhores de grandes feitos,
damas de brandos peitos:
todos verão que os dragões
que vêm com seus batalhões,
e em forma de escavadeiras,
são as fatais "matadeiras"
astrosas e furiosas
que destruíram Canudos,
matando os povos miúdos,

A engenhosa tragédia de Dulcineia e Trancoso 47


matando o bom Conselheiro,
matando o ideal libertário
... e revolucionário,
do povão brasileiro!
Mas Lampião vem aí,
de novo,
pra encandear
e cercar
os inimigos do povo!

CERVANTES SOBE,
CONFIANTE,
NO DORSO DE UM ELEFANTE.
Ergue a destra (a sinistra, oculta) que estava
pousada na empunhadura da espada,
e extasia,
no que aponta pra longe
e anunc1a:
- Yo veo a los reyes, reinas
en esta gente que llega;
caballos,
torres,
coringas
con damas biancas y negras,
a/files con mismas llamas vienem de todos los lados;
obispos junto a peones,
valientes y apressurados.

De fato:
- Lá vêm, sim! - diz o Trancoso a
Bozo. - E é tudo de fino trato:
são as rainhas... e reis, como ele disse, visse?
Tintim por tintim!

48 A engenhosa tragédia de Dulcineia e Trancoso


Arretado! Tudo do maracatu,
do reisado!
Lá estão (olhe que belezinhas!) o príncipe e a princesinha,
que vêm com os seus vassalos, todos nos seus cavalos,
no passo,
e porta-estandarte, damas-do-paço,
calunga.
E o povo,
Cervantes,
resmunga!
Lá vêm violeiros, congos, embaladores, troças,
blocos de frevo, cirandas, fandangos
e caboclinhos,
cavalos-marinhos
e,
até, caramba:
os enlevos do samba,
mais afoxés e os clarões de rojões,
busca-pés!
Vêm,
numa horda,
as bandas de pau-e-corda,
pífanos,
bumba-meu-boi,
forrós,
o estardalhaço dos bacamarteiros:
Paraíba e Pernambuco
inteiros.

Ariano chega - feliz - ao elefante


e diz,
em dueto, mais o Cervantes:

A engenhosa tragédia de Dulcineia e Trancoso 49


- Vejo mantos dourados e bandeiras,
- trompetas resuenam con tambores!
- cantorias e heráldicas,
cantores,
- ~condes, duques,
hay círios de romeros!
- Há ciganos, princesas e tropeiros,
- ~Hay pavón y un león,
susuaranas!
- Há três onças, araras,
muçuranas,
- la farándula en fiesta,
caminando,
- vêm cantando e alegres
vêm dançando!
São bem-vindas as lindas caravanas!

É então que,
do alto da sua altura e da idade,
Ariano vê a novidade:
- Lá vêm - e como! - os raparigueiros, tropeiros!
O Cariri, Moxotó
e o Pajeú
festeiros!

E lamenta
(quase acalenta):

- Vemos, adiante, momentos duros:


- de fuego, juego de claroscuros,
iFascinación!
;Hay cataclismo, violência, ruína,
consternación.

5S) A engenhosa tragédia de Dulcineia e Trancoso


Escombros,
Muerte,
Desolación!

- TRANCOSO, DIZ BOZO,


crê nessas profecias, nas quais os dragões,
na verdade,
são dragas de rodovias?
Em que reis e rainhas são os que há no congado;
e príncipes mais princesinhas,
os do maracatu e reisado?
- Creio, Bozo. Porque isso é... primoroso:
Luzes sem hostes de postes
que,
sabemos,
estão lá,
como a área na corda sol:
sem Bach.
A gente, se amadurece, vê que nada é o que parece.
Nem no espelho,
em que o vermelho é o vermelho, claro,
mas num sentido... restrito,
pois se está por escrito,
é um destrambelho.
A engrenagem que move o neto, passa a ser, no avô,
como que de crochê e tricô.
Assim,
se Zukunft,
pra você,
é palavra enigmática, como complexa matemática,
prum alemão,
não:
~. '
e o puro... 1 uturo.

A engenhosa tragédia de Dulcineia e Trancoso 51


O negociante esperto pode, por certo,
fazer do milho... milhões
e,
se o seu negócio é trilho,
trilhões!
Mas... quem,
diabo,
vê o amanhã,
se a fé - ante a cova, em que ele é posto à prova - é pagã?
Quem,
diabo,
é o bambambã
capaz de ver o amanhã,
se a gente se lasca e não entende o passado
em Nazca?!

DE REPENTE ARIANO é visto -- ou seu cover


- na biblioteca pública de Vancouver,
na titânica Britânica
e na aventura
que é o Real Gabinete Português de Leitura,
bem como no monumento à parte,
que é a Biblioteca - Municipal - de Stuttgart.
Vai à coleção-mor,
que é a George Peabody, de Baltimore,
à divina Alexandrina,
e em todas vai sacando -- por mais que isso lhe
custe - o primeiro dos sete volumes do
Em Busca do Tempo Perdido,
de Proust,
capítulo I: Combray
buscando,
(parece bobagem. Não é):

S2 A engenhosa tragédia de Dulcineia e Trancoso


o bendito pingo,
de domingo a domingo,
por mais que a dúvida da existência dele
teime e, em nossas pobres mentes, reine.
sempre ali,
no maldito i de Madeleine,
o mundo,
de fato,
embora não pareça,
exato.

ASTIER
DIZ PRA TRISTONHA SONIA,
SEM SABER POR QUÊ:

- Pode ter certeza de que o que a deprime


(coisa que ninguém deseja),
foi um crime do ilusionista,
acionista da Igreja.
Nenhuma lógica vinga
no templo da caatinga.
Só se as Virgens,
(a Compadecida entre elas),
não querem,
ma1s,
capelas,
cheias de velas,
fuligens,
só catedrais - como as de Colônia
e Milão - de alto padrão,
r1cas
e belas,
torres de dar vertigens.

A engenhosa tragédia de Dulcineia e Trancoso S3


- Usted es devoción, negación -- Sonia
lhe diz, recuperando-se do revés.

-- Ah, eu olho Deus de través.

- Como yo... ,
desde que vi la iglesia de Santa Bárbara de las tormentas
con pararrayos!

- Bem, a sorte é que não há mais de nós por aí,


do que há paraguayos - diz ela
que,
finalmente,
ao acrescentar y uruguayos,
n.

COMO PARTE DE UM JOGO,


O CASAL ENGOLE-FOGO-TENDO
POR TRÁS AS ROCHAS - ERGUE A
DUPLA DE TOCHAS
e,
simétrico,
estético,
faz a moldura a Sô Léo,
que chega - sem onde nem quando - bradando
sobre o que mostra
no céu:
- Meu povo!: Lá vêm,
de novo,
os helicópteros SABRE,
da FAB!

E o esquadrão chega atirando, tirânico,


na multidão em pânico.

54 A engenhosa tragéda de Dulcinea e Trancoso


- Valha-me Deus! - grita Bozo, ao se ver -
apavorado - agarrado por Trancoso,
que lhe grita,
1mper1oso:
- Pense! Veja se se convence de que ninguém fala
em versos (principalmente em momentos como este,
perversos) a não ser nos ... jurássicos ... rimances clássicos!

Ô - diz, detendo, rindo, outro que ia


fugindo - e eis aqui o Cervantes!
Agora são dois os arfantes!
Foi-se há séculos,
mas lá se ia - se eu vejo bem sem óculos -
correndo à toa, feito zebra, de uma leoa!
- Para no perder las listas... de motivos que,
más que todos los otros, yo tengo para
vivir. ~Déjame ir!

Trancoso,
Jocoso,
ao deter,
também,
buscando não lhe causar dano,
Ariano:
- Que tal? O senhor não é imortal?
- Só a obra! O resto fica pelo caminho,
feito couros de cobra!


A TEMIDA DA CRISTANDADE FALA,
COM VOZ QUE ABALA:
- Escuchen mi vaticínio!
Mirem la fiesta dei Trancoso cuando,
~por pasión!

A engenhosa tragédia de Dulcineia e Trancoso 55


vá a perder raciocínio
e levá-los,
bons e maus,
ao caos!
El gobierno é contra a baderna
e eu ... lhes dou la paz, como me compraz:
eterna!

Trancoso lhe grita,


ardoroso:
- Você se esquece de que - en realidad - somos mortais,
pero no la Humanidad!

É ENTÃO QUE O COMANDANTE


MASCARA OS OLHOS COM O
CREPE DA SOMBRA (SINISTRA)
DA PALA DO QUEPE
E AZINHAVRA,
TOMANDO A PALAVRA:
- E minha - por civismo- a missão de
isolar a Pedra, do fanatismo!
Daí que
qualquer tentativa de se aproximar dela, considerarei
terrorismo!

ARIANO RESPONDE
NO MESMO PLANO:
- Pois olhe a paisagem alucinada,
a região revoltada:
as árvores - secas - são os neurônios
(atormentados pelos demônios),
da multidão agitada!

S6 A engenhosa tragédia de Dulcineia e Trancoso


E LEVA A CAATINGA A REZAR,
IMENSA,
"A PEDRA CRISTALINA",
TENSA,
DIVINA e DENSA:

- Ó Pedra (encantada - como a Hóstia,


e também sagrada!)
O chão treme ao redor e a Morte a teme,
a esperar - sempre - pelo pior,
pois tens a potestade,
do Sol, da Terra e da Lua
em Santíssima
Trindade!

Podem rezar! - o Comandante retumba. - O


Ariano não passa de um criador de bode;
e o "Cervantes", que aí está,
everybody... sabe, como se lesse na ardósia:
não é o que está lá na tumba, mas, só, um
sósia,
mas vão lhes dizer :
"Tanto faz que se zangue,
já que ninguém está aqui a esmo,
mesmo,
mas pra orgia de sangue!"

A ORAÇÃO CRESCE,
VELOZ,
COBRE-LHE
AVOZ.

A Morte,
no entanto,

A engenhosa tragédia de Dulcineia e Trancoso 57


feroz,
apaga, de vez, os faróis ... de escavadeira, jipe, tanque,
de caminhão -,
para a zoeira.

A multidão,
no escuro,
geme e teme, abandonada,
mais do que tudo,
o Nada!

E EIS O CENTRO DO LIVRO,


SEU CORAÇÃO,
EM MEIO A ENROLAMENTOS DE ALTA TENSÃO.

É quando a mão de Trancoso - num gesto...


sinuoso - vai ao que lhe é estranho
em seu crânio:
o elmo,
relumbrante como si fuera oro,
que
(por algum trote em Quixote),
é,
de repente,
couro!,
e... danado: chapado: na maluca testa e na nuca,
com signos de Salomão... usados por... Lampião!:
As grandes estrelas,
como esquecê-las?

Aí,
há o rumor cavernoso da Pedra do Reino a se abrir,
e um vulto oculto - a catedral! - começa, então, a emergir,

S8 A engenhosa tragédia de Dulcineia e Trancoso


bela,
de dentro dela,
magnífica - de repente acesa - mirífica,
com mil vitrais a luzir,
ouvindo-se,
de perto,
de longe,
o bronze dos sinos que- quando atingem
quórum, entre os hinos - saúdam a Regina
Angelórum,
e eis que ela sai - violácea Mater
Christi - da rosácea central,
triste,
espectral,
a sua coroa de estrelas a iluminar a escadaria
que se vai derramando em degraus,
a precedê-la,
em meio a espetáculos,
nos pináculos,
em que a revoada de anjos, arcanjos, querubins
e afins - cantam em coro com seus
clarins - celestiais,
em belas vestes cerimoniais,
até que ela se detém,
entre círios e lírios,
e
diz,
rindo,
a seu "lindo" (que ela nunca conquista):
- Discreto dileto,
em quem me comprazo,
à vista e
a prazo:

A engenhosa tragédia de Dulcineia e Trancoso 59


Vi o que disse, visse?: que não teme a Morte,
e reconheço que,
pra 1sso,
precisa-se ser. .. muito forte.
Mas - fique sabendo - que Deus não erra:
sem ela - trazendo terror - não haveria a
reposição das criaturas da Terra e,
por conseguinte,
o amor,
que vou despertar em você ... e Dulcinéia,
daqui a pouco,
deixando-o como o seu Quixote:
louco!

Trancoso,
sempre bem cauteloso,
vê esse ser (como todos os outros:
mais leves-que-o-ar) a falar,
e ... sabe - embora não seja descrente - que não se
trata da Virgem, mas de algo na própria mente,
o feminino em seu eu,
que lhe fala,
insinuante, mas muito
atuante:
- Assim que conhecer Dulcineia,
viverá, com ela, a epopeia,
à frente de todo esse povo,
o que o fará um homem novo.
- A senhora quer é um Moisés! ...
- E não me meta as mãos pelos pés! ...
- Mas ... pelo que sei,
além do Cervantes, virá - do além - Lampião, ou não?,
pra desencantar el-rey!?

6) A engenhosa tragédia de Dulcineia e Trancoso


Ela,
de repente,
hesita... e não mais levita,
e é a Maria,
Bonita,
num tamborete,
cada mão num cão - Guarani e Ligeiro
- Como num trono brejeiro
e diz,
em sertanejo falsete,
ao lado de Virgulino:
- Mudou-se o figurino.
Tu é que tá de chapéu - o mais sobranceiro
do mundo - que é o de um cangaceiro,
Lampião,
e... a razão - verá daqui a pouco, através
de Ariano e Miguel - é cruel!
- Mas ... por que eu, que nem Quixote sou, mas Pixote?!
Se nada tenho de Teseu ou Perseu, nenhum dote?!
- Malandro! ...
- Se vou me banhar, visto logo o escafandro!
Verdade pura! A vida é dura. Por isso é que- a
pretexto da personagem - estou de armadura!
- Parece absurdo - ela diz, toda de palavras
gentis -, mas os mais eficientes são
sempre deficientes,
de Demóstenes, gago, a Beethoven, surdo.
Taí o estrago que se vê em Cervantes,
que é mutilado.
Problemas pra todo lado.
Veja o Aleijadinho.
Veja o Napoleão, muito baixinho.
Mas já vi você imponente,

A engenhosa tragédia de Dulcineia e Trancoso 61


quase disforme,
em teatro de rua,
fazendo zoada,
enorme,
aos arrancos,
seus pés em tambores virados,
como que em tamancos!
Mas- se isso o conforta - digo que Zeus
ou Deus, Jeová ou... deixa prAlá,
realmente escreve certo com linhas tortas.
- É,
mas divino,
mesmo,
ele seria
se a senhora,
como deveria,
lhe tivesse ensinado caligrafia.

E aí,
embargo na voz:
- Nós... somos,
sempre,
... SOS.$

Não vemos,
do Outro,
nada além dos olhos... que também,
angustiados, olham os nossos,
de um cofre de ossos.
A sua mente é a minha, Rainha! Algo claro e
confuso. Feito legendas... num filme luso.
- Sei que você não é santo - ela lhe
diz, ajeitando o manto - mas,
cá entre nós,

62 A engenhosa tragédia de Dulcineia e Trancoso


é um encanto.
Gosto de vê-lo Pixote... ao lado de São Chupança.
Daí minha bênção (que vale de panaceia).
Vá liderar o povo,
mais Dulcineia.
- Óh,
data-vênia:
não que não me convenha,
mas me sinto caçamba que se
esculhamba a cada palavra sua,
que é como pedra - pesada - que nela tomba.
Como - "liderar o povo"?, - "Como?", pergunto de novo,
se fora do picadeiro é como se eu,
por derradeiro,
falasse sem microfone, pra um povo com headphone?

Nesse instante,
elefantes do circo,
deselegantes,
fazem das trombas trombetas,
e a Virgem... some,
(feito fome em quem come),
com anjos e a catedral.
E aí a Pedra se fecha,
sem brecha,
etc e tal,

- Isso que me protege: a lataria - Trancoso


diz, nervoso- ... vai (mais cedo do que eu
pensava) pra funilaria! ...

NO OUTRO LADO DA TURBA,


Ariano diz,

A engenhosa tragédia de Dulcineia e Trancoso 63


infeliz,
e à Dulcinéia
perturba:
- Você será, mais Trancoso... e Bozo,
o trio do sacrifício... que
quebrará o malefício
do rei.
- Sei. Minto se não disser que me sinto já cheia de
graça e com vontade de dizer Faça-se em mim,
mas 1sso... passa.

Cervantes,
fiel,
pede ao céu,
nessa hora:
- A ti me vuelvo,
Senora
y vos toca el darme la ayuda.
Que a Dulcinea y Trancoso vuestro favor acuda.

Dulcinéia,
tremendo,
embora louca de alegria
diz:
- Afe Maria!,
Eu não vou me fazer de rogada!
Mas Ariano,
Cervantes,
isso não será uma roubada?

OS JORNALISTAS ESCREVEM,
E A INTERPRETAR OS FATOS
SE ATREVEM:

64 A engenhosa tragédia de Dulcnea e Trancoso


- Se Dulcineia e Trancoso embarcam nessa aventura,
será o caos em vão:
A
loucura!
- Lá está a Morte, suporte do pesadelo
oriundo do lado sinistro mundo.
- E Yggdrasil, que irrompe - atrevida - em pleno Brasil,
trazendo de volta, após reinações na ultravida
- porque, eu não sei - Cervantes
e el-rey.
- Se a fé remove a montanha
de pedra,
o estopim será a dinamite,
e a isso - já se admite - se seguirá um quebra-quebra!
- A revolta é imensa
nas multidões brasileiras,
pela corrupção intensa.

O Astier faz biague,


no seu dossiê:
- Digo que
se o Trancoso embarca, de fato, nas delirantes,
quixotescas façanhices suassúnicas,
só irá transar em sessões mediúnicas!

AO GRUPO DE REPÓRTERES,
QUE JÁ É GRANDE,
juntam-se os do Der Spiegel,
Osservatore Romano
... e o da Time,
que atribui o delírio coletivo
ao Santo
Daime.

A engenhosa tragédia de Dulcineia e Trancoso 65


E aí a roda-viva
da nova e maior coletiva
começa,
convocada à pressa pela cúpula militar - de
terra, mar e ar- um tanto irritada,
sob comando - contendo a ojeriza - do
General Albuquerque de Urquiza.

No uniforme de combate de esmerado arremate,


austero,
o condottiero mostra, logo no rosto, que ali está
a contragosto.

- Senhoras Ticiana e Sonia; senhores Bonner, Didier. ..

Para,

pois Astier - que chega atrasado - como um


penetra flagrado, os passos seguintes perpetra,
mas não se encabula:
seu nome circula,
pela entrevista
que o mundo relê,
com FHC.
- Senhor... Joubert (oure a great war expert!).
E caro Agostinho Simões,
jornalista excepcional, nos nossos
sertões, da Rádio e Televisão
de ... Portugal,
e os outros,
que não conheço,
mas cuja presença agradeço, etc e tal.

66 A engenhosa tragédia de Dulcineia e Trancoso


Se bem contam as velhas... estórias...
de minhas Memórias,
Antonio Henrique Bittencourt da Cunha Bueno,
deputado federal... extraterreno,
depois do Movimento Parlamentarista Monárquico,
visando algo... nobiliárquico,
propôs,
em 92,
emenda à Constituição,
onde previa o voto esquisito: um plebiscito,
cujo primeiro quesito seria... a escolha da forma
e sistema de governo que o povo- em
sua... "profunda sabedoria" - preferiria,
dizendo que Pedro II fora destronado e, depois,...
despachado... por um sórdido golpe
de estado,
"por vários milhões
ou,
pelo menos,
milhares?"
Não:
"por alguns militares".
E então - preservando-se a democracia
- promulgou-se, como se devia,
a tal consulta - sabem vocês- em 93,
os eleitores,
apesar do "Vote no Rei!",
dando,
sem visíveis rancores,
ao regime republicano
oOK.

A engenhosa tragédia de Dulcineia e Trancoso 67


Mas eis que o sebastianismo - de Padre Vieira,
Fernando Pessoa e Saramago - que se embebe - cheio
de misticismo - nas trovas do poeta, profeta
e mago,
sapateiro Bandarra,
esbarra na Inquisição, com as visões
messiânicas, que a ela parecem satânicas,
entre as quais uma,
em que ele... prediz, em suma,
que Este Rei de grão primor,/ Com furor,! Passará
o mar salgado! Em um cavalo enfreado,I
E não selado, /
Com gente de grão valor.
E é então que - subterrâneo - o sebastianismo,
pedindo exorcismo, chega a um escritor
conterrâneo e contemporâneo nosso,
que faz... o que nos revolta: reedita A Pedra do Reino
e o Príncipe do Sangue do Vai-e-Volta na vida real,
com el-rey que ressurgirá - aqui,
agora, diz ele - na catedral,
e usará como epígrafe,
não à toa,
pra tragédia que já nos consome,
o D. Sebastião, do Fernando Pessoa:

Sem a loucura, que é o homem,


Mais que a besta sadia,
Cadáver adiado que procria?

Por isso,
amanhã de manhã - nosso comando não o segreda,
é um compromisso - haverá a implosão da Pedra!
Era só o que faltava,

,8 A engenhosa tragédia de Dulcineia e Trancoso


com que tudo que a este país já entrava,
(loucura total!)
ter um rei - de novo!,
e,
de novo!,
de Portugal!
Sinceramente: idolatro literatura e
teatro, ou ver os dois no cinema,
but... essa gente toda, aí fora, agora, falando
em versos, como num poema,
... não bate!
E quase me aturdo: absurdo!: eis que
irrompe- ao vivo! - na caatinga,
completando a mandinga,
a Morte!
e,
aqui no Brasil,
efeitos especiais fazendo-nos ver,
também, a nórdica... Yggdrasil!?,
Bem,
tanto faz se a gente vem do Fiat Lux ou do Big-
Bang: somos todos feitos de sangue!
Se "o contrário cura o contrário" e
depois da guerra vem a paz,
diremos que o que aqui se começou,
aqu1 mesmo...
jaz!

ENTÃO VAMOS EM FRENTE,


QUE ATRÁS VEM GENTE!

Ante animais - fantásticos - do cavalo-marinho,


Dulcinéia,

A engenhosa tragédia de Dulcineia e Trancoso 69


pasma,
se entusiasma.
Depois diz...
devagarinho:
- Por que eu pra essa ação desmedida ?
Ariano responde, humano:
- Coisa da Compadecida, seguindo - não
sei dizer, francamente - qual plano.
- La pregunta es muy oportuna.
Dile lo que me dijo,
Suassuna.
- Olha, Dulcineia, - o Ariano começa, numa ...
tensão... de estreia - Existe casal mais discreto do
que Sérgia Ribeiro e Cristina da Silva Cleto?
Não.
Mas todo mundo notícia lhe dá de Corisco e Dadá!
Não há um pé de pessoa,
empregada ou patroa,
que saiba quem é
a sem eira nem beira Maria Gomes de Oliveira,
mas... reflita:
Maria Bonita, até o Cão do Segundo Livro
sabe que é a mulher de Lampião!
O rimance Dulcineia e Trancoso correrá o sertão!

Bozo,
pra ela,
maldoso:
- Já vejo numa revista, escrito em língua estrangeira:
Paixão à primeira vista
... pena que derradeira.

Dulcineia lhe diz,


rindo,

7() A engenhosa tragédia de Dulcineia e Trancoso


mas desconsentindo,
infeliz:
- O Ariano e o Cervantes,
como profetas,
não colhem,
talvez,
o que comem...
Mas você - homem! - é medalha de ouro em agouro!

Ariano,
que vê em Bozo uma bisca,
pisca pro Cervantes,
o que o faz lembrar (por angustiantes instantes) Camões,
e,
sem jeito pra sermões,
grita pra moçada:
- Solta o frevo,
cambada!

Ah,
Dulcineia,
quando freva,
parece amalucada:
dança, de sombrinha armada, toda destrambelhada!
Mas para,
impaciente:
- Gente,
cadê o Trancoso?
Será que está ciente de nosso caso amoroso?

Dum delirante Cervantes,


queixume,
de ciúme:

A engenhosa tragédia de Dulcineia e Trancoso 71


- Ay,
Dulcinea,
Si no tienes patraiia con el misterioso Trancoso,
pero con el héroe d Espana!...
- Ai, Miguel, sua angústia me põe no céu, de
tão ancha, sabe? Quase que em mim não
cabe,
mas... sou mais o nosso Quixote, sabe?,
porque o de lá ...
mancha.


um moleque,
correndo,
os braços abertos de aeroplano,
imita breque de carro,
barra o Ariano
e diz,
coçando o nariz,
fôlego que se abala, atrapalhando a fala,
os olhos no camaleão (que vem, no chão, na
disparada, os braços arqueados, como em
escada deitada):
- O canto ijexá,
que vem acolá,
em ioruba,
acompanhado de tuba,
tão vendo? Grande - parece que sendo, não
sendo? - é dos Filhos de Gandhy!

A moça pega - com graça - a luneta que Ariano lhe passa,


vê o afoxé - dançante, cantante,
tudo de níveo turbante,

72 A engenhosa tragédia de Dulcineia e Trancoso


sente o perfume... bem bento,
presume:
é de alfazema
ao vento.
- Mas... quem é o ancião, calvo, magrelo
- OS óculos redondos - e nada belo,

mais um cajado e fraldão?

Diz Ariano:
- Então:
é o próprio Gandhy,
que,
mais do que grande - titânico - embora nanico,
enfrenta o Império Britânico!

- Vamos frevar,
minha gente,
vamos saudar,
noutra frequência,
o homem da Não-Violência!

- Si,
que el Maracatu Elefante cante,
exultante!!!

Antes da lenta leva Não-Violenta,


vem,
célere,
o célebre MST
com foices,
trazendo a reboque (em cima de
queda, coice) um Black Bloc.

A engenhosa tragédia de Dulcineia e Trancoso 73


A Morte,
contente,
ri com todos os dentes:
-Vai,
Dulcineia,
ao encontro amoroso - Vesúvio-Pompéia
- Com o formoso Trancoso!

A batucada arretada ... se arrancha no mundo,


o coro dançante vai fundo:

- A Virgem ... quer o Trancoso / e vai juntá-


lo à Dulcineia,/ pra ir para a Pedra do
Reino, /mais toda essa gente / na boleia!

Ah,
tudo bem!, Dulcineia diz,
impaciente,
com a incógnita,
O XIS.

Que é do bendito Trancoso,


que,
quando devia,
já,
me dar bis,
ainda está - será? - por um triz?

E EIS QUE CHEGA TRANCOSO:


O CASADOURO FORMOSO,
EM SUA DURA ARMADURA,
CHAPÉU DE COURO.

Vem,
devagar,

74 A engenhosa tragédia de Dulcineia e Trancoso


na moto
e anoto:
grande e velha, mas cintilante,
ela tem nome

Rocinante.
Bozo - ao lado da lança- é o seu
São Chupança, o seu par,
sentado no sidecar.
Na sombra da ggdrasil - em que Dulcineia
o procura - é que Trancoso
se abriga,
para o motor
e o desliga,
com inocente candura.
Apeia.
E aí, o Ariano,
sangue na ve1a,
faz,
afinal,
um sinal
e o mundo... vê-na TV-o momento solene,
em que a mútua conquista acontece
... à primeira vista.

E eis que Trancoso - junto de Bozo - suspira e se vira,


em câmera lenta,
de um lado,
a Dulcineia - já com alguma revolta - se vira,
do outro,
em movimento... pausado
e
de repente,

A engenhosa tragédia de Dulcineia e Trancoso 75


maravilhosamente,
tudo, em volta - pra eles - perde o contorno, se solta,
e aí se perpetra - pros dois - tudo de que é
capaz o Complexo de Édipo quando vê
o de Eletra.

A voz, que se apouca, suavemente rouca,


de Dulcineia
pega a primeira ideia:
- Soube que você,
em vertigem,
teve uma visão da Virgem
com anjos...
- É- ele diz, demasiadamente feliz - eu estive com ela

...e os marmanjos.... '
- Soube,
também,
que você resiste a tudo que não existe ...

-Bem,
há o ser
e o não ser.
Se o vão entre as colunas têm nome,
que é o inter. .. colúnio,
e o tempo em que não se vê a lua,
o ... interlúnio,
não vejo razão pra que alguém que
não crê no que vê ... calune-o.

- Seria mais fácil se você tivesse saído do


encontro com, pelo menos, um fóssil: da Ave
Maria .... ou de um anjo dócil...

7 A engenhosa tragédia de Dulcineia e Trancoso


Ariano,
fascinado,
ainda que veterano:
- Nunca vi tanta bobagem que merecesse o meu interesse.
É coragem!
- Que é que você queria? - mete-se o
Bozo, raivoso - Oto na foto,
adro no quadro,
ela na tela?
- Bem, uma palavra que fosse menos... pobre.
De cobre, que fosse, que, com o tempo,
azinhavra.

- Words não são swords!


E,
pro parceiro,
rasteiro:
- "Woman" não é "o homem"!
Mais específico, terrífico:
- Não há um passarinho
em el nino!
- É- diz Trancoso,
sem olhar pra ele,
mas pra Dulcineia,
amoroso:
- ... mas aquela que dá à luz, se é uma lâmpada
acesa, também choca que é uma beleza.
E há os... ovos... de páscoa!

Dulcineia se anima :
- Você agora me deixou sem rima...
Bozo,
maldoso:

A engenhosa tragédia de Dulcineia e Trancoso 77


- Se quiser,
lasco-a!

Trancoso,
quase que langoroso:
- Então é você a Dulcinéia,
que eu herdei de Quixote!
Pia como late meu peito: mais que um coiote: alcateia!
Sabe que me sentiria um blefe,
sem ás,
Oliveiras desarmado, desafiado por Ferrabrás,
se eu agora acordasse e visse que isto é um sonho?
Seria,
suponho,
um junho sem Santo Antonio,
petróleo sem Petrobras.

- E você é o tal do Trancoso,


danado de macho,
engenhoso,

- ... e você, a Dulcineia que surge do nada,


Maria, Frineia, conto de fada!

Ariano diz às TVs:


- É a hora rara,
pros dois,
vejam vocês,
em que a vida tem meta clara.
- .. Todo es serio... y divertido,
- ... o mistério é o já sabido.

O casal para.
Se encara.

7g A engenhosa tragédia de Dulcineia e Trancoso


Ariano,
vendo que Bozo assiste à cena,
diz,
humano:
-Que pena,
você,
agora:
é um circo sem acrobata,
é um paletó sem gravata,
um pobre Tonico, oco,
agora sem seu Tinoco
ou p1or,
1magine,
um Sicca sem Zavattini!

Bozo,
ardoroso:
- Por que uma mulher entre os dois?
Por que, se,
depois,
é o adúltero útero...
e os seios, que - apagadas as chamas -
são mamas no corpo efêmero?
Paixão?
Não.
É um lauto banquete, de que se omite,
cacete!, o arroto escroto
e o esgoto!

- Senhoras e senhores!,
acabam de ser assassinados na Grata dos
Angicos, pelos milicos, depois de cercados,
e de mil horrores

A engenhosa tragédia de Dulcineia e Trancoso 79


o Rei do Cangaço e a equipe que em seu torno orbita,
incluindo Maria Bonita!

O Astier telefona, urgente, pra Sonia Carona:


-- Como se não bastasse o discurso de que da
rocha desabrocha, amanhã, a catedral...
num mangue de sangue,
e que,
pra que isso aconteça, aqui estão, vivos
("Por incrível que pareça!")
Gandhy e Cervantes (e - de maior porte: a Morte!),
agora nos vêm dizer que Lampião - degolado
há séculos (Falta de juízo? Não!) -
acaba - como se o Tempo estivesse torto - de ser... morto!

Aí,
de repente,
ele larga o aparelho:
- Afundo!,
sente um tempo ... anterior
ao mundo.

A alma de Dulcineia,
leve como de vime,
pesa,
com esse crIme,
e ela se irrita
e grita:
- Bozo! Saavedra! Trancoso: pra Pedra!!!. ..

O épico é hípico!
Trancoso monta,
liga o terremoto da moto,

8) A engenhosa tragédia de Dulcineia e Trancoso


os faróis,
irrompem clarins e comandos,
taróis.

Já com chapéu de couro, dá - monumental


- o verde-louro da bandeira,
num gesto emocional,
à companheira,
que,
sem trepidar,
põe-se
no sidecar,
enquanto ele - num zape - solta a lança
"Vingança" do cano de escape,
e a estira - em riste - sem ver, sequer, o parceiro
que,
triste,
fica no meio do nada,
na estrada.

Mas- ora, meu deus - lá vai Bozo,


orgulhoso,
em carona - não de fulano ou sicrano, mas de... Ariano,
que agora,
em pelo,
va1,
de camelo,
junto do Saavedra, que corre equestre, na zebra.

A fila de vans- estacionada ao redor


da Yggdrasil - se abriu.
É ocupada,
ligeiro,
por tudo quanto é de jornalista - local, estrangeiro.

A engenhosa tragédia de Dulcineia e Trancoso 81


A trempe de mulher musculosa arranca, ruidosa, nas
suas belas e muito indiscretas, possantes motocicletas,

e
- Decolar! Decolar! - grita Sô Leo a
Ticiana e a Bonner e a seus câmeras,
e a Didier,
e a Sonia e ao Astier.

Coopta, áspero,
do helicóptero - o chão, já, a se afundar - "Decolar!,
todos - de imediato - a filmar!",
e tanto o dono do circo,
quanto o piloto (Birko)
e Sô Leo,
entusiasmado,
dão arrancada de galopes que se repete nos laptops,
e lá se vão as trombetas, cornetas, bombos,
tombos, carreiras, trombadas,
quedas,
viradas,
sustos e derrapadas,
doses de Filhos de Gandhy,
Mandreike - dândi, realmente elegante,
de fraque e cartola, num elefante,
a multidão - sedenta de guerra - dos Sem-Terra,
e a zoe1ra,
a poeira,
a leva de TVs cobrindo - com sanha já destravada,
partindo - a grande avançada.

ASSASSINATIONS, O GRITO de PARA


RIBA e HALLUCINATIONS
By Basílio (já no gatilho)

82 A engenhosa tragédia de Dulcineia e Trancoso


Lá vai Saavedra na zebra - dou
testemunho - despada em punho,
e me vem à memória - pra meu espanto -,
a cena de guerra em
Lepanto
e o desfecho:
arcabuzazos en el pecho
y uno - com gran perda - en la mano izquierda,
que se la destrozó.
Apesar do que,
segundo me disse, vivió, de algia em algia,
até que su vida rindió,
a los sessenta y nueve,
de hidropsía.

Nada mais louco, porém, do que o também nada


circunspecto - sob qualquer aspecto -- Sô Leo - a gritar,
enquanto agora pilota (próspero) o helicóptero:,
- Ao show!
Ou:
- Vamos pra além do que é - neste maluco
estado de Pernambuco - a Nova Jerusalém,
com o ma1or,
mais caro
(e o que vai mais fundo)
espetáculo ao ar livre
do mundo!

À PEDRA!

O refletor - ciclópico - da aeronave avança,


estroboscópico e sem entrave,
no grande sertão: veredas,

A engenhosa tragédia de Dulcineia e Trancoso 83


mil caminhões, carros e furgões em alamedas,
e,
logo abaixo de nós,
feroz,
veloz,
Trancoso,
na Rocinante,
Dulcineia ao lado, seios de fora, a cabeleira abundante,
ela em pé no sidecar,
tendo a tremular,
atuante,
nas mãos guerreiras,
a bandeira brasileira!

Já no Fogoso - cavalo capaz de alcançá-los - vai Bozo.


E,
em seguida,
o povão,
nele, a tropa de choque do Black Bloc,
com tiros pro ar, sem parar,
e os cavaleiros em pé nos estribos,
como em guerra de tribos.

iPhones, iPads, iPods, câmeras, celulares,


registram tudo,
aos milhares.

Vai a família - que urra e zurra, carrinho na ladeira


- agora sem macaxeiras, mas facas-peixeiras,
a Kombi - do orfanato (em ânsias de assassinato),
e,
em enorme auê - na NBC - os congos, troças,
frevo, cirandas, cavalos-marinhos;

84 A engenhosa tragédia de Dulaneia e Trancoso


violeiros,
emboladores, fandangos,
e caboclinhos,
além da horda da banda - a de pau-e-corda,
mais os pífanos, bumba-meu-boi, forrós,
raparigueiros, tropeiros, coisas dos cafundós,
e o bando de bacamarteiros - sempre certeiros.

É o Rocinante e o sidecar que trepidam, lépidos,


intrépidos, na escadaria - costelas de cantaria,
iluminados por tochas,
seguindo nos vãos das rochas.

A lua grimpa, limpa, no céu,


a clarear o escarcéu,
e a Ticiana - jornalista sempre, mas fatalista -
diz Que os telespectadores fiquem cientes
de que... a qualquer momento podemos ser derrubados,
tomados por batedores.

O Astier, então, faz a pergunta, com


resposta das mais difíceis:
- Onde estarão os caças, entupidos
de mísseis? Onde a Morte?:
será que nessas trincheiras, será nas escavadeiras?,
no coche,
que é o seu transporte?

O técnico de demolições, de repente,


surpreendentemente,
quase que grita "Pai!",
mas o "ai!" não sai:

A engenhosa tragédia de Dulcineia e Trancoso 85


as balas - depois dos ósculos - lhe
assanham as lentes dos óculos,
em teias de aranha.

Aí é que irrompem os caças


e - deles - flashes e estrondos,
incêndios,
fumaças,
enquanto a tropa enfurece
e desce,
topa nas facas,
e,
acuada,
recua,
fraca,
e vem a cavalaria e a carga de artilharia.

Chove molotov.

Ariano vibra,
com fibra,
Insano,
. .
corcove1a, morro acima,
e a rima que vê, do camelo - Saavedra-e-zebra
- faz com que se arrepie, dos cotovelos
aos tornozelos
e nem se dê conta- ao vê-los - do repentino
avanço (que não tem quem tranque) dos
tanques,
de modo que, quando pensa em mudar de rumo,
ca1,
a prumo.

86 A engenhosa tragédia de Dulcineia e Trancoso


O helicóptero de Sô Leo baixa... pra
quilométrica brecha na terra
e nela entra,
feito uma serra,
todos a filmar a contenda, de um lado e de outro da fenda,
com clássicas tomadas, como as dos cascos dianteiros
de um potro batendo firmes no chão e ficando pra trás,
enquanto os de trás tomam impulso
e vêm substituí-los à frente,
o dose de Bozo, do trote ao galope,
esporeando,
gritando,
e lá está a Dulcineia... e o estético, frenético
drapejar da bandeira, o rufar dos tambores,
pífanos, zabumbas, roncar dos motores,
tanques- que rugem - talando,
a infantaria atrás,
atirando,
um avião a baixar quase ao chão,
bombardeando.

No entorno da Pedra,
balas traçantes tiram finos em Cervantes,
e uma acerta o Mahatma
e o mata.

O espanhol,
na entrevista pra Ticiana sobre o que vem do futuro,
dissera,
em belíssimo furo,
sem alegria:
- Poesía. Dê-lhe, hasta el verso derradeiro,
- disse com pasión - la atención, ... de quien
conta dinero... ou lê notas en sinfonía!

A engenhosa tragédia de Dulcineia e Trancoso 87


Ariano,
em segundo plano,
diz que, na verdade, a mortandade,
embandeirada e cavaleirosa,
que se faz aqui,
será como prosa,
ante a miríada que seria necessária pra se criar uma Ilíada!

E,
de fato:
da palavra ao ato,
vemos a Morte criar,
sob nós - algoz - um rastro de sangue que nos aterra
e que vem dos etruscos e Tróia,
passa- em estúpida paranoia - pelos
desastres de la guerra,
de Goya
e dizima Hiroshima.

Trancoso acelera,
põe Rocinante ao par do Fogoso
no que ruge a Bozo,
feito uma fera:
- Vamos ao bang-bang, ao banho de sangue!

Bozo só vê Dulcineia:
- Megera!

-- Oxente - diz Ariano, ajeitando o pouco cabelo,


ao retomar o camelo - Que é da graça de Bom
Pixote, da lambança de São Chupança?
-- ~Esto no es comedia! - retruca o Saavedra, na zebra.
Ariano,

88 A engenhosa tragédia de Dulcineia e Trancoso


smcero,
severo:
- Se estamos aqui,
há de ser!
Alguma presepada há de ter.

Sô Leo,
então,
faz com que o povo cante
de novo,
agora do céu,
pelos alto-falantes do helicóptero,
know-how
do Apocalypse Now:

- Treme a treva, não a luz,


na eternidade,
teme à Terra, ao Sol e à Lua,
a onipotente Trindade!

E NADA PODE DETER


O QUE ESTÁ PRA ACONTECER.

Trancoso,
na Rocinante à toda,
intrêmulo,
sai das veredas
no estrépito do lábaro estrelado - estalos de labaredas.

Tático,
tem de ser acrobático,
pois a metralha que o ataca, a tudo retalha, estraçalha.
Um estilhaço - a ricochetear - bate no
sidecar e na armadura de aço.

A engenhosa tragédia de Dulcineia e Trancoso 89


Estronda e retumba a zabumba do
valente pivete, na camionete,
a zoada geral desnorteia.
Vem flecha de toda brecha,
a Morte, solta, campeia.

E eis o Trancoso
ceifando,
matando.

A bala (de um urutu) passa - com


pavorosa onomatopeia - perto
de Dulcineia
e arranca um juazeiro - inteiro,
mas a ramagem - cruzando a passagem
- zás!: joga a moça pra trás.

Há um vale-tudo: de caças a jato, flechas de botocudo.

E aí o Trancoso, no arranque, salta de moto


- raivoso - pras costas de um tanque,
e sobra,
adiante,
no ar,
ao lado da
Rocinante,
e
a voar,
encrava - mortífero - a lança na pança de um
helicóptero, as hélices em remoinho - "Sensacional!",
num grande e belo,
bem quixotesco final.

9() A engenhosa tragédia de Dulcineia e Trancoso


É VISTO, logo depois, ACORRENTADO
NO ALTO DA PEDRA,
DESACORDADO.

Acorda
ante a plateia;
vê Dulcineia - toda beleza, despida e
presa- na rocha mais baixa
e tudo se encaixa:
o Bozo,
choroso,
no vão entre os dois,
braços e pernas em xis,
o pelotão,
lá embaixo,
os fuzis,
e
lá atrás
a multidão - no estado de suspensão - à
espera do grande escarmento:
um triplo... fuzilamento.

A ordem,
que vem da Morte,
passa pelo Comando
e diz:
-- Mesmo que o Governo se
zangue,
antes que se desintegre a Pedra, que
haja o banho de sangue!,
e que o mundo veja - aberta a fenda - que só há,
nela,
a lenda!

A engenhosa tragédia de Dulcineia e Trancoso 91


Bozo,
apesar dos maus-tratos,
diz - tinhoso - que tem um banquete no
estômago, "incluindo os pratos".
E- que se fora, até então, desprezível,
risível, escória - morria,
por que não?,
com glória:

- Se a vida me foi... pequena,


que venha a magna cena!

- Moon! - diz Trancoso, indicando o Bozo,


ao fim de uma zoom - Here is your son!
- Sun! - completa a ideia, sentindo-se mais
poeta, e olhando pra Dulcineia - Here is
your mom!

Ouve-se a Morte, pela voz do Comando,


gritar, como pra evitar logro:
- Atenção, pelotão: preparar!
Pausa, de enorme tensão:
- Apontar!
E
- Fogo!!!!

Todos - depois do impacto - veem la sangre


a escorrer de las Piedras, de seus cumes
até o povo,
no mesmo silêncio de um ovo,
que traz...
pra nós,
dei gran mistério dei mundo,
... o novo!

92 A engenhosa tragédia de Dulcineia e Trancoso


RANGEM AS ENGRENAGENS,
TREME A TERRA,
Há UM RUMOR.
E horror!,
... mas a multidão se deslumbra:
na sombra que a todos obumbra, tudo, agora, relumbra:
a Pedra... se abre... como em corte de sabre,
e o que se vê
... é estupor!

Na escuridão
resplandece,
com todos os seus vitrais,
com profusão de torres
e imensidão de portais,
a catedral alumbrante
como se fora diamante.
E os anjos,
aos milhares,
... vão
do alto de seus pedestais,
prosares!

De Mandreike e Sô Leo,
ao Comandante e Astier,
de Ticiana a William Bonner,
à Sonia, Joubert, Didier,
o mundo... boquiaberto... vê o céu
- que Existe! - de perto,
com todos os seus sons - de violinos a
sinos, de coros a clarins - divinos!

Da rosácea central, el-rey - magnífico - vem, espectral,


e as tropas - dos dois lados - de joelhos,
fazem o pelo-sinal.

A engenhosa tragédia de Dulcineia e Trancoso 93


El-rey,
porém,
vem rindo,
o seu caminho abrindo
- 1Muy lindo!
e grita,
feliz,
voando,
à multidão comandando:
- De pé, de pé! Atenção!
El sueno de la razón produce monstruos.
Horribles. A fé, com superstição, é mestra de
tristes dribles! Criterio, imaginación,
tienem de entrar en acción
o no serán mas
possibles!

E diz, assim, de um por um,


s1m,
sem que escape nenhum:
- Sofrer e saber que morres,
sem nunca ver o que é isto!
Sem Deus jamais lhe dizer
"Existo!",
isso é - engano demais! - desumano!
Mas o milagre que eu trago,
e vou dizer de uma vez:
é
que
busquem
a lucidez!
Nada de fé,
que é a fonte da estupidez!

94 A engenhosa tragédia de Dulcmnea e Trancoso


E O FIM DO FINAL ACONTECE:
El-rey... some... esvanece,
e os anjos,
a catedral,
etc e coisa e tal.
Cervantes,
em seguida,
como era de se esperar,
sai do ar
... e da vida,
com Dulcineia e Trancoso
e Bozo.
Vão-se,
também,
sem ultimato,
os tanques,
o esquadrão de helicópteros,
caças a jato,
jornalistas se vão - nacionais,
estrangeiros-, inclusive Astier,
aqu1,
perde o poder,
também o nosso caro Ariano,
claro,
como era seu plano.

A engenhosa tragédia de Dulcineia e Trancoso 95


W. J. SOLHA
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O autor nasceu em 1941, em Sorocaba (SP); renasceu
em 1963, em Pombal (PB). Tem prêmios literários
nacionais com romances e um poema longo; e com
o filme O Som ao Redor recebeu o prêmio Guarani
de melhor ator coadjuvante de 2012, prêmio igual
no Festival de Cinema de Brasília, em 2013, por
Era uma vez eu, Verônica. É seu o libreto da ópera
Dulcineia e Trancoso, de Eli-Eri Moura - Recife, 2009;
UNIRIO, 2017. É autor do quadro Ceia, do Sindicato
dos Bancários da Paraíba, e do painel Homenagem a
Shakespeare, da UFPB.
Este livro foi composto em Sabon LT Std
pela Editora Penaiux e impresso em papel
pólen bold 90 g/m?, em maio de 2018.
(a irreverência, as marcações dramatúrgicas,
o fluxo lírico preciso), entregando um sertão
estilizado, mas não um sertão impossível, de
beleza forçada. SOLHA não se esquece do
sertão seco, duro, violento, trágico. São
jogos contrastantes de palavras - "de can-
cros e caranguejos" - com o melhor das
apropriações do cinema, da filosofia, dos
aspectos religiosos da cultura nordestina,
do universo dos vaudevilles. A reiteração
hispânica confirma o espírito de irmanda-
de, homenagem imediata a Dom Quixote,
mas também aos encontros literários entre
Portugal e Espanha, latinistas de origem.
Também merece realce o trabalho inter-
no com os hábitos, com as cores, com os
contornos, "a nordestina ousadia", a inteli-
gência e astúcia que SOLHA imprime como
se estivéssemos diante de uma procissão ou
de uma companhia de teatro itinerante.
Na escuridão
resplandece,
com todos os seus vitrais,
com profusão de torres
e imensidão de portais,
a magistral catedral
Excelente livro, somente eficiente sob a
pena de um escritor capaz de controlar,
sob o guarda-chuva da metalinguagem, a
fartura interna de estilos e referências.

DANIEL ZANELLA
editor do Jornal RelevO

Digitalizado com CamScanner


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