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EDITOR\ PE'\'ALUX
Rua :\farcchal Floriano, 39 - Centro
Cuarntinguctá, SP CEP: 12S00-260

penalux@cditorapenalux.com. br
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FOTOS
Andréia Solha

ARTE DA CAPA
Acrílica sobre tela de WJ. Solha.
"f: tão difícil!'". do acervo da lJFPB

CAPA E DIAGRAMAÇAO
Ricardo A. O. Paixão

Dados Internacionais de Catalogação na Publicaçiio 1CIP)

J83p SOLHA WLI+MAR Jos. 1941-


DEUS E OUTROS Q ARENHA PROBLEMAS / WL.DE.MAR
José SOLHA. - GUARAIIGUETA, SP: PALA, 2015.

l+8P.:2lcst.

ISB'.\ 978-85-69033-32-5

I POESIA I. Tito.
CDD 8869.1

Índices para catílogo sistemático:


1. Literatura Brasileira

Todos os direitos reservados


A reprodução de qualquer parte desta obra só é penitida
mediante autorização expressa do autor c da Editora Pcnalux
Sumário

Prefácio

UM 29
DOIS 33
TRÊS 35
QUATRO .. 37
CINCO . 41
SEIS 43

SETE .... 45
OITO 48
NOVE ....... ~

DEZ 53
ONZE. 56
DOZE . 59

TREZE . 60
CATORZE 65
QUINZE .... 67

DEZESSEIS 71
DEZESSETE . 73
DEZOITO ... 76
DEZENOVE . 78
VINTE 80
VINTE E UM
VINTE E DOIS 92
VINTE E TRÊS 93
VINTE E QUATRO a 4 a 4 _ i _ 94
VINTE E CINCO
VINTE E SEIS 04
VINTE E SETE 105
VINTE E OITO 108
VINTE E NOVE 110
TRINTA 13
DEUS 14
TRINTA E UM............................................................................... 117
TRINTA E DOIS . 123
TRINTA E TRÊS 24
TRINTA E QUATRO 125
TRINTA E CINCO 127
TRINTA E SEIS 28
TRINTA E SETE 31
TRINTA E OITO....................................................................... 132
TRINTA E NOVE 135
QUARENTA..................................................................... 138
Para lone,
pelas nossas bodas realmente de ouro.

Para Hilton Deives Valeriano, Expedito Ferraz Jr.


e Soares Feitosa, que me honraram com
suas apresentações deste livro.
Notas sobre a poesia de W. J. Solha

A criação poética de W. J. Solha se caracteriza,


mas do que por qualquer outro aspecto, pela ausência
de fronteiras: entre as diferentes linguagens (plástica, vi-
sual, musical, audiovisual) a que alude; entre as formas
e os gêneros literários que incorpora; entre os repertórios
culturais que assimila ( o erudito e o popular, o regional
e o universal, a arte clássica e a cultura de massa). DeuS
E OUTROS QUARENTA PrOblEMAS não foge a essa
descrição. E, embora não traga um subtítulo explicativo
como o seu livro anterior (Esse é o Homem: tractatus poé-
tico-philosophicus, 2013), é, tanto quanto aquele, um con-
junto de escritos de natureza híbrida (algo entre poesia e
ensaio) em que se desenha a espiral de uma reflexão que
é, ao mesmo tempo, memória, estética, história, teologia.
Este "ao mesmo tempo, que acabo de empregar,
traduz, aliás, a mais constante das inquietações que a obra
provocará no leitor, porque o movimento rápido dessa forma
que chamei de espiral nos faz mirar em muitos objetos si-
multaneamente. A começar pelo título, paronomástico, que
se utiliza expressivamente do recurso gráfico para multipli-
car sentidos ( o "Deus" que se estampa na capa deixa ver um
"eu" que contém e que talvez escondesse; como também se
entrelaçam "poemas e "problemas"). A (con)fusão sonora
e visual dessas quatro palavras entrelaçadas nos convida, de
saída, a um jogo, mas o seu significado está longe de se Ies-
tringir ao lance lúdico que propõe. Quando brinca com o
acaso linguístico dessas semelhanças, o poeta forja indícios
de motivação no suposto reino da arbitrariedade. E conden-
sa, então, em seu diagrama gráfico/sonoro, aquilo que o po-
ema inteiro buscará desvelar: o que há de essência humana,
histórica e subjetiva no divino; e o que há de miraculoso nos
prodígios da criação artística. O que acaba explicitado pela
expressão "e outros quarenta, que liga os pontos de todas as
combinações para sugerir que, além de ser essencialmente
"eu", Deus é um dos "problemas" (cultural? histórico? teoló-
gico?) de que trata a obra; mas é também um "poema vale
dizer: um problema estético e uma criação do Homem.
A ordem dos termos nesse diagrama, que deveria se
confirmar na sequência do livro, é outro elemento intrigante.
Quarenta poemas mais um, enfileirados, nos arrastam na-
quela espiral ligeira, em que ora assistimos a uma romaria no
Sertão da Paraíba; ora ouvimos a anedota de um trocadilho
ouvido de um amigo; ora lemos a desleitura de episódios bí-
blicos ou de capítulos da história universal. Entre eles, posi-
cionado como que aleatoriamente (ou seja: sem maior nem
menor evidência que nenhum dos outros textos), um poema
não numerado, mas intitulado "DeuS", resolve parcialmente
a equação. Parcialmente, porque mais forte é a impressão de
que esse tópico se estende pela obra inteira - interpretação
que poderia parecer mística, mas não o é. É antes impressão
que se pode constatar sem desviar os olhos das páginas. Para
explicá-lo, permito-me o parêntese de uma autocitação. É
que, a respeito de Esse é o Homem, escrevi, anteriormente:
"penso que a essência lógico-discursiva do poema seja antes
a afirmação do sagrado como criação humana, representado
no mesmo plano (e sujeito às mesmas tensões e contradições)
que as demais construções da arte e do imaginário" .1 Pois vejo
aqui um movimento semelhante, pelo que comentei acima
sobre o título e pela argumentação que se insinua, aqui e ali,
nas entrelinhas de cada um desses "PrObEMAS".O que me
parece é que a cada volta, a espiral desse discurso se afasta de
um ponto ao centro, sem jamais deixar de tê-lo como refe-
rência. Esse ponto é a indagação metafísica sobre as origens,
sobre a criação - do poema como análogo do mundo; ou do
mundo lido como um poema.
Tenha-se como medida o texto que abre a sequên-
cia, em que o tema da criação se desdobra, inicialmente,
numa dessas variantes: a da criação verbal. Tematizado pelo
refrão "todo poema PrObIEMA", esse primeiro texto glo-
sa o dilema moderno da chamada crise de representação. O
sujeito-lírico encarna a voz do Poeta, que, às voltas com a

I. "Esse é o Homem, de W. J. Solha". Correio das Artes (suplemento literário do Jornal


A União), João Pessoa, agosto de 2013.
imperfeição do seu ofício, se declara incapaz de criar... en-
quanto cria:

Gênio, não tenho.


Me empenho.
Essas palavras me soam
como "Os morcegos não são aves
mas
voam"

Paradoxo tanto mais expressivo se o Poeta vê poesia


também no mundo não-verbal (tanto assim que chama de
"rimas" as analogias visuais e conceituais que invoca) - o
que se revela nas referências a outras artes e aos próprios
eventos históricos.

Que poeta, o fotógrafo que flagra a rima entre a velha


- que vai, encurvada, na calçada -, e a sombra dela,
vulto enorme - urco, escuro - a segui-la, sinistramente,
no muro.
Que rima, entre a nuvem carregada
e Beethoven;
e entre a San Francisco destruída pelo abalo da terra,
e Berlim - pela guerra.

Veja o olhar do velho doente,


deitado,
em pijama,
a rimar com o do cão debaixo da cama.
E, no entanto, a comparação resulta pertinente, na
medida em que ele vê o próprio mundo como uma com-
posição, com a qual o poema que agora nasce teria que se
medir ("Enquanto isso, que poeta, o Sol..."), e descobre nesse
mundo não-verbal analogias da mesma ordem daquelas que
persegue - semelhanças na aparente disparidade dos fenôme-
nos (não é o que ocorre com as "palavras-valises" do titulo?).

Rima, também, no mesmo compasso, a distância no


tempo com a que existe no espaço,
onde datas se apagam, suprimem-se entalhes,
até que não se distinguem, mais, com detalhes, jornais
de ontem dos antes de ontem, nem rochedos e arvoredos,
no horizonte.

Emoldurada pela metalinguagem, toda essa reflexão


se desenvolve, simultaneamente, como uma estética e uma
espécie de teogonia muito peculiar, em que, preterida, a cria-
ção do poema vai se realizando na descrição de outras ar-
tes, das invenções humanas, dos acontecimentos históricos
- como se o acaso dessas analogias obedecesse a algum mis-
terioso princípio ordenador. São duas dimensões semióticas
que aqui se harmonizam através do símile e da metáfora: a
apreensão do mundo e sua representação pela forma poética.
É de notar que as rimas desse imenso poema, lido nas ima-
gens do mundo, envolvem associações as mais imprevistas,
como aquelas entre as realizações humanas e os acidentes na-
turais (veja-se o paralelo entre as rodas da carroça e o galope
dos cavalos, entre o desastre de San Francisco e o de Berlim,
entre o poema e laranjeiras, jardins, queda d'água).
Neste sentido, em Los hijos del limo, do poeta e
teórico mexicano Octavio Paz,2 há um capítulo intitulado
"Analogía e ironía que - excluindo-se as referências aos
movimentos literários de que trata, e aos seus respectivos
contextos históricos e sociais - poderia ser transcrito,
em grande parte, como comentário aos procedimentos
empregados por W. J. Solha. Veja-se, por oportuna, a
conceituação de analogia que nos dá o autor:

La analogía es la ciencia ele las correspondencias.


S6lo que es una ciencia que no vive sino gracias a las
diferencias: precisamente porque esta no es aquello,
es posible tender un puente entre esto y aquello. El
puente es la palabra como o la palabra es: esta es
como aquello, esta es aquello. El puente no supri-
me la distancia: es una mecliación; tampoco anula
las diferencias: establece una relación entre términos
distintos. La analogía es la metáfora en la que la al-
tericlad se suena unidad y la diferencia se proyecta
ilusoriamente como identidad. Por la analogía el pai-
saje confuso de la pluralidad y la heterogeneiclad se
ordena y se vuelve inteligible; la analogía es la ope-
ración por media de la que, gracias al juego de las
semejanzas, aceptamos las diferencias.

2. PAZ, Octavio. Los hijos del limo: del romanticismo a la vanguardia. In: La casa de
la presencia. Pocsía e História. Obras completas. México: Fondo de Cultura Económi-
ca, 1994, p. 396-397.
Pouco antes, referindo-se à concepção de poesia
em Charles Baudelaire, ele registrara também esta com-
preensão do universo como linguagem, muito próxima
daquilo que nos sugere o poema de Solha.

No un lenguaje quieto, sino en continuo movimien-


to: cada frase engendra otra frase; cada frase dice algo
distinto y todas dicen lo mismo. [ ... ] El mundo no es
un conjunto ele cosas, sino ele signos: lo que llamamos
cosas son palabras. Una montaa es una palabra, un
río es otra, un paisaje es una frase. Y todas esas frases
están en continuo cambio: la corresponclencia univer-
sal significa perpetua metamorfosis. El texto que es el
mundo no es un texto único: cada página es la tracluc-
ción y la metamorfosis ele outra y así sucesivamente.
El mundo es la metáfora ele una metáfora . ..3

Não estranha, pois, em DeuS E OUTROS QUA-


RENTA PrOblEMAS, a comparação entre o poema verbal
e esse outro, feito de conceitos, processos e imagens. Nem
estranha que o Poeta desejasse criar algo capaz de refletir a
lógica de correspondências que apreende no mundo não-
verbal. Ou, mais que isso, que o poema, uma vez criado,
nos desse a impressão de ter existido desde sempre, como
se, naturalmente, fizesse parte do mundo.

Como evitar, porém, que o poema seja um rio não ma-


peado, que a vereda cruze... e saia seca do outro lado?

3. Op. cit., p. 395.


Como fazer com que, criado, ele cause a sensação, an-
terior, de que faz falta, como ao Corcovado faz - no
Rio Antigo - o Redentor?
Como criá-lo com a naturalidade com que laranjeiras
dão laranjas,
e os jardins - em seus delírios - cravos, orquídeas, cachos
de lírios, a força da natureza irrompendo, sem planos,
com o mesmo ímpeto da Torre do Diabo, ao vir do chão,
gigantesca, nos Estados Unidos, há 40 milhões de anos?

Parece-me que esses versos de Solha dialogam com


um antigo topos literário ( ou revisitam um arquétipo): o
da busca pelo ideal do poema sem margens: a utopia da
extinção das fronteiras entre a poesia e a vida - de cuja
tradição, ao longo de toda a história da literatura, Leyla
Perrone-Moisés nos dá este elucidativo panorama:

Vimos, frequentemente exposta, a aspiração dos escrito-


res-críticos ao Livro-Cosmo, aquele livro que é um uni-
verso em si mesmo, e a admiração pelos escritores que
perseguiram, de diferentes maneiras, esse objetivo: Dan-
te, em sua Comédia; Donne, em Do progresso da alma;
Mallarmé, no projeto do Livro; Joyce, em Ulisses. A as-
piração ao Livro-Cosmo é tão antiga quanto o próprio
objeto livro. O modelo ideal é o texto sagrado das religi-
ões, transcriação da palavra divina, ou o texto esotérico
transmitido entre iniciados. Em nosso mundo ateu e lai-
cizado, esse ideal se manteve como utopia substitutiva
e tentação prometéica. O que se modificou, segundo o
autor, foi a fundamentação filosófica. Nos românticos
alemães, esse projeto tinha uma base mística; F. Schle-
gel fala de "um livro infinito, o absolutamente livro, o
livro absoluto", cuja totalidade e coerência decorreriam
da profunda unidade do universo, emanada, em última
instância, da divindade. Esse Livro seria o equivalente
escrito do "texto" da Natureza, escrito por Deus. Nos
modernos, o Livro é projetado como construção verbal,
espetáculo ideográfico, produção de um mundo para-
lelo contraposto ao mundo esfacelado, sem sentido, do
real moderno. Permanece a nostalgia do Todo perdido,
sem que subsista a crença nesse Todo ideal. A poesia mo-
derna, como diz Paz, não é serva, mas rival da religião.'

De fato, se há uma dimensão que se possa cha-


mar (apenas metaforicamente) de mística, em DeuS E
OUTROS QUARENTA PrOIEMAS, ela surge de um
olhar irredutivelmente estético lançado sobre o mundo,
e ganha a forma de contemplação maravilhada das reali-
zações da arte, da técnica, da História e dos fenômenos.
Quanto à religião, propriamente dita, o que se vê é um
empenho na desconstrução, não apenas da mitologia,
mas sobretudo da lógica cristã, e a ênfase na afirmação
de seu caráter histórico-cultural - como no poema inti-
tulado "DeuS" se descreve a construção da divindade a
partir de empréstimos, analogias e traduções de outros
mitos (indiano, egípcio, grego).
Considerem-se, também, neste aspecto, os poemas
quinto e nono do livro. Aquele, um exercício declarado de
refutação (por meio da ironia) do discurso do cristianismo:

4. PERRONE-MOISÉS, L. Altas literaturas: escolha e valor na obra crítica dos escri-


tores modernos. São Paulo: Companhia das Letras, 1998, p. 162.
Você não é cristão, claro, ou isso lhe custaria caro.
Pra começar, não se ocuparia com o dia de amanhã.
Nada desse afã com o plano de saúde, poupança, va-
cinação, educação, previdência,
e,
a caminho da indigência,
não iria, também, trabalhar, evidentemente. Pois olhe
as aves do céu, demente:
se não metem um prego numa barra de sabão e o Pai
as alimenta, quanto mais a você, que crê?...

E o último, um quadro realista, recriado de uma cena


assistida pelo autor ("Pombal, Sertão da Paraíba / anos 60"),
que registra num ácido comentário o despropósito de práticas
rituais muito típicas da religiosidade brasileira.

Acordo - recordo-, ouvindo do lado de fora a multipli-


cação de passos, o vozerio distante, como que clandes-
tino - de um hino que vai aumentando,
a multidão logo passando, cantando,
abro a porta na hora morta, e é o Frei Damião, cur-
vo, ligeiro, liderando velas e candeeiros de um surto de
fanáticos,
e,
ignorância espessa:
coroados de espinhos - centenas de lunáticos - pedras
nas cabeças.

Quando a curva do discurso (sem deixar de muar


no tema do sagrado) se inclina ligeiramente para o outro
polo temático do livro - o da criação estética -, a leitura
não é menos inquietante. Os poemas sétimo e oitavo nos
dão exemplos disso. Ambos condensam uma argumentação
que parece definir a concepção de estética do autor, a qual
consiste, ao que me parece, em ( 1) ignorar estratificações ou
hierarquias entre os fatos estéticos (tomados aqui num senti-
do muito amplo), senão as que tenham por critério valores
como a beleza, o prazer e a inventividade; e (2) situar o estéti-
co numa posição de primazia entre todos os feitos humanos.
O primeiro argumento se expressa no desdém pe-
los limites conceituais entre popular e erudito, entre arte
canônica e cultura de massa, entre regional e universal.
Essa desierarquização assume, no sétimo poema, a for-
ma de uma releitura ( em chave estética) do conceito de
perfeição, que ali se aplica indiscriminadamente às expe-
riências cotidianas mais corriqueiras: "O primeiro gole
de cerveja - bem gelada - em dia de muito calor. .."; a
beleza de um lance de futebol; o trocadilho espirituo-
so de um amigo ("S6 vi ética na Rússia!"); mas também
à fruição da arte, em suas mais diversas manifestações:
"Gene Kelly cantando e dançando na chuva ..";"O aba-
jur art nouveau, de Comfort Tiffay"; "A máscara mortuá-
ria de Tutankhamon"; o canto de Kathleen Battle; "o Las
Meninas, de Velásquez; a arquitetura de Gaudí... além
das menções literárias a Homero, Affonso Romano de
Sant'Anna, Sérgio de Castro Pinto, Zé Limeira - entre
outros motivos para a mesma exclamação: "Perfeito!".
O poema que se segue ilustra a segunda proposição:
a do lugar privilegiado da arte entre todas as realizações
humanas. E o faz por meio ele uma inversão de perspecti-
vas, reescrevendo a História de um ângulo imprevisto, em
que tudo que ocorre de grandioso (inclusive as tragédias) é
tomado como ensejo para o advento de uma grande cria-
ção humana. O texto é, pois, uma celebração do gênio ...

Quando Barcelona está pronta,


eis o Gaudí.
Eis o Velásquez que chega, quando está pronta Madri.
Pronta, Paris tem Rodin; e Amsterdam,
o Rembrandt...

Mas é, ao mesmo tempo, a constatação irônica de


uma espécie de fatalismo, em que guerras e massacres são
tomados como uma espécie de contrapartida - o preço a se
pagar pela existência das obras cuja criação motivaram.

Mas isto me dói:


sem a invasão napoleónica, nem Guerra e Paz, nem
Tolstói.
[ ... ]
E ... não haveria Os Sertões, sem o fim de Canudos...
e de suas armas e varões.

Percebe-se uma gradação nessas duas maneiras de


considerar a experiência estética. Uma variação ele escalas na
representação do tema. Inicialmente, ele surge como experi-
ência individual, cotidiana; depois em sua dimensão históri-
ca. No primeiro caso, as centelhas de perfeição são "exceções"
aos momentos em que "a vida se faz insuportável", suficientes
todavia para "torná-la experiência, / apesar de tudo, /
maravilhosa". No segundo, a existência da grande obra de
arte, projetada contra o pano de fundo da História, ocupa
um dos pratos da balança, medindo-se com o turbilhão de
violência que está do outro lado.
Lidos em conjunto, esses dois poemas armam um
jogo de premissa e conclusão, em que o primeiro contexto
justificaria o segundo. Algo como: se o prazer de ver a dança
de Gene Kelly justifica a vida, no plano individual, o prazer
de fruir as grandes obras de arte redimiria a Humanidade?
Em outras palavras: para o Homem que, sem Deus e sem
eternidade, caminha como condenado pela ampulheta, cuja
"invisível areia ... lenta - ou rapidamente o sepultará", Arte é
salvação? O poeta não chega, entretanto, a formular - mui-
to menos a responder - essas perguntas-provocações a que
sua argumentação nos conduz. Tanto melhor, porque assim
ele franqueia ao leitor o lugar do confronto, da interação, da
interlocução com o poema. E os temas (Deus, o Homem, a
Arte, o Tempo, a Morte), na poesia de W. J. Solha, não admi-
tem passividade.

Expedito Ferraz Júnior


Poeta. Professor de Teoria Literária da UFPB
PROBLEMAS
W. J. Solha

Gênio, não tenho.


Me empenho.
Essas palavras me soam
como "Os morcegos não são aves
mas
voam".

Como evitar, porém, que o poema seja um rio não mapea-


do, que a vereda cruze ... e saia seca do outro lado?
Como fazer com que, criado, ele cause a sensação, an-
terior, de que faz falta, como ao Corcovado faz - no Rio
Antigo- o Redentor?
Como criá-lo com a naturalidade com que laranjeiras dão
laranjas,
e os jardins - em seus delírios - cravos, orquídeas, cachos
de lírios, a força da natureza irrompendo, sem planos, com
o mesmo ímpeto da Torre do Diabo, ao vir do chão, gigan-
tesca, nos Estados Unidos, há 40 milhões de anos?

29
DeS 1 PrObIEMAS

Sinto-me, no entanto, levado pelo mesmo impulso - pri-


mitivo, um tanto técnico, artístico, prático, místico - dos
que ergueram o grande círculo de Stonehenge além das
possibilidades
e meu problema começa justamente quando não consigo
sequer definir esse ... xís - versátil, esperto, cheio de êstases,
paichões e ezageros sem nékso, incerto - que assume o ...
compromisso de fazê-lo,
aqu1,
nesta humana, precária, caixa craniana.

Ah,
nem ao menos tenho um plano de como flagrar coisas
como o trem que me leva, estação a estação, no ano!

Enquanto isso, que poeta, o Sol, quando ao ver o preso a


dormir no chão, passa-lhe, pela grade, a tepidez de seu
cobertor xadrez.
E os Beatles, que mestres! Cruzando a faixa de pedestres
da Abbey Road e, na verdade, como se vê, a capa do Abbey
Road, LP.

Que poeta, o fotógrafo que flagra a rima entre a velha -


que vai, encurvada, na calçada -, e a sombra dela, vulto
enorme- urco, escuro - a segui-la, sinistramente, no muro.
Que rima, entre a nuvem carregada
e Beethoven;
w. J. Solha

e entre a San Francisco destruída pelo abalo da terra, e


Berlim - pela guerra.

Veja o olhar do velho doente,


deitado,
em pijama,
a rimar com o do cão debaixo da cama.

Rima, também, no mesmo compasso, a distância no tem-


po com a que existe no espaço,
onde datas se apagam, suprimem-se entalhes,
até que não se distinguem, mais, com detalhes, jornais de
ontem dos antes de ontem, nem rochedos e arvoredos,
no horizonte.
Poema ... é problema, se não se sabe fazer o ovo já com
gema; o abacate, com caroço; a necrópole já na metrópo-
le; a carne já com o osso.
Há uma rima entre o ser e o não ser... que não sei como
fazer,
nem a da noite com o dia, tristeza e alegria; o tudo e o
nada, e - na mesma escalada - o não e o sim, e o zero e
o um ( no sistema binário - extraordinário, complexo e,
ainda assim, comum ).

O mote "elo perdido" finco - atrevido - na locomotiva


a vapor, que em 1845 puxa - pela primeira vez, é de se
supor - três carruagens, tipo diligências, que são rimas e

31
Deu$ + PrObIEMAS

embriões ligeiros das longas sequências futuras de vagões


de passageiros.

Quem
tal poema ... evolucionista ... superaria?

Há quem possa rimar melhor que a carroça,


em que o galope do cavalo tem tradução simultânea nas
rodas, a arredondá-lo?

Quem cria versos que superem a creche ele flores em festa,


na seriedade da floresta,
a geometria fractal e o sossego
das ruinas de um templo grego?

Todo poema é um problema.


Não posso, como a onze-horas, pô-lo a desabrochar todo
dia perto do meio-dia, feito artefato solar,... ou guarda-chu-
va que, convocado, é o único guarda inofensivo, ... arma-
do.
Não posso, como a flâmula, bandeira, materializar o ven-
to, enquanto à multidão inflama.
Ou,
como o espelho - discreto, desmemoriado - tudo transmi-
tir ao vivo,
sem nada deixar
gravado.
w.J. Solha

Todo poema é problema, se não é mais ou menos exato


como o prato no tamanho da fome; o copo, no da sede; a
cama, no do sono. Como o exótico, nacionalista halo... de
Carmem Miranda e Frida Kahlo.

Todo poema é problema, quando não eterno como a


maçã que agora abocanho e é neta, tataraneta da que vejo
- igualmente fresca - no quadro antigo, ao lado de um
crânio - oco como um coco -, igual ao do estranho ros-
to - de ossos, os nossos - que trago sob meu rosto, e que
emerge feito um fantasma ... feliz, sempre, em meu retrato
de raios-x.

Todo poema é problema.

-oa
u

O que pode haver... de mais ... irreal. .. que o fato de que


nenhum autor,
em toda a literatura universal,
ter,
até hoje,
conseguido - como seria de se supor - a Shakespeare... se

33
DeuS E OU1Ros PrObIEMAS


1gua ] ar... e - por que nao..-
- 3 3
superar:,
mesmo com todas as sumidades e mil entidades de todas
as áreas,
reais ou imaginárias,
que vieram depois dele,
para a todos ... assessorar?
Mesmo com os grandes momentos - tantos - que têm
ocorrido
no tempo até então decorrido,
que ... poderiam ... ser temas ... de grandes poemas, de obras
densamente dramáticas
e estéticas,
como a Revolução Francesa, de trágica beleza,
ou o fim do império otomano, britânico, francês,
do espanhol, português,
a União Soviética,
mais as guerras - mundiais -, o Holocausto, explosões
nucleares ...
e o ma1s:
o computador,
meu deus,
que foi desmesurado avanço na ... shakespeariana ... pena
de ganso!

O problema é que, ainda que com disfarces, realces,


renas não são alces.
W. J. Solha

Tenta-se ser o Poeta,


como tenta ser como a mãe, com saltos altos,
a menina inquieta.

A diferença ... que há


... é que ela chega lá,

como a Saint Paul, de Londres, e o Capitólio americano


chegaram ... à cúpula, duomo de São Pedro,
em Roma,
ou,
pelo menos,
à de Florença,
que tem o genoma do Panteão romano,
dos imperadores Agripa
e Adriano.

u
dl
o:
F-

Há o carisma, essa força estranha, também na presença da


Arte,
como no corisco que ilumina a seco os estigmas do São
Francisco
de El Greco.
DeuS 1 POBIEMAS

É o que sente quem salta da barreira dos poucos centímetros


quadrados das fotos do Las Meninas, de Velásquez, vistos
a vida inteira,
pro espetáculo forte
da bela tela prata, cinza e pérola
de grande porte.

Mas... os olhos ardem, também, com lágrimas retidas ante


a vasta Vista de Naarden, de 30 por 60 centímetros,
em que Ruisdael põe uma clareira de luz aqui e, ao fim do
campo que se estende em escuro silêncio sob muitas nu-
vens, ali, a minúscula porque distante torre branca - um si
bemol - iluminada de sol.

Porque há,
em ti,
momentos próprios pra ouvir... uma delicada peça pra piano
de Satie,
em que seria ... heresia ... uma Paixão segundo Mateus,
de Bach,
que normalmente te extasia.

Daí haver o gênio incomum - que cria coisas como o


outdoor vermelho com decrescente série de ondulados
e dourados emes da Mcdonalds fazendo um deliciado
Mmmm
e preciosidades como a marca Mother & Child,
W. J. Solha

em que se insere o & - com imenso afeto - no O do Mo-


ther,
feito um feto!

Há essa chave do tamanho em toda parte, em Arte, em que


o importa é a luz que passa pelo seu prisma, o carisma,
o ... pulo do gato,
profano,
de fato felino ato divino
no humano.

A paixão pelo canário Cesário Verde é psicótica, como a


que tem pelo azulão Mallarmé e pelo galo-de-campina
Dante, que canta numa gaiola
gótica.
E ele cria,
ainda,
um cara - Lousânio Verdésio - que lhe fustiga os versos,
dizendo-lhe que Tudo, seu, é cópia de cópia, espessa fraude
verbal,

37
Deu$ touros PrObIEMAS

e vai ver o amigo Lúcio Lins no hospital... e dá com Va-


nildo de Brito - outro poeta pelo qual tem muito carinho
- no quarto vizinho, também morrendo de câncer,
pelo que foge dali como de um panzer
e bebe no Bar do Baiano.

Bebe no Bar do Baiano,


quase com aflição,
anotando que Alguma coisa mais forte que minha vontade
me impulsiona para esse mundo estranho:
desgraça,
desamparo,
desolação,
e escandaliza ao proclamar nos jornais que odeia a Poesia
e ao relacionar - como os que de nada se compadecem -
os poetas locais que o enfurecem.
Mas a Vitória Lima lhe diz,
com razão,
que ele deslumbra com títulos como Caligrafia das Lé-
guas, São teus estes Boleros, Desolado Lobo
e,
de quebra,
Comarca das Pedras!
Mas ele bebe no Bar do Baiano.

De dia não leio, diz: estudo.


À noite - longe do que detesto há o resto,
W. J. Solha

ou tudo:
prazer, silêncio, a solidão da leitura seletiva, contínua, cir-
cular, interconectada e
dispersiva.

E bebe no Bar do Baiano.


Bebe no Bar do Baiano.

Apaixonado colecionador de livros, de repente se alegra ao


completar a tetralogia do cascudólogo Américo de Olivei-
ra Castro, através de livreiro de Natal,
o que não o impede, afinal, de sublinhar em Paul Auster,
que artistas sofrem e não se encaixam neste mundo e bus-
cam outro.
É claro, pois ele sente ... que o seu se parte dentro dele.
E bebe,
bebe no Bar do Baiano.
Porque há um calor insuportável, porque há um trânsito
insuportável, a cidade é insuportável, a rotina é insupor-
tável,
pelo que se alivia - com aviso prévio - a ouvir Amorério
e se pergunta triste - se Deus existe, embora os Concer-
tos Brandenburgueses o façam pensar que alguma coisa há
- e não a entende - que nos transcende.

Réplica em corpo e alma do explosivo e genial Gau-


guin, adora, no entanto, Van Gogh, em quem vê o que

39
Deu$ 1 PrOblEMAS

ele mesmo tem, ou não: vitalismo, desespero, paixão e a


desmedida ... um sentimento trágico da vida.
Ah, e me vingo das tardes de domingo, desejando que meus
inimigos a tenham a mais não poder, enquanto eu viver!

E bebe no Bar do Baiano.


Bebe.

Ante o velho tamarindo de Augusto dos Anjos,


sente,
demais,
a intensidade latejante da verde várzea, o espaço e o tempo
em imagens dissonantes,
radicais,
inquieta-se - mudando o discurso - com a ideia de um
poema/percurso,
e bebe.

Feito El Greco ante Toledo, vê, na distante terra natal, só


o sol e pedra calcinados
e nuvens,
que são fantasmas alucinados.

Aí o coral da universidade apresenta Oratório do Rio, com-


posto por Tom K em cima de seus versos, e ele bebe no
Bar do Baiano.

40
W. ]. Solha

Mando-lhe um poema,
como Franklin ao empinar pipa com para-raios durante a
tempestade, e me surpreendo com a carta entusiasmada,
tão brilhante, que deslumbra Affonso Romano de SantAn-
na, Ivo Barroso, Esdras do Nascimento, Ruy Espinheira,
Carlos Trigueiro e Sérgio de Castro Pinto.

Mas ele bebe no Bar do Baiano.


bebe no Bar do Baiano.

0
2
-
z
à

Você não é cristão, claro, ou isso lhe custaria caro.


Pra começar, não se ocuparia com o dia de amanhã.
Nada desse afã com o plano de saúde, poupança, vacina-
ção, educação, previdência,
e,
a caminho da indigência,
não iria, também, trabalhar, evidentemente. Pois olhe as
aves do céu, demente:
se não metem um prego numa barra de sabão e o Pai as
alimenta, quanto mais a você, que crê?

41
DeuS t PrObIEMAS

E,
se a sua meta de perfeição é séria, vai, realmente, ficar na
miséria,
pois passará tudo que tem nos cobres, que repassará aos
pobres.
E,
se nesse processo de excesso, levar porrada numa face e
oferecer a outra ao tapa,
e se lhe roubarem a roupa, der também - como se manda
- a capa,
nem será preciso tanta indústria pra que entregue, tam-
bém, a pátria, pois não resiste ao mal e, por irreal que seja
a onda de castigos, amará os seus inimigos.
Tudo bem, porém, pois, se nessas alturas já não tiver, real-
mente, ego
e,
de superego,
nada,
não se preocupará se, de repente, ficar maneta e cego, pois
o velho evangelho diz que Se o seu olho lhe causa escândalo,
arranca-o como um vândalo,
e
se o pecado é o de sua mão, corte-a, sem hesitação.
Afinal,
algo que - se você for cristão - o confortará, em toda essa
anarquia que tem o Céu como utopia,
é que ... nada importa,

42
W. ]. Solha

pois, cumprindo o que Cristo disse, ainda em Sua geração


houve o apocalipse, e a humanidade está, há dois mil anos,
morta.

-
u
ILI
,n

É de Piero della Francesca o afresco Ressurreição, que a


vila de Sansepolcro caia,
sem reação,
como indigno da terra de tão bello e sinistro nome,
que assim o amortalha, com Piero vivo, no interior da Itália.

O que há de ser, no entanto, tem muita força, como se lê


n A Bagaceira, em que se reformula, queira ou não queira,
o que diz o vidente do Édipo Rei: o mesmo Que Será,
Será, sucesso da Doris Day.
A cal pura conserva a pintura e,
lentamente,
( nos quatro, cinco séculos de hibernação )
se faz ... transparente,
de modo que o Cristo... se salva na parede alva, em fantás-
tica Revelação... mística, ... fotográfica, justamente quan-
do ali chega aquele que, com certeza, é um dos mais emi-
nentes integrantes da elite intelectual inglesa,

43
PrObIEMAS

autor - já pronto - de vasta obra futura,


em que se incluem Admirável Mundo Novo e Contrapon-
to -- de ficção -, e ensaios da maior envergadura,
como A Arte de Ver e As Portas da Percepção.
Mil e novecentos e vinte e pouco. Ele fica ... louco pela
que lhe pareceu - por tudo em que il maestro nela fora
mais fundo- a mais bela obra do mundo, e arcangélico
o que nela se conseguira a partir da perspectiva de Bru-
nelleschi, luz de Fra Angélico, a massa volumétrica de
Masaccio dando destaque ao que mais havia de belo nas
geometrizações de Uccello.

A descoberta é um ... sismo,


pela influência intensa que outros quadros e os tratados de
matemática, de Piero,
já tinham no modernismo,
quando - Arte em pane - Cézanne fora buscar, sem me-
lindres, no distante italiano, a sólida, insólita redução dos
objetos - todos - a cones, esferas, cubos, cilindros.

Mas, inoportuna, a Roda da Fortuna faz, mais uma vez,


do "reinarei" o "eu reino",
desce então pro "reinei",

e Sansepolcro - na Segunda Guerra - cercada, bombardea-


da, está prestes a ser arrasada, quando antes que tudo detone
O capitão, que é da artilharia inglesa, se lembra do quadro

++
w.J. Solha

- Resurrezione! pelo que, após um momento de apavorada


incerteza, grita o que - urgente - lhe acode à mente:
- Stop
the
bombardment! ! !

- Vai fundo! - minha mente diz, aprendiz, ao ver que Pie-


ro morre no dia em que Colombo vê um novo mundo,
Il dodici ottobre mille quattrocento novanta due.

- 1ama1s
recue.

I
t-
I
"'
O primeiro gole de cerveja - bem gelada em dia de mm-
to calor: perfeito!
Ronaldinho Gaúcho dando um lençol em Rey, driblando
o goleiro Rojas e marcando seu primeiro gol pela Seleção
Brasileira: perfeito!
O amigo Balduíno acocorando-se no que gira o corpo nos
calcanhares e dispara - quase simultâneos - um tiro em
cada vértice de um pequeno triângulo na parede, a vários

45
PrOblEMAS

metros de distância: perfeito!


Outro amigo, Vandal, há anos, rindo ao dizer, ante as bar-
baridades de toda a Europa:
- S6 vi ética na Rússia!
Perfeito!
Ah,
Gene Kelly cantando e dançando na chuva: perfeito!
O abajur art nouveau, de Comfort Tiffany: perfeito!
A máscara mortuária de Tutankhâmon, de ouro e lápis-la-
zúli: perfeita!
Kathleen Battle cantando o Agnus Dei da Missa da Coro-
ação de Mozart, Una Voce Poco Fa, de Rossini, e Eternal
Source of Light Divine, de Handel: perfeita!
O pas-de-deux de Vladimir Vasiliev e Natalya Bessmerto-
nova no Spartacus de Khachaturian: perfeito!
O Las Meninas ele Velásquez, pelos vãos que há entre elas:
perfeito!
A coreografia de Pina Bausch para The Dance of Blessed
Spirits, de Ghuck: perfeita!
O quadriculado azul-e-branco nas torres mouriscas da
Casa Vicens, de Gaudí: perfeito!
Homero, quando faz Heitor - ao chegar da batalha - tirar
o elmo com enorme crina de cavalo, pra mostrar ao filho
apavorado que é só o seu pai chegando de mais um dia de
batente: perfeito!
Affonso Romano de Santana ao versejar que a catedral de
Colônia é o Himalaia do Eu: perfeito!

46
w.J. Solha

Castro Pinto dizendo que a girafa tem um quê de Audrey


Hepburn: perfeito!
Zé Limeira, ao rimar que se você for um filósofo, mandará
fotografá-lo, e- S€ for fotógrafo - filosofá-lo: perfeito!
Bill Gates, quando acreditou no software e previu o mun-
do tomado por personal computers, tornando ele mesmo
isso possível: perfeito!
Larry Page e Sergey Brin, ao criarem o fabuloso site de
busca para a internet: perfeitos!
Falar com a família pelo telefone - lá de Lisboa - como se
você estivesse do outro lado da rua: perfeito!
A bela arremetida de um Boeing, deixando as mazelas do
mundo pra trás: perfeita!
A ilusão de que o sol nasce, quando, na verdade, a Terra é
que se move: perfeita!
A cintilante superfície do DVD com Rastros de Ódio, de John
Ford, ou a Paixão Segundo São Mateus, de Bach: perfeita!
Ah,
um repente de Oliveira de Panelas, uma declamação de
Jessiê Quirino, a ópera Nixon in China, de John Adams:
perfeitos!
Claro,
hay momentos en que la vida se hace insoportable,
mas nela há uma série de exceções como essas, suntuosa,
pra torná-la experiência, apesar de tudo,
maravilhosa!
Deus 1 PrObIEMAS

0
-
F
0

Quando Barcelona está pronta,


eis o Gaudí.
Eis o Velásquez que chega, quando está pronta Madri.
Pronta, Paris tem Rodin; e Amsterdam,
o Rembrandt.

Mas isto me dói:


sem a invasão napoleónica, nem Guerra e Paz, nem Tolstói.

Quando os Estados Unidos, em Milwaukee; a Itália, em


Cremona; a Velha Inglaterra, em Derby
estão prontos,
têm a Harley-Davidson, o Stradivarius, o Rolls-Royce

e Dublin tem os contos, romances - vários - de James


Joyce.

Séculos,
pra que Brooklyn, Nova Iorque - where dreams come true
- gere, além de
Manhattan, Rhapsody in Blue... e Viena tenha o requinte
de Klimt, quando Londres se permite Virgínia Woolf e o
Eliot na mesma Queen Victoria Street.
W. J. Solha

Olinda, porém, só tá pronta, tonta, quando pela Olanda


abrazada
e eis - sem favor - a genialidade dO Valeroso Lucideno e o
Triunfo da Liberdade,
de Frei Manuel Calado do Salvador,
bem como - tire-se o chapéu - a História dos Feitos Prati-
cados por Nassau durante oito anos no Brasil, de Barléu.

Séculos, até Os Dez Dias que Abalaram o Mundo ... de


John Reed,
e
Reds,
no mesmo p1que,
quando Warren Beatty filma a vida do ianque bolchevique.

E ... não haveria Os Sertões, sem o fim de Canudos ... e de


suas armas e varões.

LI
~
z

Em sonho,
vejo auroras boreais, austrais,
("Neva", suponho ),

49
DuS1 PrObIEMAS

e acordo - recordo -, com calor e sede,


na rede,
em ... Pombal, sertão da Paraíba,
anos 60,
sentindo-me ... mal,
pois algo ... me desorienta:
um rumor... de compressor ou grande ... transformador,
até que,
tendo a rota da fonte, pulo a janela defronte e, no meio
da rua, sozinho,
enrolado no lençol. .. de linho ( antediluviano romano ),
vejo o que me tumultua:
a mística, mítica, profana "nuvem mariana",
que vinga no mês de maio, na caatinga, passando baixa,
em resmungantes hostes,
cheia de triscos, coriscos, logo acima dos postes.

Acordo - recordo -, ouvindo do lado de fora a multiplica-


ção de passos, o vozerio distante, como que clandestino
- de um hino que vai aumentando,
a multidão logo passando, cantando,
abro a porta na hora morta, e é o Frei Damião, curvo, ligei-
ro, liderando velas e candeeiros de um surto de fanáticos,
e,
ignorância espessa:
coroados de espinhos - centenas de lunáticos - pedras nas
cabeças.
W. J. Solha

Acordo - recordo - com cinco, seis anos,


e brinco, ainda, tristonho - não sei por quais danos - num
sonho,
mas um calafrio me põe no insano frio do inverno soroca-
bano,
e,
numa fresta de luz, passa o vulto - é o que se deduz - de
meu pai... que se vai, no corredor, vestido num macacão -
expirando vapor - com chapéu,
com o que - sem escarcéu - saio da cama, do quarto, aten-
to lagarto, e enveredo - feito uma bala - pra sala, cuja por-
ta se fecha, e ouço, crescente, por tudo quanto é brecha,
lá fora, gente em conversa como que numa caixa, uma
igreja - em voz baixa. Encosto, de primeira, o encosto da
cadeira sob a janela, que abro, vejo as luzes da rua e uma
bela lua e, é o que imagino, quase que descrendo: meu
pai: descendo, com operários em caravana, pra Estrada de
Ferro Sorocabana,
cruzando com trabalhadores sofridos que vêm da fábrica
de tecidos,
nada belos, picumãs nos cabelos, acompanhando a tulha
de engradados na carroça que sobe como pode, sobrancei-
ra, como que pro cemitério, lá em cima, pra feira,
as ferraduras do magro cavalo soltando fagulhas no que
escorregam no calçamento como que de hulha, a suar en-
tre as crinas, se esfalfando, soltando o vapor pelas narinas,
sob as chicotadas do cocheiro - grosseiro -, até que cai de

51
DeuS PrObIEMAS

joelhos e apanha demais, ainda mais,


e é como se - chocado - eu, garoto, flagrasse algo vedado,
secreto e profundo:
a máquina,
infernal,
do
mundo.

Acordo - recordo - a bordo de um corpo velho ( como o


evangelho ),
que me aferroa no meio da noite, em João Pessoa,
e,
sem sono que me acoite, saio da cama, do quarto, e vou,
farto, pra sala,
rnas,
incapaz de ler - pois a angústia avassala - ligo a tv, na qual
- com o controle remoto - saboto dezenas de programas
que ninguém vê - dura lex sed lex - até que me deparo
com ... Tricodex,
o espetáculo de balé
que é só de biomecanóides andróides: vivos, fantoches,
como os de Giger e Bosch,
e o defino: é o Codex Seraphinianus- que eu vira, fazia
anos, e que era urna enciclopédia ilustrada, em que Serafi-
ni inventara - do nada - nos anos 70, incríveis, impossíveis
bichos, flores e cores, e cada coisa é ali comentada, em lín-
gua inexistente, ainda não decodificada, a própria física,

52
W. J. Solha

química, botânica, linguística, zoologia, geografia, que - é


o que se desconfia - traz nos alforjes "o indocumentado
país" do Tlon, Uqbar, Orbis Tertius - o Terceiro Mundo ...
de Borges.
Incapaz de entender tudo aquilo, como tudo mais em que
me fundo- e disso também farto - volto ao quarto
e afundo.

N
I
a

Mr. Ego - boa gente, mediano como um Clark Kent - às


vezes é um Superego, mas ... tem também o seu Id, no
qual, mais do que deve, incide ... no - transparente como
eslaide - Mister Hyde.

Leonardo acerta na veia ao usar o mesmo modelo pra


Cristo e Judas, na Ceia,
po1s,
em que pese ao quadro sacro,
de santo é só um simulacro,
já que sua função ... obrigatória - além de pintar - é a de
criar... armas, como o carro a cujo eixo vincula a foice gi-
ratória que imagina à frente do queixo do cavalo, pra estri-
par, degolar ou mutilar a infantaria que se atrever a pará-lo

53
Deu$S1 1Ro PrObIEMAS

-- traste... horrível -, inspirado na biga, quadriga ele Davi


O elos Salmos, o ascendente elo Rabi com navalhas nas
rodas, pra podas ele inimigos, nas batalhas,
cutelos, pra completar os flagelos,
jogando-se os pedaços ele pernas, seios, corações e braços,
miolos,
nos fornos ele cozer
tijolos.

O Homem - que faz Chartres e seus vitrais, O Pensador,


o computador, a geometria elos fractais - traz, pras "demo-
cráticas" Américas, milhões ele escravos
e,
pior elos agravos:
faz, surreal, sessenta milhões ele mortos na segunda guerra
mundial,
como quem, com faca, vai à goela ela vaca.

Não é ela bondade elo padeiro - segundo Adam Smith


nem elo açougueiro, muito menos elo cervejeiro
que se pode, na verdade, esperar o jantar,
e sim elo empenho deles pelo que irão ... lucrar.

Mas ... há, sim, ... gentileza... em quem faz arranjo de flo-
res, de versos, de sons, de aromas, sabores, formas ... e
cores
buscando prazer
W. J. Solha

... e beleza.
Há uma ... delicadeza em seu ápice ... em quem junta ma-
deira e grafite ... num lápis .

Não era Garrincha que achava extraordinário que o pagas-


sem e lhe dessem até
uma taça,
pois gostava tanto de jogar,
que o faria de graça?

Mas ... a multidão - cantando hinos - vai, compungida, à


Basílica de Aparecida;
banha-se, com monges, no Ganges;
chora, em orações, no Muro das Lamentações
e circula,
em moinho que nunca se acaba,
ao redor da Caaba,
até que tudo que é bom vira mal
e qualquer deus, ... o caos,
pois um bilhão e duzentos milhões de muçulmanos têm
fé absoluta de que os quinze milhões de judeus - contra os
quais são irados - estão errados,
e também os dois bilhões e cem milhões de cristãos
e os ateus e os pagãos,
além dos ... trezentos e trinta milhões de budistas, nove-
centos milhões de hinduístas,

)9
Deus PrOIEMAS

... assim como os dois bilhões e cem milhões de cristãos


têm fé em que os outros é que estão ... errados,
e isso vale pra todos os lados,

pois Mr. Ego -- boa gente, mediano como um Clark Kent


- às vezes é um Superego. Mas tem também o seu Id, no
qual, mais do que deve, incide, quando se vê que - trans-
parente como eslaide - tem um quê Mister Hyde.

LLI
N
z
0

Todo ciumento feio ou belo- é um otelo.


Todo parrudo é um sansão, hércules, tarzã, maciste, é fer-
rabrás; todo homem mau,
satanás.

Longo curso que envolve epopeia,


é odisseia.
E,
se o transcurso massacra,
trata-se de via-crucis,
de uma
v1a-sacra.
w. J. Solha

Do mesmo modo,
o que se vê é isto:
todo traidor é um judas,
toda vítima,
cristo.

Todo liderança é ... messiânica.


Toda sábia decisão, salomônica, e a multidão,
bíblica.

Todo começo é um
gênesis,
um lindo lugar,
paraíso,
e,
se há um bombardeio, ciclone, erupção, tsunami, cismo,
eclipse:
apocalipse,
assim como - é óbvio - toda multidão em fuga é um êxodo,
toda enchente,
dilúvio.

Todo embate - como o da América com Vietnã ou do Tom


com Jerry, em que o maior se ferre - é uma das muitas vias
do de Davi e Golias.
Deu'S outRo PrOblEMAS

Quem não viveu, já, uma cena homérica, shakespeariana,


kafkiana, ou não teve uma dúvida vital,
hamletiana?
Quem já não se disse, com a causa perdida,
que tudo foi quixotesco
e, ante um espetáculo catastrófico,
que foi
dantesco?
Quem não viveu situação tão negra
que não a chamasse de tragédia grega?

Ah,
e quem opta por dor é
masoquista.
O básico, se gosta de maltratar:
sádico.

Quem já não disse que no meio do caminho há uma pedra


ou que tem complexo de Édipo
ou de Eletra?

A... "ficção" ... tem essa glória:


pôs,
em cada expressão que usamos,
uma ... história!

58
w. J. Solha

I
N
0
o

94,
não lembro o dia.
Paro, na calçada larga da Gran Vía,
con el sentimiento de no estar del todo,
o do engodo,
o de que, de repente, la vida - de realismo tão ferrenho -
es... realmente
sueno
e Madri - porque lá está o Prado - my... dream,
com a multidão-a vida, enfim - aqui, no meio e no outro
lado da avenida,
num sol que não arde a las tres de la tarde, me dando a
impressão ( minh alma não me engana) de que estou ante
a cidade - de que estou me despedindo - na próxima se-
mana,
ou a de que aí está o mundo... sem, mais, minha presença,
completamente indiferente
a essa ausência.

59
Deu$ PrOblEMAS

LLI
N
LLI
0:
1-

Véu:
pode-se dizer que, como o céu, não é, nem deixa de ser.

Chama de vela é flâmula,


anímula vágula
blândula.

A leve alvura da vela:


leva,
irreal,
o denso peso da nau.

Flores,
de secretos nomes em latim, são caravaggios e correggios,
miguelangelos, botticellis e rembrandts
do jardim.

Vê-se - nos espelhados vidros de bancos, restaurantes e


lojas - a reprodução do trânsito sob o bando de pássaros
que se arroja dos fios até os semáforos, dublado pela rua e
pela revoada,

60
W. ]. Solha

pela zoada ... geral


e real.

Vejo,
da calçada,
numa vitrina,
a rua e tudo que nela - às minhas costas - se passa,
e,
atrás da vidraça,
a criança traquina
que - degusto - vê que vem a gangue palhaça, com um
gorilão, me dar susto,
e acha graça.

Vejo o rio que salta e cai do alto barranco,


na TV,
esfumaçando durante a queda, no incêndio frio
e branco.

Vejo a escada que sai da porta de baixo,


serpenteia no ar
e nma
ao dar um bote na porta de cima.

Vejo a enxurrada se espatifando nos paralelepípedos soltos


da ladeira
e a lata que vem nela,

6l
DeuS tu1Ros PrOblEMAS

batendo,
bagunceira e lépida,
retinindo e zoando
oca,
e cheia
até que- num salto - esvazia-se no que gira,
louca,
e bate
no closape.

Vejo o arquiteto quieto, centrado no amarrotamento de


uma folha de papel laminado,
de que,
como quem joga dado,
sente a leveza,
e a solta,
depois,
sobre a mesa,
pra vê-la,
devagar,
rearmar-se ... e divagar,
criando a maquete, o monumental - revestido de titânio -
museu Guggenheim
de Bilbao.

Vejo o homem que dirige,


grogue,

62
W. J. Solha

pondo enfeites natalinos nos pinheiros de van Gogh,


até que acorda na buzinada... e vê dois sóis - os faróis -
amanhecendo
na lombada.

Ah,
o envolvimento dramático e o esforço físico de Pavarotti
pra alcançar e dar forma ao maravilhoso e dificílimo suste-
nido final de Nessun Dorma!
Tão grandes,
que,
quando termina,
em esgotado êxtase,
seus olhos estão fixos fora do mundo ( que o aplaude em
desvario, gritando Perfezione assoluta!, Prova dell'esistenza
di Dio!).

Mágico instante, aquele, em que eu vejo que o dourado


androide de Guerra nas Estrelas,
de 77,
e a ginoide com sístoles e diástoles, do Metrópolis,
de 27,
têm,
precedente,
a dupla - e é notável, isto - do século oito antes de Cristo,
quando me é manifesto,
na poesia da Ilíada,

63
Deu$ E ou1os PrObIEMAS

que Hefesto - como parte de seu tesouro tinha duas


servas de ouro,
ativas
como se fossem vivas.

Vejo que Sebastião Salgado descarta a ideia de fotografar


mais uma mulher com homem morto ao colo,
em Ruanda,
e já quase debanda,
quando - rápido no gatilho, o estalo- vê a saia de alguém,
com gloriosa estampa, um halo!, que passa por trás da ca-
beça do cadáver, e- clique. Que lhe dá
a Pietà.

Aí viro o rosto, fechando os olhos - descomposto - pra não


ver as lâminas giratórias na degola que imola milhares de
frangos que vêm, suspensos pelo pescoço, em fila mecâni-
ca e pnica, que horripila,
no abatedouro,
pra completar a hecatombe que já vi, de bois,
do matadouro.

o+
w.J. Solha

Dziga Vertov, virtuose, cose a cena filmada, em que esqui-


fes à vontade são baixados, em Cronstad, às covas,
1912,
à seguinte - é ousado - em que canhões dão salvas em
Petrogrado,
1920,
e o gol: o povo - em 22 - tirando os chapéus
em Moscou.

Visto isso,
algo maciço:

Hebreus, em certo momento distante no esquecimento,


criam Deus, o Faça-se a Luz e a série de ... defeitos, espe-
ciais, em que, num deles, o espírito se reduz a homem
trágico anexo ao âmago, no abdômen, de sexo e estômago
- e a "História" engrena - maravilhosa - numa roda-viva
que encena, gloriosa, grandes e pequenas estórias, como
a do Dilúvio,
em que o pecado se mostra ... insolúvel,

65
DeuS toutRo PObIEMAS

pelo que Deus tenta, já que não o afoga, o fogo, no ataque


a Sodoma e Camorra, que se aproxima do de Nagasaqui
e Hiroshima,
depois do que vêm lendas, milagres, contendas, que vão de
Jacó, José e Sansão, a Moisés, Davi, Salomão e ao cativeiro
dos hebreus,
em que Deus, sem a menor parcimônia, põe poetas - mais
que visionários: profetas - na Babilônia, anunciando o
messias: Ciro ( zoom, como um tiro, em Isaías 45-1 ), que,
em cubículo de poucos versículos, dá fim, sim, com seu
exército persa, à escravidão perversa,
após o que ... o livrão - como inacabada Babel - se dispersa.

Daí... Vertov: O cristianismo - arte e cinismo - faz o


experimento, que - estético, mas nada ético - comove:
torna tudo que vimos antes, sem nada que o comprove,
um ... Velho ... Testamento, princípio-e-meio, sim, ... sem
o aristotélico fim,
no qual montamos o Novo,
ah, meu povo,
trocando - nada cômico - o império babilônico pelo de
Roma, que doma o profetizado líder guerreiro, que a todos
tira do inferno, alvissareiro, moderno,
pra liberdade de outro teor: ... interior,
que é novidade no mundo cão:
a do filósofo
Platão.

66
w.]. Solha

Indo fundo no equilíbrio, demos ao ludíbrio do Gênesis...


o do Fim do Mundo.

I
N
-
z
::,
0

Será mais irreal Remédios, la Bella, de Cem Anos de Soli-


dão, em ascensão, num delicado viento de luz, como Jesus,
do que Maria - vestida de seda e veludo -, levada ao céu
com ... roupa e tudo?

É mais irreal a farra, no elísio - que se vê pintada em tetos


de palácios - com Zeus, ou a épica entre santos e anjos, no
paraíso - em tetos de templos da mesma época- com Deus?

São mais irreais os Lares, Manes e Penates que havia em


casas de todos os lugares, diante do fogo,
de Roma a Panflia,
ou as Virgens - pequenas, nos oratórios, com sua estranha
beleza, ante uma vela acesa - como guardiãs da família?

É irreal a encomenda do corpo, na Igreja, ou o conforto


da grega ao pôr na boca do morto a paga do barco em que

67
Deus PrObIEMAS

ele deve seguir,


com Caronte,
pelo rio Aqueronte?

É irreal a eleição - depois de quatro séculos de pontífices


italianos -- de Kiril Lakota, ucraniano, cheio de
humanidade, de "As Sandálias do Pescador",
em 63,
ou a de Karol não Kiril - Woytila, polonês, anos depois,
que não muda a realidade, a maquila?

É irreal a existência de uma divindade, segundo Hamlet


- algo um tanto fosco - que dá forma a nossos projetos,
mesmo que toscos, ou o desembaraço do Yo no busco, en-
cuentro, de Picasso?

É real o Fiat Luxou o Big Bang,


ou é ... tudo lenda caincangue, com sofisticados truques?

É irreal o dragão inglês, que São Jorge mata no cartaz


nazista; o dragão nazista, que ele mata no cartaz inglês,
ou ... irreal, mesmo, então,
será só o dragão?

Neruda nos banqueteia, elevando a poesia a seus cimos,


quando fala da Ceia em que a vida fez da santidade útil de
su mamadre - a da água e a da farinha o pão,
W. ]. Solha

que all consumimos,


o que não é menos ...
real
que o vento,
horizontal,
a mover as pás do moinho, devagarinho,
na vertical,
O eIxo,
horizontal,
a por a grande engrenagem,
vertical,
a girar a roda,
horizontal,
cujo cilindro,
vertical,
move a mó,
horizontal,
e o grand guignol - inteiro - trabalha, e arrebenta, tritura,
esmigalha, de castigo, o crânio de la mamadre,
como se fosse
trigo.

Veja a porta norte da Notre Dame, em Paris: tem, como


ponto forte,
na pedra gris,
( coisa de maníaco )
a irreal Madona no zodíaco - menino e tudo - como o

69
DeuS PrOblEMA

signo de Virgem,
sua orgem,
porque a constelação ( que preside setembro ),
em 24 pra 25 de dezembro domina, no Oriente, seus ho-
rizontes,
de modo que a luz do mundo, quando nasce, entre os
montes,
parece - e a imagem é bela - estar sendo dado à luz
por ela.

Segundo se disse nos templos, tempos atrás ( até pras crian-


ças de colo ), Aurora, de dedos de rosa, divina, era quem
- matutina ia ao céu, à frente de Apolo.
E. ... well:
se ia ou não ia, a coisa fluía.

Mas ... o dramaturgo americano Schneider,


em Londres,
onde chega e monta Beckett,
ao ver a folga no trânsito, à esquerda, desce da calçada
e,
absurda ou não, mas ... sensata, como em beckettiano ske-
tch,
uma moto o mata.
w. J. Solha

-u
tn
I
n
w
N
I
o

Me esbagaço em cada poema,


porque,
quando o faço,
demente,
quero a mente sem similares,
a menos que a de Bertrand Russell, no ABC da Relativi-
dade, se una à de Bráulio Tavares em ABC de Suassuna,
ou que - all right -, a de Fayga Ostrower, do Universos
da Arte, se junte à de Galbraith, quando ele analisa com
clareza A Era da Incerteza.
Quero a mente cheia de elã do Argan, quando ele diz da
baderna - letal, fatal - da pintura e escultura do século
XX, em Arte Moderna, e a da Christina Ramalho, quando
detecta ruptura na literatura, em Poemas Épicos - Estraté-
gias de Leitura.
ô,
quero a mente de Freud, que torna a ciência ... humana ...
em Psicopatologia da Vida Cotidiana.
e a do Affonso Romano de SantAnna, quando empana

71
PrOBIEMAS

tudo que sobre Arte, antes, no Brasil se disse, em Barroco -


do Quadrado à Elipse.
Minto se disser que não gostei mais dos poemas de meu
amigo Sérgio depois de vê-los analisados pela mente do
erudito João Batista de Brito, no Signo e Imagem em Cas-
tro Pinto,
ou se negar que Refl,exões de um Cineasta onde Eisens-
tein fala do Couraçado Potenkin - me empolga mais que
seu filme, sim;
ou,
ainda,
se afirmar que não gosto mais da Filosofia da Composição
- em que Poe fala da construção dO Corvo- do que do
poema em s1,
que,
muito mais com ela,
absorvo ...
... e azar o meu, com a breca, não de Cortázar, se quero
- mais que a mente dele - a de Arrigucci, que a disseca de
todo lado nO Escorpião Encalacrado, de mesmo brilho
que o Hamlet e o Complexo de Édipo, em que Jones mos-
tra o Príncipe sob esse foco
inédito.

Por isso... me esbagaço em cada poema que faço.


w. J. Solha

uI
t-
I
,n
,n
I
N
LI
a

A Arte seiscentista da Holanda ostenta - entre outras tan-


tas cenas... nada santas, como a da sedução e compra de
uma bela mulher,
em quadros de ter um Borch
ou Vermeer.

O século XIX da América comove em telas de Melchers,


como aquela em que se vê, durante o sermão de um pastor,
que -entre nove trabalhadoras atentas da plateia-, uma dorme,
a despeito do respeito,
vencida pela estafa
enorme.

Já na França de Degas há lances


como o do desânimo tão grande, numa mulher arruinada
ante um cálice de absinto,
que vemos que o sentido da vida,
pra ela,
está extinto.

73
DeuS1 IRO»

E La Thangue tem cenas rurais,


como uma em que o cavalo - nenhum puro-sangue - olha
pra trás,
intrigado,
e vê,
torto,
no arado parado a que está ligado,
o velho lavrador
morto.

No século seguinte,
XX,
numa das trezentas capas que faz pro The Saturday Eve-
ning Post,
Rockwell,
triste,
põe a menina negra que vai à escola - sob escolta, como a
lei determina -, o que não impede que a gangue branca -
que é de coca-cola mas que quer sangue - jogue o tomate
que estala feito relho, vermelho, no termo nigger,
duro,
que denigre o muro.

Ele põe - por outro lado, emocionado - vovó e neto interio-


ranos que deixam os boys boas-praças, no bar metropolita-
no, impressionados, porque - com visível fé - antes do café,
rendem graças.

4
W. J. Solha

Põe, afetuoso, a barbearia fechada, luz apagada,


e a visão que ultrapassa a vidraça até o quartinho, lá atrás,
iluminado,
em que um quinteto ou quarteto - centrado - de velhos
barbeiros e seus companheiros,
deixa de lado todo revés
e tem seu encontro
de jazz.

P6e,
poeta,
sentado no estribo da camioneta - também surrada - à
beira da estrada,
o ruralista esgotado que tem, ao lado, o filho adolescente
endomingado,
que aguarda,
teso,
com mala e livros,
aceso,
o lotação - que o livrará, pra sempre ( ou não )- de tudo
que quer dizer
» e 99
rmcao .

Põe o velho juiz desiludido, olhar perdido, à espera, in-


diferente, no decadente cartório, de que o ávido casal, jo-
vem, impaciente, assine os papéis do casório.

75
DeuS PrObIEMAS

E há ... um ... toque Rockwell


em fotos que o Sebastião Salgado tira de todo lado,
como no Afeganistão,
em que um médico, alegre, cobre com a mão os olhos da
bela menina,
enquanto assistentes,
animadas,
põem próteses - mecanizadas - nas pernas dela,
amputadas por uma mina.

E é forte o insight de Bourke-White,


na Depressão,
quando clica - com intenção - a longa fila de negros
pobres - ante o outdoor com a família branca, burguesa,
quase de nobres, rindo no carro lindo, OK,
confirmando que não há nada melhor, no mundo, do que
the American
Way.

ol
-
o
N
LI
o

Do hebraico-aramaico pro grego, bem como pro latim,


português,
w. ]. Solha

Yehoshua, no Antigo Testamento virou Josué, sucessor


de Moisés,
e,
sem constrangimento,
Jesus,
no Novo.
E mais me comovo ao ver que Ya'aqov,
Jacó,
veja só,
passa, según Lucas, na Espanha - diabo de coisas malucas!
a ser... o lago,
apóstolo,
que,
de Sant lago
passa ( surpresa da língua portuguesa) a São
Tiago,
que,
por essas e outras,
foi sepultado num lugar da Galícia, assinalado com perí-
cia - dizem - pelo mesmo fenômeno que guiou os magos,
e assim o Campus Stellae - Campo da Estrela - gerou
Compostela,
numa recriação feita pelo Tempo,
que nos dá a delícia de mais um exemplo,
ouça:
fez de Caesar Augusta a cidade de
Saragoça.
De1S 1 PrObIEMA

uI
~
zw
N
I
o

Uma das causas da nuvem - de um lado, no passado éa


evaporação.
A outra - que com a primeira coadjuva, no escuro futuro
- é a chuva.

Também se vê,
com nexo,
que a causa do bebê é o sexo
e a do sexo,
o bebê.

O fim precede o princípio, e o início surpreende, sempre,


depois do the end.

Por isso Chaplin, ainda no início da guerra que tomou


toda a Terra, cria a cena de mestre, em que Hitler... deita
e rola com um globo terrestre, como ele se fosse uma bola,
até que,
pasmo,
vê que - de supetão ele lhe explode nas mãos.
w. J. Solha

Por isso ... a revista O Malho, de 28 de junho de 1930,


tem uma charge
"supimpa",
em que vemos ... um fato, um crime - ou qualquer coisa
que com ele rime - que só ocorrerá - e esse é o requinte
- no 26 de julho seguinte
e nela se vê o João Pessoa, de vela na mão, no leito de morte,
no meio do grupo -forte - Getúlio, Antônio Carlos, Juarez
Távora, Luzardo, os líderes da revolução ( a ser deflagrada
com seu assassinato ) no aguardo - todos vestidos de
carpideiras,
( visão das mais verdadeiras já vistas em tais brincadeiras).

Foi fundamental,
s1m,
absolutamente ... irreal,
o dia em que,
entre todos os planetas sem vida, nem coisa parecida - se-
res ... começaram a se... soltar... no mundo,
que,
de repente,
se revelou
fecundo,

... o que demonstra que, de fato, conforme Platão, Da Vin-


ci - e Lovelock a reboque-,a Terra vive e tem alma,
o que é um ... choque,
e porque havia isso
antes,

79
PrObIEMA

geosfera gerou noosfera - que é a esfera ... do soberano


pensamento humano,
que vem dessa irreal... dimensão ... e que é meta - sine qud
non - da Evolução.

De modo que,
quando nada, mais, tem sentido,
geralmente quando se está deprimido, pelos fracassos, tão
nossos,
basta que atentemos - em nossas mãos - nos premedita-
dos
ossos,
na proteção torácica
flexível,
por isso fantástica
e... no estranho que é o nosso eu
no premeditado crânio,
capaz de ... hominizar a Terra,
já envolta na nuvem - a World Wide Web - que a encerra.

u
l
-
z
>
Largo riso, jovem majestade,
o Burt Lancaster de A Um Passo da Eternidade volta,
maduro ... e com garbo,

$0
W. J. Solha

como o Príncipe Fabrízio Salina


de O Leopardo,
e
.... definitivamente ( genialmente ) ancião
em Violência e Paixão,
triunfo seguido, - em péssima rima - de um belo
... caixão.

Sou pássaro em aflição,


desesperado,
num voo tenso,
espaço fechado,
com ânsia pelo que há lá fora,
que tanto atrai
... e apavora.

E eis Marlon Brando nO Selvagem,


ainda belo em Queimada,
em meio à "viagem", de que se maldiz, nO Último Tango
em Paris,
e a bordo de um corpo gordo ( ainda com charme, o famo-
so nariz ) no Juan DeMarco,
até que, num charco
do Camboja,
mal,
no Apocalipse Now,
vive a agonia no Horto,

S]
DeuS E ou1Ros PrOblFMAS

pois logo em seguida,


. .
e1s que o vejo
morto.

O angélico Mário
Quintana
brilha
quando diz que o relógio de parede de sua casa já lhe co-
mera três gerações da família
mas,
nessa trilha, que a tantos assusta e humilha,
acrescenta,
noutro poema,
que isso não lhe é um problema,
pois é um estranho no ninho, já que não morre, porque -
poeta - tem cláusula secreta,
pela qual todos passarão,
ele,
não:
passarinho.

Mas o envelhecimento dos astros do cinema,


faz com que a Natureza fora de seu sistema -- dê saltos,

como na noite em que, de barba e cabelos brancos, um


pouco acima do peso ou, como eufemisticamente se diz:
"forte",
w. ]. Solha

saí de um velório - e aí temos a morte - em Pombal,


onde,
afinal,
a lembrança, de mim, que, tanto tempo depois, a todos,
ali, ainda acode - é a de alguém magro, de costeletas, bi-
gode,
que,
anos atrás,
era o bandido - quase um rapaz - de O Salário da Morte,
daí que o bom pipoqueiro,
ao me ver,
foi fundo:
- O Solha saiu daqui Pedro 1,
ve1o
Pedro II.

A verdade é que as equívocas engenhocas,


bússolas da eternidade,
marcando em tudo o mesmo passo, traçam ... a compasso,
o eterno retorno das horas, todas, que nos ferem, até que a
última chega e, segundo Sêneca,
necat:
mata-te!,
Agora!,
que - ironicamente, sim- é nunc,
em latim.

$3
DeuS PrObIEMAS

Bem ou mal,
Big Ben, Tj Mahal,
meu passado aí está,
encalhado
e agora,
ora, ora,
del mezzo del cammin para o fim,
mais clamantis in deserto do que antes,
vive o último afã ... tipo Van Gogh, Rembrandt. .. e Gauguin.

Eis o Hamlet no momento sinônimo ao de São Francisco


e de São Jerônimo,
em que os três posam- sentindo-se em vão - crânio na
mão.

Claro que o que deve importar... é a efêmera luz que há no


ar, captada por Renoir,
o ... instante decisivo, que Bresson, preciso, flagrou, com
frisson.

Mais irreal,
no entanto,
e com isso me encanto,
é que a câmera nos dá- de cada cena comum de um
drama - um fotograma,
o flash, memória... incrível, porque
transferível.

54
w. J. Solha

0,
claro,
a bela Angela del Moro foi modelo- com mínimo de deco-
ro, excesso de zelo - do nada provinciano Ticiano,
e envelheceu, morreu,
seus seios e a suave face hoje longe de nossos anseios, no
seu século XVI, pelo que sei,
mas lá está, na Galleria degli Ufizzi, "eterna", ... moderna,
porque teve o glorioso destino
de ser a Vênus
de Urbino.

Irreal é o cinema,
a metralha de fotos disparadas uma a uma, tão depressa
que não se vê nenhuma,
só o somatório de todas, tão... real, que me abruma.

Mas muito mais irreais são os mortos divos - Gable, Gar-


bo, Gabin - nas telas, screens e écrans,
vivos!

É irreal a estátua,
tão natural,
do museu de cera,
que,
no clique,
é flagrada - como o rompimento de um dique- a mover-se

$85
PrOblEMAS

com visitantes,
como nunca se viu antes.
A escadaria - apanhada de surpresa, depois de tanto tem-
po presa - se derrama, na sucessão de degraus,
até o chão,
como que na correnteza.
A ponte - que se vê da janela - tem tanta leveza,
graça e beleza,
que parece cruzar o lago - como em balés em pontas de pés.

Mas a tudo prefiro o asfalto que dispara pro horizonte


num tiro.

ó,
e a lua corre, acesa, por trás das árvores
negras,
na aceleração de meu carro,
o que é ... bizarro ... como os jardins de pedra em Kioto
e o lago que - maroto, em pleno Saara - em miragem
mortal se escancara.

Veja que o Tempos Modernos é mais ... antigo, eis o perigo,


que o Las Meninas, em que Velázquez retrata a infanta y
sus sinvientes, divinas,
exatamente como as viu no seu século XVII, que é tam-
bém o de Hamlet pelo amor de deus! - de Macbeth!,
e elos carroções - caravelas e galeões ele paz de guerra -
w. J. Solha

entre Espanha, Inglaterra - notavelmente modernos pela


impulsão ecológica,
atrelados aos cavalos-força
da energia eólica!

A vida é um rio,
que,
"pobre de mim!",
"pobre de nós",
chega,
inapelavelmente,
à foz.
E Arte... é o que dele no ar escapa, desaparece do mapa,
no céu,
pra onde vai, feito um véu.

Sente-se,
ao ver o Homem com uma Câmera - que Vertov rodou em
plena euforia da Revolução de Outubro - que é como se
nos implantasse a memória de um porão na História,
em que, surpreendentemente, o trânsito já é intenso na
megalópole, em 29, com tudo que já se automove,
carros e caminhões, motos e carroças, bondes de todos
os lados,
bancos, lojas, restaurantes, calçadas, teatros, cinemas, ba-
res lotados,
frenéticas locomotivas,
DeuSI PrObIEMAS

máquinas, tecelagens, centrais telefônicas, siderúrgicas,


rotativas,
desenfreado progresso,
que o Fernando Pessoa parece dublar, eufórico, sonorizan-
do o momento histórico, quando diz
Ó rodas, ó engrenagens,
ó grandes ruídos modernos!
Ó tramways, funiculares, metropolitanos, Ó fábricas, ó
laboratórios, ó music-halls, O
rodas e rodas-dentadas, comboios, guindastes
hilla! hilla! hilla-h6! Eia!
Eia! eia! eia!

E aí. .. sai-se,
depois de tudo que alardeia o filme,
mudo:
aquele mundo de gente, à vida apegado, lhe deixa impres-
são muito forte.
Anos depois do apogeu, a Revolução ... feneceu, e nin-
guém, ali, a sofreu,
pois antes viveu
a morte.

Quando tutt ' passato,


vê-se que o ser, de fato, tem, por alguma sutileza,
insustentável
leveza.
w.J. Solha

:E
:::,
I
I
b=
-
z
>
Que fazer dos problemas de Demóstenes, de dicção;
dos de Beethoven, de audição?
E dos de Guignard que tinha lábios leporinos-,e dos de
Sivuca e Hermeto Paschoal,
albinos?

Que se faz de Tolouse-Lautrec, que sofre, desde moleque,


de distrofia poli-hipofisiária,
que lhe reduz a figura lendária a um metro e meio de altura?

Mirá,
à falta de controle motor ( que o torna incapaz, veja só, de
nos laços dos sapatos dar nó),
deve o tranquilo primor do taquigráfico estilo.

A poliomielite quase elimina Frida ainda menina,


e- pra ainda mais segregá-la em... polêmica elite - um
desastre quase novamente a vitima,
no que um ferro lhe cruza o quadril e lhe sai - num berro
- da vagina.

89
Deu$t PrObIEMAS

O convincente Vincent é criatura raivosa,


indefesa,
por causa da rejeição do pai, tão odiosa quanto a da Igreja
Reformista Holandesa.

Aquele que ficou na História como o Aleijadinho,


trabalhava de joelhos,
sozinho,
martelo e escopro nos cotos,
talhando,
numa hora,
um Cristo,
noutra,
um profeta,
dizendo,
com ISSO,

como um poeta,
que o prêmio do gênio que lhe fora dado,
livrara-os de chamá-los de ... escrotos.

Note:
Mahler, Kerouac, Lorca, Gide, Genet, Whitman, Proust,
Nureyev e
Capote,
Byron, Mário de Andrade, Pasolini, Fernando Pessoa, Ver-
laine, Puig, Leonardo
e Eliot,

9)
W. J. Solha

além de Wilde e Thomas Mann, Cole Porter e Maughan,


Tchaikowsky e
Rimbaud,
Miguelângelo, Shakespeare, Tenessee Williams, Wharol e
Cocteau
foram gênios excepcionais, que - mais, ou menos - sofreram
por sere homossexuais.

E está em Darwin, Kafka, Chaplin, Copland, Newton,


Zweig, Bohr e
Einstein,
Spielberg, Schonberg, Weil, além de Bergson e do Irving
Berlin, mais o Bellow, Chomsky,
Bernstein,
Freud, Marx, Woody Allen, Ginsberg,
Eisenstein,
a identidade Holocausto/ Eleitos-de-Deus,
por serem
judeus.

A bela esférula surge na ostra como reação à entrada, nela,


de um corpo estranho, que é envolvido - como proteção,
dela - em nácar (ou madrepérola).

A genialidade - pérola na nossa ostra - é uma espécie de ...


cosa nostra.

9]
UcuS 1 PrOblEMAS

I
H
1- -
zo
>- a

Em 1450, Jack Cade, malandro, sustenta, em Londres,


"séria" e "furibunda" reação à miséria... e à corrupção
dela oriunda, com o que quase muda esse curso com seu
discurso, em que a "grei" - como diz - derrubado o rei,
terá ( o juramento é solene ) sete pães ele três pence por
UM penny.
- Canecas de cerveja, ele três aros, sem rapapés, terão
DEZ!- destaca - E ai ele quem servi-la fraca!
Ô,
e aí, conforme ele,
as eternas diferenças entre as classes sociais terão, final-
mente, os seus minutos finais!
- Pois todos vestirão uniforme! garante, enorme, com o
que vaticina a República Popular da China.
- E não haverá dinheiro! ( QUEM diz isso primeiro? ),
po1s,
como Marx, Jack Cade não sossega, prega - sem bandeide
- a supressão da propriedade privada,
em que o povo - que não tem nada - não terá dano nenhum:
- E tudo será em comum!

02
W. J. Solha

E aí,
às vésperas da vitória ( que acaba não acontecendo),
ele põe - não convencendo - as unhas de fora, como qua-
se todos os líderes, História afora:
- Minha boca será, agora, o parlamento da Inglaterra!

Shakespeare - infelizmente - não erra.

w
W e
± ae
> ...
O Livro dos Porquês, do Thesouro da Juventude, tinha de tudo.
De questões - de todos os povos - como De que é feito o
Sol e Como as moscas andam no teto,
até Por que nos inquietamos,
ou
galinhas sabem que hão de sair pintos dos seus ovos?
Aí, tempos novos, a informação arremete, o céu agora é o
limite, na internet,
sobre tudo que se quiser:
do lerdo Verbo aos jogos platônicos do Logos,
ou da ... revelação ... sobre a enigmática precisão ... fotográ-
fica .. de um Caravaggio, Ingres, Vermeer,

93
Deu$SI PrOblEMAS

aos segredos da natureza, se se ousar ou ... puder, com be-


leza e de forma romântica,
indo-se ela teoria das cordas à mecânica quântica,
encarando-se o princípio de incerteza
de Heisenberg,
com a mesma familiaridade com que se lê ... "Gutenberg" .

Um dia,
que o queira a santa Sophia,
tudo
estará,
finalmente,
diretamente ... na mente,
de modo que tudo o ... menino ... verá ... face a face,
como se fosse... divino.

Chorei, bati os pés, insisti,


até que me vi, menino, sentindo-me gente, ante o Autorre-
trato com a Barba Nascente,
ele Rembrandt,
W. J. Solha

no museu de São Paulo,


e o Cristo ... estroina, de boina, tanto tempo antes do Chê,
deu-me a impressão ... cristalina
de epifania, manifestação
divina.

Anos mais tarde, sem alarde, soube que aquele deus é ...
terrestre,
nada de autorretrato do mestre.

E
pela TV, vi que o Chê, ao tentar - como numa sina - um
surto revolucionário na América Latina,
tivera em La Higuera, Bolívia, o Horto das Oliveiras
e isso me deixou
morto.

Só,
no restaurante do Sindicato,
paro de almoçar,
seis meses antes daquela outra espécie de fim, que será a
queda do muro em Berlim,
olhando pra parede em frente,
quando, de repente, "vi" o impacto de Leonardo ante o
pé-direito, intacto, do refettorio, na missão que recebera,
da igreja de Santa Maria delle Grazie, de Milão,
de criar A Ceia,

95
D)eu'S o1Ros PrOblEMAS

de que tem, de imediato, a visão!


Aí o Bertrand Russell. .. genial, da História da Filosofia
Ocidental, diz que o exemplo judaico, mesmo arcaico,
atrai os oprimidos, humilhados e ofendidos de todos os
tempos, até fora dos templos,
como no caso de Marx - marque-se isto -- com sua equiva-
lência em Cristo,
o que me remete - antes que um esboço perpetre - à ima-
gem do novo judeu, que diz na mesa, aos vizinhos, como
numa história em quadrinhos, que um - quem será? - o
trairá,
o que causa a corrente, o leonardesco tumulto, crescente,
dos novos apóstolos, a começar de Stálin, que - assinale-
se em sua memória: Krushev o desmantelaria de vez, na
História, em 56;
e Lênin,
no Kremlin, em que, sem programa de governo, rivaliza -
no desastre - com Trótski,
o homem da Revolução Permanente, que nem em Mos-
cou foi em frente;
e Mao,
que foi mal em Pequim, que - no fim - pecou tanto quan-
to Moscou;
além de Allende,
que levou devotos - logo frustrados- a tentar a revolução
com votos;
Guevara,
W. J. Solha

que saiu de Havana - avara- pra sacana revolução ... bo-


liviana;
e Fidel,
que, sem contrapartida da perestroika, viu a revolução,
cruel, se bem que heroica,
falida.

Ah
e Gorbachev comove, pois- por incrível que pareça - eu o
vi com uma das mãos na cabeça, na angústia das mais agudas:
- Judas!

uI
ILI 0
}- Ó
zz
--
>2
A Terra é o mais denso p(r)o(bl)ema
do sistema.

a)

De que ... Gâmbia, Zâmbia,


o bordô da rosa
da Colômbia?

97
Deu$S 1 PrObIEMAS

De onde ... o zero,


que é o vera not to be
do
to be?

Como o vapor, que não é coisa alguma, vira... alguma


coisa ... capaz de gerar - com raio, trovão, furacão - o pavor?

De onde ... a ideia, num cro-magnon, de, de repente, ao


ver um mamute, reproduzi-lo com destaque,
na gruta de Rouffignac?

De onde o insólito dom de ver através do vidro


sólido?

De onde ... a mágica mecânica que me fascina a infância,


ao tornar circulares os meus passos,
na bicicleta,
e - coisa ... ainda mais discreta: ao ... pôr... os inspirados,
espiralados sulcos no parafuso,
pra rotação de que ele faz ... translação
pra eficiente fixação,
justificando-lhe o
uso?

Como ... se dá à pedra uma cara ... que nos encara?

98
w. ]. Solha

Donde o detalhe que fica: a forma de caveira na venta do


cavalo do Guernica?

Como ... o som da locomotiva se enverga, no que passa o


trem,
com tudo que com ele vem?

Terra,
o mais denso poema
do sistema:
tem de tudo e ainda sobra
como massa de manobra,

feito a medusa, em que da invenção o planeta abusa, chis-


toso,
em trinta metros de um corpo ... aquoso, sem ossos - que
seriam colossos;
sem ... coração - mesmo que cheio de ação,
e ... sem cérebro,
ainda que, sem ele, se torne célebre
pela resistência
e adaptação.

Nossos corpos,
ao contrário de nós

99
Deu$S PrOIEMAS

( não estamos sós ),


sabem, incríveis, imprescindíveis coisas,
como ... produzir os pelos, cabelos, a insulina, adrenalina,
as cnanças,
além de muitas de nossas depressões ...
e esperanças.

Y)

Terra,
o mais denso poema
do sistema,
que tem de tudo e ainda sobra
como massa de manobra,

como o voo... dentro d água, do peixe,


e o nado, ao léu, da ave, no quase nada do céu,

graças à semelhança ... malandra,


entre os embriões dos dois, dos galos, porcos e bois ... e
seres humanos, inclusive da ... salamandra.

E eis,
de repente, a ... irreal invenção, que é o Adão, que, peladão,
vai ao luminoso fruto ( pra tantos ... ominoso) na "selva oscura,
com anjos- em gravidade zero, auréolas apagadas - nas
arquibancadas!

l(j()
w. J. Solha

E um raro, difícil fóssil:


... o da cefaleia ...
no... metro... retro... de Pompeia,

e o de um buraco de bala,
fatal,
num crânio de Australopithecus , provando o crime - de-
pois de milênios - de um
Neanderthal.

E veja a ruína - divina - de uma grande cidade,


que dizem ter sido das mais febris.
A torre - em forma de A, que nela permanece - é parte do
nome PARIS.
E o vento ruge, ainda, no Moulin Rouge,
contra o qual avança, a galope, maluco, o velhote Quixote,
de Pernambuco!

6)

Terra,
o mais denso poema
do sistema,
que tem de tudo e ainda sobra
como massa de manobra,

I0l
PrOblEM AS

De onde- se não blasfemo - ela tira Ulisses-e-Polifemo,


Davi-e-Golias, duas das vias da mesma luta, em que a for-
ça ... bruta é vencida - como lei da vida - por quem, mais
fraco, use a malícia, coragem, perícia,
como se dá quando o ... vil - neurótico, psicótico - HAL
9000,
computador... diferenciado, pois algorítmico, heuristicamente
programado, literalmente ciclópico, sai da história quando re-
cebe, embora não pareça, a ... pedrada ... na cabeça, no ataque
de David à sua memória?

Assim,
sem cerimônia,
podemos ver, também, no Auschwitz, o cativeiro
da Babilônia.

E o anjo ... com a Virgem ... têm um quê, sim,


de Eros com Psiquê,

como Nagasaqui e Hiroshima são a bíblica zorra


de Socloma e Camorra.

Terra
é o mais denso poema do
sistema... irreal,

I02
W. J. Solha

pois Galileu - "racional" tirou-a do centro do universo,


a que, em seguida, foi devolvida ... em verso,
pois o mundo é uma esfera
que,
ao contrário do que dela se espera,
tem a borda - incomum - em lugar nenhum,
e o centro - por arte de Malasartes - em toda parte.

E veja o concreto - do museu, teatro, do templo e cinema


- com o fim, ... secreto,
no esquema,
de manter a maravilha
do nosso sonho em vigília,

como o do certeiro carteiro,


que sobe a perna da própria calça e me explica, esnobe, a
sutileza do Princípio da Incerteza,
mostrando-me a cicatriz, enquanto - mordaz - me diz
que os cães que ladram,
mordem,
e que a dor é ... de tal ordem,
que nem com a caravana
passa.

Mas navegar é preciso,


embora viver,
. .
1mpree1so.

103
Deu$ 1 PrOblEMAS

w
w
h @
z-
lll
>n
Por que - escravo-, escrevo,
se a frase a que me atrevo é a mesma que, com certeza,
dirá a mulher sem beleza,
se lhe perguntam por que - demoradamente - se banha
e se perfuma e se penteia e se veste e se pinta e se adorna,
com joias que várias vezes - criteriosamente - estorna,
chegando,
por incrível que pareça,
a coqueterias
como a de pôr,
com ... graça,
uma boina inclinada na cabeça?

Sinto que tenho o viço, apenas, de um Frei Damião, Padre


Ciço,
adorados pelo povão,
mas que
nem santos,
na verdade,
são.
Nada de milagres ... espetaculares ,

l()-j
W. J. Solha

de parar sóis, erguer mortos,


abrir mares.

Por que, então, escrevo,


se há poemas a rodo, de gênios do mundo todo?

- Porque são ... coisa alheia.


"Não correm na minha aldeia".

Que nada, portanto, me abale.


Devo, ao menos, ter a importância do vale,
que é artimanha pra que haja
a montanha .

uI
uI
... w
z• ...ll
>n
É uma porrada:
não há,
em nossa memória remota,
nada - parece um complô - que rivalize com as pinturas
rupestres de Altamira e Lascaux,
nem com a criação da escrita,

105
PrOEIEMAS

do zero,
da roda.

Nada.
É foda.

Nada que se assemelhe às grandes pirâmides e a Luxor e


Camac, ao palácio-túmulo de Hatshepsut, às vias Apia e
Flamínia, Termas de Caracala, ao Teatro de Epidauro - e
isso é até covarde: aos aquedutos de Segóvia e Du Gard.

Nada que pelo menos lembre o Eclesiastes e os Salmos, A


República de Platão, A Poética e A Política de Aristóteles,
A Eneida e a Ilíada, Confúcio e Lao-Tsé, ou Plutarco, És-
quilo, Apuleio e Sófocles.

Nada de César ou Alexandre, Praxíteles, Fidias, Péricles,


Policleto, Anaxágoras, ou Heródoto, Tácito, Tito Lívio,
Horácio, Zenão, Heráclito, Euclides, Cícero
ou o Pitágoras,
nada de democráticas ágoras.

Nada de cidades - Persépolis, Alexandria, Babilônia, Car-


tago, Nínive, Pompeia nada de Roma, o Panteão,
Atenas com Partenão.

Não.

I06
w. ]. Solha

Coerentemente,
nada
na memória recente.

Não demos ao mundo coisa alguma equivalente ao Ori-


gem das Espécies, às obras completas de Freud e Jung,
à Teoria da Relatividade, ao Evolução Criadora de Berg-
son, a O Fenômeno Humano de Chardin, À Riqueza das
Nações de Smith, aO Capital de Marx, aO Mundo como
Vontade e Representação de Schopenhauer, aO Diálogo
sobre os Grandes Sistemas do Mundo, de Galileu,
ou,
indo mais fundo:
nada
como o teto da Sistina, os Concertos Brandenburgueses,
Hamlet, o Bauhaus, Ulisses, Guerra e Paz, O Pensador,
Concerto Imperador.

Nenhum ... Spártacus e 200l; nada de Gritos e Sussurros e


Amarcord, Amadeus, O Poderoso Chefão, A Lista de Schin-
dler, Rastros de Ódio, Blade Runner, Os Brutos Também
Amam, Koyaanisqatsi, Kagemusha, Manhattan, Birdman,
O Grande Hotel de Budapeste, ou Era uma vez no Oeste.

Nada de catedrais como as de Chartres, Notre Dame, Co-


lnia, Milão, a da Sagrada Família,
... e há essa ausência de Dostoiévsky e Rachmáninof
que nos humilha.

I07
PrOblEMAS

Não à toa, Newton disse ter visto mais longe e ... mais ...
do que antes
por estar nos ombros de gigantes,

e,
claro,
temos os nossos colossos,
mas nada pode uma obra-prima e outra - como Grande
Sertão: Veredas, Que País É Este? e Os Sertões - se ela
... pareça menor que as aventuras extraconjugais de duas
burguesas ociosas como Ana Kariênina e Madame Bovary,
que poderiam ser três,
com a Capitu,
que é daqui.

Por que somos uma nação periférica,


sendo a Terra
esférica?

w
LI
z ot-
t-
--
>O
O engenheiro-arquiteto, pintor, multiartista Flávio Carva-
lho desenha - passo a passo, ao vivo -, toda a agonia da

IS
W. J. Solha

velha Ophélia,
mas o fato só se toma, para os parentes, "horrendo, quan-
do dão, no Museu de Arte de São Paulo,
com a "Série Trágica - Minha Mãe Morrendo",

o que me leva a Dedalus,


personagem do Ulisses,
de Joyce.
quando não acata - numa das suas esquisitices - o pedido
da mãe,
na extrema-unção,
de que se ajoelhe - mesmo descrente - pra uma última
oração.

E aí minha mãe - católica - morre ... triste ... com meu


irmão,
dizendo, de dedo em riste,
que uma de suas agonias era vê-lo na Igreja de Jesus Cristo
dos Santos dos Últimos Dias,

... o que me toma invisível, na contraluz, com o míssil


que seria, nela, se a tivesse lido, ( mas era "muito difícil" )
minha "Verdadeira Estória de Jesus".

09
Deus PrOblEMAS

I
W g
1- >
Zo
>z
O que seria da Paraíba
sem Menino de Engenho, A Bagaceira,
Papa-Rabo, Augusto dos Anjos,
Quadera,
A Compadecida?

E da Bahia,
o que sena
sem Gabriela, Tieta e Dona Flor,
Capitães de Areia,
ou de Alagoas
sem Fabiano, Memórias do Cárcere,
Baleia?

Pense em Dublin sem Ulisses nem Dublinenses!

E que terra seria a Inglaterra, sem Austen, Hamlet, Ma-


cbeth, Lear e as irmãs Bronté,
ou sem Dickens, Wilde, Foster, Defoe, Pope, A Laranja
Mecânica, Fielding, Kipling
... e Mrs Dalloway,

ll (J
W. J. Solha

além do Contraponto, Admirável Mundo Novo,


Alice,
Graham Greene,
Wells,
Orwell,
e Dorian Gray,
ma1s
Pigmalião,
sem deixar de mão... os hard
e software
de Conrad, Blake, Tennyson, Maughan, Milton, Byron
e Hardy?

O que seria dos judeus sem o livro que inventou seu deus?

E dos gregos, o que seria, então, sem o Édipo Rei, Prometeu


Acorrentado, sem Aristóteles, Platão? Tróia é ... pequena ...
sem Heitor e Andrômaca, Páris e Helena.

Da Itália, o que seria, sem O Príncipe, A Divina Comédia,


O Leopardo, Morávia, Calvino, De Bello Gallico, Asno de
Ouro, A Eneida, Decameron?

O que seria da França... sem Os Três Mosqueteiros e O


Conde de Monte Cristo, além de Sartre, Zola, Flaubert,
Proust, Victor Hugo, Balzac, Stendhal, Perec, lonesco,
Beckett, Simenon, Moliêre, Camus, Voltaire?
PObIEMAS

O que seria da Argentina sem Cortázar nem Borges? E da


Colômbia, sem a Macondo de Gabriel García Márquez
no alforje? E da América, o que seria, sem Moby Dick e
Dickinson, Whitman, Faulkner, Salinger, Miller, Hemin-
gway, e As Vinhas da Ira, Pé na Estrada, DeLillo, A San-
gue Frio, Vonnegut, O Grande Gatsby, Falcão Maltês, Poe
e,
por fim,
Huckleberry Finn?

Pobre da Espanha sem Lorca, Juan de la Cruz, Ramón


Jimenez,
Lope de Vega,
Unamuno
e,
coroando o lote,
Sancho, Dulcineia, Quixote!

Não há Rússia sem Dostoiévsky, Tchekov,


nem resistência em Moscou
sem Natasha e os Rostov,
em torno dos quais - do Andrei a Bezukov -- tudo se move,
em Guerra
e Paz;

E o português não ressoa ... sem Os Sertões e Os Lusíadas,


o Grande Sertão: Veredas,
Fernando Pessoa ...

I2
W. ]. Solha

Vivem juntos,
até que - exasperado - Gauguin se cansa de Van Gogh,
quando a coisa desanda,
e se manda.

O insigne ficante,
então,
no auge da depressão,
pinta,
intrigante,
a tela com a própria cadeira tendo no assento um detalhe.
Sutil:
seu cachimbo
vaz1o;
e outra - ainda mais marcante - com a cadeira do amigo -
sem sutileza - tendo em pé, sobre o assento,
uma vela
acesa.

113
IJcuS 1 PrOblEMAS

n
:::,
w
o

Rei dos reis, Lord of lords, Rex Tremendae Majestatis


é o que - entre ostensórios de vinte e quatro quilates -
cantam coros em réquiens e aleluias, triunfalistas,
com órgãos, sinfônicas, grandes solistas,
à luz de deslumbrantes vitrais, em magníficas catedrais,
onde o Senhor Deus dos Exércitos é mais que incensado
em esplêndidos sermões, entre pinturas e esculturas:
glorificado,
com tratamentos ainda mais pomposos, que incluem atri-
butos que nem os sábios imperadores têm, como os da
onisciência, onipresença, e o da propalada, também,
onipotência.

Mas Affonso Romano de Sant'Anna, sem a menor ceri-


mônia, diz que a catedral de Colônia é o Himalaia do Eu,
não ... ele Deus.

Porque o Homem o criou como criança - à sua imagem


e semelhança,
cheio de efeitos, defeitos especiais,
Ou ma1s.
W. J. Solha

Se Zeus, por exemplo, teve um filho com a mortal Alc-


mena,
por que Ele não o teria - no mesmo esquema - com Ma-
ria?

Se Zeus era o deus do raio,


Deus teria de ser - louvai-o - capaz de uma desforra tipo
Sodoma e Camorra.

A Índia tirou do baú a ideia de uma trindade, com Brah-


ma, Shiva e Vichnu, igual à tríade egípcia, em arco-íris -
Isis, Horus e Osiris - pura delícia.
E o cristianismo - com brilhantismo - faria o mesmo,
mantendo, malandramente, o monoteísmo,
fácil,
pois viu Platão estirar... o médio, indicador e polegar... ao
ensinar que,
sem medo,
pode-se assegurar que, embora personalizados, os três são
unificados na ideia "que existe no céu",
de dedo.

Cria-se, então, a estória que, - se a pomos breve - é a de


Branca de Neve, que tem a maçã, no começo, com morte
como tropeço,
e,
depois,

115
Deu$ too PrObIEMAS

ante o amor de um Príncipe, muito mais forte,


o triunfo total sobre a morte.

O oco - gigantesco - das catedrais,


é a reprodução, nada mais, do silêncio, vazio e ausência -
realmente ateus - desse Deus ...

... que "existe, porque - pela leva, na treva, de focos de


luz em fila - se deduz que por ali desfila a hoste de postes,

e- pelo efeito que atormenta as bandeiras - vê-se que


nelas um rio passa, com corredeiras.
Mas Epicuro,
em 300 a.C., já diz,
duro,
que se Deus pode eliminar o mal e não o faz,
não é bom.
E 9

se quer, mas nele não há ... esse dom,


oxente!,
não pode ser... onipotente.
E
'
se não pode nem quer extirpá-lo, é melhor, para nós, des-
cartá-Lo.

E o tema, surpreendentemente, volta ... novamente ... com


Tomás de Aquino, quando diz, ladino, que -- definitiva-

II6
W. J. Solha

mente - Deus não pode - mesmo numa atitude lúdica -


fazer uma esfera ... cúbica, nem o verdadeiro,
falso;
ou,
a cada percalço,
fazer do assim o assado,
agora, depois, no passado
e nem - sob qualquer ângulo - alterar os cento e oitenta
graus do triângulo,
ou,
o que é o mais intrigante:
criar a pedra pesada, que nem Ele mesmo a levante.
Daí a questão pregressa que, graças a Borges, regressa:
~Que deus
por trás de Deus
a trama .. começa?

Sapato-e-meia,
parafuso-e-porca,
meio-fio/calçada,

II7
DeuS 1 PrOblEMAS

Bufíuel-e-Lorca,
corrimão/escada,
Palma-e-Maiorca.

Incompletude ... é a nossa mais humana ... virtude.

Veja que se despeja num porto nada morto - a carga de


mais de uma nau,
tijolo, pedra e cal,
que um horror de carroças leva ladeira acima, que se alvo-
roça e se inclina,
e os trastes vão pros guindastes
de Babel,
que o que quer, pra lá das nuvens, é o paraíso, que fica
além do céu!

A incompletude traz a ... inquietude ... essencial,


"pecado original",
pois já começa, esquizoide,
no óvulo, espermatozoide,
na união - claro, dos contrários- e ... gêmea:
de macho
& fêmea,

a que se segue a infinidade ... de necessidades ... de gran-


des, pequenas próteses,
que,

II8
W. ]. Solha

na melhor das hipóteses,


vêm a ser... um arado,
a junta de bois,
um machado,
o estilete, o florete, o serrote, um fricote, o mascote, um
porrete,
os extratos, mandatos, cutelos, martelos, tesouras, vassou-
ras,
ou... aqu1 no poema,
um achado.

O executivo - ativo - sabe


que
antes que o dia acabe,
tem de trazer
da selva de pedra,
depois dos típicos, arquetípicos desassombras,
um javali nos ombros - como Obelix - e, de quebra, pro-
vas de que não é só um Sancho qualquer do Asterix.

Precisa-se de um trompete, um cinzel, um pincel,


um clarete,
ou de todo um teatro, um cinema, uma voz,
um macete,
que tire nós
esse ... algoz.

119
Deu$ I PrObIEMAS

Veja a planta ... onívora, que chamamos ... carnívora,


que atrai
e trai
os repteis e insetos, anfíbios e aves
com óleos - melífluos, suaves - que faz transudar nas
folhas em que suas caças grudam,
quando,
de repente - em um segundo dividido por mil - essas fo-
lhas ... mudam ... , e em armadilhas se fecham,
com as vítimas que a morrer começam, no seu vil covil.
Aí a incompletude tem nome:
fome.
É assim que a mulher, quando quer, avermelha a boca,
em oferta... "louca",
a que, sem receios, junta a dos seios,
a serviço do sexo
... complexo
( minto se não disser "faminto" ),
que se aflige, oculto, como o instinto exige.

Veja o "acaso" de que faz uso a semente que,


"à toa",
no centro de uma pluma,
voa.

Vejo ... as legiões de aviões ... nazistas ... a semear o ar de


soldados ... que desabrocham seus paraquedas - por todos
w. J. Solha

os lados -, a florir de perigo, completamente, o campo ini-


m1go,
na luta por "seu" ... irreal que digo? - Espaço Vital!

Já a Holanda ... demanda um Vermeer, pela claridade que


quer; como as sombras de Amsterdã demandam Rembran-
dt.
E um eco dessa patranha ocorre na Espanha, que quer o
luminoso Velásquez
e o sombrio
El Greco.

E se a Rússia não dói, tem Tolstói.


Mas é de Dostoiévski a voz,
se dói,
como o claro destes brasis pede o Machado de Assis,
e o escuro... é agarrado à unha
pelo Euclides da Cunha.

E,
de repente,
depois de ver as Trinta e Seis Vistas do Monte Fuji, de ...
Hokusai, a dupla Cézanne e Monet... sai ... com a visão
nítida... da estúpida incompletude de tudo que na Europa
se faz
e que lhes pede atitude:.
Cézanne, agarre-se ao Sainte-Victoire

12l
Deu$S 1 PrObIEMAS

e do monte faça - na maior das paixões - igual monta em


versões,
enquanto Monet,
obcecado pelo mesmo perfil, porém mais ... sutil,
troque o cheio pelo vazio e se fixe acima dos trens e do
fornaceiro confuso - no teto da gare ... de Saint Lazare,
e em seu ângulo - réplica do de Fuji- ... obtuso.

E. .. veja-se a ânsia da incompletude que faz com que de


nós façam parte - com mais ou menos arte,
roupas,
sapatos,
óculos,
bolsas
e celulares,
anéis, brincos,
relógios, pulseiras,
colares,

e as vastas,
ridículas,
leoninas perucas,
pelas quais eram ... loucos,
em mil e seiscentos,
mil e setecentos e
pouco,
W. J. Solha

até os geniais Voltaire,


Leibniz, Newton, Vivaldi, Bach,
Moliêre,
a incompletude - hom essa! - que pôs o pince-nez em
Eça e no Machado de Assis,
o cigarro e a gola rolê no Camus,
e todos,
depois,
no ataúde.

Aí o Magritte pega uma tela e,


nela,
pinta um cachimbo,
que põe num limbo, ao escrever embaixo, como num
"d espac h"
o :
Isto não é - participe - une pipe.

Ao que um cara de humor britânico goza, no mesmo naipe:


- Its apipe!

123
Deu$ PrObIEMAS

E aí o príncipe - do ser ou não ser - diz que morrer. .. não


é bem morrer, mas dormir, talvez sonhar.
Sim:
Perchance to dream,
que poderíamos, a propósito, ... chamar ele PIPE dream,
Sonho que um português jocoso traduziria como de ...
Trancoso.

Aí,
minhas mãos,
ele repente,
como se com livre arbítrio,
fora do que controlo no átrio ele minha mente,
digitam
que, de repente, minhas mãos, como se com livre arbítrio,
fora de tudo que controlo no átrio de minha mente, digi-
tam ... o que leio - com estupor- na tela elo computador,
dando-me conta - como tanta gente já se deu - de que
cada letra necessária ao que quero dizer. .. e que aparece
na tela,
ali se atrela
sem que eu pense nela,

I2+
w.J. Solha

como se - por força de algum programa - as palavras fos-


sem de frames feitas,
ou fotogramas:

P /i/s/a-/s/e n/o a/c/e/1/e/r/a/d/o/r


e l/á els/tlá/,
n/o r/e/t/r/o/v/i/s/o/r/,
a r/u/a - f/u/g/i/t/i/v/a - q/u/e s/e a/f/u/n/d/a n/a p/e/r/
s/p/e/c/t/i/v/a/,
a/t/é q/ule a i/n/f/i/n/i/d/a/d/e d/e p/o/s/t/e/s/, /6/a/r/e/s/,
/6/a/n/c/o/s/, 1/o/j/a/s/, p/r/é/d/i/o/s/, c/a/s/a/s
f/i/c/a p/r/a t/r/á/s
e t/u/d/o s/e e/n/c/o/1/h/e/:
v/ê/-s/e a c/i/d/a/d/e t/o/d/a/, q/u/e s/e r/e/c/o/1/h/e
e a riu/a/, q/u/e/, d/e r/e/p/e/n/t/e/,
s/e/m m/u/d/a/r n/a/d/a/,
- Olhe!
é/ e/s/t/r/a/d/a/.

Não sou de versos neutros,


com feltros,

125
eu$ 1 PrOblEMAS

mas ... velcros,


em que quero que a poesia grude,
mesmo com dados complexos
como "Buckminster Fuller e Buxtehude".

Mas esse tipo de poema ... é p(r)o(bl)ema.

Se a nanotecnologia pode pôr toda urna engrenagem den-


tro do pingo de um
1,

o que faço aqui?

Pense em Pássaro de Fogo - com feérica orquestração de


Stravinsky - visto agora
em branco e preto,
mudo,
com lusco-fusco Nijinsky.

Busco a clareza,
mas a sensação é a de ser, ao sol, só urna lâmpada acesa.

A cada nova obra, a impressão - incômoda - é a de que


ela ... sobra.

Daí o retângulo cego


na parede,
onde,
W. ]. Solha

em lugar de meu ego,


nada mais há que o prego.

Mas ...

del mezzo del cammin para o fim,


mais clamantis in deserto do que antes,
Alvin Straight,
velho,
com todos os Giga, Zetta e Geopbyte,
enfrenta seu último prélio:
vai - com receio, mas sem drama - na falta de um outro
me1o,
sem descanso, de Iowa ao Wisconsin.
... num cortador de grama,

Eu me senti em casa, no Casón del Buen Retiro - anexo


ao Museo del Prado-,
Madri,
em meio a toda aquela espanholada que no século XIX se

17
l)vnS 1 PrObIEMAS

move, sem sequer um nome ... forte, como os do passado


distante em que se apoia, tipo El Greco, Ribera ou Goya
-, ou igualmente do porte, entre os do passado recente, de
um Mirá, Picasso, Dali,
e o mesmo se deu quando li, com afã, no Arte Moderna, do
Argan, sobre a italianada desconhecida,
ou, se foi célebre, esquecida,

e VI:

que apenas porque o mar é um caldo de cultura extrema-


mente rico ( e nesse caldo eu fico ), a onda, protagonista,
encrespa a crista.

e
z l
-
o tn
t-W

O ovo não é o "ovo",


é o "O.

Motor - que os esquis não têm, mas que lhe dão velocida-
de - existe ... no subsolo
da gravidade.

I28
w. J. Solha

O palco - porque espaço de arte - escapa do mundo de


que faz parte.

E no espelho você vê - pense na esquisitice - o que o vidro


ver1a,
se - em seu lugar - ele visse.

Daí que:
quando se acorda sem siso, baleias nadando no piso
e,
da janela,
se vê alguém que, num telão, no Edifício Spleen ( sacadas
em trampolim ) se esgoela, preso na ficção,
e o diacho da faixa amarela - lá embaixo - sai do asfalto,
atropelando o meio-fio
e sobe, pela parede, em que se abre em flor,
é hora de em calma se pôr,

pois à noite você verá, lhe juro, laranjas ... acesas no escu-
ro,
e sentirá - sem sossego - que o seu guarda-chuva tem um
quê de morcego,
e que a chuva,
em volta,
é... toda... de bulbos... de lâmpadas... em lento ...
espatifamento no barro e no carro,

129
Deu$ t PrOblEMAS

e - acalme-se, pois seu rosto já tem o desgosto e o horror


interno que se vê na Porta de Rodin pro Inferno.

O mundo é louco.

E,
se a escada - prosaica - em simultâneo crescendo e dimi-
nuendo é pouca pra que nisso se acredite,
que a isso se credite,
também,
a caravana de água,
em c1ma,
viajando pra regiões distantes;
ou,
antes,
um claír de !une - imagine - erguendo a maré em ressacas
enormes, todo má fé.

E os alucinados frutos safrejando nas árvores de natal,


os terremotos a produzir os cortes transversais em edifícios,
com quartos, cozinhas, banheiros de repente mostrando
todos os seus artifícios.
que tal?

E aí está o umbigo,
. .
consigo, com1go,
que vem da era do encaixe - antediluviano - do Brasil no
continente africano.

130
w. J. Solha

O mundo é louco.

É um filme com Vladimir Ilitch Ulianov no papel de


Lênin; Norma Jeane, no de Marilyn; IóssifVissariónovitch
Djugashvili, no de Stalin,
Ricardo Eliézer N eftali Bosoalto, no de N eruda,
etc etc
e,
Deus nos acuda:
Jeová e Alá
no papel de Zeus!

Porque a mente é um sistema que,


de repente,
se sente extensa parede em branco
e lhe dá,
num tranco,
o impulso de grafitá-la, embelezá-la, sujá-la,
vem o poema,

131
DeuS 1 PrOblEMAS

forte como Independência ou Morte, como a experiên-


cia ... rara ... de quem - com certeza - deu golpe de mestre
no globo terrestre, ao estendê-lo num mapa - na mesa.

Frequentemente me dou conta de que estou no piloto au-


tomático.
Sintomático,
por exemplo,
no movimento de minhas pernas e dos pés me levando -
sem que eu pense msso - ao carro,
no estacionamento do supermercado,
as mãos,
serv1ça1s,
de um e de outro lado evitando qualquer esbarro,
a direita, num gesto corriqueiro, pinçando o chaveiro, pre-
cisa, do bolso da camisa,
acionando - como que de próprio moto - o controle re-
moto,
a esquerda se adiantando pra maçaneta,
enquanto me vem na veneta que não sei onde comprar o

132
W. J. Solha

spray que não encontrei,


ao tempo em que abro a porta e penso "bem, não impor-
ta " ,
os joelhos se dobrando, no que me curvo e- nunca é dife-
rente - entro no carro não ... confortavelmente
quando,
nem depressa nem lento
me sento,
a esquerda - que não para -- dando o chaveiro à direita,
cujo polegar, sem hesitação, dispara de dentro dele acha-
ve de ignição, feito um canivete, e a mão a intromete na
barra da direção, certeira, e a gira,
até que se confira o rumor de que está acionado o motor,
ao que ela vai pra alavanca e o destranca,
meu crânio, com meus globos oculares se desviando e me
dando -- cheios de cuidados - minha visão da frente e dos
lados,
mais os detalhes de um e do outro retrovisor,
enquanto meu pé toca
de leve
o acelerador.

Egomachine.
E nem cogito - imagine! - no que o corpo andou maqui-
nando nesse meio tempo, como a respiração, coração, o
foco de minha visão,
além do trabalho das glândulas - sudoríparas e salivares,

133
PrObIEMAS

mais centenas de outras coisas básicas,


na verdade ...
milhares.

E aí me pergunto sobre quanto haverá de automático no


fato de que no momento ... emblemático, ainda no estacio-
namento do supermercado, cruza por mim o táxi, placa
de Bayeux - da região metropolitana de João Pessoa - a
que se associa, em minha memória
como que à toa,
a história em quadrinhos - sem quadrinhos - da beleza de
tapeçaria da Bayeux francesa,
de mil e sessenta e seis, talvez, setenta metros de largura,
meio de altura,
mostrando toda uma batalha de franceses e ingleses,
com o grande vencedor, Guilherme,
o Conquistador.

E, enquanto tiro do bolso o cartão informatizado que er-


guerá a cancela, pra que eu saia do supermercado,
vejo a memória ... tomada ... por outra ... história ... em qua-
drinhos - sem quadrinhos - mais afamada,
que,
em baixo relevo,
documental,
no mármore,
em espiral,

134
W. J. Solha

circula -- em miniatura - nos mais de trinta metros de altu-


ra da Coluna de Trajano,
em Roma,
na batalha do César - soberano - contra os dácios,
que ele vence
e doma,
enquanto meu carro comigo se junta ao denso, intenso
tráfego da rua,
que ele retoma.

Em tudo há,
como no LP,
o lado B,
sem o qual não há
o lado A.

Guerreiros antigos fizeram das duras espadas e armaduras,


que eram obrigados a usar, por conta dos inimigos,
obras d arte,
sem pensar em
Morte.

135
Deu$S ORos PrObIEMAS

Porque tudo, sem a beleza, é um beijo sem boca.


Avida,
muito pouca
e louca.

Daí que, pra muitos, há um jardim no além-túmulo, acú-


mulo de delícias, com farras ... circenses... e parques de
diversões
cheios de alucinações.
Pra outros, lá nada tem:
é
zen,
mas o arranjo da bela e singela pedra - em lugar de um
anjo - no areal penteado a rastelo, do jardim deles,
é belo.

É extraordinário, o detalhe, nos quadros do A Caminho do


Calvário,
do bom e do mau ladrões a conversar, indiferentes à sua
sorte - que é a morte -,
lá adiante,
tal corno se vê, hoje, na TV, com condenados ... sem pâni-
co, indo pra execução nos Estados Unidos ou no Estado
Islâmico,

ou corno nos filmes mudos, em que todos os que vemos


nas avenidas - pobres, nobres, frágeis, fortes, cheios de

136
w. ]. Solha

vida tiveram, já,


suas mortes,
sem que se veja, contudo, a mínima tensão ... pela sua uni-
versal - e igual - condenação.
A multidão toca o bonde,
não importa até quando ... e onde,
como o escultor que não se atrapalha - naturalmente - se
lhe vem à mente os estragos que as pombas farão em seu
Lênin. E ele nem pensa em ... bombas.

Virgílio sente que lhe foge, irreparavelmente, o tempo,


e isso- por ele e por nós - lamenta.
Mas sorri satisfeito,
1magmno,
mal esse verso inventa.
Nóia, deve ter tido ante a ideia de pra que criar A Eneida,
precisou de Tróia.

Mas é a norma:
nada se cria, nada se perde,
tudo se trans
forma.

Pior se dá com quem ama.


Cai sobre os dois, na cama,
e no solo da ampulheta,
a invisível areia que, lenta - ou rapidamente - os sepultará

137
Deu$S PrObIEMAS

sem precisar de pá
e picareta.
Vão envelhecer e morrer - é claro - mas neste momento,
contentes, o que não é nada raro, estão ali -e Cest la vie!

Em tudo há,
como se vê,
o lado B,
sem o qual não há
o lado A.

O corrimão segue a escada,


com trompas-trombetas-trompetes-trombones ... e Rolling
Stones,
aqui, ali, a escalada iluminada por uma janela aberta, a da
descoberta ... esperta,
lá fora,
W. J. Solha

de uma fúria e ataque, terror e fuga de naus ( não se sabe


quais as dos maus )
e olhe, só, o cemitério de tanques iranianos, há anos en-
ferrujando no deserto do
Kwait,
e respeite a imensa zona totalmente ocupada pela necró-
pole de bombardeiros B-52, no deserto do Arizona,
e a paz, de vez, que se faz - na quarta janela - na silhueta
miniaturizada de uma aldeia italiana, que se sublima, a
tudo alheia, praiana, contra o crepúsculo, no alto de uma
colina,
bela,
e,
acima dela,
nuvens, como balões de histórias em quadrinhos, com que
cidades e campos falam ... sozinhos,
sobre coisas leves, breves, vazias, e - quando o tempo vira
- sombrias, com explosões de ira!

De grau em grau
e vão em vão,
a luz, que se reduz a um brilho no verniz no corrimão,
chega, lá em cima, à galeria que,
de tão louca e arteira,
parece do Inconsciente,
como o museu ... diferente,
de Nise da Silveira:
Deu$ PrObEMAS

ao centro de centenas de poltronas, pra que todos, ali,


sem receio, assistam - confortavelmente - ao sofrimento
alheio,
os refletores se centram - de forma litúrgica - na mesa
cirúrgica, em que eu, sem sedativo, sou dissecado vivo
e são cortados meus fios
que,
como os de todos nós,
são cheios de nós.

]41)
Posfácio

Livro da Ressurreição, Ressurreições

por Soares Feitosa

Claude Lévi-Strauss, através de um ensaio de Mar-


celo Coelho, na folha de São Paulo, nos idos de 1997.

"Vistas na escala dos milênios, as paixões humanas se con-


fundem. O tempo não acrescenta nem subtraí coisa alguma
aos amores e aos ódios sentidos pelos homens, nem aos seus
compromissos, suas lutas e suas esperanças: ontem e hoje,
são sempre os mesmos. Suprimir ao acaso dez ou vinte sécu-
los de história não afetaria de modo sensível nosso conheci-
mento da natureza humana. A única perda insubstituível
seria a das obras de arte que tais séculos teriam visto nascer.
Pois os homens não diferem, e nem existem, senão por suas
obras. Como a estátua de madeira que pariu uma árvore,
somente elas trazem a evidência de que no decorrer dos tem-
pos, entre os homens, algo realmente ocorreu".
OLHAR ESCUTAR LER, Claude Lévi-Strauss, Cia das
Letras, 1993, Tradução Beatriz Perrone-Moisés.

Soares Feitosa, autor de Psi, a Penúltima (heroica, telúrica e lírica), edita o foma/ de
Poesia na rede mundial de computadores.
Imediato, comprei o livro que guardo até hoje, digi-
talizado, e ando com ele pra cima e pra baixo no compu-
tador, aliás, na "rede". Agora, a acrescer-lhe este outro, um
livro de ressurreições, DeuS E OUTROS QUARENTA
PrOblEMAS, de W. J. Solha.
O adultério (ou não) de dona Capitu teria sido apenas
uma notícia policial, mero deleite de comadres, não fora a
genialidade de Machado. A Arte, só a Arte nos salva. Hoje,
muito fácil comprovar se Capitu era ou não a mulher de José
de Alencar, boato disseminado por Humberto de Campos.
Suficiente um DNA das ossadas, inclusa a do filho, Mário
de Alencar, que seria de Machado, herdando-lhe inclusive a
epilepsia. (O talento, não, que talentos não se herdam). Con-
tudo, ainda assim, aqueles "mortos' estariam redivivos na ge-
nialidade de Machado de Assis. (Sou contra esse exame, por
sua absoluta inutilidade: Capitu continuará existindo mesmo
jeito). Prefiro acreditar que dona Capitu é real, porque ela é
mais real que a supostamente infiel mulher do cearense, a
francesa. Em suma, vivemos sob uma realidade muito mais
real do que a do dia a dia: o mito, a obra de Arte.
A verdade? Ah, a verdade, meu caro Pôncio, são três, o
Cristo não lhe disse? A jurídica, a histórica e o mito. Claro que
a jurídica, ainda que possa produzir grandes benefícios ou da-
nos terríveis, inclusa a prisão ou a morte, é a mais precária das
três Sou inocente! Juiz ladrão!- brada o condenado. A
outra, a histórica, os fatos à vista de anotações e documentos,
também imprestável. Reúnam-se três historiadores e teremos
três versões diferentes. A terceira verdade, o mito, a obra de
arte, não. Como afirmar que Capitu, Bovary e Karennina
(citadas por Solha) não existiram?! Alguma dúvida sobre a
Transfiguração? Abra qualquer livro de arte e lá está: Rafael
Sanzio de Urbino.
Os cavaleiros do Apocalipse não seriam quatro,
vide Jane Jacobs; há este outro: o esquecimento. Então, se
morremos pela fome, a guerra, a peste ou a morte, há uma
outra morte, a supramorte, o esquecimento.
O livro de Solha, também destinado ao não-mor-
rer, faz, em tom poético, a grande viagem sobre a Arte
que mantém vivos estes séculos todos que carregamos nas
costas. Um livro multi, que não aborda apenas a poesia
dos clássicos, nem suas literatices; envereda por todos os
ramos, incluso o cinema, a dança, pedras, riscos, traços
e o popular. Em suma, tudo sobre o Todo. Até mesmo a
comoção do encantamento mais simples quando o poeta
registra o mero fabrico de um lápis:

Mas... há, sim, ... gentileza ... em quem faz arranjo de flo-
res, de versos, de sons, de aromas, sabores, formas... e cores
buscando prazer
... e beleza.
Há uma... delicadeza em seu ápice... em quem junta ma-
deira e grafite... num lápis.

O encantamento de descrever, em poesia pura, o gri-


to em Piero della Francesca, quando o capitão inglês, Clarke,
Segunda Guerra Mundial, manda parar o bombardeio por-
que na catedral, lembrou-se ele, estava a testemunhar, livre
do esquecimento, a Ressurrezione. Alto lá, senhora, morte!
Este insulto maior, em Solha, à não-morte, ao não
-esquecimento, quando registra:

O que pode haver... de mais... irreal... que o fato de que


nenhum autor,
em toda a literatura universal,
ter,
até hoje,
conseguido - como seria de se supor - d Shakespeare... se
igualar... e - por que não?! s uperar?

Harold Bloom diz, até para quem não quer ou-


vir, que o mais inteligente de todos os homens não seria
Shakespeare, mas Hamlet, como se fosse possível a criatu-
ra ser maior que o criador. Sim, claro que é assim! Quixote
e seus moinhos são mais, muito mais, que Cervantes.
O autor, paisagem de sua infância, seis anos, aquele
mesmo cavalo espancado em Nietzsche:

a suar entre as crinas, se esfalfando, soltando o vapor pe-


las narinas, sob as chicotadas do cocheiro - grosseiro -,
até que cai de joelhos e apanha demais, ainda mais,
e é como se chocado - eu, garoto, flagrasse algo vedado,
secreto e profundo:
a máquina,
infernal,
do
mundo.

E mais e mais. A força da poesia verdadeira a nos


demonstrar que a morte inexiste. Não crê na Ressurrei-
ção do Cristo? Pois confira em Piero, pergunte ao capitão
Clarke, pergunte ao poeta Solha!
Solha nos fala de Heitor, o domador de cavalos, em
Homero, a grandiosa cena do pequeno assombrado com o
pai em trajes de guerra:

Homero, quando faz Heitor- ao chegar da batalha - tirar


o elmo com enonne crina de cavalo, pra mostrar ao filho
apavorado que é só o seu pai chegando de mais um dia
de batente: perfeito!

Já chega! Não vou citar mais nada não. Cumpre-me


apenas discordar do título. Problemas? Pelo contrário, solu-
ções, solução. A única possível. A (re)criação, a obra de Arte
contra o olvido e a morte. Sim, a busca de Deus, a buscada
do pai vide Augusto dos Anjos, o poeta do pai. Toda a arte
é uma negociação com os deuses, tanto mais pesada se for
com o Não-Acreditado, aquele que não morreu, nem há de
morrer, porque, muito bem oculto, está dentro de cada um
de nós. Um livro religioso? Sim, na medida em que a Arte
verdadeira funda-se nessa permanente negociação.
Leitor, o encargo é teu: ler e desvendar.
www.pt.wikipedia.org/wiki/Waldemar_Jos%03%A49_Solha

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naçao, educação. orev1c1cnc1
/ a caminho da indigênci
iria, também, trabalhar, evi
mente. Pois olhe élS aves d u
de111ente: / se não 111eten1 urn
prego 11un1a barra de sabão e o
Pai as ali111enta, quanto 1nais a
voce. que crê?

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