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"O que mais me agrada em

Chamoiseau é como .sua imagi-


nação oscila entre o plausível e o
não-plausivel. Ê com a sofisticação
dos modernos romancistas (um
herdeiro de Joyce e Kafka) que ele
lida com a pré-história oral da lite-
ratura."
Milan Kundere

"Texaco passará inesgotavelmente de um leitor a outro, a


exemplo dos grandes textos que fundam nossas memórias
literárias."
La OuJnzaine Uttéraire

"Obra de rara força e ambição, emoção e humor. Um deleite


lingüístico, uma feliz afirmação da literatura."
The European

"Ê como uma saga contada à noite pelos idosos nui:ria praça
de aldeia. Ê como um sPiritu?I sussurrado numa· igreja, que
contaria os sofrimentos e as esperanças de um povo."
Jeune Afrique

"Texaco, como todo romance importante,, é uma lingua, um


estilo, uma reflexão sobre a literatura:''.
Le Monde

Tradução de Rosa Freire d'Aguiar

CHAMOISEAU
TEXACO

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PATRICK CHAMOISEAU

TEXACO
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1 ~ Tradução do francês da Martinica:
ROSA FREIRE D'AGUIAR

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1

.
1
Copyright © 1992 by Éditions Gallimard
Para Édouard Glissant
Para Véra Kundera
Título original:
Texaco
... 6, estimados.. .
Capa:
Si/via Ribeiro
Preparação:
Mareia Copo/a
Revisão:
Ana Paula Cardoso
Eliana Antonioli

Obra publicada com o apoio


do Ministério da Cultura do governo francbs

Dados Internacionais de Catalogação na Publicação (CIP)


(Câmara Bras!lelra do Livro, sP, Brasil)

Chamo!seau, Patrick
Texaco I Patrick Chamoiseau ; tradução do francês
da Martinica Rosa Freire D'Agular. - São Paulo:
Companhia das Letras, 1993.

ISBN 85·7164·331·8 t
1. Romance francês 1. Tftulo.

93.2038 coo-843.91

fndlces para catilogo slstem:kico:


l. Romances: Século 20: Literatura francesa
843.91
2. Século 20: Romances: Literatura francesa
843.91 •

Todos os direitos desta edição reservados à


EDITORA SCHWARCZ LTDA.
Rua Tupi, 522
01233-000 - São Paulo - SP
Telefone, (011) 826-1822
Fax, (011) 826-5523
O que relembrará aqui o escriba que não relembre,
através dela, o severo destino de todas essas mulhe-
res condenadas às eternas maternidades, especialis-
tas em decifrar as profecias do vento, dos crepúscu-
los ou do balo enevoado que às vezes parece emanar
da lua, para prever o tempo de cada dia e os serviços
a fazer; essas mulheres que, lutando pela subsistên-
cia, em pé de igtialdade com os bomens fizeram o que
1

se chama uma pátri·a e que os registros reduzem a al-


gumas datas rui"dosas a certas vaidades que são fre-
1

qüentemente nomes de ruas?


Hector Bianciotti

A ct"dade era o santuário da palavra, do gesto do


1

combate.

Ani·mal... não passas de um pobre negro: é de ld que


é preciso falar! ...
Êdouard Glissant
ÍNDICE

Marcas cronológicas de nossas investidas para conquistar


a Cidade·........................................ 13

ANUNCIAÇÃO
(quando o urbanista que vem para demolir o insalubre bair-
ro Texaco cai num circo crioulo e enfrenta a palavra de uma
mulher guerreira). . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 17
A chegada de Cristo segundo Iréné, 20. - A chegada de Cristo
segundo Sonore, 23. - A chegada de Cristo segundo Marie-
Clémence, 27. - O encontro de Cristo com o preto velho da
Douro, 29. - O encontro de Cristo comigo mesma, 32.

O SERMÃO DE
MARIE-SOPHIE LABORIEUX
(não na montanha, mas à frente de um rum envelhecido) 35 ·

Tábua primeira
EM TORNO DE SAINT-PIERRE
(quando o escravo Esternome, que sai à conquista da Cida-
de, só traz de volta o horror de um amor queimado). . . 37

TEMPOS DE PALHA (1823?-1902)............................ 39


Vovô na masmorra, 40. - Vovó lavadeira, 43. - Conquista
da casa-grande, 47. - O Mentô e o carpinteiro, 53. - A ida
para a Cidade, 60. - A deliciosa Osélia, 63. - Os libertosos
e os alforriados, 68. - Golpe-de-mulher, 72. - Construir a Cida-
de, 74. -Negro sem sapatos, 78. - Doce Ninon tão doce, 82.
- Sarará malvado, 85. -A Palavra dos Mentôs, 90. -A ilusão
de Ninou, 94. - Reflexões e preocupações, 1OI. - O Noutéka
dos morros, 116. - Doutor-barraco, 123. - Encantos da Usi-
na, 126. - Serenata da desgraça, 130. -Amor queimado, 135. .MARCAS CRONOLÓGICAS
Tábua segunda
DE NOSSAS INVESTIDAS PARA
EM TORNO DE FORT-DE-FRANCE CONQUISTAR A CIDADE
(quando a filha de Esternome, portadora de um nome secreto, pros-
segue a obra de conquista e impõe Texaco) . ............... . 145

TEMPOS DE MADEIRA DE CAIXOTE (1903-45) ................... 147


A Voadora, 148. - Devaneios de Idoinénée, pequena amostra,
159. -As lágrimas de luz, 163. - Últimos gostinhos de amor, A fim de escapar da noite escravista e colonial, os negros escravos
173. - Do Marcador de Palavras para a Informante, 180. - Os e os mulatos da Martinica vão, de geração em geração, abandonar as fa-
músicos de olhos compridos, 181. - Pessoas da Cidade, 187. zendas, os campos e os morros 1 para se lançar à conquista das cidades
- Os vestidos da França e os quatro livros, 191. - Basile no (que em crioulo eles chamam de "A Cidade"). Essas múltiplas investidas
coração, 201. - Os músculos da civilização, 207. - O solitá- vão se concluir pela cri~ção guerreira do bairro Texaco e pelo reinado
rio capim gorduroso, 211. - Outras pessoas da Cidade, 214. ameaça~or de uma cidade gigantesca.

TEMPOS DE F!BROCIMENTO (1946-60). . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 225


Época cabeça-maluca, 226. - O sonho de partir, 233. - Leis TEMPOS DE TABAS E TIJUPÁS
do Morro Abélard, 244. - Lei 35, 247. -A noiva dolorosa, 249.
- O último Mentô, 255. - Palavras do preto velho da Doum,
Naquele tempo, caraíbas, aru"aques, colonos franceses e primeiros
259. - O nome secreto, 262. - Fundação fulminada, 266. -
escravos africanos viviam em tabas e em pequenos abrigos de folha-
Dando tempo ao tempo, 274. - O Natal lá embaixo, 277.
gens chamados tijupás. Caraíbas e aruaques serão dizimados à medi-
TEMPOS DE CONCRETO (1961-80). . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 281 da que aparecerem as plantações de açúcar escravistas e que nascerem
as cidades.
Terra livre, 281. - Escrever-morrer, 284. - Do Marcador de
Palavras à Informante, 286. - O vadio, 290. - O ganso- - 3000 Galibis, aruaques e caraJbas ocupam as ilhas antilhanas.
capitólio, 296. - O mulato-advogatista, 302. - Os marinhei- ·a 1492
ros visionários, 306. - O efeito Césaire, 313. - A morte do 1502 Cristóvão Colombo chega à Martinica.
vadio, 316. - Escrever-dilacerada, 318. - Último canto dobe- 1635 A França toma posse defirútivamente da Martinica; erige um For-
kê, 320. - Remédio-poema, 323. - À espera do Messias, 326. te em volta do qual será construida a cidade de Saint-Pierre.
- Desgastes, 328. - O último pescador de tubarão, 331. -
A chegada de Cristo, 334. - O nome secreto, 336. 1667 Construção do Fort-Royal que levarã ao nascimento de uma se-
gunda cidade: Fort-de-France. É em torno desta que aparece-
RESSURREIÇÃO rão nossos grandes bairros populares. O local do futuro bairro
Texaco ainda não passa de um matagal e de um mangue.
(não no esplendor da Páscoa, mas na angústia envergonha-
da do Marcador de Palavras que tenta escrever a vida). 339 1680 Importação maciça de escravos africanos negros.

13
TEMPOS DE PALHA 19 de setembro: Chegada à Martinica do almirante Georges Ro-
bert, representante da República nas Antilhas; aplicará na Mar-
Naquele tempo, os casebres martiniquenses eram cobertos de pa- tinica as medidas repressoras do governo de Vichy.
lha de cana-de-açúcar, enquanto as plantações escravistas se desestru- Aimé Césaire publica Le cahier d'un retour au pays natal, gran-
turava1n e iniciava-se o reinado dos grandes engenhos centrais. de brado poético da Negritude.
18... Época provável do nascimento de Esternome Laborieux, o pai 1940 16 de junho: A França capitula.
daquela que fundará o bairro Texaco; é escravo numa fazenda 18 de junho: O general De Gaulle lança um apelo à resistência,
dos arredores da cidade de Fort-de-France. ouvido pelos martiniquenses. Submetida a um bloqueio, a Mar-
18... Época provável do nascimento de ldoménée Carmélite Lapi- tinica passa fome.
daille, a mãe daquela que fundará o bairro Texaco; é escrava
numa fazenda dos arredores da cidade de Fort-de-France.
TEMPOS DE F/BROCIMENTO
1848 27 de abril: Decreto de abolição da escravatura nas colônias
francesas.
22 de maio: Revolta dos escravos na cidade de Saint-Pierre, for-
Naquele tempo, a placa de fibroctmento cobria os barracos, en-
çando o governador da Martinica a decretar a abolição antes quanto a economia açucareira vinha abaixo.
I 945 Aimé Césaire é eleito prefeito de Fort-de-France.
da chegada da decisão oficial.
1946 19 de março: Lei transformando a Martinica em departamento
1853 Os antigos escravos recusam-se a trabalhar nos campos e vão francês.
se instalar nas colinas. As autoridades pensam em substituí-los: 1950 Primeira instalação de Marie-Sophie Laborieux no local do fu-
chegada dos primeiros trabalhadores indianos (oscules) à Mar- turo bairro Texaco, e primeira expulsão policial.
tinica. A eles se seguirão os africanos e os chineses e, mais tar- 1959 20-23 de dezembro: Tumultos em Fort-de-France.
de (1875), os comerciantes sírio-libaneses (os sírios). Novas vagas de êxodo rural para Fort-de-France. A localidade
1902 8 de maio: Erupção da Montanha Pelée, que destrói a cidade de Texaco é invadida.
de Saint-Pierre. Mais de trinta mil mortos.
Êxodo maciço para Fort-de-France, onde aparecem os primei-
ros bairros poi),ulares. TEMPOS DE CONCRETO

Naquele tempo, os casebres se transformaram em mansõc>s graças


TEMPOS DE MADEIRA DE CAIXOTE à glória do concreto, enquanto, em face da paralisação da produção
econômica, abria-se o reinado da cidade.
Naquele tempo, os casebres eram construídos com restos de caixo- 1964 Viagem de De Gaulle à Martinica.
tes, enquanto o sistema de fazendas aesmoronava e sobre ele erigia-se 1980-3 O bairro Texaco é ligado a Fort-de-France por uma estrada cha-
o reinado precário das grandes usinas de açúcar. mada Penetrante Oeste. Chegada messiânica do urbanista ao
19... Época provável do nascimento, em Fort-de-France, de Marie- bairro Texaco. Início da reabilitação.
Sophie Laborieux; é ela que fundará o bairro Texaco. 1985 Encontro de Marie-Sophie Laborieux com o Marcador de Pala-
1914 3 de agosto: A Alemanha declara guerra à França. Os alistados vras, este que escreve livros.
antilhanos são mandados para o front: La Somme, Verdun, 1989 Morte de Marie-Sophie Laborieux, que se tornara "informa.nce"
Dardanelos ...
1928 Ano provável da morte de Idoménée Carmélite Lapidaille, a
mãe.
1930 Ano provável da morte de Esternome Laborieux, o pai.
1938 Instalação da companhia de petróleo no local do futuro bairro
Texaco.
1939 3 de setembro: A França declara guerra à Alemanha.

14 15
ANUNCIAÇÃO
(quando o urbanista
que vem para demolir o insalubre
bairro Texaco cai num circo crioulo e
enfrenta a palavra de uma
mulher guerreira)

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1

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EPÍSTOLA DE Tl-CIR!Ql'E AO JIARCADOR DE PALAVRAS


E.VVERGOA'HADO: "Escret•esse eu, e ter-n1e-ia111 1•/sto co1n
o lápis nobre. descre1•endo 1nuitas elegantes. dignos cat·afbei-
ros. o olin1po do senti1uento; ter-n1e-ian1 t•isto Cnh·ersal. al-
çado ao oxigênio dos borizontes, e.Ya!tando 11u1nfrancês 1nais
francês do que o dos franceses as profundezas do porquê do
bon1en1, da n1orte, do anzor e de Deus; n1as de n1odo alg11111
ter-me-ian1 t•isto escre1•er con10 l'OCê, Incrustado nas negri-
ces da sua Criou/idade ou no flbroc/Jnento descascado das
paredes de Texaco. Oiseau de Cban1. desculpe-111e. nzasjalta-
lbe Htonanisnzo - e, sobretudo. grandeza. ·'
RESPOSTA DO LA.l!EiVTÁVEL: Querido n1estre. /iterclfu-
ra nun1 lugar t•i1•0 é un1 apre(e)nder ao t•i1·0 ...

Assim que entrou em Texaco, Cristo foi apedrejado com uma


agressividade que não surpreendia. Naquela época, é bom que se
1 diga, estávamos todos nervosos: uma estrada chamada Penetran-
te Oeste ligara nosso Bairro ao centro da Cidade. Por isso é que

l
1
'
as pessoas de bem descobriam de seus automóveis, dia após dia,
o amontoado de nossos barracos que elas afirmavam ser insalu-
bres - e esse espetáculo pareceu-lhes contrário à ordem pública.
Mas, se nos olhavam, nós também as olhávamos. Era um com-
bate de olhos entre nós e a Cidade, uma guerra bastante antiga. E
--ríessa guerra, uma trégua se rompeu, pois para nós a construção
daquela estrada só podia anunciar uma derradeira batida policial
para que sumíssemos dali; e esperávamos por.essa investida a cada
minuto de cada dia, no ambiente nervoso em que Cristo apareceu.
Jréné, o pescador de tubarão, foi o primeiro a avistá-lo. De·
1
pois, Sonore, a negra cabra de cabelos brancos por outra coisa que
!
19
----~- ------------- --------

sonhos que revelavam a natureza de suas pescarias. Anunciava-


não a idade, mandou chamá-lo. Mas todos só ficaram sabendo de n:e a pesca no bat~nte da porta e confirmava-a ao voltar. Naquele
seu aparecimento graças a Marie-Clémence, cuja língua, é bom que dia, seus sonhos nao foram proféticos. Neles só encontrou as bem-
se diga, parecia um telejornal. À primeira vista, o homem lembra- aventuradas bobagens que deixam em nossos espíritos a qualida-
va um desses funcionários da prefeitura moderna, que destruíam de ~o rum Neisson. Quase nunca o mar dava alguma oportunida-
os bairros populares para civilizá-los em conjuntos habitacionais, de as iscas. :ortanto, Jréné partiu sem ent1,1siasmo, já pensando
ou até um desses oficiais de justiça dos velhos tempos-de-miséria em .descobrir depois da pesca algo com que sujar sua pá de pe-
'i que nos intimavam a dar o fora. Foi talvez por isso que ele foi dreir? ocasional. Trouxe do alpendre uns remos, um tambor de
1
l apedrejado e perdeu na face um pouquinho de sangue. Quem, gasolma e um motor, pôs tudo num carrinho de mão e subiu a
1 pois, atirara a pedra? As respostas a essa pergunta foram tão pro- Penetrante em direção de sua canoa de plástico subvencionada
líficas que a verdade verdadeira sempre nos escapou. Porém, nas P?r nossos especialistas em desenvolvimento da Assembléia Re-
noites de domingo dos anos bissextos acontece-nos desconfiar do gional.
mais terrível habitante de Texacb: um tal de Julot-da-Peste, que No caminho, viu o Cristo. Este ia andando assim, nariz ao ven-
não tem medo de nada a não ser da ressurreição de sua falecida ~ ~spa?t~do, escrutando nossos barracos agarrados em peí111:'íS-
mamãe. Mas, tão logo baixou à terra aquela madrasta odiosa que ~~s mstave1s. Suas sobrancelhas formavam a curva das incompreen-
liquidara com sua infância, Julot tomou a precaução de lacrar o soes. Uma vaga repugnância impregnava-lhe o andar. A rigidez de
caixão com sete nós invencíveis da corda de um enforcado. Con- seus oss?~ revela~a embaraço. Jréné entendeu na hora: aquele es-
tando com essa precaução, pôs-se a zombar da morte, rezou a Deus ti:anho v1s1t.:inte vmha questionar a utilidade de nossa insalubre exis-
para ter um compadre de rum, jamais se preocupou em sorrir pa- tenc1a. Entao'. Jréné olhou-o como se se tratasse de algum vira-lata
ra o destino. Quando o acaso o enviou até nós, em Texaco, ele s~rnento vestido de homem. Cristo não o viu, ou fingiu não tê-lo
nos protegeu dos outros malvados da Cidade e tornou-se um visto, ? continuou pela Penetrante em direÇão a Texaco.
Major' cuja benevolência só se estendia aos negros que lhe .1a.m- . lrené ~hegou ao barco, onde o aguardava sua tripulação: um
biam as botas - quer dizer: seus vassalos. A cada batida pobcial, Jovem braille esfarrapado, com os olhos tapados por óculos escu-
I'' víamo-lo bem na frente, sob a chuva dos cassetetes. Isso para di- ros, perdido na fosforescência amarela de um impermeável da ma-
I' zer que, com pedra, ácido ou navalha, ao acaso de suas iniciati- rm~a. Era Joseph Granfer. Lá se foram para aquele negócio de tu-
' \, vas, ele sempre foi o preposto para receber selvagemente os baroes, sem que lréné sequer lhe assinalasse o deplorável encontro.
1 1
indesejáveis. . Naquele dia, não precisaram pensar muito para encontrar as
Mas não percamos o fio, e retomemos a história ponto por lmhas. Enquanto Joseph equilibrava o barquinho com o remo Jré-
\ 11
1, ponto, e, se possível, um ponto antes do outro. Portanto, primei- né pegou o fio de crina com a irresistível força de vinte e clnco
1 ro, Iréné ... . ano~ de idênticos movimentos. Meu homem não é alto como es-
.,
1
s~s Jogadores de basquete do Harlem, mas também não é um tam-
i' p1~ha como esses pretos nascidos na lua minguante. Ele é forte
I' 1
A CHEGADA DE CRISTO SEGUNDO IRÉNÉ. Naquele dia, o pescador assim, com os braços volumosos por causa do peso dos tubarões
11
1\
de tubarão Jréné, ele mesmo, o meu homem, levantara-se com noi- o pescoço grosso, as canelas finas, a pele cor de amendoim des'.
te escura, conforme lhe impunha a colheita de seus monstros. Che- ses mul~tos sararás. Portanto, puxou e puxou com gestos regula-
1: gar cedo ao mar, ali onde um pedaço de plástico assinala~a suas res que iam enrolando o fio de crina às suas costas. Sem se terem
11 iscas, evitava-lhe trazer outra coisa que não apenas a carulagem co~sultado'. amb~s se preparavam para puxar os anzóis, que pa-
dos tubarões que mordiam o anzol. Café engolido, foi se espre- reciam uns 1mbec1s entre as iscas intactas, mas, quando a linha co-
li
guiçar no vento característico do alvorecer, depois examinou seus meçou a resistir, tiveram a certeza de haver apanhado alguma coi-
1 sa. Porém, como Iréné continuava sombrio, Joseph acreditou que
(~)O chefão de um morro, encarregado da segurança pelos próprios habitan· ele estava puxando um desses tubarões pretos de pupilas satânicas
[I
1

tes. (N. T.)


1 ! \'. 21
1·, 20
1:
1:
que nenhum negro cristão desejava comer. Quando a linha ficava noa para a enésima lonjura de um dos pontos cardeais. Joseph,
esticada Jréné a soltava. Quando amolecia, puxava-a depressa. liberado do encanto, pôs os óculos de tonton-macoute no nariz
e con1eçou a na\'egar con1 todos os ren1os em direção da terra (ven-
Ajusravd sua força às resistências que encontrava, a fim de não que-
to de proa).
brar a cara naquele abismo. .
De repente, a linha ficou mole-mole. Enquanto ele comia algu- Iréné sentara-se atrás, corno um papa, cada bordo do barqui-
ma coisa, urna recordação de doze anos antes informou-o sobre nho servindo-lhe de encosto, o rosto marcado por uma beatitude
perigo. Mais que depressa, enrolou_ a linha numa das pranc.h~~ guerreira que ele exibiu diante de nós durante um bocado de tem-
0
da embarcação e pediu que Joseph nao se mexesse. Um forrn1da po. Quando Joseph, tranqüilizado pela proximidade dos penhas-
vel abalo eletrizou 0 mundo. O fio de crina assobiou corno um cos de Case-Pilote, pousou os remos para interrogá-lo sobre o in-
cristal. A canoa começou a derivar mais rápida do que água em quietante encontro, Iréné respondeu-lhe enfático: Meu filho, nos
cima de pena de pato. Joseph, embasbacado, detinha-a com os tempos que vêm por aí você vai ver uma luta danada de bonita
remos. Isso durou alguns segundos e depois parou, tal corno um lá na enseada tem um tubarão malvado que veio para nos comer .. '.
E, dizendo isso, tremia como eu tremo diante dessa antecipação
alísio que chega. . de um combate que eu precisava travar.
Jréné recomeçou a puxar a coisa, sem fraque1ar, na base de
cautelosos centímetros. Durante quatro horas, não larg~u nem um Venderam os quatro tubarões em poucos minutos: Iréné os
pouquinho os cento e vinte metros de fio. As v_ezes ficava imó- arrastava dentro do carrinho de mão, com o ar ausente de quem
vel, e a linha prestes a arrebentar serrava suas rnaos de ferro. ~n: já está na batalha futura que o oporia, tal como a mim, a uma es-
tão ele murmurava para o invisível inimigo, Sou eu, sim, Irene pécie de tubarão. Joseph berrava para as vendedoras, cortava as Ce.V>-,
Sta~islas, filho de Epiphanie do Morro l'Étoile, e de Jackot rn~la: postas, pesava-as, recebia o dinheiro. Lá em casa, esse dinheiro -~~
to, um machão lindo de jabô ... Então a linha afrouxava. Irene :ios trouxe a felicidade de ioaga_i:_qu:i_tro,çlívidas e con~JJ.!:ª!....~. (2J'.\.A\c
puxava-a com a prudência mais alerta. Ritmava cada_ pedacmho ~e- c1?1ento para_ reboc:i_r.:i?:.s:J;i_c~'l.da. Por todas essas ra- !'! :' ~,
ganho com um sim soprado em meio ao esforço e. a exaltaçao. zoes, Irene, meu pescaaor ae tubarao, foi o primeiro a desconfiar . '- -
Logo depois a linha ficou branca e anunciou os anzó1~. Joseph lar- que o homem encontrado naquela manha entrando em Texaco T .e-r"°"
gou os remos a fim de arpoar um tubarão dara, depois um segun- úão era d_a raça dos que trazem âe-sgraças, corno acreditamos à _, 0
do já boiando com a barriga aberta, dep01s um terceiro batendo í5pri1e_Íl'~_vis~_<l, e nem anunciava tempos difíceis. Apenas uma ba- .tvc/.Jc,
a mandíbula que foi preciso quebrar, e um qu~rto. Quase morreu talh3,_;\1ir!l1a g~~'lcl,__bat:il_Pí~. 1 , l'" 'ic_
de susto quando, subitamente, o azul se dissipou diante de uma ..- Mas, sen1 fazer grande escarcéu, vejan1os con10 Sonore o viu.
massa gigantesca que aparecia, ainda bem lá no fund~. Com a bo-
1 !

ca de través, crucificada pelo último anzol, urna coisa o olhava


A CHEGADA DE CRISTO SEGCNDO SONORE. Annette Bonarnitan So-
! em seus olhos pequenininhos, com toda a malvadeza deste mundo.
nore em solteira, era filha de Julia Etoilus. Seu pai, um preto l~igo
Se pudesse, Joseph teria gritado, mas as pupilas do monstro,
apesar da profundidade da água, tinham lhe chupado a alma. Por detentor de um diploma incompreensível e de um posto de pro-
cima do bordo esquerdo da canoa, ele fez, mais que depressa, um fessor primário no distrito do Marigot, destruiu a própria carreira
sinal-da-cruz, católico no início, misturado no final, e u11: tanto numa trincheira francesa da guerra de 14, para onde nenhum de
frio. Atrás, Iréné ainda puxava a linha quando perceb:u o incom- nós o mandou. Eu poderia contar em cinemascope essa história
preensível frenesi da mão direita de seu tripulante. Entao, meu pes- de amor entre o preto instruído e a senhora Etoilus, que do alfa-
cador de tubarão, sem sequer se debruçar para. c?nürmar a 1~­ beto ignorava até os espaços entre as vinte e seis letras, mas a di-
pressão, com um gesto invisível de tal forma foi rap1do, e muito gressão seria arriscada. ·
Seja corno for, a fecunda paixão dos dois proporcionou exis-
calmo isso mesmo, cortou a linha.
o' mar se abriu diante daquela força que já estava indo embo- tência à nossa Annette, que, nun1 sábado em que teria sido mais
ra, e depois, explodindo em círcul9s concêntricos, empurrou a ca- saudável engolir um sapo, casou-se com um inútil chamado Jojo

22 23
Bonamitan: Ainda a~~\~d~ri~~r!~~::oe~~:~~~~~ ~:d~~:;, ~:~
1 dioso. Lutando a seu modo, ela abandonara o barraco das Terres-
Sainville quando lhe pareceu provável que Bonamitan deixaria de
sino, que d1ss1pava s diversos distritos e com nomes participar do aluguel. Como nós, viera cercar um terreninho e
se casava a cada nove m~~e~;:Se sabe se ele se chamava mesmo construir um barraco à sombra dos reservatórios da companhia
dh>ersos, a t~l ponto qu~~~ia marcar seus dados ou falsificar suas petrolífera Texaco. De dia, ia para a Cidade à cata de biscates co-
mo faxineira em hotéis compadecidos. Reaparecia no final datar-
Joio B~~am~ag~~~~~esem parar um dinheiro dissipado dep.ressa,
cartas, Iª qu . - f . 1·ogar bacará com um zumbi sem- de para torrar os amendoins no carvão ou preparar as pipocas ofe-
e ávido de exc1taçao, 01 . recidas à tardinha aos espectadores do cinema.
~e~~o~ha numa igreja freqüentada pelos raio~,~ ~~~~~~r~~ ~~;~ Ti-Cirique (um haitiano letrado que dissecava livros, recen-
de costume sem ao menos pensar qu . temente instalado num barraco do bairro) havia lhe redigido dois
,, ~~:o de todo.s 0~ ~íciosdde tal ~~::r;~:~~~~~r st~~~:~~;;~~~~~ mil e setecentos pedidos de emprego endereçados ao prefeito de

~~i:~:~r~v~~ó~~r;u;;se~ :~strado, e assi~~~~::~oat~ ~n~


,, ' Fort-de-Frap.ce. Sabendo que o prefeito era poeta e apreciador das
belas-letras, Ti-Cirique empregara uma estratégia que, conquanto
Bonamitan apostouª úni~a c~~~~i~ ~~~~:~ação de seu b~tismo, fosse se revelar inútil, nem por isso deixou de ser de extremo re-

~~~a~::~:
or inadvertenc1a o serv1ç 0
~~;~~s~ods~~~u ~u m~ec~:pe ;;:º~:~~~~ª~~:~~: ~~s:ª~
quinte. Como a vida de Sonore não lhe parecia muito nobre, nos-
so escriba cercou cada pedido com um relato de vida miserável
P . - . copiado de um romance de Victor Hugo. Os filhos de Sonore, que
-o tenho que contar essa h1stona.
de u~i:~~~;)~:;,sj:ais houve participação de mort~ (salvo, tal-
a seu ver não eram de fato lá muito apresentáveis e cujo número
não era lá muito civilizado, ele os transformou em três anjos sem
vez entre as barracudas que devoraramdaquela poAnnrca~::~-;~:a:~ pai, envenenados diariamente pelo leite de um mamilo desempre-
' ·, a nem sequer e quem,
ber muito bem se era vm~ , alto falantes de milhares de tristezas. gado. E, para terminar, enfeitou essas delicadas desgraças com ci-
tan .sonon·zou em seu peito os - . ncontrasse um pouco d e tações escolhidas: Pois Roland é piedoso e Olivier é sábio (autor
i'
'1 11,
. 1 té que sua memó na e desconhecido), A tristeza monta na garupa e galopa na direção de-
i', Assim, ouvimo- aª pelidaram de Sonore. Essa alcu-
esquecimento. Logo os negros a ª1ver o sobrenome do preto ins- le (Boileau), A dor que se cala é ainda mais funesta (Racine), Meu
nha teve a vantagem de lhe:~~e lançava nos anais das palavras coração, afinal lasso de esperança, não mais almejará importunar
~~~~~~~~r~:~~~c~s~~;d: seus tempos de desespero. Ó, senhor, o destino (Lamartine), A voz do tempo é triste para o coração
abandonado (De Vigny), oti, jamais insultais uma mulher que cai
1 essas coisas vão me matar... . dor de dados inútil (ajudado (Victor Hugo), Ó dor, Ó dor, o tempo devora minha vida (Baude-
1 Mas abordemos o drama: o 1oga . . laire) ... Acabamos por conhecer essas citações, pois Sonore, mais
sem saber por consoladores abusivos) deixar~~~t~et~i~~:;s c~~~
1

maravilhada do que convencida, vivia repetindo, no batente da


.idnsolê~~~0~r~~~~~-r~~~:~~~~::~:~~~:c~abore;r a.vida ~nteés porta, os episódios fotocopiados dessa nova vida.
A prefeitura só respondeu com desculpas. A assistente social
i os ca andava 0 pnme1ro raio at
:: que essas ferinhas acordassem. 0 so1m otimismo hip- limitou-se a lhe revelar as manobras para acumular as pensões.
! 1··.
sua janela aberta, Isso enchia a neg~ cab~ d~i~°l_lém da calami- Quanto à moça do guichê da ANPE, dava notícias dos arquivos e
1''.'

~r~~:~~:~!~~t~E:~l:~~::§;~s~~~i~~~:~:;~;~~~~:i~:
'1'. depois, sem o menor pretexto, ia se refugiar no fundo do banhei-
!j
ro. Sonore fazia o possível para agüentar, cedendo aos sofrimen-
i
tos apenas a idade de seus olhares, o preto de seus cabelos e lágri-
!1:
I"''
\,
eia Nacional Para Q Emprego
. E
:t.dos a's autoridades compe-
haviam sido transm1 1 , terríveis filhos. (Miséria vista não é a morte ... )
de
mas invisíveis reveladas ao mundo por silêncios inabituais seus
,,
!'1• arquivos. ste.s m estudo especial cujos resultados ja de-
tentes em Pans, para u duas semanas catorze dias, mais Ora, algum tempo antes, Ti-Cirique tivera uma idéia. Apare-
:.:j:

i
'
'
11,
i''
,,,1
:S~~;:s~~~!~:C~~~,d::s~~;~;e para sonore, ~eria aqui bem fasti- cera na janela de Sonore, como que cavalgando a claridade do sol,
1
i',· 25
! I' 11 24
1 11
1

1:1
1 1
seu matehal: para o pessoal de Texaco, não era muito católico que
com a fronte calva elétrica, os óculos de de111asiadas leituras en-
um. pescador se interessasse pelos tubarões. Depois, assim, sem
1 viesados em cima do nariz. O haitiano redigira un1a de suas cartas
m~1s nem me~os, sem nenhum aviso prévio do destino, avistou
il costumeiras, dessa vez ornamentada co1n as seguintes citações:
Cnsto. Uma silhueta de ossos examinando a ribanceira sonolenta
ri Sim, qual dos dois é o mais profundo, o mais impenetrável: o ocea-
debaixo ~a ponte, os nos~os barracos-pernaltas no manguezal vis-
':·\ no ou o coração hu1nano? - Bondade, teu non1e é hon1e1n. -
~, . coso, os ulumos cammhoes da antiga companhia e depois as en-
O que não posso eu ver, através dessas páginas seráficas, no rosto
~I,,! daquele que me lê ... Cada uma acompanhada de um pequeno nú-
costas galgadas por nossos casebres de patas.
Para Sonore, isso era uma vanguarda de expulsão policial, 0
1'i
1

mero que remetia, três páginas mais adiante, final da carta, ao no- que a deixou um bocado aborrecida. Já estava girando em torno
'·' 1ne do autor: Isidore Ducasse, conde de Lautréan2ont - un1a es- de todas as maldições quando seus olhos caíram em cima da car-
11 pécie de ilun1inado * sobre quen1 o prefeito escrevera nos te1npos
~I
ta. Com o mesmo movimento, pegou-a, abriu-a, desdobrou-a e
~I de juventude. prepara~a-se para sonorizar no batente da porta quando leu de
'11 A carta partiu como uma derradeira chance. Na véspera da che- um. só folego Prezada senhora, em resposta à sua carta de 12
gada de Cristo, e mais depressa do que de costume, Sonore rece- de Julho de 1980, temos a satisfação de informar que podería-
i'1 bera uma resposta da prefeitura numa carta que lhe foi impossível mos lhe oferecer um emprego no plantão de atendimento a ser
li 1:1
,
abrir. Colocou-a em cima da mesa, nun1 cantinho, debaixo de un1
vaso de flores. Saiu. Voltou. Manipulou-a para, com os dedos, de-
ª.berto pelo departamento de urbanismo da prefeitura na loca-
lidade de Texaco. Agradeceríamos que se.apresentasse ao depar-
., cifrar o indecifrável e recolocou-a no lugar, um pouco mais pesa- t~mento de pessoal com a maior brevidade possíuel, tendo em
da e mais espessa. O retângulo branco com o carimbo Cidade de vista~ abertura de seu processo de contratação. Sem mais ... so-
:Jl ~·1,
Fort-de-France aspirou os turbilhões do casebre. O fato de ouvi- nore ficou de boca aberta diante das maldições agora silenciosas .
. !' rem, ao se aproximarem, os berros da n1ãe incitqu as crianças a fi- ~eu punho para o alto, raivoso, caiu como cipó velho. Em meio
car zanzando por ali. Suas perversidades paravam a dez centíme- a _bruma de sua alegria, ela viu o Cristo pular ao ser apedrejado.
'r'·1 tros da toalha, depois recomeçavam mais longe. Os menores imobi- Ficou consternada, pois compreendera no momento da carta que
1,I lizavam-se em lágrimas para esconjurar a coisa. Os outros inspira- ele não nos trazia nenhuma praga do Egito.
·I vam fundo e se lançavam con10 que num precipício, con1 o único Mas nada de correr em calçada escorregadia: eis o que conta
, ri objetivo de tocar na carta. Ela mesma, Sonore, vigiava ia voltava, essa querida Marie-Clémence.

1.I~'
espanava um canto da mesa, jogava o enésimo copo de água fresca
'! 1 ~,:', no buquê de hibiscos.
. A CH_EGADA DE CRISTO SEGUNDO MARIE-CLÉMENCE. Na verdade,
' i' A noite de Sonore foi um pesadelo de cartas de bicos amare-
los que se desmancharam quando se dirigiram a seus olhos ex- Mane-Clemence descobrira o Cristo antes de todo mundo E a
postos ao horror. A carteira era un1a diablesse* * de tan1ancos e se acreditar no que dizia, antes mesmo que este chegasse ela .sabia
algumas outras atrocidades. Ela saiu correndo da cama para espe- d'.' s~a vmáa. Não que Marie-Clémence seja vidente, mas de tanto
rar, ao lado da janela, que o sol aparecesse. O qual chegou - e b1sb1lhotar a vida alheia acabou sabendo ligar todas as coisas em
foi mágico: a negra cabra embranquecida, revigorada, soergueu- sua memória depravada. Era capaz de olhar o mundo com imen-
se disposta a derrubar o mundo. Fez o sinal-da-cruz quando avis- so ass~mbro ~ ver o que mais ninguém via. Sabia decifrar as mais
tou Iréné, meu pescador de tubarão, saltitando na ponte atrás de s~mbnas pupilas e vincular o estremeciment'o de um lábio ao so-
fn~ento de um coração. Sabia repertoriar na vizinhança as con-
(•) Ti-Cirique chan1a de ··nun1inaç;lo'' un1 decuplar caótico de Yidenci<ls. Oi:inte trariedades da vida, a fim de informar o mundo inteirinho. Com
de Laucréan1onc, Rimbaud, a seu ,·er. pes;1ria cão pouco quanto un1 pirralho de escola. ela aprendemos, por exemplo, que uma saída matinal com uma
(• •) Personage1n 1nítica repn:sencada por un1a branca de cabelos con1pridos. malinha e olhos demasiado cabisbaixos anunciava o naufrágio de
cendo un1 pé de burro e un1 pé de caYalo. Os escra,·os <.1:1 :\laninica ,·ian1-na co1110
um amor católico num quarto de aborto da maternidade. No final,
1 1
a n1ulher de uni senhor branco. (N. T.)

27
26
. ' '1!

1
; 11,
I:'
com ela em nosso Bairro Texaco, uma vida sem olhares, como a polícia para que ~!!1-eçasse a se espantar diante das vidas,
a do centro da cidade, era aspiração difícil. Sabíamos tudo sobre cÕÕU[na-égoca--da.jmrentude., - - ·-----
!i tudo. As desgraças escoravam as desgraças. A comiseração inter- ,. Portanto, saindo bem de manhãzinha para esvaziar sua tina
'11'
vinha para acudir aos desesperos e ninguém vivia a angústia da ~stou
'
o nosso Cristo no _momento exato em que lréné, meu ~s-''
'· extrema solidão. caaor, começava a aespertar. Nesse ponto da verdade tem início
- Ti-Cirique declarara um dia que, para o Larousse Ilustrado, a sua fantasia: ao distinguir a silhueta ossuda, ela afirma ter se en-
éramos - em francês - une communauté. Pois bem, nessa co- cont:ado _na siti.:ação do P-f.QfetaJg_~p~B_a,tj§iã,]ue; nasJfil!as_9o_
munidade, o chocolate da comunhão era Marie-Clémence. Se sua ~or_d~_c>· vn1_s1.1rg~r_ Qfil!fQ_<?~.!3P:t}'<pva- A meu ver, esse negócio
língua era perigosa (funcionava sem feriados), seu modo de ser, de Boa Nova é uma dessas histórias que os franceses acham que
de dar bom-dia e de questionar alguém era maravilhosamente do- é piada. Na verdade, o Cristo de Texaco ainda não era Cristo. Vi-
ce. Sem maldade nenhuma, com a maior naturalidade, ela expu- nha em nome da prefeitura, e para reformar o bairro Texaco. No
nha a intimidade das vidas às sentinelas da curiosidade. Como nin- jargão de sua ciência isso queria dizer: demoli-lo. Além do mais,
guém desejava ficar mais exposto do que o vizinho, cada um ali- Marie-Clémence devia estar mais ocupada em limpar sua tina do
mentava Marie-Clémence com aquilo que não se devia saber so- que em ter a visão daquela pretensa silhueta sobre quem voava
bre os outros. Respeitado assim o equilíbrio, ela se tornava para uma pombinha (pombinha - o que era pior ainda - desconheci-
nós um cimento benéfico e concedia-nos justo a amargura neces- da na região). E é pouco provável que tenha se produzido, ao ser
sária para que a vida fosse apaixonante. o pobre homem eleito, o (rovão sintomático de alguma agitação
l Essa mulata, nos tempos de antigamente, foi provavelmente do mundo. Deixando-a contar por respeito à sua idade, elogiamos
· de uma beleza infernal. Na época de Cristo, parecia um anjo des- a exaltação de sua melancólica cachola diante da chegada daque-
penado que desabara do céu. Ostentava cabelos amarelo-palha le que - por ter me ouvido e sem aleluia - se tornaria nosso
amarrados numa trança que lhe batia nas costas. A velhice que se Salvador.
recusava a enrugar sua pele extremamente fina, cor de palha úmi-
da, conferira-lhe uma textura de eternidade. Seus dedos alonga-
vam-se translúcidos dentro de vários anéis de ouro. No sol, seus O ENCONTRO DE CRISTO COM O PRETO VELHO DA DOUM. Na verda-
olhos tinham o colorido da cana crioula em época de seca. E seus de, Marie-Clémence tivera a sensação de que um acontecimento
beiços, ah, cor-de-rosa, carnudos apesar das pregas do tempo, es- co_n~iderável ocorreria em nossa sobrevivência. Buscando suas pri-
pelhavam restos perturbadores de juventude, espelhos verdadei- m1c1as, concentrou-se na passagem de lréné empurrando o carri-
ros de felicidades originais. Aqueles lábios (a acreditar em Caroli- nho de mão, e depois, na janela do barraco de Sonore à espera do
na Danta, beata e rato de igreja que vivia conosco) concluíram sua sol. Sua formidável intuição logo se fixou na silhueta do insólito
lenda de exilada do céu, depois de um pecado cometido com a ~assante. Achou então que era útil dar o alerta. Ora, Marie-Clémei:tce,
boca. e bom saber, era capaz de prodígios. Podia juntar dezesseis case-
Esse boato, evidentemente, permanecia suposição: Marie- bres num tempinho à-toa. Podia fecundar de mensagens os trinta
Clémence, inesgotável em relação aos outros, era muda sobre si e três ventos encanados que atravessam os tapumes. Podia deto-
mesma, como se sua vida só tivesse começado à sombra dos bar- nar silenciosos repiques nos sonhos profundos, pregar murmúrios
ris de Texaco. Quando veio parar entre nós para construir o bair- nas venezianas, cantar com a língua pelos buracos de fechaduras,
ro, já carregava uma velhice angelical e sua curiosa lenda, mas era transformar a calma dos quartos em abelhas zoantes. Assim, ela su-
um pouco calada e ausente: foi preciso que nos~~~LQJlas=­ biu o barranco, de porta em porta, até a cachoeira que furava a en-
te desafiasse o bekê' do petrÓJeo;_desaJiass_e a_Cifl~de e:_9e~~e costa, depois soou o alarme lá no alto de Texaco. Dizia: A cal! A
- -~- - . ~ - - .- -- -
cal!, maneira expedita de anunciar uma queimadura da vida.
(•)O homem branco da Martinica, ou seja, o "crioulo", geralmente francês. Esse alarme provocou, como se diz nos morros, um bafafá .
(N. T.) desgraçado. Se trinta e dois pesadelos foram felizmente interrom-

28 29
ben1 fugir gritando: Vanzos su1nir. pessoal/ sua a/111a está i•oltan-
pidos, doze sonhos abortaram sob a ferroada da angústia. Crian-
.! do ... (Juro! ... )
ças perderam lágrimas mais velhas do que suas vidas. Homens
A alma não voltou tanto assim. O corpo gemendo continua-
transformaram-se em silenciosa rigidez. Mulheres berraram, ou-
va atordoado. A malta se dispersara no mato entre os casebres.
tras mais desbocadas tornaram-se tochas do xingatório crioulo.
Só Marie-Clérnence e Sonore ainda anda,·arn pela extremidade da
Nosso impulso foi sair dos barracos, depois entrar, e por último ponte. O apedrejado parecia-lhes um pouco mais aterrorizante.
aplicar as medidas aprendidas por experiência ·durante as prece- Sonore foi a primeira a supor que o maldito apedrejador fosse nos-
dentes batidas policiais: cobrir tudo o que era frágil, enfiar o di- so Julot-da-Peste, e sugeriu levar o ferido até o preto velho curan-
nheiro lá no fundo daqueles grandes bolsos, enrolar os documen- deiro que n1orava no Bairro. Como era a única maneira de esca-
tos com os lençóis, repartir a molecada em diversos barracos, de par do perigo de avisar a polícia, todos concordaram.
modo que os policiais hesitassem em quebrar o telhado de um Já estávamos pensando em corno levantar o agonizante quan-
i~ inocente ... Mas, de repente, ficou claro que a polícia não estava do ó-ó! surgiu a inocência em pessoa, o cidadão Julot-da-Peste .

~~:.':.!li
lá. Não havia no ar a agitação catastrófica dos suspiros ofegantes S.eu barraco ficava em Texaco-de-Baixo, atrás do de Sonore. Sua
das botas, das ameaças e das ordens. Apenas o silêncio de um al- insistência en1 levantar un1 cenho ingênuo convenceu Marie-
.
vorecer insignificante, e, em algum lugar da ponte, os gemidos Clérnence de que ele era o culpado. Tão logo Cristo apareceu em
(por um instante eternos) de Cristo sob o choque da pedrada. seu campo de visão, Julot deve ter atirado a pedra que nós todos
r·· Fomos em peso até o corpo fulminado. Preocupada em con- teríamos atirado se fôssemos tão perversos quanto ele. E agora,
·1 cluir a repartição das crianças pelos barracos, eu havia ficado lá
'1· diante das prováveis represálias, ele simulava um rosto cândido

: lr ~1' em cima, mas a cena me foi contada com tamanha freqüência, que
às vezes duvido de minha ausência nas primeiras filas. Todo Texa-
que nós todos teríamos simulado. Com um zelo fingido, Marie-
Clérnence e Sonore contaram-lhe o que ele sabia melhor que elas.
' r:r co se encontrou em volta do corpo e da pedra. Ficamos preocu- Ele, com um dedo grave encostado no bigode,• fingia se infor-
'.J pados. Acreditando que o sujeito estava mort?, o bairro as~a.ssino 1nar. Para tern1inar, teve a idéia, que não era sua, de levar o ferido
: l·il já se via riscado do mundo e sofrendo uma prox1ma represaha po- até o preto curandeiro que morava bem no fundo do Bairro, num
1· i 1

,I licial. Os homens• ficaram indecisos num sonho imóvel. Em com- lugar coberto por uma vegetação impenetrável, repleto de som-
·. 1·r;!I pensação, as mulheres'• propuseram escaldar o suposto cadáver, bras e cheiros mágicos e a que.chamamos: a Doum .
' . jogá-lo dentro de um saco, enfiar o saco no fundo de uma cami- A Doum era um mundo fora do mundo, de seiva e de vida
1
nhonete sem placa e afogar tudo isso numa onda à beira do Méxi- morta, por onde voavam passarinhos mudos ao redor de flores
"
'1,.
,1 h
co. A molecada presente completou essa idéia com as crueldades abertas para a sombra. Ali avistávamos os suspiros das diablesses
i:'1i
funestas que lhe são peculiares. Estávamos nisso quando Cristo que as crianças sonâmbulas flagravam sonhando entre pés de acá-
,.' 1·.il suspirou. Carolina Danta pro,·ocou o pànico quando achou por cias. Elas lhes lançavam borboletas noturnas cegadas pelo sol. Por
1: [!i1 isso é que ninguén1 se aventurava por ali. Ficávamos ao longe, e1n
1 r C-)(Pescadores ;1trasados. biscateiros de canteiros de obras. esr.h-;1dore~ ~o po1:- cima daquelas pedras de rio onde se lavava roupa. Hoje, o rio não
' .
' ro, 111 úsculos de ser\'iço e1n galpôes e :un1azéns. sonhadores sein onge1n cuia 1denn- tem mais o mesmo aspecto, está barrento e não serve nlais para
1:1 dade era apenas :1 etiqueta de seu nnn preferido. carihenhos exilados. 1nulatos de- nada, e parece que as diablesses desapareceram.
cadenti:ts. Yiajantes que \'iYian1 en1 Texaco unia de suas sere ,·idas con1 unia concu-
1 ,;
'1·.'.' bina e un1 rosário de filhos. 1nais dois ou rres cujos detalhes terei te1npo ele contar ... )
'" ('"'") (Cafetinas con1 brincos de argola. negras de lutas se1n fiin e a\·ern1elha-
('")(Ele er:1 alto assin1, tão n1agro qu:1nto un1 b:1rbante. con1 o rosto esquelé-
i'~ tico e os olhos parecendo pedras de gelo - su:1 pele tinha tonalidades furta-cores
1
:
l • 1
:1
das con10 as terras do Yert-Pré. criatur:1s ,·j\·endo só para engra\·idar e expor bu-
ques de crianças e1n cada ,·ào de seus braços. 1noç:1s enrugadas de olhar triste.
de 1nil cic::nrizes. algun1as pro,·ocadas por ele mesn10, 01.uras por sua 1nãe, e o res-
to por alguns audaciosos obrigatorian1ente falecidos-, e, para terminar, sua YOZ,
bel:1s 1nulat:1s de cílios co1npridos cujas fonnas abundantes n1altn1t:l\·:11n as costu-
·111 esganiçada con10 un1 sopro de n1oça numa flauta quebrada, era o único ,·estígio
·' ras de un1 tecido que encolhera. e 1nais u111 bando de 111ulheres coin rolinhos no
de un1a infància n1un1ificada nun1 corpo que ia enYelhecendo, ah, Julot, tão queri-
:i cabelo, sorridentes e preocupadas. a respeito d:1s quais darei un1 jeito p:1ra ofere-
do. que hon1e1n ,·oce era?)
cer n1:1is esclareciinentos ... )

30 31
Nosso futuro Cristo foi, portanto, transportado nas costas do tormentos de Esternome, meu querido papai, surpreendido por
nosso Major, como um tufo de capim para coelho. Julot à frente, um crepúsculo íntimo. Na época em que falávamos disso eu não
1
as mulheres atrás, atravessaram uma área cercada de grades onde entendia, e era melhor assim: o espírito fascinado cedo demais pelo
1 pairava um desagradável cheiro de petróle~ que nos impregnava mistério da morte que se aproxima não é um espírito claro. Meu
a alma.[!:azia um tempão que a companhia de petróleo Texaco interesse pelo mundo resumia-se a Texaco, minha obra, nosso bair-
tinha saído daquele local a que dera o nome e que antes ocupara. ro, nosso campo de batalha e de resistência. Ali levávamos adian-
Pegou seus barris, carregou seus reservatórios, cortou seus tubos te uma luta pela Cidade, começada já havia mais de um século.
que mamavam nos grandes navios e depo.is foi-se embor~. De vez E essa luta supunha um enfrentamento no qual estariam em jogo
em quando, os caminhões-cisternas estacionavam por ah a fim de nossa existência ou nosso fracasso definitivo.
manter um pé na querida propriedade. Em volta daquele espaço Ao me deparar com Cristo.(a idacl.e avançada aumenta o ai-
abandonado, nossos barracos se comprimiam, nosso Texaco, com- canéedüõffiãr~tlv~â sénsl!,ção_~~ccis~[~~r;; .!!IT.i. dos ~~:!Jsjrns .
panhia de sobrevivência"} do ng§.§.<LaP.Q".'1!ip~~~~'!!li2_clestruidor da PJ.efeituramo.demis_ta"'"l.
Julot aproximou-se da Doum e chamou o preto velho a uma Esta, já fazia alguns ano~<jU,<'_l'.ª."ªva u111gguerra.dec.Ja.t:'!.cla_à insa- l'»(rt:m'
distância razoável, Papa Totone, ei! ... O curandeiro apareceu na lubridade de certos bâfrros populares. Um deles,
--r~~-- -·~~---~~--~~~------
situado em cima
--- --- .
,(e.é.\ •
--~------- -~'-·----

mesma hora, com aquele jeito de mansa imbecilidade que não en- do lV10rr9 Piç_n50y1n, fora demolido com tratores, e a p()pµlação,
ganava a ninguém. Era redondo como um mamão feliz. De esta- di~da em um monte de 'éonjÚntos liablfacionals. Agora era
tura média e gestos impecáveis. Para quem sabia ver, Papa Toto- a'vez de.JlôssoJi;iirfo .'1é Texaco. Apesar de nossa 1mí.tica-ancê-:;···
ne se deslocava com uma economia perfeita. Usava o chapéu-bakuá trai de sobrevivência, minha impressãê)~rii!ll~~-::-:de ~~.f.~par -
preto, um suéter debruado, um short american? e ~ma~ alperc~­ nã'() tí11tiamos a menor ctia11ce. · ~-··
1 tas daquelas que os sírios tinham vendido em hqmdaçao dep01s Por isso é que eu tremia quando vi entrar o anjo destruidor.
de um terrível ciclone. O curandeiro não quis de jeito nenhum Julot colocou-o sentado à minha mesa. Ofereci-lhe um rum enve-
1
se informar sobre o pedido de ajuda. Parecendo viver uma peri- lhecido. Sem saber muito bem o que fazer, pedi aos outros que
pécia já prevista, aflorou com a mão negligente a testa ferida de nos deixassem a sós. Inesquecível momento. O Flagelo e eu per-
• '[I Cristo (que, de repente, acordou), antes de murmurar: Levem-no manecíamos calados, ele navegando num nevoeiro suavizado por
1
:1:.
11 .1
.. para nossa Marie-Sopbie ...
O que eles fizeram sem tardar. . . .
meu rum, eu desamparada como uma moréia na armadilha. Mas,
mulher guerreira, eu tinha vivido demais para ficar daquele jeito.
l·i'. -.,-. ---, É por isso que me trouxeram o Cristo, para mlffi, Mane-Soph~e O Flagelo era alto, magro mas não seco, o olhar sombrio trans-
Laborieux ancestral fundadora desse Bairro, mulher velha cuia pirando uma dor melancólica, a pele preta e muito fina. Não ti-
,I' idade prerlro silenciar, não por me preocup~r _com a vai.dade (na nha nada de um vagabundo metido a aristocrata ou de um cachorro
minha idade!), mas por respeito a uma exaudao que mmha me- sem dono. Seu jeito de se sentar na minha cadeira assinalava o rapaz
1\
mória já não respeita. bem-educado. Além disso, e sobretudo, nele eu não sentia aquela
1"!j V- rigidez interna que as certezas instauram. Era um sujeito de ques-
•1
1 !: tionamento. Nisso havia uma oportunidade.
o ENCONTRO DE .CRISTO COMIGO MESMA. Vi aquela turma che- Contando com o privilégio de minha idade, perguntei-lhe so-
i gar quando eu terminava de fazer a repartição da molecada entre bre seu pai e sua mãe. Respondeu-me como se responde aos adul-
1
os barracos de Texaco-do-alto. Não era nada, mas aquilo me deu tos. Questionando-o novamente, fiquei sabendo que aquele anjo
li uma fraqueza no corpo. Triste condição a de uma planta murcha
sob as manobras ·do tempo, não é água que 'lhe falta, não é sol,
da desgraça que transformarei em nosso Cristo preparava, sob a
q:ientação do professor Paul CJaY<!!, uma_tc:s.e de urbanismo..no--
li tampouco é vontade de viver, mas é o afastamento progressivo instituto de geografia da_unlYs:rnidade.de.ParisJV,.e_que-por. ora...
de cada fibra de seu ser das fibras vivas do mundo. Senur-me fra- tiàbalhava·nodepãrtãment~a9P.pela.prefeltura mQc:!exn.i&ta..a_
1
1,\
ca tornava-se para mim um estado. Eu começava a compreender os --
fimcte racionalizar a area municipal, pensar sua extensão e CQD.:-
------~---··---. -- - ' -' -- - . - . -·

! 32 33
1
1
~o.:;_ bolsões de insalubridade que ~ngiam_J;.QQ1 .uma.cefea
c!eEpJn)JQ.s.~TJl!~Jiquei sabe11do 9ue'. tendo chegado no .n~
9a.()peração, elqJresenciara tardiamente as prin).eiras demolições_
de bairros justificadas em-n:ome da insalubridade, e não sabiaº-
.que pensar do assunto. Quando a prefeitura precisou construir a
Penetrante Oeste para que Texaco fosse tratado à base de trator O SERMÃO DE
e de maça, ele pedira, sem saber muito bem por quê, para dirigir
as operações de abordagem, as avaliações e os primeiros planos.
MARIE-SOPHJE LABOR!EUX
A abertura de um serviço de atendimento entre nós, a fim de coor- (não na montanha, mas à frente
denar as expulsões e as transferências, estava decidida (eu ainda de um rum envelhecido)
não sabia que o serviço criaria, enquanto existisse, un1 emprego
atribuído a Sonore). O anjo destruidor viera naquela manhã para
se familiarizar com o local de suas futuras façanhas.

r--- - De que serve visitar o que se vai demolir?


Ele nada encontrou para dizer e dedicou-se a esvaziar o co-
1 po. Então, respirei fundo: de repente, compreendi que era eu, em
I' volta daquela mesa e de um pobre rum envelhecido, tendo como
r" única arma a persuasão de minha palavra, que devia travar sozi-
\ nha - na minha idade - a decisiva batalha pela sobrevivência
~ de Texaco.
V-
- Rapazinho, permita que eu desfie a história ...
J:Qi.[lrovavelmente_ªssiw,_ül:;_e_a.1:1__ci:_ch~m, gue CQ~!f.~1h.e_
contar a hisrória de nosso Bairro e de nossa coQquista.da.Dd.~,
afalar em nome de todos nós, defendendo nossa causa, contan-
do-mi~. · -
E se não foi assin1, -·-----
----------~---------
não faz n1al.
.•. ---- ·-· ----.,
..

34
Tábua primeira
EM TORNO DE SAINT-PIERRE
(quando o escravo Esternome, que sai
à conquista da Cidade, só traz
de volta o horror de um amor queimado)
TEMPOS DE PALHA
1823(?)-1902

Para falar a verdade, nunca medimos a vida com o metro de


nossas dores. Assim, eu mesma, Marie-Sophie, apesar da água de
1ninhas lágrin1as, sen1pre vi o n1undo sob un1a luz favorável. Mas
quantos infelizes a n1eu redor n1araran1 a vida de seus corpos?
Cules enforcavam-se nos galhos dos pés de acácia das fazen-
das que eles incendiavan1. Pretos jovens deixavam-se n101Ter de
uma velhice do coração. Chineses fugiam do país com gestos de
náufragos. Valha-me Deus! Quantos deixaram o mundo em meio
a un1 grande acesso de loucura?
Eu nunca tive esses n1aus pensan1entos. Tantas trouxas para
lavar nos rios das desgraças não me deixaram tempo para melan-
colias. Alén1 disso, nos raros instantes que a vida n1e deu só para
mim, aprendi a galopar com o coração por cima das grandes afli-
ções, a viver a vida, con10 se diz, a deixar a vida passar. E quanto
aos risos ou sorrisos, j~1n1ais a pele de n1inha boca, tenha a santa
paciência, conheceu o n1enor cansaço.
Mas o que me salvou foi saber desde muito cedo que a Cida-
de estava lá. A Cidade, con1 suas oportunidades novíssin1as, n1er-
cadoras de destinos sem cana-de-açúcar e sem bekês.
A Cidade, onde os dedos dos pés não têm cor de lama. A Ci-
dade, que fascinava a todos nós.
Já que eu lá estava, preferi agir. E, con10 dizen1 certos nova-
tos da política daqui, preferi lutar a chorar. Chorar era demais, lu-
tar estava dentro de nós.
A seiva da folhagem só é elucidada no segredo das raízes. Pa-
ra compreender Texaco e o entusiasmo de nossos pais pela Cida-
de, teremos de ir bem longe na linhagem de minha própria famí-
lia, pois n1inha con1preensão da n1en1ória coletiva é apenas n1inha

39
própria memória. E esta, hoje, só é fiel se exercitada pela história a cana, a chuva a atolar até a altura dos morros. Diziam Chega de
forças para a escravidão, e os bois perdiam o fígado numa verde
de minhas velhas carnes.
Quando eu nasci, meu papai e minha mamãe mal saíam dos podridão, como as mulas, como os cavalos. O gado dizimado blo-
grilhões. Uma época que ninguém os ouviu lamentar. Eles fala- queava o vaivém das moendas e privava de bagaço a chama das
vam disso, sim, mas não comigo nem com ninguém. Cochicha- sete caldeiras em cada engenho de açúcar.
vam entre si, baixinho baixinho, psiu psiu, e às vezes eu os fiagra-
va rindo, mas, pensando bem, esse assunto era como uma pele No Sul, Marie-Sophie, as pedras de cal me servem de pi-
arrepiada que estragava o silêncio dos dois. Portanto, eu poderia lão. Na beira do mar, eu torro, que nem os caraíbas, as
ter ignorado aquela época. Para evitar minhas perguntas, mamãe conchas e as anêmonas-do-mar que dão um monte de ci-
fingia lutar com as tranças de meu cabelo e mexia com o pente, mento.
que nem um lavrador que capina um rochedo e que; como você Caderno n '! 4 de Marie-Sophie Laborieux.
sabe, não tem tempo para falar. Papai, de seu lado, fugia de mi- Página 9. 1965. Biblioteca Schoelcher.
nhas curiosidades tornando-se mais fiuido do que um vento frio
de setembro. De repente, era levado pela urgência de um inhame Bastava morrer o menor animal, e o Bekê aparecia, mais bran-
a ser arrancado dos canteiros que ele tinha por todo lado. Eu, pa- . co que o linho de sua roupa de baixo. Mandava autopsiar o ani-
ciente até o vício, com uma recordação aqui, um quarto de pala- mal. Viam-no afiito enquanto o ferro trinchava a redondeza do
vra acolá, com o desabafo de uma ternura que escapava de suas ventre. Viam-no horrorizado quando o fígado aparecia, apodreci-
línguas, fiquei sabendo dessa trajetória que os levara à conquista j do pelo Invencível. Então ele berrava: Veneno\ ... Administrador,
das cidades. O que, evidentemente, não era saber tudo. feitores, intendentes, veterinários também gritavam, abrindo aro-
Vamos pegar primeiro o fundo de minha memória, com a vin- da: Veneno! ... Veneno! ... Depois vinha a ladainha: Há entre vocês
da de meu papai ao mundo.
1 negros que não prestam, apesar do bem que lhes faço. A ameaça:
O culpado vai chupar a pimenta de um inferno! ... Por último, à
guisa de represálias, durante mais de três semanas ele suprimia o
vovô NA MASMORRA. O pai do meu papai era envenenador. rum concentrado, reduzia o bacalhau, trancava os homens no cur-
Não era um ofício, mas um combate contra a escravidão nas fa- ral para privá-los das mulheres embagaçadas das bagaceiras.
zendas. Não vou refazer a História para você, mas o preto velho Mais tarde, a fim de aterrorizar os envenenadores, os bekês
da Douro revela, por baixo da História, histórias das quais nenhum inventaram a masmorra. Ainda vejo algumas, aqui e acolá, nas pai-
livro fala, e que, para compreender-nos, são as mais essenciais. sagens que têm memória, e sempre me a~repio. As pedras conser-
Assim, entre aqueles que sofriam ao plantar a cana ou o café do varam-se cinzentas por causa das tristezas sem fim. Os supostos
Bekê, reinavam homens de força. Estes sabiam coisas que não se culpados nunca mais saíam de lá, a não ser, talvez, com ferro nos
devem saber. E de fato faziam o que não se pode fazer. Tinham pés, ferro no pescoço, ferro na alma, para fornecer um trabalho
na memória maravilhas esquecidas, a Terra de Antes, a Grande Ter- que ultrapassava a exaustão. Permita que eu não descreva a mas-
ra, a palavra da grande terra, os deuses da grande terra .. ., sem morra, pois compreenda, Marie-Sophie, dizia meu papai, a gente
diferenciá-las, o que os submetia a outras obrigações. Carregavam não deve ilustrar essas coisas, a fim de deixar aos que as construí-
nas costas um sofrimento comum a todos. Curavam suas boubas, ram o peso total de sua existência.
mas não o doce banzo que despachava o morto para a terra de Esse horror, evidentemente, de nada adiantou. O que se po-
antes. Assim, contrariavam a injusta prosperidade daquelas fazen- de contra a força dos homens de força? Os bichos continuavam
das em meio a essa cal de dores. ós homens de força diziam Na- a morrer, os filhos a não nascer, as fazendas a estremecer de me-
da de filhos da escravidão, e as mulheres só ofereciam ao sol da do. Como vários outros, o pai de meu papai morreu numa dessas
vida matrizes crepusculares. Diziam Nada de colheitás, e os ratos masmorras. Ao que parece, era um negro fula, muito sorumbáti-
começavam a roer as raízes, os ventos a devastar, a seca a incendiar co, mudo, com grandes olhos tristes e pêlos nas orelhas. Fazia

40 41
tudo muito bem, o corte durante as colheitas, a coivara qu_ando
n1andou chan1ar na cidade um preto carrasco• dos mais ferozes
era preciso limpar. Cuidava de sua roça com gestos lentos. Unica
inquietação: não ria em hora nenhuma, mas sorria para os passa- que exibiu furioso os recursos de suas torqueses, que lhe quei'.
mou o sangue, desfolhou as carnes, arrancou as unhas e os ossos
rinhos que gostava de observar. E, se lhe pediam para falar (pois
muüo sensíveis, e depois partiu derrotado por aqueles destroços
o sentiam ·um tantinho diferente), ele se levantava, na porta de
mais mudos do que a própria masmorra.
seu casebre, murmurando uma missa rezada, sempre inaudível. No
que alguns percebiam fórmulas de força às quais se submetiam O pai de meu papai reencontrou a fala em pleno silêncio de
uma noite. Da masmorra escaparam suspiros que as árvores mais
sabe-se lá que deuses. Todo mundo passou a acreditar nessa his-
velhas prendiam nos galhos. Depois, de maneira audível, explo-
tória, tanto mais que, um dia, o homem conseguiu se curar de uma
dm do bu:aco escuro sua inquietante missa rezada. Todos presta-
mordida de bicho-comprido. Era uma hora de trabalho no cana-
ram atençao e souberam o que era a piedade, pois a insuportável
vial. No entanto, todos viram o brilho do bicho à altura de seu missa rezada não passava de uma longa pergunta. Até o final da
pescoço. No entanto, todos viram a inchação de sua veia debaixo vida o homem ficou assim, surpreso de que os passarinhos exis-
da pele queimada. No entanto, todos acreditaram que o homem tissem e pudessem voar.
estava morto quando rolou no capim, rolou para um lado, rolou
para o outro, arrancou certa folha aqui, arranhou certa casca de
árvore ali, 1nastigou tal raiz, n1ugiu nun1a língua desconhecida uma vovó LA\'ADEIRA. Meu papai soube que o homem da masmorra
espécie de canto confuso. Levado para o casebre em lombo de era seu pai no dia em que foi extraído do buraco fedorento um
mula, ali ficou quatro dias, ou talvez mais, desprezando o remé- cadáver infectado por fungos esbranquiçados. O Bekê instalou-o
dio de uma matrona curandeira chamada pelo Bekê. No entanto, em cima de um monte de pau-campeche e o incendiou pessoal-
mais ninguém contava com ele: quando o bicho ataca é anúncio mente. Para completar, um padre vindo da Cidade recitou treze
de enterro. Mas ele, desculpe, reapareceu num pleno dia de folga, rezas nun1 latitn solene. Nós todos havían1os sido reunidos en1 vol-
só para visitar uma espécie de abieiro cuja folhagem vibrava com ta dessa fogueira, conta meu papai. Ajoelhados, com as mãos pos-
as loucuras de vinte melros. Seu pescoço continuou com as cros- tas durante o evangelho, n1antínhan10-nos de cabeça baixa. A n1eu
tas e um pouquinho de rigidez, mas desde então sua saúde foi per- lado, n1inha querida n1ãe chorava. Seu coração apertado estran-
feita. Ele só a perderia (ou a abandonaria) na eternidade tenebro- gulava os ventos dentro de seu peito. Eu, não entendendo nada,
sa da n1as111orra. acrescentava a seu sofrin1ento olhos aflitos con10 os de u111 caran-
O Bekê soube da espantosa cura. Visitou-o pessoalmente, en- gu~jo .. Então ela abaixou n1inh~1 cabeça e 111e disse: Prédfé ba pa-
trando no casebre, dando um tapinha em seu ombro. O escravo- pa "'.1cb mu•e11, Reze por seu pai, meu filho ... o que meu pai fez
crata queria saber se o milagroso poderia preservar seu gado dos 1111ed1atan1ente, con1 un1a tren1enda en1oçào e até, confessou-n1e
doze venenos, ou, quen1 sabe, revelar a origen1 de tal calan1ida- sem orgulho, com as verdadeiras lágrimas de sua vida. Juntos, vol-
de. O pai de meu papai soprou-lhe com um ar grave a única coisa tar~1111 para o casebre - ela, aparvalhada, ele, olhando-a con10 se
que sabia extrair de seus silêncios: a inaudível n1issa rezada. Ao a descobrisse.
falar, recitava-lhe o non1e de 111elros e n1~lis n1elros, n1elros e n1ais Em uma negra de pele clara. Escapara dos horrores da cana
i'
n1elros, e seus n1ovin1entos descontraídos parecian1 gestos, un1 des- trabalhando na casa-grande. Lençóis, toalhas, ceroulas, panos da
"1, ses sinais manuais que transportam os poderes. O Bekê acreditou Holanda ü1111 para ela a fin1 de scren1 lavados no rio. Durante 0

Ir ter ouvido um canto de bruxaria. Mandou prende-lo e jogá-lo na


n1asn1orra. Essa coisa acabava de ser construída, n1as já havia, con1
sua crueldade plácida, destruído dois negros congos suspeitos de
resto _do :tia,_ tinha de costurar os casacos para os escravos, caJJi-
nar o 1ard1111 )Unto con1 un1 inválido, ajudar no galinheiro e assun1ir
1

envenenamento. O pai de meu papai ali ficou calado, nada con- (•) (Requbitado pela justic.·a p;1ra sen·iços n;io n1uito dignos. ele \"iYi:l nuin
fessou, nada disse sobre o veneno, nen1 111esn10 quando o Beke bun1_c~1 d:~ pris:io inilitar junto con1 as co1H.k.·n:1das ;i 1norre. co 1n as quais. :tté 0
.<>uphc10 f1n:1l. atnori%:1,·:11n-no :1 prack·:H· :unores aterr:idore.-;.)

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o etcétera de um bocado de amolações. Ainda assim, essa vida era, palavras: batiam de alegria como as asas do colibri. Falava com
de longe, melhor do que a dos canaviais. De onde ela saíra por palavras simples a respeito da água, das pescas de camarão, dos
causa de uma queda. Como o veterinário (um pouco novato) fi- pensamentos da traíra no fundo dos grandes lagos. Ensinou-lhe
cou embasbacado diante de seu quadril quebrado, a mãe de meu a substituir o sabão do Bekê por cipós espumantes, a fim de trafi-
papai acabou manca. O menor passo exigia-lhe balançar o busto, car o sabão preservado. Mostrou-lhe como perfumar as camisas
parecendo, por assim dizer, uma canoa enfrentando uma vagalhão. com a essência de um grão escondido debaixo de folhas pálidas,
Temeroso de que esse mau agouro se transmitisse às colheitas, o ou como clarear os tecidos com uma seiva opalina. Sobretudo,
Bekê retirou-a dos canaviais e fez dela uma mucama, depois revelou-lhe o prazer de sua memória ao relembrar uma terra im-
nomeou-a lavadeira, quando a velha que ocupava esse posto possível que ele murmurava África. Se lhe passou seu horror do
perdeu-se no rio. Mais tarde, a Senhora da casa-grande (uma antiga mar, ensinou-lhe seu imenso encantamento pelo menor arrepio
meretriz parisiense que andava sem os pés mas com todo o cor- que percorria a natureza. Foi daí que ela pegou a mania de evocar
po), interessando-se por ela, confiou-lhe os cuidados de sua linge- para o mundo uma beleza ofer.ecida a quem sabia olhar. Essa filo-
rie secreta. Vestidos de fino algodão, anáguas de cocotes, manti- sofia trouxe-lhe uma desgraça, pois sua velhice foi exclusivamen-
lhas de renda que pareciam um vapor. A Senhora dava risadas de te deitada, estendida em cima da relva, com o olhar oferecido a
criança. Uma candura no olhar afastava-a daquela imunda planta- formigueiros que ela sempre achava bonitos. Os bichinhos mor-
ção. Ela pairava numa inocência irreal adquirida durante a viagem deram-lhe as pálpebras, até torná-las caídas e querendo sono. Ela
para as ilhas, no exato momento do naufrágio de sua escuna, o teve de segurá-las com o dedo, a fim de poder trabalhar em seus
que foi mais um susto do que uma tragédia. Desde então, andava afazeres durante o dia. Quando aquelas mãos ocupadas impiedo-
como andam as nuvens, e enchia o mundo de perfumes e flores. samente abandonavam as pálpebras à própria queda, ela titubea-
À mãe de meu papai, deu agulhas, uma tesoura, uma coisa para va pela casa-grande como uma sonàmbula. Mas essa tristeza veio
medir o pano. Nutrindo a ambição de torná-la costureira, encora- depois, pois na época do homem que morria na masmorra ela co-
java-a com umas moedinhas, uma ponta de xale, e até uma velha nheceu uma espécie de felicidade: aquele prazer de viver rindo,
capelina que vovó vestia durante a extravagância de suas festas do qual fui a herdeira.
religiosas.
Ela conheceu o homem que morria na masmorra em pleno À beira dos rios, a areia de vulcão já é uma boa areia. Mas
dia de lavagem de roupa. Ele surgira de dentro de um arbusto de areia de beira-mar fica pesada de sal e cheia de ferro. En-
alamandas, o olhar cravado, como de hábito, num vôo de melros tão, eu a deixava na calmaria das chuvas, até a cor exata.
brincando nos ventos alísios. Parece que lhe dirigiu uma palavri- Certas horas, eu misturava à cal e à areia a cinza do baga-
nha, depois voltou no dia seguinte, depois mais um, depois o tem- ço e o melaço grudemo. Um ofício e tanto, minha filha ...
po todo, sequer preocupado com a vigilância do feitor. Kouman Caderno n~ 4 de Marie~Sophie Laborieux.
ou pa an travay, Você não está trabalhando? ... espantava-se vo- Página 18. 1965.. Biblioteca Schoelcher.
vó. Man ka bat an djoumbak la, Não deixei meu trabalho, retru-
cava ele arregalando as pálpebras ao redor dos olhos. E, de fato Ela se pôs a esperar e, sem se dar conta, a sentir uma necessi-
(vovó se informava), nunca ninguém o viu abandonar a roçagem dade tutelar daquele homem. Um dia (imagino, porque ninguém
1

nem sabotar o corte. O feitor que contava a fila dos escravos nos me contou), o dedo dele fez brotar em seu cangote quinze arre-
campos jamais flagrava uma ausêntia daquele lombo. Mas o ho- pios, depois um monte de sensações gostosas bem no meio da
mem demorava-se ao lado dela, naquele fundo de ribanceira on- barriga (melhor do que essas de um fundo de cachimbo pitado
de se lavava roupa. E que pudesse fazer isso era realmente um ao final do sol à escuta dos grilos). Logo, logo ela deve ter alarga-
mistério. do os quadris, iluminado o rosto e sentido o leite. A anunciação
o homem não era tão taciturno assim, nem silencioso, nem dessa maternidade foi uma desgraça para o homem que morria
sequer de temperamento ausente .. Seus lábios não se furtavam às na masmorra. Ele ficou duro como um campeche. Áspero como

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uma escarpa marinha, Amargo como bicho-do-pé com sal. Quase ra, ora a borboleta, ora o leve sopro no ouvido de uma garganta
a insultou, antes de lhe gritar Nada de filhos da escrai•idào! ... Is- que murmurava o tempo inteiro, Ah, é matar que eu não quero,
so para dizer, de passagem, que nenhum homem quando é um é matá-lo, é matar que eu não quero ...
homem é realmente bom. Dessa estranha saída, trouxe uma convicção difusa: o homem
'
1 'i' Quis que ela engolisse um chá de gosto ruim. Quis, num ou- que morria na masmorra tolerava o seu bebê. E aí, tudo correu
'" tro dia, dar capinhas em sua barriga. Mais um dia e, com um gesto
de poder e um canto muito antigo, surgiu de dentro de suas ala-
bem: teve uma gravidez de samambaia na chuva. Quebrando dez
anos de obscura resistência, meu papai foi o primeiro negrinho
mandas. Parece que ela sentiu o ventre em hibernação ir se dete- a nascer nessa fazenda. Emergiu na varanda da casa-grande em ple-
riorando numa chuva íntima. Gritou, gritou para valer, enfureceu- no vento molhado e frio. Precisou de vinte e seis horas para sair,
se, protegeu o ventre com as mãos. Ele ficou estarrecido, transido depois de se perder em suas águas. Despontando para os ares do
de tanta raiva e tanto amor. Quando desapareceu (com o olhar, mundo, disse ter sentido um arrepio ao se virar, mas a matrona
imagino, ombreado de misericórdia), ela sentiu o ventre esque- conseguiu agarrar seu pescoço (que felicidade, pois naqueles tem-
cer a hibernação e entrar na estação mais suave de um sol dentro pos doentes mil escravas tinham morrido por causa de um negri-
d'água. nho entalado que se recusava a sair, com a desculpa fácil de que
O Bekê dançou de contentamento em volta de seu ventre. os tempos de fora não eram bons tempos).
Mandou-lhe dar leite de vaca bretã, tartaruga salgada, uma carne
vermelha da Irlanda e fatias de queijo. Proibiu-lhe rio e casebres Dos caraíbas, guardei a técnica do abrigo aproveitando
de escravos onde as prenhes não chegavam a bom termo. Pôs no
li corredor um colchão de crina, de onde ela escapava a fim de aju-
os materiais da paisagem. Bambus. Coqueiros. Palmeiras.
Com eles conhecemos as telhas vegetais e os cipós-
·:1 dar nas tarefas da horta e costurar no andar de cima. Passava longos
'Ili··':i amargos que amarram as tábuas. Bela memória é ofício.
,''
l momentos em cima da bancada de costura instalada pela Senhora
'' diante de uma janela. Dali, descortinava os canaviais, os campos Caderno n'? 4 de Marie-Sophie Laborieux.
do gado, os arbustos de café, a madeira cortada para os próximos Página i;. 196;. Biblioteca Schoelcher.
trabalhos de marcenaria, o moinho, os galpões para o açúcar, os
alambiques do rum, o armazém, os casebres da senzala e a palho-
CONQC!STA DA CASA-GRANDE. Meu papai viveu como moleque
ça que servia de hospital. O vento transportava-lhe os odores do
bagaço. Do azul dos morros, o horizonte lhe prolongava os verdes. de casa-grande. Primeiro, foi chupador de tetas. Depois, embara-
Quando uma vontade a atraía para a beira da janela, ela avis- lhador de fios em meio a um desastre de agulhas. Quando seus
tava o homem que morria na masmorra. Este a fixava de longe músculos puderam levantar uma dezena de formigas, a Senhora
demais para ser humanamente possível enxergá-la, mas olhava as- lhe deu trabalho. Foi caçador de moscas, manejador de leque nas
sim mesmo, é de imaginar que tinha um olhar especial. De seu horas do calor, limpador de persianas e fechador de janelas. Foi
perfil só emanava uma surpresa muda, talvez sentimental. Entre- esmagador de baratas e vigia das cobras que visitavam as depen-
tanto, ela desconfiava e temia à distância algum despacho que ar- dências. Foi carregador de cestas de roupa para sua mãe, descas-
ruinaria seu ventre. Uma noite, saiu do colchão de crina, levando cador na cozinha, capinador de quintal, depenador das trinta ga-
um facão, e subiu até o casebre do homem com a idéia de estran- linhas na madrugada dos dias de festa, ensaboador de louça, regador
gulá-lo. Imagino as cores de seu sofrimento vestindo-a com ases- de plantas, sacudidor de lençóis e batedor de colchão. Foi
camas da cobra assassina. Encontrou no local deserto um cheiro lubrificador de fechaduras sob a autoridade senil de um preto ve-
de raízes que lhe provocou uma leve tonteira. Por isso é que não lho serralheiro. Foi também especialista em certos ofícios pelos
prestou atenção na borboleta noturna voando perto de seu umbi- quais ninguém jamais ficou-lhe grato: espião das fornicações do-
go. Sua volta à casa-grande foi a de um fantasma. Mal percebeu mésticas, interruptor de sestas do jardineiro doente, escrutador
quando sentiu a seu lado, ora o homem que morria na masmor- dos seios translúcidos da Senhora quando lhe enchia sua bacia ma-

46 47
. '
1
1

tina!, contador de bobagens cujos vestígios evidentemente nenhu- Meu papai observava aquilo tudo sem entender grande coi-
ma história guarda na memória. Mais velho, foi menino de recado sa. Tornou-se arrogante com os negros da cana, tal como tinha
"'
~i entre o térreo e a vida do andar de cima, entre o jardim e a cozi- obrigação de ser o mais insignificante criado. Ir para os canaviais,
nha, entre os canaviais e a casa-grande, e depois entre esta e as para fora da humanidade, passou a ser para ele um permanente
1
fazendas·vizinhas. Mas, de toda essa maçarocada, só o ofício de receio, o mais duro castigo. Com uma tristeza incrédula, confes-
descobridor das majestades da casa provocou-lhe algum interesse. sava-me ter sido um verdadeiro preto de casa-grande. Os limites
Era uma construção comprida de madeira imortal, cercada de de sua ambição eram as brigas na cozinha pelos restos da mesa,
espinhosos limoeiros, glicérias e pés de orquídea. Debaixo do pi- ou o fato de poder vestir, todo vaidoso, uma echarpe surrada do
so de cerâmica escondia-se um ar fresquinho e mergulhavam sem Bekê. Inventava intrigas a fim de ser presenteado com um retalho
nenhum calorão os raios de sol. Presos na armadilha dos posti- de tecido polonês, ou de ser amado por um tinhoso parido pela
gos, das paredes recortadas, os ventos atravessavam-na num vai- Senhora. Brigava para anunciar uma visita, uma carta vinda da Fran-
vém. Um corredor coberto, tendo ao longo do comprimento jarros ça. Aprendeu a gemer quando passava um meirinho ou a expres-
para a chuva, filtrava os eflúvios do açúcar e das flores do jardim. sar as alegrias da casa durante as ruidosas paradas que ali faziam
Em pleno dia, a penumbra tomava conta do interior, denuncian- os policiais. Que nisso houvesse uma maneira de sobreviver pela
do o vermelho-mogno dos móveis de formas maciças. Ele ficou astúcia, tal como lhe ensinava o Compadre Coelho das histórias,
fascinado por um bufê de mármore que parecia uma pessoa, pe- até a sua morte nunca ficou muito claro em seu espírito. Para ele,
las carnas de colunas ondulantes debaixo dos mosquiteiros. Do sem remissão, e qualquer que fosse a conjuntura, conquistar as-
encaixe das vigas com as tábuas parecia-lhe nascer uma difusa ma- sim a casa-grande equivalia a morrer. Mas só soube disso uma vez
gia. Ele queria saber que tipo de força tinha sido capaz de pôr de fora - nas horas ainda distantes de uma reflexão sobre a vida.
pé aquilo tudo, associar aquelas essências, domesticar aqueles ven- O destino, numa curva, mudou-lhe a existência. Houve um
tos, aquelas sombras suaves e aquelas luzes. Essa admiração che- atraso dos veleiros do povoado, provocando escassez dos caixo-
gou ao auge no esquecido sótão onde uma geometria de barrotes tes de bacalhau, carne salgada e favas que constituíam a alimenta-
ligava o conjunto da casa-grande. Aquela visão da armação do te- ção do dia-a-dia. O Bekê jamais pensara em escavar em sua terra
lhado determinou talvez os trajetos de sua vida, de seu destino o menor canteiro de horta. Viu então o guarda-comida minguar.
e, finalmente, do meu. Mas como nada do fururo se mostra antes Os escravos, familiares dos ventres murchos, trouxeram de roças
da hora, ele só soube disso quando já não podia voltar atrás. invisíveis algo com que manter o peso de seus corpos. Além dis-
A casa-grande erguia-se no centro das dependências, das cons- so, aprenderam a apunhalar os camarões no rio, a embriagar as
truções e das palhoças. A partir dela, irradiavam-se os canaviais, as moréias com o suco de uma casca de árvore, a armar alçapões pa-
hortas, os terraços de café subindo a ladeira das árvores de madei- ra a carne de uma caça migradora. Sem ser um pitéu de primeira
ra de lei. Dominava tudo, parecia tudo aspirar. O cansaço dos bois, comunhão, isso evitava-lhes a fome do Bekê e de seus criados nos
o desespero dos escravos, as belezas da cana, o chiado das moen- hectares de canaviais e café.
das, aquela lama, aqueles cheiros, aquele fedor de bagaço existiam Coisa rara, o Bekê de barriga vazia despendurou da parede
a fim de alimentar seus ares imponentes de poder. Os escravos
a espir;garda do tempo dos ingleses. Tendo meu papai ao lado,
avistavam-na de qualquer lugar onde trabalhassem, e mantinham
deu a ordem: descer até a orla dos bosques, lugar de caça de ver-
o olhar furtivo que teríamos mais tarde diante das cidades ou de suas
delhões e cercetas de passagem. E deu de cara com um negro fu-
catedrais. O administrador e os capatazes enobreciam os passos
gido em estado lastimável, coberto de piãs, a perna devastada pe-
quando se aproximavam de seus degraus, suas gargantas canalhas
los cachorros, o corpo cheio de crostas por conta de un1a vara
encontravam a doçura do mel, e, no alpendre, todos tiravam o cha-
péu. A pessoa do Bekê não inspirava semelhante respeito. Nos cam- de marmelo e o espírito naufragado no ódio. Brotando de um es-
pos, seu perfil a cavalo, recortado contra a distante fachada, pare- pinheiro, o demente arranhou o Bekê no pescoço. Assim como
cia frágil ou débil - mas de perto, na porta da casa, era invencível. eu falo con1 você, cravou-lhe un1a baioneta suja e o triturou con1

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uma fúria centenária digna de uma carne de búzio lambi que a gen- · lhidas antes do sol. Para ele, a lepra não era um piã çlegenerado
te tem de amaciar antes de cozinhar. Meu papai (ele não soube depois de impingens vermelhas; mas uma amolação a ser tratada
por quê, mas tenho a impressão de que foi sem se fazer de roga- · com fricções de urtiga-morta. Diante da Senhora espantada, argu-
do) agarrou a espingarda e fez bum! ... O negro fugido olhou-o com mentava que o enforcamento não era uni remédio para a demên-
a mais dolorosa surpresa. Depois caiu de tal forma morto que da- cia furio.sa, e que nem a sarna sifilíticâ era uma doença venérea,
ria para desconfiar que andava impaciente para deixar esta vida. e que, acasalando as meiancólicas comedoras de terra, era possí-
Sem se 'atrever a montar no cavalo, meu papai levou o Bekê vel salva-las. Tratava a elefantíase com vitríolo, mas era sensível
nas costas até a fazenda. O administrador reagiu, com uma pistola à idéia de Bertin de acrescentar uma goma ao álcali da teriaga. Para
na mão, e mandou tocarem o sino de alerta. O trabalho dos cana- a dor de barriga que deixava a pele esverdeada e o corpo inapto
viais parou na horinha. Os cachorros gritaram como na lua cheia. ao esforço, gostava de recomendar uma fermentação de pregos
Afluíram pessoas que passavam e colonos das redondezas. Acre- enferrujados, sal grosso de amoníaco, anis, erva-cidreira, gengi- ·
ditou-se que papai era culpado; já o amarravam com cordas quan- bre, sete limõés num mel comum. Cuidava do tétano com poções
do o Bekê, saindo do torpor, o desculpou. de vinagre e suadouros obtidos perto de um fogo muito forte. E
para a sífilis, sua grande inimiga (na verdade, pro;,edora de seu
Antigamente, naquele tempo de antes das leis sobre as régio conforto), experimentava umas sangraduras no pescoço e
florestas, eu derrubava as simarubas e um monte de pés infaliveis pinceladas .de mercúrio. Os resultados levavam-nçi a pen-
de louro-pimenta, que eu cortava com o rapon balancé, sar q1,1e o pó .de Ailhaud, o cirurgião de Aix, era, e agüente a ex-
uma serra que servia para tudo. Essas árvores se deixa- pressão, uma rematada cretinice. E se a Senhora se queixava de
vam cortar em toras bem finas, com a machadinha e o abatimento, assinalava-lhe, ao ir embora, o efeito cordiai.da cane'
facão. Hoje, para esculpir as telhas de madeira, os jovens la que um preto velho imbecil lhe ensinara.
marceneiros mandam vir de Caiena a árvore que se cha-
ma ualaba, cujos sentimentos ninguém conhece. Minhas Eles dizi;µn com suas palavras: escravizar. Para nós era
telhas de madeira, as minhas, Marie-Sophie, desencora- ouvir: estrabalbar. Quando souberam disso e passaram
javam os ventos, passados mais de quinze anos. a nos chamar, ao nos "aproximarmos, de Estrabalbador,
Caderno n ~ 5 de Marie-Sophie Laborieux.
já tínhamos resolvido esse problema de idéia de traba-
Página 22. 1965. BibliOteca Schoelcher. lho ... quá-quá-quá, a palavra ia abrindo ·caminho, Sophie,
a palavra ia deixando vestígios, como uma arma ...
Bekê ferido teve febre vários dias, lá em cima da casa-grande. Caderno n~·2 de Marie-Sophie·Laborieux.
Foi visitado o tempo todo por uma espécie de médico que fuma- Página 9. 1965. Bibliotecã Schoelcher.
va cachimbo e vivia cuspindo nos cavalos de sua carroça. A vida
da fazenda era regulada por seu'ritmo. Suas visitas suspendiam o Bekê curado convocou o administrador e pediu notícias da
trabalho e só deixavam fumegar as caldeiras do engenho. Suas des- fazenda. Na encosta lavrada do morro', decidiram fazer terraços
pedidas liberavam a ansiedade assim.que a Senhora pairava no cor- para um abençoado pomar; depois, o Bekê mandou chamar meu
redor e desaparecia numa sombra. Ela o recebia no alpendre e papai. Perdido no meio de sua cama de colunas, espiou-o demo-
levava-o aos aposentos. Ele fazia curativos no doente, aspirava- radamente. Diversas vezes tentei imaginar aquele sujeito. Papai,
lhe o pus, entupi'!-O de pós brancos dissolvidos em copos d' água. que dizia desconhecer seu. nome e suâ história, negou-se a des-
Depois, ia se sentar com a Senhora nas poltronas da varanda e pe- crevê-lo para mim, talvez temendo que ele começasse a lhe im-
rorava sqbre a medicina escravista, na presença de meu papai, que portunar a velhice. Mas gosto de pensar que ele tinha os lábios
servia as bebidas alcoólicas. finos e os olhos tuwos dessas feras que já não.sonham com o mun-
Inventara o punch antiescorbuto, uma atrocidade de vinho do. E garanto que estou certa, pois hoje, nos negócios de impor-
branco, raízes e raiz-forte, passiflora e folhas de rábano-rústico co- tação e exportação, os jovens bekês têm os mesmos lábios e os

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_, ..
n1esmos olhos, e se emocionam mais facilmente com uma cifra pava-se limpando os numerosos aposentos do andar de cima. À
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do que com o mais belo poema. Ao final de seu silêncio, o Bekê tarde, emaranhada em seus fios, costurava os casacos dos campos.
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, falou a meu papai que ia alfo1-riá-lo, palavra que, na hora, não Os negros artesãos ofereciam-lhe jóias de tartaruga. Queriam que
lhe disse nada. De toda a explicação que o Bekê lhe deu, só guar- ela cuidasse da elegância muito especial de suas festanças domini-
dou para a eternidade esse farrapo de frase ... uocê terá libe1·dade cais. Alguns dedicavam a vida a pensar nas roupas para os muti-
;1
' para fazer ou não fazer o que quiser e ir para onde tiver vonta- rões que organizavam na Cidade durante a preparação das festas.
de e como lhe der vontade ... E na sua lista de móveis, gado e es- Traziam-lhe do povoado, em absoluto segredo, retalhos de pano-
cravos, o Bekê mandou escrever na altura de seu nome: Lflire de da-costa, lenços grandes de veludo, umas tripinhas de rendas, cor-
savana. tes de tecido de cores espalhafatosas que revestiam com um manto
Liberdade de savana era a maneira mais fácil de libertar um de orgulho a decadência de cada um. A mãe de meu Esternome
escravo. Declaravam-no livre sem nenhuma certidão de cartório, confeccionava-lhes as rnupas misturando seu próprio gosto a al-
sem nenhuma taxa, sem a obrigação de pensão alimentícia. Alguns guns modelos dos trajes da Senhora. Sob a costureira hábil, a mu-
dias depois, o Bekê mandou lhe entregar uma folha que meu pa- lher tornara-se sonhadora.
pai conservou a vida inteira e que um dia eu pude ler, perturbada Era fiagrada com a agulha no ar, atenta aos acordes de uma
de tanta compaixão. O Bekê escrevera: Dou e lego ao chamado distante mandolina. No que as mexeriqueiras enxergavam coisas
Esternome, que me salvou a vida, liberdade de sal'ana e o beber do sentimento, sem porém conhecer-lhe o menor namorado. As-
e comer enquanto eu estil er uiuo. Rogo à minba 1nu//Jer a 1neus
1
1
sim, imaginaram-na apaixonada por uma quimera, por um pássa-
filhos, a meu administrador e a qualquer leitor não importuná- ro inconstante ou por um vento viril e perturbador. Esternome
/o nem exigir serviço de sua parte. E, à guisa de assinatura, fez meu papai percebia de longe, e de mais perto no domingo, quan-
uma cruz com a mão. do, juntos, grelhavam a carne de suas caçadas à beira do rio. Pois,
se ele teve de sair da casa-grande, nem por isso saiu da fazenda,
Sophie, minha Marie, meu absinto de domingo, você sa- onde levava uma vida de acordo com os próprios desejos, caçan-
bia que quando chegavam novos escravos o Bekê fazia do, pescando, perambulando ao longo das estradas, das picadas
umas mandingas com pólvora, fogos, faíscas, gestos es- e dos atalhos. Em seus primeiros dias de savana, tentou ver os ne-
tranhos e rezas esquisitas? Assim, na prisão, com un1 me- gros aquilombados, esses iniciados nas liberdades. Em vão. Os ne-
do desgraçado, todos nós acreditávamos que ele tinha gros fugidos viviam sem sombras. Pareciam ter desertado esse
a Força. mundo. Então meu Esternome zanzava de um lado a outro, mos-
trava seu documento diante das perguntas da milícia ou do me-
Caderno n'? 3 de Marie-Sophie Laborieux.
Página 16. 196;. Biblioteca Schoelcher. nor Quem está aí? de um bekê desconfiado. Não se atrevia a ir
embora nem a realmente ficar. Situação estranha, a fazenda tornara-
Meu papai Esternome' levou tempo para entender que não se para ele uma espécie de havre.
tinha mais grilhões. Que podia trabalhar ou passar o dia no sol,
de barriga para cima. Que podia se rebelar na hora da chamada
do rancho, dançar lundu nos batizados, manter seu casebre ou dar o MENTÔ E o CARPINTEIRO. É claro que o mau tempo continua-
o fora. A cada descoberta de uma nova liberdade, imaginava algu- va: escravos na miséria, chibatadas, trabalho interminável no la-
ma cilada armada pelo Bekê, depois, pouco a pouco, investia-a maçal das colheitas. O envenenamento dos bichos ainda con-
a fundo. Sua velha mãe ficava orgulhosíssima. Ela se tornara criada- trariava o vaivém das moendas. O Bekê ficava cada vez mais
costureira. Sem ter mais a obrigação da roupa suja no rio, ocu- perverso. Sua masmorra funcionava a toda atrocidade. Um dia,
atirou ali dentro o negro da missa rezada que, sem ajuda de nin-
(~)Ele n1es1110 só te,·e a certeza de se chainar assin1 na hora en1 que o Bekê guém, soubera se curar da mordida de cobra. Enquanto durou es-
o chan1ou assin1. Que que é uni non1e, ~tarie·Sophie. que que é un1 no111e? se encarceramento, a fazenda acordou alvoroçada por causa da

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penugem de um pássaro que batia asas esgazeadas no ar suave do envenenado, e que portanto, fai;a-me o favor, agir do mesmo jei-
céu. As peninhas que apareciam por todo lado encantavam a pai- to com a figura enlamaçada do inhame-de,são-tomé era ignorar
sagem com uma cor de lua cheia. Também devem ter forrado os a maravilha desse alimento. Essas palavras· desfiadas em tom de
pulmões (pois todos espirravam) e emplumado os sonhos (pois escola leiga ofereciam-me, segundo ele, material para altis refle-
todos tiveram' pesadelos com pessoas de bicos vermelhos voan- xões sobre a filosofia do hábito e do monge. Mas eu, que já 'deixa-
do nos ciclones). Meu papai Esternome também ouviu a última va a vida correr, guardei a imagem de um Mentô 'maravilhosó, até
missa rezada do homem preso no fundo da masmorra. Quando a oferenda tardia da boa verdade.
soube que o cadáver fora queimado, o cadáver de seu próprio pai, · O Mentô era um preto velho da África, nem muito forte nem
resolveu• fugir dessa fazenda de merda, abandonar aqueles cam- muito alto, com uma cabeça redonda e assustadora em cima de
pos, nunca mais ver aqueles canaviais e conseguir a liberdade de um pescoço enrugado de tartaruga-do-mar. Tenc;lo desembarca-
sua velha mãe - (ah, minha querida avozinha, ah, minha desco- do entre os primeiros que chegaram, consumira sua tenra idade
nhecida íntima, ó, avó, da qual só tenho o riso! sua velhice foi desbravando a fazenda. O administrador se servia de sua velhice
um abismo debaixo de suas pálpebras destruídas ... ).... para tomar conta dos bois, gl.iiar as mulas, vigiar os· cerrados, mil
Por meu Esternóme, seu salvador, o .Bekê aceitaria a liberda- e uma ocupações pouco exigentes em matéria de músculos. O Be-
de da velha costureira em troca de um dinheirinho. Mas encon- kê jamais tinha amolações com ele, que jamais tinha contato com
trar esse dinheiro supunha partir, e partir não era tão simples quan- o Bekê, nem com o administrador, o capataz, ninguém: andava
to colocar uma cadeira diante de um prato de comida. Os bekês . discreto como um tranqüilo vento encanado. Um Mentô, dizem,
haviam reduzido aquela terra a um circo· de horrores cujas leis só nunca sofreu chibatada nem masmorra; na hora dos ferros e da
eles coqheciam. Por isso, a idéia de partir soava para meu Ester- golilha, era esquecido; as vontades perversas de qualquer pessoa
nome como uma velha história de desgraças. Então, mais do que jamais se exerciam contra ele. E essa era (se fosse preciso identificá-
agir, preferiu pensar - e ainda pensava (característica de meu pa- la) a própria marca dos Meritôs. Viviam entre os homens, sem ba-
pai, essa de pensar, pensar, 'pensar antes de levantar um dedo ou rulho nem cheiro, parecendo invisíveis. Ainda hoje, poucos ne-
tremer um músculo) quando alguma coisa roçou em suas costas. gros desconfiam de sua existência. Ora, só Deus sabe o estado em
Ele estava lá no fundo da fazenda, num lugar onde a terra enrolava-· que, sem eles, nós costumávarnàs viver.
se sobre si mesma antes de se lançar como um morro por baixo O que meu Esternome entendia por·Mentô, tive dificuldade
da vegetação rasteira. E ali, assim, ·sem mais ess.a nem aquela, ele para aceitar. Para mim é sempre difícil imaginar a Força como es-
viu com o branco de seus olhos, pura e simplesmente, o que qual- crava numa fazenda; a Força vigiando as pegadas do. boi num ma-
quer pessoa bem informada daria· tudo para ver: um Mentô. tagal onde tem bicho-comprido, a Força carregando o bagaço ou
Desculpe os detalhes, mas, para entender, é preciso saber que, semeando cinza, a Força acordando com um sino, deitando-se na
junto com os homens de força (a História chama-os de manitôs, hora devida, indo à missa no domingo cte manhã, recebéndo uma
catimbozeiros, mandingueiros ou feiticeiros), às vezes surgia a For- meia tarde livre para tocar tambor, dançar como cobra, fartar-se
i 1 ça, e era, tenha a bondade, nada menos do que O Mentô. de um bacalhau com pimenta em óleo rançoso. Diante dessas bo-
Como não acreditar que ele viu naquele momento um negro bagens, meu Esternome argumentava que um Mentô jamais era
fl!llilejante, maciço como um pé de cincho, ostentando uma bar- escravo. A gente podia, Marie-Sophie, ter correntes nos pés e ao
ba brumosa, e, por que não, alguma mula voadora? Se preferiu mesmo tempo sonhar na cabeça com a caça de uma.bela ave. Mais
·me deixar essas ilusões, meu Esternome lembrou-me, ainda assim, de um preto supostamente livre carregava dentro da cabeça as cor-
que julgar a maricenilheira pelo aspecto de suas frutas era morrer rentes embrutece.doras dos miseráveis negros congos. Se havia ne-
gros fugidos nos morros, também havia negros aquilombados den-
(*)Resolver ... digo resolver. porque papai dizia resolver, mas acredito mais tro das próprias fazendas, tanto assim que vi o Mentô numa hora
que ele estava tomado por uma espécie de horror que o deixava desenraizado e em que ele devia estar vigiando não sei o quê, quando na verdade
disponível para o menor vento que passasse. É nisso ·que acredito. não estava, mas estava, já que ninguém notava sua ausência. ~ por-

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que ele não estava ausente, sabe ... dizia papai. Ao escapar da des- A partir daí, meu Esternome mostrou-se crédulo para as artes
graça, murmurava ainda meu pai (num tom estranho que me inci- do diabo. Os ventos, a luz, os cantinhos de sombra do mundo
tava a duvidar se ele acreditava mesmo nisso), o Mentô preserva- pareceram-lhe santuários de forças invisíveis. A realidade pareceu-
va nossos restos de humanidade. Era o carvão de um combate sem lhe uma ilusão simples d;:mais que se devia abordar com descon-
herói, cujo calor só se pode imaginar, ainda hoje, se encostarmos fiança e dúvida. Qu~t6 à verdade, só lhe dedicou uma infinita
nas sevícias concebidas pelos bekês para estraçalhá-lo. Outra coi- circunspecção. O olho do preto velho se impregnara de uma au-
sa, acrescentava meu pai: quando um bekê tinha um Mentô entre toridade imemorial capaz de, juro, enfeitiçar qualquer gavião ou
seus escravos, querendo ou não, com sal ou sem sal, no óleo ou conseguir que um bicho-comprido escondido se desenroscasse.
no vinagre, que mandasse rezar missa ou não, que fosse gentil ou E ele repetia conseguir que um bicho-comprido escondido se de-
.muito malvado, que sua terra fosse boa ou estéril, que tivesse nas- senroscasse - a seu ver, sinal evidente daquilo a que chamava
cido com sorte ou que penasse com os maus-olhados, ao final do de Força. Então, ele, ,que não tinha nada de uma cobra, se emper-
mais-cedo ou em algum lugar do mais-tarde, está me ouvindo, tigou na hora, respeitoso, atento, diante do preto velho que vol-
Sophie-Marie, esse bekê se arruinava. tou a ser leve como o ar.
Este falou-lhe num crioulo diferente da língua do Bekê, não
Em algum momento, perturbado como uma criança e nas palavras mas nos sons e na velocidade. O Bekê falava a língua,
apesar de seus três vezes trinta anos, meu Esternome me o Mentô manipulava-a. Meu Esternome alegou ter se esquecido
perguntava: Marie-Sophie, você vai me desculpar, mas ... do teor daquelas palavras. Ainda assim, a imprecisão de sua me-
o que é a liberdade? Quando eu respondia, ele escutava mória guardou que o homem da masmorra, seu próprio pai, obe-
ávido parecia muito contente, e aí, de repente, seu olhar
1
decia àquele sujeito, o qual lhe dava uma parte de sua força. Seja
se asfixiava de piedade. E então era eu que, perdendo como for, aquelas palavras, isso pelo menos era certo, insufiaram-
meu jeito gabola, descobria uma insignificância de idade. lhe no desejo o próprio desejo de partir. E também erigiram o Men-
Um dia, quem sabe por causa da proximidade da morte, tô à condição de fonte de nossa dificultosa conquista desta terra.
ele me soprou: Sophie, flor de bambu, minha bengala de Pegar (quis-lhe dizer o Mentô com palavras transparentes para a
velhice, chuva que bateu na língua de minhas sedes, Ma- memória consciente - mas desconfio que, aqui, meu Esternome
rie, meu doce refresco, não se deve responder a todas reconstruiu um pouco as recordações para poder contrabandear
as perguntas... suas histórias), pegar com a maior urgência o que os bekês ainda
Caderno n1? 6 de Marie-Sophie Laborieux.
não pegaram: os morros, a parte seca do Sul, as colinas nubladas,
Página 30. 1965. Biblioteca Schoelcher. os barrancos e as ribanceiras, e depois apossar-se daqueles locais
que eles criaram mas cuja aptidão para transformar a História be-
Esternome viu surgir essa espécie de humanidade quando es- kéia em nossas mil e uma histórias ninguém avaliava. E o que eram
tava pensando no projeto de partir. O sujeito, sorrindo como um aqueles cantos?, perguntei a meu papai. Ele, parecendo um sena-
palerma debaixo de um abacateiro maduro, perguntou-lhe: Ou sé dor levemente embriagado, olhou-me de soslaio a fim de avaliar
ich misié Pol?, Você é o filho do seu Pol (Pol, o homem morto meus méritos para a revelação, e depois, num francês muito cui-
na masmorra depois de ter talvez envenenado sete bois, nove mu- dado, murmurou-me duas vezes, uma para o ouvido e outra dire-
las, três cavalos, secado ventres fecundos e destruído os pés de to para o coração: A Cidade, Santo Deus: Saint-Pierre e Fort-
cana do Bekê com cem ratos, doze insetos, uma chuva podre e Royal...
cinco vendavais implacáveis). É claro que papai não tinha a me- Claro está que, apesar da decisão tomada e fiel a si mesmo,
nor vontade de falar do assunto com um indivíduo tão insignifi- meu Esternome não pegou a estrada imediatamente. Precisava de
cante. Já estava indo embora quando o bugre lhe agarrou o pulso um empurrão, uma espécie de !alagada tomada em jejum, como
com a força de uma moenda nova. Meu Esternome sentiu o braço que uma mola que impulsionasse seu corpo, a qual, sendo desti-
quase esmagado. Um calor ziguezagueou por seu corpo. no, foi-lhe dada por uma descarga do céu: um ciclone. Um negócio

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de água e vento cujo modo de agir se conhece, mas que.aqui pre- de se aproveitar dos chamegos de alguma negrinha bem quenti-
cisamos que venha trazendo mais vento e mais água do que de nha. Pagava por esse serviço, durante o qual se proclamava· mais
costume. Era o mês das covetas para o plantio da cana, e durante feliz do que nas asceses das cumeeiras. Koco-Doce chegou dois
essas covetas desmatava-se o terreno. A chuva fininha fininha pôs- dias depois do ciclone, acompanhado por dois negros forros que
i se a se obstinar, hipnotizando o trabalho, forçando os homens a serviam de aprendiz. Mãos na cabeça, descobrindo o desastre dos
'
ficarem de olho em seus humores, a recuperar o tempo perdido telhados da moenda, das engenhocas e da casa-grande,' julgou
em serões prolongados. Depois, ela adquiriu os maus hábitos de
uma cachoeira eterna, e acabou se complicando numa orquestra
de sopros, os clarins perdendo a paciência com os trovões do des-
tino. Foi assim que começou a ruína do Bekê, cujo final foram
l
1
encontrar um algo mais de catástrofe que ultrapassava suas forças
oooh que desgraça etcétera ... - essas preliminares visavam limi-
tar antecipadamente a discussão sobre seus preços. Negócio acer-
tado, começou a trabalhar com os ajudantes, mas também com
os dias da Abolição.
Os canaviais viraram um alagado só. As cumeeiras, as telhas, meu Esternome. O destino sendo o destino, este último lhe fora
a palha das construções e dos barracos foram cobrir a casa das destinado.
nuvens. E foi uma verdadeira xoxota gigantesca, peço desculpas O trabalho durou umas boas semanas: abater as árvores, ser-
pela expressão, o que se descobriu na claridade submarina dos rar as tábuas, as vigas, os barrotes, armazenar a madeira seca de
finais de madrugada (só ficou intacto o casebre do Mentô, do que reserva, pois nunca se sabe, subir nas construções e recolocar o
ninguém se deu conta, com exceção de meu Esternome que, des- madeirame no lugar. Meu Esternome, sempre esperto quando é
de aquele encontro, andava de olho no sujeito). O Bekê, seu inten- preciso, apurou o olhar, limpou os ouvidos, e iniciou-se nas arru-
dente, seu administrador, seus capatazes e seus negros prediletos mações das vigas mestras, na ossatura das construções, nas arma-
enfrentaram o desastre, com o cenho à deriva em plena conster- ções dos telhados. Preocupou-se com o segredo das resistências
nação. Não precisaram de dois séculos para tomar uma decisão. aos terremotos e às demências da ventania __:_ quando tudo isso
Virou mexeu, e cada escravo foi submetido a uma tarefa, e sem se mantinha dentro das normas, pois a partir daí, está me enten-
distinção entre o negro dos canaviais ou da casa-grande, o traba- dendo, desculpava-se Théodorus, não é mais um problema do car-
lhador das caldeiras ou o responsável pelos animais, entre o que
'tinha colhões ou tetas, entre o que já estava. na idade da razão e pinteiro mas da sorte e das rezas.
o que ainda mamava. O Bekê esqueceu até que meu papai era um Parece que o homem conhecia o 'ofício. Durante suas nave-
liberto e o pôs no batente nos tanques do caldo de cana espremi- gações pelo mundo novo, como se dizia, fora carpinteiro da ma-
da, ali onde a moenda chora. Foi uma sorte, pois o trabalho le- rinha, depois contratado numa ilha holandesa após um naufrágio,
vou-o a encontrar o homem que iria carregá-lo, ao léu das estra- e depois pirata e depois miliciano sabe-se lá onde, e depois pro-
das, até o povoado e depois até a sua primeira cidade. prietário arruinado de uma fazenda decadente num buraco de Gua-
dalupe, e depois marujo num sei lá o quê flutuando no golfo do
Vi sociedades secretas de negros congos, Ibos, Bambaras, México. Um dia, foi visto desembarcando na Cidade de Saint-Pierre
que se deslocavam durante as festas públicas em grupos (mais uma vez, escapando de um naufçágio e ferido no ombro,
disciplinados e com belos trajes. Espadas de madeira. ostentando uma cabeleira vermelha que lhe engolia a cabeça, os
Chapéus de bico. Tinham rei, rainha, vice-rei, bandeiras olhos amarelos por causa da febre ·canibal daqueles que, com o
e cerimônias - e, garanto, talvez não tivessem um gran- intuito de sobreviver, devem ter sido obrigados a atacar as carnes
de saber mágico. de um companheiro cadáver), onde retomou o ofício de carpin-
Caderno n '? 4 de Marie-Sophie Laborieux. teiro. Como os mestres-operários eram raros na ilha, teve uma
Página 20. 1965. Biblioteca Schoelcher . tonelada de encomendas. Pouco depois, pôde voltar a dedicar

. O homem do destino era um branco mestre-carpinteiro. Cha- (•) Em plena noite e durante a noite inteira, os negros, à falta da eficiente
mavam-no Théodorus e alguma coisa atrás, mas os negros o cabeleira de palha dos pés de cana, haviam coberto seus casebres com as folhas
chamavam de Koco-Doce, de tanto que ele gostava, nas fazendas, de um arbusto do matagal.

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tempo a seus ágapes carnais e, inclusive, nos dias de abstinência ternome, que de toda maneira não sentia nenhum gosto por esse
impostos por suas forças, a pensamentos filosóficos sobre a idéia tipo de alegria, prometeu, fazendo uma grande encenação.
colonial.
Com aquele sujeito, meu Esternome descobriu o que se torna- "Os descendentes de sangue mestiço que provarem pe-
ria seu ofício: a arte de prender vigas sem um só prego, a arte do lo menos cem anos e um dia de liberdade, cujo bisavô,
equilíbrio das massas e do balanço dos pesos, a arte do cálculo das filho legítimo de pai e mãe negros ou de pessoas de cor
inclinações corretas, a arte das armações e das telhas fixadas por fi- nascidas livres ou alforriadas, tiver desposado em casa-
lamentos de cobre. Théodorus Koco-Doce acrescentava seu saber mento legítimo uma mulata forra, o avô, uma mestiça,
de normando aos ensinamentos oferecidos pelos molambos afri- casada forra, e o pai, uma quadradona, serão, em virtu-
canos e pelas ocas caraíbas. Pouco a pouco, sua ciência das cons- de da excelência de sangue, considerados brancos."
truções tornou-se muito especial, ajustada às maneiras do vento e Leitura fabulosa que Théodorus fazia nos tempos da
da terra nesta ilha de novidades. À noite, retirava-se para uma casi- zurrapa, de pé em cima de uma mesa de bar, a fim de
nhola de feitor, levando pão de farinha preta, uma zurrapa de Bor- salientar o inacreditável da época.
deaux e salames vindos da Alsácia. Na cabeceira do colchão de crina,
Caderno n l? 5 de Marie-Sophie Laborieux.
acomodava uma cerv_eja de casca de árvore que os caraíbas chama- Página 31. 1965. Biblioteca Schoelcher.
vam de mabi e cujas virtudes o ajudavam a montar, todo prosa, nu-
ma negra fascinada. Ouviam-no aiando a noite inteira, com pausas Durante as semanas que se seguiram, o pequeno bando andou
para gorgolejar em seus galões, cantar aos gritos modinhas de sua andou andou, consertou quatro fábricas de anil, andou andou, pôs
terra, chorar como uma criança os rigores do exílio, e depois, vo- de pé duas torrefações de café, andou andou, e um etcétera de
ciferar, dependendo da hora: Morte à escravidão! ou Viva a escra- galpões de mercadorias, animais ou negros. Théodorus à frente,
vidão! - ou ainda: Fabricando mulatos eu condeno a escravi- os dois ajudantes atrás, meu papai no meio, enfrentavam os mor-
dão ... ! Ninguém sabe de onde lhe vinha a força para acordar antes ros barrentos, as ribanceiras escorregadias, escalavam os montes
do pipira, escalar suas escadas e suas vigas, manter o equilíbrio ma- de terra vermelha e a barafunda das árvores derrubadas. Meu Es-
nipulando de cabeça para baixo seu comprido serrote. Essas acro- ternome, que nunca ultrapassara a área da fazenda, descobriu a
bacias recolocaram nos eixos telhados quebrados e construções ilha: uma terra jamais plana, uma mata virgem, enfeitiçada por can-
cambaias. Quando retomou a estrada, meu Esternome quis acom- tos de pássaros e silvos de bichos-compridos. Estes angustiavam
panhá-lo. O sujeito aceitou sem cerimõnias, já que só pagava a seus os silêncios e repeliam a vida. A não ser nas fazendas orgulhosas,
ajudantes com o princípio do símbolo, pois o verdadeiro salário é solitárias, alimentadas pelo próprio umbigo, a ilha era deserta. À
essa ciência que ofereço a vocês, seus selvagens safados ... ! beira do mar, nos portos, nos becos sem saída, nas profundezas
da enseada, nas junções dos rios e das encruzilhadas, os governa-
dores e os padres implantaram povoados por onde transitavam
AIDAPARAACIDADE. Assim, meu papai pegou a estrada noras- para o comércio na Europa açúcar, café, fumo ou cacau. Ali, sob
tro poeirento de Théodorus Koco-Doce. Anunciou a coisa à velha as cruzes das paróquias, viviam pequenos armadores, negocian-
costureira durante um almoço de domingo à beira do rio. Prome- tes obscuros, militares e funcionários. O primeiro povoado que
teu voltar para aquele mesmo local com o dinheiro de sua liberda- meu Esternome viu tinha sofrido com o ciclone e exibia ao redor
de. A velha de pálpebras moles respondeu que ele devia partir se- de suas feridas o suor de alguns escravos. Era uma geometria de
gundo a vontade de seu coração, sem se preocupar com coisa al- casas baixas com persianas e sacadas, embelezada por um cais pa-
guma, pois em terra de liberdade a planta, para ela murcha havia ra viajàntes numa baía melancólica onde se sacolejavam as canoas
muito tempo, não teria mais fibras. Por último, quase com uma pesadas de açúcar. Nas duas ou três ruas moravam os escravos ne-
água branca na voz, disse-lhe, Ich mwen souplé pa pouézoné pon cessários para o porto ou alguma oficina. Ali se encontravam mu-
moune, Sobretudo, meu filho, não envenene ninguém ... Meu Es- latos atarefados vestindo ternos escuros, brancos exilados preocu-

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pactos com seus registros e que recitavam os números com um as pistolas de Théodorus, seus galões de vinho ordinário e de cer-
sotaque engraçado: Entre os povoados e as fazendas, a igreja se- veja caraíba. Meti Esternome viu-os desaparecer como se jamais
meara algumas capelas, em torno das quais havia os.casebres dos tivessem existido. Iria revê-los um bocado de tempo depois, em
mulatos sararás e dos pretos forros que cultivavam a película de Saint-Pierre, felizes entre as chamas do dia da abolição.
uma ladeira ·ou a aridez de um rochedo coberto de terra. Meu pa-
pai olhava tudo aquilo com a fé da inocência. Koco-Doce e os ou-
tros caminhavam, com olhos indiferentes. A DELICIOSA OSÉLIA. Transportaram o cadáver de Zara atraves-
Os ajudantes de Théodorus eram alforriados. Tinham sido li-
bertados diante de um tabelião por motivos um pouco confusos
sobre os quais não eram muito loquazes. Do gênero denúncia de
um complô de escravos que abriam um canal infernal nos morros
do Carbet. Um se chamava Zara, o outro, Jean-Raphaêl. Suavam a
l sado em cima de um burrico. Percebendo no seu pêlo, mist1,1rado
à carga, um pouso da morte, o animal desmaiou. Théodorus per-
dera a vontade de cantar e até mesmo de percorrer' os casebres
dos negros forros. Numerosos nos arredores da Cidade, esses ca-
sebres de sapê apareciam atrás das moitas. Quando entraram em
camisa por conta própria em serviços de pedreiro, carpinteiro e ser- Saint-Pierre, a noite caíra e depois avançara. Esternome, meu pa-
ralheiro. Esse saber vinha-lhes dos mestres-operários brancos pa- pai, arregalava o branco dos olhos como se tivesse chegado a ou-
ra quem, de acaso em ~caso, haviam trabalhado como àjudantes. tro país. Primeiro, a sombra cega de casas cada vez mais freqüen-
Depois de ciclones e terremotos, Théodorus os contratava para, co- tes, cada vez mais altas, depois, uma ponte em cima de um rastro
mo ele mesmo dizia, a grande turnê entre os se/vagens escravo- de água fresca, depois, de repente, o cintilar do mar apesar do céu
cratas. Zara e]eari-Raphaêl tinham algumas vezes tentado umas es-
escuro, logo contrastando com o surgimento de uma fachada mais
capadas autônomas, carregando as ferramentas em lombo de mula,
alta do que uma casa-grande. Os burricos avançavam por um terre-
mas os plantadores só queriam tratar com os mestres-operários
no empedrado, com requebras de negra de salto alto. Com Théo-
brancos. Meu Esternome trabalhava e andava sem se cansar, pare-
cia uma borboleta volteando rumo à luz. A idéia de ir para a Cida- dorus à frente, a turma subiu por uma rua larga que era um zigue-
zague entre muros de pedra, iluminada de quando em vez, até o
de simplesmente o transportava. Saiu dessa hipnose quando uns
pretos aquilombados desabridos se jogaram em cima deles. Depois infinito, por pequenos lampiões. Virando para o outro lado, en-
das intempéries, esses negros eram uma praga nas beiras de estra- veredaram por vielas estreitas que iam çlar no mar, e em cujos mu-
da, de olho no maná das carroças· de mantimentos destinados aos ros eles precisavam se agarrar. Ah, as ruas-gonorréias, as ruas-
bekês. Gostavam de tudo o que pudesse ajudá-los em sua ferrenha gonorréias, arrulhou Théodorus, subitamente desperto. E meu Es-
liberdade. Zara bancou o valentão. atrás de um serrote manejado ternome entendeu na mesma hora a razão: dos arredores subiam
como uma espada. O chefe aquilombado, com uma facada, fez-lhe gritos de mulheres no cio, prazeres de clarinetas e emoções dos
ver o destino fúnebre da carpintaria. Théodorus, lanhado no pei- cobres, uivos, agonias de garrafas, uma algazarra protegida por per-
to, manteve-se frio, desbotado como uma batata-doce de três se- sianas mal fechadas. Sombras com chapéu (ou sem chapéu) subiam-
manas. Meu papai escondeu-se atrás de]ean-Raphaêl, que despeja- viravam-desciam com jeito de quem percorre um lado bom da vi-
va em cima dos negros fugidos uma fileira de palavras destinadas da. Depois de degraus escorregadios semidestruídos, a turma foi
a lhe salvar a vida: que em sua casa, em Saint-Pierre, hospedara tre- parar numa grande praça diante da enseada abarrotada por um ma-
zentos e sessenta e sete fugidos, que ele mesmo só não era um fu- tagal escuro de mastros. Théodorus deu gritos de estrangulado:
gido por causa de um problema de saúde, que morava em tal lu- Tenente! Tenente! os negros fugidos, os negros fugidos ... Houve
gar, depois de tal canto, em tal altura, local para onde ir se eles ti- um movimento, uma luz, rangidos de porta lá no fundo de uma
vessem de correr ... - esse palavrório em nove marchas tranqüili- fachada. Era uma gendarmeria. Numa sala apinhada de documen-
zou os ladrões. Eram seis, magros como fiapos de tamarindo chu- tos, sob a luzinha de uma lamparina malcheirosa, passaram o resto
pado, mal-humorados por causa dos bichos-do-pé, e na boca hos-
pedando três línguas africanas unidas pelo crioulo. Num piscar de ("')Na verdade, ele espiava um sorriso de negra disponível em cima de gran-
olhos levaram os mantimentos, as ferramentas de que precisavam, des tetas caídas.

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da noite a relatar a agressão de que foram vítimas e a descrever mãos, levantou a infeliz, limpou o cadáver, arrumou os pedaços
os negros fugidos. Meu Esternome teve de se identificar e expli- em tiras de pano, disfarçou o conjunto com uma roupa domin-
car por que seu documento de alforriado não tinha um carimbo gueira, e depois disse a Jean-Raphaêl: 1 té za mété bwa '.Y opadi!-
de tabelião, um lacre de governador ou da administração, pois, hii! kay la ... Isso significava que, como era um negro ajuizado,
o senhor há de compreender, seu Théodorus, esses fazendeiros
e temendo um enterro em saco de esterco, Zara previra as tábuas
idiotas, ao menor pretexto, descarregam todos esses libertos em
do próprio caixão.
cima de nós! E o que é um Liberto, seu Théodorus, fulminava o
guarda com um jeito de pronunciar a língua da França que meu Esternome meu papai e Jean-Raphaêl puseram mãos à obra
Esternome não acreditava ser possível, é um malandro, um vadio, no próprio batente do casebre. A curiosidade de uma fila de mo-
um ladrão, um mentiroso, um bailarino, inteligente apenas nos jo- leques os rodeava. Medir o cadáver. Serrar no comprimento exa-
gos de dado ou nas trapalhadas com as mulheres de vida fácil que, to as tábuas de madeira branca. Juntá-las, bater os pregos, ajustar
pior ainda, dão abrigo aos fugidos da cidade ... Théodorus, que a tampa. Prender em cima um crucifixo de mogno. Se Nosso Se-
nem ligava para essas coisas, aquiesceu num tom mole: Tenente, nhor fosse um negro de respeito, repetia]ean-Raphaêl trabalhan-
está mais que claro, os fazendeiros são uns selvagens ... do, permitiria que os marceneiros fizessem o próprio caixão ...
Nessa maldita cidade de Saint-Pierre, o primeiro trabalho de A memória tem seus jardins: ela não brota como capim. O
marcenaria de meu Esternome foi, um pouco simples, é verdade, enterro de Zara, a chegada do vigário, o saber se houve velório
o caixão de Zara. Os guardas fingiram sair para uma ronda e ou não, ou até em que buraco do Mouillage o colocaram, são per-
abandonaram-nos na praça principal, com o cadáver nos braços. guntas às quais meu Esternome jamais respondeu. Sua única lem-
De tudo que era lado apareciam escravos de oficinas, párias das brança desse tempo foi simultaneamente mais doce e mais amar-
residências, andando aos requebras para ir buscar água. A menor ga, e mais impressionante também: o casebre de Zara tornou-se
bica d'água tornava-se um alegre local de combate, de recipientes o seu, e a mulher de Zara, idem.
nervosos, de respingos, de banhos, de b.rincadeiras safadas reper- No início, ele dormia num canto, em cima de uma esteira
cutidas infinitamente pelas algazarras da molecada. Théodorus de- de hóspede de passagem. Sensível à sua dedicação, a mulher
sapareceu na névoa à procura, dizia, de algum algebrista. Jean- não quis deixá-lo ao relento. Propusera-se, enquanto ele não acha-
Raphaêl ficou encarregado de meu Esternome enquanto costeavam va abrigo, a proteger seu sono. Meu Esternome via-a chegar de
a baía, cruzavam a ponte em direção de um trecho da Cidade es- manhã. No cassino de um mulato soprador de clarineta, ela de-
garçado como a palha dos casebres. Ali, uns pretinhos miseráveis,
dicava as noites a coar o rum, servir os bolinhos de bacalhau,
umas pretas com cestos e uns pretos cabisbaixos estavam atarefa-
dos com nassas de bambu, redes de pesca, cordas, bóias, forca- afagar a clientela. Isso lhe rendia dinheiro para comprar, conta
dos. Pareciam venerar aquele material útil para sobreviver da pes- por conta, um colar maciço de balangandãs e varas de pano xa-
ca ou das terras verticais do contraforte dos morros. drez nas quais uma agulha do bairro lhe cortava bonitas batas
O falecido Zara morava nesse Bairro. Em sua palhoça, encon- ou turbantes elegantes. Seu nome era Osélia (mais tarde, ele sou-
traram uma preta dormindo, bastante aborrecida por ter de des- be que seus clientes mulatos, oficiais ou marinheiros, chamavam-
pertar de seus sonhos. Ela recebeu o cadáver de seu homem com na de Osélia-Lata-de-Melado ou Osélia-Pimenta, variava, e por
a boca aberta como uma lua cheia de espanto. Depois, calmamente, aptidões não muito evangélicas). Era uma negra cabra de carapi-
tornou-se um vozeirão de coração despedaçado que consumiu as nha basta. Uma glória de impureza marota fervia em seus olhos.
almas. Meu Esternome chorou. Jean-Raphaêl chorou. Crianças, mu- Deixara sete gracinhas para trás a fim de desabrochar a própria
lheres e marmanjos choravam ao redor. A preta, catastroficamen- beleza. Sua boca podia forçar qualquer homem a pedi-la em ca-
te calma, afagava o rosto de seu homem (pelo menos o que o fa- samento. O que fez, evidentemente, meu papai Esternome. Um
cão deixara como que em migalhas) e gemia sua melodia. A coisa dia ele lhe disse (quando ela ainda lhe oferecia a amigável bene-
nunca que acabava. Um velho cafre que já tinha visto poucas e volência pelo hóspede de passagem): Dona Osélia, tenha a bon-
boas (a julgar pela velocidade de suas rugas) tomou as coisas em dade, a vida é o que é, é preciso saber enfrentá-la. Eu sei trabalhar
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e não sou um vagabundo. Com as ferramentas do seu falecido Za- pintas das lagartixas, os ossos de um pássaro morto guardados de-
ra, eu podia bater a Cidade e trazer comida para casa. Por que não baixo de uma roseira, as minhocas enroladas três vezes sem se que-
saborear a vida agarradinho-agarradinho, hein? Ao que Osélia res- brar e, evidentemente, as formigas do destino, fatais para suas pál-
pondeu, sem tomar nenhuma precaução para não feri-lo, como pebras. Suas mãos agora ocupadas em guiar o olhar já não serviam
que para instruí-lo de vez sobre a dureza da época: Se você qui- para nada. Na fazenda declinante, abandonaram-na à própria mi-
ser, meu nego ... mas só até que eu encontre meu mulato ou meu séria. Arrastava sua insônia pelo alpendre, limpava-se debaixo de
branco. uma goteira e fazia suas necessidades num fundo do quintal, per-
Zara fizera as coisas direito. O madeiramento de seu barraco to de formigas que, cansadas do gosto ruim de sua pele, a ignora-
era bastante sólido para agüentar um teto de telhas. Amarrara-o vam solenemente.
com cipós-de-cobra. As estacas tinham vindo de um enorme pau- Osélia voltava de madrugada. Jogava-se na cama num sono
d'arco-amarelo. As vigas, de uma eternidade vegetal que se cha- sem lua. Vinha à tona durante a tarde, a fim de beliscar alguma
ma acoma. A cobertura vinha de folhas de palmeiras, de taquara coisa, lavar sua roupa no rio, desamassar seu vestido da noite. Bem
e de cana, e os tabiques eram um trançado bem-feito de ripas de mais tarde, penteava-se durante um bom tempo, vestia-se, passa-
pau-pombo e cabriúva. Num canto, em cima de algumas tábuas va perfume e ia para o trabalho. Meu Esternome acompanhava a
com pé, um saco de erva perfumada servia-lhe de colchão. Ban- vida de Osélia com um olhar doloroso. De dia, com as ferrameno
cos, tigelas, garrafas, ferramentas completavam esse conjunto. Sem tas de Zara, vagava por Saint-Pierre com o objetivo de oferecer
ser grande, servia para proteger das chuvas e abrigar o sono, pois seus préstimos de carpinteiro-marceneiro-serralheiro-biscateiro-
de dia, naquele tempo, vivia-se do lado de fora. Os barracos ao faxineiro. Voltava à tardinha a fim de põr para cozinhar algum le-
redor eram do mesmo tipo, às vezes simples réplicas, quando Za- gume gostoso e ficar de olho no despertar de Osélia. Ao menor
ra tinha lhes posto o dedo. Abrigavam os negros jovens, as mula- estremecimento, deitava-se sobre ela. Na primeira vez que teve
tas decadentes não se sabia por quê, pretos idosos, uns homens essa audácia, Osélia tomou-o nos braços, envolveu-o com suas per-
esquisitos e um monte de pretinhos agarrados em mães que luta- nas e ondulou como um cipó debaixo de uma corrida de cobra.
vam pau a pau contra um azar invisível. Todos e todas eram liber- Com seus dentes feitos para isso, a moça roeu-lhe a orelha, o can-
tos, alforriados de um jeito ou de outro, legal ou ilegal. Os mais gote, os beiços, o nariz. Seus dedos agarraram-lhe cada vértebra
negros exibiam sem parar suas certidões de alforria. Os que não na caldeira dos mil arrepios. Tornou-se um pássaro esfomeado que
tinham esse documento, deviam acompanhar os guardas até as fa- lhe bicava a pele, bicava seu sumo açucarado, bicava um pouco
zendas de origem, para que o Bekê confirmasse ou não suas pala- de seu sangue e o resto de sua alma. Na crista dolorosa e doce
vras. Esternome meu papai teve de suportar essa viagem umas dez dos prazeres, ele quis gritar gemer chorar respirar morrer. Sentia-
vezes antes da abolição que acabou com essa preocupação. Seu se transportado para naufrágios com o passo de carga que têm as
Bekê mal o recebia, confirmava tudo o que se quisesse, e ia em- mulas com febre terçã. Seus colhões explodiam. Ela o pescava em
l' bora xingando. Desde o ciclone, sua fazenda parecia submetida águas de lassidão, caído e mole como uma canoa atrás da onda,
à alta influência dos ventos desfavoráveis. Numa das últimas visi- e despertava-o com aguaceiros da festa. A cada vez, captava-lhe
tas, meu Esternome encontrou a mãe abandonada no quintal. Dei- o sumo no turbilhão das próprias mãos, depois o devolvia, pas-
tada em cima do mato, ela escrutava aquelas formigas vermelhas sando-o por seu corpo segundo as leis da maré. Logo ele ficou
que já lhe tinham estragado os olhos. Uma jovem mulata a substi- cheirando a algas e axilas, coberto por um nacarado de conchas
tuíra na costura. Desde então, com seus passinhos miúdos ela es- que com a língua ela dissipava. Quando montou sobre ele, fragata
vaziava os baldes de água do banho, carregava balde atrás de bal- vibrante, foi uma outra história. Que, infelizmente, eu nunca co-
de durante horas a fio. Depois, desocupada, celebrava o mundo nheci. Meu papai Esternome não tinha ido à escola. Só tinha na
observando os besouros, os escorpiões, os percevejos enormes, cachola seus métodos de carpintaria e nada das sessenta e duas
as moscas-varejeiras, as flores, a casca do pimenteiro, os seixos páginas de dicionário úteis ao esboço de um perfil da coisa.
polidos como pérolas, os grãozinhos de barro, as gotas d' água, as

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os LIBERTOSOS E os ALFORRIADOS. Talvez porque lembrasse de- ros, doceiros, pedreiros ... Os mulatos ricos tinham lojas, negócios
e oficinas abarrotadas de escravos. Alguns desses mulatos vinham
mais seus trabalhos noturnos, Osélia só lhe fez aquilo uma vez.
das milícias, onde tinham servido de batedores de grandes bum-
Em seguida, só lhe concedeu uma xoxota imóvel, vagamente ador-
bos ou de carne para as linhas de frente. Outros, de uma catego-
mecida, aberta em toda a sua extensão para lhe autorizar um pra-
ria especial, de pescoço duro e espetado dentro de jabôs estalan-
zer solitário. Diante disso, meu Esternome ficou como que tomado
do de goma, só freqüentavam os cassinos à sombra das noites sem
por uma espécie de indolência, terrível como uma dor de cotove-
lua. Todos estavam voltando de uma temporada maravilhosa na-
lo, que ele dissipava no rum forte dos cabarés mantidos pelos Li-
quela boa terra da França, onde o animal escravo voltava a ser hu-
bertos. Foi uma época dura, costumava resmungar, mas como oca-
mano. Um bekê de bom coração os havia levado. Nos portos de
sionalmente as palavras lhe escapavam, eu soube que, na verdade,
Nantes, Havre ou Bordeaux, puderam aprender saberes estranhos
ele mergulhou na volúpia turva das libertinagens. A maioria dos (peruqueiros, ourives, relojoeiros), tinham ensaiado a contabili-
mulatos e dos negros alforriados se haviam estabelecido na cida- dade, desenrolado os fios das meadas do direito, da leitura e da
de. Fugiam dos campos das fazendas, hostis a qualquer semente escrita. Às vezes, viravam advogados ou conseguiam cargos em
que não fosse bekéia. Em compensação, a Cidade era aberta aos que usavam cartolas. Muitos Libertos ativavam o cérebro com um
ventos do mundo. Um local para novas aventuras. Naquele tem- óleo maligno. Erigiam-se em gerentes de casas de jogos, maneja-
po, dizer a Cidade era dizer Saint-Pierre. Ali se encontravam mari- vam a clarineta, o violino, os cobres, tornavam-se doutores do ba-
nheiros holandeses, portugueses, espanhóis ou ingleses, viajantes ralho ou dos dados. A seu redor, calores femininos ofereciam a
embriagados, padres cientistas em missão de cronistas, militares, alegria sexual das velhas profissôes do mundo.
brancos da França, produtos novos, vinhos, máquinas novas, idéias Havia uma última categoria de Libertos, justo entre os escra-
sem espinhos. Saint-Pierre era o belo horizonte para quem sabia vos e os velhos safados e avarentos. Entregues à mendicância, va-
se virar mas também para quem não tinha nenhum talento. gavam penando, dormiam no fundo das matas, em palhoças, co-
Oferecia-se a quem tentava sonhar com a vida, mais do que vivê- miam camarôes de água doce sem nem um pingo de sal. Acuados
la, levar uma vida mansa, mais do que suá-la. A categoria dos ne- pelas autoridades armadas, acabavam indo parar na prisão ou eram
gros forros• e mulatos de talento ali exercia suas artes sem grandes obrigados, para pagar as multas, a ficar ao lado dos escravos, ro-
problemas. As mulheres eram parteiras, cozinheiras, lavadeiras, lando tonéis de rum, carregando nas costas barricas insuportáveis,
costureiras, roupeiras, vendedoras de etcétera. Os homens, tone- arrastando as mercadorias para perto da alfândega ao longo da beira
leiros, carpinteiros, marceneiros, ferreiros, serralheiros, carretei- do mar. Os mesmos praticavam, além disso, uma pesca costeira
clandestina, até o dia em que, transformando-a em solução, erigi-
(*)Livres porque salvaram alguma fazenda de um incêndio, salvaram do afo- ram-na em profissão e foram para o mar alto armar ciladas para
gamento uma criança de pele branca, soltaram uma cobra das ligas de uma velha os peixes brancos. Freqüentemente, graças a uma tripulação re-
bekéia, sem feri-la, porque lutaram contra os ataques dos negros fugidos, contra
, I· as investidas dos piratas, porque batalharam contra a inglesada e a espanholada,
duzida pela febre amarela, alguns deles partiam como marujos pelas
passaram suas vidas numa dedicação sem falhas, amamentaram as crianças das casas- vertigens do mundo inteiro, viam outros céus, respiravam outros
grandes, puseram no mundo para a escravidão uma longa fileira de moleques, fo- ventos. Voltavam de tal forma atrapalhados em suas verdades que
ram mais malvados com os negros rurais do que se fossem seus donos, ou então, o desespero deixava-os como assombrações náufragas. Filhos do
mais simplesmente, porque tinham, depois de felizes circunstâncias, dominado mundo mas fora de tudo, semitransparentes, pairavam pela cida-
um ofício que os tornara de tal forma indispensáveis que puderam se alugar, jun-
de, rígidos, imóveis, sem passado. Meu Esternome, sem a menor
tar moedas cosmopolitas e, um belo dia, comprar a própria liberdade. Outros ti-
nham essa liberdade por terem nascido de Libertos, por terem se casado com um vontade de cruzar com eles, mudava de rota pegando o desvio
Liberto, ou por terem vindo ao mundo com uma pele de mulato tão clara que dei- oblíquo dos caminhos dos corsários.
xava angustiados os bekês que os avistavam nas lavouras ou nas senzalas. Havia
mil setecentas e sessenta e duas maneiras, com as quais sonhavam todos os negros Marie-Sophie, Phiso Rima, minha aragem no calor, entre
escravos. Os governadores, que viam os resultados disso nos relatórios da polícia
urbana, tinham pesadelos.
os libertosos da Cidade e os grandes negros fugidos, nada

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era parecido, a não ser talvez um jeito de estar em liber- tavam, e ficavam de olho num lugar ocupado por eles nas casas
dade sem ter escolhido o sentido verdadeiro do cami- de madeira de lei ou de pedra de cantaria. Os mulatos faziam polí-
nho, seu Norte ou seu Sul. Ó, minha querida, liberdade tica. Pegavam os cargos possíveis na administração. Bekês e bran-
verdadeira talvez seja ter mais inteligência do que a pe- cos-frança, com o coração assaltado por uma triste surpresa, viram-
dra que rola pela ladeira onde é colocada ... Mas ser "li- nos surgir, sem profecias nem previsões. Os mulatos haviam er-
vre" o que que é? Na cidade ou no campo, era a única guido a cabeça, conquistado a palavra. Organizaram-se em círcu-
pergunta ... los, comissões, associações. Investiram as lojas maçônicas. Graças
Caderno n '! 7 de Marie-Sophie Laborieux.
a seu número crescente e a seus cinqüenta por cento de sangue
Página 3. 1965. Biblioteca Schoelcher. branco, tinham surrupiado o que de bom podia ser surrupiado,
denunciado a opressão, apesar dos banimentos. Dizia-se até que,
Meu Esternome navegou por aquele mundo, cercado por um na época de uma Revolução repercutida da França graças a uma
oceano de mulatos, bekês-pobres e brancos-frança trabalhadores. dessas condecorações tricolores, um governador beijara um deles
Bekês e brancos-frança movimentavam-se em caleças, comiam- em sinal de amizade. A partir daí, os mulatos ficaram mais orgulho-
comida nos restaurantes, exibiam-se nos degraus do teatro ou da sos ainda. A terra sofria para carregá-los. Veneravam os livros trazi-
catedral, cujo branco cremoso decompunha as sombras. Moravam dos da França pelos barcos. Reuniam-se com uma pompa estuda-
nos bairros de Fonds Coré, em volta do Forte e da paróquia do da para ler os jornais, comentá-los, escrever num bonito francês
Ex-Voto onde floresciam muitos negócios religiosos. Conversa- coisas que torturavam os fazendeiros que, no entanto, tinham san-
vam em camarotes ou clubes fechados. Eram vistos pegando se- to forte. A filharada dos mulatos aprendia o bê-á-bá com uns padres
reno debaixo dos pés de tamarindo da praça Bertin. Eram vistos, esquisitos ou com velhos mulatos que voltavam de uma viagem
perto da fonte Agnes, saboreando a melodia das bandas da mari- cobertos por um verniz de ciência um tanto insolente. Contra a
nha. Desentupiam as narinas com os iodas medicinais ou contem- ferocidade do bekê, realçavam a eternidade generosa da França,
plavam felizes os tritões que cuspiam as águas da montanha. Meu Ó, mãe boa perdida no horizonte e enchendo todos os corações.
Esternome levantava-se, ainda de noite, para ir ao jardim botâni- Vote, esses aí eram extraordinários ...
co. Na alameda des Duels, cercados por homens de preto, eles Meu Esternome aprendeu a designar cada pessoa de acordo
se cumprimentavam trocavam os fuzis e um dava tiros no outro,
1 com seu grau de brancura ou o azar de sua negrura. Aprendeu a
até que os miolos estourassem. Em outras horas, lutavam com gran- pentear a rodela da carapinha com brilhantina, na esperança de
des espadas que manejavam mais ou menos bem, e que os estri- que no dia de são nunca os cabelos esvoaçassem-lhe sobre ates-
pavam, feriam, mutilavam-lhes um olho, um dedo ou um tendão. ta. Todo mundo sonhava em embranquecer: os bekês, que pro-
Eram evacuados em macas, a honra lavada sabe-se lá de quê. Seus curavam para si próprios uma carne da França de sangue azul
duelos sinistros proporcionavam um prazer torvo aos alforriados capaz de dissolver-lhes o passado de flibusteiros plebeus; os mu-
que mofavam à sombra desprezível desses homens. Quando dei- latos, que ficavam de olho numa mulata mais clara que eles ou
xavam órfãos, as freiras da Délivrande, cuja misericórdia parava até em alguma bekéia decadente; e por último, a negrada alforria-
nas peles brancas, acolhiam-nos com imensa solenidade. Matricu- da, como meu querido Esternome. Essa negrada, com suas rou-
ladas no pensionato Saint-Joseph:de-Cluny, suas filhas só saíam dali pas ordinárias e chamativas, via-se como zumbis que precisavam
para irem à igreja do Forte, para passarem um dia de Pentecostes ser civilizados, ser humanizados por um clareamento de pele ex-
à beira do Roxelane, para um passeio de vapor até os locais mais tensivo a toda a descendência. O que não os impedia, e no mais
distantes de Fort-de-France ou as casas-grandes familiares de uma profundo de seus seres, de odiar aquela pele branca e os adema-
fazenda dos morros. Eles eram fascinantes ... nes mulatos, aquela língua, aquela Cidade e todo o resto fascinan-
À sua sombra, manejando o direito, a palavra e os pêsames, te. Sobre esse assunto, meu Esternome um dia me dizia uma coi-
fervilhavam os ricos mulatos que se vestiam como eles, andavam sa, e no dia seguinte, o contrário. O direito equivalia ao avesso,
como eles, comiam, mexiam o traseiro como eles, e que os detes- e o direito no mais das vezes estava dos dois lados. E quando ele se
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perdia, murmurava confuso: Cegueira, trapalhada, minha peque- leitor de jornais, adorador de um outro mulato chamado Bissette
na Sophie, meu último punch, nada estava claro naquele tempo. e exilado pelos bekês depois do aparecimento de um livrinho de
Não imaginou nem um instante sequer que esse fenômeno pros- couro vermelho. Passada a meia-noite, o mulato politizado (em-
seguiria além de sua morte, e cada vez mais depressa, quando seus bora fosse de pele muito branca, chamavam-no Sarará, pois seu
! coração era preto) reduzia a chama de óleo dos candeeiros, fechava
ossos já não prestavam nem mesmo para servir de clarins.
a porta, exigia um pouco de calma, e levava seu libelo amassado
Marie-Sophie, não acredite nisso não, tinha o negócio da ' como uma hóstia entre as mesas. Era um opúsculo não assinado,
cor, mas também tinha o negócio da maneira e dos ares de cerca de trinta e duas páginas impressas em Paris. O mulato
afetados. Com a maneira e os ares afetados você era vis-
to como mulato, de tal forma que os mulatos eram às ve-
1 politizado jamais martelava outra coisa que não fosse o título: Da
situação das pessoas de cor livres nas Antilhas francesas. Para
zes bem pretos. Mas um mulato de pele (sem falar do ele, esse texto de Gênese encerrava coisas terríveis e temidas pe-
branco) permanecia o que era sem a maneira ou os ares los fazendeiros, pelos brancos-frança, reis, militares e o resto do
afetados. É complicado, mas aqui está o verdadeiro fio mundo. Ali dentro, a voz dos mulatos levantara-se pela primeira
da meada: os melhores ares afetados eram ter a pele sem vez, exigindo igualdade com os brancos, cantando a liberdade uni-
cor de escravidão. E que cor de pele tinha a escravidão? versal. Desde então, dos confins das galés, antes dos enforcamen-
Que cor? Em todo caso, não era a minha, não ... VIVA A tos ou debaixo dos ferros, nas ilhas inglesas ou do alto das tribu-
QUERIDA MAMÃE FRANÇA! ... nas da boa terra francesa, nunca mais ela se calou. E isso aqui é
Caderno n ~ 5 de Marie-Sophie Laborieux.
o quê, pregava o mulato politizado, é puro papel ou é a História
Página 7. 1965. Biblioteca Schoelcher. em marcha? Queria que respondessem É a História em marcha,
o que todo mundo respondia, a não ser aquele maluco do Théo-
dorus que, justo antes do último delírio, gritou: Que História, mas
GOLPE-DE-MULHER. Ele viveu como Osélia, dormindo de ma- que História? O que os negros têm a ver com isso? Ele queria dizer
nhã, fazendo uns biscates durante a tarde. Esquecendo seu proje- os escravos, explicou-me Esternome, pois naqueles tempos nada
to de resgatar a velha mãe, dissipava os tostões em cabarés (evi- bons uma ou outra dessas duas palavras tinha o mesmo significa-
tando aquele onde trabalhava Osélia), a beber vinhos ordinários, do. O mulato politizado não teve tempo de lhe responder. Koco-
a tocar triângulo para um clarinetista que soprava uma mistura de Doce sifilitoso começou a cantar uma maluquice. Caiu no chão
músicas recolhidas no porto. Gritava, jogava, perdia, tentava fur- quebrando quatro mesas, morto e já fétido, com o libelo que con-
tar marinheiros bêbados, apelava para essas criaturas que traba- seguira pegar, amassado, numa das mãos.
lham em pé sem deixar que lhes chupem o sabor de canela de Depois da debandada, meu Esternome ficou sozinho a rolar
suas bocas. Num desses antros, reencontrou Théodorus. O mestre- o corpo do velho operário dentro de um tonel vazio, a fim de jogá-
carpinteiro morreu a seu lado, em meio a uma barulheira de gar- lo contra uma pedra do Roxelane, onde os guardas o recolheram
rafas, berrando Esses negros fugidos safados me cortaram com ao amanhecer sem fazer nenhuma pergunta, e apenas soando um
uma lâmina envenenada ... Théodorus nunca mais se recuperara inútil alarme contra o cólera, ou a febre amarela, ou uma das atro-
do ferimento. Foi de uina febre a outra, depois de manchas diver- cidades familiares da época atualmente esquecidas, até que um ne-
sas a necroses na pele. Saíra de seus delírios comatosos com o ob- gro astuto acalmou aquela comoção sanitária diagnosticando um
jetivo de festejar o atracamento de uma tripulação normanda, e mal-de-franga que foi ovacionado, de tal forma pareceu suave após
de saudar um resto de madrugada debaixo de uma anca de negra aquele medo gélido.
que ele infectava sem saber. Pois na verdade nosso homem foi Naqueles tempos de antigamente, com a barriguinha redon-
apodrecido, poro a poro, por uma sífilis. Expirou ao cabo de um da dos que têm o fígado inchado, Esternome meu papai ficou ma-
patético frenesi de modinhas. A sala se esvaziara, vupt!, o cabare- gro como um bacalhau. O rum deixava seus lábios cor-de-rosa,
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tiê fechara as janelas. Era um mulato politizado, bon vivam mas enferrujava-lhe o estômago e as proximidades do cérebro. Aliás, foi

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o que deve ter lhe poupado a sífilis, pois, hi hi hi valha-me deus, as ferramentas, as cordas, as plainas, medindo aqui, serrando acolá,
os bichinhos que caíam em cima de seu pau deviam pegar fogo comendo sem rum grandes nacos de inhames num óleo apimen-
no álcool de seu sangue. Fazendo cada vez menos biscates, virou tado. Nessa toada, recompôs os músculos, uma cabeça arejada,
contrabandista de uma aguardente de cana, isenta de impostos, e descobriu do alto Gamais a tinha visto realmente) a cidade que
que maravilhava os cabarés, virou saqueador de túmulos caraíbas o Mentô o mandara pegar: uma enfiada de tetos vermelhos dian-
por causa de umas pedras muito esquisitas, de três pontas e três te da baía repleta de barcos, indo do fundão de Coré até a ensea-
forças, que os padres pediam. Tentou se estabelecer como cafe- da Thurin, depois formando degraus sobre os morros arboriza-
tão de uma negrinha recém-alforriada, que o despachou para a bar- dos, cuja conquista ela jamais iria concluir. Um bocado de telhas,
riga de sua mamãe quando descobriu como funcionava sua vida. vermelhas, ocre, pretas de idade e de cocô de passarinho, racha-
Depois, virou, mais humanamente, chorador profissional, quan- vam debaixo do sol como terras sedentas. As torres gêmeas da
do um belo-feio dia Osélia embarcou num vapor das Américas com catedral do Bon-Port, a ponta do relógio da câmara de comércio,
o branco de olhos cor de água clara que ela agarrara. A apaixona- as lucarnas e empenas, pedaços de fachadas, janelas sem esqua-
da esvaziou o barraco enquanto meu Esternome dormia e partiu, drias, postigos com persianas móveis como pálpebras. Em todo
após ter-lhe escrito com carvão um Pa moli (Agüente firme) que canto, o verde de alguma velha árvore entre os interstícios da pe-
só seria apagado pela nuvem ardente que uns tempos depois tos- dra e da madeira, os crucifixos altivos, arcadas, silhuetas pálidas
taria a Cidade. O pior é que embaixo dos votos daquele adeus per- na sombra de um salão, o lento balanço de sabe-se lá o que liga-
verso a negra vagabunda não havia sequer assinado. do às nuvens que se vão, um pedaço da majestade do teatro, a
Ele chorou, sim, como chorar se chora durante os piores de- tocha fumegante da usina Guérin, tudo isso vibrando de rumores
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sesperos. É preciso pôr de lado seus desejos de afogamento no subterrâneos (vendedoras, carrinhos de mão, cavalos estalando
rio Latouche. Esquecer as braçadas desesperadas nadando em volta os passos). O chiado lento e regular do bonde puxado a mula sus-
dos grandes navios (os passageiros jogavam-lhe moedinhas desti- pirava nesse conjunto como uma clarineta. Esternome meu papai
nadas aos negrinhos mendigos). Simplesmente pensar que esse não era um poeta (dessa espécie quimérica que se emociona com
golpe-de-mulher deve ter lhe feito bem: ele se refez bastante de- palavras manipuladas como espelhos e dores), mas distinguia na-
pressa. As lágrimas de amor esvaziaram-no de sua saliva cheiran- quele bricabraque uma espécie de força. Compreendeu que ali
do a rum. O jejum das tristezas secou suas andanças. Jean-Raphael iam parar as desgraças das grandes fazendas. Todo aquele sangue
tirou-o do sono dos cemitérios indo lhe oferecer um trabalho num solitário, aquele sofrimento impiedoso, aquele trabalho de boi de
telhado. Não querendo associar-se a alguém que pudesse lhe rou- carga contra os temporais da época ruim das chuvas• ou as in-
bar o negócio, Jean-Raphael (meu papai dizia An-Afarel, e é como vestidas-de-fogo da época seca da quaresma, concentravam-se
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l vou dizer agora) foi um dia contratar aquele Esternome bonzinho aqui, em bocais, barris, pacotes, tomavam o caminho dos mares
que, fazia séculos, ele perdera de vista. Encontrou-o reduzido a no porão dos navios depois da unção mágica dos grandes livros
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•' cinzas, cinzento como um vira-lata, sentado diante da porta e de- de contabilidade. Também compreendeu (mas confusamente: meu
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baixo de uma inscrição que ele ameaçava com o punho gritando Esternome não era uma cabeça lá muito clara) que, só de passar
O isalop ou sé té pé siyen, ô, sua vagabunda, você podia ter por ali, a riqueza das fazendas havia criado aquela cidade, alimen-
assinado ... tado com as migalhas de sua passagem milhares de pessoas que,

(•)Na verdade, uma boa época para meu Esternome e para cactos os escra-
CONSTRUIR A CIDADE. Foi portanto com An-Afarel que ele veio- vos rurais. Tempo de chuva: tempo de descanso, de folgas e de brincadeiras sob
a ira do Bekê que amaldiçoava o tempo. Ciclone passado: tempo de liberdades.
e-voltou para as normas da existência. Sua nova vida foi debruça-
Para os escravos da Cidade era um outro tempo. É bom saber que aqui os tempos
da num madeiramento na altura dos pombos. Ele serrava os bar- não são os mesmos para todos. É por isso que meu Esternome dizia que esta terra
rotes podres, substituía as cavilhas, rearrumava as telhas, balan- era como formigueiro destruído, mas ai de quem não compreendia que, debaixo
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çando-se mas se agarrando na hora agá. Suava para subir e descer dessa estranheza, havia um povo que desnorteava os dicionários.

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sobre os escravos rurais, só sabiam poucas coisas, e pouco se lhe Morestin, contemplando o rio mais ou menos limpo, dependendo
davam. do dia. Apesar da mureta, esse rio Roxelane parecia impaciente
Aquilo lhe ficou na cabeça. Preocupou-se em vê-la de mais para destruir a cidade, transformá-la num desses seixos redondos
perto. Habituou-se, entre as tarefas que lhe confiava An-Afarel, ago- bastante dóceis às suas vontades. Ele também me falava da rua
ra seu patrão, a bater perna por ali, olhar, sentir, não vítima da Bouillé: ali, preso no peitoral de um jumento escravo, um bonde
poesia, como eu já disse, mas porque entrara nessas reflexões que rangia de velhice. O jumento não tinha a menor chance de ser
prenunciavam as curvas de sua vida (mas dessa vez a história acon- um dia alforriado, pensava meu Esternome. A não ser, é claro (di-
teceria de outra maneira). A cidade era de antigamente, sólida, ma- zia ainda), se a morte assim o desejasse. Mas naquele tempo, ge-
ciça. Oferecia pouco espaço para as ruas, a não ser a Victor Hugo, mia ele com ironia, a própria morte se colocava do lado dos bekês.
que ia larga e vaidosa. A cidade era amarela, triste, musgosa, mo-
lhada em suas sombras, ela gorgolejava a água subterrânea dos mor- Marie-Sophie, ó meu doce, imagine a rua central, seus ar-
ros. Ao norte, era mais fresca. Do lado do Forte, estendia-se numa mazéns cheios de legumes, suas marquises de ferro pres-
confusão de ruelas e degraus em queda livre para o mar. No cen- tando bom serviço contra as chuvas. Ali, um punhado
tro, pululava de comerciantes, estivadores do porto, sob o calor
de vendedoras gritavam à-moué à moi à-moué. Vendiam
dos morros sorvedores de vento. Ali, um cheiro de alambique,
tudo o que os negros livres ou acorrentados como ca-
aqui, um vapor de fundição, acolá, a cadência martelada dos ne-
chorros podiam fazer, plantar, colher, roubar. Tinham
gros toneleiros músicos de martelos. Ao sul, a alta catedral lan-
çando uma sombra abençoada sobre as fábricas dos mulatos. Es- de vender meio por baixo do pano, para agüentarem
ternome meu papai alegrava-se com a rua Monte-au-Ciel, não pe- aquela vida. Imagine.
lo que ela sugeria, mas pelos inúmeros degraus que subiam a Caderno n? 3 de Marie-Sophie Laborieux.
ladeira levando nas costas a espuma. Também a apreciava pela sar- Página 1 . 1965. Biblioteca Schoelcher.
jeta central: de onde uma água clara e confiante fugia para o mar.
Essa rua era fresca, pois suas fachadas barravam boa parte do sol. Mas Esternome meu papai* compreendeu que aquela gente
A rua de la Madeleine levava ao convento das irmãs da Délivran- (aqueles negros vendedores, aquelas negras com balaios, os ho-
de. Um convento de dois andares, maciço, com o teto furado por mens do porto, os que conversavam no Roxelane debaixo dases-
duas lucarnas e uma torrinha alta, guardiã das órfãs. Estas ali apren- trelas celestes, que tocavam música no cassino e dançavam a noi-
diam a obediência e as artes recreativas. Meu Esternome con- te inteira, que contrabandeavam o contrabando, ou que, como
templava-as perdidas dentro de vestidos de sarja preta, de man- An-Afarel, dedicavam ao trabalho uma espécie de culto sagrado)
gas compridas apesar do calor. Vestiam um chapéu sem alegria. tinha poucas chances. A Cidade era dos bekês-comerciantes e dos
Os cabelos trançados eram sempre amarrados por uma fita enlu- brancos-frança dos navios. Os mulatos (na verdade, meu Esterno-
tada. Da ponte do Roxelane, ele ia espiar as lavadeiras que passa- me dizia "milatos", então é assim que você vai ouvir agora) movi-
vam o dia a bater a roupa, depois a estendê-la, tagarelando como mentavam-se por ali, empertigados, a fim de ampliar suas brechas
passarinhos embriagados. Só paravam para assar algum bacalhau na cidade. Mas já estava claro que, apesar dos grandes discursos
em cima de um braseiro de campeches, antes de esmigalhá-lo com e tapinhas no ombro, os milatos, por enquanto, assim como os
abacate e azeite. Então, os lençóis brancos abandonados por to- vaga-lumes, só focalizavam sua luz nas ambições das próprias almas.
do lado estremeciam como asas de anjos que tivessem caído em O que ele fez? Trabalhar. Esternome meu papai trabalhou, tra-
plena calmaria. Eram todas mulheres-pais, escravas ou livres, balhou, amealhando seu dinheiro sem contar nem descontar. E,
cujos pés e mãos ficavam enrugados por causa da água. Às vezes,
mas muito raramente, pois o homem era dado a esquecer, essas (•)Por que me confessou isso? Uma tristeza de fundo de garganta? Um cílio
tagarelas traziam-lhe à lembrança sua velha mãe, minha avó- dando o alarme de uma lágrima contida? Uma cantiga sem sentido a não ser a dor?
vovozinha-querida. Depois, ele virava lentamente para a ponte Por que me confiou isso?

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' ~ permita-me, pode-se dizer que construiu a cidade que ia se espa- crioula, imperial, rica, tortuosa, rápida, ou murmurada no fundo
lhando. Necessidade cria lei, e ele se tornou um grande sábio em da garganta por lábios imóveis, jogavam meu Esternome no mun-
matéria de alvenaria. Aprendeu a encolar as pedras no morteiro do dos negros livres, à sombra dos milatos. Os negros da roça (ou
de cal e a fazer pedra-de-mão. Aprendeu a extrair o basalto, a fla- negrões) calavam-se quando o viam surgir com aqueles trejeitos
grar o dacito, a limar, ele mesmo, as fantasmáticas pedras-pomes. de negro livre da Cidade: os pés dentro de sapatos claros, o peito
Aprendeu a encher o pilão com as cinzas do bagaço que aglutina- coberto por um jabô, a cabeça dentro de um chapéu de aba larga
vam melhor do que todas as colas fortes. Os bekês e brancos-frança encontrado alguma noite no fundo de um cassino (a menos que
queriam sempre construir casas de sua província natal, queriam ele o tivesse surrupiado num daqueles sótãos onde trocava telhas),
muros grossos a fim de conservar o ar fresco. Os mulatos ricos as mãos fechadas sobre as luvas puídas. Diante dele, mudavam de
imitavam esses modelos. Mas, nos canteiros de obras, meu papai fisionomia e tornavam-se aqueles negros que os bekês acreditam
Esternome viu como o espírito dos operários negros desfazia: o conhecer: negros dóceis, olhos baixos, muito gentis. Os negros
hábitat e o reinventava. Assim, devagarinho, bem devagarinho, da roça (ou negros acorrentados) detestavam os Libertos. Tam-
Saint-Pierre ia se perdendo em "maneiras e jeitinhos". "Numa es- bém os invejavam, de olho comprido em suas jóias. E imitavam-
tética especial", acho que ele queria dizer. nos tanto que, não fosse a proibição de calçar sapatos, mais de
um escravo em folia domingueira poderia ser tomado por um ne-
gro forro passeando depois da missa.
NEGRO SEM SAPATOS. O domingo assistia à chegada dos escra- A venda de produtos permitia aos negros da roça (ou negros
vos do campo. Com as passagens no bolso, vinham vender no mer- na coleira) a esperança de comprar a própria liberdade. Permitia-
cado do Mouillage os produtos de suas roças. Com cestos, inhames, lhes sobretudo comprar sinais de elegância. Perto das ondas do
cachos de banana, cará, feijão, galinhas vivas e porcos esquarteja- mar, despenavam as aves, cortavam com facão porcos não muito
dos, eles sufocavam o porto. Os homens tinham vestido as rou- gordos. Meu papai Esternome comprava carne com um sujeito cha-
pas lavadas, camisas e calças listradas com grandes botões pratea- mado Bonbon. Maciço como uma mangueira, risonho, brincalhão,
dos ou enfeitados com pedrinhas coloridas. Um chapéu mais ou Bonbon cantava uma alegria de viver quase malsã em meio ao so-
menos surrado protegia-lhes os olhos. Na nuca assim à mostra su- frimento daquela época. Todo mês trazia um porco magricela ali-
biam em escadinha as dobras de um lenço quadriculado ou de um mentado nas ribanceiras secretas dos bosques do Prêcheur. Tam-
bonito tecido amarelo e vermelho. As mulheres exibiam suas jóias bém conseguia esses porcos nas colinas da Soufriere, quando par-
régias, argolas, colares, pulseiras de conchas, de tartaruga ou de ticipava por um tostão, mas um tostão é um tostão, das caçadas
pérolas de moluscos. Bata branca e saia de algodão levantada de aos negros aquilombados. • Por um retalho de renda ou de qual-
,,,:i um lado. Seus cabelos eram presos por um turbante xadrez cujas quer coisa, Bonbon oferecia um pedaço de carne dentro de uma
' pontas imitavam as folhas de um repolho silvestre. No pescoço, folha de banana. Pesava-a com o braço esticado, um olho fecha-
na cintura, nos pulsos, nos calcanhares, estremeciam fitas multi- do e gritando alegremente. Esternome meu papai voltava para o
cores que as transformavam, ao vento do quebra-mar, em cipós barraco com aquela carne de segunda mão. Metia-a numa salmou-
cheios de flores compridas impacientes. ra, depois voltava para comer com aqueles que tanto se pareciam
Depois da missa, pretos libertos e milatos iam para essa fes-
,. tança, alguns brancos-frança também, e bandos de operários bran-
com ele, pelo menos em matéria de origem. Esse contato valo-
rizava-o. Junto com os negros do campo, ele se tornava, se não
cos amantes de negrinhas. Meu Esternome sempre saía de casa um alguém, pelo menos mais do que se considerava no fundo do co-
pouco triste. Os pretos daquele mercado, sentia-os mais próximos ração.
de si. No entanto, de domingo a domingo, afastava-se deles.sem
sequer compreender por quê. Os berros, o modo de falar com
·',:r·• gritos de guerra e gestos, o suor abundante daqueles negros, a for-
ma como se exibiam dentro de um único e belo traje, a língua (•)Os mulatos proprietários de hortas e pomares organizavam essas caçadas
contra os negros em fuga que os saqueavam.

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No final da tarde, passada a agitação, os negros da roça (ou conquistar a Cidade, ficou surpreso depois, quando a abolição te-
negros ruins) punham-se a zanzar pelas ruas da Cidade, olhando ve de ser arrancada das mãos do governador, ao vê-los se lança-
de soslaio, com jeito de não acreditar, para aquelas fachadas de rem como água de dilúvio, como vagas de facões, escumas de
pedras. Espiavam o jogo das persianas atrás das quais velhas be- ódios, e imolarem aquela Cidade com uma furiosa exigência.
kéias injuriavam-nos sem parar. Gastavam seus centavos em do- Para ele, a tarde de domingo passou a ser um rito. Os pretos
ces das vendeiras, em balas, em pães com manteiga. Invadiam as do campo acabaram por aceitá-lo. Compreenderam que o Ester-
lojas que ficavam abertas para aproveitar aquelas idas à Cidade. nome não se esquecera das raízes escravas. Ajudava as velhas a
Ali, mergulhavam como mosca no mel, comprando isso, ganhan- levantar as cestas até o alto do pescoço duro, participava das cor-
do aquilo, ah isso aqui é bonito dá para mim ... Por último, iam ridas para pegar galinhas e porcos, falava sobre as virtudes de uma
para os botecos que os aceitavam para beber uns tragos, organi- fibra da bananeira-de-corda quando o cabrito fica nervoso. Às ve-
zar uma partida de baralho, uma rodada de dados. Alguns, vicia- zes, meu Esternome oferecia-lhes até tábuas de caixão (os mais be-
dos naqueles jogos, arruinavam desonestamente quem pensava los tesouros de sua vida), entregava-lhes mediante uns trocados
arruiná-los. pequenos tabuleiros bem lisos, confiava-lhes caixotes para pegar
Na praça do mercado, os outros ficavam como que estátuas caranguejos e bichos de caça. Batia pregos em um punhado de
da semana santa, a espiar os contrabandistas vendedores de bugi- madeiras úteis para seus casebres. Tudo era bonito. Tudo era fes-
gangas. Meu papai Esternome via-os se estapearem por causa da ta. Foi só no tempo de sua velhice (na hora suave em que a idade
cor de um tecido, ou olhando imóveis, de costas para o mar, aquela inverte o olhar) que meu Esternome entendeu o significado da-
presença da Cidade. Cidade alta. Cidade maciça. Cidade portado- quelas frivolidades. De colares a jóias, de fitas a chapéus, os ne-
ra de uma memória da qual estavam excluídos. Para eles, a Cida- gros erigiam nas almas aquelas pequenas capelas que, quando che-
de permanecia impenetrável. Lisa. Encerada. Que ler naqueles fer- gava a hora, exaltavam os fervores de suas revoltas de um dia.
ros fundidos? Naqueles postigos de madeira pintada? Naquelas Oh, Marie-Sophie, ceceava meu velho, os negros do campo
grandes pedras talhadas? Naqueles parques, jardins, em todas aque- marchavam rumo à liberdade por caminhos bem mais difíceis do
las pessoas que pareciam manipular os segredos da Cidade? Bon- que os dos negros fugidos. Mais difíceis, ouça o que estou lhe di-
bon disse-lhe um dia, e tinha razão, que a Cidade era uma casa- zendo: no combate que travavam, arriscavam-se à vala mais pro-
grande. A casa-grande das casas-grandes. Mesmo mistério. Mesmo funda, ali onde de bom grado você aceita o que fizeram de você.
poder. Esternome meu papai ficou um tanto atordoado. Os negros fugidos rompiam o enfrentamento, mas os negros do
Para falar a verdade, naquele mercado dos escravos ele pro- campo permaneciam na linha de frente, fazendo o melhor possí-
curava uma ajuda. Espiava-os, seguia seus gestos, assim e assado, vel para se manter na superfície do lamaçal, um pouco como as
contava seus silêncios. Procurava nas costas daqueles homens uma ervas-do-brejo do pântano cego, agüentar, agüentar, e sedimen-
rigidez particular, uma magia especial no alto de suas frontes. Ti- tar o fundo do seu coração com uma liberdade profunda, sem gran-
nham uma presença forte debaixo do sol da grande praça aonde des gestos, tal como a semente seca que conquista às custas das
toda a cidade ia como quem vai a um espetáculo. Os guardas chuvas as alegres terras aluviais. Está entendendo? inquietava-se
patrulhavam-nos olhando os balaios, uma desconfiança no rosto. meu preto velho.
No entanto, ali não havia guerreiros em conquista, mas gente sim- Não sei se algum dia entendi, mas meu Esternome (e o resto
ples que vagava embaixo das muralhas onde se colhem as miga- de sua vida foi um exemplo disso) percebera o seguinte: entre as
lhas. A Cidade os fascinava. Pareciam mirar aquele fenômeno co- colinas do exílio onde viviam os bekês, e o ímpeto dos milatos
mo algo invencível, e a pavana dos negros livres jamais conseguia para mudarem o próprio destino, os negros do campo teriam prefe-
dissuadi-los. Esternome meu papai dizia a Bonbon: Ou pé pran y! rido o campo. O campo para existir. O campo para se alimentar.
Fok nau pran y, sé la tij manyok-la yé ... ! (Você pode pegá-la, é · O campo para ser compreendido, o campo para morar. Enquanto
preciso pegá-la, é aqui que tudo se decide ... ), mas o negro hilário os bekês colhiam hectares de cana para ser enviada a outros luga-
parecia não ouvir. Meu Esternome,_ que por tanto tempo procuro\! res, eles contavam os inhames à beira das marmitas. Enquanto os

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milatos uivavam por seus direitos, afirmavam princípios e esprei- do eu nem sequer lhe perguntava, admitiu que entre eles procu-
tavam alguma maneira de embarcar para a França, eles arranca- rava um Mentõ. Fixava-se na maneira de cada um espiar aquela
vam as folhagens, decifravam as raízes, espiavam os últimos caraí- Cidade, como teria feito um homem de Força ou a própria Força.
bas em suas lutas contra o mar. Por isso é que souberam antes de Uma postura diferente das costas. Um lampejo de autoridade sob
todos, eles que viviam a memória daquele lugar, que a montanha uma pálpebra cansada. Procurava em suas cantigas algo muito an-
pesadona situada no alto de Saint-Pierre era, na verdade, um bi- tigo, impregnado de certeza. Perguntava a Bonbon, Kawa, Soli-
cho matador. nie, Misérab ... , pedia que lhe apontassem o homem das palavras,
Mas meu papai Esternome não sabia que a História acelerada ou aquele que curava o ataque surdo dos bichos-compridos. Per-
pelos milatos arrancaria todos nós dos ancoradouros desta terra. guntava-lhes se a fazenda ia bem, se alguém se queixava de ve-
Que todos nós, tornando-nos feras alucinadas, voaríamos rumo neno, se preciosos cavalos morriam de olhos abertos. Mas os ou-

li 1
à vontade plena de nos tornarmos franceses. Tanto assim que, du-
rante a semana, quando encontravaJean-Raphael em torno de uma
tros não sabiam de nada. A fazenda Pécoul ou a tal de Perinelle,
de onde quase todos vinham, iam muitíssimo bem sem essas his-
.1
11 mesa de cabaré, entre milatos pobres, operários ou comerciantes tórias que você está contando aí. Meu Esternome acreditou então
prósperos, e que os via sonhar com 1789, com as aparições da que o Mentõ jamais se dirigia até os arredores da Cidade (no que
República naquela grande terra da França, quando os escutava ler se enganava, e o que não soube em nenhum momento).
1:
' com voz religiosa Le Courrier des Colonies, no qual o chamado Mas se os domingos ficaram de tal maneira em sua cabeça,
.1'. Bissette denunciava os fazendeiros, quando os ouvia pronunciar não foi, nem de longe, só por esse motivo. Foi por várias outras
o nome de Victor Schoelcher num ritual de invocação, e quando, razões, sendo que a primeira se chamava Ninon (era uma mulher)
·11
1.
·_1 justo antes de erguerem seus copos de vinho, os ouvia exclamar e a segunda, Liberdade (era sei lá o quê). Nos tempos de velhice,
'~i' ::~ de repente: A Monarquia está condenada, a Liberdade está cbe- Liberdade e Ninon misturaram-se de tal forma na sua cabeça dura
gando! A Liberdade está chegando! ... Ela nos virá das grandes que, com freqüência, ele parava no meio do caminho, em pleno
tradições da França! ... - meu Esternome se levantava, isso mes- povoado, em plena missa, em pleno sono, em plena piada depois
mo, em seu francês não dos mais intrépidos, se levantava para de- de uns tragos de rum, para berrar Oh tchoué mwen ba mwen libe-
clarar num silêncio que com o passar do tempo rareou: Não, meus té mwen, Tchoué mwen mé ba mwen Ninon mwen an, Oh,
senhores e diretores, a liberdade virá dos negros do campo, da matem-me mas deixem-me a liberdade, matem-me mas deixem-
conquista desse campo ... Depois, todos, e em primeiro lugar ele me Ninon! ... e nem sempre foi possível distinguir qual das duas
mesmo, mergulhavam em seus vinhos bebidos à moda dos bekês, o preocupava de fato.
em suas músicas dos quatro horizontes e naquele jeito de dançar Ele viveu, pois, o início de seu segundo amor em pleno do-
como os brancos-frança, segurando-se as mãos, num ritmo de tam- mingo de mercado de negros, enquanto um navio desembarcava
bor mas sem tambor evidentemente. na enseada um bekê maluco que se dizia Diretor. A multidão ali
reunida reconhecia o sujeito à medida que ele falava: um tal de
Na verdade, Sophie minha Marie, eu mesmo, que a rece- Husson. Este declarava, em meio à consternação ou à alegria lo-
bi, sei que Liberdade não se concede, não deve ser con- cal, que ocorrera no dia 24 de fevereiro daquele ano de 1848 (única
cedida. Liberdade concedida não liberta a alma ... data do calendário de que meu Esternome se lembrou a vida in-
Caderno n? 5 de Marie-Sophie Laborieux. teira, não custando a retomar seu jeito de contar o tempo com
Página 20. 1965. Biblioteca Schoelcher. as lembranças das desgraças coletivas) uma revolução de barrica-
das, três vezes num dia, e uma inacreditável seqüência de banque-
tes. Essa revolução havia derrubado, dizia ele, a Monarquia de um
DOCE NINON TÃO DOCE. É engraçado, mas desse período de certo Luís Filipe. Husson também dizia (e isso provocava nas ruas
abolição meu papai Esternome só tinha boa memória para os do- de Saint-Pierre, nos hotéis, nas celas do orfanato, nas varandas da
mingos com os negrescravos. Um _dia, de repente, num ai, quan- fazenda, nos escritórios escuros dos negociantes e em milhares de

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lhe o pescoço, grudava-se em seus quadris, com o corpo já aluci-
lojas um vento soprando uma histeria chorosa) que a liberdade nado para sentir seu suor, o invólucro firme de suas coxas, a dan-
dos escravos estava decretada implicitamente; que todos, univer- ça de oferenda de suas nádegas empinadas, ah, isso é para você,
salmente, com exceção da raça das mulheres, poderiam conhecer e isso é para mim, ô lá lá ...
as alegrias do voto eleitoral. A notícia desandou a correr. Os ne- Quando as sombras se ergueram até agarrarem o sol, ele a
grescravos começaram a girar em torno dos porcos, das galinhas, acompanhou à sua fazenda que ficava no alto do Prêcheur. Ela
dos balalos, a pisotear os inhames, a dançar como zulus abraçando- andava com os passos largos de familiarizada com os altos degraus.
se de contentes. A praça Bertin também foi invadida por milatos, Ele arfava a seu lado, penando para segurar-lhe a mão, e só a sol-
pretos forros, bekês vermelhos indo e vindo em cima de cavalos tava quando um suor quente abafava os dedos de ambos. Passa-
de pêlo molhado. Músicos pegaram clarinetas e violinos, flautas vam pelo perfume dos campeches erguidos como árvores, pelos
e baquetas, assistiu-se ao bumbar dos tambores militares por ne- buracos profundos habitados por uma cachoeira. Ela assinalava
gros bumbadores, mãos engorduradas elevaram as sete notas dos o cheiro da canela, do pé de baunilha que crescia, da fruta-pão
corações felizes. A bem da verdade, estranho carnaval: a alegria azulada e roída por um sarigüê, do pé de pimenta-malagueta, do
da segunda-feira gorda misturava-se às lágrimas da quarta-feira de capim barba-de-bode morrendo suavemente sob seus passos, do
cinzas. Uma prolongada algazarra levou o Anunciador para o fun- inhame-nambu que, à noite, perdia toda a selvageria de suas gran-
do dos salões de mogno da Cidade. As ruas ficaram entregues ao des folhas.
rumor de liberdade, de França eterna, de generosidade metropoli- Nos casebres da fazenda, encontraram a mesma febre, trans-
tana, tudo isso escandido por tiros de revólver, garrafas quebradas, portada pelos ventos. Lá no alto, a casa-grande vivia a iluminação
alegrias alucinantes diante das quais guardas e militares permane- dos momentos difíceis. Cavalos e carroças permaneciam atados
ciam quietos, Calma, calma, tudo isso precisa ser confirmado, não diante do alpendre. Exclamações jorravam das janelas abertas, in-
há nada de oficial, seus bandos de macacos ... quietando os escravos medrosos e exaltando os outros. Um mon-
Mas o oficial para meu Esternome e papai era aquela negres- te de castiçais agitava a sombra dos casebres. A notícia era comen-
crava que ele tinha nos braços e que não mais largava. E que lhe tada em pequenos círculos, explicada pelos doutos, dançada
fora oferecida pelo vento da alegria. Sua boca colocara-se sobre a pelos outros. Meu papai Esternome refugiou-se no barraco de Ni-
dela, ele a beijou chup, ela o beijou, eles se beijaram mais uma vez non. Ela preferiria levá-lo para as assembléias, de modo a exibir
gritando Pa rii met ankô! Não há mais Senhores!. .. Em seus dedos, sua ciência dos acontecimentos. Ele só tinha uma idéia, agarrá-la,
houve o entrelaçamento das armações de telhados. Em seus cora- apertá-la, descascar seu corpo, esmagar seus pêlos, chupar-lhe a
ções, houve a argamassa de um pedreiro. Ele gostou dela. Ela gos- língua e tentar desaparecer dentro dela como um pescador da en-
tou dele. Ambos correram pela praça como correm as crianças, seada Azérot tragado pelo fosso turbilhonante de uma passagem
perguntando aqui e acolá, escutando os milatos que faziam gran- que leva ao outro lado do mundo. Viveu a noite a seu lado de ac~r­
"1 des discursos em rodas febris, rindo dos velhos bekês que rolavam
,1 do com as leis dos próprios desejos e o programa de um coraçao
iJ morro abaixo em caleças aflitas. Meu Esternome tentava explicar preso às amarras. Deixou-a bem antes da chamada de um feitor
! à sua negra palavras esquisitas como Monarquia, Revolução, Rea- que manejava a concha do búzio lambi como quem toca uma
leza Efêmera, Dinastia de Orléans, Bourbon, Reforma Eleitoral, ma- trombeta.
rechal Bugeaud, República, Girondinos, Marselhesa, Emancipação,
~i Governo Provisório ... Ela arregalava os olhos da ternura quando,
por exemplo, ele lhe revelava, douto, que a República colocava SARARÁ MALVADO. Naqueles dias, Jean-Raphael achou-o sorum-
na cabeça de cada um a coroa do rei, e que Revolução queria di- bático. Trabalhavam numa escada de dentro de casa que causara
zer como se o rio Roxelane preferisse não tanto descer, mas in- a morte de uma velha milata. A família quis reduzir os perigos da-
"'li verter a correnteza para o olho-d' água da cratera. E ela, talvez in- queles degraus assassinos. Em lágrimas, colocaram umas cadeiras
teligente, saía desabalada para os passeios-corridas vibrantes de em volta da escada e, como num velório, entre duas lamparinas da
verdadeira alegria. Meu Esternome seguia-a, segurava-a, acariciava-
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Irlanda, assistiam ao conserto em meio ao silêncio de uma dor. Oh, Sophie, meu coração, você diz "a História", mas is-
Meu Esternome e Jean-Raphael tinham de se falar aos cochichos so não quer dizer nada, há tantas vidas e tantos destinos,
e curvar a espinha, sentindo uma tristeza que de fato não sentiam. tantas trilhas para fazer nosso único caminho. Você, vo-
Jean-Raphaêl, com o fôlego curto como um xixi de galinha, por cê diz a História, eu, eu digo as histórias. Aquela que você
causa das farras noturnas, esclarecia, em vão, as notícias dos últi- acredita ser a raiz de nossa mandioca é apenas uma raiz
mos tempos. Quando lhe explicava que no dia 4 de março Victor entre um bocado de outras ...
Schoelcher convencera Arago de abandonar todas as medidas tran- Caderno n 9 6 de Marie-Sophie Laborieux.
sitórias destinadas à abolição da escravidão, e que este publicara Página 18. 1965. Biblioteca Schoelcher.
um decreto dizendo, entre outras coisas, que Nenhuma terra da
França pode ter escravos - meu Esternome resmungava como Mas Ninon, inebriada pelo cheiro da liberdade próxima e pe-
um idiota, Oh, mate-me mas deixe-me Ninon ... Por isso é que sem- los modos fascinantes daquele negro de sapatos, tinha um cora-
pre pensei que amor é doença. Viver uma época daquelas sonhan- ção que balançava. De um lado, meu papai Esternome, mas de ou-
do exclusivamente com o material de uma negrescrava, para mim tro, um sarará de cabelo vermelho, malvado como um comedor
é sinônimo de ruína cervical causada pelos demasiados goles de de vespas, que com freqüência, e de verdade, perdia a cabeça em
rum engolidos perto dos violinos estridentes. acessos de fúria. Meu Esternome descobriu a história de uma só
E toda noite, enquanto na cidade agora muito atenta cenácu- vez. Uma noite. Ninon no batente do barraco. A seu lado, não a
los espalhavam as notícias mais depressa que os barcos, meu Ester- insuportável africana mas o sujeito rugindo. E enquanto todo ho-
nome cruzava as matas rumo à sua negra acorrentada. Andava gin- mem com a cabeça no lugar discutia a declaração do bekê Hus-
gando as cadeiras. Na ida, enfiava os sapatos e as roupas num saco son a respeito da liberdade que vai chegar se vocês tiverem pa-
de estopa, ficando só de ceroulas. Não demorava a cair numa espé- ciência, e a proclamação que fizera em crioulo para os escravos
cie de inconsciência que devorava os quilômetros, a escalada dos
que, agora, eram seus "amigos", ele, o louco do meu Esternome,
morros, os pulos por cima dos barrancos, as corridas aos tombos o imbecil do meu carpinteiro, lutava contra um sarará mais sibili-
pelas ladeiras à luz do luar. Esquecendo-se das cobras, esquecendo-
no do que bicho-comprido. Enquanto as pessoas equilibradas fes-
se das assombrações, ele ia de vento em popa, sempre em frente.
tejavam a notícia de que Fort-Royal voltava a ser Fort-de-France,
Seus olhos, na verdade, viam apenas o rosto de Ninon - bonito ros-
uivavam de alegria por causa da nomeação do novo conselho mu-
to, imagino, com os olhos iluminados como um choro de criança,
nicipal de Saint-Pierre composto por um bekê, sim senhor, mas
sobrancelhas em curva e bastas, parecendo um estranho guarda-
chuva, uma boca de sorrisos, com beiços mais azulados do que a também por um mulato chamado Pory-Papy e por um negro, ca-
pele, e dentes compridos e vorazes. Cruzava com os barracos de ne- ramba! chamado Cordier, aos quais Husson havia dado um abraço,
gros devolvidos à modorra costumeira. Ali, agora só reinavam espe- ele, meu maluco com um parafuso de menos, cruzava as ribancei-
ranças mudas, vizinhas das mais loucas. Sentada na porta do barraco, ras para discutir sobre suas vantagens em relação a um sarará doi-
Ninon matava o tempo enrolando os cabelos ou torrando alguns do, ao lado de uma negra iluminada que brincava cruelmente, disso
grãos de café. Sua mãe, uma velha africana que misturava o crioulo tenho certeza, com tantos sentimentos.
e o bamilekê, recebia meu Esternome com um olhar frio e metáli- Se o sarará não era propriamente um rei dos jeitinhos, sabia
co. Desaparecia na sombra de um outro barraco quando ele estava construir um barraco, cavar terraços num matagal para fazer uma
a poucos metros. Pouquinho antes de chegar, ele parava numa fonte horta, raspar um fundo de mar quando os peixes constroem um
que descobrira, e ali, mordendo-se de impaciência, tomava um ba- banco, virar de cabeça para baixo na praia, antes do amanhecer,
nho, esfregava-se com sabão, aspergia-se de perfume, vestia o cha- tartarugas descobertas pelo cheiro, vendê-las em postas, recupe-
péu de abas largas, a camisa e as calças brancas, os sapatos claros, rar a carapaça para que um outro, igualmente escravo, a transfor-
subia o colarinho, e num passo saltitante de afetação aparecia dian- masse em jóias. E meu papai Esternome se punha a lamentar essa
te dos olhos maravilhados de sua tão doce dama doce. anunciação da liberdade, sem .a qual suas vantagens teriam su-

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plantado as do sarará, pois, infelizmente, este também iria ser um bombordo e estibordo do barraco cobiçado. Ali habitavam como
livre, poderia calçar sapatos e usar colarinho de grã-fino. cães de guarda enquanto a Beldade, lisonjeada, tinha belos sonhos.
Ele descobriu, sofrendo, outra vantagem do sarará. Chegando Às vezes, o sarará-cão interrompia a guarda e bancava o indife-
à fazenda em plena noite, mais tarde do que de costume, encon- rente. Às vezes, meu Esternome-cão partia para a Cidade com cara
trou uma Ninon gemendo como um porco em sábado de Natal. de quem nunca mais voltaria. A Ninon, marota pra chuchu, ficava
O sarará, em cima dela, vivia uma crise em sua cachola. Primeiro, com aquele que permanecia fiel, até que o outro reaparecesse mais
meu papai pensou que ele a estava matando, de tal forma o prazer furioso do que um cão de caça.
assemelha-se à dor, e depois entendeu: em matéria de mandioca Quando voltava da Cidade, meu Esternome levava para os ne-
das carnes, o sujeito ralava como um mestre. Então, desculpe-me gros do campo os boatos e as notícias. Levava-lhes também boa-
se conto isso, os dois lutaram a noite inteira, meu papai tentou tos a respeito das notícias. E enfiava tudo aquilo como sementes
lhe arrancar o caralho, e depois voltou para as suas carpintarias de saboeiro, formando um colar de mexericos. A prefeitura de
da Cidade, destruído como um jumento nos espinhos do manda- Saint-Pierre, e especialmente Pory-Papy, havia suprimido toda a
caru. Ninon não queria optar, nem perdê-lo. Acompanhou-o qua- vigilância das canoas com que os escravos alcançavam diariamen-
se até o meio do caminho e calmamente, encostada num bambu, te as ilhas inglesas. O conselho municipal também riscara do ma-
ri pendurou-se em seu pescoço, agarrou-lhe os flancos com coxas pa a sinistra companhia dos Caçadores da Martinica que encurra-
que pareciam mandíbulas, e provocou-lhe com os quadris uma lavam, praticando perversidades, os negros fugidos. Anunciou-lhes
dessas felicidades que levavam, levam e levarão o espírito dos ho- (a eles, sentados a seu redor como ao redor de um contador de
mens até a noite dos tempos ah deixa pra lá ... histórias) para o final de abril a chegada de um paquete. Esse na-
A fazenda onde Ninon vivia foi logo vitimada por um langor vio trazia a liberdade nos bolsos de um comissário da bela Repú-
de mal-caduco. Os negros começaram a velar a liberdade. Passa- blica. Como as coisas iam ficando mais claras, Ninon quis ir com
vam mais tempo a evocá-la do que a responder às ordens aflitas ele para Saint-Pierre, como muitos outros escravos dos barracos
do capataz. Este não mais se atrevia (e estava certo) a levantar seu da vizinhança. O capataz viu-os partir sem sequer xingar-lhes a
nervo de boi. Assim, a Beldade tinha folga durante o dia. Meu Es- mãe, sem sequer altear a voz, sem sequer resmungar alguma coisa.
ternome deixou de lado os serviços de carpintaria na Cidade, de Debaixo das sombras da praça Bertin, esperaram o navio em
modo a fincar os pés entre os barracos miseráveis daquela fazen- questão. O paquete desembarcou apenas uma tripulação doente,
da. Temendo deixar demasiado espaço para o sarará, com quem negociantes, alguns militares, e depois a notícia de que Schoel-
freqüentemente trocava uns sopapos, meu papai começou a subs- cher, o abolicionista, fora nomeado subsecretário de Estado da
tituir a sombra de Ninon. Seguia-a até o rio. Seguia-a por aqui. Marinha e das Colônias. Ao ouvir essa notícia, Ninon dançou com
Seguia-a por ali. Mas quando ela ia fazer algum trabalho nos cana- todo mundo. Quanto a meu Esternome, ficou olhando de banda
viais, ele ficava por perto do barraco; preocupado, apesar de sua o sarará doido que andava por ali, cada olho como um formiguei-
loucura, de não recair no entusiasmo inicial. Então, ocupava-se ro. Durante a festa, quis convencê-la a se instalar em seu barraco
fazendo algum trabalho de marcenaria, porta a endireitar, trinco da Cidade, pois de todas as maneiras a escravidão já tinha morri-
a aparafusar, telhado a reforçar em tal canto, tufos de sapê a arru- do, mesmo se a liberdade ainda não havia desembarcado, e nin-
mar ou, às vezes, a substituir. O sarará acabou por se habituar com guém virá procurar você. Mas Ninon queria porque queria subir.
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sua presença. Talvez não tivesse mais forças para alimentar as cri- O comissário da República, explicava-lhe, anunciado para o pró-
ses alucinantes. Ambos haviam admitido dividir entre eles a som- ximo paquete, o de 10 de maio, vai trazer-vir com a liberdade,
bra de Ninon; digamos que havia a sombra da fazenda (meu Ester- vai distribuir todas as terras, está me entendendo, dividir todas
'j nome) e a sombra dos campos (Sarará malvado). À noite, as som- as terras por nós todos, então quero estar lá para pegar minha par-
bras se confundiam, e perambulavam em volta do barraco, uma te ... E foi embora, com o sarará lhe servindo de anjo da guarda.
vigiando a outra, uma neutralizando a outra quando Ninon queria Meu Esternome não foi capaz de ficar na Cidade. Seguia-a, resmun-
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entrar. Não demorou para as sombras construírem dois tijupás, a gando que a terra não servia para nada, a não ser para os bekês,
.·.11
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que tudo estava na Cidade, que era na Cidade que a gente tinha malucos gritavam os maiores disparates. Os boatos corriam pelo
de armar os alçapões para a felicidade. mato. Deixavam rastros nos canaviais, escalavam os casebres, atra-
Na fazenda, os negros, de tanto esperar, esgotaram a paciên- vessavam as casas-grandes. Penetravam até no meio das abóbo-
cia. Gritavam pela menor bobagem. Estapeavam-se, soltavam agres- ras. E nos olhos das pessoas. E na cabeça das pessoas. Corria-se
sivos palavrões ao lado da casa-grande. Xingavam o feitor assim por aqui para ver a Liberdade, voltava-se por ali, e ela estava aqui,
que ele mostrava a ponta de seu nariz amarelo. Bebiam de noite. não, lá embaixo. Por mais que se corresse, só quem chegava eram
Dançavam de dia. Cantavam seus desejos, gemiam suas angústias. os contra-alísios. Os negros fugidos desprezavam os morros e iam
Apesar da ausência de um negro de Força, imploravam aos espíri- perambular o mais perto possível das luzes da Cidade. Já não sa-
tos das barreiras que os deixassem passar. Durante a santa sema- queavam os passantes, mas faziam-lhes mil e uma perguntas. Como
na, antes de raiar o dia o Bekê (todo vermelho, magro, com uma cada um respondia o que lhe dava na venera, eles ficavam sub-
voz negra) vinha repreendê-los, exortá-los ao trabalho e, para com- mersos numa barafunda de reflexões. Os fugidos olhavam os ne-
,l,1 pletar, injuriá-los An kounia manman zot ... Apesar disso, meu Es- gros das fazendas com olhos bem redondos, invejosos de sua ciên-
,,!,,
ternome viu-os ignorar os últimos apelos do feitor atrás de seu cia sobre aqueles acontecimentos. Já livres, orgulhosos, ainda as-
'·11; caramujo-trombeta.
'i sim sentiam-se à margem do movimento geral. No entanto lá esta-
Querendo dar um apertão naquela gente, o Bekê contratou vam, com armas heterogêneas, prestes a triturar toda a humani-
uns quinze negros livres que viviam na miséria pelas ruas de Saint- dade branca. Quando o boato de que os bekês estavam pegando
Pierre. Prometeu a cada um salário de senador. Eles chegaram de as espingardas chegou aos negros fugidos, eles começaram a dar
manhãzinha, e, em fila prudente atrás do feitor, se encaminharam facadas nos ventos. Quando alguém lhes disse que a liberdade de-
para as tarefas urgentes. O sarará doido, sempre à espreita, avistou- morava por causa de um complô dos bekês, simplesmente fica-
os a tempo. Alvoroçou os barracos, soltando palavrões, que os ram furiosos, e nós, ainda mais, resmungava meu Esternome.
negros do campo, ejetados de seus sonhos, retomaram em coro.
Ele também acabou tendo de agüentar essa louca espera. Mil
Os negros livres continuavam a avançar, apesar do medo desgra-
vezes acompanhou Ninon e os outros a Saint-Pierre, para receber
çado. Então, desculpe-me, meu papai Esternome, dorso nu, de ce-
este ou aquele barco de liberdade. Mil vezes tornaram a subir de-
roulas, pés ao vento, atirou na cara deles um bando de palavras
samparados, alguns até mesmo chorando buá buá buá de medo
num francês brutal. Apavorados, os jornaleiros-fugidos saíram cor-
rendo, para grande desespero do Bekê. Naquela manhã, os negros
e de irritação. Meu Esternome aproveitava-se para se informar com
do campo carregaram meu Esternome triunfalmente até o barra- seus amigos milatos e Jean-Raphael. Estes, visivelmente, de reu-
co de Ninon. E a Beldade, tonta, caiu-lhe nos braços. Quando o nião em reunião, manobravam bem. Escavavam para si os canais
sarará chegou, um tanto esquentado e vermelho, ela lhe disse de que escoariam um pouco dessas águas rolantes da História. Mas,
uma vez por todas, Agora o meu negro é esse. No mesmo dia, o seja como for (saki pa bon pou zwa pa pé bon pou kanna), ha-
sarará doido deixou a fazenda. Nas vizinhanças de Saint-Pierre só viam começado a entender que, como a liberdade não é divisí-
o reviram, e até a grande limpeza da nuvem infernal, dali a tem- vel, a deles vinha no mesmo cacho da dos negros dos campos e
pos ou, como geme a canção, no dia de são nunca. de toda a corja dos miseráveis.
A frase em francês de meu Esternome era: Se um de vocês Na fazenda de Ninon, o bekê e o feitor haviam desaparecido.
for cortar cana, nós, por conseguinte, em nome da República e Às vezes, alguém os via surgir. Observar a torto e a direito. Desa-
do sufrágio universal, vamos cortá-los à moda cidadã ... O que, de- parecer costeando as moitas onde se sufocavam os pés de cana.
vo reconhecer, lhe saía com a maior naturalidade .. . A casa-grande estava completamente fechada, como que compre-
gos. Os escravos domésticos, abandonados a si mesmos, passa-
vam dias de alpendre a contar as moscas. Todos insistiam em não
A PALAVRA DOS MENTÔS. Esperar, desejar, esperar, desejar, es- se misturar com os negros do campo. Inclusive, pareciam não ou-
sa era a vida de Ninon, portanto a do meu Esternome. Os negros vir os insultos que estes lhes dirigiam. Vez que outra, de tanto

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tédio, desciam até os canaviais. Via-se que eram desajeitados para
as tarefas necessárias. Certas noites, ao som mais que conveniente pequeno e redondo, com um pescoço ... que sorte desgraçada! ...
de um ata baque reprimido, velavam em torno da casa de farinha. pulou meu Esternome: havia reconhecido o seu Mentô.
Outras horas, inebriavam-se com histórias estranhas nas quais bru- Os quatro vestiam o casaco de tecido grosso dos negros dos
xas morenas enfrentavam fadas louras durante as quatro estações campos. As calças esgotavam-se no meio das canelas. Sobre seus
do ano. Meu papai Esternome participava da vida dessa fazenda. flancos batiam pequenas sacolas leves. Atravessaram a grande ala-
Apesar da falta de rumo generalizada, ali reencontrava comporta- meda dos casebres diante do assombro geral, até a beira do bar-
mentos de sua infância que ele se aplicara em perder durante a ranco, por onde desceram depois de certa hesitação. Todo mundo
temporada de Cidade. Os dias passavam-se assim. A espera. A es- começou a correr, meu Esternome b'em à frente, como durante
perança. O mel de melaço das carnes doces de Ninon. Um dia, a distribuição das rações de bacalhau. Viram então que eles brin-
finalmente meu Esternome viu com os próprios olhos, e tão niti- cavam na água do rio, como moleques . .Salpicavam-se de lama,
damente que ele jamais se esqueceria dos detalhes, aqueles que cacarejavam como as moças. Depois subiram, encarando todos
com todas as forças ele desejara ver. os que os espiavam. Tinham olhos cheios de doçura, cheios de
A coisa se passou durante uma noite. Como nos contos. Mas, gentileza, cheios também de coisas antigas e imperiosas. Dava von-
mais sóbria do que as dos contos, aquela noite não era ensolarada. tade de chamá-los de Papai. Meu Esternome meteu-se no cami-
Homens e mulheres haviam passado um terrível dia de decepções nho de seu Mentô e sussurrou-lhe, quando este passava à sua altura
e cheio de correrias amedrontadas. Na grande alameda da senzala, Papai, ei ... O preto velho, sem sequer olhá-lo, beliscou-lhe suave'.
conversavam sem parar sobre as desgraças do mundo. Ninon e mente uma daquelas suas orelhas de abano. O silêncio era total.
meu papai Esternome sentaram-se diante do casebre, em compa- E eles, reflexos da lua ou da sombra, pareciam andar sem deslo-
nhia da africana pobre coitada. Esta contava coisas extravagantes car o vento. Uma presença que enchia o universo.
sobre uma viagem no porão de um navio negreiro. A cada silêncio, Sempre acreditei que meu Esternome me contava aí uma his-
meu Esternome murmurava incrédulo, Tenha a santa paciência, tória folclórica. Tive de esperar muito tempo, a época de minha
mamãezinha, mas tanta maldade assim não me parece possível. chegada ao bairro Texaco, para saber que um Mentô era isso e
A velha, um pouco amalucada, redobrava os detalhes. Para tanto, mais que isso, e seguramente melhor. Os quatro pretos velh~s,
mobilizava os recursos de sua linguagem construída com as lín- estava claro, eram quatro Mentôs. Quatro Forças. Simples, homens
guas que ouvira a seu redor. Ninon, ocupada na mistura de um decentes, de aparência insignificante, vê-los porém deixava os
café torrado, ria suavemente do espanto de meu Esternome. A-a! ... vivos embasbacados. Voltando para o meio da alameda, giraram
um silêncio abafou as palavras que ventilavam os casebres. Em face sobre si mesmos, aplicando ao mundo olhos penetrantes. Isso
da imponência desse silêncio, meu Esternome esperava ver surgir durou uma eternidade. Depois, um deles tornou a atravessar a as-
a milícia, os guardas, os marinheiros, algum bekê com documen- sembléia, dirigiu-se a um casebre redondo, todo de palha, onde
tos oficiais. Pois bem, não. Simplesmente, viu quatro negros car- vegetava uma velha preta ibô, totalmente esquecida. Só outras me-
regando bengalas esculpidas, manejadas como antenas. Tinham nos velhas a alimentavam, quando achavam uma horinha. Havia
jeito de quem vêm de longe e ainda não acabaram de ir. Andavam sete quartos de século que a ancestral não se levantava. Pela porta
aureolados pela reverência que sua idade avançada inspirava, vi- do casebre, mostrou uma cabeça de pássaro depenado. Fazia muito
rando a cabeça para a direita, virando a cabeça para a esquerda,
que sua porta não tinha mais batente. O Mentô falou-lhe numa
inclinando-se para cumprimentar a mais insignificante criatura à
língua sem sentido, ou inaudível, ou então mal pronunciada, em
beira do caminho. Um deles era alto à beça, parecia um coqueiro
todo caso, deferente. Era de crer que os dois tinham vendido seus
despreocupado com a ventania. Seu chapéu-bakuá só mostrava
dicionários cristãos, pois ela respondia do mesmo jeito, ·e com uma
uma barbicha de bode. Dois outros eram do mesmo tamanho,
voz que, desde um punhado de anos, já não era deste mundo. o
andavam com o mesmo passo, levantavam juntos os chapéus de
Mentô fez-lhe um breve discurso, inclinou-se gentilmente, e foi
piaçava trançada segundo uma ciência dos carafbas. O último era
ter com os outros. Os quatro partiram com sorrisos, saudações a
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cada passo, cocoricós de galinha que deviam ser um riso. Desapa- pipira. Precediam-no uns guardas. Levavam-no para a prisão por
receram. Na mesma hora, o ruído do mundo, libertado, cobriu causa de uma história qualquer de tambor, de insultos ou de mão
todo e qualquer vestígio do rastro deles. levantada contra um administrador dos campos vizinhos. Alguns
Todos permaneceram reunidos diante do casebre redondo metros atrás, os negros de sua fazenda (fazenda Duchamps, tal-
da velha. Dois ou três incrédulos perseguiram as aparições. Logo vez) seguiam-no gritando: Mété nou !ajo! tou! ... Mété nou Mac-
voltaram, falando todos juntos para dizer de diferentes maneiras kauline tou, Ponham-nos na cadeia também ... ! Ninon, seguida por
que elas haviam desaparecido. Capaz de explicar, só restava ave- meu Esternome, meteu-se na história. Igual a toda a fazenda. À
medida que se aproximavam de Saint-Pierre, os guardas iam dan-
lha. Vozes berravam-lhe, Man Jbo bo, Man Jbo, sa tala té yé, dona
do olhadelas por cima dos ombros. Iam descobrindo que estavam
Jbô, o que era aquilo, diga Jogo, santo deus ... ? Todos permaneciam
sendo seguidos por um bando crescente, cada vez mais denso do
a uma boa distância da porta, como à beira de um catimbó. Quando
que no segundo anterior. Negros fugidos, negros livres, negres-
sua silhueta estremeceu debaixo do arco apodrecido, a assembléia
cravos, milatos pobres e ricos encontraram-se no mesmo fuzuê
no calçamento de pedras da prisão central. Paus afiados. Cocos'
recuou. Ela nos olhou com olhos de cega, dizia meu Esternome,
sempre extasiado diante dessa evocação. Depois, proferiu com secos. Conchas de lambi. Facões enferrujados como destroços de
uma voz que ninguém jamais suspeitaria ser tão forte: um naufrágio. Baionetas roubadas não se sabe de onde. Forcados.
- Mentô! Tacapes caraíbas. Pontas secas de peixe-espada. Punhos simples-
Repetiu outra vez Mentô, Mentô, Mentô, designando com uma mente raivosos. Longas falas em francês que os milatos dependu-
unha o local por onde haviam desaparecido. Depois gritou uma rados nos ombros de outros desfraldavam como bandeiras. En-
ordem (ou uma súplica, depende do seu ouvido): - Yo di zot li- xurradas de palavras desrespeitavam as mães de toda a Criação.
bi!té pa ponm kannel an bout branch! Fok zot désann racbé'y, A coisa ia por aqui. Voltava por ali. Girava e virava. E tudo era
racbé'y, racbéy! ... (Liberdade não é graviola na ponta do galho! atirado contra os muros da prisão.
Vocês têm que arrancá-la ... ) De repente, apareceu Pory-Papy, o vereador mais popular.
Depois, entrou no barraco parecendo uma tartaruga assusta- Um cavalo invisível parecia transportá-lo pelo meio da rebelião.
da com o trovão. Do fundo de seu antro, as pessoas a ouviram gru- Era um mulato seco. Seu olhar revelava que nele não havia brin-
nhindo alguma coisa sobre o delta do rio Níger. Ainda ficaram um cadeira nem gosto de sábado à noite pelos jogos de dados. Inves-
tempinho diante de seu amontoado de palha, podre a ponto de for- tido de sua autoridade municipal, entrou na prisão e reapareceu
mar uma cera. Depois, dispersaram-se entre os hábitos noturnos, na mesma hora com o homem que os guardas haviam acorrenta-
comentando o acontecimento e a Palavra trazida. Nem todos haviam do. Pory-Papy o soltou e depois, erguendo as mãos, declarou com
compreendido essa Palavra, mas todos a perceberam como que por sua voz de advogado:
trás das palavras. Todos, é de crer, sentiram-se trabalhados pores- - Compreendo a comoção de vocês. Bem examinado, não
sa Palavra em diversos recônditos de seu ser, e foram libertados den- houve contravenção nem delito: a escravidão está abolida de di-
tro de si. Seria, pois, uma maré humana a que invadiria a Cidade com reito. Portanto, mandei soltar esse homem ...
guerras, incêndios, como que sob as ordens de um general Mangin Uma verdadeira folia! Ele foi carregado. Foi beijado. Foi cha-
escondido no capim barba-de-bode. Maré que iria se avolumar por mado de Pai da liberdade. Todos correram pela Cidade, pelo por-
todo lado, e subir, como se em cada canto dessa miséria os quatro to, entre os barris e os caixotes de açúcar, insultando os bekês,
mensageiros houvessem relembrado que uma liberdade se arranca rogando praga para os brancos-frança, dançando, berrando, Papy
e não deve ser oferecida - nem, jamais, dada. Papy Papyyyyy ...
Não custou para que esse turbilhão caísse no vazio. Comer-
ciantes, quitandeiros, armadores fechavam as janelas das lojas,
A ILUSÃO DE NINON. O pretexto para a invasão foi um homem. guardavam os tabuleiros de mantimentos, escondiam as âncoras.
Acorrentado: Viram-no quando ele descia na hora do canto do A Cidade mergulhava num triste carnaval. Os cinqüenta sujeitos da

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guarnição e uns guardas da bateria de Esnotz haviam se postado c~to. Os guarda-vem?~ desabavam diante de nossa gigantesca afli-
em pontos estratégicos. Contemplavam a história com imensa afli- çao'. O horror 1magmano durou até a primeira sombra. E 0 massa-
ção. Andávamos em torno deles, como animais de rédeas curta~. cre igualmente imaginário começou. .
Pory-Papy reapareceu mais uma vez e levou-nos para fora da Ci- o.s bekês começaram a nos fuzilar. Ou então foi um só deles
dade, disse-me meu Esternome. Andava à nossa frente. Acalmava que aurou. Houve um grito. Depois um sangue. Ou um cheiro de
os gritos. Parecia até o mágico dos contos, que ao som de uma sang~e. E_ai, tudo ficou em chamas. Devastamos os depósitos de
flauta levou para fora de uma aldeia um ninho de ratos. Meu Es- gasolma, akool, vela.s de sebo, e liberamos tudo aquilo em plena
ternome não reconhecia mais sua Ninon. A Doce transformara-se corrida. Foi uma noite de inferno. Meu Papai Esternome jamais
num vôo de garras. Viu-a lançar pedras, desmontar persianas, ar- se lembrou. dos detalhes. Protegia Ninon das balas que, dizia, pa-
rancar guarda-ventos, derrubar vasos de flores de janelas de ra desmenur alguns segundos depois, choviam de todo lado. Às
bekéias. Viu-a exigir de cada branco encontrado que ele se pro- vezes, em.meio àquela embriaguez mortífera, eíe quebrava, incen-
clamasse amigo da Liberdade. Agora, uma parte dela mesma, sub- diava, batia.em silh~etas brancas. Outras vezes, vencido pelo me-
jugada por Pory-Papy, seguia-o para fora da Cidade, mas a outra do, escondia sua Nmon debaixo das asas e, acuado num canto,
parte de seu corpo queria unhar na devastação. olhava dissolver-se a furiosa destruição. Milatos tentavam acalmar
Na estrada do Prêcheur, onde Pory-Papy a abandonara, a hor- a histeria, yrotegiam ~sta ou aquela casa, Não, não, é uma boa pes-
da deparou-se com uma barreira de marinheiros, guardas e outros soa, ela nao merece isso. A lingua crioula que redescobriam fun-
militares. Estes, esquecendo-se da paciência, atiraram bum bum c.io~ava como um sésamo no calor cego da maré escrava. Essa vio-
bum à primeira pedra que lhes foi jogada. Sangue. Sangue. Ossos Ienc1a apagou-se e?1 plena noite, escoada sabe-se lá por que esgoto.
fraturados. Cabeças perfuradas. Cérebros espalhados em volta. Meu Dessa vez, Nmon não quis subir para a fazenda. Passou uma
Esternome teve medo de verdade por Ninon. Ela rasgara o casaco primeira noite arrepiante no barraco da Cidade de meu querido
e oferecia aos homens armados seu bem-aventurado peito. Esta- Esternome. Os dois .dormiram muito tempo, deixando passar aque-
va gritando: Tcboué mwen! Tcboué mwen, Matem-me! ... El~ con- le pedaço de h1stóna, pois no dia seguinte, por volta das duas da
seguiu pular-lhe em cima. Com seu corpo, grudou-a no chao. ~· tarde;, .enquanto ainda sonhavam debaixo do surdo receio das re-
contra a sua vontade, pôde arrastá-la até as primeiras casas da Ci- presahas, o governador que viera de Fort-de-France mandava afi-
dade de Saint-Pierre. xar que a liberdade exigida estava, sem mais tardar, decretada.
Ali, o carnaval degenerou num tumulto inacreditável. Em ca- Aquele final de maio foi, portanto, belo como um seis do jogo
da uma de nossas almas, Marie-Sophie, tilintava um violão de en- de dados. O escravizador e o estrabalhador estavam abolidos ah
terro. Era garantido: havia um complô dos brancos para cortar as Marie-Se. ' '
canelas de nossa Liberdade. A gente gritava assim: Eles vão nos
matar um por um, descascar nossos corpos até os colhões, estu- Marie-phie, meu açúcar cristalizado, em crioulo a gente
prar as mulheres e a molecada inocente, sufocar os velhos como sabe chamar a escravidão, ou as correntes, ou a chibata,
se faz com os pombos, ah, deus nosso senhor, já mataram Pory- mas nenhuma de nossas palavras ou nenhum de nossos
Papy, já mataram Pory-Papy ... ! Para aqueles espíritos revolto.sos, gestos dá nome à abolição. Você sabe por quê, ahn? ...
a Cidade tornara-se de repente a própria mandíbula da armadilha. Caderno n? 6 de Marie-Sophie Laborieux.
Cada rua virou um imenso garrafão de rum. Rodopiávamos Págiµa 19. 1965. Biblioteca Schoelcher.
ali dentro sem encontrar a salda. Os muros se haviam aproxima-
do como que para comprimir os ódios. Os becos sem saída mul- Naquele tempo, Ninon acreditou que o mundo estava em suas
tiplicavam-se. Cada janela parecia uma goela. As escadas des- mãos. Uma espécie de l)óm Deus, pensava, recolheria nossas des-
ciam em ladeiras lisas. Atrás de cada postigo, pela fresta das per- gra~as e depois divid!ria a existência e~ ocelos de felicidade, aqui
sianas, um bekê nos visava, um bekê conspirava, um bekê carre- esta a sua parte, aqm a sua terra, este aqui é o seu barraco. Cada
gava suas armas. Tínhamos a impressão de vê-los em tudo que era um receberia seus três barris de oportunidades, isso sem falar das

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moedas da alegria. Meu Esternome, já em li~erdade, não enx~r­ como quiser e faça dela o que quiser. A História não vale
gou aquelas maravilhas. Com as pálpeb;as c~1das, re~mungava m- mais que isso.
crédulo Ninon meu mel, ah, liberdade e mais complicado do que
Caderno n? 4 de Marie-Sophie Laborieux.
puxar uma cadeira para a beira de um prato de inhames ... Como Página 24. 1965. Biblioteca Schoelcher.
todos os negros do campo, Ninon não dava a menor bola para
0 que ouvia. Levantava-se bem cedinho para saudar o sol do mun- Esternome meu papai deixara Ninon se exibindo pela cida-
do agora novo. Vestia-se toda noite com roupas li1!1pas para estar de. Subitamente angustiado por causa de sua velha mãe esse es-
apresentável no dia seguinte, e depois ia para a Cidade tal como quecido foi para os morros. Atravessou caminhos apinhados de
a abelha zune indo lá para o fundo das flores. carretas de mudança, pretos exaltados oferecendo suas correntes
Eram milhares deles que iam, assim, vagar pelo centro de nas estradas, carteiros perdidos. Cruzou com feridos que eram
Saint-Pierre. No porto imóvel, nos mercados apagados, trocavam transportados em cima do saco de estopa das macas de bambu.
mais palavras do que frutas e legumes. Percorriam a Cidade sacu- A ilha estava abalada pela desolação. As fazendas retiniam de pa-
dindo uma folha de louro ou pequenas bandeiras da tão boa mãe tuscadas negras. Aqui e acolá: campos incendiados, cercas derru-
França. Espiavam as lojas escuras, examinavam a ruína. onde uma badas, bois perdidos, moendas imóveis, casas-grandes escancara-
penca de brancos tinham sido chamuscados. Ver o~ beke~ voltarem das, destruídas ou mal fechadas. Uns marmanjos iam carregando
de seus refúgios longínquos era para eles uma d1straçao. Alguns grandes sacos com o produto dos saques. Negras escandalosas des-
conservavam o olhar cabisbaixo de cachorro em canoa nova. Ou- ciam pelas picadas para acertos de contas. Algo fácil de ser expli-
tros espiavam os feixes de feno insolentes. Carregar a liberdade cado se complicava num minuto.
é o único fardo que deixa as costas eretas. Os negros voavam lev:s Às vezes, meu Esternome atravessava lugares belos de silên-
como borboletas amarelas. Só tinham um reflexo de preocupaçao cio. Grandes árvores tragavam uma espécie de eternidade e de-
diante da milícia que ia e vinha sem saber muito bem o que :azer. senrolavam seus cipós sob as manobras do vento. Surpreso de
Não tinha documento para pedir, nem alforriado para verificar, encontrá-las sãs e salvas em meio à vasta confusão, meu Esterno-
e nada para dizer, mesmo àqueles bugres esfarrapados que sur- me sempre parava por ali, à escuta de suas cascas, dos arrepios
giam dos quilombos. de suas folhas, da germinação leitosa de suas frutas ainda verdes
Os bekês e os brancos-frança faziam a mudança das malas. da impaciência ao redor dos arbustos indóceis. Tudo aquilo pare-'
Transportavam tudo para embarcações que dd~avam a ilh~. cia alheio do mundo. E meu Esternome gritava assim: Wô Ninon
Outros mobilizavam pesadas carretas dos canaviais para suas ri- tan /e tan, tan lésé tan ... , pequeno desespero que um milato de
quezas entrouxadas, e iam se sacolejando para .Fort-de-France. pena de ganso teria pensado em traduzir por: Ninon, ah, a vida
Crianças, mocinhas, bebês e mães pretas apareciam de~a1xo do não mudou realmente ...
sol piscando os olhos. Com cestos, caixotes, malas, baus, xales, Não tê-la trazido, eis algo de que se lamentou. Ela teria con-
cada um ia refluindo para ocultas proteções. Assim, a Cidade ficava frontado a exaltação infantil com a indiferença daquelas árvores
para os pretos errantes, para os milatos falantes que faziam petições que dominavam o matagal. Se pelo menos também tivessem se
junto ao governador. Os guardas a percorriam como o terreno cer- mexido, se pelo menos também tivessem se mexido, repetia meu
cado de uma vingança a ser consumada. Esternome sem entender muito por quê, mas já se preparando para
as desilusões.
Sophie, não sei o que você chama de "Revolução", mas Outras vezes, à altura de um morro afastado do caminho nas
pode festejar aquele dia de maio. A gente tem essa :ecor- costas de deus, seu dedo do pé topava com a casinha de sapê de
dação, ao passo que um monte de outras recordaçoes fo- um refugiado no mistério das matas. Tratava-se de velhos negros
ram apagadas, um bando de nossas iras não conservaram fugidos ou de forros dos primeiros tempos, ou às vezes de velhas
nenhum vestígio! ... E então, é melhor ter isso do que não estranhas e soturnas. Meu Esternome dizia assim ho ho ho. Quan-
ter. É melhor ter vivido .aquilo. E então, Sophie, chame-a do o ocupante safa surpreso, meneando a cabeça para recebê-lo,

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ele gritava numa falsa alegria Tout neg lib aprézan! Todos os ne- vida, havia caído mais baixo, mais longe do que suas pálpebras
gros estão livres agora ... Os ocupantes recebiam aquela inacredi- bem mais além dos fundos profundos de nossos destinos. '
tável notícia como se recebem as notícias inacreditáveis, ou seja, Mostraram-lhe um montinho de capim-melado. Alguma boa
com um Obrigado-sinhô-e-até-logo-sinhô, Mesi-misié-é-a-pita- alma havia-o enfeitado com conchinhas e uma cruz cujos cipós
misié, Misié-mesi-é-a-pita ... E desaparecer era tudo o que queriam. se desatavam. Meu papai Esternome vasculhou a fazenda, apanhou
Suas vidas agora minerais não abriam nenhum tapete para os da- as ferramentas, derrubou em três dias um velho mogno. No cora-
dos das cegas ilusões. ção vermelho da árvore, serrou tábuas fervilhantes de seiva e com
Encontrou sua fazenda de origem palpitando sob as brasas. elas fez um bonito caixão. Ali jogou o saco supurante de sua mãe,
A casa-grande poupada, mas aberta aos quatro ventos, obumbra- retirado do fundo de um buraco. Com negros da casa, arremedou
va os campos abandonados. Os barracos dos negros abrigavam uma espécie de enterro. Todos quiseram o mesmo tratamento para
apenas alguns enfermos em plena reflexão sobre aquele tempo. seus filhos, irmãs, irmãos, enterrados sem velório em sacos de es-
No alpendre, descobriu velhas mucamas da casa. Esperavam, as- terco. O mogno e o gênio de meu papai forneceram doze caixões
sombradas, sabe-se lá o quê. Não reconheceram nele o ex-Livre e meio - o meio sendo um sem tampa que teve de ser fechado
de savana. As roupas de preto da Cidade que ele ostentava como com uma trança de pau-bálsamo.
uma bandeira longe da imundície deixavam-nas realmente preo- Quando voltava para a Cidade e para Ninon, deixando os so-
cupadas. Ele precisou de tempo para ser reconhecido. breviventes à espera de um empurrão para partir, pareceu-lhe que
Quando isso ocorreu, contaram-lhe que desde o ciclone as as matas haviam erguido uma arrogância sobre a casa-grande des-
coisas se passaram, por assim dizer, sob maus ventos. Os perío- pulmonada. Deu três passos à frente, três passos para os lados,
dos de sol haviam se tornado raros demais ou secos demais. As depois retornou à fazenda tomado por um ódio surdo. Àqueles
chuvas chegaram antes da hora, e sempre foram muito esparsas, pobres coitados, gritou: Fouté li kan en vil, pa menyen te ankô,
ou muito fortes, ou inúteis. O fabrico de açúcar foi espaçado. De fouté li kan an vil, Vão para a Cidade, não toquem mais na terra
noite, tinham de recuperar os atrasos que os feitores acabaram por para ninguém, desçam para a Cidade ... Com o coração feliz, foi
ignorar. A moenda enguiçava por causa de tal peça, depois por encontrar Ninon, sem saber se os outros, espantados com a liber-
causa de tal outra, e depois, de muitas. As caldeiras engasgavam dade, tinham-no de fato escutado. Tampouco sabia se, desde que
uma atrás da outra. Os bois, mais que nunca, convocavam as gra- viviam à deriva, puderam ter pelo menos uma chance de com-
ças dos venenos. Em meio ao turbilhão daquele naufrágio, o se- preender essa liberdade ...
1
nhor ficou feroz. Mandava punir e trabalhar, punir e trabalhar, sem
sequer respeitar a distinção entre negros operários e negros dos É preciso dizer: os caixões vermelhos criaram raízes; e
1
campos, entre gente da casa-grande e bugres dos casebres_ de pa- vimos se erguerem ao longo dos anos várias árvores de
..
,\:. lha. Sua riqueza, gota a gota, esvaiu-se-lhe entre os dedos. Seus
feitores também. Seus amigos tornaram-se escassos em visitas. Os
agonia, galhos torcidos de dores. Observá-los trazia lem-
branças que não possuíamos. A coisa deixava a gente duro
campeches começavam a comer os campos quando dois ou três por dentro, como um passo triste de mulundu. E aque-
bandos de sabe-se Já que tipo de negros atiraram-se sobre a fazen- las árvores, Marie-So, já não eram sequer mognos ... ter-
da. Arrastando em seu ódio um punhado de descontentes, desa- rível história do pai Grégoire, mas quem vai fazer um li-
fiaram a casa-grande com tochas, com facões. O Bekê, cercado vro sobre isso?
por seus fiéis, entre os quais minha avó-mamãe-querida, mãe de Caderno n '! 4 de Marie-Sophie Laborieux.
olhos caídos de meu querido Esternome, travou uma grande luta, Página 11. 1965. Biblioteca Schoelcher.
com furor e coragem, até que gritou o nome de sua própria ma-
mãe sob a cal de um triste golpe. Grito final de sua vida.
Haviam descoberto minha avó ao lado da Senhora. Morta mas REFLEXÕES E PREOCUPAÇÕES. Naquele tempo, meu papai Ester-
sem nenhum ferimento. Seu coração, simplesmente desligado da nome foi puro amor para a sua Ninon. Era um doce-de-coco, do-

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cinho, docinho, em calda de mel. Encontrou-a à beira do barraco, em couro cor de terra. Fê-la ouvir no fundo dos pátios sons de
cheia de uma dupla preocupação. A primeira dizia respeito à sua piano, entrever nas salas de jantar as fiores especiais dos ladrilhos
ausência. A segunda agia mais difusamente. Ninon tinha dificul- da França. Em fundos de quintais, perto de um tanque de tijolos,
dades para se expressar. Uns bekês azedos anunciavam uma tra- ela viu bás sonâmbulas ninarem anjos mamadores. Mostrou-lhe
gédia: a abolição seria anulada pelos grandes chefes da França. um a um, os tons mais vivos das telhas que havia colocado. Mos'.
Nenhum negro acreditava, mas todos andavam inquietos. Os que trou-lhe, por cima da virgem dos marinheiros no alto do Morro
zanzavam por Saint-Pierre com ares de melro em plena tempo- d'Orange, o jogo abençoado das claridades e das sombras.
rada de mangas nutriam dentro de si a mesma triste inquietação. Como era a época, levou-a à foz do rio Roxelane, onde o mar
A fim de sossegar Ninon, meu Esternome levava-a para ver alguns vinha chupar água doce. Iam para lá de noite, entre outros ama-
amigos milatos. Estes caíam na risada: A República não é uma dores, acampando ali mesmo, debaixo de abrigos iluminados,
mazurca, tudo é irrevogável, o comissário já está para chegar bebendo, cantando, contando piadas. Enquanto segurava seus
e acertar os detalhes .. ., mas ·nada a tranqüilizava. Na rua, as no- dedos, Ah Ninon estou feliz porque você existe, sim, ouviram a
tícias pegavam fogo como a queimada dos canaviais, em todos fantástica subida dos peixes-titiris. Imantados pela lua, milhares
os sentidos e no sentido contrário, para voltarem ao mesmo
desses alevins desertavam o oceano para saltitarem no rio. Em va-
ponto: Esperar, esperar, esperar o comissário da República que
gas cintilantes, remexiam a água doce ou encalhavam na areia. A
logo chegará, mas quem chega para dizer o quê, meu bom Deus
turma pegava o que encontrava em torno de si, com baldes, sa-
Jesus Maria José? ...
cos, redes, bacias, lençóis ou outros objetos. A noite nada mais
Para fazê-la esperar, ensinou-lhe a descobrir as belezas da
era senão faíscas fosforescentes, clarões leitosos, brilhos. As vír-
Cidade. No jardim de plantas estranhas, um tanto esquecido,
mostrou-lhe as rosas de Caracas e os lírios da Guiana, levou-a para gulas prateadas jorravam de todos os recipientes, pulavam nos cal-
sentar-se debaixo de um abrigo em forma de guarda-sol onde o canhares, colavam por todo lado espelhos frenéticos. Ninon ficou
ruído de uma cachoeira extinguia-se em espuma. Fez-lhe observar maravilhada com aquelas luzes vivas. Podia agarrá-las e soltá-las
formando uma sopa de faíscas.
o bonde restabelecido depois dos acontecimentos. Mostrou-lhe
no fundo das lojas escuras coisas esquisitas vindas de outros países. O encantamento rompeu-se de repente. As ondas voltaram
A menor vitrine ocultava tesouros inesperados. Garrafas de porce- a ser escuras e se acalmaram até a próxima investida, que foi ain-
lana opaca neste vendedor de tecidos. Frigideiras com cabos de da mais curta. Meu Esternome, não muito inspirado, dizia Ninon,
guálaco nas tendas de merceeiras angelicais. Uma renda portuguesa está vendo, você remonta o rio de minha vida como uma corri-
dentro de uma joalheria. Colheres de prata. Garrafas complicadas da de titiris. A beldade ria. Eu também teria rido, se teria ...
em vidro fino e assobiante. Na tenda de uma feiticeira que filtrava Ali mesmo, entre os seixos redondos, o pessoal pôs na mar-
aromas, mostrou-lhe o bálsamo-da-judéia, uma água de rosas du- mita a pesca milagrosa. Sal. Tomate. Alho. Cebola. Pimenta. Anti-
plas, uma água de hortelã crespa, uma água dos templários, a água gos cozinheiros dos bekês acrescentavam ao caldo, com ares sá-
dos epicúreos que tem cheiro de alecrim e uma água de donzela. bios, temperos exóticos. E comeram em cada panela, passando
Orgulhoso, indicava-lhe, embaixo das fachadas, os pedaços de ar- de um fogareiro a outro e regando tudo aquilo com um bom co-
cada que ele havia trocado. Mostrou-lhe as sacadas cujos entalhes po de rum.
ele esculpira e em cima das quais, esquecidas dele, mulatas sonha- Nas outras noites, meu Esternome e sua Ninon não saíram.
doras encostavam os cotovelos e os suspiros. Mostrou-lhe pelas Não convinha mostrar sua negritude nas claridades lunares. Um
persianas retratos de antepassados lanhados pela luz, quadros de bando de guardas patrulhavam a Cidade. No barraco, cantava-lhe
tons desbotados, cântaros azulados das abluções noturnas, o már- modinhas da época da masmorra, propunha-lhe algumas adivinhas,
more de uma cômoda que oferecia seu apoio ao braço idoso de contava-lhe maravilhas. Descrevia a madeira como um tecido vi-
uma pessoa. Mostrou-lhe mesinhas com pés de leão, abajures de vo que enxertava o sol na terra. Falava daquelas árvores imortais
cobre e de vidro com filetes de ouro, paredes de livros esculpidos que vemos ressurgir de um tronco seco. Depois, sem pensar, ou

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melhor, fingindo não pensar, tocava-lhe com os dedos, s~guia-lhe ou desgraça. E foi um delírio quando puderam avistá-lo melhor.
alguma veia, chegava aos ombros e provocava um arrepio. Sem- Os bekês começaram a falar sem parar, os milatos a ocupar as pri-
pre falando, aproximava-se até o cheiro pican~e de se~s cabelos meiras filas, e os negros a dançar, sim, que nem Ninon dançava
em trança, e depois, com a cabeça contra seu peito, respirava entre pendurada em seu pescoço, embriagada pela felicidade prometida.
seus seios, redesenhava seu ventre. Sussurrava-lhe umas bobagens O ?ornem da República era nativo-natal, um filho daqui-e-de-lá,
que combinavam muito bem com o despertar de sua carne. Ele baixo, de cabelos com brilhantina. Já o reconheciam e gritavam
sufocava. Ela, mais lenta, sentia a pele arrepiada, afogava-se no óleo seu nome: Ti-ferrinon, Ti-Perrinon, Tt'-Perrinon, o que Ninon
fino surgido na dobra profunda. A vida é isso, miava meu Ester- t;aduziu por E mesmo, é um negro ... Esternome meu papai, veri-
nome, só tem isso mesmo e mais nada, viver as chuvas de nosso ficando com o olhar, retificou suavemente:
sangue. No entanto, a pequena, ainda que sentindo prazer, con- - Ê um milato ...
servava na cabeça uma ramagem de preocupações que o serrote Meu Esternome começou a viver com o coração aflito por
comprido do apaixonado depravado jamais conseguia serrar de- sua Ninon. Não é que enxergasse claro aquela época, mas parecia-
finitivamente. Mas ele perseverava. lhe que a Doce (e, como ela, um bando de gente) achava que a
Mas ele perseverava, oferecendo-lhe de hora em hora (no vida era um prato de mingau de araruta. Nos primeiros tempos
porto pachorrento onde os negros esperavam pelo veleiro do c?- de liberdade confirmada, ele dançou com ela, bebeu-isso e cantou-
missário) frituras douradas de bicho-do-coco que um marmanJO aquilo. Dançaram para valer quando a prefeitura abriu imensos
vendia dentro de folhas de uveira. Ela começou a abrir olhos de registros para recensear os negros do campo e oferecer-lhes um
descoberta, a pegar-lhe a mão, freqüentemente, sim, a falar-lhe estado civil. Depois de um século de fila, meu Esternome e sua
como falam as crianças com os frescores de suas almas. Para se Ninon pararam dois segundos diante de um secretário da prefei-
divertir, enfiava o rosto para dentro do pescoço, deixando morrer t~ra com três olhos. Com um risco de tinta, este ejetou-os de suas
os sacolejos de sua alegria sobre a pele acometida. de febre, e os vidas de savana para uma existência oficial, com os nomes de Ni-
dois assim ficavam, fora do mundo, cravando na História que pas- non Cléopâtre e Esternome Laborieux (porque, irritado, o secre-
sava o olhar dos bois no cerrado. tário de pena na mão achara-o laborioso em suas reflexões sobre
Mas um dia a fragata apareceu. Comprida. Fina. Poderosa a um nome). Em seguida, ele começou, junto com ela e tal como
não mais poder. Drenou para o cais milhares de pessoas. Os ofi- os outros, a esperar (mas sem cabeça inebriada) que alguém, sabe-
ciais conversavam diante dos documentos deslacrados. Quando se lá quem, viesse dividir a fazenda em tantos pedaços quantos
o navio entrou na baía, foram em embaixada dentro de barcaças eram os negros. Mas isso era história para boi dormir ...
do correio. O mundo conheceu então uma imobilidade. Um sus- Já na fazenda, mais de um negro impaciente erigia-se em
pense de que a Doce (escapando da angústia que lhe mortificava repartidor. Munidos de cordas de cânhamo, batiam os campos ave-
o coração) se aproveitou para cantar uma palavra carinhosa a meu ludados dos pequenos pés de cana, mediam até os morros e de-
querido Esternome. Ele, transportado, pôs-se a responder com um pois até a casa-grande. Suas divisões rigorosas deixavam, em torno
monte de safadezas. Ignoraram o rufar dos tambores, a crise das desta, uma parcela respeitosa. Cada Repartidor procedia então a
negras assanhadas que berravam Ba nou '.Y fout! Dêem-na para apaixonadas distribuições, Mita 'w, mi ta mwen, mi ta 'w, mi ta
nós! ... e que faziam o sinal-da-cruz no ar para esconjurar os male- mwen. Quem as recebia perdia-se em discussões. Minha terra não
:
1
fícios. Um bote avançava aos sacolejos sob a bandeira da França. é suficientemente plana. Ali sempre tem bicho-comprido. Ali estou
'i'
o comissário da República, de pé na proa, aproximava-se da mar- muito longe da estrada, cidadão, cidadão. A palavra interessante
gem como um conquistador. Ninon e meu Esternome participa- era essa de cidadão. Como vai, cidadão? ... Bom dia, cidadão ... Cê
ram, no entanto, dás movimentos da multidão retida pelas ondas. me adesculpa, cidadão ... Cidadão, ei ... , cidadão para todos os gos-
No cais, o empurra-empurra jogava gente dentro d' água. Era alta tos, com óleo e pimenta. Galinhas, gatas, porcos (com exceção
a febre de querer contemplar o bote atracando, o primeiro passo dos cachorros que continuavam a ser cachorros) tornaram-se as-
do comissário, e reparar por suas maneiras se ele trazia liberdade sim, pelas graças daquele sonho, perfeitos cidadãos.

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ii
.o
Tendo ao lado sua senhora cidadã, seus filhos cidadãos, seu da amurada, um pouco duramente, Até koké manman zot! Vão
feitor cidadão e uns dois ou três negros maltrapilhos debai:'o de foder a sua mãe! ... Os negros têm maus modos.
um monte de baús (aliás, a esses foi lembrado que aqmlo _nao era Essa cena se passou em toda parte, nas distantes fazendas dos
lugar para cidadãos), o cidadão bekê, que vinha sabe-se la de o~­ morros, nos próprios portos de Saint-Pierre ou de Fort-de-France.
de, falou em retomar 0 trabalho. Nós nos revoltamos para l~e di- Os representantes do governo, e Perrinon à frente, e filas de mu-
zer assim Marie-So: A terra pertence ao bom Deus. Se voce tem latos, foram extirpar a ilusão da divisão das terras. Todos falaram
terra, nó; a queremos ... o Bekê ficou esquisito. M:eteu:se na casa- de Trabalho, Trabalho, Trabalho, retomem o Trabalho em suas
grande e foi abrindo os postigos, um por um. Nmgue~ o revm fazendas. Encontrando Perrinon, as delegações de alguns negros
durante uma semana. As vezes, sua sombra vagava atras de uma organizados só ouviram de sua boca a palavra Trabalho. Pensa-
persiana de onde se avistavam os campos. A simples reabertura ram primeiro numa fórmula republicana. Depois compreenderam
da casa-grande levou 0 abatimento aos barracos dos negros. que o sujeito falava, pura e simplesmente, de trabalho, sem que-
Ouviram-na reviver, bater com suas portas, relinchar c~m seus rer saber de mais nada. An-Afarel (que meu papai Esternome foi
cavalos. suas luzes altas curvavam nossas sombras nas antigas po- encontrar junto com Ninon e um grupo da fazenda) confirmou.
sições. Uma vez, sem olhar para ninguém nem par~ os q.ue o Eles tinham ido à cidade buscar a Lei a fim de chamar o cidadão
espiavam, 0 Bekê, acompanhado pelo feitor, sai~ para inspecionar bekê à razão. Mas An-Afarel tirou-lhes essa primeira ilusão, can-
0
campo. Andaram por cima, andaram por baixo, apalparam os tou novamente a cantiga do Trabalho, ofereceu-lhes um licor num
jovens brotos, verificaram os canais, mediram a altura do mato copo lavrado a ouro e explicou que trabalhar para o bekê devia
alimentado pelo abandono. Depois o cidadão bekê galopou para ser em duas espécies. A espécie salário, na qual ele paga a você
a Cidade em cima de um cavalo irritado. , um franco ou dois por tarefa, segundo a palavra que vocês tive-
Voltou com um subvlce-barnabé da prefeitur:, ou sabe-se. la rem dado. Ou a espécie meação, na qual vocês dividem com ele
de onde. o tal de fulano barnabé largou um frances daqu~ ó, sim o fruto da temporada, depois que ele tenha retirado a parte de
senhor, com frases simplesmente lindas. Todo mundo fico.u de suas despesas. A meação, explicou An-Afarel, * é bem mais segu-
queixo caído. o cidadão bekê virou as costas e?' companhia do ra, pois o numerário é raro, as caixas estão vazias, e os salários,
tal do fulano barnabé. Na varanda, revimos os d01s bnndando com se fosse preciso dar a todo mundo, só poderiam ser pagos caso
vinho madeira uma espécie de contentamento. Meu E~tern?me, distribuíssem pedacinhos de papel com números, como já se faz
perguntando a quem estava por perto, percebeu.que n~nguem, e na loucura guadalupense. Em seguida, deixou-os diante dessa no-
Ninon a primeira, tinha entendido o lindo fran~es. Entao, com a va perplexidade e desapareceu a caminho da prefeitura.
turma reunida em volta de uma pedra, ele exphco~ (buscando ~s Com Ninon e meu Esternome, o grupo encontrou a Cidade
palavras, contrariado, pois queria ~iv~r Nmon e nao aq~elas _?is- apinhada de negros errantes. As praças estavam transbordando de
tórias) que 0 sujeito dissera: O primeiro ~e~er ~e um cidadao .é velhos impotentes, de gente com bouba, lepra, tuberculose, tos-
respeitar as leis da República. Que o su1eito dissera: P~las leis se, escarro, negras mais velhas do que o batismo do diabo. Os
da República tem-se o direito de possuir o que se possui. Que o bekês, felizes por terem se livrado daquilo, haviam-nos abando-
sujeito dissera: se liberdade é uma bela coisa, ela não é uma ba- nado. Na época, aqueles estrepes acabavam de chegar à cidade,
canal. Enfim, que o sujeito dissera: A terra pertence ao bom D~us, onde supostamente deveria existir aquilo que a liberdade trazia
sim, mas os campos pertencem aos bekês e aos proprietár~os. em termos de felicidade. O porto retomara um pouco da ativida-
Ninon e os outros levaram duas horas para entender. Somam.
Cada um estava sobremaneira preocupado com que o outro acre- (•) Ele usava um reclingote novo, de botões prateados, e um jabô de renda
ditasse que ele tinha entendido tudo. Mas, aos poucos, b.em pou- fina como uma bruma de bambu, pois estava indo para as repartições oficiais a
co a pouco, a palavra criou raiz. De repente, os negros Jorraram fim de que as listas eleitorais fossem estabelecidas de acordo com os registros do
dos barracos imóveis. Acudindo para perto da varanda, onde ain- novo estado civil, pois, sabe como é, as eleições são importantes, é preciso impe-
da bebericavam 0 cidadão bekê e o outro fulano de tal, clamaram dir que a hidra escravista volte a levantar a cabeça ...

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1
•'

quela vida, encontrar, durante algum tempo, a exaltação


de. Estoques de açúcar, desbloqueados nos altos ~orros, v.o~a­
do primeiro copo de ilusão, Ó, a embriaguez ... era viver.
vam a afluir. Com os milatos metidos nesse negócio de ele1çao,
e os antigos negros livres voltando à rotina, a Cidade punh~-se Caderno n? 4 de Marie·Sophie Laborieux.
novamente em marcha, sem um chiado sequer. As ruas ofereciam Página 24. 1965. Biblioteca Schoelcher.
pouco espaço a esses pretos das col~as. mc;s perambulavam pel~ e depois se cansaram do salário e só iam para os campos segundo
cerrado, enfastiavam-se nas ruas, bebiam a agua das fontes, acom o estado de espírito, um dia assim, outro dia assado. O cidadão
panhavam em massa as chegadas dos bois porto-nquenhos, acom- da casa-grande perdia os cabelos. Freqüentemente meu Esterno-
panhavam passo a passo o estremecimento do bonde; Mesmo sem me tinha de ir explicar-lhe, na varanda, que hoje não era para con-
saber como viver ou comer, i;ião procuravam, porem,. o me~or tar conosco, cidadão, amanhã, veremos ...
biscate. É verdade que liberdade é tudo o que você qmser, cida- O tempo ia passando assim, exatamente assim. Ninon ia fi-
dão mas não é trabalho. cando abatida. Na chama de seus olhos, algo havia se extinguido.
'voltando para a fazenda, optaram pela meação e deram um Meu Esternome soube que no mais profundo dela produziam-se
bocado de trabalho ao cidadão bekê. Dirigindo a turma, meu pa- desabamentos. Então dizia, Ah, Ninon, vai dar tudo certo. E ela
pai Esternome negociou o trabalho na base de dois terços para respondia Está tudo bem, Ternome, tudo bem ...
0 senhor um terço para nós. Mas de onde é que apareceu esse Um dia, An-Afarel apareceu no lombo de um cavalo novo. Ver-
a(?, muglu trêmulo o bekê, que jamais o tinha visto. Depois, per- dadeiro general Mangin, ele alvoroçava os campos, com vistas à
cebendo em meu Esternome um moderador, o bekê se acalmou. eleição. Era um negócio novo. Exaltante. Universal. Os cidadãos
De toda maneira, durante aqueles tempos vagabundos, deve ter dos barracos ouviram-no com extrema atenção. Alguns dias depois,
pensado, era melhor não procurar entender muito. Portanto, to- pôde carregá-los·em carroças,• como uma colheita de inhames.
dos ficaram no campo, em regime de meação. Meu Esternome, Tratava-se de jogar os sufrágios de papel dentro de gaiolas de coe-
pouco interessado em voltar para a lama, negoc10u seu talento lhos. No caminho, An-Afarel explicou-lhes que, para cortar as ca-
nas casas dos arredores. Durante um breve momento, digamos beças da hidra escravista que se reerguiam, era preciso deputar fer-
um mínimo de temporada, a fazenda ressoou seus ruí~os a_nces- ramentas fortes. E as ferramentas fortes chamavam-se: Bis-se-tte,
trais. Depois, tendo em vista os contratempos da _g~rmmaçao (as Po-ry-Pa-Py, Vic-tor-Schoel-cher, ou o que vocês quiserem, mas
i [ partidas não se anunciavam tão boas assim) e o ted10 dos gestos um desses três ... E todos retomavam como um canto jubilatório
;-1
odiados nos canaviais, Biset, Powy-Papy, CheulcM ... ! E dançaram mais do que todos os
1 i outros quando os machados foram eleitos para sabe-se lá o quê.
: '
... mesmo se o feitor não tinha mais chicote, ele estava Meu cidadão papai Esternome manejava o serrote, o marte-
ali em pé, exatamente igual, o cidadão bekê, apesar de lo, as trolhas. Toda manhã, enquanto Ninon se dirigia com o co-
sua cidadania, passava nas mesmas horas e no mesmo ca- ração vazio para as tarefas do regime de meação ou salário, ele
ia em busca das ruínas a serem restauradas. Se o campo nada ofe-
valo, inspecionava o trabalho com os mesmos olhos. O
recia, descia até a cidade, até a casa de An-Afarel, que lhe encon-
suor, Marie-Sophie, tinha o mesmo gosto ruim, as cobras
trava um trabalhinho. (An-Afarel mais parecia um vendaval. Mestre-
zanzavam igualzinho, e nem o calor tinha mudado ...
·em-negócios de comércio político, mal tinha tempo de contar as
Caderno n? 4 de Marie·Sophie Laborieux. novidades Sabe como é, meu Esternome, as eleições foram anula-
Página 12. 1965. Biblioteca Schoelcher.
das, temos que começar tudo de novo ... Depois, dirigia-se para
seus numerosos comitês onde sábios milatos enfrentavam os fa-
exigiram um salário que negociaram em trinta e duas greves zendeiros.) As ruínas incendiadas sempre forneciam material para
1
(•)Era o começo; eu também conheci esse carregamento, e ainda hoje, de
ó, a embriaguez da greve! Era como pass.ar pimenta nas Texaco, carregam.nos a bordo de caminhões para o grande sonho das urnas.
feridas do bekê! Era romper por alguns dias a ordem da-
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alguns tostões. As vitrines dos comerciantes, as janelas maltrata- ração. Meu Esternome dava um jeito de estar presente quando ela
das pelos ventos, as persianas quebradas pelos negros-vagabundos, voltava. Nlnon chegava como uma flor murcha. De mês em mês,
os degraus desconjuntados, as grades de sacadas vencidas pelo sol, desembarcava do mundo. Começava a se parecer com a velha afri-
garantiam-lhe um cotidiano de francos ou de papel-carimbado, cana, sua mãe, de quem é inútil nos darmos ao trabalho de falar.
quando foi a época dos papéis. Senão, meu Esternome conseguia Não custou para que olhasse o que ele trazia (o casco enverniza-
tecidos, roupas velhas, relógios velhos ou algum agradinho para do de uma tartaruga, um pequeno canivete de aço, xales amare-
um lar honesto: um copo de prata ou uma garrafa de gargalo torto. los que ela tanto apreciava, uma água-de-colônia clara) com indi-
Em caso de negra miséria, restava o calçamento das ruas (na ferença. Então, doente, ele pensou vê-la cair em câmera lenta num
noite do levante, os pretos tinham arrebentado tudo), para o qual poço sem eco.
uma nuvem de famintos propunha seus talentos. Outros, às cente- Para complicar tudo isso, sua mãe, a africana, morreu numa
nas, vagavam dentro da cabaça de uma liberdade selvagem. Saindo noite (na véspera, dera a Ninon uma escultura de guáiaco que ela
do regime de salário ou meação, fugiam dos campos para fincarem sempre triturava nas noites em que pitava o cachimbo). Em pleno
suas esperanças no enigma da Cidade. Mas que espécie de campo dia, encontraram em cima do colchão de crina um cadáver recen-
1
é esse? perguntavam, Parece que aqui a gente colhe o tempo todo te de negra espantosamente enrugado. Os descobridores naquilo
sem esse negócio de época? Em q.ue tipo de lua a gente semeia perceberam, misturadas como num balaio, a inocência de uma ma-
o estrume? ... Mas meu Esternome temperava-lhes o ardor: Des- nhã e a amargura intolerável que hoje se vê nos morredouros dos
confiem de seus próprios corpos, cidadãos, a Cidade não oferece hospícios. Naquele dia, ninguém respondeu à chamada para o tra-
época de fruta-pão ... Eles, sarigüês cegos, obstinavam-se em can- balho. Mudas diante daquele lamentável prodígio, as pessoas nem
tar: Isso aqui sai de um sonho sem lama ... sequer se atreviam a tocá-lo. O feitor, pessoalmente, entrou no
barracão, com o salto do sapato impaciente. Mas ficou duro co-
Texaco. Vejo catedrais de tonéis, arcadas de ferro-velho, mo colarinho de brim engomado, especado como essas flores da
tubulações portadoras de pobres sonhos. Uma não-cidade época seca da quaresma na estrada do Vauclin.
de terra e de gasolina. A cidade, Fort-de-France, reproduz- No cair do dia, lá pela hora dos morcegos, Ninon tirou de um
se e ·ali se estende de maneira inédita. Temos de com- baú um pano tremelicante, pesado, bordado em algumas pontas.
preender esse futuro urdido como um poema para nos- Ali ~ africana tecera durante a vida inteira (entre a cana, o café,
sos olhos iletrados. Temos de compreender essa cidade os p1tos dos cachimbos e os cuidados com Ninon) milhares de tron-
'1 quinhos de uma madeira violeta com reflexos amarelos. Essa geo-
'1: crioula com que as plantações, nossas fazendas, cada casa-
grande de nossos morros sonharam - quero dizer, en- metria transformava o pano num chamalote furta-cor, quando nada
', '!
gendraram. preocupante. Todos, mesmo os que só entendiam de rum, com-
1 1

11.i
preenderam que se tratava de sua mortalha, e rião daquelas toalhas
Notas do urbanista ao Marcador de Palavras.
1'
1
que os bekês exibiam quando chegam as primeiras comunhões.
Pasta ni:' 7. Folha xu.
Não houve velório, só a música roncada dos rolos de madeira es-
i' 1987. Biblioteca Schoelcher.
fregados nos tabiques de seu barraco. Pouca gente em volta de
1

Ninon perdia pé. A luz de seus olhos bruxuleava. Parecia a sua memória. Durante o dia inteiro, porém, meu Esternome fizera
chama de óleo de uma lamparina no vento. Reencontrara suas soar nos morros um aviso de enterro,
amarrações de cana, seus gestos mecânicos para se desviar das fa- Mãe Cachimbo da África
cas de ponta, seus andrajos furados até a curva do ombro, o ve- morreu coitada,
lho chapéu que esfolava duramente as têmporas debaixo do sol convoco para sua cerimônt'a,
escaldante. Essa vida mal regada jogava-a cada dia, e definitiva- venham a pé de todo canto,
mente, para debaixo das escarpas do próprio coração de seu co- e quem não tem dois pés

110 111
'' vem em lombo de cavalo, que sobreviveu ao vulcão, maciça, exibindo-se como o espírito
e quem não tem patas de cavalo de um homem que guarda toda a sua memória. Nunca fui lá ver,
vem em lombo de mula, pois, sabe, Chamoiseau, essas histórias de árvores não me interes-
e quem não tem patas de mula sam muito. Se lhe conto isso é porque você insiste, mas eu mesma,
vem em lombo de jegue, Marie-Sophie Laborieux, meu discurso de defesa para o Cristo era
e quem não tem patas de jegue um pouco mais claro, e proferi-o porque era de fato obrigada, mas
vem sem cheirar a suor se quisesse escrever, eu escreveria coisas muito mais gloriosas do
com sua boa vontade que isso que você está rabiscando.
e como Deus quiser... Portanto, Ninon diante da sepultura ficou plantada. Meu ci-
Mãe Cachimbo da África morreu coitada dadão atrás esperava-a pacientemente, apesar daquele calor que
quem me ouviu terá isso a dizer... o Prêcheur suporta. Compreendeu que poderia esperar por ela sete
quartos de séculos. Junto com a mãe, Ninon enterrara uma parte
Enterraram-na rapidamente. Mesmo enfaixado naquela espé- de si mesma. Agora vivia à beira de sepulturas, num grande cemi-
cie de mortalha, o pequeno cadáver contrariava os fervores: não tério. Então, como quem não mama na mamãe tem de mamar no
era daqui, jamais tinha sido, vinha de um vasto rumor ainda des- papai, meu Esternome resolveu dar uma virada na vida de ambos.
conhecido dentro de nós, que o transportávamos como pedra ra- Em face dessa reviravolta necessária, ele entrou, como de há-
chada pela lua depois de um grande crime. bito, numa matutagem comprida como mamá de mulher velha,
A morte da africana inaugurou um novo tempo. Meu cidadão mas não tão estéril quanto. Depois de mil desvios, seu pensamen-
Esternome guardava essa lembrança com exatidão. Contava essa to levou-o às palavras do Mentô. O homem falara em agarrar a Ci-
morte sem cansaço, com vaga angústia e exaltação. O estranho dade. Meu cidadão tentara, mas não encontrou a maneira adequa-
cadáver foi transportado, em meio a uma pequena procissão, até da. E até se perguntava se essa maneira existia para ele, ou para
o povoado do Prêcheur, a fim de que um missionário o visse. Foi Ninon, ou para a cambada da mesma raça que ele. A Cidade, já
enterrado não sei onde. O pessoal do enterro aproveitou para pas- velha, colocara em cima de cada oportunidade janelas com trin-
sear pelo Prêcheur em busca de algum maná. Ninon permaneceu cos e portas com ferrolhos. Na Cidade, o tempo corria rápido de-
diante da sepultura. Doravante, só aquela terra revirada e enfeita- mais. Corria de outra maneira. Só os mulatos já preparados sabiam
da com cabaços atestava que sua mãe lhe vinha da África. Vasta que árvore agarrar para se apoiar e subir, entre que vícios se me-
região da qual nada se sabia. A própria africana só evocara o po- ter para acertar numa virtude.
rão do navio, como se tivesse nascido ali dentro, como se sua me- Em torno dele, nada mais estava claro. Perrinon partira havia
mória, justo ali, tivesse parado de bater. Ninon ainda não sabia tempos, outros tinham vindo. Hoje, reinava um tal de Gueydon,
que, embora cultivando a lembrança da mãe, se esqueceria da Áfri- recebendo ordens de um dito Napoleão que era chamado de ter-
ca: restariam a mulher, sua carne, sua ternura, o ruído especial de ceiro. Liberdade se transformara em trabalho com contrato, car-
seus pitos de cachimbos, suas imobilidades malsãs, mas nada do teira, passaporte. O menor contrato de mais de um ano para um
Outro País. Sequer a palavra de um nome. bekê qualquer fazia de você um homem a ser condecorado. Os
Passando por ali ao sabor de seus velhos dias, meu Esterno- contratos de menos de um ano jogavam você nas vinganças das
me viu em cima daquela sepultura um estranho tipo de árvore. patrulhas que verificavam a sua carteira. Trabalhar só por tarefa
Cientistas de óculos paravam debaixo dela para reflexões infini- ou por dia (um modo de viver uma alegria) era atormentar os guar-
tas. A árvore não era daqui. Nunca tinha sido vista. Mas certos con- das, e isso, e aquilo, e onde você mora, e o que você faz no resto
gos contratados que ali chegaram identificavam-na facilmente. do tempo, parasita da República!? ... Quanto aos outros, os aman-
Levavam-na em galhos, replantados por toda a ilha ao sabor de tes de estrelas, os negros obstinados como Ninon, a transporta-
seus negócios. Lá em cima dos restos de Saint-Pierre, meu cida- rem seus sonhos como quem arrasta a própria sombra, eram cha-
dão sempre me disse que ainda ex.iste uma árvore dessa espécie, mados de vagabundos, eram presos, condenados a uma outra

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escravidão chamada disciplinar. Na qual eram obrigados a traba- ramavam em cima da serragem do chão, pedaços de fígado por
lhar em utilidades de interesse público, que era o mesmo que di- cima e fel por baixo. Eram tratados com pós, sangraduras, instru-
zer colonial. Assim, contou meu cidadão à guisa de ilustração, foi mentos. Nos degraus, os negros da Cidade suplicavam com olhos
construída a bela fonte Gueydon que você vê acima do canal Le- cor ?e banana por aquela medicina-de-hospital. De cada pele es-
vassor quando desce para Texaco. Os que a construíram dentro cama um suor verde. Toda vida, mesmo sã e salva, estava a peri-
de oficinas de disciplina eram os negros do sonho, sempre sonha- go. A coisa tinha desembarcado no porto com uma tripulação, ti-
,,1,, dores, sonhadores terríveis. Para esses, todas as correntes, da Re- nha infectado a Cidade, se alastrado pelos barracos asfixiados nos
",' pública ou de Napoleão, só prestavam se estivessem arrebentadas, buracos. Quando Ninon sentiu os primeiros suadouros meu Es-
oferecidas nas ruas da Cidade. E nem os guardas, nem as multas, ternome quis levá-la aos degraus-do-hospital para mendi~ar algum
nem mesmo aquele imposto pessoal que nos atingiu a todos, obri- pó. Mas, como a viagem era arriscada, resignou-se com o saber
gando você a ter meios para pagá-lo, puderam derrotar os sonhos. do~ negro~ do campo: fricções de limão arrancado do pé, chás
É por isso que o meu cidadão sempre chamou aquela fonte de de Jatrofa, mfusões de losna. e de casca de pau-de-cobra. Ele mes-
Fonte da Liberdade. . mo, ao l~ngo de todo o dia, comeu caimitos grandes, conforme
Aliás, um pouco gagá em sua velhice, ele se divertia em reba- lhe sugeriram. O medo de perder Ninon naqueles calores de fe-
tizar tudo, recriando a ilha ao sabor de sua memória e do que sa- br~ contrariou seus cálculos e amadureceu seu projeto. As febres,
bia (ou imaginava) sobre as histórias que tivemos debaixo da His- primas da cobra (conforme ele ouvira), iam rastejando pelo chão.
tória dos governadores, das imperatrizes, dos bekês, e finalmente Por isso, as colinas eram mais saudáveis. Portanto, tomaram o ca-
dos mulatos que conseguiram mais de uma vez desviar-lhe o cur- minho dos morros assim que Ninon se sentiu melhor.
so. Agir de outra forma era flutuar ao vento. E ele não queria mais Meu cidadão ficou um pouco inquieto com a facilidade com
saber disso. Não queria ser um traste que enlouquecera em pri- que Nin?n abandonou a amarga liberdade para conquistar a terra
sões disciplinares. Tampouco queria se degradar na Cidade com nova. La no alto, os bekês não tinham posto a mão em nada. Co-
biscates sem alma e viver ao léu dias sem ontem e sem amanhã. mo a cultura da cana só era rentável em terras onde seus arados
Não queria de jeito nenhum juntar-se àqueles que babavam den- funcionavam bem, instalaram-se à beira do mar, em cima das boas
tro dos novos asilos, vencidos pela velhice e pelo mal-caduco e cinzas do Norte, dos aluviões do centro, em alguns maciços pla-
que eram alimentados sem honra nem respeito. Então, quando Ni- nos do Sul. Só haviam (pensava erradamente meu cidadão) se im-
non gritou para si mesma Ki léta nou jôdi? O que vai ser de nós? .. ., plantado nos morros até as alturas dos cafezais. Seja como for di-
ele achou a resposta na mesma hora. zia ele a Ninon, que parecia uma semi-assombração levando' sua
Junto com a Cidade, o Mentô citara os morros que os bekês trouxa (ele, de facão na mão, carregava a caixa de ferramentas
e os mulatos até então não tinham investido. Meu Esternome dis- um saco de alimentos, plantas abençoadas - e enfiara na cabeç~
se assim: Ah, Ninon, nada de pulo maior que as pernas, o bam- um bakuá novinho), lá em cima a terra será nossa, dois inocentes
bu floresce a cada setenta anos e não fica pensando na flor do no paraíso, e a vida vai fazer crescer em nossa roça inhames enor-
bibisco. O que foi seu jeito de anunciar que aos dezenove anos, mes. Haviam partido cedo, na hora exata em que o feitor vinha
livre em plena agitação da História, ele ia se aquilombar. E, segu- conferir o~ "trabalhadores". Meu Esternome, de passagem, xin-
rando Ninon, quase a beijando, mostrando-lhe as colinas verde- gou sua mae, e dep0is acordou Ninon. Escalaram as primeiras en-
jantes do Prêcheur, murmurou: Ó, meu amor, é preciso deixar costas dos morros. Descansaram à sombra de nascentes, ao lado
a liberdade e ir se divertir na vida ... de musgos espessos e bambus serenos.
Como de costume, precisou de um empurrão. O destino
enviou-lhe uma espécie de febre que deixava você todo amarelo. Sophie, era deixar as histórias deles para entrar na nossa
Essa febre pôs a Cidade em busca de tratamentos no hospital mili- história. Mas as histórias deles continuavam, e a nossa par-
tar que já não dava conta do recado. Bekês e brancos-frança su- te dava assim uma outra curva. Pense nas curvas. Os ca-
focavam-se na sala onde os médicos zanzavam. Todos se espar- raíbas viviam uma curva. Os mulatos tinham uma curva

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própria, e os bekês formavam outra, e tudo isso estre- em cima de um barranco, recebia-nos antes da paisagem.
mecia com a História que os navios da França, dia após Mais puro. Mais selvagem. Sem nenhum cheiro a não ser
dia, desembarcavam em Saint-Pierre. o das canas da água. Mas, sobretudo, bem mais frio ...
,,
Caderno n? 4 de Marie-Sophie Laborieux. (ilegível)
11 Página 27. 1965. Biblioteca Schoelcher. Silêncio. Nenhum pássaro ombreado no matagal ou ba-
tendo asas sob o ligeiro alísio se atrevia a fazer desordem.
11 Nisso que estou lhe dizendo aí tem a quase-verdade, a às- (ilegível)
li
,,
vezes-verdade, e a verdade pela metade. Contar uma vida
é isso, trançar tudo isso como a gente trança as curvas da
Lá íamos nós. Os morros não estavam tão vazios as-
sim. Em todo lado, por aqui e por ali, mas cada vez mais
pindoba para levantar um barraco. E a verdade-verdade rara à medida das subidas, a antiga vida surgia. Ruínas de
nasce desse trançado. E tem mais, Sophie, a gente não de- antigas casas-grandes. Soalhos de capelas. Canais de pe-
ve ter medo de mentir, se você quiser saber de tudo ... dras mortas. Ossos de uma roda em cima de um rio. Ca-
Caderno n? 1 de Marie-Sophie Laborieux.
caueiros mumificados à sombra de uma plantação. Etcé-
Página 3. 1965. Biblioteca Schoelcher. tera de pés de café, de pés de fumo ... Aqui, mais de um
colono tinha perdido sua parte: era legível.
Tinham atravessado águas tão poderosas que imitavam o vi- Noutéka ...
dro. Plantas erguidas nessas águas uniam-nas ao sol. Às vezes, sur- Cruzamos com velhos-brancos parados na loucura.
'
preendidos por um buraco, trqpeçavam debaixo de grandes folhas Contratados liberados dos contratos, eles haviam subi-
'I que tinham o cheiro adocicado dos cemitérios de seivas. Dali saíam
por alguma picada que erguia ao. sol uma vegetação agreste. Paira-
do até lá no tempo do marquês d' Antin, quando os ho-
mens caraíbas refluíam da região. Olhavam-nos passar
vam sobre eles as nesgas de nuvens desfeitas pela montanha ou pela sem surpresa, a mão encostada em espingardas do tem-
Pointe des Pitons. O que ali viveram (meu papai só ficou sabendo po dos bucaneiros. Às vezes, achavam que éramos ne-
quando chegou às terras livres), uma porção de indivíduos também gros fugidos. Então nos cumprimentavam. Mas aquilo,
tinham vivido. Eles estavam no Norte, outros no Sul, outros ainda para nós, Marie-Sophie, não era fugir, era ir. Não era re-
no meio da ilha. Tanto assim que, para me divulgar essa odiss~ia cusar, era fazer, com o lombo bem sólido, é isso a histó-
oculta, meu Esternome empregou freqüentemente o termo nouté- ria do pai Grégoire ... (ilegível)
ka, noutéka, noutéka. Era uma espécie de nós mágico. Em seu en- Aqueles velhos-brancos nos faziam apressar o passo.
tender, ele carregava um destino coletivo quando se referia a esse Sua presença dizia que não estávamos bastante longe.
nós que o atormentou em seus .últimos anos. Mas não vou mais uma Nem sobretudo bastante alto.
vez recitar para você esse Noutéka dos morros. Minha temporada Noutéka ...
está terminando e já passei um bom pedaço de minha vida, nos dias Encontramos negras que freqüentavam bekês. Muito
de meus cadernos, a escrever um pouco o que ele me dizia. O que cedo tinham recebido uma encosta de morros, uma crista
me tomou um tempo que eu não imaginava. Por quê? Porque sem de terra. E viviam lá em cima com seu monte de mula-
compreendê-lo, eu havia comprendido o seguinte: nosso Texaco tos, sua penca de sararás, fora do mundo, fora do tempo.
Debruçadas sobre a terra como sobre o próprio destino
estava brotando no meio de tudo isso ... que tentavam decifrar nas raízes retorcidas que lhes
davam o que comer.
O NOUTÉKA DOS MORROS
Ao passarmos, gritávamos-lhes que Liberdade havia
. Noutéka ... chegado. Seus filhos, criaturas de cabelo amarelo despen-
Tínhamos a impressão de avançar contra o vento. Es- teado pelo vento, ficavam de bico calado e não enten-
te vigiava seu terreno. Cada vez que desembocávamos diam nada. Só a velha mãe perturbava a solidão com um

116 117
bater de olhos. A anciã, despertando de uma morte se- colibris de papo amarelo soavam os bicos até o silêncio
cular, fazia-nos três sinaizinhos com a mão. Mas sinais de igreja das horas quentes.•
de quê, mais exatamente? Sinais sem bom-dia e sem Noutéka ...
adeus. Encontramos negros alforriados: não tinham ido para
Outras vezes, a negra do bekê fugia, recusando-se a nos os povoados próximos nem para a Cidade. Recebiam-nos,
ver existir, recusando-se a existir de outra maneira que mostravam-nos os locais. Entre eles, às vezes, brancos
i
' não no fio de prumo de seu desejo: mãe de mulatos que, náufragos que falavam uma língua polonesa ou outro ver-
í' se casando entre si, acabariam por se tornar brancos e bo desgraçado. Encontramos mulatos pobres, obscuros
possuir a vida ... (ilegível) bekês vindos à beira do céu para conciliarem o mundo
Encontramos os negros fugidos. Seus tijupás se mistu- com o louco amor que sentiam por uma negra perturba-
ravam com as samambaias. Eram sombrios, também au- dora. Na tormenta daquela terra nublada, todos tinham
sentes do mundo, diferentes. Com o passar do tempo, aberto as Trilhas. Tinham aberto estreitos atalhos nas
haviam permanecido, em espírito, no país de antes. Vê- cristas, desenhados com o salto do sapato, ao sabor de
los aparecer era uma coisa esquisita. Usavam tangas, fle- suas andanças, geografia de um outro país. Nossos bair-
chas, arcos. Exibiam espécies de pulseiras talhadas no ros iam se aninhar direitinho nos cruzamentos dessas pri-
meiras Trilhas.
bambu, penas de gavião, argolas na orelha, dedos de cin-
zas no rosto. Surgiam não para o bom-dia, mas para nos Mostraram-nos o que os bekês chamavam de suas flo-
restas. Esses, ficamos sabendo, haviam esquadrinhado a
assinalar que tal lugar estava tomado, que era preciso ir
fundo a ilha. Mesmo nos limites do vôo do gavião malfi-
bater mais longe.
ni, tinham bawoufé, quer dizer, posto a mão que agarra
A eles também dizíamos: Liberdade aí, Liberdade aí.
tudo. De vez em quando, surgiam como selvagens, de-
Olhavam-nos sem a menor curiosidade e desapareciam salojavam o ocupante, destruíam os casebres de palha.
num instante. Era nos dizer: Essa liberdade é uma histó- Às vezes, tolerando aquela miséria, lembravam ao gracia-
ria muito velha. Entre esses rebeldes dos primeiros tem- do que aquela terra sem ninguém não era do bom Deus.
pos, não havia por nós o menor sentimento. Nenhum Noutéka ...
lampejo de amizade. Nada a esperar a não ser um des- Aprender a não nos instalarmos alto demais - lado
prezo. Então, mais de um entre nós exclamava furioso: frio, ali onde nossos barracos de tapumes de tábuas jun-
Yo pa ba nou y fout'! Sé nou ki pran y, Eles não nos de- tadas não escoravam o vento - lado da água, ali onde
ram, nós a arrancamos ... Obrigado, bom Deus: possuía- nossas roupas de lã não protegiam o suficiente - lado
mos aquela história ... de ar raro, ali onde precisaríamos comer de outra ma-
Cruzamos as hortas dos mulatos. Cultivavam-nas nas co- neira para nos agüentarmos de pé. As samambaias com-
linas por intermédio de escravos vigias. Estes ainda não pridas indicavam o limite do subir.
se sabiam livres. Andavam pelas terras de seus senhores Noutéka ...
como cachorros de corda curta. Jamais queriam nos acom- Alto demais, a terra era perversamente sarará, quer di-
panhar, como que presos no hábito de estarem mortos an- zer, de má índole, nervosa, pouco fiel, traía os barracos
tes de seus enterros.
Quando o dia se pondo avivava as ameaças, e o dia se (•) Lê fin-bout la jounen téka bay koulê goj, lê jou téka Iévé gloria toudou-
levantando, seu corajoso aleluia, lá no alto o melhor era van, an môn falé ou té pé la. Lannuit téka chayé an latrilé bruitaj (kabribwa, grou-
nouy, Kritjêt) tonbé kanyan koté ka.tred maten. Epi, fal jôn té ka sonnen bek yo,
se calar. A noite trazia barulho (grilo, sapo, gafanhoto) jis lê pa té rété piês bri, kontel an fon légliz lê soley Ia ka bat. (Outra versão, na
que diminuía lá pelas quatro da madrugada. Depois os página 7 do caderno n9 2.)

118 11':)
e as culruras. Mantendo um velho casamento com a chu-
va, ia embora de repente em meio a um desastre de vi- bra e na rega. Vigiar a lua: lua que sobe faz tudo subir
das, ferramentas e roças. l_ua que desce espalha tudo direito. Plantar barriga vazi~
!. Quantos barracos soterrados antes que tivéssemos e árvc:_re sem fruta. Plantar barriga cheia é árvore de bom
1 compreçndido. Na Médaille, houve uma dor. :oraçao. Colocar proteções contra ventos de sal. Plantar
Vimo& correrem aqueles porcos-selvagens que o es- arvo:es de garras ali onde a terra estremece: feijão-oró
11· pereira-da-terra, macieira-rosa, laranjeiras. De longe, is~
'. panhol l~rgava na região nos tempos de antes de antiga-
so parec~ sup~a-sumo-de-felicidade, Marie-Sophie, mas na
!l mente.
Noutéka verdade e baliza do destino. Você tem que ler a paisagem
11i ~ Ocupar as costas cheias de bossas, as cabeças dos pi- A paineira of:,rece sombra bastante depressa e també~
l.'
cos. Era construir o território (não o território mulato, se~ ~om algodao para proteger as orelhas das palavras
1
i
1nute1s ...
não o território bekê, não o território cule, não o terri-
íi tório congo: o território dos negros-terra). Construir o Noutéka
' território em Bairros, de Bairro em Bairro, acima dos po- Aprender a fincar nossos barracos em cima de terra-
i voados e das luzes da Cidade. ços escavados na ladeira vertical, a amarrá-los no osso
1 de uma rocha se ali houver osso de rocha. Escorá-los com
Amendoeiras de flores vermelhas e amarelas perfumam
as mais ve1has desgraças ... (ilegfvel) terra. Aprender o apoio do pau-a-pique para a entrada do
Dizer Bairro é dizer: negros saídos da liberdade e en- barraco. A outra parte do barraco oferece-se às duas es-
trados na vida em tal canto de terra. Fazenda queria dizer: tacas que descem até o fundo para procurar as costas da
casa-grande, dependências, terra e pretos acorrentados. terra.
Bairro queria dizer: sol, vento, só o olho de deus, terra Capine, capine, capine na horizontal.
em cavalgada e negro fugido de verdade. Mas preste aten- Evitar as grandes profundidades: é vida molhada e es-
ção, Marie-Sophie: estou falando dos Bairros do alto, bair- cu_ra. ~ru:· abertos ao sol, os fundos lhe oferecem uma terra
ros das cristas, dos morros, e das nuvens. Bairro de bai- mae, fe_rt1l, pródiga em água de um rio tranqüilo. Água pro-
xo, na altura dos canaviais, quer dizer a mesma coisa que :Unda e promessa de ;ega durante as sedes rachantes da
fazenda. Era ali que os bekês imobilizavam os operários. epoca da quaresma. E como garrafas do bom Deus
Aprender que aqui a terra era mais rica do que embai- Aprender a nos colocarmos atrás das costas dos ,;,or-
xo, mais nova, mais nervosa, sem ter sido ainda chupa- · r?s: elas rasgam as nuvens e forçam-nas a se levantar. É
da por milhares de colheitas. E encontrar a boa ladeira. nmho de mais calor, e de um pouco mais de seco.
A exigência foi sobreviver sem ter de descer de novo. Noutéka
Cultivamos o que os bekês chamam de plantas segundas, Calcule o l~gar do seu barraco. O resto anda sozinho.
e nós mesmo;: plantas-comida. Ao lado das plantas-co- O terraço e construído em mutirão. Todo mundo a
mida, precisa-ôe de plantas-medicina, e daquelas que en- bordo, ninguém embaixo, rum, maraca, lenha. Dois com-
feitiçam a sor:<'! e desarmam os zumbis. Tudo isso bem padres na ponta de uma corda arrebentam a escarpa. Es-
misturado jamais esgota a terra. É isso uma roça-crioula. cavam na horizontal, jogam a terra por baixo. Em volta
Trabalhe mais, trabalhe sempre: terra sem terraços ain-
do espaço aberto, segure a terra ferida com uma pilha
da não é roça.
de grandes pedras e plante os pés de árvores que cres-
Marque os seus limites com vidro moído; ali em ci-
cem sem refietir. No terraço, coloque o seu barraco.
ma plante o imortal edelvais sangrento.
Em todo lado; à beira dos cachos de barracos, o verde
Primeiro, plantar a providência do pé de fruta-pão. Para
sem. sede de todas as nossas árvores que dão pão. Sinal
reduzir a falta de óleo, plantar abacateiros. Pensar na som- de hberdade bem longa.
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121
Cultivar na horizontal. Não tínhamos medo de nenhu- isso, Ribanceira-aquilo ... É a forma da terra que dá nome
ma ladeira: nossas ferramentas eram apenas o facão e o ao grupo das pessoas.
forcado. Leves para carregar. Leves para trabalhar. íamos Terra agitada dá lugar a barraco pequeno. A gente co-
de terraço em terraço. Logo surgiu o piso das roças nas la um no outro, de cada lado da Trilha que, ela, segue
'i.
ladeiras mais íngremes. Hortas de verdes bravuras, hor- firme pela crista. As roças se agarram nas ladeiras, e os
1. tas de terra revolvida, vivendo de pedra-pomes mistura- fundos são deixados para a descida das águas. Terra agi-
da com cinza, colorida de tufos ocres. tada igual a Bairro apertado, comandado pelo lugar.
Levávamos nossos produtos em cima de cabeças de Plante seu coqueiro com três punhados de sal. Feijão
mulheres ombros de homens, lombos de burricos. As de Angola não é planta de dar preocupação ... (ilegível)
Trilhas, ~ortanto, não eram só as das estradas coloniai~: Quando o relevo é mole, os barracos se espalham. Os
levavam sem alarde até onde o seu coração dese1ava. Mais Bairros ampliados se encostam e se misturam. Quando
tarde, para as escolas, quando os tempos mudaram, pre- o osso da terra se lança, os barracos formam estrela em
cisamos pedir aos prefeitos que as cimentassem, que re- volta do pico e seguem pelos lados. Ali, o Bairro tem fibra.
Noutéka
duzissem as ladeiras escorregadias, as curvas fechadas, os
Bairro crioulo obedece à sua terra, mas também às suas
mergulhos na velocidade. Mais tarde, tivemos que unir ª.s
1 matas, de onde retira a palha. E também às suas árvores,
Trilhas às estradas, para descermos até a Usina. Mas as Tn-
de onde tira os barracos. E também às cores de sua ter-
lhas continuaram a existir, outras. ra, de onde tira sua alvenaria. Bairro crioulo é como flor
Noutéka do lugar.
As estradas espanam a solidão e sugerem outras vida.s.
Bairro crioulo é gente que se entende. De um a outro,
Fazem a Cidade subir. Levam todos os barracos numa uma mã~ lava a outra, com duas unhas a gente esmaga
ronda anônima e destroem os Bairros. A estrada não é a pulga. E a entreajuda que comanda. Tem até um Bair-
boa nem cedo demais nem tarde demais. Tê-la na hora ro que se chama assim. Por aí você vê ...
exata é se considerar sortudo. Um forcado. Só isso. E a terra, se você pode subir até
Amar a solidão. Não a dos cules que chegavam e vi- lá, é a sua comadre mais fecunda. Só um forcado ... (ile-
viam assustados. Na hora do pipira, temos de poder gri- gível)
tar por cima do muro para o compadre da direita, a co-
madre da esquerda. Viver sozinho demais lá no alto era Cadernos n? 5 3, 4 e 5 de Marie-Sophie Laborieux.
·oferecer o lombo às mãos sujas dos zumbis. A ajuda mú- 1965. Biblioteca Schoelcher.
tua era de lei, a mãozinha, possível, o entendimento, ne-
cessário: lá no alto, solidão deve combater isolamento.
Por não saber disso, vários primeiros colonos perderam DOUTOR-BARRACO. Meu Esternome, junto com sua Ninon,
essa aventura. Solidão é da família liberdade. Isolamento instalou-se em algum lugar lá no alto, como quem se instala em ou-
é comida para cobra ... (ilegível) tro país. Seu espírito parecia, é isso, assaltado por inúmeras possibi-
A família vai crescendo. O moleque tem força para cul- lidades. A seu redor, nenhuma casa-grande, nenhum corta-vento, 1

tivar. Então, ele vai mais longe para procurar a própria nenhum canavial ferido entre sofrimentos. O mundo estava por ser
roça. As roças se afastaram dos barracos e saíram dos Bair- feito, e ele dizia à sua Ninon, O mundo espera por ser plantado.
1
ros. Foi por isso. Senão, barracos e roças estariam junti- Sentia-se iluminado como o mar na lua cheia. Com coragem, pôs-se 1

nhos, juntinhos. . , . ao trabalho. E essa coragem, conservou-a até a hora da desgraça. ['
Bairro crioulo é uma permissão da geografia. E por is- Seu primeiro barraco foi de bambu. Parede bambu. Telhado
so que a gente diz Fundo-isso, Morro-aquilo, Barranco- bambu. Trançado de palha de coco para segurar as águas. Prote- !.
1
122 123
h ';
i 1
gendo contra os ventos úmidos, a palha cobria tudo aquilo com
uma cabeleira de mulher velha. Ao sabor de seu estado de espíri-
to, meu Esternome construiu outros tipos de barracos. O mais bo-
r índia. Eu tapava os buracos com folhas de buriti ou d
b.arra~os nã~ perdiam seus cabelos no vento, meuset~~~~:· ~eus
c1am ltsos ate os ombros de um homem. Eu conhecia a in ?s :s-
L nito foi um ninho de cabriúva apanhado nos locais mais secos. Teve
sorte, pois lá em cima seu ofício foi uma bênção. Todos os negros
correta para que a palha resistisse. Eu. Eu. Eu.
As mulheres iam lá longe para apanhar as folhas d
clmaçao
1 que haviam subido chamavam-no Esternome-doutor-barraco, uma gentep · d · a cana. A
',, .. recisa e vmte folhas secas para uma cabeça de palha Cin-
1
mãozinha a tal hora, um favorzinho, tenha a bondade. Tanto as- quenta cabeças podem cobrir um barraco normal Eu at . .
nhas cabeças de modo especial, com cipós-timbó . babaç~va nt
!
sim que não lhes faltou nada, nem plantas para a roça, nem folhas
í: para a medicina. De terraço em terraço, meu doutor construiu para brade cânhamo. Primeiro eu prendia algumas pel~s pontas ou !-
'.
os outros barracos de taipa, barracos de pau-de-viola, barracos fechar a cumeeira. Tapava os buracos com uma erva-de-cobra·;,~~
de pau-cetim, de canafístula e, é claro, de campeche. Construiu de cabeça para baixo, para secar ali mesmo. As mulheres me joga-
barracos fáceis de serem deslocados se a terra se modificasse de- vam a_s cabeças de palha bem úmidas e eu as amarrava formando
mais, e barracos agarrados em pontas de escarpas. Quando a ma- uma linha reta, sem deixar minhas mãos à mostra. Depois eu ia
deira era pouca, completava o trançado com uma terra fresca descendo, ?escen?o, até cobrir o teto com um chapéu que balan-
1 i misturada a pequenas folhas e amassadas com o calcanhar sob a çava. Depois, eu v1rava um artista capilar: cortar o que forma franja
cadência dos tambores. Em outros barracos, revestia as paredes na porta ou ultrapassa as janelas, e pentear direito o barraco para
com um chapisco de sua lavra (cal-conchas-areia e cocô-de-boi). que ele zombe do tempo. Eu. Eu. Eu.
Ah, Marie-Sophie, os barracos de terra são os mais frescos. Para
enxotar o sol, eu aumentava as fachadas com uma camada de ter- Sabe lá ? qu~ é isso, So-Marie? Poder em certo momento
ra branca e protegia-os com uma beira no telhado, e eles duravam de sua vida dizer: Eu ... O que é que você acha disso. hein
dez anos. sorte mais danada?... ' '
Por ocasião de tais evocações, meu Esternome reencontrava
Cader?o n '! 5 de Marie-Sophie Laborieux.
sua ardorosa vaidade. Vê-lo assim, governador dos morros, ele que
Página 29. 1965. Biblioteca Schoelcher.
ignorava a terra, deixava Ninon feliz, talvez até um pouco orgu-
lhosa. O que, evidentemente, não evitaria a futura desgraça; mas . Mas a palha nunca dura muito. Eu tinha de recomeçar a cada
afinal, por enquanto, meu Esternome só falava no Eu. Eu isso. Eu dois ou três anos. Por isso é que fiquei muito feliz quando che-
aquilo. Eu construiu barracos com uma madeira amarga que de- gou a folha-~e-flandres. Que maravilha, um telhado de' folhas-de-
sencoraja o dente das traças famintas. Para as estacas, eu pegava flandres novmhas em cima de um pouco de palha' Que
o mogno, Marie-Sophie, ou a simaruba, que espanta os pássaros, Eu Eu Eu A d 'nh · avanço.1
. . . ponta e m1 as estacas era endurecida no fogo an-
ou ainda o acumã, a balata, o angelim, as samambaias compridas, tes de ~er fi~cada na terra, a não ser quando a madeira supurava
a peroba ou a cerejeira. O que você conhece dessas árvores, Marie- uma s~1va teimosa. Eu. Eu. Eu. Minhas janelas fechavam deslizan-
So? Minha sabichona, o que você entende da árvore de fruta-pão, do, mmhas portas também, e à guisa de soleira eu engastava na
do abricó-da-terra, e da pereira seca? O que você sabe, Dona- entrada uma pedra plana. Eu. Eu. Eu.
Ciência, dos perfumes do loureiro, das acácias e das madeiras de Com Ninon, fui extraordinário: uma bela sala, dois belos quar-
rios? Eu sei. Eu. Eu. Eu. t?s envol~1dos por ~1_11ª luz sua~e. Em cada quarto, uma cama em
Para o soalho dos barracos, ou para as paredes expostas à chu- cima de pes de cere1e1ra protegia contra os bichos-compridos E
va, eu pegava pedras mortas, pedras que rolaram por ribanceiras Eu. Eu. Fiz-lhe ~m colchão de fibras de coco, baús de cipreste ~i~:
insensíveis à terra. Ou então eu surpreendia o mundo com a pedra- turado com vet1ver que perfuma para sempre, e cobri o fundo de-
pomes bem leve, isolante da desgraça, bastante fácil de ser talhada le~ c~m. ~ogno, e a roupa (roupa de Cidade ou roupa de enterro)
(você pode encontrá-las aflorando nas vertentes da Pelée). Minha saia ah mocente como o orvalho do dia. Eu. Eu. Eu.
palha de urgência vinha do capim-sapê, do vetiver, da cana-da-

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,.
1

125
!
ENCANTOS DA USINA. Ninon não ficava atrás. Meu Esternome, Em janeiro, pegar de surpresa a quaresma:• plantar legumes
maravilhado descobriu que sua negra possuía um saber espanto- da terra. Fevereiro, é a época das flores. O Bairro cheira a bálsa-
so Saber de' terra e de sobrevivência. Sem isso, seriam uns po- mos. Ouvem-se canções. De todo lado sobem os aromas de café
br~s coitados naquelas colinas órfãs. Logo de saída, para acabar cacau, canela, noz-moscada, urucu. Nos silêncios da canícula ex:·
com os mosquitos, ela estrumou as proximidade.s do barraco com plodem as sementes do rícino. '
grãos de pé de rícino. Trançou vassouras d~ piaçava que lustra- Em março, é regar, regar, regar, descer até a ribanceira e su-
vam a terra de dentro do barraco. Plantou ah em volta essas plan- bir para a rega. Ninon, com um jogo de calhas de bambu, ligava
tas que perfumam, que alimentam, que curam, e as que traumati- o roçado aos filetes claros das nascentes. Os legumes só pegam
zam todas as espécies de zumbis. ali onde a água é na medida certa, por isso escolha a sua rega e
Quando o barraco foi levantado, que os anos passaram e que seja constante na rega. Assim, Ninon semeava dentro de caules va-
meu Esternome tendo contruído todos os barracos, sentm-se um zios do bambu. Em março, abril: fogo, fogo na vegetação rasteira,
1 pouco como u~ joão-ninguém diante dela, teve de s~ iniciar no capinagem, capinagem, prepare a terra para as plantações de maio,
saber de Ninon, viver segundo as estações do ano conc1hadas com deixe apodrecer o mato cortado, e adube a roça.
1' a terra.
Ninon estabelecia um rodízio: mandioca-repolho-inhame, de-
Mês de maio e mês de junho: preparar, dizia ela, o calor chu- pois batata-doce, depois repolhos e inhames. Quando a lua subia,
voso que vai remexer a terra. Plantar, é hora, plantar. A véspera plantava o que devia subir; na lua cheia, podava mas jamais corta-
do dia de são João é um grande dia para isso. Meu Esternom~ va; na lua minguante, capinava o mato velho que, então, já não
seguia-a passo a passo. Com ela, aprendeu a amarrar nas bananei- tinha força para se espalhar. Depois, enfiava na terra as plantas
ras umas escoras de bambu, a prender as trepadeiras ameaçadas cujos favores alimentavam a roça. Também plantava as árvores
pelas chuvas. Ter boa mão para colher as mangas, os pepinos, os que desejava ter ao alcance da mão. E a história recomeçava. E
chuchus ou os inhames. Colher e vender nas encruzilhadas das a história recomeçava.
estradas ou às portas dos povoados. . .. O Bairro deles desenvolvera-se em torno de uns quinze bar-
Mês de julho. Acabar de plantar. Capi~a~, capinar, ~1s1tar a racos. Cada mês trazia um recém-chegado que se instalava ali por
:. árvore de fruta-pão que dá até novembro; visitar o que da. Agos- perto ou ia mais para cima. Com as colheitas dentro de sacos, as
•• to, setembro, outubro, novembro: Ninon falava da chuva e da mulheres pegavam as estradas para a Cidade. Subiam à noite tra-
{'
amainava. Deixar a terra repousar debaixo do trabalho bem-feito. zendo uns tostões de óleo, manteiga, chocolate, alguns grãos de
Ensinava-lhe tudo sobre as belas roças que fumegam quando v?l- sal. Meu Esternome praticamente não saía mais do morro. Apai-
ta 0 sol, a vigilância dos brotos que germinam a terra, que ~ap1m xonado pela roça, ali passava seu tempo. Ali plantava sua alma,
velho arrancar. Ele aprendeu em que altura escavar os canais para como diz a canção. Suas plantações não eram, nem de longe, tão
desorientar as águas. Na época das grandes chuvas, Ninon ficava frutuosas quanto as de Ninon. Mas, contestando as histórias de
no barraco, consertar as ferramentas, afiar o facão, talhar os es- mão verde, ele plantava com perseverança: era o perder-se nesse
teios. Só saía para arrancar um inhame na terra mole, uma batata- caminho da terra que o livrava dos fracassos da Cidade.
doce, um repolho, e encher a reserva muito bem misturada com Ninon, voltando de Saint-Pierre, dava-lhe as notícias: os pa-
cinzas, debaixo da cama. , _ péis haviam se invertido. Os bekês tinham assistido à ruína das
Setembro: colher e vender. E a graviola, a fruta-de-conde, sao fazendas. O que funcionava bem com a escravidão funcionava me-
as mangabas e os sapotis. Novembro: limpar os te~raços, talhar as nos bem sem a escravidão. Na região, o abatimento era cada vez
passagens da seiva na casca da canela, colher o cafe maduro, pegar maior. A cana crescia mais devagar do que os arbustos espinho-
cacau à sombra das grandes árvores. Nos ventos de dezembr_o, sos. O açúcar mascavo parecia pior do que o açúcar de beterraba.
0
a terra anda mais devagar, a seiva segue uma espiral. As folhas ~stao Além disso, aquela história de pagar salário, quando na verdade
febris. Ninon lhe ensinava a viver aquela pausa da terra ficando imó-
vel no meio da roça ou na beira da escarpa, diante da paisagem. (•)Temporada da seca, que vai de dezembro a abril. (N. T.)

126 127
ninguém tinha a menor moeda, dava aos fazend~iros preocupa- trabalho. Um dia, Ninon levou meu Esternome até o pico de um
ções infinitas. Os governadores, um após outro, mstal:r~m ban- morro para que ele visse o horizonte. Queria lhe mostrar a nova
cos. os empréstimos autorizavam o pagamento dos salanos. Mas paisagem: muitos campos, poucas casas-grandes, e, sobretudo, li-
nem assim os plantadores conseguiam ter dinheiro para os ass~­ gadas por um entrelaçado de ferrovias, estradas e rios, as tochas
lariados. Nenhum negro, agora já sem as velhas correntes, ambi- poderosas das grandes usinas de açúcar - novas rainhas desta
cionava suar a camisa. Os que se resignavam, exigiam um ritmo terra.
diferente da escravidão. Isso complicava o bem-estar dos bekês. Um bocado de negros do Bairro abandonavam suas roças. Da
Então mandaram vir outros tipos de escravos. terça-feira a sexta-feira, iam trabalhar nas caldeiras da Usina ou em
' .
Ninon viu-os desembarcar ano após ano. Descrevia-os para outras máquinas. O resto do tempo, dedicavam aos sonhos min-
meu Esternome. Este balançava a cabeça e o cachimbo (ele come- guados das colinas. O Noutéka dos Morros tinha como que aborta-
çara a fumar, como a maioria dos negros no silêncio das colinas). do. As pessoas sobreviviam, sim, livres, sim, mas muito depressa
Viu desembarcarem os portugueses da ilha da Made1ra. Andavam despontava o travo amargo de uma desgraça. Era a amargura de uma
a passos miúdos, debaixo do sol. Das pessoas ar_nontoadas na es- terra cujas promessas se desfaziam. Era o tédio de uma natureza que
trada para vê-los, só observavam as sombras de1t~das. A pele de- arruinava quatro paciências em troca de um desejo satisfeito. Era
les conhecia o sol. Seus corpos desapareciam debaixo de uma por- ver os mulatos se desenvolverem sem parar, falarem bem, come-
ção de roupas escuras, amarradas em todos os sentidos, como os rem coisa boa e irem à escola. Os morros não tinham escolas nem
espantalhos. Viu desembarcarem os cules de pele preta e os de luz. As pessoas se encontravam diante de um vasto céu que parecia
.1 Calcutá, de um vermelho-amarronzado mais claro. Usavam no ca- uma tampa, um cadinho preocupadas, às vezes sem dinheiro, sem-
belo um repartido azul que descia até o nariz. Lamentavam-s.e por pre sem perspectiva, e as alturas imóveis não ofereciam nenhuma
1 ocasião dos nascimentos e explodiam de alegna nas horas fnas da felicidade. Assim, de ano em ano, as Trilhas aquilombadas puseram-
morte. vestidos dos pés ao pescoço, viviam agrupados como ban- se a descer para a Usina. Ali havia uma oportunidade.
dos de pombos e comiam coisas esquisitas. Viu desembarcarem Ninon também teve vontade de descer. Primeiro, teve von-
os congos. Calmos, disciplinados, parecia.m, porém, ~ns negros tade de descer na época das colheitas, para encher os pequenos
fugidos retardados. Assistiu à hora dos chineses debaixo de cha- trens que fumegavam rumo à Usina. Depois, teve vontade de co-
péus pontudos, indecifráveis como as escarpas e mais espertos do nhecer a própria Usina. Dizia: Eles estão contratando, é isso mes-
i '·

que seus carrascos. mo, e não é como trabalho-terra, são máquinas. E meu Esterno-
Meu Esternome piscava os olhos. Todo esse mundo, pensa- me respondia: Sim, mas são bekês. E ele murmurava a Usina, a
va escalaria os morros. E dizia a Ninon: Você vai ver, eles vão Usina, a Usina. Essa era a palavra-mãe daquele tempo. Cada vida
ch~gar, vão vir para cá. Mas viu-os muito mais tarde, e só os con- oferecia-lhe uma temporada. A grande conquista dos morros era
gos, que bem depressa subiram os morros para o reencontr~ com lamentavelmente tragada por aquele amontoado de bielas, correias
a terra. Os da Madeira dissolveram-se. Os chineses se apropnaram cheias de graxa, cubas e tubulações.
na Cidade dos negócios de temperos, e depois de todo tipo. CJ.s Ó, a Usina bufava como um Bicho-de-Sete-Cabeças. A Usina
cules foram reunidos perto das fazendas e dos povoados tranqui- palpitava de energia. A Usina vibrava com os descarrilamentos que
los: não demorou para que virassem magarefes bem instalados, enchiam os morros de um rumor de destino. Às vezes, meu Ester-
estimados mestres em cavalos, especialistas em burricos. Mas seus nome aproximava-se da beira da escarpa para observar um daque-
deuses dizimavam os carneiros em longos sacriffcios. les monstros. Impressionava-se diante de tanta força, um pouco
Apesar dos guardas a cavalo e dos acessos de raiva .militares, a mesma impressão que diante da casa-grande ou das luzes da
todos abandonaram a cana. Ninon viu as fazendas reduzirem ave- Cidade. Mas ali havia outra coisa. Uma barulheira de metal. Uma
locidade das moendas. Viu todas as casas-grandes se fechar, uma decisão de engrenagens. Um cheiro indomável. Um conjunto im-
a uma. Os bekês ricos engoliram os pobres. Os bancos distribuí- passível de ferrugem e roldanas. Meu Esternome não sabia o que
ram algumas terras decadentes a. negros tocados pela graça do pensar: seu Mentô não tinha previsto isso.

128 129
l '

,, SERENATA DA DESGRAÇA. Ninon queria descer para ir trabalhar negro bonito como uma imagem. Tinha mãos finas, voz esganiça-
1: na Usina; ele, Esternome, não queria. Então Ninon fechava a cara. da, olhos de fogo e, batata, dizia meu Esternome, tocava banjo
Fazia beicinho e batia as pálpebras quando ele cruzava seus olhos. ou mandolina. Esse cão vagabundo investiu o Bairro em plena
À noite, na cama, deitava-se de modo a estar sete rr.'orros d~sta'.1te noite de lua cheia, como sapo de macumba, portador de alguma
1
dele. Então, ele ficava duro como um pau em noite de nupc1as. maldição. Enquanto os cristãos dormiam bem direitinho, o ener-
1 Tinha de agarrá-la como quem remexe um inhame quando ~terra gúmeno volteava de barraco em barraco ... - fazendo o quê? Fa-
está empedrada. Enquanto se mexia, ela cantarolava um lalala qual- zendo serenata.
':1 quer, só para mostrar que ele não estava poss,uindo .sua alma. E, As pessoas do Bairro saíram de seus sonhos um tanto assusta-
pior, por mais que ele lhe desse todo o necessano, Nmon_ d~spre­ das. As mais covardes imaginaram um vôo de zumbis farreando
zava as promessas: nem mamilos intumescidos, nem musica no na terra. Outras desencavaram entre seus trapos algum frasco de
1
ventre. Todo mês ela mostrava seu orvalho vermelho de ovos álcali, de água-benta ou de éter. Mas, na mesma hora, todo temor
vazios e o humor um tanto azedo que o acompanhava. Meu Es- de desgraça esfumou-se. Compreenderam que eram objeto de uma
ternome esperava que passasse. Depois, repetia a dose. À força, música enlevada. Bela e doce música. Que encantava as pessoas.
como quem pega um búzio lambi no fundo de u;na concha pro- Que as transportava ao coração de seus próprios corações em
'
me10 '
a um grande acorde de sentimentos, '
langores açucarados,
funda. Pensava (como aliás todos os homens deseiosos de escorar
um amor vagabundo) que um negrinho a ocuparia o suficiente para emoções infantis que inebriavam a fundo. Lamparinas de óleo de
que murchasse a ·vontade de voar para a Usina. Mas, em vez de coco acenderam-se em cada barraco. De cada barraco emergiam
um negrinho, apareceram a onda vermelha, a morte vermelha, as figuras de sono, depois, olhos de evidente alegria, depois, corpos
tiras de pano para lavar, para estender, para lavar-estender ... Meu sonâmbulos esbarrando no músico.' Todos lhe suplicavam que
Esternome contava-as como os degraus de um calvário. ficasse perto de seus barracos, mais um pouquinho, antes de ir
Ninon parecia feliz com essa ausência de filho. Meu Esterno- para mais longe. Mas o músico circulava de barraco em barraco.
me ouvia-a chorar, mas sem jamais saber se aquela dor transbor- Por mais que lhe oferecessem a garrafa de rum, lhe dessem um
dava de seu desejo de Usina ou se gorgolejava dos coágulos de doce, uma marmelada muito especial, bancos de madeira de lei,
seu ventre. E essa dúvida deixava-o furioso. Redobrava o ardor, nenhum barraco parecia ser capaz de detê-lo - a não ser, eviden-
sem o menor resultado. No entanto, sem brincadeira, meu Ester- temente, o de meu Esternome, quando Ninon saía de um bom
nome servia-se, qual um profundo conhecedor, da farmácia do sono.
fornicador maravilhoso: pau em ereção dentro de licores, suco O músico era um sujeito de olhos brilhantes melancólicos.
de cebola misturado com mel, caldo de farinha de mandioca, Usava um chapeuzinho de franja. A voz (que de sua boca perfu-
amendoins de toda espécie, coração de abacaxi-anão, chás de ju- mada filtrava em francês) era cheia de salamaleques. A mão enfei-
rubeba ... E, evidentemente, toda manhã ele bebia (com o estô- tiçava a mandolina no alto, encantava-a embaixo, e as cordas sol-
mago vazio) três ovos crus batidos com mabi. Q~? tenha cuidad;:i tavam uma musselina de modinhas unidas como cipós às belezas
tanto de seus ovos (ou de sua fertilidade), permmu-lhe num acu- de seu canto. Ah, meu Deus, que história! ...
mulo de vidas alcançar a idade dos grandes sossegos; ó, bela ida- Se meu Esternome saboreou as músicas, sua Ninon viveu uma
de, ó, belo incomparável: podemos conversar sobre os am~res dilaceração. Apenas para ela, o músico abriu o mundo a outras
da memória, sentindo apenas uma dor rápida como um suspiro. paisagens. No dia seguinte, indagando das outras pessoas, soube
Assim, um século de tempo depois, ele pôde, sem grandes emo- que era a recipiendária única daquela coisa inefável. Debruçada
ções, me cecear como perdeu sua Ninon. . em sua roça, começou a ficar preocupada: seu coração batia mais
o destino é assim. Com freqüência, bate tambores que nm- depressa; sua cabeça abrigava pensamentos inabituais. Quando
guém ouve. Não o vemos chegar. De fato, quando meu Estern~­
me viu surgir o patife, o cachorro metido a besta, raptor de N1- (')Quanto a meu Esternome, ele dizia: musi-cão. Mas esse desprezo era fá-
non, nada sentiu e recebeu-o com alegria. Era uma espécie .de cil demais ...

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aquele cretino voltou noite após noite, perto da meia-noite, afi- açucareiro nesta ou naquela usina. Outros confiaram em fofocas
nando sua magia com as magias noturnas, circulando entre os bar- sobre sua origem inglesa portadora de uma ciência do açúcar
racos para se imobilizar diante do de Esternome, Ninon teve de aprendida com os portugueses, e pela qual os usineiros pagavam
(sem talvez) compreender a verdade: era aquele músico o dono simplesmente uma fortuna. Em todo caso, deu de desaparecer por
volta das cinco da madrugada.
de sua perturbação. Deu de desaparecer ainda quando, numa noite, meu Ester-
Primeiro, meu Esternome sentiu-se orgulhoso de vê-lo parar
nome, vítima dos nervos, perseguiu-o com seu grande facão e o
na frente de seu barraco (aliás, o mais bonito). Oferecia-lhe um fez descer a ladeira em quatro patas, ou a kal-pattes se você prefe-
banco com encosto, instalava sua Ninon ao lado, ele mesmo na
rir. Ninguém o viu na noite seguinte, nem na outra noite que veio
outra beira. No meio do Bairro reunido, saboreava a serenata sem
depois, nem na mais longínqua lua cheia cúmplice de suas modi-
nada enxergar da desgraça: o músico dirigia sua música para Ni- nhas detestáveis.
non; só levantava os olhos inspirados para ela; em sua avalanche Primeiro, meu Esternome ficou feliz com o desaparecimento
de francês semi-inacessível, falava de coração-no-coração, lábios- (as pessoas do Bairro apreciaram um pouco menos: a ausência de
sobre-lábios, loucura e embriaguez ... Era, para Ninon, hóstia ~e serenata aumentava as insônias). Depois, meu Esternome já não
catedral. Não custou para o pessoal do Bairro soltar a língua (... E, ficou tão feliz assim, pois Ninon também desapareceu. Isso foi du-
parece que o intérprete encontrou a intérprete, não é mesmo? ... rante uma noite horrorosa. Os sonâmbulos avistaram uma sere-
Puxa vida, o sujeito da música anda encontrando música por aqui. .. nata ao longe. Ela andava não de barraco .em barraco, mas de um
Esternome, alguém está fazendo cocô nos seus pés ... ). modo celestial, de alto de morro em alto de morro, como se o
Meu Esternome começou a realmente não gostar mais das se- músico levado por uma nuvem caminhasse nos ares. Uma faça-
renatas. Sua janela permanecia prisioneira dos pregos. O homem nha que todos acharam formidável. Meu Esternome também. O
da mandolina se pôs a tocar diante de um barraco fechado. Então chato é que a própria Ninon pegara aquele caminho.
ocorreu o inevitável: suas modinhas tão doces pouco a pouco Na verdade, meu Esternome jamais admitiu que sua Ninon
tornaram-se amargas, depois tão dolorosas que dizimaram os vaga- foi levada pelo filho da puta da serenata. Começou a contar umas
lumes. De manhã, os bichinhos eram encontrados piscando de tris- histórias da carochinha.
teza, com a asa esquerda amarrada à direita num rodopio aflito.
Valha-me Deus, que história curiosa ... Primeira história. Com que então, Ninon, num dia de lava-
gem de seus panos vermelhos, desceu por uma ribanceira. Com
Tudo o que se fez foi chorar pela insalubridade de Texa- que então, essa ribanceira não era uma boa ribanceira, pois nessa
co e desses outros Bairros. Mas eu quero levar em conta ribanceira vivia não uma Mãe-d' Água, mas uma dessas sereias que
o que eles dizem. Ouço-os soletrar o outro poema urba- emocionam os brancos-frança. A sereia vivia ali. Quem pode
no, de ritmo novo, desnorteante, que precisamos deci- descrevê-la é porque a viu; ora, quem a tivesse visto não volta-
frar e, inclusive, acompanhar ... Pegar essa poética sem ria a ver ninguém. Até agora, essa sereia não teria posto os olhos
medo de sujar as mãos com o estado de sua ganga. Que em nenhum negro dessa terra. Ver Ninon foi descobrir finalmen-
barbárie seria demolir esse sistema, e que recuo inacre- te a beleza absoluta e verdadeira. A criatura gorjeou como fazem
ditável. as sereias nas histórias de antigamente. Era um canto que ne-
nhum músico seria capaz de imaginar. Sua voz levantava um ocea-
Nota do urbanista ao Marcador de Palavras.
Pasta n9 6. Folha xvni. no de aigas e de ventos frescos. Ninon foi agarrada por aquilo e
1987. Biblioteca Schoelcher. ficou enfeitiçada (é o caso de dizer que tomou gosto). Cada vez
que o orvalho lhe dava uns panos para lavar, a sonhadora voltava
Surgia o sol e o músico desaparecia. Ninguém sabia de onde para a ribanceira por onde ninguém descia. Ali, escutava aquele
saía nem o programa de seus dias .. Boatos diziam que era mestre- canto que só as mulheres escutam. Não é uma ferida que sangra,

132 133
,

sereava a sereia, mas a abertura que a mulher conservou para o como for, que Ninon tenha sido levada pelo músico, por uma se-
enigma da vida, uma abertura divina que sangra, não de dor, mas reia ou sei lá eu por que diablesse de flauta, não tem muita impor-
de um lamento de vida. O homem, cantava a sereia, perdera essa tància. De um jeito ou de outro, Ninon desapareceu da vida de
ligação com a força divina. Esses dementes desejavam fechar tal Esternome aureolada por uma voluta de música. Não, francamen-
propileu às mulheres. E seus paus cegos despejavam não a vida, te ... uma diablesse voadora, você imagina essa maluquice?
mas uma espécie de cimento para sepultura sem dia de Finados.
Ainda assim, a mulher, em secreta alquimia, transcendia essa morte
para criar vida. AMOR QUEIMADO. É melhor imaginar o desespero do homem.
Assim, todo mês, em companhia da sereia, Ninon ia festejar Sem Ninon, ele viveu longos anos como vivem as flores secas. Sua
seu orvalho vermelho em grande pompa. Mergulhava nua na água. cabeça ficou engasgada de tristeza. Seus olhos viraram torneiras
O orvalho vermelho espalhava-se ao redor. Nesse negócio, Ninon e seu coração, um ferro quente dentro do peito. Quando o deses-
passava cada vez mais tempo. Freqüentemente, a noite barrava- pero amainou (pois desespero de amor morre mais depressa do
lhe o caminho. Meu Esternome começou a desconfiar de sei lá que fogo de carvão, quá-quá-quá), ele foi visto vagando de riban-
o que e resolveu flagrá-la. Portanto, seguiu-a, cavando-lhe sem sa- ceira em ribanceira, levantando cada pedra, mergulhando em ca-
;I!
ber um túmulo muito estranho. da cachoeira para procurar sua Ninon. O barraco abandonado per-
Como de hábito, Ninon, com o orvalho vermelho no ventre, dia palha aos montes, seu porco mastigava terra e suas galinhas,
desceu a ribanceira. A sereia esperava-a e fez-lhe uma bela festa. as próprias penas, e ele andava mais mal-ajambrado do que um
Ninon tirou a roupa e mergulhou n'água. Meu Esternome, que an- cule sem contrato e perseguido pelos guardas. Seus compadres i'

dava atrás, a passo de gambá, apareceu um pouco depois. Viu a desciam para buscá-lo. Os mais sinceros diziam: Ei, Esternome, i:
1'.:
sereia sem ouvir seu canto, pois um reflexo protegia-lhe os ouvi- Ninon partiu com um músico e você vai procurá-la num rio? E
dos. Ao vê-lo, a sereia ficou furiosa. Bateu a cauda, perdeu treze ele respondia mal: Ela foi embora com uma sereia. Acharam que
escamas amarelas, levantou espinhas de peixe. Meu Esternome tinha enlouquetido. Não custou para que mais ninguém desper- / 1

compreendeu o perigo. Hesitante, gritou para Ninon que se pu- diçasse compaixão em ir buscá-lo. Era meu tempo de camarão, .,!
sesse a correr. Ninon nem sequer teve tempo de compreender. contava ele, eu tinha decaído mais do que camarão de rio. Que
A sereia, convencida de ter sido traída, jogou-se por cima dela num imaginação ... ''
chuá-chuá. de espuma. E foi tudo o que meu Esternome viu. A es- Esse tempo de camarão teve, afinal, de ser encerrado. A me-
puma sufocou a ribanceira como se mil lavadeiras ali agitassem mória de meu Esternome levava-o ao barraco sem descrever o ca-
o sabão. minho. Prostrado na carna junto com suas ferramentas que para
Quando tentou avançar, encontrou a espuma quente, depois nada serviam, desgostoso da vida. Desgostoso de tudo. Quando
escaldante. Logo teve de recuar: sua pele se arrepiava em inúme- um negro congo lhe revelou que na cidade brilhava um arranha-
ras gotinhas. Então, ficou à beira do barranco, vendo a espuma dor de banjo tendo ao lado uma Ninon, meu Esternome, sem real-
viver, dilacerado de pavor e de esperanças vãs, gritando o nome mente reagir, resmungou mais uma vez sua história de sereia. Não
'
1,,
de sua Ninon, acreditando por vezes ou.vi-la num eco perdido. As viu o mundo mudar. Não viu seu Bairro abrir atalhos novos, de- 11

pessoas do Bairro foram buscá-lo à beira daquele lamaçal. Bam- pendentes das grandes estradas. Não viu o pessoal dos morros se 1:.
bus quebrados. Terra revirada. Escarnas e mato misturados no mes- submeter aos bekês na hora das colheitas, nem passar tempos no
mo volteio. Nem uma pestana de Ninon. fundo das grandes usinas. Não viu os Bairros nas alturas das nu-
Segunda história. Para explicar o desaparecimento de Ninon, vens orientarem seu norte lá para baixo. Não viu ninguém ir mor-
meu Esternome também contava uma outra história de diablesse, rer na guerra do México ou nos confins de Bazeilles. Não conhe-
mais lamentável ainda. Uma diablesse que voava soprando uma ceu a emoção que todos conheceram quando na Caravelle i!
flauta e que isso e que aquilo ... Contava-a tão a sério quanto a his- acendeu-se um grande farol. Nada soube do desembarque do ve- i•
11
tória da sereia, da qual se esquecera: mentir não é memória. Seja lho rei Béhanzin que olhava nossa terra como um vasto cemitério.
i
' '
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11
Nada soube daquela revolta do Sul, na qual os negros lembraram . Ele descia. À medida que descia, encontrava gente. Que fu-
aos brancos que não se apedreja um cachorro cuja coleira arre- gia sem poder explicar. Embaixo, armara-se uma confusão dos dia-
bentou. Houve épocas que se passaram assim, meu Esternome es- bos, pressentia meu Esternome. E apressava o passo. Sua preocu-
tupefato dentro de si mesmo, não vendo os cabelos embranque- pação com Ninon imprimia-lhe um ritmo de batuque dilacerado.
cer, nem a pele murchar, nem o branco de seus olhos se cobrir Pairou na fumaceira. Tremeu envolto num cheiro sem oxigênio
de manchas amarelas. Tampouco viu como, de tempos em tem- espalhado por todo lado. Fraquejou dentro de uma cinza pratea-
pos, o horizonte ficava carregado de roncos e uma cinza ~inda da. Jogou para o alto e por cima de si mesmo pedras pretas leves
da Montanha começava a maquilar a terra, cada vez com mais fre- como bolhas de sabão. Dançou nas poças das nascentes quentes
qüência, cada vez mais demoradamente. que nenhuma memória deve ter assinalado. Meu Esternome não
Certa manhã, um imenso tchibum despertou sua consciên- reconheci~ mais aquela paisagem cruzada no sentido oposto, no
cia. Saiu de seus mil anos de estupor com grandes esperanças. Sua tempo da JUVentude, em companhia de sua Ninon. Dizia-se Mas
primeira palavra de volta à vida foi: Ninon. Ninon, que ele repetia como a vida passa depressa, e chorava ao descer Oh Ninon oh
em meio à comoção geral. Fugas alucinantes agitavam o Bairro. Ninon nhá-nhá-nhá, nhá-nhá-nhá. Não sabia se es(ava res~un'.
O ar trazia um cheiro de enxofre, de madeira chamuscada, de vi- gando por causa de Ninon ou por esse mundo extinto pela poeira
da queimada. Todo mundo gritava A Soufriere explodiu, a Sou- de tristeza. Não sentia a própria idade, é a vantagem de não se sa-
friere explodiu ... ! Aquele estrondo desmantelara o mundo. As mu- ber qual é ela. Os que fugiam enxergavam-no apenas como um
lheres berravam, mãos agarradas à cabeça. Os homens encolhiam velho, mas ele ia intrépido como quem vai para a Usina em dia
o pescoço. No horizonte, enrolava-se uma noite que desafiava o de pagamento. Descia intrépido. 'i
sol. Então meu Esternome, pela primeira vez desde tantas tempo- À beira de uma colina, meu Esternome descobriu um amontoa- '1
radas, num momento em que já não tinha valentia nas canelas, do ~e carvã.o no lugar que era Saint-Pierre. Apesar de seu coração
,' 1'

se pôs a descer para a Cidade. Queria procurar, achar, salvar Ni- · queimado, 1mpress1onou-se. Mas imaginou apenas um terrível in-
non. E se eu lhe dizia: Como assim, então não era mais a sereia cêndio ou algum acesso de raiva operária contra os usineiros. Cis- '

que a tinha levado? Ele me respondia para encerrar a conversa: mou em descer, com a idéia de reviver um pedaço de sua história :I
Cheeeega... encontrar Ninon no meio do povaréu, no mesmo lugar, Ninon qu~
lhe cai nos braços. Logo não foi mais possível avançar. Seus olhos
O urbano é uma violência. A cidade se estende de vio- ardiam. Até seus cabelos grisalhos ardiam. As árvores, as matas es- 1

!
lência em violência. Seus equilíbrios são violências. Na tavam sem viço. De um vapor infernal, ele via saírem pessoas de !

cidade crioula, a violência ataca mais do que em outros olhos brancos que não tinham mais pele: andavam como sofrimen-
lugares. Primeiro, porque a seu redor reina o atentado tos aéreos. Quando não pôde mais avançar, recuou, depois avan-
(escravidão, colonização, racismo), mas sobretudo por- çou em outra direção, depois recuou, depois avançou de banda
que essa cidade é vazia, sem fábricas, sem indústrias que co_mo o melro preso no grude, depois como o manitô peludo mal '
poderiam absorver os novos fluxos. Ela atrai, mas nada saido de um pesadelo. Ninon o carregava: agora ele era capaz de re-
sistir às dores. Pôs-se a passar por cima da agonia dos bichos sem
1

propõe, a não ser resistência, como fez Fort-de-France


depois da destruição de Saint-Pierre. O Bairro Texaco nas- sequer olhá-los. Mais tarde, desprezou o sinal-da-cruz diante dos
ce da violência. Então, por que se espantar com suas ci- mortos ou das carnes se debatendo. E avançava. Avançou, avançou,
catrizes e seu rosto de guerra? O urbanista crioulo, mais avançou, até ser o primeiro a entrar em Saint-Pierre.
além da insalubridade, deve se tornar um vidente. Já se falou desse horror. O vulcão que destruiu Saint-Pierre..
Sobre isso, meu Esternome nada queria dizer. Impunha o mesmo
Nota do urbanista ao Marcador de Palavras. silêncio obstinado que cultivou a vida inteira sobre os antanhos
Pasta n? 6. Folha xvr. da escravidão. Queria talvez esquecer o que vira ao entrar na Ci-
1987. Biblioteca Schoelcher. dade. Deve ter conseguido, pois mesmo quando quis, só foi ca-

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lavam em seu lugar. Pele dos pés queimada até a bola do joelho.
paz de murmurar coisas espar~a~, sem grande sentido, mas tão ter-
Pele do pescoço amarrotada em escamas. Pele da barriga agora
ríveis quanto uma boa descnçao. . . transparente. Dorsos de mãos estranhos e de várias cores. Dedos
De toda maneira, já se falou desse horror. Fizeram llvros so-
duros, unhas ressecadas, carapinha esburacada. Seu rosto não ti-
bre isso. os óltimos cabelos pretos de meu Esternome devem
nha marcas de queimaduras. Ali só imperavam as dores de sua vi-
ter embranquecido ali. As rugas-cicatrizes de sua fronte, dev.em ter
se formado ali. A desorientação de seus olhos, que ele cobna.com da. ~as estas devastam mais do que o cautério das chamas.
E claro que nunca mais encontrou Ninon. Em dado momen-
as mãos chorando subitamente, nascido ali também. Seu pnme1-
ro passo na ruína deve ter dividido sua vida entre um antes-disso to, seu coração pulou. Ouviu-a chamando. Uma voz que subia da
e um depois-disso. Desse horror ele guardou uma dor instalada pedra. Ela estava ali! Mergulhou na cinza escaldante, mas teve de
no rosto mesmo durante as alegrias. Quando, à noite, eu o fla- desistir. Com a ajuda de pedaços de pau, liberou uma entrada,
grava va~ando no barraco, via seu passo hesitante e alto como avançou por um corredor semi-subterrâneo sufocado por um ba-
um pé de pato, aquela mão passada no rosto, aquela asma que fo de ovo podre. Atrás de uma porta, ouviu vozes. Vozes de ho-
lhe abria a boca, pensava descobri-lo no meio do de~astre. Ele
mens malucos. Abriu a porta. Dois zumbis semi-assados evacua-
ram aquela masmorra, ónicos sobreviventes daquela vasta morte.
andava assim, sem ver, de tanto ver. Uma maré de cinzas: Um
Meu Esternome perguntou Onde está Ninon, Ouéti Ninon? Mas
depósito de calor fixo. Incandescências de pedra. Pessoas intac-
olharam-no sem nada dizer, saíram daquela prisão que os salvara,
tas agarradas ao canto de um muro que suavemente desfazia-se
em filetes de fumaça. Pessoas encarquilhadas como bonecas d~ e foram vagar pelo pavor da cidade inexistente. Voltaram para se
capim seco. Crianças paralisadas sem inocência. Corpos desfei- esconder no fundo da masmorra. Meu Esternome parecia-lhes res-
ponsável por aquilo que tinham visto. Quando ele repetiu Ouéti
tos, ossos limpos demais, ah, quantos olhos sem ol~ar ...
Meu Esternome vagueou assim à procura de sua Ninon. O que Ninon, Ouéti Ninon?, os dois, contraídos de terror, gritaram por
não deve ter sido fácil: ia de cadáver em cadáver. Examinava cada via das dóvidas, Não fomos nós Não fomos nós, não fizemo; na-
da com ela ... Meu Esternome procurou ainda e depois foi embo-
coisa empretecida, esticava as queimaduras para buscar seu ros-
to desenrolava as tripas para evocar a curva do ventre de sua bem- ra, para grande alívio dos dois encarcerados. Fora, entre as filei-
a~ada. Por vezes, pensou descobri-la em meio de nacos de car- ras de fumaça e o carnaval das cinzas, surgiam furtivas sombras
não muito católicas. Deslizavam pela Cidade e remexiam nos
ne. Outras horas, acreditou suspeitar de seus cabelos cor°.ando
um sangue frito. Tinha de escalar as ruínas, dar voltas, freq~ente­ escombros.
mente recuar. Deve ter caído uma ou duas vezes, levantado in ex- Eram negros patifes. Saqueavam as casas, levantavam bolas
de carne para pegar um colar. Quebravam um pedaço de osso
tremis das cinzas que suavemente o queimavam. Fo.i ~ercado por
incêndios repentinos, agarrado por gretas que emmam fumaro- para raspar o ouro derretido. Conheciam as casas dos mulatos en-
dinheirados, e vasculhavam lá dentro como cachorros famintos, ·
las. Sobre ele, a cinza endurecia um cimento que s~us g~st~s. fa-
ziam desmoronar. Aureolado por essa poeira, parecia 'Io'ais pa~1do
trazendo algum cofre de uma incandescência de cinzas, e restos
de jóias de sob madeiras queimadas. Havia até entre eles uns ex-
do que uma assombração. A pedra e as pessoas se hav1~m ?11stu-
rado. Dos muros erguiam-se mãos endurecidas que nao tmham cêntricos que grunhiam outras línguas. Tendo chegado em ca-
mais dedos. Peles alimentavam a fogueira dos grande~ móveis. Lo- noas, voltavam para suas ilhas com sacos enormes. Em seguida,
houve soldados perseguindo-os, atirando sem refletir, e longas
go, Ninon passou a estar em cada canto. Em. cada s:_10 esmagado,
em cada corpo fumegando, em cada fogueira. Ent~o meu Ester- procissões militares procurando o ouro de um banco agora invi-
nome perdeu um quarto de sua razão. Pôs-se a gntar como ~m sível. Houve padres que chegaram cantando ao longe um Libera.
louco e a correr em todos os sentidos por Saint-Pierre carboniza- Houve no horizonte rolos de murmórios que subiam dos barcos
que se aproximavam da catástrofe. Houve em todo lado a queda
da. Terrível combate, papai... . . abrupta de um vento aos pés do calor que afundava a cidade. Hou-
Ah, meu Estemome. Se ele fechava a boca, suas c1catnzes fa.

138 139
ve bruxas. Recolhiam ossos. Houve mulheres loucas. Recolhiam se senti~ perdido, enchia a vala uivando a própria desgraça. De-
cabeças. Houve doentes que roubavam tudo. Em pouco tempo, pois, guiado por um coração de carrasco, recomeçava aos pran-
em volta de meu Esternome buscando sua Ninon no jogo dos tos a procurar sua Ninon naquela montanha de ossos. Diachos!
fogos-fátuos, houve mais gente do que na Cidade intacta anterior Como chorar? ...
à hora do vulcão. Um carnaval bem triste, sabe ... ~wntec~u-me rodar por Saint-Pierre para ver os grandes
Depois as brumas foram abafadas. Houve chuvas e algum tem- ossuanos. Ah, eu compreendia melhor meu papai Esternome.
po de sol. o horror branco espalhou-se sob um céu claro. Navios Ah, como aqueles ossos suplicam! Como falam e se calam! Que
engarrafavam a enseada. Aos milhares, oficiais desembarcavam ar- c~or de almas quando o coração vazio procura. quem 0 ha-
regalando olhos enormes. Puseram guardas em cada esquina para bitava. Aconteceu-me de pensar sobre isso. Mas arre! Como
acabar com os saques, mas os saqueadores continuavam a saquear. chorar? ...
Ficavam invisíveis quando entravam sob as brasas, e enfiavam-se Pouco depois, não houve mais osso, nem carne nem corpo.
à noite atrás das moitas de ossos. Aureolados de cinzas, podiam A montanha cobriu de novas cinzas as pessoas mortas que era im-
inchar como os cadáveres e nenhum olho afiado era capaz de possível queimar. E tudo aquilo se fundiu em pedras cinzentas e
distingui-los. Mais de uma vez agarraram meu Esternome que, ele, moles. Com o tempo, carbonizavam-se sem apodrecer, sem chei-
todos viam. Quiseram fuzilá-lo na hora, mais de uma vez, mas ao ro. Meu füternome começou a se sentar em qualquer esquina,
ouvi-lo gritar sua carga de desespero Ninon, Ninon, Niiinoon, os olhos perdidos em sua morte. Ainda esperava ver Ninon emergir
soldados se inclinaram. Diziam que ele fora atacado como a Cida- de um ~ntulho, daquele porão explorado, daqueles detritos que
de: bem no coração. eram tnados. No meio da multidão, várias vezes imaginou reco-
De tanto vê-lo à deriva, puseram-lhe nas costas sacos de cal nhecê-la. Saía correndo, agarrava a pessoa, mas o estranho se vi-
viva. Gabarras traziam toneladas e mais toneladas. Mandaram-no rava e ele caía, aparvalhado. À noite, ainda perambulava, ladeando
despejar a cal em cima dos vermes que se mexiam, dos ~orpo.s os espíritos que cheiravam a incenso. Reparou em berros que os
empilhados pelas tropas militares. E meu Esternome fazia isso d~­ morto~ não podiam ter dado, encolhidos em algum lugar, e que
reitinho. Antes de despejá-la, verificava se não se tratava de Nt- sua propna dor desencadeava bruscamente. Ouviu crianças cho-
non. Caso pudesse ser ela, espalhava a cal como num enterro. E, rarem, sentiu desesperos maternos ligados à sua própria tristeza.
diante da espuma que se formava, mastigava as orações que o pa- Tu~o convergia para ele, que morria cada noite, junto com toda
dre do domingo tinha lhe ensinado no tempo das fazendas. Quan- a Cidade.
do a cal esgotou, deram-lhe palha, madeira e carvão, e ele teve , Viram-no começar a levantar muros, recolher pedras e empi-
de acender enormes fogueiras. Filas de voluntários ressuscitados lha-las. Pobre pedreiro esconjurando o impossível. Nada lhe di-
dos escombros ali despejavam sarnas e mais sarnas. Houve o mo- ziam. Continuava convencido de que iria conseguir. Então, seus 1

1,
mento da gasolina espalhada em cima de corpos cremosos que muros subiram, seu cimento resistiu, mesmo quando houve ou-
supuravam. Naquela pestilência, meu Esternome andava sem más- tros terremotos, outras desordens, outras lavas. Queria reconstruir
cara. Único a buscar com o nariz o cheiro gostoso de uma bem- a Cidade, tirá-la do nada, anular a desgraça para reencontrar aque-
amada. le rato de serenatas e arrancar-lhe sua Ninon. Na verdade, reco-
Em outros dias, teve de cavar enormes buracos e partir para meçou a levantar paredes. Quem via aquele preto sombrio lutar
a colheita de ossos que ele cárregava sobre o corpo até jogá-los contra a desgraça pensava ver por muito tempo o próprio fundo
fora. Várias vezes tinha a impressão de reconhecer uma tíbia de dos sofrimentos. Era melancólico ...
Ninon. o comprimento de seus braços. A curva de uma costela. Foi o primeiro a construir em Saint-Pierre. Com tábuas, com
Então, separava aquele osso, pensando em reconstituir a amada. pedras, numa ruína em algum lugar, levantou sua cabana. Outros
Quando seu lote avolumava-se demais, começava uma triagem de- logo fizeram o mesmo. Uma vida-miséria floresceu sobre a ca-
cisiva e mais severa, jogava fora, guardava, jogava fora. Quando tástrofe. Saint-Pierre recomeçava uma vida. O mundo inteiro vi-

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nha ser fotografado diante daquela coisa inacreditável. Para co- dançava segundo sua música. Ninon dançava a morte e as agruras
mer, meu Esternome ia até o mar, junto com outros famintos. Ali, dos portos, dos cabarés entranhados de gordura, dos porões sem
pescava com grandes flechas tubarões que tinham começado a janelas onde a tripulação se divertia à sombra das negras. Quando
apreciar aquelas bandas. Uns troços inacreditáveis fermentavam foi capaz de superar o horror, a dor, avançou. O vagabundo das
dentro de seus ventres, mas a carne era boa. Os pescadores co- serenatas afastou-se. Ninon continuava pairando por perto, fulmi-
miam-na ou trocavam-na por bons legumes. A Cidade não renas- nava-o com seus grandes olhos intumescidos, esperava sabe-se lá
cia. Os sobreviventes tinham perdido a metade do juízo. A pre- o quê, depois estourava de rir como uma marafona em plena be-
sença deles nada reanimava: parecia unicamente tremer de uma bedeira. E quando meu Esternome corria depressa para se escon-
química de tristezas. Os oficiais da marinha não autorizavam ne- der, ela corria atrás.
nhuma instalação no centro da Cidade. As cabanas encheram os Não foi mais procurá-la nas ruínas. Ficava no barraco, afian-
arredores: palhoças cobertas até o chão com folhas de palmeira. do suas flechas. Mas os zumbis afeiçoaram-se a ele. Em volta da
Esternome poderia ter ficado ali, naquele local, e morrer comen- cama, tocavam músicas obsediantes. O desgraçado das serenatas
do tubarões comedores de homens, seguir o refluxo dos mulatos tornou-se um perseguidor. Suas notas arrepiavam os pêlos. Meu
e dos bekês que construíam suntuosas heranças alargando suas Esternome era incapaz de dominar aquele pesadelo. Quando Ni-
fronteiras, ver as ruínas darem sobressaltos sob os soluços da mon- non entrava por uma brecha do barraco, ele saía por outra, e
tanha. Porém, aconteceu uma coisa horrorosa. Ninon voltou para engolfava-se no mar com tanta dor que nem os tubarões loucos
vê-lo - mas como um zumbi e para atormentá-lo. se atreviam a mostrar os dentes.
Ele sabia que a noite era propícia para tal reencontro. Sob os Ela e seu músico o torturaram dessa maneira. Em certas ho-
efeitos da lua, montes de coisas levantavam-se por todo lado, uma ras do dia, quando o sol estava a pino, a vida seguia devagar, as
agitação fugaz, uns clarões, bois brancos, galinhas de dois bicos, ruínas aqueciam as más lembranças, então uma velha música en-
pessoas flutuantes que procuravam com imenso espanto sabe-se volvia seus ouvidos: acreditava ver, pairando no ar vitrificado, o
lá o quê. Era o que meu Esternome via à direita, e a mesma coisa músico-carrasco e seu ex-amor. O pior é que viu-os também à es-
à esquerda. Tinha medo, mas ia andando, esperando o fantasma querda de sua canoa quando ia pescar. Na calma envernizada da
de Ninon. Quando o encontrou, não foi nada bom, pelo menos baía, a música infernal subia do fundo das águas. Angustiava os
não tão doce quanto em seus sonhos bastante gastos. Ninon mu- tubarões pretos. Que buliam ao redor, com bocas escancaradas.
dara. Engordara de um jeito horrendo. Sua pele estava murcha. Meu Esternome voltava, remando a toda. Os monstros o perse-
Meu Esternome teve até a impressão de vê-la com os lábios arro- guiam até a areia seca. De tanto vê-lo chegar tão depressa, seus
xeados das bebedoras de rum e, ao redor da boca, as rugas vulga- compadres perguntavam: E então, mestre Esternome, o que acon-
teceu por lá? Você viu a Mãe-d' Água? Ele era o único a ouvir aquela
res das pessoas que rogam praga pelas ruas. Guardara de Ninon
música. O único a sofrer aqueles ataques de tubarões. Quando Ni-
a doce imagem primordial. Evocara sem saber a bem-amada dos
non pairou perto de seus ombros, com um bafo de erva-cidreira
primeiros dias. Em sua direção, agora ondulava uma espécie de
podre, ninguém viu nem sentiu o cheiro daquela atrocidade. Vi-
prostituta exsudada de Saint-Pierre. Ela lhe disse Esternome, Ah
ram apenas seus grandes gestos para afastá-la, suas fungações, seus
Esternome ... Ele ouviu um chiado de bambu. Ela fez um gesto sua-
pulos sob a mão gelada que o afagava, e seus cabelos que se arre-
ve. Ele pensou ver uma ameaça de terremoto. E então, recuou.
piavam com os beijinhos cruéis. Então, meu Esternome teve de
A-a!. .. enrolada no zumbi de Ninon elevou-se uma música. Ele fugir de quem amava - é essa a verdadeira tristeza que nenhuma
viu o sem-vergonha da serenata: bonito, alfinete na gravata, cha- idade perdoa. E o que pode ser pior que isso, o quê? ...
péu de palha da Itália, camisa de pano de risca, anéis de pedra azul Meu Esternome foi obrigado a fugir do louco amor de sua vi-
em cada dedo. O cachorro tinha trocado de mandolina. Esta era da. Procurara-o nas ruínas, tal como um alucinado: sua dor des-
cheia de brilhos prateados, soava como o angelus. Meu Esterno- tinara-o às andanças zumbis. Recolheu-se e guardou os instrumen-
me chorava: via apenas um cafetão com uma de suas mulheres, que tos de pesca. Mas não foram os morros que o atraíram. Lá em
142 143
cima ainda pairavam lembranças de felicidade.• Foi, mais uma vez,
a Cidade que o acolheu. Dessa vez, eu soube qual, pois ali eu nas-
ceria. Então eu lhe dizia: Você pegou aquele vapor que a cada santo
dia deixava a Cidade perdida. E, como o capitão o conhecia, não
quis dinheiro. Vejo-o sentado na beira do passadiço, entre as mer- Tábu.a segunda
cadorias, fazendo o mesmo que os que repudiaram Saint-Pierre
fascinada pela própria morte. Tal como você, eles sentiram o ím- EM TORNO DE FORT-DE-FRANCE
peto de pularem para Fort-de-France. (quando a filha de Esternome, portadora
- Ah, meu Esternome, diga à sua filha, agora, como você de um nome secreto, prossegue a obra
a criou.
de conquista e impõe Texaco)
- Sophie Marie, é o bom Deus que cria, já lhe disse isso ...
- Mas você deve ter ajudado, não deve?
Um tudo-nada, um tiquinho à-toa.
- Ó, Esternome, papai ...
1

!
/1

(*)A felicidade, na lembrança, torna.se melancolia ou pesada carga de tristeza.

144
TEMPOS DE MADEIRA DE CAIXOTE
(1903-45)

Tínhamos corrido de Saint-Pierre. Alguns deixaram-


na ao menor som do ventre da enorme Soufriere. Ou-
tros preferiram esperar as cinzas de seus olhos. Mortos
sem idade tinham vindo se encostar em alguns de nós
para que lhes indicássemos o mar como caminho neces-
sário. Para mil outros, foi preciso um medo que remon-
tava a muito antes do batizado.
Sobreviventes de Saint-Pierre. Fomos longe. Havíamos
criado raízes ao longo de toda a Trilha. Povoar o Alma,
povoar o Médail!e, Fonds Boucher, as proximidades de
Colson, as vertentes de Balata. Desde as fontes de Absa-
lon até a beira do Pont-de-Chalnes, fugimos como des-
vairados e acabamos nos instalando. Nas colinas do li-
toral amado pelos caraíbas, as prefeituras nos instalaram.
Carbet. Bellefontaine, Case-Pilote tornaram-se ninhos
para nós. Em Fond-Lahaye, construíram-nos um campo
de folhas secas e abrigos provisórios. Ali nos amontoa-
mos durante tempos sem tempo, até decidirmos desapa-
recer - criar raízes no local ou partir para o destino.·
Saint-Pierre, ao aquecer, enlameara a terra de nossas
almas.
E Fort-de-France recebeu-nos como se recebe uma
vaga.
Caderno n !? 1O de Marie·Sophie Laborieux.
1965. Biblioteca Schoelcher.

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---------------- -'------ -

Desembarcando em Fort-de-France, meu Esternome não.es- naram personagens oficiais. Estes só dispensavam cuidados com
tava com boa aparência. Um estado de preto miserável corndo ervas bem esmigalhadas. Apareceram também velhas mulatas. Man-
dos morros. Mas quem o viu? Ninguém o viu. Nenhu'.11. guarda tidas por algum velho usineiro, tinham envelhecido em meio aos
controlou suas certidões, pois eram milhares do mesmo Jeito, que perfumes empoeirados, e, no final da vida, ao descobrirem aque-
foram parar num descampado que protegia o Forte~ Meu E~terno­ le desastre, tinham se devotado a Deus. Mandaram-nas circular em
me desembarcou emocionado. As pessoas de foyal acreditavam- trajes de enfermeiras, oferecendo preces-para-a-virgem à guisa de
se em sursis. A menor nuvenzinha escondia uma nuvem espess~ curativos.
e ardente que viera para fazê-los expiar todo tipo de peca~o. Ah, Quando meu Esternome chegou, fazia tempos que o pior já
a Martinica estrebuchava como um enforcado. Uma vida diferen- tinha passado. As feridas tinham secado. As febres também. Ain-
te devia reger essa cidade de soldados, dura no ce,ntro d~ um man- da se temiam epidemias imaginárias ocultas no amontoado de inap-
gue, verdadeiro nicho de incêndios. Reconstruida_ mais d~ uma tos a serem instalados na cidade. Prostrados de estupor como meu
vez, só guardava na memória uma mistura de carvoes e m:asmas querido Esternome, ali vegetavam como carneiros às portas de
de febres. Mas era inútil eu suplicar a meu Esternome Entao, me um matadouro. Só a cantina militar, que fazia um chiado atrás
conte, essa Cidade, o que você sentiu ao chegar? Olhava-me com de um burrico, era capaz de reanimá-los. Pois dava-lhes um su-
os olhos atordoados de uma ausência de memóna. Do Fort-de: plemento de mingau que os soldados comiam nos corredores do
France de seu desembarque, não sabia patavina. Nada. O zum_?i Forte imaginando que aquilo era comida.
de Ninon chamuscara seu cérebro. Durante vários meses, se n~o Ora, a Adrienne Carmélite Lapidaille tinha encontrado um bis-
foram anos, andou por aquela nova Cidade como que em noite cate ali. Enfiava a concha nas grandes gamelas e distribuía aos so-
sem lua. breviventes o pitéu do dia.
O que exigia uma pessoa de pulso forte. Os famélicos gasta-
vam aquele instante xingando todo mundo, tanto mais que suas
A VOADORA."'"' Por vezes 1 uma figura emergia dessa escuridão. barrigas jamais estavam cheias e que, passado o tempo de uma
A pessoa se chamava Adrienne Carmé!ite Lapidaille.' Meu Esterno- ligeira piedade, Fort-de-France desconfiava que eles fossem uns
me pronunciava esse nome com jeito de quem diz que pessoas vagabundos. As autoridades se preocupavam com aquele formi-
assim jamais deveriam ter vivido. Ela fora bater em Fort-de-France gueiro. Despachavam-nos em grandes carroças assim que uma som-
antes dele expulsa de Saint-Pierre por uma bola de fogo. Encon- bra de Bairro surgia em algum lugar. Mas, por mais que as implan-
traram-se ~a espécie de campo construído no cerrado: centenas tações se alastrassem, a misteriosa maré trazia outros destroços,
de casebres, pára-sóis de palha, tendas militares, .abrigos .de qu:- que pareciam emergir de novas nuvens ardentes das quais ninguém
tro pés. Ali eram reunidos os sobreviventes das cmzas. Ah os me- tinha ouvido falar. Portanto, não era fácil enfrentar aquela corja.
Menos para a Adrienne Carmélite Lapidaille.
dicas do exército iam e vinham, regando tudo o que se mexe com
umas águas sábias. Essas águas neutralizavam as febres amarelas Assim que saía do Forte, essa pessoa começava a cantar a ple-
nos pulmões. A cantar debochada como no tempo de Saint-Pierre.
indomáveis, as mortes súbitas, os ataques de cólera e todas as por-
A rebolar os quadris como uma dessas bonitas crioulas da Marti-
carias nocivas às velhices saudáveis. Os médicos cuidavam das
nica. A revirar os belos olhos. A estremecer os lábios debaixo de
queimaduras com óleos pastosos. Quando os óleos acabaram,
línguas invisíveis ... Em suma, armava em volta da cantina um di-
tiveram de solicitar esquecidos doutores-em-folhas que se tor-
vertido escândalo. Diante daquele carnaval, até os cachorros se
calavam. A Adrienne Carmélite Lapidaille servia a bóia sem dar a
e•) Porque antes esta cidade se chamava Fort Royal, mas um escorregão da
língua resultou em Foyal. . . _
menor confiança para isso. Assim, cada concha envenenava-se de
(• •) Volant (voador), em crioulo, é stnórumo de Soukougnan (ver mais adian palavras: E então, meus gulosos, vocês ainda estão por aqui? En-
te), ente mítico nascido da metamorfose de uma pessoa que, à noite, arranca a tão vocês são os mais poltrões dos trinta mil poltrões escaldados
pele e se transforma em pássaro de fogo. (N. ~-) em Saint-Pierre? ...

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l
- - ·--·------=-- -'. _:

A Adrienne Carmélite Lapidaille era uma sarará dourada. À guisa Depois, houve em sua enxurrada de palavras como que
de olhos, pousava sobre o mundo duas luzes sem ternura que assi-
uma permanência, uma duração invencível na qual se ins-
nalavam que, dentro dela, ninguém ria. Andava com passo de fei-
crevia o caos de suas pobres histórias. Repentinamente,
tor. Naturalmente empoleirada numa autoridade, parecia descobrir
tive a impressão de que Texaco vinha do mais longe de
a existência a partir das alturas de uma sacada. Ninguém conhecia
nós mesmos e que eu precisava tudo aprender. E até: tu-
algum homem seu. Nem histórias. Dizia-se que era uma sobrevivente do reaprender ...
de Saint-Pierre e punha-se um ponto: quem vinha de Saint-Pierre
não tinha mais nada a lembrar nem sequer a explicar. Ora, mistério Notas do urbanista ao Marcador de Palavras.
entre outros mistérios, quando meu Esternome começou a conhe- Pasta n9 4. Folha xv111.
cê-la melhor, nunca a ouviu lembrar-se daquela Cidade, como ele 1987. Biblioteca Schoelcher.
mesmo fazia sob a cal de um pesadelo. Aquela pessoa parecia viver
Muito em breve, meu Esternome foi praticamente o único a
para um galo carregado de banda em cima de um ombro. Uma es-
freqüentar o campo da Savane. Diariamente os militares recolhiam
.pécie de galo um tanto assustador. Um galo frio. Sem tremedeira
os detritos dos que se tinham ido. Pouco a pouco, a Savane volta-
diante de coisa nenhuma. Tinha uma aparência de galo de briga (mas
a Adrienne Carmélite Lapidaille jamais aparecia nas apostas dos ter- va a ser savana. Começavam a lhe dizer Vá saindo daí, ninguém
reiros). Um bichinho de várias cores, sarapintado de penas vindas deve ficar aqui, vá andando, vá andando. Os abrigos foram des-
dos quatro ventos, e que lembrava velhos pássaros e animais de ca- montados e queimados. Restavam um bando de pobres coitados,
ça horrorosos. Uma crista violácea caía-lhe em cima de um olho. Se grudados nas raízes dos velhos pés de tamarindo, de olho no for-
o galo se mexia, era só com a cabeça, e só para melhor enxergar sabe- te e nos quitutes, e a Adrienne Carmélite Lapidaille, que veio uma
se lá que mistério entre outros mistérios. última vez para gritar Band kouyon, manjé a fini, bando de ca-
A gravidade do galo destoava das brincadeiras da Adrienne gões, não tem mais comida, allé pann kô zot, vão amolar o boi! ...
Carmélite Lapidaille. Imóvel em seu ombro como um guarda de Ainda dessa vez, ao ir embora olhou para meu Esternome por ci-
pedra, parecia ter mais sabedoria de vida do que sua curiosa do- ma do ombro, com jeito de pensar Quem é esse cidadão? O galo
na, crepitante como um fogo-fátuo. cretino, por sua vez, não olhou - como soía acontecer ...
Quando meu Esternome encontrou a pessoa, não viu nada Meu Esternome tinha tanta fome que se pôs a segui-la. Era
disso, é claro. Aproximava-se da cantina, em meio à malta infeliz. seu único ponto de referência. Era a doadora de comida. Convi-
Estendia sua marmita com um olhar frio. Ao vê-lo, a Adrienne Car- nha grudar-se nela até que ela quebrasse o gelo e estendesse a gran-
mélite Lapidaille exclamava Ai, meu Deus, mas o que estou ven- de concha. Então, seguiu-a. Quando ela percebeu, virou-se para
do? É a miséria chegando ... ! Dava-lhe sua ração berrando EI, meu seu lado, tão grande, tão ·rude, com um velho cachimbo na boca
velho, chorar em cima de ferida não cura ferida nenhuma! ... E e o galo esquisito na altura da testa. Por que se agarrar em mim?
executava a sua dança-de-bunda das Marianne-Casca-de-Banana, Como única resposta, meu Esternome estendeu a marmita.
essa figura de carnaval de peitos e traseiros enormes, com os qua- Seguiu-a ao longo da beira do mar onde as gabarras se ófere-
dris desarticulados sob salvas de prazeres. A turma ria. Meu Es- ciam aos pretos carregadores de tonéis. Seguiu-a ao longo dos gran-
ternome, não. Olhava-a como as mulas contemplam a poça do des fossos repletos de uma água filandrosa e que uns cules apaga-
pântano no momento das secas. Então a Adrienne Carmélite La- dos tentavam encher. Seguiu-a pelas oficinas sem luz onde negros
pidaille continuava seu caminho. De vez em quando, dava-lhe uma de talento manejavam grandes ferramentas. Seguiu-a rente às fa-
olhada por cima dos ombros Que cidadão é esse, que cidadão é chadas de pedras, instáveis na lama que fermentava sob a Cidade.
esse ... ? O galo, por sua vez, nem sequer olhava- evidentemente. As ruas eram bem retas e cortavam-se formando quadrados. Nada
evocava uma cidade. Tudo era fabricado sem preocupação de me-
Foi ela, a Velha Senhora, que modificou meus olhos. Ela mória. A madeira era velha demais ou nova demais. As constru-
falava tanto que, por instantes, achei que era delirante. ções assinalavam várias mãos de pedreiros. As janelas diferiam
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entre si. Ninguém tomava fresco nas mil pequenas sacadas que iini- Postada diante do barraco, a Adrienne Carmélite Lapidaille
tavam Saint-Pierre. E em todo canto, grandes prédios sem alma, afastou o pedaço de pano que lhe servia de porta. Depois virou- '
de janelas empoeiradas, ressoavam ecos de quartéis, tinham chei- se para meu Esternome a fim de lhe dizer umas palavras insensa-
ro de entrepostos ou de cavalariças de guerra. Nada exprimia a tas: Você me seguiu até aqui como quem segue o próprio desti-
Cidade, não me lembro de nada. no. Como resposta, meu Esternome estendeu-lhe a marmita. Mas
A Adrienne Carmélite Lapidaille parecia andar sem rumo. Su- ela já havia desaparecido lá dentro. Seguiu-a dando um passo. E
bir, descer, muito confiante, por cima do calçamento instável que esse passo bastou para virar sua vida de cabeça para baixo. Isso
um lodaçal choroso aspirava por baixo. Em todo lado: militares, quer dizer que ele entrou num outro tipo de briga que iria ocupar
muitos militares, e trabalhos cte aterragem, e águas fermentadas, o resto de seu tempo. No fundo do barraco (um quadrado ilumi-
e vôos de moscas, e bandos de mosquitos. Ell'!>todo lado, pessoas .nado por um arrepio de vela, cheirando a incenso velho, cheiran-
de bicicleta pedalando a poeira, ruídos de automóveis assustando do a lama, cheirando a querosene, repleto de panos variados, de
os cavalos. Na rua, cruzaram com uma máquina a vapor que avan- dois colchões e de um tiquinho de mesa e outras formas na som-
çava cercada de negrinhos, e cujo grosso cilindro firmava a lama bra) estavam não uma, mas duas Adrienne Carmélite Lapidaille.
com uma mistura de calcário e areia do mar. Alguns lugares eram Meu Esternome pensou que ia morrer de susto.
limpos ... mas onde está minha memória? A pessoa parecia se ter desdobrado. Em seu coração, meu Es-
Às vezes, a Adrienne Carmélite Lapidaille se esfumava no fun- ternome gaguejava Meu Deus, o que meus olhos estão vendo? A
do de uma venda ou se evaporava atrás de uma casa. Meu Esterno- pessoa está igual a uma sena de dominó. Mas ficou em seu can-
me ficava plantado ali onde ela havia se desfeito. Encontrava um to. Já não tinha forças para tentar outra coisa. Estava com fome.
semblante de vida quando ela aparecia trazendo uma posta de ba- Esgotara-se na cidade. Agora, seu único desejo era encostar o lom-
calhau, meio litro de óleo, meia libra de arroz perfumado. A pessoa bo e estender a marmita, e, depois da marmita, dormir profunda-
já não mais se espantava de ser seguida. Parecia até lhe dar tem~o, mente como dormem os corpos doentes. Mas, dentro de seu cor-
pois meu Esternome já não tinha boas pernas, nem o andar multo po mortificado, o cérebro funcionava: ele olhava melhor. Uma das
intrépido, não por causa da fome, mas por causa de sua idade que, pessoas tinha um galo, a outra não. Uma das pessoas tinha os olhos
de repente, surgira como uma desgraça, e cujo peso morto ele sen- malvados, a outra piscava olhos mais suaves, até mesmo encabu-
tia em cada osso. Velhice, Sophie-Marie, é como uma lenta surpre- lados, pois não pareciam enviar um olhar. Meu Esternome com-
sa. Eu era de fato o Esternome, não tinha mudado, não tinha senti- preendeu de relance: a pessoa tinha uma irmã gêmea, talvez mais
do nada do tempo passando e subindo, e eu me assustava com meus nova do que ela. Essa irmã era cega. Parecia viver naquele barra-
dedos deformados, uma rigidez nas costas, meu reflexo quebrado co sem jamais sair. A verdadeira Adrienne Carmélite Lapidaille
numa poça d'ágmi-espelho. O bem-estar de meu espírito enfrenta- apresentou-lhe a sósia dizendo Idoménée minha irmã, essa é Jdo-
va minhas carnes. E eu me dizia, espantado mas sem acreditar, Pois ménée, e sente-se para comer. Esta última palavra, meu Esterno-
bem, já sou um velho. E esquecia. Esquecia ali mesmo. Até odes- me ouviu bastante bem. Desabou de vez, com a marmita à guisa
vio de um gesto com o qual eu esbarrava em mim. Eu seguia a pes- de estandarte. ·
soa, ofegante como um boi. E com a língua de fora. Sentia-a dimi- Assim, meu Esternome fixou-se nessa nova Cidade. Dormiu
nuir o passo para me esperar; meus ouvidos carrilhonavam com no barraco sem ver a noite passar, e acordou de manhã com o
os barulhos da cantina e eu apressava o passo. Assim, chegamos cheiro enjoativo da lama. Um despertar de cansaço ii:radiado por
à casa dela. Um canal mais largo do que os outros. Uma pequena todo lado: um cansaço que vinha do mais longo dos sonos. A Ido-
ponte consertada e nada feliz de ser uma ponte. Depois, um banzé ménée olhava para Deus com seus olhos de cega; no entanto, sou-
de lama, água suja, tábuas que fazem as vezes de trilhas e barracos be instantaneamente a hora em que ele acordou. Com voz meiga,
de madeira de caixote. Chamavam aquele lugar, com razão, Bairro perguntou seu nome, sua idade, de onde vinha, sua família. Meu
dos Miseráveis. Eu, à guisa de nome, teria encontrado algo mais du- Esternome, um virador em matéria de palavras, começou a deta-
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ro, mas meu espírito já nem sequer sabia rir. lhar o que acabo de contar, desde a fazenda até a mandolina do
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cachorro das serenatas. O dia passou assim. Contou Saint-Pierre,
a palpitação h~mana que circula. No centro, destruímos
contou a casa-grande, reclamou da ilusão do Noutéka dos morros
e de outras tristezas não necessárias aqui. Não se dirigia somente a lembrança, inspirando-nos nas cidades ocidentais e à
à caolha, mas sobretudo a si mesmo, preso no estupor de uma guisa de renovação. Aqui, no cinturão, eles sobrevivem
vida terminada sem uma conta exata. Não entendia aquela traje- da memória. No centro, perdemo-nos no modem d
tória, nem sua utilidade. Sentia-se magoado num canto de vida, 1:1undo; aqui, têm raízes muito antigas, não profun~as ~
como se, num momento perdido, tivesse se desligado e ido parar ng1das, mas difusas, profusas, espalhadas no tempo com
num lugar que já não era o mundo mas uma espécie de vertigem a leveza que a palavra confere. Esses pólos, unidos ao sa-
do que ele fora. E a Idoménée sem olhos escutava como só os bor das forças sociais, estruturam com seus conflitos os
cegos sabem escutar. Tocava-o. Segurava-lhe as mãos, ria de suas rostos da cidade.
bobagens de velho. Ele recuperou um certo vigor, não um gosti-
Nota do urbanista ao Marcador de Palavras.
nho de juventude mas uma espécie de sobressalto. Pôs-se a olhá- Pasta n~ 3. Folha xv1
la, a cheirá-la, a perceber a aaitação de seu calor. A se dar conta 1987. Biblioteca Schoelcher .·
de que a Idoménée de olhos vazados era, sobretudo, uma mulher.
A Adrienne Carmélite Lapidaille sumia durante o dia. Apare- À medida que os dias passavam, meu Esternome começou a
cendo no cair da tarde, encontrava-os sentados lado a lado. Meu se fazer perguntas. Que gente é essa na casa de quem eu vim pa-
Esternome, tendo secado sua reserva de palavras, esperava pela r~r? ... Calou-se e fez a ldoménée cega falar. Eu deveria ter perce-
comida: uma eterna sopa com gosto de manjericão. Colocada atrás bido: ele falava dessa sarará cega com imensa doçura. Um rastro
do barraco, em cima de uma brasa declinante, a sopa ficava horas ~e.melaço. Um olho malicioso piscando um fino prazer. Uma de-
em fogo brando, desde um tempo sem tempo. A Adrienne Car- 1Ic1a em falar de alguma coisa em marcha. A Idoménée não tinha
mélite Lapidaille reforçava-a com um legume, o tutano de um h1stóna: mal-e-mal, a lembrança de uma fazenda dos morros que
osso, um tempero. Servia aquela sopa com o galo no ombro es-
c.on?ecera nas horas derradeiras das correntes. Não é uma histó-
querdo.
na, e ~ma desgraça, dizia ela ... Sua mãe havia secado debaixo dos
A pessoa parecia feliz em ver a irmã em tão boa companhia.
canaviais'. Seu pai não tinha nome nem existência. Ela teve de lu-
A cega, de seu lado, parecia reviver. O serão passava-se sem ne-
nhuma palavra. Nenhuma pergunta. Ninguém dizia nada, sobre- tar pela v'.da muito cedo, e andou à deriva até a lama de Fort-de-
tudo a Adrienne. Ela se enfiava num monte de panos, boca cala- france. Viram-na como jardineira na casa de mulatos muito ricos
da, galo no ombro, servia-os sem uma palavra, deitava-se sem uma vivendo numa bela propriedade dos bosques de Redoute. Viram'.
palavra e dormia na mesma hora. O galo arranhava a beirada es- na como ama-seca contadora de histórias, cuidando da filharada
querda da mesa, escondia-se em suas penas e também dormia. A de um bekê sem dinheiro, que numa casa de pobre ostentava o
Idoménée ia para trás do barraco fazer a toalete noturna numa la- aparato de um .s~lão de casa-grande. Conheceram-na como lava-
ta de água de chuva, voltava sonâmbula, dava-lhe boa-noite e apa- dora de uma of1cma que cheirava ao azedo de árvores arrancadas.
gava a vela que não via. Então, pesava uma espécie de angústia Conheceram-na como vendeira no mercado quando ela aprendeu
que parecia intensificar o ritmo da noite. Meu Esternome, apesar de n_iadrugada, a encontrar as camponesas que vendiam por doi~
da pele arrepiada, deixava-se levar pelo cansaço da idade, até sur- tostoe~ as frutas de suas roças. Conheceram-na como varredora
gir o sol. de me10,fio antes que oscules (retidos em Polnte-Simon à espera
de uri:a volta para seu país distante) se metessem a controlar esse
Ela me ensinou a reler os dois espaços de nossa vida negócio~ Conheceram-na como apanhadora de pedras, carregadora
crioula: o centro histórico, que vivia das novas exigên- de carvao, conheceram-na isso, conheceram-na aquilo. Meu Es-
cias do consumo; os cinturões de ocupação popular, ri- ternome s~quer a escutava. O que queria escutar, não escutava:
cos em vestígios de nossas histórias. Entre esses locais, Como voce perdeu os olhos? De onde vem essa sua irmã sobre
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quem você não diz nenhuma palavra? Mas não lhe fazia nenhuma era contra a água. Carregava-se a terra vermelha para firmar o so-
dessas perguntas: a Idoménée, ah, sim, era sensível a tais assuntos. lo, depois abria-se na lama uma trilha para a Cidade. Os negrinhos
Estavam os dois naquele barraco escaidante, esquecido pe- eram contratados durante o ar fresco da noite para transportar
los ventos. Idoménée zarolha não sofria com o calor. E, habitua- areia. Traziam um prego que se plantava aqui, ou uma imagem
da àquela fornalha, consolava meu Esternome. Vai melhorar, vai que se colocava acolá. Construir o próprio barraco era, como nos
melhorar. Em volta deles, o Bairro dos Miseráveis palpitava as agru- morros, a única tarefa dos homens. As mulheres tinham de en-
ras de sua lama. Eram gritos, palavrões em crioulo, badernas de frentar o resto da vida, entre outras coisas, essa obrigação de en-
mulheres que levaram um tranco na vida, de)í,ios de gente doida. contrar comida para um bando de moleques, sem ter uma roça.
Por vezes, silêncios aflitos realçavam as gritarias de um bando de Cada mamãe, está me ouvindo, devia plantar em si mesma um pe-
pretinhos: ninguém conseguira agarrá-los para alguma tarefa no queno roçado de astúcias, e vigiar as colheitas, não obstante a má
canavial. Fingiam ter nos pés grilhões imaginários que limitava~ sorte. Meu Esternome, debruçado na janela, virava-se para Ido-
suas brincadeiras, e esperavam sozinhos pela volta de uma mamãe ménée e gritava: Os morros desceram para a Cidade, meu Deus,
que partira cedo para a Cidade a fim de agarrar o vôo das oportu- os morros desceram para à Cidade numa algazarra medonha .. ,
nidades. Sentia uma velha amargura. Que o remetia para seus antanhos
Havia um vaivém incessante entre o Bairro dos Miseráveis e com Ninon, para sua subida gloriosa mas esvaziada pela Usina. O
o centro da Cidade. A Cidade era o oceano aberto. O Bairro era fracasso coletivo traduzia-se então em vagas para aquela Cidade
o havre, Havre das patuscadas, havre das esperanças caracolando que não era a Cidade. Desprezando Fort-de-France, ele resmun-
como papagaios de papel, havre das desgraças, havre das memó- gava sem parar. E isso é uma Cidade, Idoménée? perguntava à mei-
rias trazidas de longe. Voltava-se para Já com o intuito de curar ga zarolha (ela possuía uma voz calorosa, nenhuma palavra subia
as feridas, encontrar as forças de um impulso para conquistar a. mais que a outra, e seus gestos eram calmos, e seu corpo era cal-
Cidade. mo, ela atravessava a vida como uma clara água de fonte, ó, era
Às vezes meu Esternome invertia o olhar. A Cidade tornava- de uma inocência perturbadora, pois encostava em meu Esterno-
se uma terra descoberta; o Bairro, uma fúria oceânica. Então, o me só a fim de lhe falar, acariciava-lhe as unhas sem outro pensa-
Bairro respingava incessantemente na Cidade - como o mar que mento, mas ele, vicioso, começou a tê-los).
escava a escarpa altiva. Ele resmungava E isso é uma Cidade? E olhava as próprias
E a Cidade absorvia o Bairro comprimido à distância. Era um mãos presas na ternura das mãos dela. Idoménée perguntava O
tal de envolvê-lo com seus ruídos, curvá-lo a seus ritmos, revesti- que é a Cidade, Ternome? Ele, douto como um leigo, exagerava:
lo com seus materiais que vinham de outros lugares! A Cidade com- a Cidade é um abalo. Um vigor. Ali tudo é possível e tudo é cruel.
punha o Bairro com a mistura de suas sobras made-in-isso, A Cidade nos leva e nos transporta, jamais nos abandona, mistura-
made-in-aquilo. nos com seus segredos que vêm de longe. Aos poucos, captamos
Os miseráveis apanhavam aqueles manás: uma caixa de em- esses segredos, sem jamais entendê-los. Então, nós os contamos
balagem para tapar um buraco do casebre, um pedaço de lata amas- para os que desceram dos morros e que pensam que entendemos
sada para calçar uma fachada cambaia, um garfo, um prato rachado, do riscado: mas a Cidade apenas nos engoliu, sem realmente se
um retalho de tule, uma garrafa, uma corda, um pano de estopa, explicar. Uma Cidade são os tempos reunidos não apenas nos no-
um medalhão, um chapéu velho, dois pregos enferrujados, uma mes, nas casas, nas estátuas, mas no não-visível. Uma Cidade con-
lâmina de canivete. Tudo prestava, tudo prestava, a Cidade dava serva as alegrias, as dores, os sonhos, cada sentimento, e disso faz
e apertava o laço, Marie-Sophie, apertava o laço. um orvalho que nos reveste, e que percebemos sem poder mostrá-
Para meu Esternome, eram esses os inícios de um Bairro quan- lo. É isso a Cidade, e era isso Saint-Pierre. A mulher, acariciando-
do, nos morros, a terra era instável. Aquela fermentação regida lhe os dedos, interrompia-o gentilmente Se é isso a Cidade, aqui
pelas forças locais adquiria, no correr dos anos, uma espécie de é bem assim. E meu Esternome retribuía-lhe o afago tendo um ví-
equilíbrio. Naquele tempo, a única luta do Bairro dos Miseráveis cio na cabeça.

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Rindo muito, ela caía em seus braços sem nenhuma afetação. DEVANEIOS DE IDOMÉNÉE, PEQUENA AMOSTRA
Então, meu macaco fazia,a rir. Emocionada, a caolha aninhava-se
contra ele, trêmula, olhos erguidos, pedindo para ser tranqüiliza- Dizem: velho pântano mas praça bonita. Ali se colocou
da. Então, o meu dengoso cultivava a emoção. Para consolá-lo das o Forte. Depois foi o Exército que expressou sua lei. Um
lembranças de uma desgraça, ela o beijava por muito tempo co- tabuleiro de damas aberto em torno do Forte. Ali, comér-
mo quem nina uma criança. Então, ele, esse depravado, sofrendo cio. Ali, casas. Ali, depósitos.
as sete misérias do mundo, carregou sua existência com uma car-
ga de maldições que nenhuma mula albardada seria capaz de su- Calor danado, diz Esternome.
portar.
A fim de se aproximar da zarolha, falava-lhe de Saint-Pierre. Dizem: Nos morros ao redor, colocaram os regimentos.
No espírito de ldoménée, aquela Cidade desconhecida brilhava Espremido naqqela bacia, o inimigo cairia sob o dilúvio
como um farol. Fort-de-France e Saint-Pierre aliavam-se no essen- do inferno. Cada morro, um regimento: Desaix, Tartenson,
cial: ocupavam o lugar das tochas na noite cerrada das correntes. Redoute, Balata ... Cada regimento, uma casa. Dez casas,
A amargura dos morros (causada pela Usina) ali se consumia co- um Bairro. Portanto, cada regimento construiu seu Bairro.
mo mariposa em fotóforo. Desde o início, a ldoménée concen- São isso as memórias, ponderava meu Esternome.
trara suas esperanças na Cidade. Meu Esternome espantava-se: Eu, É o Exército, dizia ela.
foi o Mentô quem me mandou para lá, sem ele eu jamais teria saí-
do da fazenda. Eu, dizia ldoménée, ninguém me disse, mas, quan- Era preciso sustar a água que descia dos morros e afo-
do cheguei, identifiquei no mesmo instante o final de minha deri- gava as terras baixas. Que fazer? ... Grande canal em vol-
va: mais que isso, só mesmo tomar o barco para o ouro da Guiana ta de tudo, e canal enviesado, até que tudo se escoe para
dito fácil de garimpar, ou navegar para a riqueza do Panamá onde o mar em linha reta, respondia o Esternome.
você vira mulato escavando um canal, podia mudar a vida. Eu não E isso é o quê? retomava ela.
teria partido, mesmo se meus olhos não se tivessem apagado. Ele, Isso desenha: são memórias, decidia meu Esternome.
disposto a tudo para esclarecer o mistério de seus olhos, não se Cada um tinha de escolher no tabuleiro de damas seu
atrevia, porém, a lhe perguntar como. lugar, sua terra, seu local. Não se podia sair do alinha-
ldoménée falou-lhe sobre Fort-de-France como jamais teve mento nem do plano. As casas foram construídas de acor-
tempo de me falar. Meu Esternome, apesar da trágica memória, do com o engenheiro do Rei e o conde de Blénac. Isso
pôde, ainda assim, me sugerir suas palavras, pois a presença de é memória?
ldoménée impregnou-o profundamente. Ela foi a memória de sua É acaso, recusava o Esternome.
idade sem memória. O que ele sabia de Saint-Pierre completava
Precisavam de uma savana para que o inimigo, atacan-
o que ela dizia de Fort-de-France. O que ela sabia vinha das pala-
do pelas costas, rolasse de alto a baixo, a descoberto. Por-
vras ouvidas por acaso ao longo de toda a vida, palavras nascidas
tanto, impuseram un_i espaço, que espaço? Asavana, dis-
nos salões, proferidas nos passeios pela alameda des Soupirs, pa-
se meu Esternome. E preciso revesti-la de um rumor de
lavras percebidas durante as esperas no cais, palavras ditas pelos guerra para realmente compreendê-la.
soldados sentinelas que andavam para lá e para cá sob as mura-
lhas do Forte. No calor que os imobilizava, e com a ldoménée Essa Cidade não tem vento ... calor desce. Depende,
sonhadora deitada em seus braços, trocavam esses punhados de dizia ldoménée, é preciso conhecer os ventos.
palavras, a meia voz, aos cochichos, a fim de não transpirarem. Dizem que o lugar resistiu: febres de tódo tipo exte-
Palavras já batidas mas que, de mês em mês, enriqueciam-se com nuando a conquista. Dizem que houve almas caraíbas sur-
nuances. Palavras que os aninhavam em pleno coração da Cidade gindo dos pântanos, e de outros sofrimentos que os as-
e os uniam como uma corda. sassinos esquecem.

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É o quê? pedra. Depois da terra pulando? Cidade de madeira, exul-
É lenda, retrucava meu Esternome, a Cidade também tava meu Esternome. São memórias do rosto, desenhis-
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é isso. Mas lenda é memória maior que memória. tas danados.


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Tufos de capim por aqui, calcários por ali, correntes Então Idoménée dizia: Mas o que é a memória?
marinhas, aluviões de rios, terras trazidas como aterro do É a cola, é o espírito, é a seiva, e fica. Sem memórias,
1 mar ... e aí? Isso desenha por baixo e dá cor à alma, acei- nada de Cidade, nada de Bairros, nada de casa-grande.
tava meu Esternome. Mas não dá ar fresco. Quantas memórias? perguntava ela.
Todas as memórias, respondia ele. Mesmo as que trans-
Quem vem tomar as terras do tabuleiro, depois dos mor-
portam o vento e os silêncios da noite. É preciso falar,
ros? perguntava Idoménée. Contratados, militares, sujei-
contar, contar as histórias e viver as lendas. É por isso.
tos vindos da França, do Brasil ou de outro lugar. Mas, so-
bretudo, mulatos e negros livres, pencas de mulatos e pen- Você também constrói a Cidade porque ali você põe
cas de negros sem correntes mas de talento, de comércio. as memórias, esclarecia meu Esternome.
Por quê? espantava-se a zarolha.
Porque em Saint-Pierre os bekês já tinham tomado tu- Só isso? preocupava-se ele. Então ela continuava ... E
do, sentenciava o Esternome, sei disso, pois vi. o calor os unia.
Quanto a calor, Saint-Pierre também tinha.
Caderno n? 9 de Marie-Sophie Laborieux.
Os sujeitos da França não tinham mulheres, então ali 1965. Biblioteca Schoelcher.
i,, encontraram mulatas e negras.
É surpresa pela frente, ria meu Esternome. O que tinha de acontecer aconteceu. Ele que penetra a sua noite.
Saint-Pierre, cidade bekês; Fort-de-France, cidade mu- Ela que vê por seus olhos. Ele que despenca no universo sensível,
i latos? perguntava a Idoménée. A Cidade não tem fontes, repleto de pavor imóvel. Ela que libera as lembranças de luzes, que
\ a Cidade tem memórias que ela mistura loucamente, sem se inebria de cores, que se lembra de flores, que salpica em espírito
confundi-las, dizia meu Esternome. E recapitula tudo is- mil formas esquecidas. Ele que ouve de outra maneira, que sente seus
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so. Sem parar. E de diversas maneiras. dedos reviverem, que avalia os volumes, que se equilibra sobre pre-
1 senças sutis. Ele que a beija. Ela que o engole. Ele frenético. Ela des-
1 o lote: duzentos passos de largura por mil de compri- membrada. Depois o torpor quepaira, afogado em todos os suores.
1 mento. Com taxas. Parte-se da beira do mar e sobe-se para O calor mais denso do que nunca. O chegar chegando.
1 o centro. A terra dos arredores para plantio de fumo. Os Naquela noite, a Adrienne Carmélite Lapidaille, mal pôs o pé
restos, para o Exército, incluindo os cinqüenta passos des- do outro lado do pano, parou de repente diante de um cheiro que
de a onda, que ninguém pôde tocar, a não ser para a cir-_ enchia o barraco. Espiou-os horrorizada. Não tinha pensado nis-
culação. Isso desenha, são memórias. so. Um velho, uma cega um pouco mais nova, os dois nimbados
Ordem do Exército: cada um deve fechar a entrada de (sob um ar de inocência) pelo forte odor das carnes. Você a estu:
sua casa, expulsar a água do pântanc:?, lutar contra a vaga prou ... ! disse a Esternome. Não, atalhou a Idoménée, fui eu que
marinha, secar as lágrimas de lama. E seiva, resolvia meu dei. A Adrienne Carmélite Lapidaille serviu a comida com um si-
Esternome, cada um contribui para a Cidade sem nem sa- lêncio diferente-. Deitou-se mais depressa ainda.
ber que contribui. Conheço isso. São memórias. No cair da noite, meu Esternome sentiu-se mal, a angústia se
pusera a caminho. Uma angústia que já não ficava num canto a
Quem tinha medo dos terremotos construía casa de " esperar, e agora ondulava em direção de uma presa designada. Meu
madeira. Quem temia o ciclone ou se lembrava do fogo Esternome sentiu que a presa era ele. Idoménée, ainda acordada,
construía casa de pedra. Depois do ciclone, cidade de esmagava-lhe o braço. Revirava os olhos vazios em direção do galo

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adormecido confortavelmente. Sua aparência traía o horror. O que À luz do dia, um sono o pegou. Uma fisgada do calorão subi-
está acontecendo? disse meu Esternome à cega amante. Não pe- tamente o acordou. Idoménée segurava-lhe o braço. Quando sen-
gue no sono, soprou-lhe ela, não feche os olhos. tiu que ele se mexia, disse-lhe Esternome, você está percebendo
Ele lutou contra a idade a fim de manter o olho aberto. A noi- bem? Estou, estou percebendo claramente, por quê? Por nada, dis-
te parecia mais densa. O Bairro ao redor, depois de flutuar nos se ela. Calaram-se. Um vigiava o outro. O sol enfiava sua luz pelos
odores de peixe frito, estava paralisado. Só o tremor das lâmpa- buracos do pano e zebrava a penumbra. O pesadelo da noite pa-
das de iluminar a imagem da Virgem mantinha um movimento pe- recia um tanto insuportável. Meu Esternome quis esquecer tudo,
las frestas. O pequeno barraco parecia ter afundado num pântano e depois se refez. Inspirando fundo, revelou de chofre à sua Ido-
surdo. Quem sabe, até, tinha saído do mundo. Meu Esternome ménée que a Adrienne Carmélite Lapidaille era uma dessas pes-
sentiu um medo terrível, desses de dar caganeira. Medo que su- soas maléficas que à noite se transformam em criaturas voadoras.
bia do mais profundo de si. Que tremia em suas mãos, esfriava Que precisavam sair daquele barraco antes que ela os vendesse
em seus pés, dava voltas em seus olhos. Sua cabeça girava com a Belzebu ou a Lúcifer. Mas Idoménée começou a rir. Quando viu
o intuito de flagrar sabe-se lá que ameaça. De vez em quando, pe- que isso não o divertia, que ele tremia sem parar, contou o que
gava a vela para iluminar os cantos apagados do barraco. O clarão ele queria saber.
amarelava o rosto inocente de Idoménée agora adormecida sem
sequer respirar. Amarelava o canto da Adrienne Carmélite Lapi·
daille, tão tesa que parecia ter deixado o próprio corpo. Depois AS LÁGRIMAS DE LUZ. Sua irmã gêmea, a Adrienne Carmélite La-
amarelava o galo afundado em suas penas, olhos fechados como pidaille, nascera com ela, na mesma fazenda. Mamaram juntas du-
de costume, mais retesado do que nunca - mas que dessa vez rante sete dias. Depois, o bekê levou a Adrienne a fim de vendê-la
estava com os olhos abertos e o olhava. sabe-se lá para quem, alguém não muito católico. Vez por outra,
O galo o vigiava. Virava a cabeça à medida que ele se arras- os bekês faziam esse tipo de negócio. Idoménée cresceu com a
tava pelo barraco. Seu bico tornava-se ameaçador. Sua crista, agora lembrança da irmã, de quem acabou se esquecendo. Com a mor-
preta, vivia clarões avermelhados. Meu Esternome quis acordar te da mãe, o fim das fazendas, teve de batalhar para sobreviver,
Idoménée. Ela não acordou. Então, chamou a Adrienne Carmé- carregar tinas. Idoménée logo se deu conta de que seus olhos per-
lite Lapidaille. A pessoa não se mexeu, como não se mexem as diam luz, assim, bem devagarinho, sem razão. Menos brilho, me-
pedras. Quando quis se jogar sobre ela, sacudi-la, o galo pulou nos nitidez, menos formas, mais brumas. Às vezes, sob o peso das
furioso e o feriu com mil e duas bicadas. Parou quando meu Es- tinas, ficava imóvel como num pântano preto. Depois, uma suave
ternome recuou para bem longe da cama de sua dona. claridade reanimava-lhe os olhos. Então, podia prosseguir, com
Em silêncio, os dois se observaram. Meu Esternome semimor- o coração acelerado. Começou a nadar naqueles pântanos pretos,
to de medo. Tremeu ainda mais quando, batendo meia-noite, o cada vez mais amiúde. Eles se tornaram cada vez mais profundos.
galo cantou e começou a and~r pelo barraco com o passo da Chegando por trás de sua cabeça, engoliam-lhe os olhos, depois
Adrienne Carmélite Lapidaille. À esquerda, à direita, como que se- o corpo, e ela se sentia flutuar como uma folha de pereira.
guindo a ordem oculta de uma liturgia funesta. Meu Esternome Podiam se passar semanas sem que nada acontecesse, depois
vigiava tudo isso sem acreditar. Esforçava-se para arregalar os as sombras reapareciam. Ela trabalhava como arrumadeira na casa
olhos, temendo ser levado para o inferno. Pouco depois, quando de uma velha mulata colecionadora de papagaios quando o pân-
um azul pálido iluminava o céu, escutou uma pancada de morce- tano negro engoliu-a com uma dentada. Uma maré poderosa. Ela
go contra a folha-de-flandres. Depois, um bater de asas que des- começou a boiar, a afundar, depois a voar como um peixe-voador
moronavam, volteavam em torno do pano, batiam nos tapumes, por cima das redes. Redemoinhos de vertigens. Quedas súbitas.
e acalmavam o galo, subitamente adormecido em seu lugar de pra- Reflexos de animal de caça afligiam seu coração. Idoménée cho-
xe. A Adrienne Carmélite Lapidaille, de repente reanimada, come- rou. Idoménée quis morrer. Idoménée esperou que aquilo pas-
çou então a respirar tranqüila. sasse. Mas aquilo nunca passou.

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A mulata dos papagaios manteve-a alguns meses, por carida- irmã, como você vai fazer para me devolver os olhos? Vou pegar
de cristã. Assim que a luz de Idoménée se apagou, os papagaios de alguém, resmungava a outra. Tem gente que não precisa de olhos.
foram assaltados pelo silêncio. Ficavam na gaiola mais tesos do Nada de ter medo, estou procurando, procurando a pessoa. Quan-
que pássaros congelados. Seus olhos reviravam, inquietos. Suas do você tiver novos olhos, poderei ir embora. Idoménée esqueceu-
cores mais vivas tinham praticamente desbotado a fim de que pu- se do assunto. Temendo vê-la voltar com olhos sangrentos, passa-
dessem se disfarçar diante da águia da desgraça. A noite deixava- va os dias a rezar para Nosso Senhor. Logo compreendeu que a
os alarmados. Atiravam-se contra as grades, estabanados e loucos. Adrienne não arrancaria os olhos de ninguém. Utilizaria um poder
O ventinho que entrava pelas persianas carregava pela casa suas que Idoménée se pôs a adivinhar à medida que seu corpo cada vez
penas que caíam. Então, a mulata pegou Idoménée pelo braço e mais sensível compensava as trevas de seus olhos.
deixou-a, num sábado bem cedinho, na frente do asilo Bethléem Percebeu que ninguém do Bairro dos Miseráveis aproximava-
para que cuidassem dela. Mas a cega abandonada não viu ninguém se do barraco. Os negrinhos formavam ao redor um círculo de
chegar e ninguém a viu. Nem mesmo a mulata que voltou para silêncio insuspeito até para eles mesmos. Quando os chamava, nin-
pegá-la quando os papagaios, deplorando sua partida, trespassaram- guém respondia, como se os tapumes abafassem sua voz. Nenhum
se os olhos gemendo como crianças. mosquito ia para o barraco, nenhuma mosca, nenhuma lagartixa,
Idoménée foi parar em algum lugar. Nesse canto isolado, es- nenhuma barata, nenhuma aranha, nenhum melro ali se perdia.
quecida pelo sol, viveu perto da lama. Sentiu os cachorros passa- Mal engolia a sopa, um sono sem cansaço levava-a e, santo deus,
rem, depois coisas incertas. Sentiu as chuvas, os ventos, os calo- sentia que havia perdido seus sonhos para sempre.
res, os frios. Seu espírito tocou o fundo e depois começou a vir Sentia também que a Adrienne não gostava muito dela. Só a
à tona. Um dia, Idoménée foi capaz de achar o lugar de seus pés. perda da visão a embaraçava. Estavam ligadas pelo mistério das
Depois, um outro dia, achou o sentido da terra. Achou um braço, gêmeas; restituindo a Idoménée a luz de seus olhos, a Adrienne
um semblante de equilíbrio. Mais um dia, soube diferenciar o es- restituiria a si mesma uma clareza. Estava ali para isso, e para mais
tar deitada do estar de pé. Então emergiu de sua cova e saiu pelas nada. Idoménée seguia-a mês a mês, sentia sua tensão quando dia-
riamente ela trazia alguma coisa para o barraco. Muitas coisas ti-
ruas da Cidade.
nham, assim, sido acumuladas. Só faltava uma coisinha à-toa. Mas
Deram-lhe um cotovelo, depois uma bengala. Em seu cir-
o quê? Vendo Esternome chegar, não estabeleceu nenhuma liga-
cuito imutável, as caridades ofereciam-lhe tigelas de leite gordo.
ção entre ele e a terrível preparação: a Adrienne parecia indife-
Depois, ela voltava atrás em seus poucos passos e enfiava-se no
rente. Mas, aos poucos, justo antes de seu estranho sono, perce-
buraco que lhe servia de ninho. Foi ali que encontrou a Adrienne
beu cada vez melhor a ameaça que crescia.
Carmélite Lapidaille, aquela irmã esquecida. A estranha pessoa Desde a última noite, tudo estava claro: São os seus olhos que
procurara-a por muito tempo. Apesar do tempo que passara, ape- ela vai pegar, são os seus olhos que ela vai pegar. Pode pegar,
sar das cinzas em que a Cidade se esfumava, apesar do cheiro dizia meu Esternome, vou dá-los para você. O pensamento de ter
de enxofre que pairava nas ruas, apesar do medo que a mon- debaixo das pálpebras os olhos do bem-amado atirou a cega num
tanha causava, Idoménée a reconheceu: um cheiro familiar, uma horror inefável. Tremia, gritava, virava a cabeça para todos os la-
sensação. A Adrienne pegou-lhe pelas mãos à saída do buraco, e dos, Guarde os seus olhos, guarde os seus olhos ... Meu Esterno-
disse-lhe Vou lhe devolver os seus olhos. Idoménée também per- me começou a refletir. Precisavam ir embora, deixar aquele bar-
cebeu o galo - digamos que sentiu uma espécie de retesamento. raco, mas ir para onde? E ir com que pernas? Ele, um tanto sem
A Adrienne encontrara aquele barraco do Bairro dos Miserá- forças, uma cega em seu braço? Loucura! ... Ela nunca vai nos dei-
veis. Instalou-a ali. De dia, partia para a Cidade. De noite, Idomé- xar ir embora, chorava Idoménée. Então é ela que a gente tem
née mergulhava num sono até então desconhecido, e encontrava de enxotar, dizia meu Esternome.
a irmã ao cair da tarde, quando esta servia a sopa. No início, Quando a Adrienne apareceu naquela noite, Idoménée gri-
interrogava-a: Sésé, ki jan ou ké viré ban mwen zié mwen, Minha tou-lhe com força Não preciso dos seus olhos, estou muito bem

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assim ... ! Deixe Esternome em paz. Mas a pessoa serviu-lhes a ines- Desde o caso do Mentó, ele começara, dizia, a acreditar em
gotável sopa e deitou-se sem dizer palavra. Quanto ao galo imun- bruxarias. Sua vida se abrigara debaixo de uma série de proteções.
do, fez quase igual, a não ser que dessa vez, afundado em suas Ninon, bem mais crédula do que ele, havia-as reforçado. Tudo ti-
penas, manteve os olhos malvados apontados para o Esternome, nha ficado no barraco do morro. Era com sofrimento que, agora,
o qual sentiu a angústia, etcétera etcétera ... e o velho circo da ou- ele pensava nisso. Pelo sim, pelo não, vestira a camisa do avesso.
tra noite voltou a desfilar integralmente. Mas a ameaça não estremecera. Ele sentia faita de sua garrafa de
larva-de-trevo que desmanchava os feitiços. Sentia falta de seus
No centro antigo: uma ordem clara, regida, normaliza- limões-verdes arrancados do pé com os quais esfregava as mãos.
da. Em volta: um cinturão fervilhante, indecifrável, in- Sentia faita de sua essência de kasyalata, de suas plantas de verbe-
suportável, disfarçado pela miséria e pelo peso obscure- na vermelha, seus tufos de hortelã gelada, seu ramo de arruda, que
impedia os despachos, seu manjericão que afastava os maus-
cido da História. Se a cidade crioula só dispusesse de or-
olhados, suas plantas silvestres temidas por quem não tinha cor-
dem no centro, teria morrido. Ela precisa do caos de suas
po fechado, sua casca de ameixeira-brava, sua casca de feijão ver-
franjas. É a luxuosa beleza do horror, a ordem munida
melho, suas defumações de incenso para as sextas-feiras treze, seu
de desordem. É a beleza palpitante em meio ao horror álcali, seu bom éter que faz os soucougnans chorar, seu sal mari-
e é a ordem secreta em pleno coração da desordem. Te-
nho misturado com carvão, sua pequena moeda de prata atrás da
xaco é a desordem de Fort-de-France; pense: a poesia de
qual Ninon anotaraAragon Tétragranmakon, seu lenço de cetim
sua Ordem. O urbanista já não escolhe entre a ordem e preto embrulhando um bambu e uma pitada de sal, suas cinzas
a desordem, entre a beleza e a feiúra; doravante, erige-se de um broto de caniço dentro de pergaminho virgem, seu copo
em artista: mas qual? A Senhora me ensinaria. novo (ganho sem pechinchar) onde ainda tremiam três gotas de
Nota do urbanista ao Marcador de Palavras. prata. Meu Esternome chorava ...
Pasta n? 8. Folha x1x. Contra as pessoas voadoras, meu Esternome sabia. As voado-
1987. Biblioteca Schoelcher. ras temiam os cheiros fortes, era preciso espalhar incenso por to-
do o barraco, borrifá-lo com álcali, escová-lo com creolina. Mar-
Quantas noites assim? Medos e aflições? A Adrienne Carméli- car as paredes com uma cruz branca. Pendurar em cada janela um
te Lapidaille mergulhava numa espécie de dureza. Idoménée de- bom ramo de kasyalata. Sabia que essas pessoas tiravam a pele a
sabava em cima do colchão de crina. Ele, meu Esternome, enfren- fim de soltar as asas. Que, para arrancá-la, passavam um óleo es-
tava o galo nojento de olhos exorbitados. A angústia. A noite. A pecial que a Adrienne devia esconder debaixo da cama, junto com
fim de evitar o cansaço, ficava com os olhos assim, que nem a outro óleo que servia para recolocá-la. Sabia que, trocando esses
velha mãe, e permanecia imóvel diante do galo imóvel. Ah, como óleos, metendo três grãos de sal bem debaixo da pele, lhe quei-
as noites eram longas! ... Antes de clarear, um barulho de gran- maria as forças. Mas como chegar à cama com aquele maldito ga-
des asas envolvia o teto patá patá patá, dava voltas no pano vlaaarr, lo? Meu Esternome chorava ...
arrebentava os tabiques tum tum tum, antes de se desfazer num Se houvesse um limoeiro por aqui, dizia à sua Idoménée, eu
ruído de areia deslizando por baixo do teto de zinco. Assim que cortaria a metade de um limão sem tirá-lo do pé, depois prende-
o dia se mostrava, ele readormecia, até os primeiros calores. De- ria um véu preto no galho, e a voadora se jogaria ali dentro e sai-
pois, nos braços de sua Idoménée, resmungava de desespero. Aon- ria despedaçada para sempre. Não tem limoeiro, dizia Idoménée.
de ir? Para onde partir? Quem chamar? Como alertar os vizinhos O Esternome chorava ...
que não pareciam sequer avistar o barraco? Chorando, meu Es- ó, Ido, eu teria queimado em cima dela o incenso Mont-Saint-
ternome procurava na cabeça uma maneira de agarrar a Voadora. Michel, e o incenso dos três dons, enxofre, casco de cavaio e um
Cruz-credo, que história mais feia ... galho de louro ... Idoménée, está me ouvindo. Eu teria posto na
sua cama um vidro de cal viva, algumas folhas de urtiga e o so-

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frimento da mucunã ... E ele berrava num francês mágico Não que Idoménée esperava um bebê. Aquela criança milagrosa era vo-
adianta nada atacar quem Deus protege. O justo é sempre sal- cê, Marie-Sophie, garapa da minha velhice, gole derradeiro de mi-
vo ... , que não chegava propriamente a sossegá-lo atrás dos olhos nha vida ... (fingi estremecer e beijei-o demoradamente).
cheios d'água. Eu era filha de velhos. Dizem que essas crianças têm costas
Uma vez, quando a Adrienne Carmélite Lapidaille apareceu, abauladas, olhos tristonhos, ossos duros. Dizem que são melan-
ele se virou de costas com a cabeça baixa entre as pernas. Essa cólicas, que gostam de leite coalhado. Dizem também que sua me-
pose, supostamente, deveria mandá-la para o inferno. Mas a pes- mória tem humores que as deixam taciturnas. Dizem ... Dizem ...
soa começou a rir e o galo não se mexeu. Outra vez, com as mãos mas, segundo o Esternome, eu fui realmente encantadora, sem cos-
trêmulas, jogou em cima dela um tremendo pelo-sinal._ Ela retri- tas abauladas, sem ossos duros ... É bom dizer, para se poder ava-
buiu o gesto, e ele (a vida é engraçada) sentiu uma dor. E que não liar o que ele pensava, que os macacos jamais acham seus filhos
andei me confessando muitas vezes, confessou. Com Idoménée, feios.
passaram os dias a recitar Pai-Nosso, a invocar são Pedro, são Mi- A gravidez de Idoménée agiu sobre ela como uma bênção.
guel, Melquidael, Bareschas, o belo anjo Gabriel, Zazel, Triel, Mal- Negava-se a acreditar. À medida que o ventre ia arredondando,
cha e outros. À esquerda da entrada, gravou com carvão + ABA se pôs a chorar. Aquele pranto comprido parecia limpar seus olhos.
+ ALUY + ABAFRROY + AGERA + PROCHA + ... A pessoa nem deu O barraco virou um mingau de lama que esse querido Esternome
bola. limpava com o pano de chão, houvesse o que houvesse. A água
Os meses passaram assim. Meu Esternome já não engolia aso- daquelas lágrimas não se evaporava. No sol, dividia-se em semen-
pa. Ficara magro como um bacalhau da Terra Nova. Idoménée, teiras de orvalho. O vento a dispersava no vôo da poeira. Meu
de seu lado, não conseguia deixar de dormir assim que a noite Esternome pegava-a com as mãos, e às vezes berrava Idoménée,
caía. Certo dia, a Adrienne Carmélite Lapidaille entrou como de clareou!. .. E depois se calava na mesma hora ...
hábito e ficou espantada. Idoménée pôs a mão na barriga. Segurou- ó, mamãe ...
se nos tabiques para parar uma tonteira. O galo fez uma pirueta Um dia, ela acreditou ver uma luz. Numa outra hora, acredi-
e foi para debaixo da mesa. A Adrienne Carmélite Lapidailie olhou tou distinguir um pingo de sombra numa sombra. Um dia, estre-
Idoménée de alto a baixo, numa espécie de horror: O que você meceu as pálpebras diante do brilho de uma estrela, depois, dian-
tem dentro da barriga? gritou, Sa ou ni an boyo 'w? Apesar de te de um trovão. Um dia, finalmente, flagrou no barraco um raio
seu pavor, meu Esternome pensou em morrer de prazer: O que de sol, depois percebeu a moldura da porta, e algumas formas dis-
é, o que é, Idoménée, que você tem? balbuciou. O que você tem tantes. Não reencontrou nenhuma claridade no olhar, mas pôde
na barriga?, retomava a pessoa; Idoménée passava a mão nos qua- restituir volume aos objetos, um pouco de suas cores. O rosto de
dris, puxava o umbigo, parecia querer extirpar um apertado nó meu Esternome pareceu-lhe bem bonito (nesse caso, era só o amor
nas tripas. O galo agitado batia as asas do desespero. que ainda a cegava, diante da alegria de ver).
A Adrienne caiu na cama como manga que cai do pé. Tortu- O sumiço da Adrienne Carmélite Lapidaille liberou o Bairro.
rada por sobressaltos terríveis, a outra segurava a barriga. A che- Descobriram o barraco. As crianças o invadiram. Os homens pas-
gada da noite acalmou-a subitamente. Idoménée caiu num estra- sando ali em frente tiravam o chapéu bom dia, sinhô, bom dia,
nho sono. Meu Esternome lutou contra os olhos para mantê-los dona. As mulheres vieram se informar sobre as histórias desses
abertos. Pensou ver o galo voar, mas, olhando melhor, viu-o em velhos. Foi uma felicidade: aquelas criaturas de cabelos brancos
seu lugar. Mais tarde, deixou de vê-lo. Pensou ouvir de madruga- esperavam uma criança! ... E fui o bebê do Bairro inteiro. Antes
da o patá patá patá das grandes asas que vinham, mas elas encos- mesmo de nascer, tive um monte de papais e mesmo número de
taram no barraco e depois se afastaram para o infinito. O colchão mamães. Cuidaram de meu Esternome, mimaram minha Idomé-
da Adrienne esvaziou-se com um assobio. Houve então um silên- née. Uma mulher de Basse-Pointe (Théotine Rémicia, operária da
cio novo. Um espanto em que o mundo renascia. Meu Esternome usina da Pointe-Simon, no tempo de dom joão charuto) fez-me
soube que estavam salvos. Dormiu tanto melhor porque sabia vir ao mundo. Meu umbigo foi enterrado na entrada do barraco e

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meu nome foi anotado nos registros da prefeitura sem nenhum gúmenos, Marie-Sophie, envenenaram-se bastante a fim de que os
ano-savana, isto é, no mesmo ano em que nasci. Batizaram-me na fuzis pudessem lhes cair das mãos. Alguns negros para lá de de-
grande catedral. E conheci a escola do pátio Perrinon. pravados pegaram para criar os moleques das redondezas, pro-
Saber que tinha uma filha despertou Esternome. Ele teve for- clamando-se assim, diante dos sargentos, papais indispensáveis.
ças para ir cavar uns bicos nas oportunidades da Cidade. Mas sua Outros, realmente sem honradez, nadaram sem respirar até a Ve-
carapinha branca só incitava caridade. Então, preferiu desistir. Nas nezuela, onde não tinham endereço. Meu Esternome ficava deso-
matas de Balata, pôs à obra o ensinamento de Ninon. Sua roça lhe lado, Cachorros ingratos... ! ah! se eu tivesse minhas forças!. .. Vu-
trouxe toda espécie de comida. Com isso, podia nos fartar ou con- va a Fuança... Vuva a Fuança! ...
seguir um mínimo necessário de sal. Idoménée cuidava do barra- A guerra surgira sem razão, fora de nós e de nosso entusias-
co. Arranjou-se da melhor maneira possível atrás da bruma de seus mo para entrar na Cidade. Soubemos apenas de uma coisa: a dol-
olhos. Pobre barraco ... meu Esternome, sem forças e sem ferra- ce França, berço de nossa liberdade, a universal tão generosa, cor-
mentas, jamais pôde melhorá-lo. Fez como os outros, sob a lei das ria grande perigo. Tínhamos de dar-lhe tudo. Como o campo nos
urgências, um prego aqui, um pedaço de folha-de-flandres ali. E, matava de fome e a Cidade nos recusava, encontramos no exérci-
em seus sonhos, venerava a menor tábua de caixote, como eu mes- to uma perspectiva de nos tornarmos franceses, de escaparmos
ma, em meu tempo, na gênese de Texaco. dos bekês. Apesar dos que fugiam, fomos milhares a nos anteci-
Houve uma guerra. Ela ofereceu aos jovens o rosário da mor- parmos às convocações. Os bekês, enxergando a coisa com um
te: Dardanelos, Verdun, o horror desnudo da Somme, o velho Che- olho mais distante, despacharam suas mercadorias para os lados
min des Dames ... Desse negócio de alemães meu Esternome nun- da América, e se autoconvocaram para a pátria de seus negócios.
ca entendeu nada. Desde Saint-Pierre, estava como que desligado Encontrar algo de comer dava um trabalho desgraçado. Gra-
do mundo. Expulso da História, vivia suas histórias sem decifrar ças a Deus, a Cidade ainda não havia engolido o campo. Conser-
os acontecimentos, tal como tinha feito nos tempos de juventu- vávamos migalhas de reflexos de como nos virar. Nas roças de
de. Tínhamos perdido pé, Marie-Sophie ... como dizer? Combater vida ao redor de Fort-de-France, como no tempo de antigamente
as correntes erguia-nos no mundo, enfrentar a liberdade, também. ao redor das fazendas, cultivávamos algo capaz de imunizar a má
Mas depois, não houve nada a enfrentar, a não ser se meter nas sorte. Mas isso não bastava para alimentar toda a Cidade. As fei-
ilusões da Cidade. E o que eram as ilusões da Cidade? O rastro rantes, ao chegar dos morros, provocavam tumultos. Os bekês da
dos mulatos, respondia de supetão. beira-mar fecharam os entrepostos e fizeram os preços subir. A
A guerra (da qual não guardo a menor lembrança) foi ida-em- farinha e o pão custavam tanto quanto um prato de galinha com
fanfarra e volta-de-rabo-entre-as-pernas. Partiram cantando, vol- arroz. O carvão era ouro. Os bekês do campo esconderam os bois
taram de pés congelados. Partiram rindo, voltaram sem pulmões, atrás das ribanceiras. Como a carne escasseava, os preços subiram
gangrenados pelos gases. Partiram intrépidos, voltaram destroça- vertiginosamente. Os usineiros, felizes com aquelas necessidades
dos por pedaços de obuses shrapnel. Partiram aclamados, volta- militares, suprimiram açúcar e rum destinados à ilha, a fim de me-
ram para um cais deserto, solitários e a capengar para o silêncio lhor monetizá-los nos quartéis da França. Toda manhã, uma amo-
de suas casas. E ficavam assim, em volta do próprio umbigo, a ca- lação de greves: greve-carregadores, greve-administradores, greve-
'' 1 tar piolho, a passar vinagre nas sarnas, sem um tostão de pensão, operários da doca seca, greve-comerciantes contra essas histórias
1

e sem força para um biscate. Guerra engraçada, desolava-se meu de preço, greve-aqui, greve-acolá. Os mestres-escolas, muito preo-
Esternome que espiava tudo aquilo ... Então, as filas de voluntá- cupados com seus salários, depositaram pedaços de giz aos pés
rios que povoavam os caminhos começaram a desaparecer. No do governador. Guerra engraçada, chorava meu Esternome, on-
Bairro dos Miseráveis (onde todos contemplavam os trágicos so- de está o sentido de Pátria? ...
1.
"1 breviventes), aqueles jovens vagabundos inventavam febres pon- As associações de ajuda mútua saíram de um velho torpor.
i! do alho debaixo do sovaco. Outros pilantras cortavam o dedo com Começaram a coletar dinheiro para a guerra. Organizaram-se bai-
o gatilho. Mais de um car1alha arrancou os dentes. Bandos de ener- les, festas, cujos lucros revertiam para os soldados. Abusou-se do

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passa-dez para ajudar os soldados. As pessoas se arruinaram no do- sujeira debaixo da bandeira. Mamãe-França, não nos en-
minó para ajudar os soldados. Para sobreviver, nenhuma necessi- vie essas pessoas para cá. Mas eu estava ali por ela, desde
dade de pensar num biscate: bastava uma festança para "ajudar o primeiro apelo ...
os soldados". Os negros não prestam ... !, resmungava meu Ester- Caderno n ~ 11 de Marie-Sophie Laborieux.
nome, que via acorrerem esses empresários de ajudas. Preferia 1965. Biblioteca Schoelcher.
ignorá-los, e, pior ainda, não ser tão arrogante quanto eles. Todo
sábado, vestindo uma roupa bonita, com Idoménée pendurada em Durante aquele tempo de guerra, e inclusive depois, sempre
seu braço, eu pendurada em seu colete, ia com um andar de sena- vi gente chegando dos campos. Abrigos surgiam graças aos muti-
dor ao quartel Bouillé onde pedia audiência com o comandante. rões feitos sob o clarão das tochas. Cabanas. Choças de palha. Bar-
Introduziam-no num aposento que cheirava a curral. Ali, uma es- racos de zinco. As pessoas apareciam de noite como manchas de
pécie de chefe de bigodes, avermelhado por causa dos mosqui- formigas, com o olhar cabisbaixo dos jovens contrabandistas. As
tos, exclamava Ah, chegou o Filho da Pátria ... ! Pegava-lhe seus destilarias, tão fiorescentes durante a guerra, arruinaram-se uma
tostões com um abraço. Meu Esternome partia orgulhoso, o de- atrás da outra assim que a paz voltou. Vomitavam negros que de-
ver cumprido, e cumprimentava cada soldado batendo os torno- testavam a lavoura e que, mais confiantes num pretenso saber, des-
zelos, Vuva a Fuança, meus amigos! ... ciam para a Cidade como quem corre para ser contratado por uma
Depois surgiram os ladrões. A prefeitura resolveu apagar as usina maior. A prefeitura, preocupada com essa investida, contra-
luzes a partir de determinada hora. O que ofereceu a Cidade a um tou o que pôde. Mas a Cidade não oferecia nenhum emprego: já
bando de invejosos. Uma espécie de delírio apimentado de ran- sobrevivia à espera dos barcos que vinham da França.
cor. A Cidade sem suas luzes é como cobra ferida. Fica encolhida.
É pisoteada. É estraçalhada. É engraçado isso, minha filha, a luz
da Cidade comprime a amargura da gente. Se você apaga as luzes, ÚLTIMOS GOSTINHOS DE AMOR. Depois da guerra, a prefeitura
não há mais muralhas. Então os que vivem espremidos entre o passou a se preocupar com o Bairro. Tanta lama, tantos ódios. O
campo e a cidade começam a destruir o que não podem ter. Ou prefeito (um tal de Sévêre, mulato maçom que desfilava com seus
a pegar o que morrem de vontade de pegar. Quadrilhas de mu- irmãos em grande pompa pelas ruas assustadas) obteve aquelas ter-
lheres especialistas em contrabando de açúcar brigavam nas ruas. ras enlodaçadas das mãos trêmulas de uma viúva. Aterrou-as o me-
Começaram a roubar galinhas, porcos, a saquear as hortas, a ar- lhor que pôde, criou uma grande praça, dividiu-a em quarteirões
rombar as casas. Roubavam cadeiras e toalhas bordadas. Rouba- de lotes separa~os por ruas. Vendeu os lotes, por uma bagatela,
vam sapatos e bicicletas novas. Os bekês dos arredores perderam a quem desejasse. Meu Esternome não pôde comprar nenhum. O
colheitas vindouras apesar dos agentes da vigilância agrícola. Ca- lote onde estava o barraco da Adrienne ficava em pleno traçado
da manhã revelava o cortejo de pessoas maltratadas durante o maná de uma rua. Tiveram de demoli-lo. Fomos obrigados a ir nos abri-
da noite sem luzes. Meu Esternome põs uma porta no barraco, gar no barraco de madeira de caixote de um chamado Lonyon.
tapou definitivamente a janela, e vigiou as sombras com seu fa- Vigarista profissional, recebera vários lotes graças a cinco ou seis
cão. Ao redor, o Bairro transformava-se em cachorro e atacava a
concubinas. Alugou-os por baixo do pano para os recém-chegados
Cidade. Meu Esternome acreditava até ouvi-lo latir com rancor.
ou para os que não puderam se incrustar como convinha. Meu
Porcaria de guerra ... !, gemia sobre meu sono e o de Idoménée,
Esternome pagava-lhe um aluguel com as rendas de suas roças se-
sua querida. cretas. Minha Idoménée também completava nossos recursos. En-
contrara um tal de Kestania, um pescador amigo seu. Ele lhe for-
Fui lá, Marie-Sophie, desde o apelo do primeiro dia, os
militares não me quiseram. Um sargento cachorro me ex- necia cuias de alevins ou ovos de tartaruga. Um cule-açougueiro
pulsou. Acho que ouvi-o praguejar a respeito de uma his- das vizinhanças do canal reservava-lhe testículos de boi, peles san-
tória de negro que não devia portar fuzil ou exibir sua gradas, sangue espesso. Ela fritava tudo aquilo e apoiava-se em meu

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ombro para ir vender ao longo da Levée, entre uma multidão de gua. Éramos fascinados por sua arte. Olhávamos para ele como
ambulantes que vendiam frituras e bolos de todo tipo. para um perito-contador divino das ciências mais extremas. Dele
Eu crescia entre aquelas frituras que embalsamavam a Levée. peguei esse gosto pela língua francesa, esse cuidado em falá-la do
Tão logo dei meus primeiros passos, tornei-me os olhos de mi- jeito imperial que cultivei em meus tempos solitários. Por enquan-
nha Idoménée. Guiava-a pela Cidade para as necessidades de seu to, negra cabra da lama, eu julgava aquela maravilha: um negro
trabalho. Ela me honrava com uma confiança total que, no início, retinto transfigurado em mulato, transcendido até o branco pelo
eu não merecia. Meus olhos de criança borboleteavam por todo inacreditável poder da bela língua da França. Diante dele, meu Es-
lado, cobiçavam as patas de siri arrumadas no meio-fio, vigiavam ternome emocionado jamais se atreveu a falar: sentia-se um ca-
os automóveis, contemplavam outras crianças. Sua mão em meu chorro abandonado.
ombro, leve, contraía-se ligeiramente quando seu passo afundava No sábado, eu acompanhava meu Esternome que ia vender
numa poça que me passara despercebida, tremia em cima da lama legumes. Instalava-se num canto do mercado, entre as mulheres,
escorregadia, ou quando ela precisava pular por cima de uma sar- sem a menor vergonha. Enquanto esperava os fregueses, falava-
jeta que eu realmente não notara. Assim, certa vez ela levou um me, a mim, sua filha. Contava as bobagens de sua vida, à maneira
tombo. Sua cesta espalhou-se por cima da lama da Levée, mas ela de um ensinamento. Levei tempo para me interessar. Para mim,
se levantou sem uma palavra de reprovação, apenas preocupada eram palavras de velho, disparates que lhe afogavam o espírito e
em saber se eu não tinha nada. Então, de repente e para sempre, que não informavam meu apetite de viver. Só o escutei realmente
meus olhos amadureceram e tornaram-se seus olhos. depois da morte de minha Idoménée. Ó, mamãe ... perdê-la re-
Idoménée afastava-me das frituras. Temia que a panela de óleo velou-me o quanto somos fechados com quem amamos, como so-
quente me arrancasse a pele das pernas. Certos dias, era eu, porém, mos inaptos para nos fartarmos deles, de sua presença, de suas
que tinha de cuidar daquilo, fritar e vender para quem quisesse vozes, de sua memória, como nunca os beijamos o bastante ... nun-
comprar, pois seus olhos não tinham constância. Viviam momen- ca o bastante. Quando a perdi, quase desconhecida para mim,
tos de claridade e dias escuros. Ela morria de medo de tropeçar agarrei-me à pobre carne enrugada de meu velho Esternome ... ó,
quando se aproximava a escuridão. Só hoje é que percebo o dra- papai. .. tudo o que ele tinha para me oferecer era a última pirueta
ma. Eu era uma impertinente risonha e não me preocupava com de sua memória em torno de um desejo de conquistar a Cidade.
o entorpecimento de meus pobres pais. Tinham de me chamar Ó, Oiseau de Cham, abuse daqueles a quem você ama ...
cinco vezes, vigiar-me, ameaçar-me para que meu vigor compen- Idoménée Eugénie Lapidaille, penso em você todo dia pri-
sasse as falhas da idade avançada de ambos. A venda de frituras meiro do ano, esse dia branco, dia de esperança, esse dia de re-
ocupava minhas tardes. Com a desculpa de provar, eu comia muito nascimento que você vestia de branco, toalhas brancas, roupas
mais do que vendia. De manhã, antes da escola onde eu não apren- brancas. Você esfregava tudo com rum, cinzas e limão. Enchia a
dia nada, carregava água para encher uma cacimba que nos servia casa de flores de hibisco, como para recuperar o entusiasmo se-
de fonte. O mestre-escola era uma espécie de negro esforçado. guro daquela seiva. Encontrava os trocados para um saquinho de
Esse ex-sapateiro revelara a si mesmo, sozinho, a leitura, apren- balas pralinê. Revelava a nossas admirações a brancura de um nu-
dera a escrever, e galgara até a Escola Normal, às custas de uma gá. Um nugá e o mundo é pródigo, a vida canta, a felicidade pas-
força de existir. Usava chapéu, gravata, paletó, cebolão, lenços, sa. Um nugá ... e os seus olhos de ternura, Idoménée, oferecidos
andava teso, girava o corpo quando queria olhar para trás. Falar bem mais para nos servir do que para as suas próprias necessida-
francês era uma suculenta atividade que ele praticava se movimen- des. Os banhos de descarrego, os banhos de folhas, os banhos de
tando. Parecia um pastor guiando incessantemente um rebanho sorte. Idoménée, penso em você, na missa das cinco, e rezo para
de vocábulos. Nenhuma palavra podia se afastar de sua cabeça, a Providência.
preocupava-se em dizê-las incessantemente, contá-las, recapitulá- Idoménée, penso em você nos dias de Páscoa à beira do rio,
las. Querer dizer tudo ao mesmo tempo fazia-o gaguejar. Cada pa- para onde íamos com o pessoal de nosso Bairro. Pegávamos nos-
lavra vibrava inesgotável em sua maneira florida de articular a lín- sos siris nos buracos dos arredores. Você os cozinhava com arroz

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vermelho, preparando assim o matutu. Comíamos em cima das tudo, várias vezes, em crioulo, em francês, em silêncios. Às ve-
pedras de rio. Meu Esternome teimava em pescar camarão de água zes, achava forças para rir, outras vezes tinha a coragem de cho-
doce, metendo as mãos sob a promessa das pedras. E você, Ido- rar. Via-o ir coxeando para suas pequenas roças escondidas nos
ménée, mexendo-se pouco a fim de esconjurar as quedas, quase desvãos dos morros, e de onde ele trazia um legume, duas preo-
ausente daquela alegria, espiando (quem se preocupava com is- cupações. À noite, ouvia-o praguejar em pleno sono contra os fei-
so?) as traições dos seus olhos. tores, todos os bekês, todas as suas desgraças e os seus desejos
Idoménée, lembro-me de você lutando com meus cabelos nas extintos, todas as portas impossíveis de abrir, todas as suas menti-
tardes dos domingos, tratando de arrumar aquela massa impossí- ras, todas as suas oportunidades perdidas, e aquela vida que era
vel. Você falava pouco (mas Esternome falava em seu lugar), si- obrigado a viver, quando, na verdade, sua alma aspirava a fugir.
lenciosa, à espreita das noites que zombavam de você. Foi num Acordava ausente, recusava-se a encher os olhos desertos, até que
dia assim que a desgraça aconteceu. Galo maldito!... A noite caía eu lhe implorasse, Papai, ei, papai, eu ... Aaahn, é você, Marie-
sobre os papelotes que você enrolava em meu cabelo. Meu Ester- Sopbie? É você mesma que está af... ?.. .
nome pitava o cachimbo e contava para si mesmo as histórias das Eu retomara as frituras de Idoménée. Esquecendo-me da es-
masmorras. Houve o võo desencantado de uma asa. Depois, o ga- cola, passava as horas do dia a preparar meus ingredientes, e as
lo da Adrienne Carmélite Lapidaille, cuja existência descobri na- da noite, a vendê-los. Já não vendia grande coisa. Um bocado de
quele dia, estraçalhou-se aos pés de minha Idoménée. Ele tinha ambulantes espertas oficiavam contra mim. Além disso, as antigas
mudado, dirá meu Esternome. Suas penas estavam chamuscadas. .1 freguesas de minha Idoménée tremiam de medo ao descobrir que
Sua crista, agora transparente, parecia uma gelatina. O galo estrebu- 1
meus bolinhos tinham o mesmo gosto, que meu sangue frito era
chou por muito tempo, como uma gata envenenada, depois mor- igualzinho. Imaginando que uma morta lhes preparava a comida,
reu, com um suspiro de mulher que meu Esternome conjurou com 1 afastaram-se de meus cestos. Eu tinha de levar de volta minhas
uma reza. As pessoas do Bairro ajudaram a queimar o cadáver. Mo- 1 frituras. Meu Esternome jogava-as em silêncio para seu porquinho
lharam as cinzas com água benta e éter. Satisfeito, meu Esterno- amarrado atrás do barraco. Ficou difícil pagar o tal de Lonyon.
me deitou-se muito bem-disposto, sem sequer perceber que nos- Quando este, vestido de branco, passava para recolher os aluguéis
sa Idoménée não dissera uma palavra, que suspirara junto com o
galo, que em seus olhos azulados por um terror silencioso, em
meio a um sorriso perdido, ela balbuciava (ai, ai, ai, ai, está che-
gando a hora, como diz a canção) como que um adeus ao mundo.
Meu Esternome encontrou-a morta no dia seguinte, a seu la-
do. O desespero não o tragou, nem de longe, como seria de espe-
! em cada barraco, meu Esternome e eu sumíamos atrás de Pont-
des-Chaines. Lonyon perdia a paciência e depois ia embora rabu-
gento, após deixar na casa de nossos vizinhos mais chegados uma
ameaça em forma de recado. Certa vez, apareceu em plena noite
e bateu à porta, mas ficamos escondidos, calados, imóveis, tre-
mendo diante de tantos palavrões por causa daqueles dois tostões
rar. Deitou-se de novo, ao lado dela, fechou-lhe os olhos, e co- agora impossíveis sequer de prometer.
meçou a fazer um embrulho de sua alma. No momento em que Voltou antes do amanhecer com dois Majores do Bairro Sainte-
um frio lhe subiu pelas canelas, lembrou-se de mim. Eu tinha gri' Thérese. Arrebentaram a porta, arrebentaram a janela, e começa-
tado? Eu tinha gemido durante o sono? O fato é que meu Ester- ram a jogar nossos trastes na lama. Meu velho Esternome pulou-
nome voltou ao mundo a fim de cuidar de sua filha - só para 1 lhes em cima. Esmagou o nariz do primeiro com o pilão de sua
isso, ausente para todo o resto. cabeça. Com o facão, tentou cortar o segundo. Os Majores come-
Idoménée foi enterrada no cemitério Trabaut. O caixão foi çaram a sová-lo como se sova um lambi. Pulei em cima do chama-
oferecido por uma confraria (a Humanidade Solidária) para a qual do Lonyon a fim de lhe furar os olhos. Depois, tentei morder um
meu Esternome pôde contribuir. Em seguida, sentiu-se intimado de seus colhões. Também levei uma surra. Naquele dia, teríamos
a reduzir meu sofrimento: um algo mais de afeto, um algo mais morrido se o Major de nosso bairro não tivesse aparecido. Era uma
de ternura, um algo mais de palavras também, que habitaram meu espécie de cule solitário. Vivia num barraco de madeira de caixo-
ser subitamente ávido de ser impregnado por meu pai. Contou-me te que teve dinheiro para comprar. Não freqüentava os outros cules

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da Cidade reunidos no Bairro Le Béro. Quando chegou entre nós,
pessoa, com fé em jesus e em Nagurmira ... Dê-lhes tempo para
uns imprudentes quiseram intimidá-lo Não queremos cules por
pagar ou tempo para ir embora ... Lonyon não pestanejou: Tem-
aqui ... Desprezando os galões que figuravam em seu braço, avan-
po para pagar .. ., resmungou. Seus dois Majores aprovaram na
çaram para dar-lhe uns sopapos. Quando levantaram os punhos,
mesma hora, antes de baterem em retirada sem expor as costas
o cule solitário tirou do bolso uma espécie de clarão branco. Gol-
a essas desgraças súbitas que estão à espreita dos homens daqui.
peou os sujeitos com tanta rapidez, tanta raiva, tanta, mas tanta
Meu Esternome jamais se refez desses ferimentos. Quis sele-
maldade, prazer, constância, que todo mundo pôs as mãos na ca-
beça gritando Meu bom jesus, perdoai nossos pecados. Os sujei- vantar, mas seus ossos o traíram. Instalei-o na cama a fim de esfregá-
tos desapareceram como patos sem cabeça. Deixaram ao redor lo com arnica. Mulheres do bairro vieram me ajudar a lavar nos-
uma poça de sangue que o cule vencedor proibiu-nos de tocar, sas coisas. O cule voltara para casa sem nem se virar. Quando che-
delimitando assim seu território nesta terra. O lamaçal tragou aque- gou a noite, meu Esternome e eu vimo-nos num barraco alheio.
le horror durante um belo temporal. Que nossos pertences tivessem voado na lama, e depois tivessem
Os dois Majores do Lonyon que estavam nos matando viram- sido reinstalados fora do lugar, alterava a memória do barraco.
no, pois, chegar. Só de vê-lo se acalmaram. Os Majores se conhe- Além disso, nossos espíritos estavam confusos, pois precisávamos
ciam. Cada um tinha um espaço inviolável. Um só avançava no ir embora.
terreno do outro com o intuito de declarar guerra. E Majores que O que Lonyon veio gentilmente nos lembrar na manhã se-
se enfrentavam iam, sem brincadeira, até as vésperas da morte. guinte, em seguida ao meio-dia, em seguida dois dias depois, em
Um dos Majores do Lonyon balbuciou para o cule solitário, Oi, seguida o tempo todo. Vinha sozinho, evitava o escândalo, trin-
Bico-de-Prata, ' é um pequeno acerto de contas que estamos fa- cava os dentes a fim de nos crivar de insultos. Só via a mim; meu
zendo aqui; jã estamos indo embora. O segundo lhe disse, 6, Esternome, fraturado em si mesmo, permanecia crucificado na
Bico-de-Prata, isso não é briga para você, desculpe mas só esta- cama. Sua memória funcionava sozinha, com uma pressa alucinan-
mos dando uma passadinha, não precfsamos de ajuda. Lonyon te. Ele me arrimava à sua cabeceira para cochichar sua vida. Apa-
desenvolvera uma filosofia do aluguel a pagar, da honra e do res- vorada ao sentir que ele estava indo embora, eu ouvia suas palavras
peito; era preciso, dizia, ensinar as pessoas a viver, caso contrá- ressoarem como sinos dobrando. Nem cheguei a ficar surpresa ao
rio, seria o fim dos feijões na panela das safadezas. Ah, os olhos reencontrá-las intactas quando, muito tempo depois, invadiu-me
do cule.. .! ainda me lembro. Duas bilhas gigantescas, mais pretas a loucura de escrevê-las em cadernos. Ouço. Ouço. Naquele bar-
do que um fundo de caldeira. E que ele não pusera em cima de raco hostil, sua voz pairava como o incenso de uma bênção. As
ninguém. Avançava pouco a pouco, uma das mãos abanando, a vizinhas que nos traziam leite e caldos fortificantes também fica-
outra grudada no bolso traseiro. Os Majores de Sainte-Thérese vam a ouvir. A palavra de meu Esternome inscrevia-nos num tem-
deixaram-nos na lama e foram recuando, sem parar. O cule agar- po que nenhuma de nós poderia suspeitar. Vibrava por cima de
rou meu Esternome, agarrou-me também, convidando-nos a vol- seu corpo zumbificado, como uma memória viva. Eu não perce-
tar para o barraco. O que fizemos, arrastando-nos. Depois, colo- bia o alcance daquela palavra, mas pressentia sua importância: mui-
cou nossos trastes lá dentro, um por um. Finalmente, aproxi- to depois de meu Esternome, durante minha batalha para fundar
mando-se de Lonyon, declarou em tom de volúpia: Desculpa, seu Texaco, ela me permitiria produzir para mim mesma a energia de
Lonyon, de me meter nos seus negócios, mas misericórdia é uma uma lenda.
coisa, aluguel é outra. Só os cachorros estraçalham o que já está Depois, a fala tornou-se incoerente. Jamais contara sua histó-
estraçalhado. Mas o senhor não é um cachorro, seu Lonyon. Ca- ria de maneira linear. Avançava por trilhas tortuosas, como uma
chorro só presta se estiver acorrentado. O senhor é uma boa espécie de pau-de-jangada que flutuava em cima das correntes de
lembranças. A incoerência vinha mais do fato de que suas pala-
(*) Porque ele mandara esculpir em praca benta todos os dentes da frente. vras já nada significavam. Soçobravam errantes em meio a uma
Assim, a menor mordida que dava neutralizava o eventual santo forte do agressor.
memória que se erodia lentamente e que repisava, a fim de não de-
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saparecer, inúteis pontos de referência. Falava da mãe. Falava de Sainville. Evidentemente, também espero que a senhora
uma armação de telhado. Falava de Ninon. Dos olhos de minha se recuse para sempre; é preciso lutar contra a escrita:
!doménée sob lágrimas de luzes. Citava nomes. Citava lugares. Ria ela transforma em indecência o indizível da palavra ...
sozinho. Logo começou a ignorar onde se achava seu corpo. Às 647! carta do Marcador de Palavras para a Informante.
vezes, pensava estar no ar fresco dos morros. Outra hora, uma Pasta n~ xxx1. 1988. Biblioteca Schoelcher.
música levava-o a estremecer. Cobria a cabeça, esmagava os ouvi-
dos, alucinado ao se ver atirado no tempo das serenatas. A morte de meu Esternome não desarmou, nem de longe,
Um dia, chamou-me por um nome desconhecido. Depois, ou- aquele canalha do Lonyon. Ninguém viu sua sombra atrás do cai-
tro dia, perguntou-me quem, afinal, era eu. xão. No dia seguinte, veio comunicar que não tinha comigo ne-·
Viu galos voando pela casa. Pedia-me para tirar aquelas peles nhuma espécie de contrato, mas com o falecido Esternome, o qual,
de pessoas agarradas ao teto. Comecei a envelhecer um pouco, portanto, levara o dito contrato para a cova. Se nos próximos dias
quer dizer: a me submeter à idéia de sua niorte. Era-me insuportá- eu não desse no pé, ele iria de bom grado chamar os guardas. Pre-
vel vê-lo definhar sem muita elegância. Meu Esternome abria lu- zando minha solidão, nada respondi. O último punhado de terra
gar para uma sombra, desagregada em seus cheiros, seus mijos, em cima do caixão de meu papai cavara um abismo às minhas cos-
suas tripas que se esvaziavam sob seu corpo. As unhas viraram gar- tas. Vivendo em Fort-de-France como ele vivera, nos tempos de
ras, o olhar ficou ligeiramente perverso, a voz perdeu as caracte- antigamente, em Saint-Pierre, eu tinha, ao final de meus fracas-
rísticas e assumiu inflexões roucas. Ele chorava como uma crian- sos, e sem outra opção possível, de tentar, por minha vez, pene-
ça, berrava angústias milenares. Vez que outra, eu me assustava trar na Cidade.
ao ouvir uma voz juvenil. Outros dias, reencontrando um pouco
de lucidez, ele entendia o que lhe acontecia, entristecia-se por me
infligir tanto trabalho. Eu lhe dizia Não é nada, papai, não é na- os MÚSICOS DE OLHOS COMPRIDOS. Minha primeira preocupa-
da ... ; mas essa lucidez fugaz queimava como ferro quente. E dela ção foi vingar meu Esternome. Em meu espírito (dominado pela
ele fugia entrando no sono bárbaro que precede a morte, sono irresponsabilidade da juventude), a desgraça do mundo nascia de
de boca aberta, de lábios espumosos, sono de corpo alquebrado, Lonyon. Ele e os dois Majores carregavam nas costas a morte de
sono de olhos arregalados e de tremedeiras abruptas - como se meu papai. No exato momento em que encontrei meu Esterno-
a vida se agarrasse, sem muito acreditar naquilo que lhe escapava. me sem vida, fui correndo ver Kouli-Bico-de-Prata, pensando em
Eu aceitara a idéia, mas encontrá-lo morto ... exigir vingança. Quase jogando seu barraco abaixo, gritei como
um porco em dia de Natal, arranquei meus pulmões. O Bairro cer-
DO MARCADOR DE PALAVRAS cou minha desgraça. Espiavam minha dor como uma colheita ruim.
PARA A INFORMANTE Algumas pessoas tentaram me levar para mais longe. Soltei-me, a
fim de implorar mais uma vez diante da porta desumana. Kouli-
[... ] Como a senhora me pediu, não redigi a parte em que Bico-de-Prata estava lá dentro, mas não·se mexeu. Arrastaram-me
me falava da morte de seu pai, Esternome Laborieux. Ape- para o barraco, onde as pessoas se dedicaram ao corpo de meu
nas conservei os seus desabafos sobre a velhice dele -
querid,o Esternome: dar-lhe banho, vesti-lo, ungi-lo com as pro-
a lenta decomposição. Isso me parecia útil para salientar
teções que melhor acompanham essa viagem não revelada.
a que ponto o fato de vê-lo desaparecer só lhe deixava
Durante esse período, o ódio serviu-me de oxigênio. Lonyon
de seu pai as palavras de sua memória. Dito isso, se algum
e seus Majores viviam na minha cabeça, em meio a uma aura de
dia a senhora mudar de idéia, gostaria de poder redigir
sangue. Revi Kouli-Bico-de-Prata no enterro de meu Esternome,
essa parte; avaliar com palavras aquele momento ímpar
que a senhora criou ao me falar de si; mocinha, desco- vestido de branco, inacessível. Não o olhei; tampouco me olhou.
brindo a morte de seu pai naquele barraco das Terres- Sem a menor dúvida, ele temia ter de assumir o fardo de minha
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pena graças a uma simples troca de olhares. Os dias passaram em aí, deitou-se para ouvir rádio. E aí, levantou-se para contemplar
meio à supressão do mundo que a morte das pessoas amadas pro- a lua. E aí, começou a andar pelas ruas da Cidade, cada vez mais
voca. Uma negação do tempo. Ah, esse ódio .. .! Um dia, bateram depressa, a espiar por cima do ombro uma presença invisível. E
à porta. Descobri diante do barraco uma cesta embrulhada num aí, a perseguir um troço que tinha se soltado de sua alma. En-
pano de saco. Imaginando algum despacho, peguei o frasco de contraram-no na praça Desclieux numa posição muito especial,
éter que meu Esternome escondia debaixo do colchão, depois provavelmente nada humana, tanto assim que chamaram o padre
mudei de idéia: eu compreendera, de um modo bem estranho, antes mesmo do médico. Ele cheirava, disseram-me, a medusa ao
que se tratava da vingança desejada. De fato, não me surpreendi sol, ou a peixe salgado, ou a aroma tóxico de escamas de tartaru-
ao encontrar aquelas orelhas de pessoas diferentes, alvas, dentro gas expostas ao sol por todo o mar do Caribe. ó, Bico-de-Prata,
de um estojo de coágulos. Os dois Majores iriam se lembrar de tenho memória da sua dor. Sobre sua sepultura, depositei todo
meu querido Esternome toda vez que seus chapéus lhes cobris- ano, sem esperar o dia de Finados, uns obrigada em latim grava-
sem os olhos. dos na pedra, antúrios, edelvaisses imortais, três velas invencíveis.
Saí aos pulos até o barraco de Kouli-Bico-de-Prata. Ele entrea- Minha homenagem para esconjurar o exílio.
briu a porta, escutou meus Brigada, moço, brigada, moço. Atra- A orelha cortada de seus Majores trouxe-me um Lonyon muito
vés de minhas lágrimas eu o via de perto. Seus olhos estranhos meloso. Apareceu numa manhã bem cedinho, apressado por cau-
já não tinham dureza; só uma tristeza infinita que parecia familiar. sa do novo dever: ajudar-me a empunhar um destino na Cidade.
Ele devia enfrentá-la diariamente, sozinho, nos silêncios de um Sua solução era que eu trabalhasse na casa dele, como doméstica,
barraco que trancava o segredo de seu exílio. até que me achasse um ofício. Eu tinha vontade de matar esse sa-
Acompanhei de longe o destino de Kouli-Bico-de-Prata. Di- fado. Olhava sua figura redonda, seus olhos claros herdados de
zem que conseguiu deixar o Bairro para se estabelecer em Trénelle um bucaneiro normando, seus dedos cheios de anéis, sentia o chei-
quando a prefeitura empreendeu o loteamento. Dizem que traba- ro de seu perfume, sua brilhantina, o eflúvio de seu tabaco, essa
lhou na administração municipal num negócio de esgoto e depois opulência vinda daquelas espeluncas que ele alugava por todo la-
se lançou numa história de briga de galo, lucrativa pra chuchu. do. Quanto mais o olhava, mais tinha vontade de assassiná-lo. Foi
A partir daí, passou a exibir sapatos de verniz, jóias, unhas lim- a única razão pela qual aceitei sua oferta. Levar-me era introduzir
pas, um chapéu de palhinha, e inclusive um automóvel, ligado no em sua casa uma espécie de imundície. Não essa mocinha inaca-
domingo ao final de uma barulheira de manivela. Tive notícia de bada que ele espiaria de rabo de olho com seus apetites, mas uma
sua morte. Ela começou no barco que ele pegava no Lamentin, porcaria portadora de mais ódio do que a sua caneta, Óiseau de
ao sair do terreiro de briga de galo, a fim de voltar para Fort-de- Cham, seria capaz de expressar.
France. O barco não tinha sequer aparelhado ... pois bem! um Lonyon morava num sobrado, no lado esquerdo do canal Le-
peixe-voador saiu do canal escuro para brincar a seus pés. Bico- vassor. Vivia como um paxá, sem mulher, com cozinha, três quar-
de-Prata agarrou o peixe exclamando Está aí minha sopa. de pei- tos bem arrumados, lâmpadas dentro de abajures de cobre, tape-
xe. O capitão (senhor Horace Ferjule, um mulato de olho puxado tes, toalhas, um bocado de fantasias que vinham da França. Ins-
cujo pai era da China) disse-lhe com perspicácia Senhor Bico-de- talou-me num quarto, indicou-me a limpeza a fazer, o que eu devia
Prata, faizfavor, esquece essa sopa, isso aí é um peixe que envia- escovar, onde ir toda manhã comprar legumes, encontrar peixe,
ram para o senhor. Modo de avisar que aquilo era um despacho e em que hora exata lhe preparar as refeições. Ele, durante o dia
não lá muito católico. Mas Bico-de-Prata, habitualmente tão pru- inteiro, ia e vinha entre seus inúmeros negócios. Traficava em tu-
dente, ignorou o conselho e ficou com o peixe - como que cons- do. Em negócios de tonéis de carne-seca desfiada distribuída a nu-
cientemente submetido à fatalidade. merosos armazéns. Na venda de mabi. Em negócios de tecidos.
Mandou cozinhar o peixe num rescaldo sem sal. Comeu-o, Numas histórias de jóias e, sobretudo, num comércio incessante
dizem, em plena noite, sozinho, depois de uns golinhos de rum. E de música.

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Era dono, eu soube, de uma espécie de dancing à beira da violão, o quarto, o trompete, o quinto, um violino. Tocavam o
Rive Droite. Uma orquestra tocava beguines de Saint-Pierre, tan- que ele pedia, beguines velhíssimos, hinos religiosos, mazurcas,
gos argentinos, longas valsas vienenses. Ali, no sábado à noite, um fandangos, sons barrocos, sentimentos, embalas melancólicos.
monte de gente ia curar as feridas, gastar uns cobres, dançar, se Com freqüência, cantarolavam a meia voz uns gemidos de amor
esfregar, respirar a música, saborear umas cervejas vagabundas e que me magnetizavam. Eram muito taciturnos ou muito alegres,
rum. Parece (segundo suas piadas) que até uns grã-finos freqüen- mas sempre do lado da vida. Os instrumentos eram um espelho
tavam o local. Seja como for, jamais os vi entre suas visitas, cuja da alma de cada um, brilhavam como elas que, por sua vez, eram
única religião parecia o contrabando. Eu lhes servia bolinhos de um pedaço da Cidade. Longe dos bairros de caixotes, conheciam
bacalhau ou esplêndidas taiobas, enquanto recitavam preces inau- os ricaços, tocavam nos batizados dos bekês, animavam reuniões
díveis destinadas aos guardas alfandegários. Vinham vê-lo também políticas, soavam o madrigal para as senhoritas em flor, sob as
bandos de cafetinas, submetendo-lhe o caso de uma mocinha do instâncias de poderosos maçons. Essas relações permitiam-lhes
interior desejando ser colocada. Ele convidava os marinheiros de entender melhor a Cidade e compensar as agruras da vida. Eram
passagem, oficiais do porto, e recebia-os com chocolate ou uís- cabeleireiros, ebanistas, relojoeiros, profissões delicadas, exerci-
ques de muitos anos. Vinham também belas crioulas, encaminha- das como quem sustenta uma nota quando a orquestra se recolhe.
das para seu quarto, que dedicavam a noite a suspirar desbragada- Tinham dedos compridos e olhos compridos. Do fundo de
mente e a beber vinho do porto. meu ódio por aquele cachorro do Lonyon, suas luzes capturavam
Mas aqueles cuja presença eu apreciava eram os músicos. Mui- meus olhares. Não custou para que se pusessem a me observar:
tos músicos; desses que ele contratava para seu cassino. Lonyon eu começava a pôr peito, minhas pestanas tremiam de inocência,
era um amante da música. Tratava-se provavelmente de um fer- minhas carnes bem nutridas haviam encontrado formas. Toma-
vor secreto, pois certa noite de insônia (eu pensava numa manei- vam-me pela filha de Lonyon, ou por alguém da família, por isso
ra de envenenar seu sangue e depois fugir para os morros), escu- não se atreviam a me dirigir a palavra. Alguns tentavam um grace-
tei em seu quarto, executada à perfeição, uma melodia ao violão. jo. Mas Lonyon, com um olhar, impunha-lhes um freio.
Na primeira vez, pensei estar ouvindo um prodígio, de tal forma É bom dizer que ele me tratava como sua empregada. Eu saía
a música era pura, triste, tanto, mas tanto, que me parecia oposta de casa para procurar legumes no mercado, buscar uma lata de
a Lonyon, esse filho da puta mentiroso, ladrão, realmente um ca- carvão no outro extremo do canal, esperar que o seu pescador
nalha. Como ele era capaz de extrair tal harmonia de sua podri- me entregasse o peixe. No resto do tempo, era proibida de sair.
dão? As pessoas são estranhas. Da mais malvada, vi surgirem te- Ele me proibia abrir a porta para qualquer pessoa em sua ausên-
souros celestiais. Da mais maravilhosa, vi surgirem respingos de cia. Quantos músicos libidinosos vieram bater, às suas costas, com
lama. A música bambaleava suavemente, depois se consumia sem o pretexto de terem se esquecido de alguma coisa que eles mes-
realmente parar, como que se evaporando, e o encanto se que- mos ignoravam ... Mas eu jamais abria. Ficavam do outro lado a
brava: o Lonyon mágico apagava-se em beneficio do animal que gorjear ou a encher os instrumentos de melodias sensuais, de cin-
eu queria destruir. O violão, jamais vi. Devia escondê-lo no armá- zeladuras sonoras pulsadas a contratempo com total despojamen-
rio de mogno que atravancava seu quarto. Um armário imponen- to, camadas de sons que se mesclavam diante de um alerta e se
te, cheirando a uma fragrância prisioneira. Lonyon ali escondia quebravam diante de silêncios. Eu ficava num estado! ... Sem a
os mistérios de sua vida, seu dinheiro, sua papelada, as somas de porta entre nós, teriam me colhido como uma flor sem espinhos,
seus roubos. Limpando o armário, eu o sentia por inteiro lá den- arrancada do pé.
tro; muitas vezes socava-o com meus pulsos, em meio a inúteis As mudanças de meu corpo interessavam Lonyon. Pedia-me
acessos de raiva (mas que me acalmavam). para comer com ele. Às vezes, depois de comer, sabendo que eu
Os músicos de Lonyon vinham falar de dinheiro. Lonyon lhes era sensível ao assunto, falava-me de música. Eu, olhos baixos, ado-
falava de música. Ao convidá-los para jantar, pedia que trouxes- tava uma atitude de mocinha-de-colégio-de-freira, que parecia
sem os instrumentos, um, a clarineta, outro, o banjo, o terceiro, o diverti-lo, a única que me permitia agüentar sua presença sem vo-

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mitar de ódio. Diariamente eu cuspia em sua comida. Também como que amargo. Sob a magia irradiava uma ferida. Fiquei cho-
urinei. Esmigalhei moscas, baratas, centopéias. Escondi espinhas rando até pleno dia.
de peixe em carnes que ele imaginava sem perigo. Emporcalhei No dia seguinte, inocente como o orvalho, espantou-se que
seus molhos com a sujeira das persianas, com cal, com pêlos ama- eu ficasse no quarto. Como é, minha filha, hoje não vai trabalhar,
relos de cachorro, com cocô de camundongo. Toda noite, volta- não? ... Gritei-lhe que queria ir embora, e que iria me queixar com
va para meu quarto radiante por ele ter lambido os beiços com Bico-de-Prata se ele me contrariasse. Está certo, respondeu, mas
aquelas imundícies. para que canto você quer ir? Eu disse: Sei lá, mas quero ir embo-
Depois, essa vingança tornou-se ridícula. Então, sozinha na ra ... Três dias se passaram assim. Eu me sentia morrer, pois não
casa, eu me exercitava em estrangulá-lo com uma facada. Mas não bebia e nem comia, mas nada poderia mudar minha atitude. Ele
tive coragem. E se por acaso o estrangulava em alguma noite de deve ter entendido, pois encontrou a solução: Venha, consegui
pesadelo, a música do violão me desarmava. Lonyon era músico: um trabalho para você com uma tal de madame Latisse que faz
como matar a música? Assim, poderia ter me agarrado a essa ar- chapéus. Vai lhe ensinar o ofício e você vai ficar e dormir na casa
madilha do ódio impotente, àquela vida fora do mundo enquanto dela ... Saí do quarto sem refletir, disposta a segui-lo, acreditando
Fort-de-France crescia à minha volta. Mas as coisas se aceleraram. em sua palavra, levada por esse movimento novo de meu destino
Tive de fugir de Lonyon. Ele me seguia dentro de casa, buscava a que ele (respeitoso, cheio de atenções enquanto me acompanha-
minha presença, pegava em minha mão. Quis que eu o beijasse va) pareceu se submeter.
quando saía, como sua filhinha, que o beijasse quando voltava,
que o beijasse quando ia se deitar, que o beijasse quando acorda-
va. Seu desejo crescente envolvia-me e apertava-me. Perturbava- PESSOAS DA CIDADE. Madame Latisse era uma mulata nascida
me e, ao mesmo tempo, provocava acerbos acessos de ódio que em Riviere-Pilote. Vestia-se com tecidos de seda, popelina e cetim.
me deixavam furiosa. O marido era entalhador, creio; nunca me foi dado conhecê-lo;
Numa noite o violão se fez ouvir menos triste. Não alegre, muito tempo antes de minha chegada, fugira com uma polonesa
mas vibrando c~m nova apetência. Depois, parou. Ouvi a cama sedutora que dançava nua nos navios. Minha nova patroa tinha
de Lonyon ranger. Ouvi-o andar. Pensei que ia morrer quando uma loja chamada Mode coquette et confection. Ali podia-se en-
a porta de meu quarto se abriu, quando sua sombra maldita veio contrar uma renda de linho, fitas, véus, botões prateados e, so-
em minha direção. Ele estava nuzinho. Tremendo. Cobriu-me com
bretudo, chapéus. Além de madame Latisse, três pessoas eram do-
seu corpo (quente como uma folha de zinco ao sol), imobilizou
nas da loja. Primeiro, uma certa Sarah, cafre de cabelos brancos,
minhas mãos. Senti contra minha barriga as pulsações de seu mem-
que durante o dia inteiro jamais se levantava da cafua onde costu-
bro. O balanço de seus quadris. O bafo de vinho rançoso, o chei-
rava chapéus de feltro. Depois, uma certa Etienne, que desconhe-
ro de seu suor. Que drogai ... eu não me imaginava capaz de tanta
cia o casamento, e, com a velhice chegando, ainda mantinha uma
força, de conseguir atirá-lo para o teto, dar-lhe uma cadeirada quan-
beleza de moça que ninguém se atrevia a situar entre as raças da
do ele caía, pisar em seus colhões e expulsá-lo para o corredor
terra. Distração favorita das freguesas: descobrir sua origem. Mu-
como um pacote de ervas secas.
Passei a noite ouvindo-o me amaldiçoar através da fechadu- lata de pele leitosa? Cabra de três sangues? Caraíba-cule-bekéia? •
ra.Ouvi-o chorar, depois rir, propor-me, muito suave, ser sua mu-
Dona Etienne cultivava esse mistério graças a pistas desconcertan-
lherzinha. Depois, escutei sua insânia. Seu facão começou a que- tes: a mãe, que segundo suas palavras não era desta terra, evo-
brar a porta; teria me matado, sem a menor dúvida. E então eu
(*)A palavra errante da Informante atardou-se longamente nesse mistério de
disse a única frase capaz de neutralizá-lo em sua fúria: Bico-de-
dona Etienne, voltou ao assunto seis vezes, a ponto de, durante muito tempo, eu
Prata vai acertar contas com você se você me encostar ... Ele sos- pensar que ela dava a isso uma importância especial. Em seguida, retifiquei, supri-
segou na hora. Não mais o ouvi, durante longos minutos, depois mindo cento e vinte e seis páginas (Biblioteca Schoelcher - Notas A, XXI, 22, pasta
o violão estremeceu no quarto. Dessa vez, o instrumento estava 70). As palavras são estranhas ...

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cara durante conversas noturnas, uma infância irlandesa perto de so (mágico para mim) da loja. Ah, aquele mundo de veludos, de
alta; escarpas, em solares escuros; o pai não era da África, embora palhas, de pelúcias, aquela magia de adornos de penas, e de cre-
fosse preto como piche, e a língua em que se despediu delas não pes de renda, aquelas plumas, aqueles pompons, ah, aquelas fi-
tinha vogais. À noite, dona Etienne ia embora sozinha, costas cur- tas debruadas! ... O fascínio não durava muito: eu tinha de voltar
vadas, passos miúdos, andava pela esquina da rua com jeito de para o serviço. Mas como aquele trabalho (novo para mim) me
esperar alguma coisa (ou alguém). Depois, sempre decepcionada, oferecia o acesso ã ciência chapeleira, exerci-o durante vários me-
meneava a cabeça antes de esfumar-se nas sombras da Cidade. Por ses, até tomar consciência de que se tratava, na verdade, de uma
último, a senhora Armand, esposa de um senhor Jules Armand, escravidão noturna - e de, então, me cansar.
negro ajudante de farmacêutico no fundo de um laboratório on- A loja era especialista em chapéus para crianças. Tínhamos
de se vendia um pó inglês contra a febre. Vinha buscá-la toda tar- de cortá-los numa tela especial, ajustar as formas num molde de
de às seis horas, emperiquitado dentro de uma espécie de terno- madeira, retificar as costuras, pregar as abas, passar em tudo aqui-
e-colete com abas, que nem um morcego, o mesmo o tempo to- lo uma goma-arábica, lavar, passar, pôr o forro, os buquês de flor-
do, do qual parecia muito orgulhoso. Madame Lati~se reinava so- zinhas, as peninhas de rendas colocadas displicentemente. Os man-
bre essas três empregadas-sócias com autoridade. A primeira vis- dachuvas da Cidade disputavam-se aquelas maravilhas. Durante
ta, essa madame parecia ter coração, e é quase certo que tivesse. anos, vi passar entre minhas mãos esses chapéus de crianças, de-
Mas, ao freqüentá-la nas miudezas da vida, logo se descobria que pois as cartolas furta-cores, depois os chapéus de palha natural ou
aquele coração ignorava os sobressaltos, que seu olhar jamais bri- de palha da Itália que fizeram furor durante muito tempo. Traziam-
lhava e que seus risos (se é que certos ruídos.seus podiam se cha- nos os chapéus (de palhinha, panamá, manilha ou bolívar) para
mar assim) eram breves e sem alma. serem reformados, para uma limpeza anual, uma prega a ser feita
Supostamente eu deveria aprender a costurar. Como mada- na borda de uma fita. À noite, portanto, por volta das dez horas,
me Latisse vivia na parte de cima, em dois andares construídos em cima de um tamborete, ou sentada no chão, eu costurava, ali-
com madeira do Norte, junto com três de suas filhas, os velhos nhavava, debruava, lavava os chapéus, engomava-os, prosseguin-
pais e uma dezena de gatos siameses em proliferação desde que do até o final da noite o que as empregadas não puderam acabar.
um velho marinheiro ali deixara um casal, acabei servindo de em- Dona Etienne, que às vezes dormia ali mesmo por causa de um
pregada. Passava o dia entre louça para lavar, panos de chão mo- serviço urgente, sofria ao me ver desfalecendo em meu trabalho
lhados, espanadores diversos. Tinha de esfregar a calçada diante noturno. Resmungava para madame Latisse, a qual jamais escuta-
da loja, varrer o meio-fio de toda a fachada, ninar as crianças que va, Mas afinal Mas afinal Mas afinal ela ainda é uma criança ...
choravam por seu papai enfeitiçado. Também tinha de cuidar dos Eu dormia no corredor do andar de cima, numa cama de pa-
pais; estes cultivavam uma tremedeira infinita dentro de duas ca- lha dos embrulhos. Mme. Latisse tinha de passar por cima de mim
deiras de balanço que rangiam e estavam colocadas lado a lado, para entrar no quarto e passar mais uma vez por cima de mim quan-
perto de uma janela. Não se afastavam dali, a não ser para rolar do alguma vontade a tirava da cama. Então eu reparava no cheiro
como trouxas de roupa suja em cima de um grande colchão duro. de laranja amarga que exsudava sua solidão íntima desde que o
A velha mãe era delgada e seca. O velho pai, alto, alquebrado, cheio marido partira como cafetão. Mais tarde, mandaram-me dormir no
de ossos, com olhos de animal selvagem sem pálpebras. Todas es- casebre. Duas cortinas de pano emolduravam uma ilusão de quarto
sas tarefas nie ocupavam o"dia inteiro, tanto mais que a madame naquele depósito de mercadorias que alimentavam as prateleiras
acrescentou-lhes, sem o menor constrangimento, as de descascar da chapelaria. Madame Latisse me acordava por volta das quatro
legumes, escamar os peixes, limpar os pés de boi que fornecedo- da manhã, ou certamente mais cedo. Escondendo uma lampari-
res seus lhe entregavam todo sábado. na, escoltava-me em silêncio pelas ruas da Cidade; eu ia levando
Depois do jantar, quando eu tinha tirado a mesa, comido so- um tonel de excrementos equilibrado em cima de meu lenço de
zinha na cozinha, feito bs dois velhos beber leite de vaca antes cabeça. Tinha de esvaziá-lo num grande canal do lado da Levée
de pô-los para dormir, madame Latisse descia comigo até o univer- ou na beira do mar; decretos municipais proibiam essa prática. Os

188 189
policiais (essa tarefa assídua inspirou seus apelidos de "Guardas- fua engordurada, atrás da cozinha, num leito de campanha fervi-
cocô") patrulhavam naquelas horas. Ocasionalmente, éramos obri- lhando de percevejos. À noite, essas pessoas se ajoelhavam dian-
gadas a nos esconder num canto, fugir para uma sombra. Quando te de um crucifixo, como quem vai rezar para a Virgem, mas reza-
estávamos quase sendo agarradas, madame Latisse me abandona- vam outra coisa que agitava a chama de uma vela preocupante ...
va ao diabo, voltando para casa. Então, eu dava no pé, como que então, jesus-maria-josé! ... , dei no pé.
para salvar minha alma, e me punha (arriscando-me a perder o to- Depois, caí na casa de uma senhorita Larville, na rua Perri-
nel) fora do alcance das garras policiais. Ao evocar Saint-Pierre ou non, defronte do pensionato. Uma espécie de solteirona suposta-
sua vida nos morros, meu Esternome jamais me falara de excre- mente inocente. Ao sair para a missa das cinco, fechava as janelas,
mentos a serem jogados fora. Esse problema parecia não existir. baixava as persianas, trancava a porta clac-clac e desligava o reló-
No centro de Fort-de-France, enfrentei-o eternamente. O Bairro gio da luz, de modo que eu não podia acender nenhuma lâmpada
dos Miseráveis era cheio daqueles buracos fedorentos ligados a para fazer meus serviços. Vivia com a mãe (seu nome era dona
cada barracão. Quando os barracões se uniram a ponto de agluti- Louise), que vinha de Grand-Riviere e que devia ficar no escuro
ri nar as respectivas fossas, tivemos de utilizar penicos, isso mesmo, como eu. À noite, a senhorita apagava muito cedo suas lâmpada;
todo tipo de recipiente que devíamos proteger do calor e esvaziar elétricas e proibia que se acendesse a menor lamparina, com a des-
durante uma procissão noturna. Desde seis-sete horas, um fedor culpa de um incêndio. Tendo comido ou não, tendo feito sua toa-
impregnava o ar e estragava o sereno. Em casa, era meu Esterno- lete ou não, às sete da noite você estava no breu! Dona Louise,
me que fazia esse serviço. Entre as madames por onde eu ia circu- a velha mãe, sofria de uma ptose, isso que a gente chama de que-
lar, esse trabalho equivalia a um quebra-cabeça. A Cidade jamais da de bixiga. Essa desgraça causava-lhe entre as pernas uma gran-
previra aquilo. Para conseguir dar conta do recado, todo mundo de bola violeta, sanguinolenta, que ela enrolava com uma faixa.
virava notívago. Ninguém expunha durante o dia uma preocupa- A coisa lhe aconteceu quando ela levantou uma pedra (seguramen-
ção dessa ordem. Conheci uma patroa que incendiava tudo numa te um "despacho") que aparecera encostada à porta de sua casa.
bacia de estanho, com cravos e jatos de vinagre. Outra alimenta- A filha cobria dona Louise de desprezo, serripre uma reflexão a
va com aquilo suntuosos pés de agrião. Uma terceira agitava a coisa fazer, um desaforo a lhe infligir porque ela tocara nisso ou tirara
dentro de água sanitária e depois esvaziava essa química num gar- do lugar aquilo. Mandava-a comer numa mesa à parte, sem honrá-
1

1 rafão de cal. Outras pagavam a um preto velho que pegava "a en- la com uma toalha, Mas que vergonha! Ah, não demorei muito
1 comenda" em troca de três tostões. Logo, Jogo a Cidade soube na casa dessa senhorita ... ! Juntei meus trapos antes do final do mês
reagir. Diante das casas, construíram puxadas destinadas aos to- (sem nem esperar por meus trinta centavos), com a repugnância
néis que recebiam os penicos entupidos até a beira. Era esse tonel nos lábios, meu cesto debaixo do braço e minha raiva como
i cheio que eu devia esvaziar, ao longo de meus empregos, em to- caminho.
1! das as horas da noite, até que uma empresa se responsabilizasse
por esse problema, em troca do pagamento de uma taxa. Primei-
11 ro, a empresa pagou a mulheres para recolher os tonéis, depois os VESTIDOS DA FRANÇA E os QUATRO LIVROS. Depois da senho-
vieram as carrocinhas-tininhas, que a prefeitura acabou por incluir rita, encontrei trabalho na casa do senhor Gros-Joseph. Aí sim,
no orçamento. fui uma rainha. Eu era babá dos três filhos, Serge, Georges e Guy-
111 Depois de madaine Latisse (que deixei num dia de raiva, pois José. Minha patroa, mulher dele, chamava-se Thérésa-Marie-Rose.
:
ela queria que eu me embonecasse com luvas brancas para servir O senhor Gros-Joseph comprara das mãos de um senhor Paul uma
a mesa, como se, sendo mais preta, eu fosse mais suja do que ela), propriedade nas colinas de Balata (chamavam-na "Petite France").
fui ser doméstica de uma senhora Labonne e de um senhor La- Suas irmãs, Adélina e Sophélise, moravam com eles. Eram mulhe-
bonne. Essas pessoas me alimentavam com bananas verdes cozi- res sem homens, maravilhas-maravilhosas de quem gostei de ime-
das na véspera, ou com restos do mesmo gênero, mas jamais com diato.Adotaram-me como uma nova irmã. Acaso do destino: a for-
a comida feita no próprio dia. Faziam-me dormir dentro de uma ca- ma de meu rosto parecia com a dos Gros-Joseph. Quando eu estava

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no automóvel com eles (um Dodge americano inesquecível), to- qual o senhor Gros-Joseph negociava um pagamento nos guichês
mavam-me por uma pessoa da família; o que me conferia uma sá- do Tesouro. As flores (antúrios, dálias, malmequeres ou margari-
pida existência. No início da vida, eram pessoas sem. muito dinhei- das) eram entregues às vendedoras a partir das quatro da manhã,
i
ro. Haviam comprado a muito custo aquela propnedade, com a durante os dias de festa. Bekês e mulatos vinham à propriedade
1,
idéia de plantar árvores frutíferas, flores, verduras, legumes. A as- comprar coroas de enterros, buquês de casamento, uma reserva
1
túcia consistia em escoar tudo isso para as cantinas do exército, de legumes. Na ausência da família, eu fazia a venda, sob o olhar
os entrepostos da marinha, as associações mutualistas qu~ tenta- azedo dos jardineiros, da cozinheira e da arrumadeira (Jeannette
vam se virar no espaço da Cidade, onde a fome rondava assim que Capron e Suzanna Pignol, ainda assim, boas pessoas). Todos des-
os comunistas inflamavam os campos. confiavam de que eu embolsava uns trocados, o que evidentemen-
A família organizava-se entre uma pequena casa na Cidade e te eu fazia sem constrangimento, um tostão aqui, um franco acolá.
a propriedade, onde tinha de cuidar das plantações. Como todos Esses pequenos furtos faziam crescer minhas economias de reser-
precisavam executar alguma tarefa, junto com uns poucos negros va contra as eventualidades de minhas andanças pela Cidade des-
11 de facão, decidiram, de comum acordo, pegar uma babá para as de que minha Idoménée e meu Esternome tinham me deixado.
crianças. Quando cheguei, o senhor Gros-Joseph andav~ m~io aza- O senhor Gros-Joseph tinha negócios com um senhor Albé-
:1 ric. Este armazenava barris de rum obtidos em desconhecidas des-
rado; problemas d!' dinheiro. Minha vinda foi uma bençao. Du-
rante as temporadas na propriedade, eu acompanhava as cnanças tilarias perdidas no fundo dos morros. O bizness dos dois consis-
pelos campos, de olho em suas brincadeiras e xingando os negros tia em vender a bebida a varejo para os bodegueiros da Cidade
da roça que ofegavam ao ver meus quadris. Ora, uma das ~rianças que, por sua vez, revendiam-na em quartos de litro e meio litro:
penetrou num barraco-de-ciclone, igual àqueles c?nstruidos nas naquele tempo, o rum não tinha garrafa. O senhor Gros-Joseph
casas-grandes de antigamente para proteger a famíl!a contra os pe- e o senhor Albéric dividiam-se os lucros e o trabalho. O senhor
rigos dos grandes vendavais. Assi!"c a ~riança ~ntra ah dentro,. as Albéric administrava os armazéns de rum; mantinha no cabresto
outras a seguem, e eu também. E nao e que mmha cabeça me in- os pretos de Sainte-Thérese, que tinham de rolar os barris, entregá-
cita a raspar o chão? E não é que (as crianças se divertiam gritan- los em carroças, vigiar as cubas destinadas a envelhecer, e calcu-
do no eco da pedra) sinto um buraco debaixo de minhas unhas? lar toda sexta-feira os litros dos bodegueiros. Também tinham de
Eu escutara demais essas histórias de tesouros para não avisar embarcar os barris nos grandes navios da França ou de algum país
Thérésa-Marie-Rose, Adélina e Sophélise, e mostrar-lhes o buraco distante. O senhor Gros-Joseph, de seu lado, acompanhado por
aberto. Thérésa-Marie-Rose rogou-me que me calasse para sem- dois chineses (Chine e Chichine-la-Chine), andava pelas estradas
pre e foi procurar o senhor Gros-Joseph. Este, muito esperto,deu numa imensa carroça. Visitava os alambiques, negociava os barris
folga aos jardineiros, à cozinheira, à arrumadeira, passou um ca- e fazia contrabando para os destiladores. Voltava à noite, exaus-
deado nas grades da propriedade, trancou as crianças num quarto to, e tinha então, com a esposa, as irmãs e eu, de cuidar dos livros
e me acompanhou até o buraco. Desenterramos um pequeno baú de contabilidade da propriedade.
mais pesado do que uma catedral. O senhor Gros-Joseph escon- Foi um bom período. Vi de perto os aspirantes a mulato, o
deu-o debaixo da camisa com um espasmo selvagem. Desde en- gosto que tinham pela língua da França, o amor pelo saber. Paga-
tão, seus negócios andaram melhor; na família, senti-me como que vam para os filhos os serviços de um velho professor (Caméléon
em casa, dentro do miolo açucarado do coco, e confiaram-me res- Sainte-Claire), ativo na aposentadoria. A ciência desse grande sá-
ponsabilidades. ,. bio o afetava curiosamente. Duas pessoas brigavam dentro dele:
Precisávamos entregar legumes nos quarteis dos soldados, um negrão vociferante, amante de legumes arrancados das hor-
cujo número e cujas necessidades haviam crescido com os rumo- tas; e uma criatura castrada, de conhecimentos sofisticados e ex-
res de uma guerra que parecia procurar um pat!fe chamado Hi- postos com cuidado às crianças, que não davam a menor pelota
tler. A família e eu fazíamos as entregas num velho automóvel ou para aquilo. Com ele (obrigada, meu bom deus! ... ) aprendi a ler
num triciclo. Os militares davam-nos um recibo carimbado, com o e a escrever. Se o A me custou treze inhames, o B alcançou apenas

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um cará; e do C ao Z bastou-me afagar seu prazer de enfrentar a seus estados de espírito, do coração, do homem, da morte, de tu-
ignorância e a agonia vulcânica de sua libido. Em troca de um bei- do sob todos os aspectos, como me fizera, unicamente com suas
jinho em sua bochecha de libidinoso-atormentado-apesar-da-idade palavras, meu papai Esternome. As horas sossegadas do domingo
(para me excitar, ele sussurrava uma daquelas flores eróticas de eram assim trespassadas de ovações do senhor Gros-]oseph o que
um tal de Baudelaire), Caméléon Sainte-Claire me ofereceu meu estou aprendendo, mas o que estou aprendendo! Ah, o amável
primeiro livro (um manual técnico que devia enfastiá-lo). Eu usa- homem .. ./ Falar francês como Michel de Montaigne inebriava-o
va o livro para encontrar esta ou aquela palavra, soletrá-la, recopiá- definitivamente. Ele (sempre furioso, sempre preciso, sempre mui-
la, mas jamais para lê-lo: só havia considerações sobre a eletrici- to seco em seus negócios) tornava-se, na biblioteca e com seu De
dade, umas histórias de parafusos, de fio, de interruptor, e de volts :IJontaigne, carinhoso, aéreo, irradiando virtude, piedade e graça.
e watts. Seria com o senhor Gros-Joseph em pessoa que eu iria As vezes, com o livro fechado em cima do peito, virava a cabeça
tomar gosto pelos livros-de-ler, sem nenhuma figura, nos quais para um suspiro de êxtase que ocasionalmente ouvi de meu que-
a escrita se torna feiticeira do mundo. rido Esternome: Aaaah, a Fraaaança ... dizia.
Ele possuía uma biblioteca numa das salas da propriedade. Ali, Com ele, abordei o desconhecido dos livros. O que me per-
instalara um divã crioulo, de palhinha, embaixo de uma janela aber- mitiu deixar Ti-Cirique, o haitiano, de queixo caído, quando um
ta para a nespereira do jardim. Os alísios espalhavam uma fragrân- tempão depois nos conhecemos em Texaco. O senhor Gros-
cia de baunilha. Ali, o senhor Gros-Joseph dedicava os domingos Joseph, embasbacado que eu soubesse ler, deixara que eu me apro-
a ler, recostado no divã, silencioso como um morto. Quando oca- ximasse das estantes, tirasse um livro, sentasse-me ao pé de seu
sionalmente as crianças iam incomodá-lo, eu, que ia atrás delas, divã, decifrasse em silêncio. Fingia deixar-me livre escolha (Aqui
ficava intrigada ao descobrir tanta imobilidade naquele homem sopra o universal, minha filha, tudo é bom, tudo é bom ... ). Mas,
de ação. Que tipo de magia vinha daqueles livros, santo deus nos- levantando a cabeça de um capítulo de Montaigne, adivinhava o
so senhor? Minha cartilha de eletricista jamais me havia mumifi- livro que eu tirava da estante e proferia uma sentença: .. .Pff, um
cado desse jeito. Eu me preocupava com isso, e conversava com romance... para o romance, lemos Cervantes, e depois o relemos,
o senhor Gros-Joseph. Ele começou a rir Qud-quá-quá mas é por- e basta... Ah, Diderot, um espírito, sabe lançar a frase ... Oh! es-
que aqui se acha a vida, minha filha, aqui a existência palpita, se pobre Leconte de Lisle, é mais frio do que um gládio ... Molie-
o que o homem tem de mais nobre, de mais elevado, de maior re, meu deus, esse tem consistência, esse tem consi'stênci'a ... Ao
também sopra aqui!. .. Fez-me sentar junto com seus filhos e leu- final de certo tempo, não o escutava mais. A liturgia dominical
nos esse poema que guardei na memória Quando com seus filhos do livro começou a me absorver. Eu não lia tudo, e vários domin-
vestidos de peles de animais Caim fugiu da frente de Jeová, no gos podiam se passar sem que eu pudesse ter acesso à biblioteca,
momento em que a noite caía o homem sombrio chegou ... Hugo, mas quando as circunstâncias se prestavam, percorri inúmeros li-
crianças, Hugo ... ! o mais considerável dos poetas imbecis! ... vros, li montes de poemas, trechos de parágrafos, períodos que
O senhor Gros-Joseph lia Victor Hugo, Lamartine, Madame me enfeitiçavam. Para grande desespero do senhor Gros-Joseph,
Desbordes-Valmore, Alfred de Musset, Théodore de Banville, Fran- nunca soube o que era de quem, nem quem valia a pena em rela-
çois Coppée, Mallarmé, Descartes, La Fontaine, Charles Guérin, ção a tal outro. Cada livro, para mim, liberava um perfume, uma
Montesquieu, Emile Verhaeren, Jean Richepin, a Condessa de voz, uma época, um momento, uma dor, uma presença; cada li-
Noailles, e ainda muitos outros ... Seu preferido parecia ser Mon- vro me irradiava com uma luz ou me oprimia com uma sombra;
taigne. Nos idos de março, véspera de seus trinta e oito anos, esse eu ficava como que aterrorizada ao sentir sob meus dedos aque-
branco remediado saíra do mundo a fim de se aninhar no seio de las fagulhas da alma unidas num mesmo rumor.
doutas virgens no alto de seu castelo; e, mais do que perder tem- Tudo ia bem. A família preparava-se para viajar para a terra
po com tolices, caçar ou cortejar a duquesa no alto das torrezi- de Montaigne. O senhor Gros-]oseph negociara a aventura com
nhas úmidas, começou a ler livros antigos trazidos de suas viagens, uma companhia que explorava a linha. Preparamos aquela odis-
e a comentá-los enchendo as margens, falando de Montaigne, de séia transatlântica durante meses de transe, as malas estavam final-

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li ![
11, mente prontas, todos sonhavam com o navio, As crianças, excita- éramos sócios, o dinheiro que ele tinha vinha de seu trabalho
11':
das pelo pai, declaravam que iam para o país do espírito, Iam, e como ele não trabalha mais não há mais dinheiro que vem ..'.
1
diziam, encontrar a cada passo castelos encantados, anões lenha-
1

dores, bruxas com espelhos, Condessas de Ségur, alguns Montaig- No centro, uma lógica urbana ocidental, alinhada, orde-
1'I nes, Rabelais e Lamartines que vendiam peixe, outros Jean-Jacques nada, forte como a língua francesa. Do outro lado, a abun-
Rousseau que tinham uma padaria, François Villon escondidos em dância evidente da língua crioula na lógica de Texaco.
1:
,, covis ou perseguidos pela polícia. Quando o senhor Gros-Joseph Misturando essas duas línguas, sonhando com todas as
me anunciou que eu também ia ... quase morri de susto ... Ó, ale- línguas, a cidade crioula fala em segredo uma linguagem
'~
'I gria ... ! Pulei em seu pescoço. Saltitei pelÓ jardim como um bode nova e já não teme uma Babel. Aqui, a trama geométrica
,, de sacrifício diante de um sacerdote cule. A cozinheira, a arruma- de uma gramática urbana bem aprendida, dominadora;
deira e os negros da roça acharam que eu tinha ficado maluca. ali, a coroa de uma cultura-mosaico a ser revelada, agar-
Thérésa-Marie-Rose confeccionara para mim, tendo em vista aquela rada nos hieróglifos do concreto, da madeira de caixotes
expedição, três belos vestidos compridos de fustão branco, ren-
e do fibrocimento. A cidade crioula restitui ao urbanista
dados; comprara-me um par de sapatos, um chapéu, um grande
que gostaria de esquecê-Ia as camadas de uma identida-
sobretudo quente para me proteger do frio que, ao que parece,
de nova: multilíngüe, multirracial, multi-histórica, aber-
soprava no país de Montaigne. Eu experimentara aqueles vestidos
ta, sensível à diversidade do mundo. Tudo mudou.
um etcétera de vezes. Preparara-me para a partida lendo com mais
apetite, fartando-me de paisagens da França, das estações do ano, Nota do urbanista ao Marcador de Palavras.
das histórias. Nada (nem nos negócios de Gros-Joseph nem na hor- Pasta n'? 17. Folha xxv.
ta, nem na saúde das crianças que todos nós vigiávamos) parecia 1987. Biblioteca Schoelcher.
capaz de comprometer a viagem. No espírito de todos, e primei- Não demorou muito e foi impossível ver o senhor Albéric,
ramente no meu, a viagem mantinha porém, a incerteza de uma
1
mesmo quando Adélina, Sophélise e Thérésa-Marie-Rose iam pes-
quimera. O que se seguiu nos deu razão ... soalmente e ficavam circulando defronte dos entrepostos onde
A poucos clias da partida, anunciaram a guerra. O senhor Gros-
uns negros grandes, impedindo-as de entrar, suportavam estoica-
Joseph ficou sabendo desse contratempo quando entregava legu-
mente meus insultos contra suas mães. No início da guerra, a fa-
mes. Voltou para comunicá-lo com imenso desespero. A França
mília Gros-Joseph pôde mais ou menos se safar. Concentrou-se
invadida pelos alemães! ... O país capitulara. Trancou-se em sua
biblioteca e ali passou dois dias a beber seu próprio rum e a deli- na atividade dqs hortas da propriedade, diminuiu o espaço das flo-
rar debaixo de uma pilha de Montaigne, Descartes e Montesquieu ... res em benefício dos legumes, que todo mundo procurava. Fa-
encostada em sua cabeça como a única muralha possível contra mintos se amontoavam diante do portão da casa e compravam
a barbárie. Chamaram o médico, um branco dos Cárpatos, oficial inhames a preço de ouro. Mas as autoridades militares resolveram
da marinha, que volteava de ilha em ilha como uma ave migrató- requisitar as colheitas da horta. Por mais que Thérésa-Marie-Rose
ria quando o Norte sopra tempestade. O volátil diagnosticou uma parlamentasse com o comandante (uma espécie de macaco ver-
febre, da qual cuidou com coisa nenhuma, dizendo Vai passar... melho, com olhos azuis, orgulhoso de ter nascido em Avignon,
Não passou. O senhor Gros-Joscph continuou trancado du- a cidade dos papas, e que nutria nas colônias uma ascese da me-
rante toda a guerra. O senhor Albéric veio uma ou duas vezes pro- mória, a fim de esquecer uma senhora do Quebec morta de parto
curar o sócio; ao verificar o que lhe ocorrera, partiu apavorado, durante uma trigésima gravidez exigida pela Igreja católica como
de tal modo que perdeu o caminho de vinda. Nunca mais o revi- muralha contra a vaga anglofônica), os soldados levavam tudo. O
ram - nem mesmo quando Thérésa-Marie-Rose me mandou levar- comandante detestava não só o Quebec, a Igreja, as mulheres e
lhe uns recadinhos exigindo o pagamento dos lucros do marido. as maternidades de sobrevivência, mas também a França (e, por-
Ao que o senhor Albéric retrucou Que contas, que negócios, não tanto, a "Petite France"), cujas deserções para a América do Norte

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ele recriminava. Portanto, não dava a menor importância para a Nas noites de guerra, os pretos invadiam as hortas da proprie-
guerra, segundo suas próprias palavras, e passava as vidas 1lheias dade. Levavam tudo com um furor zeloso. Desesperado. Apanha-
no moedor das recomendações guerreiras, sem jamais sondar-lhes vam os legumes, as frutas, as últimas flores; parecia até que as co-
o espírito nem a letra. Ordens são ordens, e ponto final. Assim, miam. Devastavam os campos, estragavam a terra, mijavam ao redor,
em troca de um vestígio de indenização paga a cada seis meses, arrancavam as árvores por pura maldade. Não havia mais jardinei-
as carroças militares levavam as colheitas de inhames e repolhos. ro, nem arrumadeira, nem criada. Thérésa-Marie-Rose não podia
Só deixavam uma coisinha de nada, de fato nem um pouco sufi- mais me pagar, mas eu ficava assim mesmo. As três mulheres, as crian-
ciente para alimentar a família Gros-Joseph. Ainda assim, Thérésa- ças e eu vigiávamos a horta. Quando surgia a maré dos saqueadores,
ii Marie-Rose resolveu vender a metade da colheita, a fim de obter Thérésa-Marie-Rose atirava para cima, depois atirava ao acaso. Os pri-
1
os complementos de carne, óleo, sal e companhia. A vida poderia meiros disparos os assustavam, um pouco menos os centésimos, e
ter se equilibrado desse modo, mas a ruína veio com os saques. nada os outros, tanto mais que as balas de Thérésa-Marie-Rose logo
O que meu Esternome me contara sobre a guerra de 14 re- acabaram: ela gritava Pum! Pum! pum pum pumzotmô, Vocês mor-
produzia-se de forma mais ampla. A Cidade se desenvolvera; pouco reram ... , enquanto nós, num tom desumano, gritávamos trovejas
a pouco, afrouxara sua relação com a terra, suprimira suas hortas. de canhão Bum Bum Bum! Isso jamais inquietou o menor saquea-
As roças de meu Esternome provavelmente tinham sido cobertas dor, mas era um bálsamo para nossas angústias.
por novos barracos, e os novos habitantes do Bairro dos Miserá- Em vão: Thérésa-Marie-Rose pediu ajuda ao comandante; de-
veis (aonde eu ia de vez em quando, aos domingos, ao sabor de pois, implorou mil audiências ao almirante Robert (aquele pró-
meus passeios) instalavam-se sem sequer plantar uma fruta-pão, Pétain, governador da ilha, festejava nas casas dos bekês ou cor-
fazer um canteiro num lote de terra ou cultivar um agrião na água ria atrás daqueles negros malucos que, toda noite, se metiam
clara de um canai. Orgulhosos de suas unhas sem barro, deixavam- disfarçados nos encouraçados para ir salvar De Gaulle e libertar
se levar pela Cidade que engolia o entorno. A Cidade que meu a França ... ).
Esternome tanto prezava pareceu-me um animal cego, proliferan- Em menos de um ano, a propriedade assumiu ares de vira-
te mas inapto a sobreviver, a exemplo desses dinossauros gran- lata no meio de :um mercado. A manhã deixava pairar um deses-
des demais para o mundo, dos quais nos haviam falado os Leigos pero de brumas sobre a terra pisoteada. As árvores desfolhadas
engravatados. Eu tinha a sensação de que tudo aquilo ruiria; a se torciam ao vento como dedos de bruxa. O que não arranjava
fome nascida da guerra e o almirante Robert reforçavam essa im- o equilíbrio mental do senhor Gros-Joseph, escondido em sua bi-
pressão difusa. Por muito tempo considerei-me como de passa- blioteca, de onde não mais saía. Ele urinava, defecava comia os
gem nessa Cidade, com a idéia de empreender, tão logo meus bol- próprios livros e gritava como um alucinado, espiand~ as nespe-
sos estivessem bem recheados, um Noutéka dos morros ... pobre reiras verdes cuja careta ele era o único a flagrar. Eu acompanha-
epopéia de meu pobre Esternome ... eu a repetia naquelas camas va Thérésa-Marie-Rose quando ela lhe levava leite, um pouquinho
miseráveis em que respirava poeira, cheiros de tinas e canais en- de legume cozido, que ele engolia três dias depois, quando tudo
tupidos ... a pobreza dos corações preocupados em desabrochar ... já estava talhado ou azedo. Ouvíamo-lo comer como um porco
e aquelas dignas famílias que pude observar à vontade e despre- eructando Rimbaud ou Lautréamont. Às vezes, Thérésa-Marie-Rose
zar a fundo, a não ser talvez os Gros-Joseph - ... pobre epopéia, sentava-se a seu lado na biblioteca, mandava-me arejar a implacá-
construída com a cumplicidade da amargura. vel pestilência. Enquanto eu recolhia as sujeiras do pobre homem,
A Cidade modificava os pretos do campo, nem todos tinham ela lhe falava e ouvia-o. Tentava reencontrar seu marido no des-
o espírito de meu querido Esternome; cada vez mais, este me pa- vio de um olhar, num gesto familiar. Coitada ... nada do degenera-
recia sair de um planeta longínquo; o que, com a distância, a nos- do evocava Gros-Joseph, a não ser talvez os autores que ele cita-
talgia, e talvez aquele apego à família que as solidões inspiravam, va, mas segundo leis obscuras que o verdadeiro Gros-Joseph não
tornava~o 1 a meu ver, encantador. Com o passar dos anos, ele cres~ teria avalizado. As poesias, dizia o degenerado, eram melhores para
eia em meu espírito. o paladar do que os romances - mais delicadas. Rimbaud liberava

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um aroma de barrilheira enlameada, algo sufocante que torturava delas morreu muito cedo, a outra deixou a vida de tal forma secu-
a boca antes de se espalhar em muitas fragrâncias e de murchar lar que ninguém mais sabia de quem se tratava. Enterraram-na com
em cima de um buquê de poeira e areia do deserto. Lautréamont o epitáfio Aqui jaz uma pessoa da Cidade (detalhe que algum in-
reinava com um sabor de caimito-limão-verde, mas, a longo pra- discreto conseguira guardar dos orgulhos de sua vida). Nesse meio
zo, dava dor de barriga. Sully Prudhomme devia ser mastigado tempo, Thérésa-Marie-Rose morrera ao pé dos altos muros do hos-
como um imenso bolo, e imediatamente esquecido. Lamartine dei- pício. Fizera mais uma vez a viagem, esplendorosamente vestida,
xava um gosto de garapa concentrada, agradável mas um pouco com umas gatinhas de perfume. Chegando ao portão, disse aos
.i
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sem graça. E Montaigne, infelizmente, ó, espírito esplendoroso ... guardas (novatos que a conheciam mal) Vim encontrar meu ma-
]! na boca, seus livros dissipavam as próprias virtudes e só ofere- rido ... Depois, sem esperar, sentou-se no canto esquerdo da por-
. '
ciam às papilas uma pitada de papel rançoso ... Escutando tais van- ta. Encontraram-na ali, quase como uma estátua de sal, quando
dalismos, Thérésa-Marie-Rose chorava. Fugia da sala antes que eu (séculos de tempos mais tarde) uma cinza de perfume titilou a me-
tivesse terminado; e eu ficava sozinha com aquele sujeito louco mória dos cérberos e trouxe-lhes a lembrança distante daquela se-
que mordia seus livros AhJonathan Swift gosto de merda, Ah Zo- nhora que havia falado com algum deles, Mé ola Matinityez-là pasé
la gosto de merda, Ah Daudet gosto de merda, e fazia-os voar pela ó-ô, Mas onde foi parar a martiniquense? ...
sala, rasgados por seus dentes, Ah ...
11. Thérésa-Marie-Rose não pôde mais pagar o que devia pagar.
O senhor Gros-Joseph não havia iniciado essa pobre coitada no
' 1

BASILE NO CORAÇÃO. No dia da expulsão, Thérésa-Marie-Rose


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l .!
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1
labirinto de seus negócios; ela se perdeu no decifrar de papéis si-
bilinos, na vertigem de contas absconsas rabiscadas à pena em ca-
dissera-me chorando, do alto de sua carroça, que eu precisava dar
um jeito em minha vida. Não podia me levar. Vi-me sozinha em
'I dernos confusos. Tentou resistir às diversas intimações, estabele- Fort-de-France em guerra, com a riqueza de meus vestidos da Fran-
cer uma hierarquia entre a montanha de credores. Esses raivosos ça, meu par de sapatos, uns caraminguás de meus tráficos e uma
1
·despejavam-lhe diariamente carroças de dívidas assinadas por seu trouxa de quatro livros que peguei na biblioteca - justo antes de
.r'I marido, e diziam-se dispostos a queimar a casa. O banco exigiu Thérésa-Marie-Rose incendiá-la, num acesso de loucura, esperan-
1,! cinqüenta promissórias escritas num belo papel branco, dentro do que o pobre Gros-Joseph recuperasse o juízo. Mas, no meio
de um belo envelope. E assistimos ao apocalipse dos homens da das chamas, o indiferente caiu na risada, depois pegou no sono,
lei investindo a "Petite France" para vendê-la em leilão. Thérésa- imóvel em seu delírio e no tremor das cinzas. Meus livros? Um
Marie-Rose e as irmãs do senhor Gros-Joseph foram parar no meio Montaigne, é claro, que penso ouvir murmurar em seu castelo gla-
da rua, junto com as três crianças. Na carroça de um cule, atrelada
cial; a Alice, de Lewis Carroll, que é cheia de maravilhas, como
ao cansaço de uma mula viscosa, pegaram a estrada para a casa
um autêntico conto crioulo; as Fábulas do senhor de La Fontaine,
de parentes distantes em Gondeau-Lamentin. O senhor Gros-
para quem escrever parece fácil, e, é claro, um Rabelais, cuja ba-
Joseph, capturado na biblioteca dentro de uma espécie de grande
canal lingüística o senhor Gros-Joseph abominava. Gosto de ler
saco, foi depositado na delegacia, depois num pavilhão especial
meu Rabelais, não entendo grande coisa, mas sua língua esquisita
da Casa Central. O barco dos loucos veio pegá-lo na época do ar-
mistício, a fim de interná-lo no hospício de Guadalupe, onde nin- me faz lembrar as frases estranhas de meu querido Esternome he-
guém mais o viu, em todo caso, eu, jamais. Naquele tempo, acho sitante entre o desejo de falar bem francês e o seu crioulo dos mor-
que prendiam os loucos. Durante o resto de sua vida, Thérésa- ros - um estado singular que jamais consegui restituir em meus
Marie-Rose pegava esse mesmo barco para ir até o portão do hos- cadernos. Bem mais tarde, em Texaco, quando Ti-Cirique, o hai-
pício e adular os guardas. Deixava-lhes (com mil recomendações) tiano, fosse me citar esses escritores dos quais tudo ignoro, Cer-
cestas de laranjas e livros de Montaigne que aqueles bocós deviam vantes, Joyce, Kafka, Faulkner ou (com imenso desprezo) um tal
utilizar como papel higiênico. Thérésa-Marie-Rose ficou vivendo de Céline, eu iria lhe cochichar (sem muita convicção, mas pro-
em Saint-Joseph, disseram-me, junto com Adélina e Sophélise; uma fundamente sincera): Rabelais, meu caro ... em primeiro lugar.

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Mais que nunca, a Cidade onde, porém, eu havia nascido, fessora aposentada, eminente personalidade do Sindicato Nacio-
parecia-me um lugar de passagem. Eu me agarrava à lembr~nça nal dos Membros do Ensino Primário, que vivia com um analfa-
de meu querido Esternome, e minha idéia era refazer sua trajetó- beto cheio de espinhas e uma irmã que tinha lepra Gulia), que di-
ria. Imaginava, inclusive, que encontraria intacto seu pequeno bar- ziam não ser contagiosa), Basile me encontrou facilmente, como
racão dos morros, tabernáculo da felicidade com Ninon. Foi a guer- se tivesse me seguido, e recomeçou suas gracinhas noturnas, de-
ra que me fez ficar na Cidade, pois a Cidade permanecia imóvel baixo da sacada. Suas macaquices me divertiam, sem mais. Aca-
sobre si mesma e já não tinha forças para alcançar os campos. Os bou me convidando, com gestos de mãos, para ir encontrá-lo. Não
campos fluíam para ela: vendedoras a pé e gente puxando carri- desci imediatamente, é claro, mas certa noite acabei descendo: de-
nhos de mão, preocupados em conseguir, em troca de uns legu- pois do jantar, a senhora Thelle tolerava que eu pegasse fresco
mes, um bom querosene, um pouco de sal, um óleo abençoado. à frente da porta.
Então, comecei a vagar de casa em casa, de patroa em patroa. Mi- Na primeira vez, desci sem pensar. Sentia-me sufocada nos
nhas andanças organizavam-se assim: uma amiga do mercado (pa- dias de calor abafado que é típico das casas. Bem depressa apren-
ra quem eu evocava uma patroa detestável) indicava-me tal boa di (como as pessoas da Cidade) a saborear o sereno da noite. Mal
pessoa que procurava alguém. Eu ia até lá, e virava empregada da cheguei à rua, vi Basile aparecer. Começou a dizer as bobagens
casa. No primeiro dia do pós-Gros-Joseph, fui contratada para a ca- agradáveis que os homens dizem nessas situações. Tentei fazer cara
sa de uma dona Mathurin: cozinha-arrumação para ela, o marido, séria; não olhá-lo; depois comecei a sorrir, a rir, e até a lhe res-
três filhas, das quais uma (um pouco tantã) vivia enroscada chu- ponder, revelando meu nome, Marie-Sopbie, que ele achou o mais
pando os dedos do pé. A boa vida da casa dos Gros-]osepb, bonito do mundo, e no que, como você já deve ter entendido,
acabou-se o que era doce/ ... Os Mathurin eram menos abastados. acreditei piamente. Basile e eu começamos, pois, a nos encontrar
Dona Mathurin tinha um bar, o Débit-La-Régie, para os lados do à noite, defronte da casa dessa senhora Thelle. Cochichávamos
canal, ao qual dedicava o essencial de sua vida. Seu Mathurin tra- na soleira da porta e respirávamos juntos os perfumes do sereno
balhava na contabilidade de uma fábrica de óleo. Tão logo o sa- (os ventos, que desapareciam da Cidade sob o castigo do sol, volta-
bão desapareceu por causa da guerra, essa fábrica se pôs a produzi- vam suavemente com o crepúsculo; derramavam-se repletos de
lo a partir de uma química de potássio e óleo de coco, e fazia bons aromas do mar, costeavam os altos morros que abraçavam Fort-
negócios, mas sem nenhum efeito sobre o micróbio que servi~ de-France; e ondulavam entre as casas, mexendo as persianas; es-
de salário ao seu Mathurin (negro baço, sem palavras, encarqm- ses ventos salutares, depois das asfixias, tinham favorecido aque-
lhado debaixo de uma tristeza). Foi na casa da dona Mathurin que las varandinhas floridas onde as pessoas se sentavam (longe da
conheci Basile. poeira) para convocar os sonhos e respirar a noite; àquela hora,
i Depois do serviço, eu ficava na janela do primeiro andar olhan- ali se instalavam os adultos e a pirralhada que já havia mamado;
1: do a Cidade. Basile pegava a rua de baixo, e me fazia Psiu Psiu, as crianças se agarravam às ferragens das grades; as pessoas da Cida-
'l l dava uns Bom dia, senhorita, umas piscadas de olho, soltava ga- de, vestidas de branco, intrigavam de uma sacada a outra, cuida-
lanteios açucarados. Eu ignorava essas manobras, fazendo de conta vam de suas dálias e buganvílias; quem não tinha varanda, sentava-
que era uma bekéia. Mas, dia após dia, sem sequer i;ne consultar, se num banco da rua; se bem que transtornadas pelo vento, as
meu coração acelerado começou a esperar por Bas1le. De longe, últimas vagas de poeira não ofuscavam o prazer do sereno; nas
ele conseguia me fazer rir. Era um preto de chapéu de palhinha, casas de grandes sacadas, onde a família mulata ficava com os seus,
vestido de brim branco, sempre impecável. Tinha quadris de ga- as criadas amontoadas defronte da porta vigiavam a vida alheia
rota, ombros de estivador, e devia ter nascido em pleno quarto graças aos mexericos; e sua presença atraía negros-predadores de
crescente, pois sua altura ultrapassava a do resto das pessoas. Pa- pequenas camponesas, viveiro fácil onde meu Basile (como cen-
rece que sua única atividade era bater perna pela Cidade e assistir tenas de outros, mestres-fornicadores qem-apessoados) se alimen-
aos jogos dos grêmios de futebol que guerreavam na Savana. Quan- tava à vontade; as ruas do Fort-de-France noturno estavam semea-
do troquei dona Mathurin pela senhora Thelle Alcibiade (uma pro- das de domésticas inebriadas por esses negros-enfeitiçadores, gran-
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des pastores dos arrepios e das palavras carinhosas, até que um dor nem se dependurar na sacada. Deitado com febre, temia ter
grito da patroa (ou do patrão) quebrasse o feitiço e despachasse pegado a lepra da cunhada e engolia uma porção de chás que a se-
a enfeitiçada para o sono solitário). nhora Thelle lhe trazia das matas de Dillon. Basile e eu tínhamos
Era o analfabeto da senhora Thelle que me fazia o sinal para portanto, caminho livre para conversar. Eu não sabia nada a se~
entrar. Desconfiando de minhas conversas com Basile, chamava- respeito, nem sequer o outro pedaço do seu nome; mas ele medi-
me bem cedo e acusava-me de desrespeitar sua casa com minhas vertia, e era isso o essencial. Rir me aliviava o espírito. Tanto as-
conversinhas de rua com um ostrogodo. Eu lhe dizia Não enten- sim que ele me pegou nos braços, durante uma de minhas risadas
do, senhor Thelle, afinal de contas, por que não posso ficar con-
.
e nndo recuamos pelo breu do corredor, animados com as luzes'
versando com alguém defronte da porta? ... Mas o analfabeto apagadas da senhora Thelle. Cochichando, brincando, sufocando-
mirava-me com o mesmo olho de peixe morto que punha, de pas- me, caí numa embriaguez perturbadora. Comecei a tremer. Come-
sagem, em cima dos livros do meu quarto. A senhora Thelle nada cei a ter medo. Meu corpo virou-se para o corpo de Basile que, por
me reprovava, mas ele me perseguia sem parar, andando pelo cor- sua vez, tremia um pouco (mas bem menos). Num silêncio con-
redor insinuando-se entre Basile e eu, olhando-nos do alto de seus vulso, a coisa aconteceu. Uma dor. A tonteira. A vergonha. O me-
botõ~s, e depois entrando em casa muito azedo. A cada cinco mi- do. O abandono. Os recuos. As desculpas palpitantes. Os rasgos
nutos, debruçado na sacada, perguntava-me se eu tinha embrulha- de lucidez durante os quais emergimos entre as garras de um ani-
do o pão dormido, se não tinha visto a chave de parafuso, se tinha mal com as ventas resfolegantes. As ondas de prazeres. O esqueci-
aquecido o ninho dos camundongos cor-de-rosa, atrás do pomar ... mento. O afogamento ... Basile, espantado ao saber que eu era don-
Às suas perseguições, eu respondia Sim sinhô, não sinhô ... e con- zela, cantarolou uma vitória. Só percebi a deselegância disso vinte
tinuava a escutar Basile. Dentro de casa, o analfabeto sufocava de e cinco anos depois, em minhas horas de devaneios entre uma ba-
tanta Impotência. Um dia, não agüentando mais, foi à polícia para talha e outra por Texaco, de tal modo no momento eu me sentia
acusar Basile de desencaminhar uma menor de idade; o que não transtornada pelo que meu ventre acabava de descobrir.
deu em nada: a polícia estava ocupada com as amolações da guer- E toda noite conversávamos esperando a hora. A qual abor-
ra. Além do que o tenente que atendeu a seu sétimo pedido (gor- dávamos com menos tremores, mais vontade de que a coisa se
do, azul, de bigodes, andando de pés abertos que nem os patos, prolongasse. Recomeçávamos uma infinidade de vezes, depois eu
com o olhar gélido para nos assustar), conhecia muito bem Basile, ia para a cama e para meus sonhos torturados. O fato de estarmos
que conhecia todo mundo, E então, Basile, é você que está aí, meu no corredor (entre a família Thelle e a rua deserta oferecida aos
bandido? ... Pela claridade de seu olhar, soube que ele também ca- sonâmbulos) apimentava o que fazíamos. Nunca mais encontrei
çava as jovens domésticas desocupadas na moldura das portas. aquela volúpia inquieta que nasce de se entregar e espiar o mundo
ao mesmo tempo. Eu não amava Basile, agora que penso nisso.
Na Cidade, Sophie-Marie, tem as donas e as senhoras. Não Hierofante de uma missa rezada, ele estava imbricado no prazer
é a mesma coisa. A dona fala com você em crioulo. A de meu corpo e enchia meu espírito. Eu esperava por sua vinda
senhora fala em francês. A dona é gentil e conhece a so- com receio, vergonha e um apetite que a noite eletrizava. Nossas
brevivência. A senhora é mais severa e fala com você da conversas tornaram-se quase inúteis, nossas palavras passaram por
Lei. A dona lembra-se dos morros e dos campos e das um período de jejum. Tudo convergia para aquele instante que
lavouras. A senhora só conhece a Cidade (ou finge). O fingíamos descobrir, e no qual (depois de um que outro dengo)
eu me afundava de repente, como numa poça de lama. Eu me via
que me diz disso? ...
muito bem indo viver com Basile; ele nada me propunha. Pensa-
Caderno n ~ 9 de Marie-Sophie Laborieux.
1965. Biblioteca Schoelcher. va estar feliz com ele ... mas como, nessa idade e diante de tal emo-
ção, diferenciar o amor da felicidade provisória?
Basile foi muito respeitoso comigo até o dia da fatalidade. O Quando o senhor Thelle ficou curado da febre, pensando ter
senhor Thelle, naquele dia, adoece_ra. Não podia andar pelo corre- escapado da lepra, recomeçou a espreitar. Nós também o espreitá-

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vamos (o que, estávamos convencidos, era correto), mas ele nos ricos. Um barraco de dois cômodos separados por um lençol. Uma
espreitou melhor. Flagrou-nos no corredor em pleno desarmamen- cama de ferro de quatro pés, bonitos abajures, discos, uma vitro-
to. Gritou Fogo! Bombeiros! ... e empurrou Basile para a rua, de la Columbia na qual fui proibida de pôr a mão. Na sala: qma mesa
ceroulas, Vade retro satanás!. .. Basile fez cara de responder com coberta por um oleado, uma prateleira de cozinha debaixo de uma
um murro, depois se lembrou da idade do outro. Preferiu então lamparina de querosene e algumas panelas. Portas e janelas davam
se compor, insultando os falsos mulatos da Cidade que achavam para uma rua barrenta, pavimentada com cascalho. Basile mandou
que eram pessoas mas na verdade não passavam de uns cocôs de que eu não me mexesse, não saísse, me escondesse no quarto ao
coelho. O senhor Thelle mandou-me borrifar o corredor com creo- chegar qualquer visita, em suma, ficasse quietinha. Meu calvário
lina, ensaboar as paredes, ir me purificar com sabão e depois me começava ...
ajoelhar diante da pequena virgem pendurada na sala. Eu, nem uma
nem duas, voltei para meu colchão de palha, peguei minha male-
ta e deixei a casa numa corrida provocante. A senhora Thelle, acor- os MÚSCULOS DA CIVILIZAÇÃO. De manhã, Basile ia embora. Rea-
dando, teve tempo de me dizer Volte, mocinha, volte, mas o que parecia à noite, com um pedaço de carne, biscoitos, um legume.
é isso, ó céus!? ... Apesar da penúria da guerra, conseguia tudo isso graças a um mon-
Nunca mais os revi. Dizem que morreram da lepra da Julia, te de contatos com os ricos de Fort-de-France. Na verdade, era
afinal contagiosa. Que um dia o senhor Thelle sentiu uma coceira membro de uma associação de cultura ffsica chamada La Française,
nas costas, depois outra entre os dedos. Pensou nas picadas dos onde passava os dias cuidando dos livros contábeis e de outras
mosquitos tão freqüentes na Cidade, e esqueceu-se do assunto. tarefas administrativas. Dedicava boa parte do tempo a manter seus
Em seguida, pequenos pontos duros constelaram-lhe a pele. Quan- músculos, com a ajuda dos aparelhos Sandow, halteres, uma bar-
do ele coçava, esses pontos escamavam-se, cor-de-rosa, e ficavam ra fixa, trapézios ... Praticava inclusive exercícios de esgrima, sob
insensíveis. Em seguida, umas rachaduras supurantes invadiram- a orientação de um mestre de armas de bigodes recurvados. À noi-
no por todo lado, enquanto a senhora Thelle também se coçava te, era freqüente que saísse de novo, vestido como um papa, para
pensando nos percevejos tão numerosos na Cidade. Ficaram as- os ágapes que seu grêmio esportivo organizava no Hotel Nacio-
sim, por muito tempo, a se coçarem juntos, a se esfolarem tam- nal. Ali, os farristas passavam a noite a homenagear o fundador
bém, a recusarem uma evidência que lhes alcançou os lábios, de- do primeiro círculo esportivo da Cidade, um tal de Totor Tiber-
pois deformou-lhes os olhos. Brevemente, não podiam mais pôr ge, mas sobretudo a lembrar as etapas de La Française, que teve
o nariz na rua. Devem ter se alimentado graças aos lixeiros que de lutar para existir; a evocar a época heróica da musculatura ao
pegavam as moedas diante da porta e colocavam os alimentos em ar livre, no terreno da sede da prefeitura, com um material sumá-
cima de uma toalha no patamar. Ao serem descobertos, foram jo- rio, sob o olhar invejoso de quinze bombeiros municipais; a gemer
gados no fundo da Désirade, a ilha terrível dos leprosos, onde só sobre a emigração que fizeram para o terreno do ex-asilo, destruí-
a morte (retardada pelo óleo de chalmugra) oxigenava a esperança. do pelo incêndio de 1890, na rua Garnier-Pages, onde dispunham
Basile surpreendeu-se ao me descobrir grudada nele, com mi- de um semblante de sede e de uma aparelhagem um pouco mais
nha maleta. Quis me levar de volta para a casa da senhora Thelle. eficiente; depois, a se lamentar da nova emigração, quando a ca-
Nessa época, minha cabeça dura já estava formada, portanto in- tástrofe de 1902 transformou o local em abrigo para vítimas do
sistiu à toa. Girava ao meu redor como um cão raivoso. Encosta- sinistro, e tiveram de se instalar (mal e porcamente, como esco-
da numa porta, eu não me mexia, não falava, com o cenho franzi- teiros) num terreno à beira-mar; em seguida, a exaltar a volta à
do, a boca torta. Quando entendeu que eu iria embora sem ele, rua Garnier-Pages (quando as vítimas do sinistro se dispersaram
até para o inferno, se necessário fosse, e sozinha para as trevas, em algum lugar), onde a associação iria finalmente conhecer feli-
aceitou me levar para sua casa. Neguei-me, evidentemente. Fora zes onze anos de ginástica, até a obtenção da sede definitiva, à
de si, pegou-me em seus braços robustos e levou-me espernean- beira da baía dos Flamands, na esplanada do Fort-Saint-Louis, na
do para o barraco, para os lados da Levée, perto do cemitério dos extremidade sul da avenida Christophe-Colomb.

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A imensa sede de La Française; com luz elétrica, foi construí- o lavrador coditiano, o estivador do porto ou o empurrador de
da com ·a generosidade de todos, do governador, do conselho- carrinhos de mão pelas redondezas do mercado. Os de Basile na-
geral da colônia, da prefeitura e de múltiplos benfeitores que Ba- da revelavam, pareciam não servir para nada, e eu até desconfia-
,, sile e alguns outros haviam solicitado, de dia e de noite. No meu va que fossem um pouco flácidos. Isso lhe dava uma aparência
tempo, eram uns cem, com sócios honorários, sócios benfeito- de negro irreal, de um negro da Cidade, alheio aos suores e às
1 res, funcionários, comerciantes, operários, etcétera, que se civili- necessidades.
zavam desenvolvendo as coxas, os peitorais, o pescoço e fazen-
'! 1 do as abdominais. A associação vivia das mensalidades dos sócios, A cidade crioula não previra o afluxo da população do
da doação anual da administração, das rendas de uma rifa e do morro. Foi estruturada pelas necessidades militares e pe-
gigantesco baile anual que organizava e ao qual Basile nunca me las atividades de importação-exportação, deixando às fa-
levou ... - certos homens são uns cachorros ... zendas o cuidado de alojar os milhares de braços úteis
Basile vivia com conforto. Enquanto eu ficava sozinha na ca- à produção agrícola. Quando esses braços se aglutinaram
ma e ia criando ranço, os desportistas e ele discorriam sobre os na cidade, cidade-entreposto não produtiva, não pude-
métodos de ginástica de Desbonnet, de Hébert, de Joinville, dis- ~am ser canalizados para empregos e nem para moradias.
cutiam sobre as virtudes da marcha sueca, enumeravam a não mais A desestruturação de nossas fazendas não se seguiu uma
poder as vantagens do culturismo ... ôô, depois dos labores de um economia de manufaturas, fábricas ou indústrias. A cida-
dia duro, isso permitia reativar o sistema nervoso, depurar o san- de crioula não absorveu a mão-de-obra útil à sua expan-
gue, fortificar os órgãos, e melhor resistir às preocupações da vi- são, simplesmente sofreu (resistindo) a onda de choque
da. Estabeleciam um vínculo perfeito entre esporte e inteligência, de uma catástrofe agrícola. Diante da cidade crioula, o
entre espírito esportivo e espírito democrático, e demonstravam urbanista crioulo deve esquecer A cidade. Quando digo
a que ponto, a exemplo da cultura que apura o pensamento, a cul- "urbanismo crioulo", invoco: mutação do espírito.
tura física forçava o espírito a mais elegância, mais humanidade,
mais universalidade. A concórdia social podia ser irradiada desses Nota do urbanista ao Marcador de Palavras.
Pasta n? 13.. Folha xx111.
corpos sossegados, dominados, exaltados, disciplinados. Por is- 1987. Biblioteca Schoelcher.
so, um negro que praticasse esporte deixava de ser negro. Parece
que Basile também dava umas palestras sobre assuntos esportivos Foi Basile que deve ter me contado o que sei de La Française:
para as associações de ajuda mútua, e que contribuíra para a cria- comentários breves, confidências entediadas, conversas flagradas
ção da União das Associações Martiniquenses de Esportes Atléti- do quarto onde eu ficava deitada enquanto ele batia papo em tor-
cos, uma federação que desfilava em grande pompa no dia da pá- no de um rum com o secretário de uma associação esportiva de
tria, 14 de julho, diante do governador. Vivia sob os auspícios de Redoute, de L'Entraide ou da Pointe-aux,Nêgres. Pois, na verda-
altas personalidades de quem eu nada sabia mas que Basile citava
de, a maior parte do tempo eu passava deitada. Basile não gostava
com veneração, os senhores Louis Achille, Théodore Baude e Hen-
de me ver aparecer na sala, nem, com mais razão ainda, na janela
ri Cadoré. ou na porta. Evidentemente, eu desobedecia assim que ele virava
Eis o que eu sabia de Basile, embora tenha podido reconsti-
tuir tudo isso muitos anos depois. Por ora, para mim ele conti- as costas.
nuava a ser um mistério: seu aparente conforto, suas belas rou- Minha primeira surpresa foi perceber que Basile tinha diver-
pas, e sobretudo seu corpo esculpido como uma estátua, do qual sas mulheres. Essas elegantes iam à casa dele, batiam, entravam
parecia cuidar como se fosse uma plástica de mulher, com óleos sem esperar e ali deixavam uma fatia de bolo, ou um bilhetinho
e massagens. Sempre vi a seu lado pretos musculosos, de ombros dobrado na armadilha de um perfume. Eu me escondia no fundo
largos, grandes braços, grandes peitos, pulsos grossos como pos- da cama, imóvel conforme ele mandava. A elegante andava um
tes de luz, mas não eram como Basile. Aqueles músculos revelavam pouco pela sala, às vezes dava uma olhada no quarto, sem jamais

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me distinguir, no fundo da penumbra, e depois ia embora. Nunca outras conquistas, a assustada pequena bekéia viu sua xoxota ser
era a mesma pessoa, nunca o mesmo passo, nunca o mesmo per- glorificada nessa espécie de matadouro da rua do cemitério, até
fume, nunca a mesma presença. Quando eu tocava no assunto com o momento em que lhe foi impossível encontrar Basile, que co-
Basile, ele me dizia que eram primas mas que, acima de tudo, eu meçou a fugir dela como fugia das outras. E todas desfilavam em
não devia complicar seus negócios saindo do quarto. Foi, é claro, suas horas costumeiras, diferentes uma da outra, e encontravam
o que fiz certo dia, no momento de uma dessas visitas perturba- não tanto Basile, mas a mim. Seus olhos enchiam-se de surpresa,
doras. de cólera, de ódio, de gelo, de fumaça, de pimenta, de todo tipo
Ao sair do quarto, caí em cima de uma espécie de negra- de coisa. Algumas amantes de Basile desapareciam na hora, ou-
caraíba, com olhos de fogo, maçãs do rosto alteadas, cabelos gros- tras me olhavam do alto; outras, ainda, arrotavam uns O que você
sos e brilhantes que serviam de estojo a seu lindo rosto. Acho que está fazendo aqui? Eu começava a vomitar minhas besteiras, a ma-
era a mulher mais esplendorosa que vi em minha vida, e pensei tar a sede que sentia delas, a persegui-las até a igreja, provocando
nas palavras de meu velho Esternome sobre aqueles velhos caraí- agrupamentos que Basile acabou por descobrir. Apareceu um dia
bas que ele vira em Saint-Pierre, e que lentamente se diluíam na todo pimpão, disposto a reger o mundo, mas, coitado .. ., teve de
população. A negra-caraíba quase morreu de susto ao me ver no aprender que pôr os músculos para trabalhar não era tudo na vida.
barraco de Basile. Tinha alguma coisa na mão. E jogou-me essa Tentou exercer comigo uma autoridade que deixei escorre-
coisa de repente, chamando-me de filha da puta ou de cadela gar como fazem os patos com a chuva que bate em cima de suas
no cio. Era, quando nada, desagradável. Meu temperamento já es- penas. Depois, alteou a voz que deixei ser alteada, deitadinha em
tava todo ali: uma espécie de gosto pela luta de boxe, uma apetên- minha cama, confortável como um gato velho. Depois, levantou
cia pela grazinada, uma aptidão desgraçada para a maldade que a mão, bateu na minha cabeça. Ah, que amolação!... Entrei numa
me levava a arriscar minha vida ao menor aborrecimento. Come- crise de nervos da qual ele deve se lembrar ainda hoje, na sepul-
cei por lhe vomitar um monte de besteiras, mas besteiras parava- tura. Ficou todo rasgado, no meio da rua, com a vitrola debaixo
ler. Depois, arrastei-a pelos cabelos a fim de perguntar se algum do braço, engatinhando para recolher os discos dentro da água
dia tínhamos levantado a pata juntas para que ela pudesse saber suja, chorando por causa de suas roupas que voaram por todo
que eu era uma cadela. Na base de paneladas, botei-a para correr lado ... e, sobretudo, apavorado com a minha aptidão para gritar
do barraco. Persegui-a xingando sua mãe, seu pai, toda a sua fa- alto, gritar muito tempo, gritar infinitamente, gritar com alegria,
mília, até perto da igreja Saint-Antoine, construída no centro das gritar com fé, arrebentar os ouvidos de toda a existência. Eu do-
Terres-Sainville (ex-bairro dos Miseráveis), que recolhia o eco de minava, além do necessário, o arsenal do xingatório crioulo, ar-
minhas pragas. mazenado no Bairro dos Miseráveis. E era capaz de despejar tu-
Na época, Basile nunca soube disso, mas continuei a sair do do, continuamente, sem me dar tempo para respirar ... eu não era
quarto a cada visita. Olhos de mulheres cules, olhos de mulatas, uma boa pessoa, não ...
de sararás sardentas, de negras-cabras-de-grandes-cabeleiras, e até
olhos cor de anil de uma pequena bekéia perdida na Cidade. Seu
pai lançara-se na aventura urbana logo que a destilaria que pos- o SOLITÁRIO CAPIM GORDUROSO. Basile desapareceu, depois vol-
suía foi à falência, depois da guerra de 14. Optara, como os de tou, depois desapareceu de 'novo. Passávamos dias inteiros mer-
sua raça, pelo comércio de alimentação, e tornou-se importador gulhados no sétimo céu, depois outros a brigarmos no pior dos
de carne salgada num entreposto diante da Pointe-Simon. A pe- infernos. Quando ele estava lá, suas comidas de contrabando me
quena, que só vira negros suando no meio da lama, descobriu a alimentavam; mas quando ia embora, eu tinha de aprender a so-
elegância dos negros da Cidade, o gosto pelo falar florido, pelos breviver em Fort-de-France em guerra. Fazer fila desde as três da
poemas, pelo culturismo. Disseram-me que meu Basile consegui~ manhã para conseguir um peso de carne. Implorar os raros pei-
seduzi-la, exatamente como a mim, passando e repassando debai- xes dos pescadores que andavam por ali. Embasbacar as vende-
xo de sua sacada, com sorrisinhos e caretas encantadoras. Como doras que chegavam à Cidade com alguns legumes, e prometer-lhes

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[1'

1'1: minha roupa com a ,.planta espumosa que utilizava m·nh


• 1
um pouco de sal que eu não possuía. Falávamos de De Gaulle, que 1 a avozi-·
:!i defendia a Mãe-França, e que muitos negros iriam apoiar. Faláva- nha de pálpebras ca1das. Aprendi a pegar camarão sob as pedras
mos do almirante Robert, espantado por só encontrar cana-de- do lag~ de Grosse-R?che. A caçar gambá para os lados de Pont-
. ·11 de-Chames. Soube bngar nas filas de espera do racionamento, guar-
1 açúcar nessa ilha submetida ao bloqueio ianque, e nem sequer a
1
menor superfície de coisas boas para comer. Durante suas noita- dar meu lu_gar, com uma pedra, enquanto ia procurar algum ga-
;.:.;'1 das comuns regadas a champanhe, o almirante suplicava aos be- nho extra a esquerda ou uma oportunidade à direita. Em breve
kês que liberassem as terras, mas (os alemães tinham invadido os o_sal de ~ainte-Anne, esquecido por todos, reapareceu nos arma'.
..' 1' campos de beterraba do Norte) estes faziam ouvidos de mercador, zens. Assim como os doces, que mais de uma espertinha recome-
"•
e apostavam numa alta brutal do açúcar de cana. Então, preferiam çou a fazer. Houve vinho de laranja, cervejas de ameixas, e um
esperar que os bons tempos chegassem. O almirante teve de forçá- bocado de invenções provocadas pela angústia.
los a conceder uns poucos hectares a alguns pés de inhame, a fim Havia marinheiros por todo lado. Suas rações consagravam-
de alimentar a ilha. Falávamos disso no mercado arruinado. Insul- nos reis desses tempos famintos. Na rua do cemitério, inúmeras
távamos os bekês, amaldiçoávamos os alemães. Deificávamos a eram as mulheres que os tragavam para o fundo das sombras e
imagem desse De Gaulle que logo me fascinou, embora eu não que adoeciam. Houve febres que médicos e farmacêuticos trata-
participasse da guerra. Os homens falavam dele como de um galo ram como puderam: os remédios já não chegavam às nossas praias
de briga. As mulheres afirmavam que o homem não tinha nada e a Cidade ignorava a antiga medicina das ervas. No Bairro dos
a ver com os negros daqui, pois cada um de seus colhões era de Miseráveis, por onde eu ainda passava, os habitantes mais recen-
madeira de cumari. Bagagem e tanto, meu caro ... tes tinham se livrado dessa ciência dos morros, como de um ou-
Tínhamos de viver sem óleo, sem sal, sem legumes secos, sem ropel. Ao menor arrepio, amontoavam-se nas varandas do asilo
arroz, sem carne-seca, sem sabão, sem alho, sem sapatos. Os mi- civil a fim de implorar um pó, suplicar um xarope. Quando os pós
seráveis já não achavam caixotes, folhas-de-flandres, pregos. O car- se esgotaram, ficaram com cara de bobos, como peixe na rede,
vão tornava-se escasso e cada vez mais caro. Quem acendia seu esperando da Cidade uma macumba milagrosa.
fogo não tinha fósforos, e dava um jeitinho para mantê-lo em brasa Eu, apesar de minha tremenda miséria, pude evitar o recurso
até o ad aeternam. Tínhamos de lutar numa economia ignorada aos marinheiros, como faziam as infelizes. Primeiro, porque Basi-
pelas pessoas da Cidade mas que as pessoas dos Bairros domina- le reaparecia de vez em quando com alguma comida (parecia vi-
vam bem. Comerciantes, açougueiros, vendeiros ignoravam sole- ver na guerra tão bem quanto um bekê), e depois porque minha
nemente as rações e favoreciam seus compadres, suas famílias ou preocupação era outra. Basile me dava filhos que eu não queria
os chefões magistrados, funcionários do tráfico, policiais engala- ter. Uma espécie de repulsa, de medo, de recusa que vinha simul-
nados. Para comer, era preciso ocupar um lugar em seus corações. taneamente da guerra, de meu desprezo por Basile, de meu medo
Certo dia, as vendedoras de peixe negaram-se até a vender, a fim de enfrentar a Cidade com uma molecada nas costas. Minha pri-
de liquidar com as veleidades de quem queria mandar em seus meira gcavidez foi surpreendente. Levei tempo para entender, e
negócios. Algumas deixaram os peixes apodrecer ao sol. Cada um foi Sylphénise (uma pobre coitada que vivia ao lado, com seis crian-
gostava de reinar sobre a fome do outro. A Cidade parecia endu- ças e homens episódicos) que me assinalou o problema e me acon-
recer o coração e torná-lo órfão. selhou um chá de abacaxi verde. Bebi esse chá um dia inteiro, até
Houve contrabando de rabos e orelhas de bois. Houve ven- me sentir jorrando por todo lado. Na segunda vez, agora atenta
dedores de peles assadas que comíamos sem sal, num molho de pude perceber que minhas regras tinham secado e lancei-me n~
pimenta herdado dos caraíbas. A arte de sobreviver que meu Es- chá de abacaxi, que não deu nenhum resultado. Sylphénise teve
ternome me transmitira em meias-palavras permitiu-me agüentar então de me iniciar na manipulação de um capim gorduroso com
sem maiores dificuldades. Eu bebia leite, comia ovos, mingau de o qual podíamos arrancar os óvulos mais teimosos. o que fiz a
araruta, barbado. Fabricava velas com manteiga de cacau, trafica- partir de então, sozinha, febril, chorosa, desesperada, submetendo-
va com o intuito de conseguir barras de sabão, depois tive de lavar me a hemorragias infinitas, dias e dias de febre em que eu pensava

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em morrer, e dos quais, ainda assim, conseguia me safar. Muitas galinhas frias, usavam os mesmos imensos penduricalhos. Luta-
vezes Basile me encontrou aos trapos. Graças às suas amizades, vam para que as mulheres tivessem direito de voto e pudessem
conseguia-me uns pós. Mas nunca soube de onde vinha aquilo. ser eleitas para os negócios da França. Doutos professores, uni-
:Eu não era a única a me furar o ventre. Quantas mulheres desgra- versais e progressistas, vinham exaltá-las evocando figuras femi-
çadas atrás das persianas fechadas ... e inclusive, até nos dias de ninas sem as quais a maioria dos grandes homens não teria êxito
hoje, quantas solidões amargas em torno de um sangue que cor~e na vida. Esses doutos estigmatizavam a França, sempre na vanguar-
com um pouco de vida ... ó, essa morte enfrentada no própno da e que, a respeito de mulher, fora distanciada pelos anglo-saxões.
coração de sua carne ... quantas mulheres desgraçadas ... No entanto, a História, essa grande educadora, tinhà emitido al-
guns sinais: Marie de Médicis! ... a rainha Elizabeth! ... a rainha Vi-
tória! ... Citavam o grande escritor inglês John Ruskin: "a mulher
OUTRAS PESSOAS DA CIDADE. Basile encontrou-me um trabalho, é verdadeiramente a instigadora de todas as grandes e belas coi-
lá pelo final da guerra, na casa de um seu Alcibiade, secretário- sas'', e, inclusive, ''a inspiradora das maiores obras literárias''.
adjunto do departamento de Obras Públicas, um desportista amigo Falavam de Joana d'Arc (encarnação do heroísmo), de Madame de
seu. Esse aí era um desportista-caçador; interessava-se pelas pe- Sévigné, George Sand, Madame de Staêl, como glórias das letras
nas da narceja, do pato selvagem, da galinha-d' água, da tarambo- universais. Extasiavam-se com Madame Curie, esplendor da ciên-
la. Ficava à espreita da pomba-trocaz nas colinas nubladas, escala- cia, benfeitora da humana condição; ou homenageavam as senho-
va os penhascos à procura de rolas. O caçador é um desportista, ras Suzanne Grimberg e Maria Vérone, constelações maiores do
j:I
.;!, Marie-Sophie, explicava seu Alcibiade quando à noite, depois da foro parisiense. E concluíam, patéticos, que a mulher era apta pa-
• .. 1,
louça lavada, eu o olhava lustrar sua espingarda. O caçador que ra os mais elevados destinos, podia escalar de cabeça erguida os
'1
persegue a caça corre, anda, escala, atravessa rios, cai nos ba~ran­ degraus rumo às cadeiras das assembléias municipais, dos conse-
cos salta à distância com ou sem impulso, tem de se agachar diante lhos-gerais, do parlamento, e quiçá do cerne do Estado, graças aos
da ~ve desconfiada, rastejar com os quadris ou andar ajoelhado gabinetes governamentais. E eu aplaudia com aquelas Damas, fas-
quando o pato é delicado. Nas matas, não obstante a ameaça da cinada, transportada por tanta elevação. Minha vida só conhecia
i
·.1: cobra-de-três-cabeças, tem de subir nas árvores, abraçar os tron- a sobrevivência sem nenhuma vergonha, os barracos de caixotes
L
cos, pendurar-se nos cipós, como o mais completo ginasta de barra obscuros, o enfrentamento sem brilho para penetrar na Cidade,
fixa. É um esporte completo, digno das cidades civilizadas! ... Era
mas, ao lado dessa senhora Eléonore, veio-me o desejo de fazer
um preto de brilhantina, um pouco mole, barrigudo, que usava parte de uma associação semelhante, e falar assim dessas coisas.
no calcanhar pinças de andar de bicicleta e botava em suas frases
O Noutéka dos morros, em mim, havia se apagado.
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um monte de palavras desconhecidas. Jamais se dirigia em criou-
De seu lado, seu Alcibiade militava pela caça e pelo movimen-
lo a uma pessoa, e (apesar de uma biblioteca encadernada de cou-
to mutualista. Participava dos banquetes dos caçadores onde to-
ro que eu tinha de espanar toda semana) só lia de fato um jornal
dos cantavam bêbados como velhos mexicanos:
dos caçadores que lhe vinha da França.
Sua mulher, uma tal de senhora Eléonore (cujos seios pare- Ó, santo Hubert
ciam duas bolhas de catapora e a barriga, um buraquinho deserto), Com a fronte descoberta
cuidava de uma associação de ajuda mútua chamada As Damas Pre- cantamos tua glória
videntes de Fort-de-France. Essas Damas organizavam reuniões às Vamos beber
quais eu acompanhava a senhora Eléonore para servir o chá e as e brindar tua saúde
madeleines. Eram muito dignas, muito cheias de não-me-toques, para a posteridade.. .
muito grã-finas. Não se conseguia sequer distinguir quem era mu-
lata e quem não era, de tal forma eram parecidas, falavam o mes- Criara com seus companheiros uma associação que ele dizia ser
mo francês com as mesmas palavras, os mesmos cacarejos de cinegética. Esta dispunha de um estatuto de pessoa jurídica, de um

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ver na amargura da rua do cemitério. Mas na mesma noite ouvi-o,
uniforme, de um emblema, de uma flâmula, e desfilava no cerra-
durante o jantar mensal com os amigos funcionários, exclamar que
do por ocasião das festas nacionais, sob a bandeira da federação
sua casa era uma casa iluminada, pois até mesmo sua criada lia,
esportiva. Lutava para que a administração reduzisse a taxa anual
de cem francos exigida para a licença de caça, terrível imposto oh, não muita coisa, esse beberrão do Rabelais e um troço de uma
suntuário!... Brigava para conseguir a autorização de caçar rolas g".'otinha num país das maravilhas, o que não vale François Cop-
na selva dominial, o que a seu ver era a melhor maneira de afastar pee, mas ainda assim, cavalheiros, ainda assim ...
as cobras-de-três-cabeças que infestavam aqueles locais. Lutava Sonhava com uma grande Casa da Mutualidade, templo da
contra os bekês do Sul, do Norte e do Leste, a fim de ter acesso União, crisol dos sentimentos de amor e fraternidade, foco de
às suas terras jiboiosas mas tragicamente privadas. Verdadeira coo- irradiação do espírito democrático, símbolo da bondade e da con-
perativa de consumo, a associação comprava diretamente dos fa- córdia, que serviria de sede para as sessões da Federação. Ali en-
bricantes metropolitanos armas, cantinas, munições, equipamen- trevia festas, banquetes, conferências científicas, artísticas, literá-
tos diversos. Seus sócios aproveitavam-se assim de uma percenta- rias, dirigidas aos membros da Mutualidade. Seguia a atualidade
gem dos lucros exagerados que, de outra forma, caberia ao me- da França em matéria de previdência social, grande conquista re-
nor intermediário. Esse militantismo era a maneira de seu Alcibia- publicana apoiada pelos ilustres René Viviani, Edouard Vaillant,
de trabalhar para a propagação do espírito esportivo que tende Léon Bourgeois, JeanJaurês ... Insistia junto a todos para que cada
a se desenvolver nos países civilizados e do qual nossa querida um se mobilizasse a fim de que isso fosse aplicado à nossa queri-
pequena Martinica não seria capaz de desertar. Precisávamos nos da Martinica, essa pequena-França tão longe de tudo. Sobre esse
colocar à altura da França, sacudir o torpor da juventude crioula assunto, dava conferências inflamadas, sob a presidência de hon-
fascinada pela música e pelo belo sexo e pela vertigem das sem- ra do chefe do departamento de Obras Públicas e de alguns ve-
vergonhices. lhos médicos cavaleiros dos templários. Com a previdência social,
Também era sócio da Sociedade dos Amigos das Árvores, que exclamava, com os abonos para os idosos, o auxílio-maternidade,
se preocupava com o desaparecimento de nossas florestas, o que as pensões por invalidez, os salários-família, a assistência médica,
traria, a termo, o desaparecimento de nossas magníficas cachoei- e fico por aqui. .., as classes trabalhadoras de nossa querida Marti-
ras. Esses se reuniam atrás do Palácio da Justiça para ler textos de nica poderiam aceder à Ci-vi-li-za-ção, ao trabalho alegre, longe
Lafcadio Hearn que denunciavam o desflorestamento descontro- das fatalidades banais da existência, tal como o farão brevemente
lado, o que alimentava as serrarias e os fornos de carvão. Redi- os bons franceses da França!. .. Esses auxílios já existem na Alema-
giam longas cartas ao governador, ao ministro das colônias, ex- nha, fulminava, desde o século passado!. .. Mesmo a Inglaterra, a
pressando a idéia de que a França imortal, gloriosa, universal, de- pérfida Albion, se é que é o caso, aprovou-os já em 1908!. .. Que
veria zelar pela beleza paradisíaca deste trapo de si mesma, perdi- a França dos Direitos Humanos tergiverse dessa maneira, cavalhei-
do tão longe nas Américas. ros, é algo que a desonra ...
Por último, seu Alcibiade era membro da Federação Mutualis-
ta. Esta alimentava na ilha a chama sagrada da ajuda mútua, a exem- Escutando a Senhora, tive de repente a impressão de que
plo das sacerdotisas que, na Roma antiga, conforme ele costumava não havia nesse emaranhado, nessa poética de barracões
esclarecer, atiçavam a chama do altar de Vesta. Lutava, portanto, pa-
consagrada ao desejo de viver, nenhum contra-senso
ra que as sociedades mutualistas se unissem, e para que cada uma
maior que fizesse desse lugar, Texaco, uma aberração.
possuísse uma biblioteca aberta pa'ra a Humanidade. Surpreendeu-se
Além dos transtornos insólitos dos tapumes, do concre-
um dia ao perceber meus quatro livros, bem arrumados entre meus
to, do fibrocirnento e das folhas-de-flandres, além das ca-
pobres trastes. Ele, que só lia realmente a folha dos caçadores, per-
choeiras que despencavam pelas ladeiras, das poças de
guntou se eu os tinha lido e pareceu espantado ao me ouvir res-
água parada, do desrespeito às regras de salubridade ur-
ponder Sim, e ao vê-los enegrecidos por minhas leituras freqüen-
bana, existia uma coerência a ser decodificada, que per-
tes. Por instantes acreditei que me mandaria embora e que eu ia me

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mitia àquelas pessoas viver tão perfeitamente, e tão har- voações sufocadas sob as pró"rias sombras "É :·····:. '
moniosamente quanto era possível viver, nesse nível de " ... uma idi0·w ·
exclamou seu Alcibiade determo-nos diante  · · <.;e,
condições. ' uascomoções·dê·um
jean-Jacques Rousseau, cuja concepção do bom selva . .
Nota do urbanista ao Marcador de Palavras. ta à do "Civilizado corrompido", é de fato lament"!eml, ?,Pos-
xx1. fi t d . ave. Que
Pasta n'? 12. Folha
ob~ dor es ominem os fracos é uma lei natural", gritou seu Alci-
1987. Biblioteca Schoelcher.
1a e levando-me a um sobressalto ' "decerto cruel, m as natural''
Foi por ele que ouvi falar de assimilação, durante uma con- Essa seleção natural, aparentemente cruel, muitas vezes é ape:
ferência proferida sob os auspícios da associação mutualista O Fu- nas, seg~ndo Herbert Spencer, e para quem sabe considerar a
turo da Redoute. Havia tempos que os mandachuvas da França perspectiva global do futuro humano, "o decreto de uma bo _
tinham consultado as autoridades locais para saber se a Martinica dosa e imensa previdfJncia ". Aos sofrimentos coloniais passage~­
desejava ser integrada num Governo-Geral, compreendendo as An- ros seg~e:se um progresso definitivo. Os nativos agora recebem
tilhas e a Guiana, ou se preferia optar por uma assimilação à Me- um salario regular, tratamentos civilizados dados aos doentes
trópole. Todos se declararam pela assimilação à Mãe-Pátria, mas Sua buma~idade eleva-se, pois são obrigados a viver em paz~
desde então, e fazia muito tempo, desde a época de meu Esterno- na[raternidade, na concórdia universal ... A sala (e eu em pri-
me e de minha Idoménée, discutiam-se nos salões da Cidade as meiro lugar, transportada por essas palavras incompreensíveis que
modalidades dessa assimilação que alguns mulatos queriam que se gravavam em mim) suspirou de prazer ...
fosse abrandada por um toque de autonomia, sobretudo financeira. Quando seu Alcibiade examinou o problema que ele dizia ser
Nos bairros populares, a discussão estava no auge (assimilado aqui, fundamental das "relações entre as sociedades novas fundadas
assimilado acolá), mas de outra maneira, pois os negros, sempre nas colônias e a Mãe-Pátria distante'', comecei a flutuar numa
presentes quando se trata de dizer uma besteira, declaravam de doce vertigem. Seu francês, seu sotaque carregado, suas frases flo-
bom grado que se sentiam "sentados-em-cima-de-uma-mula", a ridas, funcionavam como uma pequena música à qual eu me en-
fim de se diferenciarem dos que permaneciam obscuramente "sen- tregav~ sem sequer tentar compreender ou refletir. Disse, creio,
tados-em-cima-de-um-cabrito". Seu Alcibiade tratou a fundo essa que nao deveríamos aplicar as mesmas leis a todas as colônias
questão, com um arrebatamento em belíssimo francês. Eu o tinha pois os estágios de desenvolvimento, as distintas raças as situa'.
visto preparar essa conferência durante um mês, trancafiado em ções geográficas, os graus de civilização não são unlformes. Se
seu escritório, com uns dois ou três livros da bibilioteca e algu- a Reunião, as Antilhas e a Guiana são doravante sociedades ma-
mas gazetas coloniais que a Federação Mutualista recebia por bar- duras, a Obra da colonização estando aí quase concluída a No-
co. Ouvia-o declamar frases tão belas, quando levava o seu chá va Caledônzt:, o Senegal, o Tonquim mal emergem, a mut't~ custo,
vespertino (uma mistura de erva-cidreira e camomila), que não me da g~ng'!' barbara. Outras, como o Sudão, Madagáscar ou o Con-
atrevia a pedir para assistir. Para minha grande surpresa, respon- go dispoem apenas de um vestígio de luz em sua noite profun-
deu com um Sim cheio de entusiasmo. Passei o resto da semana da. Portanto, precisamos levar em conta a evolução de cada
a preparar um de meus vestidos da França, da época dos Gros- uma, e legislar de acordo. Esse avanço das colônias rumo à or-
Joseph, e, como num sonho, pude assistir a essa fabulosa confe- ganiz~ção social .dos países europeus demanda muito tempo, ca-
rência. valheiros, comedimento, prudência, resumindo, uma política co-
É bom dizer que não entendi lá muita coisa. Teso como uma lonial ... ! Todos aprovaram e, preocupada em não revelar minha
estátua de jesus cristo, seu Alcibiade demonstrou, "à guisa de i~aptidão para compreender essas belas palavras, aprovei mais
inevitável liminar", como uma questão que se chamava "Colo- amda.
nialismo" provocou no mundo inteiro mais vantagens do que Depois, seu Alcibiade me deu medo, pois franziu o cenho,
inconvenientes reais. Que essa questão alastrara por todo lado "a alt~ou a ~º~· e lançou um olhar circular para afastar uma espécie
Civilização. Ó, Civilização!... ofuscante luz! desconhecida das po- de imundície chamada "sujeição", cujo objetivo era explorar a co-
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;' 1.'
/(mia no interesse exclusivo da Metrópole. Brandiu o punho para e para mostrar-lhe que eu escutava. Graças à assimilação, ex-
melhor demonstrar como a Metrópole era então forçada a go- tasiava-se, todas as leis da Metrópole, todos os progressos da ci-
vernar com mão de ferro e a matar a galinha dos ovos de ou- vilização e do espfrito serão aplicados na colônia, pondo no ca-
ro ... Fez três caretas para melhor ilustrar como a Metrópole via-se bresto os feudalismos locais. Pensem nisso, cavalheiros, pois os
forçada a avalizar governadores que se comportavam como vice- bekês nos espreitam! ... A Mãe e seus filhos marcharão doravan-
reis e que tratavam as colônias como terras conquistadas. As po- te no mesmo passo, em plena igualdade. Mas, explicou, há um
pulações então se revoltavam, com tanto mais ód!~ quanto eram Mas. A assimilação, que é a melhor fórmula, é inconcebível de
geralmente mal civilizadas; e suas revoltas legitimas provoca- maneira absoluta. Evocou (num tom de mestre-escola e dando
vam repressões cegas, como conhecemos aqui, no François, bem olhadelas furtivas para seus papeizinhos) como a vida econômica
defronte da usina, não faz muito tempo ... ! Subjugar, gritou, é das zonas francas de Gex e da Alta-Savóia é diferente da dos
sacrificar as liberdades locais e o direito dos habitantes, é alar- outros departamentos franceses, lembrou que o representante ofi-
gar o fosso natural que separa o colono do nativo obscuro ... ?s cial do governo francês dispõe de prerrogativas, em matéria de
expulsão, que normalmente são da alçada do ministro do Inte-
aplausos foram um pouco mais frouxos, de tal modo que eu nao
soube muito bem o que fazer, e então fiz de conta que sofria com rior. Evocou o regime fiscal singular da Córsega. Salientou as
o calor e utilizei minhas duas mãos para abanar o rosto. Mas al- vantagens especificas, descentralizadas, da Alsácia-Lorena que
guns professores comunistas aprovaram ruidosamente: e e~tão pa- voltara para o regaço nacional ... Depois, recomeçou a berrar,
rei de me abanar para sacudir o queixo de uma maneira nao mui- · mas dessa vez não me assustei, e pude continuar a escutá-lo da
to clara. Restavam, anunciou seu Alcibiade virando a cabeça para melhor maneira possível. Disse que as particularidades de nossa
a direita e para a esquerda, a autonomia e a assimilação. querida Martinica deviam aumentar as da Mãe-Pátria, sem por
Aí adotou um tom mais suave que me permitiu relaxar um isso desaparecermos, nem nos diluirmos, que a assimilação se-
pouco' em minha cadeira e tentar compreender o que ele dizia. rá tanto mais rica quanto for moderada, sem igualitarismo ce-
Em sua boca, a língua francesa parecia infinita, e cada palavra ar- go, com a força da autoridade central mas rica em matéria de
rastava dezenas e dezenas de outras, com o ímpeto de um rio em liberdade e de descentralização esclarecida ... ! Houve um corre-
enxurrada. Perdida em toda essa vaga, eu tentava localizar os subs- corre como se algum lugar estivesse pegando fogo. Levantei-me,
tantivos, os pronomes, os verbos e os advérbios, mas logo desis- como todo mundo, disposta a correr, mas entendi bastante de-
ti para retomar um pouco mais tarde, sem saber muito bem por pressa que tínhamos levantado para melhor aplaudir e assinalar
q~ê. Essa história de "autonomia", explicava, tem por_ objeti~o a seu Alcibiade que aprovávamos sua ardorosa conclusão. Cada
fundar sociedades capazes de se autogovernarem. A Mae-Pátrta pessoa aumentava o zunzum a fim de tomar posição e argumen-
erige-se então em tutor romano que deve trabalhar para se tor- tar num debate que ouvi ao longo de toda a minha vida, sem pa-
nar inútil. Mas, mas, mas (soltou tantos Mas que achei que tinha rar e sem cessar, como um leitmotiv infernal que já não sabíamos
ficado gago, mas logo compreendi que era um vício de linguagem interromper, e que hoje mesmo, creio, hein, pequeno Cham, ain-
para introduzir a continuação), quando a colônia se torna um Es- da agita nossos homens.
tado autônomo sob o controle da Mãe-Pátria, esta vê o filho se Foi com seu Alcibiade que aprendi a idéia de assimilação, mas
afastar, cada vez mais ingrato, o filho que não lhe custa nada, foi Aimé Césaire, nosso papai Césaire, que levou o projeto até o
I!
,.

1 mas que cada vez mais nada lhe traz... ! (Disse isso com tal cara Parlamento da França e obteve, nas barbas dos bekês, que fôsse-
1
'~:,
I de nojo que me pareceu estar prestes a vomitar.) Em compensa- mos um departamento francês. Eu ouvira Basile, a senhora Thel-
"11~ ção, a assimilação é o contrário! A Mãe-Pátria e seus filbos le, o senhor Alcibiade falarem dele como de um preto negro, mais
'1 ''

1 •).;, fundam-se juntos, criam-se juntos... "Ali onde está a bandeira, negro do que meu querido Esternome, que poderia ser confundi-
I:,"•
•.. ali está a França", dizia Napoleão!... Comecei a ficar contente, do com esses negros congos semi-imbecis que chegaram recente-
pois ele parecia contente, exuberante, satisfeito, jorrava suas fra- mente, e que se enterravam nos morros sem sequer terem tocado
ses como bênçãos e endireitei-me na cadeira para que ele me visse nas luzes de uma Cidade. Pois bem, esse preto negro conhecia a

220 221
.i
Droite, Morro Abélard, Sainte-Thérêse. Não tinha medo de andar
.1 língua francesa melhor do que um grosso dicionári~,. cujos erros na lama, e vê-lo chegar nos exaltava. Saíamos correndo para car-
era capaz de descobrir com uma simples olhadela. DlZlam que po- regá-lo por cima das águas paradas, evitar que sujasse os sapatos.
i 1
dia falar com você em francês sem que você compreendesse nem Trouxe-nos a esperança de sermos outra coisa. Ver esse negro tão
.I' a metade de uma palavra, que sabia tudo sobre a poesia, a histó-
i~ eminente, tão poderoso, com tantos saberes, tantas palavras,
ria a Grécia, Roma, as humanidades latinas, os filósofos, em su- remetia-nos uma imagem entusiasmante de nós mesmos. Doravan-
m;, que era mais sábio, mais letrado, mais extraordinário do que te, tínhamos a impressão de podermos escapar daquilo e conquis-
0 maior crânio branco-frança. Praticava, diziam, uma estranha poe- tar a Cidade. Quando pediu nosso voto, votamos em peso e o co-
sia, sem rima nem medida; declarava-se negro e parecia orgulho- locamos na prefeitura, de onde jamais, e até que eu esteja mor-
so de sê-lo. O pior é que se mostrava ingrato ao denunciar o colo- ta, e meus ossos furados, nunca ninguém jamais jamais poderá ar-.
nialismo. Ele, a quem a França ensinara a ler, a escrever, dizia-se rancá-lo.
e reivindicava ser africano. Isso deixava seu Alcibiade num hor- No entanto, depois da morte de minha Idoménée, enquanto
ror inefável, Valha-me Deus, a África! .. ., esse lugar de selvageria os boatos assinalavam a existência do negro mágico, meu Ester-
que nenhum mapa civilizado detalha por completo! ... Mas seu Al- nome, apoiando-se em meu ombro, fora escutar Césaire. Lembro-
cibiade ficaria impressionado pela personagem, pois murmurava- me de que avançávamos a passo miúdo, pois ele não tinha olhos
se que André Breton o encontrara e que, diante dele, esse papa nem força, nem sequer vontade de viver. Andava murmurando
do surreal sentira-se pequeno. Que Césaire fosse comunista tam- Deve ser um Mentô, deve ser um Mentô, e essas palavras davam-
bém apavorava seu Alcibiade. Essa palavra não me dizia nada. Eu lhe um entusiasmo que neutralizava a rigidez dos joelhos. É só ago-
só deveria captar seu alcance quando lutei em Texaco, mas para ra que tudo isso se encaixa perfeitamente dentro de minha cabeça.
seu Alcibiade era um poço de horror. Ele sempre quis reencontrar um Mentô para saber como abordar
Entretanto, para nós que afagávamos um velho sonho dentro essa conquista da Cidade à qual, sem grande êxito, dedicara sua
dos muros da Cidade, Césaire tudo mudou. Fazia tempo que a po- vida. Queria ouvir sobre isso uma palavra, dizer algumas palavras
lítica nos parecia um negócio de bekês e mulatos. Meu Esternome, ao Mentô. Ver um negro provocar tal entusiasmo, à maneira dos
desde que subira para os morros, desinteressara-se do assunto. mulatos políticos, provavelmente levou meu Esternome a tomá-
Quando desceu para encontrar a Cidade de Fort-de-France, com lo por um Mentô. E ali, naquele dia, ia para vê-lo, para ouvi-lo,
aquele prefeito mulato, Victor Sévere, no en~anto bastan~e pr?x.1- para falar-lhe, escutá-lo, saber das novas ordens e talvez transmiti-
mo dos miseráveis, tampouco se interessou. Soa França, Mae-Patna las a mim. Mas estávamos atrasados. A reunião começara. Os alto-
distante, que ele homenageava cegamente, ocupava seu pensamen- falantes nos transmitiam de longe o discurso de Césaire, seu fran-
to. Dizia à minha Idoménée, extasiada diante da humanidade des- cês, suas palavras, sua voz, seu fervor. Meu Esternome parou, es-
se Sévere, Tenção, minha/ia, é um mulato, e os mulatos são co- cutou, depois suas unhas cravaram-se em meu ombro: Annou So-
mo os caga-lumes ... Ele, que assistira ao nascimento dos mulatos fi ma fi, an nou viré bo kay, Sophie, minha filha, voltemos para
em Saint-Pierre, surpreendera-se ao encontrá-los reinando em Fort- casa ... Não perguntei por. quê. Ao final de poucos passos, disse-
de-France. Também se surpreendera ao ver como os pretos, aban- me num sopro, como à sua doce Ninon, faz tantos anos, e sem
donando a conquista da terra, se haviam lançado, tal como os mu- que eu compreendesse:
latos, ao assalto da escola, do Saber, da língua francesa e do poder - É um mulato ...
político. Dizia à minha Idoménée Os mulatos ganharam, agora nós
os seguimos como um bando de carneiros e enchemos suas u~~·.
Nunca pôs os pés num comício de Sévêre ou em qualquer reumao
política, ao passo que os habitantes dos velhos bairros, conquanto
se sentindo excluídos, compareciam em massa.
Mas Césaire, preto como nós, levou-nos para a política. Co-
mo Sévêre veio até nós até o Bairro dos Miseráveis, Trénelle, Rive-
' ' .
223
222
TEMPOS DE FIBROCIMEN10
(1946-60)

Quando Césaire foi eleito para a prefeitura de Fort-de-France,


seu Alcibiade adoeceu de verdade. Um preto que se diz da África
ia administrar a Cidade ... e, como se não bastasse, comunista! ...
Ele se esfalfou em longas conversas para demonstrar como esses
Bairros tenebrosos nos arredores da Cidade podiam ser minas de
barbárie nas mãos de políticos ignóbeis; para dizer como uma po-
Htica esclarecida deveria visar a recuperação dos campos a fim de
despachar essa gente para o interior ... ! A maioria de seus amigos
pensavam da mesma maneira (isto é, rejeitavam a África, os bair-
ros populosos, a poesia-vidente, as posições contra o colonialismo,
e outras taras de Césaire ... ), mas todos (mulatos ou não) identifi-
cavam-se com o novo prefeito. Saboreavam seu domínio da língua,
seu saber, seu exercício constante de elevação acima da condição
humana. Quando Césaire rompeu com o Partido Comunista e criou
o seu, a partir da idéia de progresso, muitos amigos de seu Alcibia-
de entraram para esse partido. Aproximaram-se então dos bairros
populares que lhes forneceram o grosso dos militantes, coladores
de cartazes, brutamontes capazes de garantir a realização de um co-
mício. A cada eleição (e mesmo em 46, com o anúncio de que fi-
nalmente éramos uma espécie de franceses), uma enxurrada uivante
descia dos Bairros, com tochas nas mãos, para festejar o pequeno
negro que se tornara um homem-macho, nosso prefeito, nosso de-
putado, nosso malvado poeta, continuamente reeleito.
A partir do primeiro carnaval das tochas, para mim tudo de-
generou, encaminhando-me assim para a fundação de Texaco. O
pessoal-dos-morros, como eu mesma,' tinha votado em Césaire.

(•)Um decreto de De Gaulle tinha finalmente dado o direito de voto às mu-


lheres, e a senhora Eléonore Alcibiade mobilizara as Damas previdentes de Fort-

225
Com a notícia de sua eleição, houve um belo fuzuê na Cidade. O cavalheiro estava sentado ao lado de minha cama. Uma ve-
Sem pedir nada a ninguém, saí da casa de seu Alcibiade e fui me la iluminava as bossas de seu rosto e deixava todo o resto na escu-
juntar com os habitantes dos Bairros Trénelle, Terres-Sainville, ridão. Um vento de loucura esgazeava-lhe os olhos. O senhor me
Rive-Droite, Sainte-Thérese, e até dos Bairros afastados como Co- espiava em silêncio, não apenas sem dizer nada, mas em silêncio.
ridon, etcétera. Que algazarra .. .! Era um pouco nossa revanche Deslizei em mim mesma como uma tábua de cumari num pânta-
contra a Cidade, o avanço verdadeiro de nossa conquista obscu- no parado. Pura e simplesmente, abri-me diante de um vento de
ra. Chorei prantos, soltei cantos e todo meu corpo inebriou-se. terror, e depois cada fiapo de minha carne endureceu como pe-
Eu estava consternada por meu Esternome ter se enganado tanto dra. Não era mais seu Alcibiade exposto diante de mim, mas uma
a respeito de Césaire, e não ter podido viver essa maré de tochas. pessoa que eu não conhecia, entroncada nele como uma força
Montes de tochas que formavam um redemoinho em torno da pre-
mortal - fascinante. Mesmo agora, quando repenso nisso, não en-
feitura, desciam a Levée, atravessavam a Savane, ziguezagueavam
tendo esse fenômeno que me fez não reagir quando ele trepou
pelo centro da Cidade. Debruçados nas sacadas, os mulatos-milatos
ou os negros-milatos nos espiavam sem acreditar. Cercamos asa- em cima de mim, me despiu, e me penetrou com um tranco sel-
cada onde o senhor Alcibiade, desmazelado, a barba por fazer, os vagem de quadris. seu corpo invencível e arquejante quebrava-
cabelos trespassando vaselina, uivava uma perversidade que nos- me, esquartejava-me, desossava-me, transpassava-me. Ele grunhia
sos cantos abafavam. Sua mulher tentava levá-lo para dentro, mas de alegria vingativa. Eu, que voltava dos abraços de Nelta, des-
ele, agarrado às grades, berrava como boi sangrando. De repente, penquei num barranco onde se emaranhavam o prazer, a vergo-
consegui chegar perto dele, seu olhar (apesar da multidão) captou nha, a dor, a vontade de morrer, a vontade de matar e de ser morta
o meu por um meio segundo durante o qual nem sequer tive idéia o sentimento de injustiça, de não existir, de ser uma cadela des'.
de parar de cantar. Nunca mais flagrei num olhar tamanha carga prezada, o ódio dessa Cidade por onde eu zanzava sozinha, entre-
de desespero, ódio e desrespeito à vida. Isso deixou-me com os gue a todas as desgraças sem escolher o caminho. Ter ficado as-
ossos moídos, mas continuei meu carnaval, levada por uma en- sim, durante quase duas horas, como o brinquedo flácido desse
grenagem implacável, que aliás me jogou nos braços de Nelta Fé- seu Alcibiade, deve ter sido o que me levou a nunca mais me dei-
licité, um negro estivador versado em política, que não me lar- xar comandar por ninguém, a decidir em todo momento, com ab-
gou mais, e nos braços de quem, depois desse enterro-dos-ossos, soluta autoridade, sozinha, o que era bom para mim e o que eu
me meti debaixo de uma sombra, encostada num tamarineiro, sa- devia fazer.
cudida por uma loucura endiabrada, prazeres e um coração guloso. No dia seguinte bem cedinho, topei na cozinha com a senho-
ra Eléonore. Não me fez nenhuma pergunta sobre aquela água que
corria de meus olhos, que regava a cafeteira, a mesa, o chão, o
ÉPOCA CABEÇA-MALUCA. Quando o calor diminuiu e que voltei
quintal, o tanque, a roupa para lavar, o meio-fio para esfregar, a
com Nelta para a casa de seu Alcibiade, foi a época de minha an-
calçada para escovar. Não ignorava o que havia acontecido. Eu
gústia. Lembrei-me de seus olhos, de minha saída-sem-pedir, e ti-
ve feios pressentimentos. A porta estava aberta, portanto Nelta me percebia seu desespero no modo de esbarrar nas cadeiras e de se
deixou ali mesmo. Entrei no corredor silencioso. Cruzei a sala na reaprumar, ereta como um cabo de vassoura. Eu, estropiada, era
escuridão, subi a escada, passei pelo andar do quarto do casal Al- apenas capaz desses gestos mecânicos que limpam as casas. Pas-
cibiade, e cheguei ao quartinho onde se amontoavam meus tras- samos os meses que se seguiram a tratar dos delírios de seu Alci-
tes, meu colchão de crina, meus quatro livros. Deitei-me, vupt, biade. Várias vezes ele tentara empunhar a espingarda para ir até
preocupada em não acordar ninguém, e mergulhei nessa espécie a prefeitura e atirar em cima de todo mundo. A senhora Eléonore
de sono que suprime as noites. Foi seu Alcibiade que, de repente, (felizmente .. ..0 escondera as balas, e mesmo quando ele conseguiu
me acordou para me trazer o sofrimento. vencer nossa vigilância (quando o encontrávamos na sacada a bor-
near a noite, ou alquebrado no ,tanque, com o cano na boca, ou
de-France para levarem suas criadas às urnas, pouco se importando com o que dependurado na calha, com a espingarda debaixo do braço, fin-
íamos colocar ali dentro. gindo uma escalada até a asa branca de uma rolinha), já não soltá-

226 227
1

vamos nossos gritos do coração sobressaltado. Tínhamos, simples- embora, desanimado. O comportamento da senhora Eléonore

·.'
mente, de levá-lo para a cama De dia, levantava-se sozinho, recu- assemelhava-se aos que pude ver na Cidade. A doença era uma
sava o banho, a barba, e sentava-se na mesa da sala de jantar. Com vergonha para ela. Escondia o marido como esconderia alguma
a pena de ganso, caligrafava cartas de insultos aos comunistas, ao desonra, um monstro de duas cabeças ou sei lá eu que ressuscita-

!
desportistas que se iludiam, aos mutualistas que contemplavam do do inferno. Jamais chamou um médico, mesmo durante os aces-
.,
;:·,'
'" hipócritas aquele recuo da civilização, ao primeiro representante sos de fúria, quando nós duas, eu agarrada em seu braço, éramos
oficial do governo francês (que desembarcara em grande pompa), arrastadas do quintal para o sótão. Os vizinhos ouviam essa con-
,,'1:
'' que, ao aceitar essa tragédia, desonrava a França. Lacrava tudo e fusão, mas, salvo alguns movimentos de cortina, atribuíam tais agi-
1, a senhora Eléonore fingia que ia enviá-las. Mas escondia-as na bolsa tações à febre tifóide que minava os Bairros, e nos esqueceram
ao voltar para casa, depois de um desvio pelo mercado para com- mais ainda. Sem saber, eu estava aprendendo sobre a Cidade: essa
prar comida. solidão esfarelada, esse encerramento dentro de casa, essas chapas
Entretanto, seu Alcibiade não era tão louco assim. Bastava a de silêncio sobre as dores vizinhas, essa indiferença policiada. Tu-
senhora Eléonore virar as costas e ele tentava agarrar a taça de meus do o que fazia os morros (os sentimentos, os corpos, o tocar-se,
peitos. Ah, posso dizer que esse pobre patife pagou caro pelo que a solidariedade, os mexericos, a mtrumissão invejosa nos assun-
me fez, recebendo pancadas na cabeça, vôos de panelas, bacias, tos alheios) esfumava-se em friezas no centro da Cidade. A senho-
tinas de água de banho ... Uma vez, segurei seus colhões com duas ra Eléonore ainda praticava o ofício da sacada, na hora do sereno.
mãos e espremi-os com toda a força. A senhora Eléonore, supos-
Tomava o cuidado de trancar seu Alcibiade dentro de um armá-
tamente voltando do correio, achou-o dobrado em seis. Diagnos-
rio, e aparecia entre as dálias, fazia cara de felicidade na brisa fres-
ticou um ataque de loucura e puxou o terço para santificar aque-
ca, junto com as outras senhoras. Seu perfume. Este ou aquele ves-
les miados. Quando minhas surras eram fortes demais e deixavam
marca, eu as atribuía a um escorregão na bacia ou a alguma escala- tido. Uma jóia. A beleza de suas flores. Todos rivalizavam entre
da até um ninho de rolas. Uma vez, cheguei até a empurrá-lo pela si... De uma sacada à outra, os sentimentos empobreciam, e dia
escada, mas ele conseguiu segurar o corrimão. Outra vez, em cri- após dia eu tinha a impressão de ver a Cidade escavar abismos
se eu mesma, quase o mandei valsar pela janela. imperceptíveis.
Quando soube que estava grávida (dele, que só me tinha to-
cado uma vez) e que novamente precisava enfrentar o capim gor- A Senhora ensinou-me a perceber a cida.de como um
duroso e os quatro dias de um sangue que escorria com minha ecossistema, todo feito de equilíbrios e interações. Com
vida, fervi água a fim de lhe jogar na cabeça. A água (obrigada, cemitérios e berços, línguas e linguagens, mumificações
deus meu) não ferveu direito. Sua pele não ficou com marca nem e batimentos de corpos. E nada que progride ou recua,
vestígio de nenhuma espécie. Mas, na hora, ele gritou, gritou com nenhum avanço linear uú alguma evolução darwiniana.
g maiúsculo. Pensei que seu corpo escaldado lhe sairia pela goela. Apenas o redemoinho aventuroso do que está vivo. Além
O cavalheiro galopava pela casa, eu o perseguindo com minha pa- das melancolias, das nostalgias inquietas ou das vanguar-
nela queimando, e xingando-o até a morte. das voluntárias, é preciso falar dessas leis informuláveis .
... esse sangue vivo que escorre ... Então, como?
Seus amigos vinham vê-lo. A senhora Eléonore pretextava sei
Nota do urbanista ao Marcador de Palavras.
lá eu que suadouro e não os deixava entrar. Não insistiram muito Pasta n? 17. Folha xxv.
tempo. Logo, todos desapareceram, e nenhum dos grupos mu- 1987. Biblioteca Schoelcher.
tualistas, dos caçadores de banquetes, das grandes almas despor-
tistas se lembrou do buliçoso conversador. Ficamos isolados. A Eu fazia o melhor possível para cuidar da casa, ruminando em
senhora Eléonore não me autorizou mais a sair. Eu só podia ver mim mesma inúmeras resoluções. Com os Alcibiade, sentia-me so-
Nelta Félicité pelas persianas. Chamava-me com sinaizinhos e ia çobrar, sem poder reagir. Estava como que entorpecida entre dois

228 229
parênteses, deixando-me levar por certos hábitos. Ficar (ou par- pôr um endereço, anotando apenas Canal do Panamá. Trazia cada
tir, como decidira dentro de mim) me tranqüilizava. Ruminar mi- vez menos coisas gostosas para comer. Começou a me faltar sa-
nhas amarguras secretas, zombar do senhor e da senhora ãs es- bão, óleo, temperos, tudo. Eu tinha de me virar para encher as
condidas, insultá-los no fundo de meu coração, invejá-los também, panelas sem sair de casa, pois a porta estava trancada: ela escon-
querer ser como eles e recusá-los com ímpetos surdos eram atitu- dia a chave, como seu último tesouro. Em breve, fechou as jane-
des que me reconfortavam. Fora o que eu fizera a minha vida in- las e proibiu-me de abri-las. Quando saía para levar ao correio suas
teira; era um pouco meu modo de sobreviver nessa tragédia que cartas e as do marido, eu ficava numa espécie de túmulo e me pu-
me deixava sem horizonte. Eu compreendia melhor o comporta- nha a deitar lágrimas por causa dessa morte em minha vida. Às
mento de meu Esternome na casa-grande, seu modo de ser pe- vezes, a senhora Eléonore, após uma crise do senhor, tomava-se
rante os bekês, os milatos ricos, essa vida sorrateira que ele leva- de espasmos religiosos. Cantava girando em torno dele o Veni
va com seus irmãos de lama, cultivando a esperança ferrenha de Creator, a Ave Maria Stella e o Benedictur. Recitava orações, gru-
escapar daquela lama. Eu me sentia, assim, perversamente ligada nhia as vésperas e as completas. A noite inteira, acordando sobres-
a seu Alcibiade. Um laço de desgraça. A corda errada. Por muito saltada, eu ouvia fluir de seu quarto as ladainhas da Virgem, o Mag-
tempo pensei que ficava perto dele para concluir minha vingan- nificar. De madrugada, ela murmurava salmos para o rei. ..
ça, mas logo compreendi que era outra coisa. Odiava-o mais ain- Lembro-me de meus silêncios quando eu acordava na casa
da que àquele Lonyon, que eu abominara, mas esse próprio ódio escura, em plena noite, semi-adormecida, buscando naquela se-
a ele me amarrava com a força de uma fibra de cânhamo. Que es- milucidez uma maneira de ir embora, e esbarrando em cada per-
pécie de triste veneno, o ódio! ... Não tem limites, mistura-se a tu- siana, cada janela, cada porta. Então, sentava-me no primeiro de-
do ... em certas horas, sentimos nosso coração se torcer, sem sa- grau da escada, observando as formas angulosas da sala animada
ber se é amor, ódio, atração, rejeição. Sentia-me grudada num visco pela lua. Brilhos de madeira envernizada abrigavam antigas pre-
sórdido com esse pobre seu Alcibiade por quem, no entanto (a senças. Tudo parecia vivificado. Identificava cada móvel, cada
não ser talvez agora, em minha idade avançada, quando pude ava- tapete, cada vaso, cada abajur, o piano que ninguém tocava, a co-
liar minha pouca importância), nunca tive um pingo de piedade. leção de marfins da Indochina que um colonial dado a bacantes
Lembro-me de meus silêncios na casa mal-assombrada. Seu ruivas emprestara ao senhor antes de perder o juízo atacado pela
Alcibiade fechado em algum lugar. A senhora Eléonore fazendo malária. A noite tudo diluía numa vida diferente, feita de luz naca-
uma sesta no quarto, depois de fechar as portas e as janelas. O rada, de sombras mais ou menos opacas articulando formas, mur-
calor que se acelera. O sol que entra no quintal e pula em riscas múrios profundos, cantos de marceneiros, eflúvios de antigas sei-
imóveis que desenfeitiçam as paredes. Ao redor, a Cidade distan- vas sob o elã da plaina, sentimentos passados que tinham unido
te, como que apagada, apenas alguns soluços de vida, a voz de a madeira, que tinham-na estrangulado. Ali eu permanecia até o
um preto, um rolar de carroça, um cheiro de gás, um suspiro de dia nascer, esmigalhada como uma fruta-pão que caíra, e inapta
poeira. E eu, sentada numa cadeira de balanço no meio da sala, ãs promessas da castanha perdida.
uma agulha na mão, uma roupa a cerzir colocada sobre os joelhos, Acabei por não sair mais de meu quartinho. Ficando imóvel
ou de pé diante da mesa, apertando um desses ferros do Congo na caldeira que era o sótão, ouvia a senhora Eléonore viver com seu
que antigamente serviam para passar roupa. E mais nada. Nenhu- monstro. Tudo era escuro. O dia assinalava sua passagem com nes-
ma palavra em minha cabeça. Nada senão uma espécie de éter que gas de luzes, correntes de sol, claridades suaves, ruídos da Cida-
enchia meus oss.os. Como se, incapaz de me safar, eu quisesse me de; depois, de repente, a escuridão tudo cobria. Não me atrevia
dissolver. Eu me lembro ... a descer a escada, de medo de encontrar a senhora Eléonore trans-
As coisas agravaram-se. A senhora Eléonore ia se abandonan- formada em bicho-papão. Não escutava mais as palavras que diri-
do. Falava sozinha, também escrevia longas cartas a insólitos pri- gia ao marido, nem seus cantos de missa, nem suas falas esquisi-
mos estabelecidos no Panamá (nas proximidades do canal), tre- tas; tudo isso me apavorava. As palavras perdiam o significado,
mendamente ricos. Logo percebi que as levava para o correio sem as frases se concatenavam como gritos de animais ou de sei lá o

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quê. Ouvia ruídos incalculáveis. Desordens. Por vezes, seu Alci- meus queridos, venham, choro em cima dessa folha gordurosa co-
biade dava longos berros enquanto a senhora ria sem que aquilo locada num livro e que cria raízes-cabelos-brancos, choro pores-
fosse um riso. Escutava os pios de pássaros, fragmentos de dis- se domingo à tarde passeando pela alameda des Soupirs debaixo
cursos que abrem banquetes, peidos sonoros, ou palavras que pa- dos olhos nada contentes de bekês incomodados,
reciam flutuar sozinhas num eco de zumbi. Havia cheiro de in- pelos papa-hóstias da catedral pessoas emperiquitadas e de
censo, de velas queimadas, de peixes. Odores de árvores do vestidos justos, pela senhora Edamise que troca seus brincos de
pântano, miasmas de manguezais, vapores de ervas cortadas, per- argola por uma corrente de grilheta sua esteira por um colchão
fumes de uísque e de cal viva. Cânfora ... seu xale quadriculado por um lenço de seda seu banco por uma
... eu estava enlouquecendo ... cadeira de balanço pela senhora Edamise com seu oficial que a
... numa noite, senti um bafo de vinagre. Noutra, tive a im- instala na Cidade, pelas datas nacionais de 14 de julho e de 11 de
pressão de que as paredes tinham sido esfregadas com alho e la- novembro em que os canhões tocam música e os fuzis tocam cla-
ranja podre. Houve um cheiro de heliotrópio branco, depois de rinetas,
fel, depois de chifre de veado. Os odores tornaram-se gostos. De- pelas três flores do cemitério das quais a mais murcha é um
pois, imagens com reflexos espelhados. Por vezes, eu me sentia coração abandonado, pelas tardes dançantes no Sélect Tango ou-
extremamente perturbada, e tremia à toa, como se meus lençóis vindo o trombone de Saint-Hilaire, vejo Régina Coco esse sorve-
de algodão fossem de cetim vermelho. Sentia que o casal Alcibia- te de baunilha que substitui o pai azarado nos jogos Bacará Ver-
de se havia transformado em não sei quem, pois escutava andares melhinha Passe-Passe Vermelho e Preto ou Passa-Dez e que se sai
diferentes, vozes diferentes, presenças diferentes. Não me atrevia com valentia, pelo doutor Pierre que morre e guia no túmulo sua
sequer a me mexer, de medo que pensassem em mim e subissem penca de doentes, oh ó, é Eulalie cara-de-peixe, é Larouelle Sido-
até meu quarto ... nie de tetas quilométricas, duas que na fazenda só bebiam caldo
... enlouquecendo de fato ... de cana numa tina de porcos e que chegando à Cidade querem
... então, eu me refugiava nos barulhos da Cidade. Barulhos bancar a tal,
de vassouras de cules que limpavam as ruas. Barulhos de feirantes é Labadie que derrubava mariposa, quando a mariposa caiu
madrugadoras, vendedoras de frutas-de-conde, de polpa de coco- numa lâmpada vimo-la com a cara queimada num sábado de Ale-
verde vendida em colher, broas bem quentinhas. Barulhos de ven- luia, meu Aristide disfarçado de corcunda para ir beliscar sua que-
dedoras de mabi que escoltam o sol desde as seis da manhã. Baru- ridinha sem que a senhora soubesse até que a Cidade gritasse
lhos de vendedoras de bolinhos e de bacalhau frito que invadiam Corcunda-corcunda, põe-uma-corcunda-em-seu-corpo na-frente-
as ruas por onde passam os trabalhadores. Barulhos de lavadeiras e-atrás,
que se rebolam indo para as águas claras de Grosse-Roche. Baru- então ele lhe oferece um pequeno brilhante, um pequeno fais-
lhos de cachorros valentes de noite, desesperados de dia, obriga- cante um pequeno cativante para que ela fique bonita e ela lhe
dos a gemer entre os dois momentos. Barulhos de carros, cada oferece seu coração e evidentemente outra coisa, pela aranha da
vez mais, dominando os outros barulhos cada dia um pouco mais. manhã de mau agouro, pela formiga de defunto de rabo branco,
Barulhos novos do asfalto que Césaire mandava espalhar sobre os que é sinal de morte e recita em cima da sua mesa Idomenée e
lodaçais. Imaginava os restos de sono nos bares de rum, o cho- saio caracolando com três papagaios de papel cuja linha arreb~n­
que do mata-bicho tomado em jejum, o entusiasmo da abrideira, tou ...
o despertar com as talagadas de rum com hortelã, quando os so-
nhos se desgarram ...
... enlouquecendo de vez ... o SONHO DE PARTIR. Félicité Nelta tirou-me do túmulo. Ficara
... depois, os barulhos se atenuavam e então eu chafurdava nas zanzando durante meses em volta do lar Alcibiade; havia me en-
fluências de imagens, as quais já não sabia se vinham de minha trevisto atrás das persianas, ou num lampejo, só para um gesto de
vida ou de meu Esternome, ou então de minha Idoménée, ah, mão como fazem os velhos; depois viu a porta se imobilizar, as ja-
232 233
sua função de renascimento, que a cidade o acaricie, quer
nelas emperrarem nas paredes; depois, à tardinha ou à noite, dei-
dizer: o considere.
xou de ver luz. O que tínhamos feito de pé na noite do enterra-
dos-ossos era gostoso, e disso ele se lembrava em cada poro de Nota do urbanista ao Marcador de Palavras.
sua carne, felizmente! ... pois, caso contrário, não teria insistido Pasta n? 19. Folha xxv1n.
tanto, vigiado dessa maneira, nem batido à porta, nem gritado 6, 1987. Biblioteca Schoelcher.
de casa ... !, nem perguntado aos vizinhos pela moça Marie-Sophie
Félicité Nelta quebrava pedras numa pedreira municipal. Mo-
que trabalha na casa ao lado. Felizmente ... pois (como os vizinhos)
rava no Morro Abélard, num barraco de zinco que escondia apenas
nada teria sentido daquele cheiro de morte que ressumava pela
uma cama, suas ferramentas, uma muda de roupa domingueira e
porta, um fedor de zinco frio e de peixes ~rateados. . .
Então, uma noite, arrombou a porta gritando Marie-Sopb1e uma enorme mala. Foi nesse barraco que me alojou. Fui cercada
Marie-Sopbie ... ! Atravessou a sala, que parecia reunir os destro- pelos cuidados que os Bairros prodigam. Fizeram-me chás fortifi-
ços de Saint-Pierre, depois cruzou na escada com seu Alcibiade cantes, sopas de forças, fricções de arnica. Levaram-me nassas de
vestido de vermelho e preto, avançando teso e cantando uma ternura, redes de sonhos segurados pelas mãos. Na ausência de
mazurca com um penico sujo na mão; depois viu a senhora Eléo- Nelta, uma dona que morava ao lado envolvia minha cabeceira
nore, ou melhor, uma espécie de pessoa de cabelos grisalhos ar- com palavras inúteis, injúrias contra os homens, suas lutas na Ci-
repiados, irreal de magreza, sem cores e sem viço; depois me des- dade, enxugava meu suor, dava-me remédio com os gestos de mi-
cobriu enroscada em cima do colchão de crina, com a pele seca, nha Idoménée. Todas tentavam animar meus olhos vazios. À tar-
lábios rachados, o corpo estropiado como uma flanela molhada, dinha, Nelta sentava-se perto de mim. Ficava uma boa parte da
os olhos maiores do que a lua cheia, contando bagagens invisí- noite a me contar as novidades: a polícia prendera o casal Alcibia-
veis e cantando como aquela querida Léona Gabriel cantava por de; um padre viera se ajoelhar na casa deles e despejar água benta
um certo Alexandre que partira partira partira ... sobre o receio dos vizinhos ... Depois, acompanhava-me nos so-
Levou-me com minhas pobres tralhas pela Cidade adormeci- frimentos de meu sono, dormindo a meus pés. Trabalhava o dia
da. A cada passo, temia ver surgir as pessoas Alcibiade, como ca- inteiro e reaparecia no final da tarde no Morro Abélard, onde sem-
maleões à frente de um rebanho de cadeiras de balanço, poltronas, pre tinha uma mãozinha a dar, um telhado a arrumar, uma placa
mesas, imagens, e cartas lacradas volteando-lhes em torno como de fibrocimento a pregar para este ou aquele. Mas, durante meu
uma nuvem esboroada. tempo de embotamento, reduziu essa ati~idade (para grande de-
sespero do pessoal) e ficava preocupado ao me ver debatendo-
Subitamente compreendi que Texaco não era o que os me num sono sem sonhos a que se sucediam tristes sonhos acor-
ocidentais chamam de favela, mas um manguezal, um dados. Então, produziu-se alguma coisa que meu velho Esternome
manguezal urbano. À primeira vista, o manguezal pare- bem que gostaria de ver.
ce hostil às vidas. É difícil admitir que, em suas angústias Como eu não voltava a habitar meus olhos, Nelta solicitou
de raízes, de sombras espumosas, de águas paradas, o uma pessoa curandeira. Essa pessoa morava do outro lado do li-
manguezal possa ser um tal berço de vida para os caran- ceu Schoelcher, numa Doum mágica formada pelo Marigot-Bel-
guejos, os peixes, as lagostas, o ecossistema marinho. Não levue, ao lado dos reservatórios de gasolina que os bekês haviam
parece pertencer à terra nem ao mar, um pouco como plantado por todo o litoral. O bekê da gasolina Esso tinha duas
Texaco não é cidade nem campo. No entanto, a cidade cubas, mais acima, Indo para Pointe la Vierge. O bekê da Shell tam-
se fortalece bebendo no manguezal urbano de Texaco,
bém tinha duas, e implantara-se mais para os lados do farol. Quanto
como no de outros bairros, exatamente como o mar se
ao bekê da Texaco, tinha várias, debaixo da avenida que costeava
povoa por essa língua vital que o une à química dos man-
o rio. Construíra uma espécie de cais. Um pequeno barco-toneleiro
guezais. Os manguezais precisam da carícia regular das
pegava o combustível nos petroleiros e vinha ser aspirado por
ondas; Texaco precisa, para seu pleno desenvolvimento e

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uma bomba nesse cais. Umas tubulações levavam tudo isso para sentir, a querer me levantar a reviver As pessoas d M
1 dd ' ... o orro Abé,-
os reservatórios. De ano em ano, os automóveis se haviam multi- ar ançavam a meu redor, e Nelta (loucamente chato) ·
pegou um·
plicado. Precisaram de muita gasolina. Os bekês, rápidos no gati- garrafãao d e rum para oferecer à Terra a única fraternid d d
lho, haviam se lançado na representação de empresas norte-ame- senta e cinco graus alcoólicos. ª e e ses-
ricanas. E faziam-se uma concorrência implacável. Penso nesse período no Morro Abélard. Tantos h omens-
. .
Esse lugar era uma confusão de lama, areia, tonéis, botijões mu lheres-cnanças sedimentados às portas da Cidade que se t
.
d ia b · d es en-
de gás. Canalizações trilhavam o manguezal s~mi-seco do Marigot- na outra eira o canal. Para chegar ao canal, durante um b
1: t . . om
Bellevue. Uns pretinhos vinham brincar de pique em cima das tu- empo precisamos ut!1izar um balde que um preto robusto acio-
i bulações, mergulhar no final dos cais ou tomar o caminho mais nava com uma corda. Nesse lado da margem direita, uma comu-
curto para o liceu técnico. Vinham também olhar os barcos. O nidade de gente-do-morro criara-se no isolamento, diante do con-
bekê da Texaco postara ao lado de seu reservatório um vigia pre- forto da Cidade. Os ricaços não se atreviam a se aventurar por ali
to muito consciencioso. Este cuidava, graças ao portão, do vai- onde a vida era mais viva, cada dor mais selvagem; essa comuni~
vém dos caminhões-cisternas que espalhavam a gasolina por toda da?e solidária:solitária exercia contra si mesma (na própria ajuda
a ilha. No fundo, costeando o rio até a Doum, descobria-se um mutua) a violenc1a causada pela impossibilidade para quem se
bando de árvores mágicas que o bekê da Texaco deixara intactas, aproxima da Cidade. Cada homem estava armado com canivete
talvez por causa das histórias de diablesses que circulavam por ali; navalha, punhal, bico-de-pato. O facão dos morros dera lugar ~
ou talvez, simplesmente, por mero esquecimento. Pois bem, la essas faqumhas que serviam para sobreviver, e que só saíam dos
vivia Papa Totone, o curandeiro. Nelta foi pedir-lhe ajuda depois barracos no momento dos perigos ou dos trabalhos visando a se
de suplicar ao vigia preto que o deixasse passar. afirmar nesta terra. As muiheres guerreavam com tesouras cane-
Segundo Nelta, Papa Totone recebeu-o como se o esperasse cas de ácido mas, sobretudo, com a ressonância de vozes,' capaz
havia um tempão. Disse-lhe Ki nov Nelta? .. ., quando na verdade de arrebentar qualquer vagabundo. Cada vez mais perto uns dos
nunca o tinha visto e que o único nome conhecido de Nelta era outros, indo até Pont-des-Chalnes, os barracos se amontoavam nu-
Tatalité (um emaranhado de seu nome, como os pretos gostam ma desordem nada católica mas que logo me pareceu um sutil ema-
de fazer). Mas Papa Totone, surgindo entre as árvores da Doum, r.anh~do de equilíbrios entre as pessoas, entre seus chiqueiros, ga-
disse-lhe Ki nov Nelta? ... E depois, disse (quando na verdade Nel- hnheiros, gaiolas para coelhos, árvores particulares às quais todos
ta ainda nem sequer havia perguntado alguma coisa): Eu vou até tmham acesso, quintais, vielas, pontos de encontro em volta da
lá ... Diante de Papa Totone, Nelta se sentiu pequenininho peque- bica oferecida pela prefeitura, essas sarjetas que drenavam a água
nininho .. ., sentiu ... sentiu ... Eu sabia o que ele sentiu; suas pala- suja para o fundo do rio, essa desordem entre épocas na qual vi-
vras hesitavam como as de meu velho Esternome em ocasião se- brava a trilha de meu velho Esternome, a palha, a madeira de cai-
melhante: diante de Papa Totone, Nelta percebera uma força - x.ote, as folhas-~e-flandres nos telhados, e essas novas placas tra-
um pouco como a que se percebe quando os grandes contadores zidas pelos bekes, que davam a ilusão de uma casa de cimento.
de histórias falam, ou quando os homens de força aparecem na Hmmm, deus nosso senhor.. .! o fibrocimento ... trocar a palha e
sua vida no momento em que não há igreja que dê jeito num mau- a madeira de caixote e a mão de tinta na folha de lata por um ban-
olhado que não desgruda de você. co de coral de cimento! Era o hino de todos! Você não pode en-
Papa Totone foi até a minha cabeceira depois de atravessar tender, Oiseau de Cham, era um contentamento. Os cobres ga-
o Bairro Abélard. Todos ficaram impressionados ao vê-lo tão lon- nhos nos biscates desapareciam naquelas placas frágeis. Colo-
ge de sua cachoeira. Como iria fazer com Cristo muitos anos de- cavam-nas em cima dos tabiques de madeira podre em cima da
pois, passou a mão displicente em minha testa, dizendo (ele, que miséria ~nferrujada de uma lata desamassada. Nelta' sabia pregar
não me conhecia) Eee-ô, Marie-Sophie, prepare-se para o tran- o fibroc1mento sem jamais quebrá-lo. De tanto rachar pedras com
co ... Depois, desapareceu como um cheirn de éter. Meus olhos a maça, desenvolvera uma fineza de trabalho de agulha em cada
reencontraram as funções que lhe.s são próprias. Comecei a ver, a ponta dos dedos. Era raro que estragasse uma placa de fibrocimen-

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to, e, em caso de desgraça, sabia juntar os cacos de modo a deco- Caíra na política, pois, naquela época, esse tipo de negro robusto
'1
rar o barraco, parecia até o barraco de nossos sonhos. era contra~~do facilmente para assustar os adversários, carregar le-
Com ele aprendi a pregar fibrocimento. Quando Nelta vol- nha e toneis, e escoltar o político em seus cantos de felicidade
'1 tava do trabalho na pedreira, a tardinha já não tinha sombras no fundo dos velhos bairros. Nelta trabalhara com os comunistas
1 ! muito nítidas, mas o pequeno barracão de folha-de-fiandres con- e dera uma mãozinha no sucesso fulgurante de Césaire. Prote-
'I'
'
tinuava o mesmo forno, de onde eu fugia instalando um banco gera-o, tomara algumas pauladas em seu lugar, fora ameaçado em
no ar fresco da sarjeta. Como Nelta era incapaz de ficar por ali, seu lugar. Como recompensa, quando conquistaram a prefeitura
saía pelo Morro Abélard para pregar as placas, os telhados de folha- deram-lhe seu posto na carreira. Passou a ser convocado a qual-
de-flandres ou as tábuas que estavam sofrendo. Eu, ao acompa- quer momento, sobretudo em época de eleição ou quando a guerra
nhá-lo, aproveitava para interrogá-lo sobre esse Papa Totone que contra os bekês, os ricos milatos e o resto retomava a violência
' me havia despertado. Aquela presença fugaz a meu lado deixara dos velhos tempos das fazendas.
' uma pergunta em minha cabeça. Seu desaparecimento num abrir Mas o sonho de Nelta era partir. Partir era sua palavra fran-
e fechar de olhos, a maneira como Nelta o descrevia remetiam- cesa. Conferira-a num dicionário. Para ir embora, Nelta tentou tu-
me ao que meu Esternome me dizia dos Mentôs. Estava curiosa do, mas nada deu certo. Conservava seu sonho intacto dentro da
para saber se, louca em último grau, eu não estaria revivendo grande mala, cheia de figuras recolhidas por todo canto. Precisei
as idiotices de meu Esternome confrontado às ordens de uma de alguns meses (que alcançamos em plena felicidade) para que
suposta Força. Hora de preparar-me para o tranco? Mas por quê, ele se dignasse a me abrir aquela mala gigantesca. E ali, com seus
e a mando de quem? Eu perguntava a Nelta. Ele me repetia o dedos grossos e bem cuidados, mostrou-me (durante domingos
pouco de que desconfiava. Apesar de minha insistência, não ti- quentes, depois de termos esmigalhado a cama) suas figuras de
nha vontade de voltar à Doum que ficava atrás dos tambores de florestas, de desertos, de cachoeiras, de cidades, de povos ... Seu
gasolina. Papa Totone não deixa as pessoas o verem assim, dizia, salário devia financiar-lhe o vôo para a totalidade do mundo. Pri-
você o vê quando ele quer, e ninguém penetra muito na Doum, meiro, para a França, que (como para todos nós) habitava-lhe a
pois está cheio de diablesses. Então, ruminando a impaciência, cabeça. Sonhava com o paquete Colombie, diversas vezes ima-
ajudava-o a colocar as placas de fibrocimento e nos maravilháva- ginava-se desembarcando em Marselha. Freqüentemente, sábado
mos com os avanços do progresso. à tarde, em vez de ir se divertir no jogo, como os negros daqui,
O barraco de Nelta era pequeno demais para nós dois. Quan- arrastava suas grandes asas acorrentadas até o porto. Com a coni-
do ele saía, e o Bairro despejava-se na Cidade, só deixando nos vência do guarda, desfiava mil sonhos em cima da ferrugem dos
barracões mulheres com filhos mamando, velhos abobalhados, Ma- b~naneiros,. da rutilância dos navios imóveis. Quando um petro-
jores imóveis, eu não sabia o que fazer e me sentia mal. Limpar leiro aparecia na barra, carregando a gasolina dos bekês do petró-
o que em toda aquela lama? Arrumar esse pobre quadrado de folha- leo, Nelta me levava para as colinas a fim de contemplar aquela
de-flandres? Eu, que conhecera as belas casas da Cidade, aqueles porta aberta para todas as margens do mundo. Não sei de onde
sofás, aquelas cadeiras de balanço, aquelas camas macias entregues vinha seu gosto pelo partir, mas não foi o único sujeito de Bairro
a minhas chafurdices assim que a patroa virava as costas, eu me que encontrei eleito por essa vontade - essa vontade de tudo ver
encontrava numa cafua escaldante como fogo do inferno. A noite de experimentar o impossível, de se sentir diluído no infinito d~
era fresca, os ventos cruzavam-na apesar dos buracos tapados. De- mundo, em várias línguas, em várias peles, em vários olhos, na
baixo da chuva, a noite tornava-se o ventre de um peixe gordo Terra unida.
em mar revolto, atirando-nos ainda mais fundo um contra o ou-
tro, um dentro do outro, vivendo nossos corpos sem a menor ver-
Quando m: queixei do barraco, explicou-me secamente que
seu dinheiro nao era para isso, e que, se eu agüentasse o rojão,
gonha. Nelta precisava de mim, e eu já não imaginava a vida sem me levaria para a França. Escondia suas notas numa caixa de bis-
ele. Vinha de uma usina do Robert, que desaparecera. Fora parar coitos enterrada no barraco, debaixo de uma pedra onde bruxu-
na cidade já fazia séculos, para se agarrar a alguma oportunidade. leava uma faísca de óleo melhorado por três gotas de álcali e um

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barraco de fibrocimento com as notas destinadas a seu sonho. Mas
ouco de precipitado branco. Não tinha medo dos ladrões, mas
P d' heiro do suor de seu rosto nunca aconteceu nada. Eu havia sangrado tanto, havia me depau-
dos espíritos que somem com o m perado tanto com aquele capim gorduroso (aquelas febres, aquelas
sem lhe deixar a esperança de um dia ganhá-lo de ~ov~. Eu estava
'
!.
crostas pretas que transpiraram de mim como assombrações que
. d Nelta mais ainda porque o sentia distante. Seu me teriam possuído), que meu ventre perdera o acesso ao grande
muito agarra a a • d t de
espírito derramava-se em horizontes transportados p.ara en r0 mistério. Eu ainda não sabia do irremediável. Pensava que os co-
si mesmo mais além das figuras, e sem cair em quimeras. Com- lhões de Nelta haviam secado, que meus períodos não coincidiam
ortava-s~ como os outros homens do Bairro, em luta com a _vi- com suas regas. Com o passar do tempo, meu coração começou
~a, sempre suando, trabalhando, sempre metido e.m discussoes a bater forte diante daquele horror apenas pressentido, cuja exata
sobre o futebol do Golden Star ou do Clube Colonial, ou em co- dimensão só conheci tarde demais.
mícios políticos. Mas é só no coração do cachorro que brotam Só me restava olhar as notas de dinheiro se acumularem na
os sonhos do cachorro: ninguém desconfiava do brilho velado que caixa de Nelta, acompanhar pouco a pouco sua febre subindo ru-
Nelta carregava dentro de si. Quando eu me debruçava s~bre ele, mo àquele sonho do qual eu sabia estar excluída. Talvez tenha ti-
buscando o fundo de seus olhos para adivi~har se eu unha. (de do um (ou dois) dias de ilusão, imaginando-me com ele - ele,
tanta doçura) construído algum altar onde mi~ha presença ~nlha­ dentro de seu terno dos sírios, eu, dentro de meu vestido de ren-
ria, topava com vendavais, percebia, impress10nada, monttculo~ da, pegando a passarela para o convés de um navio de partida pa-
de areia quente, tinha a impressão de ver facha_das urbanas, cam.e ra o mundo. Via-me no camarote reluzente ... na deriva dos lito-
los sedentos, fastos de templos indianos, rum~s ~onumentais, rais ... na extinção das margens ... no nascimento das cidades altas
iglus, luas avermelhadas sobre placas polares vitnficadas. aureoladas de brumas ... Via-me nesses restaurantes que ele medes-
crevera, com bailarinas, orquestras, brancos que lhe servem a
O urbanista ocidental vê em Texaco um tumor n_a ordem comida em travessas de prata. Ou nos grandes cargueiros que trans-
urbana. Incoerente. Insalubre. Uma cont?staçao auva. portavam açúcar, levando a vida sem raízes dos marinheiros, vi-
Uma ameaça. Nega-lhe qualquer valor arquitetu:al ouso- vendo os portos de Sainte-Lucie, da Dominica ou de Barbados,
cial. O discurso político é, sobre isso, de n~g~çao. Trata- desembarcando em Nova York, depois no Havre, depois finalmen-
se, claramente, de um problema. Mas de~ohr e d~spa~har te em Marselha, com Nelta, com Nelta ... Mas Uusto o tempo em
o problema para outro lugar, ou pior: nao considera-lo. que a larva vira borboleta) essa espécie de visão sumia, para re-
nascer mais tarde, e fugir novamente. Então constituiu-se em mim
Não, precisamos expulsar o Ocidente e r~aprende~ a ler:
reaprender a inventar a cidade. O urban!Sta daqui deve a Marie-Sophie Laborieux que ia (atrás de meus medos, minhas
recordações de criança, minhas ternuras mudas por meu Esterno-
1, se pensar um crioulo, antes mesmo de pensar.
me e minha Idoménée), que ia lutar contra a Cidade com a fúria
Nota do urbanista ao Marcador de Palavras. de uma guerreira.
Pasta n~ 36. Folha x.
l987. Biblioteca Schoelcher. Mas deixe-me viver meu Nelta antes de entrar nas lutas de Te-
xaco. Vote, Nelta! ... imagino-o envelhecendo na Irlanda, ao lado
de uma cerveja morna, contando o Caribe para brancos gordos
Eu poderia ter detido Nelta com um negrinho .. Via-o em~cio­
. ças do vizinho trazer-lhes da Cidade um oce e ruivos. Imagino-o enrugado sob a tenda de um masaís, beben-
nar-se com as cnan ' N1 do sangue fervendo, ou se cobrindo de bosta de boi para se pro-
ostoso um rolimã um aro de tonel para brincarem. Quando e ta
teger dos mosquitos, e exibindo nos conselhos desses pastores
~·acula;a dentro d~ mim, eu sentia que era como quem planta (~u imensos as suas recordações de negro das Américas. Ou no Har-
duem rega) com a idéia de fruto. Ele vigiava meu ventre ~ue nao lem, vítima da Ku Klux Klan e em cima de uma grande fogueira.
despertava tocava (falando de outra coisa) em meus peitos que Ou ... ah, meu Nelta, vejo a sua alma pairando num cemitério ma-
·amais anu~ciavam uma sazão. Conheci essa desgraça .de querer rinho onde a água cobre de argolas uma raiz carnívora. Ou vestido
\he dar seu pretinho, sua âncora, levá-lo a nos construir um belo
241
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com uma pele de búfalo num buraco da tui:dra. Ainda hoje você
vore plantada. Vendi guaiamuns que eu ia desem .\
passa temporadas em minhas melancolias. E o Nelta-ternura qu~
de Dillon. Vendi garrafas e panelas inglesas. Vendi'efrl'all '
me agarra os quadris. Ê o Nelta-sorriso com dentes como pás. E . rasc08
o Nelta-vinte-e-dois-sonhos, sentado em cima da mala, carregado fume que uma vendedora de bugigangas trazia da Itália: 'E
na mala para mesquitas de pedra. Ê? Nelta-suor q~e despertava cos proporcionavam-me uns tostões que eu escondia tal,· .
meu ventre esmagando-me sob ele. E o Nelta-dos-dias-flondos, é os de Nelta (depois de ter comprado nosso óleo nosso' sal . "'''" .. ,,,··.1
querosene, um retalho de fazenda, e contribuído, ' como todas•as
, n:0ss0 :·"·;- ~ _;'-1';',,
o Nelta-da-festa-dos-inocentes admirando as crianças, é o Nelta-
carnaval, cúmplice de um enterro-dos-ossos nas ruas da Cidade. pessoas de bem da Cidade, para a associação mutualista A H · ·
Ê o Nelta-dos-ciclones que escorava os barracos para salvar a mo- nidade Solidária). O resto vinha-nos do escambo: peixes dado~~~
lecada. Ê o Nelta-semana-santa que girava a matraca pelas vielas nossos compadres pescadores, legumes de roça que este ou aquele
do Bairro a ponto de perturbar os surdos. Ê o Nelta que_ comia trocava conosco por este ou aquele fibrocimento a pregar neste
ou naquele buraco.
no Bairro Le Béro, só para viajar entre os temperos cules; E o Nel-
ta que implorava aos sírios que lhe falassem sua língua. E o Nelta- A vida de Nelta e a minha avançaram lado a lado. Nossos so-
comedor-de-bollnhos e bebedor de saquê. Ê o Nelta-di_a-de-Finados nhos não mais se misturaram. Ele se aproximava de seu vôo e se
esfalfava nos biscates, mesmo no sábado à noite. Eu me preocu-
que desencardia as sepulturas para encher seu ~ofre. E o N~lta que
lavava os automóveis depois da missa do dommgo para alimenta~ pava em ter meu próprio barraco, a fim de não acabar que nem
seu tesouro. Ê o Nelta que ia até o Robert para a festa náutica. E boba debaixo da chuva. Tornara-me uma preta de Bairro, partin-
o Nelta-festejando-natal e uma boa morcela e bebendo um bom do cedo para a Cidade, reaparecendo com um ganho extra a ser
licor chraube, de casca de laranja, antes de me beijar ... 6 Nelta ... escondido, e partindo para os biscates. Viam-me preocupada, ir-
ritadiça, o cenho franzido, a cara feroz para domar o azar; eu ia
1 no último dia do ano, você viu uma clara de ovo dentro de um
copo d'água, e viu aparecer o barco das viagens ... é o Nelta que como que abrindo trilhas numa mata cerrada. Minhas roupas ti-
:1 nham mudado: rolinhas na cabeça, vestido xadrez, pés descalços,
um dia sumiu do barraco, desaparecendo com sua grande mala
sem nem uma palavra de despedida, que partiu para seu sonho um lenço amarrando os quadris para sustentar minha barriga. Meu
passo era decidido, pois era preciso ser decidida, andar decidida,
como se vão os ladrões. Ê o Nelta que de mim, durante toda a
sua vida navegando pelos rios, deve ter guardado uma dor no co- avançar decidida, de modo a enxotar a menor hesitação. E, além
ração mesclada àquela sede que sentia do mundo - sede que, de disso, meu temperamento mudara. Nelta às vezes olhava-me com
terra em terra, de povo em povo, de língua em língua, nunca de- olhos arregalados. Eu tinha tendência a cuidar das pessoas, não
ve ter se extinguido: eterna por natureza, tanto quanto um mau- com piedade, mas para lhes dizer como superar os desesperos.
olhado. A toda farinha seca eu oferecia uma colher de óleo. A todo man-
co eu oferecia meu ombro. Quem chorava vinha me consultar.
Eu me preparara para seu sumiço. Os horizontes abertos em
seus olhos incitaram-me a me reequilibrar. E, como santo de casa Quem tinha um filho doente parava no meu barraco e era eu que
descia até o ambulatório ou até algum velho médico amante de
não faz milagre, retomei as idas à Cidade a fim de ganhar meu. di-
peixe. Eu organizava as coletas de dinheiro, os velórios, tomava
nheiro. Lavava a roupa dos sírios, suas trouxas de panos suios.
Também lavava para um bando de milatos. Com os ferros do Con- as providências para cada desgraça. Minha voz podia decidir co-
go, passava os dias engomando roupa, e as noites a entre~ar os mo um golpe de facão. Era difícil para qualquer pessoa olhar-me
no fundo dos olhos, pois era ver a guerra - e as pálpebras caíam.
vestidos plissados. Vendi sanduíches para os negros daJetee, to-
da manhã bem cedinho, meu cesto em cima da cabeça. Vendi bal- Eu não era má, não, mas era dura, decidida. Os homens já
não prestavam atenção na oferenda de minhas nádegas redondas.
des de alevins, folhas contra a dor de cabeça e ervas de saúde,
As mulheres, sossegadas ao me verem, juntavam-se atrás de mim.
mabi gelado e cabeças de ouriço. Vendi morcela até lá no alto de
Didier. Vendi cocos dos coqueiros de Pe-Soltene, um preto ve- Os Majores me cumprimentavam sem nenhuma palavra, tirando
o chapéu. Na verdade, eu estava em luta comigo mesma, contra
lho das destilarias que fumava sua velhice debaixo dessa única ár-
meus medos, contra esse abandono de Nelta que eu via chegar. Lu-
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tar contra eu mesma remetia-me aos outros, pois sentia meu des- cos-de-cocô'. das roças sempre escaldantes, da passagem das pes-
tino ligado aos seus. Sentia também (como meu Esternome me fi- s.oas, do cheiro repugnante de um chiqueiro, de um bando de ga-
zera sentir) que era preciso, em face da Cidade, organizar um ver- linhas, de uma ga10la de coelho ... Procurei uns palmos de terra
dadeiro Bairro de morros. Essa determinação cercava-me de um ao longo da Rive-Droite, depois debaixo da escarpa, diante do li-
aro de silêncio, desses que nascem entre pessoas normais e pes- ceu ... em vão. Virei-me para as Terres-Sainville, que Césaire urba-
soas que se colocam à frente do destino. n:zava asfaltando por todo lado. Mas também ali, nenhum peda-
cinho a conqmstar, tudo estava feito, tudo estava tomado. Pela
Há uma alegria em poder pagar para si mesma dois tos- primeira vez a Cidade parecia-me um bloco hermético. Então voltei
11 tões de manteiga-vermelha, essa feita com urucum, em para o barraco de Nelta, de cabeça erguida, mas, por dentro, nada
cima de uma folha de bananeira. de sólido que pudesse me aprumar o lombo.
11
Para mostrar-lhes: peguei o hábito de falar alto e forte com
'1 Caderno n? 16 de Marie-Sophie Laborieux.
1965. Biblioteca Schoelcher. a voz ritm~da pelo. riso, um apetite de viver afiando cada ~esto,
1
., enquanto ia despejar meu penico na água corrente do canal.
"li
1 ·I Por que essa obsessão em possuir meu barraco? Morar na Ci-
LEIS DO MORRO ABÉLARD. Quando Nelta desapareceu súbito- dade é, primeiramente, dispor de um teto. E eu, embora ali tives-
I'
presto com sua mala, meu espírito revestiu-se de vontade. Meus se nascido, sentia-me flutuar como uma negra interiorana. Além
1 olhos tornaram-se bilhas que só a velhice suavizaria um pouco. disso, também era para contradizer Nelta, agarrar-me à terra en-
1
~' Não me precipitei para o porto como meu coração me impelia a quanto ele girava pelo mundo, arraigar-me enquanto ele invejava
fazer. Simplesmente, botei minhas duas mãos nas cadeiras, e (ain- as nuvens, construir enquanto ele sonhava. Tinha medo de me
i, da que desatinada por dentro, com meu anjo da guarda alquebra- diluir no aspecto vagabundo que ele dera aos tapumes do barraco
1
,, do de dor) empertiguei-me defronte da porta, de cabeça erguida, graças a uma tapeçaria de imagens. Assim que ele desapareceu en'.
e, diante dos que espiavam minha falta de sorte, berrei minha co- trei em seu barraco como numa caravela. À noite, meu col~hão
ragem crioula: Nonm lan fouté li kan wi, i ké pran lan mê si!vi se animava com a mareia das ondas. Ouvia as chuvas peregrinas
1 cbimen, tye 'y an lan men dwet li, gren li an lan men gôcb li, bon batendo, respirava odores de selvas, incensos de pagodes. De ma-
van monfi bon van! ... O homem foi embora, sim, o mar lhe ser- nhã, saía para buscar meus baldes d' água sempre temendo desem-
1 virá de grande caminho, o coração na mão direita, os colhões na bocar num campo de sal, numa extensão de dunas, numa paisa-
1 mão esquerda, bons ventos o levem, meu amigo! ... O que na ver- gem deserta de pinheiros e neve com uivos de lobos, raposas e
dade não queria dizer nada - a não ser demonstrar às saboreado- rastros de caçadores.
1 ras de desgraças, futriqueiras ávidas de lágrimas, que nenhum cho- Procurar um barraco também enchia o buraco de minhas tris-
ro comprimira minha garganta. tezas. O que me ligava a Nelta assumiu com sua partida uma estra-
Para mostrar-lhes: peguei o hábito de cantar toda manhã ao nha força den.tro de mim. Sempre tive a impressão de poder vi-
primeiro sol, carregando minha água ou estendendo minha rou- ver sem ele; aliás, me preparara com a obstinação de uma mulher
pa. Isso me ficou. Até agora, canto minhas tristezas mais duras. crioula. Mas ali ... sem ele ... como dizer? ... Eu podia contar cada
Fiquei triste como uma concha de lambi no fundo de um ce- fragmento de meu corpo que anteriormente ele preenchia dentro
mitério. Ganhei duas rugas precoces em volta da boca e olhos en- de mim, e que agora caía como uma pelanca ressoante de dores.
rugados de quem sofre com o sol. O pequeno barraco de folha- Eu percebia a que ponto meu entusiasmo matinal vinha de Nelta
i\, de-flandres foi-me insuportável. Comecei a observar à minha volta: uma luz de meus olhos também, os frescores de minha cabeça tam'.
eu dispunha de um tanto de dinheiro para comprar uma armação bém. Não sabia como me pentear. Não sabia como me vestir.
de telhado e fibrocimento. Mas já não havia nenhuma fresta livre Quando o sangue de meu ventre se anunciava, minha pele trans-
no Morro Abélard. Os barracos colavam-se uns aos outros; os in- formava-se em t~ia de aranha, eu tinha vontade de gritar, quebrar,
terstícios subsistentes vinham da descida das águas, dos bura- xingar; comprazia-me naquele sangue escorrendo, como se quises-

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se observar minha vida sendo purgada, e concretizar um local pa- no de Natelle Lagrosille (uma cule expulsa do Bairro Le Béro de-
ra minha dor. Ia acumulando minhas toalhas ensangüentadas nu- pois de um sacrifício que deu errado, o que eu também poderia
ma grande bacia, colocava um pouco d' água, junto com água sa- contar). Também precisaria citar os barracos de Grodi, de Cara-
nitária, e, à medida que a bacia enchia, eu me tornava diáfana. Não de-Bico, Philene Cador,Jupiter-Saco-Grande, Péloponese, Sertius
sabia como me levantar do colchão. Sem Nelta, eu era apenas um Laidival (ex-combatente da guerra de 14, secretário dos ex-
corpo pesado de carregar, um espírito triste que murmurava o combatentes beijado por todo ministro da França que nos visitava).
mundo, contabilizava as desgraças, as dores de cabeça, as espi- Todos esses barracos formavam uma teia-escarpa de aranha-
nhas, os olhos inchados com os quais acordava de manhã, assus- caranguejeira na qual vivíamos pendurados. Antes mesmo da co-
tada por ter chorado como ninguém chora mais. munidade das pessoas, havia a dos barracos construídos um con-
Um dia, o carteiro me trouxe um cartão-postal de Nelta. Fora tra o outro, ligados entre si à terra profunda, cada um mantendo
enviado da França, de uma província desconhecida. Representava o equilíbrio graças ao outro, segundo as leis do Noutéka de meu
um moinho no alto de um trigal, salpicado de silhuetas campone- pobre Esternome. Os sonhos se tocavam. Os suspiros se mistura-
sas. Uma charrete saía do moinho com enormes sacas. O conjun- vam. As desgraças se escoravam. As energias se entrechocavam
to sugeria um poema; fiquei com o coração partido ao imaginar até o sangue. Era uma espécie de rascunho da Cidade, mas mais
Nelta mesclado, sem minha presença, àquela poesia. Rabiscara caloroso do que a Cidade. As ruas ainda eram vielas, mas cada uma
atrás, com sua letra grande, um pedido de perdão. Eu, em silên- tinha mais vida do que uma rua. Para pegar uma viela (que cruza-
cio, em meu coração, com um toque de maldade, alguma inge- va as vidas, as intimidades, os sonhos e os destinos), toda pessoa
nuidade mas ainda assim com bom senso, respondi-lhe que ne- tinha de gritar o seu Bom dia, pessoal, o seu Boa noite, moço,
nhum p~rdão cicatrizava as feridas. O cartão ainda está por aí, num Boa noite, dona, e pedir passagem, pedi passagem, e às vezes pa-
canto, junto com minhas coisas. Não era nada, um cartão conven- rar para saber notícias do mundo. Se estávamos brigados com al-
cional, mas era Nelta. Hoje, quando revejo esse cartão, respiro o guém, tínhamos de pegar uma viela distante. Os próprios Majores
cheiro de trigo que, no entanto, ignoro, posso ver o interior do se submetiam a essas regras.
moinho e perceber o que evocava o velho Alphonse Daudet em
suas cartas bucólicas. Posso ver o moleiro mordendo um naco de LEI 35
queijo em companhia de Nelta, que lhe serve um bom vinho tin-
Você se aproxima da viela, chutando o pé na terra, para
to, e, é engraçado, em vez de sentir meu coração se contraindo
que o ouçam chegar, e para que ninguém se impressio-
(como me senti a vida inteira diante desse cartão), sinto uma ale-
gria: minhas rugas animam-se sobre minhas gengivas, e meu ven- ne ao vê-lo aparecer. E você grita Pessoal, bom dia, im-
pr~gnando a voz de calor, de respeito, de gentileza, de
tre estremece com uma alegria de mulher velha, vasto como um
'I solicitude, de compaixão e, sobretudo, da oitava parti-
universo. cular que as pessoas discretas guardam no fundo da gar-
O pessoal do Morro Abélard conhecia meu desejo de ter um
ganta. Nada responderão. Esperarão para vê-lo. E você,
barraco. Eu, centro da desgraça de todos, vivia num buraco. Mais
aqueles que você vê devem tocar o fundo do seu cora-
de um veio consertá-lo. Cario (nativo de Barbados, inquieto, e que
vivia assustado desde que fugira de um navio no estaleiro) trou- ção, E então, fulana, estou feliz em vê-la ... E então, si-
xera-me uma série de tábuas de caixote que recusei. Eu morava crano, vejo-o cbeio de vida ... Oferecer a todos mais saúde
entre uma sarjeta que drenava as águas sujas dos barracos mais do que eles têm, mais força também, dar-lhes coragem,
do alto e um galinheiro que Cario alimentava. O barraco de Cario fazê-los sentir que podem contar com você em matéria
(ele vivia com Adélise Canille, uma falsa milata refugiada sob suas de solidariedade, e não de competição, pois quem se ale-
asas desde que seus peitos começaram a cair; tinha nove filhos gra com a saúde não tem más intenções. E quando você
de cores diferentes, com exceção do azul e do verde) apoiava-se estiver no centro do pátio, cercado pela nuvem implacá-
no meu e agarrava-se no de Pe-Soltene, o plantador do coqueiro, e vel dos barracos, pelas dezenas de olhos que o olham

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e o julgam, quando você sentir sobre a pele.ª desgraç_a horas do que um negro sem um copo ao meio-dia. A viela onde
do momento, um silêncio crispado, um g~stmho la- ?e as fomes arreganhavam todos os dentes. A viela dos turbantes, on-
de se dançam a cossaca, o guiombá e o bombé serré. A viela pie-
grima ou um resto de alegria triste, de fehc1dade ilusó-
dosa onde espermacetes cintilam a noite. A viela onde os melros
ria se:n jamais encará-los você gritará Pedi passagem! Pe-
da madrugada aprendem muitas coisas. A viela dos mistérios es-
di passagem ... E em sua voz haverá~ lev_'.' suspense que quecidos, onde pretos velhos se parecem com guerreiros caraí-
espera a resposta, assim como a autor1zaçao, mas ao m:s- bas. A viela dos negros fugidos que talhavam os pés de samam-
mo tempo você apressará o passo, de sorte que, se nao baia falando outras línguas. A viela fria dos silêncios. A viela dos
lhe derem passagem, você já estará long~. ,lv'.ªs normal- pretinhos brincando na água da chuva. A viela dos sírios que pas-
mente vão lhe dar passagem, e você ouvlfa as suas cos- savam no sábado com suas grandes trouxas. A viela da água benta
tas, mas sobretudo jamais se volte, a menos que o cha- para as sextas-feiras treze. A viela da roupa que seca vestindo o
mem, Cuide de seus negócios, seu fulano ... Cert~s dias, vento. A viela dos banheiros que cheiram a velhice amarga. Avie-
ao avançar, você vai se deparar (gritando B~m dia, pes- la do chinês perdido esperando que barco? dentro de um grande
soal ... ) com um nó que vai lhe tocar o estomago, uma short. A viela de Amélie-fio-de-costura cuja máquina costurava a
espécie de rigidez, de desgraça aérea, c~mo um ~ressen­ franja de seus sonhos. A viela de sombra onde o pé se assusta e
timento que você sentirá jorrar da madeira de caixote ou de repente recua. A viela dos insultos onde quinze pretas acalma-
das placas de fibrocimento. Aí, no mesmo instante, e se vam a acrimônia de Jesus. A viela dos adventistas reunidos no sá-
não ouvir pedidos por socorro, mas só um bloco hosul, bado em cadeiras de cantina numeradas de vermelho para lerem
grite de novo Pessoal, bom dia ... !, e com natural!dade de outra maneira os cânticos da Bíblia. A viela onde o vereador
vire os quadris para o lado oposto e desfaça a roda pe: fazia suas reuniões sobre a idéia de felicidade ... Tudo isso se mis-
gando uma outra viela, dando a impressão de que voce turava, mudava ao sabor das mortes, das horas, dos sucessos, e
apenas se aproximara um pouco para oferecer o seu nos unia como verdadeiras cordas de laçar boi. Foi por is~o que
bom-dia ... a desgraça de Péloponese, no outro extremo de minha viela, cau-
Cartas do Morro Abélard. sou doze desgraças ao longo de toda a sarjeta. Uma cuidadosíssi-
Devaneios de uma negra de bairro. ma distribuição de chamas que, ao passar, me levou de roldão.
Caderno não numerado de Marie-Sophie Laborieux.
1965. Biblioteca Schoelcher.
A NOIVA DOLOROSA. Quando as chamas apareceram e tivemos
Sempre gostei das vielas do Morro Abélard que tive de pegar de enfrentá-las com a água dos canais, a palavra recolocou no lugar
por ocasião dos pedidos de socorro.• Delas só me restam se~sa­ os pedaços da história. Péloponese Marcelle, que foi parar no Mor-
ções. Havia a viela da lama preta, onde os p~tos penavam. A v1el~ ro Rouge num sábado de Aleluia, amava uma espécie de negro de
da areia fina, onde as panelas brilhavam. A viela da sopa_de moco. chapéu que morava dos lados de Pont-de-Chaines. Um certo Dar-
tó em cima de cinzas que cozinhavam. A viela do coraçao que cai tagnan Qualidor, vigia do depósito de lixo da Pointe Simon. Darta-
num chamuscar de lembranças. A viela do 60, 55, 50, onde o teor gnan Qualidor encontrara Péloponêse num dia em que esta (como
alcoólico do rum exalta-se nos rostos cor-de-rosa. A ~iela ~as per- todos nós) fora procurar no depósito algo que prestasse. Ali encon-
trávamos maravilhas que os milatos, bekês ou negros que freqüen-
sianas arrombadas pelos olhares febris. A viela do f1broc1mento
abundante, onde empregados municipais escapavam da ~alta de tavam os franceses de Petit-Paradis jogavam fora, para acompanhar
o vento das modas.• Íamos lá regularmente e todos nós conhecía-
sorte. A viela onde é mais fácil ver um burro trabalhando as onze
(•) Eu mesma encontrara, nos bons tempos de Nelta, uma grande poltrona
(*)Para um parto difícil, uma doença, uma morte súbita, uma luta sangrenta
de veludo vermelho, com patas de leão e esculturas de templos. Achei também
demais ...
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mos Dartagnan Qualidor que, apesar do chapéu (único orgulho
de sua vida), não se fazia de rogado para nos deixar entrar. Assim, Texaco era o que a cidade conservava da human·d d
Péloponese vai até lá (antes mesmo que eu estivesse morando no do campo. E a humanidade é o que há de m . 1. a e
para uma cidade. E de mais frágil. ais precioso
barraco de Nelta) e sua chegada ilumina os olhos de Qualidor, que
começa a segui-la. Coisa rara, põe-se a guiá-la no meio do lixo, Nota do urbanista ao Marcador de Palavras.
dos cachorros velhos, dos ratos e das gatas, a fim de lhe mostrar Pasta n<? 76. Folha xxn1.
as maravilhas do dia, suas descobertas particulares que ele devia 1987. Biblioteca Schoelcher.
vender bastante caro aos que desciam dos morros no sábado ce-
dinho. b sujeito sentia-se à vontade entre as imundícies - uma . Ele falava a~slm, e também de outras maneiras. Para os olhos
montanha impressionante que de vez em quando era queimada, ~sc~~ado; de Peloponese, o lugar se transformou num cafarnaum
que negros suando remexiam com pás de cal ou cobriam de ter- e s1~1os em vestidos, de cômodas, de vidraças de espelhos d
cadeiras reais, de colheres de prata de lei de ve,lhos 1· , e
ra. Aquilo compunha uma paisagem lunar onde Qualidor, com seu d d ' 1vros gros-
grande chapéu, andava como um bekê. Falou do lixo à nossa Pé- so~ e cor as, barbantes, pedaços de plástico duro, tapetes esfia-
loponese, comunicando-lhe o mistério do local. pa os repletos de confissões, toalhas preocupadas, rendas amar-
Dizemos a Cidade, a Cidade, dizia ele, mas a Cidade é isso gas, fragmentos de mármore frio impossíveis de se levantar E
em primeiro lugar, é como devaneios que fluem, desgraças des- d~ame seu discur_so, ele_ deve ter observado os insustentâ~ei~
membradas, amores murchos como velhos buquês, olhe ali as cal- o os negros de J_'eloponese, sua imagem de beleza herdada do
cinhas das velhas que nunca souberam muito bem para que ser- cu~e, o v1ç.o perpetuo irradiando de seu corpo, uma oferenda de
vem as carnes, olhe ali cinqüenta mil desejos de preto velho po pas roliças, bundas, seios, cheiros desabridos que exaltavam
cujos ossos parecem ferramentas, e olhe ali mariposas chamusca- Dartag~an Qu~idor e deixavam-no fora de si. Tanto assim que fo-
das pelas lâmpadas elétricas, e ali doze pesadelos de sírios onde ram ate a guama que servia de escritório, e se amaram na o
as balas ainda estão estourando, e ali um coração despedaçado de do cachorro-que-mija e depois, na de caça-assada - ela em~ri:e
uma pequena síria que quiseram casar com um sírio distante, e ~ada pelo álcool suado das fermentações, e ele com o chapéu d~
ali os búzios dos caraíbas que vêm pelo mar sem dizer por que anda, n~ como porco esfolado, esperneando sob seu ventre cho-
e que dão gritos no fundo cor-de-rosa de suas conchas, e ali san- rando, v1br~ndo, uivando para melhor se perder dentro dela Vo-
gue coagulado dos bois de Porto Rico que escaparam e que nin- cê qu:r a Cidade?! Pois tome! Tome! Tome! ...
guém foi capaz de transformar em morcela, e ali as jangadas de d r Pelop~nese vo~tou para o Bairro com os tesouros do depósito
pescadores que apodrecem desde que a Cidade se serve de bar- ri~s ix~ 1?ia após _dia, entulhava o barraco de coisas extraordiná-
cos, e ali ... desgraças, garanto, das almas de cules que não encog- . Q alidor, ass1duo, cumulava-a de outras maravilhas O . .
traram um barco, e ali ... suor dos chineses que se foram apressa- ~~~o dos ~ois aproximou-os mais ainda, e (coisa ina~re!::~:j
dos deixando-nos seus medos, diz-se a Cidade, todo mundo quer u or registrou-o no cartório. Tomou a mesma providência a-
a Cidade e vem correndo para cá, como moscas para o mel, mas r~ o segundo, esqueceu-se do terceiro ... A partir do sexto sl
o
eu, aqui postado, vejo as costas da luz, sinto a desordem que con- ;1amos ~m pleno quarto crescente, sempre apressado. Quando eu
vulsiona as lembranças, vejo as escamas do Bicho-de-Sete-Cabeças,
sinto seu sangue, seus bichos-do-pé, suas sujeiras, suas latrinas, diz-
'ª esvaziar ~eu penico, aproveitando-me das sombras, cruzava
com eie_submdo, e, mal eu subia, ele já estava descendo. Parecia-
se a Cidade, deseja-se a Cidade, mas o que fazer de tudo isso, onde ~~ ouvir os suspiros de Péloponese. Seus filhos envelheceram-
jogar tudo isso, a Cidade chafurda na Cidade e não sabe sequer o
. o corpo, mas o rosto conservara o encanto de sua beleza hí-
que fazer com o próprio corpo, diz-se a Cidade, eu digo o bekeleto ... bnda. Quando os cabelos embranqueceram, passou a irradiar uma
~uz que enternecia os ~ais duros Majores. Então, houve elevações
um baú preto brilhante decorado com um dragão, que devia ser uma dessas curio-
sidades que um ex-coloria da Indochina tr?uxera para cá...
e voz~s entre os dois. Ouvimos Qualidor fugir e Péloponese
persegui-lo com baldes na mão. Nunca ouvimos injúrias (Pélo-
250
251
-;.
i ponese não injuriava), mas sentimos a viela ser tragada por ven- . Mas a viúva tinha dinheiro, coisa que incita negros como Qua-
'
'
tos frios, brisas ácidas, lágrimas jorradas que esquentavam a lama. hdor à~ alegrias do casamento. Os proclamas atiraram Pélopone-
Certa vez, durante uma visita ao depósito, vi-os em cima de uma se ~as algebras do desespero. Uma matemática silenciosa que nin-
montanha de lixo, com dois pássaros brancos espantados ao re- guem c~lculou, n';~ mesmo eu. Quando veio me perguntar 0 que
dor, os negros das pás imóveis, pertinho das imundícies, olhando- fazer, disse-lhe (fac!! demais) que, como os homens não val'a
os muito graves, Qualidor recuando qual Ulisses diante da mulher- d -· im
na a, a unica mu1eta das mulheres para suportarem a vida era a
quimera, enquanto Péloponese, com um filho em cada braço, três m~leta-coragem. Foi-se embora (silenciosa demais), trancou as
outros pendurados no vestido, inclinava-se sobre ele qual uma cnan~as no barraco e desceu (soubemos tarde demais) até a casa
estátua que cai. Seja como for, nunca mais moraram juntos. Quan- da vmva onde haviam entregado um vestido de noiva. Ah e
t'd . , sse
1 do ela ia se instalar na casa dele, Qualidor desaparecia; Péloponese, ves' º:ah ... Uma coisa surpreendente, um esplendor de rendas,
'' desanimada, voltava para seu barraco feérico do Morro Abélard, de botoes de prata, de véus, de cauda, de bordados furta-cores
onde a recebíamos com uma ternura que dispensa perguntas. Mas de veludo virginal, uma glória de estrelas espalhadas nas pregas'
acabamos por esquecer aquela desgraça diária instalada tão perto e provocando nas franjas mistérios intermitentes. um deslumbr~
de nós. Quem viu crescerem as pupilas de Péloponese? Quem que ~os foi mais fác_il aind~ de imaginar quando o descobrimos
percebeu suas pálpebras fixas? Quem se preocupou com o silêncio em cima de nossa Peloponese. Ela havia, simplesmente entrado
acabrunhado de seus filhos? Quem pressentiu as chamas? na casa da viúva. Seu corpo carregava tantas tristezas q~e a viúva
Tudo começou com a notícia do casamento de Dartagnan Qua- pensou enxergar um resto de pesadelo que lhe escapara do sono
lidor. Proclamas afixados na prefeitura assanharam as mexeriquei- Tanto assim que fechou os olhos para que ele se desfizesse com;
ras, pois ele se casava com uma viúva Delontagne, pessoa esquisita se faz com as ilusões. Mas a ilusão deu-lhe uma rasteira 'depois
. i de quem devo falar, mesmo se for para falar mal. Não usava nenhu- outra,. depois um chute, e agarrou o vestido de noiva. '
ma jóia, exceto um anel de diamante preto que brilhava como o in- Vimo-la perambulando assim, pelas vielas do Morro fantásti-
ferno. Era viúva de um maçom, cujo corpo juntara-se ao de seus ca dentro daquele vestido comprido demais que ela enfi~ra e que
irmãos na rua Lamartine e que só teve em sua sepultura um tronco s~ arrastava pelas sarjetas, agarrava-se nas pontas afiadas d; fibro-
~imento. Cons~gui levá-la para casa, mas ninguém foi capaz de
i:': de bananeira. A coisa foi descoberta quando a bananeira, alimen-
tirar-lhe o vestido. A partir daí, vimo-la de vestido de noiva ao
tada sabe-se lá por quem, arrebentou o caixão e um caule brotou
ir b~scar água, .despejar o penico, limpar o barraco, acender
no meio do túmulo, quebrando os ladrilhos brancos e a estela de 0 fo-
mármore, e despontaram três grandes folhas que jamais anuncia- ?
garei~o. vestido tornou-se amarelo-podre, depois cinza-vômito,
ram um cacho de bananas (antes isso, póis todos temiam o que po- depois violeta-murcha. Logo ficou parecendo uma teia de aranha
deriam ser essas frutas inconcebíveis). A viúva, desorientada, não partid: pelo vento. Os guardas tiraram-lhe o vestido depois de
prende-la na delegacia durante dois dias. Péloponese voltou,
foi ver o fenômeno. Os maçons, saindo à noite da Loja chamada
! se~!louca, mas sempre sem palavras, e trancou-se, para só sair à
La Ruche, cortavam a bananeira todo mês, mas esta crescia de no-
~oite, com ~ma lamparina de querosene. Jogou a lamparina pela
vo no momento das luas cheias. Esse mistério fez correr uma diar-
Janela da vmva, a qual (adormecida nos braços de Qualidor) acor-
réia de futricas. A viúva ficou numa solidão que nenhum homem
do~ no meio de um sorvedouro de chamas. Só conseguiu salvar
se atreveu a quebrar, a não ser esse safado do Qualidor. Habituado
'·! a ;ida graças ao couro de sua pele dura e um pouco ininf!amável.
às imundícies da Cidade, pôde (segundo as bisbilhotices, não sou P~loponese voltou a se trancar no barraco. Dartagnan Qualidor
eu que estou dizendo) aproximar-se da pessoa, colher o pólen chei- (s'.'1al de pro'.l'ndo mal-estar) surgiu em nossos sonos sem usar cha-
rando a enxofre de suas axilas, desmanchar-lhe as rendas cinzen- peu. lncend~~u (quem, se não ele?) o barraco de Péloponese e su-
tas, tirar-lhe a calcinha verde, espanar-lhe os pêlos e viver com ela, mm com a vmva para as bandas das Guianas. Neste momento de-
à luz de velas, num nevoeiro de incenso, fornicaçôes sem grandes ve~ estar enterrados ali, ou apodrecendo num prédio de Cai~na,
glórias ... ah, as pessoas gostam de maledicências ... ouvindo os estalos dos próprios ossos, passeando à noite na praça
252 253
des Palmistes, e depois indo jantar em meio à gordura volteante de, que seus olhos estavam murchos, que suas jóias não passavam
de um restaurante chinês onde obscuros brasileiros renegam Jor- de destinos interrompidos. Viram também seu facão notificar uma
ge Amado. Dizem que a viúva se transformou em condessa portu- ameaça de ciclone, e viram o saco de estrume que ela carregava
guesa, que pegou sotaque, um véu e óculos, e que vendeu esta- no ombro, do qual ressumavam gritos entrecortados. Então, fica-
tuetas astecas que Dartagnan trazia de um contrabando à beira do ram com medo e me transportaram para a Doum de Texaco, pas-
grande rio. Mas dizem coisas demais ... sando pelo portão, onde o vigilante preto (um tal de Mano Cas-
Incendiar um barraco equivalia a incendiar a viela. O barraco trador, no fundo, boa pessoa) não fez a menor pergunta. Andaram
de Péloponese queimou com uma fumaça preta, o de Pe-Soltene em direção da cachoeira, escondendo-se sob árvores antigas que
com uma fumaça cinzenta, o de Cario com uma fumaça branca pareciam murmurar cantigas de criança. Chamaram Papa Toto-
cheia de faíscas. Só me restou olhar as folhas-de-flandres de Nelta ne, Papa Totone, olá?!. .. e, sem esperar resposta, fugiram - apa-
encolhendo sob o calor, apesar de todos os meus baldes d'água. vorados, disseram-me séculos depois, com as fogueiras das
Só tive tempo. para salvar uma lembrança de Nelta, seu querido diablesses.
cartão-postal e meus quatro pobres livros. Enfrentei as chamas para
salvar meu dinheiro, e perdi uma parte de meus cabelos. No fun-
do das chamas, pensei enxergar meu Esternome estendendo os o ÚLTIMO MENTô. O cheiro de gasolina fez-me abrir os olhos.
braços e minha Idoménée regando a fornalha com uma chuva de Um odor insistente que penetrava nos ossos. Esse cheiro nunca
luz que lhe caía dos olhos. Quando os bombeiros conseguiram mais desapareceria de minha vida. O vento o misturava com os
esticar uma mangueira pelo dédalo de vielas (por onde, a noite perfumes do mar, os eflúvios das grandes árvores, da água, das
inteira, se perderam}, descobriram-nos num tumulto de fumaças sombras, da poeira da Cidade, do gás dos caminhões. Por vezes,
·1 e lágrimas, desenraizados, desatinados, açoitados pela desgraça. e ainda hoje, acontece-me fechar os olhos para reencontrar esse
1 De meus pertences, só encontrei uma cinza vagabunda dissipan- cheiro composto, que a meu ver identifica a Cidade: a gasolina,
do as trilhas de meu eixo. o cimento quente, a casca velha de uma árvore semi-asfixiada, a
Trinta e dois barracos foram destruídos. E reconstruídos em borracha aquecida, o ferro fundido, a pintura das fachadas que
quatro noites de mutirão. Quem não iinha mais caixotes utilizava descasca com o vento, uma chuva fina diluída no vapor quente
panos. Mobilizamos folhas de coqueiros, trançados de taquara ver- sobre o asfalto de meio-dia, e ainda outras coisas fugazes às nari-
de, latas desamassadas e tonéis abertos. Um velho negro congo nas, perenes na memória. A Cidade tem odores de gorduras que
chegou até a descobrir umas palhas e construiu um barraco pare- pernoitam do lado de fora das janelas, odores de fechaduras e cha-
cido com um grande arbusto. Péloponese, Cario, Pe-Soltene, Gro- ves, odores de tinta envelhecida no papel e odores de cadeiras.
1
di, Cara-de-Bico, Philene Cador, Jupiter-Saco-Grande, Sertius Lai- Cheira a lama, cheira a folha-de-flandres, a alvenaria que seca, chei-
1
dival, Paulina Masaille e Natelle Lagrosille rapidamente estavam ra a pano e papelão e a moedas retiradas das gavetas, cheira a soli-
abrigados. Neguei-me a que reconstruíssem o barraco de Nelta. dões e mercadorias extravagantes que trazem consigo fragràncias
Dei aquele espaço para Cario, que pôde aumentar o seu. Fiquei de mundos distantes. Cheira a água de café e a farinha dourada,
dormindo na casa de Natelle Lagrosille, num canto ao lado das a Cinzano de festa e a absinto matinal, cheira à vida que exalam
crianças, e ela cuidou de minhas bolhas com um óleo mágico de os mercados do sábado e à morte das escamas às margens do ca-
resultados inúteis. Eu ficava em silêncio, dura como rede carrega- nal, ela aspira o odor das sarjetas imóveis onde grandes carangue-
da, o olhar vazio como em meus primeiros dias. Quando apare- jos mastigam ovos de mosquito, ela espalha o medo dos bois de
ceu um febrão, Cario e Pe-Soltene viram minha morte entrar na Porto Rico que descem do porto, conserva o fermento das peles
viela. A morte ainda hesitava, mas pedia passagem a fim de me curtidas cuja ciência se esquece, fareja os velhos cachorros, as ra-
alcançar. Maquilara-se para ficar irreconhecível, mas Cario e Pe- tazanas que povoam sua sombra, as telhas sonhadoras debaixo do
Soltene viram uma lama escorrer de seus calcanhares, o sol recu- cocó de pombo, as flores das varandinhas onde as borboletas dor-
sar sombra à sua longa solidão, viram que seu sorriso não tinha ida- mem e os vãos de calhas onde as libélulas saciam suas longas sedes.

254 255
Cheira a roupa de cama enfiada debaixo dos colchões, à praga dos chonchudo, gordo com.o u~ pepino, cheio de pequenas rugas,
percevejos, ao DDT e ao flite que as baratas degustam. Cheira ao nem um pouco extraordmáno) ... O que me fascinava era a sua cer-
tecido xadrez e ao madapolão que os ingleses nos vendem, a mar- teza. Parece que sabia de alguma coisa. Os pretos dessa idade sem-
garina e banha-de-porco, a folha-de-fiandres galvanizada e aos li- pre tinham um não sei quê de incerteza preso nos olhos. Em Papa
1: cores secretos que vêm de Tenerife, cheira à madeira da Guiana Totone, isso não existia. Seu olhar era calmo. Suas rugas eram tran-
e ao fumo da Venezuela, e a toda a pacotilha que vem das ilhas qüilas. Sua boca não se abria para nenhum desejo de uma palavra
onde negros falam outras línguas ... Comecei a sentir cheiros me- impossível ou de uma língua sonhada. Seus dedos não se agita-
lhor ainda quando a voz de Papa Totone chegou-me ao ouvido, vam sobre esperanças vãs. Nem sequer minha presença o inco-
distante como uma lembrança. Cheire isso, Marie-Sophie, cheire modava. Parecia tão natural quanto a das árvores antigas. Então,
isso, a Cidade cheira como um bicho, feche os olhos para com- fiquei perto dele, muda, à sua imagem, leve, a seu modo, sobre
preender que você está se aproximando de uma jaula, cheire para a superfície do mundo. Vivíamos como duas ervas nessa semi-
:, melhor compreender, para melhor agarrá-la, ela a desorienta ao penumbra tão \uminosa, porém. Um farfalhar de folhagens reves-
. 1,,,. mostrar-lhe as ruas, embora seja muito mais do que ruas, casas, tia os ruídos da Cidade. A cachoeira gorgolejava antes de se esgo-
pessoas, ela é tudo isso e só tem significado mais além de tudo tar num longo lamento serenado pelas pedras.
isso ... Eu sei, murmurei, meu Esternome já me havia dito. Á tardinha, ele acendia uma lamparina de querosene pendu-
Papa Totone vivia num barraco de madeira de caixote, a qual rada na entrada do barraco, e passava a noite a consertar suas re-
parecia de uma outra época. Eu não via nos tapumes nenhuma des, a ralar sua mandioca tratada de estranha maneira, a torrar ca-
velha inscrição. Era uma madeira tirando ao preto, lustrada por fé triturado num pilão de antigamente. Sentada a seu lado, logo
comecei a ter minhas tarefas, minhas ações, meus cantos. Quan-
,,., um tempo imóvel. Ele me deitara em cima de seu colchão, em
do eu ia dormir no barraco, ele desaparecia atrás de um tufo de
meio a vasilhas estranhas. Um cobertor de lã grossa cobria um ta-
11
• 1
pume. Cada canto do barraco tinha uma lamparina a óleo. Ele da- capim alto, jamais o mesmo, jamais do mesmo lado. Parecia ja-
va a impressão de viver do lado de fora, sob a copa das grandes mais dormir, nem sofrer de insônia. Não esperava nada. Não dei-
árvores, aos pés da cachoeira. Ali pescava camarões e peixes-lápia, xara nada em lugar nenhum. Nesse abandono, longe de tudo, na
" que cozinhava em cima de quatro pedras, num fogo infinito. O companhia desse velho, nunca tive a sensação de estar sozinha,
,Ji
,, lugar parecia um ovo de vegetação zebrado de cordas lumines- isto é, de faltar-me alguma coisa. Não havia solidão: adotáramos
centes. Distinguia-se a agonia de milhares de gatinhas. A samam- o ritmo da água, a textura das cascas de árvores, o movimento
baia parecia árvore. O capim-gordura reforçava as sombras. Um dos pássaros que pousavam no chão. O grunhido dos quatro por-
musgo lustrava as margens do rio que corria mais transparente do cos, o bater de asas das galinhas pareciam distantes de nós. Ne-
,,li que uma vidraça de loja. Só o cheiro alucinante da Cidade vinha nhuma necessidade de virar a cabeça para aquela manga que caía,
ofuscar tudo aquilo, e também o barulho dos caminhões muito pois estávamos nela; nem para aqueles estalos de madeira seca;
1,,,
próximos que passavam lá no alto, pela avenida litorânea, diri- estávamos igualmente secos. Freqüentemente ouvi vozes berran-
gindo-se para os reservatórios de Texaco. do de longe Marie-Sophie Ola ou yé, Marisofi, onde você está ... ?
Papa Totone parecia ter admitido essa estranheza. A Cidade Pareciam filtrar de um outro mundo sem precisar de resposta. Era
sussurrava ao redor, mas ele parecia não ouvi-la. Apenas repetia Cario, era Péloponese, era Pe-Soltene ou ainda outras pessoas da-
Cheire-a, Marie-Sophie, cheire para ver que ela vive realmente ... quele Morro Abélard, abandonado para sempre.
Fora isso, não dizia nada, pescava, cuidava das galinhas, preo- Jamais senti que poderia me instalar ao lado de Papa Totone.
if cupava-se com os porcos, enrolava uma macouba seca que fuma- Havia em sua fisionomia o decreto permanente de um provisó-
va dentro de um cachimbo, vigiava sua panela, aplicava-me um rio. Alojava-me, estava claro, e também estava claro que eu deve-
remédio, e passava o resto do tempo com os olhos perdidos no ria ir embora. Não sei mais como abordei a pergunta entre todas
horizonte. Eu tinha uma porção de perguntas a fazer, mas não me as perguntas. Talvez eu falasse dos homens de força, tal como meu
atrevia muito, não que ele fosse impressionante (um negrinho re- Esternome havia me contado. Talvez, até, evocasse o homem da

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masmorra explicando-lhe que era um Mentô, só para testar sua disse-lhe: Ah, o que é a Cidade, Papa? ... Espiou-me de modo es-
reação. Mas ele ria de tudo isso como uma criança de escola, arre- tranho. Senti-o forçado a responder ... nenhum silêncio oferecia
dondava as sobrancelhas, parecia apavorado com as maldades dos qualquer saída ... ou então, foi seu silêncio habitual que assumiu
bekês. Sentiu grande dor no coração diante da idéia da masmor- uma graça singular. Dele para mim, houve um despacho de coisas
ra ficou muito curioso sobre essa ciência dos venenos que os ho- ditas. Mas "ditas" como, não sei.
m~ns de força possuíam. E, quando eu pronunciava a palavra Men- Escrevi suas palavras em velhos cadernos; quer dizer, o que
tô havia em seus olhos o brilho das inocências que têm as Alices delas me restou. Talvez eu as tenha vinculado às leis dessa histó-
n~ país das maravilhas. Não custou para que buscasse esses m?- ria de Cidade que meu Esternome me pôs na cabeça. Aquelas pa-
mentos em que eu lhe contava a vida de meu Esternome. Parecia lavras me habitaram sem que eu sequer soubesse, e sem que se-
1 sentir um alucinante prazer, feito de exaltação, de espanto, de im- quer as compreendesse. Uma espécie de referência para a qual eu
paciência, de contentamento. Mas jamais essa atitude me d:sviou, me dirigia como alguém que cai em orações. Algumas voltavam-
il jamais esqueci a delicada aura que dele e~anava, essa es~ec1e de
segurança erigida no mundo que só ·podia ter um Menta assim
me repentinamente, durante um esforço. Outras traziam oxigê-
nio às pesadas asfixias quando minha vida ia mal. Algumas esca-
· 11 pavam de minha memória, e de minhas palavras, eu mal percebia
' como meu Esternome me explicara.
Certa noite, debaixo da lamparina, fomos assaltados por for- sua presença. Escrevi o que pude recuperar, e como pude escre-
migas voadoras. Fediam muito. Senti nele uma ligeira irritação. As ver. Não vale grande coisa, mas você deveria ler isso um dia, Oi-
formigas atraídas pela lamparina cobriam-na em vagas, depois seau de Cham, só para tocar no esboço do que "ouvi" durante
caíam em pencas para andarem como loucas pela Doum. Já não meu tempo de vida em plena Doum, em meio à alma vegetal de
sabíamos em que canto nos esconder nem o que fazer, até que nosso Texaco ...
Papa Totone, com um gesto rápido (que pude flagrar), agarrou um
punhado de ar e enviou-o por cima do ombro. Fez isso uma vez, PALAVRAS DO PRETO VELHO
duas vezes, três vezes, com gestos de autoridade. Parecia ter ar- DA DOUM
rancado alguma coisa do mundo e tê-lo jogado atrás de si. Dois Você procura Mentô. Não tem Mentô.
dias depois, tive consciência de que, no exato momento de seus A Palavra!
gestos, as formigas haviam desaparecido. , Uma palavra caiu no ouvido do seu Esternome. Uma pa-
No dia em que compreendi tudo isso ao despertar, sai cor- lavra o levou. Veio A Palavra.
rendo por entre as velhas árvores para lhe gritar assim (ele estava
A Cidade? Isso encurta o tempo. Isso encurta o seu tem-
no rio, ocupado com um caranguejo) Ou sé an Mantô, Você é um
po. Isso acelera a sua vida.
Mentô! ... Olhou-me como uma montanha que rosna, depois ges-
ticulou gritando: o caranguejo, aproveitando-se de minha irrup- Tempo de Fazendas é Tempo quebrado.
ção, beliscara-o. Deve ter doído, é evidente, mas pareceu-me cla- Tempo de Morros é lento.
ro que era a sua maneira de anestesiar minha descoberta. Mas Tempo de Cidade dá velocidade.
Persegui-o diariamente com minha pergunta. Quebrava aque- Mas é b mundo que toma velocidade. Tempo-morro,
les silêncios que o isolavam de mim: Você não é um Mentô, Pa- Tempo-cidade, pense nos Tempos.
pa? Você não é um Mentô? ... Olhava-me de um jeito tão esquisito Mentô é o quê? Nada.
1i que eu tinha a impressão de estar enlouquecendo. Jamais respon-
Força? Que força? Matar um boi não é força.
'
dia. Seu olhar sereno liquidava minhas certezas e não me oferecia
Sei matar um boi, mas não tenho força.
nenhuma chance de resposta. Então, veio-me subitamente a idéia
Não, A Palavra.
de abordá-lo de outra maneira (graças ao que escutei suas confi-
dências em meias palavras; mas agora, quando tento pensar nis- A Cidade une e reúne, cada pedaço está unido ao outro,
so, tenho a impressão de que ele nunca falou). Um dia, portanto. nada de barrancos, nada de escarpas, nada de rio que cor-

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ta tudo está unido e reunido. Isso descolore a sua vida . O que é a Cidade? pergunta você. Não é lugar de felici-
• dade. Não é lugar de infelicidade. É cabaço do destino.
Isso é que nem caranguejo dentro de um saco.
Você diz: o negro fugido. A Cidade não é para ser agarrada. É para ser conhecida.
Você diz: o morro era campo dos fugidos. Mas não se de- É um lado que o mundo lhe dá, assim como dá o ar.
ve acreditar na Cidade como campo dos milatos. Quem se O caminho desse Tempo é por aí.
aquilomba nos morros, se aquilomba na Cidade. Quem E é um outro grilhão.
se aquilomba na Cidade, se aquilomba nas Vadiagens. Não há História da Cidade. Bobagem. Fale de Tempo. Is-
São os Vadios que andam, andam, andam ... so não avança como um fio, mas como um cachorro va-
Pense nos Vadios que descem para a Cidade sem perder gabundo, que vai na frente, que pula para trás, que es-
A Palavra: ela mora em suas bocas, louca como um vento tremece, que derrapa e que volta alquebrado.
permanente. Todas as histórias estão a!, mas não há História. Só um
O negro aquilombado não desce sem se dispor às An- Tempo grandioso sem início nem final, sem antes nem
danças. depois. Monumental.
Nunca jamais. Aqueça a sua palavra antes de dizê-la. Fale dentro de seu
!
O que é A Palavra? Se ela a transporta, é A Palavra. Só coração. Saber falar é saber reter a palavra. Falar de fato
1 se a transporta, e sem nenhuma ilusão. Quem tem palavra- é primeiramente dar brilho ao silêncio. O verdadeiro si-
que-frutifica tem A Palavra. Pode tudo fazer. É mais que lêncio é um lugar da Palavra. Escute os verdadeiros
1
Força. Contadores.
Nós aqui, às margens da Cidade, como às margens das Será preciso largar a Cidade. Será preciso desconfiar da
fazendas de antigamente. Mas aqui, nada a pegar, é pre- Cidade. A gasolina oferece o seu berço até tomar a Cida-
ciso atravessar, não para sair do outro lado, mas para se de, e depois abandona a Cidade. Mas ainda está muito
lançar através, para não perder o rumo. longe. E é a Cidade que vai mudar. Mas a Cidade ainda
Que rumo? Deixar a lama, tocar no Homem, viver a Ter- não sabe como vai mudar. Depende dos destinos que ela
ra inteira. Você tem todas as possibilidades no coração. arrasta. É um gargalo, mas é aberto. É aberto, é aberto ...
Mas A Palavra não é uma palavra. A Palavra é mais um Descubra um nome secreto e lute junto com ele. Um no-
silêncio do que um ruído de garganta, é mais um vazio me que ninguém conhece e que no silêncio do seu cora-
ção você pode gritar para ganhar coragem. É um pouco
do que só um silêncio. A Palavra.
O que é a Cidade? pergunta você.
Na Cidade, não vemos mais os bekês. Então, como atacá-
São as posturas que ela lhe dá.
los? Não há mais casa-grande, então, de onde fugir? Não
O que é a Cidade? pergunta você. há mais Usina, então, que ilusão nutrir? O que você cha-
É o gargalo onde nossas histórias se juntam. Os Tempos ma de Força passa a ser uma besteira: Não há mais bois
também. A fazenda nos dissociava. Os morros nos plan- a matar, nem mesmo cuidados a tomar contra cobras. En-
tavam numa deriva imóvel. A Cidade põe em marcha li- tão você se torna mágico em bogabens e aplicador de na-
ga amarra malaxa e remalaxa a toda a velocidade. valha em negros como você, ou negro-fugido-vagabundo
Mas: ao sair do gargalo você não cai numa garrafa. A coi- que a polícia fuzila, ou então você fixa a sua cabeça na
sa recomeça. França, para adorá-la ou amaldiçoá-la. Aqui ou lá, é mor-
Como? rer do mesmo jeito. Procure A Palavra, minha filha,
De outra maneira. procure A Palavra! ...

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Na Cidade não se fala mais. Contadores de histórias mor- todo lado,
. com
. o olho do dono de que fala La Font ame.
· sua pre-
tos ou que ficaram tagarelas. Mas A Palavra não é falar. sença mqu1etava os negros: baixavam a cabeça. Depois, 0 bekê
Você tem que lutar aqui. Inclusive, se aquilombar. A ga- do.petróleo enterrava-se na casinhola cheia de chaves 1nconce
· b'l-
solina oferece-lhe seu berço ...
r
ve1sl 1vros de contas, sararás segurando penas de ganso e até u
Escrever A Palavra? Não. Mas reatar o fio de vida, sim. telefone. ' m
Certa noite, indo não sei aonde, saí do casulo da Doum. An-
Caderno n<? 27 de Marie-Sophie Laborieux.
1965. Biblioteca Schoelcher. dava entre os tonéis. Seguindo as longas tubulações chegue·
· D e lá , v1· a C1'dad e picotada de luzinhas, acocorada' sob os Mor-
cais. 1 ao

ros, ao pé do Forte Saint-Louis. Virando a cabeça, vi o mar vasto


o NOME SECRETO. Depois, Papa Totone tornou-se um horizon- espalhado sob o céu de estrelas. Vi os brilhos brancos do faroi
te distante. Eu sentia sua presença no fundo de uma sombra, mas de Pomte-des-Negres responderem às pulsações vermelhas dos ho-
vê-lo foi sempre muito fugaz. De noite, debaixo da lamparina, fa- lofotes do Forte Saint-Louis. Senti ventos favoráveis vindo de lon-
zia sozinha os gestos da mandioca, do café, da panela a ir para o ge, trazendo rumores de ilhas para a margem de nosso silêncio.
fogo. Ele não aparecia para comer (se é que se podia chamar de Rum~res que margeavam o eflúvio de gasolina e uniam-se àque-
comer aquelas duas migalhas de legumes que ele mastigava infini- las bnsas que varrem o Marigot-Bellevue levantando os aromas da
tamente). De sua sombra não emanava nenhuma hostilidade, mas terra. O lugar era mágico.
senti-me projetada daquela clareira. A palavra de Papa Totone ti- Ali fiquei até o sol nascer. O novo dia era domingo. Mano
nha como que me afastado. Reen~ontrei meu espírito. Percebi de Castrador, o guarda, acabara de controlar os reservatórios de seus
um momento para outro sua imensa solidão. Pus-me a escutar a pesadelos e voltara para o barraco de serviço. Não me vira.• En-
Cidade, a conviver melhor com o cheiro de gasolina. Tive vonta- tão, continuei a andar pelo outro lado de Texaco, na direção de
de de falar com as pessoas. Andava pela beira da Doum e observa- Pointe-la-Vierge e da pedreira Blanchard. Descobri uma ladeira sua-
va através dos arbustos. Vi os reservatórios parecendo glandes ver- ve. Os paus-bálsamo e os campeches inclinados vinham lamber·
melhas dentro de mãos metálicas. Vi as tubulações lançando-se o mar. Na ladeira, percebi o mesmo vento brando, repleto de mun-
para o mar, o ir-e-vir dos caminhões entre as pilhas de tambores. do e de Caribe, e vi do alto o despertar da Cidade: as janelas que
Vi o barco de tonéis que enchia os tanques. Ouvi o desassossego batem, as persianas que piscam, os pássaros da manhã que enlou-
dos trabalhadores por causa dos escapamentos de gás ou dos ja- que.cem o céu, perfis de criadas ocupadas, funcionários indo para
tos de gasolina que azulavam a terra. Vi aquele lugar adormecer a missa, as primeiras poeiras cobrindo as casas baixas. Os mastros
sob a alta escarpa, em meio a seu berço de odores. No sábado e desnudos na doca seca davam a impressão de barcos encalhados
no domingo, os pretinhos de Fonds Populaire invadiam o local no lodo da Cidade. Vi clarearem as árvores da Savane, onde meu
para ir mergulhar na água profunda do final do cais. Vi o guarda Esternome se estabelecera tantos anos antes. Vi o sol castigar os
margear as ondas para persegui-los. Pescadores de Rive-Droite atra- muros do grêmio esportivo La Française, onde Basile devia fazer
. vessavam por ali para chegarem mais facilmente ao farol, trazer musculatura na barra. Os morros arredondados davam para os For-
os documentos, excitar os polvos. Outros vinham dar uma volti- tes, cheios de bocas-de-fogo enferrujadas. O céu. O mar. A terra.
nha a fim de conseguir um biscate ou herdar tonéis vazios cujas Os morros. Os ventos. O lugar era mágico.
utilidades não tinham limites. De manhã bem cedinho, pretos for- Então, respirei fundo, prendi o fôlego comprimido entre mi-
tes carregando martelo pediam passagem para ir à pedreira de nhas costelas e, lembrando-me de uma das exigências de Papa To-
Pointe-la-Vierge. O bekê aparecia freqüentemente durante a se-
(*)É bom que se diga que, do momento em que seus olhinhos não assinala-
mana, com cadernos grossos, vermelho de preocupações, irrita-
vam nenh~m preto furando os reservatórios, nosso Mano não distinguia mais na-
do por desconfiar de seus operários. Espiava os reservatórios co- da;_ além disso, nunca entendeu, durante a vida inteira, por que um negro se can-
mo se estes fossem explodir, passava pelas tubulações olhando para sana em trespassar um tambor de gasolina - mas jamais confessou isso ao seu bekê.

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.'

tone, chamei-me por um nome secreto. Este veio a meu espírito você,. um fogo de dragão pode começar a qualquer momento e
com absoluta naturalidade. Quando ressoou em minha cabeça, sen- queimar a escarpa, queimar as pedras, queimar o mar que a
ti que os langores se dissipavam, que meus cabelos se arrepiavam gente vai ter de comprar de novo na Espanha, você não pode
sobre o crânio, e que eu voltava a ser um galo de briga. No centro fazer esse barraco af... Olhei-o radiante - e atordoada. Ele era
da torrente de palavras que desordenavam minha cabeça, meu no- pois, meu primeiro adversário; era por sua voz que a Cidade, pel~
me secreto começou a bater num ritmo rápido de léwoz que me primeira vez, dirigia-me diretamente a recusa milenar. Essa cena
vibrava os ossos. deve ter sido extraordinária, essa voz deve ter se amplificado com
Repetindo-o sem parar, voltei para a Doum. Evidentemente, os ecos de um penhasco, com um estrondo dos séculos. E ali, era
Papa Totone não estava lá. Fui embora com seu velho facão aban- apenas Mano Castrador, sujeito decente mantido na coleira por
donado debaixo de uma árvore, peguei emprestados seu velho um bekê sem terras.
cobertor de lã, alguns panos. Talhei vários bambus bem retinho Ele (imaginando que o terreno era plano e que podia passar,
e arrastei-os pela propriedade da companhia de petróleo, escon- ou seja, me assustar) ampliava seu discurso: Vocês negros realmente
dendo-me de Mano Castrador (ele atirava pedras nos cachorros não prestam, o bekê bota os seus negócios aí, tranqüilamente,
aninhados no manguezal, de modo a que não inventassem de con- não pede nada a ninguém, e eis que você vem pôr um barraco
fundir os reservatórios com almôndegas de carne). Na ladeira, con- ao lado dos negócios dele! como se não houvesse outros cantos
forme meu Esternome me ensinara, finquei meus quatro bambus no mundo! você poderia ir para os bosques de Balata, mais no
e cerquei-os de panos. Depois, tomei o cuidado de capinar meu alto, para a beira do rio Madame, ou até mais para baixo, na
espaço, de bater a terra dentro de meu quadrado, afastar o cam- direção do Farol, mas não, é aqui na cara do bekê que você vem
peche ao redor, num raio de quatro metros. Estava cercada por procurar um baita de um aborrecimento! e depois você vai di-
um pequeno muro de pau-bálsamo e espinhos. Os panos estavam zer no asilo que a vida é muito engraçada, tire isso daí, tire isso
presos nas estacas, nas fachadas laterais e atrás. Na frente, imó- daí, já disse!. .. Ele já começava a despregar meus panos. Eu me
veis, serviam-me de porta. Tornei a atravessar Texaco diante dos levantei - ... disse "Eu", mas na verdade a pessoa que se levan-
olhos desconfiados de Mano Castrador (ele pensou me reconhe- tou não era mais eul não. Era outra pessoa escorada em seu nome
cer por causa do largo sorriso que dei ao vê-lo) e fui ao Morro secreto, que podia esfolar Castrador com palavras mas também
Abélard, de onde voltei com Cario, Pe-Soltene e alguns outros. com pedradas, e amassá-lo com a mesma força, tal como as folhas
Transportaram-me três folhas de lata enferrujadas. Colocamo-las de caruru que a gente amassa para cozinhar. Trazendo à garganta
em cima de meu quadrado de panos, para protegê-lo do sol. Es- o sofrimento de meu Esternome, o de minha Idoménée, os ódios,
coramos as folhas de lata com pedras e dois pregos que Pe-Soltene as esperanças, os longos períodos de marcha, os rancores engoli-
escondia debaixo do colchão para esse tipo de emergência. E foi dos em seco no desejo de Cidade, cravei meus olhos nos seus.
assim que tive meu barraco. Não era nada, só uma proteção con- Já aí ele sentiu o primeiro arrepio. Avancei para cima dele e disse
tra o sol, mas era minha âncora na Cidade. Eu entrava, eu mesma, assim, sem destrincar os dentes, quase silvando como um bicho-
diretamente nesse velhíssimo combate. comprido, e num francês de bela categoria, para melhor espetar
Quando meus compadres se foram (não entendiam que eu seu coração Mas me diga uma coisa, seu Castrador, para onde
pudesse me instalar sozinha nesse buraco-de-campeche, e tão perto é que você quer que eu vá? Quando o bekê veio se instalar aqui,
do mar, como os piores miseráveis), fiquei sentada, toda feliz, no será que você foi se rebaixar diante dele para dizer o que está
centro de meu quadrado, a contemplar a Cidade no outro lado me dizendo? O que não é bom para os gansos na terra de Deus
da enseada. Mano Castrador notara nossos movimentos. Surgiu não é bom para os patos, ora essa ... E aí, arregalei os olhos, incli-
à minha frente com seus sapatos grandes e seus bigodes grandes, nada para trás, com uma perna apontada para ele, os punhos bus-
e os olhos grandes que provavam aos moleques que ele era mal- cando força em meus quadris acentuados, na mais pura pose de
vado. Disse-me (lembro muito bem), disse-me Você não pode fi- guerra das mulheres crioulas. De repente, Mano já não estava tão
car ar, não, isso é um perigo, a gasolina vai explodir em cima de à vontade assim. Seu arrepio transformara-se em suor de confissão.

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nhá-lo. Quando senti-me pronta para tanto, dei o alarme no Mo.r-
Eu tinha vontade (Mano sentia) de que ele se afastasse, a fim de
ro Abélard. Cinco ou seis pretos valentes chegaram com Cario e
me agarrar em seu colete como praga que não desgruda, e de es-
Pe-Soltene. Num ai, debaixo dos protestos desesperados de Ma-
folar suas feridas. Teria (Mano também sentia) lhe arrancado os
no Castrador, meu quadrado virou quase um barracão. Teto de
colhões, e lhe comido as vísceras e lhe arrebentado o lombo: Ele folha-de-flandres (das quais apenas duas enferrujadas, as outras bri-
refletiu um pouco,• não achou nada para dizer e volto~ em s!lên- lhantes e galvanizadas), tapumes de madeira dos lados, e, na fren-
cio para 0 barraco do portão. Quando, mais tar~e, vm-~e :ai::- te, o extraordinário fibrocimento que eu mesma pregava sem ra-
zando debaixo dos reservatórios à procura de galoes vazios u:eis char, diante do olhar maravilhado dos negros de mãos grossas.
para as reservas de água, veio pessoalmente oferecer-me galoes Mano Castrador ia e vinha, nervoso e transpirando. Defronte do
1
já limpos, e até uma caneca de metal, dois garrafões empalhados barraco que tomava forma, balbuciava o tempo inteiro Mas com
e uma panela. suplicou-me para que eu me escondesse e. lembrou- a breca! o que é que vocês estão fazendo aí, nãq se pode morar
me que, assim como assim, quando o bekê me descobrir, manda- aí não, ai, meu Deus ...
rá destruir tudo, E bote seu corpo onde quiser ... Em seguida, as coisas se aceleraram. Meu barraco atraiu ou-
tros. Os comentários sobre o lugar circularam como vento. Co-
mo cada dia trazia dos Morros sua vaga de aspirantes à Cidade,
FUNDAÇÃO FULMINADA.•• Durante os primeiros tempos, o be- logo se soube que à beira de Texaco havia lugar. Além do que eu
kê não viu nada. Tinha mais o que fazer. Semanas se passaram sem falava do assunto por todo lado, nos entrepostos onde fazia meus
que ninguém descobrisse minha instalação entre os paus-bálsamo. biscates, com a idéia de atrair gente para perto de mim e, assim,
Dali onde eu estava, descortinava os reservatórios. Mas meu olhar /, melhor suportar aquela vida. Quando o bekê percebeu o negócio,
não alcançava a Doum. Sentia-me feliz. A corage'.11 levava-me pa- que estrebuchou para saber se era isso mesmo que estava vendo,
ra a Cidade. Encontrei uns trabalhinhos com os smos, uma faxina já havia, agarrados ao meu, uns vinte barracos em graus diversos
a fazer um corredor a esfregar. Andei pelas ruas olhando para o de acabamento. Eram construídos no domingo ou durante a noi-
chão. Doravante, qualquer coisa podia me servir, um pedaço de te. O recém-chegado aparecia, cercava um canto, e voltava com
:i corda a misericórdia de um prego, um caixote abandonado ... tu- 1
a lua para se incrustar na terra. Logo, mais ninguém precisou ir
do pr~stava. consegui me virar, o que me permitiu, ao longo ~as

em busca de ajuda. As próprias pessoas da ladeira davam uma mão-
semanas, trazer três caixotes, duas folhas-de-fl';11dres nov~s, cin- zinha, aconselhavam, auxiliavam, se apoiavam. Só os especialis-
co placas de fibrocimento tach~das que um mliato ~:~eira-ma~ tas em folha-de-flandres, em dobradiças e em outras coisas vinham
me arrumara a prestação. Um biscateiro do mercado , . carrega de outro lugar para trazer seus préstimos. Em poucos meses
va minhas colheitas depois da hora de saída dos funcionar1os. Mano tornáramo-nos autônomos.
Castrador abria-nos o portão; espumava na garganta toda a lama Eu me lembro ... A primeira a chegar foi Eugénie Labourace,
do Gros-Morne, mas abria assim mesmo. Eu ia amontoando tudo uma sarará do Macouba. Vinha com sete filhos, dos quais apenas
ao lado do barraco, à espera de uma mãozinha. dois podiam ajudá-la. Fugia de um cule do Norte, sedento unica-
Para se beneficiar de uma mãozinha, era preciso ter, ao me- mente de rum, se bem que o rum não lhe fizesse bem, e que en-
nos, uma panela de legumes com um pedaço de bacalhau, copos, tão começava a avançar para suas próprias filhas a fim de boliná-
um galão de rum e um refresco bem doce, o madou, para acompa- las. As pobres coitadas tinham, assim, de brigar com ele todo dia
e toda noite, até que Eugénie Labourace deu no pé, seguindo os
(*) Na verdade, piscou como um passarinho na chuva, mas prefiro cha- conselhos de um motorista de táxi (um certo Trilha-de-Prata, por
mar a isso de "refletir" ... causa de seu modo de dirigir). Assim que chegou ao mercado,
(* *) Que o querido Asimov me perdoe ... falaram-lhe de Texaco. Vi-a chegar num sábado, lá pelo meio-dia;
(* • *) Um tal de Sirop, uma força de homem, que, com seus. com?adres, atravessara Fonds Populaire e seguira a escarpa, andando entre as
parecia-me imortal. Devem ter partido para a França, pois não os veio mais. Mas, ondas, até o manguezal diante dos reservatórios. De lá, viu meu
pensando bem, onde andarão? ... '

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barracão e se aproximou. Estava vermelha, o rosto com cicatrizes Honorat, em Poupinet Calotte, em Saco-Grande, que tinha uma
do canivete de seu cule, mas percebi que era valente e recebi-a hidrocele de duzentos e dez quilos em cima de um carrinho de
com alegria. Fomos buscar as crianças, que dormiam no corredor mão especial, mantido à sua frente, em Sécédias Ramnadine em
da senhora Périne Mirza, uma milata dessas de antigamente, se- Marie-Julie Capou!, sempre grávida e sorridente, em Martial' Pig-
cretária do serviço de obras beneficentes da prefeitura. Eugénie nier e em sua amante Diobine Angélique. Penso em Blanchetiere
Labourace alojou-se em meu barraco, durante dois ou três dias, Carola, domadora de Bib Espitalier (descascador de ferrugem na
.1 antes de levantar o seu graças aos vinténs de lavadeira no semi- doca seca), que um dia ela acabou escaldando até a morte. Penso
nário-colégio. O cule veio encontrá-la com boas intenções, ares em Pierre Philomene Solei! (chamado Pipi), que manejava mara-
dengosos e cabisbaixo. Mas não demorou muito para que, depois vilhosamente bem uma carrocinha de mercado. Penso em Ros-
de um semblante de trabalho no serviço de limpeza urbana, reco- signol, em Cicéron, em Marlene-Bela-Corcunda, e ainda em vá-
meçasse a beber e a se engraçar com suas filhas, um escândalo rios outros cujos nomes escaparam de minha memória mas que
cotidiano que Eugénie Labourace suportava, custasse o que cus- estão em meu coração todo dia e toda noite, meus companheiros
tasse. de luta, meus primeiros irmãos de Texaco.
A segunda foi Sérénus Léoza, boa pessoa, gorda como um ba- Assim, um dia o bekê nos viu. Escalou a ladeira, babou num
lão, carregando cinco filhos e um corpo semi-inútil que parecia grosseiro crioulo. Não acreditava no que estava vendo. Mandou
ser seu homem. Trabalhava como doméstica na casa de um tal de chamar os operários para que nos desalojassem na hora. Os ne-
Tarquin, funcionário de segunda classe dos serviços de impostos gros apareceram em massa, com diversas ferramentas, decididos
diretos. Até então, alugara, caro demais, um pedaço de barraco a obedecer. Nem todo mundo estava lá, mas as crianças estavam
nas Terres-Sainville, das mãos de um vagabundo da mesma laia todas, mais ou menos nos barracos, com seus olhos grandes, suas
de meu Lonyon, mas que trabalhava mancomunado com um ca- barrigas de umbigo saliente, suas cabeças chamuscadas pelo sol,
nalha oficial de justiça, rápido nas penhoras e nas ordens de des- um trapinho cobrindo a bunda. Ao descobri-las, os negros senti-
pejo. Quando ouviu falar de Texaco, disse presente. A terceira foi ram pena. Por mais que o bekê esbravejasse, ficasse vermelho-
Rosa Labautiere (chamada de Désolée), uma espécie de negra ca- cacau, dissesse que mais dia menos dia seríamos queimados pela
bra bastante alta, com uma voz de homem e mãos grossas de lava- explosão de um reservatório, os negros não saíram do lugar. De
deira. Trazia nove crianças de pais diferentes, mas todos de pele toda maneira, se tivessem se mexido, teria sido um pega-pra-capar:
clara, o que fazia com que sua molecada fosse sarará-milata, ama- eu já estava à frente, tendo ao lado Yotte Cléostrate, Eugénie La-
relo-banana, amarelo-limão e amarelo-maracujá. O primeiro ho- bourace e etcétera, dispostas a comer-lhes os ovos sem sequer uma
mem a aparecer foi Milord Abdond, uma espécie de negro dos cam- gota de molho.
pos enfurnado na cidade desde a época do almirante. Vivia de ga- Foram embora. Durante o resto do dia, vinios o bekê de olho
los de briga criados num buraco de Pont-de-Cha!nes. No resto do em nós, vindo e depois indo, partindo e depois voltando. Vimo-
tempo, perambulava pelos terreiros de briga de galo e à sombra lo jogar-se, com os dois pés, em cima de Mano Castrador. Este
de concubinas paternais que ele cumulava, uma atrás de outra, de jurava por Deus nada ter visto e olhava para os lados de nossos
um presente de nove meses. Instalou-se em Texaco, já com fibro- barracos com o espanto de quem visse o mar Vermelho se abrir
cimento. Uma de suas amásias, Yotte Cléostrate (chamada de Si- diante dos judeus. A partir daí, ficamos alertas. Compreendemos
rodelle), despencou em cima dele, com nove filhos. Milord foi que não era possível que todos fossem ao mesmo tempo para a
obrigado a aumentar o barraco, sacrificando seis gaiolas de galos Cidade. Que as crianças jamais deveriam ficar sozinhas, e que, so-
de briga. Depois a coisa não parou mais ... bretudo, cada barraco deveria abrigar um bando de pretinhos de
Houve Victor Détournel, que trabalhava na limpeza urbana, olhos grandes, de modo a bloquear o furor de qualquer carrasco.
Marcel Apô, ajudante de açougueiro, um chamado Saint-Cyr que Estávamos preparados, mas foi inútil.
carregava esse nome de milato em cima de uma pele preta como O bekê mobilizara um comissário de polícia de terceira cate-
urubu, sem sequer saber falar um bom francês. Penso em Rosanne goria, um certo Adalgis Odélde, filho único de uma pobre coitada

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de Saint-Joseph que se esfalfara para dar instrução a uma porcaria as próprias pernas, que eles gostariam que fossem mais numero-
como essa. O comissário, ou comistério (como logo começou a sas. Os caminhões mal freados zanzavam pelo recinto como so-
chamá-lo Bib Espitalier, cujo espírito era vivo em matéria de ape- nâmbulos, trombavam repartiam atolavam fumegavam tossiam. os
lidos), deslocara seu corpo entre nossos barracos. Destilou um pou- sararás das penas de ganso dos serviços de contabilidade escon-
co de francês, citou números da lei, verificou nossas identidades diam-se depressa debaixo dos livros abertos. Tonéis degringola-
e depois nos deu dois dias para desaparecer, antes que ele se eri- vam. Comportas abandonadas pulsaram gases e gasolina. Moral da
gisse em Átila, Flagelo de Deus. Foi embora, para as bandas do história, um apocalipse nos ameaçava. Eu me jogava sobre Eugé-
bekê, o qual lhe puxava o saco. Mas essa encenação não deu re- nie Labourace a fim de lhe tomar os fósforos. Mas sua demência
sultado. Ainda permanecemos meses, sem enxergar outra coisa se- arrastava-me como um tufo de capim de pasto.
não a raiva do bekê dos petróleos, avolumada ao ritmo do tem- O bekê conseguiu tirar-lhe os fósforos. Com uma celeridade
po, passando por cima de nossos tapumes consolidados. Parecia de mangusto, agarrou a caixa e fugiu, de barriga no chão, para o
1 que tinham nos esquecido, quando estourou um bafafá. Eugénie centro da cidade. Parece que teve alguma dificuldade para frear
1
Labourace flagrou o cule trepando em cima de sua filhinha e ten- e arrebentou um poste de luz. Os bombeiros vieram pegá-lo com
tando boliná-la com os grossos dedos sujos. Ele devia ter bebido as sirenes tocando a toda. Pararam de repente, ao descobrirem que
uma sarjeta de rum e comido, sem saber, um monte de vespas ver- era um bekê: nenhuma linha do regulamento indicava o proced.i-
melhas, pois, flagrado em plenas manobras, começou a querer mento para salvar uma vítima bekéia. Então, ficaram meditando
estrangular Eugénie. Agarrou-a pela gola e despencou por nossa sobre seus ferimentos, até que a família aparecesse e o recolhesse
ladeira. A infeliz gritava A moué à moué à moué... !, Socorro, so- pessoalmente para levá-lo direto a um doutor-bekê: ele escapara
corro ... ! como uma gata escaldada. Por sorte, eu estava ali. Já an- de boa.
dava de birra com aquele cule, por causa de seus modos incorre- Em Texaco, tudo voltou à ordem rapidamente. O comistério
tos. Ele passava diante de meu barraco sem um bom-dia nem um de terceira categoria apareceu à frente de dois guardas. Levaram
boa-noite, olhando-me bem no branco dos olhos. Cruzando co- o cule e Eugénie Labourace ao posto policial, on.de anotaram coi-
migo numa viela, mal e mal desviava o corpo para me deixardes- sas à máquina. Eugénie Labourace voltou a viver entre nós. O
cer. Entrei em crise contra ele. Agarrei-o pelo cordão azul amarra- cule, que vira a morte passar perto demais, regressou a Macouba.
do atrás da cabeça e despachei-o inteirinho para o mar. Enquanto Dizem que se tornou boa pessoa (mais abstêmio do que sacerdo-
ele fazia glu-glu nas ondas, gritei-lhe um monte de coisas feias que te indiano antes de um sacrifício), que encontrou outra sarará e
a caneta com que você escreve seria incapaz de imaginar. Eugé- que vê ovos de ouriço,'quando a época se presta. De pé em cima
nie Labourace pendurou-o entre as pedras, onde seu vômito de de sua canoa, parece que põe as duas mãos na cabeça e recita um
rum fulminava os polvos. Trucidou-o, na expressão da palavra. mistério em tâmul. Os ouriços, às pencas, soltam-se do fundo do
Ele saltou para todo lado, pulou a grade, rolou em cima de duas mar e vêm andar perto dele, que os apanha como tangerinas no
tubulações até aquele reservatório que foi obrigado a escalar. O chão. Se é verdade, sorte dele, e azar o nosso, que fomos desco-
bekê, com as mãos para os céus, pensou estar assistindo ao fim bertos por causa dessa história. Mas diariamente agradeço a Deus
do murtdo. Ignoro o que deu na cabeça de Eugénie, boa coisa não que o nome desse cule tenha saído de minha cabeça: isso não me
foi, com certeza. Voltou para o barraco a fim de buscar os fósfo- teria feito nenhum bem.
ros e incendiar o reservatório debaixo do cule, que rezou para O incidente deu força ao bekê para nos impor suas histórias
Mariémen a fim de chegar sem escalas a seu Macouba natal (numa de explosões e de segurança. Os próprios ceerresses* chegaram
velocidade de libélula). a nosso Texaco lá pelas quatro da manhã. Conforme você pode
Quando o bekê viu Eugénie Labourace com os fósforos, qua- ler no jornal Justice, esse dos comunistas, num dia de novembro de
se morreu de susto. Seus negros saíram correndo para os quatro
pontos cardeais, sobretudo para o portão que Mano Castrador já (*) De CRS, Compagnies Républicaines de Sécurité, força armada e de cho-
escancarava. Os motoristas abandonaram os caminhões xingando 1 que da polfcia nacional francesa. (N. T.)

1
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1950. Procure e leia, você vai ver ... Caíram em cima de nós às qua- ouvindo, sem parar. Quando os apedrejamos, com as duas mãos
tro horas da manhã, a mando de um tal de Furret, o segundo che- perseguiram-nos até dentro do oceano, de onde saímos na mes'.
fe de polícia que a França enviou para a Martinica (eu teria coisas ma hora, para um novo ataque.
a contar sobre esse zuavo aí, mas você terá de me ver novamen- De início, os homens mantinham-se à distância, só nós, as se-
te). Cercaram a ladeira como se fôssemos os resistentes fellaghas nhoras, enfrentávamos os policiais. Quando viram nossas desgra-
de Argel ou chineses cruéis das florestas do Vietnam. Tinham fu- ças, também se lançaram, mas logo os encontramos de cara na la-
zis e metralhadoras, escudos, capacetes. Escondiam o rosto atrás ma: com eles, os ceerresses atacavam como se tivessem canhões.
i
de grandes viseiras e pareciam máquinas de dois pés. Achei que Uma fulana se enrolou nos restos de seu barraco. Outra sempre
l ia enlouquecer quando saí de meu barraco, acordada pelo porta- se enfiava debaixo das maças levantadas, até que uns ceerresses
voz do comistério de terceira categoria que nos intimava a tirar a arrastassem ladeira abaixo. Esse circo inominável durou até o
nossas coisas dali e colocá-las bem longe, pois tudo seria reduzido sol já alto. E voltávamos ao ataque, sem parar, esgotando-os ao
a migalhas. De fato, postados a seu lado havia negros suando, car- máximo, gritando mais forte do que as vendedoras de peixe.
regando barras de ferro, maças, pés-de-cabra. Não sei de onde Sentíamo-nos sozinhos no mundo, abandonados, esmagados. Só
saíam esses cachorros, talvez de um fundo de xilindró onde ha- nos restava subir de novo, nos agarrarmos a nossas folhas-de-
viam expiado a mais recente safadeza de suas almas. Seja como flandres tão preciosas, a nossas placas de fibrocimento que, quando
for, não se comoveram com as crianças apavoradas, não deram rachavam, nos arrancavam o coração. Nada mais a fazer, senão re-
a menor confiança para nossas proclamações de desespero, nos- sistir até a morte.
sas crises de lágrimas rolando pelo chão em meio à poeira. Os ceer- Naquele tempo, e digo-lhe com toda a sinceridade, os comu-
resses (ex-fanáticos de Hitler que os bekês haviam despachado para nistas eram as únicas criaturas humanas. Foram os primeiros a fi-
nós, nas colônias, segundo certo boato) penetravam nos barracos car do nosso lado, e nunca mais nos deixaram. Lá pelas sete da
empurrando as portas e mandavam para os ares mesa, lençóis, manhã (depois da tragédia consumada, tinham nos recolhido co-
trapos-de-cama, crianças e tudo o que havia. Tão logo o barraco mo gado, no início da ladeira, e os pretos-desalmados acabavam
se esvaziava, os pretos-desalmados prosseguiam o trabalho sujo de destruir nossos barracos), vimos chegar o prefeito que assumi-
com pancadas de barra de ferro, quebrando madeira de caixote, ra na ausência de Césaire (que andava sabe-se lá por onde). Era
arrebentando fibrocimento. Despregavam os telhados de folha- um milato comunista, seu mais importante assessor, advogado de
'' de-flandres, rindo como animais e atirando-os por cima da ladei- profissão. Um homem decidido. Mandou que o comistério e o ca-
'' ra. Um deles, tomado por um súbito desejo, exibiu seu caralho pitão dos ceerresses parassem as violências. Acreditei ver o Pory-
e começou a mijar sobre o que havia quebrado, resmungando uns Papy que meu Esternome me descrevera, nos furores de Saint-
sacrilégios. O pior é que todo mundo ria, o comistério mas tam- Pierre, mas aquele ali se chamava Gratiant, um senhor Georges
bém o capitão dos ceerresses, e um outro nojento cor-de-rosa, as- Gratiant, belo sujeito, de bela voz, que falou como devia, vitrifi-
sessor do chefe de polícia. cando os ódios.
É difícil, apesar do nome secreto que encoraja o seu coração, Cercado de vereadores, circulou no meio do desastre. o co-
arrancar os colhões de um ceerresse. Devem escondê-los num bol- mistério declarava que só receberia ordens do próprio chefe de
so especial. Além disso, com seus tecidos grossos, os sapatos pe- polícia e que a expulsão continuaria. Os caminhões militares já
sados, os capacetes, os cassetetes, a coronha dos fuzis, por mais estavam chegando para levar nossas tralhas. O milato comunista
que voássemos para cima deles como bichos de garras, íamos pa- esbravejou que, enquanto estivesse ali, ninguém poria a mão nos
'
rar nos campeches, descendo a ladeira, com galos e ferimentos. pertences desses pobres infelizes, cujo destino era, doravante, da
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Umas botas me esmagaram os peitos. Um cassetete fez minha ore- alçada da prefeitura. Depois, lançou-se num discurso acerbo so-
I' lha assobiar (e até agora ela continua a assobiar, como um saci- bre a classe operária explorada, sobre o surgimento vindouro de
pererê elétrico dando petelecos dentro de uma lata). Minhas unhas uma nova sociedade, denunciou o colonialismo e emocionou a
se descolaram na fivela de um cinturão. Nós os xingamos, está me todos ao relembrar o horror da escravidão que era mantida sob ou-

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tras formas, e que tudo isso tinha de acabar ... Os CRS e o repre- Chamou-me de Puta, Canalha, Pele-Suja, Cadela-de-Meio-Fio va-
sentante do chefe de polícia sentiram a pele branca ficar carrega- gabunda, Boceta-Fedorenta, Formiga-de-Cemitério, Mula-Ma'n.ca
da de todos os fardos da terra. Empalideceram. O milato comu- Mulher-Maluca, Pêlo-de-Zumbi, Rato-de-Esgoto, Calamidade Pú'.
nista aproveitou a brecha e deu ordens a um dos vereadores. Este blica, Galinha, Rainha-da-Porcaria, Mamadeira-de-Gonorréia, Lixo-
correu para buscar outros camaradas que levaram os materiais nos de-Sarjeta-sem-Vassoura (ele ignorava a inalterável barreira que meu
1 caminhões da prefeitura. Cada um de nós saiu desabalado para nome secreto instituía) ... Eu o chamava de Escorpião-Descascado
.• 1

,, 1 reunir seu material. O milato comunista consolou-nos, um a um, Cueca-Molhada, Puto-sem-Batismo, Caralho-Sujo, Batata-Doce'.
Branca-de-Seis-Semanas, Casca-de-Mandioca-Ralada, Abestalhado
beijou as crianças, explicou-nos que a prefeitura nos alojaria em
Pus-de-Piã, Furúnculo-Supurando, Guloso-Pançudo, Velho-Gagá:
Trénelle, onde os serviços técnicos desmatariam um pouco o ter-
Filho-da-Pátria, Bicho-de-Farinha ... Fazia a mesma coisa com sua
reno e nos ajudariam a reconstruir os barracos. mãe, soltando uns velha-corcunda, perereca, xoxota, carrapicho-
carrapato, língua-de-trapo, xumbrega, com sua família, sua raça
e sua classe. Sentia tanto prazer em xingar que às vezes ele não
DANDO TEMPO AO TEMPO. Neguei-me a subir no caminhão mi- acreditava no que estava ouvindo. Muito freqüentemente, já esta-
litar. Recolhi minhas roupas, minhas panelas, meus quatro livros va longe e eu ainda o xingava, sem sequer respirar, a ponto de
(ele pisara em cima de meu Rabelais) e fui para a Douro, onde Pa- Mano Castrador, nervoso como ele só, ter de se trancar no barra-
pa Totone me recebeu sorridente. Contei-lhe o que tinha aconte- cão e lançar um tesconjuro debaixo do travesseiro. E eu podia pas-
cido ... Lembrou-me que a Cidade não se oferecia fácil como pra- sar horas assim, diante do sol se pondo, empertigada como uma
to de mingau, que era um soco na cara, que eu tinha mesmo era Nossa Senhora, em cima das cinzas de meu barraco, a uivar mi-
de ir para Trénelle sob a proteção da prefeitura. Mas partir ... não, nha desgraça, a mobilizar o fundo agressivo de nossa língua crioula,
eu havia escolhido Texaco. Vou continuar aqui, disse, perceben- único fundo ainda útil tão longe das fazendas. Quando minha goela
:1 do que ele já sabia, como se ouvisse o nome secreto que ressoava se esgotava, eu caía dura como uma pedra e, em minha cabeça
'1 e em meu coração, xingava a mim mesma.
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dentro de mim.
Meus compadres e comadres foram alojados em Trénelle, con- As vezes, conseguia construir meu barraco até o fibrocimen-
•I
forme anunciado. Num abrir e fechar de olhos, os serviços da pre- to, mas, bastava eu dar as costas, e ele era demolido. Sozinha, eu
feitura desmataram uma ladeira, um pouco abaixo do Fort-Tar- não podia organizar nenhuma defesa, nem evitar que os sicários
tenson, ao lado dos barracos que já brotavam por ali. Sob a dire- se aproveitassem de minha ausência. Portanto, passei a viver en-
ção de militantes comunistas como Nelzy e Sainte-Rose, recons- tre a Douro e a ladeira, durante um bocado de anos, material de
sobra para escrever um romance sujo, se eu tivesse a força de con-
truíram barracos com belas tábuas e belas folhas-de-fiandres. Em
tar. Mas que importância? Na verdade, as vidas não têm sentido,
poucos dias, todos tinham onde morar. Ainda estão por lá, creio ... freqüentemente vão e vêm como as tsunamis,"' com o mesmo es-
freqüentemente penso neles ... com imensa ternura ... eles, que se trondo, e drenam destroços que ficam apodrecendo na sua cabe-
tornaram irmãos de sangue sob o ódio dos primeiros ceerresses. ça como se fossem relíquias, que para você parecem tesouros mas
Mano Castrador não acreditou em seus olhos quando me viu que acabam desaparecendo. Que necrópole de sensações!. .. es-
passar novamente com meus quatro bambus e meus novos panos. ses batimentos do coração dos quais nada resta ... esses sorrisos
Finquei-os seis vezes, e seis vezes os pretos do bekê, vindos sei atestados por uma simples· ruga ... de que servem as pessoas que
lá de onde (seus operários se recusavam a isso), os incendiaram encontramos, e que passam, que passam, e se apagam? ... e por
em minha ausência. Recomecei, com uma constância alucinante, que esquecemos aqueles que seria agradável não esquecer, essas
mas jamais o bekê cedeu. Encontrei-o uma ou duas vezes. Não era criaturas de coração, feitas à sua imagem, e que se afastam devo-
muito alto, não, era quase careca, a pele malhada por conta de cê ... zumbis fugazes, como nos escorarmos?
uma antiga bexiga, a voz sonora do mais velho dos pretos velhos.
Trocamos, durante um tempo sem tempo, milhões de insultos. (•)Marés da costa do Pacífico. (N. T.)

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'!\"
1

Será que é preciso contar os dias, descrevê-los, conservar o nas prestações, falar da vida com alguém que não escuta, saber
que trazem de esperança ... as noites sem lua, quando congelamos notícias para viver outras vidas e dividir a sua própria, querer ser
na angústia de nossa carne? ... e as alegrias que jorram sabe-se lá outra coisa, odiar-se, depois amar-se, aprender a se pôr de pé den-
de onde e jogam-nos na felicidade durante uns poucos segundos? ... tro de suas carnes ... que trabalho que é viver... e quantas miuça-
e depois, temos de ouvir música, cantigas, melodias, esses bálsa- lhas que minha palavra não pode de fato captar ... hum?
mos de alegria que ajudam a viver ... Contar as lágrimas? na lem- Conheci amores semelhantes com homens diferentes. Sem-
brança, elas cintilam, trazem notas sensíveis, anestesiadas de to- pre com a mesma soma de prazeres e de lágrimas, de queimadu-
das as dores, mas sensíveis, e que podemos examinar de longe ras e mistérios ... ilusão sempre nova ... O amor veste a vida, colo-
.1 como trilhas de nossa carne no mundo, como riquezas que fluí- re a sobrevida, dissipa as sujeiras acumuladas. O amor é o cora-
ram de uma tortura ... ção acelerado, são bordoadas na alma. Com ele, rolei em sarjetas
1.:' Você é capaz de escrever, Oiseau de Cham, essas pequenas profundas abertas em mim mesma, saboreei o vinagre bastante áci-
'
''
'
futilidades que formam o chão de nosso espírito em vida ... um do, chupei pimenta-malagueta. Com ele, conheci o sofrimento do
cheiro de. madeira queimada nos alisios ... é uma alegria ... ou o sol ventre morto, esse desejo de um pretinho que cria como que um
tocando numa pele que se arrepia ... a sede que se estica para a cogumelo sobre um detrito de ovários. Soube o que foram os aban-
água de um Didier fresco ... a sombra vespertina, quando não pen- donos, fiz gente sofrer, fizeram-me tudo sofrer, enganei-me qua-
li
samos em nada ... colher uma flor que não cheiramos, que não olha- se sempre e julguei que um sobressalto da carne fosse um senti-
mos, que colocamos no barraco em cima da mesa, dentro de um mento. Aprendi a escrever cartas, a ser dengosa com um negro
1~ vaso, sem dar-lhe importância, mas que veste os nossos sentimen- que não prestava, a ser dengosa, ainda assim, sem saber muito bem
'
tos durante a semana inteira ... hum? por quê ... Ah, Gostor, que sempre fazia aquilo na posição do
:~ :i
... contar os dias de doença, os suores, as febres, as dores de coelho-assado ... Ah, Nulitre, que se agarrava em minhas ·costas e
1i
barriga, as pernas pesadas que, preocupados, massageamos, e os me balançava para a frente ... Ah, Alexo, que me chamava de ma-
chás de erva-de-cobra, esse sangue do ventre que ritma os meses ... mãe ... hum ... Nenhum deles conseguiu me tirar da Doum e das
contar as ilusões que dão a impressão de que avançamos, e a cons- redondezas de Texaco. Todos pensavam que Papa Totone era meu
tatação cruel de que o que se amontoou cabe num único lençol... pai e deixei que acreditassem, escondendo meus tostões na Doum,
um único lençol para a minha vida ... hum? dormindo durante a semana nas casas de minhas patroas da Cida-
... e o cartão de Nelta que você olha assim, com dias de lágri- de, e sempre voltando, sempre, o mais freqüentemente possível,
mas, dias de alegria, e dias vazios? E o seu Esternome que vem para meu ancoradouro, para meu Texaco, o meu (acima do qual
ver você e a emociona porque você não o beijou suficientemen- começava-se a construir o liceu das moças) ~minha gasolina de
te ... e a sua Idoménée que você gostaria de acolher nos braços vida.
como se fosse sua filhinha e fazê-la dormir sobre o seu coração
como você poderia ter feito e jamais fez? ...
Será preciso dizer que não vemos o tempo passar, e que o o NATAL LÁ EMBAIXO. Tive a minha chance, durante um mês
i!'
descobrimos, esgotado, no Natal, na hora das lingüiças de sangue de dezembro em que a Cidade pegou fogo. Uma desavença entre
e dos patês de porco, e que festejamos no Morro Abélard expres- pretos e brancos-frança, por causa de uma história de motocicle-
sando nossa alegria por termos sabido resistir ao ano que se vai... ta mal estacionada. A pancadaria começou. O branco atacou. Ou-
ouvir o rádio, cozinhar um arroz de caranguejo, falar com Papa tros martiniquenses que bebiam perto da banca de jornal pratica-
Totone que repete seu delírio mas que ainda me inebria, cantar, mente massacraram o branco atacante, e provavelmente outros
chorar, rir a bandeiras despregadas, berrar meu nome secreto com brancos por pem" Os ceerresses de Hitler responderam num pis-
dias de força e dias bambos, esquecer-se, limpar um peixe, encon- car de olhos e esmurraram todo mundo, como é de praxe. Quis
trar uma pérola de lambi, tocar nos bonitos tecidos dos sírios, man- o destino que batessem em dois pretos militares de Guadalupe,
dar fazer um vestido com a Caroline, a costureira que não é feroz de licença na Savane. Os militares responderam com pedradas.

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I' •
Houve ainda mais ceerresses, gases lacrimogêneos e revólveres. deira de caixote e fibrocimento estava pronta para as convoca-
Os ceerresses foram desbaratados por multidões negras que bro- ções, sensível ao menor sangue, ávida pela bandeira de qualquer
tavam de Sainte-Thérese, do Morro Pichevin, de Trénelle, das Ter- sonho, contanto que este sonho autorizasse a entrada na Cidade.
res-Sainville, do Morro Abélard, de Rive-Droite, dali onde comiam Os comunistas compreenderam que suas antigas tropas dos cam-
pedra sem pão. Esses Bairros reprimidos fora da Cidade aprovei- pos e das usinas centrais tinham enveredado pelas estradas colo-
taram-se desse sururu para clamar seus sofrimentos e derrubar os niais, esquecendo-se das Trilhas, para se sedimentarem ali, em ple-
grilhões que a Cidade lhes punha. na car;i da Cidade. Um proletariado sem fábricas, sem oficinas, e
O hotel de l'Europe, cujo dono chamara os policiais., foi de- sem trabalho, e sem patrões, perdido nos biscates, mergulhado
vastado, as radiopatrulhas e as delegacias foram incendiadas. Bri- na sobrevivência, e levando sua vida como numa vereda entre bra-
sas. Então, olharam os velhos bairros e disseram Que gente é es-
gas noturnas foram fomentadas. Bandos aos berros enlouqueceram
sa?, o que eu achei muito bom - e "eu", é como dizer "nós".
o mundo, os ceerresses os perseguiam em vão. Um rapaz recebeu
A palavra e o interesse crédulo dos comunistas abriram cami-
uma granada e seu coração acabou de bater. Então a Cidade se nhos nos bairros nascentes. As pessoas ainda despencavam, aos
inflamou durante duas ou três noites. O chefe de polícia pensou montes, do interior. Aglutinaram-se nos mangues de Volga-Plage,
estar diante de uma revolução. Mandou chamar os guardas dos apesar da vigilância do serviço dominial, concluíram a conquista
municípios, mandou convocar ceerresses em Guadalupe e na Fran- das ladeiras de Trénelle, apossaram-se de Pont-de-Chalnes, do Pa-
ça. Essa armada ficou estacionada no Pont-Démosthene, graças a vé, de Grosse-Roche, Renéville, L'Ermitage, Le Béro, de tudo, de
barreiras de pretos em guerra. Mas os ceerresses as contornaram cada fenda da Cidade, cada buraco, cada deserto de lixo, de água
por Ravine-Vilaine e entraram na Cidade. Liberaram os postos po- fresca ou de espinhos. Por todo lado, os comunistas e nosso Cé-
liciais, jogaram abaixo as barreiras, prenderam as pessoas e impu- saire os ajudaram a se instalar, abriram ruas, asfaltaram travessas,
seram um toque de recolher a todas as vidas, chegando inclusive levaram água, os apoiaram. Estas eram, pois, vozes conquistadas
a proscrever a missa do galo da noite de Natal. para contrabalançar as dos milatos do centro da cidade ou de Clai-
riere, as dos pretos pequeno-burgueses da Pointe-des-Negres ou
Texaco se recorda do jogo de forças entre a senzala e a Petit-Paradis e as dos clãs de bekês das colinas glaciais de Didier.
casa-grande, entre a fazenda e o povoado, entre o vilare- Pois bem, aumentando sem parar, eles se sentiram uma força. Apre-
jo e a cidade. Fort-de-France, levada pelo ideal da ban- feitura estava a seu lado, a Cidade fora abalada, o mundo tremera,
deira nacional e da fortaleza infernal, esquecera-se um eles haviam ameaçado a ordem dos brancos que os comunistas cha-
pouco dos equilíbrios originais. Texaco, assim como os mavam de empresários, exploradores, colonialistas e outras pala-
outros bairros, trouxe-lhe tudo isso como caldo ferven- vras descabidas. Para nós, eram brancos-frança ou brancos-bekês,
do, como um rascunho. É uma riqueza que o urbanista não era nossa querida França bem-amada, eram brancos, diachos! ...
deve viver. fascinantes e detestáveis em meio àquela pura ilusão de que falava
Nota do urbanista ao Marcador de Palavras.
meu Esternome desde antigamente, desde Saint-Pierre, onde o di-
Pasta n '? 17. Folha xxxur. reito e o avesso simplesmente se misturavam.
1987. Biblioteca Schoelcher. Os velhos bairros sentiram-se fortes. Os negros do campo,
apoiados em suas histórias, chegavam com a autoridade da deses-
Tudo entrou em ordem, mas produzira-se como que um aba- perança. Vi barracos florirem por todo lado. Eu mesma, entusias-
lo do mundo. A Cidade estava arrasada, suas defesas contra os Bair- mada, voltei a atacar Texaco. Vi-me construindo meu barraco em
ros se haviam dizimado. Os comunistas, com Césaire à frente, ha- companhia de umas dez pessoas que acabavam de chegar ou vi-
viam falado duro, ameaçado, denunciado, feito uma confusão dos nham de outros cantos mais hostis. Quase todos haviam partici-
diabos. Haviam transformado os habitantes dos velhos bairros em pado dos incêndios daquele Natal de força. Num tempinho à-toa,
exército popular. Haviam compreendido que essa miséria de ma- a ladeira ficou coberta. Surgiram até alguns barracos mais para cima

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dos reservatórios, agarrados na escarpa, à beira do vazio, a pou-
cos passos do liceu das moças. Outros surgiram em menos de uma
noite ao longo do rio do Marigot-Bellevue, no manguezal, diante
dos próprios olhos do bekê do petróleo. Esses barracos erigiam-
se na lama, <:!m cima de estacas compridas fincadas sabe-se lá co-
mo. As pessoas traziam a terra, as pedras, os detritos para firmar
o chão onde passavam. Quando o mar se encrespava, algumas on- TEMPOS DE CONCREW
das iam lamber seus pés, e os barracos mantinham um equilíbrio (1961-80)
trêmulo. O bekê ficava louco, circulava por postos policiais, pe-
dia audiência na prefeitura, na chefatura de polícia, na câmara dos
vereadores. Mas esses queridos comunistas apoiavam-nos até a
morte.
Então, ficaram todos por ali, a meu redor, banhados pelas ir-
radiações de meu nome secreto: Marie-Clémence e sua lenda de Longe da Cidade, o tempo não passava.
anjo caído, Annette Bonamitan, Sonore em solteira, Néolise Dai- A Cidade bem pertinho era como árvore de fruta-pão ao lado
daine, Carolina Danta, Iphigénie-a-Louca, o cidadão]ulot-da-Peste, do barraco. Ter seguridade social, cavar uma oportunidade de ser
Major de profissão, e todos. os outros, e todos os outros, nosso funcionário público, os negócios de escola para salvar a moleca-
bando aquilombado, ainda desorganizado no centro da batalha ... da, circular por um bando de guichês ou se iniciar nos segredos
de uma vida que se complica - ali era mais fácil.
A Cidade (como certos roçados repletos do augusto inhame-
branco) era o pedestal das raridades que melhoravam a vida, pois,
no duro, no duro, a vida é feita para ser vivida, portanto as lojas
dos sírios, os tecidos de .tergal, os salões de beleza, as luzes, as
associações, as mercadorias da França que nenhuma vendedora
de bugigangas trazia das ilhas seduziam mais do que cardumes de
tainhas atraídos pelo figado esmagado do tubarão.
Crescíamos ao lado da Cidade, a ela ligados por mil tubos de
sobrevivência. Mas a Cidade nos ignorava. Sua atividade, seus olha-
res, as facetas de sua vida (da manhã de cada dia até os belos neons
da noite) nos ignoravam. Viéramos por causa de suas promessas,
de seu destino, estávamos excluídos de suas promessas, de seu
destino. Nada era dado, precisávamos tudo arrancar. Falamos com
os que se pareciam conosco. Fomos para seus mutirões e eles vie-
ram para os nossos. Os velhos bairros juntaram-se, contornando
a Cidade, famílias os ligaram, trocas os uniram; Circulávamos ao
redor da Cidade, ali entrando para sugá-la, contornando-a para vi-
ver. Víamos a Cidade do alto, mas na verdade só a vivíamos sub-
metidos à sua indiferença freqüentemente agressiva.

TERRA LIVRE. Em Texaco, nós e os últimos que chegaram ao


cinturão dos velhos bairros reinventamos tudo: leis, códigos urba-

280 281
nos, relações de vizinhança, regras de implantação e de constru- ra o mar, recebiam o sol de frente, por trás dos panos-janelas. O
ção. No começo, em volta dos reservatórios só havia campeches sol batendo poderia assá-los, mas a correnteza constante dos alí-
e paus-bálsamo, ao lado de (atrás dos campeches e paus-bálsamo) sios vinha refrescá-los. E fazia muito tempo que tínhamos apren-
outros campeches e outros paus-bálsamo. Essas árvores haviam dido a nos preocupar com o vento, à moda dos caraíbas. Àqueles
proliferado por ali depois de uma ruptura dos equilíbrios que são que vinham me ver antes de se implantar, eu lembrava (mas será
a base da diversidade das matas. Quando chegamos, trouxemos que precisava?) que previssem frestas e Incarnas que aspirassem
o campo: montes de limoeiros, pencas de coqueiros, galhos de os ventos, pequenos largos defronte do barraco. Mas, à medida
mamoeiros, tufos de cana-de-açúcar, mudas de bananeiras, goia- que estes se amontoavam, faltou-nos ar fresco, um pouco menos
beiras, pimentas, lichis, frutas-pão, tão abençoadas, abacateiros, no alto, demais no manguezal.
e toneladas de ervas disso e daquilo, aptas a sarar nossas doenças,
Nossas estruturas leves (testadas no Noutéka dos morros) per-
as dores de coração, as feridas da alma, as florações sonhadoras
mitiram que nos dependurássemos nas pontas extremas da escar-
da melancolia.
pa. Tais estruturas, sabíamos, prometiam a cada barraco o acesso
Comportávamo-nos como naquela vida doNoutéka dos mor-
quase frontal ao vento, uma vista panoràmica para o céu e o mar.
ros que meu Esternome me descrevera longamente, cuidávamos
impecavelmente dos espaços livres ao redor do barraco, num rit- O que derrotava as claustrofobias que ocasionalmente a sufocan-
te proximidade provocava. Sabíamos fazer essas coisas desde muito
mo submetido às estações da lua, da chuva e dos ventos. E quise- tempo.
mos, diante da Cidade, viver segundo o espírito dos Morros, quer
dizer, unicamente com nossos recursos, e, melhor, unicamente Nada de desperdício de espaço em Texaco. O menor centí-
com nosso saber. metro servia para alguma coisa. E nada de terra particular, ou de
Na ladeira, do meu lado de Texaco-do-Alto, a rocha aflorava terra coletiva, não éramos proprietários do solo e ninguém podia
formando umas caras cinzentas sobre as quais construíamos nos- se prevalecer de coisa nenhuma, fosse o que fosse, a não ser da
sos barracos. Aqui e acolá subsistiam camadas de terra; só haviam soma das horas, minutos e segundos desde sua chegada. O ins-
conhecido a frugalidade do paus-bálsamo e do campeche, portanto tante da chegada criava em tal lugar uma preeminência intangí-
eram generosas para a seiva das árvores frutíferas. Não foi preci- vel: Eu estava aqui primeiro. Boi que vai na frente bebe água
so, como em Texaco-de-Baixo, despejar uma terra boa sobre a água clara. Mas se o primeiro dispunha de um bom lugar, nada lhe res-
do manguezal. tava, nessa terra de Deus, senão contemplar a instalação do outro;
Nossos barracos pousavam desposando a terra, nada de capi- devia, inclusive, ajudá-lo, pois (quem semeia vento colhe tempes-
nagem, nada de modificações no perfil dos declives. Em Texaco- tade) estávamos, nessa luta pela vida, preocupados com nossas co-
do-Alto, fazíamos parte da escarpa; em Texaco-de-Baixo, do man- lheitas. Cada barraco, ao longo dos dias, servia de apoio a outro,
guezal. Às vezes, quase sonhando, eu ouvia a água infiltrar a escarpa, e assim por diante. A mesma coisa para as vidas, que se uniam por
que rachava sob o calor do sol e ameaçava o barraco fincado em cima dos fantasmas das cercas que ondulavam pelo terreno.
cima da rocha. Os do manguezal sentiam em seus esqueletos os ru- Em nosso espírito, debaixo dos barracos a terra continuava
mores marinhos sussurrantes de escumas. a ser estranhamente livre, definitivamente livre.
Mesmo no auge do mês de junho, o sol não abafava Texaco- Quando uma fresta de terra permanecia isenta de tudo, tratava-
do-Alto. Lá pelas qua.tro da tarde, seus raios enviesavam-se contra se, na verdade, de uma passagem, de uma comunicação entre dois
a escarpa e deixavam-nos uma brisa fresca de alísio com sabor de barracos, aberta com saltos de sapato na pedra, uma zona miste-
algas e hibiscos. Com o sol batendo firme, as sombras de nossos riosa que foi capaz de frustrar para sempre as tentativas, e que,
barracos se acavalavam, tornavam-se mais densas, preservando- aberta ao sol, funcionava em nosso apinhamento como um pul-
nos assim dos castigos caniculares. Além disso, os quartos, dando mão vivo ao vento, oxigenando os corações.
para a escarpa à sombra, mantinham uma feliz temperatura de nas- Texaco-do-Alto parecia esculpido na escarpa. A madeira de
cente morna. Os que haviam construído sobre a ladeira, dando pa- caixote e o fibrocimento atacados pelas chuvas e pelos ventos fica-

282 283

l
ram com o colorido das rochas e a imobilidade opaca de certas che, Bon-Alr, Texaco ... alvenarias de sobrevivência, espaço crioulo
sombras. Vista do mar, a escarpa parecia brotar dos barracos mi- de solidariedades novas. Mas quem podia entender isso? Em meu
nerais, das esculturas do vento, mal-e-mal mais acentuadas do que espírito, tudo estava cada vez mais claro, uma lucidez solitária e
as protuberâncias do dacito. Quando chegaram o tijolo e o con- ver Texaco crescer aclarava em minha cabeça cada palavra de meu '
creto, a coisa variava do cinza-alvenaria ao cinza-avermelhado do Esternome, esclarecia o mistério das palavras do preto velho da
barro envelhecido. Mais tarde, houve o cor-de-rosa, o branco e Doum. Só me restava repetir tudo isso em meu coração, com meu
o verde-claro de uma demão de tinta (comprada numa liquidação, nome secreto, gritar dentro de minha cabeça com meu nome se-
à beira-mar) iniciada mas jamais concluída. O pintor não demora- creto, e invocar a força de vencer os contrários.
va a perceber que em nosso caos piramidal pintar era inútil - e Veio-me a idéia de escrever a ossatura dessa solidão. Escre-
perigoso para a reverberação, portanto podia atrair o calor. A cor ver era reencontrar meu Esternome, reescutar os ecos de sua voz
lili nua da pedra, do tijolo, do cimento, e mais tarde do concreto,
apagava os raios do sol, um após outro, como se fossem vehs.
perdidos em mim mesma, reconstruir-me lentamente ao redor de
uma memória, de uma desordem de palavras simultaneamente obs-
,,1 Mas quem poderia compreender isso, exceto meu Esterno- curas e fortes. Primeiro, escrevi o nome secreto que escolhera em
li me ou Papa Totone? Esses equilíbrios são indecifráveis para as pes- caixas de camisas que os sírios tinham me dado; bonitas caixas
li soas da Cidade, e inclusive de Texaco. Quem nos via, via apenas de papelão branco, que eu amontoava como as tábuas da lei, e
! ! misérias emaranhadas. E os que ali ficavam esperavam apenas uma que de quando em vez cobria com uma letra muito grande, não
! ' "'.I' oportunidade para ir morrer nos cubículos dos conjuntos habita- muito reta, ondulante. Aprendi a traçar linhas, de modo a guiar
cionais. minha mão. Aprendi a definir as margens e a segui-las. Ao menor
borrão de minha pena de estudante, eu rabiscava tudo para tudo
recomeçar. Queria que cada caixa ficasse impecável. Depois, um
ESCREVER-MORRER. Ah, havia desgraças: nossas águas e as da dia, consegui uma caderneta de contas na qual subsistiam páginas
chuva minavam de umidade os alicerces dos barracos. Nos ata- em branco quadriculadas. Então, tomei gosto pelos cadernos: po-
lhos, víamos correr pequenos riachos. Em Texaco-de-Baixo, à beira díamos arrancar as páginas 111anchadas, o quadriculado organiza-
do mangue, víamos o rio estender-se em pântano até unir-se ao va a mão; além disso, parecia um livro; podíamos relê-lo, folheá-
i i
mar. As estacas, quase sempre estragadas, apodreciam até ajoelha- lo, cheirá-lo. Um caderno novo, ah! me transporta, a beleza das
rem-se numa súbita oração que nos atirava, de pernas para o alto, páginas, a promessa de branco, sua ameaça também, esse receio
na água, na lama, no mar, na morte. quando escrevemos a primeira palavra e esta convoca a debanda-
Cada um limpava seu barraco e a proximidade de seu barra- da de um mundo que jamais temos a certeza de dominar.
co, deixando o resto para a lavagem do tempo. Pensavam, tal como Por essa época, sim, comecei a. escrever, quer dizer: morrer
no campo, que a natureza engoliria os detritos. Tive de repetir- um pouco. Desde que meu Esternome começou a me fornecer
lhes que, nos arredores da Cidade, a natureza perdia força e con- as palavras, conheci a sensação de morte. Cada frase sua (recupe-
templava, como nós, o amontoado de lixo. Ora, tínhamos muitas ~ada em minha memória, escrita num caderno) afastava-o de mim.
outras preocupações além dessa história de lixo (as ondas o ba- A medida que os cadernos se acumulavam, eu tinha a impressão
lançavam, o manguezal o fixava como sinistros espantalhos). Eu de que o enterravam novamente. Cada frase escrita formalizava
bem que gostaria de organizar um mutirão para resolver esse pro- um pouco dele, de sua língua crioula, de suas palavras, de sua en-
blema, mas havia milhares de guerras a fazer, apenas para existir. tonação, de seus risos, de seus olhos, de seus ares. Por outro la-
Então, aprendemos, entre moscas e mosquitos, odores e miasmas, do, eu era obrigada a me acomodar com meu parco domínio da
a viver tão bem quanto possível. língua da França: minhas frases caprichadas pareciam epitáfios. Ou-
Trénelle, Volga-Plage, Morro Morissot, Terreno Marie-Agnes, tra coisa: escrever, para mim, era em francês, e não em crioulo.
Terreno Populo, Coco l'Echelle, Canal Alaric, Morro Pichevin, Re- Como escrever meu Esternome, tão crioulo? Ah, saber que eu o
néville, Pavé, Pont-de-Cha!nes, Le Béro, L'Ermitage, Cour-Campê- escrevia em francês o teria honrado, e como! ... mas eu, segurando

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mala e seu terno de passeio. Tinha uma cabeça de professor pri-
a pena calculava esse abismo. Às vezes, flagrava-me chorando ao
mário feroz, talvez por causa dos óculos de míope que aumenta-
perceber como (reencontrando-o para conse:vá-lo).eu o perdia,
e 0 imolava dentro de mim: as palavras escritas, minhas pobres vam suas pupilas. Falava um francês impecável, meticuloso, repleto
palavras francesas, dissipavam para sempr~ o eco .de sua palavra de palavras que combinavam muito bem com o seu pensamento
e impunham uma traição à minha memória. Por isso é que fre- mas que o tornavam, para nós, tão ou mais obscuro. Indiquei-lhe
qüentemente me viram falar ~ozinha, P.ªr~ meu próprio corpo, um lugar na parte baixa da ladeira. Ali, improvisou uma choça de
repetindo-me sem respirar c01sas maudiveis. Agarrava-me a essa campeches, dessas de dar dó. Ti-Cirique' não era muito hábil com
catedral que, simultaneamente, eu salvava e perdia dentro de mim as mãos. Construímos-lhe um barraco com uns restos de tábuas
- e pelo mesmo local. Queria sentir seu derradeiro sabor repe- e uns complementos que ele pôde pagar. Tão logo se instalou (a
tindo para mim mesma aquela palavra, segundo as liberdades do mão agarrada a um dicionário, uma grande caneta-tinteiro bem tra-
meu crioulo e as alegrias saltitantes da linguagem. tada como um galo de briga), a ele passamos a nos dirigir quando
A sensação de morte fez-se ainda mais presente quando co- precisávamos decifrar uma carta, redigir uma solicitação. Para o
mecei a escrever sobre mim mesma e sobre Texaco. Era como que que ele nada pedia, só um bonito papel do qual era apreciador,
petrificar nacos de minha carne. Eu esvaziava minha memória em e, sobretudo, livros recolhidos ao sabor de nossas andanças pelo
cadernos imóveis, sem transpor o frêmito da vida que se vive, .e depósito de lixo público e durante as demolições de velhas casas
que, a cada instante, modifica o que aconteceu. ~exaco morna da Cidade onde tinham vivido mulatos instruídos.
em meus cadernos, quando na verdade Texaco nao estava con- Já fazia algumas semanas que estava por lá quando me viu es-
cluído. E eu mesma ali morria, quando na verdade sentia que meu crever em meus cadernos. Curioso nessa matéria, quis olhar. Dei-
ser do momento (dedicado ao que eu ia dizer) ainda se elaborava. lhe um, que leu com o cenho franzido, pulando os trechos, por
Oiseau de Cham, existe uma escrita informada pela p:lavra e P.e- causa da ortografia e das frases misturadas nas quais eu me encar-
los silêncios, e que permanece viva, que se mexe em circulo e c1r: cerava. É preciso ser simples, madame Marie-Sophie, disse-me,
cula 0 tempo todo, que irriga de vida, incessantemente, o que f01 simples, a maior escrita é a escrita mais simples. Diante dos cir-
escfito antes, e que reinventa o círculo a cada vez, como fazem cunlóquios crioulos, um soluço de repugnância estremecia-lhe o
as espirais que estão a todo momento no futuro e na frente'. uma corpo: Meu deus, madame Marie-Sophie, essa língua é suja, ela
modificando a outra, incessantemente, sem perder uma unidade destrói o Haiti e conforta o seu analfabetismo, e é em cima disso
difícil de se designar? que Duvalier e os tontons-macoutes constroem a ditadura ... o
universal, pense no universal ... Depois, entregou-me seu próprio
DO MARCADOR DE PALAVRAS dicionário, cujas páginas conhecia uma por uma - (quando lhe
À INFORMANTE perguntávamos o significado de uma palavra, recitava a etimolo-
[... ] Conheço esse pavor. Édouard Glissant o enfrenta; sua gia, os diversos sentidos possíveis, fornecia citações literárias, e
obra funciona assim, com grande alegria. precisava a página de seu dicionário onde aparecia a palavra em
708~ carta do Marcador de Palavras à Informante.
questão. Foi o que bastou para lhe dar fama até os confins de Pont-
Pasta XXXI. de-Chalnes. Todo mundo, durante os passeios, tratava de confe-
1988. Biblioteca Schoelcher. rir o fenômeno:
- Ti-Cirique, bom dia, e se eu lhe disser: Caco?
Eu tinha todas as razões para abandonar a escrita. Mas se ti-
vesse abandonado, não seria capaz de resistir aos infernos de Te- (*) Na verdade, chamava-se Donnadieu Moléon, mas o chamamos de Ti-
xaco. A chegada entre nós de Ti-Cirique, o haitiano, confirmou-i:ie Cirique ao final de certo tempo, por causa de sua fuga de banda, debaixo dos cas-
nesse caminho. Foi à minha casa, em companhia de Marie- Setetes dos ceerresses. [Ti-Cirique, ou strik, significa, na língua crioula, "peque-
no siri". (N. T.)]
Clémence, que o resgatara sentado diante do mar com sua grande
287
286
- Elemento, do grego kakos, significando alguma coisa ruim. múltiplo e uno, que unia as línguas do mundo, os povos, as vidas.
Entra na composição de algumas palavras, sobretudo Cacoquimo, Explicou-me como certos livros propagavam-se pelas épocas, pro-
Cacófato, Cacografia, Cacologia, Cacófago, Cacofonia, Cacosmia, vocando arrebatamentos espirituais. Na cultura dos povos, há a
Cacostomia. Cacoquimo vem do grego kakokhumos, que signifi- sombra e há a luz, explicou-me em resposta a meu desejo de co-
ca "mau humor" (cerca de 1503). Mas quando Montherlant, esse nhecer a França. A Literatura (as artes em geral) encontra sua per-
fino mestre, escreve: Ele dormira numa poltrona, às quatro ho- feição na face de luz, por isso é que sempre vibra mais além da
1 ras da tarde, como um velho cacoquimo, quer assinalar um esta- própria realidade do povo de quem emana. Como procurar Mi-
I',
do de abatimento, de fraqueza ... Portanto, uma palavra posta em chel Eyquem, senhor de Montaigne, nas sarças do Périgord? On-
perspectiva. Página 236 da edição de 1955. Se pegarmos cacodilo ... de encontrar William Faulkner senão nas plantações do Sul, ma-
- Mas ah, Ti-Cirique, eu estava falando do Gros-caco, o ca- qame Marie-Sophie? Infelizmente, a França real não é Marcel Proust
cau com que a gente prepara o chocolate da primeira comunhão ... nem Paul Claudel, é a ganga obscura desses dois. E, desculpe: Ai-
E mais uma vez nosso homem se lançava nos labirintos da mé Césaire não é a Martinica ... E pior: luz e sombra entrelaçam-se
palavra chocolate, desde suas origens astecas até o emprego s.util nos corpos, assim sendo, Louis-Ferdinand Céline, um crápula ilu-
1, 1,
feito por Maupassant, enquanto do mercado de legumes a Rl~e­ minado, Hemingway, uma fúria alcoólica, Miller, uma neurose
Droite, do Morro Abélard a Texaco, ao menor pretexto, e ate a sexual, Pessoa, uma difração psicótica, Rimbaud, negro mas colo-
palavra seguinte, todo mundo se sentia cacoquimo). nialista em suas cartas africanas, e ... Certos dias, falava-me dos poe-
Num outro dia, Ti-Cirique ficou surpreso ao encontrar meus tas cuja força era capaz de quebrar as pedras. Ás vezes, caía nos
quatro livros. Felicitou-me por Montaigne, o homem que soube romances para concluir dolorosamente com Jacques StepJ:ien 'Ale-
ver mais longe do que a própria cultura e relativizar o pensamen- xis, o escritor seu amigo, seu irmão, sua dor, morto.recentemen-
to.Extasiou-se com Lewis Carrol!, que nos ensinou a todos (tanto te sob as garras dos tontons macoutes canalhas.
quanto Dom Quixote e esse querido Kafka, de quem deveríamos
falar, madame) a que ponto a extensão do real ampliava o conhe- [... ] dor, era um Governador do orvalho, madame, con-
cimento (no caso, o da criança), e como o real, esbarrando no ma- forme as palavras que nosso compatriota Jacques Rou-
!.1 ''
ravilhoso (como praticado no Haiti desde sempre), acrescentava main empregou num lindo romance, e quisemos destituir
1
' algo às abordagens das verdades humanas. Emocionou-se com meu Duvalier, e desembarcamos armados, ele, eu, os outros
La Fontaine, um simpático que sabia escrever e que os franceses juntos, numa praia do Haiti, com a idéia de levar a Revo-
cometem o erro de não ler mais, e depois ficou calado diante do lução, a grande, a única, a da velha França, liberdade!,
,, Rabelais, cujas loucuras lingüí~ticas e imoderação decravam-no (eu mas os maeett,tes,'madame; que apareceram, a loucura
soube depois) desconfiado. E provavelmente o maior, madame sanguinári~, d,~sastre, desastre, nem me fale ... !, Léon ·
!· Gontráh Uamas, o Fort-Dimanche, eu consegui fugir da-
Marie-Sophie, mas é também o pior, pois a língua deve ser res-
peitada, madame, deve ser respeitada ... A ltngua já não está li, mas ele, o ilumi11í1do cujo destino não é fugir, agarra-
aberta como naqueles tempos magmáticos de patoás e dialetos do, surrado, levado pela besta furiosa, Um olhar de ba-
do bom pároco, agora ela é adulta, fria, sensata, pensada, cen- silisco, o destruidor do olhar boje te olha, Césalre, Alexis,
trada está nos eixos e deve ser respeitada. Então, quanto à per- ó meu irmão que ouço gritar, torturas, era um governa-
guntd contemporãnea: pode-se ser ao mesmo tempo o pior e o dor, madame, do orvalho, uma água levada às sedes de
maior?... deixo-a concluir ... nossas renúncias, ele que morre, eu que fico e que va-
Habituou-se a sentar-se a meu lado, quando os momentos per- gueio pelo Caribe, derrelição, boat-people, piratas, ame-
mitiam, para ler meus cadernos} corrigir meus horrores, dar sen- ricanos canalhas que nos expulsam, canalhas da Domi-
tido às minhas frases. Deu-me vocabulário, excitando em mimes- nica que nos exploram, a mais terrível perambulação, e
se gosto pelas palavras exatas cujo domínio sempre me escapou. que venho parar aqui na Martinica, ó Césaire Césaire, mas
Depois, falou-me do vasto tecido que é a Literatura, um clamor meu país no coração, essa lembrança de você, Alexis,

288 289
i'
essa ignomínia de não estar morto, a coragem, madame, seu nome a esse bulevar), pus meu vestido mais bonito, e minhas
a coragem, Meu reino pela coragem, um pouco de poucas jóias, e fui para a Cidade a fim de esperá-lo, a fim de vê-lo,
Shakespeare, hoje a literatura não trata mais da coragem, contar-lhe nossas tragédias com oficiais de justiça e policiais que
onde estão as grandes gestas?, Proust tudo atomizou, ma- destruíam diariamente nossas construções noturnas. Ele, De Gaul-
deleinizou, se é que me atrevo, ao passo que aqui, dian- le, eu sentia, tinha o poder de resolver esse problema, assim co-
te dos macoutes, dos canalhas, do sangue, dos ódios e mo a França de meu Esternome sempre fizera com nossas calami-
dos furores, precisamos de estrondos de verbo, de gran- dades.
des movimentos de mundo, de ar, Cervantes, Cervan- Montes de pretos tinham vindo de todo lado. Enchiam Sainte-
tes! ... O Caribe apela a um Cervantes que tenha lido Joy- Thérese, por onde De Gaulle ia passar. Cobriam a praça Stalin-
ce, madame, e coragem, ó, choro Alexis [... ]. grad com bandeiras bleu-blanc-rouge e flâmulas com os nomes
de seus distritos. Bloqueavam a rua de la Liberté, em volta da pre-
"Cantos de Ti-Cirique
feitura, apinhavam o prédio, e pululavam como formigas no es-
sobre o senbor Jacques Stephen Alexis"
paço da Savane, debaixo dos tamarineiros. Eu não podia dar nem
': 1
13 Cadernos especiais de Marie-Sophie Laborieux. um passo. Precisei de muita garra nos cotovelos para chegar à al-
1
1209 páginas.
1'
1966. Biblioteca Schoelcher. tura do estrado do monumento aos mortos onde De Gaulle devia
'1 falar. Tinha-lhe escrito uma longa carta num papel especial, na qual
1
E Ti-Cirique chorava, depois recitava poemas de todo canto, falava de nós, os malditos de Texaco. Repetia em minha cabeça
que o transportavam para longe de nossos sofrimentos sombrios o que ia lhe dizer, assim que me enroscasse em seu ombro. Sabia
i,.I na luta de Texaco. que ele viria comigo ao barraco no alto da escarpa, verificar nos-
sa batalha por tão pouca existência.
'! Havia-lhe preparado um blaff de peixes-vermelhos sem mui-
1~ O VADIO. A época da chegada de Ti-Cirique foi um tempo de ta pimenta, pois os brancos não têm paladar. Comprara a presta-
. 1.: desespero para todos. Eu já não sabia como me opor às recusas ção, das mãos de Hermancia,' um galo realmente maravilhoso,
'' da Cidade. A prefeitura cuidava dos bairros mais antigos, mas nos digno de um belo reveillon, alimentado com banana, milho, fruta-
esquecia. Texaco não era nem um Bairro, não figurávamos em ne- de-conde, capim-cheiroso e, evidentente, hóstia. Botei-o para amo-
nhum mapa, nenhuma tabuleta. Quando, desistindo dos biscates, lecer num vinho cheio de temperos misturados, e cozinhei tudo
a maioria de nós tomou de assalto a Seguridade Social, a fim de aquilo justo antes de descer, espalhando um cheiro gostoso que
acumular o máximo de pensões, os carteiros que nos traziam os alvoroçou os comilões e inspirou dois poemas a Ti-Cirique. • • Eu
;, 11 formulários enviados pela Direção Departamental de Ação Sanitá- tinha previSto para De Gaulle uma lata de petit-pois, uma panela
ria e Social davam com o nariz na porta, nas grades de Texaco, de bananas maduras, e uma salada de chuchu cozido na água, sal-
ou iam parar no liceu das moças, ou nos procuravam inutilmente picada de uma salsinha que dava em Texaco. A sobremesa era um
embaixo do farol. Em desespero de causa, acabavam botando tu- doce de ameixas que Thémancia, da rua Victor Hugo, sabia pre-
i 1 do aquilo na caixa de correio do bekê. Este beirava a congestão parar como ninguém (segundo Ti-Cirique, é preferível dizer me-
diante do amontoado de nossa correspondência social. Reunia tu- lhor do que ninguém). Um sírio me oferecera um crédito infinito
'' do num canto das grades e punha fogo, pessoalmente, dançando
' ao redor.
(•) Uma vendedora de Basse-Pointe que tinha galinheiros e criava as aves
com uma seleção de preces e hóstias defeituosas, que ela subtraía das latas de lixo
Quis, ó desespero, dizer isso a De Gaulle quando ele veio à da igreja.
Martinica. De Gaulle em pessoa, que em nossa cabeça conquista- (••)Ele os mandou mais uma vez para a Nouvelle Revue Française, acompa-
ra um lugar de negro aquilombado. Quando soube que ele viria nhados de uma teoria muito erudita sobre as potencialidades literárias dos tempe-
ros crioulos, mas essa gente, que jamais responde a alguém, não lhe respondeu ...
(Césaire prolongara a Levée até Pont-Démosthene e pensava em dar

290 291
para uma toalha bordada, e eu colocara na mesa dois belos pra- vam-lhe cartas raras, ainda indecifradas, e só queriam que ele os
tos. Tinha arrumado os hibiscos, copos de vidro, um belo tapete tocasse, reconhecesse e acalmasse suas dores. Uma preta do Mor-
emprestado, e fui-me embora deixando o barraco aberto, varrido ro des Esses carregava um cesto caraíba trançado em vermelho
pelas luzes e pelos ventos, para que estivesse mais acolhedor quan- e preto segundo um gesto imemorial, e se esgoelava a respeito de
do eu voltasse com Papai-De-Gaulle. seus trinta anos de paciência no trabalho das fibras. Outros só lhe
Eu iria comer com muita classe. Iria lhe desencavar um belo expunham grandes olhos brilhando de um orgulho reluzente. De
francês com as palavras de Ti-Cirique. Iria lhe falar de meu Este~­ Gaulle vinha por mim, De Gaulle vinha por eles, cada um louvava
nome que tanto amava a França. Iria lhe dizer quantos negros ti- aquele momento de vê-lo como a honra de uma vida.
nham curveteado dentro de canoas para ir salvá-lo, e como, no Tudo isso não era nada ao lado de minha linda carta (revista
pior de nossas angústias, a fé em nossa Mãe-Pátria, entregue ~os por Ti-Cirique) e minha boa comida. Eu estava confiante, dispos-
boches, jamais fraquejou. Também iria lhe dizer que desconfias- ta a voar para lhe agarrar os braços. Mas subitamente o mundo
se dos bekês que não eram de parte alguma, e pedir que me juras- veio abaixo. Um tremor subiu da Cidade. A multidão balançava-
se, antes de ir embora, que jamais nos venderia àquela gente da se para a frente e para trás, como um coração de moça, depois
América que linchava negros. Já imaginava a cara de Mano Castra- rodopiou, depois foi amassada. Derrapei no capim da Savane e
dor, do bekê do petróleo, dos policiais, de Marie-Clémence, de montanhas de pés esmagaram-me cada osso. Quando percebi que
Sonore, de Carolina Danta, de Néolise Daidaine, de Ti-Cirique (ele De Gaulle se aproximava, que eu estava enlameada, e meu vesti-
sabia do segredo e preparara uma ode de boas-vindas) ... quando do rasgado, gritei de desespero dando pulos de cabrito, xingar,
vissem avançar por nosso Texaco aquele senhor alto, em cima de bater, espancar, pular, cair em cima de cabeças. Era-me impossí-
suas pernas altas, espiando o mundo do alto como uma manguei- vel passar por cima, então comecei a correr de quatro por baixo,
ra florida. como uma cadela que zanza entre um bando de pernas. Corria
Esperei durante quase quatro horas sob o calor do sol: com para todo lado, para os gritos mais altos, para a emoção mais so-
1
milhares de pessoas. A maioria dispunha de um plano a ftm de nora. Acabava sempre entre outras pernas, outros bichos-do-pé,
lhe preparar um sortilégio. Alguns tinham-lhe levado o mais raro outras feridas, outros furores. Uma vez, pensando que chegara lá,
inhame-bocodji, uma maravilha que embeleza os sonhos. Outros caí no mar. Recuei a toda a velocidade para recomeçar no sentido
levavam uma vegetação que cresce sob orquídeas raras. Outros oposto, com idêntico entusiasmo.
carregavam tangerinas doces como pecados mortais, e grandes li- Os alto-falantes presos nos tamarineiros começaram a asso-
mões açucarados. Um preto velho carregava as botinas de 1914 biar. A voz de De Gaulle exclamou "Meu Deus, Meu Deus ... ". Pen-
como prova de seu amor (ele perdera na guerra quatro dedos dos sei que um negro vagabundo, assassino, tinha-lhe feito um corte
pés). Outro, empurrado dentro de um carrinho, vinha relembrar com canivete. Pulei mais uma vez sobre as cabeças com brilhanti-
suas pernas oferecidas à Pátria e dizer novamente a De Gaulle que na. Fiz chapéus voarem. Esmaguei bandeiras. Amassei carapinhas
continuava disponível para o próximo apelo. Os pescadores, com esticadas. Empurraram-me. Afastaram-se de repente. Vi-me de ca-
roupas domingueiras, haviam-lhe prep~do pérolas de lambis, ma- ra no chão, em cima do capim poeirento, e foi Arcadius que me
riscos iridescentes, escamas da Mãe-d' Agua, carapaças de tartaru- deu a mão. Arcadius, o novo homem de minha nova desgraça.
gas acetinadas como madeira preciosa, cavalos-marinhos guarda- Levantou-me com um gesto que me entregou inteiramente
dos no rum com formo!, grandes galhos de um coral transparente a ele. Pegando-me em seus braços, colocou-me sobre os ombros.
brilhando ao sol. Marceneiros passeavam com baús de um mog- Ele, tragado pela multidão, não via mais· longe do que as nucas
no antigo mas vivo como nácar. Três costureiras haviam-lhe pre- transpirantes. Eu, curvada como um galho de chorão, por cima
parado toalhas com fios de prata a fim de que ele pudesse receber do tumulto, podia avistar De Gaulle. Dizem que ele gritou que éra-
os outros reis do mundo. Curandeiras levavam-lhe o óleo preto mos escuros, mas não ouvi isso. Aliás, não ouvi nada, via-o den-
das preciosas lagartas-do-trevo, um contraveneno total. Os que ha- tro de sua farda militar, com os braços levantados, uma palidez
viam perdido uma família na guerra, sob as patas de Hitler, leva- impressionante, o quepe fabuloso, via-o mais alto do que um cin-

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cho, mais admirável também ... sua voz quebrava os alto-falantes ... co'!'o vocês são escuros.' E aí, margeamos a avenida Jean-Jaures
essa voz ouvida no rádio nos momentos mais graves ... para nós, ate o novo bulevar du general De Gaulle, nova alameda de uma
e já fazia tanto tempo, voz única da França ... Olhei-o tanto quan- festa; os negros do campo não puderam voltar para o interior da
to pude, até que Arcadius desabasse de cansaço. Deitados na poei- ilha e ali estavam de papo para o ar, debaixo dos lampiões jogan-
ra, Arcadius e eu cantamos La Marseillaise unindo-nos à imensa do dados. E aí, galopamos por cada rua do centro cujas v~lhas fa-
voz que saía dos alto-falantes. chadas soçobravam debaixo do concreto armado. E aí, vimos nas
Passamos o dia perseguindo De Gaulle pela Cidade. Fazíamos s~cadas floridas a sombra retesada do general Mangin que tinha

grandes desvios para cruzar com sua passagem. Uma vez, pensa- vmdo saudar nosso patriotismo depois da guerra de 14 e a de
mos ver seu Citroen DS preto virar na esquina de uma rua. Arca-· Victor-Hugues, e a de Béhanzin, e de outros grandes visita'ntes so-
dius me fez pegar, a pernadas, um estranho atalho para, suposta- bre os quais eu não sabia patavina ...
mente, encontrá-lo no ponto geométrico. Mas ele sempre estava Perdia-me na embriaguez de Arcadius. Ele andava como uma
em outro lugar ... no prédio da prefeitura ... na sede do governo turbina de fábrica e tirava da marcha a energia de marchar. Falava
sem jamais respirar. Sua avalanche de palavras capturava o mun-
francês ... nas casas dos bekês em Didier ... na catedral... aqui ou
do sem pontos e sem vírgulas. Então, fiz como ele, trazendo do
acolá ... Corremos por todo lado, Arcadius ignorava o cansaço, an-
fundo de mim a face escondida da palavra e soprando-a na boca
dava depressa como numa corrida de atletismo, alegre, com esse
como papagaios de papel cujo fio arrebentou. A palavra vinha do
entusiasmo infinito, buscando os vestígios do general que se tor-
mais distante, passava por meu Esternome, juntava-se às escuri-
nara invisível. dões do homem da masmorra, corria pelas costas marinhas, e
Atravessamos de novo a Savane que, aos poucos, se esvazia-
balançava-se num ventre de barco onde morrer era nascer. Arras-
ra. E aí, tornamos a subir a Corniche até o liceu Schoelcher, para tei essa vertigem pela rua Ernest-Renan, pela rua Perrinon ou pela
descer novamente até o centro da Cidade cruzando o Morro Abé- rua Schoelcher, debaixo da estátua hierática de Desnambuc e de-
lard, Rive-Droite e o bulevar Allegre. Viramos em Croix-Mission, baixo da de nossa Imperatriz. E aí, a palavra rodopiou até o segre-
à beira do cemitério dos ricos, onde uma Marianne-Casca-de- do de cada um c.le nós ... ó, desconhecida ... vertigem de mundos ...
Banana dançava em troca de uma moedinha. E aí, pulamos o um clamor de línguas, de povos, de comportamentos que se to-
muro do cemitério para circular entre as sepulturas despertadas cavam, se misturavam, contribuíam com seu brilho singular e in-
por De Gaulle; os ex-combatentes exalavam dos túmulos vapo- tacto para o reluzir das outras. Minha voz dublava a de Arcadius
rosas cruzes de Lorena; velhos bekês gemiam debaixo de suas que gritava-por-socorro, chorava, cuspia dias antigos, pergunta~
lápides esquecidas pelas famílias; e por todo lado, depois de Ar- opacas, olhares de mulheres sós e o caos das ilhas no mar ofusca-
cadius ter acendido uma vela, milhares de tacos sujos de velas do ... Arcadius, que sangrava pelos olhos e que andava, andava,
se acenderam, oferecendo ao cemitério uma animação luminosa. andava dedicado a uma vibração que ele não compreendia e que
E aí, descemos pelas terras das Terres-Sainville, agora asfaltadas, o matava lentamente. ·
mas cujos canais continuavam abertos para o antigo mundo de Andamos por Sainte-Thérese, onde os pretos faziam uma ba-
lama; ali encontramos o ex-prefeito fuzilado, o bonito Antoine tucada sob a sombra de De Gaulle colada no asfalto; e aí, cruza-
Siger, que não tinha mudado, a não ser talvez em matéria de mos os bairros de L'Entraide, Coridon, Lunette-Bouillé, Citron.
palidez, por causa do sangue perdido, esperando, ele também, Descemos de novo para Trénelle, L'Ermitage. Atravessamos Di-
ver De Gaulle dar as caras; vimos os operários da greve de 34, dier em direção do túnel profundo, onde ouvimos galopes de ca-
com suas roupas de passeio e ainda ameaçando o bekê Aubéry; valos, e aí, pegamos a brisa de Balata, perfumada de bambus, e
vimos a igreja de Saint-Antoine aspirar as luzes de Trénelle e tornamos a descer para Cluny, Petit-Paradis, Plateau-Fofo, La Bâ-
espalhá-las em migalhas de esperança sobre os que se preocupa- teliere, Bellevue, Clairiêre. E aí, demos a volta no seminário-colégio
vam em saber se De Gaulle teria dito Meu Deus, meu Deus, co-
mo vocês são franceses, ou teria g~itado Meu Deus, meu Deus, (•)Nó original,/rançais efoncés. (N. T.)

,,
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li
onde dois caraíbas espiavam o padre Pinchon, antes de cair na vezes, tinham nos ameaçado tanto, que já não apareciam mais. o
fonte Gueydon que meu Esternome chamava de Fonte da Liber- mangue se povoara, mas também e sobretudo as colinas da escar-
dade. Voltei ao estado normal, esvaziada como uma cuia, móscu- pa que ficavam acima dos reservatórios. E foi por isso que 0 bekê
los duros, o coração batendo a toda, uma grande mancha-roxa na se fez ouvir.
cabeça, uma frieza na barriga. Arcadius nem sequer parou, conti- Esses. barracos, explicou ao representante da França em pessoa
nuou a falar até desaparecer no final da rua Antoine-Siger, trans- (que exf'.hcou aos ceerresses), utilizavam lamparinas de querose-
portado desde tempos imemoriais por tudo o que sentia e não sa- ?e• .car;rao de le?ha e um bando c!e outras porcarias geradoras de
bia dizer. Eu encontrara um fantástico vadio. mcend1os. Coma-se o risco de, a qualquer momento, aquilo des-
Fui embora com a impressão de jamais revê-lo. Arrasava-me, cer pela ladeira e provocar uma catástrofe no estilo de Hiroshima
sobretudo, o fracasso de meu plano. Rasguei a carta destinada a O argumento teve tanto peso que, durante meses e meses, vimo~
De Gaulle e joguei-a no canal.' Subi a Rive-Droite (sonâmbula de os ceerresses chegarem, os policiais azulados, os operários-dos-
pernas de pau contando os grãos de um pote de sal), em meio ao trabalhos-forçados e os demolidores.
clima de festa provocado por De Gaulle. Ele estava ali, entre nós, Na minha ladeira, em volta de meu barraco, estavam Caroli-
sentia o mesmo vento que eu, os mesmos odores que nós, ouvia na Danta, Marie-Clémence, a portadora de mexericos Néolise Dai-
talvez, neste momento, os ruídos de nossa alegria, e isso me dava daine e algumas outras, unidas pela desgraça. Muitas ~ezes nossos
coragem e, ao mesmo tempo, atirava-me na escuridão. barracos foram destruídos juntos. Muitas vezes estivemos juntas
debaixo das coronhadas dos ceerresses. Tínhamo-nos reunido em
assembléia para nomear vigilantes, mas eles nos flagravam por volta
o GANSO-CAPITÓLIO. Achei o portão de Texaco entreaberto, das seis da manhã, e depois a qualquer hora do dia e da noite, arre-
como de costume. Fazia tempo que Mano Castrador tomara nos- bentando tudo - canhões sem coração. Não levavam nossos ma-
so partido. O bekê fizera-o assinar uma espécie de compromisso teriais. Ficava tudo no chão, quebrado. Já na noite seguinte voltá-
dizendo que o demitiria caso encontrasse o portão aberto ou se vamos a construir, com destroços enriquecidos (dizia Ti-Cirique)
alguém entrasse com materiais. Isso não assustou Mano Castrador. p~las constâncias de Sísifo e pela invencibilidade do próprio Fê-
Assim que o bekê, os rapazes e os motoristas iam embora, ele fe- mx. Nossos barracos (reconstruídos centenas de vezes) pareciam
chava o portão com grande estardalhaço, sacudia a corrente com mosaicos malucos: pedaços de todo tipo acrescentavam-se a ca-
pompa e estalava o cadeado com o barulho de um revólver 45. cos de toda espécie. Dos antigos tonéis que resistiam indefinida-
Só que deixava na corrente uma folga invisível que nos permitia mente ªº! estragos dos cassetetes, fizemos ressurgir folhas-de-
abrir o portão e entrar com o material escondido durante o dia flandres. As vezes, os policiais sumiam durante dias inteiros. O que
entre as raízes daquelas acácias que as diablesses adoram. bastava para que nossos barracos fossem reaprumados, provocan-
Com Mano Castrador de nosso lado, os barracos proliferaram. do então a indignação do bekê que reacendia a chama policial.
Os casebres de pano foram se cobrindo de tábuas. As tábuas fo- Cada destruição arrasava-nos a alma, não obstante as referên-
1
1 ram se prolongando com folhas-de-flandres diversas, mais ou me- cias mitológicas de Ti-Cirique. Sentia-me esfacelada por dentro.
1 nos enferrujadas, e depois com folhas-de-flandres reluzentes que De mês em mês, ia perdendo a carne que revestia meus ossos. E
revestiam o teto. Muito depressa, surgiram placas de fibrocimen- eu, eu não era nada, mas as que arrastavam um bando de mole-
to sobre fachadas inteiras. Em poucas semanas, minha ladeira es- ques (que e'.ª?1: empurradas para o mar e tinham de esperar a par-
tava coberta, enquanto o bekê começava a tomar as providências. tida dos pohc1a1s para proteger seus pretinhos debaixo dos escom-
Mas os policiais vestidos de dois tons de azul tinham vindo tantas bros, e reconstruir, reconstruir) perdiam mais do que as carnes.
Marie-Clémence ficou com cor de bolha-de-catapora. Sonore, com
(•) Súplica infame do Marcador de Palavras: Gostaria de ler um dia essa os ?lhos fix?s, dizia ouvir as sirenes dos bombeiros. Ti-Cirique
carta, se a senhora tivesse vontade de reescrevê-la. Não me atrevo a pedir que o recitava, cabisbaixo, os horrores mentais de Isidore Ducasse conde
faça ... de Lautréamont. Naqueles olhos eu enxergava loucuras irr~mediá-

296 297
· 1

!
veis. Resistíamos à custa de derrotas íntimas, traduzidas em rugas, te tratada desde a guerra de 14, abria o portão. Isso produzia um
manchas nas pupilas. O cansaço amolecia-nos os ossos. Nossas tes- carrilhão especial que, sem ser forte, alertava nosso plantão. Além
tas conheceram as rugas da amargura. As pessoas de nosso Texa- do mais, Ti-Cirique, referindo-se aos do Capitólio, aconselhara-
1 co agarravam-se a mim, atribuindo-me de tudo aquilo uma visão nos a comprar um ganso. Prendíamo-lo toda noite no pé de acá-
que ninguém questionou, e que parecia confortá-las - (sem que cia que dava sombra à entrada. Nosso ganso-capitólio grasnava co-
o mesmo acontecesse comigo). mo um diabo ao menor ruído das diablesses ou ao menor suspiro
Os homens pareciam leves em cima da terra. Quando não es- depravado das radiopatrulhas.
tavam de passagem, viviam, leves, no barraco, escapavam dos cho- Como eu não tinha filhos, estava quase sempre de plantão.
ques com a polícia, e olhavam os tapumes se quebrar sem nem Mesmo se não estivesse, ficava de olho aberto quando a noite se
mesmo um sobressalto no coração. Alguns sumiram quando as va- anunciava como um pressentimento. O alerta permitia-nos enro-
gas policiais foram tão constantes que um vermelho-sangue des- lar bem depressa nossos objetos frágeis, dobrar nossas roupas do-
truía-nos os olhos. Os que ficavam, pareciam submetidos à fatali- mingueiras, pôr em segurança, dentro de nossas calcinhas, os do-
dade. Não se sentiam com qualquer legitimidade capaz de justificar cumentos da DDASS. Por vezes (se Mano Castrador se atrapalhava
uma presença, e praticavam uma flexibilidade de conduta que era em sua missão, perdendo a chave na sacola de seus sonhos), sol-
távamos as mais bonitas placas de fibrocimento e as escondíamos
1 jl.'
,, inacessível às desgraças cotidianas.
num canto da escarpa. O alerta também nos dava tempo de me-
Foi o que um dia expliquei a Marie-Clémence, a Sonore, a Néo-
llii lhor repartir a molecada entre os barracões. Meu barraco sem crian-
lise Daidaine e a todas as outras; com suas filharadas, elas não
!' ças sempre voava pelos ares; os que as abrigavam, emocionavam
tinham tanta mobilidade assim nesta terra de Deus. A batalha, de-
os operários, que tinham de ser ameaçados pelos ceerresses para
víamos travá-la sozinhas, pois os homens, esquecendo-se do Nou- agir. Depois do que os doentes e os velhos se afastavam, e fechá-
téka dos morros, nada organizariam, nada plantariam; com esta vamos as portas com pregos de caixão, só para retardar a visita
terra, manteriam eternamente um contato provisório. Então, co- obrigatória antes da destruição - ganhar tempo, fazê-los perder
meçamos a nos organizar. tempo.
Havíamos tentado colocar barreiras na ladeira: garrafas que-
Acabar com Texaco, conforme me pediam, equivaleria bradas, bambus pontudos, tufos de espinhos. Ti-Cirique detalhava-
i: a amputar a cidade de uma parte de seu futuro e, sobre- nos a guerrilha de Che Guevara nos pampas da América e a enge-
tudo, dessa riqueza insubstituível que continua a ser a me- nhosidade dos pequenos chineses que escavavam galerias (difícil
mória. A cidade crioula, que possui tão poucos monu- pensarmos nisso, ele admitia, na rocha de nossa escarpa ou na la-
mentos, torna-se monumento pela atenção dada a seus ma de nosso mangue). Propôs-nos as cobras-de-duas-cabeças que
.j' 1
lugares de memória. O monumento, ali como em toda puseram para correr os primeiros colonialistas (mas ninguém te-
·'. !!
a América, não se erige monumental: irradia. ve coragem de ir pegá-las nos bosques da Doum). Falou-nos de
Nota do urbanista ao Marcador de Palavras. armadilhas para tigres da índia, de canais inflamáveis, de espelhos
Pasta n';1 30. Folha xxxn1. ofuscantes, dos foguetes de Marco Polo, do óleo de pez jogado
1987. Biblioteca Schoelcher. do alto dos castelos fortificados ... Mas essas histórias apenas exci-
tavam nossos espíritos e não nos serviam para nada. Os ceerres-
Instituímos turnos de plantão. Cada noite, pendurávamos no ses ultrapassavam nossos obstáculos pouco históricos sem nem
portão latas de manteiga com sal. Quando os policiais chegavam, notá-los.
Mano Castrador levava tempo cobrindo os próprios sonhos com Acabávamos, já com o dia claro, estirados na ladeira, agacha-
uma escama de sono, e depois descia desajeitado, por causa dos dos na água do mangue, caídos em cima dos bancos de madrepé-
reumatismos que lhe fisgavam a perna nesse exato momento. E rola onde o mar vinha bater. Os homens que resistiam eram ar-
então, submetido aos sacolejes de uma epilepsia familiar inutilmen- rastados para a delegacia, os outros lavavam seu sangue na espuma

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das ondas. As crianças choravam, os velhos praguejavam, as mu- partirem felizes apesar dos lábios caídos sob uma baba de aparva-
lheres xingavam a terra inteira. Néolise Daidaine evocava um re- lhado. Gente que viu sararás mudos começarem a falar. Gente
torno precipitado de Jesus Cristo e ameaçava o mundo com um que viu futriqueiras escutarem o silêncio. Gente que viu músicos
feio apocalipse. Aliás, era a única a preocupar um pouco os ceer- decepcionados com santa Cecília oferecerem-lhe seus violinos.
resses, agitando por cima de suas cabeças a bíblia aberta e o ter- Gente que viu, viu, viu, viu de tudo um pouco, e quem não viu,
ço. Nascera em Trinidad, no tempo em que os barcos ali atracavam ouviu falar.
em massa. Passara a juventude sofrendo o suplício dos canaviais, Néolise Daidaine, com uma vela na mão, esperou por um mi-
perdera o uso das mãos com pesticidas que lhe murcharam os de- lagre. Acompanhou Nossa Senhora por todos os distritos, ia sem
dos. Apesar de ter saído dos campos, foi vítima de uma elefantía- beber e sem comer, dormia nos degraus da igreja onde a divina
se nos dois pés, por obra de uma macumba de algum filho da pu- estátua parava para pernoitar, acolhia-a ao despertar com um lon-
ta não identificado. Era um tempo em que as elefantíases apareciam go rosário. Não permitia à enviada do céu nem um passo à frente,
à toa, e não podiam ser curadas. Portanto, viveu assim, semi- nem um passo atrás. Os bekês que pilotavam a balsa da Nossa Se-
aleijada, graças à caridade da prefeitura, até o dia em que teve a nhora, agora um tesouro, começaram a se perguntar se Néolise
idéia de se sentar na igreja e rezar. Foi aí que tudo mudou. não era uma doida que desconfiava do que eles estavam traman-
Suas mãos estropiadas e sua elefantíase, envolvidas em pre- do. Na dúvida, esperando desanimá-la, começaram a andar mais
ces, tornaram-se bênçãos. Suas dores foram graças. Sua solidão, depressa nas descidas e nos riachos mais íngremes. Mas Néolise
portas abertas para as virtudes celestiais. Sua miséria infinita tornou- Daidaine agüentou firme até se arrastar como um verme esfola-
se o registro contábil de seus méritos para o reino dos céus. Isso do. Sangrar, urinar, babar, cagar a terra inteira, mas continuar avan-
se confirmou quando Nossa Senhora veio à nossa terra nos ver. çando.Vendo-a passar naquele estado, as pessoas choravam e os
A estátua, preparada pelos bekês, desceu do céu num avião Laté- cachorros latiam.
coere e andou de distrito em distrito numa balsa que negros, mu- Nossa Senhora teve pena dela, pois desapareceu de repente
latos, bekês, cules, sírios enchiam de moedas, jóias, papeizinhos, a fim de evitar que a infeliz morresse na estrada. Néolise viu-se
fervor e amor. Diante dela, as pessoas esfolavam os joelhos pelo abandonada, à entrada de Fort-de-France, em plena encruzilhada.
caminho. Cantavam ajudai-me sacudindo ramos. Entregavam-lhe A contragosto, desistiu da idéia eventual de que fosse ali o seu lu-
suas almas chorando aos prantos. Após sua passagem, punham em gar de ascensão divina e resignou-se com a escolha de um dos qua-
pequenas garrafas o vento que ela deslocara, e beijavam a poeira tro caminhos da encruzilhada. Veio parar entre nós, em Texaco,
levantada, antes de agarrar cada grão à guisa de proteção. Por to- prosseguindo a investigação sobre Nossa Senhora evaporada, com
do o caminho, a estátua celeste ia espalhando seus favores. Cegos a ajuda de mandingueiros, mulheres-videntes e pretinhos menores
avistaram um cometa. Doentes de boubas amarelas supuraram de do que a ciência dos mistérios que diziam possuir. Terminaram
outra cor. Pessoas com pelada viram os cabelos crescer. Leprosos achando-a, depois de muitas aventuras no país das maravilhas, nu-
puderam voltar para casa sem ser incomodados. Furúnculos seca- ma capela do Bairro La]ossaud, atrás de Riviere-Pilote, empoeira-
ram, sarnas desapareceram, bichos-do-pé caíram aos montes de da, com o gesso descascado e sem qualquer magia, desde que os
todos os pés sujos. Houve gente que viu negros de cabelos pixaim bekês-pilotos tinham esvaziado a balsa antes de desaparecerem.
conseguirem se pentear com pente, e peles malditas perderem o Mas isso em nada alterou o fervor de Néolise Daidaine. Foi ser fa-
preto retinto e finalmente clarearem. Gente que viu mulatos tira- xineira da catetral onde, perto dos céus, capitalizava os horrores
rem suas mães negras dos confins dos sótãos para que Nossa Se- de suas mãos, de seus pés gordos e de sua miséria em Texaco. Sem
nhora as levasse. Gente que viu velhos cules e chineses ferozes, suas bênçãos, acho que ficaríamos bem mais desesperados do que
que haviam enlouquecido no exílio, grudarem-se à balsa com suas ficamos durante muito tempo.
malas, preparando-se para desaparecer rumo ao país natal, e desa- Apesar das orações que me acontecia puxar no terço, a seu
parecerem de verdade no desespero da multidão. Gente que viu lado, eu tinha vontade de chorar, e cada vez era mais difícil com-
bekês receberem o esperma de um sangue de pureza absoluta e bater essa vontade. Queria mostrar-me forte, e jamais, quando os

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'
ceerresses iam embora e nosso ganso-capitólio voltava ao silên- Fui eu que contatei os pescadores de Rive-Droite (Casimir
cio, jamais ficava me apiedando de meu destino, como me dava Coulirou, Cal-sür, Yeux-éclairés), a fim de que carregassem em jan-
vontade. Desconfiando de meus olhos, subia novamente, e sem gadas nossos materiais mais pesados e os colocassem na praia de-
demora, para os e8combros de meu barraco, pegava meus perten- serta, diante do manguezal. Quando houve pescadores o suficiente
ces ali onde os havia escondido. Sob o olhar apagado dos outros, instalados em Texaco-de-Baixo, foram eles que transportaram nos-
levantava minhas estacas, consertava os tapumes, estendia meus sos materiais por mar. Fui eu que criei os esconderijos embaixo
oleados, mais zumbítica ainda do que meu querido Esternome nas da Corniche onde podíamos, durante o dia inteiro, depositar o
ruínas de Saint-Pierre. E minhas lágrimas afogavam-se em meu suor. material miúdo e instilá-lo .à noite pelo portão.
Os outros olhavam-me demoradamente, e depois as mulheres, uma Fui eu que convenci Mano Castrador (mas foi fácil) de nos
a uma, pegavam os próprios destroços. Trabalhávamos juntas, no dar acesso à bica do bekê. Uma das canalizações levava água aos
Texaco-do-Alto, no Texaco-de-Baixo, até dia aito. E quando o bekê petroleiros a fim de restabelecer o equilíbrio dos tanques vazios.
do petróleo chegava, seu santo forte parecia sumir. Nossos barra- Mano deixava-nos pegar essa água entre cinco e seis horas da ma-
nhã. O sol surgia sobre as filas de negras, de moleques convoca-
cos haviam reflorido dos escombros com mais obstinação do que
dos, de moças entediadas, de velhos sedentos, levando recipien-
1' o áspero capinzal. tes. Todos convergiam para a bica, sob as exortações aflitas de
' Eu me tornara um pouco o centro dessa resistência ao bekê,
Mano Castrador porque o bekê vai chegar. A hora da água tam-
o qual jamais desarmava. Ele mesmo me descobrira. Vinha todo
1 bém nos unia: tivemos de aprender a não nos empurrar, a limitar
dia me trazer seus recados de ódio. As mulheres me submetiam o que pegávamos, a respeitar quem enchia suas latas. Recolhíamos
seus buquês de desgraças, que eu era incapaz de desatar, e que a água de chuva em bacias e barris colocados debaixo do telhado.
me horrorizavam. Mas bastava-me fazer cara de quem sabe, não Servia-nos para lavar louça. A água boa para beber era repartida
arregalar os olhos diante das caretas de seus destinos. E o pouco em garrafas, bilhas, jarros, garrafões, que tínhamos sempre de lim-
que eu lhes dizia bastava para transportá-las (por mais uns instan- par e encher tão logo .o bekê fosse embora. Eram verdadeiros te-
tes) até a coragem de viver. Tal atitude conferiu-me um rosto gra- souros que escondíamos, antes de qualquer outro, quando soava
!i', ve e olhos imóveis que afugentavam os homens. o alerta - (que felicidade uma garrafa de água fresca quando o
dia se levanta).
Do urbanista, a Senhora fez um poeta. Ou melhor; no Meu adversário não demorou a mudar de tática. Apelou para
:,
urbanista, ela designou o poeta. Para sempre. a Lei. Vi chegarem oficiais de justiça com documentos carimba-
. '
\ ' Nota do urbanista ao Marcador de Palavras. dos. Umas espécies de pretos de cabelo alisado, como para os en-
"'1 terros, mais realistas do que o rei, e que nos impressionavam com
Pasta n~ 19. Folha x.
! 1988. Biblioteca Schoelcher. ameaças jurídicas e convocações para irmos ao tribunal. Convi-
:1 t
dei todo mundo a rasgar aquilo na frente dos próprios oficiais de
'.'•' justiça. Nós os acompanhávamos quando eles fugiam das borbo-
o MULATO-ADVOGATISTA. Os recém-chegados vinham me ver. ' letas voadoras a que seus documentos tinham se reduzido. Porém,
1 Era eu que lhes indicava seus lugares. Mandei reduzir as constru- voltavam algum tempo depois, com uns papéis chamados de "jul-
ções acima dos reservatórios para que o bekê perdesse o seu argu- gamentos". O bekê do petróleo pegara-me na curva. Fui conde-
1: mento de peso. Desenvolvi a ocupação da ladeira em direção da nada a uma multa de uma soma nem sequer imaginável, e a mais
.1: pedreira Blanchard (essa orientação prosseguiu até La Bâteliere). outra de mil francos por dia até que eu desaparecesse da ladeira.
E então, mandei que ocupassem o manguezal até a beira da Doum, O tempo, meu velho amigo, passou, e deixei-o passar. Os oficiais
1 de onde ninguém queria se aproximar. As diablesses dali saíam de justiça voltaram, entre duas batidas de ceerresses. Dessa vez,
li
1
à noite para lavar xales de rendas frias no rio e entoar cantigas tris-
tes que Ti-Cirique identificou como sendo baladas holandesas.
fui condenada à prisão ... ó, meu coração ... Eu, Marie-Sophie La-
borieux, que não havia matado ninguém, nem roubado as coisas de

302 303
1 i
'1
1
ninguém, nem feito correr sangue de ninguém nesta terra de Deus, tranqüilizar, reunir os papéis, conseguir que, só os homens, deci-
' enviavam-me para a cadeia como uma vagabunda. dissem acordar, Senão, .é um carcereiro que vai acordá-lo toda
Agarrei o oficial de justiça pela gola a fim de lhe dar um moti- manhã. Com a ajuda de Ti-Cirique, para cada um constituímos
vo de me mandar para a cadeia. Espremi seu pescoço de tal jeito um pequeno dossiê de papéis-tribunal, inteiros ou rasgados, e des-
que sua cabeça foi varrida por um frio-de-cemitério; e então, ele cemos até o escritório do mulato-advogatista. Ele se ocupou de
me disse, com a voz trêmula, que era '1penas uma prisão com sur- todos os processos, sem jamais nos pedir nem um centavo, e se
sis, portanto, só um fantasma de prisão. Mas não caí nessa. Bo- pôs a trabalhar. O nome de Texaco começou a ressoar no palácio
tei-o para rolar ladeira abaixo, de quatro, e fui me trancar em meu da justiça como os canhões de Emile Bertin. O sujeito (como um
barraco para chorar desbragadamente (sem que o mundo soubes- saci-pererê dentro de sua toga preta) tinha acessos de raiva nume-
se) por minha honra perdida. Passei por esse golpe, sim ... rados por artigos de códigos, tremedeiras legais que ele extraía
Numa outra vez, o comistério apareceu com os homens de de antigos julgamentos. Atacava os juízes com leis, decretos edis-
,, azul. Entraram em meu barraco, e meteram em sacos de plástico posições e jurisprudências manejadas como vara verde. Eu não
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meu radinho, duas ou três miudezas, alguns lençóis, e foram em- imaginava que tamanha violência fosse possível num lugar seme-
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bora, explicando-me que era uma penhora ordenada pelo Tesou- lhante. Quando descíamos para esta ou aquela audiência, trêmu-
' ro. Confesso que comecei a perder pé. Todos me olhavam para los entre os ecos de templo do tribunal, sentíamos que ele estava
saber o que fazer: os oficiais de justiça comunicavam condena- prestes a partir para cima dos juízes brancos e estripá-los, como
ções, penhoras eram feitas e Ti-Cirique nos explicava (apoiado em teríamos feito. Foi ele que guiou o bekê do petróleo, os oficiais
dezessete códigos) o que o direito francês entendia por manda- de justiça, o representante da França por uma barafunda de pro-
do de prisão, cassação de direitos c(vicos, perdas e danos ... Sa- cedimentos, adiamentos, suspensões, verificações de direito, de-
bíamos ressuscitar nossos barracos, agarrar os ceerresses, passar liberações, recursos, complementos de investigação, apelações que
com nossos materiais nas barbas do bekê, mas o que fazer contra remetiam todo o negócio para as calendas gregas, depois para o
o tribunal e a toga dos juízes, e contra a justiça? Mais uma vez, tempo do marquês d' Antin, depois para o ponto de partida, quan-
foram os comunistas que nos salvaram do desespero. do ele recomeçava com entusiasmo a mesma encenação legal. Os
O vereador comunista do Bairro Rive-Droite acompanhava juízes viam-no chegar com inquietação e sumiam atrás das poltro-
de perto os massacres de nossos barracos. Sempre aparecia por nas quando (tendo esgotado os arcanos jurídicos) nosso advogatista
lá, um pouco mais cedo, um pouco mais tarde, mas nada podia evocava o código supremo dos Direitos Humanos, e arrasava-os
fazer. Denunciava no justice esses atos de violências coloniais que com ataques furiosos contra o colonialismo, a escravidão, a ex-
jamais se teriam produzido na França. Ti-Cirique lia-nos os arti- ploração do homem pelo homem, quando denunciava os genocí-
gos e eu arrumava os justice que falavam de nós dentro de um dios ameríndios, as cumplicidades benevolentes de que se bene-
caixote de batatas, para conservar a memória (não se passou uma ficiava a Ku Klux Klan, o massacre de Madagáscar, os milhares de
semana sem que eu comprasse e lesse esse jornal, e até minha mor- mortos da ferrovia do Congo-Océan, as safadezas indochinesas,
te continuarei a ler). Mas quando nosso vereador-jornalista soube as torturas argelinas, os tiros dos guardas franceses nas praias de-
que havia tribunal na história, e que corríamos o risco de nos ver sertas agrícolas, quando os atacava a golpes de Marx, apavorava-
um dia, as quatro vagabundas, na cadeia, mandou chamar outro os com Freud, citava Césaire, Damas, Rimbaud, Baudelaire e ou-
mulato comunista (ou Progressista), seja como for, um advogado tros poetas que só Ti-Cirique era capaz de identificar. Engajou-se
venerador de um ista. Um chamado Darsieres. em nosso combate com unhas e dentes, num terreno que não co-
O homem surgiu um dia em Texaco-de-Baixo, acompanha- nhecíamos. Era como se cobrisse nosso flanco descoberto. Mas
do de uma branca. Olhou por cima, olhou por baixo, mandou me para nós a batalha prosseguia, pois, sem abandonar uma fibra se-
chamar, e aconselhou-me a mandar até seu escritório os que ha- quer, os ceerresses continuavam a demolir nossas tentativas de
viam recebido os papéis-tribunal. Marie-Clémence, Sonore, Néo- existir à sombra dos reservatórios.
lise Daldalne e eu tivemos de passar em cada barraco para explicar,
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os MARINHEIROS VISIONÁRIOS. As coisas iriam mudar com ache- a nau cristalizara o pó dos povos astecas, dos povos incas, dos
gada deJulot-da-Peste. Nessa época, ninguém sabia que ele era um aruaques, dos caraíbas, a cinza das línguas, das peles, dos sangues,
Major. Não era oficialmente. Vinha ninguém sabe de onde, e tinha, das culturas dizimadas, uma poeira desse vasto atentado cometi-
como único receio, o retorno de sua mãe que caíra na armadilha do entre as plantações do mundo chamado de Novo; desde a eter-
de um caixão. Certo dia, um domingo cedo, veio parar entre nós. nidade, bem antes que ele chegasse, fantasmas julgavam o Desco-
Coisa insólita, não veio me ver, como era de praxe. Preferiu se
bridor, imóvel na proa diante de uma Índia opaca, julgavam-no
instalar em Texaco-de-Baixo, bem no meio do mangue, num ca-
inutilmente, pois o Funesto sempre escapava, como que anistia-
sebre de folha-de-flandres mal-e-mal acima do nível da água. E ali
do pela irremediável história que era obrigado a repetir infinita-
viveu assim, imutável, indo para a Cidade ao ritmo de uma poesia
mente ... E tudo isso deixava os marinheiros dos petroleiros mais
íntima, andando por aqui, espiando por ali, sem realmente ter ca-
repugnados, mais alucinados, mais convulsos ainda, e contami-
ra de quem transpira para um bekê. Quando cruzei com ele pela
primeira vez, percebi em seus olhos aquela luminosidade à espreita, nava nossos pequenos pesadelos em Texaco: esses horrores evo-
que eu flagrara tantos anos antes no olhar de Bico-de-Prata. En- cados quando cruzavam nossos barracos, infelizmente, meu ca-
tendi sem entender que esse Julot não era um preto insignifican- ro, sentíamos muito bem, também nos habitavam.
te. O que se seguiu confirmaria a impressão.
Os petroleiros dispunham de uma tripulação de marinheiros Mas a cidade é um perigo, nosso perigo. O automóvel
mais ou menos turbulentos. Esses bandidos aproveitavam-se do conquista espaço, o centro se esvazia e os que lá foram
navio parado para ir até a Cidade, ver as mulheres de vida fácil parar se sedimentam; ela amplifica a dependência alimen-
à beira do Bois-de-Boulogne. Gastavam rios de dinheiro, falavam tar, o fascínio pelo exterior e a energia não produtiva;
sete línguas, carregavam nove desgraças, bebiam como mexica- aberta para o mundo, ignora o país, e, dentro do país,
nos de fita de cinema, e voltavam para Texaco reduzido a cinzas o homem; abunda em solidões e novas pobrezas, desco-
por uma brasa alcoólica. Nessa hora, confessavam-se ao mundo, nhecidas dos médicos; cria poluição e insegurança; es-
descreviam as coisas encontradas pelo Caribe. Falavam daqueles palha-se por todo lado, ameaça as culturas e as diferen-
galeões abarrotados de ouro até a borda, translúcidos como me- ças como um vírus mundial. A cidade é um perigo.
dusas, que cruzavam com o petroleiro levantando eflúvios de al- Nota do urbanista ao Marcador de Palavras.
gas amargas, cantos de velhos soldados, risos de damas entrevis- Pasta n? 14. Folha xiv.
tas nas escotilhas da proa de onde vinham cantigas cuja alegria 1988. Biblioteca Schoelcher.
fazia chorar. Falavam daqueles tubarões que surgiam no rastro do
barco, simultaneamente brancos e cor-de-rosa como coral quebra- Para voltar ao navio, escalavam as cercas do bekê e atravessa-
do; os tubarões estalavam os dentes, como durante séculos esta- vam Texaco-de-Baixo recitando em todas as línguas suas insupor-
laram em torno dos navios negreiros que lhes tinham largado car- táveis visões. De mês a mês, habituaram-se a parar por ali, bater
regamentos inteiros, a tal ponto que, envenenados por um rumor às portas, aborrecer as mulheres-sem-homens e as moças curiosas
de almas, soletravam a angústia em treze línguas africanas. Pesa- à entrada dos barracos. Digo "aborrecer", mas nem sempre, pois
delos (diziam os marinheiros bêbados) freqüentavam esse marca- houve belas histórias-de-coração-apaixonado-pelo-teu-coração,
rafba sonhador como cemitério; os abissos agarravam-se às cubas conforme atestaram os anjinhos amarelo-banana que surgiram en-
de petróleo para revestirem o aço com um hosana de milhões de tre os negrinhos de Texaco (bem como no Morro Pichevin, em
pessoas afogadas nas noites submarinas, formando um monstruo- Volga-Plage ou Sainte-Thérese). As mulheres enrabichadas foram
so tapete que se recordava da África, coberto de grilhetas e cor- para os petroleiros, um pouco como a Osélia de meu querido Es-
rentes, e que unia as ilhas com uma aliança de cadáveres. Falavam ternome. Também houve noivados rompidos à beira de uma sim-
de Cristóvão Colombo na proa de sua Santa Maria, a qual se tor- ples aliança (o noivo resporidendo ao apelo do alto-mar assim que
nara opalina, com reflexos das eras, como um velhíssimo marfim; saqueava uma xoxota), mas que foram horas enternecedoras, dig-
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nas de um bom Cinzano. Porém, no mais das vezes eram gritos, maram regularmente as vagas de socorros de Texaco-do-Alto. Junto
pancadas, contrariedades que enchiam nossas noites de espantos com Marie-Clémence, eu já me via submetida àquelas depravações
glaciais. Cada petroleiro do mês completava com seus horrores quando Julot entrou na dança.
a carga dos ceerresses. Os homens de Texaco protegiam os pró- Um Major não tem medo de morrer. Vê-lo avançar é aterra-
prios barracos, mas os barracos sem homens eram entregues aos dor. Dá a impressão de que vem buscar a morte, e até (se for um
frenesis dos marinheiros embriagados. Queriam a toda força boli- grande Major) de estar voltando do túmulo. Dá inclusive a impres-
!
nar a habitante, fazê-la cantar Adieu foulards Adios madras, ver são de que espancá-lo não adianta nada. Ver uma vida que aceita
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seus olhos se acenderem diante de maços de dólares, passar a mão morrer paralisa qualquer vida. Julot avançou, pois, para cima dos
em suas pequenas carnes presas no óleo de um desejo. Quem vi- marinheiros, com a mão no bolso de trás, à maneira ritual dos Ma-
via sozinha no barraco com seu filho tinha de assustá-los, exibir jores. Além disso, abaixara a camisa por cima do que sabíamos ser
as tesouras, a garrafa de ácido, armar crises de mulata sarará. Eu seu facão, mas que nenhum marinheiro via. Fendeu a multidão
mesma (morando lá no alto, eu escapava das investidas, pois o ál- de Texaco e aproximou-se tranqüilo do campo de batalha, o olhar
cool não lhes permitia equilibrar-se acima do nível do mar) tive amuado, o cenho apenas franzido. Os marinheiros que, magneti-
de descer com paus grossos de campeche, e quebrar a casca de zados por sua aura de morte, o deixaram passar, foram ignorados;
um osso. Houve até uma vez em que um marinheiro me jogou mas houve um, sem muito conhecimento da vida, que o segurou
no mar. Ralei minhas pernas, mas voltei para a margem, cheia de pelo braço com a idéia de despachá-lo para seu barracão, desan-
espinhos de ouriços que nenhuma vela foi capaz de extrair. Uma cado. Foi, por assim dizer, uma pena. Quem nunca viu um Major
noite, por pouco Néolise Daidaine não sofreu a pior afronta. Só atacar jamais deve pedir para ver. Eu, sabendo o que ia aconte-
'/i se salvou por causa de seus horrorosos pés: os bêbados, levan- cer, fechei os olhos.
tando-lhe os costados para vencer sua desconfiança, fugiram ao Um silêncio imobilizou a noite. Um silêncio antiqüíssimo. Sem
descobrir seus barris de carne congestionados. Fazia vários me- querer, abri os olhos para ver o que já tinha visto nas Terres-
ses que agüentávamos essa amolação, quando o cidadão Julot re- Sainville e que não gostaria nada de revi:r. O braço do marinheiro
velou aos marinheiros visionários que era uma peste. rodopiou na mão de Julot, agora branca. Vimos subir ao céu uma
Certa noite, os marinheiros atacaram Marie-Clémence. Ela mo- espécie de jato de tinta. Foi só o tempo de ver isso e Julot já es-
rava bem embaixo da ladeira. Arrombaram sua porta, cantando, pancara o pobre sujeito catorze vezes subindo, outras tantas des-
e começaram a persegui-la. Seus cabelos de palha seca, sua pele cendo. Mas quando digo espancar, é mais indecente do que isso.
de mulata, a aura de sua antiga beleza levaram os marinheiros a Ê estraçalhar. Es-tra-ça-lhar. Quando o Major espanca, há em seus
ultrapassar os limites da safadeza. Alguns tiraram as calças e a im- gestos tantas fatalidades, tanta decisão, tantos irremediáveis, que
prensaram com uma serra tico-tico levantada. Eu, agarrando meu temos a impressão de uma injustiça, seja qual for o motivo de sua
pau de campeche, caí-lhes em cima. Tive tempo para esborrachar intervenção. Os outros marinheiros perceberam a coisa e se cura-
um nariz, triturar alguns colhões e empurrar a cabeça de um cara- ram de vez da bebedeira. Fugiram engatinhando, rumo à chalupa,
lho apontado em sua direção. Ela também já havia estropiado uns e depois ao petroleiro. Terreno limpo, num instantinho.
dois ou três. Mas, numerosos demais, acabaram nos vencendo: Julot, de olho na fuga, continuava a surrar o imprudente agora
restava-nos apenas gritar socorro, como as cabras de matadouro reduzido a um trapo. Estávamos paralisados. Julot parou, enxu-
que vão ser esquartejadas. gou a faca em cima do marinheiro quebrado, e foi tranqüilamen-
Algumas lâmpadas se acenderam nos barracos, negras furio- te se sentar numa pedra, olhando-o se debater como um pato de-
sas surgiram, uns homens passaram a mão no facão e começaram golado. Todo Texaco recuara para as sombras, de medo que o
a descer. Mano Castrador, segurando o velho revólver, pôs-se a olhar de Julot se fixasse no olho de alguém. Tudo parecia termi-
atirar para o alto, avançando como Pat Garrett diante de Billy the nado, mas eu sabia, ai meu Deus, que não era nada disso.
Kid. Mas os marinheiros eram maus. Alguns manejavam os braços O Major não pára jamais. Se o pobre marinheiro ainda se me-
como armas de ferro. Desbarataram nosso Texaco-de-Baixo e dizi- xesse, tentasse se levantar para ir embora, Julot lhe cairia em cima

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com idêntica ira. Como não se mexia, aconteceu o pior. Julot co- assim, sem dizer nada. Virou as costas, simplesmente, e entrou em
meçou a falar com voz de menininha. Disse (e era como uma sen- seu barraco, que ressoou como uma sepultura. E naquele instante
tença de morte): Não peça nada a ninguém, virão buscá-lo, leve pensei ouvi-lo falar sozinho, sem esperar resposta, como se cho-
seu corpo para longe como um vagabundo dos morros e guarde rasse aos prantos.
a sua língua no coração, pois você está nessa vida aí, mas gostaria Os marinheiros voltaram (meigos como vira-latas) para bus-
de estar no outro bordo dessa vida aí, mas para onde ir, mas para car seu camarada. Desapareceram com; nunca mais os revimos.
onde correr, mas para onde subir sem que essa vida aí não vá de Devem ter mudado de companhia, ou não atracaram mais em Fort-
mãos dadas com você, você de olho nela? Para isso, não existe
.i
l morro, e é por isso que você corre em volta de si mesmo, e fica
como um parasita-imóvel, e é melhor ser um parasita-imóvel, pois
de-France, ou então foram agarrados numa noite por essas floti-
lhas de caraíbas esquecidos há tempos, que surgiam no mundo
,j para vingar os massacres. Subi vagarosamente para meu barraco;
o mar está na frente, o mar está atrás, o mar está do lado} e você todo Texaco olhava-me mancar como se eu fosse prima de uma

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não sabe para que lado virar, em que bordo bater, ou se debater,
então você corre dentro do seu coração e acaba como um parasi-
ta-imóvel, longe das pessoas, sem pedir nada a ninguém, parasita-
imóvel como num caixão cujos pregos você conta com os olhos
diablesse. Galho novo em minha lenda: eu havia interrompido um
Major em combate.
A presença de um Major entre nós era uma coisa boa e ruim.
Não havia Bairro sem Major, e Texaco ali recebia uma certidão
fixos-arriados-abertos para a desgraça, e você olha esse aí, esse aí de nascimento ao se tornar o território de Julot. O problema é
está deitado mas não morre, eles sabem direitinho enganar a gen-
i''.i' te, fazem de conta que morrem mas é só um faz-de-conta, e se
que Majores atraem Majores e aprendizes-de-Majores. De modo
que os Majores da Rive-Droite e do Morro Abélard (chamados
você não sabe o que é um faz-de-conta, vai ser enganado igualzi-
Danger-Chodé e Bêc-Mêr) não custaram a dar o ar da graça, quan-
nho, e você é que vai entrar na dança, você que já está contando
do souberam do acontecimento. Um sábado à noite, evidentemen-
1 os pregos dentro de um caixão ... E enquanto falava, o facão (até
te. Chegaram juntos, mandaram Mano Castrador (muito deferen-
então escondido na camisa) apareceu em sua mão como um apo-
1. te) abrir o portão e avançaram por Texaco-de-Baixo, falando para
calipse. Já o levantava para cima do marinheiro como se fosse ra-
si mesmos, com voz alta e sepulcral:
char de um só golpe um grosso cepo de madeira, quando enchi-
Como é que é, tão dizendo que tem gente ruim por aqui?
me de coragem para dizer Não, ]ulot! .. ., embora sabendo que era
- É, tão dizendo, se estão ...
uma besteira desgraçada e que eu ia morrer.
Tive de relembrar-lhe sua mãe, que ele tanto temia. O que - Eu sou um cagão, tenho um medo que me pêlo de bandi-
provavelmente salvou minha vida. Pois um Major costuma truci- do, mas quando tem bandido pelas paradas quero ver o bandido ...
dar quem quer interrompê-lo. Só nos resta olhar de soslaio a con- Eu também, cagão e molengão ... ·
clusão de sua raiva, a menos que arrisquemos a vida. Eu não que- Vou perguntar então, por que que ele é trapalhão, não é não?
ria arriscar a minha, mas gritei Não, ]ulot! .. ., por ter medo de um E por que não? valentão também precisa de apertão .. .
monte de coisas que ainda ignoro (talvez, por Texaco: um assassi- Sei não, tem gente que diz que é durão, mas não é não .. .
nato teria decuplado o ódio da Cidade). Olhou-me com olhos que Ah, essa não ...
não eram olhos. Vi minha morte vindo a meu encontro. Senti meu Sei não, é falastrão mas não é chefão ...
sangue alastrar-se em minha cabeça. Vi-me esquecendo-me de mim Ah, então é um sancarrão ...
mesma em minha memória rapidamente esvaziada. Senti minhas Sei não, um machão não é mafião ...
pernas numa tremedeira-de-dar-caganeira. Dentro de mim, já es- Não é não, então é um mandrião ...
tava morta, com minha alma enregelada entre meus ossos duros Sei não, um babão não é mandão ...
e minhas carnes escorrendo secreções. Devo ter ganho, nesse dé- Então é a falação ...
cimo de instante, sete séculos, cinqüenta rugas e um trem de ca- Sei não, um poltrão não é patrão ...
belos brancos. Mas Julot, que avançava em minha direção, parou - E lá iam eles, por Texaco-de-Baixo, espalhando horror. Ti-

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nham jeito de quem fala para si mesmo, mas seus olhares perver- Ouvi falar...
sos escrutavam todas as figuras, procuravam a pessoa que eles pro- E sabe mesmo que tipo de gente somos?
curavam. Vieram me avisar. Desci na hora. Os conflitos entre Ma- Danger-Chodé e Bêc-Mêr. Sei disso, e não me esqueço de
jores são calamidades que só servem para atrapalhar. Foi tremen- nada.
do que decidi me interpor, mas, quando cheguei, já estavam diante "Conhecer" um major, ter "ouvido falar" dele é reconhecer
do barraco de Julot. A conversa, quase ritual, começou com um seu território, sua força, sua legitimidade. Mas a conversa conti-
silêncio de missa, impossível de quebrar. Atrás, o sol se pondo nuou e Julot foi esperto.
agravava o clima: - Dizem por aí que você é um durão, mas não é mandão
- Ei, parece que a pessoa que estou vendo aí é a pessoa que nem trapalhão e nem sequer falastrão - disseram-lhe ...
estamos querendo ver ... - É o que dizem, quer dizer, quem diz.
- Se é a pessoa, que se apresente ... - Na sua opinião, e cruz-credo !esconjuro, qual é a malda-
Julot saiu, com a mão no bolso de trás, muito tranqüilo, com de mais malvada do mundo? ...
seu jeito entediado que agora era de meter medo. Parou na frente - A peste de sete anos' não é boa coisa, mas tem pior que
dos dois Majores e ficou calado, mas sem olhá-los. isso, que não conheço e nem quero conhecer.:.
Ei, a pessoa se apresenta? Acertou em cheio. Um toque de humildade. Danger-Chodé
- É uma pessoa que vem de onde? e Bêc-Mêr, sossegados, foram embora em silêncio, mal cumpri-
- Sou Julot. Enseadas d'Arlets. Balata. Fort-de-France. mentando Mano Castrador, que abriu o portão como se eles fos-
Texaco. sem bekês em visita.
E sua mãe?
Dona Victorine, chamada Marie-Tété-Bonda-Piment.
E seu pai? ... o EFEITO CÊSAIRE. Estávamos nesse ponto de nossa desgraça
Piloto Victor, filho renegado de Gustave e de Corélia. quando De Gaulle apareceu na ilha e não pude vê-lo. Sentia-me
Piloto? Então você tem sangue caraíba? ... arrasada, e naquele dia voltei para meu barraco numa tristeza, sem
Hum ... sequer poder encostar no galo e nos doces que havia preparado.
É sangue bom. Marie-Clémence, Sonore, Néolise Daidalne, Carolina Dama, Ti-
Corélia? Você disse que Corélia é sua avó? Corélia Salssi- Cirique e os outros cantavam sua alegria por terem visto De Gaul-
foire, cuja mãe trabalhava na usina e que cuspiu três vezes numa le, e voltavam da Cidade depois de terem enchido a cara num bar
bekéia na missa da meia-noite? É essa aí? atrás do outro. Todos passavam para me contar o que tinham vis-
Corélia Salssifoire ... Ela mesma. to de De Gaulle, e nunca era a mesma coisa, a tal ponto que aca-
- A gente conhece essa pessoa ... bamos concluindo que ele mudava de rosto tal como nossos im-
- Era uma boa pessoa ... prováveis Mentôs ...
Nesse momento, percebi que o pior podia ser evitado. Falar A presença de Julot tornou Texaco conhecido nos Morros das
da família criava laços que ultrapassavam os Morros, que ninguém redondezas. Isso nos trouxe diversos outros barracos que, dessa
se atrevia a cortar. Mas era preciso concluir. E foi aí que Julot se vez, se dependuraram em cima dos reservatórios, sem que eu na-
mostrou um Major de verdade, pois os Majores respeitam, em pri- da pudesse fazer. O bekê voltou a ficar colérico e mandou cha-
meiro lugar, os Majores. Demonstrou imenso respeito, com sua mar os ceerresses. Quando estes apareceram, caíram primeiramen-
voz de menina sem peitinhos: te em cima de Julot-da-Peste. Que não sacou as armas contra as
- Sei - disse - quem vocês são. Você é Danger-Chodé. E espingardas, mas derrubou uma fileira deles sobre os escombros
você é Bêc-Mêr. Ouvi falar de vocês nas en.seadas d'Arlets, e até de seu barraco. Foi levado, sangrando, para um camburão e jogado
mais para lá da Petite-Anse.
- Ouviu falar? (*) O exemplo lhe deu um resto de nome.

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diretamente num fundo de cadeia. De onde saiu ao cabo de seis neceram agrupados ao meu redor, ligados àquele local como tatuís
meses, após a intervenção de nosso mulato-advogatista, e recons- em bancos de madrepérola no mar. O fracasso da solução Morro
truiu seu barraco como se nada houvera. Calebasse irritou o pessoal da prefeitura; fomos· um pouco aban-
Aquela noite da volta dos ceerresses foi terrível. Furiosos com donados à nossa própria sorte, diante dos bekês do petróleo. Quan-
a resistência de Julot, cumpriram sua missão com um ódio inabi- do reconstruímos os barracos, quando os que haviam partido fo-
tual. Quebraram as paredes com mais fé, bateram nas mulheres ram substituídos por gente nova, e que os policiais tiveram de
tanto ou mais do que nos homens e investiram contra a molecada intervir novamente, o efeito Césaire produziu-se às mil maravi-
que protegia diversos barracos. O vereador-comunista·do Bairro lhas. Os policiais foram cuidadosos, respeitaram os barracos que
Morro Abélard (em nosso plano de vigilância, Ti-Cirique saía de abrigavam crianças, só destruíram de fato os barracos vazios, em
mansinho para ir avisá-lo) relatou os fatos ao próprio Césaire. En- vias de construção, ou os que induziam uma ameaça de incêndio
tão, por volta do meio-dia, em plena tragédia de fibrocimento, por estarem localizados em cima dos reservatórios. E sempre tra-
folhas-de-flandres, caixotes, lama, lágrimas, sangue, notificações, taram de nos explicar o bem-fundado desta ou daquela demoli-
num oceano de policiais diversos vimos chegar o deputado-
ção. Quando foram embora, não senti subir em mim nenhuma lá-
prefeito em pessoa. Seu carro preto entrara silenciosamente em
grima, nosso Texaco estava praticamente o mesmo, a maioria de
Texaco. Ele descera, cercado por seus mulatos e por um comu-
nossos barracos continuava ali, bem de pé, doravante se impondo.
nista-doutor que se vestia de branco. O deputado-prefeito se apro-
ximou, olhando ao redor, ouvindo sabe-se lá que explicações, ma-
nifestando sua indignação diante da destruição dos barracos. Pas- Mas a cidade é um perigo; torna-se metrópole e jamais
seou, apavorado, pela ladeira salpicada de nossos tesouros ínti- pára; petrifica com silêncios os campos, como outrora
mos. Sem saber muito bem o que fazer, os policiais olhavam-no os Impérios sufocavam os arredores; sobre a ruína do
'11 em silêncio. Aí, o deputado-prefeito dirigiu-se ao comistério, ao Estado-nação, erige-se monstruosamente plurinacional,
capitão dos ceerresses e ao sujeito da chefatura de polícia, que transnacional, supranacional, cosmopolita - de certa for-
1 acompanhava a operação. Sua presença era impressionante, não ma, crioula demente, e torna-se a única estrutura desu-
.1 a voz, que ele não alteava, nem os gestos, muito calmos, mas a manizada da espécie humana.
própria presença: enchia os espíritos com as lendas que corriam Nota do urbanista ao Marcador de Palavras.
a seu respeito. Era papai-Césaire, nossa desforra viva contra os be- Pasta n~ 20. Folha xv1.
kês e os mulatos ricos. Ele, a quem eu não ousara pedir ajuda nem 1988. Biblioteca Schoelcher.
nos meus piores desesperos ... Aí, foi embora, depois de apertar
algumas mãos, entre elas as de Marie-Clémence. Não sei por quê, Então começou o fenômeno-concreto. Não há data precisa.
mas quando sua imagem me vem à cabeça, sempre tenho a sensa- O fibrocimento progredia a passos largos, mas o cimento-de-ver-
ção de uma solidão infinita. Segundo Ti-Cirique, é o tributo que dade tornava-se acessível. Vimos bastante depressa algumas bases
devem pagar ao mundo os poetas cujos povos ainda estão por de muros serem acimentadas, alguns tijolos serem empilhados. Os
nascer. policiais, obnubilados pela madeira de caixote e pelo fibrocimen-
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Vê-lo assim entre nós deu origem ao boato de que o próprio to, pouco ligavam. Mas ciclones como Edith, Dorothy, ou o sinis-
Césaire autorizava nossa instalação. Mais tarde, soubemos que ti- tro Beulah, que devastaram nossos barracos mais do que todas as
nha visto o representante oficial da França, que pedira para com- polícias, amplificaram o desejo de concreto. Os ventos levavam
prar esse terreno dos domínios, ou ainda exortado o bekê a ter as folhas-de-flandres lá para os confins do judas, despregavam a
paciência, sem incomodar as pessoas, até que ele encontrasse ou- madeira de caixote, dissipavam o fibrocimento nas cabeleiras dos
tra solução. Encontrou uma, pequena, e logo a prefeitura propôs anjos. No auge dessas catástrofes, as paredes de concreto subsis-
alojar-nos no Morro Calebasse. Algumas dezenas de nós foram para tiam como faróis que impressionavam nosso espírito. Além dis-
lá, mas todos os outros Uá quase um ·povo de Bairro) perma- · so, o concreto era a Cidade por excelência, a marca definitiva

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de um progresso na vida. Ao sabor dos biscates e dos pés-de- sua mão e dormir cem anos, e abriu-se para se arreganhar, caminho-
meia, começamos a comprar tijolos, sacos de cimento, cascalho. na-ventania sem muros nem horizonte, por onde ele podia ir mas
Os pedreiros tornaram-se príncipes em nossos mutirões. Primei- ficando dentro de mim. Mas ele sempre me deixava. Sentia-me
ro, acrescentávamos o cimento-tijolo-concreto na parte dos fun- arrasada, quase uma velha, tentando saber se ele havia miracula-
dos do barraco, para não alertar o bekê do petróleo, depois, do meu ventre cujo sangue começava a secar. Sentia ondas de ca-
sorrateiramente, cobríamos as laterais. Subíamos muros dentro lores, tonteiras, brasas que mudavam meu temperamento. O in-
dos tapumes de madeira ou de fibrocimento, e um dia, de re- satisfeito desejo de filho (secreto sininho, que filtrava um som de
pente, como uma cobra que se mexe, este ou aquele barraco igreja perdida num povado) virou carrilhão de grandes sinos cujo
sacudia sua casca de miséria e mostrava o concreto triunfante. repique deixava-me desvairada e me associava à dor de não po-
I' Esses sucessos fulgurantes enchiam-nos de orgulho; cada um que- der refrear Arcadius.
1 ria fazer o mesmo. Contra suas vadiagens, consultei Papa Totone. O preto ve-

~
lho disse-me que não se põe rédea em um vadio, brecá-lo é matá-
lo. Ele devia ir até o final de si mesmo, mas esse final era longe.
A MORTE DO VADIO. Eu vivia outra desgraça. Arcadius surgira Se alguns chegavam lá, outros não chegavam. Acabavam, na maio-
em minha vida como um cometa sibilante. Tínhamos andado noi- ria, no hospital Colson, e freqüentemente seus cadáveres eram en-
tes inteiras. Milhares de vezes havíamo-nos encontrado em meu contrados no meio de uma encruzilhada: tinham se negado a es-
barraco, na cama, para andar de outra forma. Senti por ele um tac- colher, querendo vadiar ao mesmo tempo nos quatro caminhos
tac no coração. Quando aparecia, um cantochão me transporta- da encruzilhada, a qualquer momento e para sempre. Isso afasta-
va. Quando desaparecia, levado por suas vadiagens, um torpor me va seus santos fortes, que se iam, deixando o corpo do vadio no
esvaziava os ossos e me deixava bamba em nossos mutirões em meio do caminho, vibrando por causa da longa extinção do feiti-
torno do deus-concreto. As vadiagens levavam-no longe e levavam- ço que o habitava. Consultei pequenos mandingueiros que me
no por muito tempo. Para trazê-lo de volta, entrei em sua loucu- mandaram fazer umas besteiras que fiz cuidadosamente. Consul-
ra. Néolise Daidaine e Carolina Danta, achando que eu adotara de tei mulheres-videntes cujos sonhos escondiam as chaves do uni-
uma vez por todas as mesmas vadiagens, tiveram de acender ve- verso. Consultei Escrevedoras cuja mão em cima de uma pena era
las para mim. Eu ia com Arcadius, mas mansamente trazia-o de voz de quinze mortos. Consultei um feiticeiro africano que se ins-
volta para meu barraco; e ali, oferecia-lhe os contentamentos do talara com um monte de títulos. Vi uma brasileira que inventava
mundo, entregava-me desbragadamente, fazendo o que ele ado- missas solenes coletivas para uma Vó Erzília. Mas nada adiantou.
rava e que eu descobria explorando seu corpo. A fim de afastá-lo Arcadius vinha, Arcadius partia. Trazê-lo de volta foi cada vez mais
dos encantos da vadiagem, entoei-lhe cânticos em seus testículos, difícil e ele desaparecia cada vez mais rápido. E eu nada podia fa-
semeei doçuras em cada um de seus poros, chupei sua alma, lam- zer. Esse tempo-concreto foi um tempo de asfixia. O cimento de
bi sua vida. Esforçava-me para nos fundirmos, um ao outro, e Texaco fixava-se em meu corpo ...
oferecer-lhe uma âncora. Minha vulva se Jez polvo para aspirá-lo Muito tempo depois de sua morte é que soube que Arcadius
e segurá-lo. Fez-se maçã e pêra e gaiolinha dourada, fez-se galinha- morrera. Encoi:;ttraram-no afogado embaixo da greta da escarpa.
com-arroz, fez-se licor-açucarado para ser bebericado, fez-se rum Nos últimos tempos, começara a seguir o circuito dos rios. Anda-
de sessenta e cinco graus, templo de bebedeiras fixas, fez-se ma- va até a nascente e descia com eles ao ritmo das marolas. Seu ob-
dou branco a ser colhido gota a gota por uma língua parada, fez-se jetivo era fundir-se no segredo dos rios para atingir o mar e en-
perigosa como a flor de estramônio que paralisa as pernas, fez- contrar a escapada. Meu pobre amorzinho, sempre que alcançava
se grande ferida impossível de curar sem um enxerto perene, a foz, fechava os olhos e se lançava. Sempre acordava numa pri-
fez-se alicate-cortante apertando justo o suficiente para rechear o são .de ondas. Então, remontava e tudo recomeçava. Quantas ve-
prazer, fez-se cavalo-de-pau que ele podia cavalgar em torno de zes procurou aquele caminho no mar que não tem caminho? Ele
um ponto central, fez-se bicho-de-caça-ferido para ser aninhado em deveria, confiou-me Ti-Cirique (que me deu a notícia), ter conhe-

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cido a poesia - que abre os caminhos do espírito - ou se lança- que foram extirpadas de mim como coágulos de morte - eu,
do na música, admirado os quadros e as formas esculpidas. Ele mais exangue do que vaca em gancho de matadouro. Escrevi-
deveria, disse-me Carolina Danta (que passou dez meses de ora- sentimentos que associavam os verbos como o fazem as videntes
ções à beira de meu desespero) ter vivido o inaudito em Deus, sob sono hipnótico. Escrevi-cores como Rimbaud tendo visões.
que povoava de luz o único caminho que vale a pena. Ele deve- Escrevi-melancolias que reforçavam a minha. Escrevi-uivos que,
ria, disse-me Marie Clémence (que ficou a meu lado quando co- para liquefazer a tinta, batiam como pálpebras. Escrevi-coisas in-
mecei a perambular como uma louca), ter falado com os outros, voluntárias, vindas sei lá de onde, como cadelas amedrontadas ...
falado, falado com os outros, e não ficar se dirigindo ao próprio Conversei com Ti-Cirique, a fim de lhe dizer que os escritores são
corpo como se ali escavasse um buraco para o mau agouro. Ele loucos de viverem no centro de coisas semelhantes; disse-me que
deveria, disse-me Iphigénie, a louca (que com muito gosto foi me os escritores de hoje não conhecem mais isso: perderam o elã inau-
visitar no hospital Colson), ter ido ver os psiquiatras, não os da gural da escrita que sai de você como uma necessidade, e com
ilha mas os que vêm da França, que sem nem mesmo uma injeção o qual você se debate (solitário para sempre), assim como se de-
indicam a você o bom caminho. Ele deveria, disse-me Julot-da- bate com sua vida mesclada à morte, em meio ao indizível sagra-
Peste (depois do Colson, fui aos prantos para perto de seu barra- do. E, desse drama, não se faz ofício. Oiseau de Cham, você é um
co, esperando reconforto), ter corrido dentro de si mesmo, mas escritor?
ter parado do lado de fora ... Porém, embora os aprovasse, eu sa- Outro mistério: comecei a beber sozinha. Minha alma soço-
bia que Arcadius não podia fazer nada contra sua vadiagem. O des- brava no fundo das garrafas de Neisson. Escondia-as nos vãos do
tino do vadio era levar-nos, todos juntos, para mundos perdidos barraco, e bebia-as de noite, no gargalo, até rolar debaixo de mi-
em nossas escuridões. Ele assumia algo que procurávamos, e nos nha cama ou começar a·reler meus cadernos, com uma voz alta
permitia encontrar esse algo sem sofrer. O vadio é nosso desejo e sinistra que perturbava Texaco. No fundo de minha embriaguez,
de liberdade no ser, nossa maneira de viver os mundos dentro encontrei a Palavra do rum que os bebedores de rum conhecem.'
de nós, nosso negro fugido da Cidade. Tal como estes, comecei a me referir à garrafa como a uma amiga
cuja chegada ilumina a existência, dei-lhe uma porção de nomes
(meu-consolo, é claro, minha-comadre-a-casa-é-sua, minha-hóstia-
ESCREVER-DILACERADA. A morte de Arcadius atirou-me em meus de-sessenta-graus, minha-ida-ao-tesouro, minha-fonte-dulcinéia,
cadernos. Escrevi. Escrevi-desespero. Escrever é algo que secar- meu-peitinho-de-prazer, Meumelchupado ... ), escrevi-lhe músicas
rega no mais profundo, num recôndito qualquer de si mesmo. Ti- informuláveis e poemas-de-voz-de-boi. Quanto ao próprio rum,
Cirique não tinha mais tempo de me ler. Eram mais fortes do que ele se tornou meu companheiro-inimigo, meu homem-porta-des-
ele meu arrebatamento de vocábulos soltos dentro do alfabeto, graça, o destruidor que enfrentamos alegremente, ele matou mi-
aquela tristeza recortada em vírgulas para instruir silêncios; aquele nha mãe, ele matou meu pai, ele também me matará, mas a mor-
langor que me inspirava palavras acutiladas por traços, ou aque- te é para todos ... Quantas expressões crioulas me vinham assim ... !
las palavras que eu deixava inacabadas para abrir cada página a quantas frases, quantas bobagens, quantas desesperanças atrope-
meu Arcadius. Deixei secar minhas lágrimas para colocar prostra-
dos pontinhos nos is. Alinhavei arrepios em fios de tinta e esma- (•)O rum regara nossas histórias; em torno do tafia, do cocomerlo, da guil-
guei-os para esperar que fiorescessem dentro dos cadernos fecha- dive (meu Esternome me dissera) tínhamos desenvolvido um discurso de malícia;
dos. Juntei lembranças de meu Esternome e de minha Idoménée, na fazenda, os bekês davam-nos rum para beber a fim de afogarmos nossas melan-
colias; depois da abolição, fizeram o mesmo, de sorte a compensar a ausência de
dois devaneios sobre Basile, três sonhos com Nelta, sete pensa- salário; nos povoados e na Cidade, os mulatos faziam política com os barris de
mentos sobre meu Arcadius, e ralei-os como mandioca noturna rum abertos aos revoltosos; a adesão a este ou aquele era confortada com rum,
para ter tinta misturada à água de meus olhos. Escrevi haicais mais e cantávamos por ele, lutávamos por ele, tomando a rodo seu rum; e nos bares,
frios do que dezessete pregos de caixão, e silos que eu queria que. ao meio-dia, hora sagrada do punch, o círculo em torno do rum alimentava o ver-
bo; a língua crioula conservou parte desse espírito que encontrei em mim - intacto.
fossem amargos como fel de sapo. Escrevi palavras-dicionários,

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!ando-se por todo lado ... ! A filosofia do rum ilumina a manhã, de- espaço com a mesma ferocidade, mas sentia-se muito bem que ele
cola o dia, permite que você insulte Deus o Diabo os bekês e a já não estava por lá. De tanto nos xingar, tornara-se uma espécie
má sorte. É ela que lhe dá a tonteira (retirando-lhe o equilíbrio de velho-inimigo. Envelhecera. Perdera sua cabeleira, sua pele
vertical) para que o chamem de Tonto. Ela ajudava você a partir, enchera-se de manchas e suas mãos vermelho-tijolo tremiam um
servia de terceiro pé, exaltava a sua vida misturando-a à morte, bocado. Pouco me surpreendi ao vê-lo um belo dia chegar à mi-
e o acompanhava até mesmo depois da morte: não há um preto nha casa, recusar-se a entrar, como fazem os bekês que são obri-
que não tenha prescrito que sua cova fosse um barril de rum, e gados a ir a um barraco de negro; ainda assim, aceitou uma cadei-
que os cantos, as orações e as lágrimas fossem do mesmo mate- ra e instalou-se comigo na soleira da porta. Ficamos em silêncio.
rial. Nessa febre alcoólica, naufragada no fundo de mim mesma, Em minha cabeça desfilavam os insultos que eu lhe reservava; ele
fui crioula - e senti repugnância por tudo isso, pois isso era coisa também, imagino, fazia o mesmo. Olhava ao redor. Os olhares es-
pantados vindos dos barracos das redondezas pesavam-nos nos
de homem.
ombros. Parecia impressionado ao ver em volta de meu barraco
Preta que bebe é uma tremenda vergonha: mais que o homem,
a inacreditável densidade das construções. Saltava aos olhos que
ela pede demissão da vida, baixa os braços, anda desengonçada,
as pessoas haviam se instalado ao meu redor: um espaço vital,
chafurda na lama. Preta que bebe é vagabunda que não presta e maior do que em outros lugares, instituía meu lar como centro
brinca com sua alma como se fosse papagaio de papel. .. Que ela de radiação de Texaco-do-Alto. Ver um bekê de tão perto era, pa-
vai soltando .... ra mim, uma novidade. O que meu Esternome me dissera desfila-
va em minha cabeça como surdas queixas que sempre se elevarão
Mas a cidade é uma ameaça. Quando não está consolidada entre um bekê e mim, a pedreira das friezas.
por uma velha memória, cuidadosamente amplificada, sua De repente, começou a falar sozinho como um negro do mer-
lógica é desumana. Ali, nasce um deserto debaixo da ale- cado. Suas palavras cercavam-me como pequenos laços. Não me
gria mecânica dos neons e da ditatura dos automóveis. olhava. Falou-me da hierarquia bekéia segundo o din)"l.eiro, o so-
Texaco absorvido será regido pela ordem. A ilha da Mar- brenome, a data de chegada da família. Falou-me dos velhos Papais-
tinica será rapidamente engolida. Doravante, o urbanis- bekês que decidiam sobre o destino das tribos sem sequer sair de
ta crioulo precisa iniciar outras trilhas, de modo a pro- suas terras. Falou-me das grandes usinas centrais que liquidaram
vocar na cidade uma contra-cidade. E, ao redor da cida- com as fazendas, e da catástrofe de Saint-Pierre que tudo destruí-
de, reinventar o campo. Por isso, o arquiteto deve se fa- ra. Disse-me como esses fenômenos haviam engordado os bekês
zer músico escultor, pintor ... - e o urbanista poeta.
1 1 pés-rapados, despossuído os mais ricos, provocado heranças es-
quisitas e nobrezas repentinas; como as guerras haviam enrique-
Nota do urbanista ao Marcador de Palavras.
Pasca n? 14. Folha xv111. cido os bekês pobretões, absorvendo sua produção de rum; co-
1988. Biblioteca Schoelcher. mo a roda das riquezas girara até deixar para as grandes famílias
apenas a discutível antiguidade; doravante, uma genealogia bem
clara, sem nenhuma falha duvidosa, impunha a todos o mais alto
ÚLTIMO CANTO DO BEKÊ. Por essa época, o bekê se mudou. A respeito, maior do que o tilintar do dinheiro nas gavetas, o res-
entrada do concreto em Texaco, o recente ciclone que prejudica- peito, minha senhora. Explicou-me como a ascensão dos mulatos
ra seus negócios, o esgotamento da polícia, e provavelmente ou- soldara essa casta bekéia, obrigando-a a lutar no cenário político
tras obrigações fizeram com que os petroleiros viessem cada vez (no entanto, por mais que os franceses distribuíssem rum, terras
menos ao cais 1 e depois, que não viessem mais, que os reservató- e dinheiro, os mulatos foram mais safados ainda); depois, como
rios de Texaco se enchessem raramente, que os caminhões só apa- se retiraram para os negócios de importação e exportação, para
recessem à noite para pernoitar. Dia a dia, carregava-se material os subsídios oblíquos e para o maná comercial de nossa vida as-
para outros lugares, atrás da Cité Dillon. Ah, o bekê protegia seu sistida. Hoje, a casta dos bekês estava ligada por um tecido de

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empresas onde os jovens ocupavam bons cargos sem nem saber vasta e que, nesse nível, ele não estava perdendo e jamais iria
o bê-á-bá; estava igualmente unida por cultuar meticulosamente perdê-la. E quando estava chegando a seu jipe embaixo da ladei-
a idéia de sobreviver em meio ao oceano negro que ameaçava de ra, gritei-lhe rindo: Sacré Vié-isa!ope, man ké senyen 'w yon sé jou-
todos os lados. Conservavam a pureza racial e a própria existên- a (Seu velho safado, vou te matar um dia desses) ... Ele me cha-
cia indo viver nas margens inacessíveis da baía du François, só dei- mou de Bafai-senti, sé mwen ki ké pityé'w ... (Vassoura-fedorenta,
xavam seus iates a fim de ir para bancos de areia no meio do mar, sou eu que vou te pegar ... ) e ligou o carro com cara de partir para
onde saboreavam champanhes angustiadas em cima de bandejas sempre ...
flutuantes. Os pretos eram seus irmãos, mas jamais seus cunha-
dos, e ai de quem, entre eles, infringisse a regra. Este seria rejeita-
do por todos (como outrora os negros que eram jogados no mar REMÉDIO-POEMA. Os barracos de Texaco floresceram então
pelos negreiros), e, para salvar a honra, só lhe restava o exílio. com um belo concreto. O que causou alegrias mas também o me-
Confessou-me que, hoje, era preciso saber se casar, e casar os fi- do difuso da próxima batida policial. Pois o concreto era mais ca-
lhos, única maneira de evoluir entre os estratos da casta, sair de ro, mais pesado, atravancava mais. Destruído, er~ uma catástrofe
baixo para chegar lá em cima, trocar bolsos furados por bolsos da qual não poderíamos nos refazer facilmente. A medida que os
recheados, trocar a ausência de sobrenome por um sobrenome barracos iam ficando mais resistentes, todos começavam, melan-
muito antigo, e trocar a juventude pela poeira mágica das famílias cólicos, a esconjurar as investidas policiais, com dedos cruzados
seculares. Recitou-me um canto à mulher bekéia que administra- e .figas diante do sol nascente, com gotas de uma água de força
va esse edifício sob estrita vigilância: era admissível que um bekê atirada nas paredes, três vezes à direita, sete vezes à esquerda, trinta
tivesse pretinhos fora de casa, mas crime impossível que uma be- e três na frente. Diante de tal consternação, mandei que se cavasse
kéia entregasse o ventre a outra coisa que não a construção bran- na escarpa uma pequena capela e organizei uma coleta de dinhei-
ca de seu frágil esquife em nosso oceano de cor. Era a mulher que ro a fim de comprar para nós uma pequena imagem da Virgem
cuidava de tudo, garantia as passagens de uma margem à outra; Maria, que instalamos com grande pompa e que, no meu íntimo,
conseguir casar-se com ela era mais ou menos difícil, dependia de dediquei a meu Arcadius.
seus cabelos louros, de sua pele translúcida, e de seus olhos tra- Quanto a meu barraco, ele ficou imóvel, com sua soma de
zendo de longe os azuis da nobreza. A família dele mexia com ne- fibrocimento e folhas-de-flandres, sua lepra de madeira de caixo-
gócios de banana, flores, rum, um pouco de hortaliças. Ele esco- te, como se meu tempo houvesse parado. Adeus, eu me dizia,
lhera o petróleo sob a desaprovação geral, mas nisso percebia o adeus, eu vou partir, vou partir, como para extinguir em mim o
futuro sem limites; seu sucesso logo iria se consolidar, pois soube broto de vida. Quando nos opomos à vida, percebemos que ela
se casar-direito e sabia como casar-direito seus filhos. Disse-me que, está dentro de nós, mas bem afastada de nós. Como uma luz ina-
agora, eram tão poderosos quanto nos tempos das fazendas, tanto cessível, difusa em nossas carnes, em todo lugar e lugar nenhum,
no terreno agrícola quanto no das empresas, hotelaria, serviços; e que segue sua própria lei fora do espírito. Eu lhe dizia Adeus,
que seus filhos tinham finalmente compreendido que precisavam adeus, eu vou partir, mas ela não se mexia, imóvel como gata ve-
estudar tanto quanto os mulatos e bem mais do que os negros; lha que uma vassoura já não espanta. Então, refugiei-me, mais que
que aprendiam economia, administração, marketing e nos deixa- nunca, em meus cadernos e no meu rum noturno. Não participa-
vam essas baboseiras das belas-letras, e que também nos deixa- va mais do progresso de nosso Texaco, intervindo apenas para
vam, já que vocês fazem tanta questão, essa imundície de Cidade, dar um basta aos mexericos, dar conselhos, completar este ou
a fim de irem se aninhar nas margens inalcançáveis, onde a grama aquele processo que se arrastava num tribunal.
se estende até tocar nas ondas ... E então, levantou-se. Não pude Por essa época surgiram as lamentações. Continuávamos a não
articular nenhuma palavra durante seu solilóquio. Enquanto ia em- existir. Não tínhamos luz elétrica, água, endereço, não podíamos
bora, curvado, de cabeça baixa, compreendi que fora ver de per- ter televisão nem telefone, os quais floresciam na Cidade. Os mais
to aquela que o derrotara e lembrar-lhe que a guerra era mais sortudos cotizavam-se para um gerador e aqui e acolá uma luzinha

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piscava. Criava-se um ajuntamento noturno em volta de quem pu- vam que éramos loucas, mas evitavam se opor a mim). No dia se-
dera comprar uma televisão. Houve sentimentos de verdadeira dor guinte, assim que raiou o dia, éramos uns doze - quatro mulhe-
para as mulheres que sentiam passar os anos e não progrediam. res, nove homens, entre eles Ti-Cirique, que levava, trêmulo, seus
O investimento no concreto demandava certezas e exigia outros livros de negritude para serem autografados. Chegamos às cinco
confortos cuja ausência, estranhamente, parecia insuportável. Or- da manhã diante da grade de sua casa de madeira, uma espécie
ganizei diversas reuniões de uma associação de defesa, às quais de casa-grande, cercada por um jardim, um pouco desbotada, cheia
os homens compareciam um tanto amuados. Discutíamos em vão de capim, de sombras silenciosas e de sossego. Empurrei o por-
para decidir o que fazer. Os homens não falavam, no máximo res- tão, que estava aberto. Uma luz amarelava o interior da casa. Co-
mungavam que a vida não era tão fácil de engolir quanto um min- mo não tinha campainha, fui a primeira a dar um passo, seguida
gau de araruta. As mulheres xingavam o universo, exigiam tudo de pelas mu)heres. Os homens ficaram no portão, tratando-nos de
todos, evocavam De Gaulle, Bissol, Césaire e, às vezes, chegavam "não se deve entrar assim na casa dos outros". Ti-Cirique negou-
até a Lagrosilliere. Eu, com a cabeça arrastada para meus sonhos se a entrar e perdeu a oportunidade de sua vida de ter seus livros
com Arcadius, escutava-os como uma sonámbula e nada propu- de negritude autografados. Avançamos para a casa silenciosa, com
nha. Ti-Cirique, secretário da associação de defesa, perguntava-me o coração acelerado. Eu sentia minhas pernas bambas. Já não sa-
inutilmente, O que vou escrever, Presidente? ... E eu dizia: Escre- bia o que dizer, nem o que pensava em pedir, mas Marie-Clémence,
va o que quiser, escreva o que quiser, estou cansada demais ... Sonore, Néolise Daidaine tinham confiança em mim, convenci-
Provavelmente foi essa atitude que o decidiu a me ler poe- das de que, de toda maneira, diante de papai-Césaire eu seria va-
mas. Veio regularmente ao meu barraco operar sua terapia literá- lente.
ria. Leu-me cinqüenta-cem vezes Le bateau ivre de Arthur Rim- Gritei ô de casa, ninguém respondeu. Esperamos, depois re-
baud para despertar em mim a liberdade, leu-me Baudelaire para começamos nossa ida para a varanda. E de repente, meu deus nos-
delimitar meu sofrimento, leu-me Apollinaire para diluir meu de- so senhor, vimos Césaire, sentado ali, sozinho, no final de um
sespero, leu-me Leconte de Lisle a fim de provocar em mim exal- alvorecer, olhando (velho pai-de-santo patético) uma bananeira ba-
tações que ele chamava de mecânicas, leu-me Saint-John Perse para
lançar um sexo violeta brilhante lá no fundo do quintal. Pensei
que eu tomasse distância do mundo na maresia errante, leu-me
ver em seus olhos um lampejo de aflição. Ficamos sentados, ele
Faulkner para o fundo-da-cabeça dos homens em tenebrosas de-
também, e depois vi a irritação agitar-lhe as pálpebras:
sordens, fez-me acompanhar James Joyce pela cidade de Dublin
onde o infinito era possível, leu-me Kafka para desnortear a fixi- - O que vocês estão fazendo aqui ... !?
Senti que ia nos expulsar. Diziam que era capaz de sacudir
dez do mundo, depois me leu Césaire, Cahier d'un retour au pays
natal, a fim de me encorajar com as siderações da Besta, as profe- os alicerces do mundo com uma raiva desgraçada. Eu já não sabia
cias, o verbo forte de Major general e a magia das palavras que o que fazer, nem o que dizer. Só me restava ficar ali, balançando
se fundiam vindas de um tambor. De súbito, uma frase me pene- os braços, de boca aberta, olhando-o como uma abestalhada num
trou. Pedi que a repetisse. Depois, peguei o livro, li-o sozinha, sem quarto de hospício. Invoquei meu Esternome, Papa Totone, os
entender nada, deixando-me apenas levar pela energia invocató- Meniôs. Em seguida, lembrei-me da frase do Cahier que Ti-Cirique
ria que me negrava o sangue. me lera diversas vezes antes e que eu relera sozinha; então, recitei-a
Na reunião seguinte, voltei a ter meu jeito de mulher guerrei- em voz alta, com toda a energia do mundo:
ra, costas eretas, olhar firme, voz clara, gesto decidido. Propus um - ... e há lugar para todos no encontro marcado da conquista,
plano que todos acataram. Precisávamos visitar Césaire, não na e sabemos agora que o sol gira em torno de nossa terra, clareando
prefeitura, onde seus cérberos o vigiavam, mas na casa dele, na a parcela fixada unicamente por nossa vontade, e que qualquer
estrada de Redoure. Ali eu lhe falaria a fim de ter água, luz elétri- estrela cai do céu na terra diante de nosso comando sem limites ...
ca, um caminho na Iama, escadas sólidas, sarjetas cimentadas. A Vi que ele amoleceu. Aproximou-se, apertou-nos a mão, man-
coisa foi votada pelas mulheres (de modo geral, os homens acha- dou-nos entrar na varanda e sentou-se conosco: O que querem

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me pedir? Então, diante das outras paralisadas, pedi-lhe água en- estudar a questão da luz elétrica. Ti-Cirique, o secretário, manda-
canada para nossos filhos escolarizados que toda manhã têm de ra trinta e três missivas para o diretor da Companhia de Luz e For-
carregar montes de latas, pedi-lhe luz elétrica para nossos filhos ça, mas este nem sequer se dignou a responder: a seu ver, Texaco
que perdiam a vista em cima dos livros amarelados pelas lampari- não existia. Uma vez, desci para ir vê-lo e tentei forçar a porta de
nas de querosene, pedi-lhe uma passagem para sair de Texaco sem seu escritório. Outra vez, fomos durante a noite e emporcalha-
ter de implorar nada ao bekê ... pedi-lhe ·uma escola ... mendiguei mos as paredes com nossas exigências. Mas era dar murro em ponta
um pouco de vida na Cidade ... No final do desfile de nossas des- de faca. Estávamos nessa situação quando ocorreu o ataque cego
graças (ele devia ouvir as mesmas diariamente, na prefeitura), le- do trator que a prefeitura lançou contra um bairro do Morro Pi-
vantou as mãos dando a entender que não podia fazer grande coisa, chevin, parecido com Texaco, e que foi riscado do mapa em pou-
que Texaco não era terreno municipal, que tudo era complicado cos meses. Imensamente preocupada, pedi a Ti-Cirique e a Marie-
mas que iria ver e faria o possível. No momento da despedida, Clémence que passassem lá, depois do serviço, para saber das
segurou-me, hesitante: novidades, a fim de podermos tirar as lições. Mas o ataque foi de
- Diga-me, senhora Laborieux, a senhora leu o Cahier ou tal forma implacável que compreendi (sem lhes dizer, a eles que
era só uma citação que ... buscavam em meus olhos a dimensão dos perigos) que, na próxi-
- Li, senhor Césaire ... ma investida da Cidade, não teríamos nenhuma chance. O que de-
Não deve ter acreditado em mim. vem ter sentido em meus gestos nervosos, em minha preocupa-
ção em reativar as antigas vigilâncias. Começaram a tremer, tal
Escutando as últimas paiavras da grande senhora, tive su- como eu tremia lá no fundo de mim. E nos pusemos, com uma
bitamente um arrepio: daqui a alguns anos, mais de me- angústia mortal, a esperar nossa vez - tendo repentinamente com-
tade da humanidade enfrentará, em condições seme- preendido que, apesar do concreto, nosso Texaco permanecia um
lhantes, o que ela chama de Cidade. embrião frágil.
Nota do urbanista ao Marcador de Palavras. Cada comparecimento nosso a qualquer repartição realçava
Pasta nl:' 12. Página xx111. nossa inexistência. As assistentes sociais impeliam-nos a partir
1988. Bibilioteca Schoelcher. para os conjuntos habitacionais (ali, como preparar uma galinha,
como criar um porco?), mas raros eram os que se resignavam
 ESPERA DO MESSIAS. Fomos embora da casa dele lá pelas seis
com a idéia. Mais que qualquer um, eu sentia essa ameaça de
e meia: tínhamo-lo visto uns bons dez minutos. Ti-Cirique lamen- esmagamento, apesar de nosso concreto. E, sem me dar conta,
tou-se durante vinte e seis semanas ter ficado no portão. Graças comecei a esperar, esperar o quê? não sei... uma espécie de sinal
a essa iniciativa, obtivemos água corrente em Texaco. Além dis- do mundo ... um desfazer do nó dentro do qual nos debatía-
so, os serviços da prefeitura vieram despejar cascalho em cima da mos ... um Mentô todo-poderoso ... Mas logo abandonei essa últi-
lama, cimentar as estradas, consertar as escadarias que margeavam ma esperança: Papa Totone, que eu ia sondar a fim de obter
as ladeiras desposando nossas trilhas. Doce época ... Bastava-nos sei lá que palavra, olhava-me sorrindo como um autêntico abo-
dar um pulo à prefeitura e obtínhamos um vale para comprar areia, balhado. Envelhecera incrivelmente e mais que nunca parecia
cascalho, ferragens, folhas-de-flandres, argamassa, alguns sacos de um pepino amassado. Só seu olhar estava intacto, mas nada di-
cimento. A prefeitura deu-nos muito e retribuímos a cada eleição. zia. Néolise Daidaine e Carolina Danta puseram então na cabeça
Texaco, diante da Cidade, erigiu seu rosto de concreto; suas esta- a idéia de um cristo providencial que surgiria à frente dos trato-
cas com barras de ferro já não se ajoelhavam entre a colheita de res e sustaria aquele furor. A fé ardente de ambas penetrou em
nossas árvores frutíferas juvenis. nosso desespero como numa colher de margarina. Cada um de
Mas, quanto mais sobe na árvore, mais o macaco se lamenta nós, sem confessar, contava com um vôo de pomba, um halo
da própria sorte: pediram-me reuniões da associação de defesa para de luz, alguma libração celeste que transportaria Texaco num

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redemoinho de anjos ... Agradeci-lhes por nos trazerem esse so- agora domesticado. Minhas unhas ficaram compridas, amarelas
nho. A fé é maravilhosa pelo que provoca de entusiasmo interior (sem transparência), e não tive nenhuma vontade de cortá-las. Só
quando tudo está imóvel. Só Ti-Cirique arrefeceu essa fé: no fi- me serviam para arranhar os livros que eu não podia mais ler (mas
nal das liturgias de Néolise Daidaine (que circulava entre os bar- tinha-os lido tanto, que o simples fato de colocar minhas unhas
racos rezando em voz alta, de modo a apressar a hora messiâni- nas páginas rasgadas fazia aflorar montes de sensações que me
ca, e purificava com incenso nossa amargura), aproximava-se pa- abriam atrás dos olhos um sol de prazer nesse pobre crepúsculo).
ra perguntar: Mas, tirem-me uma dúvida, dessa vez ele vai ser Sobressaltos noturnos: sentia meu ventre atacado por dores
de que cor, castanho alourado com olhos azuis, apesar do sol de parto, desconhecidas mas familiares. Depois de horas de con-
da Judéia, ou branco-rosa-pálido-charter como são os turistas que trações violentas, debaixo de meu travesseiro, eu paria grandes
desembarcam? vazios que me deixavam arrasada. Vi meu ventre engravidar de
coisas inefáveis, e enterneci-me sobre ele até que se esvaziasse co-
mo um caranguejo morto, e me deixasse palpitando de amargura.
DESGASTES. Mas o tempo deixava o tempo passar, e nada acon- Transpirava muito, à toa. Tremia com as pancadas de frio que vi-
tecia, nada se prenunciava a não ser a ameaça policial. Além dis- nham sei lá de onde. Às vezes, o calor era tanto que eu tinha de
so, as fatalidades da vida faziam-se mais nítidas dentro de mim: abrir meu barraco e respirar o mundo. Minha pele começou a en-
minhas carnes começavam a desabar, minhas mãos se amarrota- colher a meu redor. Minhas gordurinhas secaram. Vi a forma de
vam como um velho pergaminho nos ninhos de minhas veias, meus ossos rondando. Outras vezes, durante meses inteiros, sentia-
meus olhos se embaçavam suavemente e me mostravam o mundo me gorda, inchada por todo lado, como se a água rara que eu bebia
com uma distância cada dia maior. Eu descobria coisas desconhe- se escondesse sob minha pele. Depois, esvaziava-me para habitar
cidas: membros entravados, algias, calores. Meu sangue de vida meus ossos. Sentia minha vagina recolher-se sobre si mesma,
(causa de tanta amargura, e do qual eu sonhara me livrar) desapa- tornar-se um pouco mais dura, menos vibrante, e eu ia fazer xixi
recia durante vários meses, reaparecia abundante para desapare- a cada cinco minutos. Sentia dores nas costas, dores nos quadris,
cer de novo, e reaparecer em gatinhas consternadoras, como que dores na mão. Foi-me cada vez mais difícil dar conta de meus ser-
enfrentando um inimigo teimoso. Minha memória já não era tão viços de limpeza. A assistente social preparou-me documentos para
boa para se lembrar de ontem. Em compensação, passava o tem- a pensão-de-sei-lá-o-quê, e passei a receber um dinheiro que com-
·po a vasculhar os fundos de minha vida, a remexer nos restos de pensava meu esgotamento no serviço. Tinha atrás do barraco meu
recordações perdidas, cuja passagem imprevista infligia-me o olho pequeno quintal crioulo, minhas galinhas e meus dois coelhos;
móvel dos ratos presos numa rede. Comecei a me lembrar, a vi- o que me autorizava, de vez em quando, a delícia de uma carne
ver em devaneios de odores ... momentos fugazes em companhia - mas, no mais das vezes, esquecia-me totalmente deles, enquanto
de minha Idoménée ... atmosferas das ruas da Cidade ... sons do gritavam por socorro até que Ti-Cirique lhes levasse restos de co-
Bairro dos Miseráveis ... o cheiro das graviolas ... um colar de ba- mida. Os pescadores de Texaco traziam-me diariamente uma cuia
langandãs ... café quente ... madeira queimada ... um sapato novo ... de peixes vermelhos ou uma carne de lambi que eu temperava
rostos ... pessoas ... gestos ... gotas de um pranto nos olhos ... mi- com gestos automáticos, ou esquecia dentro da cuia, em cima da
nha vida não era mais do que uma mala de sírio aberta numa cal- mesa, onde as moscas prevenidas vinham fazer a festa. Às vezes,
çada. Eu vagava por entre seu conteúdo, asfixiada pela poeira dos minhas noites eram estáticas, eu as olhava sem pegar no sono. Mi-
anos. Dela retirava (durante as pequenas melhoras) este ou aquele nha cabeça tornou-se um local de desordem. Tinha de segurá-la
objeto morto, extinto, mofado, que nada me trazia a não ser o com duas mãos até que aquilo passasse como um arrepio de fe-
inefável da melancolia - e essa leveza que se impregna em nos- bre. Meu coração palpitava sem razão. Tinha de ficar em algum
sos ossos para habituar-nos a deixar este mundo. Afagava recor- lugar para ouvi-lo se debater, e buscar um remédio. Tive a impres-
dações que eu desconfiava terem sido dolorosas; tocava-as com são de encolher, de ser mais baixa, menos ereta, menos esguia,
a incredulidade que se sentiria ao acariciar um sarigüê selvagem O cansaço acompanhava-me em minhas visitas a Texaco ou à Ci-

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dade. Nada comia (não tendo mais apetite em meu sangue imó- o ÚLTIMO PESCADOR DE TUBARÃO. Foi por essa época que Iré-
vel) e bebia por hábito ou por automatismo. Estava ficando velha. né, o pescador de tubarão - meu homem - apareceu entre nós.
Meu Esternome falara de lenta surpresa. Era pior: uma surpre- Uma grande baleia encalhara bem diante de Texaco. Parecia estar
safixa que irradiava de você, dia após dia. A meu redor, eu perce- desorientada, e seguira o barco de um de nossos pescadores de
bia muito bem o tempo passar, de mil maneiras: as rugas de Ti- volta para casa. A perseguição da baleia liquidou com o santo for-
Cirique, sua maneira de aproximar os livros dos olhos, sua mania te de nosso bravo pescador. Ele atracou como pôde e, sem dizer
de falar sozinho e de se repetir, de não mais escutar, seu desprezo nada a ninguém, dirigiu-se à catedral pensando numa confissão
pelos livros novos e sua fixação em dois ou três livros relidos sem de sabe-se lá muito bem o quê. Em seguida, mudou de profissão,
parar. Sua silhueta curvava-se, e sua voz de repente enrouquecia, virou sacristão em algum lugar. Também trocou Texaco pelos fun-
tanto, mas tanto, que ele parava de falar para escutar (mais surpre- dos da Balata, atrás das costas de Deus, longe de todas as águas,
so do que nós) a extinção daquele ronco estranho no fundo da gar- nada de mar, nada de rio; ali viveu muito tempo com sua mulher
ganta.Era-lhe cada vez mais difícil honrar as reuniões de seus irmãos infeliz e os filhos obrigados a ler para ele livros sobre baleias. Tem-
haitianos no local de Sainte-Thérese; ficava em Texaco, atormen- pos depois da morte da mulher, e de os filhos se tornarem alguém,
tado pelo exílio, com os ouvidos atentos ao litoral, na esperança foi encontrado afogado no suor de um pesadelo; a foto do co-
de captar um suspiro do Haiti. Marie-Clémence perdia inocência, mandante Cousteau ao lado da de Cristo; os livros sobre as ba-
suas histórias eram amargas e ocasionaimente traziam certas doses leias em cinzas, ao redor.
de futricas: envelhecer transformava-a em diablesse-Texaco, e mais A baleia encalhara na água barrenta do mangue, entre canoas
de um esperava vê-la voar para a Doum. De quando em vez, reapa- e estacas. Ali ficou, assobiando, tremendo, estremecendo, até se
recia tal qual, ah, minha querida, e depois desaparecia de novo sob imobilizar quando os mariscos grudados em sua pele foram em-
o fel da idade que chegava ... ah, minha querida ... Sonore, a mais bora, abruptamente. Vieram me procurar, pois uns alucinados que-
moça, vivia às voltas com a filharada e lavava roupa, sem sequer ria retalhá-la para ir vendê-la aos burgueses de Petit-Paradis. Ou-
esperar por sua hora. Néolise Daidaine começou a engordar, até tros ambicionavam transformá-la num vasto blaff dentro de uma
não poder mais andar sem uma bengala que gemia. Iphigénie, alou- cuba de mandioca que eles já vinham carregando. Só minha che-
ca, saiu do ambulatório e tratou da loucura comendo uma terra gor- gada a passos miúdos (viam-me cada vez menos, a não ser em ca-
durosa. Os homens (amantes fugidios, noivos instáveis), tão fuga- so de perigo, e, freqüentemente, em seus olhos respeitosos, eu
zes antes, incrustavam-se nos barracos para serem mimados. Quanto impunha o respeito de minha idade) conseguiu pará-los. Proibi que
a]ulot-da-Peste, escapava do tempo, quero dizer que sua ferocida- tocassem no animal que, provavelmente, estava doente de algu-
de permanecia intacta, seu corpo só secava como o de uma mú- ma desgraça, e mandei (a contragosto) avisar a polícia. Um dele-
mia, em volta do fogo escuro dos olhos. Moças e rapazes corajosos gado ficou andando em volta do bicho sem saber muito bem o
agora nos substituíam, enchiam nossas reuniões e corneçavam a cui- que fazer, a não ser medi-lo e fotografá-lo. O sol o castigara. Seu
dar do Bairro. Mas eu me sentia fora de tudo aquilo, até descobrir, cheiro de coral transformou-se em fedor de lua morta, depois em
na curva de um movimento, a que ponto meu corpo se gastara, pou- catinga de medusas e ouriços gangrenados, depois em peidos de
co a pouco, e já não era capaz de acompanhar a desordem de mi- diarréia e em fígado de bacalhau, depois em podridão desconhe-
nha cabeça. Esquecia o que tinha de fazer, já não cumpria minhas cida dos cristãos. Diante dessa infecção, o chefe de polícia teve
promessas, tinha tendência a ficar sentada diante do barraco, com de mobilizar os serviços do exército. Que chegaram com motosser-
meus vinte e seis cadernos em cima dos joelhos, qual um tesouro, ras que se perderam na carne do monstro (Ti-Cirique chamara a
sem sequer os reler como tantas vezes antes, só mantendo-os so- baleia de Globicéfala, o que, na mesma hora, passou a ser seu apeli-
bre os joelhos, sentir-lhes a presença, a soma de amor e sofrimen- do) e provocaram, para nada, mijos putrefatos. Assim, pois, os sol-
tos, de felicidade e de vida. Texaco estava bloqueado em seu entu- dados ficaram conosco, olhando Globi infectar o universo, quando
siasmo e eu, eu envelhecia, apesar do nome secreto que eu berrava de repente o oficial superior-adjunto, tocado por uma graça qual-
em grandes silêncios. quer, mandou chamar as unidades de comandos que vigiavam

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Cuba. Os comandos surgiram como num filme de guerra. Amar- cada vez mais longe. Mas tomara gosto por Texaco, pela proximi-
raram explosivos em todo canto, em volta da pavorosa matéria. dade da Cidade, por aquela celebridade que drenava a multidão
Soltaram Globi do lodo do mangue, acorrentaram-na e levaram- para as margens do canal quando sua canoa subia até os degraus
na para o meio da enseada onde, sem mais demora, explodiram-na. do mercado de peixes. Então, instalou-se entre nós, no barraco
abandonado do pescador que ficara tantã por causa da Globicéfa-
A carniça dispersou-se num buquê multicor que atraiu na mes- la. Ali ficou oito meses, até o dia em que veio morar no meu bar-
ma hora duzentos e cinqüenta tubarões de todos os ,tipos, entre raco - morar no meu coração.
eles uma espécie detestável de tubarão preto de olhos infernais Diariamente, trazia-me postas de tubarão branco, que às ve-
que nos deu a impressão de estarmos amaldiçoados para sempre. zes se dava ao trabalho de cozinhar num ensopado, segundo a gno-
Os tubarões começaram a freqüentar a baía. Botavam a goela se secreta dos grandes pescadores. Ocasionaimente, almoçávamos
de fora para olhar-nos nas margens de Texaco. Mais ninguém se juntos, ele contando suas recordações de pescador das enseadas
atrevia a se aproximar da praia. Ti-Cirique e Marie-Clémence acor- d'Arlets. Fascinava-me, fazendo-me lembrar meu Esternome. Vê-
daram-me em plena noite: tinha encontrado, perto de seus barra- lo permitia-me imaginar meu querido papai na enseada de Saint-
cos, um tubarão passeando e pedindo fogo. Julot-da-Peste veio Pierre durante o período do zumbi de Ninon. Provavelmente ele
me falar de um pesadelo com dezesseis fileiras de dentes. Os pes- notava esse fascínio, mas parecia subjugado por minha idade, mi-
cadores de Texaco e de Rive-Droite não ousaram mais levar os nha autoridade, minha fama, e minha lenda de mulher-de-colhões.
barcos para a água: tinham visto bocas engolir as nassas, arreben- Espantava-se um pouco que eu não tivesse medo dele, pois, as-
tar as redes, torcer a hélice dos motores que ficavam fumegando. sim que terminava de pescar, ficava sempre sozinho. As pessoas.
Os guardas tinham ido matá-los com metralhadoras, mas cruz- (exceto Julot-da-Peste, mas este era opaco como óleo de usina)
credo tarrenego, vote, cada corpo de tubarão despedaçado atraía não combinavam muito bem com um sujeito esquisito e temido
dez outros, putaquepariu! ... , de tal forma que desistiram dessa pelos tubarões. Com Ti-Cirique e comigo, ele tinha companhia.
precaução e deixaram-nos com aquela nuvem de seláquios que A partir de suas histórias, Ti-Cirique poetizava sobre a raça dos
viviam à espreita de nosso lixo, de nossos sonhos e da carne de . tubarões e lia-nos os versos à medida que nasciam. Mas Iréné e
nossa alma. Foi então que]ulot-da-Peste (ele tentara assustar essas eu freqüentemente ficávamos sozinhos à noite, a falar, a falar, a
fúrias recitando todos os seus títulos à beira do mar) mandou cha- falar ... - até que, numa noite de lua cheia, despertou em mim
mar Iréné. antigas sensações, e levei-o com mão firme para minha cama, quan-
Foi buscá-lo pessoalmente nas enseadas d'Arlets, explicou-lhe do ele já suspirava Até amanhã, Marie-So ...
o estado em que estávamos. Vimos o barco de Iréné derivar até Antes de ser pescador de tubarão, Iréné era só pescador, mas
defronte de Texaco. À medida que deixava a enseada, ele puxava morria de tédio entre seus anzóis que arrastava lá para os confins
tubarões presos no anzol, matava-os com pauladas e jogava-os no do mundo sem resultados gloriosos. Era pescador como o pai ha-
fundo da canoa. Recolocava isca no anzol, remava vinte e dois via sido, mas encarava o mar com o espírito de quem ali procura
um mais-além desse mundo onde não se sentia à vontade. Foi o
metros, deixava a canoa à deriva e puxava linhas carregadas co-
único a ouvir (em certas horas do dia, quando o sol esmaga as on-
mo ameixeiras. Quando atracou em meio a um bravo! geral, ha-
das com um faiscar de sal) o canto turvo dos búzios lambis, o so-
via a bordo trinta tubarões de todo tipo. Foi vendê-los no merca-
luço dos corais que afloram, o sussurro das algas, uma espécie de
do - a não ser os tubarões pretos, invendíveis para qualquer um algazarra abandonada na água. Ouvia subir das fossas azul-noite
(até para o pior dos ateus), e que ele era o único a comer, em com- um batimento que aterrorizava os golfinhos. Sentia passarem as
panhia de]ulot, o qual fazia um sinal-da-cruz a cada bocado e cus- correntes de grandes cabeleiras verdes e olhos estragados. Não era
pia o décimo terceiro.
um pescador comum, pois não custou a trazer peixes estranhos
Iréné ficou morando com Julot. Ia diariamente para a ensea- (desconhecidos das memórias) e que, evidentemente, não conse-
da, trazendo dezenas de tubarões, e acumulando uma pequena for- guia vender, pois como fazer uma moqueca com um peixe-galinha
tuna. Logo os tubarões escassearam .. Foi obrigado a ir buscá-los cujas escamas viram penas? Que fazer à guisa de fritura quando a

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sardinha é transparente e vemos seu coração bater? o que pensar resposta, então convoquei novas reuniões da associação de defe-
em maténa de blaff quando a carne do peixe brilha como a estre- sa, em cuja febre se anestesiava a angústia.
la da manhã? Iréné teve de se conformar em pescar outra coisa, Essa estrada, decretou Ti-Cirique durante a ducentésima vigé-
e tudo o que encontrou foi um mistério de tubarões que seu bar- sima reunião, é a logística avançada de um ataque oficial definiti-
co atraía. Atiravam-se contra a canoa, prolongavam com suas fau- vo. Virão com os tratores e será o nosso fim. Vão esmagar nossas
ces ecos seculares, celebravam missas de espuma, ou davam vol- vísceras no asfalto. Ferver nosso !!gado junto com a tinta para si-
tas emitindo evoés que ele pensava ser o único a ouvir. Um velho nalizar os acostamentos. Vão cortar nossa pele em rodelas e colocá-
pescador caraíba revelou-lhe que ele, Iréné, era uma "carne de la para secar, a exemplo do nazistas, e fazer luzinhas fosforescen-
mar", que sua pele tinha cheiro de polvo, que seu sangue povoa- tes para marcar as pistas. Vão plantar nossos dentes nas passagens
va os poro.s com um suspiro de moréias ou de bancos de peixe- de pedestres. A madeira de nossos barracos vai virar ripa de sus-
agulha excitados pela lua. Os tubarões gostavam disso, e vinham tentação do concreto e servir de prateleiras nos postos policiais.
para ele (ou para o que suas mãos haviam tocado) como quem vai Nossas pálpebras serão colocadas nos sinais de trânsito e ali fica-
para um festim. Então, ele, tranqüilo, começou a pescá-los. Pôde rão caídas para o resto da vida. Citava-nos Dante em seus infer-
assim viver sem maiores preocupações e sonhar sossegado no in- nos, o Livro dos Mortos dos egípcios, a epopéia de Gilgamesh,
finito das ondas. ·
na qual Uta-Napistim descreve um cataclismo, os Vedas de uma
A presença de Iréné levou-me para a juventude. Comecei velha índia que ele lia em sânscrito, as Suplicantes de Ésquilo, o
a comer, a cantar aleluia, a me espreguiçar ao sol. Sentia minha heroísmo de Roland destruído em Roncevaux, o lamento de Ru-
carne reencontrar a suavidade, minha vagina despertar. Meu co- tebeuf, Hugo em seus pesadelos, Lautréamont em seu delírio ... ,
ração repercutia ritmos e meus olhos se acendiam. Percebi as e tremia, pensando ver assombrações de tontons macoutes ver-
cores da vida, e os perfumes me foram agradáveis. A venda de des aproximando-se. Houve, pois, uma espécie de nervosismo
~eus tubarões permitia-nos comprar, de vez em quando, uns ti- atroz. Temendo chamar ainda mais atenção para nós, ninguém se
JOl?s, um saco de cimento, areia e outros materiais, e começamos atreveu a questionar a prefeitura. Preparávamo-nos para sofrer o
a cimentar os fundos do barraco. Minha lenda cresceu: mais que que havíamos conhecido, e para renascer mais uma vez das in-
nunca mulher-guerreira de Texaco, eu domesticara o destruidor vestidas. Estávamos prontos. Com minha voz trêmula pela idade,
de monstros.
firme o mais possível, disse-lhes que a única coisa a fazer era es-
perar e lutar. Que precisávamos resistir, à espera de que alguma
coisa acontecesse. Mas o quê? Eu ignorava: esperava o aconteci-
ACHEGADA 1;>E CRrs;o: Ü tempo passava assim, na angústia di- mento sem sequer identificá-lo.
n;sa de uma batida pohc1al que cada vez mais era esperada. Se es- Nesse clima, aquele a quem íamos chamar de Cristo apare-
tá demorando tanto, dizia-me Ti-Cirique, olhando a que ponto nos- ceu. Recebeu a pedrada em cuja origem, desconfiávamos, estava
so T~xaco dominava o mangue e cobria a escarpa, é porque estão Julot. Quando o trouxeram até meu barraco, contei-lhe Texaco
reunmdo forças. Surgirão como os tontons macoutes, às cente- como acabo de contar para você, desde meu Esternome até meu
nas de milhares. E deixaremos de pulsar. Iréné. Ele estava sentado à minha frente, terminando de beber meu
Por isso é que vimos horrorizados os tratores da prefeitura velho rum, por vezes fechando os olhos com um resto de dor,
entrar em F~nds Populaire, empurrar a escarpa, e ir enchendo suas abrindo-os para olhar-me com grande acuidade. Quando me ca-
margens, ate construir uma estrada que cruzou por nós em dire- lei, seus olhos brilharam levemente. Agora que ele conhecia o fei-
ção de Pointe-des-Negres, expondo-nos ao olhar da Cidade e aos xe de nossas histórias, disse-lhe que podia soltar seus tratores, e
automóveis que circulavam por ali. Todos acorreram para perto tudo demolir, e tudo destruir, mas que soubesse que estaríamos
~e mim, ~~er~ndo saber por quê, obter respostas que os operá- de pé, à sua frente, eu a primeira, como desde sempre.
nos mumc1pa1s não podiam dar ("Está escrito Penetrante Oeste Ficou calado, depois apertou-me as mãos e saiu por Texaco.
e vai por ali, é tudo o que posso dizer" ... )... Eu não tinha melhor Passeou por Texaco-do-Alto, por Texaco-de-Baixo, examinando
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cada barraco, encostando nas estacas, avaliando nossos espaços que tudo seria melhorado mas conservado segundo sua lei primei-
nessa margem de Cidade. Indo, voltando, ficando horas inteiras ra, com sua vielas, com seus lugares, com sua memória tão velha
imóvel como tartaruga-do-mar quando o sol está quente. Foi di- de que a Martinica precisava. Disse-me que ajudaria cada barraco
versas vezes à Doum para tentar falar com Papa Totone, que de- a se tornar habitável, segundo o desejo dos habitantes, e a partir
saparecera, e parava diante de cada vestígio de uma história (nos- do início da construção. Disse-me que Texaco seria reabilitado em
sa história) cuja inscrição no mundo ele parecia procurar. Ocasio- seus locais e na cabeça das pessoas, como ocorrera com os man-
nalmente, eu me punha na janela para vigiá-lo, sem que ele sou- gues opacos. Disse-lhe que isso não seria fácil, que haveria ranger
besse, e Ti-Cirique mantinha permanentemente um olho nele a de dentes, lágrimas, recusas, que estávamos acostumados a lutar,
fim de me fazer um relatório detalhado. Depois, o Flagelo desapa- a gritar, e que íamos lutar a seu lado para avançar naquilo que ele
receu durante vários meses, deixando-nos numa angústia intacta. nos propunha, mas que o essencial aí estava, que entraríamos na
Mas os testemunhos do que se produzira durante sua chegada co- Cidade ao lado dele, com a riqueza do que éramos e com a força
meçaram a se encaixar. Sonore tinha finalmente um trabalho. Iré- de uma lenda que para nós era cada vez mais límpida. ·
né enfrentara na enseada um monstruoso tubarão que no dia se- Enquanto ele falava, meu segredo secreto ressoava em mim
guinte conseguiu trazer inteirinho, e que vendeu em postas de cin- como um trompete de orquestra latina. Eu sentia uma vaidade su-
co quilos (o que nos possibilitou terminar nossa casa de concre- bir de longe. Tive até a impressão de que, em algum lugar, meu
to). Julot-da-Peste teve um sonho no qual sua madrasta lhe fazia Esternome se punha a sorrir, que minha Idoménée arregalava olhos
um carinho (o único de toda a sua vida). Néolise Daidaine viu a de luz, e que nossas misérias (que floriram no correr do tempo
Virgem Maria vestida com o traje típico da martiniquense, debai- com tanta valentia) murchavam uma a uma como plantas sem água.
xo do limoeiro. Marie-Clémence ouviu murmúrios celestes lhe con- Pensei que se tratava de emoção de mulher velha, mas Cristo (a
tarem fofocas de todo o Caribe, em crioulo, em inglês, em espa- quem não pude me furtar de contar isso) disse-me que percebia
nhol e em francês, e recuperou sua juventude a fim de espalhar esse júbilo em cada um de seus ossos. Então, fiquei feliz.
tudo isso. Ti-Cirique viu Jacques Stephen Alexis chegar, em ple- Disse-lhe, para terminar, que me sentia velha. Que um dia,
no meio-dia, em pleno sol, para pedir-lhe sal e revelar que um tem- quando ele viesse, eu nií.o estaria mais lá. Pedi-lhe um favor,
poral levaria de roldão as canalhices dos Duvalier ... Uma concor- Oiseau de Cham, favor que eu gostaria que você anotasse e lhe
dância de pequenos fatos estranhos, de pequenas alegrias súbitas, lembrasse: que jamais em tempo algum, nos séculos e nos séculos,
de felicidades minúsculas, de desfechos diversos que transforma- não se tire desse lugar o nome de TEXACO, em nome de meu
vam aquela vinda no ponto de partida de um novo tempo. Foi Esternome, em nome de nossos sofrimentos, em nome de nos-
por isso que o Flagelo deixou de ser uma ameaça e que começa- sos combates, segundo a lei intangível de nossas mais elevadas
mos a chamá-lo de Cristo, assim, impensadamente, e a esperar que memórias e essa, bem mais íntima, de meu querido nome secreto
ele voltasse para nos trazer a Boa Nova da qual nada sabíamos. que - confesso-lhe finalmente - não é outro senão este.

. o NOME SECRETO. A Companhia de Luz e Força apareceu um


dia, ao longo da Penetrante Oeste fincou os postes e nos ligou
a luz. Foi uma alegria inacreditável. Mais tarde, vimos passar ho-
mens que olhavam, estudavam e desapareciam de novo, mas des-
sa vez estávamos confiantes: Cristo, em algum lugar da prefeitu-
ra, trabalhava por nós. Quando um belo dia reapareceu e dirigiu-se
até mmha casa, soube que me trazia a última nova: a Cidade, do-
ravante, aceitava-nos sob sua proteção e admitia nossa existência.
Na verdade, disse-me que a Cidade integraria a alma de Texaco,

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RESSURREIÇAO
(não no esplendor da Páscoa,
mas na angústia envergonhada do
Marcador de Palavras que
tenta escrever a vida)
Porque o tempo histórico foi estabilizado no nada, o escritor
deve contribuir para restabelecer sua cronologia atormenta-
da, isto é, revelar a vivacidade fecunda de uma dialética rei-
niciada entre natureza e cultura antilhanas.
Porque a memória histórica foi rasurada com demasiada fre-
qúDncia, o escritor antilhano deve ''vasculhar'' essa memó-
ria a partir de vestígios por vezes latentes, que ele detectou
no real.
Édouard Glissant

Descobri Texaco quando buscava o preto velho da Doum.


Haviam me falado dele como de um último Mentô. Queria en-
contrá-lo para recolher suas confidências (sem grandes esperan-
ças: o Mentô não fala, e, se fala, é demasiado secreto para ser inte-
ligível), mas sobretudo para que me ajudasse (mesmo em silên-
cios) a sair de um drama: a morte do contador de histórias Solibo
Magnífico;• eu tentava reconstituir as palavras da noite de sua mor-
te, e confrontava-me com a intransponível barreira que separa a
palavra dita do texto que se vai escrever, que diferencia a escrita
consumada da palavra perdida. Meus pobres rascunhos não resul-
tavam em nada que prestasse. Recusando essa pobreza, eu me di-
zia que um Mentô confrontado com essa exigência poderia pro-
vavelmente me indicar o essencial do trabalho que deveria ser feito
por um Marcador de Palavras diante de tal exigência.

(•) Solibo Magnifique, Gallimard, 1988.

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Penetrando na Doum, soube que o local estava deserto. Aban- Contou-me suas histórias de modo bastante dificultoso.
donado. Eu havia freqüentado tanto esses lugares de Força que Acontecia-lhe, embora me escondesse, ter falhas de memória, e
tinha sobre eles uma intuição imediata. Em minha vida cotidiana, se repetir, ou se contradizer. No início, eu anotava suas palavras
detectava a meu redor tantas ruínas culturais em nossas paisagens num de meus cadernos, depois obtive autorização para ligar minha
mudas, tantas mumificações lentas nessa terra à margem, que eu porcaria de gravador. Eu não podia contar com esse aparelho, mas
podia a qualquer momento, diante de um barraco, de um lugar, (apesar das demoras acrescentadas aos silêncios e do embaraço
uma paisagem, a foz de um rio, perceber a presença histórica ata- causado em minha Informante) ele compensava os desvios de mi-
cada por desgastes alucinantes. A Doum estava morta: nada havia nha atenção. A cada visita que fiz, levei-lhe livros sobre a história
a fazer. Um Mentô de grande classe, talvez um dos últimos, residi- do Caribe. Levei também meus livros, que leu com algum interes-
ra debaixo dessas muralhas que a Cidade• opunha à sua necessi- se, apesar das opiniões negativas .de Ti-Cirique. Obtive sua total
dade. confiança quando lhe contei a morte de Solibo e associei-o a meu
Os Mentôs sempre haviam mobilizado nosso imaginário mo- trabalho de reconstituição da palavra do Mestre. Isso nos aproxi-
saico. Haviam-lhe imprimido uma convergência - uma coerên- mou, pois ela, a vida inteira, perseguira a palavra do pai, e as pala-
cia. Na dispersão das crenças caraíbas, africanas, européias, chi- vras raras de Papa Totone, e os fragmentos de nossas histórias que
nesas, indianas, levantinas .. ., ataram fibras que deram boa corda. o vento levava assim, ao sabor das terras. Foi por isso que me con-
Diante do sonho de Cidade, os negros fugidos se haviam trans- fiou seus inúmeros cadernos, preenchidos por uma letra extraor-
formado em vadios, os contadores de histórias se haviam calado, dinária, fina, viva em seus gestos, seus furores, seus tremores, suas
um a um; eles, os Mentôs, souberam manter um resto de presen- manchas, suas lágrimas, toda uma vida escorada em pleno vôo.
ça (A Palavra), esperando talvez manifestá-la no cerne dessa no- Desconcertado por ter a responsabilidade de tais tesouros, nume-
va aventura que era o espaço urbano. Mas a Cidade - pelo feitiço rei-os, caderno por caderno, página por página, preguei fita ade-
manifestado por outro imaginário, pela irrupção uniformizante do siva nos rasgões, costurei as folhas esparsas, e encapei cada exem-
mundo em imagens invencíveis - sacudiu-os como pequenas on- plar com um plástico protetor. Em seguida, depositei-os na Biblio-
das e consumiu-os até o fim. O desaparecimento de nossos Men- teca Schoelcher. De vez em quando, consultava-os a fim de redi-
tôs revelava (ó, dor silenciosa) a'dominação de nosso espírito se- gir o que ela me dissera, comparar com o que eu havia imaginado
gundo formas novas, e desconhecidas de resistências tradicionais. entender, e retificar, se necessário, um esquecimento voluntário,
Os povos não eram mais ameaçados pela bota, pela espada, pelo uma mentira-reflexo.
fuzil ou pelas dominações bancárias do Ser ocidental, mas pela A Informante falava com voz lenta, ou às vezes muito rápida.
erosão das diferenças entre seus gênios, seus gostos, suas emo- Misturava o crioulo e o francês, a palavra vulgar, a palavra precio-
ções ... - seus imaginários. sa, a palavra esquecida, a palavra nova ... como se, a todo instan-
Saindo da Doum, senti Texaco. Aquele amontoado de fibro- te, mobilizasse (ou recapitulasse) suas línguas. Tinha períodos de
voz-não-clara, como certos grandes contadores de histórias. Nes-
cimento e concreto desenvolvia vibrações bastante nítidas. Vinham
de longe, do concerto de nossas histórias. Aquele lugar me intri- ses momentos, suas frases turbilhonavam ao ritmo do delírio, e
eu nada entendia: só me restava abandonar-me (despojando-me
gou.Tornou-se fascinante quando me apresentaram aquela que ia
de minha razão) àquele encantamento hipnótico. Por vezes, pedia-
se tornar minha Informante: uma velha negra cabra, muito alta, mui-
me para redigir certas frases tal qual, porém quase sempre
to magra, com um rosto grave, solene, e olhos imóveis. Jamais eu
solicitava-me que eu "arrumasse" sua fala num francês de estilo
havia percebido tanta autoridade profunda irradiar de alguém.
apurado - sua paixão fetichista. Minha utilização literária do que
ela chamava "sua pobre epopéia" jamais lhe pareceu óbvia. Tinha-a
(•)A língua crioula não diz la ville [a cidade], diz l'En-Ville: Man ka désann
an-vil, I ka rété an-vil, Misié séjan an-vil, An-vil Fodfwans ... L 'En-Ville designa, em alta conta, mas não percebia de maneira nenhuma sua estéti-
assim, não uma geografia urbana bem detectável, mas essencialmente um conteú- ca. Pensava (como Ti-Cirique) que era preciso conservá-la, mas
do, portanto, uma espécie de projeto. E esse projeto, aqui, era existir. que tentar escrever histórias tão pouco nobres era perda de tem-

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po. Entretanto, prestou-se de bom grado às exigências de meu tra-
balho e, mesmo quando entrei em contato com Cristo, de quem
1 repletas do espírito dos Morros. Também chorei de consternação
ao ver a que ponto os contadores estavam velhos, e o quanto suas
ela me falara (um urbanista da prefeitura de Fort-de-France, extre- vozes isoladas do mundo pareciam se afundar na terra como uma
mamente cortês, apreendendo a Cidade como crioulo visionário, chuva de quaresma atrás da qual eu galopava em vão.
e que me enviou preciosas notas), conversou sempre com ames- Em Texaco, que era reabilitado dia após dia, abriram um ser-
ma franqueza, sobre si mesma, sua vida íntima suas carnes, seu
1 viço de atendimento. Cada habitante expressava para assistentes
corpo, seus amores, suas lágrimas, tudo isso mesclado com a vida sociais, sociólogos, arquitetos, seus gostos, seus desejos, suas ne-
de seu Esternome, de sua Idoménée, e balizando com um cora- cessidades. Tudo aquilo era integrado à melhoria dos barracos cuja
ção em carne viva a história de Texaco. alma se respeitava. A prefeitura comprara a área da companhia de
Anotei a data de cada declaração. Numerei as linhas para es- '\
petróleo e organizava os barracos segundo a própria lógica dos
tabelecer cruzamentos úteis, pois a Informante não contava nada morros. Juristas reinventavam o direito de propriedade, visando
de maneira linear. Misturava os tempos, os homens e as épocas, adaptá-lo ao manguezal urbano: a terra era, ao mesmo tempo, de
passava semanas a detalhar um fato ou a me repisar uma desgraça muita gente e de ninguém; o que criava uma confusão jurídica que,
irrisória. E eu me perdia ali dentro, encantado por sua palavra e também nesse caso, exigia um vidente. As demãos de tinta, as ca-
sua deliciosa pessoa que eu passava horas a contemplar. Uma ca- sinhas novas, a absorção progressiva que a Cidade fazia daquele
bra de luta e coragem, imperial, cujas rugas brilhavam de força. local mágico remetiam-me à minha pobre solidão. Mais que nun-
Eu olhava seus olhos embaçados pelas lágrimas, lampejos que se ca, sentia-me inútil, como o fora atrás dos caixões da Informante
perdiam. Olhava sua pele que a velhice secava, e sua voz que vinha e do pescador de tubarão, ou diante de seus túmulos decorados
de tão longe, e sentia-me fraco, indigno de tudo aquilo, inapto de lambis, onde ainda encontro Julot-da-Peste e Ti-Cirique. Marie-
a transmitir tais riquezas. Quando ela se fosse, levaria sua memó- Clémence, Iphigénie-a-Louca e Néolise Daidaine também morre-
ria, como a levou Solibo Magnífico, e eu nada podia fazer, nada, ram. Só resta da guarda fundadora Sonore, que trabalha na prefei-
nada, nada, a não ser fazê-la falar, organizar o que me contava. tura e que, doravante, é a Antiga de Texaco. Mas conheço-a pouco.
Por um instante tive vontade de filmá-la, pois era-me cada vez mais Reorganizei a superabundante palavra da Informante em torno
clara a idéia de que o audiovisual oferecia novas chances à orali- da idéia messiânica de um Cristo; tal idéia respeitava o abandono des-
tura, e permitia se pensar numa civilização articulada a partir do sa comunidade perante aquele urbanista que soube descodificá-la.
texto e do falar. Mas isso exigia um material considerável; temi Em seguida, escrevi o melhor que pude esse Texaco mitológico,
provocar silêncios mortuários, imobilização de gestos, desnatu- dando-me conta de quanto minha escrita trafa o real. Ela nada trans-
rações de sua palavra imantada pelo olho de uma càmera. Então, mitia do sopro da Informante, nem sequer evocava sua densidade
só podia escutá-la, escutá-la, escutá-la, sentindo uma perturbadora lendária. E eu concordava com o julgamento de Ti-Cirique, esse que-
embriaguez ao desligar meu gravador a fim de melhor me perder rido Mestre, sobre minha incapacidade geral, por ele salientada em
dentro dela, e viver no mais profundo os cantos de sua palavra, longas epístolas. No entanto, suas frases encorajavam-me a prosse-
até aquele dia de novembro em que a encontrei morta de velhice guir a marcação dessa crônica mágica. Gostaria que fosse cantado
- seu pescador de tubarão enforcado a seu lado. Senti-me então em algum lugar, para ser escutado pelas gerações vindouras, que lu-
arrasado sob o peso da exigência que se me impunha. Pobre Mar- tamos contra a Cidade, não para conquistá-la (ela, que na verdade
cador de Palavras ... você nada sabe do que é preciso saber para nos engolia), mas para nos conquistarmos, a nós mesmos, no criou-
construir/conservar essa catedral que a morte rachou ... lo inédito que precisamos designar - em nós mesmos, para nós mes-
O velório foi feito segundo a tradição. Julot-da-Peste mandou mos - até nossa plena autoridade.
vir das enseadas d' Arlets um contador de histórias que não quis
revelar o próprio nome; dois outros vieram por conta própria do Morne Rouge,
Morro des Esses. Chorei de alegria ao ouvir durante uma noite, Fort-de-France,
em pleno Texaco, diante daquela morte tão vasta, essa enxurrada La Favorite,
de palavras lançadas de tão longe, isentas do toque da Cidade, agosto de 1987-janeiro de 1992

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AGRADECIMEN1DS

Ao senhor Serge Letchimy, cujos trabalhos de urbanismo e cujo pen-


samento nutriram essas histórias - com toda a minha estima e minha
admiração;
à escritora Dominique Aurélia, que me permitiu descobrir num de
seus belos textos a noção de l 'En-Ville;
ao senhor Stanley Sandford, ex-presidente da associação desportiva
e sociocultural de Texaco, que me decifrou o indizível desses lugares -
com meu infinito reconhecimento e minha amizadei
a todos os habitantes do Bairro Texaco que aceitaram satisfazer
minhas impossíveis curiosidades: senhora Mathilde Georges Sicot, se-
nhor Louison René, chamado Tubarão, senhora Démar Germaine Re-
né, senhor Emmanuel Laurence, chamado Mano, senhor Georges Nardy,
senhor Robert Nirenold, chamado Mêt-Wobe, senhor Guy Accus, cha-
mado Moreau, e todos os outros ...
- pedindo-lhes antecipadamente que queiram me desculpar por não
ter podido oferecer-lhes algo melhor - em homenagem e respeito.

P. C.

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