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TEATRO DE FORMAS
ANIMADAS
Ana Maria Amaral
Estamos diante de uma pesquisa originalíssima do ponto de
vista temático e plenamente desenvolvida pela autora em ter-
mos ensaístico e documental. Sobretudo nos chamou a atenção
a organização dos assuntos tratados dentro de um prisma muito
amplo, tanto do ponto de vista espacial - pois abrange os
fenômenos das máscaras, do teatro de bonecos e do teatro de
formas animadas tanto no Ocidente quanto no Oriente - como
do ponto de vista temporal, pois abarca fenômenos diversa-
mente situados quanto ao desenvolvimento histórico. Boa parte
desse trabalho se dedica a correntes modernas na arte das for-
mas animadas, de AIfred Jarry e Tadeusz Kantor.
Assim sendo, desde logo nos pareceu que seria importante a
publicação do livro, que traz uma contribuição considerável à
bibliografia brasileira de estudos cênicos e,de estudos artísticos
em geral.
ISBN 85-314 -0022 -8
Bibliografia.
ISBN: ll5-3 14-0022-ll
Direitos reservados à
Parte I: A MÁSCARA
1. A MÁSCARA E O TEATRO . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . .. 25
1. OS ANTECEDENTES . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . .. 177
Alfred Jarry........................................... 177
Edward Gordon Craig . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . .. 179
A Escola Bauhaus . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . .. 181
O Futurismo Italiano . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . .. 183
O Futurismo Russo . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . .. 187
O Dadaísmo . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . .. 189
O Surrealismo. . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . .. 190
Antonin Artaud . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . .. 191
A Palavra e o Teatro Não-Verbal 194
Alwin Nikolais......................................... 197
A Performance . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . .. 197
O Teatro de Bob Wilson . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . .. 199
O Ator e o Objeto no Teatro de Tadeusz Kantor . . . . . . . . . . . . . . . . .. 201
Conclusões. . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . .. 203
2. O OBJETO 205
Definições e Classificações . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . .. 205
Relação Homem/Objeto e Gesto . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . .. 208
O Objeto na Arte . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . .. 209
1. R. M. Rilke, Les élégies de Duma, trad. J. F. Angelloz, Paris, Aubier, 1943,p. 118. Para Rilke o ho-
mem é uma síntese de espírito e de matéria, sendo o espírito representado pelo anjo e a matéria
pela marionete ou boneco.
2. A. Artaud, O Teatro e seu Duplo, São Paulo, Max Umonad, 1985,p, 59.
19
.......
ber os arquétipos. É uma comunicação que não se dá através da
consciência racional mas, sim, através da não-consciência da maté-
ria, unicamente através de suas qualidades energéticas.
O teatro de formas animadas tem ligações com os rituais pri-
mitivos pelos seus aspectos animistas, seus objetos sagrados e seu
visual carregado de simbologias; tem também ligações com o teatro
de máscara e com o teatro de bonecos, tradicionais e místicos; com o
mundo da fantasia infantil e com o pensamento poético do adulto.
O teatro de formas animadas apresenta uma nova dramatur-
gia que resulta em vibrações espirituais no interior do espectador.
Como disse François Lazaro: "reflexos de luz lançados no ar diante
do olhar dos espectadores'",
21
Parte I
A MÁSéARA
1. A MÁSCARA E O TEATRO
lo Richard Southern: ..000 in an ord inary commun ication lhe mean ing is single and apparent, In lhe
work of art there are always two meanings, and lhe apparent mean ing is not lhe essential one but is
only a symbol for a hidden meaning." R. Southern. The Seven Ages ofthe Theatre , New York, HiII &
Wang, 1%3, po 240
Atitudes, palavras, ações é o que o homem usa e faz diariamente.
Mas na comunicação quotidiana o que acontece permanece no ní-
vel do aparente, e no teatro, como na arte, o aparente é apenas
simbólico, pois há sempre algo além do que se vê. É a idéia. São os
conceitos abstratos. É o invisível-intuído, tornado visível através de
imagens simbólicas, de sensações físicas e emoções.
Teatro é sempre uma experiência comum. Deve vir ao encon-
tro de um anseio coletivo.
Um ato teatral acontece quando o indivíduo que o executa se
modifica, ou na medida em que coloca uma outra personalidade em
lugar da própria, e as suas atitudes não são mais as habituais. É ou-
tro o seu tom de voz, é outra sua aparência, trata e representa outra
coisa que não a sua simples rotina. É o personagem. É quando o
homem deixa de ser simplesmente o que é, para aparentar ou sim-
bolizar algo além de si próprio e passa a revelar uma outra realida-
de. E essa outra realidade como que cria, nas pessoas a sua volta,
uma consciência coletiva, uma energia que une a todos. Sem esse
repassar de energias não existe o fenômeno teatral.
O teatro existe desde sempre. Desde que o homem passou a
sentir necessidade de sair de si, de se despersonalizar, de se disfar-
çar, de sair do seu dia a dia para viver novas experiências. E expe-
riências assim já ocorriam nos primórdios da história da humanida-
de, nos rituais. O homem então se transformava em deus, animal,
adquiria e dominava forças cósmicas. E essas transformações se da-
vam principalmente nas cerimônias rituais.
Rituais são cerimônias coletivas onde se realizam determina-
das ações que provocam na mente dos seus participantes uma
emoção que lhes confere uma espécie de iluminação, uma cons-
cientização que os transporta para algo além, capacitando-os a en-
frentar melhor as dificuldades do dia a dia. E, em se transforman-
do, transforma-se também todo o ambiente.
Nos rituais as ações se repetem. E se repetem porque repre-
sentam algo essencial e verdadeiro, num determinado momento e
para uma determinada comunidade.
26
o homem passa por fases. Nos primórdios ele estava imerso
na fase animista.
O homem primitivo sentia-se profundamente ligado à nature-
za. Tinha por tudo que o rodeava medo e respeito. Ao tentar inter-
pretar os fenômenos naturais a sua volta, as explicações que encon-
trava eram sempre soluções sobrenaturais. O ser humano era,
então, mais ingênuo, vivia mais próximo do sobre-humano. O dis-
tanciamento que sentimos hoje entre mundo natural e sobrenatural
foi-se dando ao longo do tempo. Para o homem primitivo, a comu-
nicação entre diferentes manifestações de vida, entre o mundo ve-
getal e o mundo animal, não era nenhum fenômeno estranho. A vi-
da terrena e a extraterrena pareciam estar mais interligadas. Forças
não-naturais encarnavam-se nos homens, nos animais, nas árvores;
e os homens também podiam se transformar em deuses, em árvores
ou em animais. Todas as coisas existentes, parecendo ser, como são,
oriundas de uma mesma energia, comunicavam-se, e as transfor-
mações que entre si se operavam eram simples conseqüência.
Acreditava-se que as árvores possuíam poderes, principal-
mente o poder de garantir a vida humana através de seus frutos. A
morte não era um fim mas era vista apenas como uma mudança na
forma de existir. O morto continuava a pertencer à família e à sua
comunidade, só que de forma não visível. Tinha poderes de volta e
essa volta se dava através de representações suas em esculturas,
imagens, ou através dos objetos que lhes pertenceram em vida. Es-
sas transformações se operavam principalmente durante as cerimô-
nias rituais.
Os rituais se utilizam de gestos, ações, ritmo, palavras, objetos
e máscaras. Através dos rituais os mitos eram transmitidos e revivi-
dos. Mito e rito, sempre ligados. Explicações de fenômenos naturais
e suas relações com o sobrenatural.
De acordo com James Frazer, os rituais sofreram evoluções.
Nos mais primitivos não existiam intermediários, qualquer um os
operava; prescindiam também de locais especiais; ocorriam em
qualquer lugar, sem templos, numa clareira da floresta ou em meio
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à comunidade', Não havia deuses, mas apenas energias que desper-
tavam e garantiam a vida, energias das árvores, das ervas, do fogo,
do ar, da água, da terra. Com o tempo, os rituais se modificaram.
Começaram a surgir os magos ou sacerdotes, homens com poderes
especiais, capazes de estabelecer uma comunicação entre o mundo
material e o mundo espiritual. Os espaços onde eles eram realiza-
dos passaram a ser determinados, sagrados - dando eventualmente
origem aos templos. Buscavam-se então não apenas energias, mas
contacto com espíritos, espíritos da natureza ou dos mortos.
Em alguns rituais os mitos eram transmitidos através de nar-
rativas com estrutura dramática, isto é, com um começo, um meio e
um clímax final. Mas, evoluídos, ou mais primitivos, qualquer que
seja o seu nível, todo ritual se realiza na crença de que, através de-
le, o curso das coisas pode ser alterado. Estranhas transformações
nele se operam. É a magia.
Quando se cria uma ligação entre o mundo natural e algum
outro, desconhecido, ocorre o fenômeno da magia.
Magia é a comunicação entre duas realidades diferentes.
E mágicos são aqueles que têm o poder de detectar as qualidades
naturais e sobrenaturais da natureza, de perceber as influências dos
astros sobre nós, de detectar as propriedades de certas plantas ou
frutos, não só para alimento como também para a cura de doenças.
Os mágicos podiam influir também em certos fenômenos naturais,
propiciando chuvas e colheitas.
James Frazer assinala dois princípios básicos na magia: o
princípio da similaridade e o princípio da contigüidade',
Pelo princípio de similaridade, simpatia ou afinidade, seme-
lhante atrai semelhante, isto é, pela imitação de um fato, esse fato
tende a se reproduzir. Assim se explicam ações e movimentos repe-
titivos das danças rituais, quase sempre uma representação de acon-
tecimentos míticos. O que se quer ver realizado é encenado. Aspec-
tos do sobrenatural são representados para que, através de sua re-
2. James Frazer, Tbe Golden Bough, New York, Macmillan, Abridged ed., Cap. XLIV, 1963, p. 476.
3. Idem, Cap. I1I, pp . 12-52.
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produção, eles se manifestem, James Frazer nos relata sobre índios
da Colúmbia Britânica que têm o costume de reproduzir imagens
de peixes, esculpidos em madeira, e depois lançá-los ao rio, ou ao
mar, numa ação sempre acompanhada por um ritual de orações pa-
ra que naquele local a pesca se torne abundante",
Pelo princípio da contigüidade, qualquer pessoa ou objeto
que alguma vez tenha mantido entre si contato físico, ficam sempre
ligados um ao outro, impregnados um do outro. Como os objetos
que pertenceram a um morto ou como as relíquias de santos, cos-
tumes até hoje mantidos.
Esse processo mágico, essa comunicação, essa capacidade de
captar vibrações e provocar mudanças ocorriam principalmente du-
rante as cerimônias religiosas, pois todo o ambiente favorecia essas
transformações. Com cantos, danças e pantominas imitavam-se os
animais para se adquirir as suas energias; ou representavam-se as
características dos antepassados para que eles viessem e ajudassem
a comunidade. E nessas cerimônias, a máscara tinha um papel pre-
ponderante.
7. E. T. Kirby,''The Mask, Abstract Theatre, Primitive and Modem ", Theatre Drama Review , New
York, sept., 1m, pp. 5-21.
33
À medida que os rituais decaíram, conforme observou Odette
Aslan, a máscara se dessacralizou e deixou de representar o divino,
passou a representar apenas conceitos genéricos - nunca deixou
porém de trazer em si a essência, de um fato ou de determinado ti-
po ou personagem. E pelo fato de trazer sempre em si a essência de
um fato ou de um caráter, ela representa vários fatos e vários tipos
da sociedade, nunca um só fato, um só homem em particular.
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2. A MÁSCARA NO ORIENTE
Bali
8. A tradição do teatro de Bali continua viva, ainda hoje , mas não sabemos até que ponto todos os
seus antigos rituais se mantiveram. Sabe-se que um espetáculo de Bali, apresentado em Paris em
1931, provocou em Antonin Artaud, um grande impacto. Bali 6 uma das muitas ilhas da Indonésia,
e fica próxima da ilha de Java onde também existe, em nossos dias , uma tradição muito rica em tea-
tro de sombras. Tamb ém em Java há um culto à árvore. Toda apresentação de teatro de sombras
de Java se inicia com a imagem do ganungan, que simboliza a árvore da vida. Ver Parte 2, p. 88.
36
· .
Um dançarino, escolhido entre os melhores, convida a máscara de ministro para
dançar. Primeiro olha longamente a máscara e se impregna dela a tal ponto que se começa
a notar, em seu corpo e em seu semblante, traços da máscara. E à medida que absorve o
personagem ou que passa a existir uma fusão entre ambos, o dançarino coloca a máscara,
perdendo então toda sua identidade. Seu corpo fica possuído pelo personagem.
Kathakali
9. Jacques Fassola, "Le théâtre masqué 'Topeng' de Bali", in O. Aslan & D. Bablel, Le masque, p. 92.
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ve e penetra o espectador. É um olhar treinado para atingir grandes
distâncias.
Assim como na máscara facial, os olhos se sobressaem no ros-
to e transmitem emoções, os dedos, nas mãos, têm também uma
função importante.
São muitos os signos que compõem as técnicas de atuação de
Katbakali. Movimentos de cabeça existem, pelo menos, nove; seis
os possíveis movimentos com as sobrancelhas e quatro as posições
de pescoço. Os sentimentos fundamentais que expressam são nove:
amor, desprezo, compaixão, heroísmo, cólera, medo, desgosto, des-
lumbramento e serenidade10.
O silêncio e o recolhimento ajudam o ator de Kathakali a en-
contrar em si o vazio necessário para que forças luminosas dele se
apossem e ele consiga assim captar certas energias que acabam por
se manifestar através dele. "O ator de Kathakali coloca o mundo
dos deuses ao alcance dos homens", disse Milena Salvini",
10. Dados colhidos em Milena Salvini, "Les masques vivants du Kathalcali", em O. Aslan & Bablet,
op. cit., p. 98.
11. Idem, em O. Aslan & D. Bablet, op. ciL , p. 99.
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Teatro Nó.
(Fotos ée Jap âoIlustrada , v. 12, n~ I .
Cortesia do Consulado do Japão, S.P.).
teatro nô, um teatro de ator e máscaras. O erótico é encontrado no
kabuki, um teatro popular, que por sua vez é uma decorrência do
bunraku, teatro de bonecos. A dança pode ser encontrada em todas
as manifestações teatrais japonesas e ela vem sempre acompanhada
de máscaras. Portanto, a máscara está sempre presente nos princi-
pais elementos de teatro japonês.
A máscara no Japão encama dois princípios: monomane, o
aparente, o exterior; e yugen, o invisível, o interior. A máscara é
sempre uma busca da essência.
As danças são muitas. As principais: kagura, saragaku, denga-
ku; gigaku, bugaku.
Nas danças do gigaku, as máscaras representam animais mi-
tológicos, por exemplo, o leão, um símbolo do guardião fiel. A ori-
gem do gigaku é coreana e indiana.
Bugaku é outra dança mascarada, essa de influência chinesa,
e vem acompanhada por instrumentos de percussão e sopro, além
de um coro. Sua músicaé muito refinada e melodiosa.
O teatro nÔ, ao mesmo tempo uma manifestação de música e
dança, originou-se entre a elite de Kioto. Busca-se nele um refina-
mento físico e espiritual e há a preocupação de se aliar a beleza
com efeitos sonoros. O teatro nô pretende mostrar o corpo humano
de uma forma diferente mas, ao contrário da tradição indiana, evi-
ta-se toda e qualquer expressão fisionômica; usa apenas gestos co-
dificados. O corpo é mostrado de maneira concisa, austera. E para
se atingir essa contenção, o ator precisa de grande concentração es-
piritual.
As vozes são trabalhadas para que emitam sons diferentes dos
sons naturais. Buscam-se efeitos vocais não humanos.
O teatro nÔ usa o grito como liberação do inconsciente, como
uma quebra das amarras do consciente.
A máscara é o seu elemento básico. Apenas os personagens
masculinos são apresentados sem máscaras. Os outros personagens,
os femininos, os anciões, os personagens fantásticos, são máscaras.
Quando o rosto de um ator nô está visível, isto é, quando in-
terpreta um papel masculino, ele se mostra de forma absolutamen-
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te impassível. E para se conseguir essa impassibilidade são necessá-
rios longos anos de treinamento. Envolve todo um processo de de-
sindividualização do ator.
Antes de entrar em cena, o ator contempla longamente o seu
personagem. Observa-o. Estuda-o. Depois de muito tempo de con-
centração, coloca seu rosto na máscara. (Não a máscara em seu
rosto.)
As máscaras têm aberturas muito pequenas para os olhos, e
isso faz com que o ator olhe mais para dentro de si, mais para o seu
mundo interior do que para o exterior. A pouca visão leva-o a
maior concentração",
As máscaras são levemente expressivas. Sutilmente expressam
sentimentos de tristeza, doçura, alegria, ciúme etc., em pequenas
graduações, conseguidas por detalhes de modelagem e pintura.
Uma peça nô é dividida em três partes. lo, ha, kyu. Isto é,
começo, meio e fim.
Uma característica sua é que os seus protagonistas estão
sempre a caminho, seja atravessando uma ponte, um jardim, ou
simplesmente o palco. Os temas se referem sempre a alguma coisa
do passado, numa ação não-realista, poeticamente acompanhada
por um coro. O ritmo musical desse coro determina os movimentos
dos atores. É um teatro deliberada e excessivamente lento. Cada
pequeno gesto de pés, mãos, braços ou rosto é cuidadosamente
medido e estilizado. Um passo pode significar toda uma viagem; e o
mínimo giro de cabeça, uma negação.
As figuras são dignas e austeras. Seus temas são o pecado, os
problemas da alma, a vida depois da morte.
É uma linguagem difícil. O seu recitativo segue normas rígi-
das de sonorização. Tem uma grande preocupação com a beleza vi-
sual das figuras dos atores e com a harmonia musical.
O teatro nô ainda existe; sua tradição não foi interrompida
nem modificada. E sua descoberta por artistas europeus, no início
12. o mesmo propõsíto ocorre nas máscaras indígenas brasileiras. Ver p. 32, deste capítulo.
43
do século, provocou grande impacto no desenvolvimento do teatro
contemporâneo.
Entre outras manifestações dramáticas tradicionais do Japão,
resta lembrar ainda a comédia, com as máscaras kyogen, que apare-
cem nos interlúdios das peças nô. São máscaras cômicas e não vêm
acompanhadas nem por danças nem por música. São sátira aos cos-
tumes. Hoje as máscaras kyogen são apresentadas independente-
mente do teatro nô.
Máscaras Gregas
Máscara do Xi ng u,
trih u k ul a nal n .
Máscaras indí genas brasi leiras
Fotos da Exposição de Máscaras Brasileiras,
I~ • _. . tl.f o\ co", ( 0 .- .• : .. . "", ru'h o_l Dh ,.,.~ ; ~ \
Dos Mimos Dóricos e dasAtelanas à Commedia dell'Arte
Teatro Literário
o Ressurgimento da Máscara
No início do século XX~ houve uma volta à máscara. As
razões foram várias.
Principalmente influiu a descoberta da arte primitiva africana
e sua assimilação por artistas europeus, os dadaístas, os cubistas e
futuristas. O rosto passou a ter, na pintura, uma relação diferente
com o corpo.
Também influíram os contatos com o teatro nó do Japão, com
Bali, Java.
Outra influência é atribuída, por Denis Bablet, ao ressurgi-
mento do esporte no final do século passado. Segundo ele, o retor-
no dos jogos olímpicos em 1896~ provocou uma conscientização do
corpo. Essa preocupação se refletiu na arte, como se pode ver nas
esculturas de Rodin ou na dança de Isadora Duncan. Houve como
que uma descentralização do corpo humano, o rosto perdeu sua he-
gemonia e passou a ser simples parte de um todo.
Em 1908, Edward Gordon Craig começou a lançar suas idéias
através de uma revista por ele mesmo editada e intitulada The
Mask. E em 1914, juntamente com Appia, apresentaram, numa
exposição internacional de teatro, no Kunstgewerbe Museum de
Zurich, entre obras suas e bonecos javaneses, também uma coleção
de máscaras orientais e africanas. E no catálogo dessa exposição,
Craig, referindo-se às máscaras de Achantis, escreveu:
13. Apud D. Bablet, "D'Edward G. Craig au Bauhaus", em O. Aslan & D. Bablet, op. cit., p. 137.
14. Maeterlinck, "Menus propos", apud D. Bablet, idem, em O. Aslan & Bablet, op. cit., p. 140.
15. Idem, ibidem.
52
Na verdade, a intenção de Craig ou de Maeterlinck não era a
de abolir o ator, mas a de mostrar a vida pela ausência mesma da
vida.
Grotowski
16. G. Fabn:, "Les masques dans le théitn: amiricain d'aujourd'hui", em O. Aslan &; D. Bablet, op.
. ciu, pp. 249-250.
56
· Máscaras-monstros, animais, ogres, demônios ou espíritos re-
presentam forças do bem e do mal.
Diferentes escalas de tamanho, tanto para máscaras como
para bonecos são metáforas que o Bread and Puppet constante-
mente usa.
Na manipulação das grandes máscaras ele usa um complicado
sistema de varetas, conduzidas por muitos manipuladores, de forma
que os seus movimentos são sempre muito precisos. Esses movi-
mentos são também simbólicos. Nas ações do quotidiano, os gestos
são dos mais simples possíveis.
Sua ligação com a escultura determina movimentos lentos.
O gesto é a vida da máscara, e sua expressividade pode ser tal
que prescindem de palavras. É um teatro de gesto e ação, sem diá-
logo, às vezes, alguma narração.
As mãos fazem parte da máscara", É importante a relação
máscara-mãos. As mãos exprimem oração, desolação, esperança,
alegria, sofrimento, ameaça, recolhimento, repulsa. As mãos fazem
sobressair a imobilidade dos rostos rígidos e lhes conferem assim
maior força dramática.
No Bread and Puppet Theatre os gestos podem ser divididos
em solenes e não-solenes. Gestos solenes são os que expressam o sa-
grado, a beleza. E gestos não-solenes são a não-consciência do sagra-
do ou são gestos cômicos, terríveis, brutais, sacrílegos ou ridículos.
O solene e o não-solene vêm sempre juntos, como a alegria e a dor.
Os gestos podem ainda ser vitais e não-vitais. Os vitais são
aqueles com os quais algo se cria, e não-vitais, aqueles que destroem.
Peter Schumann usa também máscaras vivas, isto é, o rosto
do próprio ator. Pelo menos nos raros momentos, quando recorre a
um texto para alguma narração. Ao falar, o ator mostra seu próprio
rosto, impassível e assim que termina sua fala cobre-o com uma
máscara que traz à nuca, que é a máscara do personagem que re-
presenta e, com ela vestido, parte depois para a ação.
É um teatro épico narrativo.
IFo tos d o Br cad and Punnet Theatre cedida s nelo eru oo.I
Os objetos de cena só são usados quando têm função muito
forte. São então ritualisticamente trazidos à cena. Por exemplo, há
uma cena em que as lágrimas de um rei são cerimonialmente trazi-
das numa bandeja e colocadas, uma a uma, em sua face.
Sons e música são usados em substituição às palavras, às ve-
zes juntamente com um coro, cujas palavras nem sempre se enten-
de, mas algo se "compreende", pelo clima e pelo tom.
Para iluminação, usam luz geral, simplesmente. Luz especial,
quando ocorre, é para dirigir a ação, faz parte da ação dramática.
É, então, uma luz móvel dirigida pelo ator do próprio palco.
O seu espaço cênico é aquele onde a ação acontece. Não é
planejado, é apenas onde a ação se desenvolve. Pode ser determi-
nado por um foco, dentro da área cênica representada por um
telão, um círculo ou uma mesa e duas cadeiras. Para o Bread and
Puppet qualquer espaço é bom, exceto o tradicional. Espaço ideal
mesmo é a rua, ao ar livre. E quando usam espaços fechados, quase
sempre iniciam os seus espetáculos com paradas ou desfiles de rua.
Na década de sessenta o Bread and Puppet Theatre teve um
papel importante na conscientização do povo americano contra a
intervenção dos Estados Unidos na Guerra do Vietnã. Seu prestígio
chegou à Europa a partir do Festival de Nancy, em 1968.
Para Peter Schumann, o teatro é tão fundamental quanto o
pão para a sobrevivência, ou tão essencial como a religião ou a ne-
cessidade de lazer.
É um teatro orgânico. Desde o pão, feito semanalmente pelo
grupo e distribuído ritualmente ao público, às máscaras, bonecos,
adereços, cartazes, à iluminação, instrumentos musicais que inven-
tam ou programas e cartazes, tudo é feito à mão, por todos.
O seu tema principal é a santidade da vida, a dignidade hu-
mana. Em suas peças não existem heróis, mas apenas o homem e a
mulher comum. Defende o direito à vida simples. O quotidiano é
algo essencial. Vê a simplicidade como uma forma de resistência à
violência, à guerra. Nessa simplicidade não existe um intelecto
consciente, mas apenas o instinto de amor e sobrevivência. A vida
59
M "OIS num protesto co ntra a guerra do Vietn ã.
( - 1111 ,I- O I/r Dom cst ir Rcssu rrr rtion Circus (Fo to de R. Il o war d).
é sagrada mas é imperfeita pela oposição vida/morte, sempre pre-
sente. Daí a necessidade de transcendê-la.
A respeito dele, assim se expressou Geneviêve Fabre:
De todos os grupos da avant-garde americana, o Bread and Puppet é aquele que le-
vou mais longe as suas reflexões sobre a máscara. Faz dela um instrumento de crítica à s0-
ciedade americana ou a todas as sociedades que, como a americana, procuram mutilar e ar-
rasar o homem 18• -
Mummenschanz
Putxinelis Claca
19. Há, por exemplo, nos diz Michel Bührer, um número em que um personagem descobre, de repen-
te, que todos os rolos de papel higiênico do mundo foram enrolados ao contrário, e jogam para o
público esse terrivel problema ... e juntos o vão resolvendo. Outra cena uma história dos objetos
é
de um quarto, que tomam vida. Alguns em harmonia, outros em desarmonia com seu dono - e
existe aí uma critica às pessoas que não têm nenhuma relação com os objetos que usam e as ro-
deiam, ou que deles apenas se utilizam para logo em seguida jogá-los fora, enquanto outras, ao
contrário, usam sempre o mesmo guardanapo, sempre a mesma xícara e nunca trocam de carro.
62
tras onde há muito dinamismo. Por exemplo, uma cena em que os
personagens vestidos com máscaras, representando o povo, prepa-
ram uma emboscada contra o ditador, penetram sutilmente o palá-
cio, esgueirando-se na penumbra do palco, em tempo lento; repen-
tinamente, irrompem e provocam uma tremenda algazarra, mas, as-
sim que percebidos pelos guardas, desaparecem, instantaneamente.
Outra cena se segue, com Pai Ubu e seus ministros, dinâmica e hi-
lariante.
Uma única frase é dita no final do espetáculo: "Mori el Mer-
ma", que em catalão significa "Que morra o ditador".
Outros Grupos
20. Não pretendemos apresentar aqui uma relação completa de todos os grupos que no teatro con-
temporâneo, fundamentalmente, se utilizam de máscaras, pois só isso já seria em si outra pesqui-
sa, mas tratamos apenas de alguns com os quais tivemos maior contacto; ou que apresentam, entre
si, aspectos contrastantes.
63
Barcelona, Espanha, T eatro de La laca .
Ce na dc M or ; ri Mr rma, perso nagens
construfdos a partir de desen ho s de Joan Mir ó.
Experiências de A. M. Amaral COIII ai""" , d.. l I, 1'1"
de Artes Cênicas da ECA/ US I' , Fnu tnsi., I /li , .1,
Experiências do Grupo Casulo Bonecos, Palomares ,
1979/ 111 , dir. dc A. M. Amaral.
A prime ira foto I 1<-. "
Santana do Parnafba, s.r., máscaras ri,,,11I ' ".,
Holmcs Villar para festas I'"plllll
As fotos seguintes refer em -se
Tatuí, S . P. máscaras em desfile, cabeções e fi ' Ul II
do Cordão de Ui hos,
Parte II
o TEATRO DE BONECOS
1. TERMINOLOGIAS E NATUREZA
DO TEATRO DE BONECOS
Terminologias
1. o boneco tanto pode ser antropomórfico como zoorn órfico, mas aqui nos referimos sempre ao ho-
mem , pois estamos tratando mais do boneco enquanto reflexo humano.
a boca do boneco. O ator vestido com o personagem-boneco pode
ser um boneco-máscara ou uma mãscara-corporal-.
A manipulação de um boneco é sempre ao vivo, ou seja, é fei-
ta no ato da apresentação, esteja o ator visível ou não. A animação
em teatro se distingue assim da animação em cinema. No cinema,
mesmo que as figuras sejam originalmente bonecos, ou figuras em
terceira dimensão, a sua animação ocorre por processos técnicos,
por foto, filmagem ou eletronicamente.
Num teatro de bonecos, o boneco não é nunca mecanizado,
eletrônico, nem autômato', Distingue-se também de boneca, objeto
lúdico infantil, pois, no jogo infantil a animação que ocorre é uma
relação íntima existente entre a criança e o seu objeto, e independe
de público.
O boneco se distingue também da efígie, das imagens de
adorno e da escultura, pois o boneco em teatro nunca é estático. É
móvel, mas de uma mobilidade diferente da de um autômato, ou de
bonecos movidos à pilha ou eletrônicos. A mobilidade do boneco,
objeto teatral, tem como origem a energia consciente do ator-ma-
nipulador.
Manequim é uma figura feita na escala humana, não animada
mas colocada em cena como numa vitrine, sem movimentos.
o Boneco e o Ator
Realismo não é a linguagem do teatro de bonecos. E o que
nos prende a um boneco é diferente daquilo que nos atrai a um
ator.
Existem algumas diferenças entre o ator e o boneco. Emile
Copfermann observa:
2. Em inglês existe o termo puppet que não se vincula ao termo doll. Em português , não temos uma
palavra exclusiva para teatro de bonecos. Títere seria a mais apropriada mas não é usada por se
aproximar muito do espanhol. E em congresso realizado em Ouro Preto, 1979, pela Associação
Brasileira de Teatro de Bonecos foi decidido que a palavra boneco seria a mais indicada.
3. Autômatos ou bonecos mecanizados são também usados no teatro de objetos, mas como objetos.
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"O ator é; sua essência é ser." Mas ele não é o personagem,
ele apenas representa um papel. "O boneco, ao contrário, não é,
sua essência é o não-ser." "Mas ele não interpreta um papel, ele é o
personagem o tempo todo." Disse ainda Copfermann: "Um ator
imóvel na cena é um corpo, um boneco imóvel na mesma cena é
apenas um objeto'", O que os liga é sempre a energia do ator,
transmitida através do movimento.
Massimo Schuster faz também uma comparação entre o ator
e o boneco dizendo que:
A força do boneco está em seus próprios limites, na sua incapacidade de poder fazer
qualquer coisa que não seja estritamente aquilo para o qual foi feito. E, paralelamente, a
fraqueza do ator reside exatamente nas suas enormes possibilidades, pois podendo fazer mil
personagens diferentes, ele não é nunca nenhum delesê,
Dramaturgia
7. M. Schuster, ibidem.
8. Ver nota 1.
9. Henrik Jurkowski, "Le language du théâtre de marionnette contemporain", UNlMA Informations,
1978, pp. 2-10.
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dessa sua voz. Sua animação depende de um ator, quase sempre au-
sente da cena, invisível.
É uma arte ambígua, está entre o ser e o não-ser: entre o céu
e a terra; entre homens mortais e as almas dos seus antepassados; é
fenomênico e ao mesmo tempo é energia divina; está entre a reali-
dade e a fantasia.
Essas contradições perrneiam-sc ao longo de sua história. No
Oriente, ligado ao teatro sacro, é uma arte tradicional muito con-
ceituada. No Ocidente, mais ligado ao povo e à criança, é, talvez
por isso mesmo, considerado uma arte medíocre.
Mas, sagrado ou profano, erudito ou popular, para crianças
ou para adultos, o teatro de bonecos trata sempre do não-real.
No Oriente, caracteriza-se pelo sobrenatural, é a busca do
homem por uma outra realidade, é a sua relação com o divino.
No Ocidente, reflete a busca do homem em si mesmo, em sua
realidade terrena. Principalmente trata das suas relações sociais.
Turquia, teatro de sombras, Karago z.
2. O BONECO NO ORIENTE
China
10. Na elaboração deste item nos baseamos em R Helmer Stalberg. "An apprec iation of the arte of
the chinese puppetry", in Puppetry o[ China, Georgia . Cenler ror Puppetry Arts , 1984. E também
em Jacqucs Pimpaneau, "Les marionncttes em Chine", em Paul Foumel , Les mario nneues, Paris,
Bordas, 1982.
morte. Mestre Yan teria então revelado ao rei o mecanismo de suas
figuras, acionadas por controle interno.
Há também uma lenda que data da dinastia Han, mais ou
menos do século 11 a.c. Diz-se que o imperador Wu, desesperado
pela morte de sua imperatriz teria oferecido uma fortuna a quem
pudesse restituir-lhe a vida. Surgiu então um bonequeiro que, com
uma réplica da silhueta de sua amada, apresentou-a ao imperador
no teatro de sombras. O imperador, fascinado, passou a assistir to-
das as noites aos seus espetáculos.
Das cerimônias funerárias, os bonecos passaram, depois, a ser
usados em espetáculos.
O teatro de bonecos da China sempre esteve ligado à ópera.
E a ópera chinesa, por sua vez, era muito ligada à dança. Na ópera,
as vozes humanas buscavam um timbre não natural, não realista.
Os temas eram contos tradicionais fantásticos, tirados da mi-
tologia popular. Os espetáculos eram apresentados em capítulos
que levavam de duas semanas a dois meses. Tratavam de sentimen-
tos patrióticos, da fidelidade a um senhor ou a um amigo, da fideli-
dade feminina ou de sentimentos filiais.
Do período da dinastia Tang (618-917 d.C.) ao período da di-
nastia Song (960-1279 d.C.), seu repertório era o mesmo que o dos
contadores de história profissionais, isto é, mitos e lendas. A partir
do século XII, começaram a surgir dramas mais humanos. Os mitos
e as lendas vinham então misturados com histórias de amor e crime,
heróis e bandidos, mas nunca deixando de existir o fantástico e o so-
brenatural. Não havia, no entanto, uma dramaturgia aprimorada. As
cenas se repetiam, estereotipadas. Não houve, no teatro de bonecos
da China, nenhum dramaturgo como vimos surgir depois no Japão.
Os personagens representavam tipos: os velhos, os guerreiros,
o jovem letrado, os personagens femininos e os palhaços. Dentre
eles, apenas os palhaços mantinham um tom natural de voz, todos os
outros apresentavam um timbre musical, não humanamente natural.
Os espetáculos vinham sempre acompanhados de instrumen-
tos de percussão, sopro e corda: flautas, violas, oboés, címbalos e
gongos.
78
China. teatro d- ..".1.. as. cena de A Sombrinha Emp restada
(Postal da cole .. li.. mer ican Muscum o f Natural History , N.Y .).
Ao lado: bon« .. ,I. I" va , hom cm - palco, um a tradi ção chinesa
Na China foram usados todos os tipos de bonecos, de vara,
fio, luva e sombras. O teatro de sombras tinha efeitos mágicos
(principalmente sob a luz bruxuleante das velas ou lamparinas)
muito apropriados para as cenas fantásticas. As marionetes eram de
um refinamento e de um mecanismo técnico surpreendentes. Os
primeiros bonecos de vara eram manipulados horizontalmente.
Um boneco chinês é uma obra de arte onde se combinam a
escultura, a pintura, a técnica com um mecanismo sofisticado, seus
movimentos e a riqueza das vestes, muitas vezes bordadas a ouro.
O objetivo principal do teatro de bonecos chinês nunca foi o
simples distrair, ou dar dimensão cênica às histórias de seus ante-
passados e heróis. Os bonecos tinham um caráter religioso e um
forte poder mágico. Os bonequeiros gozavam de um prestígio que
os equiparava aos mágicos. Eles possuíam dons mediúnicos.
Os personagens eram considerados reencarnações de espíri-
tos e cabia ao bonequeiro saber controlá-los, pois os espíritos se
serviam dos bonecos para se manifestar. Isso levava os bonequeiros
a trancá-los, com o rosto coberto por um tecido, em caixas envoltas
por um papel encantado, para que não despertassem o desejo dos
espíritos em reanimá-los por si mesmos, como fantasmas. O poder
dos bonecos, porém, quando bem dominado pelos bonequeiros,
podia ser benéfico. Os bonequeiros eram freqüentemente requisi-
tados a se apresentarem em cerimônias de exorcismos, e eram os
responsáveis pela "limpeza" de casas ou de determinados ambien-
tes, expulsando os maus espíritos.
Hoje em dia são poucas as notícias que se tem do teatro de
bonecos da China, mas recentemente esteve entre nós um grupo, o
teatro de bonecos de Pequim. Dentro de temas tradicionais, esse
grupo apresentou uma lenda moderna sobre o tema de guerreiros,
e duas cenas, sem palavras. Uma delas, A Tartaruga e a Cegonha é
uma obra-prima de manipulação, assim como nas cenas faladas há
preocupação com a interpretação vocal, sendo os seus atores esco-
lhidos entre os melhores. Lembrando o teatro de sombras, fazem
uso de luz negra, uma técnica originária da Tchecoslováquia, hoje
difundida entre a maioria dos grupos de teatro de bonecos contem-
80
porâneos. Pelo menos em suas relações com outros países socialis-
tas, a China parece aberta a influências ocidentais.
Índia
Java
11. Por que a sombra? Qual a ligação de teatro de sombras com esse tipo de culto ou tradição?
Em J. G. Prazer encontramos certas conceituações da sombra que, de certa forma, explicam a
magia do teatro de sombras.
Segundo Prazer, o homem primitivo atribuía os processos da natureza inanimada como sendo
resultantes da ação de pequenos seres vivos que habitavam o âmago de cada fenômeno do mundo
temporal. Assim, a vida de um animal era explicada por haver dentro dele um outro animal vivo e
menor que o movia. Da mesma forma, o homem também tinha dentro de si um outro homenzinho
que o fazia viver. Esse pequeno animal ou pequeno homem seria a sua alma. Acreditava-se ainda
que a sombra era reflexo dessa alma. Tanto assim que em certas comunidades tomava-se cuidados
muito especiais para não afugentar ou perturbar as almas refletidas nas sombras.
Em Amboyna e em Uliase, duas ilhas localizadas perto da linha do Equador, não se sai de casa
ao meio dia porque , nessa hora, há o perigo de (como não há projeção de sombra) se perder a al-
ma. A sombra, sendo o reflexo da alma, também a expõe ao perigo. Em Nova Caledônia, uma ilha
do Pacífico, na tribo dos Basutos, acredita-se que os crocodilos têm o poder de levar as almas dos
homens, por isso sempre é preciso cuidado ao atravessar rios, para que as sombras das pessoas
não sejam projetadas em locais onde existem crocodilos. Na China, nos funerais antigos, momen-
tos antes de se fechar o caixão, os presentes tomavam cuidado de se afastar para que a sua sombra
não estivesse dentro do caixão e fosse assim encerrada e levada com o morto .
Esse sentido da sombra está também vinculado com reflexos na água, com espelhos, e, mais re-
centemente, com a fotografia. E o boneco, imagem ,do homem, é seu reflexo. No teatro de som-
bras, o boneco acumula um duplo sentido, encarnando o homem e sua alma.
84
) Java, "'11 )'.", . •
I crso nagcm <I - Ica 11'".1 ,
" I lU .I( 0 I111111
I> "Ia lh, da , a h. "
Java, wayang golek ,
Personagem de teatro de vara.
Boneco de fios , Bunna .
As cerimônias ou apresentações acontecem do pôr-do-sol ao
nascer do dia. Inicia-se com entoação de mantras que evocam os
antepassados, para que protejam seus descendentes.
A primeira figura que aparece é o ganungan, que representa a
.árvore da vida, uma figura em forma triangular, simbolizando as
três fases da vida: juventude, maturidade e sabedoria. No centro, há
uma pequenina casa que representa a consciência. Depois das evo-
cações e da contemplação do ganungan, começa o espetáculo pro-
priamente dito.
O tema é sempre a luta do bem contra o mal. As histórias se
baseiam em poemas épicos, como na índia, e contam histórias do
Ramayana e do Mahabharata, adaptadas e ampliadas. O Mahabha-
rata é uma sucessão de histórias sobre heróis e lutas. As histórias
são divididas em três partes. A primeira é uma seqüência de lutas e
de batalhas, um tumulto de elementos; trata de um período instável
como o tempo da juventude. Na segunda parte, começam a surgir
as primeiras ponderações espirituais, a necessidade de abandonar
as preocupações mundanas e pessoais. Mas é só na terceira parte
que o herói realmente atinge o estágio superior, a sabedoria. Só
então o mal é vencido.
O ritmo desses espetáculos é diferente do ritmo de um es-
petáculo ocidental. Não é um espetáculo a que se assista concen-
tradamente durante as dez ou doze horas de sua duração. O público
tem uma atitude de veneração, respeito, mas também uma atitude
descontraída.
Concentra-se no espetáculo, chora nos momentos mais tristes,
mas também se levanta, come, conversa, dorme. O importante é es-
tar presente, recebendo as vibrações do ambiente, sintonizado
sempre, direta ou indiretamente.
É considerado lazer mas tem um sentido espiritual, como a
própria vida. Deve-se cuidar da vida, das lides diárias, da sobre-
vivência, mas o mais importante é a nossa atitude interna. Chorar
no teatro, ainda que muitos o façam, é considerado uma tolice, co-
mo é tolice chorar no mundo por causa de coisas passageiras. O so-
frimento, maya, é uma alucinação passageira. Tudo que nos rodeia
88
é sombra. O mundo não é mais do que o reflexo de outra vida, su-
perior a esta.
O espetáculo consta de uma parte dramática, musical e espiri-
tual, mas é também uma diversão. É uma experiência artística
belíssima pelos efeitos plásticos e musicais que apresenta.
A música é um elemento importante. A orquestra é composta
de quinze músicos que acompanham a narração, e essa narração é
feita por uma só pessoa, o dalang, que recita, narra, canta. Para ca-
da personagem ele tem uma voz diferente.
A iluminação simboliza o toque de vida, dado pelo dalang.
A impressão que se tem desses espetáculos é de magia, pela
música e pelos cânticos, pelas silhuetas finamente desenhadas, pro-
jetadas sob luz tremeluzente, em transparências coloridas, num
ambiente de veneração religiosa.
Os seus principais personagens são reis, cavaleiros, soldados,
mulheres, os pequenos funcionários, demônios, anjos (como na ín-
dia representados por macacos) e deuses.
Antigamente constumava-se encerrar os espetáculos de som-
bras com um golek, isto é, com uma dança de bonecos em terceira
dimensão, de madeira, mostrados ao vivo. Golek, em javanês, quer
dizer "buscar". E o significado dessa dança logo após um espetácu-
lo de sombras era para que as pessoas da platéia, mais semelhantes
a esses bonecos, refletissem sobre o sentido obscuro da peça apre-
sentada.
Canto do Wayang
Japão
12. Extraído de Canto do Wayang, do poeta javanês Noto Suroto. Publicado no programa de uma ex-
posição de bonecos javaneses, organizada pela Emb. da Indonésia, Galeria Millan, São Paulo,
1977.Tradução refeita por A. M. Amaral.
13. Sobre a origem chinesa dos bonecos japoneses sabe-se que o Japão foi influenciado por brinque-
dos mecanizados do Egito, levados à China, e da China ao Japão. No Japão foram copiados e sua
estrutura serviu de modelo para bonecos articulados. Assim diz um poema chinês de autoria do
monge budista Ryosia, século XlV: ''They tum like toys in automat ic movernents, but thcir ac-
tions, filled with marvelous life, do not cease. A single string brings us a Bodhisatwa 's face: an inch
of thread tugs awaya yaksha's head". Apud D. Keene, Bunraku , Tokyo, Kodansha Int., 1974, p. 22.
90
No Japão como em Java, na índia ou na China, o teatro de
bonecos está ligado à religião, mas é também diversão. Houve um
tempo em que o boneco era preferido, pelos deuses, ao ator, pois
não tinha "cheiro humano", ou era preferido também pelo público
que o considerava mais misterioso e digno.
No Japão, como em Java, a arte do boneco é uma arte narra-
tiva. É um recitativo de poemas ou lendas épicas. Muito importante
no espetáculo é o acompanhamento musical. De acordo com os
personagens, ou de acordo com a emoção que a ocasião exige, o
narrador cria diferentes vozes, numa variação muito grande.
O tema eram lendas tradicionais. Uma lenda muito popular
nos séculos XII e XIII foi a lenda do Heike que, a partir do século
XIV, passou a ser conhecida como a lenda do Joruri. E como sem-
pre ocorre em toda tradição oral, modificações foram sendo nela
introduzidas pelos narradores.
No século XVI, monges budistas cegos costumavam apresen-
tar a lenda do Joruri acompanhada pelo biwa, o instrumento musi-
cal da época. E nesse mesmo século, por influência estrangeira, foi
introduzido nas ilhas do Awaji um outro instrumento, o shamisen,
mais refinado e melodioso.
A introdução do shamisen no Awaji coincidiu também com a
chegada de um monge xintoísta, um bonequeiro famoso chamado
Hyakudai, expulso de sua cidade natal, de seu templo, por realizar
espetáculos para outras seitas. Em Awaji, Hyakudai passou a se de-
dicar ao teatro de bonecos com exclusividade e independente de
qualquer religião. Seu tema era a lenda do Joruri.
Essa lenda constava de doze episódios que falavam sobre a
queda de uma poderosa família do Japão, a família Taíra. Narrava
os amores da princesa Joruri com Hoshitsune. Joruri era a reencar-
nação de um herói guerreiro, já morto. É uma história cheia de
acontecimentos fantásticos, dragões, fantasmas, onde nem os per-
sonagens humanos apresentam limitações físicas. A introdução dos
bonecos de Hyakudai na narração dessa lenda foi perfeita. A técni-
ca aperfeiçoada dos bonecos, mais o refinamento musical dado pelo
shamisen levou o teatro de bonecos a um grande desenvolvimento.
91
No teatro de bonecos do Japão existem três elementos bási-
cos: o shamisen, ou seja, a música; o tayu, que é o narrador, ou sua
parte literária; e a arte do boneco, propriamente dita.
O teatro de bonecos japonês teve seu apogeu nos séculos
XVII e XVIII.
Na metade final do século XVII surgiu um grande dramatur-
go, Chikamatsu Monzaemo (1653-1724), conhecido também como
o Shakespeare do Japão. Antes de se dedicar ao teatro de bonecos,
Chikamatsu se dedicava ao teatro de atores mas, depois, definiti-
vamente o abandonou. Foi quando conheceu Gidayu (1651-1714),
um grande artista, diretor e dono de um teatro de bonecos, criador
ele próprio dos bonecos que apresentava.
Chikamatsu e Gidayu se tornaram grandes amigos e até o fim
de suas vidas trabalharam juntos. E juntos fizeram do teatro de bo-
necos uma arte de alto nível literário e artístico",
Para entendermos a dramaturgia de Chikamatsu ou o pensa-
mento do teatro japonês em geral, é necessário compreender-se um
pouco o pensamento do Japão. O teatro japonês reflete certos
princípios religiosos que, por sua vez, seguem certas correntes fi-
losóficas religiosas. As principais são: o confucionismo, o budismo e
o xintoísmo.
Confúcio pregava a harmonia da sociedade mais do que fala-
va sobre a vida espiritual, e com isso moldou os padrões da vida
familiar japonesa.
Já o budismo trata dos carmas. Segundo o budismo, o homem
sofre por pecados cometidos em outras encarnações, mas depois de
sua morte volta ao estado de felicidade. Morrer é uma graça, o que
explica por que tantas peças de teatro falam de jovens amantes que
se suicidam.
14. Os bonecos eram então manipulados por um só manipulador, só mais tarde é que foi introdu zida
a manipulação a três.
94
No xintoísmo há dois tipos de deuses: os da natureza e os
humanos. Os humanos estão próximos à terra, residem nos templos
encarnados em objetos",
Chikamatsu, com sua dramaturgia, levou os bonecos a uma
grande categoria dramática. Suas peças são de dois tipos: as peças
históricas, ou jidaimono; e as peças do quotidiano, também conhe-
cidas como tragédias burguesas ou sewamono.
As peças históricas são lendas épicas, que falam de heróis do
passado, tratam da autocracia dos samurais, a casta militar do
Japão. Há nelas uma idealização dos seus códigos morais. E segun-
do esses códigos, a vida devia ser conduzida de acordo com deveres
filiais, lealdade aos semelhantes e obediência aos superiores", A
morte devia ser enfrentada e, acima de tudo, se devia estar pronto a
sacrificar a própria vida ou a de seus familiares, sempre que circuns-
tâncias necessárias se apresentassem. Esses códigos, no total, criam
situações muito trágicas e, para nós, ocidentais, quase absurdas.
As peças históricas, baseadas nas lendas tradicionais, se de-
senrolam, aparentemente, sem lógica. Apresentam a realidade de
uma forma poética e inverossímil. E para isso os bonecos se pres-
tam mais do que atores, pois são capazes de realizar ações, às vezes
alucinantes. "É o maravilhoso fantasmagórico, um mundo ao inver-
SO"17.
Uma peça representativa dessa fase é Chushingura, que conta
a história de quarenta e sete samurais leais ao seu senhor, injusta-
mente assassinado e, por essa razão, eles passam anos de sofrimen-
to e sacrifícios, só por vingá-lo.
Nas tragédias burguesas ou peças do quotidiano, o tema é a
vida comum de comerciantes, artesãos ou pessoas de profissões vá-
rias, segregadas por serem considerados inferiores aos samurais.
Essa segregação levou-os a ter atividades econômicas, sociais e cul-
15. A seita xintoísta está muito ligada aos objetos e é nela, principalmente, que existe a tradição de
bonecos em seus rituais.
16. E semelhantes eram apenas aqueles que pertenciam a sua classe.
17. René Sieffert, "Marionnettes du Japon ", em Paul Fournel, Les marionnettes, Paris, Bordas, 1982,
pp.53-57.
95
Tea tro de bonecos do Jap ão contemporâneo,
.. ...... , ....... I», , \- lJ.:nfn ron rt r"' '''' '' ~ , ,. 'r v .....~;: ..;\
Bunraku, bo neco e mani pu] .. 101
(Foto do Teatro Nacio na l d Hunr ,10."1.
Ao lad o: Teatro de Mario n tcs T Io. rll ll,
ce rimo nia l antes da npr n' " o
(Poro lira da d"ra nt o I'csti vallnf 111 .lulIlIl
turais próprias, vivendo uma vida totalmente à parte. Um teatro se
desenvolveu aí nessa classe que, apesar de segregada, era abastada
e culta. O luxo em que vivia contrastava com a austeridade dos
samurais.
O Japão era então dividido em duas classes. De um lado, a
elite dos samurais;.e de outro, a burguesia, ou, o povo. Sob o ponto
de vista material e econômico essas duas classes tinham caracterís-
ticas bem diferenciadas. Numa, extraordinária simplicidade, noutra,
grande luxo e refinamento. Características essas que se refletiram
na cenografia do teatro de bonecos, que ora se apresentava com
grande austeridade, ora com detalhes suntuosos",
O principal tema do teatro de Chikamatsu é a emoção do po-
vo. A crueldade humana é mostrada sem censura, mais aceitável
com bonecos. O boneco atuava também como instrumento de dis-
tanciamento, útil principalmente com temas de conteúdos mais so-
ciais. A dramaturgia de Chikamatsu traz, nas tragédias burguesas,
pela primeira vez no Japão, a temática do homem. Não se trata
mais do destino transcendental humano, como na índia ou Java,
mas da realidade terrena. Chikamatsu sutilmente mostra que as
causas reais do drama humano é resultante de uma situação social,
econômica ou psicológica do personagem. As suas desgraças eram
muito mais a conseqüência de um sistema feudal feroz do que a de-
corrência de culpas passadas por atos praticados numa vida ante-
rior. Pela primeira vez no Japão trata-se abertamente de dramas
como o de um filho que se volta contra a tirania do pai, isso dentro
de uma sociedade altamente patriarcal; ou se fala dos conflitos de
uma mulher, que, por infelicidade matrimonial, se torna adúltera.
Chikamatsu introduziu também a conscientização das dife-
renças sociais então impostas por uma sociedade de classe.
Chikamatsu percebeu como o boneco seria melhor que o ator
para expressar suas idéias revolucionárias, pois o que não se aceita-
18. Para maiores detalhes de cenografia, figurinos e objetos de cena, consultar A C. Scott, Tbe Puppet
Tbeam: ofJapan, Tokyo, Tuttlc, 1963, pp. 66-69.
98
ria num ator, mais próximo à realidade, poderia ser mais aceito
com bonecos.
Aos olhos ocidentais, as peças de Chikamatsu podem parecer
estranhas ou esotéricas. Apresentam enredos tortuosos, ilógicos, ou
muito cruéis. Na verdade, são histórias baseadas numa mitologia
oriental muito arcaica, e não podemos apreciá-las sob os nossos
próprios padrões dramáticos, principalmente ocidentais.
Em sua dramaturgia Chikamatsu seguia três princípios bási-
cos: 1. levar em consideração o caráter e a qualidade emocional de
cada personagem; 2. levar em consideração as qualidades vocais
dos narradores que vão falar pelos personagens, pois existem para
cada um peculiaridades e exigências que devem ser obedecidas; 3.
observar o ritmo das peças. Esse ritmo está ligado à estímulos vi-
suais e sonoros e tem muito que ver com a sonoridade da língua
japonesa.
As peças de Chikamatsu têm muita relação com textos clássi-
cos, com provérbios e canções populares. Por isso se diz que as suas
peças não são para serem lidas, mas para serem visjas e ouvidas.
Os textos de Chikamatsu foram escritos para personagens
muito ágeis, bonecos manipulados por um só bonequeiro. Mas, de-
pois de sua morte, novas técnicas começaram a ser desenvolvidas.
Bonecos maiores pediam movimentos mais lentos e um texto me-
nos ágil, quase sem palavras", E os textos de Chikamatsu passaram
a ser revistos, cortados e adaptados, perdendo muito do seu sabor
original.
Seguiu-se um período no qual os bonecos apresentavam mais
interesse pelas novidades técnicas do que por seus conteúdos. Nes-
se período, peças originalmente de teatro de bonecos passaram a
ser adaptadas para o kabuki, e o teatro de atores ganhou maior'
popularidade.
19. A técnica do bunraku , tal como é conhecida hoje em dia, é uma manipulação à vista, e os seus ma-
nipuladores vestem-se de preto , sobre um fundo de cenário também preto. Nos espetáculos mais
tradicionais o mestre vem vestido em roupas cerimoniais coloridas, e os outros dois manipulado-
res, em preto. O mestre move a cabeça do boneco e os outros , em geral aprendizes, movem as
mãos e os pés.
99
No início do século XIX, surgiu um novo talento, Uemura
1
Bunrakuken, que transformou Osaka num centro de teatro de bo-
necos, e o interesse pelos bonecos voltou. O teatro fundado por ele
continuou em sua família por quatro gerações. E, até hoje, o teatro
de bonecos do Japão aparece sempre associado ao nome bunraku.
Vários outros teatros surgiram, mas o mais importante continuou
sendo o da farrn1ia Bunrakuken. Em 1926, infelizmente, um incên-
dio o destruiu, tendo sido reaberto somente em 1946.
Em relação ao nó, um teatro da elite, o teatro de bonecos é
um teatro popular, tanto por seus temas, como por sua exagerada
gestualidade. Enquanto o nó apresenta gestos quase imperceptíveis,
o bunraku intensifica-os. No teatro nó, quando um ator quer ex-
pressar tristeza, levemente faz um sinal de cabeça. No bunraku, ao
contrário, um boneco expressa a mesma tristeza com gestos deses-
perados, com gritos, soluços, levando, às vezes, uns cinco minutos
nessa encenação.
O kabuld é também um teatro popular, só que de atores.
O kabuki se desenvolveu a partir do bunraku. O bunraku serviu de
escola para os seus atores. Só que o kabuki ganhou depois, em po-
pularidade, do bunraku, que passou a ser visto apenas como uma
arte tradicional.
O bunraku hoje é um monumento cultural. É um teatro clás-
sico que se assiste não por seus conteúdos, mas por sua forma plás-
tica e visual. O conteúdo se refere a um Japão feudal tão antigo que
nem os próprios japoneses nele se reconhecem. Sob o ponto de vis-
ta técnico e formal, exerceu, no início deste século, e ainda exerce,
um fascínio em todos os grupos de teatro de bonecos contemporâ-
neo do Ocidente. Com ele temos muito que aprender.
100
cu
3. O BONECO NO OCIDENTE
20. A. Nicoll, Masks, Mimesand Miracles, New York, Cooper Square, 1963.
102
A Época Medieval e os Dramas Religiosos
A religião tomou conta das artes. Era tema não só para dra-
maturgos e atores como também para os artistas plásticos. Artistas
famosos se dedicavam a esculpir imagens. Essas imagens, a princí-
pio aparentemente dramáticas, passaram a sugerir, depois, ações
dramáticas. Eram construídas com articulações detalhadas nas jun-
tas, podendo formar quadros vivos muito expressivos com figuras
ajoelhadas, mãos em prece, braços estendidos etc. Com o tempo fo-
ram ganhando movimentos, isto é, passaram a ser animadas, quer
21. Ainda A1lardyce Nicoll, em obra acima citada, agora no capítulo sobre o drama secular da Idade
Média, ao falar sobre os histriões, jograis, domadores de animais e acrobatas que perambulavam
pela Europa no século XIV, nos diz: "Much more important than any of these, and much nearer
to drama proper, were the puppet showmen". Cap. III - "The Fate of the Mimes in the Dark
Ages",op. cit., p. 166.
103
r-
22. Temos registros de imagens existentes em templos egípcios e romanos, portanto de um período
anterior à Idade Média , que possuíam articulações e ao moverem a boca davam a impressão de es-
tarem realmente falando. Os sacerdotes, ocultos por trás dessas imagens, faziam crer assim ao p0-
vo que eram os deuses que lhe estavam falando .
23. Charlcs Magnin, llistoire des marionnettes en Europe, depuis l'antiquité jusqu 'à nos jours, Paris, M.
Levy, 1852.
24. Charles Magnin nos dá a conhecer Jeromc Calder, o primeiro escritor moderno a mencionar ma-
rionetes sob um ponto de vista sério e científico. Jerome Calder publicou em 1501 dois importan-
tes tratados: Subt ilitates e Veritatum Rerum, nos quais trata desse assunto.
25. O presépio que descreve, através de figuras estáticas ou mecanizadas , o nascimento de Cristo , pa-
rece ter sido introduzido pela primeira vez em Graccio , Itália, por S. Francisco de Assis em 1223.
Tanto na Europa como no Brasil, a ele é atribuída a origem dos primeiros espetáculos de teatro
de bonecos popular.
]04
Imagem reli gio sa (Fo to de Alia Tc u-: . 1 Nll v " )
Aba ixo: Bonecos mecanizados de José Mol ina , 11.., uillll• • I'
(Exp osição SESCll'tlIl11 ia , S.I' .)
nas apresentações sobre temas bíblicos, quer nas simples e profanas
brincadeiras".
E temos aqui a origem do teatro de bonecos popular europeu,
teatro esse que nos chegou durante o período colonial brasileiro.
26. Brincade ira é o termo usado no Nordeste para designar espetáculo de mamulengo. E o termo in-
glês play significa tanto peça de teatro como brincar ou brincadeira.
27. É dessa época a peça escrita por William Davenant La salle à louer. Aliás, muito interessante para
n ósbonequeiros latino-americanos, pois trata dos maus tratos infligidos aos índios do Peru pelos
espanh óis, no tempo de Felipe 11.
28. Os personagens bíblicos foram sofrendo também alterações. Exemplo disso é a mulher de Noé
que se transfonna numa popular megera, representada por uma raposa .
106
The Maslc", Ou é Milton escrevendo O Paraíso Perdido, inspirado
num espetáculo de bonecos a que assistiu.
29. Em The Mask as cenas com bonecos eram mudas e havia um intérprete que descrevia o enredo.
Intérprete aqui usado em seu duplo sentido: o que interpreta a ação e o que a explica.
30. Allardyce Nicoll, Cap. IV - "The Commedia dell'Ane Theories Regarding the Origin", op. cit.,
pp. 214-349.
107
r
I
Pulcinella
32. Quanto à origem das palavras que designam o teatro de bonecos, lembramos também dessa época
o ator italiano chamado Burattino, então muito popular, e de cujo nome deriva o termo burattini,
como são hoje conhecidos os títeres na Itália.
Também Brighela, ator de Bérgamo, de tal forma caracterizou um tipo que depois este se mul-
tiplicou, com pequenas diferenças, mantendo-se sempre cínico, sem vergonha, melífluo, conquis-
tador, bajulado por alguns e temido por todos. Acabou confundido em Minas Gerais com a idéia
mesma de fantoche, protagonista dos teatrinhos ambulantes mineiros.
33. Pierre Louis Duchartre, Tbe Italian Comedy, New York, Dover, 1966.
109
cinella se infiltrou por toda a Europa. Atravessou depois o Atlânti-
co e, aclimatando-se aos nossos ambientes, acabou brincando em sí-
tios, fazendas e praças do Norte e do Nordeste brasileiro, ou se
perdeu nas montanhas de Minas. E isso sem mencionarmos
também o destino dos seus companheiros na América espanhola.
Na França, Pulcinella virou Polichinelle, levado à França por
Giovanni Briocci, em meados do século XVII. Deu-se muito bem
com o espírito crítico francês, e passou a ser protagonista de muitas
peças, tais como Polichinelo, Mágico, Polichinelo, o Turco, Os Amo-
res de Polichinelo ou O Casamento de Polichinelo".
Punch
34. George Speaight, Punch & Judy, a History, Boston, Plays, 1970,p. 21.
35. Vamos nos deter novamente na Inglaterra e nas transformações de Pulcilnella em Punch, e tomar
depois o Guignol, que surgiu em Lyon. Ambos apresentam relação com os personagens do teatro
de bonecos popular brasileiro .
36. Por influência de Pietro Gimondi, vemos na Alemanha , Hanswurt, na Áustria, Kasper, na Hungria,
Vitez Laszle, na Holanda, Kasparek e na Rússia, Petruchka .
111
logo os próprios artistas ingleses começaram a criar os seus Punchs,
iniciando um repertório nacional. Os temas ainda eram os da Bí-
blia, só que mais livremente interpretados.
A Criação do Mundo", A Sabedoria de Salomão, Sodoma e
Gomorra; Arca de Noé eram peças clássicas. Outros temas começa-
ram a surgir, lendas, histórias populares sobre a vida e amores dos
reis, sobre Henrique 11 e sua bela Rosamunde, Eduardo IV etc.
No século XVIII obras de Shakespeare foram encenadas:
Othello, Macbeth entre outras. Na França, Alemanha e Áustria o
teatro de bonecos passou a ser moda. A forma usada era quase
sempre marionete. Era um teatro erudito, mais ligado à elite artís-
tica. Na Alemanha, Goethe possuía o seu próprio teatro de bonecos
e compunha peças para eles, entre elas Fausto, em 1753. Também
Haydn deixou cinco operetas para marionetes, para pantominas,
com bonecos e cantores por trás do palco", Gluck também compu-
nha ópera para marionetes para entreter Maria Antonieta. O prín-
cipe Esterhazy da Hungria tinha um teatro de marionetes tão famo-
so que Maria Tereza pediu-lhe uma sessão especial. E, se nos tea-
tros ingleses os personagens de Shakespeare eram movidos por fios,
na França, peças de Moliêre eram também encenadas com bonecos.
No meio de um temário pesado, na Inglaterra, Punch come-
çou a surgir como bufão escandaloso, satirizando os costumes, in-
trometendo-se nas cenas mais sérias, apresentando algumas das ca-
racterísticas que iriam torná-lo depois mais conhecido. Porém, ape-
sar de todo o sabor que Punch pudesse acrescentar a essas peças, o
interesse pelas lendas, pelas histórias bíblicas, ou as preocupações
excessivamente literárias e elitistas, foi se esgotando. Essa moda,
37. Sobre esse tema temos notícias no Brasil, relatadas. em 1896, por Gil Cássio (Afonso Arinos) que
nos fala a respeito de um titeriteiro mineiro que encenava a peça A Criação. E o mesmo tema
também foi encontrado na Bahia. Isso mostra influências de personagens, forma e conteúdo euro-
peus, que aos poucos foram sendo adaptados à realidade brasileira.
38. Haydn escreveu cinco operetas para marionetes: Philemon et Baucis, Genoveva, Dido, La Ven-
geance Accomplie e La Maison Brulée.
112
apesar de todo o seu refinamento, ou justamente por isso, foi per-
dendo o seu encanto",
Diante do perigo de perderem a sua sobrevivência, os mario-
netistas profissionais abandonaram os teatros e os salões e passa-
ram a atuar nas ruas, praças e feiras, buscando outro tipo de públi-
co. E foi aí, como ganha-pão, que o teatro de bonecos teve o seu
maior desenvolvimento e ganhou maior popularidade. Foi esse o
teatro que sobreviveu ao tempo e chegou aos nossos dias. No con-
fronto diário com o povo Punch adquiriu outras características. A
forma e o conteúdo mudaram. Em lugar dos longos seriados reli-
giosos e dos dramas altamente literários, os bonequeiros ambulan-
tes passaram a apresentar historinhas curtas, sintetizadas, com a
preocupação de chamar a atenção dos passantes indiferentes. Se-
gundo George Speaight, os titeriteiros passaram a ganhar preca-
riamente sua vida. A razão que fez de Punch um teatro ambulante
foi unicamente econômica. E também por razões econômicas co-
meçaram a surgir bonequeiros que trabalhavam sozinhos. Com
a mão direita mantinham em cena o protagonista central, sempre
Punch, e com a mão esquerda faziam passar os personagens que
com ele contracenavam. Se no século XVIII Punch apenas entrava
e saía entre as longas cenas, quando muito interrompendo-as às ve-
zes, agora no século XIX, por razões econômicas e técnicas, ele não
deixava a cena nunca: ele era a cena.
Os temas passaram a ser muito mais simples, próprios para
um público casual que mudava constantemente. Estorinhas curtas,
sem detalhes nem sutilezas, cheias de ações para captar a atenção
dos transeuntes, o que requeria uma habilidade técnica e uma ca-
pacidade de improvisação muito grandes. Também era necessária
muita argúcia e presença de espírito para sentir e reagir ao público,
mudando às vezes até de argumento, conforme a platéia. Para isso
nada mais apropriado do que os bonecos de luva, com toda a sensi-
bilidade da mão do homem. As marionetes de fio para esse tipo de
39. Durante a Revolução Francesa era comum apresentarem cenas onde Polichinelle acabava sempre
na guilhotina por ser considerado um aristocrata libertino.
113
Punch (Pintura de n .R .llaydon . 1829).
Quatro cenas de 1'/IIICh ",,,I J".I\'
(In: Aunt Louisa' s Nati01/l11 Allnun; I K711) ,
espetáculo foram abandonadas. Os temas eram os do dia a dia, a
vida do povo, seus problemas e seus dramas. As pecinhas eram uma
seqüência de fatos, incidentes que marcavam época ou recém-aca-
bados de acontecer. Eram enumeração de fatos, um simples desfilar
de personagens, sem grandes argumentos ou apenas trocas de pala-
vras, quando não de cacetadas. Nestes espetáculos Punch, na Ingla-
terra, ganha uma mulher, Judy, um filho e um cachorro. Punch &
Judy, entre outras coisas, representam a problemática do relacio-
namento entre homem e mulher. E Punch sozinho é uma luta con-
tra a ordem estabelecida, onde sua violência irracional nem sempre
colabora para melhorá-la. Entre outros personagens mais constan-
tes havia sempre um médico, um bombeiro e o diabo, que no fim
geralmente levava não s6 a alma como também seu corpo para o
inferno, resquícios medievais.
o Guignol de Lyon
Sobre a origem do Guignol, Daniel-Roger Bensky, em seu li-
vro Structures textuelles de la marionnette de langue française nos dá
várias versões.
Segundo Bensky, uns dizem ser o Guignol originário de uma
cidade italiana da Lombardia, Chignollo, tendo a palavra sofrido
modificações para Chignol e finalmente Guignol.
Para outros, o Guignol, personagem que substituiu na França
definitivamente o Polichinelle, foi introduzido por Laurent Mour-
guet, mais ou menos em 1808. Esse nome viria de uma expressão
sua, muito peculiar, C'est guignolant, o que significa c'est drôle, ou
engraçado, estranho.
Alguns dizem ter existido também um tal de Jean Guignol,
em quem Mourguet teria se inspirado. Mas foi com Mourguet que
o Guignol criou tal fama e força, que veio a se tomar depois uma
espécie de gênio da raça. Com ele, Mourguet traduziu o caráter do
homem do povo, de bom coração, debochado, de poucos escrúpulos
mas pronto a ajudar os amigos, amante da pândega, ignorante, de-
116
fendendo os fracos contra os poderosos, mas sem preocupação mo-
ral alguma. Não era um teatro para crianças, mas nele as crianças
também se divertiam. Depois da morte de Laurent Mourguet, mais
ou menos em 1845, seu teatro continuou através de seus filhos, no-
ras, genros, até que se tornou de domínio público.
Foi então que um marionetista, que nada tinha a ver coma
fannlia de Mourguet, passou também a apresentá-lo, entre os anos
de 1865 e 1895, mas com um caráter já bem diferente. Ao contrário
de Mourguet, que atuava sempre na rua, Pierre Rousset passou a
levar o seu Guignol aos salões, teatros e cafés literários. Com o
tempo e à força de tanta repetição, o Guignol de Mourguet havia se
desgastado, cansado, envelhecido. Rousset introduziu nele modifi-
cações mais do agrado do público burguês, limpando as expressões
de baixo calão e procurando dar às estórias uma moral, imbuindo
seu personagem central, Guignol, com virtudes que jamais teve com
Mourguet.
Temos então, até aqui, dois tipos de Guignol: o espontâneo e
popularesco Guignol de Mourguet que mostrava a vida como era
sem pretensões morais; e o Guignol de Pierre Rousset, com objeti-
vos culturais e moralizadores. Se com Rousset o Guignol ganha
uma elevação social e moral, perde em espontaneidade. Segundo
Daniel Bensky, o Guignol de Mourguet é pobre, mas orgulhoso dis-
so, sendo sua honestidade sempre recompensada pelos ricos; en-
quanto que o Guignol de Rousset tem como recompensa uma as-
censão social".
Quando esse gênero parecia agonizante, surgiu ainda um ter-
ceiro tipo de Guignol. Em 1910 criou-se em Lyon a Sociedade dos
Amigos do Guignol, pretendendo revivê-lo com objetivos culturais,
moralizadores e até didáticos. Esse tipo de Guignol passou a rece-
ber outras interpretações. Do espontâneo, satírico e rude teatro
popular, passou a ser uma espécie de instrumento de boas manei-
ras, com refinamentos e conceitos morais. Mais tarde, na França,
40. Roger-Daniel Bensky, Structures teauelles de la marionneue de langue française, Paris, Ed. A. G.
Nizet, 1969.
117
assim como em muitos outros países depois, passou a ser confundi-
do com recreação infantil, mais associado à idéia de teatrinho para
crianças em idade pré-escolar.
41. BilI Baird, TheArtofthe Puppet, NewYork, Ridge Press Book, s.d.
120 .
Skupa, e Jan Malik, que depois se tornou diretor do Teatro Nacio-
nal de Bonecos da Tchecoslováquia.
Sem modificações de tema ou técnicas, como em Teschner,
ou sem outras conotações temáticas, como As Margaridas, na Itália
o teatro de Vittorio Podrecca, o Teatro dei Piccoli, continuava com
números de dança e circo, e nele a figura humana ainda era apre-
sentada de forma satírica. Para nós sua importância maior reside
nas influências que deixou. Fazia constantes toumées pelo mundo.
Esteve várias vezes no Brasil, e existem ainda lembranças vivas en-
tre os que ontem foram seu público, tendo influído em bonequeiros
ainda hoje atuantes.
Em 1929, criou-se em Praga uma organização internacional
de marionetistas, a UNlMA, Union Internationale de la Marionnet-
te, hoje a mais antiga das organizações teatrais",
Começa a haver uma integração dessa arte com seus artistas.
Surgem os primeiros intercâmbios. O espírito individualista de al-
guns aos poucos se dissolve. Montam-se espetáculos em espaços
cênicos abertos, sem aquela preocupação de se manter isolado, e
em segredo, nos bastidores.
Os países socialistas, conscientes da força social e educativa
dos bonecos, passam a dar-lhes grande apoio e desenvolvimento.
Surgem grandes companhias estatais com grandes nomes entre seus
diretores, cenógrafos e atores.
Na segunda metade do século XX o teatro de bonecos come-
ça a ter em toda a Europa um repentino renascimento. Ressurge
tecnicamente enriquecido. Várias técnicas são reunidas num só es-
petáculo. Uma tecnologia moderna se alia às tradicionais. Novos
materiais trazidos pela indústria se acrescentam aos antigos proces-
42. A UNIMA reúne marionetistas de mais de sessenta países do mundo ocidental e oriental, e os ses-
senta anos de sua existência não são muitos para uma organização internacional, mas convém no-
tar que a UNIMA é a mais antiga das organizações teatrais. Henryk Jurkowsky, atual presidente
da organização. diz que "o rato dos marionetistas terem sido os primeiros a sentir essa necessida-
de de cooperação através de uma organização talvez venha do rato do teatro de bonecos ter sido
sempre um teatro ambulante , e viajar desenvolve a apreciação e o respeito pelo mundo e suas di-
ferentes culturas".
121
Teatro de so mb ras, Fra nça , séc ulo XIX.
T h éâtre du C II" , Noir ,
som bras de Loui s Morin
(In : UN IMA/Franee , n'! 77 , !911 2).
1 1_ - , .. _ ,,_ _ , ••
sos de confecção. A iluminação especializada e os modernos equi-
pamentos de som dão-lhe nova imagem e nova amplitude.
Mas houve também uma volta a antigas formas. Dramati-
zações em estilo ritualístico e imbuídas de religiosidade aproxi-
mam-se, até visualmente, das esculturas móveis da Idade Média".
Ora é Punch recriado e contracenando sem palco com atores
de carne e osso, tendo sua violência e personalidade contestadas",
Ora são contos de fadas para crianças em produções feéricas, apre-
sentados por grandes companhias profissionais. Ou enxutas cenas
na televisão, cheias de realismo e sátira".
Enquanto os tradicionais motion men em seus palcos portáteis
continuam perambulando, Karagoz, Punch, Guignol e seus congê-
neres continuam divertindo platéias em parques ou em pequenos
auditórios.
Poemas épicos são apresentados em dramas que duram mais
de três horas, em velhas igrejas, nos arrabaldes de Londres sob in-
fluências do bunraku japonês.
Surge nas artes cênicas uma tendência que seria como uma
fusão do teatro com ator com a mímica e o teatro de bonecos onde,
juntamente com as artes plásticas, a música e a cenografia, se cria
um novo teatro, o teatro de animação.
43. São de Peter Schumann, diretor do Bread and Puppet, estas palavras: "Puppet theater is an exten-
sion of sculpture. Imagine a cathedral with Christ and the saints and gargoyles being set into mo-
tion by puppeteers, talking to the workshipers, participating in the ritual of music and words".
44. Ver Parte 2, Cap. 4, "Teatro de Bonecos Contemporâneo", principais grupos de teatro de bonecos
contemporâneos, França, pp. 145 e ss.
45. Idem, Parte 2, Cap. 4, Estados Unidos, pp. 160 e ss.
124
4. O TEATRO DE BONECOS CONTEMPORÂNEO
Os Grandes Solistas
Outro virtuoso nos foi dado pela França, com Yves Joly, um
poeta e pintor que tentou, no teatro, ir além da palavra e da forma.
Nascido em 1908 em Calvados, iniciou-se na carreira de ator e for-
mou um grupo que se dissolveu com a guerra. Durante ela foi feito
prisioneiro e distraía seus companheiros com suas marionetes, cria-
das com material encontrado nas enfermarias. Terminada a guerra,
juntamente com sua esposa Helen Charbonnier, Dominique Gimet
e George Tournaire, formou outro grupo. Já na década de 40 apre-
sentava os bonecos com manipulação à vista, isto é, sendo manipu-
lados com os atores à mostra, o que para a época foi uma novidade.
Apresentou uma série de espetáculos de grande sucesso. Permane-
ceu anos no cabaré Rose Rouge em Paris, e sua fama se tornou in-
ternacional.
Como e por que um artista como Yves Joly se tornou mario-
netista é Jean Loup Temporal quem nos explica:
Um artista para quem o corpo e a figura são mais importantes do que a palavra e
que vê no movimento e na atuação fatores dominantes de um espetáculo, e que vê as pcs-
46. Fanny Abramovitch comenta espetáculo de Sergei Obraztsov, Recital Solo, apresentado no Festi-
val Internacional da UNIMA em Washington, De 1980, em artigo publicado no Jornal da Tarde,
intitulado "A Grande Festa do Teatro de Bonecos" - 26.7.1980.
127
los Unidos ,
EstaI ,', n n do T h éâtric ule,
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nuI cs -&_ u ~ ._ _ L _ _ .I ' .. .1 ••
() (I' hom em -palco
1'\ ..... -
França, Jean Paul Hubert e seu Théâtricule
(Foto ced ida por J. P. Hubert).
Detalhe de manipulação.
soas e objetos com a mesma força de expressão, e para quem a estilização e o simbolismo
perdem suas abstrações, é um artista que já está a meio caminho do boneco 47.
49. Mea McNeill, A Review of some Performances at the World Puppet Festival, À Propos, American
Center of UNIMA, Fali, 1980.
135
o Teatro de Bonecos Nacional da Hungria, Allami Bashi-
nhaz, criado em 1947, depois de um período conhecido como o
período do teatro miniatura, permaneceu fechado durante muitos
anos para pesquisas e laboratório. E durante esse tempo procurou-
se estudar novos rumos e novos métodos; novas produções foram
então concebidas.
Em 1976, durante o XII Festival Internacional de UNlMA em
Moscou, apresentaram uma comédia lírica Hary János, de Z.
Kodály, numa adaptação de Dezso Szilágyi, e direção de Kato
Szonyi. Kodály se baseia muito na música popular húngara, trans-
formando-a em ópera. Com essa peça Kato Szonyi buscou também
novas soluções visuais. Pela primeira vez se apresentaram figuras
planas, de tamanhos variados, construídas com grandes possibilida-
des de movimentos, sendo às vezes usadas como anteparos ou em
outras cenas alinhadas, formando um visual plástico belíssimo, mui-
to inspirado na arte folclórica húngara.
Alguns anos depois, Allami Bashinhaz apresentou nova pro-
dução, desta vez sem palavras, com quatro pequenas peças: Petru-
chka, O Príncipe de Madeira, de B. Bartók, Aventuras, com música
de Gyõrgy Ligeti, e Ato sem Palavras, de S. Beckett, direção de
Kato Szonyi e bonecos de Yvan Kaos e Vera Brody.
Esse espetáculo, em luz negra, tinha uma atmosfera de sonho,
mas, como em toda encenação muito longa com essa técnica, cria-
se um distanciamento com a platéia, quase que um desligamento.
De qualquer forma, espetáculos sem palavras são sempre
muito apropriados para festivais internacionais, como bem comen-
tou Molly Falkenstein, da UNIMA-USA.
O Teatro Nacional de Bonecos da Hungria - Allami Bashi-
nhaz - conta, no momento, com mais de 250 técnicos e artistas.
51. Dorninique Girnet, Philip Genty, au thédtrede la Ville. UNIMA-France, nO 51, 1976.
145
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Frun çn, Th âtrc de Mctz ,
()"'II/i,.,· Pour U ne Vi<'
d,: ( i . Cousi n , dir, de R. I'oirson
Numa época em que grandes companhias profissionais se es-
meram em mostrar grandes produções, deixando muitas vezes o
público indiferente, o Théâtre Sur Le Fil passou a desviar a,atenção
desse mesmo público para o mundo da imaginação e da magia, com
soluções simplicíssimas.
Os Monastier não se colocam no palco em postura de ator,
mas antes se apagam para contar, através de objetos e bonecos,
uma história, criando imagens visuais que mais os aproximam da ar-
te de animação.
Esse grupo existe deste 1958. Peças de sucesso: Oiseau:..vole,
Gargantua, Les jardins du magicien.
52. La balladede Mr. Punch foi pela primeira vez apresentada em 1976, e repetida em 1979.
53. Antoine Vitez, À proposde Mister Punch, UNIMA-France, nO 52, 1976, p. 19.
54. Paul Foumel, La semainede la marionnette française, UNIMA-France, nO 74, 1981.
152
Michael Meschke, diretor do Marionnetteatern da Suécia
sempre considerou o teatro de bonecos muito próximo da dança e
da mímica, tendo sido influenciado por Etienne Decroux de quem,
juntamente com Marcel Marceau, foi discípulo. Houve um período
em que M. .Meschke trabalhou sozinho, mas a partir de 1958 conse-
guiu que a municipalidade de Estocolmo lhe desse um pequeno lo-
cal. E assim surgiu Marionnetteatern que a partir de 1963 passou a
ter atividades profissionais com espetáculos regulares tanto para
crianças como para adultos. Já em suas primeiras apresentações no-
tava-se a necessidade de inovações. Varieties é um exemplo disso.
Outras de suas produções mais memoráveis são Contos de Hoff-
mam, Ondine, A Boa Mulher de Setzuan e Ópera de Três Vinténs. A
mais importante porém parece ter sido Ubu Rei de Alfred Jarry.
Ubu Rei apresentava um ator no papel do rei Ubu e outros
personagens eram atores vestidos de bonecos, ou ainda bonecos
planos em papelão, compondo um conjunto desconexo e grotesco
onde se mostrava um retrato distorcido da natureza humana. A ce-
nografia do Fr. Themerson era toda em preto e branco. A música
era de Penderecki.
Outra produção sua, também para adultos, Antigone, de Sófo-
eles, foi uma produção tecnicamente à maneira do bunraku. Só que
com um detalhe: os bonecos eram todos negros com vestes brancas,
e os manipuladores vestiam-se de branco, em lugar das tradicionais
roupas negras dos manipuladores japoneses. Para essa produção M.
Meschke levou a Estocolmo Minosuke Hoshida, um mestre de bun-
raku japonês. A estréia de Antigone foi na Turquia, tendo depois
percorrido toda a Europa em toumée.
Em 1976 pudemos assistir a outra peça sua baseada num
poema de Pablo Neruda, Vida e Morte de Joaquim Murieta.
No seu repertório infantil vemos O mágico de Oz, Winnie the
Pooh, O Pequeno Príncipe e mais recentemente misses, este último
apresentado no Festival Internacional de Londres, em 1979.
misses procura integrar o público com um cenário onde o mar
se estende pela platéia e os bonecos manipulados à vista.
153
Para Michael Meschke é fundamental que cada bonequeiro
saiba por que faz teatro de bonecos e que leve em consideração as
suas heranças sociais e culturais. Quanto ao teatro infantil, conside-
ra as crianças muito indefesas e por isso muito importante o que se
diz a elas. Quanto ao público adulto acha importantíssimo que se
trabalhe nas pequenas comunidades onde existe maior integração e
as relações sociais são mais intensas.
56. Kinnosuke Takeda faleceu em 1979 em um acidente de tráfego poucos dias após o encerramento
de um Festival Internacional de bonecos em Tokyo, cujo sucesso foi devido a seu trabalho na or-
ganização.
57. Fantoches são bonecos sem pernas e, segundo A. Gilles, representam o povo mutilado. Ver A.
Gilles, "Les paradoxes de la marionnette", Marionneues, nO 7, pp. 43-47.
165
abstrato primitivo, sem a preocupação do detalhe. As situações dra-
máticas dos protagonistas são CÔmiCdS, fantasistas ou até absurdas.
Uma de suas características é a improvisação. É quase sem-
pre um teatro itinerante e raramente envolve mais de um ou dois
bonequeiros.
Como a máscara, o boneco representa tipos. Os arquétipos da
sociedade. Maccus e Buccus transformam-se em Pulcinella; Pun-
chinella, na Inglaterra, depois simplesmente Punch; Polichinelle, na
França, Kasper, na Alemanha, Karagoz, na Turquia, Guignol em
Lyon. O Mamulengo, do Norte e Nordeste do Brasil, tem um nú-
mero infindável de personagens.
O teatro de bonecos popular apresenta o homem do povo,
rude, grosseiro, impulsivo, fanfarrão, que contracena com o diabo,
com policiais bêbados etc. Às vezes, como em Punch, encarna o po-
der sem limites, a violência, o mau absoluto - aspectos depois re-
tomados por Jarry, em Pai Ubu. No Guignol, o personagem princi-
pal é um justiceiro, luta contra os abusos da sociedade, desmasca-
rando alguns para salvar outros.
Em todos eles as situações apresentadas são absurdas, cômi-
cas. Não têm uma relação lógica.
O teatro de bonecos erudito desenvolveu-se na base do teatro
de ator. Sua característica é a cópia do humano. Os bonecos eram,
quase sempre, marionetes, ou bonecos movidos a fio. A origem das
marionetes está mais ligada aos autômatos do Egito e da China
(movidos então a vapor). Nas marionetes existe a preocupação da
cópia perfeita do homem, seu corpo, seus movimentos",
Mas, popular ou erudito, de acordo com Roger Daniel Bens-
ky, o teatro de bonecos trata sempre do irreal, sempre procura
transformar a realidade. Bensky não faz no teatro de bonecos ne-
nhuma distinção entre popular ou erudito. Para Bensky, o teatro de
bonecos apresenta dois aspectos fundamentais: o aspecto de carica-
tura social e o aspecto do "poético maravilhoso".
58. Marionetes são bonecos manipulados a fio e suas estruturas aproximam-se mais do corpo humano .
166
Na caricatura social, ou sátira, visa-se a transformar o social.
Através da exacerbação dos defeitos do homem, provocando com
isso o riso, torna manifestas certas forças anárquicas que intentam
revolucionar a sociedade e revirar a mente do homem comum. Co-
loca propositadamente valores ao inverso: o empregado contra o
patrão ou o patrão ridicularizado.
Para Bensky, a caricatura social pode ser simples ou fantás-
tica. Ela coincide com o teatro popular mas aparece também no
erudito.
Já o "poético maravilhoso" colocado por R. D. Bensky, exclui
a sátira. Penetra o mundo irreal e se defronta com verdades mais
profundas do homem. Provoca a liberação do poético e busca a
transformação do universo (não apenas da sociedade), através de
sua desintegração material pois, modificando-se a realidade, é que
se chega ao fantástico.
No "poético maravilhoso" pode surgir também às vezes o ir-
real grotesco. De acordo com Bensky, o "poético maravilhoso" não
precisa da sátira para se afirmar pois, sem ela, o boneco pode de-
senvolver melhor suas qualidades poéticas. Não que o poético ex-
clua a sátira, mas é preciso manter um equilíbrio entre os dois. Diz
ele: "Quando a sátira domina, o maravilhoso é apenas um acessório
espetacular, em caso contrário, quando o maravilhoso domina, a sá-
tira é uma espécie de fio terra que mostra, em contraponto, o al-
cance da visão poética?",
Nesta categoria, estão os contos de fadas, os contos tradicio-
nais, os temas mitológicos e os contos fantásticos. Os seus persona-
gens não são homens comuns, são seres estranhos, fadas, gnomos,
gigantes etc.
Esse tipo de comparações entre teatro popular e teatro erudi-
to, fantoches ou marionetes, sátira ou fantasia, despertou em Ber-
nhild Boie, pensador francês, considerações que novamente nos
remetem aos aspectos contraditórios do boneco, já mencionados'".
o Boneco e a Criança
Como vimos, o teatro de bonecos, principalmente no Oriente,
sempre teve intrínseca ligação com a tradição e com o espiritual.
No Ocidente, esteve sempre muito próximo ao homem do povo,
apresenta aspectos fantasistas, trata do irreal e mostra um mundo
posto ao inverso.
Mas, há ainda um outro aspecto no teatro de bonecos que
não pode ser esquecido e que é a sua relação com a criança.
Por que essa relação do teatro de bonecos com a infância? As
razões são muitas e procuraremos sintetizá-las.
A criança naturalmente dá vida a tudo que toca. Relaciona-se
igualmente com o mundo vegetal, mineral, animal ou material.
Anima objetos e se comunica com a natureza. Fala com as plantas,
com as árvores, com as pedras, colheres e cadeiras, com seu gato,
ou com um macaco selvagem criado em sua imaginação, conversa
com o vento e com as nuvens. É naturalmente animista. É como se
o seu pensamento, ou a sua consciência, estivesse ainda ligada a
uma vida anterior, más à medida em que vai atingindo a idade da
razão, vai dela se afastando.
170
Jacqueline Held, em seu livro O Imaginário no Poder, vê no
animismo infantil duas fases", A primeira é a do animismo vegetal
e mineral. A segunda é a do animismo animal. A fase que Jacqueli-
ne Held chama de animismo animal é aquela em que a criança se
identifica com o princípio de Unidade, um período em que surtem
fantasias de equiparação e semelhanças com o Ser Divino. Ela pas-
sa a se atribuir poderes próprios de um ser superior. É quando sur-
ge na criança a vontade de voar, a vontade de ir contra a lei da gra-
vidade ou a vontade de ficar invisível, o desejo de mudar de tama-
nho, atravessar paredes etc. Pensamentos de transformação de si e
do universo. Exatamente do que o boneco trata: transformação do
social e transformação das leis do universo material. Os contos tra-
dicionais, ou contos de fadas, são a melhor expressão desse ima-
ginário. E quando esses contos são transmitidos à criança verbal-
mente, ela se deixa embalar pelo tom de voz do narrador, por si um
sinal; e quando vê aspectos dessas histórias representados em ima-
gens, essas imagens, ou figuras, ativam outras criadas por sua pró-
pria imaginação; e, se der a essas imagens, ou figuras, uma terceira
dimensão, e a elas se acrescentar movimento, com tudo que o mo-
vimento em si implica, esses contos passam a ter uma força maior
do que a própria realidade.
E do momento em que
diante de um palco vazio
eu me decido esperar
do momento em que decido ser todo olhar
no final, um anjo virá transformado em ator
62. H. VOIl Kleist, "Sobre o Teatro de Marionetes", tradução de J. Guinsburg, Comunicações e Anes,
Pubt. da ECAjUSP, nO 2, 1910,pp . 27-34.
63. R M. Rilke, Les IIigies de Duino, trad . de J. F. Angelloz, Paris, Aubier, 1943.
64. Idem, "Commentaire de la quatriême élégie", p. 118.
65. Tradução da autora, baseada na tradução francesa de J. F. Angelloz, op. cito
172
I: xpcri ên cia do gru po Casulo Bonecos, Zé da Vaca,
I'JX6, di r. de A. M. Amaral.
Ao Indo:
I!xpcriêllcias dc A. M. Amaral com alunos do Dcpt" de Artes
(' ni 'as, ECA/U S\' , )9 117 , Fant asia l-orca (Fi gura s dc
· :I.. ~ {~ .• f • • 1.... . _ ... 1•• .1 1.."" . 1_ I : r: I ...._~\
ele compara o ator e os bonecos aos fenômenos físicos da natureza,
que são, por sua vez, movidos por uma força ou energia invisível:
Alfred Jarry
A Escola Bauhaus
9. Já em 1909 Craig faziâ em Florença experimentações com movimento, luz e som. Era o que ele
chamava de "teatro vivo".
185
que antecedeu a muitas apresentações de nossos dias, que ainda se
consideram originais.
Ainda de Giacomo BaIla é a peça Estados Desconcertantes da
Mente, onde os atores são substituídos por formas coloridas.
Outro testemunho da vanguarda futurista foi o Manifesto do
Teatro Radiofônico que em 1933já fazia pesquisas de sons combi-
nados com o silêncio e sons da natureza. Pesquisa essa depois re-
tomada e estendida por John Cage, 1960.
Anton Giuglio Bragaglia interessado na comunicação da
energia, ou na "álgebra do movimento", como ele chamava, escre-
veu o Manifesto do Fotodinamismo. A diferença entre Bragaglia e
os primeiros futuristas é que, enquanto eles diziam que o corpo de
uma pessoa penetra a cadeira em que se senta, Bragaglia dizia que
a cadeira é que ficava impregnada pelo espírito dessa pessoa muito
tempo depois que ela se levantasse". E ainda que as experiências
de Bragaglia se referissem à fotografia, ele falava de imagens, e
suas experiências nos interessam pela relação homem/objeto e pe-
las implicações psíquicas que contêm.
Thais é um filme também de A. G. Bragaglia cheio de ima-
gens abstratas de formas geométricas que aparecem e desaparecem
sob o impulso de ritmo e movimento.
Vita Futurista foi outro filme futurista dirigido por Arnaldo
Ginna, com várias cenas de vários autores e, entre outros, Marinetti
e BaIla. Um dos temas são objetos. Cenouras e beringelas são mos-
tradas sob ângulos quase desconhecidos do nosso ponto de vista óp-
tico comum, uma experiência que só uma câmara pode-nos dar.
Também mostra as circunvoluções de uma bola de borracha, que
pula e salta em volta de uma estátua, outra experiência que só a
nova tecnologia pôde ressaltar . E há também uma cena com diálo-
gos entre um pé, um martelo e um guarda-chuva.
Com os futuristas, pela primeira vez, os objetos são apresen-
tados fora do seu contexto humano, separados e em si mesmos.
10. Carol ine Tisdall , Futurism , London, Thames, 19n, pp. 28 e 140.
186
o Futurismo Russo
o futurismo russo surgiu mais ou menos em 1910, ou seja, an-
tes da viagem que Marinetti fez a Moscou, em 1917. Entre os futu-
ristas russos, citamos Khliebnikov, não só por ser um representante
da vanguarda teatral russa, como também pelas influências que
exerceu sobre Maiakovski, no que se refere às suas preocupações
dramáticas com o objeto.
Khliebnikov, como muitos adeptos de idéias futuristas, apre-
senta constantemente em seu temário seres abstratos, autômatos,
bonecos e objetos. Bonecos e objetos são para ele metáforas e apa-
recem sempre como antagonistas do homem, fugindo ao seu domí-
nio. Os objetos nas imagens de Khliebnikov são possuidores de uma
energia própria, têm alma. É sua, por exemplo, a imagem de um
pássaro enorme e horrendo, amedrontador, um tipo de cegonha,
feito com pedaços de chaminés, pontes, estilhaços de ferro, que pai-
ra sobre a cidade, ameaçando os homens, descrita em seu poema
Juravl", Em sua comédia A Marquesa Desés, os objetos se animam e
os homens se tornam estátuas inertes.
Maiakovski, influenciado como foi por Khliebnikov, freqüen-
temente usa metáforas criadas com objetos para expressar conflitos
do mundo exterior e interior. Os objetos ora representam solidão,
ora agressão, confiança ou amor. Através de figuras muito concre-
tas, ele mostra sentimentos abstratos. Representa o invisível através
de materializações. Os objetos, em Maiakovski, são concretizações
de emoções indefinidas que, quando corporificadas, passam a ter
um poder de ameaça. É o objeto contra o homem:
As coisas não me amam. Um móvel procura passar-me uma rasteira, um canto la-
queado uma vez me deu literalmente uma mordida. Com as colchas tenho sempre relações
muito complexas. A sopa que me servem não esfria nunca. Se uma bagatela qualquer -
uma moeda ou um botão de camisa - cai da mesa, geralmente rola embaixo de um móvel e
não se consegue tirar do lugar. Engatinho no chão e, levantando a cabeça, percebo que o
aparador ri.
11. Apud A. M. Ripellino, Maiakovski e o Teatro de Vanguarda, São Paulo, Perspectiva, 1977, p. 55.
187
Ou ainda:
As vitrinas dos taberneiros,
como a um sinal de Satanás,
remexeram sozinhas no fundo dos frascos.
A um alfaiate aturdido
fugiram-lhe as calças
movendo-se - sozinhas - ~em pernas humanas u .
o Dadaísmo
Dawn Ades diz que o dadá fazia a "apologia do ilógico, de-
fendia o irracional, querendo substituir o absurdo lógico pelo irra-
cíonal">,
O teatro dadá foi uma forma de expressão inventada contra
um sistema de opressão, uma espécie de evasão dos sentidos, era li-
gado ao transe, um retorno às formas mais primitivas de comuni-
cação. Os atores, usando máscaras, liberavam-se como num ritual.
As danças e os sons que lhes vinham, ao vesti-las, favoreciam o ex-
travasamento de sensações interiores desconhecidas.
o Surrealismo
André Breton, que a princípio pertenceu ao movimento dadá,
foi aos poucos dele se afastando, pois buscava algo mais do que li-
beração. Buscava a união de duas realidades: uma realidade estaria
na negação de todo raciocínio lógico e a outra, em nosso incons-
ciente. Sentia que precisava liberar-se, como aprendeu com os da-
daístas, deixar fluir-se sem censura e sem raciocínio. Contudo, para
ele, o mais importante era entrar numa região desconhecida, onde
a imaginação aí pudesse transitar livremente. Através das teorias
dos sonhos de Freud aprendeu a romper as barreiras do consciente
e a penetrar no inconsciente. Mas os objetivos de André Breton
eram diferentes dos de Freud. Enquanto Freud pretendia acomo-
dar as pessoas, curando-as de distúrbios psíquicos para que levas-
sem uma vida regular, Breton pretendia atingir uma harmonia en-
tre o nosso raciocínio lógico e essa região de onde "emanam ima-
gens não encontráveis", segundo suas próprias palavras. Formas
não previstas. Na união desses dois mundos estaria a supra-realida-
de. Assim, chegou ao surrealismo.
O termo surrealismo foi inventado por Apollinaire, em 1922,
e foi logo aceito por Breton.
Antes de Breton, existiram outros precursores dos mesmos
conceitos, depois conhecidos como surrealistas. Por exemplo, Hie-
ronymus Bosch, Arcimboldo e Dürer, pintores que já no século XVI
se aproximaram do que depois, no século XX, se tornou um movi-
mento.
Há uma afinidade entre pensamento, o mágico primitivo e o
surrealismo. Segundo G. Durozoi, a distinção entre a magia do ho-
mem primitivo e a magia surrealista está em que, para os surrealis-
tas, o homem primitivo não se conhece, se busca; e o homem mo-
190
demo (no surrealismo) se conhece e se reconhece", E uma das
formas encontradas pelos surrealistas para chegar ao eu interior, foi
o automatismo psíquico e os sonhos. Chegar ao eu interior era che-
gar ao "sur-real", no sentido, mais próximo à língua francesa, de
uma realidade acima desta ou além. Breton dizia que há um ponto
em que vida e morte, real e imaginário, passado e futuro, grande e
pequeno, se tocam e não são mais percebidos como contrários",
G. Rageot vê o surrealismo não como algo novo, mas algo já
conhecido, apenas atualizado ao gosto da época. "O surrealismo
não é outra coisa do que uma adaptação ao gosto atual de mistério,
do inefável, que encantava aos simbolistas e que foi levado da poe-
sia ao teatro por Maeterlínck?",
O teatro dadá e o teatro surrealista tiveram como principais
expoentes Apollinaire, Ivan Goll e Tristan Tzara, entre outros. E
tanto o movimento dadá quanto o movimento surrealista, na época
em que surgiram, foram muito mais signíãcatívos para as artes plás-
ticas do que para o teatro. Suas influências no teatro vão começar a
se fazer sentir bem mais tarde.
O surrealismo, com seu desprezo pela lógica e com o seu sis-
tema de pensamento baseado no irracional, pretende repensar o
homem e a sociedade, em relação ao seu consciente pessoal ou co-
letivo. Ele objetiva o sujeito e subjetiva o objeto. O objeto no sur-
realismo é visto pela óptica de quem vê. E trata de um mundo além.
Antonin Artaud
19. M. Croyden, Lunatics, Lovers and Poets, New York, McGraw HiII, 1974, Cap, IV - "Artauds pla-
gue", pp. 56-71.
20. A. Artaud, o Teatro e seu Duplo, São Paulo, Max Limonad, 1985, p. 56.
192
choro, riso, música, ritmo. A cada momento surgem surpresas, apa-
rições, luzes, máscaras enormes ou efígies. É uma explosão indivi-
dual e coletiva, atores e público ficam como que possessos. Uma
experiência só semelhante a um cataclisma.
A influência desse teatro sobre Artaud levou-o a criar o seu
chamado "teatro da crueldade". Crueldade no sentido amplo da pa-
lavra. Em suas próprias palavras: "Sob o ponto de vista do espírito,
a crueldade significa rigor. A crueldade é, antes de mais nada, lúci-
da. Não há crueldade sem consciência. É a consciência que dá aos
nossos atos sua cor de sangue, sua nuance cruel, pois está claro que
a vida é sempre a morte de alguém'?',
Os choques que Artaud pretende imprimir através desse tipo
de teatro acontecem por vários métodos. O teatro contemporâneo
está hoje cheio deles. Um deles é a violência, mostra outra realida-
de, não material, mas espiritual. É o teatro, tomado como um duplo
da vida, como duplo de outra realidade. Duplo no sentido de esqui-
zofrênico, alquímico ou metafórico.
Artaud pregava a volta ao ritual, mas sempre teve dificuldades
de colocar suas idéias em prática, pois tinha como modelo rituais
que vinham sendo transmitidos através de séculos de tradição, cujos
atores eram treinados desde a infância. Muitas de suas idéias, se-
gundo Margareth Croyden, foram mal executadas ou impossíveis de
serem assimiladas. "Os resultados são produções cheias de gritos,
grunhidos, circunvoluções que ou são sem sentido ou esotéricas?".
Artaud queria também um teatro baseado em mitos, mas mi-
tos atualizados que tratassem de temas contemporâneos e da nossa
relação moderna com o universo. E para se chegar a uma comuni-
cação com o cosmo era necessária a liberação do eu, a catarse. As-
similou certas práticas orientais de respiração, através das quais se
pode entrar em comunicação com o cosmo.
O teatro de Artaud é místico mas funciona também como te-
rapia. Explica-nos Margareth Croyden que, ao provocar a irritação
21. Aurtaud,idetn,p.69.
22. M. Croyden, op. cit., p. 69.
193
e a hostilidade do público, Artaud mexe com as angústias internas
do espectador. Provocando a irritação, ela atua como terapia, pois
atitudes ou situações externas provocam reações internas semelhan-
tes. O teatro é então um frenesi, um delírio provocado pela desar-
monia que se cria entre forças físicas e espirituais contrárias, até
que o verdadeiro eu, ou o outro, aflore: o duplo que provoca as
transformações.
23. E. G. Craig, On lheAn oflhe Theatre, New York, Theatre Arts Books , 1956, p. 53.
194
Uma palavra sozinha que se repete perturba mais do que
uma longa frase ou mais do que um diálogo coerente. Passa a ter
um efeito perturbador sobre o inconsciente, parece minar as nossas
reservas de defesa racional. E a linguagem que Artaud propõe para
o teatro é essa, aquela que nos atinge pela intuição, pelo incons-
ciente.
Mesmo porque a palavra, no Ocidente, segundo ele, expressa
principalmente conflitos psicológicos. E o teatro não deve ser lógico
muito menos psicológico, apenas plástico. O teatro deve ser algo fí-
sico que entre pelos nossos sentidos e penetre irracionalmente nos-
so inconsciente.
As idéias de Artaud em teatro não se reduziram só a pesqui-
sas da palavra enquanto objeto, som ou ritmo, mas ele fez também
experiências com o silêncio. Abriu caminho para o que hoje leva
vários nomes: teatro não-verbal, teatro visual, teatro do silêncio etc.
Susan Sontag em seu ensaio A Estética do Silêncio nota os as-
pectos frustrantes do silêncio em relação ao público. Diz ela:
"Grande parte da arte de nosso tempo tem sido interpretada pelo
público como um movimento em direção à ininteligibilidade, à invi-
sibilidade e à inaudibilidade... ou como uma agressão contra ele'?'.
Mas a opção do artista moderno pelo silêncio não significa que ele
se cale, literalmente, ele fala, continua a falar, só que de uma forma
que o seu público não pode ouvir.
O silêncio é também uma revisão da linguagem, ele reflete a
descrença da palavra. Pois a palavra como que perdeu sua credibi-
lidade não só pelos excessos da publicidade, como por razões polí-
ticas. Susan Sturn lembra que, nos regimes democráticos, o que se
diz não é sempre a verdade, muitas vezes é a não-verdade, é só de-
magogia; e, nos regimes ditatoriais então, o que se pode dizer não é
o que mais importa, e o que importa fica sempre nas entrelinhas".
24. Susan Sontag, A Vontade Radical, São Paulo, Cia. das Letras, 1987,Cap. I UA estética do silêncio",
p.15.
25. Susan Stum, "The Puppet Theatre as a Source of Theatrical Form", em Mime, Masks and Ma-
rionnettes, V.1, p. 265-290.
195
No teatro do absurdo, a desvalorização da palavra é radical.
A palavra aparece inócua, vazia e não expressa o verdadeiro estado
de espírito das pessoas. A condição humana é simplesmente apre-
sentada no palco, como tal, sem discussão. E, como disse Célia Ber-
retini, "não se trata apenas de uma dificuldade de comunicação, há
também uma ausência do que comunicar". Em Beckett, os diálogos,
quando ocorrem, são cheios de "contradições, de clichês, de frases
inacabadas, interrupções, hesitações, até que se encontre o termo
justo; monólogos sob forma de diálogos, desvios do rumo da con-
versa; sempre tendo o silêncio como fundo?",
Tanto Beckett como Ionesco jogam com pausas, monossíla-
bos, idéias desconexas entre si, símbolos e metáforas. Beckett tem
cenas completamente mudas, por exemplo Ato sem Palavras, onde a
situação humana é simplesmente colocada. É o homem enfrentan-
do sozinho os seus próprios fantasmas, seus pensamentos turvos",
O silêncio pode ser também considerado como uma reação à
linguagem da sociedade contemporânea, onde tudo nos é transmi-
tido ao mesmo tempo, sem ordem cronológica, em meio a sons dos
mais estranhos. Palavras e imagens somadas sem lógica, ouvidas e
vistas pelo rádio e pela televisão, em comerciais e noticiários quase
simultaneamente; captadas em meio ao tráfego ou na cozinha, nas
lojas e em estádios, em saunas ou consultórios médicos; recebidas
casual e indiferentemente, sem que sequer se interrompam as nos-
sas ações mais corriqueiras.
Há também o enfoque de John Cage, para quem o silêncio
não existe, pois há sempre alguma coisa acontecendo que necessa-
riamente provoca sons.
Alwin Nikolais
A Performance
28. A diferença entre um happeninge uma performance é que no happening busca-se a participação da
platéia e na performance, o artista, ele mesmo, é o espetáculo.
29. Apud M. Croyden, op. cit., p. 82.
30. J. Glusberg, A Arte da Performance, São Paulo, Perspectiva, 1987.
198
liza. Para uma performance qualquer espaço é bom e o inesperado é
também parte do espetáculo.
Depende totalmente do performer. Autor/ator, ele representa
a transformação, a mutação, que se opera diante do público. É o
agente do espetáculo.
Há na performance um aspecto ritual e mágico. Nele tudo
é simbólico. Vê-se aí uma grande influência dos surrealistas e de
Artaud.
31. Algumas peças de Bob Wilson têm uma duração exaustiva, sendo, às vezes, impossível assistir a
elas integralmente. A Vida e a Obra de Joseph Stalin, por exemplo, tinha uma duração que variava
de seis a doze horas. A Montanha Ka e o Terreno Guardenia, apresentado no Festival de Shiraz,
levou sete dias e sete noites.
32. L. R. Galizia, Os Processos Criativos de RobertWilson, São Paulo, Perspectiva, 1986,p. 30.
199
teatro de Bob Wilson é também conhecido como teatro do
silêncio, pois nele importa mais o que se vê", E o que se vê é uma
atmosfera de sonho. É um apelo ao visual. Uma colagem de ima-
gens. Surgem e desaparecem multidões. Ao mesmo tempo, uma
pessoa, sozinha, num canto do palco, permanece longamente senta-
da, levando horas para concluir um simples gesto como o de tomar
um copo de leite; ou outro ator passa todo o tempo do espetáculo
pescando, outro dá voltas no palco sempre correndo em moto-
contínuo. E aparecem máscaras, bonecos e até animais vivos. Há
uma cena em que pessoas sentadas em volta de uma enorme mesa,
repleta de farta ceia, mas da qual ninguém se serve, trocam entre si
frases inaudíveis ou incompreensíveis, ou há uma lua que leva o seu
tempo normal para nascer e atingir o alto do cenário.
Suas peças não têm roteiro, nem diálogos, nem desenvolvi-
mento de personagens.
Em New York, Bob Wilson trabalhou como assistente de Al-
win Nikolais, antes de fundar o seu Byrd Hoffman School of
Byrds". O movimento lento é uma característica sua. Segundo Bob
Wilson, estranhas sensações e descobertas ocorrem no íntimo de
cada um, quando se executa vagarosamente as ações, mesmo as
mais corriqueiras. Ele usa muito a repetição de movimentos. Repe-
tir um movimento produz, nas pessoas que o assistem, o mesmo
efeito que o som repetitivo de uma palavra. Tem o mesmo efeito
sobre o inconsciente. Usa tanto movimentos repetitivos como cons-
tantes; o movimento em relação ao tempo, ao espaço, à imagem.
Ritmo, descompasso, rapidez e lentidão. Através da lentidão, o
estático se ressalta; e através da repetição, a continuidade. A busca
da unidade se dá através da serenidade.
O teatro do silêncio de Bob Wilson interessa-nos pelo clima
que cria e pela mistura de elementos que coloca em cena: pelo
fascínio de suas imagens, sem conteúdos dramáticos mas sempre
colocados numa relação de tempo e movimento.
35. Apud D. Bablet, "Tadeusz Kantor et le Th éâtre Cricot 2". Em Le voies de la création théãtrale,
Cap. XI: "T. Kantor", p. 20.
36. B. Eruli , Wieiopole-Wielopole, em Le voies de la création théãtrale, Cap. XI: "'1'. Kantor ", p. 205.
37. D. Bablet, "'1'. Kantor", idem , p. 39.
201
Seu espetáculo A C/asse Morta, de 1975, tornou-se conhecido
internacionalmente. Outro sucesso foi Wielopole- Wielopole, de
1980, criado na Itália. Recentemente apresentou A Máquina do
Amor e da Morte, em 1987.
O objeto ocupa posição importante em seu teatro onde trata
sempre da relação ator-objeto. E o que se usa é um objeto qual-
quer, apenas recuperado para significados artísticos e emocionais.
Quanto menos importante for ele, maiores possibilidades revela.
Usa-o de acordo com princípios construtivistas, isto é, forma com
ele, no palco, ângulos e linhas, que se modificam no contexto da
cena. O objeto é para ele uma espécie de prótese do ator. Cada
personagem tem o seu próprio objeto que, ligado ao seu corpo,
forma com ele um só ser. Brunella Eruli cita como exemplo uma
noiva e seu véu, um soldado e seu fuzil, os civis e os seus bens. Na
cena, esses objetos vão mudando de significado conforme sua utili-
zação. A estola de um sacerdote, em Wielopole- Wielopole, passa de
objeto ritual a um simples objeto caído no chão, rejeitado, sequer
percebido, e depois é retomado com novas conotações".
A manipulação do objeto e suas relações com o personagem
conferem ao objeto aspectos mágicos e inesperados. Há uma cena
na peça Wielopole- Wielopole de que Brunella Eruli nos dá detalhes
com uma máquina fotográfica de função ambígua. Nessa cena, a
máquina fotográfica, daquelas antigas, com sanfona, toma um signi-
ficado duplo. Ao tirar a foto - para posteridade - por um segundo
a máquina prende as pessoas na pose, estáticas e imóveis; eterniza
assim um momento vivo, prendendo-o na imobilidade da imagem;
mas, ao mesmo tempo, ao bater a foto, a máquina, na cena, se
transforma em metralhadora. A metáfora está em que a fotografia
ao mesmo tempo em que eterniza, mata o momento".
No estático e no inerte, a vida está como que morta, ausente.
Pode ser uma pose fotográfica, uma imagem ou o rosto de um bo-
Conclusões
204
2. O OBJETO
Definições e Classificações
40. P. Bellasi & P. Lalli, "Gli Esploratori dell'lmmaginário", em Recitare con gli Oggetti, Bologna,
Cappelli, 1986, p. 12.
sociedade que o criou. "Satélite artificial da cultura e do período
histórico em que foi criado, é escrita, é depósito, é iconografia?".
EIWin Panofsky classifica os objetos em práticos e estéticos",
Os práticos podem ser subdivididos de acordo com as suas
funções ou suas intenções (termo usado por Panofsky). E essas in-
tenções podem ser de comunicação ou de ferramenta,
Já o filósofo francês Jean Baudrillard, que criou todo um sis-
tema de objetos, dá várias classificações para eles que talvez pos-
sam ser resumidas em apenas duas categorias: a categoria dos obje-
tos funcionais e dos não-funcionais",
Os funcionais se subdividem em artesanais e industriais.
Os artesanais são bem diferenciados entre si e trazem o fascí-
nio daquilo que foi feito pela mão do homem.
Os industriais são feitos em série. Existe sempre um modelo
pré-industrial, mas toda uma série logo se lhe segue. Tudo neles é
feito para garantir a sua função: portanto, o fato de não serem dife-
renciados, não importa, importa apenas a sua utilidade. Os objetos
industriais modernos são cada vez menos diferenciados entre si e .
cada vez mais úteis. Tudo neles é planejado de forma a garantir sua
eficácia. Sua estética é subordinada ao seu uso e deles é eliminado
tudo o que não seja essencial à sua função. Essencial, por exemplo,
num moedor de café é o seu motor, não a sua forma ou sua cor.
Baudrillard vê algumas distinções nos objetos funcionais. Se-
gundo ele, alguns estão ligados a certos conceitos abstratos, por
exemplo, o relógio está ligado ao conceito de tempo, o carro ligado
ao de espaço e velocidade. Ou têm conotações próprias: o ferro é
agressivo, frio, resistente, a pedra é permanência, durabilidade ou
imobilidade, o espelho nos remete a nós mesmos e nos interioriza,
cria intimidades como a fotografia que reflete, a porta é passagem,
escape ou chegada, a casa está ligada à mulher, como o carro é
mais ligado ao universo masculino. A casa é ainda o nosso quoti-
l
diano, sendo ela também um objeto abrangente, que tudo contém.
O carro também tem sua simbologia, é uma espécie de centauro
moderno, unindo a inteligência do homem à força do animal.
Outras qualidades dos objetos, como forma, movimento, tex-
tura, suscitam em nós diferentes emoções. Uma bola que pula, apa-
rece, desaparece, traz alegrias ou angústias. Uma lixa é desagradá-
vel ao tato e a seda é voluptuosa. Também suscitam emoções mais
perturbadoras provocadas por razões psicológicas, por exemplo, há
objetos que, por alguma razão muito pessoal, são nossos preferidos
e se tornam causa de ciúme, sequer os emprestamos. Objetos rou-
bados, então, trazem estranhas vibrações, lembram conflitos.
Objetos não-funcionais também podem ser subdivididos em
artesanais ou industriais.
Funcionais ou não-funcionais, os objetos, observa Baudrillard,
quando em desuso, são sumariamente descartados. Podem porém
tornar-se objetos de coleção. E os de coleção, isolados que ficam do
convívio social, acabam "encerrados em si mesmos't".
Os .objetos quanto mais ricos em funcionalidade mais pobres
são em significados. Exemplo contrário são os objetos antigos que
quase não têm função, mas estão carregados de significados. Eles
não servem, nos remetem a outro tempo, falam da nossa história
pessoal ou de nossa comunidade. São ancestralidade, anterioridade.
Transformam-se em objetos mitológicos.
Objetos fetichistas ou religiosos contém poder. Encerram a
alma dos mortos ou têm poderes divinos. Transcendem.
Sarane Alexandrian apresenta ainda uma outra classificação
de objetos. Para ele, seriam cinco as suas categorias: 1. Objetos do-
mésticos, os que ajudam nas necessidades das lidas caseiras, ampli-
ando os gestos humanos; 2. Objetos decorativos; 3. Objetos manifes-
tos, que têm como função demonstrar sentimentos como, por exem-
plo, presentes; 4. Objetos poéticos, criados por associações de idéias;
5. Objetos sagrados, por exemplo, ex-votos, fetiches, relíquias",
o Objeto na Arte
Os surrealistas foram os primeiros a tomar o objeto funcional
como objeto artístico. Diz-se mesmo que o objeto na arte é uma in-
venção surrealista, e que o surrealismo foi um movimento voltado
para o objeto. E os futuristas, por sua vez, foram os primeiros a en-
cenar dramas com objetos.
O objeto no movimento surrealista recebeu vários nomes.
O objeto encontrado ou objet trové, de Marcel Duchamp, era
um objeto qualquer do dia a dia, e sem apelo afetivo algum, mas
que exercia uma atração especial, como se jamais tivesse sido visto
antes. Em geral, era um objeto artesanal, antigo, de origem vaga.
Objeto encontrado-interpretado era também do dia a dia,
mas a ele se acrescentavam alguns detalhes, para que causasse
maior impacto ou para que o seu conteúdo original se transformas-
se, tornando-o obscuro.
Duchamp lançou depois de 1916 os ready made, também obje-
tos encontrados, mas industriais e feitos em série, aos quais o artista
colocava algum toque pessoal, a sua marca, um pensamento, uma
idéia. Segundo Sarane Alexandrian era "a arte de transformar em
espiritual o que existe de mais material?". Com eles, Duchamp
queria fugir à tirania do convencional, escapar do que se considera-
va ser bom gosto, e bom gosto no sentido de ser apenas um hábito.
210
3. TEATRO DE OBJETOS
Considerações Gerais
49. Renato Pallazzi, "Suicidio in un Bichier d'Acqua", Comere del/a Sera, s.d. (Material enviado pelo
Teatro deIle Briciole.)
...
Renato Pallazzi ressaltou o fato do teatro de objetos não ter outras
referências senão a própria. É um tipo de pesquisa, sem teorias.
Nasce, vive e sobrevive de sua prática. Continua ele: "Está ligado
ao teatro de bonecos mas tem muitas afinidades com a performance
e com as transformações do objeto que, a partir do dadaísmo, sem-
pre encontrou adeptos na cultura contemporânea'v",
Bernard Raffali, na apresentação que fez do Festival Micro
Macro, de 1987, disse: "O teatro de objetos participa desse imenso
movimento que traz de volta discussões sobre o real, iniciadas pelo
movimento surrealista'?'.
Para Christian Carrignon e Kathy Deville, do Théâtre Cuisi-
ne, o teatro de objetos é uma reação ao teatro de bonecos. É o can-
saço de ficar atrás das cortinas de um palquinho. Ou, mesmo que o
ator fique à vista, isto é, que manipule os bonecos à vista do públi-
co, ainda aí o ator é personagem, em relação aos bonecos que ma-
nípula, Mas, segundo C. Carrignon: "No teatro de objetos o ator
não entra jamais na pele do personagem. Ele permanece ele mes-
mo na cena, desenvolve certas particularidades de sua personalida-
de, mas jamais ao serviço, por exemplo, de um texto. (00') Nossos
objetos são brutos, sem temperos. São os objetos mesmos da vida"52.
O teatro de objetos, para Cuisine, é o anti-teatro.
Há uma ligação entre ritual e teatro de objetos. Dominique
Houdart, numa entrevista em que comenta sobre a relação do tea-
tro com o ritual, menciona a René Girard, para quem a sociedade
por natureza é violenta e a única coisa capaz de conter essa violên-
cia é o sagrado. "O sagrado permite à sociedade continuar existindo
e evita um estado permanente de guerra?",
E sobre a relação do teatro de objetos com o ritual, Bellasi
lembra V. Turner que distingue os ritos da sociedade pré-industrial
54. P. Bellasi disse: "A n06SO ver, é principalmente no micro teatro que esta áurea ritual assume a sua
força original, na crueza da relação oficiante-símbolo e isto mediante uma espécie de sacralização
comunicativa do objeto funcional, profano". Em Recitare congli Oggetti, p. 15.
55. Bellasi & Lalli,op. cit., p. 14.
56. Idem, ibidem.
213
propulsora da vida, só ele pode dar sentido à condição humana. E
no teatro de objetos o objeto funcional se transporta para o domí-
nio, ou campo, do imaginário.
Há ainda no teatro de objetos um outro aspecto, que é a re-
lação homem/objeto/gesto, levantado por Christian Ginouvier, sob
influência das idéias de Baudrillard", Essa relação mudou (como já
vimos, ao abordarmos Baudrillard) com a eclosão das máquinas e
dos objetos industriais. Diz Ginouvier: "Diante da máquina, o ho-
mem se tornou objeto, um simples espectador, e o objeto passou a
ser sujeito da ação". Ou ainda, "O objeto se apaga na medida que é
cada vez mais capaz de realizar um grande número de operações
sem a repetida interferência do homem, e este, por sua vez, também
se apaga ou se desobriga de uma série de atividades físicas e inte-
lectuais?". Ginouvier cita também Lewis Munford que disse: "A
máquina conduz a uma eliminação de funções que leva à paralisla?".
Mas se a máquina elimina o gestual do homem, no teatro de
objetos esse gestual é recuperado, pois, em cena, não existe o gesto
mecânico. No jogo cênico, tanto o ator como o público acabam des-
cobrindo um gesto próprio de cada objeto. No teatro de objetos a
relação homem/objeto/máquina, se modifica na medida em que o
teatro resgata o gesto. O objeto, ao se tornar sujeito de uma ação
teatral passa a ser percebido novamente como o objeto mesmo que
é, ou seja, o homem volta a apreendê-lo como tal, como observou
Ginouvier. Em cena o objeto nos capta, prende nossa atenção e nos
faz redescobri-Io.
Quanto ao nome teatro de objetos ou micro-macro teatro, al-
guns consideram a denominação micro-macro a mais apropriada.
Mas, por que micro? E por que macro?
Micro teatro não quer dizer necessariamente um teatro pe-
queno e não tem nada a ver com teatro para crianças, mas se refere
à relação grande/pequeno.
.
No teatro de objetos tudo ou é muito grande ou é muito pe-
queno.
Os objetos são pequenos em relação à mão do homem, e esse
contraste, colocado no palco, causa estranha sensação.
Claus Rath, um psicanalista e sociólogo interessado na temá-
tica da miniaturização, escreveu um artigo, intitulado "Grande Pie-
colo, Micro-Macro", no qual analisa o teatro de bonecos e o sentido
figurado do termo micro e macro'".
Segundo ele, a palavra micro se aplica ao teatro de objetos
por existirem nele detalhes que, em geral, são ignorados no teatro
de ator. Detalhes como o som de água caindo, a respiração dos ato-
res ou um telefone que, de repente, toca fora de cena num momen-
to de suspense. Micro também são os detalhes que apresenta em re-
lação ao tempo, frações de segundo postas em relevo e o espetáculo
de repente se torna muito lento. "Como se os objetos em sua pe-
quenez pudessem fazer parar o tempo?", Nesse clima, o pequeno
se avoluma e passa a ter uma força e um poder que o situam entre
ameaça e fascínio. É macro.
Nessa analogia de micro e de macro, Claus Rath lembra os
paradoxos da nossa sociedade. Cresce cada vez mais, diz ele, o fascí-
nio dos micro objetos, dos objetos compactos, dos minicomputado-
res e dos aparelhos eletrônicos, que são cada vez menores e mais
poderosos ao mesmo tempo em que cresce o medo das mini células
atômicas, o medo dos quase invisíveis microorganismos, ou vírus,
responsáveis por doenças incuráveis. Um micro universo, que só re-
centemente nos foi revelado por possantes microscópios, antes não
existentes, nos mostram detalhes da natureza e de nossos próprios
corpos, até então desconhecidos. Por exemplo, detalhes dos nossos
poros ou pigmentos coloridos das asas de uma borboleta. Através
do micro se desvenda um macro mundo. "No fluxo de nossa fanta-
sia", diz Rath, "o pensamento vaga e pula do pequeno ao grande,
É alguma coisa que nos convida a abandonar nosso estado perceptivo para ativar-
mos uma sensibilidade especial do olhar e descobrir, com a nossa visão, o valor inédito do
jogo teatral que não reconhece (ou desconhece) a convenção espaço-tempo do teatro codi-
ficado . É um fenômeno próximo da arte figurativa e próximo do teatro de bonecos63•
Grupos e Espetáculos
Théâtre Cuisine
64. Poucos foram os espetáculos de teatro de objetos aqui mencionados a que pudemos assistir. Mas
sobre eles coletamos informações através de releases, programas de festivais, entrevistas, infor-
mações recebidas por correspondência etc. As sinopses que se seguem foram tiradas de releases
publicados nos programas dos Festivais Micro-Macro de Reggio Emília de 1985-87, e do programa
do Festival La semaine de la marionnettes à Paris, 1984.
65. Ginouvier, op. cito
66. Ver nota 64.
218
L 'opera bouffe, aqui o reino vegetal e o mineral se confundem
com o reino humano, de tal forma que se torna difícil saber quando
é um e quando é o outro. É o imaginário.
Vingt minutes sous les mers é uma epopéia de quarenta litros
de água para quarenta espectadores. A ação se passa dentro de um
aquário.
Derriêre la façade é a história de uma casa e de 'seus habitan-
tes. O espetáculo é dividido em quatro cenas, que são os quatro
momentos de um dia, mostrados nos quatro planos de uma casa de
boneca. Dentro da casa, veêm-se os móveis e os objetos da casa.
Um narrador conta a história de dois personagens, Yves, um meni-
no, e seu avô, Raymond.
Em Faux depart o assunto é ele e ela. Ela, com suas plantas,
seu espelho, sua cama, a louça por lavar, suas esperanças, sua lista
de coisas por fazer, seu olhar, seu vestido, sua voz, seus cabelos, seu
passado, sua solidão. Ele, com seu livro, suas malas, seus sapatos,
seus sonhos, sua cama, seu escritório, seu dicionário, seu relógio,
sua solidão.
Os espetáculos do Théâtre Cuisine são sempre uma seqüência
de cenas. O que estrutura um espetáculo de objetos, de acordo com
o Théâtre Cuisine, é o seu ritmo. Se não houver uma precisão rít-
mica muito grande, o espetáculo não existe, não é nada.
Para Carrignon, o teatro de objetos mostra a posição do artis-
ta com relação ao objeto. E como disse o crítico Alessandro Liber-
tini, a respeito de um espetáculo, "É maravilhoso conseguir analisar
as emoções que sentimos diante de um parafuso?",
No teatro de objetos, o fundamental é a relação que se esta-
belece entre o ator, o objeto e o ambiente em que o objeto está.
Pois o ambiente em que o objeto se apresenta é mais importante do
que ele mesmo. O ambiente, o momento e o ritmo.
Carrignon admite que um espetáculo de objeto, em si, é mui-
to frágil, tem pouco em que se apoiar, mas ele se sustém pela ener-
gia pessoal que emana do ator-criador.
68. B. Bettelheim, A Psicanálise dos Contos de Fadas, Rio de Janeiro, paz e Terra, 1979.
220
No tempo em que o homem primitivo sabia conduzir o seu espírito, ele ia muito
mais longe no céu do que o homem do século XX. A era tecnológica será um passo atrás na
pesquisa do espaço? A prova está em que um conflito nuclear pode pôr fim a todas estas
nossas perguntas.
Velô Théâtre
Théâtre Automatique
69. Tivemos a oportunidade de assistir a esse espetáculo em São Paulo em maio de 1987 e pudemos
constatar a simbologia dos objetos colocados no palco.
222
L'Arc-en-Terre
A Torre Eiffel, soberbamente imóvel, é um ser microcéfalo com enorme ventre que
contém centenas de milhares de visitantes que sobem deleitosamente suas infmdáveis esca-
das para se entregarem aos prazeres preferidos de Pai Ubu, que são: comer e contemplar a
paisagem que se estende do Campo de Marte à Escola Militar 7o•
Paul Zaloom
70. No Festival Internacional da UNIMA, Dresden, DDR, 1984,pudemos assistir a um outro espetá-
culo desse grupo, A Trágica História de Macbeth, onde se percebe certa influência do Bread and
Puppet. Macbeth foi uma produção anterior a Ubu Rei.
223
Teatro de Massue
Compagnie Mediane
Remondi e Caporossi
71. A. Mascolo , "Fasclnio dei Giallo della Christie con tanta Fantasia e uno pó di Borges", Gazetta di
Parma, s.d ,
225
se na penumbra, animando bonecos e objetos que contracenam
com máquinas, e essas se movem sozinhas.
Entre o onírico e o real, entre o quotidiano e o imaginário,
dão vida a micro e macro estruturas com uma técnica sutilíssima.
"A luz faz o teatro", dizem os Briciole. "E é preciso acreditar
neles", acrescenta Cesare Govi, "porque estão reinventando o tea-
tro, ou inventando-o?".
Entre as suas produções infantis de mais sucesso, notamos O
Camundongo e seu Filho. Usam nessa peça brinquedos de verdade
que são depois alterados e animados e se tornam objetos faladores.
E um camundongo de corda, que encontra, depois, outro camun-
dongo de verdade, isto é, um boneco animado. É ainda Antônio
Mascolo que nos diz em outra de suas críticas:
o Camundongo e seu Filho não é outra coisa senão uma educação sentimental, uma
peregrinação acidentada, em busca de si próprio. Brinquedos mecânicos vão em busca de li-
berdade, isto é, de uma autonomia que, por razões objetivas, só podem consegui-la através
de um autocarregamento, e que seria o fim do seu automatismo, o fim da dependência de
uma mão (sempre a de outros, a que lhes dá o giro final na chave)73.
74. Detalhes sobre o processo de criação dessa peça ver Parte 3,Cap. 3, p. 225.
228
Charleville-Méziêres, em 1982, e foi talo seu sucesso que teve de
ser repetido. Foi a revelação do ano. Desse festival em diante cho-
veram convites para participação em todos os festivais europeus e
americanos.
Eles dramatizam a criação do mundo com dez quilos de argi-
la, quatro peixes de verdade, um aquário, dois sacos de plásticos
cheios de água, uma torre feita de "lego", uma tela onde um filme
de Charlie Chaplin é projetado (na qual depois ateiam fogo). Deus
é um diretor que tudo supervisiona, tendo ao seu lado um auxiliar.
Há muito humor e muito rock:
Assim comentaram o Gênesis, em Barcelona. "O Teatro delle
Briciole consegue integrar, num espetáculo ameno e brilhante, o
trabalho do ator com bonecos e objetos. Gênesis é um espetáculo
criativo, fantástico, uma prodigiosa combinação de ritmo e síntese
narrativa'?',
A Casa do Sono é uma peça baseada em As Metamorfoses de
Ovídio. Aí o que importa é a transformação e os seus mecanismos:
o corpo humano físico assume outras formas concretas de existên-
cia, não humanas, mas nelas alguma coisa interior se humaniza, se
transforma. Por exemplo, numa árvore, num animal, numa fonte etc.
A transformação teatral de As Metamorfoses de Ovídio nos
leva a Dresden, uma das mais lindas cidades européias e a que mais
sofreu nos bombardeios da Segunda Guerra Mundial. A história se
inicia com um filatelista a caminho de Dresden. No trem, surgem
estranhas entidades ou sinais como que para preveni-lo a fim de
que não siga. Mas em vão, o filatelista prossegue em sua viagem.
Em Dresden, participa de todo o horror dos bombardeios. No final,
ele é o único sobrevivente; entre os escombros as aparições retor-
nam, passando, ele também, por transformações.
A proposta deste espetáculo põe em evidência a proposta
mesma do Teatro delle Briciole que é a da transformação contínua,
uma constante pesquisa para que as mudanças ocorram. Sempre
em busca do novo.
L'Are em Terre, Ubu Roi, dir . de Massimo Shuster (In: Recitare con g/i oggetti de P. Bellasi & P. Lalli).
76. Trata-se do livro de auto ria de P. Dellasi e P. Lalli, Recitare con gli Oggetti, muito mencionado aqui
em nossas notas e na bibliografia. Ta nto essa publicação como outras sobr e o grupo e sobre os
seus espetáculos foram -nos gentilm ente enviadas pelo Teatro delle Driciole.
230
4. TEATRO DO OBJETO-IMAGEM
Considerações Gerais
Grupos e Espetáculos
77. Guto Lacaz, jovem artista plástico paulista, utiliza em suas esculturas e performances objetos in-
dustriais, em partes ou inteiros, em suas funções originais ou em outras por ele atribuídas. Seu
trabalho muito se aproxima do teatro de objetos, só que ele não anima os objetos no sentido
dramático. Os seus Rádios Pescando, composições expostas em 1986 no MAC, estão a um passo
do teatro de objetos, enquanto idéia, faltando-lhes porém o ator-manipulador para lhes dar vida
dramática.
233
saparecem. Criam um relacionamento entre si de suspense e de afe-
to, e a impressão que se tem é de que eles dialogam numa lingua-
gem própria. Unem-se, fundem-se, de repente, surge um conflito e
se separam, se perdem; e voltam novamente a se encontrar. São
personagens sem corporeidade, meros reflexos de luz, mas com
existência real. Emocionam.
Em Kronos eles ampliam suas imagens, usando máscaras
corporais, formas enormes, como, por exemplo, um vulcão todo
iluminado, que toma todo o palco, do qual saem estranhos gnomos
luminosos.
79. A mesma palestra foi repetida na UNICAMP onde o Departamento de Física, sob a direção do
professor José Joaquim Lunazzi, tem feito experiências com holografia . Pudemos então ver alguns
dos efeitos que a holografia cria. O movimento da imagem nos chega por um fenômeno físico e,
através dele , se percebem, em certos objetos, cores que antes não se percebiam. O efeito ilusório
da imagem é intrigante, pois a imagem está visível e, de repente, por uma fração mínima de movi-
mento do olho observador, já não está , desaparece. É visível-invisível,ou invisível-visível.
239
5. TEATRO DE FORMAS ANIMADAS
o
lingüista dinamarquês Louis Hjelmslev, para quem a lin-
guagem é um sistema de signos, as palavras dividem-se em signos e
não-signos. Figuras são não-signos, isto é, são as unidades mínimas
de comunicação. Não-signos ou figuras são, por exemplo, as letras
do alfabeto que formam as palavras ou os signos. "Figura", portan-
to, é menor do que um signo. Existem figuras e signos, como exis-
tem fonemas e palavras",
88. E. Podehl, "Po ur une dramaturgie du théâtre de figures", Marionnettes, nO 13, 1987, p. 7.
246
mento que lhe é impresso". A forma em si não tem moção própria,
pois é matéria, mas, em cena, transforma-se em personagem na
medida em que recebe energias e movimento.
Para Enno Podehl, a dramatização do teatro de formas ani-
madas se apóia na forma e no movimento, talvez mais no movimen-
to que na forma, mas Podehl observa sempre como o movimento
depende da estrutura da forma. São, enfim, interligados.
Gérard Lépinois diz também que a dramaturgia do teatro de
formas animadas se apóia no movimento, em pequenos detalhes de
gestos, e, para ele, a forma é secundãria", Lépinois dá preferência a
formas não muito determinadas, a figuras inacabadas. Ainda que,
dramaticamente, a imagem, com sua plasticidade, cor, relação com
o espaço, seja importante, o ato teatral só se inicia com o movimen-
to, e este é resultante da energia do ator-manipulador.
Quanto à palavra, Lépinois acha que ela é explicativa demais
e o teatro não deve explicar nada, deve simplesmente viver si-
tuações. A palavra pode vir, mas a prioridade é sempre da forma
(boneco, objeto, imagem) em movimento". Pois o movimento é o
que determina um personagem, é o que lhe confere vida e ani-
mação. A magia de uma cena ou espetáculo é o resultado da mistu-
ra de elementos provocados pelo movimento, em relação a sua
forma, ao seu material, a sua leveza, ao seu peso, as suas articu-
lações etc.
O importante é reduzir ao máximo as ações para aumentar a
intensidade dos gestos.
O movimento tem aspectos físicos e psíquicos. Físicos porque
é uma conjunção de espaço, tempo, matéria, peso, volume etc. E
psíquicos, porque a animação nada mais é do que uma conscienti-
zação do movimento, é a sua não-mecanização.
Para Grotowski, o impulso é o que existe de mais importante
no trabalho do ator, é, para ele, o que leva ao gesto, é a exteriori-
89. Idem , p. 8.
90. Gérard Lépinois. "Une chance pour I'écriture?" Théâtre Public, sept. 1980, pp. 63-65.
91. Idem, ibidem.
247
Mabou Min S, /mllKifl atin n Dead lmagin e ,
.
holo grafia de Lind a Hurrininn
.
Co mpag nie Suforel
(Foto cedida pelo grupo).
zação de uma emoção. E em Bob Wilson, procura-se chegar ao mo-
vimento como a um fenômeno em si, o movimento pelo movimen-
to, sem causa e despojado de qualquer sentido psicológico. O gesto
emocional de Grotowski estaria mais ligado ao boneco e à máscara,
isto é, às figuras antropomórficas; e o movimento de Bob Wilson se
aplicaria mais às imagens abstratas ou aos objetos concretos.
O lento ressalta o estático. Desperta maior emoção. No gesto
lento, importa sua trajetória. Isto é, na lentidão, à medida que
energias vão sendo dispendidas, sentem-se nitidamente certas vi-
brações. E quando se acresce aos movimentos lentos um jogo de
luz, a impressão que se tem é de que a matéria respira, vibra.
Claro que existem também os movimentos dinâmicos, ne-
cessários ao ritmo. Como exercício é interessante apresentarmos os
movimentos de uma máquina contracenando-os com gestos emo-
CIOnaIS.
O movimento tem a ver com a estrutura e a forma do objeto,
tem a ver com a substância material de que essa forma é feita. Mas
tem a ver também com causas externas ao objeto. Por exemplo, im-
pulsos dados pelo ator; movimentos resultantes da ação da gravida-
de; ou movimentos gratuitos. Um cone é estável, permanece, pene-
tra; uma esfera é um contínuo ir; o quadrado tem pouca mobilidade.
A textura, a substância de que um objeto é feito, pode também
alterar seus movimentos. Isto é, se forem de material flácido, elásti-
co, leve, pesado, flutuante, transparente etc. Características que de-
vem ser observadas e anotadas como se observa e se anota o cará-
ter de um personagem.
O movimento de uma máquina ou de um boneco mecanizado
distingue-se dos movimentos de um boneco bem manipulado, pois
através deles se transmitem pensamentos, como observou Hubert
Japelle: "O fascínio de um boneco ou de um objeto está na ilusão
que eles nos dão de estar pensando?", O que transforma um objeto
inerte em animado são aqueles movimentos que parecem ser resul-
tantes de uma atividade psíquica, alguma coisa que nos faz crer
93. Segundo H. Japelle, os seres vivos, eomo o homem, os animais e também os vegetais, são seres
que têm moção própria.
94. H. von Kleist, Teatro de Marionetes, Rio de Janeiro, MEC, 1978.
95. B. Boie, L'homme et sessimu/acres, Paris, Cort i, 1979.
251
X I'T( l , ti 1/11"("(''' (1 Srn tim cn ta ! Co ntra -Atara
nem a linguagem simbólica do gesto. E B. Boie cita Hans Bellmer,
ilustrador de recente edição do citado artigo de H. von Kleist. Bel-
lmer é também um pensador ligado à análise da imagem e do in-
consciente. E para H. Bellmer, a marionete não deve ser vista só
sob o seu ponto de vista mecânico mas também sob os seus aspec-
tos estéticos e psicológicos". Estéticos, enquanto imagem; e psi-
cológicos, enquanto símbolo subjetivo, conferido por nossa mente e
nossa imaginação.
Se para H. von Kleist o gesto é um resultado mecânico que
obedece às leis da gravidade, para Bellmer o gesto é a expressão do
inconsciente.
Sendo o movimento causado por impulsos vitais do ator, e
sendo o ator aquele que cria no palco a vida de um personagem, es-
sa mesma vida pode também desaparecer instantaneamente, se o
ator se descuidar, um segundo que seja, dos seus movimentos e,
nesse caso, o personagem volta a ser um simples objeto ou coisa. A
ilusão de vida é dada pela atenção, tensão e intenção do ator, e pa-
ra isso colabora também a técnica. Na técnica de construção de um
boneco lhe são conferidos diferentes possibilidades de movimentos;
e no caso de objetos, já prontos, a técnica que mais pesa é a habili-
dade de manipulação e o conhecimento de estruturas de bonecos
para ser aplicado ao objeto. É importante que o ator-manipulador
conheça e crie intimidade com as estruturas e com as possibilidades
de movimento do objeto; e quando alguma coisa vai mal, muitas
vezes é apenas um problema técnico que precisa ser corrigido.
Ao se dizer que o movimento é parte da dramaturgia do tea-
tro de formas animadas, não se quer afirmar, com isso, que a pala-
vra seja sempre excluída dele; ela pode ser-lhe acrescentada. Só
que ao contracenar com forma, toma um ritmo diferente daquele
que tem, quando pronunciada por um ator que contracena com ou-
tros atores. A mesma palavra, entremeada de imagens fortes, já de
per si carregadas de energia vital, assume outro ritmo e até mesmo
256
A Coisa - VihraçtÍrs Lu z ,lo Ohj,·/o Imll gl ·m .
Teatro Ex pe rime nta l 11 ' Anima ão , dir . •1<- • M . AII••lIHI
_ _ _ _ _ _ _ _ _ _ _ _ _ _ _ _ _ _ _ _ _ _ _ _ _ _ _ _ _ _ _ _ _ _ _ _ _ _ _ _ _ _ _ _ _ _ _ / 1: 1_ ""1_ H
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6. PROCESSOS DE CRIAÇÃO:
GRUPOS E DIRETORES
A Máscara e a Mímica
99. G. Fabre, "Les masques dans le théâtre américain d'aujourd'hui", em O. Aslan & D. Bablet, Le
Masque, Paris, CNRS, 1985,p. 249.
100. G. Fabre, op. cito
264
na escola de Jacques Lecoq, em Paris, que os criadores desse grupo
estudaram e se conheceram.
Para Decroux, a mímica é uma arte em si e não um meio, en-
tre outros, de expressão teatral. Ela não visa substituir palavras por
gestos, mas é a arte autônoma do gesto, eliminado dele todo ele-
mento supérfluo. Segundo Decroux, a mímica apresenta expressões
até na imobilidade, pois o corpo imóvel tem expressão em si trans-
mitida pela tensão do olhar ou pela plasticidade da forma.
Depois da experiência com essa escola, o Mummenschanz
criou, profissionalmente, uma maneira própria de fazer mímica
com máscaras. Máscaras nas quais os seus atores habitam e, dentro
delas, expressam estados de espírito, emoções, ciúmes, inveja,
amor, medo, incomunicabilidade etc. Partem de seus corpos mas
também de coisas exteriores como, por exemplo, dos materiais de
que se servem para construir os seus invólucros.
O processo de trabalho do Mummenschanz começa numa
pesquisa às lojas quando vão em busca de materiais novos, tecidos,
borrachas, isopor, plásticos ou na observação das últimas novidades
lançadas pela indústria de brinquedos, como uma bola de plástico
que, quando cheia de ar, sobe por pressão de calor solar.
Vem em seguida a pesquisa do gesto certo para cada objeto, o
gesto apropriado para cada novo material descoberto.
Para o desenvolvimento de suas idéias é fundamental ao gru-
po o aquecimento do corpo; e diariamente faz exercícios de acro-
bacia, ginástica, tai-chi, dança. A preparação física é uma prepa-
ração de idéias, é um estímulo para a atividade psíquica (lição
aprendida na escola de Lecoq). Da atividade psíquica ou intelec-
tual, o grupo passa ao visceral.
A criação de suas formas ou máscaras é uma combinação dos
vários elementos que coloca diante dos olhos. O caos inicial é im-
portante como ponto de partida. Cada nova forma criada precisa
ser vista com atenção, observados os seus movimentos naturais. Em
seguida o grupo se dá um tempo. Isto é, espera que as idéias ama-
dureçam por si, pois tudo que é importante volta. Às vezes cria per-
sonagens, máscaras ou toda uma cena, sem que saiba depois onde
265
colocá-los ou o que fazer com eles. As idéias arquivadas ressurgem
noutra ocasião.
Esse processo pode parecer tortuoso mas, uma vez dentro de
um caminho, a coisa vai-se clareando durante os ensaios, quando
entram outros elementos: espaço e tempo.
A direção é do grupo mas às vezes recorre a uma assessoria
técnica, principalmente para a coreografia dos movimentos.
O trabalho do Mummenschanz é de mímica e máscaras. Más-
caras quase sempre corporais, onde o corpo se expressa através de
formas.
101. D. Zerki e P. Foumel, "La Compagnie P. Genty", p. 103, em Les marionneues, Paris, Bordas,
1982.
267
Da Forma ao Boneco e do Boneco ao Movimento
Imagem e Texto
Movimento e Corpo
103. A redação deste item foi baseada em artigo de R Wallet sobre J. P. Lescot, Marionnettes, nO 12,
1987,pp. 30-31.
104. O grupo japonês Sankai Juku foi fundado por Ushio Amagatsu em 1978, e é composto por ele e
mais quatro bailarinos. Recentemente, o grupo esteve em São Paulo, em 1988. O grupo 'segue a
linha da dança Butoh, conhecida entre nós a partir de Kazuo Ohno. O Butoh é uma dança, ou
melhor, uma arte do corpo, que busca uma linguagem não tradicional, isto é, cheia de contorsões
e trejeitos e se contrapõe ao estático teatro nó e ao grotesco kabuki.
271
Entre os mais jovens, nem todos ainda conhecidos, são muitos
os que se utilizam de formas para suas coreografias, servindo-se de
objetos para criá-las ou para que os seus bailarinos com eles con-
tracenem.
Alexandre W. Anaya e Steven Barn, da França, entrosaram a
dança com o objeto. Eles vêem no objeto possibilidades de vida.
Procuram observá-lo, descobrir suas possibilidades e ajudá-lo a
transmiti-las. Disse Anaya, numa entrevista a Roger Wallet: "Dian-
te de um objeto bruto eu não busco senão descobrir suas possibili-
dades para fazê-lo viver"los.
Entre as suas primeiras experiências está um espetáculo inti-
tulado George e os Sonhos. Para sua montagem partiram da obser-
vação do interior do corpo humano, e a dança passou a expressar
processos vitais do nosso organismo. E nada mais vital do que as
funções dos nossos órgãos. No final do espetáculo, bonecos de ma-
deira eram trazidos à cena. Mas a imobilidade desses bonecos in-
comodou-os de tal forma que a partir daí se dedicaram a estudar
construção de bonecos para usá-los com movimentos.
Para eles, o bailarino-manipulador funciona como um motor
do objeto ou do boneco. Uma concepção diferente do ator que vê
no objeto, ou no boneco, uma sua extensão.
Da Pintura ao Teatro
106. Disse F. Lazaro: "E vem então o momento cruel em que somos reduzidos a nada , é quando nos
arrancam as vestes, nossa humanidade, e nos reduzem ao estado de grito". Marionnettes, nO 10,
1986, p. 12.
107. A redação deste item foi baseada em entrevista de R. Wallet com F. Lazaro, Marionneues, nO 10,
1986, pp. 10-13.
275
gem, forma, ou boneco, por ver neles protagonistas. É quando um
espetáculo se cria. Momento de passagem no qual se estabelece um
contato, a nível da intuição, com estranhas energias. E se rompe a
dicotomia matéria/espírito.
276
7. DA REALIDADE QUOTIDIANA
À EXPRESSÃO DO INDIZÍVEL-INVISíVEL
A Máscara
1. Wolfram Mehring, " Le masque au Th éâtre de la Mandragore", em O. Aslan & D. Bablet, Le mas-
que, Paris, CNRS, 1985, p. 185.
278
Se no Oriente o seu portador se sente transformado com ela,
se recebe dela energias, no Ocidente quem a usa não sente que re-
ceba coisa alguma, ao contrário, ele a vê como um objeto ao qual
ele precisa dar vida. O ator ocidental usa máscaras sem conotação
alguma de passado ou de energias cósmicas, sem outros significados
senão aquele que o seu visual lhe confere.
Nestes últimos anos porém, a máscara ganhou no Ocidente
um significado novo. Por suas qualidades passou a ser usada como
um instrumento de preparação do ator. A máscara faz com que ele
perca a relação habitual que mantém com o mundo a sua volta e
lhe dá uma sensação nova de espaço e tempo, favorecendo também
sua introspecção. A máscara ensina o ator a manter uma atenção
contínua sobre seu corpo e sobre seu rosto, obriga-o a controlar
seus movimentos. O ator é levado a fazer movimentos mais lentos e
mais energéticos', Ao mesmo tempo em que provoca uma conscien-
tização do corpo, a máscara favorece a interiorização.
No Oriente como no Ocidente, qualquer que seja o seu uso, a
máscara provoca uma transformação. Os seus significados são sem-
pre intuitivamente captados, pois a máscara exclui o pensamento
racional.
Boneco e Máscara
2. Estas conclusões foram tiradas de nossas experiências com exercícios feitos em aula.
279
mesmas conotações transcendentais da máscara. Já em outras cul-
turas, como a européia, ele se aproxima mais do humano. Mas, de
forma geral, o boneco, mesmo sendo um elo entre o humano e o
não-humano, está mais próximo do homem do que a máscara.
Máscara e boneco, ambos têm essa característica comum de
representar sempre o geral, os tipos, nunca o particular. E particu-
lar são os indivíduos, pessoas verdadeiras, enquanto o tipo é alguma
coisa que não existe, é um aglomerado de idéias, são traços essen-
ciais. Portanto, máscara e boneco não são pessoas reais.
3. Th érêse Malachy, J. Anoui/h: /es problêmes de /'existence dans un théãtre de marionneues, Paris, Ni-
zet, 1978, p. 18.
280
do que máscaras, bonecos e formas animadas. Para Artaud, o teatro
deve também mostrar a poesia através de imprevistos objetivos. E
ele explica o que seriam esses imprevistos: "Imprevistos não nas si-
tuações mas nas coisas mesmas, passagem intempestiva e brusca de
uma imagem imaginada para uma imagem verdadeira'", Por exem-
plo: "O aparecimento de um ser inventado, de pano e madeira, in-
teiramente artificial que não corresponda a coisa alguma e que, no
entanto, seja inquietante por natureza e capaz de reintroduzir em
cena um pequeno sopro do grande medo metafísico'". E sobre ima-
gens, diz Artaud: "Bonecos, máscaras enormes, objetos de pro-
porções enigmáticas estarão em cena na mesma condição das ima-
gens verbais'".
Quando falamos em teatro contemporâneo estamos falando
de uma dramaturgia que nada tem a ver com a dramaturgia clássi-
ca, racional, consciente, com começo, meio, fim, mas uma drama-
turgia na dimensão do inconsciente, onde espaço e tempo têm ou-
tra relação", No teatro clássico existem conteúdos intencionais, do
ego; e, neste outro tipo de dramaturgia, o que existe são conteúdos
independentes da nossa vontade ou da nossa consciência, existem
manifestações de um não-eu inconsciente que fala de uma realida-
de que nos transcende.
4. A. Artaud, o Teatro e seu Duplo, São Paulo , Max Limonad, 1985, p. 58.
5. Idem , p. 59.
6. Idem , p. 124.
7. A linguagem dos sonhos exclui o raciocínio lógico. "Uma história narrada pelo nosso espírito cons-
ciente tem início, meio, fim; tal não acontece com o sonho". C. G . Jung "Chegando ao Inconscien-
te" , p. 28, em O Homem e seus Símbolos, São Paulo, Nova Fronteira, 1964.
8. Ainda que seja temerário afirmar qualquer coisa genérica a respeito de um continente, pode-se di-
zer que na África teatro e rito são inseparáveis.
281
Françoise Grund qual seria na África a distinção entre um boneco
de teatro e uma imagem votiva, ela respondeu que uma imagem vo-
tiva é um objeto que representa uma divindade organicamente se-
parada do crente; e o boneco, usado num espetáculo, é um objeto
através do qual o crente, ao manipulá-lo, se identifica com um deus
e torna-se, através do boneco, parte desse deus". E há ainda, diz ela,
uma diferença entre um boneco que nunca foi usado e outro que já
foi manipulado. O que já foi usado é um boneco "habitado'?",
Citamos esse depoimento como mais um exemplo, mas na
verdade o teatro de bonecos em qualquer uma de suas manifes-
tações, em qualquer cultura, sempre manteve características de al-
go não terreno, quer nas suas ligações com o ritual, quer nas mani-
festações mais lúdicas do povo onde o grotesco traz sempre marcas
do irreal. Ao criticar e ampliar situações sociais ele tem como obje-
tivo provocar transformações. Concretamente, diz B. Boie, o teatro
de bonecos representa "o inverso das coisas"!', É um objeto mate-
rial e ao mesmo tempo é a representação do imaginário.
Em seu estudo sobre o romantismo alemão, B. Boie baseou-
se no que ele chama de "simulacros" do homem que são os bone-
cos, os autômatos, as bonecas (brinquedos), manequins etc. Esses
simulacros são figuras concretas que os românticos suscitam conti-
nuamente como uma encarnação da imaginação.
Os simulacros, feitos à nossa imagem e semelhança, são para
B. Boie os símbolos das metamorfoses humanas. E não se trata da
idéia que inventa uma imagem, mas da imagem que encontra um
sentido ideal. E por detrás da imagem existe o problema da identi-
ficação com o mundo ilusório. A consciência do eu, segundo B.
12. K. Ph. Moritz, "Anton Reiser", Munche, Goldmann, 1%1, p. 219, Apud B. Boie,op. cit., p. 89.
283
so espírito habitar a matéria. E surge em nós, de repente, um terror
insólito, quando percebemos essa realidade. A estranheza que sen-
timos diante de um boneco é a angústia que sentimos diante do
nosso corpo material. O boneco é material e ao mesmo tempo re-
presenta o não-material.
Não era esse o medo que Artaud chamava de metafísico?
O romantismo, segundo B. Boie, está povoado de bonecos,
autômatos e manequins. E não só em Goethe mas também em
Lenz, Tieck, E. T. A. Hoffmann (só para citar alguns exemplos do
romantismo alemão sobre o qual o estudo de B. Boie se apóia) e
em muitos outros autores europeus dessa época era clichê compa-
rar o homem a um boneco. O artista romântico tratava dos proble-
mas da arte através de simulacros pois os simulacros pertencem ao
metafórico e ao imaginário.
Com o romantismo iniciou-se um movimento de reabilitação
do teatro de bonecos europeu.
Como que havia, no século XVIII, um fascínio pela técnica
capaz de reproduzir mecanicamente processos orgânicos. Essa
aparência de vida como que colocava o homem diante de fenôme-
nos naturais. E quando B. Boie fala em simulacros, ele se refere
principalmente à marionete ou ao boneco-personagem do teatro de
bonecos. E nota as diferenças que existem entre um boneco e as
efígies, os manequins, as figuras de cera, bonecas e autômatos. Há
uma diferença fundamental entre uma boneca (brinquedo de crian-
ça) e os autômatos, pois estes últimos são mecanismos ou máquinas
que servem como brinquedos de adultos". Em geral a criança não
está tão ligada a mecanismos pois está mais próxima da poesia do
que de complicados aparelhos, não tem necessidade de recorrer a
mecanismos para criar ilusão de vida. A criança naturalmente ani-
ma o que toca; nela, esse é um processo espontâneo.
13. os autômatos pareciam ser então para os adultos o que são hoje para eles os aparelhos eletrônicos.
284
Da Prática da Animação
Energia
Energia e Misticismo
22. Juana Elbein dos Santos, Os Nagô e a Morre, Petrópolis, Vozes, 1986.
23. O termo "funcionar" é aplicado por J. Elbein dos Santos. op. cit., p. 37.
24. Idem, p. 39.
25. Idem , p. 75.
289
individualizado, o destino de cada um. Com a morte, acontece a
perda da individualidade, a reintegração na massa progenitora ori-
ginária".
Energia e Teatro
Bjõrn FüIler, marionetista francês do Théâtre Le Manteau, diz
que as energias que regem os homens são as mesmas que regem o
universo, e, à medida que os homens compreendem isso, eles apren-
dem a ultrapassar o seu próprio eu e a se abrir às energias universais.
Bjõrn FüIler lembra que o boneco foi sempre muito usado na
transmissão da história de todas as religiões orientais". Já na Euro-
pa as histórias sagradas são muito esparsamente transmitidas com
bonecos. Mas esse afastamento do sagrado aconteceu também em
todas as manifestações artísticas do Ocidente. E Bjõrn FüIler diz
que o profano levou os artistas europeus a um subjetivismo muito
grande. No que tange o teatro de bonecos e o seu rompimento com
o sagrado, B. FüIler se pergunta: "Que forças são veiculadas hoje
através dos bonecosr?". E ele mesmo responde dizendo que, à me-
dida que o teatro de bonecos se afastou das tradições religiosas, ca-
da bonequeiro foi puxando forças e energias que lhe estão mais
próximas e com as quais, individualmente, mantém algum contato
ou cada um expressa as forças que o rodeiam, que o habitam.
Acontece que essas energias podem ser boas ou más. Daí a
responsabilidade de cada artista, pois de acordo com as forças que
evoca, ele influencia o seu ambiente.
Se o homem se afastou do sagrado, a solução, para se manter
o equilíbrio, segundo B. FüIler, é que ele passe a explorar os seus
espaços interiores e a transmitir o sagrado-pessoal que existe den-
tro de cada um.
26. Sobre essa fusão do indivíduo no coletivo, segundo o pensamento africano, vem a propósito lem-
brar aqui um processo semelhante que ocorre quando um indivíduo, ao usar uma máscara, desa-
parece enquanto pessoa para ceder lugar à entidade , sempre coletiva, que essa máscara representa.
27. Ver a Parte 2, Cap. 2, pp. TI-lOO.
28. Bjõrn Füller, op. cit., pp. 48-51.
290
o Teatro de Objetos e Ritual Contemporâneo
Pietro Bellasi, um sociólogo italiano muito envolvido com o
teatro de objetos, diz que ele funciona como uma espécie de radar
da sociedade atual, pois nos mostra os sintomas da vida humana,
captada em seu quotidiano. Enquanto o teatro está preocupado
com problemas literários ou estéticos, o teatro de objetos mostra-
nos a quotidianidade do homem contemporâneo.
Os rituais estão ligados a alguma tradição. É impossível
criar-se um ritual desligado da tradição.
E qual seria o sentido do ritual contemporâneo?
Para Bellasi, o ritual moderno se apóia no objeto funcional.
E, como já vimos, o teatro de objetos trabalha fundamentalmente
com objetos funcionais; ele como que sacraliza o objeto, procura,
através dele, retornar ao sentido sacro que antes existia no teatro
de bonecos tradicional. Para Bellasi os verdadeiros rituais da vida
moderna são rituais do quotidiano". A vida moderna destruiu os
mitos e os rituais. Os objetos de nosso uso pessoal diário são obje-
tos, para nós, sagrados. E o teatro de objetos inventou um ritual di-
reto entre o homem e seu objeto. Quando perguntado por M.
Schuster onde ele colocaria o divino no quotidiano, Bellasi sugeriu
que se invertesse a questão e se indagasse onde está o divino nas
cerimônias católicas de hoje em dia",
Todo ritual visa ao exorcismo, isto é, à eliminação do mal, do
demônio. E deve-se então também perguntar quais são os demô-
nios do nosso tempo. Muitos de nossos hábitos refletem um desejo
de eliminar demônios. Por exemplo, diz Bellasi, o nosso apego a
certos objetos velhos, de muito uso já, são para nós recordações, fa-
zem parar o tempo, eles refletem nossa ligação com o passado. Evi-
tar objetos novos é a maneira de ir contra a publicidade desenfrea-
29. A tem ática de Peter Schumann, do Dread and Puppet Theatre se apói a justamente no quot idiano
do homem. O sagrado para ele está na vida simples.
30. Ver entrevista de P. Bellasi concedida a M. Schuster, "Deux sociologues au pays de la marionnette",
Marionnettcs, nO 11, 1986, p. 19.
291
da que nos incentiva ao consumo, um dos grandes demônios do
nosso tempo. O teatro de objetos tem também uma função denun-
ciadora dos sintomas de nossa época, captados no quotidiano.
Como antigamente, a máscara foi um elemento de ligação
com forças cósmicas, hoje o objeto é um elemento que nos mantém
ligados ao mundo.
Interessante notar também a relação que existe entre os ri-
tuais e a energia que se desprende de movimentos repetidos.
Todo ritual é uma repetição. Repetição é cópia e reflexo. Na
cópia que se repete só o essencial permanece, no reflexo alguma
coisa se manifesta.
Teatro não é outra coisa senão repetição e reflexo.
o Enigma
Os dadaístas, ao darem ênfase à arte primitiva, às máscaras e
ao transe, enfatizam a ligação do mundo material com o sobrena-
tural.
Os ready made de Marcel Duchamp são representações espi-
rituais através de algo simples e prosaicamente material. Também
os objetos de De Chirico, sem artifício algum e aparentemente des-
conectados, nos perturbam como se representassem algo com que
não atinamos, de imediato.
No teatro de bonecos, a partir da década de 50 e por influên-
cia (tardiamente manifestada) dos futuristas e dos surrealistas, a
representação do homem foi-se tornando cada vez mais abstrata
até ser substituída por simples objetos".
O teatro de objetos, que alguns consideram uma evolução do
teatro de bonecos, é uma linguagem metafórica que teve, entre os
seus precursores, artistas futuristas. O futurismo lançou manifestos,
nos quais falava-se sobre conteúdos psíquicos da matéria inanimada.
31. Ver Parte 2, Cap. 4, O "Poético Maravilhoso", onde se vê que quanto mais abstrata é a represen-
tação humana ou quanto menos fiel a sua imagem real, mais ela o representa.
292
Anton Giuglio Bragaglia, em suas pesquisas sensoriais (odor e chei-
ro), percebia, no movimento, fenômenos pára-norrnais, Em suas
pesquisas sobre a fotografia, captou o que ele chamava de a essên-
cia do movimento. Nas posições intermediárias entre uma imagem
e outra, nos movimentos de transição, ele notou que alguma coisa
se comunicava. Para ele, a essência de um objeto estava além do
que a sua aparência sugeria, e essa essência poder-se-ia captar em
seus movimentos.
A mesma idéia ouvimos, anos mais tarde, expressa pelo grupo
suíço Mummenschanz que, ao falar dos seus processos de trabalho,
diz: "O movimento faz sair para fora alguma coisa que parece exis-
tir dentro de um determinado material ou forma?".
É como se fluidos cósmicos penetrassem os objetos e nos fos-
sem, através deles, transmitidos. E não estamos nos referindo aqui
a objetos sagrados mas a qualquer objeto, principalmente da maté-
ria bruta.
A holografia é outro exemplo, excelente, através do qual se
percebem outras amplitudes da matéria e dos objetos.
33. Vemos uma semelhança entre certos objetos, como bússolas, relógios, estrelas e o homem. Eixo e
ponteiros, centro e extremidades. No eixo, no centro, a luz, o calor e, pelas extremidades, a sua
expansão.
294
H. von Kleist repousa, portanto, na harmonia do movimento es-
pontâneo. Pensamentos racionais cortam essa harmonia. A beleza,
para Kleist, segundo análise feita por B. Boie, está na harmonia en-
tre o eu interior e o nosso corpo exterior, é a manifestação de uma
"alma que repousa em si mesma'?', Para H. von Kleist, intrinseca-
mente, existe em nós e no objeto harmonia e beleza. É o que Bjõrn
Füller chama de o sagrado dentro de nós",
Todo objeto tem dois aspectos: o aspecto comum, que é o que em geral vemos e os
outros também vêem, e o aspecto fantasmagórico ou metafisico, que só uns raros indiví-
duos, nos seus momentos de clarividência e meditação metafisica vêem. A obra de arte deve
expressar algo que não apareça na sua forma visivel39•
são aqueles usados para expressar verdades eternas, presentes em todas as religiões.
Depois de longo processo de elaboração, mais ou menos consciente, esses símbolos culturais
passaram por inúmeras transformações, tornando-se então símbolos coletivos aceitos pelas
sociedades civilizadas. E eles guardam muito de sua numinosidade original ou magié2•
Arquétipos e Símbolos
50. R M. Rilke, Les élégies de Duino, Trad. de J. F. Angelloz, Paris, Aubier, 1943,p. 118.
51. Quanto mais abstrato, mais amplo é o conceito.
299
que nos fazem transcender a matéria, mas a própria matéria, sem
consciência. Há na matéria uma força invisível que se desprende.
Daí o poder do bastão do xamã ou da vara de condão, dos objetos
rituais, dos elementos da natureza, das propriedades químicas dos
vegetais. Há também uma força que se desprende do movimento,
uma força que vem do centro de gravidade do movimento.
Dizia Jung que "os arquétipos têm algo em comum com o
mundo atômico?". E esse algo comum são as energias cristalizadas,
percebidas melhor nas representações em escala reduzida do ho-
mem, como observou Françoise Grund", O que nos leva a concluir
que as energias conglomeradas dos arquétipos têm relação com os
átomos infinitamente pequenos dos quais grandes forças emanam.
52. Disse Jung: "Os arquétipos têm em comum com o mundo atômico esta característica, que os nos-
sos dias justamente comprovam: quanto mais profundamente a experiência do pesquisador pene-
tra no mundo do infinitamente pequeno, mais devastadoras são as quantidades de energia acumu-
lada que ele lá encontra; do infinitamente pequeno emana o maior efeito; isso se tornou evidente,
não apenas no mundo físico, mas também na pesquisa psicológica. Quantas vezes, nos momentos
críticos da vida, o todo depende do aparente nada". Apud J. Jacobi, op. cit., p. 68.
53. Ver também em nosso trabalho Parte 3, Cap. 3, pp. 214 e SS., sobre o micro-macro-teatro.
300
A deformação da voz no teatro de bonecos não é um fenômeno essencialmente
estético. É claro que se busca harmonia entre o boneco e sua voz, mas isso não é o primor-
dial. Constatamos que a modificação de voz aparece sempre quando se trata de dar um as-
pecto sobrenatural a um personagem ou a um som, quando se trata de mostrar estranhezas,
de dar outra aparência que não a do mundo dos vivo?
58. Entrevista de B. Wilson com Predic, Belgrade Lu. Gazette, set. 16, 1971, Apud M. Croyden, op. cito
59. Susan Sontag em seu ensaio intitulado "A Estética do Silêncio" faz uma distinção entre olhar e fi-
tar. O olhar, para ela , é voluntário e móvel, cresce e decresce à medida que o foco de interesse se
esgota; já o fitar tem um caráter de compulsão, é estável e fixo. A Vontade Radical, São Paulo,
Cia. Letras, 1987, p. 23.
302
pois o inconsciente está próximo da mente primitiva e da infância.
"Quando a mente racional é silenciada, o modo intuitivo produz
uma percepção extraordinária", disse Capra'",
O teatro de formas animadas, sendo como é um teatro de
imagens simbólicas, é o meio ideal para a apresentação da mitolo-
gia e de personagens míticos (monstros, bruxas, fadas e princesas)
que despertam no nosso inconsciente situações do inconsciente in-
dividual ou coletivo.
DPúblico
DAtor
305
BIBLIOGRAFIA
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Arligos
Entrevistas
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